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TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
TERCEIRA MEMÓRIA: POEIRA ESTELAR
Cinquenta e seis anos depois...
A chuva atinge a janela em gotas gordas cercadas de gelo. É apenas seis da tarde, mas o crepúsculo do outono chega mais cedo em Pleasance. Olho pela janela, a chuva entrando em minha cabeça por osmose, borrando meus pensamentos enquanto me encosto contra o vidro gelado. As paredes azuis atrás de mim se fecham, tocando o cenário lá fora e formando um túnel. A claustrofobia, minha velha inimiga, espreita nas sombras.
Minha coluna curva se abaixa. A amônia fere meu nariz. Sinto a pureza amarga na garganta, e ela queima.
O movimento ao redor da cama de hospital de Jeb se reflete no vidro. Ele está cercado pela família: nossos dois filhos e nossa filha, juntamente com as esposas e maridos, filhos e netos. Jenara e Corbin estão ausentes — ela está num asilo e ele, no cemitério. Mas nossas sobrinhas e sobrinhos mandaram flores, plantas e textos bem-intencionados para nos consolar e nos dar esperança.
Esperança é a última coisa que sinto.
Há apenas duas semanas, Jeb estava perfeitamente saudável. Então, depois de um exame de rotina, nosso mundo virou de cabeça para baixo. Palavras feias como “maligno”, “agressivo” e “inoperável” corroeram nossa vida feliz, deixando-a aleijada e vazia como o corpo de Jeb em breve. O médico disse que ele tinha no máximo seis semanas... que oferecer uma chance de sobrevida maior seria impossível.
Mas ele está errado, porque não sabe que meu marido ainda tem um desejo para ser usado.
Roupas raspam umas nas outras e sapatos se arrastam no piso de azulejo, enquanto parte das pessoas deixa o quarto para jantar no refeitório. Só restam nossos três filhos, que, como eu, estão sem apetite, e nossos dois bisnetos, que já comeram.
Jeb está sendo forte, inventando histórias bobas sobre os hematomas roxos nos braços. Ele jamais deixará os menores saberem a verdade: que surgiram por causa dos primeiros tratamentos de quimioterapia subcutânea, algo que só serviu para deixá-lo dolorido, nauseado e infeliz.
Nossos bisnetos, com três e cinco anos, se revezam na beirada do colchão, tentando ficar mais perto dele.
— Não. Não são pegadas de besouro, biso — diz nossa Alisia, loira de olhos azuis, acariciando as rugas no rosto dele. As marcas do tempo só servem para torná-lo ainda mais notável e belo, a despeito de seus quase oitenta anos neste mundo.
Ele sorri e beija os dedinhos gordos dela. Ele ama nossos netos, mas Alisia tem um lugar especial em seu coração. Ela é a imagem escarrada de mim quando criança, com o mesmo caráter cínico e sério, o que o desafia irresistivelmente a fazê-la sorrir e dar risadas.
— Claro que são pegadas — provoca ele. — Eles pisaram na tinta e depois em mim enquanto eu dormia. Desenhando mapas na minha pele. Eles acham que há um tesouro escondido nos meus cabelos. Isso porque meu cabelo é feito de um fio mágico de prata. — Uma luz lilás fraca entra pela janela, dançando por seus cabelos ondulados e grossos. Temo pensar neles caindo aos montes e o deixando calvo.
Alisia gargalha — um som adorável que ecoa pelo quarto frio e aquece os ouvidos —, um alívio maravilhoso dos meus pensamentos mórbidos.
— Mesmo, biso? — pergunta Scotty, entrando na conversa. O travesso menino de cinco anos tenta tirar a irmã para dar uma olhada mais de perto nos cabelos de Jeb e quase a derruba.
Viro-me, em pânico, mas nosso filho mais velho a pega e a coloca de volta ao lado do travesseiro.
— Scotty, eu já disse, nada de brincadeiras bruscas perto da cama. São muitos fios e botões. Seja bonzinho, ou tirarei você daí.
— Sim, vovô. — Scotty baixa a cabeça, os olhos castanhos penitentes.
— Ah, ele é todo bagunceiro mesmo. — Jeb acaricia a cabeça de Scotty.
Deitado sob cobertores, pálido e doente, meu marido parece muito menor do que me lembro.
Nós dois.
Suspiro e encaro a chuva de novo.
O tique-taque do relógio na parede assinala a marcha de um condenado. Aperto minhas mãos enrugadas.
Quantas horas nos restam? Quantos minutos e segundos para nos despedirmos? Adoro nossa família, mas, com eles ali, todos os sentimentos secretos que quero compartilhar permanecem em silêncio na minha língua — pensamentos dormentes, sussurros abortados.
Cai um raio e as paredes piscam com uma luz amarelada.
Nosso filho caçula — Jackson, de quarenta e quatro anos — se senta numa cadeira de canto não muito longe de mim, concentrado na prancheta de desenho em seu colo. Ele sempre foi o mais parecido comigo. Quieto, introspectivo, sério. Ele tem a tendência de fugir para seus desenhos quando está com problemas ou irritado. Provavelmente está aperfeiçoando seu último projeto do escritório de arquitetura.
— Mamãe, você precisa ver isso. — A voz da minha filha me alcança. Conheço aquele tom. Ela está tentando nos tirar de nossa depressão. Ela sempre foi a maior animadora e mediadora da família.
Viro-me para encará-la e me apoio de costas na janela, o frio adormecendo meus dormentes brotos de asa. Victoriana pega uma foto de uma caixa de sapatos na mesinha de cabeceira e a levanta no ar. Na parte de baixo há uma etiqueta branca na qual se lê: David Nathanial Holt — peixe fora d’água.
— Lembra quando o tio Corb pegou esse? — pergunta ela.
Faço que sim. É uma foto de quarenta e nove anos atrás. Jeb está com trinta, e eu, vinte e oito. Estamos rindo e navegando pelo oceano com nosso primeiro filho. Na minha barriga está nosso segundo e não sabemos ainda que é uma menina. A praia é uma das nossas quatro preferidas em nossas férias como família. A mamãe e o papai em breve viriam, juntamente com a mãe de Jeb, e também Jenara e Corbin e os dois filhos deles. Estudo o casal feliz na imagem. Sinto que foi há uma vida. Jeb e eu seguramos as mãos gordinhas de David, então com dois anos, entre nós, erguendo-o de modo que seus pés descalços toquem as ondas. Ele é o único dos nossos filhos que nunca gostou de nadar. Não que tivesse medo de água... ele tomava banho satisfeito. Ele simplesmente não gostava de molhar seu traje de banho. Isso sempre “o arrepiava” e o deixava de mau humor.
O rosto choroso de Victoriana silenciosamente implora ajuda ao olhar para David, ainda de pé cuidando dos netos. Ele pega Scotty e o leva para o outro lado da cama, com a irmã, deixando Alisia para acariciar o cabelo encantado do biso.
David dá um tapinha na covinha do queixo de Victoriana, acalmando-a, depois se abaixa para deixar Scotty mexer nas fotos. A cabeça de David quase toca a da irmã. Ambos herdaram os cabelos escuros e os olhos verdes do pai. Na verdade, não fosse pelos dois anos de diferença entre eles e pela delicadeza da minha filha — tão diferente dos traços masculinos e brutos do irmão —, as pessoas pensariam que eram gêmeos.
Victoriana cutuca o ombro dele com o cantinho da imagem.
— Eca, não molhe minhas roupas! É nozento! Você é um chorão, mano.
Um sorriso agridoce toma conta de mim. Há momentos em que ela lembra tanto sua tia Jenara que dói.
David bufa.
— Bom, ao menos há praias de nudismo para pessoas com minhas.... sensibilidades. Por outro lado, não há como fugir de pássaros. Eles estão em todos os lugares. — Ele encontra uma foto de sua irmã de nove anos correndo de uma galinha numa fazendinha e a exibe para todos verem. Victoriana Violet Holt: aprendendo a voar está escrito na etiqueta. — Pois é, Vic. — David ri. — Eu sou o chorão.
— Ei! — Ela cutuca o irmão. — Não tenho ornitofobia, babaca. Gosto de pássaros... só não suporto coisas que batam as asas perto de mim. Principalmente insetos. — Ela dá de ombros e se vira para o pequeno Scotty, agarrado à cintura do avô. Juntando as mãos para formar asas, ela as abana perto do rosto gordinho da criança. Ele chuta e reclama, depois segura as mãos dela e luta com elas.
David ri novamente.
— Certo. Tudo porque uma mariposa ficou presa na cozinha uma vez. A maioria das crianças que vivem no interior sobrevive a esse tipo de trauma sem sequelas duradouras. Isso não afetou o Jack.
Jackson abre a cortina de cabelos loiros que caem em sua testa e ajeita os óculos no nariz, finalmente deixando o desenho de lado. Olhos azuis como os meus dançam por trás da armadura redonda de metal e sua boca se abre num enorme sorriso, com o incisivo torto combinando com o do pai.
— Ah, eu não era nascido ainda, Dave. — Ele se levanta e se aproxima de mim, me abraçando pelos ombros. Encosto-me nele, sentindo o cheiro de seu perfume, uma versão madura do cheiro de menino, cheiro de suor e ar livre que costumava aderir nele nos seus dias de skatista.
— Pois é, nosso belo Jackson Thomas ainda estava em segurança dentro do útero da mamãe na época da grande mariposa — argumenta Vic, a covinha se aprofundando e ela lançando um sorriso para mim.
Jackson me abraça mais forte, o nariz torcido.
— Sério mesmo, Vic? Você precisa pintar uma imagem assim tão explícita?
Rio desanimadamente.
— Certo — diz Victoriana. — David é o artista famoso. Eu deveria deixar a imagem para ele.
David revira os olhos.
— Esculpir e pintar são coisas completamente diferentes. Assim como galinhas e insetos.
Todos riem — Jeb ri mais alto do que todos, o que gera outro ataque de riso em Alisia.
— Aquela mariposa era grande o bastante para comer uma galinha! — Claro que Vic não quer deixar o assunto para lá. Sua tenacidade é parte do que faz dela uma mecânica tão boa e parte da razão por que ela é a proprietária da oficina do pai agora. — Além disso, eu tinha cinco anos. Difícil superar uma lembrança dessas.
— Nem me fale — digo, baixinho. Jeb, segurando o vestido de Alisia para mantê-la bem ancorada à cama, capta meu olhar. Seus olhos verdes ainda são expressivos e claros, apesar de sua pele pálida e das bolsas pesadas sob os cílios. Ele sabe no que estou pensando. Depois de quase sessenta anos de casamento, ele era capaz de escrever na minha mente sem precisar de borracha.
Estamos os dois nos lembrando de segredos que nossos filhos jamais saberão. Foi a única vez que Morfeu visitou nossa família e foi por causa de uma emergência na Corte Vermelha que eu tinha de resolver. Se Jeb não tivesse sido mágico também, ele poderia ter ajudado nosso filho mais velho a espantar a mariposa gigantesca com nunchakus de plástico, ainda mais levando em conta que Morfeu dissera que ficaria longe do reino humano. Em vez disso, Jeb capturou a mariposa para resgatá-la das “varetas da ira”, depois pôs Morfeu no nosso quarto, até que eu voltasse do mercado e pudesse resolver as coisas.
— Ei, eis aqui uma foto das plantas das pistas de corrida de bolinhas de gude do papai — diz David, tirando-me de minha nostalgia. Ele ergue a imagem na minha direção e na do irmão mais novo. — Jack, você precisa ver isso. Elas estão grudadas como papel de parede em toda a garagem. Tão estranho que eu nunca tenha visto isso...
Jackson segura minha mão e tenta me puxar para perto, mas aperto os dedos dele e começo a ir até Jeb. Não preciso ver a imagem. Eu a vivi.
Foi dois anos depois que voltamos da nossa última aventura no País das Maravilhas e Jeb estava limpando o sótão da mãe enquanto ela trabalhava e eu estava na faculdade fazendo os exames finais. Ele encontrou um baú e, dentro, estavam todos os desenhos que ele fizera quando criança, quando ele e seu pai faziam pistas de corrida para bolinhas de gude. Havia até mesmo alguns desenhos de pistas que ele esperava um dia fazer com seu pai, antes de perdê-lo num acidente. Jeb não sabia que seu pai tinha guardado aquilo por tantos anos. Achou que ele os tivesse jogado fora. Os desenhos eram detalhados e intrincados; Jeb não tinha de fazer nada além de seguir as plantas — não era necessária visão artística.
Jeb recobrira as paredes da minha garagem com centenas de papéis antes de eu voltar da faculdade naquele dia. Quando cheguei, fui cercada por nosso futuro. Nunca vi meu noivo tão realizado, porque ele encontrara uma forma de continuar criando e seu pai o ajudara com isso.
Chegando à cama de Jeb, toco seu rosto e ele segura minha mão para beijá-la.
— Bisa! O biso conversa com besouros! — cantarola Alisia.
Rio — mas é uma risada no máximo agridoce. Alisia se levanta precariamente na cama com Jeb a segurando e pula até que eu a pego e enfio o nariz em seus cabelos docemente perfumados.
— Ah. — Victoriana arfa ao lado da mesinha. — Essa sempre foi minha preferida. — O sorriso dela é amplo e trêmulo.
Uma olhada na foto que ela mostra e volto ao nosso casamento, cercada por treliças de rosas brancas. Todas as mulheres na festa — até mesmo a menina do buquê — usam asas que acendem graças a fibras óticas e baterias. Somente minhas asas e as da mamãe são reais, com uma renda instalada estrategicamente nas bases para esconder que elas saíam de nossa pele. Eu uso uma tiara brilhante e os homens, incluindo o que leva as alianças, usam túnicas com armaduras de malha de metal.
Jeb me deu um casamento de conto de fadas na praia, com cavaleiros e seres místicos, todos brilhando e folheados por um crepúsculo rosado. Quando dissemos nossos votos e ele me beijou, uma bolinha azul desceu do céu e pousou na cabeça de Jeb antes de estourar como uma bolha. Os convidados acharam que era uma espécie de anomalia atmosférica causada pela umidade e pela luz, mas todos concordaram que foi o casamento mais mágico que tinham visto.
Mal sabiam eles quanto estavam certos: que o homem que abdicara de seus sonhos estaria sonhando naquela noite com sua esposa — um presente inesperado de um ser intraterreno que antes era seu maior rival.
Os olhos de Jeb me percorrem como fizeram naquela noite, a primeira vez que ficamos juntos como marido e esposa, cheios de amor, confiança, esperança e desejo.
Olhando para mim e para ele, David pigarreia e recolhe as fotos que Scotty espalhou pelo criado-mudo.
— Sabe, pensando bem, acho que estou pronto para jantar. Vocês também querem?
Jackson deixa suas coisas de lado, pega seu caderno de desenhos e move a cadeira atrás de mim.
— Sente-se, mamãe. Fique um pouco mais.
Eu lhe abro um sorriso triste e ele me ajuda a me sentar ao lado de Jeb.
Victoriana funga e fecha a caixa com as fotos. Ela se abaixa para beijar a testa do pai.
— Volto logo, papai.
Ele segura a mão dela e a leva aos lábios.
— Tudo bem, anjinho.
Jackson e David o abraçam e pegam os menores.
— Esperem, crianças. — O pedido de Jeb os surpreende antes que eles saiam do quarto. — Todos sabem que tenho orgulho de vocês, não é? Que vocês fizeram a mim e à sua mãe muito felizes? — Seus olhos brilham com lágrimas contidas.
Eles fazem que sim.
— Que bom. Amo vocês.
— Amo você também, papai — dizem eles em uníssono, as vozes trêmulas. A porta se fecha e os únicos sons que restam são os do relógio e da chuva.
Jeb me puxa para um abraço demorado e choramos baixinho juntos.
É difícil recuperar a compostura, mas, quando o fazemos, ele pega algo de baixo do travesseiro e me entrega: uma rosa branca... esmagada e ligeiramente gasta, mas a flor mais linda que já vi.
Pegando-a com a mão trêmula, levo-a ao nariz.
— Onde... como?
— Ainda tenho algumas cartas na manga, menina do skate.
Tento rir, mas o riso se transforma em choro.
Ele acaricia meu rosto.
— Shh. Você trouxe meu desejo?
Eu o tiro do meu bolso, contendo mais lágrimas.
Ele segura minha mão.
— Pare com isso. Esperei tanto para usá-lo. Isso é algo importante. Ninguém precisa sofrer minha doença.
— Muito menos você — sussurro, prestes a cair no choro de novo. — Mas você poderia usar isso para ser curado e viver mais. Ao menos o bastante para Alisia começar o jardim de infância. A mágica pode operar milagres.
Seus dedos contornam meus olhos, no lugar onde as marcas intraterrenas estão à espera.
— Você é o único milagre de que precisei. Você sempre se culpou de alguma forma por eu ter perdido minha musa. Mas não vê? Nunca perdi nada. Você é minha musa. Mesmo sem minha criatividade, você ficou ao meu lado e sempre esteve lá, me inspirando a ser o homem que eu queria ser. Por sua causa, estou deixando um legado. Uma família feliz e harmoniosa que levará adiante nossas memórias e tradições. É assim que viverei para sempre, Al. Um mortal não pode pedir mais.
As lágrimas rolam quentes por meu rosto. Dói respirar. Se não soubesse que era impossível, diria que meu coração estava se partindo.
— Quanto a Alisia e Scotty, nós dois sabemos que, quanto mais velhos eles forem quando eu morrer, mais difícil será para eles. Sempre soubemos que isso aconteceria um dia. Que um de nós acabaria onde o outro não poderia acompanhar... nos dois casos. Não havia escapatória. Porque somos de mundos diferentes. A mágica não pode me transformar em alguém que não sou. Sou humano. A morte faz parte de quem sou. Mas não é parte de você. Você tem outra vida a esperando. Eu tive tudo com o que sonhei. Porque ele ficou distante. Agora é a vez dele.
