Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
S Y B I L
Este livro é lançado a público mais de dez anos depois de meu primeiro encontro com a mulher a que dei o pseudônimo de Sybil Isabel Dorsett. Sybil quer ficar no anonimato e, quando tiver lido sua verdadeira história, você compreenderá a razão disto. Mas Sybil Isabel Dorsett é uma personagem real, uma pessoa viva.
Nosso primeiro encontro se deu numa tarde de outono de 1962, num restaurante da Madison Avenue, em Nova York. A Dra. Cornelia B. Wilbur, psicanalista de Sybil, havia combinado o encontro para que eu fosse travando conhecimento com ela.
Sybil dava a impressão de uma criatura coagida e parecia andar com seus pensamentos pelo mundo da lua. Eu sabia que este estado era devido à sua doença. A Dra. Wilbur e ela se tinham empenhado num dos casos mais complexos e estranhos na história da psiquiatria, pois se tratava da primeira psicanálise que se fazia duma personalidade múltipla.
Eu já havia tomado conhecimento deste caso há alguns anos, pois, em minhas atividades de editora de psiquiatria do Science Digest e como autora de artigos sobre assuntos psiquiátricos, os passos da Dra. Wilbur e os meus muitas vezes se cruzaram. Com efeito, alguns desses artigos abordavam casos que haviam passado pelo consultório dela.
O encontro fora combinado com uma finalidade bem determinada: a Dra. Wilbur queria saber se eu estaria interessada em escrever a respeito do caso de Sybil. Este caso, que na opinião da Dra. Wilbur estava destinado a fazer história, não devia ser apresentado somente numa revista de medicina, porque envolvia amplas implicações psicológicas e filosóficas para o público em geral, além do grande significado que tinha para a medicina.
Antes de entregar-me de corpo e alma à tarefa de escrever o livro, desejava aguardar os resultados do caso. Neste meio tempo Sybil e eu tornamo-nos boas amigas. Participamos juntas de muitas atividades intelectuais e unia-nos uma inconfundível afinidade. Sybil visitava-me com freqüência em meu apartamento. Muitas vezes confidenciava-me o que se havia passado nas sessões de análise e aquilo que se passava em minha casa freqüentemente era ventilado nas sessões.
Aos poucos, a idéia de escrever um livro me atraía com maior constância. Tenho escrito muito sobre psiquiatria e também possuo vastos conhecimentos de psicologia. Durante o ano de 1962 passaram por minhas mãos casos de muitos psiquiatras. Até mesmo os perfis de políticos — muitos dos quais eu escrevia para revistas de circulação nacional — caracterizam-se por uma forte orientação psicológica. Além disto, leciono no curso secundário (atualmente no John Jay College of Criminai Justice da City University of New York). Minhas cadeiras são inglês e linguagem. O lastro literário de uma e a cultura lingüística e erudição psicológica de outra me proporcionaram preparo para abordar o assunto de Sybil. Tenho trabalhado também no teatro, no rádio e na televisão, escrevi contos e peças teatrais, além de ensinar redação na New School for Social Research. Todos estes fatores concorriam para me decidir a registrar os pormenores clínicos do caso de Sybil num livro em que eu pudesse abranger todo o drama dessa história.
Quis também escrever o livro em consideração à amizade que me liga a Sybil e à Dra. Wilbur, que desperta minha admiração pela coragem em continuar estudando, por sua própria conta, o curso de uma análise muito especial. Tenho grande respeito pela Dra. Wilbur, uma analista com credenciais impressionantes. Possuía um consultório na Park Avenue, com grande clientela, e ocupava lugar de destaque em várias organizações psiquiátricas, como a Society of Medicai Psychoanalysts e a Academy of Psychiatry. Era presidente da National Association of Private Psychiatric Hospitais e participava do comitê de pesquisas da Society of Medicai Psychoanalysts, que publicou um importante trabalho, intitulado Homossexualismo: uma visão psicanalítica. Tendo abandonado a clínica particular, a Dra. Wilbur atualmente dedica todo o seu tempo à Medicai School da Kentucky University, onde leciona.
Depois de conviver com Sybil e suas outras personalidades pelo espaço de três anos, decidi-me a este empreendimento e comecei a fazer pesquisas detalhadas para este livro. As conversas que tive com Sybil e a Dra. Wilbur e os meus contatos diretos com os outros egos foram completados por um estudo sistemático do caso como um todo e de toda a vida de Sybil. Li muito a respeito de personalidades múltiplas e discuti os aspectos gerais do caso com vários psiquiatras, além da Dra. Wilbur. Reconstituí a odisséia da vida de Sybil, em conversas que mantive com pessoas que a conheceram em sua cidade natal, Willow Corners, em Omaha, e em Nova York. Reconstituí também praticamente as andanças de Sybil, durante algumas de suas estranhas viagens como outra personalidade. Por exemplo, em Filadélfia contei o número de passos que deu em direção à porta social do Broadwood Hotel.
Para tornar conhecida esta extraordinária saga de acontecimentos, desconcertantes e atordoantes, como se estivessem girando dentro dum caleidoscópio fascinante, em primeiro lugar tive que destrinchá-los. As pistas foram localizadas pelo exame minucioso de cada documento relacionado com a análise de onze anos feita com Sybil. Nestas pistas estavam incluídas as observações diárias da Dra. Wilbur, anotadas a lápis em blocos de receita no decorrer de 2 354 sessões no consultório, as experiências feitas com Sybil, no processo de tratamento, como também os registros das sessões de análise que foram gravadas. Estudei também os diários de Sybil, escritos na adolescência e durante o primeiro ano de análise; examinei as cartas; fiz também um levantamento de dados familiares e dos hospitais por onde ela andou e vasculhei os jornais e os registros da cidade de Willow Corners durante os anos em que a família Dorsett viveu lá.
Nestes dez anos — durante sete dos quais trabalhei ativamente no livro — estive intimamente ligada à Dra. Wilbur e a Sybil, que às vezes separadamente e às vezes juntas sempre se prontificaram a "posar" para o retrato. Nossos papéis todavia eram bem distintos: eu estava reconstituindo aquilo que Sybil havia vivido e que a doutora já analisara. Mas duvido que outro autor tenha tido motivações mais palpitantes. Ao responder a cada interrogatório, elas tiveram a oportunidade de reavaliar muitos aspectos da análise. Tive também a satisfação de poder ir fazendo um confronto das constatações médicas deste caso com um médico que estava sempre ao meu alcance, através do telefone mais próximo.
Depois de ler o livro já concluído, Sybil observou que "todas as emoções são verdadeiras", e a Dra. Wilbur saiu-se com este comentário: "Todo fato psiquiátrico está representado com fidelidade".
A história verídica de Sybil oferece uma rara visão da mente inconsciente e abre caminhos para um maior entendimento do seu mecanismo. Permite, além disso, não somente uma nova observação do misterioso poder da mente inconsciente sobre o comportamento humano, mas também uma visão nova da dinâmica dos relacionamentos que podem ser destrutivos na família, dos efeitos atrofiantes de uma formação religiosa tacanha e fanática, de uma identificação da mulher com os homens de sua família e da negação da auto-realização. A história de Sybil constitui uma lição irrefutável da atitude que nunca se deve ter, ao lidar com as crianças. Neste relato estão também implícitas conseqüências relacionadas com perguntas como: o que é maturidade? O que é uma pessoa completa?
A história da vida de Sybil esclarece também o papel da mente inconsciente na criatividade; o sutil inter-relacionamento de lembrança e esquecimento, da coexistência do passado com o presente, além do significado da cena primai em psiconeurose geradora. Acham-se implícitas também certas questões filosóficas como a sutil relação entre realidade e irrealidade e o significado do "eu".
Sob o ponto de vista médico, esta história lança luz na gênese das doenças mentais, em termos de hereditariedade e de meio ambiente, e esclarece também a diferença entre a esquizofrenia — que alguns médicos e o público têm a tendência de usar como causa geral de uma porção de sintomas diversos — e a grande hysterie, doença pouco conhecida de que Sybil padecia.
Mais importante que tudo isso, talvez, é o maior grau de percepção que o leitor experimenta à medida que vai sendo levado pelo fascínio das aventuras interiores de
Flora Rheta Schreiber, Nova York Janeiro de 1973
A EXISTÊNCIA
O RELÓGIO INCOMPREENSÍVEL
Sua cabeça vibrou com o ruído de vidro estilhaçado; o recinto dava a impressão de estar rodopiando. Um cheiro acre de produtos químicos impregnou as narinas da moça, mais do que provocariam os produtos existentes no local. O cheiro lembrava-lhe uma experiência há muito tempo vivida e já esquecida. Tão remoto e no entanto tão familiar, aquele cheiro recordava-lhe a velha drogaria da sua cidade.
O vidro quebrado na velha drogaria. O vidro quebrado na sala de jantar. Em ambas as ocasiões ouvira-se a voz recriminadora: "Foi você quem o quebrou".
Sybil Isabel Dorsett enfiou às pressas suas anotações de química na pasta marrom com zíper e dirigiu-se rapidamente para a porta. Os olhares de todos, do professor de química e dos outros estudantes, cravaram-se nela, sem entenderem patavina.
A porta se fechou atrás dela. Sybil viu-se sozinha no corredor comprido e sombrio do terceiro andar do Havemayer Hall, da Columbia University, aguardando o elevador.
"Esperei demais. Esperei demais." Seus pensamentos rodopiavam. Havia esperado demais antes de sair do laboratório. Devia ter evitado o que acontecera, saindo no exato momento em que ouvira o barulho do vidro.
Esperara demais. Por sua vez, também aquele raio de elevador estava demorando demais.
Sybil procurou a sua pasta com zíper, mas não a tinha consigo. Também o elevador não estava ali, e tampouco o corredor comprido e sombrio. Ela estava andando numa rua comprida e estreita, coberta de neve, ao invés de estar esperando o elevador.
Um vento cortante e penetrante açoitava-lhe o corpo. A seus pés, neve branca, crepitante, rodopiante. Não calçava galochas, não calçava luvas nem tinha chapéu; suas orelhas estavam entorpecidas de dor. O casaco de lã cinza-claro, double face, que parecia aquecê-la suficientemente, quando se dirigia do seu apartamento em Morningside Drive ao local de trabalho, no laboratório, infelizmente pouca proteção oferecia contra o frio impiedoso.
Sybil procurou uma placa com o nome da rua, mas não achou nenhuma. Procurou uma casa em que pudesse abrigar-se, mas não havia nenhuma. Um posto de gasolina? Não conseguiu ver nenhum. Uma drogaria? Nada.
A drogaria, o laboratório de química, o corredor sombrio e comprido, o elevador; nada disto havia neste lugar. Aqui havia somente esta rua, pobremente iluminada, deserta, sem nome, num lugar que não conseguia reconhecer.
Em ambos os lados da rua, construções antigas de madeira, horríveis, sólidas, algumas pintadas de cinza, como os navios de guerra; outras cobertas com folhas de zinco. Na parte superior, entradas enormes; na de baixo, portas grandes e janelas com vidraças muito pequenas.
Não podia ser Nova York. Talvez fosse algum lugar em Wisconsin, onde nascera, e onde em sua meninice fora surpreendida por muitos temporais de inverno iguais a este e aprendera o que significava passar por frio intenso. Besteira! Como podia ela ter ido até Wisconsin, num abrir e fechar de olhos, entre a espera do elevador na Columbia University e agora? Mas, assim sendo, ela não fora a parte alguma neste meio tempo, e talvez não tivesse estado em lugar nenhum. Quem sabe tudo isso não passava de um pesadelo?
Enquanto procurava andar mais depressa, enfrentava a dura realidade das construções horríveis e da neve que caía sem cessar, que ela tirava do rosto com as mãos nuas e procurava safar do seu corpo, sacudindo-o de um lado para o outro. Ela não podia ter inventado estas construções, pois nunca antes vira coisa semelhante. As portas eram enormes, não que ela estivesse imaginando-as assim, mas porque eram usadas para estocagem e embarque de mercadorias. A parte realística de sua imaginação voltou a atuar e ela percebeu que se encontrava num bairro de armazéns.
Do outro lado da rua, sobre a neve branca, repentinamente se desenhou uma silhueta negra, a figura de um homem. Parecia tão intangível, como uma sombra que passa, inanimada, como as construções que se agigantavam dela. Mesmo que esse homem pudesse dizer-lhe com toda a certeza onde é que ela se encontrava, não poderia alcançá-lo. De mais a mais, receava que ele interpretasse com segundas intenções a sua pergunta. Então, deixou simplesmente que passasse adiante e se perdesse dentro daquilo que lhe parecia ser noite; ela continuou caminhando, rumo a um mundo que supunha existir atrás dos armazéns.
Sybil tinha a impressão de estar metida num beco sem saída. Os blocos de edifícios aumentavam-lhe os temores mais recônditos. Tinha a sensação de estar trancada por dentro e fechada por fora, como uma prisioneira, envolvida numa armadilha, sem escapatória para nenhum lado.
Será que não havia nenhum meio de safar-se desta situação? Nenhum táxi? Um ônibus? Algo que a levasse a algum lugar? Que a tirasse daquele inferno? Toda vez em que estava para descer dum ônibus urbano de Nova York era assaltada por um sentimento esquisito e obstinado, mas agora estava mesmo com vontade de arriscar-se a tomar um ônibus. Mas a hipótese era meramente imaginária, uma vez que não havia nenhum.
Agora sua mente começava a fixar-se numa cabina de telefone. Se conseguisse encontrar uma, não somente ficaria sabendo onde se encontrava, como poderia também telefonar para Teddy Eleanor Reeves, sua companheira de quarto, que decerto deveria estar preocupada com a sua ausência. Sybil lembrou, porém, que Teddy fora passar alguns dias com a família, em Oklahoma, logo depois que ela mesma havia saído de casa, para o trabalho no laboratório.
Como se fosse uma ironia do destino, quando ia saindo do apartamento, não é que Teddy insistira para que vestisse um casaco mais quente?! Nem dera atenção ao conselho, porque estava num daqueles dias em que não podia dar ouvidos a nada. Durante todo aquele dia, principalmente depois que o tempo começou a esfriar, sentira-se oprimida por sentimentos de intranqüilidade e impulsos estranhos, que se agitavam dentro dela e não lhe permitiam permanecer em seu apartamento, nem mesmo nos minutos a mais de que precisasse para trocar de casaco.
Sybil queria telefonar para a Dra. Cornelia B. Wilbur. Se demorasse muito, certamente também a doutora começaria a preocupar-se com ela. Talvez Sybil tivesse perdido a hora marcada com a doutora. Mas, até agora, quantas horas não teria ela perdido?
A palavra "agora" era torturante, evasiva, pois não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido desde o momento em que estivera esperando pelo elevador.
Um telefone parecia ser o elo mais evidente que a ligaria com a realidade, embora procurar um fosse o mesmo que querer apalpar uma miragem. Fosse como fosse, teria que encontrar um e continuaria fazendo tudo para encontrá-lo. Teve o pressentimento de que não conseguiria continuar a busca, mas, também, sabia que não devia atrever-se a parar, pois as pernas enregeladas lhe indicavam que sentiria um frio mortal se não continuasse a andar; e já tivera uma grande vivência disto, com os invernos do meio-oeste.
Procurando manter-se em movimento, pôs-se a escutar atentamente, à procura de alguma coisa que denotasse vida. Só ouvia o vento. Quadras e mais quadras, ao longo de ruas, sem um único letreiro. A esperança de um telefone tornava-se ainda mais utópica.
Sybil parou perto de um poste de luz, como que para tomar fôlego, ao menos por um momento. Com a ajuda da luz embaçada, abriu a bolsa e remexeu nela. O cartão da Social Security, o da Blue Cross, a licença de motorista, a ficha da biblioteca da Columbia University — todos eles traziam o carimbo de autenticação.
Ao sair do apartamento, na sua carteira havia cinqüenta dólares e mais uns trocados, e no entanto agora só restavam trinta e sete dólares e quarenta e dois centavos. Fora ao laboratório a pé, e no caminho não tinha comprado nada. Será que o dinheiro que faltava havia sido gasto com a passagem para chegar a esse lugar? Lembrava-se de que havia esperado em frente ao elevador, e agora estava aqui. Só isto e mais nada.
A chave do apartamento estava em seu lugar de sempre. Mas, balançando e presa a uma etiqueta marrom-avermelhada, pendia uma chave que ela nunca vira antes. Remexeu-a e examinou-a com a mão enregelada, olhando-a uma infinidade de vezes, lendo e relendo as letras douradas: Quarto 1113.
O que estava fazendo aquela chave em sua bolsa? De onde viera? Não havia dúvida de que se tratava de uma chave de hotel, mas, ao contrário da maioria das chaves de hotel, não trazia nenhum nome, nenhum endereço, nenhuma indicação da cidade a que pertencia.
Talvez tudo isso não passasse de um pesadelo. Não, a chave era palpável, a etiqueta era sólida, o poste de iluminação era real. Reais eram, também, as horrendas construções, que pareciam olhar de esguelha e caçoar dela. Real era também a neve que grudava no casaco e nas pernas. E, apesar dos seus temores, as pernas movimentavam-se, não estavam enregeladas. Enquanto ia seguindo depressa, sem destino e sem rumo, sentia prazer com a cruel extravagância de ir correndo a esmo. Sim, ia avançando, porque tentava abafar o pânico que nela ia crescendo.
- A chave do quarto 1113 era a máquina que a impelia, o motor que punha em movimento o seu pânico. Logo, porém, estranhamente, a chave deixou de ser motivo de pânico para se transformar em razão para conforto. Sim, esta chave devia poder abrir alguma porta de quarto de hotel, um refúgio ao abrigo do frio, um lugar onde pudesse descansar. Ali poderia ao menos aquecer-se, comer alguma coisa, repousar.
Continuou andando depressa e em cada cruzamento olhava para ver se alguma condução se aproximava. Sybil começou a sentir raiva de si mesma, por não se ter esforçado um pouco mais para encontrar um táxi ou ônibus. Embora se visse numa verdadeira enrascada, tinha a certeza de que agora iria encontrar um hotel, fosse ou não o da chave anônima. Atrás desses armazéns, por certo, havia um mundo habitado.
Em seguida, um novo terror se apoderou dela. E se ela tivesse apanhado a chave no meio da rua? Não se lembrava de ter feito isso, mas havia muita coisa de que não se lembrava. E se ela em outros tempos tivesse passado alguns dias, semanas, até meses ou anos naquele quarto e tivesse sido obrigada a desocupá-lo por falta de pagamento? Em ambas as hipóteses, o quarto agora devia pertencer a alguma outra pessoa. Devia jogar fora a chave? Livrar-se de alguma possível incriminação?
Não, não havia chave alguma, nenhum quarto, nenhuma proteção, nenhum refúgio, nenhum mundo, mas somente mais um pedaço desta terra sem mulheres onde silhuetas irreais de homens projetavam-se rapidamente na neve, despertando as imagens pretas e brancas que sempre a apavoravam.
Estas ruas compridas e estreitas não tinham fim. Nenhuma casa com luz acesa. Como estas janelas com trancas faziam despertar velhos temores, que a seguiam onde quer que vivesse e que agora a conduziam a esta terra de ninguém!
De repente surgiu uma luz. Era um posto de gasolina. Finalmente um telefone e uma lista para poder ver como é que se chamava esse lugar.
Segundo a lista telefônica, achava-se em Filadélfia, cidade que havia visitado muitas vezes, mas em nenhuma de suas visitas estivera neste local.
A cabina de telefone lhe acenava, parecia convidá-la para que se aproximasse. Aceitou o convite, mas quando se encontrava lá dentro, espremida nos estreitos limites da cabina, a hospitalidade se transformou em repulsa. Quis ligar para a residência da Dra. Wilbur, e por isso colocou uma ficha na ranhura de níqueis para chamadas interurbanas; mas ouviu somente um som metálico e nada mais. O telefone estava mudo.
Aproximou-se do empregado do posto de gasolina e perguntou se podia usar o seu telefone.
— Sinto muito, senhora — respondeu-lhe. Quando ele se afastou e fechou a porta em seu rosto, a única coisa que ela pôde ver foram as costas do paletó branco que se afastava.
A expressão apavorada de seu rosto enchera-o de medo. Mas o contato com outra pessoa permitiu-lhe pensar em ligar do Broadwood Hotel, onde sempre se hospedava quando vinha a Filadélfia.
O pensamento no Broadwood e a certeza de que se encontrava numa cidade que conhecia muito bem dissiparam-lhe um pouco do medo. Aproveitou para dar uma chegada ao banheiro, onde deixou por algum tempo as mãos sob o jato da água quente. Ao retornar à rua, pela primeira vez notou o rio Delaware e, em sua margem oposta, Camden.
O Delaware era-lhe familiar. Certa vez pintara-o numa aquarela de estilo impressionista, enquanto Capri estava sentada a seu lado. A gata ficara observando os movimentos do pincel e num determinado momento empurrara com sua patinha o cabo do pincel, como para lembrar Sybil de que ela também estava ali presente.
Os letreiros das ruas começavam a ficar visíveis: Front Street. Callowhill Street. Spring Gardens. Na Front Street, entre a Callowhill e Spring Gardens, viadutos se estendiam por sobre a cabeça. Quando se aproximou de uma esquina, Sybil notou uma luz. Aproximava-se um ônibus urbano.
— Espere, espere! — gritou Sybil nervosamente.
O motorista de faces rosadas esperou até que ela subisse.
Sentindo fortes dores nos braços e nas pernas, Sybil deixou-se cair, quase desmaiando, num banco de trás, perto da janela. Estava disposta a ir a qualquer lugar aonde o ônibus a levasse, a qualquer parte deste mundo afora, onde Deus bem entendesse.
Por que é que aqueles outros passageiros — três homens e uma senhora com um chapéu alto, de pele de castor — estavam ali, numa noite como aquela? Mas, afinal de contas, era mesmo de noite? A cor cinza das nuvens do céu, tremendamente esquisita, não permitia saber se era noite ou se estava amanhecendo. Nem sequer sabia que dia era. Se fosse perguntar aos demais passageiros, haveriam de pensar que era uma desmiolada.
Aquela chave enigmática em sua bolsa, sem nenhuma pista sobre a sua procedência, voltou a infernizar-lhe as idéias. Seria uma chave do Broadwood? Não sabia. Nem sequer sabia se estava a caminho do Broadwood Hotel.
Contudo, de qualquer lugar aonde o ônibus a levasse, devia ser fácil chegar até lá. Ansiosa por averiguar, levantou-se do lugar em que estava, aproximou-se do motorista e perguntou-lhe:
— O senhor passa por algum ponto perto do Broadwood?
— A três quadras dele — respondeu o motorista.
— Quer que a avise?
Apesar de estar tiritando de frio, pelas janelas do ônibus reconheceu a Benjamin Franklin Parkway, a Lotam Free Library, o Franklin Institute e o Fairmont Park. Com alegria lembrou os dois monumentos graníticos comemorativos que há no parque. Num deles, que representa soldados, em baixo-relevo, lia-se a inscrição: Um país; uma Constituição. Libertando os escravos, garantimos liberdade para os livres. Ela havia feito uma pintura daquele monumento guerreiro. Tinha que estar com a atenção presa a alguma coisa, em tudo menos na chave. "Menos minha vida, menos minha vida", foi o que Hamlet exclamara.
— Seu ponto de saltar — gritou-lhe o motorista. De novo pisava terra firme. Sem firmeza diante das
ruas e calçadas escorregadias, diante da estrutura e solidez dos monumentos familiares tinha a sensação de segurança: a Academy of Fine Arts na esquina da Broad Street com a Cherry Street, o Hahnemann Hospital, e depois, pelo menos uma realidade presente, a cúpula dourada do Broadwood Hotel.
Finalmente, diante dela, erguia-se o Broadwood Hotel com seus dezesseis andares de tijolos vermelhos. Até o terceiro andar havia uma estrutura em forma de losango e uma cornija branca. Do outro lado da rua, em frente ao hotel, a Roman Catholic High School para rapazes e um prédio velho que costumava ser a sede do Philadelphia Morning Record. Em frente ao Broadwood, uma estação do metrô. O metrô havia sido inaugurado em 1927 — ao menos era o que alguém lhe havia dito. O próprio Broadwood tinha sido construído em 1923, pelos Elk. Foi o ano em que ela nasceu. Que coincidência gozada!
Chateada consigo mesma por estar se demorando do lado de fora, quando já podia estar lá dentro, finalmente assumiu o decisivo risco de entrar. Subir os três degraus que levavam à porta da frente do Broadwood pareceu a Sybil tão difícil como galgar os picos do monte Everest. Sua subida era para o ignoto, para o desconhecido.
No saguão principal parou para olhar as lâmpadas semelhantes a tochas que pendiam do teto e passou a observar o mármore familiar, o assoalho com ladrilhos amarelos, pretos e brancos. Embora conhecesse muito bem o saguão pelas visitas anteriores, observou todos os pormenores como se fosse a primeira vez.
Devia registrar a sua entrada? Hesitou. Devia dirigir-se diretamente ao quarto 1113, na suposição de que este estaria livre e de que ela estava de posse de uma chave de quarto do Broadwood Hotel? Subiu correndo os quinze degraus que levam à rotunda. Aquilo era um desvio seguro para evitar a portaria e o elevador.
A rotunda possuía uma janela de mármore de aproximadamente doze metros de altura, com vidros coloridos e vista ampla para um mezanino. No teto da rotunda, trabalhado em folhas, via-se a inscrição: Fidelidade, Justiça, Orgulho, Amor Fraternal — suas virtudes em placas de afeição e recordação. As faltas de nossos irmãos, escrevemo-las nos grãos de areia.
Durante alguns minutos fugazes Sybil ficou admirando aquela beleza, que lhe dava uma sensação de repouso, mas esse estado de espírito logo passou, quando ela lentamente foi relembrando os passos que dera, da rotunda até o corredor principal. Mergulhou de novo em pensamentos estranhos e notou como o lugar tinha mudado desde a última vez em que lá estivera. Os boys já não eram os mesmos, e também nunca tinha visto aquela mulher que estava na mesa da portaria, com cara de coruja e porte de elefanta. Demorou-se uns instantes na vitrina da galeria Persky's Portraits, indecisa sobre se devia registrar-se na portaria ou ir diretamente ao quarto 1113, para onde essa enigmática chave devia supostamente conduzir. Não conseguiu tomar uma decisão e por isso saiu apressadamente para a Broad Street.
Na banca de jornais, em frente ao Broadwood, comprou um exemplar do Philadelphia Bulletin do dia 7 de janeiro de 1958. Como se não acreditasse naquela data, comprou o Philadelphia Inquirer, que também era do dia 7 de janeiro.
Sete de janeiro. Tinha saído do laboratório de química no dia 2 de janeiro. Cinco dias perdida. O medo que a invadia por desconhecer que dia era aumentou agora com o fato de estar sabendo.
— Você tem horas? — perguntou ao jornaleiro, procurando aparentar um ar de indiferença.
— Nove horas — respondeu ele.
Nove da noite! Quando estava esperando o elevador, no corredor da Columbia University, eram oito e quarenta e cinco da noite. Haviam passado quase cinco dias.
Devagarinho, cheia de medo, Sybil mais uma vez empurrou e abriu a porta de vidro do hotel. Pânico, e uma sensação de remorso e auto-recriminação suscitados pelo fato de ter perdido cinco dias impeliram-na a apressar-se. Percebeu vagamente que alguém a estava chamando. Era a mulher com cara de coruja e porte de elefanta, na mesa de registro da portaria.
— Ei, você — chamou a mulher, com sua enorme cabeça agitando-se por cima da mesa, para se fazer notada, com as sobrancelhas tão salientes que se pareciam com as asas duras de uma coruja. Ao menos foi assim que Sybil a caracterizou logo que a viu.
— Tem um minutinho à disposição? — perguntou a mulher. — Gostaria de ter uma palavrinha com você.
Como se tivesse sofrido uma ação hipnotizante, Sybil parou.
— Olhe, quando você for ao seu quarto, não deixe de tomar um bom banho quente e de saborear um chá. Eu estava tão preocupada com você, lá fora naquele temporal. "Não saia à rua", pedia eu com insistência, mas você não queria atender. Este tempo não é para brincadeiras, e não devemos arriscar-nos com ele.
— Muito obrigada — respondeu Sybil um tanto secamente. — Estou muito bem.
A mulher sorriu para Sybil, que se dirigiu aos elevadores.
Sybil podia jurar, até mesmo perante a corte de um tribunal, que pelo menos um ano havia passado desde sua última estada no Broadwood. A mulher da portaria, por sua vez, que no ano anterior ainda não trabalhava no hotel, teria jurado, perante a mesma corte, que Sybil estivera no hotel aquele mesmo dia, mais cedo.
Uma das portas dos dois elevadores se abriu e Sybil entrou, ansiosa e profundamente apreensiva. Ela era a única passageira.
— Onze, por favor — pediu.
— Andou por aí neste temporal? — perguntou o ascensorista.
— Sim — murmurou ela.
— Onze — disse ele, apertando o botão.
A porta do elevador se fechou atrás dela, com um som metálico que entrou misteriosamente pela medula de sua espinha dorsal, conforme acontecera com os olhares dos que estavam no laboratório de química. Entre os dois elevadores não houvera nenhum lapso de tempo, e ao pensar nisso seu remorso aumentava.
Será que o quarto 1113 realmente existia? É bem verdade que os números 1105, 1107, 1109 e 1111, nas portas, davam a entender que devia existir o 1113. Imediatamente divisou o número 1113, como que iluminado com luzes de néon que se acendiam e apagavam alternadamente.
Sybil abriu a bolsa, retirou a chave e, prendendo a respiração, começou a enfiá-la no buraco da fechadura; girou a chave na mão mais uma vez e ficou imaginando se seria a chave daquela porta.
Devia entrar? Ou ir embora?
Enfiou a chave na fechadura. Era a sua. A porta foi se abrindo. Sybil estava perante o quarto 1113.
Ninguém falou, não se ouviram passos. Será que não havia ninguém lá dentro?
Encostou o corpo no batente da porta e, sem entrar no quarto, esticou a mão à procura do interruptor de luz, na parede mais próxima. Quando o ligou, um jato de luz inundou os seus temores ante a expectativa do que poderia ver. Entrou e fechou a porta. Ficou estatelada, imóvel.
Pelo que sabia, nunca estivera naquele quarto. Mas, se esse não era seu quarto, onde é que dormira entre os dias 2 e 7 de janeiro, e como é que aquela chave chegara às suas mãos? Ela não podia ter ficado zanzando pela rua durante todo aquele tempo.
Teria preenchido a ficha de entrada na portaria do hotel? A mulher na mesa lá embaixo agira como se o tivesse feito.
Sybil tirou o casaco molhado e jogou-o numa cadeira, tirou depressa seus sapatos encharcados e aboletou-se na cadeira verde que havia perto da janela.
Não sabia que o quarto era dela, mas pela maneira como a mulher lhe havia falado achou que ele não pertencia também a nenhuma outra pessoa.
Por uns instantes, ficou divagando e olhando pela janela, para a Roman Catholic High School para rapazes e para o edifício que sempre fora a sede do Philadelphia Morning Record. Não conseguindo descansar, pegou os jornais que havia trazido consigo.
THE PHILADELPHIA INQUIRER
ÚLTIMA EDIÇÃO
JORNAL INDEPENDENTE PARA TODOS
Meus olhos estão pesados de cansaço.
TERÇA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 1958
Sete de janeiro. Sete de janeiro é um dado palpável que significa que eu perdi cinco dias.
HOMEM LANÇADO A 186 MILHAS DE ALTURA NUM FOGUETE, DIZEM OS RUSSOS
Gavin Sustenta que Temos que Investir mais
em Nosso Programa Espacial. 85.° Congresso Inicia Segunda Sessão Hoje.
Tanta coisa aconteceu enquanto eu estava fora do mundo!
Piloto do Foguete Atira-se de Pára-Quedas após sua Épica Ascensão.
Minha ascensão também foi épica. As ruas. Os degraus. Tantas ruas. E foi uma descida maior, pois perdi o tempo quando já pensava que isso não me aconteceria mais.
Carros Derrapam Cuidado com as Estradas Geladas
THE EVENING BULLETIN PHILADELPHIA
TERÇA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 1958
Pagar a conta. Avisar a recepção. Avisar a recepção se nem estou registrada? E como consegui entrar sem bagagem?
Espera-se que a Tempestade de Neve Dure a Noite Toda
A noite toda?
Jogou os jornais na cesta de lixo floreada e pegou o telefone para pedir que a servissem no quarto. Encomendou uma sopa de ervilhas e um copo de leite quente. Enquanto esperava pela comida, tentou ligar para a Dra. Wilbur. Demorou muito, muito mesmo, até conseguir uma ligação com a doutora.
Sybil levantou o fone do gancho e começou a dar ao porteiro o número do telefone da Dra. Wilbur. Neste instante alguma coisa que estava no guarda-roupa chamou a sua atenção. Olhando fixamente para o objeto, sem acreditar, deixou cair o fone abruptamente. Era a sua pasta com zíper! "
No guarda-roupa estavam também as suas luvas, que devia ter vestido na tempestade, bem como a mantilha vermelha que tinha quando estava no elevador da Columbia University.
Encaminhou-se nervosamente para o guarda-roupa e agarrou a pasta com zíper. Abriu o fecho ecler da pasta e descobriu que as anotações de química estavam direitinho como há cinco dias atrás, quando as surrupiou no laboratório.
Num canto do guarda-roupa notou alguma coisa que não havia percebido antes: o recibo de dois pijamas que havia comprado na Mayflower, na Wayne Avenue. A pé levava-se um bocado de tempo para chegar ao Broadwood, mas pelo metrô era um instante. O par de pijamas custou seis dólares e noventa e oito centavos, mas será que esta importância, perguntou-se ela, lhe esvaziou a carteira?
- O pijama! Onde estava ele? Escarafunchou nas gavetas e procurou no banheiro, mas nada encontrou.
A princípio não viu nada, mas em seguida deu com o pijama dependurado num cabide, atrás da porta, na posição de alguém enforcado.
Estava todo amarrotado, como se alguém tivesse dormido com ele. Será que ela havia dormido com ele? Era de cor berrante e alegre, com listras de um laranja vivo e verdes. Não era do seu gosto. Ela sempre escolhia cores lisas, geralmente o azul, em diversas tonalidades. O pijama que encontrou era do tipo que uma criança gostaria de ter.
Sybil voltou para o quarto e os seus joelhos cederam. O achado dos objetos no guarda-roupa aumentou repentinamente a sensação de culpa que sentia por descobrir que havia perdido tempo. A pasta com zíper estava ali, encarando-a fixamente, a mantilha vermelha levantava-se qual ameaça diante dela, e as luvas apontavam para ela como se estivessem movendo-se sozinhas.
Em seguida, na mesinha-de-cabeceira, percebeu um objeto que lhe acenava: um quadro em preto e branco, com uma figura de mulher isolada, em cima dum rochedo que ficava em frente a uma montanha que ameaçava engoli-lo. O quadro tinha sido pintado a lápis, em papel timbrado do Broadwood Hotel. Fora pintado neste quarto e certamente deixado ali pela pessoa que o pintara. Quem teria sido?
Bateram à porta e o empregado do hotel colocou na mesa de Sybil a bandeja com a sopa e o leite que ela havia encomendado. "A senhora não está com muita fome, não é verdade?", perguntou o garçom magricela. Dava a impressão de que estava fazendo uma comparação entre o que ela pedira agora e a quantidade de comida que pedia em outras ocasiões. A expressão de sua voz era gentil e suas maneiras atenciosas, como se já a conhecesse muito bem, embora Sybil estivesse certa de que não o vira antes. O garçom saiu.
Olhando para a bandeja com comida, Sybil sentiu um tipo de medo diferente daquele que experimentara no meio daqueles edifícios maciços e horríveis do setor dos armazéns. O garçom. A mulher na mesa com o peito que nem uma montanha. O par de pijamas. O quadro com a mulher pintada em preto e branco empoleirada em cima dum rochedo. As coisas começavam a ficar claras, terrivelmente claras. O pânico que experimentara no setor dos armazéns por não saber o que havia acontecido fora suplantado na banca de jornais pelo pânico ainda maior porque ficara sabendo em parte o que havia sucedido. E agora esse tormento, que a infernizava por saber em parte o que se passara, induzia-a ao terror infinitamente maior por saber precisamente o que se dera. O pijama e o quadro pintado não deixavam margem a nenhuma dúvida.
Sybil engoliu o leite de uma vez só, empurrou a bandeja de lado, calçou os sapatos às pressas, vestiu o casaco ainda molhado, apanhou a mantilha, as luvas. Enfiou de qualquer jeito o pijama e a nota de compras na pasta. Tinha planejado passar a noite inteira naquele quarto, mas de repente mudou de idéia e resolveu voltar para Nova York, para evitar o risco de ser surpreendida pelo que poderia acontecer caso permanecesse ali. Embora visse que a neve não havia parado de cair e que os trens poderiam estar atrasados, Sybil Isabel Dorsett sabia que tinha que voltar para Nova York enquanto ainda se encontrava senhora de si.
GUERRA INTERIOR
Trens. Esses dragões da noite fascinavam Sybil, faziam-na vibrar e arrebatavam-na. No passado eles normalmente significavam fuga, mas este de agora a levava para a frente, e não de volta. Ela estava consciente de que tinha de voltar a Nova York, não por causa do laboratório e sim devido à Dra. Wilbur.
Sybil começou a pensar no que podia ter acontecido durante a sua ausência: a consulta diária regular com a doutora, perdida; as possíveis tentativas da doutora em procurá-la e, acima de tudo, a desilusão da doutora, imaginando o que provavelmente podia ter acontecido.
Sybil afastou os pensamentos que a perturbavam. A sensação de calma e bem-estar que experimentara, desde que havia tomado o trem, era agradável demais para ser perdida com especulações inúteis, com remorsos, com auto-recriminações.
Ao invés, Sybil Isabel Dorsett perdeu-se em devaneios, pensando naqueles primeiros encontros que tivera com a Dra. Wilbur e nos acontecimentos que se seguiram. Uma verdadeira maré de recordações invadiu sua mente e só cessou quando o trem chegou à Pennsylvania Station, em Nova York.
Sybil era uma garota de vinte e dois anos. À mercê dos seus sentimentos, vivia às turras com seus pais — Willard e Henrietta "Hattie" Dorsett — naquele verão de 1945. Sybil sofria pressões de todos os lados, tanto da parte de estranhos como dos seus familiares. A guerra que sustentava não era uma guerra de nervos, no sentido costumeiro, mas uma guerra de nervosismo, num sentido especial, pois os sintomas nervosos que a contaminaram desde a meninice se intensificaram tanto no colégio do meio-oeste onde estudava belas-artes, que a direção do colégio a havia mandado de volta para casa no mês de junho anterior, avisando que só deveria retornar ao colégio quando um psiquiatra a julgasse apta. Gwen Updyke, a enfermeira do colégio, teve receio de deixá-la viajar sozinha e por isso acompanhou-a na viagem. Mas a volta para casa só contribuiu para agravar os sintomas de Sybil, pois de um ambiente escolar insustentável foi transferida para um relacionamento ainda mais intolerável com seus pais, que imediatamente passaram a exercer um domínio desagradável sobre a moça. Em agosto de 1945 Sybil estava procurando com afinco a solução para um problema que sempre a havia afligido, mas que nem ela nem outra pessoa conseguira compreender.
Neste estado de espírito Sybil fez a sua primeira viagem para conhecer o Dr. Lynn Thompson Hall, o médico particular de sua mãe. Nessa ocasião a doente era a mãe, que estava com a barriga inchada, e Sybil a acompanhara ao consultório, como filha da paciente. Mas, enquanto estava conversando com o Dr. Hall a respeito da doença da mãe, desejou que ele lhe fizesse perguntas de ordem pessoal. Simpatizou com o médico alto e calmo, concluindo que o que mais apreciava nele é que a tratava como uma adulta inteligente. A constatação verdadeira, porém, era preocupante. Com seus vinte e dois anos de idade, fazia jus ao estatuto de adulta. De acordo com um teste de inteligência padronizado, tinha um qi de cento e setenta, o que lhe dava o direito de ser tratada como uma pessoa inteligente. No entanto, junto da mãe e ainda mais perto do seu pai, nunca se sentira como uma adulta inteligente. Quando nasceu, seus pais estavam com quarenta anos de idade. Nunca chegou a conhecer a mãe a não ser com cabelos grisalhos. Supunha que devia ser esta situação de Isaac-Jacó — com um intervalo abrangendo não uma mas duas gerações, acrescido pelo fato de ser uma criança — o fator responsável pelo fato de diante da sua mãe é~"i do seu pai ela se sentir uma criança. Fosse como fosse, aos olhos dos seus pais ela nunca conseguiu ser considerada como pessoa adulta.
Sybil queria consultar-se com o Dr. Hall. Na primeira visita torcera, no seu íntimo, para que ele lhe perguntasse: "O que há com você? O que posso fazer por você?" Na segunda visita, que fez três dias depois, esse seu desejo era ainda mais forte e mais insistente. Mas perdeu a coragem, quando ela e sua mãe ficaram horas a fio esperando a vez, na sala cheia de gente — pois, devido à guerra, os médicos eram poucos. Não acreditava, pensou ela, que o Dr. Hall fosse perguntar-lhe alguma coisa sobre seu estado de saúde.
Finalmente chegou a vez da mãe. Por insistência da mãe, Sybil estava sempre presente aos exames. Quando a mãe, Sybil e o doutor iam saindo da sala de consulta, o Dr. Hall chamou Sybil à parte e disse-lhe:
— Gostaria de falar-lhe um instante, no consultório.
Pára surpresa de Sybil, o doutor não disse uma palavra a respeito da mãe. Sentado em sua cadeira, o Dr. Hall encarou firmemente Sybil e disse sem rodeios e meios-termos:
— Miss Dorsett, a senhorita está pálida e magra. O que está se passando? — Esperou um instante, para logo acrescentar: — De que maneira posso ajudá-la?
Acontecera exatamente o que ela desejava que acontecesse, mas ela estava ansiosa. Embora tivesse esperado por esta oportunidade sentia-se embaraçada. Como poderia o Dr. Hall ter adivinhado o seu desejo? Não era de se imaginar que ele estivesse instintivamente sintonizado com o seu desejo. O fato de o povo julgá-lo um médico arguto, talvez o melhor de Omaha, não constituía explicação suficiente.
Percebendo de repente que não era tempo de se entregar a reflexões, uma vez que o Dr. Hall, que fora franco com ela, estava esperando uma resposta, disse lentamente:
— Pois bem, doutor, fisicamente, até que não posso me queixar.
Ela queria desesperadamente a sua ajuda, mas receava abrir-se demais com ele, e por isso acrescentou meramente o seguinte:
— Estou um pouco nervosa. No colégio estava tão nervosa que me mandaram para casa até que melhore.
O Dr. Hall ouvia atentamente, e Sybil notou que ele realmente queria ajudá-la.
— Se agora você não está no colégio, o que está fazendo? — perguntou o doutor.
— Estou lecionando num ginásio. — Embora não tivesse a licença, mesmo assim conseguia lecionar, devido à falta de professores durante o tempo de guerra.
— Muito bem. E esse nervosismo de que fala, como é que se manifesta?
A pergunta a deixou petrificada. Na realidade, como é que se manifestava, que forma assumia? Este era um detalhe de que não queria falar. Isso ela não podia dizer-lhe, por mais que o Dr. Hall quisesse ajudá-la e por maior que fosse o seu desejo de ser ajudada por ele. Jamais conseguira transmitir a quem quer que fosse a informação que ele queria arrancar-lhe. Mesmo que ela quisesse dar essa informação, não poderia fazê-lo. Era uma força misteriosa, que fazia da sua vida um verdadeiro inferno e que a tornava diferente dos demais, a ponto de nem ela mesma saber do que se tratava. Sybil limitou-se a dizer:
— Sei que tenho de procurar um psiquiatra. — A seu ver essa era uma boa saída para a situação; e ficou estudando a fisionomia do Dr. Hall, preocupada com a sua reação, mas ele não demonstrou nenhuma surpresa e não teve nenhuma reação.
Prosaicamente, como quem não está ligando muito para o assunto, disse simplesmente:
— Vou marcar uma consulta para você, venha na quinta-feira, juntamente com sua mãe.
— Muito obrigada, doutor — respondeu Sybil.
A frase de agradecimento breve e seca, com suas palavras convencionais, soou sem profundidade. Aquelas palavras, sabia ela muito bem, não eram capazes de traduzir o impacto dos poderosos sentimentos que a esmagavam. Era importante que procurasse um psiquiatra, não somente para obter alívio para seu nervosismo — se é que na realidade o seu estado permitia um tratamento —, mas, também, porque sua volta ao colégio dependia da ajuda de um psiquiatra. Queria desesperadamente voltar para a escola e percebia ser esta a única maneira.
Sybil não falou nada disso aos seus pais, mas, na quinta-feira, o Dr. Hall fez a seguinte observação na presença da mãe:
— Sua consulta será no dia 10 de agosto, às duas horas da tarde, com a Dra. Wilbur. Ela é especialista em tratamento de jovens.
O coração de Sybil pulou e depois começou a bater intensamente. Contudo, a alegria de poder ver um psiquiatra foi ofuscada pela palavra "ela". Uma mulher? Será que tinha ouvido direito? Todos os médicos que havia consultado eram homens.
— Sim — continuou o Dr. Hall —, a Dra. Wilbur tem tido grande êxito com os pacientes que lhe encaminhei.
Sybil prestou atenção somente pela metade, porque o pavor que sentiu no começo, ao imaginar uma mulher psiquiatra, quase a deixou muda. Mas de repente o temor se desvaneceu, pois lhe veio à mente a forte amizade que tinha tido com Miss Updyke, enfermeira do colégio, e que tinha tido uma experiência catastrófica com um neurologista da Mayo Clinic. Depois de uma única visita o neurologista dera o caso por resolvido, traçando um panorama otimista da situação e dizendo ao pai dela que ficaria completamente boa se continuasse a escrever poemas.
O Dr. Hall inclinou-se para a frente e pegou o braço de sua mãe, dizendo com firmeza:
— E a senhora não deve acompanhá-la.
Sybil estava apavorada — e até estupefata — pelo tom de voz com que o médico falou e com a aquiescência aparente da mãe. Aonde vai a corda vai a caçamba; assim era a situação na vida de Sybil, com relação à sua mãe: a mãe ia sempre agarrada às saias da filha. Embora tivesse tentado, Sybil jamais conseguira alterar esta situação. A onipresença da mãe na vida da filha se constituíra já em imperativo da natureza, tão inevitável como o nascer e o pôr do sol. Numa simples frase, o Dr. Hall invertera a realidade de toda uma vida.
Naquela sentença encerrava-se algo mais que desafiava toda compreensão. Ninguém jamais ousara dizer à sua mãe o que ela devia fazer — nem família, nem amigos, nem o pai de Sybil e muito menos a própria. A mãe — que se autoproclamava "a grande Hattie Dorsett" —, dominadora, inexorável e invencível, não aceitava ordens; o tipo consumado da mandona.
Sem atinar, talvez, para o que estava pensando, mas mesmo assim de todo o coração, ao sair do consultório com sua mãe, Sybil desejava ardentemente que a psiquiatra que iria ver em breve não tivesse cabelos brancos.
Precisamente às duas horas da tarde do dia 10 de agosto Sybil entrou no consultório da Dra. Cornelia B. Wilbur, no sexto andar do Medicai Arts Building de Omaha. E os cabelos da doutora não eram brancos. A médica era jovem, de cabelos ruivos. Devia ter uns dez anos mais do que Sybil. Seu olhar parecia amável — inconfundivelmente, inegavelmente amável.
Mas no íntimo de Sybil continuavam a efervescer os sentimentos contraditórios que experimentara no consultório do Dr. Hall: a sensação de alívio, porque, afinal, estava fazendo alguma coisa para acabar com o seu nervosismo; e o medo de que nada pudesse ser feito, porque seu caso era único, não passível de tratamento.
A Dra. Wilbur mostrou-se compreensiva enquanto Sybil procurava disfarçar estes sentimentos contraditórios.
— No colégio as coisas andavam pretas para o meu lado — dizia Sybil. — Miss Updyke, a enfermeira da escola, estava preocupada comigo. O médico da escola me encaminhou a um neurologista da Mayo Clinic. Vi o neurologista somente uma vez e ele me garantiu que eu ficaria boa. Mas, ao contrário, acabei piorando. Mandaram-me para casa e disseram que só poderia voltar quando estivesse melhor.
Sybil se reanimou com o sorriso da médica.
— Pois bem — continuou Sybil —, agora estou em casa. É horrível, simplesmente horrível. Tenho quer ficar a todo instante grudada nas saias da mamãe e nas calças do papai. Não me perdem de vista. Ficam me olhando com ar desolado a todo instante. Sei que estão envergonhados porque voltei para casa. Estavam contando com minha formatura e nela concentravam todas as suas esperanças. Mas, quando estiver boa, vou voltar ao colégio.
A médica não tinha dito ainda nenhuma palavra, e Sybil continuava desabafando.
— Sou filha única, e meus pais são muito bons comigo.
A Dra. Wilbur acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto acendia um cigarro.
— Eles ficam preocupados comigo — continuou Sybil. — Todo mundo anda preocupado comigo — minha família, nosso pastor, Deus e todo mundo. Estou pintando quadros das passagens de Daniel e da Revelação para as aulas do pastor. Enquanto ele vai falando, vou desenhando e pintando o animal de que ele está falando. É uma coisa realmente muito comovente. Fico lá encarapitada em cima duma armação, com três metros de altura, colocada no palco. Em geral rabisco com giz, em papel especial, as minhas interpretações pessoais sobre aquilo que o pastor está dizendo. Isso me dá uma trabalheira dos diabos. Ele. . .
— E você, como se sente? — interrompeu a Dra. Wilbur. — Até agora você esteve me dizendo o que Deus e todo mundo acham de você. Mas você, como é que se sente?
Então Sybil desandou com uma enxurrada de queixas contra o que estava acontecendo com a sua saúde: a sua falta de apetite, seu peso de uns quarenta quilos, embora tivesse uma altura considerável. Todo este rosário de lamúrias não excluiu a sinusite crônica e a vista curta, tão curta que, conforme adiantou, "às vezes tenho a impressão de estar olhando através de um túnel". Fez uma pequena pausa e continuou:
— Não estou boa, absolutamente, mas disseram-me que tenho uma saúde de ferro. Quando era garotinha andava sempre meio adoentada.
Lembrava-se dos seus sonhos? Este era o ponto que a doutora queria saber, mas infelizmente Sybil não guardava nenhuma lembrança. Quando era garotinha sofria de pesadelos dos quais não tinha a mínima lembrança.
Sybil sentiu um calafrio pelo corpo quando a doutora tentou fazer com que ela falasse a respeito dos seus sentimentos, mas a doutora insistiu na tecla. Finalmente Sybil tinha desabafado o suficiente para permitir que a Dra. Wilbur lhe dissesse:
— Você deveria voltar. Tem problemas que podem ser superados.
De que esses problemas poderiam ser resolvidos, a Dra. Wilbur tinha absoluta certeza, mas o problema era segurar Sybil, que era tão ingênua, tão faltosa com os compromissos, e irresponsável. De mais a mais, ela não estava colaborando consigo mesma, pois falava muito sem dizer nada, era uma verdadeira verborréia sem sentido e nexo.
Pessoalmente, Sybil desejava de coração voltar, mas essa história de ficar do lado de fora do consultório esperando, pagar a consulta à recepcionista. . . Sabia que não poderia marcar outra consulta sem antes falar no assunto com os seus pais. Apesar disto, tinha o pressentimento de que ficaria boa, se continuasse o tratamento com esta doutora.
Será que eu me abri demais com a doutora? perguntava-se Sybil quando ia descendo, no elevador, do sexto andar do Medicai Arts Building. Logo tranqüilizou-se, porque achava que não devia ter dito aquilo que não podia ser dito. Depois, já fora do prédio e sob o clarão dum sol de agosto, percebeu conscientemente que nunca conseguiria dizer à Dra. Wilbur tudo o que deveria e poderia, a respeito da sua pessoa.
O SOFÁ E A SERPENTE
A segunda visita de Sybil à Dra. Wilbur não teve nada de especial. Quando a paciente saiu do Medicai Arts Building, lembrou-se de que sua mãe a esperava nas Lojas Brandeis, na quadra que ficava em frente, do outro lado da rua. Frustrada em sua intenção de ficar segurando o rabo da saia da filha até no consultório da doutora, Hattie Dorsett levara-a até o elevador que conduzia ao consultório.
Na porta do elevador a mãe disse:
— Estarei esperando por você nas Lojas Brandeis — frisando bem as palavras desse velho refrão duma interdependência forçada, da qual nunca fora capaz de se desfazer, mesmo que ambas, no íntimo, desejassem ver-se livres dessa situação — mas certamente Hattie não queria desgarrar-se da filha. Agora apresentava-se o estranho caso, como sempre, de onde vai a corda, vai a caçamba.
Devagarinho, com ar dócil, Sybil entrou nas Lojas Brandeis, onde viu, quase imediatamente, a figura magrela da mãe, com seu porte orgulhoso e os cabelos brancos. Imediatamente veio também a pergunta costumeira da mãe:
— O que a doutora disse a respeito de mim? — Embora fosse uma pergunta, soava como uma exigência.
— Nada — foi a resposta de Sybil.
— Então, vamos embora — ordenou a mãe, em sua rabugice.
— Gostaria de dar uma chegada até a biblioteca — observou Sybil.
— Oh, muito bem, vamos lá — concordou a mãe. — Também quero apanhar um livro.
Na .biblioteca, que ficava na Harney Street, Sybil e a mãe se dirigiram a estantes diferentes e encontraram-se na saída. Sybil tinha escolhido o livro The silver cord, de Howard.
— Que livro é esse aí? — perguntou a mãe.
— É uma peça — respondeu Sybil. — A Dra. Wilbur sugeriu que eu a lesse.
Naquela tarde a mãe ficou sentada lendo The silver cord enquanto Sybil preparava o jantar e depois lavava os pratos. Quando acabou de ler o livro, a mãe saiu-se com este comentário:
— Não entendo por que a Dra. Wilbur pediu que você lesse este livro. Que tem isto a ver com o seu caso?