No fundo, sei que ele tem razão. Mas imaginar nunca mais poder vê-lo de novo... nunca mais segurar a mão dele... nunca rir com ele — me deixa arrasada.
— Tenho medo por você. — É uma mentira, porque é por mim que tenho medo. Encarar tanta dor assim sozinha é paralisante. — Como você pode ter tanta certeza... estar tão calmo?
Ele une nossas testas para que possamos olhar um dentro dos olhos do outro.
— É porque, para onde quer que eu vá nesta nova jornada, vou em paz. Tenho a caminhada mais fácil do mundo. Você é quem tem que ficar para trás e consolar os que ainda estão aqui.
A pressão aumenta na minha garganta. Quero ficar com raiva dele por ir embora. Mas tudo o que sinto é amor e admiração. Não consigo nem imaginar fechar meus olhos para sempre... encarando o desconhecido. Ele é muito mais corajoso do que jamais serei.
Escondo meu rosto nos cobertores que cobrem seu peito, chorando.
— Morfeu uma vez me disse que isso seria mais difícil do que eu imaginava... Não quis acreditar nele. Pensei... Pensei que era mais forte do que isso.
Jeb carinhosamente mexe no coque na minha nuca.
— Você é. Você é Alyssa Victoria Gardner, a menina que partiu a pedra com uma pena e cruzou a floresta num só passo. Você teve o oceano na palma da mão, você mudou o futuro com a ponta do dedo. Você...
— Nós derrotamos um inimigo invisível com frutinhas tuntum — interrompo, erguendo a cabeça em meio às lágrimas. — Nós esmagamos um exército sob nossos pés. Éramos nós dois, juntos, enfrentando aqueles testes de frente. — Minha voz falha.
— Mas foi você, sozinha, quem acordou os mortos e usou o poder de um sorriso. Você sozinha derrotou a Vermelha e todos em Qualquer Outro Lugar. Você conquistou a coroa. — A voz de Jeb está rouca de emoção. — Um reino mágico aguarda seu reinado. Você já escondeu este seu lado por muito tempo para ficar aqui, tanto que se esqueceu do que você pode ser quando tudo acontecer. É hora de se lembrar. E de nunca mais esquecer. — Ele segura meu rosto e puxa minha boca para perto da dele no beijo mais carinhoso que jamais trocamos. — Pronto, tivemos a chance de um último momento perfeito, rainha-fada. Vamos fazer isso valer a pena. — Com o dedo, ele seca a umidade no meu rosto enrugado.
Ranjo os dentes e entrego a lágrima congelada.
Mantendo o olhar fixo em mim, Jeb aperta o desejo para liberar um perfume de saudade e salmoura e depois fala as palavras que praticou ao longo da última semana: ele pede para reviver o sonho que compartilhamos na noite de núpcias, para podermos ficar juntos uma última vez, e, depois disso, nunca mais acordar.
Mal fechei os olhos e já estou lá, dentro de seu quarto de sonhos onde passamos nossa noite de núpcias. Pilares de prata envoltos em tecidos roxos nos cercam. Ao meu lado, há um banco trançado sob um arco envolto em tule roxo e branco; máscaras de carnaval pendem de fios de vários comprimentos — roxas, pretas e prateadas.
Tenho vinte e um anos de novo, usando meu vestido de noiva — renda branca, pérola e sombras pintadas. Acabo de desfazer um laço mágico da caixa em minha mão e uma chuva dourada de letras dança ao meu redor.
Coisas que eu esperava lhe dar:
1. Um casamento mágico...
Todos os meus temores e tristezas anteriores desaparecem quando Jeb aparece ao meu lado de smoking — vinte e três anos, pele oliva lisa, labret brilhante. Cheio de saúde e vitalidade. Contendo lágrimas de felicidade, estendo a mão esquerda que já tem o anel dele.
Ele sorri aquele sorriso com covinha. Dizemos quanto sempre nos amaremos até que a morte nos separe, e então ele me puxa para um beijo. Uma faísca quente e elétrica estala entre nós. A sensação e a surpresa me arrepiam e eu brilho com o calor e o sabor dele — como da primeira vez que saboreei seus lábios. Ele nos coloca no banco e cedemos à paixão até estarmos esgotados. Depois, tocamos o rosto um do outro, trocando beijinhos e sussurrando declarações de amor. Aproveitamos cada instante, cada olhar, cada sorriso e suspiro, não mais dois entes singulares, e sim uma força unida.
Ficamos lá um nos braços do outro, enquanto o cenário se transforma ao nosso redor. Ainda é seu quarto de sonho — apesar de o pano de fundo mudar para permitir que revivamos todos os sonhos que ele teve e foram realizados.
A cesta de piquenique no chão levita e paira sobre nossa cabeça. Jeb desfaz o laço na alça, dando início a um novo desfile brilhante de letras:
2. Piqueniques no lago com sua mãe...
Caminhamos por um campo verdejante, seguindo a cesta, depois revivemos os momentos rindo com a mamãe e o papai à beira do lago. Estamos famintos e nos deliciamos com frutas, chocolates e vinho.
Depois de saciarmos nosso apetite, puxo um fio solto do mosaico que desliza pela água como um barco. Outra sentença brilhante é libertada:
3. Toda uma vida de sucessos e risadas compartilhados...
Abro as asas. Jeb segura minha mão, já não precisando de ajuda para voar. Juntos, subimos até a abóboda e assistimos ao cenário que nos cerca mudar para outras cenas — todas as nossas esperanças cumpridas a cada realização e nascimento de um filho.
Segurando-me pelo cotovelo, Jeb aponta para o outro lado do quarto, onde sua moto paira no alto, em meio a luzes natalinas.
É o único sonho incompleto e será nosso último momento juntos.
Flutuamos e soltamos o laço no guidão da moto.
4. Passeios à meia-noite pelas constelações do País das Maravilhas...
Flocos de neve e uma brisa amena nos cercam. As vigas se abrem para uma noite perfeita, enquanto me ajeito atrás dele no assento da moto. Ele liga o motor e as luzes natalinas se transformam numa espiral de estrelas brancas se encolhendo e se expandindo em faíscas, como feixes de raio. Entramos no mesmo céu do País das Maravilhas sob o qual dormimos há muito tempo num barco no oceano de lágrimas.
Meus braços envolvem seu corpanzil e balançamos para a frente e para trás, nossos movimentos sincronizados enquanto subimos mais e mais. Jeb acelera um pouco e ganhamos velocidade, minhas asas abertas atrás de mim, contra o vento. Eu grito e Jeb se junta a mim numa risada.
Seguro a cintura dele com mais força, as rodas resvalando na lua e deixando rastros de luz fosforescente no nosso caminho em zigue-zague pelas constelações.
Estendo a mão e pego uma estrela. Ela efervesce na minha mão antes de se transformar em poeira brilhante.
Capítulo 3
Destino
Fecho os olhos para a aurora e depois olho novamente para a garrafa de poeira estelar na minha mão, determinada a ser mais forte do que a dor insuportável por trás do meu esterno. Naquela noite há três anos, quando minha família voltou ao quarto de Jeb no hospital, eles me encontraram dormindo com a cabeça em seu peito. Eles acharam que Jeb estivesse dormindo, mas ele silenciosamente havia falecido.
Ao me acordarem, senti algo na minha mão e a abri, revelando a última lembrança do nosso tempo juntos. Todos estavam ocupados com o luto e não notaram que eu tinha pegado uma estrela ou que a coloquei no bolso — outro segredo a guardar, a última costura mágica para completar meu coração.
Fungando, coloco a garrafa na minha mochila juntamente com as outras duas e a fecho. O bando de borboletas e mariposas que formavam meu véu ficam impacientes e me acompanham até meu destino final.
Dou as costas para o reino humano, encarando a toca do coelho a meus pés.
— Alyssa, meu amor. Salte.
Desta vez, não há dúvida quanto a quem está falando em minha mente. É a voz da minha Amada Mariposa.
Dou-me conta do meu cansaço e esgotamento. De que estou pronta para romper os laços com a mortalidade — e entrar na eternidade.
Sem hesitar, deixo o corpo cair. Flutuo como uma pena e fecho os olhos contra o que sei que se passa na minha descida: armários abertos cheios de roupas, móveis, pilhas de livros em estantes flutuantes, comidas, potes de geleia e porta-retratos vazios presos com trepadeira às paredes sujas.
Não olho porque quero que o rosto dele seja a primeira coisa que eu veja.
Finalmente sinto seus braços fortes me pegando e me colocando no chão. Morfeu — sempre esperando, exatamente como prometeu.
Meus olhos se abrem para seus traços místicos imaculados, intocados pelo tempo, tremeluzindo à luz dos candelabros de cabeça para baixo. Os cheiros de cera e pó se confundem com o perfume conhecido do narguilé.
Ouve-se um som rangente quando a toca do coelho se fecha sobre minha cabeça, deixando apenas as velas para iluminar o ambiente abobadado sem janelas.
— Bem-vinda à sua nova realidade, minha frutinha. — Ele segura minhas mãos velhas e enrugadas, leva-as à sua boca quente e macia e me puxa para um beijo (bem na boca!), a despeito da minha velhice e fragilidade. Ele vê para além disso, vê o que sou por dentro. Vê a governante que ele ajudou a moldar em meus sonhos desde a infância.
Bem quando acho que vou ser levada em ondas de loucura e paixão, ele interrompe o beijo.
— Vamos tirá-la dessas suas horríveis roupas humanas, sim?
Um nó de empolgação e ansiedade percorre meu corpo enquanto ele tira o traje de disfarce e os tênis. Mas detenho suas mãos antes que ele possa tocar minhas roupas de baixo.
Depois de anos de enigmas e trocadilhos e manipulando meus súditos na Corte Vermelha, minha mente finalmente é um complemento à de Morfeu. Mas meu corpo é inferior. Estou fraca e velha — uma massa mole de pele flácida, ossos frágeis e músculos atrofiados. Ele sempre foi elevado, na ideia e na forma. Deste dia em diante, quero ser igual a ele em todos os aspectos — corpo, espírito e mente.
— Primeiro, faça-me jovem de novo — insisto com uma voz mais real e enfática do que me achava capaz.
— Como manda a Minha Rainha. — Fazendo uma mesura, ele me leva até uma mesa no meio da sala, pega minha coroa de uma almofada e a coloca em minha cabeça.
Há uma pulsação encantada... nada que eu possa ouvir, mas sinto — um ritmo de vida e mágica que começa no meu coração e lateja em todos os núcleos de todas as células, numa valsa em todo o meu DNA. Meus cabelos ficam mais espessos e quentes com o loiro claro da juventude. Algumas mechas se reviram ao meu redor, fervilhantes e cheias de mágica. Estendo os braços e minha pele, seios e músculos ficam duros e lisos. Abro as asas, arfando de emoção quando elas irrompem pelas costas da minha camisa e se erguem altas e orgulhosas atrás de mim. As cores reverberam nas paredes, refletindo as joias que se estendem por todos os meus apêndices... exibindo todos os humores a Morfeu.
Seu olhar sobre mim se intensifica, maravilhado e reverente. Ele está tão quieto e sóbrio que temo que algo tenha dado errado.
Toco meu rosto, batendo na pele perfeita e macia.
— Funcionou? — Minhas cordas vocais falham. — Estou normal? Sou eu mesma?
— Não exatamente, Alyssa — responde ele, a voz carregada. — Você nunca foi normal. Você é especial. Você é transcendente. E você é minha.
Sua reafirmação de propriedade me arrepia — um desafio. Por uma fração de segundo, fico desarmada por sentir minha juventude e vibração subindo à superfície, tentada a usar meus encantos e aceitar o desafio dele. Reunir este poder — depois de tantos anos presa dentro de um casulo mortal decadente ou usando meu intelecto e esperteza para cultivar confiança e autorrespeito — é ao mesmo tempo assustador e empolgante.
Mas minha hesitação passa num piscar de olhos. Não me sinto intimidada pela minha sensualidade como teria acontecido quando era uma menina ingênua. Agora eu sei como aceitá-la. Combinada com meu destemor e minha coragem intraterrenos, minha feminilidade me tornará invencível porque sou uma mulher.... e uma Rainha Vermelha.
Jamais voltarei a desprezar minhas duas condições.
O olhar de admiração de Morfeu desperta meu lado competitivo. Depois de uma longa espera, ele ganhou o direito de me reclamar... por enquanto. Contudo, depois que casarmos, eu o reclamarei de volta.
Ao pensar nisso, lembro que estou completamente nua sob o moletom grande demais sobre meu corpo jovem.
— Você me trouxe roupas? — pergunto.
Morfeu estala a língua.
— Como se o seu valete fosse deixá-la aparecer diante de seus súditos usando outra coisa que não um tecido macio e com rendas. — Seus cabelos azuis ressaltam seu sorriso enquanto ele pega uma lingerie de cetim vermelha do bolso do paletó.
Pego a calcinha e o sutiã, ficando vermelha.
— Obrigada. Mas... onde está o resto?
— Hummm. — Ele leva um dedo aos lábios. — Do que mais precisamos? Você já tem sua coroa. E lhe trouxe botas.
— Morfeu — eu o repreendo, meio tímida e meio tola.
— Ah, claro. Tem isso. — Ele estende uma rosa vermelha recém-colhida, decorada com um lacinho de renda. A flor se mexe em sua mão, como se viva.
Mordo o lábio, contendo uma risadinha.
— Linda. Mas flores não cobrem muito meu corpo.
— Acha que isso são apenas flores? Como você é adoravelmente humana! — Ele bufa. — Nenhuma chance disso. Excluí formaturas e tudo associado a buquês por toda a eternidade.
Sou eu quem bufa desta vez. Passo o dedo pelo caule da flor. Meu dedo resvala no polegar dele. Uma faísca percorre minha mão ao contato, uma amostra deliciosa da mágica que ele possui.
Recuando, ele passa uma das asas pela rosa e luzes azuis brilham por trás do véu. Ao tirar a asa, o botão desabrochou num vestido vermelho de rosas vivas e renda.
Meu coração bate forte, porque reconheço o vestido e sei que ele combina com o terno que Morfeu está usando.
Ele se vira de costas para eu vestir a lingerie. Enquanto entro no vestido e coloco as rendas no lugar, os botões de rosa que toco desaparecem no tecido, para voltarem a desabrocharem somente quando tiro a mão. Ele cabe perfeitamente.
— Você espiou? — pergunto assim que estou completamente vestida e Morfeu está me encarando. A pergunta é retórica. Eu o peguei espiando ao menos três vezes.
Ele me puxa para perto.
— Estou magoado, amor. Nós dois sabemos que sou um cavalheiro. Agora vamos levá-la ao palácio. Você fez uma jornada longa. Hoje, descansará sozinha. Eu lhe darei tempo para sofrer. — Sua voz é enganadoramente sincera enquanto ele convence o restante dos meus cabelos vivos a se livrar do coque para poder voar por seus braços e dedos.
Tombo a cabeça de lado.
— Não vou passar a noite sozinha. Depois de todos esses anos, você ainda mente para mim.
Seu olhar brilha em meio aos cílios espessos que escondem parcialmente a voracidade dele.
— O que me entregou?
Toco o rosto decorado com joias que acabei por amar com tanta ternura. Não a despeito de suas táticas odiosas, seus jogos de palavras, sua malícia... mas por causa disso tudo.
— Ah, sei lá. O desejo brilhante em seus olhos. — Pela primeira vez, noto que ele não está usando chapéu e o motivo é claro: ao fim do dia, uma coroa estará em sua cabeça. Passo os dedos pela lapela do terno vermelho feito para cair perfeitamente em sua forma graciosa, o mesmo terno que ele usava na visão que tive de nossa lua de mel há tanto tempo. Seu corpo treme em reação ao meu toque. — Ou talvez porque estamos os dois vestidos para um casamento real.
Suas asas negras se erguem atrás dele, fumaça e sombras. Seu sorriso de queima lenta se alarga.
— O quê? Você espera que eu me case com você nestes trapos? — Ele revira os olhos. — Bom, acho que sim. Se Minha Rainha manda.
Eu rio.
Seus dentes brancos brilham, as joias reluzindo entre a alegria e a adoração, e sei que ele vê as mesmas coisas nas gemas piscando nas minhas asas.
— Chega de pensar no passado — diz ele, o olhar voltado para a mochila atrás de mim, perto das minhas roupas antigas.
A tristeza criada pelas palavras dele diminui quando me concentro apenas em seu rosto.
— Tenho muitas memórias humanas preciosas. Mesmo sem as lembranças, elas ficarão comigo eternamente.
Morfeu faz que sim.
— Seu cavaleiro mortal era um homem honorável... ele queria o melhor para você. Ele iria querer que você ficasse feliz.
Contenho as lágrimas atrás dos olhos.
— Sim, ele disse que eu deveria seguir em frente. Você sabe tanto quanto eu que as memórias geralmente são o segredo para isso.
Morfeu fica sério, o comedimento e a ousadia disputando a batalha pelo controle de suas feições.
— Então isso significa que você está pronta? Para seguir em frente?
— O que minhas asas dizem? — pergunto, balançando-as devagar para ele poder decifrar os tons de joia.
Ele ri.
— Elas dizem que você quer disputar comigo pelos céus nublados do País das Maravilhas e acha que vou deixá-la ganhar.
Um arrepio de emoção sobe dos meus pés até a ponta das minhas asas.
— Ao contrário — corrijo. — Elas dizem que nós dois vamos ganhar desta vez. — Na ponta dos pés, jogo meus braços ao redor do pescoço dele e lhe dou o beijo enlouquecedor que prometi, beijando-o com mais força depois que ele geme de prazer. Sua língua dança com a minha, com sabor de alcaçuz e florestas assoladas por tempestades — todos eles coisas exóticas, exuberantes e destemidas.
Ele me pega no colo, unindo nossos corpos e nos girando até que a cauda longa do meu vestido nos faz tropeçar. Batemos na parede com listras roxas, rindo como crianças.
Meu coração pulsa quente, cheio de vitalidade.
— Morfeu.