Enquanto sua mulher e sua filha estavam conversando, Willard Dorsett estava calado, remoendo com seus botões uma série de perguntas. Muito a contragosto concordara em que Sybil começasse um tratamento, pois desde que o colégio mandara Sybil de volta para casa, o velho Willard estava certo de que tinha que fazer alguma coisa. Embora estivesse absolutamente convencido de que a psiquiatria não iria resolver coisíssima alguma, estava disposto a dar-lhe mais uma chance. Mas, a decisão tomada estaria certa?
O tratamento começou no dia 10 de agosto e continuou uma vez por semana durante todo o verão e começo do outono de 1945. Para todos os três Dorsett foi uma época de apreensão e expectativa.
Sempre que Sybil voltava da consulta com a Dra. Wilbur os pais ficavam esperando, feito corvos em volta da carniça:
— O que foi que ela disse a respeito de nós? — nunca se lembravam de perguntar: "Como você está indo?" ou "Como vão as coisas?"
Aliás, Sybil preferia que eles não dissessem e nem perguntassem coisíssima nenhuma. Já sem essas constantes perguntas chatas dos pais o tratamento era suficientemente penoso.
— Você acaba ficando doida — disse-lhe a doutora.
—Não deve pensar muito em você mesma. Isto cria um sentimento de repulsa, que acaba projetando sobre os outros, e daí achar que ninguém gosta de você.
Outro tema era o seguinte: — Você é superdotada e séria. Até séria demais. Você precisa levar uma vida social mais intensa.
Outra pergunta sempre era:
— Quando é que você vai desabrochar? A Dra. Wilbur aconselhava:
— Saia de casa. Vá para Nova York ou Chicago, onde possa encontrar gente que gosta de arte.
Bem que Sybil desejava isto. O desassossego que sentia em casa era grandemente intensificado pelo tratamento.
A observação da Dra. Wilbur de que Sybil precisava levar uma vida social mais intensa deixara a mãe exasperada.
— Está vendo? — declarou a mãe arrogantemente quando Sybil lhe falou a respeito. — O que foi que eu disse durante todos esses anos? Por acaso minhas previsões estavam erradas? Por que é que você não gasta todo esse dinheiro comigo, para lhe dizer o que é que está errado?
Os pais de Sybil examinaram o que a doutora havia dito, e ao mesmo tempo fizeram suas críticas contra ela. Ela fumava, e nenhuma mulher que se prezasse fazia isso. Ela não ia à igreja, e muito menos àquela de fé fundamentalista, a que eles pertenciam. Em resumo, a doutora não lhes inspirava confiança de jeito nenhum. O caso é que sempre tinham exercido domínio sobre a filha e não seria agora que iriam largá-la assim, sozinha. A mãe, que fazia duma pulga um elefante e só via o lado mau das coisas, simplesmente tirou essa idéia da cabeça de Sybil. Ninguém, fosse doutora ou não, que fizesse coisas que Hattie Dorsett desaprovasse e que não se enquadrasse nos preceitos dela estaria certo em coisa alguma.
A atitude da mãe contra a Dra. Wilbur não causou surpresa a Sybil. A do pai, sim. Sybil julgava que ele fosse bastante razoável para dar ouvidos ao bom senso, para concordar em que a Dra. Wilbur podia muito bem ser uma boa médica, mesmo que eles a desaprovassem em sua conduta pessoal. No entanto, Sybil rapidamente se apercebeu de que seu pai era cabeçudo e não conseguia vencer a sua resistência contra tudo o que a Dra. Wilbur dissesse ou avisasse, só porque ela levava uma vida que não estava de acordo com seus pontos de vista. A doutora pertencia a outro mundo, e tanto para Mr. Willard Dorsett como para sua esposa não passava de uma intrujona.
— A Dra. Wilbur não está cuidando de você como realmente deveria ser — repetia a mãe constantemente. — Agora ela vem com umas histórias muito bonitas, mas quando tiver conseguido o que quer de você, então as coisas vão mudar completamente de aspecto. E lembre-se, garota, de que ela ficará toda satisfeita se um dia você lhe disser que não gosta de sua própria mãe.
Sybil gostaria de garantir à mãe que jamais iria dizer tal coisa à doutora, porque não correspondia à verdade, e por isso repetiu diversas vezes:
— Mamãe, eu gosto da senhora.
A situação estava ficando terrível. Sybil queria, a todo custo, ficar boa, e as cenas que se passavam em casa em nada contribuíam para isto. Se falava alguma coisa, era aquele inferno; se ficava calada, era a mesma coisa. Quando Sybil não falava os seus pais a acusavam de mal-humorada e, embora em tempos passados lhe jogassem no rosto este particular, agora se queixavam de que a Dra. Wilbur era responsável pelo silêncio da filha.
— Ela acaba deixando você louca — avisou a sua mãe — e por fim joga você numa instituição qualquer, porque é assim que os médicos costumam fazer dinheiro.
Em compensação, os de fora, as pessoas que sabiam que ela estava se tratando com um médico, e mesmo aqueles que desconheciam este detalhe, achavam que Sybil estava melhorando a olhos vistos. Mas, quando as pessoas comentavam esta melhora, a mãe caçoava e o pai não prestava muita atenção. Sybil sentiu que ele poderia ter compreendido a situação se a sua mulher não lhe tivesse aplicado aquela lavagem cerebral, com a sua costumeira cantilena:
— Está melhor porque está crescendo, e todo mundo quando vai ficando adulto vai criando juízo e compreende melhor as coisas.
Sybil tinha vinte e dois anos, mas a mãe se referia a esse período da vida da filha não como a um tempo de maturidade, mas como ao primeiro crescimento.
Felizmente essa lavagem cerebral não afetava Sybil. Quando as consultas de uma hora feitas semanalmente com a doutora, em Omaha, entraram pelo mês de setembro adentro, Sybil ficou cada vez mais convencida de que a Dra. Wilbur daria um jeito no seu problema. Mas estava ainda muito confusa consigo mesma.
Sybil não tinha dito nada à doutora sobre o que a deixava atordoada, uma coisa esquisita que tinha a ver com o fator tempo e memória. Por exemplo, durante o último verão e começo de outono aconteceu a Sybil no consultório da doutora sem depois se lembrar de nada do que havia ocorrido durante a consulta. Havia vezes em que se lembrava de ter entrado no elevador, mas não no consultório; e outras vezes se lembrava que havia ido ao consultório, mas não de ter saído dele. Por isso Sybil não podia dizer aos pais o que a doutora havia dito a respeito deles ou de alguma outra coisa qualquer. Sybil chegava a não se lembrar se, alguma vez, vira a doutora.
Uma consulta, em particular, sobressaía mais claramente em sua memória. Um paradoxo, uma piada: lembrar o que antes ela não teria conseguido.
Sybil ouviu-se dizendo:
— Não era tão mau como costumeiramente.
— Como é que você sabe? — perguntou a doutora.
— Acho que estava lá fora no corredor ou em alguma outra parte qualquer, neste momento — respondeu Sybil.
— Sabe duma coisa? — comentou a doutora. — Não é que você quase pulou da janela? Deu um pulo na cadeira e correu em direção à janela. Não pude detê-la.
Sybil não se lembrava de ter feito semelhante coisa, mas não quis discutir o assunto. Durante toda a sua vida as pessoas diziam que ela havia feito coisas das quais não se lembrava.
— Na realidade, não fiquei nervosa, porque você nunca conseguiria sair por estas janelas — explicou a doutora. — São de vidro inquebrável, como você sabe.
Depois disto a Dra. Wilbur ficou mais séria.
— Você teve uma coisa que se parece com um pequeno ataque. Não era ataque de epilepsia, e sim uma espécie de ataque psicológico.
Ataque psicológico? Isto quer dizer que a doutora estava dizendo que Sybil sofria dos nervos. Mas isto era coisa pra lá de sabida — não tinha nada de novo. Mas a novidade, porém, é que a doutora não parecia a estar censurando. Tampouco parecia que a Dra. Wilbur julgava o caso incurável, como ela própria muitas vezes tinha receado.
A doutora apresentou-lhe três alternativas para o futuro imediato: lecionar na escola secundária durante mais um ano, voltar ao colégio, ou então submeter-se a um tratamento intensivo no Bishop Clarkson Memorial Hospital, onde a doutora e um colega eram responsáveis por uma divisão de psiquiatria.
Sybil optou pelo hospital. Mas quando ela falou disto em casa, só faltou seus pais subirem até as nuvens, tão apavorados ficaram. Para eles hospitalização significava somente uma coisa: a filha estava louca.
— Isto não tem nada a ver com loucura — Sybil tentou explicar. — A Dra. Wilbur me garantiu que não é nada disto.
— Então tem a ver com o Diabo — respondeu agourentamente o pai.
Embora o hospital parecesse o caminho para a condenação, Willard Dorsett concordou em discutir o assunto com a Dra. Wilbur, escolhendo encontrar-se com ela não em seu consultório no Medical Arts Building e sim no Clarkson.
Hattie e Sybil ficaram no carro; a mãe roia nervosamente as unhas, enquanto a filha trincava os dentes. Lá dentro a Dra. Wilbur tentava dissipar os temores de Willard Dorsett de que a filha iria ser trancada entre quatro paredes e coagida, de que iriam praticar uma lobotomia nela, de que iria piorar pelo contato com outros doentes, piores do que ela, e de que só ficaria boa o suficiente para a despacharem para casa para, depois, recair e voltar ao hospital. Acostumara-se a encarar hospitalização como um interminável e ininterrupto círculo vicioso de entra e sai e sai e entra.
Desfeito estava também o pior dos receios que o pai de Sybil nutria, o de que ministrassem drogas à filha.
— Não — garantiu-lhe a Dra. Wilbur —, nunca faríamos uma coisa destas.
Finalmente, consentiu em que fosse hospitalizada no Clarkson, embora desconfiasse do tratamento psicológico a que sua filha ia submeter-se.
Conforme as previsões da Dra. Wilbur, o Clarkson seria somente uma medida temporária. No final de tudo, o que a Dra. Wilbur previa ser necessário para Sybil era uma psicanálise.
— Você é o tipo de pessoa que deve passar por uma psicanálise — disse ela à paciente. — Eu gostaria de encarregar-me pessoalmente do caso, mas ainda não sou uma analista formada. Na verdade, dentro em breve sairei de Omaha para fazer o meu estágio de analista. Depois de sair do Clarkson, sugiro que você vá a Chicago para ser analisada.
A perspectiva entusiasmava Sybil. Chicago não significava somente ir mais perto da verdade a respeito de sua pessoa, mas era também uma oportunidade para dar o fora de casa. Mas o assunto da psicanálise criou um problema para Willard e Hattie Dorsett. Tinham concordado com um tratamento psiquiátrico e até os planos de hospitalização, mas psicanálise era coisa diferente.
O sofá e a serpente! Os pais temiam que esse mundo estranho da psicanálise se chocasse com as suas convicções religiosas mais profundas e que chegasse até, quem sabe, a tirar o próprio Deus da jogada. A religião em que o pai de Sybil fora criado, e que sua mãe, originariamente metodista, abraçara alguns anos depois de se casar, ensinava que todo indivíduo tem o privilégio de escolher entre Deus e o Demônio, entre Deus e o Lúcifer das profecias, entre Deus e a serpente das Escrituras. A religião ensinava que o demônio só pode exercer domínio sobre uma pessoa se esta lhe cede o controle. Todos têm o privilégio, acreditavam os Dorsett, de escolher entre Deus e o Demônio. Responsabilizando-se pelas ações daqueles que o escolheram, Deus poderia levar ao paraíso todos os que soubessem fazer a escolha correta. Em contrapartida, ensinava taxativamente a sua religião, aqueles que optarem pelo Demônio andarão por caminhos diferentes.
Temeroso de estar entregando sua filha e, através dela, ele mesmo, aos braços do Demônio, Willard Dorsett não se sentia com coragem de dar uma resposta a Sybil, quando esta lhe suplicava que lhe permitisse ir a Chicago submeter-se a uma psicanálise.
— Minha filha, não sei o que fazer — disse ele. — Vou conversar com o Pastor Weber sobre este caso.
O pastor era decidido e taxativo, na maioria dos casos, mas agora partilhava das dúvidas de Willard quanto aos benefícios da psicanálise. Os dois homens eram muito amigos e o pastor encarregara Dorsett da construção de igrejas para a sua seita, pois estava impressionado com a sua habilidade e talento como empreiteiro de obras. Estiveram conversando sobre o caso de Sybil na igreja em construção em que Willard estava trabalhando, mas o pastor desta vez se mostrou evasivo, não querendo externar a sua opinião.
— Não sei, não, Irmão Dorsett; não sei o que dizer — repetiu ele diversas vezes.
Depois de uma pausa, o próprio Dorsett desabafou:
— Teria mais confiança se o psicanalista de Chicago fosse da mesma religião que nós. Meu medo é que um médico que não seja de nossa religião use drogas, hipnose e outras técnicas que eu não aprovo.
Pensativo e embaraçado, o pastor andava de cá para lá dentro da igreja. Finalmente resolveu falar, para se limitar a dizer o seguinte:
— Irmão Dorsett, você mesmo é que irá decidir este assunto. Gostaria de ajudá-lo, mas, francamente, não sei o que aconselhar.
Desta vez quem passou a medir a igreja com seus passos de cá para lá foi Mr. Dorsett. Respondeu com ar preocupado:
— Se nessa terapia não levarem em consideração os preceitos de Deus, terão que suar um bocado para me fazer engolir essa coisa.
.— Isto mesmo — acrescentou o pastor —, vai ser o mesmo que fazer um camelo passar pelo fundo de uma agulha. — Depois duma pausa prolongada, acrescentou: —. Acredito na liberdade de pensamento, de consciência e de fé. Irmão Dorsett, você sabe muito bem que eu posso convencer as pessoas, mas a única forma de persuasão que sempre usei foi a de falar diretamente com as pessoas em questão, trocando idéias com elas. Em minha vida nunca recorri à força e não posso dizer com absoluta certeza se a psicanálise não usa meios violentos. Mas, quanto a Sybil ir a Chicago, não vejo nenhum inconveniente. Quem resolve isto não sou eu, e sim você e ela.
Willard Dorsett contou a Sybil a conversa com o pastor, e vendo que não havia mais defesa contra seus próprios temores, e só lhe restava procurar espantá-los, acabou deixando a decisão com a filha.
— Quero ir a Chicago — foi a resposta decisiva e irrevogável de Sybil.
No sábado seguinte Sybil falou rapidamente com o pastor, na igreja. Percebendo o olhar atento e penetrante de Sybil, o pastor lhe disse polidamente:
— Seu pai e eu estamos olhando este caso somente sob nosso ponto de vista, mas temos que admitir que pode também haver outro ponto de vista. Se você mesma quer seguir este outro modo de ver, não devemos criar embaraços.
Sybil ficou inabalável em sua decisão. Enquanto estava aguardando uma vaga no Clarkson e esperando ser chamada de Chicago, vislumbrava o futuro imediato como um salto a mais naquele "terrível pesadelo" que lhe infernizava toda a existência. Sentia um alívio indizível por ter tomado a primeira atitude concreta depois de longos anos de vacilação e de adiamentos, tanto da parte de seus pais como dela mesma. Finalmente, sentiu-se com coragem de tomar aquela decisão que não conseguira tomar quando mais nova.
Mas, de repente, a situação sofreu uma reviravolta. Embora não fosse a causa, mas o meio, contraiu uma pneumonia em conseqüência duma forte gripe e dor de garganta. Sentia dores de cabeça terríveis; a garganta estava ferida e em carne viva. Embora tentasse levantar-se da cama para telefonar à Dra. Wilbur, cancelando a consulta do dia 6 de outubro, a tontura e a fraqueza não lho permitiam. Sybil pediu à sua mãe que telefonasse à Dra. Wilbur.
Sybil ouviu quando Hattie Dorsett deu o número da Dra. Wilbur à telefonista, quando deu o seu nome à secretária da doutora e quando depois começou a conversar com a própria doutora.
— Sim, quem está falando é Mrs. Dorsett, mãe de Sybil — disse Hattie ao telefone. —- Sybil está doente, e não pode ir ao seu consultório no dia 6 de outubro. Sim, parece que está havendo um agravamento da dor de garganta, e ela está com febre, mas acontece que também contraiu pneumonia. Seja como for, ela me pediu para lhe telefonar. Muito obrigada.
— Que foi que à doutora disse? — perguntou Sybil. — O que foi que ela disse?
— Não disse nada — respondeu a mãe.
— Não disse nada sobre outro dia para a consulta? Nada a respeito do hospital?
— Já falei que não disse nada!
O trem chegara a Trenton e Sybil continuava perdida em seus devaneios. Não conseguia abafar o eco da voz de sua mãe. Parecia-lhe estar ouvindo as palavras que ela havia dito em Omaha. Tão distintas e claras como se estivesse sentada ao lado de Sybil, as palavras soavam como um turbilhão nos ouvidos da moça. Quando a sua memória voltou a funcionar normalmente, embora desgovernada, o trem se pôs em movimento com destino a Nova York, impulsionado por aquilo que Sybil supunha ser a lógica de sua própria cabeça.
Ao saber que a doutora não havia dito nada a respeito de outra data para a consulta, afastou o sentimento de desilusão que experimentara tranqüilizando-se com o pensamento de que a doutora certamente presumira que ela haveria de marcar outra consulta, quando estivesse suficientemente boa. Quando se restabeleceu completamente da doença voltou a telefonar, mas informaram-lhe que a Dra. Wilbur se havia mudado definitivamente de Omaha. Naturalmente, Sybil teve um sentimento de desalento e frustração.
Depois de tantas e ásperas brigas em casa, depois das horas de agonia que viveu para persuadir os seus pais, para que lhe permitissem submeter-se a tratamento e concordassem com a sua hospitalização no Clarkson, não é que o caminho para conseguir melhorar de saúde lhe era cortado? Nem mesmo os emocionalmente invulneráveis conseguiriam agüentar um golpe destes.
Largou o telefone e foi sentar-se indolentemente na cama. Imaginou como a sua mãe não se poria agora a fazer troça dela e o seu pai a ruminar silenciosamente suas críticas. Pôs-se a pensar na Dra. Wilbur. Havia uma coisa que a deixava intrigada, que ela não podia entender: como é que a doutora tinha saído da cidade sem deixar nenhum aviso, sem demonstrar um pingo de consideração para com ela, Sybil Dorsett? Será que tinha ofendido a doutora? Teria a doutora desconfiado de que ela não estava realmente doente e assim agira para suspender o tratamento? Certamente, estas eram hipóteses viáveis.
E agora, que fazer? Recebera uma carta de Chicago, dizendo que o analista estava com as consultas tomadas por dois anos e que não estava aceitando novos pacientes; com isto a possibilidade de sua análise tinha ido por água abaixo. A perda da Dra. Wilbur afastara a hipótese do Clarkson e da continuação do tratamento. Depois, na solidão de seu quarto, Sybil começou a dar tratos à bola e encarou friamente a realidade, achando que teria de dar um jeito sozinha. Chegou até a convencer-se de que, com a partida da Dra. Wilbur e o cancelamento de seus planos para Chicago, estaria mais à vontade para agir como bem entendesse. E o que ela mais desejava era voltar ao colégio.
Será que ela estava suficientemente boa? Não estava certa disto, mas achou que o tratamento com a Dra. Wilbur poderia muito bem servir de justificativa para ser readmitida.
Escreveu a Miss Updyke sobre o seu desejo de retornar ao colégio, e esta lhe prometeu que usaria de toda a sua influência para lhe possibilitar a volta. Enquanto isso, Sybil continuou a lecionar na escola secundária e a pintar. Finalmente, em janeiro de 1947, Sybil voltou ao colégio.
No decorrer da primeira semana, Miss Updyke estava ansiosa por ver como é que as coisas correriam. Sentiu-se muito satisfeita quando Sybil lhe disse que era capaz de assistir às aulas inteiras, sem aquelas perturbações interiores que no passado a haviam obrigado a sair do colégio. Em seu diário, no dia 7 de janeiro de 1947, Sybil escreveu: "Ela pôde ver que eu estou regularmente boa". Referindo-se àquela estranha coisa que a perturbava, no dia 8 de janeiro daquele mesmo ano escrevia: "Não me agüento de alegria — graças a Deus, pude falar com Miss Updyke, como fiz ontem, e ficar em forma. Nem sequer a mínima tendência. A única coisa que desejava há muito tempo. Certamente Deus ouviu minhas preces".
Contudo, aquela estranha coisa, aquela "mínima tendência" que não lhe permitia ficar em forma, não se havia acalmado. Seu diário, praticamente infalível como indicação da presença ou ausência das "tendências" — porque Sybil nunca deixou de registrar os fatos quando estava senhora de suas faculdades —, mostra claramente que mesmo nestes períodos, em que se sentia senhora de si, havia dias em que se julgava "regularmente boa". Realmente, no dia 9 de janeiro, um dia depois daquela explosão de otimismo, não consta nada em seu diário. Muitas vezes, dias de otimismo eram seguidos de dias de pessimismo.
Dias bons, houve-os suficientes para Sybil poder quase completar três anos de permanência no colégio e entrar triunfalmente no segundo semestre do seu ano de graduação. Mas, pouco antes de terminar o segundo semestre de 1948, Sybil recebeu um telefonema de seu pai, pedindo-lhe que fosse a Kansas City, onde eles estavam agora morando. Sua mãe sofria de câncer do baço e estava às portas da morte, e ela insistia em querer Sybil como enfermeira, e mais ninguém.
— Se é isto o que sua mãe quer — disse Willard Dorsett à filha —, então é isto o que será feito.
Sybil não sabia o que a sorte lhe reservava quando chegasse a Kansas City. Velhos temores voltaram a manifestar-se. Mas Hattie Dorsett nunca tinha sido tão calma e tão compreensiva como agora, em Kansas City. Parecia até um paradoxo, pois mãe e filha, nesse período de crise, entendiam-se maravilhosamente; melhor do que em outros tempos.
O ambiente calmo se transformou num irônico pano de fundo para os acontecimentos que começariam a desenrolar-se naquele entardecer, em si normal como os demais. Relativamente aliviada das dores, Hattie Dorsett estava sentada na grande espreguiçadeira vermelha, na sala de estar da casa dos Dorsett. Lia o Ladies Home Journal, à luz da pequena lâmpada de mesa. Sybil entrou com a terrina de sopa. Como que aereamente, aparentemente sem referência a nada, Hattie Dorsett fez a seguinte observação:
— Eu nunca o dei.
— Deu o quê? — perguntou calmamente Sybil, pensando que sua mãe estivesse lamentando algum remorso passado ou então matutando em algum negócio não concluído que a preocupava.
— Nunca dei aquele telefonema — disse Hattie Dorsett.
— Que telefonema, mamãe?
— Aquele telefonema à Dra. Wilbur — explicou a mãe.
— Mas a senhora deu o telefonema! — insistiu Sybil. — A senhora não se lembra? Eu escutei toda a conversa, palavra por palavra.
Hattie Dorsett respondeu com a maior tranqüilidade deste mundo:
— Pois bem, eu estava mantendo o aparelho desligado. Nunca dei aquele telefonema, é o que lhe garanto.
Nunca esta possibilidade passara pela cabeça de Sybil. Era inconcebível que sua mãe lhe tivesse barrado, tão decididamente, o caminho para a recuperação da saúde; inconcebível que pudesse tê-la condenado à incerteza e à dúvida acerca da doutora com a qual tinha tido uma convivência até outubro de 1945 — portanto, quase há três anos atrás.
Um insight aqui, uma pequena revelação mais adiante, absorvidos durante o brevíssimo tratamento, haviam sido suficientes para que Sybil readquirisse o equilíbrio interior que possibilitou sua volta ao colégio. A coisa sem nome que a Dra. Wilbur havia vislumbrado no dia em que sua paciente se arremessara contra a vidraça havia continuado a se manifestar em Omaha, no colégio, e em Kansas City. E havia sido sua mãe, ao cultivar aquele segredo bizarro e impedindo a continuação do tratamento, que deliberadamente limitara o destino da própria filha.
Quanto horror, quanta dor, quanta tristeza havia naquilo! E, no entanto, não houve recriminações. Ninguém criticava Hattie Dorsett. Nunca! Não houve qualquer explosão de raiva contra ela. Raiva era mesquinhez.
Hattie tomou a sopa. Sybil levou a bandeja de volta à cozinha. Nenhuma das duas, nem mãe nem filha, tocaram novamente no assunto daquele telefonema à Dra. Wilbur.
Todavia, a revelação do telefonema mudou por completo a atitude de Sybil com relação à doutora. Pareceu-lhe lógico que, desconhecendo o fato de que Sybil estava doente, a Dra. Wilbur pensasse que ela estava fugindo ao tratamento, sem sequer ter a decência de lhe dizer que nunca mais voltaria. Portanto, não era de admirar que a Dra. Wilbur tivesse saído de Omaha sem lhe telefonar. Não era Sybil Dorsett quem tinha o direito de estar profundamente decepcionada, e sim a Dra. Cornelia Wilbur.
Antes de ouvir falar daquele telefonema, que nunca tinha sido dado, Sybil havia deliberadamente afastado a Dra. Wilbur da sua mente. Agora, porém, a figura da doutora voltava a assumir um aspecto novo, e Sybil sentiu um repentino assomo de esperança. Voltava a sonhar com a gloriosa perspectiva de ficar completamente boa, de recomeçar o tratamento com a Dra. Wilbur onde havia sido interrompido. Mas, desta vez, não permitiria que a serpente metesse peçonha nos seus planos. A concretização do sonho teria que ser adiada até que Sybil, independente financeiramente, pudesse arcar em pessoa com as despesas do seu tratamento.
Por uma relação de psiquiatras, Sybil ficou sabendo que a Dra. Wilbur era agora uma psicanalista em Nova York. E para Nova York estava resolvida a ir.
Durante os seis anos — 1948 a 1954 — que decorreram entre a sua decisão e a concretização, Sybil jamais deixou transpirar junto a alguém o sonho que acalentava. Era assunto que só interessava a ela, e a mais ninguém.
Em julho de 1948 Hattie Dorsett faleceu e foi sepultada num cemitério de Kansas City. Durante os dois meses seguintes Sybil cuidou da casa, e em setembro voltou ao colégio. Bacharelou-se em junho de 1949, e foi necessária a interferência e os bons ofícios de um dos professores para convencer seu pai, que na ocasião estava em Denver, no Colorado, com o Pastor Weber, a comparecer às comemorações da colação de grau. E no dia da colação, à uma da tarde, Sybil partiu para Denver com seu pai.
Durante os anos seguintes viveu com seu pai, lecionando e trabalhando como terapeuta ocupacional. Devido aos planos de construção, Willard Dorsett era sempre obrigado a mudar de lugar, e ela o acompanhava. Porém, por volta do verão de 1954, já havia feito economias suficientes, que lhe possibilitavam ir a Nova York para fazer um curso de extensão universitária na Columbia University e recomeçar o tratamento com a Dra. Wilbur. Informado de que a filha ia a Nova York com a única finalidade de estudar, o pai a levou até lá.
Sybil chegou a Nova York no Dia do Trabalho, em 1954, mas só se comunicou com a Dra. Wilbur em outubro, pois tanto receava que a doutora a repelisse quanto que a aceitasse. —
Que a doutora a repelisse, era coisa cabível pela maneira nada gentil como Sybil fechara as portas ao tratamento, mas era mais provável que a doutora nem mais se lembrasse dela, e era justamente isto o que preocupava a jovem.
A aceitação lhe proporcionava um tipo diferente de pavor. Se fosse aceita, teria que contar à doutora todo aquele sentimento, que tinha experimentado no final dos três anos que vivera em Detroit, sua última residência antes de vir a Nova York. Enquanto estava lecionando, parecia que tudo corria bem com ela, embora houvesse ocasiões, na aula, em que ficava esquecida. A partir do momento em que saía da sala de aulas, porém — era horrível demais lembrar isto —, coisas estranhas e incompreensíveis lhe haviam acontecido. Estas coisas não eram novidade e na realidade lhe aconteciam desde a idade de três anos e meio, e começaram a afetar a sua consciência e entendimento aos catorze anos. Acontece que em Detroit estas manifestações não só se tornaram mais freqüentes, mas, também, mais ameaçadoras. Não era mais capaz de suportar o terrível peso do segredo que não ousava contar, não agüentava mais com as respostas que improvisara para salvar as aparências de normalidade.
Pessoas que ela nunca havia visto afirmavam insistentemente que já a conheciam. Seria capaz de ir a um piquenique e sentir uma vaga impressão de ter estado no mesmo local, anteriormente. Um vestido que nunca havia comprado podia muito bem estar dependurado no seu armário. Seria capaz de começar a pintar um quadro e voltar ao estúdio e achar que outra pessoa o havia completado — num estilo que não era o dela. Muitas vezes lhe parecia estar dormindo de dia como se fosse em plena noite. Freqüentemente não distinguia uma linha de divisão entre a hora de ir deitar-se e aquela de se levantar na manhã seguinte. Muitas eram as ocasiões em que tinha a impressão de ter acordado sem ter ido dormir, de ter ido dormir para então acordar, não na manhã seguinte, mas numa data qualquer que não conseguia reconhecer.
Se a Dra. Wilbur viesse a aceitá-la, todas estas coisas e muitas outras semelhantes viriam à tona. Mas, com receio ou sem ele, desta vez iria desembuchar tudo com a Dra. Wilbur.
Apesar disto, Sybil ficava ainda matutando consigo mesma sobre se recomeçar o tratamento seria a decisão mais acertada. Vacilou durante seis semanas, antes de tomar a decisão final.
Enquanto estava viajando, no trem, o passado se desvaneceu. De repente o que a impelia era o presente, esse presente que a impeliu a deixar Filadélfia. Toda vez que lhe ocorria um desses incidentes, e isto desde a idade de três anos e meio, sempre lhe parecia que estava acontecendo pela primeira vez, como se nunca os tivesse tido.
Desde que aos catorze anos tomou consciência da sua situação, toda vez prometia a si mesma que haveria de recomeçar tudo novamente e que não permitiria que isso acontecesse outra vez. Em Detroit os episódios se tornaram tremendamente numerosos, e mesmo então tudo fizera para considerar cada um deles como o último a lhe ocorrer.
Desta vez, porém, a ilusão da primeira vez lhe incutia um pavor até maior do que usualmente, por causa da profunda decepção que tivera agora, em janeiro de 1958 — três anos e meio, portanto, depois que havia recomeçado a análise —, com a ocorrência de um episódio como esse de Filadélfia.
O trem entrou fazendo um barulho enorme na Penn Station, de Nova York. Sybil agarrou a pasta com zíper, desceu do trem, tomou um táxi depressa e, finalmente, sentiu-se aliviada daquela apreensão que a infernizava, daquele remorso que insistentemente lhe esquentava as idéias, pelo que lhe acontecera em Filadélfia. Quando o táxi dobrou e entrou por Morningside Drive e se aproximou do apartamento que em setembro de 1955 havia alugado juntamente com Teddy Reeves, sentiu um ar de segurança e de bem-estar — tranqüilizada pelo seu desejo de não querer lembrar-se de nada mais.
Teddy devia estar ainda junto com a família, em Oklahoma. Sybil subiu os dois lanços de escada, certa de que não haveria ninguém lá dentro para lhe dar as boas-vindas, mas também não dando bola para isto.
Quando escancarou a porta do apartamento, toda aquela sua tranqüilidade se dissipou. Capri, a gatinha agora magricela e de olhos largos, cumprimentou-a com um grunhido patético e rouco. O grunhido da gata parecia uma acusação, aquele mesmo tipo de acusação do pijama, no quarto do Broadwood Hotel. Sybil abandonara a gatinha Capri, deixando-a sem água e sem comida. Capri era a sua única companheira de verdade, realmente tudo o que ela possuía. Sybil era uma criatura que não desprezava nenhum animal, muito menos a sua preciosa Capri. Mas ela havia abandonado o animal que adorava, como ela própria havia sido abandonada repetidas vezes no passado por pessoas que faziam questão de alardear que a amavam.
A OUTRA MOÇA
Sybil, deitada na cama, sentia-se inquieta, pois sabia perfeitamente que, na manhã seguinte, teria que dizer à doutora tudo o que se tinha passado com ela. A coisa seria até mais difícil do que imaginara. Começou a pensar na primeira vez em que encontrou a doutora em Nova York.
Expectante, ansiosa, inquieta, Sybil despertara bem antes do amanhecer naquele 18 de outubro de 1954. Seus olhos percorriam o pequeno quarto de Whittier Hall, pousando sobre objetos quase invisíveis na semi-obscuridade. Sobre a cadeira da escrivaninha estava seu traje azul-marinho, de gabardina. No toucador estavam a bolsa de couro azul-marinho, as luvas de seda azul-marinho e o chapéu azul-marinho com o veuzinho azul-marinho. Corretamente colocados embaixo da cadeira achavam-se seus sapatos de couro azul-marinho, de salto médio. Dentro deles, as meias cinza. O conjunto fora cuidadosamente preparado na noite anterior.
À medida que as formas se foram fazendo visíveis à luz crescente, desapareceu o sentido de estranheza. Sybil percebeu-se pensando no que diria à doutora. Agora lhe diria tudo.
Espreguiçou-se um instante, virando o rosto para a janela e para o amanhecer. Vestiu-se lenta e meticulosamente. Enquanto enganchava o pequeno sutiã, deu-se conta de que suas mãos tremiam e, para acalmar-se, sentou-se na cama. Levantando-se de novo ao cabo de alguns segundos, vestiu-se lentamente com a roupa escolhida. Pondo o chapéu com uma precisão quase mecânica, sentiu que tinha bom aspecto sem necessidade de olhar-se num espelho. O azul-marinho estava muito em moda, e o pequeno véu dava um toque adicional ao conjunto.
Foi até a janela. As árvores do pátio de Whittier Hall estavam sem folhas por causa do outono. Eram seis e meia. Ainda não era hora. A consulta com a doutora era às nove.
O mundo não parecia muito desperto quando desceu os degraus na entrada de Whittier Hall e, atravessando a Amsterdam Avenue, dirigiu-se à Hartley's Drugstore, na esquina suleste.
A drugstore estava vazia com exceção da moça na caixa e de um garçom no balcão. Passando o tempo até que a humanidade despertasse, a caixa limpava as unhas com uma lima. O garçom, já com sua jaqueta branca, empilhava pratos atrás do balcão de mármore.
Sentando-se ao balcão, Sybil pediu um pouco de queijo dinamarquês e um copo grande de leite. Tirou as luvas e brincou nervosamente com elas. Enquanto brincava com a comida, deu-se conta de que. estava matando o tempo deliberadamente. A frase "matar o tempo" a fez estremecer.
Saindo da Hartley's às sete e meia, esperou um pouco pelo ônibus que passava pela Amsterdam Avenue; logo mudou de idéia. Os ônibus faziam-na sentir-se confusa, e naquela manhã desejava ter a mente bem livre.
Passando junto à Schermerhorn e à redonda Capela de St. Paul, mal as reconheceu. Foi só quando chegou à 116th Street que a área começou a parecer-lhe a Columbia University com que já estava familiarizada. Através das pesadas portas da 116th Street podia ver a distância a Low Library com sua mistura arquitetônica, suas colunas jônicas e a orgulhosa mas um tanto patética estátua da Alma Mater na escadaria dianteira. Fixou-se na grande semelhança que havia entre a Low e o pequeno Panteão de Roma.
A Catedral de St. John the Divine, na 113rd Street, intrigava-a. Permaneceu à sua frente dez minutos inteiros, examinando sua arquitetura gótica e refletindo que parecia ser uma obra inacabada, na qual se trabalhasse continuamente. Bom, o que era certo é que ela não podia caminhar eternamente. Esperou um táxi, mas não apareceu nenhum até as oito e quinze.
O motorista, com seu sotaque de Brooklyn, ofereceu-lhe o New York Times. Aceitou, agradecida, e com o jornal conseguiu acalmar os nervos, exasperados pelo lento movimento do táxi através do tráfego daquela hora; seu nervosismo lhe dizia que, embora sua mente corresse a toda pressa para seu destino, talvez ainda chegasse tarde à consulta, apesar de haver saído tão cedo.
Naquele 18 de outubro de 1954 não havia nenhuma grande manchete. Não se mencionava na primeira página nem o Presidente Eisenhower nem o Senador McCarthy, que habitualmente causava manchetes de arregalar os olhos. Tranqüilos e pequenos títulos anunciavam:
MacMillan se encarrega da Defesa britânica na mudança de gabinete
Aumentam as greves nas docas britânicas
Quarenta universidades se incorporam à ajuda técnica dos EUA a vinte e seis países
Os democratas tomam a dianteira nas batalhas do Parlamento
Os choferes de caminhão iniciam um processo
por suas perdas devidas à greve, exigindo
dez milhões de dólares.
A manchete não escrita, que se sobrepunha a todas as outras, era:
A doutora se lembrará de mim?
O táxi deu uma freada repentina. Chegara.
— Boa sorte — disse o motorista, quando Sybil lhe pagou a corrida. Boa sorte? pensou ela. Entrou pensativa pela porta da frente do edifício, na esquina da Park Avenue com a 76th Street, onde a Dra. Wilbur morava e tinha o seu consultório. Às oito e cinqüenta e cinco estava no saguão exclusivo do apartamento 4-D.
A porta ficava aberta, de modo que os clientes podiam entrar sem tocar a campainha. Sybil viu-se numa saleta palidamente iluminada. Nela havia uma mesa muito pequena, uma lâmpada pequena também e fotos em molduras de madeira. Devia sentar-se? Subitamente a Dra. Wilbur entrou na sala.
— Entre, Miss Dorsett — disse ela.
Entraram numa sala de consultas ensolarada, ambas relembrando o último encontro, em Omaha, há quase dez anos passados.
Ela mudou, pensava Sybil. Seus cabelos estão mais brilhantes do que me lembrava. Parece mais feminina. Mas o seu olhar, o sorriso e a maneira de inclinar a cabeça para cumprimentar são os mesmos.
Por sua vez, a Dra. Wilbur pensava consigo mesma: magricela e frágil como sempre. Não parece que envelheceu. Garanto que reconheceria este rosto em qualquer parte: em forma de coração, o nariz arrebitado, a boca parecendo um botão de rosa. É um rosto que não se costuma ver nas ruas de Nova York. É o rosto de uma inglesa e, apesar das leves marcas na pele, tem o aspecto saudável e sem adornos de uma senhora inglesa.
A doutora não pediu a Sybil que se sentasse, mas o seu modo indicava isto. Mas onde? O sofá verde, com um pequeno travesseiro triangular na extremidade, no qual os pacientes evidentemente descansavam suas cabeças perturbadas, não era convidativo.
Sybil preferiu a cadeira de uma mesinha de mogno, e empoleirou-se rigidamente na beirada. Começou a explicar-se de maneira breve, real, sem nenhuma emoção. Era como se estivesse fazendo um currículo de sua vida, numa agência de empregos, não se dirigindo à doutora à qual havia voltado depois de tanto ansiar e de vencer tanta resistência. Encheu uma hora inteira com sua tagarelice sobre o curso que completara no colégio, as aulas que dava, seu trabalho na terapia, a exposição dos quadros de pintura, sobre a análise que não fizera, contrariamente ao que a Dra. Wilbur havia sugerido em Omaha. Chegou até a falar da morte de sua mãe, mas sem um pingo de sentimento.
A frieza com que vinha se expressando continuou mesmo quando tocou no assunto de Stanley McNamara, um professor inglês junto com quem dera aulas em Detroit, pouco antes de vir a Nova York. Embora a amizade entre os dois tivesse ido ao ponto de Stan pedir sua mão, Sybil falava dele com frieza, em termos sociais. Tocando meramente pela tangente a amizade que atualmente mantinha com ele, evitando qualquer menção de intimidades que pudessem existir ou dos seus próprios sentimentos, ela apenas se limitou a dizer que Stan fora criado e educado num orfanato, estudara num colégio, por conta própria, e cavara a vida sozinho.
Por sua vez, a Dra. Wilbur estava mais interessada naquilo que Sybil não dissera, sobre Stan, do que naquilo que contara. Mas a doutora não pressionou Sybil. A hora já tinha quase passado, e ela perguntou:
— O que você espera de mim?
— Quero trabalhar em terapia ocupacional — respondeu Sybil.
— Creio que você já o fez.
— E acho que estou querendo me casar com Stan. Mas não tenho certeza.
Quando a doutora perguntou se a sua paciente queria vê-la de novo, Sybil abaixou a cabeça toda envergonhada e espiou com os olhinhos escondidos por detrás das pálpebras, observando sem segurança:
— Gostaria de voltar a fazer análise.
A Dra. Wilbur sentiu-se satisfeita, pois Sybil Dorsett seria uma criatura interessante sob o ponto de vista analítico — brilhante, competente, com talento, mas também com um espírito indiferente, alheio e tímido. A doutora percebeu também que as suas pupilas estavam dilatadas, como resultado de ansiedade.
Nas semanas que se seguiram Sybil só vivia em função da análise, de modo que praticamente concentrava todos os seus pensamentos e atividades visando ao encontro da terça-feira de manhã com a Dra. Wilbur.
Para se preparar para as visitas com a doutora, Sybil desenrolava um autêntico cerimonial litúrgico: não sabia o que vestir, a roupa cinzenta com a malha de lã rosa, a cinzenta com os dois suéteres azuis ou a saia com o suéter claro. Ao mesmo tempo, Sybil entregava-se com todo prazer a verdadeiras peregrinações à Schermerhorn, a biblioteca de psicologia da universidade, onde se impregnava de literatura sobre psiquiatria, especialmente sobre casos reais. Interessava-se mais pelos sintomas, mas não só por mera curiosidade. Quanto mais ficava sabendo sobre sintomas que se manifestaram em outros pacientes, tanto mais julgava dever ocultar os seus. Depois de muito pouco tempo, tomou o propósito firme de ocultar o que procurava desvendar quando viera a Nova York.
Às vezes, o paciente se revela logo na primeira visita. Esta paciente, pensou a doutora com constrangimento, mesmo depois de passados quase dois meses, só deixava entrever uns resquícios, que eram ocupados pelo Dr. Klinger, professor de artes de Sybil. As opiniões dela não combinavam com as dele. No painel dos homens aparecia também Stan, com quem Sybil pensara em se casar, mas que, analisando friamente, lhe pareceu um sujeito desajeitado, mesquinho e cacete. Mas foi somente depois de sondar com paciência que a doutora finalmente veio a saber que ele propusera de maneira clara — na verdade pouco clara, através de frases ambíguas — que o que queria era casar-se sem manter relações sexuais. Sybil dissera casamento "platônico".
A doutora pensava consigo mesma: qual a razão de uma mulher inteligente comprometer-se com um homem que, aparentemente, não tem desejos e reações sexuais, que foi abandonado em criança, que nunca soube o que é amor e que jamais poderia oferecer amor? O que poderia explicar uma libido tão marcadamente baixa, capaz de aceitar tal relação?
No dia 13 de dezembro Sybil fez finalmente uma nova observação:
— Estou preocupada com as férias de Natal.
— Por quê?
— Porque as férias me incomodam.
— De que maneira?
— Há sempre tantas coisas para fazer! Não sei o que fazer antes, e no fim acabo não fazendo nada. Fico toda confusa, nem sei como explicar.
— Por que você não vem três vezes por semana, durante as férias? — sugeriu a doutora. — Desta maneira poderemos atacar o assunto mais decididamente e acabar com a tensão nervosa.
Sybil concordou com a sugestão.
Foi a 21 de dezembro de 1954 — justamente quando a análise entrava no terceiro mês — numa consulta que começou na maior calma, com Sybil dizendo: "Quer ver a carta que recebi de Stan hoje de manhã?", que a Dra. Wilbur pôde formar uma idéia melhor de Sybil Isabel Dorsett.
Naquela manhã Sybil parecia calma e falava da carta de Stan no seu modo costumeiro, com certa falta de interesse. Mas, quando abriu a bolsa, ficou repentinamente confusa. Percebeu que lá dentro só havia metade da carta, uma metade com um canto em ziguezague.
Ela não havia rasgado a carta. Quem o teria feito?
Escarafunchou a bolsa à procura da parte que faltava, mas não a encontrou.
Deixou cair no colo as outras duas cartas que havia recebido naquela manhã. Estavam intactas e achavam-se exatamente no lugar onde ela se lembrava de as ter colocado. Mas lembrava-se de que havia colocado, junto delas, também, a carta de Stan, e, naquela ocasião, a carta estava intacta. Agora a parte da carta dele que estava faltando nem sequer se podia achar. Quem teria mexido nela? Quando? Onde estava ela quando isso acontecera? Não se lembrava.
Essa coisa acontecera de novo — essa terrível coisa que acontecia de tempos em tempos. Essa sombra negra que a perseguia por toda parte seguira-lhe os passos até aqui, até ao refúgio do consultório da doutora.
Com muito cuidado, furtivamente, num esforço para não deixar transparecer o que havia acontecido, Sybil enfiou a carta mutilada por detrás das outras duas. Mas a doutora, de propósito, perguntou:
— Você quer que eu leia a carta?
Sybil começou a gaguejar. . . mas o gaguejo acabou em alguma coisa mais.
A professorinha emproada e gentil, com seu rosto desfigurado por medo e ódio, deu um pulo da cadeira e, com um movimento rápido, amarrotou as três cartas que haviam estado em seu regaço, jogando-as na cesta de papéis. Em seguida, de punhos cerrados, pôs-se de pé, no meio da sala, e começou a falar de maneira extravagante, como quem estivesse fazendo uma arenga:
— Os homens são todos iguais. A gente não pode confia neles. De jeito nenhum.
Com movimentos rápidos, ligeira como uma aranha, dirigiu-se para as janelas de vidro. Puxou para o lado as cortinas verdes, cerrou a sua mão esquerda e deu um murro na vidraça.
— Deixe-me sair — gritava —, deixe-me sair. — Era uma súplica angustiante, o grito de quem está apavorado, de uma pessoa que está sendo caçada e cai numa armadilha.
A Dra. Wilbur fez um movimento rápido, mas não o suficiente. Antes que pudesse segurar a sua paciente, dera-se o estalo. A mão cerrada atravessara a vidraça da janela.
— Deixe-me ver a mão — insistiu a doutora, pegando-lhe o pulso. A sua paciente encolheu a mão. — Só quero ver se você se cortou — explicou a doutora gentilmente.
Desta vez a paciente ficou em pé, em silêncio absoluto, fitando com os olhos esbugalhados a Dra. Wilbur pela primeira vez desde que dera o pulo da cadeira. Num tom de queixume, numa vozinha de criança, completamente diferente de como havia sido antes, quando esbravejava contra os homens, a paciente perguntou:
— A senhora não está zangada por causa da janela, não é?
— Claro que não — respondeu a doutora.
— Eu sou mais importante que a janela? — observou Sybil, num tom de curiosa desconfiança.
— Claro que sim — comentou a doutora, para renovar a confiança. — Qualquer pessoa pode consertar uma vidraça. Eu vou mandar consertá-la.
Repentinamente, a paciente pareceu mais sossegada. Não opôs resistência quando a doutora lhe pegou a mão.
— Vamos, sentemo-nos no sofá — sugeriu. — Quero olhar bem para ver se aconteceu alguma coisa à sua mão. Deixe-me ver se está machucada.
Afastaram-se da janela e foram sentar-se no sofá, passando pela bolsa, que havia caído no tapete quando a doente dera um pulo, por papéis espalhados, por lápis de desenho e todas as bugigangas que haviam sido vomitadas pela bolsa, com a fúria. Mas, agora, o medo e a fúria já haviam passado.
Sentando-se à mesa, Sybil sempre conseguira manter uma certa distância da doutora. Desta vez, porém, ela estava sentada bem pertinho dela, e deixou a sua mão ficar na da doutora mesmo depois de esta dizer que não havia nenhum corte nem machucado.
Mais uma vez, porém, registrou-se uma mudança de disposição de espírito.
— Tem sangue — disse a paciente.
— Não estou vendo nenhum sangue — respondeu a doutora. — Você não se cortou.
— Sangue no palheiro — explicou a paciente. — Tommy Ewald foi morto. Eu estava lá.
— Você estava lá? — repetiu a doutora.
— Sim, eu estava, eu estava lá.
— Onde era esse palheiro?
— Em Willow Corners.
— Você morou em Willow Corners?
— Eu moro lá — retificou ela. — Todos sabe que eu moro em Willow Corners.
Todos sabe. Sybil não falava assim. Mas a Sybil que a doutora conhecia não fazia nenhuma das coisas que haviam acontecido desde que a paciente pulara da cadeira. Aos poucos, à medida em que Sybil ia relembrando o que havia acontecido no palheiro, a doutora era invadida por um sentimento misterioso e estranho.
Desde o momento em que a paciente pulara da cadeira, esse sentimento não a largava, estava sempre lá — calado porém insistente, parecido com o barulho da rua que filtrava pela janela quebrada, invadindo o quarto. Quanto mais Sybil falava, mais insistente se tornava o sentimento.
— Minha amiga Rachel e eu estávamos sentadas juntas no palheiro, com algumas outras crianças, quando Tommy saiu-se com esta: "Vamos dar um pulo no celeiro"; e todos nós fomos lá. Um dos garotos bateu na máquina registradora. Havia lá uma arma, que disparou. Eu recuei e Tommy ficou lá caído, morto, com uma bala no coração. As outras crianças trataram de dar o fora correndo. Mas Rachel e eu ficamos lá. Ela procurou o Dr. Quinoness e eu fiquei ao lado de Tommy. O Dr. Quinoness chegou e mandou que fôssemos para casa, mas nós não fomos. Nós o ajudamos a tirar a arma e cobrir Tommy com um lençol. Tommy tinha apenas dez anos de idade.
— Vocês duas foram corajosas — comentou a Dra. Wilbur.
— Eu sei que Tommy está morto — continuou a vozinha de criança. — Eu fiquei lá porque não achei bonito deixar Tommy lá sozinho, morto.
— Diga-me, onde é que você está agora? — perguntou a doutora.
— Tem sangue — foi a resposta. — Estou vendo sangue. Sangue e morte. Eu sei o que é a morte, eu sei...
— Não pense em sangue — disse-lhe a doutora. — Assim você fica triste.
— A senhora se preocupa com o meu estado? — E novamente aquele olhar de curiosa desconfiança.
— Preocupo-me muito — respondeu a doutora.
— A senhora não está querendo me pregar uma peça?
— Por que haveria eu de fazer isto?
— Muita gente faz isto comigo.
O sentimento de estar sendo ludibriada. A raiva. O terror. O sentimento de ser trapaceada. A profunda desconfiança de todo mundo. Aquela convicção de que uma janela, uma coisa qualquer, era mais importante do que ela. Estes sentimentos e atitudes, externados no decorrer daquela hora, eram sintomas de algum distúrbio profundo. E tudo isso emergiu da mente torturada da paciente, como lama de um poço sujo e turvo.
Desde o momento em que a paciente se lançara contra a janela, a doutora se convencera de que o seu comportamento não era característico de Sybil, mas ela agora parecia ainda mais diferente, e causava uma impressão estranha. Parecia menor, mais encolhida. Sybil sempre procurava andar altivamente, porque se considerava pequena e não queria parecer assim. Mas agora parecia ter encolhido na própria pele.
A voz também era completamente diferente, como a de uma criança, não se parecendo em nada com a voz de Sybil. Apesar disso aquela voz de criança emitiu palavras de mulher em seu desabafo contra os homens: "Os homens são todos iguais. A gente não pode confia neles". E a forma confia. Professora exímia, de uma correção gramatical a toda prova, Sybil nunca usaria uma forma deturpada como confia.
A doutora tinha a nítida impressão de que estava lidando com uma pessoa mais jovem que Sybil. Mas, e a acusação lançada contra os homens? Isso a deixava meio em dúvida. Em seguida saiu-lhe instintivamente a pergunta que havia refreado:
— Quem é você?
— A senhora não pode perceber a diferença? — foi a resposta, acompanhada por um meneio de cabeça decidido e independente. — Sou Peggy.
A doutora não respondeu, e Peggy continuou:
— Nós não somos parecidas. Pode-se perceber isto, e muito bem.
Quando a doutora perguntou pelo seu sobrenome, Peggy respondeu animadamente:
— Uso o sobrenome Dorsett, e às vezes Baldwin. Mas na verdade eu sou Peggy Baldwin.
— Diga-me alguma coisa a seu respeito — pediu a doutora.
— Tá bem — concordou Peggy. — A senhora quer saber algo sobre minha pintura? Eu gosto de pintar em preto e branco. Faço desenhos a carvão e a lápis. Não pinto tanto, nem tão bem como Sybil.
A doutora aguardou um momento e depois perguntou:
— E quem é Sybil?
A doutora esperou, e Peggy respondeu:
— Sybil? Por que me pergunta isto? Não sabe que ela é a outra garota?
— Sei disso — respondeu a doutora. — E onde é que você mora?
— Eu moro com Sybil, mas minha casa, conforme já lhe disse, fica em Willow Corners — respondeu Peggy.
— Diga-me uma coisa: Mrs. Dorsett era sua mãe?
— Não, não, pelo amor de Deus! — E Peggy virou as costas, encolhendo-se toda no travesseiro que estava no sofá. — Mrs. Dorsett não é minha mãe!
— Está bem — respondeu a Dra. Wilbur, procurando incutir-lhe confiança. — Eu apenas queria saber e nada mais.
Houve um movimento repentino. Peggy deixara o sofá e estava andando através do quarto, com o mesmo andar rápido, feito aranha, como fizera antes quando se arremessara contra a janela. A doutora seguiu-a. Mas, nesse instante, Peggy desapareceu. Agora, sentada na pequena cadeira de mogno, perto da escrivaninha, estava a professorinha do meio-oeste — Sybil. A doutora notou a diferença.
— O que é que a minha bolsa está fazendo ali no chão? — murmurou Sybil. Abaixou-se e, meio constrangida, foi enfiando nela os objetos espalhados no chão. — Eu fiz isso? — perguntou ela, apontando para a janela.
— Pagarei o prejuízo. Pagarei por ele, não se preocupe.
—Por fim disse, em voz baixa: — E onde estão as minhas cartas?
— Você as rasgou e jogou no cesto de papéis — respondeu a doutora, propositalmente.
— Eu fiz isso? — perguntou Sybil.