— Sim, meu botão desabrochando — sussurra ele, o hálito arranhando meu pescoço enquanto ele me ajuda a tirar minha asa direita da cortina de veludo vermelha e das cordas douradas.
Eu é que estou tremendo agora, imaginando-me entrelaçada com ele em lençóis de cetim e cobertores de veludo.
— Não vamos mais adiar o casamento. A Corte Vermelha precisa de um rei, e quero dormir na cama dele hoje à noite. Você esperou demais por sua rainha, por seu sonho-criança.
Ele faz um barulho, algo entre um gemido de alívio e um suspiro de prazer, depois se ajoelha usando as mãos e a boca para elogiar, pelo caminho, a maneira como o vestido se ajusta às minhas curvas. Os botões de rosa desaparecem e reaparecem ao seu toque.
— Algo me diz — sua voz reverbera contra minha barriga quando ele segura meu quadril — que a espera valerá muito, muito a pena.
É a primeira vez que ele foi íntimo mesmo ao me explorar. Passo os dedos por seus cabelos sedosos e acaricio sua cabeça com o nariz, tentando conter as emoções e sensações em meu corpo. Em algum lugar dentro do meu corpo jovem há a sabedoria e a sofisticação intelectual de uma senhora. Então por que de repente me sinto tão inexperiente e exposta?
Suas mãos alcançam a bainha do meu vestido aos meus pés e ele ergue o tecido encantado só para expor meu tornozelo esquerdo à luz das velas. Ele acaricia minha mancha de nascença intraterrena já não mais coberta por uma tatuagem.
— Tenho que admitir que vou sentir falta da sua homenagem a mim. Mas é um preço pequeno a ser pago para se ter de volta tudo do jeito como era quando confessei meu amor por você pela primeira vez.
Franzo a testa, determinada a provocá-lo.
— Eu lhe disse que a tatuagem não era uma mariposa. Eram asas.
Morfeu joga a cabeça de lado, rindo.
— Analise minhas palavras de todos os ângulos, meu amor. Pense no que elas significam para além da superfície.
É preciso que ele me peça para parar e pensar... a fim de que as coisas façam sentido — a profundidade da mudança no meu corpo. Ter de volta tudo do jeito como era quando ele confessou seu amor pela primeira vez. Para além da superfície.
Minha tatuagem se foi. O que significa que tenho dezesseis anos de novo, exatamente como quando fui coroada pela primeira vez no Castelo Vermelho. Antes de ter asas tatuadas no meu tornozelo para esconder minha marca intraterrena de nascença... antes de me tornar mãe e avó. Antes mesmo de me tornar esposa.
Contra todas as possibilidades, sou inocente e virgem novamente.
Respiro fundo, surpresa diante da descoberta.
Morfeu levanta a cabeça para mim, satisfeito.
— Você sempre soube — digo, acariciando seu rosto. — Você sabia que as coisas acabariam assim.
— Claro que sim. Mágica não é uma coisa esplêndida?
Eu respondo com um sorriso tímido, mas há algo por trás dele que não havia sessenta e quatro anos antes — algo recatado e ansioso.
— Mmmm — murmura Morfeu. — Esse é um sorriso com muito potencial. Vamos dar início a esta eternidade, sim? — Ele solta meu vestido, me põe de joelhos ao lado dele e tira do bolso uma garrafa com a etiqueta: Beba-me.
Fazemos um brinde aos recomeços e, entre beijos quentes, nos revezamos bebendo até que encolhemos o bastante para passarmos pela portinha e entrarmos no País das Maravilhas.
Dois
Eternidade
Capítulo 1
Preparação
— Eu não deveria sentir tanto assim, Alyssa. Isso é impossível para mim. — Com expressão de tortura, Morfeu leva minha mão ao seu peito macio, com sua camisa de dormir semiaberta, expondo a cintura de sua calça de dormir, preta e acetinada. Seu coração dispara e sua voz fica áspera, já não mais sedosa e doce como a que ele usava ao me cantar canções de ninar, mas arrasada e confusa. A voz arranha meus ouvidos e se agarra em meu coração.
Quero que ele seja feliz e sei que é, no fundo. Esse tom angustiado significa outra coisa: rendição, e a vitória mais fácil que ele me cedeu nos nove meses desde que nos tornamos rei e rainha, sem mencionar todos os anos em que ele ocupou meus sonhos antes disso.
Pensar foi o necessário para ganhar sem combate. Quase sorrio, mas não consigo deixar que minha boca ou mandíbula solte seus músculos tensos.
Estreito os olhos sob a luz emitida por pavios flutuantes e autossustentáveis que nunca se extinguem, estudando-o sentado na beirada da cama — a cama que antes pertencia só a ele. Morfeu conseguiu trazê-la para cá vinda de sua mansão, juntamente com sua coleção de chapéus e mariposas, assim que nos casamos e ele se mudou para o castelo Vermelho.
Estou de lado, nua sob as cobertas, os joelhos encolhidos numa tentativa inútil de amenizar os pulsos elétricos que irradiam dos músculos na minha barriga. O dossel de cascata mantém-se congelado o suficiente para eu enxergar o contorno do corpo do meu rei e seus cabelos azuis ainda despenteados por causa do sono. Exceto quando ele se move para acioná-las, as cortinas se recusam a se abrir mais do que uns poucos centímetros dele, como se nos permitisse o santuário por respeito ao evento monumental que está a caminho.
Do outro lado do dossel, o quarto real está movimentado.
O harém de fadas de Morfeu anda de um lado para outro: algumas passando pela porta com pedaços de nuvens de algodão-doce azul para forrar o berço, outras cuidando de elefantes voadores do tamanho de vespas, com antenas na cabeça e sacos de pólen nas patas, rumo a um punhado de flores luminescentes.
As flores foram enviadas por Grenadine. Ela descobriu que é mais feliz cuidando dos jardins. Algo a ver com o perfume das flores a ajudá-la a lembrar-se de como cuidar delas; elas são o equivalente sensorial aos arcos sussurrantes que ela usa nos dedos das mãos e dos pés.
As flores que ela mandou para nosso quarto são coloridas como arco-íris e tinham a forma de sinos. Elas pendem de trepadeiras no teto, pouco acima da alcova. Quando as flores são polinizadas pelos elefantes alados, elas balançam e soltam uma fragrância de mel, girando e pintando as paredes recobertas de veludo com uma luz prismática. Um móbile encantado feito para um príncipe encantado.
Lorina, a esposa do pássaro dodô, carrega um balde com as pontas das asas e deixa um líquido grosso e gosmento a alguns metros da cama. Seu rosto humanoide fervilha de empolgação.
— Trouxe o melado que Gossamer pediu! — Ela remexe as penas vermelhas enquanto suas palavras reverberam. — Também acordei o conselheiro real para ele fervê-lo.
O timbre berrante de sua voz agita os terrários cheios de mariposas de Morfeu nas prateleiras e me arrepia. Morfeu faz cara de dor e eu ranjo os dentes impacientemente, esperando que a mulher-pássaro não fique muito tempo. Geralmente consigo ignorar sua falta de educação, mas estou abalada demais esta noite.
Ouve-se um barulho no corredor e, dois segundos mais tarde, o Rábido Branco aparece usando uma camisola de um tecido que parece papel higiênico. A touca combinando se arrasta no chão atrás dele, pendendo de um dos chifres. Ele pisca preguiçosamente os olhos rosa e os esfrega com os nós dos dedos esqueléticos.
— Tarde estou eu? — boceja. — O Príncipe Vermelho, ao menos chegou ele?
— Ainda não, ossos sonolentos. — Gossamer chega à porta e empurra o Rábido para o balde com melaço ao lado dos pés de Morfeu. — Agora se lembre do que lhe disse. Precisamos disso aquecido.
Meu conselheiro real acende as luzes nos olhos e se concentra no chão.
— O que está acontecendo? — grita Morfeu para o Rábido quando a sola de seus pés descalços fica vermelha.
— Seus pés frios, estão não? — pergunta o Rábido, fazendo biquinho. — Gossamer disse...
Todos olhamos para Gossamer.
— Disse que os pés dele ficariam bem se frios — ela repreende o Rábido. — O Mestre exibe uma incrível falta de cuidado quando se trata de certos aspectos de sua vida. — Ela ri e dá a volta em nós, tentando parecer ocupada e inócua, a despeito de como seus olhos de cobre brilham travessos.
Quando deixei minha vida humana pela primeira vez, a fada e eu tivemos de aparar arestas. Todavia, desde meu casamento com Morfeu, ela se tornou cada vez mais provocativa e invejosa, como se ter vivido todos aqueles anos como confidente de Morfeu na minha posição tivesse reacendido seu amor não requisitado por ele.
Arrependido, o Rábido franze a testa para Morfeu.
— Rábido Branco deu a você pé quente... não necessário?
— Não, caia fora! — grita Morfeu, erguendo a sola do pé para observar a pele queimada. Agarro a mão dele, um lembrete para ele ser gentil. Ele aperta meus dedos em resposta e sua expressão de fúria se transforma só em irritação. — Meus pés não estavam frios. — Ele lança um olhar de alerta para Gossamer. — E nunca estarão, em se tratando de Alyssa.
A fada baixa a cabeça, a pele verde escurecida de vergonha.
— Desculpas peço, Majestade. — Meu conselheiro arrependido faz uma mesura tão exagerada que quase cai de cabeça na cama.
Morfeu o segura pela galhada e o empurra em direção ao balde de melado.
— Aí está, Cabeça de Abelhão! É isso que você tem que aquecer.
Rábido concorda com a cabeça e reajusta sua mira visual até que o balde de metal emita um brilho alaranjado. O líquido viscoso borbulha, enchendo o quarto com um cheiro de cereja. Depois de ter feito seu trabalho, o ser intraterreno do tamanho de um coelho reúne os resíduos para criar um apoio no chão, se enrola em cima dele e começa a roncar.
— Não entendo por que você pediu melaço — grita Lorina para Gossamer, tão alto que meus tímpanos ecoam em minha cabeça como tamborins. — Os humanos sempre usam água fervente. Vi em suas caixas de imagens.
— Você quer dizer televisonores — corrige Gossamer e, como que para compensar a travessura anterior, expulsa Lorina e diz um educado “obrigada” pelos serviços dela, garantindo à mulher-pássaro que ela trouxe o balde certo.
— Televisores — resmunga Morfeu a todos e ninguém, ao mesmo tempo que esfrega seu pé ainda vermelho. — Além disso, em nome de Fennine e todas as santas fadas, para que é o melado?
— Talvez o usemos para batizar o bebê? — diz um coro de fadas.
— Sim, sim. Nós batizamos! — ecoa outra. — Espere... o que isso quer dizer?
— Mergulhe de cabeça — grita uma fada solitária.
Eu grito, horrorizada.
— Todos se calem! — ordena Morfeu. Ele acaricia meus cabelos com um ritmo que me acalma. — Não se preocupe, flor. Ninguém vai mergulhar nosso príncipe em melado fervente.
Gossamer volta, cercando as fadas como um sargento.
— O melado vem da árvore da ousadia, Mestre.
— Conheço as origens.
Seus olhos bulbosos cor de metal se iluminam, um sinal claro de que ela está feliz por ter a atenção dele.
— É a mais feliz das árvores na natureza — diz ela para ele, querendo mantê-lo cativo pelo máximo de tempo possível. — Mandei a seiva pura para adoçar e domar os brinquedos bestiais.
— Ah, bem pensado.
Gossamer sorri ao ser elogiada.
— A seus postos, então. — Morfeu espanta todos da cama. — Nossa rainha precisa descansar.
Fazendo biquinho, Gossamer afasta as fadas. Elas deixam de lado o balde de melado fervente, enquanto Chessie e Nikki trazem uma caixa. Dentro há uma criatura semelhante a um polvo do tamanho de uma moeda com chocalhos parecidos aos de uma cascavel em cada tentáculo — venenosos e assustadores o bastante para divertir até mesmo o mais cínico membro da Corte Vermelha; um xilofone automático feito de ossos vivos de peixe; e alguns anéis feitos de dentaduras, entre outras coisas estranhas.
Usando a cauda de Chessie como corda, as fadas mergulham um dos anéis na seiva fervente. Ele sobe à superfície — nada além de gengivas... macias e borrachudas. Elas fazem o mesmo com o polvo, transformando-o num chocalho de oito patas — colorido, frágil e inofensivo.
Depois de ver o destino que os aguarda, os outros brinquedos rosnam e sobem uns nos outros numa tentativa de fugir da caixa, desesperados para manter suas formas perigosas e selvagens. As fadas gritam e os perseguem.
A cena é morbidamente caótica e divertida, tanto que eu rio. É um erro, porque os músculos na minha barriga reagem com várias contrações me atingindo num ataque de dor elétrica. Grito quando a dor passa por todo o meu peito e depois desce pelas costas e coxas. Dedos de luz azul parecidos com a mágica de Morfeu — ainda assim únicos — seguem o caminho dos espasmos sob os lençóis e dentro da minha barriga. Coloco a cabeça sob o travesseiro, chorando.
Gossamer e as outras fadas desistem de perseguir os brinquedos e colocam a cabeça no espaço entre o corpo de Morfeu e o dossel de água, curiosas e preocupadas.
Morfeu esfrega minha barriga e as olha com raiva.
— Por que vocês todas estão aí no ar como idiotas? Isso não é um desfile para a diversão de vocês! Vocês não têm por que estar neste quarto, a não ser que tenham um trabalho, entenderam?
Assustadas com o ataque de mau humor dele, elas voltam a perseguir os brinquedos.
— Toda essa coisa de ficar pairando é inútil e sem sentido... e não no bom sentido — resmunga Morfeu. — Pode muito bem ser uma confissão carregada. Devemos ter isso em mente da próxima vez.
— Próxima vez? — choramingo, tentando respirar em meio às contrações. — Não, não uma próxima vez. Não sobreviverei a esta vez.
— Claro que vai. Você não lembra? Nós dois vimos a visão do seu mosaico de sangue há algumas semanas. Receberemos uma filha depois que nosso filho tiver cinco anos. — Sua voz é carinhosa e comedida, um contraste marcante com a loucura provocante que ele geralmente emana. — Agora parem de se preocupar com o que está acontecendo lá fora. Porque você me mantém cativo aqui. — Ele ergue as asas de modo que eu não possa mais ver o que acontece lá fora, então estou de castigo na nossa cama, onde somos só nós e nossa ilhazinha em meio a emoções cruas e truques amenos. — Esta é a oportunidade perfeita para tirar vantagem e recuperar seu orgulho. Ou talvez você não se importe com o fato de eu tê-la vencido no xadrez ontem pela manhã.
A dor diminui e eu relaxo um pouco.
— Não, não ganhou — consigo dizer.
Ele estreita os olhos.
— Eu dei o xeque-mate, amor.
— Mas era strip-xadrez, lembra?
O olhar dele se volta para meu corpo.
— Ah, eu me lembro muito bem desse detalhe.
— Então, a cada contra-ataque seu... eu tirava outra peça de roupa. A cada olhar na sua pele... era mais difícil para você se concentrar. Por fim... peças e xeque-mates à parte... você só conseguia pensar no quanto me queria. Não fui eu, então, quem no final das contas comeu o rei do oponente?
Uma risada de admiração reverbera em seu peito.
— Espertinha-sorrateira.
Rio com ele e então paro. Por mais inacreditável que pareça, lágrimas rolam por seu belo rosto, à luz de velas. Não só as gemas, claras e prístinas, mas filetes de água que captam o brilho como correntes minúsculas de luz ao longo de sua pele luminosa. Ele não percebeu isso ainda.
— Você andou chorando — acuso, carinhosamente.
— Não andei — responde ele.
— Chorou, sim.
— Bom, não sou a rainha, então posso chorar quanto quiser.
Ele disse essas mesmas palavras para mim na nossa última noite juntos, antes de deixar meus dias de humana no reino mortal. É a coisa mais rara e adorável — ter os sentimentos dele expostos e ele tão impotente para impedir isso. Em geral, ou ele está no controle ou é manipulador o bastante para me obrigar a me expor antes que ele mesmo o faça.
Por mais tocada que eu esteja, tenho um ás desta vez e não posso deixar a ternura humana me enganar. Sou um dos dois seres intraterrenos mais poderosos do Reino Vermelho e não perderei a oportunidade. Quem sabe quando meu rival se renderá novamente sem que eu precise me esforçar para isso?
— Bajule-me — insisto, com um sorriso malicioso. — Como vencedora oficial do jogo de xadrez, escolho seu castigo. Exijo palavras de persuasão e elogio.
Morfeu olha para algumas fadas voando em meio aos espaços da cortina de água. Elas param nos meus lábios para oferecer goles de melado de cereja esfriado, a fim de me dar energia positiva. Depois, elas afofam meu travesseiro e se põem a arrumar os cobertores.
Ele espera até que as fadas estejam ajeitando os lençóis nos meus pés, antes de focar a atenção em mim.
— Sua beleza me assusta — comenta ele, enxugando com as costas da manga amarrotada seu rosto molhado por lágrimas.
Sorrio ainda mais, porque é exatamente o que quero ouvir, e ele sabe.
As fadas param no ar e se emocionam diante da exibição de amor sem precedentes do mestre, os olhares reflexivos de libélula enlouquecidos.
— Privacidade, bichinhos — pede Morfeu, e elas saem da cama. Ele dobra as asas em volta da minha cabeça e dos meus braços, escondendo tudo e me dando solidão dentro das sombras. Minha pele reluzente se reflete em seu rosto. Seus dedos elegantes acariciam meu pescoço e ombros, quentes e macios. Ele observa o caminho, ainda fascinado pelas curvas que agora já sentiu milhares de vezes. Sua mão para no meu seio, o dedo tocando meu esterno, procurando minha pulsação.
Perco o fôlego.
— Sua voracidade me deixa tonto. — Seu sussurro doce aquece meu rosto. — Eu a desejo sem fim. Mais do que uma queda pelas constelações, mais do que um jogo de malícia sobre as areias do tabuleiro de xadrez, mais do que uma ameaçadora perambulação pela natureza.