— Fez, sim — respondeu a doutora. — Vamos falar do que aconteceu.
— Que foi que houve? — perguntou Sybil. Havia rasgado as cartas e quebrado a janela, mas não sabia quando, como, ou por que motivo. Inclinou-se para o cesto de lixo e procurou salvar o que ainda restava das cartas.
— Você não se lembra mesmo? — perguntou a doutora com voz amável.
Sybil sacudiu a cabeça. Sentia-se envergonhada, apavorada.
Agora a doutora sabia daquela coisa terrível.
— Em outras ocasiões, você já quebrou algum vidro?
— perguntou a Dra. Wilbur, calmamente.
— Sim, já quebrei — respondeu Sybil, baixando a cabeça.
— Então a sensação que você sente não é diferente das outras vezes?
— Não, é quase igual.
— Não fique assustada — tranqüilizou-a a doutora.
— Você simplesmente estava num outro estado de consciência. Você teve o que nós chamamos uma "fuga". Uma fuga consiste num estado de dissociação maior da personalidade, que se caracteriza por amnésia e ausência física do meio ambiente imediato.
— Então, a senhora não me censura, não é? — perguntou Sybil.
— Não, de modo algum. O que tem a ver uma censura com isto? O que precisamos é falar mais a respeito, e vamos fazê-lo na sexta-feira.
A hora terminara. Completamente senhora de si, Sybil se levantou para sair. A doutora acompanhou-a até à porta e disse:
— Não fique preocupada. Tem cura. Sybil saiu.
"Que caso mais estranho!", pensou consigo mesma a doutora, quando se refestelou na cadeira. "Ela parece ser mais do que uma pessoa. Será uma personalidade dupla? Sybil e Peggy, uma totalmente diferente da outra. Tenho que lhe dizer isto na sexta-feira."
A doutora ficou pensando no próximo encontro com Miss Dorsett. Ou será que ela devia dizer Misses Dorsett? Ela(s) estava(m) vindo três vezes por semana, agora, por causa das férias de Natal. Bem, seria melhor continuar naquele ritmo. Esse caso estava ficando mais complicado. Miss Dorsett voltaria na sexta-feira. Mas qual delas viria?
PEGGY LOU BALDWIN
Era Sybil, aquela Sybil calma e serena.
— Peço desculpas por não ter vindo na quarta-feira
— começou ela dizendo naquele 23 de dezembro de 1954.
— Eu...
— Você esteve aqui na quarta-feira — respondeu a Dra. Wilbur, com um tom propositalmente áspero. — Você estava num daqueles estados de fuga e, agora, não se lembra de mais nada.
Usando a expressão "estados de fuga" a doutora queria dizer a Sybil que, enquanto ela se apagava durante aqueles estados, a outra pessoa, de nome Peggy, sempre aparecia. Sybil, porém, desviou o assunto com muito jeito e continuou:
— Sinto-me aliviada porque não desapontei a senhora. E, agora, tenho cá dentro de mim uma coisa que não posso mais segurar, que tenho que desabafar. Posso lhe contar imediatamente?
Acontece que o assunto importante a revelar era somente o seguinte:
— A senhora devia ter ouvido Klinger hoje de manhã. Esse sujeito não tem sensibilidade artística. Quantas vezes já decepcionou aqueles que acreditam na arte!
Sybil procurava de todos os modos sair pela tangente, nas conversas, e quando a hora já tinha passado a doutora nem conseguira ainda falar a respeito de Peggy. Nem sequer na visita seguinte conseguiu falar com Sybil. Quando a doutora foi recebê-la, na hora seguinte, quem estava lá esperando? Era Peggy. A doutora não teve dificuldade em reconhecê-la. Sem chapéu e sem luvas, Peggy estava observando duas ampliações de paisagens marítimas que a Dra. Wilbur tinha fotografado em Porto Rico, e nas Ilhas Virgens, as mesmas que Sybil observou em sua primeira visita.
— Peggy, entre, por favor. — Satisfeita porque a doutora conseguira identificá-la, Peggy entrou com passos rápidos e seguros.
Descansada e com o espírito de quem está disposto a colaborar, Peggy estava mais do que desejosa de falar de sua pessoa.
— No outro dia lhe falei alguma coisa; não disse mais porque estava aborrecida; também, não era para menos. — E o tom de Peggy era confidencial, quando encarou fixamente a doutora e continuou: — Veja só: Stan mandou-nos uma carta de rompimento, mas dizia apenas "Querida Sybil". Imagine o que ele dizia: "Acho que deveríamos acabar com nossa amizade, ao menos por enquanto". Fiquei tão enfurecida que rasguei a carta e joguei-a numa lata de lixo. Só que não foi a carta inteira que joguei fora, mas somente a metade. A outra parte, a senhora viu aqui. Eu me senti ofendida, e não era para menos: quem não ficaria diante duma coisa dessas?
Peggy fez uma pausa, levantou-se do sofá, deu uns passos e, com um olhar diabólico, observou:
— Quer saber quem não se ofenderia com isto? Só mesmo Sybil. Ela não sabe reagir, e parece que tem sangue de barata. Eu é que tenho que reagir em lugar dela. Ela não pode se zangar porque o raio da mãe dela não quer.
Peggy voltou ao sofá e sentou-se perto da doutora, perguntando-lhe:
— Quer saber alguma coisa mais a respeito de Sybil? Ela é medrosa. Está em pânico o tempo todo, e me enche a paciência. Ela quer desistir, mas eu não deixo.
— Peggy — perguntou a doutora —, você e Sybil são iguais?
— Absolutamente — retrucou Peggy indignada, levantando-se rápida e começando a andar de maneira arrogante pela sala. — Nós somos completamente diferentes uma da outra. A senhora pode notar isso pelos cabelos e pelo rosto, que não são parecidos.
A Dra. Wilbur não percebeu a diferença. Embora Peggy parecesse mais jovem, falasse e se comportasse de maneira diferente de Sybil, o cabelo, o rosto e o corpo eram iguais. Peggy estava comandando completamente o corpo, mas pela experiência que tivera na semana anterior, a doutora sabia muito bem que a qualquer momento Peggy poderia transformar-se em Sybil. Contrariamente aos seus temores, Peggy continuou presente durante todo o tempo da consulta.
Visto que a doutora procurava descobrir mais coisas, Peggy fez uma observação com uma ponta de mordacidade:
— Puxa, a senhora está querendo saber muita coisa! — E quando a doutora tentou pegar o fio da meada que ligava Peggy a Sybil, Peggy respondeu baixinho:
— Deixe-me em paz! Há coisas que não lhe posso contar. É como os guardas em volta do palácio: não podem nem sequer dar um sorriso. Estão em serviço. — E, engolindo um sorriso, acrescentou: — Acho que sorririam se a senhora lhes fizesse cócegas com uma pena. Mas eu é que não vou nessa. Quando não quero sorrir ou falar não há Cristo que me demova.
Já era hora de ir embora e, então, Peggy se levantou e disse amavelmente: — A senhora sabe que já nos encontramos antes?
— Foi na semana passada, neste mesmo lugar — respondeu a doutora.
— Não — insistiu Peggy. — Nós estivemos juntas em Omaha, lá na janela, nas mesmas circunstâncias que aqui. Eu lhe falei a respeito da minha personalidade, em Omaha, mas a senhora não me reconheceu. Eu lhe disse que era Peggy, mas a senhora pensou que Peggy era o apelido de Sybil.
Quando Peggy saiu, a doutora continuou pensando nela. Peggy estava chateada porque Stan tinha dado o fora em Sybil. A doutora teria gostado de saber se, embora Sybil nada soubesse de Peggy, as duas estavam tão estreitamente associadas que Peggy carregava o impacto das emoções e das experiências que Sybil tinha vivido.
Peggy havia dito que Sybil não podia zangar-se, mas que ela podia. A violência daquele soco de Peggy, que chegou a quebrar a vidraça da janela, seria então a personificação daquilo que Sybil reprimia em si? A doutora sabia que teria ainda que aprender muita coisa antes de poder confirmar ou não essa suposição. Quem sabe se ela não estaria sendo simplesmente bombardeada por percepções repentinas? Fosse como fosse, o assunto a intrigava constantemente e não a deixava sossegada.
De repente a Dra. Wilbur pensou em Peggy, lá fora, sozinha, andando pelas ruas, e começou a ficar preocupada. Certamente Peggy saberia como se defender, pois tinha uma personalidade positiva. Contudo, quando ela dissera que sua mãe não permitiria que se zangasse — como se a mãe ainda vivesse —, conforme se dera na visita anterior, ela havia mostrado claramente que não distinguia o passado do presente. E ela ainda era jovem. A doutora estava preocupada e se perguntava como é que ela conseguiria enfrentar o tráfego de Nova York. A Dra. Wilbur torcia para que ela chegasse em casa sã e salva.
Quando saiu do consultório da doutora, Peggy Baldwin, às vezes Dorsett, não tinha nenhuma vontade de voltar ao dormitório. — Eu quero ficar zanzando por aí — murmurava a meia voz enquanto transpunha a passos largos a porta da frente do edifício e a Park Avenue.
— Quero fazer aquilo que me dá na telha, e pronto. A grande avenida, suas ilhas centrais enfeitadas com árvores de Natal em que restos de neve ainda cintilavam, as limusines reluzentes e seus choferes engalanados, os botões das fardas brilhando ao sol, tudo aquilo a fascinava. Era tão diferente de Willow Corners! Logo ela se corrigiu: tinha que admitir que morava nessa cidade moderna, maravilhosa, graças a Sybil. Mas sua cidade era Willow Corners.
Como devia ser, pensava Peggy, morar num daqueles edifícios! Ela queria ser alguém, algum dia. Quando isso acontecesse, talvez ela pudesse viver num daqueles edifícios com porteiros de botões brilhantes. Ela queria ser como todas aquelas pessoas importantes, fazer milhares de coisas e ir a milhares de lugares.
Decidiu ficar andando, olhando, vendo, experimentando para respirar um pouco de ar e de vida nova. Havia tantas coisas que ela queria conhecer! Por isso tinha a mania de ficar escutando, de procurar ouvir tudo, com as orelhas em pé, para captar o máximo que pudesse. Muitas vezes ia a lugares diferentes só para ver o que estava se passando nesses lugares.
Atravessou a Madison Avenue e foi observando as lojas. Gostava de coisas bonitas, mas não tinha coragem de fazer compras nesses lugares grã-finos. Limitava-se a olhar as vitrinas.
Também o bar que ela deixou para trás, na 44th Street, era um lugar onde não ousava entrar. Mas não havia mal nenhum em que ela olhasse para toda aquela gente, que estava lá dentro, nesse dia depois de Natal, conforme fazia em Willow Corners.
Dois sujeitos saíram do bar. Um deles passou roçando por ela e perguntou:
— Vamos lá?
Mas lá onde? matutou ela enquanto encarava o sujeito friamente. O indivíduo deu uma risada que lhe meteu medo. Tinha a cisma de que quando alguém ria estava troçando dela. Pôs-se a andar depressa, mas assim mesmo pôde ouvir o comentário do homem que havia esbarrado nela:
— Bastante independente, não é?
Com um jeito bem independente, isto sim, Peggy fervia de raiva enquanto ia andando. Acusada de independente! Não devia nada a ninguém, era dona de seu nariz.
Esqueceu o incidente e continuou andando até que chegou a uma grande loja. Depois viu uma rampa, por onde entrou na estação: Pennsylvania Railroad, dizia a placa. Agora podia ir a algum lugar qualquer. Resolveu tomar um lanche, pois era uma grande comilona.
Depois do lanche, surpreendeu a si mesma numa banca de livros, folheando um conto de médicos. Pessoalmente, não era muito dada a essas histórias, mas Sybil gostava delas.
Sybil. Como podia a linda senhora com o cabelo vermelho tê-la confundido com Sybil? Será que não podia ver que Peggy e Sybil eram diferentes uma da outra? De repente Peggy deu uma gargalhada gostosa, e todo mundo que estava perto se virou para ver o que havia.
Gente. Sentia vontade de gritar e berrar quando pensava em gente. Havia ocasiões em que se sentia perdida e solitária, quando pensava nos outros. Havia muito atropelo de pessoas, e esses atropelos a deixavam tonta e aborrecida. Sabia que não era correto deixar-se aborrecer, mas havia tantas coisas que a amofinavam. Ficava tinindo de raiva.
A rampa que ia subindo era comprida, e dava-lhe a impressão de ser uma criatura pequena. Passou por um torniquete, um corredor e chegou a um lugar onde se vendiam passagens. Meteu a cara na janelinha, de onde uma mulher olhou para ela de atravessado. Peggy não gostou e foi dizendo:
— Não preciso comprar seus bilhetes!
Não estava certo ficar com raiva, mas dessa vez ela não se agüentou. Dirigiu-se a outra janelinha e pediu:
— Bilhete, por favor.
A outra senhora perguntou:
— Para Elizabeth?
Peggy acenou afirmativamente. E por que não? Gente e mais gente estava lá esperando, para que abrissem o sinal. Bem que ela queria ser a primeira da fila, mas por mais que se apressasse só conseguiu entrar em quinto lugar.
A próxima coisa de que se lembrava é que se encontrava num restaurante, perto da estação da estrada de ferro, onde tinha pedido um chocolate quente. Quando ela perguntou ao sinaleiro se estava em Elizabeth, ele olhou esquisito e acabou dizendo:
— Sim, estamos em Elizabeth.
Era engraçado, mas ela não sabia como tinha ido parar lá. Sua última lembrança era de que estava andando na Penn Station. Imaginou que Sybil ou uma daquelas outras pessoas devia ter feito a viagem de trem. Quem afinal se preocupa com que eu tenha comprado o bilhete para Elizabeth e esteja aqui?
Ficou andando apreensiva pela rua em frente ao restaurante. Aquele lugar não era dos mais agradáveis, mas tinha que fazer alguma coisa. Ao redor, tudo desconhecido, lugares não familiares. Atravessou rapidamente um estacionamento. Não tinha andado muito quando sentiu uma alegria repentina ao reconhecer o carro de seu pai.
Sim, era ele! Ela havia encontrado o carro do seu pai, pelo menos alguma coisa de familiar!
Foi em direção ao carro e tentou abrir as portas, mas estavam trancadas. Forçou de novo, mas por mais que fizesse força as portas não queriam abrir-se. Teve a sensação de estar metida numa armadilha, como alguém que é deixado desesperadamente do lado de fora, e não preso dentro. Ela sabia, contudo, que podia ser em ambos os sentidos.
Um ódio de morte invadia todo o seu ser. Suas pulsações rápidas, intensas e pesadas latejavam-lhe por todo o corpo. Quase sem saber o que estava fazendo, pegou a bolsa e bateu com a armação de metal contra uma janela que estava ligeiramente aberta. Depois de dar alguns socos, ouviu o tilintar de vidro quebrado. Ela adorava o som de vidro quebrando.
Virou-se e deu com um homem de terno surrado ao seu lado.
— O que está fazendo? Esqueceu a chave dentro do carro? — perguntou ele.
— É o carro do meu pai — respondeu ela.
Antes que o indivíduo de terno surrado pudesse responder aproximou-se deles um homem de terno cinzento, que começou a rosnar:
— Não senhora! Este carro é meu.
Peggy não foi com a cara do sujeito de terno cinzento e também não gostou de seu tom ao falar-lhe.
— Este carro é do meu pai — insistiu ela —, não importa o que vocês pensem!
— Quem é seu pai, afinal de contas? — perguntou o camarada de terno surrado.
— Willard Dorsett — respondeu ela com altivez.
O homem do terno cinzento enfiou a mão no bolso e pegou a licença do carro.
— Minha queridinha, como pode ver, a licença do carro confere exatamente com a chapa — disse com ar de zombaria.
De cabeça erguida e olhos faiscando, Peggy foi dando o fora para ir contar tudo a seu pai. Ela acabaria achando-o, e tinha certeza de que ele ia dar um jeito naquilo. Mas o homem que se dizia dono do carro começou a gritar e berrar atrás dela, dizendo-lhe que ela não iria absolutamente a parte alguma.
— Ei, você, volte já aqui! Você não vai a parte alguma!
Peggy não estava gostando de estar sozinha com sujeitos daquela espécie. Eram uns tipos medíocres e horríveis, que lhe metiam medo. Temia que a retivessem, caso tentasse dar o fora. Tentou safar-se de qualquer jeito, mas o dono do carro agarrou-a pelo braço.
— Tire essas mãos de cima de mim — avisou ela. Peggy procurou cair fora, mas o sujeito que se dizia dono do carro passou uma mão pelo ombro dela, dizendo-lhe:
— Minha irmã, calma, muita calma! — Sentiu-se como uma desterrada, enleada por gente estranha, de quem só podia esperar desconfiança, repulsa e ofensas.
— Está vendo, irmã? — insistiu o dono do carro — você quebrou a janela. Vai me custar vinte dólares recolocar aquela janela. E você vai pagar o conserto, não vai?
— Por que haveria eu de pagar, se o carro é do meu pai?
— Mas, afinal, quem é você? — perguntou o dono do carro. — Mostre-me seus documentos.
— Nunca! — gritou Peggy. — Nunca! Nem você nem quem quer que seja me obrigará a isso.
Enfurecido com sua recusa, o dono do carro arrancou-lhe a bolsa, ao que ela berrou:
— Devolva-me a bolsa, e já, agora!
Ele retirou uma identidade plastificada e devolveu a bolsa.
— "Sybil Isabel Dorsett" — leu ele em voz alta.
— É este seu nome?
— Não — respondeu Peggy.
— Então, o que está fazendo com esta identidade?
— atalhou ele.
Peggy ficou calada. Certamente ela não ia dizer nada a ele a respeito da outra moça.
— Dê-me os vinte dólares — ordenou ele. — Ora, vamos, dê-me o dinheiro, assine este papel e deixaremos que dê o fora de uma vez.
Peggy estava tinindo de raiva. Quando o dono do carro lhe exigiu mais uma vez os vinte dólares, apontando com o dedo, ela o mordeu solenemente e com força.
— Porra! — saiu-se ele com um palavrão. — Vamos acabar com esta história; dê-me o dinheiro e pode cair fora. Está bem?
— Eu não sou Sybil Dorsett — respondeu Peggy calmamente.
O homem conferiu o retrato na identidade plastificada.
— Mas é você mesma — disse ele convictamente.
— O nome que está na identidade é o seu, você é Sybil Isabel Dorsett.
— Não sou eu! — protestou ela.
— Então, qual é o seu nome?
— Eu me chamo Peggy Lou Baldwin.
— Deve ser o seu nome de guerra — observou o homem de terno surrado.
— Mas ela disse que seu pai se chama Willard Porsett — disse o homem da roupa cinza. — Tem dente de coelho nisto tudo.
— Também acho — respondeu o homem do terno surrado.
Peggy tentou desvencilhar-se, mas não conseguiu se mexer. Ela sentia que estava sendo impedida tanto por aqueles indivíduos como por uma força misteriosa vinda de dentro de seu eu. Na realidade era por causa daquilo que estava agindo no seu íntimo que ela não conseguia se mexer.
Ela pensou no fato de não ter tido domínio sobre si mesma quando estava viajando de trem rumo a essa cidade horrível, e sabia muito bem que agora também não se sentia senhora de si. Estava ciente de que era Sybil quem exercia controle sobre suas faculdades. Quando o dono do carro repetiu que aquele estrago iria lhe custar vinte dólares e que iria chamar a polícia caso não quisesse pagar o conserto, ela pôde sentir perfeitamente a mão de Sybil resvalar na sua bolsa e retirar duas notas de dez dólares e entregá-las àquele homem detestável.
O indivíduo escreveu alguma coisa num livro de anotações com folhas soltas e disse:
— Está bem, agora assine isto aqui.
Peggy pôde ouvir Sybil se negar terminantemente, numa voz firme.
Desta vez Peggy sentiu orgulho de Sybil. Não é do feitio dela tomar nossa defesa, pensou Peggy, mas, desta vez, ela agiu corajosamente.
— Se você não assinar este papel, não a deixaremos ir embora — resmungou o homem.
Peggy percebeu que Sybil estava lendo o papel, mas não conseguiu ver o que estava escrito nele. Pôde ler somente uma frase, que era: "O dono do carro".
O dono do carro? Estas palavras puseram medo em Peggy. Quer dizer que aquele carro não era do seu pai! O quê? O carro não era do seu pai? Peggy pareceu compreender isso pela primeira vez; tentou sair correndo, mas o dono do carro agarrou-a de novo pelo braço, colocou-lhe uma esferográfica na mão e ordenou-lhe que assinasse o papel, levantando-o exatamente à altura do rosto dela e dizendo-lhe:
— Você quebrou a janela do meu carro, e já me pagou por isso. Mas falta me pagar pela maçada de esperar e perder tempo até que a janela fique consertada. Para dizer a verdade, você deveria pagar alguma coisa extra. . .
— Você botou o meu nome naquele papel e disse que eu podia ir embora. Por isso eu vou — afirmou Peggy categoricamente. — Mas não compreendo por que quer que eu assine o meu nome.
— Julguei que você tivesse dito que aquele não era seu nome — respondeu ele. — Deus me livre, você é um verdadeiro abacaxi. Vá embora, e já.
Peggy voltou a pé para a estação de trens. Quando estava voltando para casa, já no trem, ia pensando na besteira daquilo tudo, com aqueles dois sujeitos fazendo tanto barulho por um pedaço de vidro quebrado.
Já estava anoitecendo quando Peggy voltou ao pequeno quarto que dividia com Sybil. Invadido pela penumbra do calor da noite, o quarto era semelhante ao que elas haviam ocupado quando estavam ainda estudando no colégio, para se formarem, com uma tênue luz que se derramava em seu interior vinda do teto, espalhando-se na face superior do guarda-roupa e das cadeiras.
Peggy chutou os sapatos no ar e foi jogar-se na cama. Depois levantou e, movendo-se agilmente, foi até a vitrola portátil. Devia pôr Mockin’bird hill ou Galway bay? Resolvendo-se pelo primeiro, começou a cantar acompanhando a música. ,
Sempre cantando, foi até a janela e olhou para fora. As árvores do pátio do alojamento brilhavam com a neve que recomeçara a cair. Ela parou de cantar. Tinha medo da neve, medo do frio.
De repente se lembrou de que aquela noite estavam comemorando o Natal no salão de festas. Apesar de cansada, devido aos tristes acontecimentos do dia, resolveu juntar-se aos demais naquela reunião e espairecer o espírito para esquecer o que havia acontecido. Iria vestir o conjunto verde-maçã que comprara numa loja chinesa da parte superior da Broadway. Tinha ido lá com a finalidade de comprar apenas uma sombrinha, mas ao ver aquele vestido gostou dele e achou que tinha que comprá-lo.
O disco ainda tocando, Peggy tirou o cabide com o vestido do que ela jocosamente chamava "o nosso armário". Aquele vestido era tão legal, pensou, quanto os que ela havia visto nas vitrinas fantasiosas das lojas da Madison Avenue. E seu vestido, que estava fazendo muito sucesso naquele inverno, só custara doze dólares. Valeria seu preço ainda que tivesse custado trinta, quarenta, cinqüenta, oitenta, duzentos, talvez até trezentos dólares. Mas Sybil tinha que chegar e destruir tudo. Peggy gostava mais de Sybil quando ela não metia o nariz nos seus assuntos.
Quando enfiou graciosamente o corpo no vestido, que na frente era aberto até embaixo, desapareceu aquele sentimento que ela experimentara por Sybil nas primeiras horas do dia. Sybil interpunha-se — pensava — entre ela e os seus desejos, as suas necessidades e a manifestação de sua personalidade. O vestido evocara todas as queixas latentes que tinha contra Sybil, proprietária de seu corpo e chefe de sua família.
Sybil constituía uma necessidade na vida de Peggy, mas, às vezes, se tornava uma pessoa terrivelmente cacete. Quando deu com aquele lindo vestido no quarto, Sybil agiu como se estivesse vendo fantasmas, ou então alguma alma penada. Como é que ele veio parar aqui? O que está fazendo a nota de compra na minha bolsa?
Talvez o que mais a surpreendeu foi o fato de ter encontrado o vestido. Peggy o havia escondido na gaveta de cima do armário embutido, que Sybil usava para guardar tudo quanto era bagulho, menos roupa. Quem podia imaginar que Sybil ia meter o bedelho lá em cima?
Será que Sybil ficou brava por causa do dinheiro? pensou Peggy. Claro, doze dólares não era muito, por aquele vestido. Mas Peggy supunha que Sybil tivesse suas próprias idéias e usasse seu dinheiro com decoração, material para desenho e todos aqueles remédios — tudo o que Sybil chamava necessidades.
— Sybil sempre desarruma as coisas que eu compro — murmurou Peggy, irritada; — o mesmo acontece com meu conjunto azul e os meus sapatos. Um dia fui pegá-los duas vezes para usá-los, mas Sybil sempre os chutava. Realmente, ela pode tornar-se uma verdadeira maçada.
Peggy olhou-se no espelho. O efeito era fantástico, lindo de morrer. Todo mundo ia ficar de água na boca quando visse aquele vestido. É possível que Sybil estivesse de lua virada, não por causa do vestido, e sim por causa de Peggy. Não, bobagem. A verdade nua e crua é que Sybil desconhecia a sua existência — e isto Peggy tinha que encarar friamente. Não era nada lisonjeiro, mas não havia outro jeito.
Enquanto continuava a se mirar no espelho, Peggy achou que uma pequena jóia faria mais efeito. Seria um gozo ela colocar um adereço para aumentar o efeito, mas sabia que não podia usar jóias, porque não era decente, conforme haviam dito na igreja. Não era isso mesmo que lhe haviam dito na igreja, pelo que se lembrava? Mesmo assim, adorava coisas bonitas. Ficou em dúvida. Havia ali uma fileira de pérolas que haviam pertencido à mãe de Sybil, mas ela não iria usá-las porque não topava a mãe de Sybil, o que tornaria duplamente errado lançar mão daquelas jóias.
Peggy não podia, por si só, desgrudar do espelho. Seu corpo quadradão lhe dava uma aparência atarracada, em que não estava muito interessada, mas gostava do seu corte de cabelo à moda holandesa, moreno e liso, de suas feições, do rosto redondo, do nariz arrebitado, dos olhos azuis brilhantes e — quisesse ou não, tinha que admiti-lo — daquele seu sorriso malicioso. Pelo amor de Deus! não tinha pensado nisto antes, mas parecia-se com um duende. Com o corpo franzino e magro, o cabelo castanho-claro e solto, o rosto em forma de coração, os olhos cinzentos, e com aquela sua expressão séria, Sybil era completamente diferente. Será que aquela doutora simpática não conseguia ver isso? Então os que olhassem para uma foto de Sybil e para Peggy não poderiam distinguir a diferença? Por que sempre a confundiam com Sybil?
De repente Peggy saiu da frente do espelho. Ao ver seus lábios, virou-se. Estavam cheios e grossos, como aqueles que os negros têm. Começou a pensar que ela mesma era negra. Peggy receava os negros e tinha medo da maneira como eram tratados. Apanhou então a bolsa e saiu do quarto.
No pátio do alojamento, com a neve caindo em sua cabeça descoberta e escorrendo por seu nariz, Peggy corria de seu medo. E, como para afastá-lo, começou a cantarolar novamente Mockin’bird hill.
Quando chegou, o salão de festas já estava cheio de gente. Os estudantes faziam grupinhos e falavam de tudo e de todos. Havia mesas para jogar baralho e mesas de pingue-pongue. Sybil não jogava nem baralho nem pingue-pongue, mas Peggy sim! Peggy tinha presença de espírito no jogo e era rápida.
Peggy olhou para os rapazes, todos estudantes. Entre eles não havia um só que fosse mais agradável do que Stan, pensou. Mas será que Sybil estava interessada neles? Quanto a ela, não lhe despertavam nenhum interesse. Stan não tinha acabado com as esperanças de Sybil; ela só fingia não querer mais nada com ninguém. Peggy também não estava desiludida. Bem que ela gostaria que Sybil encontrasse alguém de quem pudessem gostar.
A mesa de lanche comprida, coberta com uma linda toalha branca, toda rendilhada, com dois grandes samovares de cobre, um para o café e outro para o chá, lembrou a Peggy que não havia comido nada desde aquele lanche que comera na estação. Sua religião lhe proibia tomar café ou chá, mas os pequenos sanduíches e os deliciosos biscoitos apeteciam-lhe tremendamente. Estava justamente começando a mordiscar um sanduíche quando uma voz com sotaque do meio-oeste lhe perguntou:
— Está boa, Sybil?
— Ótima! — respondeu Peggy, assim que se virou e viu que era Teddy Eleanor Reeves, uma moça de boa aparência, embora não ligasse para se vestir bem, não usasse pintura e tivesse um corpo do feitio de um diamante. Teddy morava no quarto ao lado do seu, e sempre a chamava por "Sybil". Há muito tempo Peggy tinha concordado em responder ao nome de Sybil, quando fosse necessário. Com aquelas pessoas sinistras, na estação de Elizabeth, não havia sido necessário, mas, com Teddy, que se tornara uma boa amiga de Sybil, a coisa era diferente.
— Onde é que você andou o dia inteiro? Eu estava preocupada com você — continuou Teddy. Com seu metro e setenta de altura, ombros largos, quadris amplos e seios pequenos, Teddy era sempre uma figura dominante, com seu eterno jeito de mãe de todos. Peggy não conseguia imaginar como é que Sybil podia aturar uma criatura dessas. Peggy percebeu que Teddy estava ansiosa por obter uma descrição detalhada das andanças de Sybil durante o dia. Pois bem, não tinha sido um dia vivido por Sybil, e Peggy não tinha nenhuma vontade de falar-lhe a respeito. Juntando-se às duas, Laura Hotchkins disse:
— Muito prazer em vê-la, Dorsett. Você me disse que talvez não viesse, mas estou contente por ver que conseguiu dar um jeito de aparecer. — Laura era outra amiga de Sybil. Mais uma vez, Peggy ficou na sua e calou-se.
Teddy, Laura e várias outras garotas tinham feito roda em torno de Dorsett, todas elas comentando o Prof. Klinger. De repente Dorsett apanhou um lápis de cor, que estava em sua bolsa, apontou-o de encontro à parede e começou a falar, arremedando a voz:
— Agora, senhoras e senhores, devem prestar muita atenção, se quiserem ouvir. A arte é uma grande tradição da experiência humana e, se não lhe derem a atenção incondicional que merece, estarão ofendendo a musa. — As colegas começaram a dar risadinhas. Fazendo dois buracos grandes num guardanapo de papel, Peggy improvisou com ele um par de óculos, que colocou bem caídos na ponta do nariz. — A escultura — continuou ela —, acredito que seja a mais antiga das artes. Conforme vocês devem estar lembrados, das aulas anteriores, seus primórdios técnicos remontam ao primeiro homem pré-histórico, que cortou e fabricou uma ponta de flecha ou esculpiu uma clava ou lança.
"Contudo, com o decorrer do tempo surgiu a pintura, que acabou enfraquecendo a supremacia da escultura, pelo menos no Ocidente, despertando um interesse mais amplo que se possa supor entre o povo. É por isso que eu gostaria que vocês concentrassem todas as suas atenções na pintura, como se fosse a coisa mais importante deste mundo. Mas aqui eu me refiro aos quadros de Rubens, de Rembrandt e de outros tantos mestres, e não às estúpidas criações de Picasso e de outros contemporâneos. Eles podem ser considerados crianças, ainda engatinhando e balbuciando. O que eles chamam de tentativa não passa de simples vazio.
"Bem, Miss Dorsett, sendo assim talentosa, por que continua pintando todas essas baboseiras?"
Laura Hotchkins não se agüentou e explodiu numa gargalhada incontida. Teddy também teve um acesso violento de riso.
Peggy continuou, dando o melhor de si, pois aquilo que havia começado como uma apresentação para alguns acabou se transformando numa algazarra dos infernos para todos. Seu arremedo do Prof. Klinger tornou-se o ponto alto da tarde. Entre aplausos, Peggy retirou os óculos de papel, com grande solenidade, colocou o seu lápis de cor na bolsa, desmanchou-se em várias mesuras e reverências e retirou-se solenemente da sala. Realmente, Peggy tinha acontecido nesta reunião.
Era uma Peggy diferente, a que a Dra. Wilbur viu dois dias depois, no Natal — uma Peggy que nada disse a respeito da viagem até Elizabeth e do sucesso conseguido na reunião social do colégio; era uma Peggy que dizia e repetia baixinho:
— Pessoas, pessoas, pessoas.
— Que pessoas? — perguntou a Dra. Wilbur, que estava sentada ao lado de Peggy, no sofá.
— Pessoas? Sim, tem muita gente — respondeu Peggy em tom agourento. — Há muita gente esperando por mim.
— Como é que eles se chamam?
— O vidro — disse Peggy, não ligando para a pergunta da doutora. — Olhe o vidro. Vou quebrar o vidro — e vou embora. Vou dar o fora dele! Não quero ficar! Não vou ficar, não, não!
— Mas, sair do quê? — perguntou a Dra. Wilbur.
— O machucado. Está me doendo — murmurou Peggy> começando a soluçar.
— O que está doendo?
— Está doendo. Está doendo. Minha cabeça dói. Minha garganta dói.
"Dói. Dói. Minha cabeça está doendo. Minha garganta dói."
Ela falava muito angustiadamente, e logo surgiu a furiosa acusação:
— A senhora não quer que eu vá embora! — E, com atitude ameaçadora, avisou: — Vou quebrar o vidro e dar o fora, mesmo que a senhora não queira.
— Por que você não sai pela porta? Vamos, é só abri-la!
— Eu não posso — berrou Peggy. Deu um pulo do sofá e começou a andar como se fosse um animal preso numa armadilha.
— Mas, você pode — insistiu a doutora. — A porta está ali, é só ir lá e abri-la.
— Quero sair! Quero sair! — continuou Peggy a gritar, aterrorizada.
— Está bem. Então vire a maçaneta e abra a porta!
— Não. Vou ficar aqui mesmo, perto da casa branca com venezianas escuras e portas com degraus, e a garagem. — Acalmando-se de repente, Peggy disse: — O carro de papai está na garagem.
— Onde é que você está? Em Willow Corners? — perguntou a doutora.
— Não vou dizer! Não vou dizer — começou Peggy a cantarolar.
— Você pode dizer à Dra. Wilbur?
— Sim!
— Então, vamos, conte à Dra. Wilbur.
— A Dra. Wilbur foi embora — respondeu Peggy, triste e melancólica.
— Mas a Dra. Wilbur está aqui!
— Não, ela foi embora e nos deixou em Omaha — insistiu Peggy. — A senhora não é a Dra. Wilbur. Então a senhora não está vendo que não é ela? Eu tive que procurá-la. — E a calma de Peggy desapareceu, para dar lugar de novo à histeria. Peggy continuou a suplicar: — Deixe-me sair!
O apelo parecia não se referir àquela sala especificamente ou àquele momento em especial. Era um apelo que surgia do passado, que para ela tinha valor de presente, um passado que emergia em direção a ela, que a envolvia e a mantinha presa.
— Abra a porta — ordenou a doutora com firmeza.
— Não posso sair pela porta. Nunca sairei pela porta. Nunca.
— Por acaso a porta está fechada a chave?
— Não posso sair por ela — dizia Peggy, num lamento de criança ferida e perdida. — Mas eu tenho que sair daqui.
— Sair de onde, Peggy?
— Sair de qualquer lugar onde eu esteja. Não gosto de gente, de lugares, nem de qualquer coisa que seja. O que eu quero é sair!
— Mas, de que gente não gosta, de que lugares?
— A gente e a música. — Peggy já não tinha fôlego. — A gente e a música. A música toca, toca, toca. Dá para ver todo mundo. Não gosto de gente, dos lugares, de nada. Quero sair. Por favor, deixe-me sair. Por favor! Por favor!
— Gire a maçaneta e abra a porta!
— Não! Não posso! — E, dizendo isso, Peggy se dirigiu furiosamente para a doutora: — Por que a senhora não quer compreender?
— Por que você não tenta? Você nem chegou a tentar. Por que não gira a maçaneta e abre a porta? — insistiu a doutora.
— Está enguiçada e não gira. A senhora não está vendo?
— Tente! — ordenou-lhe a doutora.
— Não vale a pena tentar.
Houve um momento de relaxamento, mas era um relaxamento de resignação, de quem aceita a situação como um condenado. — Não me deixam fazer nada. Acham que não sou boa, que sou engraçada e que minhas mãos são engraçadas. Ninguém gosta de mim.
— Eu gosto de você, Peggy.
— Oh! Eles não me deixam fazer nada. Dói. Dói horrivelmente — suspirou Peggy. — As pessoas não se importam.
— Mas a Dra. Wilbur se importa com isso. Ela quer saber o que é que lhe perturba a cabeça.
— Ninguém se preocupa — respondeu Peggy em tom de desafio. — As mãos machucam.
— Que mãos? As suas?
— Não. As dos outros. As que se dirigem para mim. Mãos que machucam!
— Mas, mãos de quem?
— Não vou dizer. — E novamente voltou a cantarolar feito uma criança. — Não tenho obrigação de dizer, se não quero.
— O que mais a incomoda?
— A música. — Peggy voltou a falar num sussurro, baixinho e quase sem respiração. — As pessoas e a música.
— Mas, que música? E por quê?
— Eu não quero dizer.
A Dra. Wilbur colocou suavemente o braço em volta de Peggy e ajudou-a a voltar ao sofá.
Então, Peggy confidenciou brandamente:
— Veja só, ninguém se preocupa. E a gente não pode falar com ninguém. E a gente vive no mundo da lua. — Houve uma pausa tranqüila, e Peggy continuou: — Estou vendo as árvores, a casa, a escola. Vejo a garagem. Quero entrar na garagem porque então tudo daria certo, porque não doeria tanto e não seria preciso sofrer muito.
— Mas por quê?
— Dói porque a gente não é bastante boa.
— Por que a gente não é bastante boa? Diga alguma coisa mais à Dra. Wilbur, como é que dói? O que está havendo?
— Ninguém me ama e eu bem que quisera ter alguém que se incomodasse um pouco comigo. E a gente não pode amar alguém quando as pessoas não se preocupam conosco.
— Vamos, continue, conte à Dra. Wilbur o que é que a perturba.
— Quero alguém a quem eu possa amar e que me ame. E não se encontra uma alma viva que queira fazer isso. E é por isso que dói no coração da gente. Veja que há uma grande diferença: quando alguém se preocupa com a gente, fica-se como doido, a gente quer dizer mil e uma coisas, rasgar tudo, arrebentar com tudo, sair pelo vidro.
De repente Peggy ficou em silêncio. Daí a pouco, não estava mais lá. E, sentada onde Peggy estivera, estava Sybil.
— Tive outra daquelas fugas? — perguntou Sybil, afastando-se rapidamente da doutora. Estava assustada, ansiosa.
A doutora fez um sinal afirmativo.
— Mas não foi tão ruim como da última vez — tranqüilizou-se Sybil, quando olhou em redor pela sala e não viu nada fora do lugar, nem coisa alguma quebrada.
— Sybil, uma vez você falou em música — disse a doutora, num esforço para descobrir o que Sybil sabia a respeito do que Peggy havia dito. — Por que você não me conta alguma coisa mais a respeito disso?
— Pois bem — respondeu Sybil calmamente —, eu tomava aulas de piano e Mrs. Moore, minha professora, costumava dizer que eu tinha queda natural para piano, bom ouvido e mãos ágeis. Dizia que eu tinha um bom movimento dos dedos, mas que eu tinha que fazer mais exercício. "O que você faz", dizia ela, "somente uma pessoa treinada faria com facilidade. Imagine só do que você não seria capaz, se praticasse!" Mas eu não fazia exercícios. E não lhe disse que não tinha feito exercícios porque mamãe era hipercrítica. Era só eu errar quando estava fazendo exercícios, para que mamãe berrasse: "Não está certo! Não está certo!" Eu não agüentava aquilo, e por isso não fazia exercícios quando mamãe estava por perto. Mas era só mamãe botar o pé na rua para que eu largasse tudo o que estava fazendo e me lançasse ao piano. Sempre que podia descarregava a tensão no piano. Se não tivesse tido o piano, a tensão teria acabado comigo muito antes. Quando comecei a ensinar, a primeira coisa que comprei foi um piano.
— Hum — replicou a doutora Wilbur. — Diga-me: você tem algum sentimento especial com relação ao cristal?
— Cristal — fez eco Sybil, pensativa. — Minha mãe tinha algumas peças de cristal encantadoras. Minha avó também. De fato, ambas as avós: a avó Dorsett e a avó Anderson. Oh, recordo-me de algo. Quando tinha uns seis anos, visitamos os Anderson em Elderville, Illinois. Passávamos lá três semanas no verão, até que a avó Anderson morreu. Bem, naquela ocasião minha prima Lulu e eu estávamos secando os pratos. Ela atirou uma maravilhosa bandejinha de cristal para petiscos pela janela. Era muito travessa. E então disse à minha avó, à minha mãe e a todos os outros que fora eu quem fizera aquilo, que eu quebrara a bandeja de cristal. Não gostei. Mas não protestei, calei-me. Minha mãe me deu uma surra e tanto.
— Compreendo — comentou a doutora Wilbur. — Agora, diga-me se suas mãos a incomodam.
— As mãos? Bem, não em especial. Minhas mãos são pequenas e delgadas. Minha mãe não achava que fossem muito atraentes. Dizia-me isso freqüentemente.
— Alguma vez houve mãos se aproximando de você? As mãos de alguém?
— Mãos aproximando-se? Não sei do que está falando.
Ficou evidente que a inquietação de Sybil aumentava bastante e repentinamente.
— Compreendo — disse a doutora. — Outra pergunta: incomoda-a ver sangue?
— Bem, sim. Mas não incomoda a todo mundo? A avó Dorsett tinha câncer na nuca e sangrava. Eu vi. E quando comecei a menstruar, perguntei a mim mesma o que seria aquele sangue, como a maior parte das garotas. Não há nada de especial nisso.
— Mas, diga-me, você viu sangue alguma outra vez, em menina? Talvez o sangue de um amiguinho.
Sybil encostou-se na cadeira e pensou.
— Bem, vejamos. Tommy Ewald. O pai dele tinha um sítio e criava cavalos. Tommy era o menino mimado de sua mãe. Morreu no paiol. Estávamos brincando. Foi um acidente. Alguém disparou uma arma. É o único que lembro. Talvez tenha havido sangue naquele paiol. Não pensava em Tommy fazia muitos anos.
Em fevereiro de 1955 a doutora estava pronta a falar com Sybil a respeito de Peggy, que se lembrava daquilo que Sybil tinha esquecido. Não havia razão para protelar ainda mais. Mas, enquanto a Dra. Wilbur ia falando, a fisionomia de Sybil ia se tornando branca, as pupilas dilatavam-se e ela perguntou, numa voz arrastada e pouco natural:
— Como é que a senhora sabe destas coisas? — A doutora queria falar-lhe a respeito da outra personalidade, mas percebeu que ela se havia transformado naquela outra personalidade.
— Oi — disse Peggy.
— Oi, querida — disse a doutora.
— Eu vou sair agora — disse Peggy à doutora — diretamente pela porta. Há muito tempo atrás a Dra. Wilbur disse que eu podia.
E Peggy atravessou a porta que até então havia sido intransponível, o símbolo palpável de seu cativeiro.
Percebendo que a diagnose de duas personalidades havia sido confirmada sem mais sombra de dúvida, a Dra. Wilbur não conseguia afastar o pensamento daquele caso tão incomum. Embora existindo no mesmo corpo, Peggy e Sybil tinham memórias diferentes, sensações diferentes, atitudes diferentes e experiências também diferentes. As experiências que viviam em comum eram percebidas de maneira diferente. A voz, o vocabulário e a pronúncia eram diferentes. Apresentavam-se de maneiras diferentes. E até mesmo em idade eram diferentes. Sybil tinha trinta e um anos, mas Peggy. . . a doutora não conseguia decidir se Peggy era uma criança precoce ou um adulto retardado. Peggy não tinha consciência da própria personalidade, como uma criança, e não se embaraçava facilmente. Ao invés disto, ela ficava furiosa. Em vez de comportar-se como Sybil, cheia de rodeios e subterfúgios, dava vazão a um terror indisfarçado. E não podia haver engano: Peggy carregava algum terrível fardo que Sybil se recusava a encarar.
As especulações formigavam na cabeça da Dra. Wilbur, insistentes e ao mesmo tempo inconcludentes. Ela nunca tratara de um caso de dupla personalidade. Teria que tratar do distúrbio, conforme teria feito com qualquer outro caso. Primeiro deve-se ir à raiz do distúrbio, para depois atacar, partindo daquele ponto.
O problema imediato era falar com Sybil a respeito da diagnose, tarefa mais difícil do que a doutora inicialmente imaginara. Sempre que se apresentava uma situação que Sybil não era capaz de enfrentar, quem a resolvia era Peggy. Falar a Sybil a respeito de Peggy seria provocar uma dissociação que traria Peggy de volta. As fugas eram tão patentes, e fora de qualquer dúvida, que o problema permaneceu sem solução até março de 1955. Nessa época
houve um acontecimento que, mudando o diagnóstico, deixou a Dra. Wilbur contente por não ter ainda contado o assunto a Sybil.
VICTORIA ANTOINETTE SCHARLEAU
Dezesseis de março de 1955. A Dra. Wilbur roubou uns instantes do tempo disponível entre as consultas para trocar os ramos de salgueiro pelas novas flores primaveris, anêmonas e junquilhos, que tinha acabado de comprar. Em seguida, perguntando-se quem viria hoje, se Sybil ou Peggy, abriu a porta que dava para a sala de espera.
Sentada, quietinha, lá estava a paciente, absorta na leitura do New Yorker. Quando viu a doutora, levantou-se imediatamente, sorriu e, caminhando em sua direção, disse-lhe animadamente:
— Bom dia, Dra. Wilbur.
Não é Peggy, pensou a doutora, pois quando está sentada Peggy fica indócil, não lê e a sua voz não tem aquele tom educado. Só podia ser Sybil. Mas Sybil nunca me havia dirigido a palavra antes que eu tomasse a iniciativa. Nunca tinha sorrido dessa maneira espontânea.
— Como está passando hoje? — perguntou a doutora.
— Vou indo muito bem — respondeu a interlocutora. — Quem não está boa é Sybil. Ela estava tão doente que não pôde vir. Assim, vim em lugar dela.
Por um instante a doutora ficou atordoada, mas foi só um instante. A estranha justaposição de "ela" e "eu" só veio confirmar as suspeitas que já nutria. Estou surpresa, refletia, mas não deveria estar. Já se constataram casos de mais de duas personalidades, como Christine Beauchamp, que foi tratada pelo Dr. Morton Prince e sobre a qual ele escrevera. Ele também, na ocasião, ficara surpreso. Haja vista que ficou pasmado quando se viu frente a um caso
de mais de uma personalidade. Acho que isto deve surpreender qualquer médico, refletiu a Dra. Wilbur.
Tudo isto ocorria em grande.velocidade na mente da Dra. Wilbur enquanto aquele novo "eu" dizia:
— Peço desculpas por Sybil. Bem que ela queria vir, mas não conseguia vestir-se, por mais que tentasse. A noite passada fiquei observando-a quando tirava do armário a blusa azul-marinho e o suéter azul com que pretendia vir aqui hoje de manhã. Na ocasião ela estava mesmo resolvida a vir, mas hoje de manhã tudo mudou. Às vezes ela sofre de ausência completa de percepção e de uma inabilidade total para fazer o que quer que seja. Creio que esta manhã se deu um desses casos. Mas que falta de educação a minha, começar uma conversa sem antes me apresentar. Sou Vicky.
— Não quer entrar, Vicky? — perguntou a doutora.
Vicky não se limitou a, simplesmente, entrar no consultório, mas fez uma entrada toda elegante e diplomática. Enquanto os movimentos de Sybil eram sempre constrangidos, ela se mostrava desembaraçada e graciosa.
Vestia uma roupa muito colorida: rosa, violeta e verde-pálido. Tinha uma saia ligeiramente apertada, que lhe descia até logo abaixo dos joelhos. Calçava sapatos verdes, que realçavam o efeito.
— Esta sala é encantadora — observou ela casualmente. — É um ambiente verde; deve ser repousante, para os seus pacientes.
Em seguida dirigiu-se para o sofá, onde se acomodou numa posição confortável. A doutora fechou a porta, seguindo-a, acendeu um cigarro e disse:
— Diga-me, Vicky, como é que você está aqui?
— Muito simples — respondeu Vicky. — Sybil estava doente. Vesti as roupas dela — não aquela indumentária azul de que lhe falei antes. Não seria apropriado, porque tenho um encontro para almoçar. Como estava lhe dizendo, vesti sua roupa, peguei um ônibus e vim para cá.
— Mas como é que você sabia aonde tinha que ir?
— Eu sei tudo — explicou Vicky.
— Tudo? — repetiu a doutora.
— Sei tudo o que eles fazem.
Seguiu-se uma pausa. A doutora apagou o cigarro na beira do cinzeiro.
— A senhora pode pensar que é presunção minha — continuou Vicky. — Devo admitir que pode mesmo parecer tal, mas se a senhora conhecer as circunstâncias verá que não é isso.
As circunstâncias? Talvez isso quisesse dizer que Vicky constituía uma pista para se chegar ao conhecimento de toda a situação do caso. Mas Vicky disse somente: — Certamente não me arrogo o dom da onisciência. O que eu faço é observar tudo o que todos os outros fazem. E é isto o que eu quero dizer quando afirmo que sei de tudo. Neste sentido especial sou onisciente.
A doutora pôs-se a pensar: será que isto quer dizer que ela pode dizer tudo o que sabe a respeito de Sybil, de Peggy e de si mesma? Até aqui tinha revelado muito pouco.
— Vicky — disse a doutora —, gostaria de saber mais a respeito de você.
— Sou uma criatura feliz — retrucou Vicky —, e as criaturas felizes não têm lá muito a contar, na vida. Mas me sentirei muito satisfeita em poder contar-lhe tudo o que quiser saber.
— O que eu gostaria mesmo de saber — respondeu a doutora — é de que maneira você existe.
Vicky piscou os olhos e disse:
— Oh, isto já é uma questão filosófica. Poder-se-ia escrever um livro inteiro a esse respeito. — Ato contínuo, assumiu uma fisionomia mais séria e encarou a doutora diretamente: — Mas, se a senhora quiser saber de onde venho, me sentirei feliz em dizer-lhe. Eu venho do exterior. Pertenço a uma família muito vasta. Meus pais, irmãos e irmãs — e quantos não existem! — vivem todos em Paris. Mon Dieu, há quantos anos não os vejo! Meu nome completo é Victoria Antoinette Scharleau. Vicky, abreviado. A gente acaba se americanizando. Não se pode andar por aí com um nome como Victoria Antoinette Scharleau. Vicky fica mais fácil.
Depois de uma pausa, durante a qual a Dra. Wilbur afastou a desconfiança que havia em si, perguntou:
— Seus pais não ficam aborrecidos por você não estar com eles?
— De modo algum, doutora — respondeu Vicky com segurança. — Eles sabem que eu estou aqui para ajudar. Em breve eles virão me procurar, e então eu voltarei com eles, e estaremos todos juntos. Eles não são como outros pais. O que eles dizem que fazem, fazem mesmo; não voltam atrás.
— Você tem muita sorte — observou a doutora.
— Oh, se tenho! — afirmou Vicky. — Seria a coisa mais horrível não ter pais à altura. Seria simplesmente terrível.
— Compreendo — disse a doutora.
— A senhora vai conhecê-los, um dia — disse Vicky.
— Ah, claro — respondeu a Dra. Wilbur.
Vicky aproximou-se mais da Dra. Wilbur e falou confidencialmente, com precaução:
— Mas, doutora, vim para falar, na verdade, a respeito de Sybil. É simplesmente assustadora a maneira como ela se aflige o tempo todo. Não come direito, não se distrai o suficiente e, em geral, leva a vida a sério demais. Um pouco menos de autonegação e um pouco mais de prazer pela vida serviriam muito para neutralizar a doença de Sybil. — Depois de uma pausa Vicky acrescentou pensativamente: — Existe alguma coisa mais, doutora. Algo muito profundo em Sybil.
— Vicky, o que você acha que seja?
— Na verdade não posso dizer, pois começou antes que eu chegasse.
— Quando é que você chegou?
— Na ocasião Sybil não passava de uma criancinha.
— Ah, agora entendo. — A doutora esperou um momento e depois perguntou: — Conheceu Mrs. Dorsett?
Vicky ficou imediatamente aérea, cautelosa.
— Ela era a mãe de Sybil — explicou. — Vivi com a família Dorsett durante muitos anos. Sim, eu conheci Mrs. Dorsett.
— Conhece Peggy? — indagou a doutora.
— Claro que a conheço — respondeu Vicky.
— Então, fale-me a respeito dela.
— A senhora quer que lhe fale de Peggy? — perguntou Vicky. — Acho que a senhora quer dizer Peggy
Lou, não é? Ou quer, por acaso, ouvir também a respeito de Peggy Ann?
— Peggy o quê? — perguntou a doutora.
— Que estupidez a minha —- desculpou-se Vicky.
— Tinha esquecido completamente que Peggy Lou foi a única que a senhora conheceu; mas existem duas Peggys.
— Duas Peggys? — Novamente a doutora estava tomada de espanto. Mas por que deveria uma quarta personalidade surpreendê-la? Uma vez que aceitara a priori a existência de múltiplas personalidades, é porque se convencera de que não havia mais razão de admirar-se.
— Peggy Ann vai vir num dos próximos dias — avisou Vicky. — A senhora vai estar com ela, e tenho certeza de que vai gostar dela.
— Não tenho dúvidas a respeito.
— Peggy Lou e Peggy Ann agem em conjunto.
— E o que as torna diferentes?
— Parece-me que aquilo que enfurece Peggy Lou torna Peggy Ann receosa. Mas as duas são combativas. Quando Peggy Lou resolve fazer alguma coisa, vai até o fim/ Não quero dizer que Peggy Ann não seja decidida, mas é mais cautelosa no agir.
— Agora estou percebendo.
— Ambas querem mudar as coisas, mas o que mais querem mudar é a própria Sybil — concluiu Vicky.
— Realmente interessante — observou a doutora.