— Então você admite — digo, segurando-o pela camisa, nossos lábios a um fio de cabelo um do outro, enquanto contenho meu instinto de aumentar a aposta no nosso jogo com um pandemônio. — Você espera que eu ignore um descumprimento tão flagrante das regras, camarada? Uma Rainha Vermelha nunca concede privilégios... nem mesmo para sua Adorada Mariposa. — Solto a camisa dele quando outro ataque de contrações toma conta de mim. Segurando a barriga, gemo. — A não ser que haja algo nisso — tento encontrar minha voz — para ela e seu reino. Dê-me o que peço ou farei uma proclamação real. O Rei Morfeu adora sua esposa mais do que o próprio País das Maravilhas.
— Você não ousaria — retruca ele, dando corda. Ele baixa as asas, expondo-nos novamente às luzes de vela.
— Todos saberão. — Rio em meio a lágrimas enquanto as contrações me dão um alívio momentâneo... por pouco tempo. Elas estão mais intensas agora, com intervalo de minutos. — Todos os nossos inimigos, todos os nossos aliados, todos os cidadãos deste mundo verão que você ainda é meu lacaio.
— Então você lhes dará a chave da nossa derrota. Você está falando sandices.
— Sua língua nativa — respondo sem hesitar.
Há um quê de desejo por trás de seu olhar. A alegria transparece em seus lábios, acentuada pelo brilho amarelado de suas marcas cravejadas de joias. Mesmo num momento como este, ele está saboreando minha provocação. É a natureza dele e minha também. Numa noite típica, tal disputa levaria a um duelo cintilante de mágica e enigmas de palavras e terminaria num êxtase apaixonado.
Mas não há nada de normal nesta noite e, pensando bem, o êxtase foi como chegamos a esta situação.
— Peça o que você quiser, Minha Rainha — oferece Morfeu numa submissão humilde, tão diferente dele. Ele segura meu rosto com as duas mãos e enxuga as lágrimas com os polegares. — Brinque comigo, me prenda, me tranque com corrente. Eu lhe darei qualquer coisa, desde que você guarde meu segredo.
Sinto um movimento de asas dentro do casulo da minha barriga, embaixo da minha caixa torácica. A princípio é algo pequeno e contido, mas depois ele aumenta, como se abrisse. Um cotovelo, um punho, a ponta de uma asa? Não. Ele não pode estar tentando voar de novo; ele não deveria estar enrolado numa bola, se preparando para chegar? Como se me respondesse, tenho a sensação inequívoca de asas batendo dentro de mim.
Uma contração extremamente forte se segue ao movimento — arrebenta minha barriga, quente e áspera —, como se forçasse a soltura do meu prisioneiro. Grito, estico as pernas e arqueio as costas.
— Tire-o daqui!
Um arrependimento profundo fervilha nos olhos de Morfeu e suas asas puxam seus ombros com um baque.
— Aliás, você pede a única coisa que não posso lhe dar.
Irritada, distribuo castigos aos trancos e barrancos, meus poderes tão descontrolados e imprevisíveis quanto eram antes de eu aprender a controlá-los. Tento tirar os cobertores; em vez disso, eles voam e caem sobre nós como fantasmas temperamentais. Morfeu xinga e luta para manter a nudez coberta. Tento abrir a cortina de água, mas faço força demais. Ela se transforma numa onda e molha meu rei e os outros presentes, ensopando-os e apagando as velas. As únicas luzes que restam são as dos corpos brilhantes das fadas e das flores luminosas.
A onda cruza o quarto e abala as estantes nas paredes. Mariposas e lagartas se reviram nos terrários. A torrente só cessa depois de tirar os chapéus de Morfeu dos cabides e espalhá-los pelo chão, onde eles flutuam ao lado do corpo do Rábido, que ronca, e vários brinquedos que nadam.
Morfeu uiva e tira um pé das poças, arrancando um anel-dentadura mordendo seu dedão. Ele joga a criatura no melado, que de alguma forma ainda ferve.
Os cabelos molhados do meu rei pendem sem vida, enquanto ele ri para mim na semiescuridão. Por algum milagre, minhas cobertas ainda estão secas. Só meu rosto e meus cabelos se molharam.
— Em qualquer outra época — murmura ele sorrateiramente, a preocupação superando a loucura e a beleza que frequentemente chegam até mim de seu olhar sob os cílios longos —, me sentiria tentado a aceitar seu desafio por domínio. Mas agora você precisa guardar suas forças. — Acendendo sua mágica azul, ele usa as mechas como pás de ventilador para secar a si mesmo e a mim. — Alguém pegue os brinquedos do bebê e salve o berço! — grita ele para nossos convivas.
Ágeis, as fadas correm pelo quarto, batendo umas nas outras na pressa de arrumar a bagunça que minha monção criou.
— Tragam mais nuvens! — Os gritos combinados delas tintilam como um punhado de moedas.
Chessie e Nikki aparecem com um rodo para limpar as poças. Algumas fadas ajudam com esponjas. Outras usam redes em miniatura para capturar os brinquedos e guardá-los na caixa. Os corpos reluzentes das fadas se refletem no chão molhado e formam rios de estrelas, pequenas e distantes. Desorientadores.
Gemo e fecho os olhos para lutar contra a náusea. Meus cabelos mágicos estapeiam meu rosto, me atordoando. Morfeu segura as mechas longas com os dedos e as amarra numa trança para contê-las. Seria mais fácil se ele usasse sua mágica para fazer isso. Mas ele sempre insiste em cuidar dos meus cabelos com as mãos. É uma “honra e prazer domar minhas treliças com seu toque”.
Uma gota residual desce por meus cabelos até minha têmpora e para no meu queixo — uma coceirinha benigna que contrasta com as correntes elétricas de fundo que percorrem meu torso.
— Frutinha. — Os nós dos dedos do meu rei percorrem as marcas dos meus olhos e enxugam a água, deixando um fio diáfano tão delicado quanto uma teia de aranha. — Deixe a natureza seguir seu curso. Pare de lutar.
Meus olhos se abrem em fendas estreitas. As velas espontaneamente se acendem.
— Natureza? — Minha voz é aguda e horrível, a voz que reservo para súditos desobedientes. — Estou pronta... você está pronto. Todo o nosso reino está pronto. Mas não. Ele está ocupado demais voando aqui dentro. Ele é quem está lutando. Ele não quer sair! Nada disso é natural.
Tons de roxo e cinza brilham nas marcas oculares de Morfeu. Ele se ajoelha no chão úmido e esculpe as mãos ao redor da minha barriga inchada, sob os lençóis.
— Certo, Problema. — Seu apelido carinhoso para o bebê faz com que um braço ou perna irascível se agite lá dentro. — Pare de brincar. Recolha suas asas. É hora de conhecer seus súditos. Sua mãe está cansada.
Nosso filho reage à voz do pai com emoção. O bater de asas se intensifica, gerando mais contrações. Olho para Morfeu.
— Você tinha de ensiná-lo a usar as asas. Não podia ter esperado mais algumas semanas antes ele realmente precisar delas!
Morfeu baixa a cabeça, uma cortina azul escondendo seus traços. Com a mão trêmula, ajeito as mechas para trás, me arrependendo da minha rispidez. Ele está no oposto da mesma situação. Ele não tem ideia de como agir, do que fazer.
— Perdoe-me — sussurro.
Ele coloca a mão sobre a minha e me encara.
— Não precisa. Eu já teria decapitado todos neste quarto se estivesse sofrendo a mesma tortura que você.
Com toda a mágica que eu e meu rei temos, não podemos controlar o que está acontecendo ao meu corpo ou diminuir a tempestade de relâmpagos dentro de mim, recusando-se a sair. Mas a dor não diminui meu desejo maternal. Minha vontade de ver nosso príncipe... de segurar seu corpinho mágico, acariciar seus cabelinhos azuis, sentir seu cheiro. De amá-lo eternamente. Incondicionalmente.
É avassalador pensar na importância que ele terá, para além de mim e Morfeu. Ele vai melhorar nossa vida aqui, ensinando os seres intraterrenos a sonhar para que nunca mais precisem usar humanos a fim de obter esse recurso raro e essencial para a paz entre os espíritos inquietos no cemitério.
Inocência e imaginação, os componentes dos sonhos, estão ausentes da linhagem real há tanto tempo que ninguém nem se lembra de quando havia tais coisas. A Marfim uma vez me disse que é por isso que os habitantes do País das Maravilhas não têm infância. O reino interno é fundado no caos, na loucura e na mágica. A inocência e a imaginação caíram em desuso há muito tempo, substituídas pela manipulação e pelo desejo assassino nos parquinhos de seus filhos.
Mas Morfeu viveu a inocência graças a mim, sempre que brincávamos juntos nos meus sonhos, e ele aprendeu a usar a imaginação por causa disso. Então nosso filho será a primeira criança a nascer de dois seres intraterrenos que compartilharam uma verdadeira infância. Ele terá a mágica sonhadora de Morfeu e minha imaginação. De alguma forma, vai passar adiante esse poder sem precedentes, de modo que as crianças místicas reaprenderão a sonhar. Viverão a infância, em todos os sentidos da palavra.
Não sei os detalhes, só sei a profecia e o fato de que Morfeu e eu devemos guiar nosso filho para ele dominar seus dons e usá-los em todo o País das Maravilhas. Sinto-me ao mesmo tempo honrada e nervosa de ter um papel em tão prestigiosa empreitada. Nosso príncipe não chegará tão cedo. Os sonhos que Jeb deixou para trás começarão a perder a intensidade agora que ele morreu vários anos atrás. Por isso é que juntei o espírito Vermelho com a musa dele, para ganhar tempo. A Irmã Um me garantiu que o substituto durará um pouco mais. Ainda assim, não tenho ideia de quantos anos nosso príncipe terá antes de ter todos os seus poderes.
Outra contração me fere e contenho um grito.
Nosso reino esteve em alerta máximo nos últimos meses, preparando-se para a criança-sonho. Mas Morfeu e eu esperamos ainda mais para conhecer nosso filho. Décadas. Então por que ele está tão determinado a me matar antes que eu possa beijar sua cabeça?
Estou exausta e assustada como a humana que já fui. Tinha me esquecido completamente do processo. Quando vivenciei partos, quando mortal, minha mãe estava lá para segurar minha mão, para me orientar. Sinto-me sozinha e frágil sem a sabedoria dela.
Um choro se prende à minha garganta quando o pensamento nela gera outro: que ela e o papai estão mortos para sempre, assim como Jeb. Que nada mais resta do marido humano que amei, exceto minhas memórias e nossos filhos e netos — uma família mortal num reino humano que jamais verei novamente.
Uma tristeza profunda queima dentro do meu peito. Quando vim aqui reinar como Rainha Vermelha permanentemente, escolhi não ter contato de nenhum tipo com eles — nem mesmo vê-los pelos espelhos —, apesar de não ter conseguido resistir e ter enviado lacaios para ver como estavam. No entanto, com exceção dos relatos de que estão todos bem, não pergunto mais detalhes por respeito ao meu rei. Desde que minha família terrena não corra nenhum risco de vida causado por meus laços com o País das Maravilhas, tenho de permanecer afastada. Intrometer-me e intervir com mágica sob outras circunstâncias só causaria problemas a todos.
Ainda assim, há dias em que tenho vontade de saber da vida de todos, dias em que sofro a morte dos que morreram antes da minha partida. Eu me tornei forte, mestre do meu sentimentalismo. Hoje à noite, porém, estou vulnerável, e as lembranças agridoces ameaçam me afogar.
Não posso revelar algo tão humano ao Rei Vermelho. Ele ficaria decepcionado com minha fraqueza, talvez até ferido por minha melancolia. Minha máscara está escorregando, e não o deixarei ver.
— Você deveria sair até tudo acabar — murmuro e gemo quando outra onda de contrações me contorce.
— De jeito nenhum! — briga Morfeu. — Jurei nunca deixá-la quando você estivesse sofrendo. Não que eu a deixaria em outra circunstância. Sua língua de serpente não seria capaz de me expulsar daqui.
— Ouça seu rei. — A voz carinhosa e sábia da Rainha Marfim surge à porta.
Morfeu fica tenso, como se dividido entre receber nossa querida amiga e cuidar de mim para eu não ficar à deriva nas ondas de dor. Apesar de termos enviado mensagens pelas fadas, não tivemos a chance de oferecer nossas condolências pessoalmente desde que a Marfim perdeu seu amor, Finley. Apesar de ela ter conseguido prolongar a vida dele mantendo-lhe a idade física com uma poção da juventude, a mortalidade finalmente o tirou dela há algumas semanas. Nenhum humano pode viver para sempre, como sei muito bem.
Em vez de ir até a Marfim na porta, Morfeu fica ao meu lado e eu o amo ainda mais por isso.
— Nenhum de vocês pode passar por isso sozinho — continua a Marfim. — Vocês terão de trabalhar juntos para trazer essa criança ao mundo, assim como foi necessário haver vocês dois para gerá-lo.
— Estou completamente perdido — choraminga Morfeu, e sei, pela aspereza em sua voz, que é fisicamente dolorido para ele admitir que não consegue manipular uma forma de contornar a situação.
A Marfim se ajoelha ao lado dele num farfalhar de saias e asas que combina com sua pele brilhosa — a neve lavanda sob a lua de inverno.
— Este é o primeiro nascimento entre um puro-sangue e um híbrido na história do País das Maravilhas — declara ela. — Claro que vocês estão confusos. Todos estamos. O melhor que você pode fazer é consolá-la. Dar-lhe força. Mostrar sua fé na tenacidade dela. Mas lembre-se: o parto em si cabe aos dois.
A Marfim acaricia a própria barriga. Ela tem interesse pessoal no acontecimento, considerando que seguirá meus passos e dará à luz o filho de Finley em alguns meses. Por alguma surpresa mágica, é o último presente que ele lhe dará. Só queria que ele tivesse vivido o bastante para ver o bebê nascer. Mas Morfeu e eu planejamos estar presentes para ajudá-la em todo o caminho. A Marfim não estará sozinha.
Gossamer aparece e se apoia no ombro de Morfeu possessivamente.
— Não entendo. Qual é o meu papel nisso? — murmura Morfeu para Marfim.
— Dar apoio a ela — responde Marfim. — Emocional e mentalmente. Lembre-a de que ela não está sozinha nisso.
Gemo com outra dor de parto.
Morfeu franze a testa, solidário.
— Mas ela está sozinha no sofrimento. Não entendo por que está demorando tanto. Ela fez isso antes como mortal. — Seu dedo faz círculos na palma da minha mão com a cicatriz. — Ela não deveria contar com a experiência? É tão diferente assim com nosso bebê?
A Marfim molha minha testa com um pano úmido e macio.
— Claro que é diferente. Há asas envolvidas. Mas isso é irrelevante. Não se esqueça, isso tudo é novidade para ela. A mente dela se lembra da vida humana, mas fisicamente nunca vivenciou nada disso. Ser amante e mãe se tornou um terreno desconhecido assim que ela voltou aos seus dezesseis anos.
Gossamer estala a língua.
— Boa coisa para você, Mestre. Senão, por que alguém iria querer esperar sessenta e poucos anos para tal privilégio? — A voz fina dela tem um quê de ciúme.
Sorte dela que as incansáveis contrações me mantêm cativa. Se eu não estivesse tão concentrada em não gritar como a morte, eu a jogaria no chão usando o rodo de Chessie como bastão de hóquei.
Morfeu lança um sorriso ameaçador para a fada atiradinha.
— Nunca mais fale da nossa rainha ou da vida pregressa dela com tamanho desrespeito. — A voz dele corta o silêncio, ao mesmo tempo majestosa e brutal, me arrepiando toda. — Saiba seu lugar. Ou se arrisque a perdê-lo.
A fada desvia o olhar de libélula, corando-se de um tom verde-escuro — mais um toque de temor reverente que de vergonha. Ela bate as asas peludas e se afasta do ombro dele. Fazendo uma mesura para mim, ela sai voando.
A Marfim se levanta e aperta nossas mãos unidas.
— Você pode ajudar sua rainha estendendo a mão para seu filho junto dela, unidos. Seu príncipe precisa perceber o que está perdendo ao se esconder. Faça-o entender... ajude-o a ver a mágica e a beleza que o aguardam. Quando ele fizer isso, vai querer nascer. E então tudo isso ficará para trás. Sua nova vida como uma família real terá início. — Sorrindo gentilmente, ela voa até o berço para ajudar algumas fadas a arrumar as nuvens de algodão-doce dentro dele.
Morfeu se levanta para se sentar no colchão novamente. Suas marcas nos olhos mudam de um azul noturno para um lilás ardente. Ele ergue minha mão e murmura em minha mente para só eu ouvir:
—Você vai me dar um presente hoje à noite, amor. Um presente que vale mais do que o resgate de um rei e todo o ouro branco do País das Maravilhas. Eu lhe deverei para sempre. Mas não conte a ninguém minha fraqueza.
Sua concessão doce estraçalha minhas barreiras, expondo o elo inquebrável entre nós dois.
Ele se abaixa para me beijar. Os lábios, sedosos e com sabor de narguilé, apertam minha boca séria, seca e rachada. Meus dedos se enrolam nos cabelos dele, puxando-o para perto, implorando para que ele aprofunde nossa conexão. Para me tirar daqui como só os beijos dele são capazes.
Sua língua chama a minha para a dança e me perco na doçura salgada dos nossos dias passados, esquecendo a agonia e o medo do nosso presente. Estamos de volta, depois dos nossos votos maritais eternos e da maluca celebração com nossos súditos, quando fugimos para ficar sozinhos e valsar ao sol do País das Maravilhas; quando nossas roupas viraram cinzas e fui até ele — nua e exposta, corpo e alma, sem reservas; quando ele conteve nosso amor porque eu era inocente de novo e nos pôs em nuvens para que eu voasse de volta ao nosso quarto no castelo Vermelho, a fim de que ele pudesse me amar a noite toda com paciência e carinho. Apesar de ter esperado muito por aquele momento. Apesar de seu caráter feral.