— E agora, Vicky, gostaria que me dissesse se Mrs. Dorsett era mãe de Peggy Lou.
— Ora, certamente — respondeu Vicky.
— Mas, então, como é que Peggy Lou faz questão de frisar que a mãe de Sybil não é sua mãe?
— Ah, sim — respondeu Vicky animadamente. — A senhora sabe como é Peggy Lou. — E, dando um sorriso divertido, acrescentou: — Mrs. Dorsett era a mãe de Peggy Lou, mas Peggy Lou não sabe disso.
— E o que me diz de Peggy Ann? — perguntou a doutora.
— Mrs. Dorsett era mãe de Peggy Ann. Mas nem. Peggy Ann sabe disso.
— Realmente, tudo isso é muito curioso — observou a doutora.
— Se é — disse Vicky, concordando. — Mas trata-se de um estado de espírito. Talvez a senhora as possa ajudar.
Fez-se em seguida um silêncio, que a doutora quebrou com a pergunta:
— Vicky, você e Peggy Lou são iguais?
A fisionomia de Vicky se obscureceu de decepção. Depois, ela perguntou:
— Não dá para perceber?
— Não, não dá, porque nunca vi vocês duas juntas — disse a doutora, para ganhar tempo.
Vicky ergueu-se do sofá e caminhou em direção à cadeira com movimentos rápidos e ágeis.
— Não se importa se uso isto aqui? — perguntou, ao voltar com o bloco de receitas na mão.
— Vá em frente!
A doutora ficou olhando Vicky sentar no sofá, retirar um lápis da bolsa e começar a rabiscar esboços no bloco de receitas.
— Aqui a senhora tem duas cabeças — disse Vicky depois de uns instantes. — Esta sou eu, com minhas madeixas louras. Gostaria de ter um lápis de cor para desenhar a cor do cabelo. E aqui está Peggy Lou. Os cabelos dela são pretos. Até que o lápis de cor não faz falta. . . Peggy Lou não gosta de estardalhaço e chateação. O cabelo dela é bem liso, como está vendo. — Em seguida Vicky apontou para o bloco de receitas, onde havia desenhado o corte holandês do cabelo de Peggy Lou. — Conforme a senhora pode ver, somos bem diferentes uma da outra — observou Vicky, com ar de triunfo.
A doutora concordou, e depois perguntou:
— E o que me diz de Peggy Ann?
— Não vou perder meu tempo desenhando-a — respondeu Vicky. — O esboço de Peggy Lou poderia servir também para Peggy Ann — pois as duas são muito parecidas. Quer ver?
— Você desenha muito bem — comentou a doutora. Você pinta também?
— Claro que sim — respondeu Vicky. — Mas Sybil pinta melhor do que eu. Meu forte são os retratos. Gosto das pessoas e sei como me entender com elas. Não tenho receio delas, porque meu pai e minha mãe sempre foram criaturas muito boas comigo. Gosto de falar com as pessoas e de ouvir o que elas dizem. Sinto um prazer especial em conversar com pessoas que entendem de música, de arte e de literatura. Quero que a maioria das minhas amizades seja o resultado deste intercâmbio de interesses. Tenho um fraco pela leitura de novelas. A propósito, a senhora já leu The tortoise and the hare1?
1 A tartaruga e a lebre. (N. do E.)
— Não, ainda não.
— Oh, que pena! Não deixe de lê-la — respondeu Vicky, assumindo um tom de conversa amigável. — Acabei de lê-la a noite passada. Foi escrita por Elizabeth Jenkins, e é lançamento novo. Pode-se dizer que é uma novela que insinua um triângulo obtuso, curiosamente engendrado. A femme fatale é representada por uma solteirona que se veste com trajes de lã grossos. Ela atravessa calmamente toda a história num Rolls-Royce.
— Está bem, irei comprá-la — disse a Dra. Wilbur.
— Estou certa de que a senhora vai gostar, tanto quanto eu. Acho que me sinto à vontade com gente da sociedade. Gosto deles ao vivo e também nos livros. Acho que é a minha origem se manifestando. Mas creio que não estou esnobando. É porque tenho gostos apurados, que são oriundos de família da sociedade. E por que não devemos gozar das melhores coisas que a vida nos oferece?
Vicky se tornou mais séria e mais pensativa, quando fez a seguinte observação:
— A vida tem tanta dor que a gente precisa fazer uma catarse. Não quero, com isto, dizer que seja uma fuga. A gente não consegue fugir da realidade por meio dos livros. Pelo contrário, eles ajudam a perceber com mais amplitude o que a gente realmente é. Mon Dieu, graças a Deus que os tenho. Quando me acho numa situação em que não gostaria de estar — devido às circunstâncias peculiares da minha vida —, então tenho esta saída. A senhora pode me julgar très supérieure, mas, na realidade, eu não sou; sou exatamente aquilo que sou, e vivo a vida da maneira como quero.
Vicky suspirou, e observou:
— Sabe, doutora, eu gostaria de que Sybil gozasse a vida como eu. Aprecio ir a concertos e a galerias de arte. É bem verdade que ela também gosta disso, mas não vai bastantes vezes. Quando eu sair daqui vou ao Metropolitan Museum. Disse-lhe que tinha um encontro marcado para o almoço; pois bem, trata-se de Marian Ludlow. Vamos lanchar no Fountain Restaurant, no Met. Depois vamos dar uma olhada nas exposições, mas não vamos ter tempo suficiente para ver todas elas. Queremos ver especialmente a coleção de gravuras e desenhos denominados Imagem e Som. Marian transpira cultura por todos os poros e é impecavelmente social. Ela foi educada numa mansão em East Side. Tinham muitos criados e passavam o verão em Southampton, a senhora sabe como é. . .
— Sybil conhece Marian Ludlow? — perguntou a doutora.
— Creio que não — respondeu Vicky, com fria deferência. — Sybil não é uma femme du monde, uma mulher de esprit. Ela viu Mrs. Ludlow na lanchonete do Teachers College e estava admirada e se perguntava o que é que uma senhora daquelas, toda chique, estava fazendo por lá. O restaurante estava apinhado de fregueses e Sybil estava sentada sozinha. Mrs. Ludlow pediu licença para sentar-se junto dela. Como a senhora sabe, Sybil tem sempre medo de não ser suficientemente educada. Então ela disse simplesmente "Certamente". Mas, o pensamento de ter que ficar com uma senhora atraente da sociedade aterrava-a. Acabou apagando-se. Então eu tomei a vez dela e comecei uma conversa com a grande dame. Foi assim que começou a nossa amizade, e agora somos boas amigas.
— Peggy Lou conhece Mrs. Ludlow?
— Sinceramente, Dra. Wilbur, não creio. Como a senhora sabe, elas vivem em mundos completamente diferentes.
— Vicky, você me dá a impressão de fazer muitas coisas de que Sybil e Peggy não tomam parte — observou a doutora.
— E é verdade — disse Vicky com rapidez. — Eu tenho meus próprios caminhos. Eu ficaria fora de mim de raiva se tivesse que ficar amarrada à maneira de agir delas. — Olhou para a doutora com uma expressão em parte maliciosa, em parte cômica e, ao mesmo tempo, confiante.
— Doutora, Sybil gostaria muito de ser como eu. Mas ela não sabe.
— Então, quer dizer que Sybil sabe de sua existência.
— Claro que não — respondeu Vicky. — Ela não sabe de nada a respeito das Peggys, e tampouco a meu respeito. Mas isto não impede que ela tenha como ideal uma pessoa igual a mim — uma imagem que ela gostaria de preencher, mas que constantemente a engana.
A Dra. Wilbur hesitou por um momento, enquanto dava tratos à bola para ordenar o que ouvira. Sybil e Peggy Lou. Agora Vicky e Peggy Ann. Quatro pessoas num corpo só. Será que haveria outras mais? Certa de que Vicky seria a chave do enigma, a doutora resolveu tomar a iniciativa:
— Vicky, você falou das Peggys. Talvez você possa me dizer: existem outras pessoas, ainda?
— Oh, sim — foi a resposta segura —, sabemos que existem muitas outras. É justamente o que eu queria dizer quando lhe disse que sabia o que todas elas fazem.
— Pois bem, Vicky — pediu com insistência a doutora —, eu quero que vocês todas se sintam livres para comparecer às consultas, não importa quem esteja "de plantão".
— Garanto-lhe que elas virão — prometeu Vicky.
— Eu também não deixarei de vir. Estou aqui para ajudar a senhora a encontrar o motivo profundo que as perturba.
— Aprecio sua atitude, Vicky — observou a doutora. Nisto, a Dra. Wilbur teve uma idéia luminosa: arrolar a ajuda de Vicky na análise. Vicky, que dizia saber tudo a respeito das outras personalidades, podia servir como o coro grego, um verdadeiro estribilho para todas as personalidades, lançando luz em acontecimentos e nas relações que as outras poderiam talvez relatar de maneira incompleta, ou então negar-se a fazê-lo.
— E agora — disse a doutora, fixando seu olhar em Vicky — gostaria de ter a sua opinião. Gostaria de contar a Sybil tudo o que está se passando com você e as outras. Que acha você disto?
— Bom — anuiu Vicky, pensativamente —, a senhora pode contar a verdade a ela, mas sugiro-lhe ser prudente e não falar tudo.
Então a doutora explicou, num tom confidente:
— A meu ver, ela deve saber o que se passa. Não vejo como a análise poderia ser feita se ela estivesse por fora de tudo.
— Mas tome cuidado — repetiu Vicky. — Embora todas as demais saibamos o que se dá com Sybil, ela não sabe nada de nenhuma de nós, nunca soube.
— Vicky, compreendo isto, mas veja que eu tinha planejado contar-lhe a respeito de Peggy Lou quando pensava que ela tinha uma personalidade dupla. Mas Sybil não me deu a menor chance para isto.
— E nem podia dar — respondeu Vicky. — Sybil sempre receou revelar os seus sintomas, sempre temeu um diagnóstico.
— Acontece que eu disse a Sybil que ela é muito propensa a estados de fuga, durante os quais está completamente por fora do que está acontecendo.
— Sei muito bem disso — afirmou Vicky —, mas isto é bem diferente que dizer-lhe que ela não está sozinha em seu próprio corpo.
— Acho que isso contribuirá para tranqüilizar Sybil e fazê-la ver que ela está agindo normalmente, embora não saiba disso.
— Por que "ela", doutora? — perguntou Vicky zombeteira. — O pronome não seria "nós"?
A doutora fez uma pausa e não respondeu diretamente. Foi uma Vicky pensativa que rompeu o silêncio, dizendo:
— Quero crer que pode contar a Sybil. Mas, repito: será que é ela que está funcionando? — E, sem esperar pela resposta da doutora, afirmou: — Nós somos gente, a senhora sabe; gente no pleno gozo dos próprios direitos.
A doutora acendeu um cigarro e ficou ouvindo Vicky continuar:
— E mais: se a senhora quer, mesmo, contar-lhe, então vá em frente. Mas gostaria que lhe dissesse que nenhuma das outras faria o que ela porventura não quisesse. Diga-lhe que elas, muitas vezes, fazem coisas que ela não pode fazer, mas que são coisas que elas têm certeza que não irão aborrecê-la.
— E o que me diz de Peggy Lou? — perguntou a Dra. Wilbur. — Às vezes não faz coisas que Sybil desaprovaria?
— Sim — explicou Vicky —, Peggy Lou faz muitas coisas que Sybil não consegue fazer, mas Peggy não prejudica ninguém. Realmente, doutora, ela não iria prejudicar ninguém. — Vicky passou a falar num tom de voz confidencial. — A senhora sabe, Peggy Lou foi até Elizabeth, e lá se meteu numa tremenda confusão.
— Eu não sabia.
— Oh, Peggy Lou vai a muitos lugares. — Vicky olhou para seu relógio. — E por falar em ir a lugares, acho que seria melhor que também eu fosse a algum lugar, justamente agora. Vou ao Met para me encontrar com Marian.
— Está bem — disse a doutora —, temo que a hora já tenha passado.
— Doutora, a senhora já esteve no Met? — perguntou Vicky, quando se dirigiam para a porta. — A senhora iria gostar muito. Pois bem, está na hora de eu ir. E saiba que a senhora pode contar comigo, sempre que precise.
Justamente no momento em que ia se despedindo, Vicky se virou, encarou a doutora e disse:
"— Parece-me estranho vir a uma psicanalista. As outras são neuróticas, mas eu, não. Pelo menos creio que não sou. Mas, nesta época caótica, ninguém sabe ao certo. Mas eu quero ajudar a senhora a deslindar o problema de Sybil e das outras. Afinal de contas, esta é a única razão porque não estou em Paris, junto com a minha família. Não acredito que Sybil ou Peggy Lou tenham descido até à raiz daquilo que as perturba. Vendo-as debater-se aqui, percebi que tinha de fazer alguma coisa por elas e entrar em ação. Como é que a senhora poderia progredir com elas? Sybil desconhece por completo a existência de qualquer uma de nós e Peggy Lou está muito ocupada com a sua própria defesa — e com a de Sybil — para poder agir com imparcialidade. Por isso a senhora está vendo que o que me restava era simplesmente entrar em campo e trabalhar com a senhora. Trabalhando em conjunto, acredito que podemos chegar ao fundo do mistério. Por isso, por favor, queira contar comigo. Eu sei tudo a respeito de cada uma.
E com estas palavras Victoria Antoinette Scharleau, a mulher sociável de movimentos graciosos, voz melíflua e dicção impecável, saiu da mesma maneira como havia chegado.
A Dra. Wilbur gostou de Vicky. Era um tipo de mulher muito sofisticada, entusiasta, amiga e sinceramente interessada em Sybil. Esse interesse, pensou a doutora, teria que ser explorado.
A doutora ficava a imaginar o seguinte: o que Mademoiselle Scharleau teria respondido se lhe perguntassem como ela entrara na casa dos Dorsett, ou quando a sua família a procuraria? Ao se dirigir à sua mesinha, para fazer algumas anotações a respeito do caso Dorsett, perguntou a si mesma: Como Sybil conseguirá tornar-se uma só? E a partir de quantas?
Ao sair do edifício da doutora, Vicky pensava: Nova York não é igual a Paris ou a outra cidade qualquer em que vivi desde que saí de Willow Corners. Num dia cinzento como este, esta cidade alvoroçada e em eterna transformação parece uma sombra de si mesma.
Ela andava rapidamente, porque estava atrasada para o encontro com Marian Ludlow no Met, e porque se sentia livre, por ter deixado atrás de si — por enquanto — as sombras daquelas outras, com cujas vidas a sua estava intimamente ligada.
Ela pensou em Marian Ludlow. Alta, com um aspecto surpreendentemente agradável, mais simpática que bonita, Marian era uma criatura alegre e animada. Tinha cabelos e olhos castanho-claros e três sardas por cima do nariz. Estas sardas eram a marca que negava a sua amiga uma perfeição física que ela mesma estava sempre propensa a admirar com aquela sua capacidade de idealização.
Marian e ela tinham participado de muitas aventuras, desde o seu encontro acidental, no começo de novembro de 1954, na lanchonete do Teachers College. Desde então, haviam estado juntas no Carnegie Hall, onde ouviram a Filarmônica e a Sinfônica de Boston, Walter Gieseking e Pierre Monteux. Haviam estado no Edifício da Conferência das Nações Unidas, e assistido a uma acalorada sessão do Conselho de Segurança.
Nada foi tão excitante como as mostras de arte. Ambas gostaram especialmente daquelas do Brooklyn Museum, onde ficaram encantadas não apenas com a coleção de artistas americanos, mas também com a maravilhosa galeria contemporânea de aquarelas e com a exposição de móveis americanos, que ocupavam todo um andar.
Mobília antiga, tanto para Marian como para Vicky, significava o passado apresentado de forma tangível, um espelho em que se podiam ver modos de vida passados que ambas sabiam apreciar. Mesas Heppelwhite, cadeiras Chippendale, criados-mudos e cômodas entremeavam a conversa. Ficariam fascinadas com a análise do desenho de uma cristaleira em estilo virginiano, ou do arabesco de um fragmento da dobradiça de um baú da Pensilvânia.
Marian possuía um gosto requintado, que se aprimorara como resultado de uma riqueza que ela não possuía mais. Educada em escolas particulares, exclusivas, formara-se por Barnard em 1930 e freqüentara a escola secundária feminina de internas. Com uma tia solteirona por companheira, fez uma excursão pela Europa, no estilo de Henry James.
Nascida em riqueza, Marian casara-se com um homem ainda mais rico. Depois que seu marido faleceu, Marian usou o dinheiro para se distrair. Vendo que sua fortuna ia se reduzindo, e descobrindo que, pela primeira vez em sua vida, tinha que dar duro para ganhar a vida, inscreveu-se na Columbia University, a fim de se preparar para lecionar fazendo cursos de graduação em educação artística. Aqui está porque se achava na lanchonete do Teachers College, naquela tarde em que se encontraram pela primeira vez.
Apercebendo-se repentinamente de que estava a uma quadra do Met, Vicky emergiu de suas divagações e apressou o passo em direção ao Fountain Restaurant.
Em pé no umbral do imenso salão, construído à maneira de átrio romano, com sua piscina retangular no centro, o teto de vidro arqueado, colunas elevadas e mesas com tampos de mármore falso, Vicky se sentia oprimida pela massa de arte barroca que a rodeava. Embora tivesse estado ali muitas vezes, a reação era sempre a mesma.
Marian Ludlow estava sentada em uma mesa à direita de Vicky.
— Receio estar atrasada — observou Vicky, quando se aproximou de sua amiga. — Peço desculpa. Tive um encontro de negócios. Simplesmente não me foi possível sair antes.
— Eu estava gozando a solidão — replicou Marian. — Estava tentando imaginar como este espaço vai ficar quando as fontes de Carl Milles forem instaladas no espelho d'água.
— Isso só vai acontecer no verão — Vicky disse enquanto se sentava. — Li nalgum lugar que vão ser oito figuras, ao todo. E cinco simbolizarão as artes.
— Milles — respondeu Marian — sempre se sentiu em casa no mundo clássico. Teremos que voltar aqui no verão e ver pessoalmente.
Vicky sentia os olhos de Marian, langorosos mas com uma coloração de tristeza, pousarem suavemente sobre ela. Era esse toque de tristeza o que mais agradava a Vicky. Esta, apesar de ser uma pessoa feliz, tinha bastante experiência em saber receber a tristeza de outras pessoas. A capacidade que Vicky tinha de projetar a própria personalidade no objeto da contemplação, a fim de compreendê-lo, havia acelerado a amizade entre as duas.
Se Marian tivesse uma filha, pensou Vicky melancolicamente, essa filha seria eu. Poríamos um fim ao choque de gerações. Ainda que Marian tenha idade para ser minha mãe, os anos não fazem diferença alguma.
— Vamos — dizia Marian. — Se não nos apressarmos, não sobrará mais nada.
Atravessaram o imenso salão até o balcão do self-service.
— Comida de self-service em mesas de mármore — comentou Vicky enquanto Marian, claramente preocupada com sua excelente silhueta, pegava uma salada de abacaxi com requeijão. — Dá um sabor caseiro a uma atmosfera tradicional.
Vicky, mais magra do que gostaria de ser, por causa das manias de Sybil, escolheu uma macarronada com queijo parmesão.
De volta à mesa, ao lado da piscina retangular, Vicky e Marian conversaram sobre a tecelagem de seda, na França, assunto de um trabalho que Marian estava preparando para apresentar como conclusão de um curso.
— Você sabe tanto a respeito disso — disse Marian —, e, por isso, estou certa de que pode me ajudar muito.
— E assim a conversa se estendeu sobre os primitivos acervos do museu de móveis Luís XIV, e sobre o primeiro material conhecido, oriundo da França, uma peça de veludo tendo uma coroa como emblema, da época do reinado de Henrique IV ou Luís XIII.
A conversa passou para os padrões de pintura e paisagismo que haviam emergido durante os primeiros anos do século XVIII como resultado da redescoberta de motivos chineses.
— Sabia — perguntou Vicky — que tais artistas sofreram a influência de Boucher, Pillement e Watteau?
— E que estes, por sua vez, foram influenciados pelos motivos chineses das porcelanas de Meissen? — perguntou Marian. — Afinal descontas, aquele foi o período de influência chinesa.
— Você merece nota dez — disse Vicky com um sorriso.
Marian acabou de tomar o café e Vicky, o chocolate quente. Marian acendeu um cigarro e observou:
— Muito me agrada ver que você não fuma. Nunca comece.
— Não tem perigo — respondeu Vicky. — Não é um dos meus vícios.
— Mas, também, não tenho notado nenhum outro — disse Marian, provocando-a.
— Olhe com mais atenção — respondeu Vicky com o mesmo espírito de provocação.
— Pois bem — disse Marian —, nossa aula de ourivesaria só começa às seis; temos tempo para ver A Palavra Converte-se em Imagem.
A exposição, no salão nobre, causava impressão. Havia interpretações de artistas americanos e europeus, a partir de Dürer até Alexander Calder, de cenas e caracterizações de algumas das obras-primas mais conhecidas da literatura mundial: Fábulas de Esopo, O Inferno, de Dante, Fausto, Dom Quixote, Hamlet e Rei Lear, as Éclogas de Virgílio e as lendas da Metamorfose, de Ovídio. Entre as ilustrações bíblicas havia uma interpretação das bestas com sete cabeças e dez chifres do Apocalipse, gravados por Jean Duvet no século XVII.
Demorando-se no trabalho de Duvet, Vicky observou:
— Eu costumava pintar bestas.
— Por que nunca falou nisso? — disse Marian.
— Foi em Omaha, há coisa de dez anos atrás, quando eu ilustrava os sermões inflamados do pastor a respeito das bestas que surgiam do mar.
— Fico contente em ouvir você falar de suas pinturas — respondeu Marian. — Sybil, você tem sido sempre tão reticente a respeito delas. . .
Sybil. A citação daquele nome não perturbou Vicky. Era o nome pelo qual Marian e todas as outras pessoas a conheciam — o nome em cartões de identidade e em cheques, caixas postais, listas telefônicas, nos cartórios. Realista como era, Vicky sempre aceitara essa situação como um fato de sua existência singular.
Victoria Scharleau não podia alegar que ignorava o nome, muito embora na verdade pertencesse à "outra moça", conforme Peggy Lou a chamava. Era o nome da pessoa simples e assustada que nunca era vista numa ocasião como essa, entre as pessoas, descontraída e feliz. A portadora real do nome "Sybil" era aquele ser reservado e contraído que andava sozinho e que, como Vicky sabia, estava à procura de uma personalidade, o que para ela se verificava não só de maneira natural, mas representava também a essência de sua verdadeira existência.
Assim é que ela estava acostumada à idéia de "Sybil". Sentia-se constrangida pelo fato de saber que fora Sybil, mais do que ela, juntamente com algumas outras — aquelas que Vicky havia mencionado quando estivera com a Dra. Wilbur —, quem realmente pintara as bestas. Vicky sabia que mesmo em conversa casual errara ao apontar como de sua autoria aquelas pinturas.
— Sou meio reticente com relação às minhas pinturas — disse Vicky em voz alta — porque conheço pintores melhores do que eu.
— Bem — disse Marian —, isto é fato sempre verdadeiro. Segundo esse critério, nenhum artista teria a impressão de ser perfeito. Mas você não é nenhuma incapaz. Afinal de contas, o chefe do departamento artístico disse que no departamento não tem aparecido ninguém com tanto talento como você, nestes últimos vinte anos.
— Marian, mudemos de assunto — respondeu Vicky, chateada.
Era impossível para Vicky aceitar a avaliação do professor sobre o trabalho da Sybil Dorsett total como sendo seu. Sybil pintava, Vicky pintava, e o mesmo fazia a maioria das outras personalidades de Sybil. Na opinião de Vicky, de todas elas Sybil era a mais hábil. Essa habilidade se manifestara desde a infância. Quando os professores de arte de Sybil se impressionaram com seu trabalho, seus pais ficaram perplexos, até que o pai levou os trabalhos da menina para serem avaliados por um crítico de arte em St. Paul, Minnesota. Somente então os pais de Sybil concordaram com as habilidades da filha. Na escola superior e no colégio, Sybil ganhou algum dinheiro com seus quadros, que eram expostos em lugares de prestígio.
Naturalmente, nenhum dos quadros era somente de Sybil. A maioria deles era um esforço de colaboração de diversas personalidades. Essa colaboração, em certas épocas, resultou eficiente, em outras, destrutiva. Contudo, apesar da diversidade de estilos e de pequenos senões, nos quadros, Sybil — a Sybil Dorsett integral e Sybil como desenhista dominante — sempre teve a potencialidade de ser uma artista importante. E embora essa potencialidade nunca fosse utilizada por causa dos problemas psicológicos que a desviavam daquele curso, chegara, todavia, a um ponto que levara o professor de arte da Columbia a ver em Sybil — como Marian dissera — a estudante mais dotada que passara pelo seu departamento durante vinte anos.
À medida que esses pensamentos atravessavam a mente de Vicky, ela se deu conta de como lhe era impossível explicar seus sentimentos de reticência acerca de suas pinturas (as pinturas de todos eles) a Marian Ludlow ou a qualquer outro que pensasse que havia apenas um artista sob o nome de Sybil Dorsett.
Vicky e Marian jantaram cedo, no restaurante de cobertura do Butler Hall, um hotel de apartamentos próximo da Columbia University. Marian mandou vir sanduíche de presunto, e Vicky espaguete com almôndegas. Depois disto foram à aula de ourivesaria, às seis horas.
A aula de ourivesaria era um lugar onde Vicky ia porque Sybil não podia. Ficava num subsolo ornamentado por tochas, empunhadas por figuras vulcânicas, com óculos de proteção e aventais pretos. Esse ambiente evocava em Sybil lembranças de Willow Corners. E as lembranças voltavam a acordar velhos e não resolvidos temores.
Preenchendo a lacuna quando Sybil se ausentava ou, como aquela noite, assistindo à aula sozinha, porque estava "de plantão", Vicky não só estava tendo nota dez no trabalho, como também ajudava Marian, que tinha pouca experiência anterior para conseguir uma boa nota.
Vicky sempre gostara dessa aula. Algumas noites traçava os esboços de desenhos ou executava aqueles que já havia desenhado. Essa noite estava fazendo um colar de anéis de cobre e ajudando Marian num berloque de prata.
Depois da aula, Vicky e Marian voltaram para o quarto de Vicky, onde as luzes de outros quartos, acendendo e apagando, refletiam-se na janela que dava para o pátio. Vicky ligou o rádio e ficaram ouvindo o noticiário e, depois, uma novela. Como era tarde, e Marian estava pronta para sair, com muita precaução Vicky começou a guardar os apetrechos de jóias que havia trazido com ela. Estava decidida a deixar o quarto exatamente como o encontrara antes que começassem a trabalhar.
— Por que você está tão atarefada? — perguntou Marian. — Você mora sozinha e estas coisas não vão incomodar ninguém.
— Sim, eu sei — respondeu Vicky com um sorriso forçado. Em seguida, num esforço para disfarçar os seus sentimentos, começou a prosear com Marian enquanto se dirigiam para a porta.
Depois que Marian saiu, Vicky ficou pensando naquela ocasião em que Sybil levara um esboço, como amostra, para o consultório da Dra. Wilbur e dissera à doutora que ela tinha medo de usar o esboço, porque não sabia se o copiara de um livro ou de outro lugar. Tinha sido um esboço feito por Vicky. Lembrando-se da confusão em que Sybil ficou, na ocasião, e também de como iria ficar perturbada se viesse a encontrar alguns apetrechos de jóias no quarto, Vicky queria evitar outra descoberta apavorante. Pensou, então: "Moro sozinha e, ao mesmo tempo, não moro sozinha".
Vicky sentiu que estava se encaminhando para as sombras de alguma coisa da qual se vira livre durante quase todo o dia.
Sybil estava em seu quarto, estudando para uma prova do curso de educação do Prof. Roma Gans. Alguém bateu à porta, e ela pensou que fosse Teddy Reeves. Quem apareceu à porta não foi Teddy e sim uma mulher alta e de boa aparência, com cabelos e olhos castanho-claros, provavelmente dos seus quarenta anos. Sybil não a conhecia.
— Não posso me demorar — disse a mulher. — Estou atrasada para ir ao cabeleireiro. Como ia passar por perto, achei melhor dar uma chegada até aqui e lhe entregar isto. Sybil, você já fez tanto por mim! Quero que você aceite isto de mim.
A mulher entregou a Sybil um lindo berloque de prata trabalhado a mão, com uma pedra azul muito bonita, um lápis-lazúli. Sybil pensou: "Por que será que ela me deu isto?"
— Muito obrigada — respondeu ela, ao aceitar o berloque com certa relutância.
— Até logo — disse a mulher, e desapareceu.
Até logo? Já fiz tanto por ela? É tão esquisito! Já falei com esta criatura anteriormente? Já a vi antes, mas nunca trocamos uma palavra sequer. E no entanto ela agiu como se fôssemos amigas. Amigas? E a confusão se tornava cada vez pior.
Sybil voltou à mesinha e tentou estudar. Sua mente procurava se apegar às pequenas coisas reais, pois aquele enigma, aquele mistério que vinha se arrastando há tanto tempo, a coisa terrível, colhera-a, novamente, de surpresa.
Estudar para a prova. Contudo, quando Sybil sentou à mesinha para estudar, as palavras do texto de educação se embaralharam com o pânico de que estava possuída, e ela se perguntou com toda a força do próprio espírito: Será que nunca terá fim aquilo que um dia teve um começo? Será que não haverá continuidade ligando o terrível vazio entre o momento presente e algum outro tempo, um tempo no futuro, um tempo no passado?
Victoria Antoinette Scharleau, que sabia de tudo, viu quando Marian entregou o berloque de prata a Sybil.
POR QUÊ?
A Dra. Wilbur ajeitou a lâmpada da mesinha. Diante dela havia quase tudo o que existe da literatura relativamente escassa sobre múltipla personalidade. Depois que Vicky deixara o consultório, numa disposição de espírito meditabunda, ela dirigiu-se à Academy of Medicine Library onde um bibliotecário havia reunido para ela quase tudo o que havia a respeito dessa doença rara, porém já definitivamente delineada. A dissociação de uma personalidade, de Morton Prince, era o único livro que havia lido até então. Fora publicado em 1905 e era muito conhecido por estudantes de psicologia normal. Tentara conseguir um exemplar do artigo intitulado "Um caso de múltipla personalidade", de autoria dos Drs. Corbey H. Thigpen e Hervey Cleckley, publicado em 1954 no Journal oi Abnormal Psychology. Colegas seus falavam muito desse artigo, que tratava de uma moça que se escondia sob o pseudônimo de Eva. Mas tal artigo não se encontrava disponível na ocasião.
Agora, porém, enquanto ficava lendo até altas horas da noite, familiarizara-se com os nomes Mary Reynolds, Mamie, Felida X, Louis Vive, Ansel Bourne, Miss Smith, Mrs. Smead, Silas Prong, Doris Fisher e Christine Beauchamp. Todas essas pessoas tinham múltiplas personalidades, e a história da medicina as registrara. Ao todo sete mulheres e três homensl. Com o caso recente de Eva o número de mulheres subia a oito, e constava que Eva era a única personalidade múltipla ainda viva.
1 Desde então, outros casos tornaram-se conhecidos.
Conforme a doutora havia constatado, Mary Reynolds fora a primeira personalidade múltipla registrada, em 1811. Sua constatação foi feita pelo Dr. L. Mitchell, da University of Pennsylvania.
O caso de Mamie fora descrito no Boston Medicai and Surgical Journal de 15 de maio de 1890. Depois disso apareceram o relato de Felida X, feito por M. Azam; de Louis Vive, estudado por diversos observadores franceses; de Ansel Bourne, observado pelo Dr. Richard Hodgson e pelo Prof. William James; de Miss Smith, feito por M. Fournoy; e de Mrs. Smead, feito pelo Prof. Hyslop. Como parte do volume intitulado A mente sem engrenagem, de autoria de Robert Howland Chase, em 1920, verificara-se a recapitulação do "Estranho caso de Silas Prong", um caso de personalidade múltipla anteriormente descrito pelo Prof. William James.
N? Conforme a doutora pôde perceber mesmo depois de um exame superficial, esses casos complexos variavam acentuadamente entre si. Nos casos como o de Miss Smith e o de Mrs. Smead, que ao invés de múltiplas só envolviam duas personalidades, a segunda personalidade se apresentava muito pouco independente para poder se movimentar voluntariamente numa esfera social, muito embora possuísse as faculdades de um ser humano — trabalho, atividade e diversão. Com toda a evidência esse particular não se dava com Sybil, cujas personalidades alternantes eram claramente independentes.
Mais interessantes eram os casos como o de Felida X, de Christine Beauchamp e de Doris Fisher, visto que se tratava de personalidades independentes no mesmo corpo, levando vida normal como qualquer outro mortal. Miss Beauchamp tinha três personalidades; Doris Fisher, cinco. De acordo com conjeturas da doutora, o caso de Sybil se enquadrava neste último. Mas o caso de Sybil, e aqui voltava-se ao mero campo das conjeturas, parecia mais complexo que o de Miss Beauchamp, e também que o de Doris Fisher.
Pois bem, vá lá que seja, pensava a doutora, levantando a hipótese de que o caso de Sybil devia ter múltiplas raízes. Mas a esta altura desconhecia em que consistiam essas raízes.
A Dra. Wilbur ficou pensando no assunto por algum tempo. Voltando, porém, a ler, quis descobrir quando é que naqueles casos se verificara a primeira dissociação. Não tinha informação sobre quando é que Sybil se dissociara pela primeira vez; tampouco sabia se todas as personalidades haviam aparecido nessa primeira vez ou se algumas só emergiram mais tarde. Quando é que Christine Beauchamp sofrerá a primeira dissociação? Segundo o Dr. Prince, essa dissociação se dera quando Christine tinha dezoito anos, e resultou de um abalo nervoso.
A Dra. Wilbur na verdade não sabia, mas presumia que a primeira dissociação de Sybil devia ter ocorrido na sua infância. A infantilidade de Peggy parecia constituir uma chave para desvendar o mistério. Provavelmente também Sybil devia ter sofrido um abalo. Mas que abalo? Tampouco havia vindo à tona que tudo se tornava impossível, até mesmo especular em torno das causas. Mas, levantando hipóteses, a doutora achou que possivelmente devia ter havido raízes, ou abalos, que resultaram em múltiplas personalidades, personificando reações àqueles choques. Desta maneira, muitas outras personalidades podiam ser interpretadas como traumas múltiplos de infância, como raízes múltiplas que redundavam nessa situação complexa.
O caso Dorsett estava se /revestindo de um aspecto de aventura, de um filme policial do inconsciente, e a Dra. Wilbur se mostrou ainda mais entusiasmada quando constatou que Sybil era a primeira personalidade múltipla a ser submetida a psicanálise. Isto significava não somente que se estaria procurando um terreno novo, mas também que a doutora, através da psicanálise, estaria em condições de trazer um conhecimento muito maior para a compreensão do caso de Sybil, como até então não se fizera. A Dra. Wilbur se sentia irrequieta diante do desafio e das suas possíveis implicações, não apenas no que dizia respeito a
Sybil diretamente, mas também no setor amplamente inexplorado da multiplicidade de personalidade.
A análise, decidira a Dra. Wilbur, teria que ser não-ortodoxa. Sorriu ao pensar nesta espécie de análise feita por um psiquiatra. Ela mesma se considerava uma, e sabia que esta era justamente uma característica que lhe valeria de muito ao tratar esse caso extraordinário. Sabia que teria que utilizar as reações espontâneas de todas as personalidades, não somente na descoberta da origem da doença como também no seu tratamento. Sabia que seria necessário tratar cada uma das personalidades como a uma pessoa com todos os seus direitos, dissociando a reserva de Sybil, a personalidade em atuação.
A pergunta central consistia no seguinte: Por que Sybil se tornara uma personalidade múltipla? Existe predisposição física para o desenvolvimento de personalidade múltipla? Fatores genéticos podem ter sua parcela de contribuição? Ninguém sabia. E no entanto a doutora acreditava que a situação de Sybil se originara em algum trauma sofrido na infância, muito embora a essa altura não pudesse afirmar com certeza. Uma análise recente havia revelado certos temores constantes — de aproximação com gente, de música, de mãos — que pareciam estar relacionados com um trauma.
Diversos casos tinham muitas características em comum. A personalidade atuante em Sybil quando se apresentara em Omaha e Nova York parecia tipicamente reservada e demasiado obsequiosa. A doutora levantou a hipótese de que talvez fosse a verdadeira repressão neste tipo de comportamento o que tornara necessário relegar as emoções que haviam sido reprimidas para outra personalidade. Os livros diziam que as segundas personalidades esgotavam a personalidade atuante, privando-a de emoções, atitudes, modos de comportamento e aquisições.
Mas o esgotamento era o efeito e não a causa da situação. E em Sybil, o que causara essa situação? Em que consistia o trauma original?
Pela manhã da consulta com Miss Dorsett, quando a hora se aproximava, a Dra. Wilbur se perguntava "quem" iria aparecer. Quem veio foi Vicky, e isso constituía um bom ponto de partida, visto que Vicky dizia conhecer tudo a respeito do caso.
Neste seu segundo comparecimento ao consultório, exatamente dois dias depois do primeiro, querendo desvendar o trauma original, a doutora perguntou a Vicky se sabia por que razão Peggy Lou tinha medo de música, conforme se havia tornado evidente numa reunião recente, e por que a música a perturbava tão profundamente.
— A música machuca — respondeu Vicky, levantando as pálpebras e olhando para a doutora através das grossas espirais de fumaça que saíam do cigarro da médica. — Machuca emocionalmente, porque é linda e torna triste tanto Sybil como Peggy Lou. Elas ficam tristes porque se vêem sozinhas e ninguém se preocupa com elas. Quando ouvem música, então, julgam-se mais solitárias do que nunca.
Teria isto relação com o trauma original? era o que ficava a pensar a doutora. Talvez envolvesse a falta de preocupação, e quem sabe se a carência de educação quando criança. Quando perguntou como alguma coisa linda poderia fazer mal, Vicky respondeu enigmaticamente:
— É como o amor.
Em seguida a doutora encarou firmemente Vicky e perguntou:
— É algo sobre o amor que magoa?
— Sim — respondeu Vicky de maneira incisiva, embora com prudência. E quando a doutora perguntou em que precisamente o amor tinha prejudicado, Vicky se tornou ainda mais prudente.
— Doutora — disse ela —, Sybil não quer amar ninguém. Eis porque tem medo de se aproximar dos outros. A senhora viu como ela se tem comportado aqui. É sempre a mesma história — o medo de mãos que se aproximam dela, o medo de pessoas, o medo de música, o medo do amor. Tudo isso tem feito mal a ela. Tudo isso a tornou receosa. Tudo isso a tornou triste e solitária.
Vendo que Vicky estava descrevendo os verdadeiros sintomas, acrescentando ainda o caso do amor — sobre o qual ela mesma havia pensado na noite anterior —, a doutora desejava que essa co-analisadora de Sybil a levasse às causas. Numa tentativa de levá-la para aquela meta, perguntou de maneira indireta:
— Vicky, você também tem alguns desses temores de Sybil?
— Claro que não — respondeu Vicky.
— Como é que Sybil tem medo e você não? — insistiu a doutora.
— É porque entre Sybil e mim existe uma diferença essencial. Posso fazer o que bem entendo, porque não tenho medo.
— Mas por que você não tem medo?
— Porque não tenho razão para ter medo, e por isso não receio nada.
Vicky não se comprometeria mais do que isso.
— Pobre Sybil — suspirou Vicky, tentando mudar o rumo da conversa —, que aflição tem sido para ela. Ela está toda atrapalhada. Tem quase constantemente dor de cabeça e de garganta. Não pode chorar. E não irá chorar. Quando ela chorava todo mundo se virava contra ela.
— E quem era esse "todo mundo"? — perguntou a doutora, confiante.
— Ah, eu preferia não dizer — respondeu Vicky com um sorriso de prudência. — Afinal, eu não era um membro da família. Eu simplesmente morava com eles.
— Victoria Antoinette Scharleau fechou a porta que deixara aberta ao menos em parte. Até então tinha havido um raio de luz. A falta de cuidados, talvez a ausência de uma educação em criança, de que a doutora começara a suspeitar, passou a tornar-se o fator de maior probabilidade diante do fato de Vicky lançar a culpa da impossibilidade de Sybil chorar à circunstância de na família Dorsett ela viver uma vida conturbada.
Os fatos se desenrolavam tão rápido! Quando a Dra. Wilbur teve esta última idéia, subitamente, sem ruído e com uma maneira de agir tão quieta a ponto de quase não se perceber, a segurança de Victoria Antoinette Scharleau fraquejou. O autodomínio, que era a sua característica principal, desapareceu. Os olhos que haviam permanecido serenos se esbugalharam com os temas que foram narrados de novo. Vicky, que não havia sido um membro da família dos Dorsett, devolvera o corpo a Sybil, que o era.
Espantada por se achar sentada no sofá perto da doutora, Sybil abruptamente se afastou, perguntando:
— O que aconteceu? Não me lembro de ter vindo aqui hoje. Outra fuga?
A Dra. Wilbur acenou afirmativamente com a cabeça. Era chegado, pensava, o momento decisivo de se interpretar realmente essas fugas. Era de opinião que a análise se processaria mais rapidamente se Sybil estivesse a par das outras personalidades. Daí a doutora poderia estabelecer um confronto entre ela e aquilo que as outras personalidades haviam dito e aproximá-la das recordações de que parecia afastada.
— Sim — disse a doutora a Sybil. — Você teve outra fuga. Mas a coisa é mais complicada do que isto.
— Estou com medo.
— Claro que você está, minha querida — respondeu a doutora, confortando-a. — Agora, vejamos: você nunca me disse isto, mas eu acho que você percebe que o tempo passa sem que você se aperceba. — Sybil permanecia calada. — Não é verdade? — Visto que Sybil não respondia nada, a doutora insistiu: — Você sabe que isso aconteceu de novo, aqui?
Depois de uma longa pausa, Sybil respondeu em voz baixa:
— Prometi a mim mesma que lhe diria, mas não tive coragem.
Então a Dra. Wilbur perguntou:
— O que você acha que faz durante o tempo que você perde?
— Fazer? — perguntou Sybil. A doutora percebeu que era mais uma mera repetição do que um modo de conceber as coisas. — Eu não faço nada.
— Você continua a dizer ou fazer alguma coisa, mesmo que não esteja consciente disso. — A doutora continuou implacável: — É como se você fosse sonâmbula.
— O que faço?
— Alguém já lhe disse isso algum dia?
— Sim — respondeu Sybil, baixando os olhos. — Sempre me disseram que eu havia feito certas coisas que eu não lembrava ter feito. Eu não ligava. Afinal, o que poderia fazer?
— Quem eram essas pessoas que lhe diziam isso?
— Praticamente Deus e todo mundo.
— Mas quem?
— Pois bem, minha mãe sempre dizia que eu era uma criança^ má. Nunca cheguei a saber o que eu havia feito que fosse mau. Se eu procurasse saber, ela me sacudia, berrava em meus ouvidos: "Você sabe muito bem o que foi que fez, sua cretina". Mas eu não sabia, e nem agora sei.
— Procure não se preocupar muito com isso — disse-lhe a doutora gentilmente. — Outras pessoas passaram por isto.' — A Dra. Wilbur viu que esta afirmação causara uma impressão enorme em Sybil. Pareceu ficar mais à vontade. — Esta situação — continuou a doutora a explicar — é mais complicada do que os estados de fuga de que já falamos. Numa simples fuga o que se dá é justamente uma perda de consciência, mas as suas fugas não a tornam apagada, vaga.
— Sempre as chamei encantamentos vagos — disse Sybil. — Isto é, para mim, e nunca para nenhuma outra pessoa.
— Enquanto você perde consciência de si outra pessoa assume a direção de seus atos — continuou a doutora.
— Como, outra pessoa? — perguntou Sybil, atordoada. Novamente a pergunta era uma mera repetição.
— Sim — respondeu a doutora. Começou a entrar em explicações, mas Sybil interrompeu-a com a pergunta:
— Quer dizer que eu sou como Dr. Jekyll e Mr. Hyde?
A Dra. Wilbur deu umas palmadinhas em sua mão, dizendo:
— Aquilo não é uma história verdadeira, e sim pura ficção. Você não é de modo algum parecida com o Dr. Jekyll ou com Mr. Hyde. Stevenson não era um psicanalista. Ele criou aqueles dois caracteres como simples produto de sua imaginação literária. Como escritor, o que lhe interessava era fazer bonito, apresentar uma coisa agradável.
— Posso ir embora? Estamos ultrapassando o tempo —disse repentinamente Sybil, com uma insistência quase que intolerável.
Mas a Dra. Wilbur continuou pressionando, porque sabia que teria que ir até o fim, agora que tinha embarcado nesta aventura.
— Você é muito inteligente para concordar com o conceito errôneo que o povo faz de assuntos de ficção — disse ela. — Os fatos são muito diferentes. Já li a respeito de outras pessoas que tiveram esta mesma condição de vida. Elas não têm um lado bom e um lado mau. Não são divididas pelo conflito entre o bem e o mal. Não é muito o que se conhece a respeito desta condição. Mas sabemos, positivamente, que as diferentes personalidades de cada uma das pessoas aparentemente possuem o mesmo código de ética, a mesma estrutura básica.
— Estamos ultrapassando o tempo — insistiu Sybil. — Não tenho direito a tempo extra.
— E é o que você sempre faz — respondeu a Dra. Wilbur com firmeza. — Você se declara impotente, e esta é uma das razões porque precisa de outras personalidades.
— Personalidades? — repetiu Sybil, espantada. — A senhora disse "personalidades", no plural?
— Sybil — continuou a doutora suavemente —, é uma coisa de que não se deve ter medo. Existe uma personalidade que diz chamar-se Peggy Lou. Ela afirmou isto de si mesma. Temos Peggy Ann, que é uma combativa, mas é mais esperta do que Peggy Lou. A outra diz chamar-se Vicky. Ela é segura de si, fica à vontade, tem senso de responsabilidade; enfim,, uma pessoa muito agradável.
Sybil levantou-se para ir embora.
— Nada há que temer — repetiu a doutora.
Mas o fato de Sybil implorar "Deixe-me ir, por favor, deixe-me ir", mostrou que havia sido tocada profundamente. Julgando pouco prudente deixá-la ir sozinha, a doutora se ofereceu para sair com ela.
— A senhora tem outro paciente — insistiu Sybil. — Eu vou direito. — Ao sair da porta pela qual uma hora antes entrara uma Vicky radiante, Sybil estava pálida que nem um bacalhau.
Mais tarde, na escuridão que se ia formando no seu silencioso consultório, a Dra. Wilbur se pôs a especular em torno do caso Dorsett. Agora que Sybil sabia a respeito de outras personalidades, estava começando a sério a primeira análise na história de uma múltipla personalidade. Entregou-se novamente à leitura dos volumes que tratavam de múltipla personalidade, os quais atravancavam a sua mesa. Valeu-se também de trabalhos de Freud e Charcot, passando a pente fino as referências a distúrbios do sistema nervoso.
Muito embora a personalidade múltipla fosse um fenômeno esquisito e anormal, a Dra. Wilbur estava certa de que não era uma psicose, mas um caso de distúrbio do sistema nervoso. Essa constatação crescente renovou-lhe a confiança de que seria capaz de tratar do caso; pois, embora ela nunca tivesse tratado uma personalidade múltipla, já tivera inúmeros êxitos no tratamento de casos de histeria.
Para a Dra. Wilbur tornava-se evidente que a personalidade múltipla pertencia à classe de distúrbios conhecidos como psiconeuróticos. A neurose específica se chama grande hystérie. A grande hystérie de que Sybil Dorsett padecia, não só com as múltiplas personalidades mas com a variedade de doenças psicossomáticas e perturbações nos cinco sentidos, era tão grave quanto rara. — A Dra. Wilbur já vira esquizofrênicos, psicóticos, não tão doentes quanto Sybil. Poderia dizer-se que tinham uma temperatura psicótica de trinta e sete graus, enquanto Sybil sofria de uma temperatura psiconeurótica de quarenta e dois graus, pensou a Dra. Wilbur. Embora uma psicose seja uma doença mais séria, a questão é "quão enfermo está o paciente?" e não "quão grave é a doença do paciente?"
Não há razão para desanimar, disse de si para si a Dra. Wilbur. Talvez tivesse sido otimista demais ao pensar que Sybil Dorsett se recuperaria. Mas tratava-se de um caso tremendamente complicado e ia necessitar de uma boa dose de otimismo para prosseguir e vê-lo terminado.
O telefone tocou. Já passava das dez horas. Talvez um paciente em crise, clamando por auxílio. Por favor, que não seja um suicídio, não esta noite, pensou. Quando o dia estava encerrado ela precisava de um intervalo para drenar psicoses e psiconeuroses do seu sistema, para parar de viver os problemas de outras pessoas. Queria mais tempo para dedicar ao marido, às suas reuniões profissionais, para visitar os parentes e amigos, para ler e pensar, para se pentear e ir fazer compras. Quantas vezes essas atividades corriqueiras tinham que ser postas de lado, por causa de um chamado súbito e urgente de um paciente. . . Pegou o fone. Era Teddy Reeves.
— Dra. Wilbur — disse Teddy —, Sybil dissociou-se. Ela realmente está fora de si. Não sei o que fazer por ela.
— Vou já para aí — prontificou-se a Dra. Wilbur. Ao repor o fone no gancho não se sentia realmente surpresa diante daquilo que Teddy Reeves lhe havia dito. Pelas palavras "ela realmente está fora de si", a Dra. Wilbur suspeitava de que Peggy Lou tivesse assumido o controle dos atos de Sybil.
Quando Sybil finalmente admitiu para a doutora que tinha lapsos, estava fazendo-o também para si própria. Nunca antes, apesar de todos aqueles anos em que passara sempre de agora para algum outro tempo, com minutos, dias, semanas ou anos que não sabia como haviam transcorrido, ela havia formulado o conceito de "lapsos". Em vez disso, ela usara sempre um eufemismo: "períodos de inconsciência".
Não obstante, o tremor que percorrera seu corpo quando a doutora lhe dissera que "enquanto você perde a consciência, outra personalidade toma o seu lugar" não havia sido de medo. Era mais uma admissão.
Aquela frase explicava as coisas, boas ou más, que as pessoas diziam ter ela feito, mas que ela não fizera, e os desconhecidos que diziam conhecê-la. Perturbada pela idéia de que a doutora descobrira todas essas coisas terríveis, as coisas diabólicas, de que talvez já estivesse a par, sem contudo lhe dizer nada, ela fugira do consultório perseguida por sentimentos de culpa.
A princípio, em Whittier Hall, esquecera o problema. Mas o encontro, no elevador do alojamento, com Judy e Marlene, as gêmeas a quem dava aulas particulares, significou para ela mais uma afronta, mais uma acusação. Inseparáveis, completas como uma única entidade, unas, haviam passado toda a vida juntas, enquanto ela nem sequer passara todo o tempo consigo mesma.
Procurou a chave na bolsa, mas suas mãos tremiam tanto que não conseguiu acertar o buraco da fechadura. Acreditando que não conseguiria entrar e permanecer sozinha no quarto, Sybil foi bater fracamente à porta do quarto de Teddy Reeves.
Teddy deitou Sybil na cama, permanecendo em pé ao seu lado, tomada de terror e compaixão. Observava como Sybil, ao mesmo tempo em que saía e voltava para a cama, passava por uma série de estados de espírito diversos. Num determinado momento era uma criança ranheta que andava por cima dos móveis, deixando sinais dos seus dedos no teto; em seguida era uma mulher consciente, dona de si, que falava de si própria na terceira pessoa e dizia:
— Muito me apraz que Sybil saiba. Realmente, será melhor para todas nós que seja assim. — Depois Sybil se tornava a pessoa trêmula, aquela que batera na porta de Teddy. Quando a doutora chegou ela estava deitada na cama, inerte.
A Dr. Wilbur pôde constatar que Sybil estava sofrendo, e tentou tranqüilizá-la, explicando que pelo fato de possuir outras personalidades ela não tinha nada que temer, porque isto constituía simplesmente uma forma daquilo que os psiquiatras costumam chamar de "vazão": muitas pessoas dão vazão àquilo que as perturba.
Mas as palavras da médica de nada adiantaram. Com efeito, quando Sybil, longe de se sentir tranqüilizada, protestou: "Nunca ouvi dizer de uma pessoa que fizesse isso", a doutora começou a se perguntar se ela, mesmo depois de tanto adiamento, não teria se precipitado na maneira de apresentar a Sybil a existência das outras personalidades.
— Vou dar-lhe um Seconal — tranqüilizou-a a doutora — e amanhã cedo você estará boa. — A doutora descobrira que sedativos barbitúricos amenizavam a ansiedade de Sybil por quarenta e oito horas.
A manhã chegou. Sybil acordou, libertada da ansiedade pelo Seconal que a doutora lhe havia dado na noite anterior. As personalidades múltiplas pareciam um pesadelo que havia desaparecido.
Passava da meia-noite quando a doutora deixou Whittier Hall. Embora estivesse absolutamente certa do que as personalidades alternantes realmente representavam, ela levantava a hipótese de que Sybil em atividade correspondia mais ou menos à mente consciente, e que as personalidades alternantes pertenciam ao inconsciente. Lançando mão de uma imagem da biologia e da anatomia, ela via as personalidades alternantes como lacunas — essas cavidades pequeníssimas no osso que são preenchidas com células ósseas — no inconsciente de Sybil. Às vezes imóveis, mediante uma estimulação própria essas lacunas emergiam e viviam. Atuavam no íntimo de Sybil, mas também no mundo exterior, onde pareciam dar vazão ao problema particular que estavam guardando.
Defesas do inconsciente, pensou a doutora quando estava pagando ao chofer. Agora o que me resta fazer é tornar-me amiga de cada uma das personalidades, não importa quantas sejam, e determinar o tipo de conflito em que cada uma se debate. Isto me levará às raízes do trauma que tornou necessária a dissociação. Desta maneira, posso chegar à realidade — uma realidade intolerável de que suspeito — contra a qual as personalidades se tornaram uma manobra defensivas
Conforme a doutora constatara, a análise iria incluir, naturalmente, todas as personalidades, e cada uma delas seria analisada como um ser humano independente e como parte do todo de Sybil Dorsett.
O mais importante agora era aproximar-se mais da Sybil atuante. Era o único meio de entrar em contato com a ansiedade e o mecanismo de defesa por trás do qual todas as outras personalidades se emboscavam.
Mas como é que alguém podia aproximar-se da tímida Sybil Dorsett?
Uma certa manhã do mês de abril de 1955, quando Sybil levou algumas de suas aquarelas ao consultório, a doutora perguntou:
— Sybil, que tal nós duas darmos um passeio até Connecticut em algum domingo durante a estação do corniso? Nessa época a paisagem é linda e você pode desenhar as árvores em flor e os arbustos.
Maldição! pensou a doutora quando Sybil respondeu com desconfiança:
— Oh, a senhora deve ter coisas mais importantes para fazer do que passar um domingo comigo.
Devo fazê-la compreender que a considero uma mulher extraordinariamente dotada e que teria prazer em estar com ela mesmo que não fosse minha paciente? Será que não há meio de fazê-la entender que o fato de estar impossibilitada pela doença não altera o meu apreço por ela? Não vai compreender nunca que, embora ela se subestime tremendamente, eu não faço tal coisa?
Foi só depois de muito argumentar que a Dra. Wilbur conseguiu persuadir Sybil a aceitar aquela viagem... a viagem que podia — a Dra. Wilbur tinha absoluta certeza — fazer com que Sybil ganhasse confiança em si mesma e perdesse a rigidez.
Quando a Dra. Wilbur chegou de carro a Whittier Hall, às sete horas da manhã de um domingo ensolarado do começo de maio de 1955, deu com Sybil e Teddy Reeves esperando por ela. Teddy, que sempre demonstrara um interesse patente por Sybil, tornara-se mais dominadora depois que Sybil lhe confidenciara a respeito das personalidades múltiplas. Naquela noite de março em que chamou a Dra. Wilbur, Teddy não sabia de nada; mas, agora, não só conseguia identificar Vicky e Peggy Lou, como também começava a estabelecer uma relação entre elas. Em pé defronte a Whittier Hall, Teddy notou que a capota do conversível da doutora estava arriada, e por isso ficou preocupada em saber se Sybil tinha ou não uma proteção contra mau tempo. Quando Sybil disse que tinha um cachecol, mesmo assim Teddy preveniu que o tempo estava demasiado fresco para andar com a capota arriada. E embora tanto Sybil como a doutora a tranqüilizassem, dizendo que não havia problema, Teddy não se convenceu. Mas as preocupações maiores de Teddy consistiam em saber se durante o passeio Peggy Lou ficaria sossegada, e por quanto tempo nessa excursão Sybil seria realmente Sybil.
Sybil, por sua vez, parecia estar muito consciente enquanto se despedia de Teddy e entrava no carro da doutora. Estava muito atraente com o traje azul-marinho e o chapéu vermelho, e parecia mais tranqüila que nunca.
A maneira como Sybil ocultara o prazer com a viagem até deixarem Teddy não passou despercebida à doutora, que julgou um sinal de sensibilidade e prudência o fato de Sybil saber do ciúme de Teddy, e que se acautelasse contra ele.
Desejando que essa ocasião fosse meramente social, a Dra. Wilbur limitou a sua conversa a assuntos sem importância, às cidades e casas por onde passavam, aos acidentes geográficos, à história da região e às paisagens. Contornando as pequenas cidades da costa, dobraram em Southport e se dirigiram diretamente para o Sound.
— Sempre desejei muito desenhar e pintar barcos — observou Sybil, quando estava olhando para as embarcações no Sound pela primeira vez —, mas sempre achei que não poderia fixar corretamente as formas.
— Tente — disse a doutora, parando o carro. Sentada no carro parado, Sybil fez alguns esboços de lanchas ancoradas.
— Estou gostando dos esboços — disse a médica, com o que Sybil pareceu toda satisfeita.
Deixando o Sound para trás, a Dra. Wilbur percorreu despreocupadamente várias rodovias principais e outras estradas do interior, de pouco movimento. Sybil nunca havia estado naquela região, por isso a doutora lhe contou que algumas das casas por onde passaram datavam de antes da revolução, ao passo que algumas outras, embora modernas, tinham janelas originais da época anterior à revolução ou então réplicas delas. Sybil fez a seguinte observação:
— Meu pai é um empreiteiro-construtor. Ele se interessa muito por arquitetura, e foi quem desenvolveu em mim o interesse por ela. — Na análise o pai havia sido mencionado só por acaso e por alto; a Dra. Wilbur gostou muito de ouvir falar dele.
A conversa se voltou para as lindas plantações de cornisos, lilases e de macieiras silvestres que estavam crescendo; Sybil pediu para fazer uma parada porque queria esboçar uma colina cheia de macieiras silvestres e de cornisos.
Sybil insistiu em levar o almoço, que elas comeram numa área de camping perto de Kent, em Connecticut. Na ocasião a Dra. Wilbur julgou que Sybil levara o lanche como contribuição para as despesas da viagem, mas depois verificou que o almoço que trouxera de casa tinha por finalidade evitar entrada em restaurantes. Realmente, Sybil temia tanto entrar em restaurantes que, muitas vezes, quando entrava em algum deles, acabava perdendo a noção do tempo.
E também foi somente mais tarde que a doutora ficou sabendo do motivo por que, ao concordar com a viagem, Sybil insistira em voltar a Nova York por volta das quatro horas o mais tardar, possivelmente três.
— É que tenho alguma coisa a fazer — explicou Sybil. Conforme a doutora verificou mais tarde, a razão verdadeira disso residia no fato de que Sybil acabaria demonstrando os sinais de perturbação emocional, de cansaço e pavor que muitas vezes se manifestavam no final do dia. Isso se tornaria patente caso permanecesse fora depois das três ou quatro horas. Ela temia dissociar-se. E ela não queria correr o risco de a doutora encontrar-se com as outras personalidades fora de seu consultório. -
Assim sendo, exatamente às três horas da tarde o conversível da Dra. Wilbur estava de volta a Whittier Hall.
Naquela ocasião, tanto a Dra. Wilbur como Sybil desconheciam que não tinham estado sozinhas naquela excursão até Connecticut. Peggy Lou, também presente, estava contente porque finalmente Sybil a levara a algum lugar. Vicky, outra passageira invisível do carro da doutora, não conseguiu conter-se e falou com Marian Ludlow a respeito das velhas casas de antes da revolução.
Naquele carro havia também passageiros que nem a doutora nem Sybil haviam jamais encontrado, como Mareia Lynn Dorsett, ousada e positiva, com o rosto do feitio de um escudo, olhos cinzentos, cabelos castanhos, e que vigiava cada passo da viagem.
Quando o carro chegou em frente a Whittier Hall e a Dra. Wilbur se despediu de Sybil, Mareia Lynn virou-se para Vanessa Gail, sua amiga íntima, e comentou num sotaque inglês:
— Ela se preocupa conosco. — Vanessa, uma garota alta, esguia e de aparência esbelta, cabelos castanho-avermelhados, olhos castanho-claros e um rosto oval expressivo, transmitiu a Mary essa única e simples frase:
— Ela se preocupa conosco. — Mary, um tipo materna], rechonchuda, pensativa e contemplativa, repetiu com um leve sorriso, como se fosse uma pergunta:
— Ela se preocupa conosco?
Então Mareia Lynn, Vanessa Gail e Mary espalharam um boato interno segundo o qual a mensagem correu alto e bom-tom:
— A Dra. Wilbur se preocupa conosco. — Depois disso Mareia Lynn, Vanessa Gail, Mary e todas as demais fizeram uma assembléia e decidiram que iriam apresentar-se à doutora.
COMEÇANDO A SER
WILLOW CORNERS
A viagem a Connecticut produziu uma mudança não somente nas outras personalidades, mas também na própria Sybil. Menos cautelosa e constrangida durante o verão de 1955 do que nos primeiros sete meses da análise, Sybil começou a falar a respeito de seu ambiente dos primeiros tempos. Não houve novidades repentinas a respeito das causas da multiplicidade, mas, pela descrição da cidade e do meio em que Sybil — provavelmente nascida uma só — se tornara muitas, a Dra. Wilbur pôde entrever indícios que contribuíram para uma ulterior compreensão das causas. Assim é que a Dra. Wilbur conduzia cada vez mais Sybil — bem como Vicky — por uma exploração minuciosa de Willow Corners, em Wisconsin, onde Sybil, nascida aos 20 de janeiro de 1923, passara os primeiros dezoito anos de sua vida.
Willow Corners se erguia nas planícies do sudeste de Wisconsin, perto de Minnesota. Em volta, uma zona rural plana e com um céu azul limpo que parecia poder-se alcançar com a mão. Os habitantes do local falavam fanhoso e os homens e as mulheres, indo em suas carroças abertas para a cidade, vindos de fazendas distantes, durante aqueles primeiros anos de Sybil, constituíam um testemunho constante da confiança que a cidade depositava na terra.
A própria cidade era pontilhada de aceráceas e de olmos, mas, apesar do seu nome, não tinha salgueiros1. Em sua maioria construídas por homens que haviam trabalhado para Willard Dorsett, as casas eram principalmente moradias de madeira pintadas de branco. As ruas, sem pavimentação, ficavam empoeiradas nos dias secos e, quando chovia, se transformavam em lamaçais.
1 Willow, em inglês. (N. do T.)
Exteriormente, nada havia de especial a se notar em Willow Corners. Fundada em 1869, não era uma cidade pequena, mas um grande vilarejo, no qual as notícias monótonas de seus mil habitantes, que viviam numa área de duas milhas quadradas, eram registradas pelo Corners Courier, o jornal semanal da cidade, cujas manchetes típicas eram:
PEQUENO VENDAVAL DEMOLE O ESTÁBULO DE JONES
QUARTA-FEIRA O CLUBE DAS MÃES DA ESCOLA SUPERIOR PROMOVE PIQUENIQUE
Inicialmente uma cidade de fronteira, Willow Corners se desenvolveu com a chegada da estrada de ferro. Na época em que Sybil morava lá a cidade constituía principalmente uma comunidade de fazendeiros que se dedicavam ao plantio de trigo. O centro da cidade, na Main Street, tinha um armazém geral, uma loja de ferragens, um pequeno hotel, barbearia, farmácia, o banco e o correio. Willow Corners possuía excepcionalmente uma loja de armas que remontava ainda aos tempos da fronteira, e dois pequenos silos, os quais manobravam sua vida econômica. As lojas eram abertas nas quartas e sábados à noite, quando os pais iam fazer as compras juntamente com os filhos, fazendo um verdadeiro ritual festivo. Era nessas oportunidades que se tomava conhecimento das novidades que havia na cidade e se batia papo a valer.
Dois policiais, um trabalhando de dia e outro de noite, guardavam a cidade. Havia um advogado, um dentista e um médico. Uma ambulância estava sempre pronta a levar o doente para a já mundialmente famosa Mayo Clinic, em Rochester, Minnesota, a cerca de cento e dez quilômetros de distância.
Sendo um pedacinho da América média, a política doméstica era republicana, isolacionista em assuntos de relações internacionais e estratificada numa estrutura de castas, que numa extremidade do espectro incluía a elite endinheirada e, na outra, a classe trabalhadora. Confundindo dinheiro com virtude, o povo da cidade tinha propensão a venerar os ricos, não importando como tais riquezas haviam sido adquiridas ou como eles se comportavam — em que pesem os esforços mais bem intencionados das boas senhoras do Willow Corners Reading Club, Willow Music Club e da Chorai Society of Willow County em levar cultura à cidade.
Antes do nascimento de Sybil, e até que ela chegasse aos seis anos, o homem mais rico da cidade era seu pai. Aquela riqueza, ele a perdeu nos tempos da Grande Depressão, quando teve sérios reveses. A partir de 1929, quando Sybil estava com seis anos de idade, e até 1941, quando tinha dezoito anos e saiu da cidade para ir ao colégio, as pessoas ricas eram os fazendeiros alemães e escandinavos, os Stickney, que eram donos do banco local, e Mrs. Vale, uma senhora inculta e vulgar que, por meio de casamentos com seis maridos sucessivos, conseguira adquirir uma propriedade na cidade e uma mina de prata no Colorado.
Conforme qualquer sociólogo poderia adivinhar, Willow Corners tinha igrejas de muitos credos. O grupo dos fundamentalistas era oriundo dos Batistas do Sétimo Dia, que haviam fundado a primeira igreja da cidade, e se estendiam até os Adventistas do Sétimo Dia. Havia a Igreja de São João Batista de la Salle e a Igreja da Assembléia de Deus. Os metodistas, os congregacionalistas e os luteranos olhavam-se com desconfiança e todos olhavam os católicos romanos com desdém, considerando-os como a encarnação do mal.
O fanatismo era desenfreado, e embora se orgulhasse de sua maneira de falar, a cidade muitas vezes era cruel em seu modo de agir. Zombavam impiedosamente do vendedor de sorvetes, que era mentalmente retardado, e riam silenciosamente da telefonista, que tinha um tique nervoso. Intenso também o preconceito contra os judeus, de que havia alguns em Willow Corners, e contra os pretos, que aliás não existiam por lá.
Nos acontecimentos do dia-a-dia não se tomava nenhuma providência contra o fanatismo e a crueldade e, procedendo irrefletidamente, as pessoas iam dormir no mar de rosas de um otimismo fácil e impensado.
Na Vine Street, que ficava na esquina fronteiriça às escolas, erguia-se a casa dos Dorsett, a mesma que já aparecera nas sessões de análise: a casa branca de venezianas pretas. Podia-se interpretar o preto e o branco como os extremos da vida ou como vida e morte, mas não era este o simbolismo que Willard Dorsett entendia, ele que fora o construtor da casa. O que Dorsett tivera em mente eram gramados espaçosos, um embasamento acima do rés-do-chão, uma garagem e uma pequena construção anexa que servia como sua carpintaria e escritório. Frondosos pés de ácer sombreavam a frente da casa. Na parte traseira havia um passeio de cimento que levava a uma rua estreita que por sua vez ia dar nos fundos das lojas da Main Street. Os degraus da cozinha dos Dorsett iam dar no passeio de cimento.
— E também ninguém ligaria muito ao fato de que o vizinho ao lado dos Dorsett era um anacoreta; que a mulher do outro lado da rua, uma anã, e que o homem que morava no fim da rua era o raptor de sua irmã de treze anos que depois do rapto passou a viver imediatamente sob o mesmo teto com ele, como se nada tivesse acontecido. Tudo isto fazia parte da curiosa deformidade e indecência que acabou resultando naquela variedade de filhos ilegítimos que se espalhavam sub-repticiamente pela cidade, exteriormente tão equilibrada, tão normal, tão puritana. A casa dos Dorsett tinha suas particularidades inconfundíveis — talvez invisíveis à primeira vista, muitas vezes subestimadas, mas difusas e penetrantes. Inquirida a respeito da família Dorsett, Mrs. Moore, professora de piano de Sybil, informou que Sybil era uma criatura taciturna e que tanto a mãe como a filha tinham problemas emocionais. Um primo afastado de Willard Dorsett caracterizou o pai e a filha como "calmos" e a mãe como uma pessoa alegre, dada a piadas, com muitas saídas espirituosas, mas também "nervosa". Esse mesmo observador falou também do excesso de agarramento entre mãe e filha, que sempre eram vistas juntas. Um de seus professores prediletos lembrava que "a mãe tinha Sybil sempre grudada nas saias".
Jessie Flood, que trabalhou durante seis anos como empregada na casa dos Dorsett, limitou-se a dizer que "eram as criaturas mais maravilhosas do mundo. Mrs. Dorsett era muito boa para mim e minha família, e ela nos dava tudo — todo tipo de coisas. Nunca vi gente mais gentil do que os Dorsett".
James Flood, pai de Jessie, que trabalhou na carpintaria de Willard Dorsett, observou que "Dorsett era o melhor patrão do mundo".
—Willard Dorsett nascera em Willow Corners em 1883 e descendia dos primeiros colonizadores, como aliás a maioria dos habitantes da cidade. Em 1910 levou para sua casa como esposa a que antes se chamava Henrietta Anderson.
Os Dorsett e os Anderson eram de linhagem e tradição idênticas. Pelo lado paterno Hattie era neta de Charles, um pastor inglês que com seu irmão Carl, um mestre-escola, emigrara de Devon, na Inglaterra, para a Virgínia com uma autorização de Lorde Baltimore. Pelo lado materno Hattie se sentia ainda mais ligada à Inglaterra. Sua mãe Aileen era filha de pais nascidos na Inglaterra que haviam deixado sua cidade natal, Southampton, para fixar residência na Pensilvânia. Aubrey Dorsett, pai de Willard, era neto de um inglês que fora para a Pensilvânia procedente de Cornwall; e Mary Dorsett, a mãe de Willard, nascera no Canadá mas descendia de uma família inglesa que antes de se fixar no Canadá fora para a Holanda, a fim de fugir à perseguição religiosa.
Willard e Hattie se encontraram casualmente quando ele estava fazendo uma visita a Elderville, Illinois, a cidade de que Winston Anderson, pai de Hattie, fora um dos fundadores e primeiro prefeito. Winston Anderson foi morar em Elderville depois de lutar nas forças de cavalaria da União na Guerra Civil. Casara-se com a idade de dezessete anos, fazendo-se passar por maior de idade. Nos últimos anos negociava com uma loja de instrumentos musicais, na cidade de Elderville, dirigia o coro da igreja metodista e fora eleito novamente prefeito.
Já no seu primeiro encontro a vistosa e animada Hattie deixou Willard Dorsett numa situação embaraçosa. Iam eles passeando pela Main Street de Elderville quando Hattie de repente parou e fez um discurso de improviso a favor do seu pai, que estava concorrendo à reeleição como prefeito. Willard ficou embasbacado e feito um pa^ teta, em pé na calçada.
Mas enquanto outros homens que Hattie havia conquistado com sua boa aparência, sagacidade e vivacidade, romperam relações com ela por causa de sua língua ferina e de suas excentricidades, Willard não fez o mesmo. Ele estava disposto a "embarcar" com ela, conforme expressão usada por ele, porque a julgava uma pessoa intelectual e "refinada" e uma pianista de talento. Tenor no coro da igreja, ele já imaginava Hattie Anderson como sua futura acompanhante. Segundo o espírito das panacéias fáceis de Willow Corners, ele achava que à medida que fosse ficando mais velha Hattie iria mudando seu comportamento, muitas vezes extravagante. Quando se casaram ela estava com vinte e sete anos de idade e o que ele entendia por "ficar mais velha" era algo obscuro. Fosse como fosse, apaixonara-se por Hattie Anderson e, depois de passar um certo número de fins de semana em Elderville, acabou por pedi-la em casamento.
Hattie não gostava de Willard e não fazia nenhum segredo disso. Seu encontro fortuito tinha sido um ato calculado de provocação contra o joalheiro de quem era noiva, mas que não quis prometer que abandonaria o alcoolismo. Ademais, Hattie dizia que todos os homens são iguais e que não merecem confiança (um sentimento que Peggy Lou repetiu no consultório da Dra. Wilbur) e que só têm maldades na cabeça.
No entanto, a idéia de viver em Wisconsin atraía Hattie, que nunca havia saído do seu Illinois natal. Ir viver em outro Estado foi a razão que deu para mudar, em 1910, para Willow Corners como esposa de Willard Dorsett.
Com o tempo, Hattie chegou a ter uma opinião muito boa sobre Willard e mesmo a sentir certo afeto por ele. Ele era bom com ela, e ela procurava corresponder. Cozinhava seus pratos favoritos, procurava receitas para boas tortas e bolos, e sempre lhe servia a comida pontualmente: o almoço exatamente ao meio-dia, o jantar às seis em ponto. Embora não fosse propriamente uma amante do trabalho doméstico, transformou-se numa frenética e fanática* dona-de-casa. Nos primeiros dias do casamento, Hattie e Willard passaram longos e agradáveis serões musicais. Logo ela se tornou a companheira com que ele havia sonhado.
Nos primeiros treze anos de casamento Hattie tivera quatro abortos sem conseguir ter nenhum filho. Tanto Willard como Hattie começaram a pensar que não iriam mais ter filhos. Ela gostava de cuidar das crianças de outras pessoas e em pelo menos uma ocasião brincou com a mãe de uma criança recém-nascida, falando em "roubar a criancinha". Mas, quando se externava que queria com urgência ter um filho próprio, logo de imediato expressava sentimentos contrários. A perspectiva de ter que cuidar de uma criança constantemente a tornava contrária à maternidade.
Mais tarde a Dra. Wilbur andou investigando sobre se o aparecimento de poderosas emoções conflitantes não teriam transtornado o sistema hormonal de Hattie e se tornado um componente psicossomático dos abortos. Seja como for, quando Sybil foi concebida, Willard temia que também aquela criança não chegasse a nascer. Por isso passou a exercer sobre Hattie um domínio que nunca exercera anteriormente, proibindo-a de aparecer em público durante a gestação. Dessa maneira o sigilo e o segredo cercaram Sybil desde o útero.
Quando nasceu, Sybil pesava dois quilos e meio. Willard se encarregou de escolher o nome da filha e Hattie, que não gostou do nome de Sybil Isabel, decidiu usar esse nome só quando absolutamente necessário. Caso contrário, Hattie chamava-a de Peggy Louisiana, que mais tarde abreviou para Peggy Lou, Peggy Ann ou simplesmente Peggy.
Mas havia algo mais que perturbava Hattie nos primeiros meses de vida da criança. A antiga ambivalência sobre ser mãe voltou a assediá-la. Assim é que Hattie observou sombriamente, quando viu a criança pela primeira vez:
— É tão frágil! Temo que não agüente.
Na realidade, quem não "agüentou" foi a própria Hattie. Depois de dar à luz, uma profunda depressão tomou conta dela e durou os primeiros quatro meses da vida de Sybil. Nesse período o único contato que Hattie tinha com a criança era quando lhe dava de mamar.
Afora isso o cuidado da criança ficava a cargo de uma enfermeira, do pai, Willard, e, principalmente, da avó Dorsett.
Quando Hattie se recuperou o suficiente para tomar conta das coisas, teve uma altercação com Willard a respeito da amamentação da criança quando havia estranhos na casa. Embora Hattie quisesse levar Sybil para o quarto de dormir e fechar a porta, Willard fazia a séria imposição:
— Não. Todo mundo acaba sabendo o que você faz. Hattie fez ver que as outras mulheres — as senhoras nos bancos do fundo da igreja, as senhoras das fazendas que vinham à cidade em suas carroças e muitas vezes almoçavam com os Dorsett — davam de mamar aos seus filhos não só quando outras pessoas estavam por perto, mas também na própria presença de outras pessoas — o que aliás Hattie não estava se propondo fazer. Mas Willard. bancou o durão, lembrando a Hattie que ela não era uma mulher de fazenda.
Hattie se conformou, mas a contragosto. Sybil, desnutrida, chorava. Hattie, por sua vez, também reclamava dos choros da criança, que a deixavam nervosa. E era o nervoso que este choro produzia em Hattie — mais do que qualquer outro efeito contrário que a falta de alimentação poderia ter sobre a criança, e mesmo mais do que o ressentimento de ser controlada por Willard — o que a fazia berrar:
— Vocês acabam com o meu juízo.
Esta era uma das expressões prediletas de sua frustração crônica.
A depressão que se seguiu ao nascimento de Sybil intensificou o nervosismo e a ansiedade que sempre foram as características de Hattie Dorsett. À medida em que os dias se passavam Hattie cada vez menos se preocupava em ser agradável a Willard.
— Dane-se! Não me casei para ser empregada -— jogava-lhe ela no rosto, quase que cuspindo, quando ele se queixava de uma omissão nos cuidados dela para com ele. Também não teve mais paciência para acompanhá-lo ao piano.
Aos oito anos, Sybil muitas vezes sentava-se nos degraus da varanda dos fundos ou no baú que havia no sótão, ou então na arca que havia na sala da frente, e, curvando a cabeça sobre os joelhos, se perguntava por que diabo sentia ela. . . — incapaz de encontrar a palavra certa, ela sentia "falta de alguma coisa". Mas por que devia estar faltando alguma coisa, pensava ela, se vivia numa das melhores casas de Willow Corners e tinha roupas mais bonitas e mais brinquedos que qualquer outra criança da cidade? Ela se distraía sobretudo com suas bonecas, seus lápis de cor e pinturas e com sua pequena tábua e ferro de passar roupas.
Quanto mais urgentemente tentava definir essa carência tanto mais evasiva esta se tornava. O que ela sabia é que alguma coisa de indefinível que lhe faltava a fazia sentir-se, conforme sua mãe dizia, "triste, abatida e sorumbática". O que mais perturbava Sybil era o pensamento de que não tinha razão alguma para se sentir infeliz e que, agindo e sentindo-se dessa maneira, ela estava traindo seus próprios pais. Para amenizar os sentimentos de culpa pedia perdão através de três auto-acusações: por não ser mais grata por tudo o que tinha; por não ser feliz, conforme sua mãe julgava, que devia ser; e por aquilo que sua mãe chamava de "não ser igual às outras crianças".
Desconsolada e torturada, às vezes Sybil saía correndo dos degraus da varanda da frente, do sótão ou da sala da frente, e ia ao andar superior da casa, onde vovó Dorsett morava.
O lugar da avó na vida de Sybil constituía um fator importante; afinal de contas, fora a avó e não a mãe quem cuidara de Sybil quando criança. Ademais, enquanto a mãe era frívola, nervosinha e ambivalente, a avó era equilibrada e constante. E do santuário que era a casa da vovó ela tinha muitas recordações — as lembranças de pequenas experiências que emergiram como que envoltas em bruma na retrospectiva feita no consultório da Dra. Wilbur.
A vovó tomava Sybil em seu colo e, sentada ali, a criança fazia desenhos no papel que para isso a vovó lhe dava. Toda orgulhosa pelos desenhos que Sybil fazia, a vovó pendurava-os todos na parede ao lado dos quadros a óleo que ela mesma tinha feito havia muitos anos atrás. A avó, que tinha muitos potes de ameixas secas, damascos e figos, levava Sybil ao guarda-louça da cozinha e deixava que ela escolhesse o que quisesse. A vovó a deixava abrir as gavetas e dobrar o que quisesse dobrar. Um dia, Sybil encontrou uma fotografia sua de quando era criança numa das gavetas. Quando ela viu aquela fotografia tão bem guardada percebeu que a vovó realmente gostava dela. E havia até maior prova disto quando a vovó vinha em defesa de Sybil, que era acusada por Hattie de ser uma criança má:
— Mas, também, Hattie, você deve ver que ela é uma criança — dizia a avó. E Sybil lembrou-se também dos tempos em que havia estado doente. Quando finalmente a vovó desceu para ficar com ela, Sybil de repente passou a comer, o que não conseguia fazer antes. Ademais, quando a vovó ria para ela era uma coisa linda; não lhe causava mal de modo algum.
Todavia, as visitas que fazia à vovó lá em cima nunca eram prolongadas. A sua mãe só lhe permitia que ficasse lá aquele mísero tempo medido e contado, e ela nem tinha tempo de lá chegar e o prazo já estava esgotado.
Mas quando o avô chegava a casa era a própria Sybil que se apressava em encerrar a visita, porque não gostava dele. Era um sujeito grande, corpulento, dado a brincadeiras estúpidas. Quando ela ouvia o som de sua perna de pau nos degraus da escada, o que anunciava a sua aproximação, aquilo fazia Sybil dizer à avó:
— Agora tenho que ir.
Em troca a avó sorria, compreendendo perfeitamente a situação.
Quando Sybil tinha quatro anos de idade a avó teve um derrame, e em conseqüência às vezes ficava meio afetada da cabeça. Ficava perambulando por Willow Corners, sem saber por onde andava. Sybil se encarregava de achar a avó e levá-la para casa, protegendo-a até que ela se recuperasse.
Depois de seu restabelecimento a avó Dorsett ficou cuidando de Sybil durante cinco anos. Mas quando Sybil estava com nove anos a avó foi atacada por uma nova doença — câncer no útero — que deixou Sybil preocupada e temerosa.
ONTEM FOI NUNCA
No casarão de Willow Corners havia um caixão de defunto que estava prestes a sair. Era quase uma hora da tarde e pela janela da cozinha branca com o linóleo pintado Sybil via os homens da funerária levando para dentro as cadeiras de dobrar para o serviço.
— Vá para o seu quarto — disse-lhe a mãe. — Mamãe vem buscá-la quando estivermos prontos e você poderá descer para o enterro.
Sua mãe lhe deu um pirulito para chupar enquanto esperava. Ela ficou deitada na cama, brincando com o pirulito. Ouvia vozes embaixo, vozes longínquas que nada tinham a ver com ela, de vez que tinha sido afastada delas. Em seguida, por uns instantes, tudo ficou em silêncio.
De repente o seu pai apareceu e disse:
— Venha. O serviço terminou. Você pode ir conosco ao cemitério.
Eles se haviam esquecido dela. Haviam-lhe prometido que poderia descer para a encomendação do corpo, mas não cumpriram a promessa. Tinha nove anos de idade. A encomendação se dera em sua própria casa, mas a deixaram lá em cima, com um estúpido pirulito, como se ela fosse uma criancinha. Ela não podia, não haveria de perdoar a atitude dos pais.
Vestiu rapidamente o casaco e o cachecol de lã escocesa e lá se foi escada abaixo, passou por todo mundo, calada e sem fazer o mínimo sinal, dirigindo-se para a calçada.
— Sybil, você vem neste carro — disse o ministro. Dentro do carro estava seu tio Roger com a esposa, outra Hattie, de quem não gostava. Seu tio e seu pai eram tão parecidos, que o ministro chegou a colocá-la com o pai errado. Ela não gostou nada daquilo.
Também a perturbava o fato que se tratasse de sua avó e que ela fosse a única pessoa que seu pai e sua mãe, tão preocupados com aquela gente, estavam esquecendo, deixando de lado. Não era justo. As lágrimas, frias como gelo, ficaram trancadas em seu íntimo. Ela nunca chorava.
O carro parou e a pé se encaminharam para o jazigo da família Dorsett, que ficava num cemitério da aldeia onde seu avô nascera. Ele fora o primeiro homem branco a nascer no condado.
Enquanto ia andando, Sybil pensava na morte. Na igreja lhe haviam dito que a morte é um começo; mas ela não conseguia entender isso. Sua avó lhe dissera que um dia Jesus viria para tirar da sepultura aqueles que o amavam. Então ela e Sybil, foi o que a avó lhe havia dito, se uniriam para sempre na terra renovada.
O tio Roger e a tia Hattie levaram Sybil para o local em que se achava a família: mamãe e papai, tia Clara e seu marido, Anita e Ella (de dois anos de idade), e, naturalmente, o avô. Juntos permaneceram em pé a uns três metros da sepultura da vovó, silenciosos debaixo do céu nublado de Wisconsin. Era um dia ventoso e frio de abril.
O caixão de metal cinzento, todo recoberto de flores, fora colocado perto da sepultura. O ministro estava em pé ao lado dele.
— E vi um novo céu — começou a dizer —, e uma nova terra. . . E eu, João, vi a cidade sagrada, a nova Jerusalém, baixando de Deus e do céu, preparada como uma noiva para seu esposo. . . e não haverá mais morte, ou tristeza, ou pranto, como não haverá mais dor. . . E o que estava sentado no trono disse: "Vede, faço todas as coisas voltarem a ser novas".
Sybil não via o caixão de metal, as flores ou a gente que ali estava; o que ela via era Mary, a sua vovó canadense casada com um natural de Willow Corners que vivia em sua cidade. Estranha ao seu povo e à sua igreja, Mary tinha sido obrigada a obedecer às ordens do marido. Ela gostava de ler, mas ele impedira-a com a imposição:
— Exceto a verdade, tudo é falso. — Somente os escritos religiosos são verdadeiros, pensava ele.
Sybil via sua avó em suas saias compridas e sapatos altos, cabelos brancos, os pequeninos olhos azuis, e o sorriso acolhedor e amável.
O que Sybil ouvia não eram as palavras do ministro, mas a voz meiga de sua vovó que dizia "deixe estar, Hattie" quando a mãe a repreendia porque pulava na cama da vovó.
A cama enorme da avó era alta e macia. Sybil pulava nela até se acabar. A avó a puxava para si e chamava: "Sybil, Sybil, Sybil". Quando estava com sua vovó, não havia berreiros e gritos. Esquecia-se de sua casa, logo ali embaixo, que parecia distante milhares de léguas.
Sybil mostrava seus desenhos à vovó. Ela dizia "formidável" e pendurava-os na parede. A vovó tinha um baú grande perto da janela onde havia um monte de revistas e jornais, com todas as páginas próprias para crianças, que ela conservara justamente para Sybil. E ela deixava que Sybil se divertisse desenhando e depois demonstrava que gostava realmente daquilo que Sybil fazia.
A avó deixava que Sybil pusesse a mesa, e nunca dizia que estava tudo errado. Se Sybil fazia alguma coisa errada, sua avó não se zangava. Sybil lhe contava uma infinidade de coisas e pedia encarecidamente: "A senhora não vai dizer nada à mamãe, não é?" E então ela a tranqüilizava: "Eu nunca digo nada daquilo que você me conta a Hattie". E não contava mesmo.
Havia flores nos bosques por onde Sybil havia caminhado com sua avó, dirigindo-se ao rio, mas agora o oficiante estava dizendo:
— Pois Deus todo-poderoso quis permitir que nossa irmã, Mary Dorsett, caísse adormecida, pelo que ternamente entregamos seu corpo à terra. . .
Adormecida. Sua avó estava adormecida. Não voltariam a caminhar até o rio. Apenas haveria ali as flores. . . as flores apenas, sem sua avó, e também sem Sybil.
— ... a terra à terra, as cinzas às cinzas, o pó ao pó, na esperança de sua alegre ressurreição por intermédio de Jesus Cristo, Nosso Senhor.
O vento uivava sobre o pai de Sybil e seu tio Roger, que permaneciam em doloroso silêncio, sobre a tia Clara, que torcia as mãos e gemia histericamente, sobre aquelas crianças grandes que haviam ficado sem mãe. Uivava sobre o suave gemido de seu avô. Unicamente Sybil, com a garganta apertada, e sentindo um peso no coração, enquanto seus dedos adormeciam e ela percebia um formigamento neles, permanecia com os olhos secos.
O vento era frio. A sensação era de azul gelado com pontos marrons. Qualquer coisa que seja fria não é amor.
O amor é quente. O amor é a avó. O amor está sendo entregue à terra.
O brilho do caixão de metal sob um raio de sol momentaneamente substituiu a cor cinzenta do dia. O caixão estava sendo seguro pelas mãos dos homens que tinham vindo para fazer uma coisa terrível. Haviam levantado o caixão e começavam a baixá-lo. Polegada por polegada, momento após momento, estavam empurrando sua avó cada vez mais fundo para dentro da terra. Eles estavam enterrando aquela que era a personificação do amor.
Agora todos estavam chorando, mas os olhos de Sybil estavam secos como o mundo estéril que se estendia diante dela, um mundo em que ninguém dizia "Sybil, Sybil", um mundo sem ninguém que prestasse atenção quando ela falava, um mundo sem amor.
Impelida por sentimentos poderosos, eletrizada, Sybil percebeu que se movimentava para a frente. No começo foram um ou dois passos lentos, depois mais passos, passos mais ligeiros em direção aos montes de flores em cima do caixão baixado na terra. Estava ela à beira da sepultura, com o seu corpo em posição de pular para dentro a fim de se unir para sempre à sua vovó.
Repentinamente surgiu aquela mão que a agarrou com um movimento forte e rápido. A mão puxava-a, afastava-a da sepultura, para longe de sua avó.
O vento uivava. O céu se toldava. Não havia mais nada.
Aquela mão com sua força opressora continuava a puxá-la, cravando-se em suas carnes. O braço de Sybil doía com a irritação produzida pelo movimento violento e brusco.
Sybil virou-se para ver quem a tinha afastado tão violentamente de sua avó. Seria seu tio Roger? Seu pai? Mas eles não estavam ali.
Não havia nenhuma sepultura. Não havia montões de flores. Nada de vento. Nada de céu. Papai e mamãe, o tio. Roger e a tia Hattie, a tia Clara e o velho senhor ricaço com quem ela se casara, o ministro, enfim, todos os demais não estavam mais ali.
Ao invés de uma sepultura havia uma mesinha. Os montões de flores eram quadros-negros. Em lugar do céu havia um teto. Ao invés de um ministro havia uma professora.
A professora, que falava rápido em frases curtas e nervosas, era alta e magra. Não era a professora de Sybil. Miss Thurston, sua professora, falava devagar e pausada-mente, e era corpulenta e de média estatura. A professora do terceiro grau era Miss Thurston. Esta devia ser Miss Thurston, mas era Miss Henderson. Sybil conhecia Miss Henderson como a professora da turma do quinto grau.
O que havia acontecido? perguntava-se. Não era sonho. A sala, uma classe como as outras da escola a que ela ia desde o jardim de infância, parecia normal, com todas as quatro paredes. Mas não era a suã classe. As janelas davam para leste e não para oeste, como na classe do terceiro grau. Sybil conhecia todas as salas da escola, e esta, ela sabia, era a do quinto grau.
De alguma maneira ela entrara na classe do quinto grau. Cometera alguma coisa de errado, uma coisa terrível. Tinha que sair dali, tinha que voltar ao terceiro grau a que pertencia, onde Miss Thurston certamente tinha notado sua ausência. Tinha que pedir desculpas a Miss Henderson por estar ali, e pedir desculpas a Miss Thurston por não estar lá. Mas que explicação iria dar?
Em seguida começou a reparar nas outras crianças. Lá estava Betsy Bush, postada na passagem, Henry von Hoffman em frente a ela, Stanley, Stuart, Jim e Carolyn Schultz e todos os demais. Pois bem, pensou ela, todos os do terceiro grau estão presentes.
A maioria daquelas crianças começara com ela no jardim de infância, e ela as conhecia muito bem. Eram todas as mesmas crianças, embora não parecessem as mesmas que vira da última vez. Vestiam roupas diferentes de quando estavam no terceiro grau. Pareciam maiores do que haviam sido anteriormente, antes de ela sair para o enterro de sua avó. Como podia ser isso? Como é que todas essas crianças podiam ficar maiores de um momento para outro?
Segura e confiante como sempre, Betsy Bush estava levantando a mão, como costumava fazer para responder à pergunta da professora. Agia como se pertencesse a essa classe, o que faziam também todas as outras crianças. Nenhuma delas parecia estar julgando que houvesse alguma coisa de errado por estarem ali.
Sybil olhou primeiramente para a página do caderno aberto em cima de sua mesinha. Pensou em concentrar-se naquilo que estava escrito na página e esquecer todas as bobagens, mas não conseguia fazê-lo porque a página não lhe fazia nenhum sentido e em seu presente estado de espírito o caderno só servia para lhe incutir mais terror. Havia trabalhos de casa já feitos que ela não havia feito, mas percebeu que o trabalho de casa levava constantemente a nota dez.
Tentou a todo custo fechar os olhos para esta professora que não era a sua, para esta sala de aulas com as janelas do lado errado, para estas crianças, desenvolvidas além de seu tamanho normal e trajando roupas esquisitas que nunca tinham vestido antes. A coisa não fazia sentido.
Sybil sentiu-se estranhamente compelida a examinar-se a si mesma. Suas roupas seriam diferentes? Teria ela também crescido? Seus olhos desceram até seu vestido. Era de voile amarelo com bordados verdes e púrpura, totalmente desconhecido, como as roupas daquelas outras crianças. Ela não o possuía, e nem se lembrava que sua mãe o tivesse comprado para ela, nem de tê-lo vestido antes e nem que o vestira esta manhã. Estava trajando um vestido que não lhe pertencia numa sala de aula que também não era a dela.
Parecia que ninguém se apercebia que algo de inusitado estava acontecendo. As crianças da terceira série continuavam a responder a perguntas que ela nunca tinha estudado. Já não entendia mais nada.
Olhou para o relógio em cima da mesinha da professora. Faltavam dois minutos para as doze horas e dentro em pouco estaria salva pelo toque da campainha. Enquanto esperava ficou tomada de pânico. Em seguida a campainha tocou e ela ouviu a voz alta e nervosa da professora dizendo "a aula terminou".
Sybil resolveu ficar quieta. Estava com medo de se mexer, com medo de ir para casa. As crianças, porém, se precipitaram aos empurrões para o saguão, gritando e rindo. Os garotos abriam caminho entre as meninas dando cotoveladas.
Sybil as via saírem rapidamente. Estava certa de que elas deviam ter agarrado seus casacos, aos trancos e barrancos, desordenadamente, sem nenhuma aparência de ordem. As crianças agiam de maneira desconcertante e assustadora.
Se antes estava num estado de espírito tenso, muito mais ficou agora ao ver aquilo que as crianças faziam. Miss Thurston sabia manter a ordem e toda aquela bagunça não podia ter-se dado em sua sala de aula. É bem verdade que Sybil ouvira sempre dizer que Miss Henderson não conseguia manter ordem em sua aula. Afinal de contas, pela maneira como as crianças agiam esta só podia ser a sala de aula de Miss Henderson.
Tudo estava se agitando e correndo em sua mente numa velocidade tal que ela não podia coordenar as coisas e nem agir no sentido de ir para casa. Quando levantou os olhos a sala estava deserta. Certa de que as outras crianças tinham ido embora, levantou-se lentamente e foi ainda mais devagar pegar seu casaco.
Quando chegou lá, constatou que não estava sozinha. Lá estava Miss Henderson vestindo o casaco. Era muito tarde para ir embora.
O saguão era exatamente igual àquele do terceiro grau, exceto por se achar no lado oposto do edifício. Todas as salas de aula e os saguões eram iguais. Quanto a este, nada havia de desconhecido.
Havia apenas um casaco ainda pendurado, que nunca tinha visto antes. Aproximou-se e examinou-o. Procurou por uma etiqueta com nome para ver a quem é que pertencia. Miss Thurston sempre pedira que as crianças escrevessem seus nomes em dois pedaços de fita, sendo que um era para o casaco, e o outro para ser colocado debaixo do gancho de pendurar. Não havia nenhum nome no casaco nem no gancho. Miss Henderson estava pronta para sair.
— Sybil, por que não veste o seu casaco? — perguntou. — O que está havendo? Você não vai para casa almoçar?
Ao invés de responder Sybil simplesmente continuou a olhar fixamente para o casaco desconhecido, imaginando que não era nenhuma surpresa que Miss Henderson lhe soubesse o nome. Na pequenina cidade de Willow Corners todo mundo se conhecia. Miss Henderson repetiu:
— Você não vai para casa almoçar? — Em seguida Sybil finalmente vestiu o casaco, sob o olhar de Miss Henderson. Miss Henderson saiu, mas Sybil permaneceu até se certificar de que a professora estava bastante à frente, de modo que não se encontrariam na escada.
Sybil saiu lentamente do velho edifício de tijolos vermelhos da escola. Na esquina do outro lado da rua estava o casarão com venezianas pretas, a sua casa. Antes de atravessar a rua olhou para ver se alguém estaria se aproximando. E, certa de que ninguém a estava olhando, atravessou a rua.
A cachorrinha Top estava esperando nos degraus da frente e lhe deu as boas-vindas com seu latido. Antes de entrar para dentro de casa lhe deu um ligeiro abraço no pescoço. Queria estar dentro de casa, na presença de coisas familiares, e estava ansiosa por ver desvanecer-se a confusão daquela manhã na escola.
Mas quando chegou no vestíbulo aquele seu desejo intenso de encontrar tranqüilidade se desfez abruptamente. Quando pendurou o seu casaco de lã escocesa no vestíbulo, nenhuma das roupas de que tinha lembrança se achava lá. Roupas vermelhas, verdes e amarelas que lhe eram desconhecidas começaram a pular para fora e jogar-se em cima dela. Virando-se abruptamente, saiu do quartinho, dirigiu-se para o quarto de dormir de baixo, onde seus avós haviam morado durante a última doença da avó. A porta sobressalente para o quarto estava pregada; era estranho que tivessem feito aquilo tão depressa. Na sala de estar encontrou alguns dos móveis de sua avó junto com os deles. Como tinham redistribuído as coisas rapidamente! E o que estava vendo ali na frente? Um rádio! Seus pais haviam relutado em comprar um rádio porque seu avô dizia que aquilo era o trabalho do Demônio.
A mãe chamou da cozinha:
— É você, Peggy? Você está tão atrasada!
Lá vinha de novo aquele apelido. Sua mãe, que não gostava do nome Sybil, pusera-lhe o nome de Peggy Louisiana. Quando ela estava simpática e engraçadinha, daquele jeito que sua mãe gostava de vê-la, então a chamava pelo nome de Peggy Louisiana, Peggy Lou, Peggy Ann ou simplesmente Peggy. Era evidente que a mãe estava gostando dela, hoje.
Com espanto Sybil notou que a cozinha estava pintada de uma cor verde clara. A última vez que a vira era branca.
— Eu gostava da cozinha branca — disse Sybil. Sua mãe respondeu:
— Fizemos isso no ano passado.
O ano passado? ficou Sybil pensando.
Seu pai estava na sala, lendo uma revista sobre arquitetura enquanto esperava o almoço. Sybil entrou para falar com ele. A sala de jogos dela ficava ali e as suas bonecas estavam colocadas no parapeito da janela. As bonecas continuavam ali como sempre tinham estado, mas havia mais bonecas do que antes. De onde é que viera aquela boneca enorme, linda, de cabelos louros e rosto claro, e com aqueles dentes brilhantes?
Seu pai despregou os olhos da revista e disse, quando notou pela primeira vez a sua presença:
— Sybil, você não está atrasada?
— Papai — falou ela impensadamente —, que boneca é aquela, a grande?
— Você está brincando? — respondeu ele. — É Nancy Jean. Você a ganhou num concurso. Ficou doida por ter uma assim.
Sybil não disse nada.
Na mesa da sala de jantar havia quatro lugares ao invés de três. O que estava fazendo o quarto lugar ali, se não parecia haver nenhuma outra pessoa? Mas desta vez ela não queria fazer nenhuma pergunta. É que já ficara toda confusa com o caso da boneca Nancy Jean.
Ouviu-se o bater de uma perna de madeira, o barulho que sempre a levara a encerrar suas visitas à avó, aquela pancada que sempre lhe metera medo. Era seu avô, com seu metro e noventa de altura, com aquele seu cavanhaque, careca. O que estava ele fazendo aqui? Por que se sentara à sua mesa? Os aposentos dos seus avós, morassem embaixo ou em cima, eram sempre separados dos seus. Cada família comia em separado e nenhuma se intrometia no que era da competência da outra. Esta era a norma de sua avó. Mas sua avó já estava morta. Sim, recentemente enterrada, e a norma já quebrada.
Seu pai fez as orações e sua mãe passou a comida. As batatas fritas passaram duas vezes. Algumas sobraram. Seu pai apanhou o prato e disse ao pai:
— Papai, quer mais algumas batatas? Sua mãe observou:
— Já rodou duas vezes.
— Ele a ouvirá — disse seu pai com uma expressão condoída.
— Ele a ouvirá — arremedou a sua mãe. — Ele não ouvirá, porque é surdo como uma porta e você sabe muito bem disto.
De fato, o avô não tinha ouvido nada. Continuava a falar horrivelmente alto, aquela mesma conversa a respeito do Armageddon, uma das últimas batalhas que se travariam na Terra antes do fim do mundo. Ele falava de Alfa e Ômega, do começo e do fim. Falava das últimas sete pragas, da guerra que acabaria havendo com a China e de como os Estados Unidos se uniriam à Rússia para enfrentar a China. Falava na conquista do poder pelos católicos, e em como num dia terrível haveria um presidente católico.
— Jamais haverá um presidente católico — contestou Hattie.
— Tome nota do que estou lhe dizendo — observou o avô de Sybil —, verá o que vai se dar. Esses romanos acabam governando o mundo inteiro, se não tomarmos cuidado. Esses romanos vão acabar transtornando a nossa vida até o fim dos tempos.
Sua mãe mudou de assunto.
— Willard — disse ela —, hoje recebi uma carta de Anita.
— E o que é que ela escreve? — perguntou o pai que, em seguida, se voltou para Sybil, fazendo a seguinte observação:
— Jamais me esquecerei da gentileza que você teve em tirar de nossa responsabilidade o cuidado da pequena Ella de Anita naquelas poucas semanas depois do enterro de sua avó, quando eles estavam morando aqui.
As semanas depois do enterro? Cuidar de Ella? Do que ele estava falando? Ora, ela não tinha feito absolutamente nada com Ella. E tampouco sabia alguma coisa sobre as semanas depois do enterro. Realmente, estava ficando confusa. Quando é que o enterro se dera? Não tinha acabado de se realizar?
Em seguida Sybil encarou diretamente sua mãe e deu como que um mergulho audacioso, perguntando:
— Mamãe, em que ano estou mesmo, na escola?
— Em que ano estou mesmo? — repetiu a mãe. .—Que pergunta boba!
Eles nada lhe disseram e não compreenderam como era importante para ela certificar-se disso. Não pareciam estar preocupados com a pergunta. E o que lhes diria, se eles se mostrassem preocupados? Mesmo que tentasse, não sabia o que dizer.
Sua mãe virou-se para ela e disse:
— Que está havendo com você? Você está tremendamente quieta. Você hoje está me parecendo tão diferente!
Vendo quão solene sua neta parecia quando a mãe lhe falou aquilo, seu avô proclamou:
— Os cristãos devem sempre ter o sorriso na boca. É pecado não sorrir.
Seu pai se levantou para sair:
— Eu disse a Mrs. Kramer que voltaria à loja por volta de treze e trinta.
O pai de Sybil estava trabalhando numa loja de ferragens desde o tempo em que tinham voltado da fazenda, onde haviam ido morar por pouco tempo como medida de economia, ao perder o dinheiro, no período da Depressão. Sybil e sua mãe haviam voltado antes para a menina entrar no jardim de infância. Depois disto o pai foi trabalhar na loja de ferragens de Mrs. Kramer. Achavam-se novamente em sua antiga casa, com seus avós em seu lugar, em cima. Agora, ao que tudo indicava, seu avô morava com eles. s
Seu avô se levantou para ir para o quarto.
— Anime-se, Sybil — disse ele. — Se você sorrir e se animar, a vida não será tão triste. — E bateu contra o canto da mesa da sala de jantar.
— Ele é tão desajeitado — comentou sua mãe. — Bate contra tudo. Bateu tantas vezes contra a estante perto da porta que o reboco está se lascando todo.
Sybil não disse nada, continuando como estava.
— Não sei o que está havendo com você hoje — comentou sua mãe. — Parece que está no mundo da lua... você está voando. . .
Sybil encaminhou-se para o quartinho. Estava fazendo hora, ao mesmo tempo em que procurava o casaco vermelho de lã que havia procurado no saguão de casacos da escola.
A mãe seguiu-a até o quarto.
— Aliás — disse ela —, gostaria que depois das aulas você desse um pulinho à casa de Mrs. Schwarzbard, porque ela tem um embrulho para mim.
— Quem é Mrs. Schwarzbard? — perguntou Sybil.
— Você sabe muito bem quem é ela — respondeu sua mãe.
Sybil nunca tinha ouvido esse nome, e por isso receava dar muita importância a ele. Limitou-se a olhar atentamente para o quartinho assustador, com todos aqueles casacos desconhecidos, símbolos visíveis dos acontecimentos que a cercaram nesse dia enigmático.
— O que está esperando? — perguntou a mãe. — Miss Henderson vai ficar furiosa com você se chegar atrasada.
Miss Henderson? Então sua mãe sabia que ela freqüentava a aula de Miss Henderson!
— Vista o casaco que você tinha hoje de manhã — disse-lhe a mãe.
Sybil fez o que lhe foi ordenado. Sua mãe não pensou que houvesse alguma coisa de estranho ao fazer aquilo.
Quando Sybil saiu de casa viu Carolyn Schultz e Henry von Hoffman no lado da rua em que ficava a escola. Ela esperou até que eles entrassem. Quando ela entrou no edifício da escola ficou sem saber se iria para a sala da terceira série ou se para aquela da quinta. Sua mãe sabia que Miss Henderson era a sua professora, mas Sybil pensava ainda que estava na terceira série. Tentou primeiro entrar na terceira série.
Miss Thurston estava sentada à mesa, separando os papéis da prova.
— Que prazer! Veio me fazer uma visita? — disse ela quando viu Sybil. — Não imagina como adoro quando minhas alunas voltam.
Voltar? Sybil encaminhou-se então para a sala da quinta série.
A primeira aula era de aritmética. Estavam fazendo frações, mas Sybil não sabia multiplicar além de três e quatro. A última coisa que se lembrava de ter feito era a tabuada do três e do quatro, na primavera, no terceiro grau.
Em seguida passaram a fazer decimais, e Sybil não podia acompanhar a turma. Miss Henderson falou alguma coisa a respeito de multiplicar. A professora apagou o quadro-negro, armou mais problemas de multiplicar, distribuiu os papéis e fez exercícios para a prova do dia seguinte.
Sybil fitava o seu papel branco e depois o quadro negro, em seguida voltara a fixar os olhos no papel. Miss Henderson observava-a; em seguida se aproximou de Sybil e sussurrou em seu ouvido:
— Você não escreveu nada — observou Miss Henderson, irritada. — Agora, faça os exercícios.
Sybil não fez nada, e então a professora, mais irritada do que antes, apontou para o quadro-negro e perguntou:
— Quanto é isto vezes isto?
Sybil simplesmente sacudiu a cabeça.
— Agora, Sybil — continuou a professora —, quanto é isto vezes isto? — As outras crianças riram. Carolyn Schultz soltou uma risadinha silenciosa.
— Sybil — insistiu a professora —, diga-me qual a resposta.
— Não sei. Não sei — respondeu Sybil num tom calmo.
Miss Henderson continuou:
— Como pode ser, se você sempre foi uma das primeiras? Não sei o que houve com você. — A professora estava furiosa. — Senhorita, acho bom você tomar jeito. Ou será que você está querendo brincar comigo?
Não houve nenhuma resposta à pergunta desconcertante e retórica da professora.
Em seguida, completamente perplexa, a professora voltou ao quadro-negro e disse:
— Mas ontem você sabia.