Voltando ao presente, interrompo o beijo e vejo as joias ao redor de seus olhos brilhando em tons de calmaria. Está claro por que ele queria que eu me lembrasse daquela noite. Era para me fazer lembrar que ele entende a humana dentro de mim, que a adora tanto quanto meu lado intraterreno. Não preciso admitir o medo que vivo ou a falta que às vezes sinto dos mortais que sempre amarei. Ele já sabe. Assim como sei que ele nunca mais será meu lacaio, porque o respeito, o adoro e preciso dele tanto quanto ele de mim. Ele é meu parceiro em todos os sentidos.
— Seu segredo estará para sempre guardado, fada solitária — sussurro, puxando seu rosto para perto, entregando-se, enfim.
Sua boca se entreabre num sorriso e se arrasta por meu lábio, depois desliza por meu rosto até minha têmpora. Seus dedos contornam meu queixo e descem por meu pescoço, depois mais para baixo.
Seu carinho é tão determinado que quase ignoro as asas que batem no meu rosto e testa. Meus olhos se abrem para encontrar cinco fadas pairando ao nosso redor, assim como a cabeça decapitada e o sorriso de Chessie — todas maravilhadas com nosso espetáculo apaixonado.
— Saiam daqui! — grita Morfeu, levantando a cabeça. — Vocês não têm nada melhor para fazer?
Chessie aponta o focinho para o local onde seu corpo continua a secar o chão com a ajuda de Gossamer e Nikki — como se isso desculpasse sua bisbilhotice.
— Afastem-se ou vocês todas perderão as cabeças — avisa Morfeu entredentes. — Permanentemente. — É uma promessa, não uma ameaça.
A cabeça de Chessie e as fadinhas travessas correm para fugir, batendo umas nas outras no meio do ar, numa corrida atrapalhada para longe do colchão. A bagunça faz o bebê bater asas de novo, dando início a outra onda de pulsações de alta voltagem em minha barriga. Encolho-me, puxando Morfeu comigo enquanto contenho um grito.
— Ele vai ficar aqui dentro para sempre — grito, ofegante.
Meu rei acaricia minhas costas. Apesar de estar tentando ajudar, isso só me irrita, um gesto pequeno demais para uma dor tão intensa.
— Como vamos convencê-lo a se juntar a nós — faço força para falar em meio às cordas vocais contraídas —, se ele não pretende abandonar nunca tudo o que sabe?
Morfeu baixa a cabeça para me encarar.
— Da mesma forma como a convenci. Nós o seduzimos com uma jornada por cenários belos e horríveis, por meio de nossas memórias.
— Mas temos tantas memórias... Não posso esperar tanto. — Digo sofregamente a resposta, as contrações incansáveis aumentando meu pessimismo.
— Então escolha três. Três das suas mais adoráveis memórias. Deixe-o ver o País das Maravilhas por meio de seus olhos... os momentos e lugares mais importantes para você. Só precisamos de um vislumbre. Temos minha mágica-sonho e sua imaginação para montar o palco.
Estudo o rosto do meu marido, grata por sua mente brilhante e maníaca e grata por este ser místico, outrora egoísta, ser tão paciente e solidário com uma menina semi-humana. Por ele distribuir essas qualidades em porções pequenas a nossos súditos... quando está se sentindo generoso.
Tocando as joias nos olhos dele, sussurro:
— Eu o amo, Morfeu. Obrigada por me mostrar tudo o que posso ser.
Suas sobrancelhas se arqueiam numa expressão de carinho — o mesmo olhar que eu surpreendia na infância, quando o pegava desprevenido. Ele se detém por um instante, como se tentasse se recompor, depois responde:
— Eu a amo. Mas este é só o começo. Ainda veremos tudo o que pode acontecer. — Ele aperta meu nariz. — Agora, vamos conhecer nosso filho?
Faço que sim.
Meu rei segura minha mão e a leva à minha barriga. Ele entrelaça seus dedos aos meus. Um calor se irradia no espaço entre nós e sua mágica-sonho pulsa em meu corpo e me distrai da dor.
A voz dele soa em minha mente:
— Principezinho que gosta tanto de se esconder, cruze a amplidão de seu reino. Siga-nos por nossos voos mentais e compartilhe os perigos e alegrias.
Apesar de ser para o bebê, a bela canção de ninar que Morfeu entoa me atrai numa espiral estonteante de música, algo tão irresistível que me transformo nas notas elas mesmas. Ele se abaixa e me beija, em uma faísca de súplica encantada. Eu me rendo e me afasto do presente, reaparecendo no nosso passado confuso e desvairado...
Capítulo 2
Meditação
PRIMEIRA MEMÓRIA: NA QUAL ENCAREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
A mamãe e o papai acham que estou dormindo, mas estão enganados. Estou sonhando no País das Maravilhas, trazida aqui por meu companheiro, o menino de cabelos azuis chamado Morfeu. Há alguns minutos, ele levantou o véu para que as criaturas do País das Maravilhas pudessem me ver como eu as vejo. Nos cinco anos em que visitei o lugar, só as vi por trás de um véu de sono, como se observasse peixes dentro de um tanque. Esta é a primeira vez que as encontro, e isso faz meu coração bater forte e meu rosto queimar.
Mas a culpa é minha. Eu fiz isso acontecer.
Mais cedo, estávamos na biblioteca histórica do País das Maravilhas. A Guardiã dos Segredos — rosa como o crepúsculo, com um pescoço comprido de flamingo — ajudou Morfeu a encontrar uns livros cheios de histórias dos seres intraterrenos. Depois de ela dar um tapinha em sua cabeça de oito anos e sair, Morfeu ergueu o véu que me mantinha invisível ao País das Maravilhas e me chamou à mesa. Ele abriu as páginas de um livro, expondo milhares de palavras escritas em vermelho. Não sei ler... mas não importa. As frases e letras saem das páginas, dançando em minha cabeça, virando uma voz real — aguda como um violino desafinado. Por uma hora, o livro me ensina tudo sobre os cidadãos do País das Maravilhas: seus hábitos, as comidas de que gostam, fraquezas e qualidades.
— Mas onde estão as figuras? — pergunto depois da quinta lição, bocejando. — Quero figuras... como as que você desenhou no livro da Alice. Essa falação toda é CHATA.
Ofendido, o livro se fecha. Uma substância vermelha verte das folhas de pergaminho como se a tinta tivesse derretido. Ela recobre as beiradas, selando o livro. O círculo de cera então vira um rosto furioso e sério.
Ele se recusou a se abrir, por mais que Morfeu tentasse convencê-lo.
— Veja só o que você fez. — O jovem Morfeu faz uma cara feia. — Ele não vai mais abrir. A única coisa que pode convencer este livro é uma camada de saliva de vitória-régia denteada. Então acho que hoje você vai ter de fazer outra coisa que não interagir com livros e imagens. Você terá de confrontar uma criatura intraterrena viva de perto.
Apesar de relutante e assustada, deixo Morfeu me tirar da biblioteca e me levar às cavernas mais escuras do País das Maravilhas. As árvores azuis de néon, os arbustos alaranjados, os espinhos amarelos e os musgos cor-de-rosa ao longe parecem vivos ali do meu lugar sombrio na folha de samambaia que pende sobre uma planta faminta. As espécies que salivam crescem em lugares assim úmidos e escuros, flutuando na superfície de lagos como vitórias-régias denteadas.
Tremo e seguro a barra do meu pijama molhado. Eu o ganhei no meu quinto aniversário, há dois dias. Ele tem estampa de meninas superpoderosas nas cores rosa e roxa e, portanto, deveria me dar força. Mas não me sinto forte.
Sou pequena como um grilo, me perguntando por que bebi a poção de encolhimento. Talvez porque tinha gosto de biscoito. Mas mais porque meu amigo bebeu antes e não posso deixá-lo ser mais corajoso do que eu. No meu mundo, ele é uma mariposa e sou maior e mais forte. Mas aqui ele sempre me vence em tudo.
Olho novamente para a planta babona lá embaixo. Está mais para uma planta carnívora dos álbuns de fotografia da mamãe do que para uma vitória-régia. Mas plantas carnívoras não têm dentes forrados de vermes famintos cobertos por gotículas brilhantes de cuspe. A luz atrai criaturinhas do País das Maravilhas para suas bocas e então as mandíbulas se fecham para capturá-las.
Há alguns minutos, Luna — uma fada mal-humorada que se juntou à nossa viagem sem ser convidada — estava me provocando por minha falta de escamas reluzentes, enquanto apontava as escamas prateadas que a cobriam feito um maiô. Morfeu disse para ela cair fora, mas ela o ignorou e foi atrás de nós enquanto brincávamos de “siga o mestre” na nossa caça por saliva. Ela era burra e acabou atraída pelos “vermes brilhantes” da boca da planta.
Agora a ouço choramingar, apesar de a planta faminta ter fechado as mandíbulas com força e se encolhido na água. Ela pode ser uma fada travessa, mas ainda assim temos de salvá-la. Porque estamos aqui por minha culpa.
Tentando não chorar, olho para as tartarugas boiando no lago fedido. Tento saltar sobre elas para alcançar a planta, mas caio. Morfeu tem de me tirar do lago, toda ensopada. Ele se vangloria desde então.
— Só pule de uma a outra até cruzarmos o lago. — Ele interrompe meus pensamentos me mostrando o jeito certo... pela centésima vez. Ele segue adiante sem cair, como se fosse a coisa mais fácil que já tinha feito. Ele não molha nem mesmo as calças de veludo. Só uma vez eu queria ser melhor do que ele em alguma coisa no País das Maravilhas. Queria poder ganhar.
— Você tem asas para ajudar — resmungo e torço o nariz. — Por que você não me carrega?
— Você terá asas um dia. Até lá, precisa aprender outras formas. Às vezes você vai querer explorar a natureza sozinha. Não posso estar sempre presente para voar com você.
— Você deveria salvar Luna — murmuro. — Você é mais rápido.
— Antes de mais nada, você ainda é a mestre. Depois, não estaríamos aqui se você não tivesse ofendido o livro. Em terceiro lugar, tenho um pacto com as plantas babonas. Elas deixam minhas mariposas em paz, desde que eu as deixe comer qualquer coisa que considerem saborosa. Agora veja e aprenda. — Ele pula sobre as tartarugas novamente. — É como pular sobre rochas num riacho. Simples assim.
Olho para o pijama que recobre meus pés.
— Elas vão morder meus dedos novamente.
— Elas não querem mordê-la. Elas só a atacam se você as atacar. Você precisa pisar no lado certo. Tente.
Escondo ainda mais o rosto no tecido molhado cobrindo meus joelhos.
A folha sobre a qual estou se dobra um pouco quando Morfeu se senta ao meu lado. Espio com um dos olhos para dar com ele me estudando como geralmente faz, sua expressão séria e cheia de surpresa. Sua asa esquerda descansa às minhas costas, macia e farfalhante, aquecendo meus ossos gelados.
— Você quase conseguiu — diz ele, carinhoso agora. — Você só perdeu o apoio... perdeu a fé. Você tem que ter fé em si mesma se pretende ajudar alguém. Só assim você será uma boa mestre.
— As tartarugas continuam se movendo. Não confio nelas. Elas não são justas.
— Você tem razão em não confiar. E pouca coisa na vida é justa.
— Jogos deveriam ser — argumento. — Eles deveriam ter regras.
Morfeu bufa.
— Não no País das Maravilhas. E, por sinal, aquilo não são tartarugas. Elas estão brincando de ser tartarugas... tartarugas de mentira, pode-se dizer. Elas evoluem do que restou da comida não digerida pela planta babona. Na maior parte, pedaços de corpos e coisas assim.
Tremo ao pensar que Luna pode se transformar numa coisa morta boiando, se não a resgatarmos.
— Elas são nojentas. Nojentas e podres. — Fungo, e a ação leva ao meu nariz a água suja da minha calça molhada. Engulo, tossindo. — Não quero mais ser mestre. É difícil.
— Ah, deixe disso. Há muita coisa boa em ser mestre. Primeiro brincar com o taco de críquete no jantar... uma linda coroa de joias... ah, e a única pessoa no País das Maravilhas capaz de domar um monstro com uma senha secreta. Tente.
Faço que não com a cabeça. O sabor da água do lago misturada ao amaciante ficou na minha garganta. Tremo e penso na mamãe e na minha cama quentinha.
— Quero voltar para casa agora.
— Então você deixará Luna ser devorada?
Lágrimas queimam meus olhos.
— Não quero. Mas e se já for tarde demais?
A vozinha de Luna implora de dentro da planta babona, como se respondesse.
Morfeu e eu nos olhamos e me levanto, apesar de estar com medo demais para me mover.
— E se eu emprestar um pouco de mágica para ajudá-la? — pergunta ele. — Daí você tentaria de novo?
Como sempre, a oferta de mágica é interessante demais para ser ignorada. Faço que sim com a cabeça e limpo o ranho do nariz.
Com um sorrisinho torto, Morfeu me oferece um lenço.
Depois de limpar rosto e mãos, ele me puxa até a beirada da folha.
— Na maioria das vezes, os mortos estão tão perto da morte que acabam sendo muito amargos. E, para ver o lado bom da morte, é necessário saborear a vida.
— Ãhn?
— Eu vou lhe mostrar. — Segurando-me pelos braços, ele voa comigo até a rocha que foi o ponto de partida.
Pouso na beirada escorregadia, estudando as tartarugas de mentira no líquido estagnado. Agora que sei o que são, tenho menos vontade ainda de tocá-las.
Morfeu fica ao meu lado e acende uma bolinha na minha mão, azul e elétrica. Ela fervilha e solta fumaça. Ele joga a bola e incendeia o lago. Em segundos, gemidos irrompem das chamas azuis agora se espalhando pelo casco das tartarugas.
— Por que você fez isso? — pergunto, recuando do calor queimando meu rosto.
— Fogo é vida — respondeu Morfeu, baixinho, sua pele de porcelana iluminada pelo incêndio. As joias de seus olhos brilham num tom alaranjado.
As tartarugas de mentira chiam e borbulham, o que se transforma numa balbúrdia. É difícil ouvir o que elas dizem, apesar de Morfeu parecer saber. Ele responde para elas:
— Virem a página... mostrem-nos seu lado bom.
As bolhas giram na água e saem das chamas de costas. Só as barrigas aparecem — molhadas demais para pegar fogo.
— Agora, Alyssa! — grita Morfeu, me fazendo agir.
Gritando, salto de um ponto flutuante a outro, me desviando das chamas ainda na água e chegando à boca da planta babona sem ser mordida pelas tartarugas. Ao chegar, paro, sem saber direito como abrir as mandíbulas da planta.
Estou prestes a abri-las quando a boca se escancara numa risada histérica — urrando tão alto que o som cria ondas na água e me desequilibra. Escorrego, quase caindo dentro da boca da planta babona. Luna, lançada para fora da garganta da planta numa gargalhada, me segura e me ergue no ar antes de eu cair.
Morfeu se junta a nós no ar.
— Belo show, Luna! — Ele abre um sorriso tranquilo que parece sugar a luz de dentro de mim. Por que ele nunca me sorri assim?
Luna fica vermelha e quase cai, mas se recupera. Noto que ela está coberta de saliva brilhante.
— Você deveria ter visto seus olhos — diz ela para mim ao nos deixar em segurança na samambaia. — Estavam quase do mesmo tamanho que os meus!
— Espere... — Observo Morfeu ajudá-la a tirar a baba espessa da pele verde e guardá-la num pote. — Isso foi um jogo? Pegar a saliva?
— Tem um segredo pra lidar com a planta babona — responde Morfeu. — Se você tivesse sido paciente em sua aula hoje, teria aprendido na oitava lição. A garganta dela é lisa. Luna só precisou bancar a vítima o suficiente para cair no esôfago dela. Depois, a planta a tossiu para fora num irrepreensível ataque de cócegas.
Luna exibe uma pena, rindo.
— Quando você aprende as fraquezas das criaturas neste mundo — continua Morfeu, pegando o pote com o líquido viscoso —, pode vencer todas, encarar qualquer desafio e sempre encontrar uma saída. Por isso é importante que você preste atenção aos livros. Então... já está pronta para voltar aos estudos entediantes ou gostaria de dar uma chance para a pena e aprender as coisas do jeito mais difícil?
Sem outra palavra, deixo que Morfeu nos leve de volta à biblioteca, olhando as paisagens que passam lá embaixo. O País das Maravilhas é divertido, mas perigoso. Por algum motivo, em vez de me assustar, isso me deixa com vontade de saber mais.
Mais sobre o mundo e as criaturas. Mais sobre suas paisagens e ciência. E, mais do que tudo, mais sobre meu estranho amigo. Porque, um dia, vou vencê-lo em seu próprio jogo. E então ele vai sorrir para mim, assim como sorriu para Luna hoje.
SEGUNDA MEMÓRIA: NA QUAL QUEBREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
Morfeu e eu nos sentamos dentro de sua carruagem voadora, em poltronas de veludo vermelho. Redemoinhos fluorescentes se movem pelas paredes, criando um efeito estonteante. Eles sobem e pairam no teto, detendo-se somente nas cortinas roxas ao lado da janela.
Sentada de frente para ele, seguro com minhas luvas de renda a rosa que ele me deu quando me pegou no baile da Marfim. O perfume da flor se entrelaça ao narguilé, gerando um calor sensual em meus pulmões. Ainda restam oito horas da minha promessa de passar a noite com ele, e estamos voltando para a casa dele agora.
— Todo o seu reino será colocado a seus pés hoje à noite — disse-me ele há algumas horas, antes de embarcarmos nesta jornada. Já vimos tanta coisa do País das Maravilhas que minha mente gira em tons resplandecentes de ultravioleta e paisagens bizarras.