Ontem? Sybil ficou em silêncio. Para ela — estava começando a saber agora — nunca existira o dia de ontem.
Aquela não era uma experiência completamente nova. Também em outras épocas o tempo parecia ter sido apagado para ela, da mesma maneira como Miss Henderson apagara aqueles números do quadro-negro. Mas este tempo parecia mais longo. Mais coisas haviam acontecido que Sybil não compreendia.
Ela nunca mencionara esse sentimento estranho a ninguém. Era um segredo que não ousava revelar a ninguém.
Mas quanto tempo já se passara? Era coisa que ela desconhecia. Estava na quinta série e não se lembrava de ter passado pela quarta. Estavam acontecendo com ela coisas de que não tinha conhecimento e sobre as quais não tinha nenhuma noção.
— Existe alguma coisa que a está perturbando? — perguntou Miss Henderson, que voltara à sua carteira.
— Não, não — respondeu Sybil numa corajosa demonstração de convicção. — Mas eu não consigo fazer o trabalho.
— Mas você o fez ontem — repetiu Miss Henderson, com um tom gélido.
Não havia nenhum ontem. Desde que havia estado no cemitério, Sybil não se lembrava de nada.
O que ela não conseguia entender é que outras pessoas não soubessem que ela não sabia. Miss Henderson continuou falando a respeito do dia anterior como se ela tivesse estado exatamente naquela carteira. Mas ela não estivera lá. Ontem era uma data em branco.
Na hora do recreio as crianças se lançaram desordenadamente pelo pátio de jogos. Garotos e garotas tinham seus times de beisebol e softball. Escolhiam parceiros, mas Sybil ficou sozinha — sem ter sido escolhida por ninguém. Ser deixada de fora era uma nova e terrível experiência. No passado as crianças nunca a deixavam ficar fora de coisa alguma, e não podia entender por que estavam fazendo isso agora.
Quando as aulas acabaram Sybil esperou até que a última criança estivesse totalmente fora de alcance, e então encaminhou-se para a sua casa. Ela não iria à casa de Mrs. Schwarzbard, fosse ela quem fosse, para apanhar o embrulho de sua mãe. Sua mãe ficaria furiosa. Mas nada podia fazer a não ser agüentar a fúria da mãe, como aliás sempre fazia.
No corredor principal da escola, com seu mármore frio e austero, Danny Martin se aproximou de Sybil. Danny era um ano mais velho do que Sybil, e era um amigo e tanto. Quantos bate-papos eles tiveram nos degraus da frente da casa branca com venezianas pretas. Ela se abria com Danny como não fazia com nenhuma outra pessoa. Ele estivera no enterro de sua avó. Talvez valesse a pena perguntar-lhe sobre as coisas que haviam acontecido a partir daquela data. Mas ele iria achar que ela era uma doida, se lhe perguntasse sobre isso. Ela teria que descobrir meios secretos para fazer suas próprias descobertas.
Danny atravessou a rua com ela. Sentaram-se na frente de sua casa e ficaram conversando. No meio da conversa ele comentou:
— Mrs. Engle morreu esta semana. Fui com Elaine levar as flores do enterro para inválidos e presos, justamente como eu fui com você quando sua avó faleceu.
Quando Danny disse isso, como se fosse um sonho Sybil se lembrou de que uma garota, a quem chamavam de Sybil mas que não era Sybil, fora juntamente com Danny Martin distribuir as flores do enterro da avó entre os doentes e os pobres da cidade. E não conseguia perceber se tudo seria ou não um sonho. Mas, embora ela soubesse que tempo se passara desde o enterro, isso constituía a única lembrança que voltara. Por outro lado, não havia mais nada a não ser vazio, um grande e cavernoso vazio entre o momento em que uma mão a agarrara no cemitério e o momento em que pela primeira vez percebeu que estava na sala de aulas da quinta série.
Teria sonhado com aquela garota e aquelas flores? Ou o acontecimento de fato se dera? Se tudo não passava de um sonho, como é que Danny podia estar sintonizando aquilo? Sinceramente, não sabia. Mas, o fato é que ela desconhecia muitas coisas que haviam acontecido durante aquele tempo frio, triste e inacessível. Era vergonhoso esquecer, e ela se sentia envergonhada.
USURPADORES DE TEMPO
A vaga lembrança da garota que distribuíra as flores do enterro incentivou Sybil a perguntar a Danny a respeito de todas as coisas que lhe pareciam estranhas. Haviam construído casas, lojas tinham mudado de dono, a cidade não era a mesma. Sybil sabia que podia perguntar a Danny a respeito de algumas coisas, ou mesmo de todas elas.
— Como é que os Green estão morando na casa dos Miner? — perguntou Sybil.
— Eles se mudaram para lá no verão passado — respondeu Danny.
— Quem é a criança que Susie Anne está empurrando no carrinho? — quis saber Sybil.
— É a irmãzinha dela — explicou Danny. — Ela nasceu na última primavera.
— Quem é Mrs. Schwarzbard?
— Uma costureira que veio para a cidade o ano passado.
Danny nunca perguntava: "Como é que você não sabe?"
Sybil se sentia mais à vontade com Danny Martin do que com qualquer outra criatura humana, com exceção de sua avó. Sua liberdade em falar com Danny era mais notável porque surgira durante a primavera, o verão e o outono de 1934, o período mesmo durante o qual, enganada pelo tempo, Sybil se encaramujava numa solidão total e aumentava sua costumeira reserva contra o mundo com uma couraça especial.
Danny se tornou o antídoto contra a solidão e a vulnerabilidade que Sybil experimentou depois de "entrar" para a quinta série. Inexplicavelmente perdera seus amigos.
E, embora sua religião fundamentalista a tivesse sempre mantido separada das demais crianças, agora era como se elas estivessem notando aquilo pela primeira vez. Agora, porque ela não podia fazer tudo o que elas faziam — devido às proibições de sua religião —, elas lançavam contra Sybil o sinistro apelido de "judia branca".
Também menos penoso por causa de Danny se tornava o frio e crítico conselho de seu pai que lhe dizia: "Você devia ser capaz de falar às pessoas e enfrentar o mundo", bem como menos doloroso se tornava suportar a renovada queixa de sua mãe: "De um dia para o outro nunca sei em que disposição de espírito você vai estar, ou então que tipo de pessoa você vai ser".
Não fosse graças a Danny, Sybil não teria suportado a humilhação na escola, onde as suas notas haviam baixado devido ao seu problema com a matemática. Não fosse Danny, Sybil não teria resistido à acusação inexorável de sua mãe: "Mas você sabia tabuada de multiplicação. Você sabia. Você está fingindo que esqueceu. Você é uma menina má, perversa". — Não fosse Danny, não teria resistido à tempestuosa acareação com sua mãe sobre a perda do lugar no quadro de honra da escola, que normalmente era publicado no Corners Courier para que toda a cidade tomasse conhecimento.
— Você sempre estava nessa lista — lamentou sua mãe. — Não sei o que faria se tivesse um filho estúpido. E você é inteligente. Você só está fazendo isso para me magoar. Má! Perversa!
Ainda que Sybil na verdade não contasse tudo isso a Danny, assim mesmo ela sentia que de alguma maneira ele compreendia. Sybil sentia-se tão unida a Danny que às vezes tinha vontade de falar-lhe a respeito de como era "esquisito" o tempo, e de como havia descoberto, inexplicavelmente, que tinha onze anos e dois meses apesar de não ter passado pelos dez anos. Mas, no fim, teria sido penoso demais falar mesmo com Danny. Além disso, sua relutância aumentava com a lembrança de que alguns anos antes, ao falar com sua mãe sobre a mesma coisa, ela havia-se posto a rir sarcasticamente, respondendo:
— Por Deus! Você não poderia ser como as outras crianças?
Assim mesmo o tempo, ainda que sua mãe caçoasse dela, e que ela não tivesse coragem de conversar a respeito com Danny, era muito esquisito.
Contudo, ocasionalmente, Sybil podia esquecer-se do esquisito e imutável tema do tempo. . . quando estava sentada nos degraus da frente, falando com Danny, ou quando brincavam na varanda, onde ele fazia roupas shakespearianas para as suas bonecas, transformando Patty Ann em Portia, Norma em Rosalind, e um boneco sem nome no bufão de A duodécima noite. Da mesma maneira milagrosa, Danny transformava a ida a uma festa de algo aterrorizante em um prazer. Enquanto as festas do passado, aquelas a que ia unicamente por causa da insistência de sua mãe, eram esquecidas rapidamente, aquelas a que Sybil ia com Danny jamais eram esquecidas.
Quando Sybil estava com Danny podia deixar dê pensar que, normalmente, ia sozinha. E estava sozinha. De manhã tinha o cuidado de não sair de casa antes de assegurar-se de que não se via nenhum de seus companheiros de classe. Depois da aula, ficava em sua carteira até que todos os outros meninos saíssem. Quando caminhava pela rua principal, fazendo alguma coisa a pedido de sua mãe, costumava passar de um lado da rua para o outro umas seis ou sete vezes, num único quarteirão, para evitar um encontro com qualquer de seus vizinhos. Afastando-se de todos os outros, corria para Danny. Danny, sem erguer barreiras contra os outros meninos, voltou-se para Sybil da mesma maneira que ela para ele. Naturalmente, Sybil e Danny davam por assentado que, quando fossem grandes, se casariam. Sybil acreditava firmemente que, quando isso acontecesse, de alguma maneira o tempo deixaria de ser estranho.
Passado algum tempo, num animado dia de outubro, quando Sybil e Danny estavam sentados nos degraus da frente, Danny disse a Sybil, um tanto sem jeito:
— Sybil, eu tenho uma coisa para lhe dizer.
— O que é? — perguntou Sybil, percebendo o seu tom de voz.
— Como você sabe —- continuou Danny -—, papai... sim, ele comprou um posto de gasolina em Waco, no Texas, e, sabe, nós vamos morar lá. Mas você vem nos visitar, não é? Eu vou voltar aqui. Nós vamos nos encontrar.
— Sim — disse Sybil. — Vamos continuar a nos encontrar.
Aquela noite Sybil disse a Hattie Dorsett que Danny ia deixar Willow Corners para sempre, e então Hattie simplesmente sacudiu os ombros e, muito propositalmente, acrescentou:
— Sim, fique sabendo que seu pai não gostava que você ficasse tanto tempo com aquele garoto. Papai achava que vocês eram muito crescidos para estar brincando juntos.
Quando Sybil contou a Danny o que a mãe havia dito, Danny disse calmamente:
— Se sua mãe achava que isto lhe fazia mal, ela devia ter-lhe falado. — Sybil ficou surpresa com as palavras de Danny.
O mês seguinte, enquanto a família de Danny estava se preparando para se mudar de Willow Corners, parecia um adiamento de sentença, como se lhes tivessem poupado a partida. Entre Sybil e Danny nada mudara, com exceção do fato de que agora eles faziam tudo com mais intensidade, porque sabiam que o tempo ia passando depressa. Era aquela mesma situação que Sybil experimentava quando fazia as suas visitas truncadas à avó.
Finalmente chegou o dia das despedidas a Danny. Sentada com ele nos degraus da frente, que por tanto tempo tinham servido de cenário para a estreita comunhão entre os dois, Sybil estava calma e serena.
— Você vai vir me visitar — lembrou Danny.
— Fique tranqüilo, eu vou — contemporizava Sybil.
— Nós vamos nos encontrar de novo — repetia Danny.
— Nós vamos nos encontrar de novo — repetia Sybil. Danny levantou-se para ir embora e Sybil ficou imóvel, sentada nos degraus.
— Bom, Sybil — disse. — Bom... — Vencido pelo acanhamento natural dos adolescentes e incapaz de completar a frase, emudeceu. Beijou-a rapidamente no rosto, afastou-se, virou-se e lá se foi.
Sybil, que desde a mais tenra idade sempre evitara o
menor contato físico, sentia-se agora extasiada por uma vibração de felicidade. Inicialmente nem se deu conta da ausência de Danny a seu lado. Depois, quando começou a tomar consciência do fato entrou em pânico, começando a procurá-lo apreensivamente. Lá estava, com o cabelo louro, o corpo franzino. . . movendo-se, afastando-se.
Quando ele virou a esquina da Vine Street, entrando na Main Street, Sybil perdeu-o de vista. Deixou-se cair sobre os degraus. A salvação, o que Danny significava para ela, havia desaparecido. A cidade estava deserta. Tudo que havia agora era uma solidão desesperadora.
Mas havia também algo estranho com o tempo que, como sabão invisível em água imperceptível, ia-se escapulindo.
O céu está azul, pensou Vicky quando, ao levantar-se dos degraus da frente, penetrou no tempo do qual Sybil acabara de partir.
Vicky perambulou em redor da casa branca com venezianas pretas, pensando em como era lindo poder movimentar o corpo que estava pertencendo totalmente a ela pela primeira vez.
Finalmente os olhos pertenciam somente a Vicky, para que pudesse olhar tranqüilamente para o mundo e enxergar todo ele, para levantá-los ao céu azul, limpo e claro.
Chegando aos degraus da varanda dos fundos, Vicky decidiu entrar na casa por aquele lado.
— É você, Peggy? — chamou Hattie da janela da cozinha.
Não, pensou Vicky, não é nem Peggy nem Sybil, e sim uma pessoa que você nunca encontrou antes. Não sou sua filha na verdade, mas estou aqui para tomar o lugar de Sybil e, embora você me chame de sua filha, você há de descobrir que não tenho medo de você. Eu sei muito bem como me dar com você.
— Aquele garoto já foi embora? — perguntou Hattie, quando Vicky entrou na cozinha.
— Sim — respondeu Vicky.
— Você parece que não tinha outra coisa a fazer
senão ficar sentada lá fora naquele frio terrível. Acabava pegando uma pneumonia. Você sabe muito bem que não é muito forte.
— Estou acostumada aos invernos do meio-oeste e, em comparação, esta temperatura de outono, para mim, é brincadeira — respondeu Vicky.
— Não se faça de ladina comigo — avisou Hattie.
— Eu estava simplesmente constatando um fato — disse Vicky.
— Bom — respondeu Hattie, mudando de assunto. — Estou esperando um embrulho de Elderville. Vá buscá-lo no correio.
Era estranho que estivessem no outono. A primeira estação é a primavera, pensou, enquanto, escutando o estalido das folhas secas, descia os degraus de trás e seguia pelo caminho que levava à Main Street. Embora fosse outono no exterior, era primavera no interior: a primavera que se seguia ao longo mas findo inverno de mais de oito anos de residência secreta nos recessos do ser. Subjugada, inativa, sem nome havia estado desde o outono de 1926 até este dia de outubro de 1934; desde quando Sybil tinha três anos e meio até que teve onze. Inativa, sim, mas não impotente. Durante esse período, exercendo uma variedade de pressões internas sobre Sybil e as outras personalidades, Vicky, embora sem nome, se transformara, silenciosamente, num instrumento.
Fora uma decisão transcendente, bem o sabia Vicky, a que tomara enquanto Danny Martin se perdia de vista e ela ascendia dos profundos recessos do ser à superfície da vida. No entanto, naquele momento não coubera outra atitude possível, pois Vicky se dera conta de que passara o tempo de ser um instrumento e chegara o da intervenção ativa. Deu-se conta de que, para ser efetiva, teria que arrancar de Sybil o domínio do corpo. Sybil, obviamente, estava traumatizada demais com a separação para poder prosseguir, e assim, dando a si mesma um nome tomado a Sybil, que, na fantasia do mundo imaginário da infância, havia criado uma menina brilhante e sem temor, com o nome de Victoria Antoinette Scharleau, esta personalidade, anteriormente inativa, entrou no mundo.
Era bom, pensou Vicky enquanto caminhava pela Main Street, sentir o vento duro e cortante, e tomar o controle do corpo que experimentava essa sensação. Recém-chegada ao domínio do corpo que caminhava pela rua, esta, porém, não lhe parecia desconhecida. Vira tudo o que havia naquela rua muitas vezes antes.
Vicky sabia o que acontecera na vida de Sybil Isabel Dorsett, estivesse presente ou não a própria Sybil. Paradoxalmente, enquanto o tempo fora descontínuo para Sybil, que vivia no mundo, fora contínuo para Vicky, que apenas existia nas profundezas do ser. O tempo, que fora caprichoso e freqüentemente incógnito para Sybil, fora constante para Vicky, que tinha memória completa e servia de elo mnemônico no desmembrado mundo interior de Sybil Dorsett.
—Essa solidez de memória, combinada com o fato de que, ao emergir das profundezas, Vicky incorporava em si uma poderosa fantasia, criação da própria Sybil, converteu-se na fonte da força de Vicky. A Victoria da fantasia de Sybil, como a nova Vicky, uma de suas personalidades alternantes, tinha confiança em si mesma, não conhecia o medo, e era imune à influência das relações que haviam perturbado Sybil.
Vicky pensou maldosamente nas pessoas que, vendo a delgada figura de Sybil Dorsett, esperariam que ela atravessasse a rua repetidamente, fugindo das pessoas. Bem, hoje não verão isso, pensou Vicky enquanto entrava na agência do Correio.
O embrulho de Elderville já estava lá. Isto já é um bom começo, pensou Vicky. Se aquele embrulho não estivesse ali Mrs. Dorsett ralharia com ela. Quão bem ela conhecia essa mulher — que não era sua mãe —, pensava Vicky, com quem durante todos estes anos ajudara Sybil a conviver.
Vicky permaneceu em casa o tempo suficiente para entregar o embrulho a Mrs. Dorsett e depois desceu os degraus da varanda dos fundos, indo ao balanço. Para ela era natural fazer isso, de vez que fora ela quem induzira Sybil a adotar o balanço como solução perfeita para as constantes implicâncias de Hattie Dorsett de que ela estava à toa. Quando Sybil ficava absorta em seus pensamentos e sentada calmamente, Hattie vinha com a mesma chateação costumeira: "Mexa-se. Pelo amor de Deus, faça alguma coisa!" Lá no balanço tinha sido possível pensar e "fazer alguma coisa" ao mesmo tempo.
Naquela noite, depois de jantarem, Hattie sugeriu a Vicky que dessem um passeio. Em silêncio Hattie e Vicky foram andando. Hattie segurava sob controle a mão de sua suposta filha. Ao passar pela casa dos Stickney, duas vezes maior que a dos Dorsett, Hattie comentou, dando uma resfolegada: "O velho Stickney está fora do juízo. Espero que dêem logo o fora com ele". Enquanto iam andando, Hattie bateu com a língua nos dentes sobre a vida de.Ella Baines, dizendo que "andava fazendo porcarias com um professor na cidade" e deveria ser "agarrada pelas autoridades de costumes", tesourou a vida de Rita Stitt, cuja mãe não era realmente sua mãe, e a quem alguns meses atrás Hattie havia deixado confusa por lhe ter revelado esse particular. (Vicky pensou: você não é minha mãe e eu poderia me desforrar por Rita, revelando a você este detalhe.)
Hattie Dorsett malhou Danny Martin.
— Estou contente em ver que você não está triste porque aquele garoto foi embora. Eu lhe disse que seu pai era contrário a que você ficasse brincando com ele.
— Sim, a senhora me disse — observou Vicky, ciente de que não tinha sido a ela e sim a Sybil que Hattie havia transmitido aquela cruel atitude do pai.
— Pois bem, minha querida, existe alguma coisa mais — acrescentou Hattie com uma expressão puerilmente triunfante: — Você não sabe, mas há alguns meses papai teve uma conversa com o pai de Danny. Papai disse logo na cara que não estava certo que você se misturasse com gente da espécie dos Martin, que não são da nossa religião.
Vicky estremeceu. Da mesma forma que Hattie Dorsett antes de se converter, os Martin eram metodistas. Willard Dorsett casara-se com uma metodista, e no entanto era contrário a que sua filha mantivesse amizade com um deles. Que hipocrisia! Mas Vicky ficou quieta.
— Bem — continuou Hattie —, papai não vê os Martin com bons olhos também por outros motivos. Ele acha que eles não têm nenhuma categoria social, nenhuma formação nem estilo de vida. O pai chegou aqui saído de
Nova Jersey. Veio à procura de ouro e acabou chofer de caminhão de leite. Agora conseguiu se aprumar, e continua à procura de fortunas. Ninguém consegue adivinhar onde é que ele arranjou tanto dinheiro assim para poder comprar um posto de gasolina no Texas. Seja como for, papai teve uma longa conversa com o pai de Danny. Mr. Martin disse que iam sair da cidade em breve e assim acharam que não precisariam tomar nenhuma providência para acabar com aquela amizade de vocês dois. Mas, minha querida, achei que você devia saber o que seu pai pensa de Danny e da família dele.
— Danny foi embora — foi a única coisa que Vicky disse.
— Conforme opinião de papai, foi bom — observou Hattie, cuidadosa em tirar o corpo fora do julgamento.
Vicky pensou: é bom que Sybil nunca venha a saber o que seu pai fez.
— Está bem, voltemos para casa — disse Hattie. — Eu queria lhe contar isto quando papai não estivesse presente. Agora você já sabe, e podemos retornar.
No dia seguinte, de manhã, na escola, Vicky mantinha o domínio, tanto sobre o corpo como sobre o trabalho da escola. E embora as outras crianças lhe fossem indiferentes, Vicky sabia que esse desinteresse por elas tinha suas raízes nos acontecimentos dos dois anos que se seguiram à morte de Mary Dorsett, avó de Sybil.
Com fina perspicácia Vicky observara, durante aqueles dois anos, como Peggy Lou, dominando completamente o corpo e sendo a pessoa que agia naquela época, tinha perdido os amigos de escola de Sybil. Durante o recreio Peggy Lou ficava sentada na sua carteira e fazia bonecas de papel ao invés de ir ao pátio brincar com as outras crianças. No almoço e no fim do dia saía da escola empurrando Deus e todo mundo e tratando com má-criação as crianças que tentavam falar ou andar com ela. Quando lhe pediam para andar alguns passos juntas, ela simplesmente respondia: "Não posso". E punha-se a correr. Passados uns tempos, ninguém mais queria saber de coisa alguma com ela.
Vicky sabia que Peggy Lou se havia isolado das outras crianças não porque não gostasse delas, mas porque estando com elas ficava com raiva por não ter o que elas tinham — um lar onde havia irmãos e irmãs, onde não havia motivo para se ter medo. Ao invés de se distrair com aquelas crianças em suas casas, ela se convenceu de que não precisava de ninguém e, convencida disso, dirigia-se correndo para a casa branca com venezianas pretas, onde em todos os cantos se ocultava alguma coisa que a deixava irritada. — Sua amarga solidão tinha um consolo. Ela sentia-se realizada por ser independente e estar fazendo exatamente o que queria, sem ninguém para interrompê-la ou para dizer-lhe o que fazer. Isolada, ela de alguma forma conseguia sentir-se livre, ainda que essa liberdade a levasse a desejar abrir um rombo no centro do universo.
Às vezes Vicky lamentava ter permitido que Peggy Lou assumisse a direção dos acontecimentos, na sepultura de Mary Dorsett. Mas, na ocasião, Vicky percebera — como aliás ainda vinha percebendo — que não havia outro jeito.
Ademais, tranqüilizava-se Vicky, embora Mary Dorsett fosse uma criatura encantadora, não era sua avó, e não tinha nenhum motivo para se envolver naquele assunto macabro. Razão por que lhe pareceu acertado deixar que Peggy Lou interviesse. Ademais, quando estava lá ao lado da sepultura, Sybil estava zangada. E agir com raiva era função de Peggy. Lou e não de Vicky.
Ainda assim, os dois anos de Peggy não haviam sido completamente maus. Fora a aparição de Peggy Lou, mais do que a mão que a detivera, que impedira Sybil de se atirar no túmulo de Mary Dorsett. Depois do enterro, Peggy Lou, uma menina ativa, fora capaz de fazer o que Sybil, uma menina inativa, não teria podido fazer. Quando os pranteadores ficaram como hóspedes na casa dos Dorsett, Peggy Lou merecera a gratidão de Mr. e Mrs. Dorsett livrando-os da presença constante da ruidosa Ella, a filha de dois anos da prima Anita. Os Dorsett ficaram tão contentes com o fato de sua filha mostrar-se finalmente ativa, que Vicky se surpreendeu ao ver que Hattie Dorsett tratava melhor a filha do que antes da morte de Mary Dorsett. A filha que voltou para casa depois do enterro e permaneceu durante dois anos era respondona e subia nos móveis quando se irritava, mas também parecia mais atraente do que a filha que vivera na casa antes da morte de Mary Dorsett.
Peggy Lou era muito mais "parecida" com as demais crianças do que Sybil. Embora não estivesse certa disso, Vicky percebia que o fato se devia a que Peggy Lou, a filha dos anos que se seguiram à morte, era muito mais parecida com a própria Hattie do que Sybil. Foi também muito gozado ver que depois que Sybil voltou Hattie encarava Sybil, e não Peggy Lou, como a "diferente".
— Aquela criança agora é tão diferente — gritava Hattie. — Chego a ponto de ficar louca.
Vicky lembrava-se de que na sepultura de Mary Dorsett havia dito a Peggy Lou que respondesse ao nome de Sybil Dorsett, porque não ficava bonito apontar as falhas dos outros. Depois, no segundo dia de sua residência no mundo, Vicky tomou as devidas precauções. Na sala de aulas da sexta série ela respondeu imediatamente quando o professor, Mr. Strong, chamou o nome de Sybil Dorsett.
Vicky gostava de Mr. Strong e lembrava-se de que também Sybil gostava dele. Uma tarde Sybil estava varrendo as folhas do pátio dos fundos e Mr. Strong passou casualmente por lá e chamou Sybil. Despeitando dos devaneios a que se entregara a respeito da Victoria Antoinette de sua imaginação, Sybil vibrou de prazer pelo fato de o professor ter falado com ela primeiro.
Que coisa patética, pensava Vicky, que Sybil nada saiba a meu respeito, mas continue pensando naquela garota imaginária cujo nome eu carrego agora. É triste que Sybil não saiba nada a respeito de nenhuma das outras pessoas que vivem com ela.
Tendo-se desincumbido magnificamente na escola, naquele primeiro dia, de todas as matérias, inclusive em matemática, que assimilara mediante observação em silêncio, Vicky foi para casa, otimista com sua nova existência.
Quando se aproximava da casa dos Dorsett, Vicky percebeu que Mrs. Dorsett estava olhando pela janela. Vicky pensou: "Mrs. Dorsett anda sempre espiando".
— Entre, que vamos visitar alguém — disse Hattie. — Os Green têm uma nova criança. Vamos lá para ver o que está se passando. — Aqui está, pensou Vicky, o ritual quase diário com aquelas conversas chatas que nunca terminam das mulheres adultas que Sybil teve que aturar. Está bem, decidiu Vicky, lá vou eu. Peggy Lou relutava contra isto, mas eu vou agir com diplomacia.
Mon Dieu, pensou Vicky quando nas semanas seguintes observou mais de perto Willow Corners, as pessoas desta cidade não têm nenhum estilo, nenhum éclat. A esses habitantes os adjetivos que se enquadram são "tacanhos, provincianos e obscuros". Mesmo com a idade de treze anos ela os deixara para trás em seus conhecimentos e desenvolvimento. Estava certa de que eles e ela viviam em mundos à parte. Quanto aos pais de Sybil. . . seu pai era atencioso, mas não se preocupava suficientemente com as coisas. Com efeito, não despregava os olhos do jornal ou das helicópias dos seus projetos e plantas o suficiente para se inteirar do que estava se passando em volta, razão por que também não tinha com que se preocupar. Com a mãe a história era outra. Ela vinha sempre com aquela cantilena de "você devia ter feito desta maneira ou daquela". E Vicky se convenceu de que era justamente isto o que impedira Sybil de fazer as coisas. Vicky perguntava-se: como é que a gente pode fazer alguma coisa quando existem tantos deveria e não deveria, e nada é divertido? Ademais, Mrs. Dorsett era uma criatura difícil de se compreender. Mas Vicky tinha o consolo de que estava ali para ajudar e que depois de algum tempo os seus queridos pais e os seus muitos irmãos e irmãs viriam buscá-la e ela voltaria a Paris com eles. Como ela ansiava pelo dia em que estariam novamente todos juntos!
Havia ocasiões em que Vicky se retirava para o mais recôndito de seu interior, e permitia que alguma das outras personalidades do séquito de Sybil Dorsett, ou mesmo a própria Sybil, se sentassem na sala de aulas da sexta série.
Certo dia, na sua sala de aula tomou assento Mary Lucinda Saunders Dorsett, que aparecera durante o primeiro ano da temporada de dois anos de Peggy Lou, quando Sybil estava com dez anos. Antes de terminar o dia Mary de repente se sentiu mal. O que ela sentia não era propriamente uma dor, e sim uma espécie de tensão.
Logo que chegou a casa Mary se dirigiu ao banheiro. O avô estava lá dentro, e então Hattie perguntou:
— Por que não usa o outro banheiro?
— Mas que outro banheiro? — Mary não se lembrava de que havia algum, e somente mais tarde ficou sabendo que seu pai havia construído outro durante o segundo ano do período em que Peggy havia estado presente, detalhe a que Mary não dera atenção.
No novo banheiro Mary empalideceu quando viu aquilo que ela depois descreveu como "esta mancha marrom-avermelhada nas roupas de baixo". Vira sua avó sangrando — pois tivera câncer cervical — e temia que ela também morresse.
— Por que está demorando tanto aí dentro? — gritou Hattie.
— Já vou, Mã — respondeu Mary.
Mary, que não tinha idéia de que a mãe de Sybil era a sua, sempre chamava Hattie de "Mã", o que lhe parecia uma palavra comum aplicada a qualquer senhora mais idosa que tomava conta de alguém.
Na hora de dormir Mã entrou e disse:
— Deixe-me ver sua roupa de baixo. — Mas Mary relutou. — Deixe-me ver, e já — ordenou Hattie. Quando Mary lhe mostrou a roupa de baixo, Hattie observou:
— Exatamente o que eu imaginei. Você está com as regras. É simplesmente terrível. As regras da mulher. Você sente dor aqui, não é? Ali também, não é? — E, cutucando em diversos pontos o corpo de Mary, Hattie golpeava com força, aumentando a dor.
— É a época das regras — comentou Hattie enquanto preparava uma roupa para Mary vestir. — Só as mulheres têm isto. Não fale disto a seu pai. — Em seguida Hattie saiu do quarto, resmungando: — São as regras das mulheres. As regras. Tomara que os homens tivessem isto também. Veriam o que é bom. Esses homens!
Mary estava assustada porque Mã havia falado em "época das regras". Ter regras significava não ir à escola; escola significava estar longe de Hattie. E Mary queria estar ausente de casa. No dia seguinte Mã explicou que com aquela doença as meninas não deixavam de ir à escola, e Mary ficou satisfeita. O que Mary não sabia é que aquilo que acontecera com ela pela primeira vez já acontecera com Sybil dois meses seguidos sem que Hattie soubesse, e sem dor. Para o futuro, Mary, que tinha agora o ônus da menstruação, iria causar dor em Sybil ou qualquer outra personalidade que estivesse atuando durante o período de menstruação.
Mary continuou a comparecer vez ou outra durante a sexta série, mas na maioria das vezes quem lá estava era Vicky. Mais ou menos no final do período de aulas Sybil apareceu, a caminho da escola, percebendo que a Victoria de sua imaginação a estava levando para lá. Contudo, essa volta não causou tanto alarma como quando da volta à quinta série. Embora Sybil julgasse ainda esse tempo "gozado", sentia-se contudo mais à vontade com relação a esse período.
— Na época em que se produziu a volta de Sybil, Mary falou com Vicky sobre Danny Martin.
— Sybil não sabe — disse Mary — que enquanto Peggy Lou estava aqui, Danny sentia ciúmes de Billy Denton. Peggy Lou não dava nenhuma atenção a Danny, mas logo se deu muito bem com Billy.
— Sim — concordou Vicky —, isso é verdade. — E Billy nunca pôde compreender, quando Sybil voltou, por que a jovem Dorsett agia como se não o conhecesse.
Mary, que se interessava por poesia, tornou-se grandiloqüente, dizendo a Vicky que, para Sybil, o poderoso coração do mundo freqüentemente se detém e, em tais momentos, para Sybil não existem bosques frescos, nem relva nova, mas apenas pastagens no abandono do esquecimento.
— Sybil chama a isso o nada. E isso não é muito gentil para nós!
Nos meses seguintes Sybil via que volta e meia flutuava em seus apagamentos mentais. Disfarçando este fato, tornou-se engenhosa em improvisações, inigualável em argumentos excogitados na hora, pois fingia conhecimento em torno daquilo que desconhecia. Infelizmente não conseguia ocultar de si mesma a sensação de que de algum jeito havia perdido algo. Tampouco podia esconder a percepção de que cada vez mais sentia não pertencer a ninguém e a nenhum lugar. De algum modo lhe parecia que quanto mais crescia, piores as coisas se tornavam. Começou a repudiar a si mesma com sentimentos autodegradantes, como: "Sou tão magra porque não mereço ocupar mais espaço".
A primavera foi ruim por causa de sua avó. Agora o verão se aproximava, e seria uma época má devido a Danny. Sentada nos degraus da frente ou no balanço, Sybil se lembrava do verão que se aproximava, e, com isso, da partida de Danny através da canção:
Quebra, quebra, quebra,
Em tuas frias rochas cinza, ó mar!
. . . Mas, oh! sentir de novo o toque de uma mão desaparecida,
E o som de uma voz que está calada!
. . . Mas a terna graça de um dia que está morto
Jamais voltará para mim.
recitava compassadamente Mary, tomando o lugar de Sybil.
No fim da primavera de 1935 Sybil se viu frente a outro pavor, causado pela vulnerabilidade da puberdade. O pavor girava em torno de históricos sintomas de conversão, que eram parte de sua doença, na época ainda não diagnosticada. Isto porque a histeria — a grande histeria ou outra qualquer — é uma doença que tem sua origem em conflitos emocionais e geralmente se caracteriza por imaturidade, dependência e uso de mecanismos de defesa não somente de dissociação como também de conversão. A histeria manifesta-se classicamente mediante dramáticos sintomas físicos que envolvem os músculos da vontade ou os órgãos de sentidos especiais. Durante o processo de conversão impulsos inconscientes são transformados em sintomas corpóreos. Ao invés de ser experimentado conscientemente, o conflito emocional é expresso assim fisicamente.
Repentinamente, metade do rosto de Sybil e os lados de seus braços ficavam entorpecidos. Ficava fraca num lado, nem sempre o mesmo lado. Quase constantemente sua garganta inflamava e ela tinha dificuldade em engolir as coisas. Começou a sofrer de falta de visão lateral, e muitas vezes passava a enxergar somente com um olho. Tanto ela como algumas das outras personalidades, notadamente Mary, desenvolveram uns tiques nervosos que, como o da telefonista da cidade, provocavam surpresa nas pessoas.
Sybil ou uma das outras estremecia, mexia-se espasmodicamente e perdia o controle dos movimentos corporais. Freqüentemente, Sybil ou as outras se dirigiam ao vão da porta e se chocavam contra o batente. Os sintomas se intensificaram com umas dores de cabeça tão fortes que, depois de um desses ataques, Sybil tinha que dormir durante várias horas. O sono depois de uma dessas dores de cabeça era tão profundo, que Sybil, que geralmente tinha sono leve, parecia ter sido drogada. - Mais perturbador de todos era o sentimento que tinha de que a vida parecia flutuar entre um estado de coisas irreal, cheio de pressentimentos estranhos. Sybil lembrava que havia estado em algum lugar ou que havia feito alguma coisa, mas como se fosse num sonho. Tinha a sensação de que estivera andando ao lado de si mesma, como que observando. E às vezes não conseguia fazer uma distinção entre seus sonhos e a irrealidade sonhadora.
Certa noite Sybil mencionou esse sentimento de irrealidade a seus pais, que então resolveram levá-la ao Dr. Quinoness, o médico da cidade.
O Dr. Quinoness diagnosticou o caso de Sybil como de coréia de Sydenham, uma forma de dança de São Vito. Explicando que havia um componente psicológico, aconselhou que levassem Sybil a um psiquiatra e marcou uma consulta para ela com um médico de Minneapolis. Willard e Hattie se recusaram a comparecer à consulta. Se se tratava de uma coisa meramente psicológica, disse Willard, ele também poderia resolver a coisa. E nesta presunção de que iria curar a filha, arranjou um violão e um professor para Sybil. Pai e filha praticaram juntos e mais tarde deram recitais. Desde que Vicky, Mary, Peggy Lou e algumas das outras personalidades também aprenderam a tocar, e com diferentes graus de entusiasmo, as apresentações que a filha de Willard Dorsett dava eram surpreendentemente irregulares.
Apesar do otimismo fácil de seu pai, Sybil admitia consigo mesma que sofria de algum "distúrbio mental", que na família Dorsett e na cidade de Willow Corners era considerado uma desgraça. Tanto assim que novos temores começaram a girar em torno do hospital público onde o seu tio Roger trabalhava como comprador e a sua tia Hattie como enfermeira. Sybil visitara freqüentemente os tios no hospital.
Tentando desviar a mente da lembrança do seu distúrbio, Sybil entregava-se aos trabalhos da escola. Na escola era perturbada pelo fato de que não sabia a história da Europa, que havia sido ensinada enquanto ela não estivera presente. Vicky se dava bem com história, como Peggy Lou era bamba em multiplicação. Contudo, quando se tratava de ciências, Sybil pegava logo o assunto. Fascinada com as explicações que Mr. Strong dava dos mistérios da anatomia humana, ela nem sequer percebia que ele cuidadosamente deixava de lado as partes sexuais do corpo. Quando os estudantes tiveram que desenhar um grande esboço do coração, Hattie comprou para Sybil um lápis vermelho numa ponta e azul na outra, o que deu a Sybil a sensação de ser um professor, classificando as notas. Os devaneios de Sybil andavam cheios de idéias sobre circulação e médicos, e fazia de conta que ela mesma era um médico, explicando aos pacientes o funcionamento do coração.
Certo dia Sybil entrou em casa aos trambolhões, para contar à sua mãe como é que o coração funcionava. Negando-se a prestar atenção, Hattie simplesmente disse:
— Não quero ouvir falar disso. — Mas Sybil estava tão entusiasmada com o assunto que continuou explicando o que tinha aprendido.
— Quantas vezes preciso lhe dizer que não estou interessada nessa droga? — gritou Hattie, dando um bofetão na filha. Sybil estava em pé no linóleo da sala. Levou a bofetada em cheio no quadril, escorregou, caiu de lado em cima da cadeira de balanço e acabou tombando no chão.
Daquele dia em diante Sybil tinha medo da aula de ciências e, embora as ciências continuassem a fasciná-la, teve dificuldades com as aulas de biologia no colégio e na escola superior. Passou também a ter medo de andar em quartos e salas sem tapete.
Naquela noite Hattie foi dar uma volta com Sybil até a Main Street. Era uma quarta-feira, quando as lojas estavam abertas. Na esquina havia banquinhas com pipocas. As crianças sempre pediam aos seus pais um níquel ou uma outra moeda qualquer mas Sybil não pediu nada. Hattie perguntou:
— O que é que você quer hoje à noite? Pipoca? Sybil respondeu:
— Qualquer coisa serve.
A resposta, ainda que característica, não indicava que Sybil não tivesse preferências. Assim como não se atrevia a contar a ninguém seu segredo sobre o tempo, também não se atrevia a pedir nada a ninguém.
Enquanto mãe e filha iam se distraindo com a pipoca, Sybil teve a atenção presa por umas fitas de cabelo à mostra num balcão. Achando que eram lindas, Sybil estava torcendo no seu íntimo para que a mãe lhe perguntasse se queria uma. Mas Hattie passou pelo balcão, deu uma espiada e foi andando. Sybil perdeu a esperança de que a sua mãe lhe perguntasse.
Então Vicky resolveu perguntar e apontou para uma fita de cabelo azul-clara, dizendo:
— Eu gostaria de ter uma assim — dirigindo-se para Hattie. — Combina com nosso vestido azul de organdi.
— O que você entende por "nosso", sua cabeça de bagre? — respondeu Hattie. — Não está vendo que quem tem vestido de organdi é você?
Hattie pagou ao caixa a fita de cabelo azul.
A PROCURA DO CENTRO
Vicky e Sybil, Mary e Sybil, Peggy Lou e Sybil — qual o ponto em comum? A Dra. Wilbur resolveu interrogar Vicky, que sabia tudo a respeito de todas.
Era 15 de junho de 1955, e já fazia nove meses que a análise havia começado. Doutora e paciente estavam sentadas no divã.
— Vicky — disse a doutora —, eu gostaria de saber algumas coisas. Qual a sua relação com Sybil?
Meio espantada, Vicky respondeu: — A senhora sabe que eu a conheço, pois lhe falo sempre a seu respeito; lhe conto o que sei sobre ela.
— Sim, eu sei que você a conhece — disse a doutora. — Mas como você sabe o que ela pensa?
A única resposta de Vicky foi um sorriso de contentamento.
— Vicky — insistiu a doutora —, você falou em nosso vestido azul de organdi. O que mais você e as outras têm em comum?
— Em comum? — perguntou Vicky com uma ponta de ironia na voz. — Nós às vezes fazemos coisas juntas.
— Você me disse que algumas das outras possuem a mesma mãe. Com isto quer você dizer que têm a mãe em comum?
— Sim, acho que se poderia dizer assim.
— E elas possuem também o mesmo corpo em comum?
— Isto é uma estupidez — respondeu Vicky com voz autoritária. — Elas são pessoas. Posso falar-lhe a respeito delas.
— Sim, Vicky, eu sei que são pessoas. Mas as pessoas têm relacionamentos entre si. Qual a relação que existe .entre Peggy Lou, Peggy Ann, Mary, Sybil e as outras? São todas irmãs?
— Ninguém jamais disse que elas são irmãs — respondeu Vicky, olhando firmemente para a doutora.
— Não — respondeu a doutora com ênfase —, ninguém nunca disse isso. Mas, Vicky, quando as pessoas têm a mesma mãe, devem ser ou a mesma pessoa ou irmãs ou irmãos.
Ignorando as implicações da lógica da doutora, Vicky atalhou:
— Tenho muitas irmãs e irmãos, e todos nós temos o mesmo pai e a mesma mãe.
— Está bem, Vicky — disse a doutora —, você acaba de reconhecer os laços de parentesco em sua própria família. Mas não disse nada a respeito da família de que fazem parte Sybil, Peggy, Mary e as outras. Você ainda não me disse como é que estas pessoas estão relacionadas entre si.
Vicky encolheu os ombros e disse:
— Pois bem, doutora, a senhora acabou de dizer que devem ser irmãs.
— Não, Vicky — retrucou a doutora com firmeza. — Eu não disse que devem ser irmãs. Eu perguntei se elas eram irmãs, e fiz isto dentro de uma lógica, pois se têm a mesma mãe devem ser ou a mesma pessoa ou então irmãos ou irmãs.
Vicky ficou calada.
Quando a doutora, seguindo uma lógica implacável, perguntou: — Então, Vicky, diga-me se elas são irmãs ou se são a mesma pessoa —, Vicky falou com desembaraço:
— Doutora, se é assim que a senhora coloca as coisas, eu tenho que admitir que são irmãs. Elas têm que ser irmãs, porque não podem ser a mesma pessoa! — Vicky encerrou o assunto, abrindo a bolsa. Passou batom nos lábios e tornou a fechar a bolsa, enfiando-a debaixo do braço.
— Mon Dieu — disse, ao levantar-se para ir embora. — Que absurdo pensar que sejam uma só pessoa aquelas criaturas completamente individuais. Marian Ludlow e eu nos parecemos mais do que qualquer das duas ou três pessoas que a senhora mencionou.
— Então, Vicky — disse a doutora com firmeza —, neste caso a consulta ainda não terminou e eu gostaria que você prestasse atenção ao que vou dizer.
— Nossa conversa — disse Vicky num tom de grande decisão — já chegou à sua conclusão lógica. Que mais há para dizer?
— O seguinte, Vicky. Sente-se, por favor.
Vicky sentou-se mas, na realidade, não concordou.
— Você diz — observou a doutora de maneira implacável — que Peggy Lou, Peggy Ann, Mary e as outras não podiam ser a mesma pessoa. Mas elas podem ser. Vicky, você não percebe que eles poderiam ser diferentes aspectos da mesma pessoa?
— Não, Dra. Wilbur — disse Vicky pensativamente, sacudindo a cabeça. — Não vejo isto assim. A senhora, a senhora é a senhora mesma. A senhora é a Dra. Wilbur, e mais ninguém.
— É mesmo? — perguntou a doutora.
— E eu sou apenas Vicky. Aqui não há ninguém mais além de mim. Senão veja. — Vicky levantou-se, andou uns passos pela sala e depois perguntou: — Agora está acreditando em mim?
Vicky voltou a sentar-se, sorriu para a doutora e observou:
— Isto resolve a questão. Não há mais ninguém aqui. A senhora é simplesmente a Dra. Wilbur e eu sou simplesmente Vicky.
— Vicky — respondeu a doutora —, nós não resolvemos nada. Sejamos honestas conosco mesmas.
— Mas, Dra. Wilbur — insistiu Vicky —, muito provavelmente já resolvemos o caso. Já conseguimos resolver a grande e filosófica pergunta: Quem sou eu? Eu sou eu. Você é você. Penso, logo existo. Há um ditado latino que diz: cogito ergo sum.
— Não resolvemos nada — lembrou a doutora a Vicky. — Ainda não estabelecemos a relação existente entre Sybil, Peggy Lou, Peggy Ann, Mary e as outras. O que. . . ?
— Perguntas, perguntas e mais perguntas — interrompeu Vicky. — Eu também gostaria de fazer uma pergunta. Por que é que está fazendo todas estas perguntas?
Depois de rejeitar a conclusão lógica para a qual a Dra. Wilbur tentara levá-la, Vicky contradisse a primeira alegação de que a doutora e ela estavam sozinhas ao dizer:
— Pois bem, Dra. Wilbur, Mary gostaria de ter um encontro com a senhora. Ela quer tomar parte em nossa análise, e sou de opinião que deveríamos consentir.
— Nossa análise? — repetiu a Dra. Wilbur. — Como pode ser "nossa", se vocês não são a mesma pessoa?
Vicky riu com satisfação.
— Eu suponho — disse, aparentando ambigüidade proposital — que a senhora devia chamar a isto terapia de grupo.
— Mas você concordou em que são irmãs. Vicky foi rápida no raciocínio:
— Terapia em família, uma vez que a senhora insiste. Muito obrigada pela correção.
Depois, tão segura como se tivesse saído fisicamente da sala, Vicky sumiu. Uma voz que certamente não era a de Vicky observou delicadamente:
— Muito prazer em conhecê-la, Dra. Wilbur.
— Você é Mary? — perguntou a doutora.
— Sou Mary Lucinda Saunders Dorsett — respondeu a voz.
Não era a voz de uma mulher de sociedade, como Vicky, nem a de uma criança zangada, como Peggy Lou. O sotaque era inconfundivelmente do meio-oeste, macio, baixo e taciturno. A doutora nunca tinha ouvido aquela voz antes, e só ouvira falar em Mary através do relato de Vicky sobre a sexta série.
A doutora fez sinal para que Mary se aproximasse do diva e esperou. Mary ficou calada. Seria a reserva natural de uma paciente de primeira consulta? pensou a doutora. Paciente nova?
— Mary, o que você gosta de fazer? — perguntou a doutora.
— Eu cuido da casa — respondeu Mary; — mas há muito que fazer.
— O que você tem que fazer? — perguntou a doutora.
— Tenho que acompanhar Sybil.
— O que você faz quando acompanha Sybil?
— Vou aonde ela vai.
— O que mais você faz?
— Ajudo Sybil.
— Como é que você a ajuda?
— Com meios práticos e com meios sutis.
— Tais como?
— Pois bem, Dra. Wilbur, exatamente agora temos um caso prático. A senhora provavelmente sabe que Sybil e Teddy Reeves — uma amiga de Whittier Hall — acabam de alugar juntas um apartamento em Morningside Drive. A senhora sabe o que um novo apartamento requer. Às oito e quarenta e cinco de ontem tive que "entrar em ação" para receber os trabalhadores que estão colocando janelas novas. Apareci de novo às sete e quinze da noite porque não queria que Sybil colocasse as cortinas novas. Acho que é obrigação minha manter a casa em dia. E com todas as entregas que temos recebido nestes dias, não podemos nos dar ao luxo de dormir até tarde, de manhã. Por isso tive que pôr um aviso perto da campainha lá em baixo, dizendo Não perturbe. Sybil e Teddy estão montando o apartamento. Mas todas as providências, quem deve tomá-las sou eu.
— E o que mais você faz?
— É difícil fazer alguma coisa naquele celeiro de Morningside a que chamam de prédio residencial. Como eu gostaria de ter mais espaço! Gostaria de ter um jardim com flores e espaço para alguns animais. Temos unicamente Capri.
— Você não gosta de Nova York?
— Para dizer a verdade, não. Mas não costumo sair muito. Às vezes vou a um museu ou à biblioteca. Raramente saio do apartamento.
— Quando você está lá, o que costuma fazer?
— Faço o trabalho caseiro. Leio. Ouço música. Pinto alguma coisa. Escrevo poesias. A poesia alivia a dor.
— Que dor, Mary?
— Oh, tenho rezado por nós.
— Que dor, Mary?
— Elas não lhe disseram? Vicky? Sybil? Peggy Lou?
— De maneira direta, não. Falaram-me do medo de se aproximar de pessoas, de música, de mãos, de ser enganadas e, negando a mãe, Vicky e Peggy Lou dão a entender que têm medo dela. Você tem medo dela?
— Nunca julguei que a mãe de Sybil fosse minha — Mary falou num tom confidencial.
— Que dor, Mary?
— A senhora saberá em tempo. Esta é a razão porque disse a Vicky que queria vir aqui hoje. Quero contribuir para a nossa análise. Mas sinto-me em falta por vir. Talvez seja pecado ir a um psiquiatra.
— Ora, Mary — disse a doutora muito calmamente, com muita franqueza —, você sabe que Sybil, Vicky e Peggy Lou têm vindo aqui durante uns nove meses. Você acha que tudo o que elas disseram ou fizeram aqui é pecaminoso?
— Não sei — respondeu Mary, pensativamente. — Realmente não sei.
— Então, por que é que você veio?
— Acontece que naquele dia, no mês passado, entre os salgueiros, a senhora não era uma psiquiatra. A senhora era uma amiga. E o que precisamos é de pessoas amigas.
— Mas Sybil tem amigas, conseqüentemente você também as tem.
— Suponho que sim — respondeu Mary —, mas só num certo sentido. Teddy Reeves me conhece de nome, mas Laura Hotchkins acha que eu sou Sybil. Aliás, é o que a maioria das pessoas acham, conforme a senhora sabe. Às vezes eu me sinto muito sozinha.
— Então, por que você não sai e procura fazer amigos por sua própria conta, conforme Vicky faz?
— Pois bem, a senhora sabe como é — explicou Mary. — Primeiro, não tenho roupas para vestir. Eu visto só o que encontro no nosso guarda-roupa, e o que nas outras pessoas assenta bem não me fica necessariamente bem. — Mary fez uma pausa, abaixou a cabeça e acrescentou, com um sorriso leve e cansado: — E daí eu não pareço tão atraente como Vicky ou tão glamurosa como Vanessa. Não posso competir com elas. Sou o que sou.
Somente mais tarde a Dra. Wilbur percebeu que Mary se considerava uma gorduchona, um tipo maternal, meio fora de moda. Mary surgia como uma dona-de-casa, interessada somente em Kinder, Küche, Kirche1. E, embora as crianças não existissem, embora cozinhar fosse difícil num apartamento como "estes do tamanho de uma caixa de fósforos", segundo ela própria os definia, tornava-se cada vez mais evidente à Dra. Wilbur que o que realmente perturbava Mary não era a ausência de Kinder, nem as dificuldades com Küche, e sim os problemas relacionados com a Kirche. Em tempo devido a doutora descobriu que aquele "talvez seja pecado ir a um psiquiatra" tinha conotações profundas, e refletia conflitos religiosos.
1 Em alemão no original; respectivamente, crianças, cozinha, igreja. (N. do E.)
O relato que Mary fez da avó Dorsett também tinha colorações escuras:
— Vovó morreu — foi o que Mary disse à doutora no dia 15 de junho de 1955, na consulta. — Não havia ninguém para substituí-la. Sybil não chorou pela vovó, foi embora. Peggy Lou chorou calmamente quando sozinha. Todas nós — com exceção de Vicky — choramos a morte de vovó, mas eu fui a que mais chorou. Depois que vovó morreu eu apareci para pranteá-la.
— Você apareceu no enterro?
— Não — respondeu Mary. — Eu não estive presente. Na ocasião, Sybil tinha nove anos. Eu surgi quando tínhamos dez e Peggy Lou estava tomando conta da situação.
— Por que lhe puseram esse nome?
— É o nome de vovó. Eu sou parecida com a vovó, e por isso tomei o nome dela. O filho de vovó Dorsett é meu pai e sou parecida também com ele.
Mary começou a chorar baixinho. Aqui estão as lágrimas que Sybil não derramou, pensou a doutora.
— Que há com você, Mary? — perguntou a doutora,
— A vovó — respondeu Mary.
— Mas, Mary, isso foi há mais de vinte anos.
— Foi agora — respondeu Mary, sacudindo a cabeça tristemente. — Não existe passado. O passado é sempre presente quando a gente o traz consigo. — Tempos depois a Dra. Wilbur ficou sabendo que Mary sempre suspirava pelo único lar verdadeiro que tivera na vida — a casa de Mary Dorsett.
Quando a visita já ia se encerrando, a doutora perguntou :
— Mary, acho que você não vai se zangar se lhe perguntar aonde vai depois que sair daqui?
— Vou para casa — disse Mary. — Para casa, o lugar a que pertenço. Quando chegar lá vou telefonar para papai. Sybil lhe falou que ele e sua esposa Frieda vivem em Detroit? Quero pô-lo a par de muitas coisas. Olhe, Sybil não demonstra que pode fazer as coisas melhor. Sou eu que tenho que dizer a ela.
— Mas suponha que algo se interponha no caminho -— disse incisivamente a doutora. — Você não deveria tratar de tirar esse algo do caminho antes de seguir em frente?