Ele coloca o chapéu e as luvas ao meu lado. Sinto-o me observando enquanto fuma, mas finjo não notar. Em vez disso, me concentro nas paisagens do País das Maravilhas pela janela. As cores de néon se passam em borrões, iluminadas pelo tom azulado das mariposas que nos impulsionam.
Durante meus dezessete anos de vida, vi o reino Vermelho várias vezes — em sonhos e na realidade —, a ponto de conhecê-lo de cor. Mas a viagem de hoje é diferente, mais preciosa.
Tudo no País das Maravilhas renasceu hoje, pintado pela mão de Jeb. Até meu corpo é novo, mantido intacto pela mágica combinada de Jeb e Morfeu.
Sentada com Morfeu tão próximo, meu coração brilha e se atrai ao dele, quase magnetizado. É uma sensação de perder o fôlego — como se explosões cósmicas de energia pulsassem dentro do músculo.
Tenho que me perguntar se Morfeu sente a reação. Se ele sabe que, por causa das suturas mágicas que ele e Jeb fizeram, estou presa aos dois num nível muito profundo. Se ele sabe que eles alimentam meu ar.
Suspeito que sim e só posso esperar que ele não use isso como margem de manobra, porque reconheço da infância seu estado meditativo. Ele tem um plano se formando na mente... sinto as engrenagens rodando.
Na nossa última parada, visitamos o jardim de flores do lado de fora da porta da toca do coelho. Com a orientação paciente de Morfeu, ordenei que os espectros do solo consertassem o estrago. Os gritos me estraçalharam. Os ciclones negros correm em meu sangue antes de rasgar minhas roupas. Eles são obstinados, mas obedientes, sentindo minha herança real. Eles colocam tudo de volta, deixando a entrada do País das Maravilhas como era no começo, com a estátua do menino com o relógio de sol e tudo o mais. E agora os portais para o reino humano estão consertados também. Tudo voltou a ser como deveria.
Ainda estou semilouca depois da experiência. Não se pode dançar com os pesadelos sem ser afetada. Minha pele se arrepia — como se carregada de eletricidade.
— Como você está se sentindo, meu amor? — pergunta Morfeu. Viro-me para encará-lo e o pego estudando a luz roxa por trás do meu esterno. Meu coração brilha tanto que, apesar de abafado pelos botões de rosa brancos e vermelhos costurados no meu vestido, ainda é visível. Seus olhos encontram os meus. — Dar ordens aos espíritos deixa um barulho ecoando no sangue. Por isso é que você está tão quieta?
Faço que sim. Meus dedos tocam as pétalas sedosas da rosa num ritmo nervoso. Melhor do que deixá-lo pensar que me desvendou. Não posso lhe dizer o que realmente me assusta: o medo de que ele não vá me deixar viver os dias que me restam no reino humano com Jeb sem uma briga.
Ele não pode estar feliz com isso. Só teremos meus sonhos depois disso. Nos próximos muitos anos, esta será nossa primeira e última noite juntos no plano da realidade. E isso se ele decidir esperar por mim. Senão, vou passar todo o meu futuro eterno tentando reconquistá-lo.
Engulo o nó de emoção na minha garganta, tentando pensar em alguma outra coisa. Qualquer coisa. Minha necessidade de distração é atendida quando noto que não estamos voltando para a mansão dele como ele disse que estávamos.
— Para onde você está me levando? — pergunto. — Pensei que o passeio tinha acabado.
Dois candelabros ao estilo de um furacão são colocados ao lado da janela, cheios de vaga-lumes ultravioleta. O terno branco de Morfeu e sua pele de porcelana parecem quase azuis diante da luz que eles irradiam.
— Você fica insistindo que deseja experimentar todas as coisas que Alice não experimentou no reino humano. — Várias baforadas de fumaça fluem em minha direção, algumas na forma de coração, outras na de correntes. — Mas é importante também que você experimente o que ela viveu enquanto estava aqui.
É uma resposta velada, tão nublada quanto o ar esfumaçado entre nós. Estreito os olhos e sinto algo se revirar no estômago que não tem nada a ver com a aranha açucarada e o vinho de dente-de-leão que consumi antes.
— Você parece pálida, florzinha. — Morfeu abana um pouco a fumaça e se abaixa para a cesta de piquenique aos meus pés. Depois de mexer ali, ele guarda um doce dentro do bolso do paletó. Então, pegando uma garrafa térmica, enche xícaras de chá para nós dois. — Vamos tomar um pouco de chá para purificar o nosso sangue do resíduo dos espectros. Demorará um pouco ainda para alcançarmos nosso destino.
O vapor exala um perfume familiar e reconfortante, mas aprendi a ter cautela com aquilo que como e bebo no País das Maravilhas.
— O que tem nisso?
Ele ri, um quê de orgulho nos olhos.
— Muito sábio de sua parte perguntar. Isso é chá de cogumelo. Para dar mesmo ênfase à aflição de Alice, você deve ser do tamanho dela.
Estudo o bolso onde ele guardou o doce.
— Então... vamos encolher?
— Você sabe de um jeito melhor de viver o mesmo que ela? — Ele bate a xícara na minha e a leva à boca.
Bebo vários goles antes de notar que ele tirou a xícara da boca sem beber. Ele me observa, interessado.
Fui enganada.
— Morfeu — alerto-o.
Ele ri.
Estou com raiva, mas não impotente. Apesar de meus músculos se contraírem e meus ossos estalarem. Apesar de toda a minha pele pegar fogo e eu ficar menor, enquanto Morfeu e a carruagem crescem ao meu redor. Posso ser do tamanho de uma fada, mas, depois de tudo pelo que passei no ano, meu lado intraterreno é tão forte quanto meu lado humano.
Minhas asas se abrem por instinto. Corro para o doce no bolso dele, a fim de voltar ao tamanho normal e derrotá-lo, mas Morfeu ergue a mão e me pega com um lenço. Estou cega e antes não tinha prestado atenção ao que me cercava. Não me lembro do que pode ser usado como arma.
Trapaceiro.
— Lembra quando você me prendeu num pote no reino humano? — sussurra Morfeu, como se ouvisse minha acusação silenciosa.
A raiva queima meu pescoço, rosto, orelhas.
— Desculpe, amor. — O hálito do meu carcereiro aquece o tecido envolvendo meu corpo, incendiando meus nervos já fervilhantes. — Não posso deixar que você expresse toda esta bela ira... não ainda.
Exijo ser solta, lutando para escapar do tecido com cheiro de anis, mas claro que ele não me ouve. Não mais do que eu o ouvi ao prendê-lo.
— O mundo dá voltas. Não é o que dizem no seu precioso reino humano? — provoca ele.
Rangendo os dentes, me resigno a esperar por uma oportunidade de fugir. Meus arredores se tornam confortáveis. Aquela força magnética mágica se comunica com meu coração e a reação dele gera pulsações em meu corpo como uma tarola gigantesca, confirmando que ele me colocou dentro do bolso do paletó.
Pouco depois, sinto seu corpo se mexer quando ele desembarca da carruagem. A sola de suas botas raspa na pedra áspera.
Ele me tira do bolso, ainda enrolada como uma múmia. Depois que o lenço se abre, sou simplesmente colocada em algo feito de madeira, gelado. Um cheiro úmido estagnado me cerca. Tento me levantar, piscando os olhos na luz azul-clara perto da lanterna de vaga-lumes que Morfeu trouxe da carruagem. Dobradiças rangem, mas não sou rápida o bastante e a porta da jaula se fecha antes de eu poder bater asas.
Voo dentro da prisão apertada, xingando Morfeu e sua mente manipuladora. O som de relógios em funcionamento acompanha a risada dele, a cacofonia alta o bastante para abalar meus ossinhos. Tampo os ouvidos.
O rosto enorme de Morfeu chega bem perto da gaiola elevada, as gemas sob seus olhos cheias de um afeto rosa.
— Bem-vinda aos maiores abismos do País das Maravilhas, minha flor. Se você cooperar, talvez possa ver a natureza antes de algumas décadas.
Eu rosno.
Antes ele mencionara que tinha mandado Jebediah pintar cenários do passado que agora fazem parte da história que compartilhamos: a caverna onde Alice ficou presa, a gaiola e tudo o mais... e o casulo de onde ele renasceu.
Reconheço o esconderijo do dodô pelas folhas de calendário mal rascunhadas nas paredes de pedra. A Rainha Vermelha, depois de prendê-lo aqui como guardião de Alice, o alertou de que, se ele tentasse escapar, seus dias estariam contados. Como resultado, o dodô registrou os dias no papel, para ter um vasto suprimento. Relógios em funcionamento pendem de pingadouros nos tetos, num esforço para aproveitar todos os minutos de todas as horas.
Que é exatamente o que Morfeu está planejando para mim. Segurar-me aqui para sempre contra minha vontade, a não ser que ceda às suas demandas. Ele vai me convencer a fazer outra jura de vida e mágica. Algo para me forçar a abandonar Jeb — de modo que vou envelhecer sozinha no reino mortal, sem ele.
Se alguém é capaz de expressar as coisas com perfeição, este alguém é Morfeu.
Resmungando, dou um soco nas barras, atingindo o nariz dele.
— Babaca!
Ele ri e recua, batendo no nariz com um dedo como se eu não fosse nada além de um mosquitinho.
— Tsc. Majestade safadinha. Não há como me vencer. Sou eu quem dá as cartas agora, sim? Seja boazinha. Você não vai querer ter o mesmo destino da pequena Alice.
Minha garganta se aperta e a imagino quando criança no fundo escuro da jaula. Umas sementes de maçã estão ali abandonadas, do tamanho de otomanas. Uma cama feita de uma caixa de palitos de fósforo e pedacinhos de pano estão no meio. Como Alice sobreviveu nestas condições por tantas décadas? Como conseguiu envelhecer neste lugar escuro? Não é de admirar que ela tenha ficado louca.
A claustrofobia me atinge, mas eu a espanto.
— Você não pode me manter aqui.
Morfeu tira o paletó, coloca-a sobre a cadeira de madeira e toca a jaula, que balança devagar.
— Posso e vou.
É difícil demais ficar equilibrada com meus arredores balançando, então caio na caminha. Meu coração brilha mais, um lembrete de minha moeda de troca.
— Tenho de dividir meu tempo entre o reino humano e aqui. Viver vidas realizadas nos dois lugares. Para meu coração ser curado. A Marfim disse...
— Sei muito bem das suas limitações físicas, frutinha — intervém Morfeu. — E jamais correria o risco de lhe fazer mal. — Ele pega um pedaço sujo de cetim de uma mesa perto e o chacoalha. — Acredito que você já provou isso dez vezes. Vou devolvê-la a seu outro mundo todos os dias. Vai ser fácil passar pelos guardas. Eles estão acostumados aos meus passeios para dentro e para fora do reino mortal. Geralmente levo mariposas de estimação comigo, em terrários forrados. Elas preferem ficar escondidas, entende? Senão, ficam nervosas viajando. — Grito quando ele joga o pano sobre a gaiola e a prende na base, me fechando e cortando minha visão de tudo.
— Vamos viver em algum lugar secreto — murmura ele. A silhueta de sua mão passa pelas barras do outro lado do tecido. — Em algum lugar que aceite a mágica. E garanto mantê-la realizada de todas as formas que importam.
A insinuação sensual por trás da promessa dele aquece minha pele de vergonha. Então é por isso que ele me esperou arrumar os portais para me trazer aqui. Ele está sempre um passo à frente. Mas não desta vez.
Usei meus poderes enquanto estava cega... há pouco mais de um mês, num ginásio escuro da escola, e de novo ontem, quando estava mascarada e fui atacada por mil prisioneiros assassinos em Qualquer Outro Lugar. É possível, se eu me concentrar.
Controlo minha pulsação, tentando me lembrar de como eram as coisas no teto e nas paredes da caverna antes de ele me cobrir.
— Você está enganado. — Tento argumentar com ele, ganhar tempo para sentir a situação. — O que é necessário para saciar meu coração humano é mais profundo do que minhas necessidades físicas. Reuniões de pais e mestres. Torcer para crianças com o nariz escorrendo em jogos de futebol. Ajudar meus filhos a fazer a lição de casa depois da escola, ir às peças e formaturas deles. Cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem, assim como eles cuidaram de mim quando eu era nova. Sou a única filha que eles têm. A única a agir quando eles ficam fracos. Então tenho de dar boas-vindas a meus netos, ter manchas de velhice na pele... e rugas. É dessas coisas que são feitas as mais queridas memórias humanas.
Morfeu bufa, como se aquilo fosse ridículo.
— Você é da realeza intraterrena. Em pouco tempo, eu poderia fazê-la esquecer essas aspirações estúpidas e entediantes.
— Certo, me mantendo prisioneira. — Ranjo os dentes. — Não há tal lugar, você sabe. — Mudo de tática. — Não há outro santuário onde seres intraterrenos possam se esconder no reino humano... a não ser a Estalagem do Humphrey. E meus pais e Jeb irão lá à procura de mim. Eles nunca desistirão.
Morfeu ri, o que faz com que a cobertura da jaula se desprenda.
— Você realmente acha que a Estalagem do Humphrey é o único caminho que leva os seres intraterrenos ao reino mortal? Há esconderijos que só os solitários do nosso tipo conhecem. Lugares furtivos e escuros. Lá, podemos desaparecer ao longo do dia sem sermos encontrados. Então voltamos para cá e passamos a noite. — Seu contorno sombreado se aproxima da jaula, os braços envolvendo-a num abraço malicioso. — E, se você se comportar, vou ficar do seu tamanho e poderemos pôr fogo naquela caixinha de fósforos. Sem fósforo nenhum. — A voz dele abraça meus ouvidos como veludo negro, íntima e carnal. Ela abafa o tique-taque dos relógios que mais parecem bombas a explodir.
Em vez de deixar que as táticas de sedução dele me desarmem como antes, uso-as em proveito próprio. Deixo que a cadência maliciosa e sugestiva das palavras me relaxe. E é tudo de que preciso para domar minha mágica.
Mentalmente, imagino os relógios e os ponteiros de metal — tique-taque — da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Imagino os ponteiros se dobrando ao fundo do relógio — e os tique-taques param.
Morfeu arfa de surpresa, o hálito marcando o pano que cobre a gaiola. Antes que ele possa entender meu plano, imagino as folhas do calendário se descolando das paredes, se rasgando e se transformando em correntes de papel — parecidas com as que eu fazia quando criança nos trabalhinhos da pré-escola. Só que estas estão vivas e são fortes como aço.
Não as vejo, mas as ouço: se arrastando pelo chão. Animo-as para seguir o som dos passos de Morfeu e seus lampejos de mágica azul, enquanto ele corre pela caverna na esperança de escapar.
— Droga, Alyssa!
— Prenda-o com força — ordeno às correntes.
Morfeu rosna e geme, confirmando meu sucesso.
Enquanto ele está preocupado, concentro-me nos ponteiros dos relógios novamente: puxando e empurrando, puxando e empurrando, até que eles finalmente caiam numa chuva metálica. Eu os levito alto o bastante para que suas sombras forrem o pano, iluminado pela lanterna. Em minha mente, eles são enxames de abelhas metálicas. Atento-me a elas, usando as extremidades pontudas como facas para cortar o pano e abrir a porta.
Assim que saio da jaula, vejo Morfeu preso à parede com grampos de papel, tentando se livrar — a famosa mariposa na teia. Minha teia.
Por mais belo que ele esteja todo iluminado com poder, segurança e força, há algo inacreditavelmente sedutor nele preso e submisso a mim.
A rainha dentro de mim ronrona.
Sem pressa, voo até a cadeira onde ele pôs o paletó e procuro no bolso o doce aumentador. Depois de várias mordidas, volto ao tamanho natural e pouso no chão para encará-lo.
À minha ordem, as correntes o prendem ainda mais em seu peito e braços. Sim, a cena é familiar. Só que, da última vez, usei de dentro de mim as trepadeiras da Vermelha para mantê-lo prisioneiro.
— Você disse que gostava de brincar com força — provoco.
— Posso lhe dar uma bela amostra. — Ele me encara, sem hesitar. — Se eu assim escolher — acrescenta, iniciando sua mágica para soltar as correntes num dos pulsos; uma prova clara de que ele poderia se soltar, se quisesse. Mas não se solta. Suas joias oculares brilham num arranjo prismático, escondendo o que quer que ele esteja sentindo.
— Bom, não estou a fim de brincadeiras mesmo — respondo, com raiva por não tê-lo entendido. Ou talvez frustrada por ele não se livrar e lutar... por não ter uma reviravolta interessada em sua boca ou um brilho amarelo nas joias de seus olhos. — Diga-me por que eu não deveria levá-lo aos tribunais. Sequestrar a rainha é traição.
Ele urra. Mechas compridas de cabelos azuis encantados e desgrenhados tocam seu queixo e abrem um sorriso.
— Você jurou passar doze horas comigo. Recue agora e perca todos os belos poderes dos quais você ama se gabar.
Abro um sorriso forçado.
— Ah, não estou ignorando minha promessa. Vou me sentar ao seu lado na masmorra nas oito horas que faltam, enquanto você espera por sua sentença.
Ele resmunga.
— Para sua informação, eu não estava com fome... nem era pequeno.
Tombo o cabeça.
— Do que é que você está falando?
Suspirando, ele olha para as correntes em torno do seu peito.
— Se não quisesse que você vencesse, jamais teria colocado o doce no bolso nem o teria trazido para cá. Ele certamente não era para mim.
A lógica dele parece fazer sentido. Mando as correntes soltá-lo. Elas se reúnem numa pilha mole aos pés dele.
Ele continua encostado na parede, como se preso pelas marcas em sua pele. As asas dele se abrem às costas — majestosas e orgulhosas —, seu único conforto contra a pedra.
Aproximo-me dele.
— Você sempre disse ter fé em mim — insisto, solidariedade e frustração se revolvendo dentro de mim e formando uma rosquinha de perplexidade. — Então por que tenho que continuar mostrando meu valor a você?
Ele franze a testa, conseguindo parecer ao mesmo tempo arrependido e arrogante.