— A gente segue em frente — respondeu Mary com firmeza e quase com fanatismo. — No vasto campo de batalha do mundo, a gente tem que tentar.
A doutora assentiu.
— No bivaque da Vida,
Não sejas como o estúpido gado, que é conduzido!
Sê um herói na luta!
A doutora tentou dizer algo, mas Mary, explicando que o poema era Um salmo de vida, de Henry Wadsworth Longfellow, continuou citando-o:
— Todas as vidas dos grandes homens nos lembram
Que podemos jazer com que nossas vidas sejam sublimes,
E, ao partir, deixar atrás de nós
Pegadas nas areias do tempo.
Novamente a doutora tentou falar. Mary continuou recitando:
— Então, alcemo-nos e trabalhemos,
com um coração disposto a qualquer fado;
Sem deixar de procurar, sem deixar de conseguir,
Aprendamos a labutar e a esperar.
A voz de Mary se interrompeu, depois acrescentou:
— Oh, pobre. . . pobre. . .
— Pobre, o quê? — perguntou a doutora.
— Vida — replicou imediatamente Mary. — Esses bivaques onde estão os soldados são maus. Nem todos podemos ser heróis.
— Um bivaque — assinalou a doutora — não é o lugar onde estão os soldados. Um bivaque é qualquer acampamento.
— Estou explicando-lhe como eram as coisas — replicou Mary, com certa irritação. — A palavra não importa. O bivaque onde estávamos todos era mau. Éramos soldados de uma batalha perdida. Assim era. Sem deixar de procurar, sem deixar de conseguir aprendemos a labutar e a esperar. Tentamos ser pacientes. Fomos muito bons o tempo todo, enquanto éramos pequenos. Aprendemos muito, e tentamos, tentamos e tentamos. Sybil tentou. Eu tentei. Todos tentamos. Mas não deu resultado.
— Mary — disse suavemente a doutora —, talvez alguma coisa se interpusesse no caminho. Talvez a sua provação sirva para algo quando descobrirmos o que era esse obstáculo.
— Assim, já se vê — respondeu Mary, ignorando o comentário da doutora. — Não se pode confiar sempre nos poetas. Eu não confio em ninguém.
— Você confiava na vovó? Mary assentiu.
— Confia no seu pai?
— Sim — o sim era enfático. — É um ser humano quase perfeito.
Mary, era evidente, amava o pai sem reserva.
— Você deve confiar em mim, ou não estaria aqui.
— Bem, veremos — disse Mary.
— Mas, e o tentar? — disse a doutora, voltando à pergunta que Mary havia evitado. — Você crê que poderemos falar do que impede que o tentar dê resultado?
— O mundo é oportunidade — replicou Mary. — Temos que aproveitar ao máximo nossas oportunidades. Todos queremos que Sybil faça isso.
Soava como um eco dos sermões de Willow Corners.
— Mas, Mary — insistiu a doutora —, ainda não respondeu a minha pergunta.
— Assim como faz o jardineiro — disse Mary suavemente —, temos que arrancar a erva daninha e destruí-la.
— Você tem toda a razão — aceitou a doutora. — Mas qual é essa erva?
— Pois está morta a alma que está inativa — recitou, sem responder, Mary. — E as coisas não são o que parecem.
Mary continuou mostrando-se evasiva. Por um momento, quando falou de arrancar a erva daninha, a doutora pensou que estivesse a ponto de revelar alguma coisa sobre a natureza do trauma original. Mas com a poesia como máscara, Mary manteve o trauma na obscuridade. No entanto, à doutora parecia que Mary, pensativa e contemplativa, tinha certo acesso à verdade traumática. Também lhe parecia claro que, embora se mostrasse queixosa, lacrimosa e dividida por seus conflitos religiosos, Mary era muito positiva em sua busca de soluções para os problemas que afetavam Sybil e as personalidades de Sybil. Era evidente que Mary tinha um desejo genuíno de destruir a erva daninha oculta.
A hora já havia passado e a Dra. Wilbur acompanhou a nova paciente até a porta.
— A senhora conhece O egoísta, de Sarah Fells? — perguntou Mary. — Tanto Sybil como eu gostávamos de lê-lo quando éramos crianças. Uma passagem dele é assim:
Num círculo egocêntrico, ele gira, gira, gira; Ê verdade que ele é um mistério; Ora, quem senão um egoísta pode ser Ao mesmo tempo circunferência e centro?
Quem é a circunferência, e quem é o centro? ficou a doutora imaginando. Quem é o centro? Sybil ou uma das outras?
A procura do centro se complicou mais com a chegada, no dia seguinte, de duas personalidades que a Dra. Wilbur ainda não conhecera. A partir do momento em que Vicky apresentou as duas recém-chegadas, a sala do consultório parecia ter sido invadida por uma lufada de vida nova e havia tantas impressões que, olhando para a mulher a seu lado, que no momento era simultaneamente Mareia Lynn e Vanessa Gail Dorsett, a Dra. Wilbur, que se julgara imunizada contra as surpresas que uma personalidade múltipla poderia acarretar, não conseguiu refrear o entusiasmo por esta simultânea participação do corpo. Tampouco pôde evitar de especular como é que tantos caracteres diversos podiam desenvolver-se simultaneamente na pessoa esguia e pequena de Sybil Dorsett. O pensamento era fantástico, porque a posse não se referia a espaço habitado e sim a existência compartilhada.
O pouco que a Dra. Wilbur sabia de Mareia e Vanessa, soubera-o por intermédio de Vicky. Efetivamente, Vicky dissera:
— Mareia sente o que Sybil sente — só que de uma maneira mais intensa. Vanessa é uma garota alta, de cabelos vermelhos, que toca piano e sente imensa alegria de viver. As duas têm muitos gostos em comum e gostam de fazer as coisas juntas.
Mesmo depois de estar com Mareia e Vanessa, a doutora sabia menos a respeito delas do que sobre Mary.
Uma vez que o corpo era agora ocupado simultaneamente por Mareia e Vanessa, a doutora se perguntava como é que iria falar com cada uma em particular. Mas, depois da primeira troca de gentilezas, ela já conseguia distinguir uma da outra pela diferença de suas vozes, que eram bem distintas, embora ambas falassem com sotaque inglês, com padrões idênticos tanto na dicção como na linguagem. Vanessa tinha voz de soprano, e Mareia de alto. O timbre de voz de Vanessa era cortante e cadenciado, ao passo que o de Mareia era pensativo.
Conforme fez com Mary, a doutora começou a conversa com a pergunta:
— O que é que vocês gostam de fazer?
— Viajar — disse Mareia.
— Sair — acrescentou Vanessa. — Estamos sempre interessadas em ver lugares novos e diferentes, e gostamos de fazer coisas diferentes. A vida deve ser vivida.
Mareia e Vanessa contaram então como gostavam de viajar de avião, de ver cidades grandes, de ir ao teatro, a concertos, a lugares de interesse histórico, e de comprar livros escolhidos. — Nós temos nossos gostos próprios — explicou Mareia —, mas Vanessa e eu gostamos mais das coisas quando as fazemos juntas. — Tornou-se claro para a doutora que, da mesma forma como Vicky e Marian Ludlow eram amigas especiais no mundo, Mareia e Vanessa eram amigas especiais dentro da "circunferência" de Sybil Dorsett.
— Mareia, conte-me alguma coisa sobre a maneira de sentir de vocês — sugeriu a doutora.
— A senhora não sabe a que está se expondo — disse Mareia, com um leve sorriso. — Com esta pergunta a senhora acaba de abrir a caixa de Pandora.
— Doutora — atalhou Vanessa —, a senhora não devia perguntar-lhe isso. Ela poderia lhe dizer.
— Estou vendo que vocês, garotas, têm um grande senso de humor — observou a doutora.
— Para sobreviver no clã dos Dorsett a gente precisa ter uma boa dose de humor — respondeu prontamente Vanessa. — Mary, Peggy Lou e naturalmente Sybil se queixam tanto que fazem a vida parecer-se com uma novela russa. É realmente cômico observá-las. Destoa tanto da cidade de Willow Corners, de onde nós somos originárias. Quando cheguei lá Sybil tinha doze anos, e morei um bocado de tempo. Mas não consegui me acostumar àquela cidade. Honestamente falando, só ver para crer. É só temor a Deus e ódio aos homens. Açúcar. Açúcar. Havia tanto açúcar na maneira como fingiam tratar-se mutuamente que cheguei a sofrer de diabetes da alma.
— Está aí uma frase bonita — interrompeu Mareia. — Nunca ouvi você usá-la antes. Você está certa de que não a roubou de mim? Eu sou a escritora! Por que você não fica grudada em seu piano e me deixa imprimir as frases?
— Mas eu sou a que apareceu com ela. Sou aquela que...
— Oh, Vanessa, por favor. Eu só estava tirando sarro.
— Cuidado — preveniu Vanessa com um tom satírico. — Tirar sarro não é expressão que se use quando tem gente por perto, é o que nossa mãe diria. — Vanessa mudara de voz. Ficou evidente que ela estava imitando Hattie Dorsett. Em seguida Vanessa virou-se para a Dra. Wilbur e disse:
— Doutora, nós nunca fomos crianças fora do círculo familiar. Em casa nem sequer a palavra dane-se era permitida.
— Não está direito criticar a mamãe — disse Mareia.
— Oh, você me deixa doente com seus pieguismos. Você nunca foi capaz sequer de desatar o cordão umbilical. É assim que se diz, não é, doutora? É por isso que esta linda senhora vai ajudá-la a criar-se.
— Vanessa, por favor. . . — suplicou Mareia. — Não é nenhum crime a gente querer ser amada.
— Céus. . . céus — eu diria meu Deus, se não tivesse sido criada na casa dos Dorsett — você me parece uma novela de rádio com água açucarada — Vanessa frisou cada palavra com gestos extravagantes.
— Vanessa, não fica bonito você falar dessa maneira — respondeu Mareia com lágrimas nos olhos.
— Bonito! O que sabemos nós do que é bonito?— foi o que contrapôs Vanessa. — Então acha bonito que nos seja negado aquilo que todas as outras garotas possuem? Algum dia ainda hei de me libertar e de viver a minha própria vida e então você, minha querida, virá comigo. Você tem o gosto pela vida, a vitalidade que ela requer, e nós sempre estivemos juntas; mesmo muito antes que você entrasse na vida de Sybil. Mareia, você irá aprender que pode dormir à noite e sentir-se bem quando se levanta, pela manhã, mas somente se você estiver disposta a se desprender das coisas do passado. Está lembrada do que aconteceu com a mulher de Lot?
— Vanessa — suplicou Mareia —, você já falou bastante. Se continuarmos a falar desta maneira uma com a outra a doutora vai pensar que estamos falando para nós mesmas.
— Não — interrompeu a- doutora —, compreendo perfeitamente que vocês são duas pessoas diferentes. Quero que vocês se sintam completamente à vontade aqui em meu consultório, sempre que quiserem vir e dizer o que bem entenderem.
— Quando não temos a concorrência das outras — disse Mareia maliciosamente. — Por exemplo, Vicky. Ela é muito esperta e nos ajuda um bocado. Mas fala demais.
— Quase tanto quanto Vanessa.
Visto que a hora já havia se esgotado, a doutora perguntou:
— Quando saírem daqui, o que planejam fazer?
— Eu gostaria de ir ao aeroporto internacional e pegar um avião que me levasse a algum lugar — disse Vanessa sem hesitação. — Mas a última vez que fiz isso Peggy Lou embrulhou todas as coisas. Eu comprei uma passagem para San Francisco e ela para Cleveland. Por isso creio que vou diretamente para casa tocar um pouco de Mozart.
— Vou para casa — disse Mareia espontaneamente —, para continuar a redigir o meu artigo para Coronel.
— Pois bem, quero que se sintam completamente à vontade para voltarem quando quiserem.
Quando elas foram embora a Dra. Wilbur ficou pensando em como seria possível ficar Vanessa a martelar no piano enquanto sua irmã escrevia seu artigo a máquina. Eram duas pessoas, mas tinham apenas duas mãos.
Durante três dias seguidos Mareia e Vanessa voltaram e a doutora começou a imaginar o que teria acontecido com Vicky, Mary, Peggy Lou e com a própria Sybil. Com estas três visitas sucessivas a doutora estava em condições de remover sua incredulidade inicial de que Mareia e Vanessa, que pareciam tão diferentes, fossem boas amigas, intimamente ligadas. O vínculo que as ligava era o dinamismo de que as duas estavam possuídas.
Ainda mais: havia diferenças. Em Vanessa havia entusiasmo, sensibilidade que eletrizava, e plenitude de energia. Ela gesticulava de maneira extravagante, tudo dramatizando. Mareia era uma versão mais calma de Vanessa, mais sombria e sorumbática. Embora Mareia tivesse um espírito desprendido era, basicamente, uma pessimista. Ela dava vazão ao seu estado de ânimo com Vanessa ou, então, lendo livros. Essencialmente, encarava a vida como sendo uma coisa "horrível e vã" e, dos homens, dizia que eram "simplesmente horríveis".
O que Vicky havia dito a respeito da participação de Mareia nos sentimentos de Sybil, ao mesmo tempo intensificando-os, parecia verdadeiro. Também o que Vanessa dissera indiretamente a respeito de Mareia e de novelas de rádio açucaradas parecia verdadeiro. Quando Sybil e as outras ficavam vendo alguma coisa triste na televisão, era Mareia quem desatava a chorar. Mareia chorava copiosa-mente sempre que uma criança ou um cachorro voltavam para sua casa, eram levados de volta a seus pais ou então encontrados pela mãe. Mareia, que havia censurado Vanessa porque esta tinha criticado a mãe delas, foi a que chorou mais a morte da mãe.
Pouco depois que Vanessa e Mareia chegaram pela quarta vez ao consultório da doutora, Vanessa montou uma representação.
— Até logo, querida — disse Vanessa em voz agradável. — Sinto ter que deixá-la. Vou sentir saudades suas, mas acontece que vou tentar me distrair e divertir na Europa. Tentar, sim, querida. Mas vai ser difícil, porque vou sentir saudades suas. — Em seguida, mudando de posição e falando à parte, Vanessa explodiu:
— Não lhe suporto a cara. Gostaria que a filha da puta fosse embora e deixasse o terreno limpo.
E, mudando de voz e posição, Vanessa passou de mansinho para o papel da segunda mulher que estava vendo a primeira partir.
— Lamento que você me deixe, mas cuide-se, e quero que se divirta na Europa. — Em seguida, voltando-se para um lado, Vanessa, ainda no papel da mulher que não ia viajar, murmurou com uma curva tensa e fechada em seus lábios:
— Tomara que se afogue.
A Dra. Wilbur podia ver claramente duas mulheres se despedindo no cais, perto de um navio prestes a zarpar. A cena foi tão bem representada que a doutora observou:
— Vanessa, você errou de profissão. Você devia estar no teatro.
TESTEMUNHAS SILENCIOSAS
Quando o verão de 1955 cedeu lugar ao outono, a Dra. Wilbur compreendeu que, graças à análise, produzia-se uma "regressão" à primavera de 1934, época do "retorno" de Sybil, após os dois anos de ausência, entre os nove e onze anos. A confusão que Sybil experimentara agravara-se com a descoberta de que, pela primeira vez na vida, não precisava mais dormir junto aos pais. Da mesma maneira como esta constatação primordial já ia se definindo, assim também foram revividas na análise as experiências que ela vivera naquele quarto de dormir, desde o seu nascimento até a idade de nove anos. Aquelas experiências, que se estendiam pelos anos de 1923 a 1932, proporcionaram uma continuidade que a Dra. Wilbur encarava como a origem das atitudes de Sybil para com o sexo e, quiçá até mais importante, como uma incubação da própria doença. O jantar, no primeiro dia do retorno de Sybil, já havia terminado. Corria março de 1934. Os Dorsett estavam na sala de estar. Hattie lia um volume de Tennyson e estava ouvindo rádio. Willard estava absorto nas páginas da Architectural Form. Sybil estava tentando fazer um desenho a carvão, mas sentia dificuldade em se concentrar por causa da estranha concatenação de acontecimentos por que havia passado recentemente.
— Peggy, está na hora de você ir para o seu quarto — ordenou Hattie.
Sybil estava acostumada a ser chamada de Peggy, mas não havia entendido as instruções da mãe. Ela nunca tivera um quarto só para si. Sempre dormira no quarto dos pais.
Sybil disse boa-noite e dirigiu-se para o quarto de dormir do rés-do-chão. Para admiração sua, o berço não estava lá. A única cama que havia no quarto era aquela cama conhecida, branca e de ferro em que seus pais dormiam.
— Peggy Louisiana! — ecoou a voz penetrante de sua mãe, de dentro da sala de estar. — Você não vai subir?
Subir? Sybil não conseguia entender o que a sua mãe estava falando.
— Já passa das oito! — ouviu-se a voz ainda mais penetrante de sua mãe. — Você não vai poder acordar amanhã cedo. E então é a Miss Henderson que irá prestar contas, não a mim.
Lá em cima? Alguns anos antes Hattie tinha determinado um quarto de dormir lá em cima para Sybil. Hattie nunca se preocupara em remover para lá nem o berço e nem Sybil. Nada tendo a perder, Sybil resolveu verificar se aquele quarto seria o que a sua mãe estava indicando.
Mas o berço também não estava nesse outro quarto. Em lugar dele, havia uma cama. Os lençóis, branquinhos e novos, e as fronhas eram convidativos. Seria o quarto para visitas? Mas não havia nenhuma visita. Será que aquela cama de adulto era dela? Sua mãe ordenara que fosse lá. Tinha que ser dela. Mas quando lhe haviam dado aquela cama?
Sybil tirou a roupa e — pela primeira vez — dormiu numa cama de adulto num quarto só dela. Foi a primeira vez em que não se viu obrigada a encarar o drama de alcova que sempre existira.
Sem dúvida não podia ser fixado exatamente o momento em que pela primeira vez constatou que o fato de meramente ir dormir era profundamente perturbador. A causa de perturbação estava sempre ali. Somente agora ela descobriu que poderia ir dormir sem precisar fechar totalmente os olhos ou então virar-se para a parede.
O drama a que Sybil rebeldemente se subtraía é o que, em termos psicanalíticos é conhecido como "cena primal" — uma percepção auditiva e visual que a criança tem das relações sexuais dos pais. A cena se chama primai porque é a primeira no tempo, no sentido de que é o primeiro contato da criança com a sexualidade adulta, tornando-se o fundamento sobre o qual a criança vai construir seus sentimentos futuros, suas atitudes, seu comportamento, e tem, pois, importância capital no desenvolvimento do pequeno ser.
Para algumas crianças não existe cena primai; para muitas outras existe um momento em que a porta se abre ligeiramente e elas, crianças, vislumbram, de relance, uma relação sexual entre seus pais.!; Normalmente, o momento é acidental, e a maneira como a criança é afetada depende da atmosfera geral do lar. Quando a relação sexual é praticada como algo privado porém não proibido, os efeitos deste breve contato com a realidade estão muitas vezes isentos de dano psicológico.
No caso de Sybil a cena primal não consistia numa olhada de relance e momentânea, não era nenhum momento acidental. Era coisa de todo momento, algo que sempre estava presente. Durante nove anos Sybil fora testemunha dos atos sexuais de seus pais como se fossem uma parte fixa e imutável de sua vida, e em notável contraste com a excessiva reserva e frieza do comportamento deles durante o dia.
Em público, seu pai e sua mãe nunca se beijavam, nunca se tocavam, nunca externavam nenhuma ternura um para com o outro, quer apaixonada quer superficial, de mera formalidade. A observação da cópula dos pais se deu, contudo, numa casa em que o sexo era encarado como uma perversão, uma forma de degradação. Sua casa era um lar em que bebida e fumo, dança e cinema e até mesmo novelas (as quais eram consideradas puras mentiras, pois eram coisas "de fantasia") eram rigorosamente proibidos.
As perguntas que a filha fazia a respeito dos fatos da vida ficavam sempre sem resposta. Quando Hattie ficava grávida, Sybil era excluída da verdade "imunda". Quando a gravidez acabava em um aborto e Willard Dorsett enterrava o feto nos fundos da casa, Sybil nunca sabia o que ele estava fazendo, e por que o fazia.
Não existiam cornos nem porquês, mas somente conversas informais sobre uma santidade incorpórea que, negando a carne, dizia que esta era coisa do Demônio.
— Todos os homens — aconselhava Hattie a sua filha — vão lhe causar mal. São medíocres e indignos.
Em outras ocasiões, porém, ela dizia:
— Papai não é igual aos outros homens. — Dizendo isto, porém, ela levava Sybil a julgar que o pai não devia ter pênis, de vez que estava acostumada a ver os pênis dos garotinhos. Com o pai "castrado" e por causa das atitudes negativas para com o sexo inculcadas nela dia após dia, Sybil ficava chocada e confusa com aquilo que via e ouvia à noite.
Com a atenção presa na mentira noturna que exprimia a hipocrisia dos seus anos de formação, Sybil se via forçada a presenciar um drama do qual poderia escapar somente fechando os olhos e tapando os ouvidos.
As sombras usualmente cobriam pela metade o quarto de três metros por quatro. O berço era colocado em posição tal que uma luz da rua brilhava na janela do quarto de dormir, lançando a silhueta de um pênis que Sybil negava que seu pai tivesse. Ano após ano, três ou quatro vezes por semana, desde que Sybil nasceu até alcançar nove anos de idade, as relações sexuais dos pais se realizavam debaixo dos seus olhos e ouvidos. E com muita' freqüência - o pênis ereto podia facilmente ser visto na meia-luz.
Observando essa cena primai, diretamente ou através das sombras desde a época de suas chegadas, uma a uma, na parede, as várias personalidades tinham reações diferentes.
Peggy Lou ficava desperta, inquieta, mas não procurava cobrir os olhos ou desviar a atenção.
— O que é que vocês estão falando? — perguntava ela às vezes.
E Hattie então respondia:
— Durma.
Mas em vez de dormir Peggy Lou esticava os ouvidos na esperança de coordenar o que eles estavam dizendo. Ela não gostava que seu pai e a mãe de Sybil ficassem cochichando a seu respeito. Eles muitas vezes cochichavam a respeito dela à mesa, e então Peggy Lou pensava que também na cama falavam dela. Enraivecida pelo sentimento de estar sendo excluída pela maneira de sempre andarem cochichando, Peggy Lou ficava também furiosa com o farfalhar dos lençóis. Toda vez em que ouvia aquele roçagar dos lençóis ficava com vontade de pará-lo.
Foi um verdadeiro alívio quando se viu deslocada para o quarto de cima, logo depois do enterro de vovó Dorsett, porque assim não precisava mais escutar aquele farfalhar de lençóis.
Em muitas oportunidades, Vicky chegou a ver o pênis em plena ereção, em forma de silhueta. Atrevida e destemida como era, girava os olhos da sombra na janela para a substância sólida na cama. O que acontecia na cama nem sempre se conseguia ver, e quando era possível o que se via não era sempre a mesma cena. Com o corpo encurvado, Willard às vezes se movimentava em direção a Hattie e trepava nela. Outras vezes ele se agarrava a ela, ficando deitados de lado.
No começo Vicky pensou que talvez Willard fosse esmagar Hattie e matá-la; mas, ao invés de morrer, Hattie se agitava com Willard. Abraçavam-se. E as coisas iam acontecendo. . . Vicky tinha decidido consigo mesma que se Mrs. Dorsett não quisesse que ele fizesse aquilo, ela acabaria com aquela patifaria do velho. De qualquer maneira, Vicky sabia que certamente não competia a ela ajudar Mrs. Dorsett.
Em geral os rostos de Mr. e Mrs. Dorsett ficavam ocultos na escuridão. Às vezes o quarto estava suficientemente claro para que Vicky visse os rostos — tensos, esticados, transformados, irreconhecíveis. Retroagindo para as visões dos últimos anos, Vicky nunca podia decidir se aqueles rostos exprimiam êxtase ou se algum espírito maligno se apossara deles.
Muitas vezes Vicky tinha a sensação de que talvez não devesse ficar espiando. Quando constatou que, olhasse ou não olhasse, de qualquer forma acabaria ouvindo alguma coisa, abandonou os escrúpulos. E ela era muito curiosa. Havia alguma coisa mais: Vicky tinha a impressão clara de que Hattie Dorsett de fato queria que sua filha olhasse. Esta "alguma coisa mais" consistia no fato de que Hattie costumava jogar os lençóis para trás, como para pôr à mostra o que estava se passando.
Mareia temia pela vida da mãe.
Mary ressentia-se com a negação da intimidade.
Vanessa sentia-se revoltada com a hipocrisia dos pais, que exibiam na presença da filha a sexualidade que pretendiam negar.
Observando e escutando, dentro daquela câmara paterna de demonstração sexual, estava uma tal de Ruthie, que surgiu na análise durante o reviver da cena primai. Ela era somente uma criancinha, talvez dos seus três anos e meio, e não podia determinar com precisão a data em que entrou na vida de Sybil. Mas de todas as testemunhas silenciosas da alcova paterna Ruthie era a que mais se sentia revoltada. Agindo em consonância com Sybil, que naquela ocasião era da sua mesma idade, Ruthie se vingava dos seus pais com indisfarçável fúria.
Quando os pais entravam no quarto Ruthie ficava bem quietinha, fazendo de conta que estava dormindo. A simulação continuava enquanto os pais tiravam a roupa — Hattie no quarto de dormir e Willard no banheiro sem porta. Mas quando os pais caíam na cama e o pai começava a se mexer ao lado da mãe, Ruthie fazia notar a sua presença — "vai dormir, mamãe", dizia ela. "Dormir, papai."
Ruthie ficava com raiva porque não queria que seu pai ficasse deitado no lado da cama que era da mãe. Ruthie não gostava que o pai cochichasse para a mãe, que a abraçasse ou que ofegasse pesadamente sobre ela. Quando ele estava daquele jeito, perto de sua mãe, Ruthie achava que ele gostava mais de sua mãe do que dela.
Certa noite, vendo e ouvindo essas coisas, Ruthie saiu de mansinho do berço e foi bem devagar em direção à cama dos pais. No carro ela sempre sentava no meio. Se ela podia fazer isso no carro, então podia fazer o mesmo no quarto de dormir. Subindo na cama, tentava se enfiar no meio dos pais e reclamava seu direito de posse da parte do meio.
Enfurecido, Willard pulou da cama, nu, arrastando sua filha consigo. Sentou-se numa cadeira, colocou a criança nos seus joelhos e deu-lhe umas palmadas. Em seguida colocou-a de novo no berço e voltou para junto de sua mulher, deixando claro que tanto para Hattie como para ele mesmo a relação sexual interrompida tinha que ser seguida por um sono interrompido, pois os soluços agoniados que saíam do berço desde o momento em que a criança fora colocada lá ainda não haviam cessado com o clarear do dia.
— Nunca mais — disse Willard a Hattie. — Nunca mais vou espancar aquela criança. Toda pessoa que soluça a noite inteira é porque leva as coisas muito a sério.
Willard Dorsett, que antes não havia aplicado nenhuma sova em sua filha e que cumprira a promessa de não tornar a espancá-la, não sabia que haviam sido Ruthie e Sybil que haviam estragado a cópula, mas que quem ficara soluçando a noite inteira fora Peggy Lou. O incidente foi tão traumático que Sybil, que participara da aventura com Ruthie, apagou-se e transformou-se em Peggy Lou.
Naturalmente Willard e Hattie Dorsett não estavam tão perturbados com a perda de uma noite de sono, pois continuaram a ter relações sexuais na presença da filha. E Sybil continuou sendo exposta à cena primai até a idade de nove anos.
Às vezes sendo despertada, ou então já acordada e inquieta, Sybil tentava impedir o insistente farfalhar dos lençóis engomados da cama dos pais, os cochichos, os murmúrios e as silhuetas. O pênis de sombra e substância sólida que as outras personalidades viam para Sybil constituía um objeto de negação. Ela se queixava de não ter visto o pênis do pai até aquela manhã em que o pai se curvara sobre o berço para lhe dizer que vovó Dorsett havia falecido. Naquele momento Sybil, com acanhamento, notou a massa de cabelos no peito do pai. Ficou pensando por que se espantara tanto assim e então chegou à conclusão de que não fora devido à quantidade de cabelos no peito do pai. Afinal de contas, quando era criancinha não tinha muitas vezes cortado de brincadeira os cabelos do peito do seu pai? Ao contrário, o que a deixou espantada foi o que ela pôde ver mais abaixo. Realmente, visível, havia alguma coisa de que ela se esquivou com repugnância. Estava em parte escondido, e a descrição mais verídica que podia fazer era que estava escondido em plumas. Não era muito grande, mas era maior do que aquilo que ela já vira em qualquer criança. Era da grossura e tamanho um pouco maior do que o dedo polegar do seu pai, mas não era comprido. Quando seu pai se inclinou, aquela coisa ficou dependurada. Atrás dessa coisa, em ambos os lados, dois amontoados de massa também caindo para baixo, dependurados. Sybil achou tudo tão pavoroso que a princípio não atinou perfeitamente com o que ele havia dito sobre a vovó.
Se Sybil se sentia terrificada pela masculinidade do pai, Willard Dorsett estava igualmente terrificado pelo desenvolvimento da feminilidade de sua filha. Tinha somente dois anos e meio quando ele repentinamente começou a insistir em que ela era "grande demais" para sentar-se em seu colo, que era "grande demais" para sair e entrar no banheiro enquanto ele estava se barbeando. Quando atingiu a idade de quatro anos, havia-se tornado "grande demais" para cortar os cabelos do seu peito ou passar pomada em seus pés, ambas atividades que ela vinha exercendo há mais ou menos um ano. Como um metrônomo, a frase grande demais ocultava os impulsos incestuosos em Willard Dorsett.
Mas a filha dos Dorsett não era grande demais, mesmo aos nove anos, para ser deliberadamente exposta à visão e aos sons das intimidades sexuais de seus pais.
A RISADA ESCABROSA
Quando Sybil estava com seis anos de idade houve um intervalo fora da casa branca com venezianas pretas.
Efetivamente, quando estourou a Grande Depressão, Willard Dorsett sofreu diversos reveses, chegando a perder sua casa. Willard vendeu-a à irmã em pagamento de uma velha dívida e, praticamente sem um único centavo, foi, com a mulher e a filha, viver na fazenda que pertencia a seus pais, distante cerca de dez quilômetros de Willow Corners.
A única moradia existente naquela terra de quarenta acres era uma casinha de um cômodo, da qual os Dorsett fizeram sua moradia temporária. Bem no alto de uma colina em terreno ondulado, o novo lar deliciava Sybil, a qual via nele o fim de estranhas ocorrências na casa branca com venezianas pretas onde tinha sempre vivido.
Na fazenda, que Willard apelidou de Os Quarenta, o outono cedeu lugar ao inverno e o inverno à primavera. Nevara durante três dias, mas agora tinha parado. Willard Dorsett estava empilhando lenha — estava-se em março, e ainda fazia frio — e estava falando a Sybil naquela sua voz usualmente suave:
— Nós vamos sair e deixar a mamãe sozinha. Com isto ele queria dizer que iam voltar ao grande carvalho, no sopé da colina, que eles haviam serrado antes que a neve começasse a cair. Ela se divertia com todas as coisas que podia fazer em casa — colorir com seus lápis de cor, brincar com suas bonecas, fazer vestidinhos para elas, brincar com o cachorrinho Top, o grande airedale que seu primo Joey lhe havia dado, e ler na cartilha que seu pai lhe havia comprado. Mas valia a pena sair de novo.
— Vamos sair já? — perguntou ela.
— Logo que eu avisar a mamãe — disse seu pai.
— Mamãe. — Ele sempre a chamava assim, mas Sybil mesma nunca disse nada a não ser "mãe". Já fazia muito tempo que Sybil tinha deixado de chamá-la de "mamãe", desde quando ainda era uma criancinha. Agora Sybil tinha seis anos e dois meses.
Seu pai era assim. Tão agradável, tão alegre e tão próspero até antes de ir para lá — para aquela casinha de um cômodo no topo de uma colina. Mas só via o trabalho — desenhando e construindo todas aquelas lindas casas, igrejas e celeiros para o povo. Alguns o chamavam "mestre construtor". Ele nem sequer tinha tempo para prestar atenção.
No fundo do cômodo, que servia de sala de estar, de quarto de dormir e de quartinho de brinquedos, havia uma figura que não podia se movimentar. Sua mãe. A seu lado brilhava o lampião de querosene que iluminava o quarto nos dias escuros.
Sybil podia ver os cabelos cinzentos de sua mãe, o coque atrás preso por três alfinetes de osso, cachos e as trancas na frente. Embora estivesse pela metade da tarde, vestia um roupão de flanela azul-escura e nos pés usava chinelos felpudos de feltro cinzento. Suas mãos pendiam dos lados do corpo e estava com a cabeça tão abaixada que dificilmente se conseguia ver-lhe o rosto.
Imaginem o pelicano que havia em cima do piano na grande casa de Willow Corners: sua mãe se parecia com ele, ou então com a estátua no museu de Rochester. Sua mãe não costumava ficar daquele jeito. Costumava não ligar para si, era um tipo de mandona, arrogante. "Hattie Dorsett anda de cabeça tão erguida", foi o que Sybil ouviu certa vez um vizinho dizer, "que seria incapaz de ver uma cratera no chão."
Havia outras coisas também diferentes entre sua mãe de agora e aquela de Willow Corners. Aquela mãe lá fazia coisas para a gente; esta mãe de agora não fazia coisa nenhuma.
Seu pai aproximou-se da mãe e fez sinal para Sybil. Sybil sabia o que aquilo significava. Não gostava de fazer aquilo, mas seu pai tinha as mãos aleijadas e não podia levantar sua mãe sozinha. Agora que sua mãe estava naquela situação tinha que ajudá-la.
Sua mãe não prestava a mínima atenção, mesmo quando seu pai e Sybil estavam em cima dela. Não notava quando a erguiam para levá-la até o penico branco esmaltado que havia para suas necessidades.
Uma sombra passou pelo rosto do pai enquanto estavam esperando que ela terminasse. Em seguida levaram-na à cadeira e o pai foi despejar o penico cheio.
Sybil estava sozinha com sua mãe. Em Willow Corners, na casa com venezianas pretas, Sybil sempre tinha medo de ser deixada sozinha com a mãe. E no entanto aqui não tinha medo. Esta mãe daqui não fazia nada com ela. Era uma senhora de quarenta e sete anos, que tinha que ser tratada como uma criança.
Agora tinham que fazer tudo para sua mãe. Não podia ir até a latrina, que ficava do lado de fora. Tinham que vesti-la e dar-lhe de comer. Engolia as coisas tão devagar que até os líquidos levavam horas para descer.
Na grande casa, sua mãe cozinhava e Jessie cuidava da limpeza. Aqui não havia nenhuma Jessie e quem cozinhava era seu pai, que apanhava água da fonte e lavava a roupa no rio. Ele tinha que se virar com tudo — e ainda com aquelas suas mãos aleijadas em conseqüência da nevrite — que lhe voltara, em Willow Corners.
— Sybil virou-se da sua mãe para Norma, a sua boneca, — Norma — disse ela —, eu vou sair. Você vai dormir, assim não vai se sentir só.
— Mamãe — disse seu pai à mãe —, vou levar Sybil comigo. Você não se importa?
Por que ele falava com ela, se ela não o escutava? Ela não ouvia coisíssima nenhuma. Seus olhos ficavam abertos e quando alguma coisa lhes passava pela frente nem sequer piscavam. Sua mãe não estava dormindo, mas não ouvia nem via nada. E quando falavam com ela nem abria a boca para responder. Parecia uma múmia!
— Sente-se, papai — disse Sybil, enquanto ele tirava seu casaco forrado de pele de carneiro da caixa almofadada que fizera para guardar a roupa. O casaco era muito lanudo e peludo. Ia-lhe muito bem sobre as calças largas. Nunca usava sobretudo, como" os homens que trabalhavam para ele em Willow Corners.
Quando seu pai se sentou, ela lhe abotoou o colarinho e depois o ajudou a vestir o casaco. Também lhe pôs as galochas. "Levante o pé", dizia.
Gostava muito de fazer isso para o pai. Só depois de suas mãos terem ficado impossibilitadas foi que lhe permitira voltar a fazer coisas para ele. Quando era pequena, ele voltava cansado para casa, depois de um dia duro, e ela lhe passava um ungüento nos pés. Mas, de repente, ele resolvera passar o ungüento sozinho.
— Por que não posso fazer isso? — perguntara. — Não fiz bem?
— Sim, sim, você fez muito bem — replicara. — Mas está grande demais.
Aquele grande demais. Não podia compreender. Por acaso era grande demais para seu pai?
— Pronto, papai — disse. — Já pode levantar. Ela vestiu o casaco de lã vermelho com gola de castor, as polainas marrons de crochê, as galochas com três fivelas e o gorro de lã vermelha. Nunca se olhava no espelho. Não gostava de olhar-se. Sua mãe lhe dizia que tinha um nariz esquisito.
—- Papai, estou pronta — anunciou. — — Estou indo — disse ele. Depois, foi até a cadeira de sua mãe. Para protegê-la contra o frio da tarde, já que a estufa não dava bastante calor, colocou-lhe o casaco preto sobre os ombros, como se fosse uma capa. Então saiu com Sybil.
Lá fora tudo era branco e maravilhoso. Quando chegaram era outono, e agora a primavera estava começando. Em breve as folhas brotariam das árvores, e como Sybil ansiava por isso!
— Que lugar lindo! — dissera seu pai.
Seu trenó estava do lado de fora, ao lado da porta, e seu pai disse:
— Quando voltarmos você pode ir nele. — Como ela gostava de andar de trenó colina abaixo, pela colina arredondada e coberta de neve em cima da qual se erguia sua casa! Ela nunca batia no sulco da terra. Tinha cuidado.
Passaram a pilha de lenha. Gostava de ajudar seu pai a carregar lenha, ou de carregá-la em seus braços. Ela apanhava um pedaço de madeira, colocava-o de través nos braços dele. Seu pai estava fraco e o trabalho para ele era difícil. Mas o fazia.
Sybil pensou naquele dia de outono, quando fora para lá com seu pai e sua mãe. Nunca iria esquecer aquela viagem. Ninguém falava. Dos três, pela maneira como os outros se portavam, estava claro que ela era a que menos estava preocupada com a casa perdida. De vez em quando tentava quebrar o silêncio com alguma conversa, mas sabia que seus pais não estavam prestando atenção, e por isso também ficava calada. No entanto sua mãe costumava dizer:
— Um galinheiro só serve para pintos. Seu pai respondia:
— É limpo, e nele nunca morou pinto nenhum. — Então o pescoço de sua mãe ficava todo vermelho e ela começava a zombar:
— Claro, nós somos os primeiros. Quando me casei com você nunca podia imaginar que você me levasse para um poleiro. E sua irmã Clara fez isto conosco. Foi tolice sua deixar que ela fizesse isto. — Seu pai se virava, concentrado na viagem, e não respondia nada.
Sua mãe já não zombava mais. No Natal começou a mudança. Mandou dizer a seus pais, irmãos e irmãs em Elderville, Illinois, que aquele ano não haveria troca de presentes. Mas mesmo assim os parentes mandaram presentes e sua mãe, que não tinha dinheiro para comprar nada para eles, ficou muito deprimida. Depois daquilo parou de falar e de fazer qualquer coisa.
Sybil lembrava-se daquela vez em que eles tinham vindo para fazer uma simples visita. Certo dia seu pai lhe havia dito que ainda iriam construir uma casa de veraneio, e que quando ela fosse suficientemente grande teria um pônei. Não é que de repente tinham vindo mesmo para cá!? Não tinham construído uma casa, mas de qualquer forma tinham vindo. Papai e mamãe não tinham gostado nada, mas ela sim. Era muito melhor aqui do que naquela casa enorme. ,
Como era gostoso descer pela colina com seu pai e seu Top, que também viera com eles! Ele parava quando chegavam ao celeiro ao lado da colina. O celeiro tinha estábulos, onde criavam uma vaca e cavalos. Às vezes Sybil vinha aqui com seu pai para selar os cavalos. Ela era muito pequena para colocar os arreios no lugar, mas quando ficava em pé na cadeira de tirar leite tinha altura bastante para poder ajudar o pai a selar o cavalo.
Como era lindo voltar para a sua árvore! Quando não nevava vinham quase todos os dias buscar madeira daquela árvore. Ela queria cortar toda a árvore, mas seu pai dizia que estava tão grande que os dois sozinhos não conseguiriam cortá-la.
Havia muitas árvores, carvalhos e olmos. Era lindo.
Estava agora num terreno lavrado, todo coberto de neve, onde o carvalho os esperava. Quando colocou a não na árvore, Sybil disse:
— Papai, ela ainda se lembra de nós.
— É tão tranqüilo aqui, Sybil — disse seu pai. Ela sabia que ele estava tentando esquecer todas as coisas que o entristeciam — a mãe e o resto.
O sol estava claro. Ela podia ver a casa em cima da colina, brilhando ao sol. Ela e o pai continuaram a trabalhar. Havia enorme quantidade de árvores. Podia ver suas sombras no campo.
— Eu gosto de sombras — disse ela.
De repente surgiu alguma coisa de novo, que nem ela sabia o que era, mas que percebia. E o pai lhe perguntou nervosamente:
— Você ouviu aquela gargalhada?
— Não há ninguém por aqui — respondeu ela.
— Mas você ouviu a gargalhada? — perguntou ele novamente.
— Ouvi, sim, mas não sei quem é — disse Sybil, enquanto olhava para o campo dourado.
Ouviu-se novamente a gargalhada. Era um som agudo, estridente, que aumentava de intensidade. Sybil começou a tremer. Conhecia aquela risada, mas tinha medo de admitir que fosse aquela pessoa. Em Willow Corners ouvira muitas vezes essa risada, que apareceu quando foi obrigada a ficar encostada à parede e bateram-lhe nas costas com um cabo de vassoura. Davam-lhe pontapés com um sapato de mulher e lhe enfiavam pela garganta abaixo um pano de lavar. Estava amarrada ao pé do piano enquanto uma senhora tocava. Introduziam nela objetos, coisas cortantes que a machucavam, e também água fria. Era forçada a segurar a água dentro de si. A dor, o frio cada vez pior, e sempre acompanhados da risada. Quando a colocavam dentro dum baú no sótão ouvia aquela risada. A risada não deixou de acompanhá-la quando esteve enterrada no paiol de trigo, quase sufocada.
A risada desapareceu e não voltou mais, mas aquele som penetrante e agudo, que chegava aos seus ouvidos trazidos pelo vento de março, desfizera a quietude daquela tarde, a sua paz e toda a sua felicidade. —- Sybil levantou os olhos. Sua mãe estava no topo da colina, em frente à casa, perto do trenó. Como podia ser, se há poucos instantes ela estava como uma múmia? A princípio não se mexia, mas depois Sybil viu que subiu no trenó e ficou sentada. Com os joelhos para cima e os pés na barra de direção, deu-lhe impulso com as mãos livres fincadas na neve. O trenó disparou colina abaixo, ganhando velocidade quando dobrou vertiginosamente para a esquerda, diretamente em direção ao terreno lavrado com o arado que estava coberto de neve.
Traumatizada e apavorada, Sybil ficou imóvel. Em seguida gaguejou:
— Vai bater nos regos! Vai bater nos regos!
Seu pai estava voltado, com as costas para a colina, e virou-se de repente para o lado a que Sybil estava olhando fixamente, e começou a gritar enquanto ia correndo em direção a sua mulher:
— Hattie, pare! Não faça isto, Hattie! Pare!
Sybil não se pôs a correr. Aquela gargalhada deixou-lhe o coração suspenso, e todo o seu corpo gelou. Ela queria correr, sim, mas não em direção à colina, e sim fugindo dela, mas não conseguia correr para parte alguma. Sabia perfeitamente que algum perigo terrível viria logo em seguida àquela risada conhecida. Estaria agora novamente diante daquela mãe de Willow Corners?
A essa altura seu pai estava bastante longe dela, mas Sybil podia ouvi-lo gritar:
— Hattie, Hattie, estou indo. — Ainda em pé no mesmo lugar, Sybil podia ouvir a respiração da mãe novamente perto dela, ameaçadora. Parecia aquele dragão de que lhe haviam falado na igreja, um dragão que vomitava fogo.
Sybil queria correr para fugir ao fogo, mas não conseguia mexer-se. "Corra. Salve a sua pele." E as vozes a gritar: "Você não pode salvar-se. Você é má. . . má... perversa. Por isso sua mãe a castiga".
O trenó aproximava-se cada vez mais. E ela não conseguia mexer-se.
— A manta preta de sua mãe varria a neve, e ficou em parte branca.
Preto no branco.
Top começou a latir e depois a correr, dando voltas, sem saber o que fazer. Outro grito penetrante e agudo e mais uma gargalhada, desta vez mais perto, seguida de silêncio.
Sua mãe tinha batido nos regos do campo lavrado. O trenó se levantou e cuspiu-a. Sua mãe voou pelos ares como um enorme pássaro preto sem asas. Sua sombra, que se movimentava ziguezagueando, projetava-se por toda parte em cima da neve.
Em seguida sua mãe já não estava mais voando e sim caída lá no terreno arado, com seu pai tomando-lhe o pulso.
— Papai! — gritou Sybil.
Sybil tentou aproximar-se deles, mas estava como que colada ao lugar. Olhando seu pai e sua mãe como se estivessem distantes, agarrou com força a serra com que cortavam a madeira, como se com isso pudesse encontrar sossego e acalmar o seu pavor.
O único som que se ouvia era o murmúrio dos galhos das árvores. O campo estava tão silencioso como sua mãe quando a deixara em casa, lá no topo da colina.
O sol ia se pondo, e estava para desaparecer. Sybil deixou a serra cair de suas mãos. Havia-se agarrado a ela talvez porque representasse o elo que a ligava àquele tempo feliz, àqueles meses desde o Natal até agora, quando sua mãe estava totalmente muda e já não mais existia aquela mãe de Willow Corners.
Sybil estava em pé perto do fogão enquanto seu pai se apoiava num joelho, sobre sua mãe, na cadeira. Ele estava aplicando compressas na perna de sua mãe. Sua perna estava muito machucada e inchada. A mãe disse:
— Tinha quase certeza de tê-la quebrado. Depois das compressas, passe um pouco de arnica.
— Mãe, a senhora não devia ter segurado o trenó com tanta força só com um pé. Foi por isso que disparou de lado até o campo arado — disse Sybil suavemente. Voltou-se logo para seu pai e perguntou: — Como é que o senhor conseguiu trazê-la para casa sozinho?
Olhando para o rosto da criança, o pai observou secamente:
— Então não foi você quem me ajudou a puxá-la de volta, colina acima, no trenó?
Ela tinha feito isso? Sybil só se lembrava de ter estado no campo, puxando o serrote, e agora aqui ao lado do fogão.
O pai perguntou:
— Como está se sentindo, Hattie?
— Vou viver — respondeu a mãe.
— Hattie — disse o pai —, você não devia ter se entregado daquele jeito.
— Eu faço o que quero e gosto de fazer — disse sua mãe, rindo. . . com aquela mesma risada.
— Fique deitada, Hattie — ordenou-lhe o pai.
— Mais tarde, Willard — respondeu a mãe. — Agora, apanhe água.
O pai apanhou um balde e foi buscar água na fonte, enquanto Sybil ia pondo arnica nas pernas de sua mãe, que estavam brancas como neve.
Sua perna esquerda estava ficando toda manchada.
— Dói, mãe? — perguntou Sybil.
— Ora esta! — disse a mãe. — Use a cabeça. O que é que você acha?
— Oh — suspirou Sybil.
Seu pai não estava ali; será que sua mãe voltaria a magoá-la? Felizmente seu pai voltou logo com a água. Lavou a perna da mãe e aplicou-lhe compressas. Em seguida fez a janta enquanto Sybil ia pondo a mesa.
— Você está pondo a mesa errado. O lugar dos garfos não é ali. — A mãe de Willow Corners tinha voltado.
O pai apanhou um prato de comida e levou-o à mãe, mas esta observou:
— Vou sentar-me à mesa. Ajude-me. — Sua mãe foi até a mesa e jantou com eles, servindo-se sozinha.
Terminado o jantar, Sybil ajudou seu pai a lavar a louça, e depois aplicaram mais compressas e arnica na perna da mãe. E as horas passaram.
— Sybil, está na hora de ir dormir — disse sua mãe. Depois de muito tempo, era a primeira vez que ouvia isto de sua mãe. Sybil não se mexeu.
— Disse-lhe que fosse dormir — observou sua mãe. .— E tem que ser já, neste instante.
— Que implicância é esta com ela, Hattie? — perguntou o pai. — Ela é uma criança e ajudou muito quando eu a trazia para cá.
Sybil não disse uma palavra. Quando as pessoas diziam que tinha feito alguma coisa que ela desconhecia, o que fazia era calar o bico.
Entrou no berço que haviam trazido de Willow Corners. Seu berço, suas bonecas, sua mesa de boneca e suas cadeirinhas. Eles haviam trazido todas as suas coisas. Vestiu a camisola e o gorro de lã. Agora sua mãe não estava mais rindo, mas Sybil ouvia a risada dela lá em cima da colina. Via ainda aquela manta preta contrastando com a neve. E depois seu pai inclinado sobre ela... como é que ele se metera naquela confusão? A perda da casa em Willow Corners — da noite para o dia, conforme sua mãe costumava dizer, de homem mais rico da cidade a mais pobre. Por que Satanás o tinha atingido assim? Seria isto o começo do fim do mundo, sobre que o pai e o avô sempre falavam?
— Sybil, mexa-se — gritou sua mãe.
— Sybil, enxágüe este pano — observou seu pai.
E Sybil apanhou o pano e enxaguou-o, devolvendo-o ao pai. Ele o colocou na perna da mãe. Sim, Sybil fazia coisas para que a perna machucada da mãe melhorasse.
HATTIE
Ouvindo falar da catatonia de Hattie Dorsett na Fazenda Os Quarenta e de suas aberrações posteriores dentro da comunidade de Willow Corners, a Dra. Wilbur cada vez mais se convencia de que era impossível tratar Sybil sem ter um conhecimento mais profundo e amplo de Hattie. Tudo indicava que Hattie havia forjado uma realidade intolerável, da qual Sybil tinha que se defender para sobreviver. Mesmo levando em consideração o fato de que transformar a mãe da paciente em bode expiatório para explicar as dissociações era um velho clichê psiquiátrico, apontar Hattie Dorsett como a causa principal da dissociação de Sybil em múltiplas personalidades era uma idéia que a seduzia cada vez mais.
Em fins de 1956 e começos de 1957, quando a Dra. Wilbur mais se aproximou da fonte do trauma original que levara Sybil a transformar-se numa criatura de múltiplas personalidades, já não havia muitas dúvidas de que o trauma parecia girar em torno de sua mãe. Foi para aquela mãe de Willow Corners, recentemente saída da imobilidade, na fazenda, que daí por diante a análise se voltou.
Sybil andava pela passagem de cimento da alameda atrás da casa branca com venezianas pretas, quando se aproximou da farmácia de Willow Corners pela primeira vez depois que voltara da fazenda.
A conhecida porta com mosquiteiro e o trinco de ferro alto intrigavam-na e, pondo-se na ponta dos pés, agarrou a peça de ferro e escancarou a porta. Quando entrou pela porta de madeira o cheiro acre que já esperava assaltou-a.
Sybil procurou não respirar porque queria evitar aspirar aquele cheiro odiado. Queria atravessar depressa o compartimento dos fundos com suas mesas altas e paredes cheias de prateleiras entupidas de garrafas, rolhas, tigelas, ervas, corantes e pós brancos, sala em que os remédios eram fabricados pelo Dr. Taylor, um senhor de pele branca, alto e ligeiramente curvo, que Sybil conhecia desde que começara a ter noção das coisas. Mas ela não podia correr, não podia mover seus pés para passar da sala dos fundos para a da frente, onde a farmácia estava toda atravancada de estantes de remédios com enormes caixas de bombons, bonecas, pentes e turbantes de senhoras.
Sybil procurou a escada de madeira que havia entre a sala por que havia entrado e a parte da frente. A escada levava ao encanto da sua meninice — àquela "coisa" grande e desconcertante conhecida como o balcão do Dr. Taylor. Ninguém entrava ali sem ser convidado, e poucos eram os que tinham permissão de entrar. Era o retiro do Dr. Taylor.
Seguindo o corrimão da escada, Sybil procurou confiante pela figura de cabelos brancos do Dr. Taylor perto do teto alto. Ela não conseguia falar nem perguntar nada, mas quase sem poder respirar desejava que o farmacêutico lhe notasse a presença. Fazendo uma pausa entre esses cheiros que lhe provocavam ódio e os convites adoráveis feitos em tom de voz suave, percebeu o rosto gentil e enrugado do farmacêutico espiar por cima da balaustrada do balcão. O Dr. Taylor sorriu e disse:
— Suba, Sybil. Não tenha medo. Está tudo certo. Com toda a rapidez e os dedos dos pés mal tocando o chão, Sybil correu para cima, onde parou de repente, com as mãos agarradas ao corrimão e os olhos escancarados de admiração e prazer. Dependurados pelas paredes e nas mesas de trabalho estavam os violinos, os criadores de música de fabricação do Dr. Taylor.
Ali havia aquela música especial que entrava por uma porta especial, a música acompanhada não de dor, como acontecia em sua casa, mas por um ambiente de amizade e pela confortável maciez da voz do farmacêutico. Sorrindo, o Dr. Taylor tocou um pouco de violino, e Sybil perdeu-se um pouco em seu mundo particular de sonhos.
— Algum dia, quando você for mais crescida — prometeu o Dr. Taylor —, vou fazer um violino só para você. Então você também vai tocar música.
Sybil sonhava com música, e também com quadros pintados. Ela via árvores, árvores escuras, árvores brancas. Via cavalos correndo, e todo tipo de galináceos, todos eles de cores diferentes. Alguns deles com pernas azuis, outros com pés vermelhos e rabos verdes. Ela desenhava esses galináceos e, embora sua mãe lhe lembrasse que os galináceos eram brancos, pretos ou marrons, Sybil continuava a desenhar galináceos como expressão dos sentimentos que sua mãe negava. E o Dr. Taylor havia dito:
— Também você vai tocar música.