— Eu tive que prender você. Para lembrá-la do seu melhor. Você quer tanto ser Alice... a Alice que poderia ter sido. Temo que você se transforme nela de todas as formas. Indefesa. Humana. A não ser que você mantenha a guarda. Você nunca deve ser vítima como ela foi. Eu a vi quase morrer ontem. Seu coração está dividido ao meio. — Seu queixo treme. — Não posso nunca mais ver aquilo. Então eu a deixarei à própria sorte, para realizar suas expectativas humanas. Como você me visita em sonhos todas as noites, ao menos tenho certeza de que não se esquecerá de nós como esqueceu quando criança.
A acusação dele me atinge.
— Não pretendia isso. Eu era tão pequena...
— Não a estou culpando, Alyssa. Era inevitável. Você não teria sido a mesma pessoa capaz de compaixão e imaginação sem aquelas experiências humanas ininterruptas. Você não teria agido no mundo mortal e aprendido o que precisava aprender se estivesse constantemente provocando confusão comigo no País das Maravilhas. Depois de ver a destruição que a crueldade e a falta de compaixão da Rainha Vermelha causaram, sabia que algo tinha de mudar na linhagem real.
— Mesmo que você precisasse recuar para que isso acontecesse. — Novamente, fico impressionada com a abrangência de suas maquinações. Por seu amor por nosso mundo. Passo a mão pelos botões de sua camisa. — Tudo o que você precisa saber agora é que nunca mais o esquecerei, nem esquecerei meus sentimentos por você. Nunca. Mesmo que não estivesse vivendo meus sonhos no País das Maravilhas. — Meus dedos param no tecido de cetim sobre seu coração.
Seus olhos se fecham. Ele põe a mão sobre a minha.
— Preciso saber mais do que isso. Você deve sobreviver a cada dia em que não estamos juntos, para poder voltar... voltar para assumir seu lugar no trono Vermelho para sempre. Preciso dessa garantia ou não vou poder... não vou... deixá-la sair do meu campo de visão.
— Sou imortal. Tenho a mágica da coroa no meu sangue.
Seus olhos se iluminam e ele me encara.
— Como indicado por seu coração vulnerável, seu corpo não é indestrutível. Principalmente no reino mortal. Você vai envelhecer lá. E, se sua concha for destruída e morrer, seu espírito eterno ficará órfão. A não ser que você encontre outro receptáculo, ele vai se desintegrar. Um espírito intraterreno não pode existir por mais de umas horas sem estar abrigado num corpo ou guardado em segurança no cemitério, aos cuidados da mágica da Irmã Um ou da Irmã Dois. Então não me faça encontrar um novo lar para sua essência vital. Você deve voltar a este mundo inteira. Você mesma, de todas as formas.
Mesmo sem que suas joias revelem seu humor, vejo claramente a vulnerabilidade que ele está escondendo por trás da fumaça e da ilusão a noite toda. Ele está com medo de perder muito mais do que a Rainha Vermelha do País das Maravilhas. Sua amiga de infância, sua futura esposa... o filho-sonho deles. Esses são os temores que lançam sombras por trás do pedido dele.
— Eu lhe prometi uma vez que voltaria para você — garanto-lhe. — Confie nisso. Na minha força. Você me ensinou bem. Você nunca vai se convencer de que sou digna da sua fé? Digna o bastante para você parar de me testar?
— Sempre tive fé em você, florzinha. Estou tendo dificuldade é de colocar o futuro nas mãos de outra pessoa. Mas vou tentar. — Ele me puxa para um abraço, seus dedos afundando nas mechas compridas na minha nuca. — Chega de truques por hoje.
Aninho-me em seu peito, respirando fundo para me saturar de seu perfume. Meu coração se atrai ao dele, um zumbido poderoso e revigorante por trás do meu esterno.
— Você ganhou. — Sua admissão abafada arrepia meus cabelos no alto da cabeça, tão baixinho que mal a ouço.
Meu coração dispara. Venci. Depois de todos esses anos, finalmente venci meu amigo em seu próprio território. Mas qualquer gratificação me frustra, porque também o deixei um pouco partido.
Não há satisfação na vitória de hoje. Nunca foi uma questão de eu ser mais forte ou manipuladora que ele... teve a ver com fazê-lo feliz e deixá-lo orgulhoso provando que sou igual. Era uma questão de querer vê-lo sorrir. Como ele sorria quando éramos crianças — livre e descontroladamente.
Só tinha me esquecido disso, até agora.
TERCEIRA MEMÓRIA: NA QUAL CUREI O PAÍS DAS MARAVILHAS
O incenso úmido de fungo se mistura a um perfume de terra e mato. Cogumelos pendem do alto, os chapéus do tamanho de pneus de caminhão. Eu meio que voo e meio que corro atrás de Morfeu por entre o mato alto e fluorescente. Meu vestido resvala no mato a intervalos, gerando estalidos. Mas isso é a única coisa que ouço. O País das Maravilhas está quieto hoje porque quase todos os cidadãos estão num baile na casa da Marfim.
Morfeu está pensativo e quieto. Suas asas caem dos ombros na parte de trás do seu paletó, seu passo comprido e determinado. Tenho dificuldade para acompanhá-lo, apesar de voar a cada quatro passos, mais ou menos. Com exceção de me garantir que os truques ficaram para trás, mal nos falamos desde que deixamos a caverna do dodô. Ele não me disse para onde íamos, mas eu já sabia.
Como visitamos a prisão de Alice, tínhamos de visitar a prisão dele em seguida. Nosso passeio não seria completo sem que parássemos ali. Este é o último lugar onde ele viu a jovem Alice, o último lugar onde ela esteve livre antes que os guardas de baralho a capturassem. O lugar onde a Lagarta uma vez se sentou para oferecer conselho e amizade e onde a cabeça decapitada de Chessie flutuava, quando Alice encontrou a Lagarta mumificada num casulo, incapaz de ajudá-la ao se transformar num ser místico humanoide, belo e sedutor.
Aquele homem alado só estaria completamente formado e livre para ajudá-la setenta e cinco anos mais tarde, depois que ela já tinha perdido a sanidade para a idade e a loucura. Ele nunca se perdoou por estar ausente quando Alice mais precisava dele.
— Você sabe agora... que não teve culpa. Certo? — Minha pergunta abafa o som do mato amassado sob seus pés.
Ele não responde, mas não desisto. Ele precisa se livrar da culpa.
— Era o plano da Vermelha o tempo todo. Ela estava no meu corpo, na minha mente. Vi o que ela mantinha escondido. Ela teve uma visão quando ainda usava a coroa. A visão lhe dizia que Alice era o segredo de tudo. Que uma criança-sonho imortal nasceria por meio da linhagem Vermelha se ela prendesse Alice Liddell e vivesse a vida humana dela. A Vermelha teria feito isso acontecer... mesmo que você não estivesse livre para ajudar Alice. Ela estava tão determinada que até se esqueceu de como ser misericordiosa. Você não pode se responsabilizar por isso. Não permitirei que você se culpe. Nem por mais um dia.
Morfeu diminui o passo.
— Obrigado, florzinha. Precisava ouvir isso. Mas você está errada. Não é contra a culpa que estou lutando.
Ele para, de costas para mim, as asas descaídas.
— Não entendo — digo, parada alguns passos atrás. Eu lhe dou espaço por mais que queira tocá-lo e virá-lo para poder ler seu rosto.
— Eu a trouxe para isso, bem como sua mãe me acusava. Nunca lhe dei escolha. Eu dei início a tudo... fazendo-a tirar a Vermelha do cemitério para salvar meu espírito da prisão. O País das Maravilhas apodreceu e você quase morreu. E eu a deixei levar a culpa por tudo isso, sendo que eu fui o catalisador.
Fico boquiaberta. Não ouvi uma confissão. Não dele. Ou será que ouvi?
Avançando por entre suas asas, abraço-o pelo peito e aperto meu rosto contra suas costas, procurando o eco do seu coração com minhas mãos.
— Você não foi o catalisador. A Vermelha foi. E eu cometi erros também. Não consegui seguir suas instruções para meu desejo.
— Mas você era motivada pela compaixão e um desejo de salvar os outros. É algo inato em você.
— É inato em você também. Você salvou a vida do meu pai. Duas vezes. Você manteve Jeb longe dos prisioneiros por um mês. E escolheu não me coroar e me despir de meu lado humano. Todas essas coisas requerem compaixão. Você perdoou meus erros, então eu perdoo os seus. Começamos do zero aqui.
— Como? — pergunta ele, e fico emocionada com a sinceridade em sua voz.
Aperto-o mais.
— Um antigo amigo de infância uma vez me disse: “Duvidar de todos os passos impede que se ganhe impulso. Confie em si mesma, perdoe a si mesma e siga em frente”.
Suas asas se erguem ao meu lado, como se não pesassem. Suas mãos encontram as minhas, entrelaçadas em seu peito.
— Seu amigo parece sábio. E belo também. — Ele afirma isso com um sorrisinho.
Abafo uma risada contra suas costas se contorcendo sob o paletó.
— Ah, é mesmo. E humilde. Humildade é a maior qualidade dele.
Bufando baixinho, ele se solta e segura minha mão enluvada, me puxando por mais alguns passos, até onde os densos cogumelos formam um beco em saída. Sei o que esperar antes mesmo de entrarmos. Ainda assim perco o fôlego ao ver aquilo sob o luar fosforescente: um cogumelo maior do que uma estufa, semiescondido num casulo.
Morfeu observa minha reação. A nostalgia transparece nas joias de seus olhos — assim como arrependimento e tranquilidade.
Esperava ter um pouco dessa última emoção.
Juntos nos aproximamos do cogumelo. O ar esfria quando a sombra nos envolve, bloqueando a luz.
— Por que isso aconteceu? — pergunto, olhando para o chapéu gigante. — O que o fez se transformar?
— Simplesmente estava na hora. Hora de assumir minha forma mais perfeita. A forma que usaria por toda a eternidade. Havia coisas que eu precisava fazer e não podiam ser realizadas com minha forma anterior. Todos temos uma metamorfose gradual. Você está passando pela sua durante toda a vida até aqui. Você ainda não chegou lá. Mas um dia vai finalmente estar completa. Você abrigará sua mortalidade para ser a rainha de que o País das Maravilhas precisa. E então não pertencerá a nenhum outro lugar senão a este.
Engulo em seco, porque a ideia é inspiradora e aterrorizante.
— Como foi para você? Ficar preso num casulo por setenta e cinco anos? Foi solitário?
Ele sorri de perfil.
— Você só pode estar brincando. Eu tinha o ser intraterreno mais fascinante e encantador do País das Maravilhas para me fazer companhia.
Dou uma risada.
— Como eu disse, humilde.
A expressão de alegria no seu rosto se transforma em algo sombrio.
— Não era companhia que me faltava. Era minha mágica e as paisagens do País das Maravilhas. Ficar sem elas. Foi um tormento...
A frase se perde. Claro. Ele é um ser solitário. Sua única companhia de verdade — a paixão — é o País das Maravilhas ele próprio. Penso em como ele agiu depois que fugimos de Qualquer Outro Lugar e finalmente encontramos o caminho de volta para cá. Como ele ficou no meio da floresta congelada, as asas abertas no alto, e usou sua luz azul para retirar montes de neve dos galhos. Como ele riu e dançou à chuva. Ele era livre e divertido, embriagado de mágica depois de ter ficado tanto tempo sem ela. E isso só depois de um mês. Não imagino como seria depois de décadas.
— Eu me pergunto se foi diferente para a Vermelha — reflito em voz alta. — Ela fez a mesma coisa, de certo modo. Desistiu da mágica em nome de Alice. Viveu anos e anos no reino humano sem seus poderes... envelheceu... — Eu paro de falar ao ver que ele me observa intensamente ao luar. — Você seria feliz? — pergunto antes que ele possa admitir no que está pensando. É incrível como o compreendo agora. — Viver sua vida à sombra de Finley. Envelhecer sob a aparência dele no reino humano. Porque você não seria capaz de usar sua mágica se estivesse disfarçado.
Morfeu fica sério.
— Talvez eu pudesse aprender a tolerar isso.
— Tolerar um futuro comigo. Não há nada de romântico ou satisfatório nesse cenário. — Coloco a mão no braço dele. — Lembra o que eu disse mais cedo na caverna do dodô... sobre as experiências que a mortalidade tem a oferecer?
Ele me encara, mas, por mais que tente, não consegue esconder o brilho verde em suas marcas. Ele desvia o olhar, o nariz retorcido.
— Argh. Lembro-me de que elas são pateticamente simplórias.
Concordo com a cabeça.
— Para você, sim. Você não foi feito para aquela vida. Você foi feito para ser eternamente jovem... livre para pairar aqui nos céus do País das Maravilhas. Para cuidar do mundo que ama. Não quero você fingindo todos os dias para mim. Seria outra prisão, como seu casulo. Mais décadas sem a loucura e a mágica que o fazem saber que está vivo. Mas eu? Desde que eu era criança, almejei ter aquelas experiências simplórias. É algo que está na minha composição genética. E na de Jeb...
A bufada de Morfeu me interrompe.
— Claro. Jebediah. Ele certamente adoraria tal vida, porque é um simplório.
— É humano — corrijo, passando a mão pelo bíceps dele, duro de tensão. — Para mortais, essas coisas são sagradas. É inato o desejo de envelhecer com alguém que se ama. De compartilhar coisas ao longo da jornada, de cuidar de cada uma como os tesouros que são. Minha mãe perdeu tanto disso com meu pai. Mas eles têm uma segunda chance agora. Eles ainda podem ter um pouco disso. A pobre Alice não teve nenhuma chance. Ninguém para amar ou com quem envelhecer. Ela envelheceu sozinha numa jaula com um dodô por companhia. Isso foi uma tragédia. O desperdício de uma vida humana. Tudo o que ela tinha eram fantasias tristes do que poderia ter sido. Jeb merece mais do que isso. Ele merece algo real. Assim como você. E eu também. Chega de fingimentos. Chega de fingimentos entre nós três.
Houve um momento de silêncio. Então Morfeu suspira.
— Quando você ficou tão sábia, trufinha?
Luto contra as lágrimas nos olhos.
— Você já sabe. Você participou dessa jornada.
Ele faz que não.
— Esconder você em algum lugar ainda continua sendo minha oferta. Posso protegê-la dos mortais. Eles estão destinados a partir seu coração como eu jamais poderia. — As palavras são sinceras, a voz grossa e áspera, como se isso já tivesse acontecido e ele estivesse sofrendo por mim.
— Jeb jamais...
— Quando ele morrer, um dia, vai. Seus pais também. E todos os outros aos quais você sobreviver.
Sinto um nó na garganta. Se não tomar cuidado, vou perder a batalha contra o choro.
— Sim, vai ser sofrido.
— Não acho que você saiba quanto.
Mantenho-me firme.
— As experiências me fortalecerão... me tornarão uma rainha melhor. — Já tinha enfrentado esse temor em minha mente. Aceitei que é uma troca trágica por viver uma vida humana plena. — Meu coração é inquebrável agora — acrescento, alto o bastante só para Morfeu ouvir. Levo a mão ao brilho por trás do meu esterno. — Você e Jeb viram isso.
— Acho que vimos — responde Morfeu. — Ele e eu superamos a mágica.
Apesar de essa afirmação ser suave e macia como seda, o eco não dito — “E agora há um preço a ser pago” — me corta como uma faca serrada.
Jeb pagou seu preço, perdendo os sonhos e sua musa artística para sempre. E agora Morfeu está pagando o seu.
Novamente em silêncio, ele segura minha mão livre. Juntos, voamos até o alto do chapéu do cogumelo e pousamos na metade que não está forrada de fios grudentos.
Pensando que ele abriu caminho para fora do casulo décadas antes, fico surpresa ao ver o cobertor grudento se mover como uma coisa viva. Há algo do tamanho de um rottweiler lá dentro, roncando.
Bato as asas ansiosamente, mas Morfeu me segura. Com uma cara feia, me viro para ele.
— Você disse que não haveria mais truques hoje — acuso.
— Isso não é um truque. É um presente. Apesar de ser um tanto surpreendente, no sentido de ser algo perigoso em mãos erradas.
Os pelos da minha nuca se eriçam.
— Perigoso?
— Feroz. É uma descrição melhor.
Aproximo-me lentamente da beirada do cogumelo, para escapar.
Ele segura meu pulso e me detém.
— Linda, tenha coragem. Você é a Rainha Vermelha. Você não tem por que temer as criaturas deste mundo. Na verdade, esta criatura em particular será leal e dedicada só a você. Vamos ver isso agora. É o restante do País das Maravilhas que precisa tomar cuidado depois de hoje. Então...
— Então...?
— Não foi fácil embrulhar este presente. Ao menos me dê o prazer de vê-la abrindo. — Ele pega do bolso do paletó uma lâmina prateada e reluzente, do tamanho de um canivete, e a oferece com a mão espalmada.
A espada vorpal. A arma mais mágica de todo o País das Maravilhas.
Paro.
— Isso é meu agora?
Ele ri.
— Claro que não. A espada vorpal sempre pertencerá a mim. Trabalhei duro por ela.
Faço uma cara feia para ele.
Rindo timidamente, ele pigarreia.
— Bom, com um pouco da sua ajuda, claro. Por isso é que estou disposto a deixá-la pegar a espada emprestada em ocasiões especiais.
— Muito generoso da sua parte. — Torço o nariz para ele e pego a espada. Como lembro, o cabo é quente, mesmo eu usando luvas. Onde quer que eu toque, marcas azuis brilhantes aparecem no metal prateado. Preparo-me para abrir caminho pela teia branca e grossa.
Morfeu me para com um dedo no meu cotovelo.
— Cuide para recuar assim que ele se libertar, amor.
Estreito os olhos.
— Sério?
— Vai dar tudo certo. Esse tipo acorda bem devagar.
Esse tipo. Meu estômago se revira. Com os dedos trêmulos, corto a teia grudenta. Uma faísca de mágica acompanha o movimento enquanto o casulo se abre. Um fedor dez vezes pior que o de repolho podre. Cobrindo o nariz, recuo e devolvo a espada vorpal à mão ansiosa de Morfeu.
As duas partes do casulo se abrem para revelar uma criatura do tamanho de um cachorro, com um chifre cinza de rinoceronte. Sua cabeça felina e triangular cheira algo entre patas escameadas. Reconheço o que é aquilo, apesar de nunca ter visto um menor do que um bonde. Deve ser um filhote. Um filhote bem grande. Engulo em seco.
— Rainha Alyssa — diz Morfeu, baixinho. — Conheça seu bichinho de estimação real, o bandersnatch.
Fico olhando, arfante.
— Lembre-se — continua Morfeu — de que uma vez lhe contei que Grenadine tinha a palavra que o bandersnatch original foi treinado para obedecer. Era um comando passado de rainha para rainha no Reino Vermelho. Mas ela não se lembrava e perdeu o laço que continha o segredo. É irrelevante agora, já que o bandersnatch real morreu em minhas mãos. Então hoje cabe a você dar início a um novo legado.
Não tenho nem tempo de responder antes que a criatura abra os olhos brancos como leite. Ela rosna, expondo presas como as de um tigre-dentes-de-sabre reptiliano. Numa piscada, surgem três línguas. Na extremidade de cada uma, uma carinha de serpente abre as mandíbulas banguelas e assobia como uma enguia.
Corro para a beirada do cogumelo, tarde demais. Uma das línguas me segura pelo tornozelo e fico de cabeça para baixo, a uns três metros do chão, minha saia cobrindo a cabeça e todo o sangue correndo para o crânio. A baba da criatura escorre por minha perna.
— Morfeu! — grito, furiosa por ele já estar embaixo de mim, de pé na relva, fora do alcance da criatura.
O nó no meu tornozelo aperta e sinto meu corpo sendo puxado pelo filhote de bandersnatch. Eu me viro.
— Morfeu, me tire daqui!
— Saia sozinha. É importante que você o faça. Livre-se. — Ele usa a mágica azul para guiar a espada vorpal até mim.
Seguro o cabo da lâmina e paro. Assim que me soltar, vou cair de cabeça no chão. A distância não é o bastante para minhas asas amenizarem a queda.
— Ah, ande logo com isso — repreende-me Morfeu, impaciente. — Você sabe muito bem que eu a pegarei. Por que mais estaria de pé aqui?
— Meu primeiro palpite é que assim você pode ver vestido acima — falo irritada.
— Admito que a vista é espetacular. Mas esta é apenas uma feliz coincidência.
— Como se algo que você faz fosse coincidência.
Sua risada arrogante me atinge.
Rosnando, corto a língua com um só golpe. O bandersnatch grita e me arrependo de tê-lo machucado.
Sinto um frio na barriga durante a queda, mas Morfeu me segura como prometeu.
— Muito bem — diz ele, como disse tantas vezes ao longo da minha vida. Ele me puxa para perto.
Abraço-o pelo pescoço, minha cabeça aninhada sob seu queixo, relutante de soltá-lo. Ele me aperta com força contra o peito quente, como se compartilhasse da minha hesitação. Então me põe no chão. Sem explicar, ele sobe até o chapéu do cogumelo, onde o bandersnatch chora. Em pouco tempo a criatura fica em silêncio.
Olho a língua cortada do monstro. Ela se mexe no chão ao meu lado como se estivesse viva, assobiando — sons estranhos como sussurros — e se arrastando para perto. Recuo uns passos.
Morfeu volta do alto do cogumelo, pega a espada vorpal que deixei cair e limpa o sangue e a mágica faiscante da lâmina antes de guardá-la no bolso do paletó.
— O que você fez com o bandersnatch? — pergunto.
— Eu o fiz dormir para a viagem até seu castelo. Quando ele acordar, vai estar se curando e mal-humorado, então precisaremos mantê-lo confinado.
— Curando? Como? A pele do bandersnatch é indestrutível, mas não sua língua.
— Verdade. Mas elas se regeneram se cortadas com a espada vorpal. Ela vai crescer de volta. E a língua cortada... — ele olha para a coisa ensanguentada, que chegou até a ponta da minha bota — ... se transforma numa extensão do espírito do monstro.
O apêndice liso e pegajoso toca o dedo do meu pé, fazendo barulhos de sucção, como uma planta à procura de um lugar para criar raízes. Os sussurros que ela emite ganham força, mas ainda é impossível decifrá-los. Dou de ombros e me preparo para chutá-la.
— Não. Pegue-a — insiste Morfeu.
Dou de ombros novamente.
— Desde quando você é sensível, minha assassina de insetos, flores e prisioneiros mutantes? — provoca Morfeu.
— Desde que vi o dano que essas línguas podem causar. Quando elas o levaram para o que pensei ser sua morte. — Lembrar de como foi horrível vê-lo ser engolido vivo me dá uma dor no peito e nos olhos.
Morfeu sorri com carinho, obviamente feliz por eu ainda ser afetada por seu sacrifício mesmo um ano depois.
— Você quer que eu tenha fé em você. Então me mostre um pouco de cortesia. Aquela língua contém a parte mais fundamental de um bandersnatch. Cada uma dessas criaturas tem algo de único. Algo que as acalma. Elas nascem com isso. Tire as luvas e segure a língua na mão, carne na carne. Deixe que isso afete sua sabedoria. Assim, você conhecerá o mundo que a domará com seu próprio idioma. É uma forma de Língua da Morte, mas, como você poupou a vida do monstro e cortou somente a língua, isso não a deixa submissa à vontade do bandersnatch. Ao contrário, deixa o monstro submisso a você.
Ficando séria, faço o que ele manda. Assim que minha pele toca a língua quente e melada, os sussurros percorrem meu corpo, me arrepiando por um tempo, mas depois cessando. A língua vira uma coisa seca e preta e eu a jogo no chão.
A palavra gira dentro de mim... num idioma que nunca ouvi. Ainda assim sei exatamente como articulá-lo.
Começo a falar em voz alta, mas Morfeu leva um dedo à minha boca.
— Nunca diga essa palavra a ninguém. Você só a passará para outra Rainha Vermelha, aquela que sucederá a você um dia. Nem mesmo seu rei pode sabê-la.
Ele se abaixa para pegar minhas luvas. Procuro coragem para lhe perguntar se o rei será ele. Se ele esperará por mim. Mas não tenho direito de esperar que ele faça tal sacrifício, então mordo o lábio.
— Temos que ir — anuncia ele. — Vou deixar o bandersnatch no castelo Vermelho. Você deve preparar tudo lá antes de passar a noite na minha casa. A começar amanhã, quando de sua visita em sonhos, vou lhe mostrar como treinar o filhote de monstro para que ele obedeça à sua palavra secreta. Ele crescerá e aprenderá a reagir ao seu chamado.
Morfeu prende o bandersnatch numa rede de mágica azul e o tira levitando do cogumelo, e depois o arrasta atrás de nós enquanto voltamos para a carruagem.
— Uma última coisa, Alyssa. — As palavras soam por sobre seus ombros. — Eu a trouxe aos lugares de Alice porque Jebediah não os compartilhou com você. Eles pertencem só a mim e a você. Parte da nossa história, parte de como nos unimos. E eles estarão aqui aguardando quando você voltar a viver a realidade no País das Maravilhas. Quando. Estou confiando em você. Não me decepcione. É tudo o que peço. Por enquanto.
Capítulo 3
Festa
As memórias funcionaram como que por encanto. Não há relógios no quarto real. Não importa, já que o tempo é irrelevante no País das Maravilhas. Mas parece que se passaram horas desde que o bebê nasceu.
Assim que ouço o choro melodioso dele e seguro seu corpo quente e minúsculo, toda a dor, os medos, toda a tristeza contra a qual lutava desaparecem. E Morfeu não perde tempo em expulsar nosso séquito útil, mas barulhento, a fim de que possamos ficar sozinhos, só nós três.
Depois de amamentar o bebê, mostrei ao meu rei como envolvê-lo numa manta e segurá-lo. A princípio, Morfeu o segura com braços rígidos, como se tivesse medo de que nosso bebê fosse quebrar. Ver alguém poderoso e confiante como Morfeu reduzido ao desamparo por uma coisinha impaciente de asas, braços e pernas era ao mesmo tempo terno e emocionante. Todavia, com um pouco de orientação carinhosa, ele estava cuidando e embalando o filho como um profissional. Depois que o bebê relaxou nos braços de Morfeu, ele foi levá-lo ao berço, mas mudou de ideia e colocou o príncipe cuidadosamente ao meu lado na cama, deitando-se do outro lado, com o nosso filho entre nós.
Falando com nosso príncipe num tom doce e meloso, Morfeu emite raios de luz azul pelos dedos e atrai as mariposas em alguns terrários abertos pelo quarto. Assim que os insetos nos cercam, Morfeu os conecta à sua mágica. Guiadas por rédeas encantadas, as mariposas voam em círculo, como um móbile.
A expressão de Morfeu ganha um ar sonhador, seu rosto e o do bebê brilhando com as luzes mágicas do móbile. Nosso príncipe observava, seus olhos azuis dançando e suas asas frágeis tentando se abrir dentro do cobertor que o envolvia. Um dia, ele teria as marcas com joias nos olhos, ao redor dos cílios e ao longo do rosto, como o pai. Por enquanto, a linha intrincada parecia mais desbotada — como veias sob a pele. Ele tinha uma faixa de cor no pulso esquerdo, onde sua marca de nascença intraterrena se exibia, visível e proeminente.
— Está vendo isso? — me perguntou Morfeu, segurando a mãozinha do bebê enquanto nosso príncipe tentava pegar outra mariposa com sua mágica azul, fazendo barulhos de felicidade. — O dedinho dele... é do tamanho do meu polegar. — Morfeu se focou em mim, aqueles olhos impenetráveis tão cheios de amor e surpresa que chegavam às profundezas do meu ser. — E ele tem seu nariz. Olhe, vê como ele é tortinho? Ele está frustrado porque não o deixo pegar a mariposa. Você faz o mesmo quando eu a desafio.
Ri.
— Não faço, não!
Morfeu riu.
— Você faz isso desde que éramos crianças. Você está fazendo agora mesmo.
Torci o nariz. Ele tinha razão, como sempre. Suspirei, mas, por mais que quisesse soltar o ar para parecer irritada, o suspiro saiu como um rom-rom de pura felicidade.
— Como é possível? — perguntou meu rei. — Que ele seja tão pequeno e ainda assim tão perfeito?
— Porque ele é parte de você — respondi, sem nem pensar.
Morfeu me encarou.
— E a outra parte é você. Você tem razão. Como ele poderia ser outra coisa que não perfeito?
Com lágrimas nos olhos, sorri e contei os dedos do bebê pela centésima vez, encantada com as faíscas azuis que já nasciam.
— Não esperava que a mágica dele tivesse cor — penso em voz alta. — A minha não tem. E ele é híbrido, como eu.
Morfeu pousou o rosto no travesseiro, as pálpebras ficando pesadas.
— Não como você, flor. Os dois pais dele têm mágica.
Estudei silenciosamente as mãos do bebê, curiosa para saber se ele seria capaz de assumir outra forma como seu pai e pensando no caos que ele em breve causaria ao castelo e a seus ocupantes. Criar uma criança-fada cheia de imaginação seria algo que nos manteria ocupados, para dizer o mínimo.
Assim que nosso filho dorme, Morfeu e eu também dormimos — exaustos por causa dos acontecimentos da noite.
Agora estou acordada e, no brilho âmbar da vela, eu os estudo: meu príncipe e meu rei lado a lado, perto de mim. Sinto um nó na garganta diante da beleza deles e meu coração se enche de amor. Eles fazer o mesmo biquinho dormindo... aquela malícia nos lábios, amenizada por uma expressão angelical e moldada por frágeis tremores de respiração.
Como se me sentisse observando-o, os olhos insondáveis de Morfeu se abrem. Tiro uma mecha do rosto dele. Ele segura minha mão e a beija.
— Demorou um bocado para chegarmos aqui — murmura ele contra minhas cicatrizes, sua voz áspera de sono.
Por aqui não sei se ele se refere ao parto ou a nós dois juntos.
— Obrigada por sua inabalável paciência — respondo, porque é a resposta que ele merece. Acaricio o cotovelo fofo do nosso príncipe com a mão livre, memorizando seu rosto de querubim. Embora ele tenha o formato dos olhos do pai, a cor é minha. E me vejo em outras coisas... na covinha em seu queixo, no nariz achatado e no platinado da extremidade de seus cílios longos e escuros. — Boas coisas acontecem aos que esperam.
Morfeu me solta e se espreguiça, suas asas poderosas batendo às costas.
— As melhores coisas. Coisas impossíveis. A mais impossível de todas é uma criatura solitária, que nunca precisou de outra alma viva, ter uma família pela qual morreria e mataria.
Ainda estudando o bebê, fico vermelha. A possessividade na confissão de Morfeu vem de um lugar tão no fundo que deve ter ferido seu coração ao dizer. É óbvio que ele está surpreso por ser capaz de expressar tanto amor.
— Não decidimos o nome ainda — sussurro para esconder a emoção que sinto por esse raro vislumbre de suas fragilidades. Recuso-me a constrangê-lo. Amanhã apresentaremos nosso filho ao reino, o que vai ser o interlúdio perfeito. — Não acho que Problema é o nome mais adequado ao príncipe que vai tornar nosso mundo um lugar melhor.
Morfeu faz que sim, mas há um brilho desconcertante em seus olhos.
— Sim, não vamos querer correr o risco de criar uma profecia autorrealizável. Ele não pode ser como seu pai.
Sorrio, mas vou fazer de tudo para garantir que nosso filho seja como Morfeu — tão determinado e imprevisível e caótico quanto as paisagens do País das Maravilhas que um dia compartilharemos com ele.
— Devemos consultar nossa lista novamente?
Passamos a tarde de ontem pensando nas opções, como fizemos tantas vezes antes: Argon, Durian, Iseld, Rhyanon... e tantos mais que nem lembro. Cada um dos nomes era lírico e forte e ideal para um príncipe-fada, mas nada parecia captar tudo o que ele um dia seria.
— Só um servirá, agora que eu o vi. — Morfeu acaricia os tufos azuis na cabeça do nosso filho. Com o tempo, ele terá uma cabeça cheia de cabelos luminosos como os do pai. — Muso.
Penso no nome. Não estava na lista, mas, olhando para os traços perfeitos do bebê, não nego que combine. Minha musa me trouxe a este mundo e então me deu o poder de governá-lo; a musa de Jeb repintou o País das Maravilhas há muito tempo e ficou aqui para trazer a paz entre dois reinos. Apesar de Morfeu jamais admitir em voz alta, esta é sua forma de homenagear a contribuição de Jeb — meu outro lado — e a imaginação humana. O sentimento me afeta tanto, me aquece da ponta das asas aos dedos do pé, e me sinto grata para além das palavras.
Mas há mais uma coisa que faz com que o nome combine: o bebê é nosso filho-sonho, destinado a inspirar a imaginação das criaturas do reino interior, um presente que trará um equilíbrio eterno ao nosso reino.
Sorrio, um sorriso tão grande que marca meu rosto.
— Muso, primeiro príncipe da Corte Vermelha. Adoro. — Tiro os olhos do bebê, por mais difícil que seja desviar o olhar, porque quero ver a expressão do meu rei.
Meu esforço é recompensado. Ele está feliz e orgulhoso, livre e desimpedido; mais que tudo, sorrindo. Um sorriso amplo como o que ele abria quando criança. Depois de tanto tempo, ele é jovem de espírito novamente.
Não resisto e o pego pela camisa para puxá-lo e lhe dar um beijo.
— Percebe? — pergunto contra seus lábios saborosos, tomada por tantas emoções que tenho de lutar para me manter sobre a superfície. — Ele terá a mesma inicial que você: M. — A afirmação provocativa mal deixa minha língua e já começo a rir.
Morfeu ri também, uma risada grossa e macia. Ele leva a mão à boca quando nosso filho começa a se mexer, os olhos de cílios longos tentando se abrir.
— Shhhh, volte para seus sonhos, pequenino. — Ainda sorrindo, aconchego o corpo de Muso ao meu, acaricio sua cabeça e sinto seu perfume de bebê. Estimulada por meus sentidos, lembro-me dos outros bebês que recebi nos braços... cada precioso parto preservado como um fóssil no interior âmbar da memória distante. Fico feliz só de dar uma olhada na vida deles agora, sabendo que tive influência nela, nem que tenha sido por um momento fugaz. Sabendo que, neste mundo, a morte nunca me separará de Muso ou de Morfeu ou das criaturas intraterrenas que acabei por amar como família.
— Onde você está, Alyssa? — pergunta Morfeu com uma voz sussurrada, acariciando minhas tranças. — Lembrando?
Apoio meu rosto na palma da mão dele.
— Estou aqui com você. Sempre com você. E nosso príncipe. — Virando o rosto, sussurro no ouvidinho do bebê. — Pretendo garantir que você nunca tenha de aprender a palavra adeus. — Ele se aninha e meu coração se enche tanto de adoração que acho que vai explodir. Viro os olhos chorosos para Morfeu, que está nos observando com reverência. — Acho que nosso filho quer que você cante para ele.
Com a ponta do dedo, meu rei acaricia a pele ao redor dos meus olhos.
— Acho que você quer. Você é louca por minhas canções de ninar.
— Sou — digo, e torço o nariz para enfatizar.
Ele sorri mais uma vez, as joias brilhando nas cores rosa e roxo.
— Bem, não posso ser a única diva nesta relação. É exaustivo demais.
E, com isso, ele envolve a mim e a Muso com uma asa comprida e sedosa, abrigando nossa família do mundo e cantando uma música nova, com palavras novas — um tributo a todas as coisas loucas, belas e selvagens. Um hino ao nosso amado e eterno País das Maravilhas.
A.G. Howard
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