Nesse instante, lá do fundo da escada se ouviu uma voz penetrante, forte e estridente. Era a voz de sua mãe que a chamava. Sua mãe, que raramente perdia Sybil de vista, tinha-a seguido até ali. Depressa Sybil pediu licença ao Dr. Taylor, desceu a escada e apareceu ao lado da mãe.
Quando Sybil e sua mãe se aproximaram do balcão da farmácia, um empregado observou:
— Não foi o que lhe disse, Mrs. Dorsett, que iria achá-la junto do Dr. Taylor? — Enquanto o balconista estava embrulhando o vidro de remédio para o qual Hattie havia deixado uma receita, Sybil apoiou o cotovelo no balcão e a cabeça na mão do braço erguido. Sem querer seu cotovelo esbarrou num frasco de remédio patenteado que havia sido deixado em cima do balcão. O frasco caiu no chão, dando um estalo. E com o retinir do vidro a cabeça de Sybil latejou.
— Você o quebrou — veio logo a voz acusadora da mãe. Em seguida surgiu o riso de desprezo dela. Sybil entrou em pânico, e o pânico produziu uma vertigem e a sensação de que a sala estava rodopiando.
— Você o quebrou —- repetiu a sua mãe enquanto agarrava o trinco e escancarava a porta, cujas dobradiças enferrujadas rangiam. Quando sua mãe e ela assomaram à porta e tomaram o rumo da ruela estreita, o cheiro repentinamente chamou-lhe à memória todos os remédios odiados que ela lhe havia impingido. O curto passeio pela ruela, antes tão repleto de expectativas, agora se tornava um passeio de prisioneiro.
Hattie saiu abruptamente da ruela estreita para a rua, e Sybil ficou imaginando aonde estariam indo desta vez; isto porque muitos tinham sido os passeios que Sybil fizera com sua mãe, passeios que preferiria nunca ter feito.
Hattie caminhou rapidamente em direção às carroças que os fazendeiros haviam levado para a cidade e que estavam enfileiradas na Main Street. Depois que os fazendeiros saíram das carroças, a mãe de Sybil aproximou-se e foi se servindo de ervilhas e milho, que colocava no avental. Havia outras pessoas que estavam fazendo o mesmo, mas Sybil se sentia acanhada porque seu pai havia dito que agir daquela forma era o mesmo que estar roubando.
— Pegue também alguns — ordenou a mãe, mas Sybil se negou, da mesma forma que se recusara a apanhar tomates do jardim de legumes de Tomley, ou então maçãs, aspargos, lilases ou algum outro produto das plataformas de carregamento atrás dos armazéns. Mesmo quando a mãe justificava a sua atitude dizendo que os artigos surrupiados não fariam falta aos seus donos porque eles sempre tinham mais do que precisavam, ou então que os produtos nas plataformas de carregamento ficavam expostos ao sol e acabariam se estragando, Sybil tinha a sensação de que era errado roubar. E continuou tendo a mesma sensação de que era errado, mesmo com a explicação deslavada que sua mãe dera ao fazendeiro, ao dono do armazém ou ao vizinho:
— Não tive oportunidade de perguntar se podia apanhar alguma coisa. Mas o senhor tem tanto, que estou certa de que não vai se importar.
De qualquer forma pareceu-lhe especialmente errado o que aconteceu naquela tarde em que, deixando as carroças, Sybil e sua mãe se dirigiram ao quintal de frutas e legumes pertencente à família Bishop. Seu pai havia advertido sua mãe que não fosse bulir com a propriedade dos vizinhos.
— Apanhemos alguns — sugeriu Hattie de maneira conspiratória, quando Sybil estava passeando com ela em direção aos canteiros de ruibarbos dos Bishop. Hattie curvou-se em cima dos canteiros, mas Sybil hesitou.
— Engraçadinha, você vai ser a primeira a se empanturrar com o pastelão de ruibarbos — zombou Hattie enquanto ia puxando as melhores hastes. Mas nem nessa nem em outra ocasião qualquer Sybil conseguiu comer o pastelão de ruibarbos ou conformar-se com o fato de que a mãe de Willow Corners havia retornado.
Este o tipo de mãe que criava problemas a Sybil, não somente nas ruas como também nas funções religiosas da igreja. Nessas ocasiões Hattie tornava-se escandalosa. Willard aconselhava, sussurrando:
— Não diga isto — e justamente então é que Hattie gritava alto, para Deus e todo mundo ouvir:
— Ele está dizendo que eu não deveria dizer nada.
— Era incrível — declarou Vicky na análise. — Eram coisas incríveis as que Mrs. Dorsett fazia. Quem diria que uma mulher do seu gabarito faria tamanho escândalo na igreja, ou então que iria tornar-se uma canalha das que ensinam crianças a roubar? Mas canalha que ensina crianças a roubar não há dúvida que ela era, quando queria que cooperássemos no roubo de coisas alheias. Mas nenhuma de nós nunca o fez. Nenhuma mesmo!
Mas Hattie conseguira despertar também um sentimento que feria mais profundamente do que o constrangimento. Essa emoção era constituída de vergonha — o sentimento rude e despudorado que uma filha sentia observando sua mãe em atitudes de narcisismo, espiando pelas janelas das casas dos outros ou então jogando piadas sobre os pecadinhos sexuais de pessoas que provinham daquela camada social que ela chamava de "baixa ralé".
— Hattie Dorsett não regula — diziam os habitantes de. Willow Corners. Mas se, em virtude de ser exímia surrupiadora de ruibarbos dos seus vizinhos, ou por gritar alto nas funções religiosas, na igreja, ou porque se levantava da mesa para executar, sozinha, uma dança num restaurante onde não havia nem música nem dança, Hattie Dorsett era tida como esquisita, por outras atitudes que tomava em público podia ser qualificada como verdadeira louca.
Por exemplo, havia as célebres escapadelas noturnas de Hattie.
Às vezes, ao escurecer, ou depois do jantar, ela intimava Sybil com um brusco "agora vamos passear". Tomada de intenso pressentimento e medo porque sabia o que iria acontecer, aos três, quatro e cinco anos, Sybil acompanhava-a documente, e elas saíam de casa e perambulavam pela cidade.
Iniciada como mero passeio, a andança acabava se transformando num ritual diabólico. Com efeito, com sua cabeça erguida e porte empertigado, conforme convinha à filha do prefeito de Elderville e esposa de um dos mais ricos habitantes de Willow Corners, Hattie Anderson Dorsett avançava da calçada, do prado ou do pátio do fundo para as matarias. Observando aquela cena Sybil sentia repugnância ao ver sua mãe descer as ceroulas, acocorar-se e, numa decisão ritualística e com prazer perverso, defecar no lugar escolhido.
Não restava dúvida de que aquela era uma eleição, e a defecação constituía um emblema honorífico. Sim, aquelas escapadas de Hattie Dorsett faziam parte de um grande desígnio no sentido de silenciar a elite da cidade devido à sua hostilidade e desprezo. Durante os anos em que essas fugidas se deram — 1926, 1927 e 1928 —, os Stickney e Mrs. Vale competiam com Willard Dorsett pela conquista do título de pessoa mais rica da cidade. Como editor do jornal de que Hattie era uma colaboradora gratuita, Harrison Ford era seu chefe. E por isso Hattie escolhia como alvo de seu desprezo defecatório pessoas de prestígio da localidade que ameaçavam seus próprios sentimentos de onipotência. Transformando a sua expressão mais corriqueira "estou cagando para vocês todos" num fato concreto, ela reagia à maneira de uma psicótica, deixando-se guiar pelo inconsciente, que encara todas as secreções como dons de força.
Hattie Dorsett não fazia segredo de que aquela merda era destinada a encher a boca dos Stickney, de Mrs. Vale ou de Harrison Ford ou, quando feita no terreno de sua própria casa, para Willard Dorsett. Hattie de propósito cagava nas propriedades das suas vítimas, exatamente no lugar onde seu desprezo podia ser evidenciado. Era um ato de crueldade mental, que patenteava o desejo do inconsciente de despejar sobre determinadas pessoas sua ira fecal.
Nem os Stickney nem Mrs. Vale nem Harrison Ford nem Willard Dorsett, e nem a própria cidade pareciam dar a mínima importância a essas defecações de Hattie. Sybil lhe implorava:
— Mãe, alguém vai ver a senhora. — Hattie invariavelmente respondia:
— Que comam a merda.
Parece, também, que a cidade não percebia as incríveis apresentações de Hattie Dorsett aos domingos, quando ela se fazia de ama-seca de um mundaréu de crianças cujos pais estavam na igreja.
Aparentemente, nada havia de mais virtuoso, mais inofensivo, mais publicamente maternal do que cuidar das crianças de um vizinho e, na realidade, as brincadeiras iniciais de Hattie com essas crianças tinham uma inocência angelical.
— Nós vamos de cavalinho — dizia-lhes quando se punha de quatro e animava-as para que fizessem o mesmo. — Agora corram feito cavalo. — Quando as crianças gritavam de alegria ao vê-la fazer aquilo, Hattie fazia-lhes sinal para que fizessem o mesmo. Depois, quando as garotinhas, imitando o andar de cavalos, mexiam-se como haviam sido instruídas a fazer, de sua posição no chão Hattie revelava a finalidade da sua "brincadeira". Enquanto ia gritando "upa, upa", seus dedos funcionavam nas vaginas das garotinhas. Observando aquilo, Sybil e as outras personalidades reagiam com a mesma vergonha que haviam sentido durante as peregrinações defecatórias.
A perversão, que era mais do que "extravagância", tornou-se também evidente uma tarde quando Peggy Lou, espiando para dentro do quarto de dormir de Willard e Hattie, viu a mãe de Sybil completamente nua, em cima da cama, com uma criancinha entre as pernas. A mãe de Sybil levantava a criança para cima e para baixo com os seus quadris e esfregava-a no meio de suas coxas. A criancinha de dezoito meses era o filho de uma vizinha, do qual ela estava tomando conta. Peggy Lou franziu as sobrancelhas e pensou, como disse à Dra. Wilbur na análise:
— O que a mãe de Sybil estava fazendo não era bonito. — Em seguida Peggy Lou afastou-se da sala em silêncio, satisfeita por saber que Hattie não era sua mãe.
A vergonha surgia também quando Sybil perambulava pela floresta, em direção ao rio, com a mãe e três adolescentes amigas de Hattie. Todas as três — Hilda, Ethel e Bernice — provinham da "ralé", e Hattie dava a entender que sua amizade por elas era uma forma de prestação de serviço social.
Durante o dia Sybil não via seu pai e sua mãe se beijarem ou darem-se as mãos. Mas quando ia ao rio via que sua mãe fazia estas coisas com suas amiguinhas especiais. Nessas ocasiões, sua mãe dizia:
— Você espera aqui enquanto nós vamos atrás daquele bosque para vestir a roupa. — Sybil, já com sua roupa de banho, ficava esperando a vida inteira. Nas primeiras vezes em que sua mãe foi atrás das árvores Sybil não deu a mínima importância ao tempo que sua mãe e suas amigas levaram para voltar.
Certo dia, porém, começou a ficar intrigada quando, andando com dificuldade pela margem do rio, na beirada em declive, percebeu que Hattie e as amiguinhas estavam demorando demais, atrás da moita, para vestir as roupas de banho.
Sybil não teve coragem de chamar a mãe, mas resolveu contornar a moita, na esperança de ser vista. Quando se aproximou, ouviu vozes macias — as vozes da mãe e das amiguinhas dela. O que estavam fazendo? Do que estavam falando? Aguilhoada pela curiosidade, Sybil afastou algumas folhas, para ver.
Sua mãe e as amiguinhas não estavam vestindo roupa nenhuma. A roupa estava perto, num montão. Sua mãe e as amigas não estavam em pé. Seus vestidos estavam puxados para cima e arregaçados até além da cintura. Nuas da cintura para baixo, mãe e garotas estavam deitadas no chão, agarrando-se com as mãos, as nádegas de fora e os dedos trabalhando. As palmas das mãos se acariciavam. Os corpos rebolavam. Expressões de êxtase. Todo mundo parecia estar segurando alguma coisa. As mãos de sua mãe estavam mexendo na vulva de uma delas.
São brincadeiras de cavalinho — pensou Sybil quando se virou e arrastou-se lentamente para a beira do rio. Com seus três anos Sybil não podia pensar em outra descrição para a masturbação mútua, para o encontro lésbico, senão aquela.
E naquela beira de rio ela foi testemunha muda durante três verões seguidos. Todas as vezes ela perambulava por perto do rio, brincava com as pedras e sempre espreitava a cena atrás das moitas ou ficava esperando que aquilo tudo terminasse. Como ela desejava que sua mãe e as moças andassem depressa!
CRIANÇA SEVICIADA
No início de 1957, a análise revelou a existência de um drama de crueldades, rituais secretos, castigos e atrocidades infligidos por Hattie em Sybil. A Dra. Wilbur estava convencida de que a raiz da dissociação de Sybil e múltiplas personalidades constituía um amplo e complicado tema de captura-controle-prisão-tortura que permeava todo o drama.
Criatura normal ao nascer, especulava a doutora Sybil resistira até a idade de mais ou menos dois anos è meio, quando praticamente sua existência foi vencida Procurara meio de salvação fora de si até que, reconhecendo finalmente que esta lhe seria negada, resolveu lançar mão de um meio que lhe adviesse de dentro. Inicialmente havia salvação criando um mundo aparentemente cercado pelo amor de uma mãe fantasiosamente amorosa; mas levantava a médica a hipótese, sendo uma personalidade múltipla, este seria o último recurso. Dividindo-se em diferentes personalidades que constituíam defesas não só contra uma realidade intolerável, mas também perigosa, Sybil encontrara um modus operandi para sobreviver.
No campo, a mãe contra quem Sybil tinha que se defender ficara imobilizada pelo que a Dra. Wilbur interpretou como a fase catatônica da esquizofrenia. Mas o retorno a Willow Corners trouxera consigo uma mãe que, já não estando imobilizada, era novamente ameaçadora. A realidade se tornou de novo perigosa e mais uma vez Sybil procurou sua forma habitual de enfrentá-la.
No momento em que Hattie Dorsett havia caçoado dela: "Você será a primeira a comer do pastel de ruibarbo", Sybil, irritada, passara a ser Peggy Lou.
Voltando para casa com a mãe de Sybil, Peggy Lou foi brincar na varanda envidraçada; fechou a porta e começou a agir como se Hattie Dorsett não existisse. Peggy pegou seus lápis, sentou-se no linóleo e começou a desenhar e a cantar uma cantiga que seu pai lhe ensinara: "Um trem chega pela curva, carregado com os homens de Harrison, adeus, meu amor, adeus".
Quando Hattie gritou: "Pare com esse ruído infernal", Peggy Lou continuou cantando.
— Você tem que encontrar alguma outra coisa de que gostar além da música e de todos esses lápis de cor — pontificou Hattie enquanto abria a porta da varanda de par em par — As coisas não são assim depois que se cresce Nem tudo é luz do sol, canções e cores bonitas. Há sempre espinhos nas rosas.
E naquele momento Hattie sublinhou o que estava dizendo dando um pisão na caixa de lápis da filha.
Peggy Lou continuou cantando e, não podendo mais usar os lápis quebrados, voltou-se para as bonecas. Peggy Lou que podia irritar-se, também podia desafiar a mãe de Sybil.
Sybil voltou um pouco antes da refeição, e o pai lhe sugeriu:
— Por que você não vai desenhar um pouco? — Ela respondeu:
— Os lápis estão quebrados.
— Já estão quebrados os novos? — perguntou Willow — Sybil, você tem que aprender a cuidar das suas coisas.
Sybil não disse nada, porque não sabia como os lápis se haviam quebrado.
A mãe de Willow Corners ria quando não havia razão para rir e não permitia que sua filha chorasse quando havia motivo para chorar.
Pelo que Sybil podia lembrar, a risada — cacofônica, selvagem — tinha servido de acompanhamento a uma mania extravagante, quase como uma liturgia matinal. Tendo começado quando Sybil tinha apenas seis meses de idade, este serviço litúrgico continuou durante os primeiros anos de sua meninice. Depois que Willard Dorsett saía para o trabalho e ela se achava sozinha em casa com a criança durante todo o dia, a mãe de Willow Corners começava a rir.
— Não queremos que ninguém fique metendo o bedelho aqui dentro, espiando o que estamos fazendo! — dizia Hattie quando passava a chave na porta da cozinha e arriava as cortinas da porta e da janela.
— Tenho que fazer. Tenho que fazer — murmurava Hattie, com aquela mesma ritualística decisão com que se permitia as aberrações em público, e colocava a sua filha sobre a mesa da cozinha. — Não se mexa — ordenava a mãe à criança.
O que se seguia não era sempre a mesma coisa. Contudo, havia um ritual predileto, que consistia no seguinte: Hattie abria as pernas de Sybil com uma colher de pau comprida, amarrava com o pano de pratos os pés à colher e depois prendia-a à ponta de um fio de luz que pendia do teto. A criança ficava balançando no ar enquanto a mãe ia à torneira de água e esperava até que a água esfriasse. Após murmurar: "Bom, não vai esfriar mais, mesmo", enchia um clister para adultos até em cima e voltava com ele para a filha. Com a criança balançando no ar, a mãe se aproximava, enfiava a ponta do tubo do clister na uretra e enchia a bexiga com água fria.
— Consegui! Consegui! — gritava triunfantemente Hattie, quando via sua missão realizada. O grito era seguido da risada, que nunca terminava.
Estes rituais matutinos incluíam também clisteres desnecessários que Hattie aplicava com espantosa freqüência em sua filha. Quase que invariavelmente o que se dava era uma lavagem de clister com água fria administrada com um aparelho de clister de adulto contendo uma quantidade de água de aproximadamente duas vezes mais do que normalmente se dá a uma criança ou a um bebê. Depois de aplicado o clister, Hattie insistia para que Sybil andasse pela sala segurando a água na uretra. Isto tinha como resultado fortes cãibras. Mas se Sybil chorasse Hattie lhe batia e dizia:
— Espere que lhe dou uma surra para ter motivo de chorar.
E o ritual só terminava quando Hattie avisava:
— E não diga nada a ninguém sobre isto. Se você der com a língua nos dentes, não vou castigá-la. A ira de Deus o fará por mim!
Também com espantosa freqüência durante a infância e meninice Hattie forçava sua filha a tomar um copo cheio de leite de magnésia, e com isto Sybil ficava com eólicas. Hattie levantava a criança e deixava-a com as pernas dependuradas, retas. E as eólicas redobravam de intensidade. Quando Sybil suplicava para ir ao banheiro, Hattie fazia-a ir ao quarto de dormir. Com isto obrigava Sybil a sujar-se de merda, e então a castigava, chamando-a de porca, imunda. Sybil se punha a chorar e Hattie lhe tapava a boca com uma toalha para que a vovó Dorsett, que vivia na parte de cima da casa, não ouvisse o choro. Temendo as toalhas na boca, Sybil temia também chorar. Quando chegou à idade de três anos e meio já não chorava mais.
Havia ainda outro rito matutino com que Hattie Dorsett lhe infligia tremendas dores. Depois de colocar Sybil; em cima da mesa da cozinha, Hattie introduzia com força na vagina da criança uma série de objetos que a cabeça i fantasiosa da mãe excogitava — um farolete, uma garrafinha vazia, uma caixinha de prata, o cabo de uma faca comum de cozinha, uma faquinha de prata, um abotoador de botina. Às vezes o objeto era o seu próprio dedo, e esse ritual ela executava da mesma maneira quando dava banho na criança e esfregava com tanto rigor que aos dois anos e meio a criança já fechava a porta e tentava tomar banho sozinha.
Tanto aos seis meses como aos seis anos, a mãe lhe dizia:
— Você deve se acostumar a isto também. — E introdúzia um desses estranhos objetos. — Isto é o que os homens vão fazer com você quando crescer. Eles vão enfiar coisas em você e machucá-la, vão puxá-la de cá para lá, machucando, machucando, e você não vai conseguir que parem; e quando eles se cansam com uma mulher então ; procuram outra. Por isso eu tenho que prepará-la para enfrentar estas coisas.
Hattie preparara a filha tão bem que o hímen de Sybil na infância já estava todo cortado, e a sua vagina estava permanentemente com cicatrizes. Esse preparo fora, 1 contudo, tão eficiente que uma ginecologista, ao examinar Sybil aos vinte anos de idade, declarou que ela, provavelmente, nunca poderia ter uma criança devido aos ferimentos internos.
Num sábado pela manhã, quando estavam se preparando para ir à igreja, Willard perguntou à filha:
— Sybil, não sei por que você grita tanto toda vez que calçamos aqueles sapatos em você.
E com Hattie comentava:
— Mamãe, acho melhor comprarmos sapatos novos para Sybil.
Willard Dorsett não sabia que o que levara Sybil a gritar não eram os sapatos brancos' de criança. Ele não sabia que na casa dos Dorsett o abotoador tinha usos que nada tinham a ver com o abotoamento dos sapatos. Às escondidas de Willard, ocultadas do mundo atrás de sombras espessas, essas torturas sádicas permaneceram secretas.
Naturalmente as torturas nada tinham a ver com o que Sybil tinha feito. Quando Hattie Dorsett queria de fato castigar a filha, havia meios. Dava-lhe uma bofetada, derrubando-a ao chão, ou então jogava-a através da sala, tanto assim que de uma feita o fez com tanta violência que deslocou um ombro da criança. Ou então Hattie dava um pescoção com as costas da mão na filha; e uma vez foi com tanta violência que fraturou a laringe de Sybil.
Certa vez calcou um ferro quente de passar roupa em sua mão, queimando-a seriamente. Passou um rolo de pastel pesado sobre seus dedos. Uma gaveta prendeu a mão de Sybil. Um cachecol cor de púrpura foi apertado em seu pescoço até ela botar a língua de fora para poder respirar. Com o mesmo cachecol Hattie amarrou o punho de Sybil até que a mão ficou azul e entorpecida.
— Existe alguma coisa de errado com seu sangue — dizia Hattie solenemente. — Agora, ele vai ficar bom.
Com o pano de pratos Sybil era amarrada à perna do piano enquanto sua mãe tocava Bach e Chopin. Às vezes amarrava-a sem o preâmbulo de outras torturas, mas em outras ocasiões Hattie enchia antes o reto ou a bexiga da criança com água fria. Pisando com toda a força nos pedais do piano, Hattie tocava o mais alto que podia. As vibrações na cabeça e as reverberações em toda a vesícula ou reto criavam uma agonia física e um horror emocional. Já não podendo mais agüentar, quase que invariavelmente Sybil permitia que uma de suas outras personalidades emergisse.
Os olhos e o rosto de Sybil eram vedados com panos de pratos e a brincadeira de cabra-cega servia de castigo porque a criança tinha tido a petulância de fazer alguma pergunta, a que a mãe respondia:
— Todo mundo que não é cego pode ver isto. Vou lhe mostrar o que é ser cego. — A conseqüência disso foi que Sybil tinha pavor de cegueira, e mais tarde se sentia apavorada quando sua visão sofria certas anomalias.
Outras vezes, Hattie mostrava a Sybil o que significava morrer, e então colocava-a no baú grande que havia no sótão e fechava a tampa, ou enfiava um trapo úmido na garganta de Sybil, tapando o nariz da criança até que ficasse inconsciente. Quando Hattie ameaçava pôr as mãos de Sybil na máquina de moer carne e fazer picadinho dos dedos, Sybil não conseguia ver se a ameaça era para valer ou não. Sua mãe ameaçava fazer muitas coisas que mais tarde acabava concretizando.
Havia épocas em que o alvo das taras obsessivas de Hattie não era Sybil, e sim a porcelana, as roupas de linho, o piano ou os livros. Nestas ocasiões Hattie Dorsett, que antes de Sybil começar a freqüentar a escola passava praticamente as vinte e quatro horas do dia na presença da filha, não tomava conhecimento dela. Completamente absorta, e aparentemente fixada em lembranças de seu falecido pai, Hattie ficava sentada, acariciando e cheirando o tempo todo o paletó acolchoado que havia pertencido a ele. Quando não o deixava pendurado guardava-o bem fechadinho numa caixa.
Às vezes lavava e lustrava as louças de porcelana Haviland, que pouco eram usadas e que portanto não precisavam ser lavadas e lustradas. Arrumava de cá, arrumava de lá, desdobrava e dobrava de novo as roupas de linho. Sentava-se no piano Smith & Barnes pomposamente ornamentado, colocado no lado esquerdo da janela, num canto bastante escuro da sala de estar, e tocava Chopin e Beethoven. Colocava discos no fonógrafo, teimando que deviam sempre ser tocados do começo e em seqüência. Por exemplo, consistia em heresia e violação do seu código tocar o quarto movimento sem ter sido este precedido pelo primeiro, segundo e terceiro movimentos.
Hattie punha-se também a andar pela casa declamando passagens de Evangeline, The village blacksmith, Ivanhoé e outros poemas e romances. Hattie achava graça numa linha ou passagem, e então ria sem parar. Sybil perguntava qual era a graça, mas Hattie continuava a declamação, não prestando atenção a ninguém, somente a si mesma.
— Mãe, que tipo de botões devo pôr no vestidinho de minha boneca? — perguntava Sybil.
— Meus pratos Haviland são iguaizinhos aos de mamãe — respondia Hattie. — Algum dia vou pegar os de mamãe, porque combinam com os meus. Gosto muito daqueles pratos.
As paredes de sua casa — prisão, melhor dizendo — começaram a fechar-se sobre Sybil durante sua infância. Aos onze meses Sybil, presa ao cadeirão, na cozinha, brincava com um gato e uma galinha de borracha. Enquanto Hattie tocava piano na sala, uma vez, Sybil deixou cair os bichos no chão. Tentou libertar-se para pegá-los, mas como não conseguia pôs-se a chorar. Hattie, porém, continuou a tocar e cantar, recusando-se a desamarrar a criança. E quanto mais esta chorava tanto mais alto a mãe tocava piano, procurando abafar os gritos da criança.
Quando a prisioneira do cadeirão já era grande o bastante para engatinhar, conseguiu uma primeira vingança sobre sua mãe. Brincando no chão de linóleo da varanda envidraçada, Sybil viu, uma manhã, Hattie sair para ir ao armazém. Então entrou na sala de estar e foi ao piano, onde espalhou pelo chão as partituras de Hattie. Ao voltar esta encontrou a filha placidamente sentada na varanda envidraçada, e nunca fez uma ligação de Sybil com as folhas de música esparramadas.
A criança tinha outros meios de se vingar. Quando sua mãe lhe batia a ponto de deixá-la caída no chão, Sybil, que estava aprendendo a andar, recusava-se a aprender; sentava-se no chão e escorregava. Tendo falado precoce-mente sua primeira frase — "Papai, feche a porta do celeiro" —, com a idade de dez meses, Sybil começou a andar com atraso, com dois anos e meio.
As represálias contra sua mãe eram mais fáceis nesses primeiros anos de vida, porque mesmo na prisão em que vivia existiam amigos. Não foi sua mãe e sim a avó quem cuidou de Sybil nas suas seis primeiras semanas de vida, quando Hattie estava impossibilitada de tomar conta da criança devido à depressão puerperal.
A avó Dorsett voltou a ajudar Willard no cuidado da criança quando Sybil contraiu uma doença do ouvido, tempos depois. Incapaz de aturar o choro, Hattie novamente abdicou do seu papel de mãe. O ouvido supurou quando a criança estava descansando no ombro de Willard, com o ouvido infectado próximo ao fogão quente. Sua avó foi embora, então, a mãe voltou, e a criança relacionou o alívio da dor com a presença do pai.
Quando Sybil estava com dois anos e meio, o carinho e o amor voltaram de novo na pessoa de Priscilla, uma empregada que mais tarde tomou conta da criança enquanto Hattie dedicava seu tempo à avó Dorsett, que sofrerá um ataque. Sybil gostava imensamente de Priscilla, e mais do que dela, somente de sua avó. Certo dia Sybil disse:
— Priscilla, eu gosto tanto de você! — Hattie ouviu por acaso a observação e disse:
— Você gosta também de mamãe, não é, minha filha?
Sybil deu uma volta onde Hattie estava em pé, lustrando algumas porcelanas Haviland, colocou seus braços em torno de seu pescoço e disse que sim. Empurrando Sybil para longe, Hattie observou:
— Oh, você é muito grande para fazer isso. Observando que Mrs. Dorsett estava sendo "malvada" com a criança, Priscilla abriu os braços para Sybil, num gesto de carinho. Sybil correu e agarrou a mão de Priscilla. Esta disse que Sybil podia ajudá-la, podia tirar o pó dos móveis e que iriam preparar juntas o almoço. Sybil tinha Priscilla e sentiu que não precisava da mãe.
À medida que Sybil crescia, os interlúdios de sua avó e de Priscilla foram terminando e sua mãe foi pouco a pouco tomando o timão. Estava preparado o cenário da repressão para Sybil, que, ante as ordens de não chorar e não falar para não ser castigada, guardava tudo para si. Sybil aprendeu a não lutar, porque a luta ocasionava novos castigos.
Contudo, o que sobreviveu foi o fascínio pelas novas experiências, pela criatividade, por fazer coisas. Freqüentemente essa criatividade, como no caso de desenhar frangos com patas vermelhas e rabos verdes, também ocasionava atritos entre mãe e filha.
Uma tarde, quando Sybil tinha quatro anos, colou uma cara que havia recortado da revista McCalls sobre um pedaço de papel prateado, enfeitando-a com uma fita vermelha de Natal. Encantada com o que havia feito, correu até a cozinha para mostrar sua criação à mãe.
— Acho que já lhe disse para não correr pela casa — disse Hattie enquanto punha uma forma no forno.
— Desculpe — respondeu Sybil.
— Acho bom, mesmo — disse Hattie.
— Olhe, mãe — disse Sybil, mostrando orgulhosamente o que havia feito.
— Não tenho tempo para olhar agora — disse Hattie. — Estou ocupada. Não vê que estou ocupada?
— Olhe o que eu fiz. É para a nossa árvore de Natal.
— Bem, é apenas um pedaço de revista e alguma coisa de papel prateado — resmungou Hattie.
— Eu acho bonito — comentou Sybil —, e vou colocá-lo na árvore.
— Estou ocupada — cortou Hattie.
Então Sybil pendurou o enfeite que fizera na árvore que se erguia junto do piano, na sala de estar. Contemplou o que sua mãe havia desprezado e, apesar de tudo, sentiu-se orgulhosa.
— Mãe, venha ver — exclamou, voltando para a cozinha.
— Não tenho tempo.
— Venha.
Então, de repente, Hattie deixou o que estava fazendo e olhou para Sybil, perguntando-lhe:
— Depois do que eu lhe disse você ainda foi pendurar isso na árvore?
Sybil desejou desesperadamente tirar o adorno da árvore antes que sua mãe o visse. Mas, junto da árvore, a mãe já a estava chamando:
— Venha imediatamente e tire essa coisa da árvore. Sybil ficou parada.
— Será que não está me ouvindo? — disse Hattie, junto da árvore.
— Vou tirá-lo daqui a pouco — prometeu Sybil.
— Não me venha com "daqui a pouco"! — grasnou a voz de Hattie.
Sybil estava encurralada. Se obedecesse, teria que ir até a árvore onde Hattie se encontrava, disposta a pegá-la. Se não fosse, ela a pegaria por desobedecer. Resolvendo ir, Sybil arrancou o enfeite com grande rapidez e, evitando a mãe, correu para a porta. Hattie foi atrás da filha. Sybil correu mais depressa. O ameaçador "não corra dentro de casa" de sua mãe ecoou por toda parte. Sybil perguntou a si mesma se devia continuar correndo ou parar. Se parasse, a mãe lhe bateria pelo enfeite de Natal. Se corresse, a mãe lhe bateria por correr. Estava absolutamente encurralada.
Ao parar, Sybil recebeu um sonoro tapa na face direita.
Havia, pois, dias ruins, mas havia também dias bons — como por exemplo aquele em que os Flood fizeram uma visita. Quando os Flood — Pearl, Ruth, Alvin e sua mãe — estavam indo embora em seu trenó, Sybil deu adeus dos degraus da varanda. O trenó desapareceu de vista e Sybil voltou para dentro de casa. Como tinha sido feliz naquela tarde, enquanto brincava na varanda envidraçada junto com Ruth e Pearl, que eram mais velhas do que ela! Sybil tinha somente três anos e meio de idade, mas elas brincavam com ela e lhe ensinavam muitas coisas. Pearl fez a boneca de Sybil, Betty Lou, andar. Ainda segurando em seus braços Betty Lou, Sybil entrou na varanda envidraçada. Hattie veio logo atrás dela e disse:
— Largue essa boneca. Quero tirar o seu suéter. — Mas Sybil não queria largar a boneca. Tinha sido uma tarde formidável, e tinha descoberto muitas coisas. Tinha aprendido como fazer Betty Lou andar.
— Quero lhe mostrar como Betty Lou anda — disse Sybil à sua mãe.
— Não tenho tempo a perder — resmungou Hattie. — Tenho que aprontar a janta do papai. Largue essa boneca imediatamente, quero tirar o seu suéter.
Enquanto a mãe lhe tirava o suéter, Sybil comentou feliz:
— Gosto de Pearl. É muito divertida.
— Não tenho tempo — replicou a mãe, enquanto pendurava o suéter num gancho, na cozinha.
Sybil seguira a mãe da varanda para a cozinha, tentando falar com ela sobre os acontecimentos da tarde. Sua mãe começou a preparar o jantar. Enquanto tirava alguns potes e travessas do armário, o suéter azul, colocado de qualquer jeito no gancho, caiu no chão.
— Olhe o que acontece quando viro as costas — exclamou a mãe. — Por que é que você teve que tirar esse suéter daí? Por que não se comporta bem? Por que tem que ser sempre uma menina tão má, má, má?
Sua mãe pegou o suéter, deu-lhe umas voltas entre as mãos, examinando-o.
— Está sujo — anunciou finalmente com o tom de um médico fazendo um diagnóstico importante. — Mamãe sempre a mantém limpa. Você é uma menina suja.
E, enquanto falava, batia com os nós dos dedos na cabeça da menina, e em seguida colocou-a numa cadeira vermelha. Ali ficou mesmo quando a avó desceu para falar a ela e à sua mãe, ocasião em que Hattie disse: — Vovó, por favor, não se aproxime de Sybil. Ela está de castigo. — E a avó não se aproximou.
A cadeira ficava em frente a um relógio. Sybil não era bastante grande para poder ler as horas, mas podia ver onde é que estavam o ponteiro grande e o pequeno. Neste momento o ponteiro grande estava no doze e o pequeno no cinco.
— São exatamente cinco horas — disse a mãe.
Que tarde formidável, pensava Sybil, sentada na cadeira sem ousar se mexer, e ela ia agora estragar tudo. Eu me diverti tanto que estava triste porque Alvin não pôde brincar no chão com as garotinhas e comigo porque nós estávamos brincando de boneca e ele é um garoto. Ele foi deixado de fora. Como é horrível a gente ser deixado de fora.
Sua mãe tinha sido muito amável com os Flood. Dera-lhes todos os tipos de coisas: comida para Mrs. Flood, luvas para Pearl e perneiras para Alvin. Sua mãe deu-lhes também dois brinquedos que Sybil nunca tinha usado e com que na realidade nunca teria oportunidade de brincar. Mas tudo estava muito bem, porque ela gostava dos Flood.
Sybil olhou para o relógio. O ponteiro pequeno estava agora em cima do seis. Chamou a mãe para dizer-lhe.
— Eu não perguntei nada a você — respondeu a mãe asperamente. — Por causa disto você vai ficar aí sentada mais cinco minutos, sua garota imunda.
— O que foi que eu fiz? — perguntou Sybil.
— Você sabe muito bem o que foi que fez — respondeu sua mãe. — Tenho que castigá-la para que se corrija.
Sybil não queria pensar em si mesma, sentada na cadeirinha vermelha, contemplando o relógio. Mas freqüentemente pensava naquilo. Quando o fazia, sempre conseguia afastá-lo imediatamente de sua mente.
— Por que é que você tem sempre que ser má, tão má? — perguntava-lhe a mãe.
O "sempre" confundia Sybil. O "má" fazia-a pensar. Não acreditava que nada do que fizera naquele dia tivesse sido mau.
Sybil não contou a ninguém sobre o dia do suéter azul, mas a lembrança daquele dia, que lhe apertava a garganta, sempre fazia que esta lhe doesse.
E também nunca contou a ninguém a respeito das contas de vidro de muitas cores que estavam penduradas num barbante de algodão como se fosse um arco-íris. Tais contas, feitas na Holanda, eram muito antigas, haviam sido dadas a Hattie por sua mãe. Hattie dera-as a Sybil, que se distraía com elas, puxando-as, enfiando-as na boca e lambendo-as. Certa tarde, quando estava se distraindo, o barbante arrebentou e as contas se espalharam por todo o tapete da sala de estar. Sybil, que na ocasião tinha três anos, procurou catá-las o mais rápido possível, antes que a mãe visse. Mas, antes que conseguisse catar todas as contas, Hattie agarrou-a e empurrou-lhe uma conta pelo nariz adentro. Sybil pensou que iria sufocar-se. Hattie tentou retirar a' conta, mas esta não saía do lugar. Apavorada, disse:
— Vamos depressa, vamos ao Dr. Quinones.
O Dr. Quinones retirou a conta. Mas, quando mãe e filha estavam se retirando, o médico perguntou:
— Mrs. Dorsett, como é que aquela conta foi parar lá?
— Oh — respondeu Hattie —, o senhor sabe como são as crianças. Vivem enfiando coisas no nariz e nos ouvidos.
Aquela noite Hattie contou a Willard como Sybil tinha sido descuidada com as contas.
— Nós devíamos ensiná-la a ser mais cuidadosa — disse a mãe ao pai. — Ensiná-la. . . corrigi-la. . . implorar-lhe . . . dar-lhe a mão. . . que criatura....
Willard também era da opinião de que Sybil devia ser mais cuidadosa. Sybil, que nada havia dito ao Dr. Quinones, também nada disse ao pai.
Outro incidente pelo qual Sybil levou a culpa foi o que se deu no depósito de trigo, numa tarde de chuva, quando tinha apenas quatro anos e meio. Hattie tinha levado Sybil para lá, para uma brincadeira vespertina.
Depois que Sybil e sua mãe haviam subido a escada móvel que levava da carpintaria de Willard ao depósito de trigo que ficava em cima, Hattie disse:
— Eu gosto de você, Peggy. — Em seguida, colocou a criança sobre trigo e saiu, puxando a escada para cima, no teto.
Cercada de trigo por todos os lados, Sybil sentiu que ia ficar sufocada, e pensou que iria morrer. Depois, durante certo tempo, como que perdeu os sentidos, e não sabia de mais nada.
— Você está aí em cima, Sybil? — foi a voz de seu pai que ela reconheceu. Em seguida Willard se pôs em pé ao lado dela, inclinou-se, ergueu-a carinhosamente e levou-a para baixo, onde sua mãe estava esperando na loja.
— Como foi que Sybil subiu para o depósito de trigo? — perguntou Willard a sua esposa. — Ela podia ter-se sufocado.
— Deve ter sido Floyd quem fez isto — disse sua mãe. — É um garoto tão covarde! Seria um bem para esta cidade se desse o fora daqui.
Willard desceu imediatamente a rua para falar com Floyd enquanto Hattie e Sybil voltavam para casa. Quando chegou, Willard contou à mãe e à filha que Floyd negara ter feito aquilo, chegando a interrogar Willard nestes termos:
— Então, quem pensam que eu sou?
— Floyd é um mentiroso — declarou a mãe arrogantemente.
Não sabendo mais em quem acreditar, Willard perguntou a Sybil quem a deixara lá em cima, no depósito de trigo. Os olhos de Sybil cruzaram os da mãe e ela ficou em silêncio.
— Eu não quero que você vá de novo ao depósito de trigo. Foi bom eu ter voltado antes da hora, por causa da chuva, e ido à carpintaria. A escada não me parecia em boa posição, e por isso fui ver o que estava havendo. — E nestes termos o pai passou uma lição de moral à filha.
Da mesma forma que Sybil nada dissera a respeito do abotoador e das contas, assim também ficou calada com relação ao trigo.
E uma noite, quando tinha apenas dois anos e seu pai lhe perguntou onde conseguira aquele olho preto, Sybil recusou-se a falar. Seu pai não podia saber que sua mãe havia derrubado os cubos com que a criança estava brincando, dando-lhe depois um soco no olho e batendo com os nós dos dedos bem onde estava nascendo um dente novo.
Inseparáveis, essas coisas formavam a seqüência interminável do cativeiro de que a câmara de tortura de Sybil era feita. A lembrança desses fatos voltara a torturar Sybil no dia em que, toda feliz da vida, havia começado a sonhar com a farmácia.
A tortura redespertada podia, contudo, ser às vezes também posta de lado. Agora na primeira série, Sybil gostava da escola, tinha feito amigos e, alguns dias depois da volta da mãe de Willow Corners, visitou a casa de sua colega de classe e amiguinha Laurie Thompson, depois de sair da escola.
A mãe de Laurie, uma senhora extrovertida, alegre e rubicunda, cumprimentou a filha e Sybil quando as duas iam subindo os degraus da varanda. Depois de dar um forte e apertado abraço em Laurie e de cumprimentar Sybil com um sorriso, Mrs. Thompson mandou que as duas crianças entrassem. Havia leite e uma torta de maçã esperando-as.
Tudo era muito tranqüilo na casa dos Thompson, mas Sybil — que tinha então seis anos — estava certa de que, tão logo saísse, Mrs. Thompson faria coisas terríveis com a filha, conforme todas as mães fazem.
A suposição de que a vida de cão acossado que ela levava era a que normalmente todos levavam na realidade não melhorou a situação, e tampouco diminuiu a raiva contida e impotente que estava aninhada no coração de Sybil desde a sua infância. Fúria violenta houvera quando o odiado bico de seio de borracha dura tinha substituído o seio da mãe, e quando os gritos do prisioneiro de onze meses, lá na cadeira alta, haviam sido ignorados pelo carcereiro. Mas a raiva mais terrível de todas — que chegou ao auge mas foi abafada — se acendeu com o sentimento de que não havia mais saída para a câmara de torturas. Quanto mais a raiva se intensificava, mais era abafada. Maiores os sentimentos de impotência; quanto maiores os sentimentos de impotência, mais ainda se acendia a fúria em seu coração. Era um círculo vicioso sem fim, um círculo de raiva, sem nenhuma saída. A mãe torturava e apavorava Sybil, e esta nada podia fazer. E o que tornava a situação ainda pior era o fato de Sybil não ousar pedir a alguém que interviesse. Sybil amava a avó, mas esta não tinha intervindo quando sua mãe lhe dissera:
— Agora, mamãe, não se aproxime de Sybil. Está de castigo. — A avó não tinha intervindo quando a mãe fizera Sybil tropeçar, ao descer a escada. Vovó perguntou o que havia acontecido e sua mãe respondeu: — A senhora sabe muito bem como as crianças são desajeitadas. Ela caiu da escada. — A raiva que Sybil sentiu por sua avó foi reprimida.
Também seu pai não tinha intervindo. Será que ele não via o que significavam o abotoador, o braço destroncado, a laringe fraturada, a queimadura na mão, a conta no nariz, o depósito de trigo, os olhos pretos, os lábios inchados? Mas seu pai se negara a ver.
Quando Sybil chorava e a veneziana estava levantada, sua mãe vinha sempre com a eterna observação:
— E que tal se alguém aparecer? — A raiva estava também concentrada nos vizinhos que nunca vinham em socorro; na vovó Dorsett, que morava em cima e parecia não tomar conhecimento do que se passava embaixo; no Dr. Quinones, que repetidas vezes via que a criança dos Dorsett se havia machucado, mas que não procurava descobrir como aquilo acontecera. E mais tarde Sybil concentrou sua ira e furor contra os seus professores, que de vez em quando perguntavam a ela o que tinha acontecido, mas que de fato nunca se preocuparam em descobrir a origem daquilo tudo. Sybil gostava especialmente de Marta Brecht, a professora da sétima série, porque com ela podia abrir-se e falar o que sentia. Mas Sybil ficou decepcionada também com essa professora, porque ela também, embora desse a impressão de que achava a mãe de Sybil estranha — quem sabe até maluca —, tirara o corpo fora e não interviera. Aquela saga tinha prosseguimento na escola, onde até Miss Updyke, que parecia compreender a situação, tinha colaborado para que Sybil fosse para casa e assim ficasse exposta àquelas torturas.
Angustiada, abandonada por aqueles que não lhe vinham em socorro, mesmo assim Sybil procurava isentar de culpa o perpetrador das torturas. O abotoador era fruto de sua fantasia, não existia o bico de clister nem outros instrumentos de tortura. Contudo, o perpetrador dessas torturas, em virtude de ser sua mãe, a quem devia não só obedecer, mas, também, amar e honrar, não devia ser tachado de culpado. Quase vinte anos mais tarde, quando Hattie, em seu leito de morte em Kansas City, fez a seguinte observação: "Realmente, eu não devia ter sido tão malvada com você quando era criança", a Sybil parecia pecaminoso até mesmo recordar aquela malvadeza eufemística.
Os sentimentos que Sybil nutria para com sua mãe haviam sido sempre complicados pelo fato de o comportamento de Hattie ser paradoxal. A mesma mãe, que causava constrangimento e vergonha, e torturava a filha, recortava lindas figuras coloridas das revistas e colava-as na parte de baixo do guarda-louça, de modo que ficassem à altura dos olhos de Sybil. No café, esta mesma mãe muitas vezes preparava uma pequena "surpresa" no fundo do prato de Sybil: ameixas secas, figos, tâmaras, tudo de que a criança realmente gostava de modo especial. Para encorajar Sybil, que não tinha muito apetite, a comer, a mãe apostava com Sybil para que adivinhasse o que havia no fundo do prato. Hattie tinha providenciado pratos próprios para crianças, decorados com figuras, louça de criança com a gravação sid, as iniciais de Sybil, bem como uma cadeira que era um pouco mais alta do que as cadeiras comuns da cozinha. Havia brinquedos espalhados por toda a casa e muita comida boa porque, dizia Hattie, as crianças que estavam morrendo de fome na China dariam tudo a fim de poder tê-la.
A única vez em que Sybil, então com quatro anos de idade, tivera audácia suficiente de lhe responder, dizendo: "Essas crianças podem ter a comida, se a senhora quiser
mandá-la para elas", Hattie lembrara à filha: "Você tem tantas coisas para agradecer — uma casa bonita, dois pais amorosos" (essa lengalenga contínua de Hattie, dos dois pais, irritava invariavelmente Sybil), "bem como mais atenção do que qualquer outra criança na cidade".
Uma e outra vez, tanto na infância quanto na adolescência, Sybil ouviu uma infinidade de variações do "você tem muito que agradecer", seguidas de "e apesar de tudo o que faço por você, você continua não dando valor; não pode ir pela vida esperando que tudo lhe caia do céu". Então Sybil respondia:
— Você é a melhor mãe do mundo e tentarei ser melhor.
E "a melhor mãe do mundo" acrescentava:
— Sinto muito medo, quando você chega tarde da escola, de que alguma coisa lhe tenha acontecido. — "A melhor mãe do mundo" não permitia que Sybil nadasse, andasse de bicicleta, patinasse no gelo. — Se você sai de bicicleta, vejo-a caída na rua, banhada em sangue. Se patina no gelo, poderia afundar e afogar-se.
Hattie Dorsett alardeava críticas solenes a respeito do cuidado exemplar que se devia ter com as crianças. Sempre que fosse possível evitar, nunca se deveria bater numa criança, apregoava Hattie Dorsett, e em nenhuma circunstância se deveria bater no rosto ou na cabeça. Hattie, que sabia truculenta e ardilosamente mascarar a realidade, distorcendo os fatos para enquadrá-los em suas fantasias, mentalizava o que dizia. Era uma 'destreza mental de que dispunha, e que lhe possibilitava dissociar o que de fato fazia daquilo que pensava ter feito, e separar ações de planos idealizados.
Hattie gostava de embonecar a filha e exibi-la a todos. Num esforço para mostrar a precocidade da criança, a mãe a obrigava a ler e a declamar para os hóspedes. Se Sybil cometesse uma pequena gafe, Hattie encarava o erro como uma afronta pessoal. Sybil pensava: "É como se minha mãe estivesse declamando em meu lugar".
"Minha querida Sybil, viva para aqueles que a amam, para aqueles que sabem que você é verdadeira; para o céu que sorri acima de você e para o bem que você pode fazer.
Sua querida mãe" — estas as palavras que sua mãe escrevera no livro de autógrafos de graduação do curso primário.
Mas a querida mãe de Sybil era aquela que morava num "pretenso" mundo criado pela imaginação de Sybil e no qual Sybil encontrava a salvação que lhe era negada no mundo real.
A querida mãe do pretenso mundo morava em Montana. Nessa região, que Sybil nunca tinha conhecido, mas que era fruto de sua fantasia, imaginara que devia ter muitos irmãos com quem podia brincar.
Aquela mãe de Montana não escondia as bonecas de Sybil no guarda-louça quando esta queria brincar, e não entupia Sybil com comida, depois forçando-a a sair mediante a aplicação de clisteres e laxantes. A mãe de Montana não amarrava Sybil no pé do piano nem lhe batia, e muito menos a queimava. A mãe de Montana não dizia que Sybil era uma esquisitona e que somente as crianças louras eram graciosas. Ela não castigava Sybil porque chorava nem lhe dizia que não devia confiar nas pessoas, que não devia aprender demais e que nunca devia casar-se e ter uma ninhada de filhos em torno da saia. Essa boa mãe da fantasia permitia que Sybil chorasse quando havia motivo para chorar e também não rir quando não havia motivo para risos.
Quando a mãe de Montana estava presente, Sybil podia tocar no piano tudo o que quisesse. A mãe de Montana não se importava com barulho, e Sybil não precisava assoar o nariz ou pigarrear sem fazer nenhum ruído. Com a mãe de Montana, Sybil podia espirrar à vontade.
A mãe de Montana não dizia: "Quando crescer, você nunca será uma boa menina se não for boa quando criança", não deixava Sybil com dores de cabeça porque aquilo que fizera era feio. Ela nunca dizia: "Ninguém gosta de você a não ser sua mãe", somente para provar aquele amor infligindo dor.
Onde a mãe de Montana vivia não era simplesmente uma casa; era um lar, onde Sybil podia mexer com as coisas e não era obrigada a esfregar a pia todas as vezes que lavava as mãos. Aqui Sybil não precisava estar procurando a todo instante um meio de chamar a atenção da mãe, de mudá-la, de ganhar-lhe, quando não o amor, ao menos a afeição. A mãe de Montana era acolhedora e carinhosa, sempre beijava Sybil e abraçava-a. Fazia com que se sentisse querida.
Na casa dessa mãe de Montana nunca diziam a Sybil: "Você é muito superior a suas amigas", ao mesmo tempo em que a incriminavam com as palavras: "Você não consegue fazer nada; nunca chegará a ser alguma coisa na vida; nunca será como meu pai. Meu pai foi um herói da Guerra Civil, o prefeito da cidade, um músico de qualidade. Ele foi tudo. Gostaria que nenhum filho meu, que nenhum neto meu, fosse igual a você. Cruzes! Como é que fui ter você?"
ORIGEM DA RAIVA DE HATTIE
Conforme ficou evidente para a Dra. Wilbur na análise de Sybil, o comportamento de Hattie Dorsett era tipicamente esquizofrênico. Ademais, a doutora estava convencida de que essa mãe esquizofrênica era a raiz profunda da dissociação de Sybil em múltiplas personalidades. Por isso parecia essencial sondar as causas da esquizofrenia e esclarecer o que tinha levado Hattie a se transformar na criatura que era.
Através da narrativa das visitas que Sybil fizera, durante duas semanas, todas as férias até a idade de nove anos, ao casarão branco em Elderville, Illinois, que foi a moradia em que Hattie Anderson Dorsett nasceu e passou a sua fase de garota, a doutora conseguiu encontrar alguns vestígios.
O casarão dos Anderson abrigava uma família de treze filhos (quatro homens e nove mulheres). O pai, Winston Anderson, muito respeitado na cidade e sujeito despótico em casa, exigia de sua ninhada de filhos não somente respeito em tudo e obediência, mas também atenção individual específica. Aileen, a mãe, tendo que se dividir nos cuidados de tantos filhos, tinha pouco tempo para cuidar de um por um em particular. As crianças careciam evidentemente de uma boa educação.
Hattie, uma garota alta e esguia, cabelos ondulados e ruivos e olhos cinzento-azulados, cujos boletins da escola primária revelavam uma sólida seqüência de notas dez, que fazia poesia e cujos professores de música tinham em tanta conta seu alto talento que estimulavam o sonho que ela acalentava de ir a um conservatório de música e de tornar-se uma concertista, viu tais ambições ruírem aos doze anos. Nessa idade, o pai tirou-a da sétima série para ir trabalhar em sua loja de música, onde iria tomar o lugar de uma irmã mais velha que se casara. Não havia nenhum motivo financeiro para fazer com que Hattie largasse os estudos, nenhum argumento plausível para exigir que renunciasse aos seus sonhos.
— É a garota mais inteligente da classe. Uma das melhores alunas que já tive na minha vida — disse a professora da sétima série. — É um crime tirá-la da escola.
— Talento musical extraordinário — disse a freira que era a professora de piano de Hattie. — Se lhe fossem dadas chances, garanto que poderia ir longe.
A chance, contudo, não lhe foi dada, e a cena em que, ao contrário, lhe foi negada continuou a viver na memória de Hattie. A cena começou uma certa noite em que Winston, com seu smoking jacket1 forrado, estava sentado na cadeira especial fumando seu charuto predileto.
1 Casaco para proteger a roupa do cheiro do tabaco. (N. do E.)
— Amanhã você não vai à escola — comunicou ele secamente a Hattie. Seus olhos frios e escuros fitavam-na. — Você vai trabalhar na loja.
Ninguém disse palavra alguma a seu pai, e Hattie sabia perfeitamente em que terreno estava pisando. Simplesmente começou a dar risada. A risada cacofônica reboou pela casa até depois que ela entrou no quarto e fechou a porta. Quando viu que a família estava dormindo, desceu devagar à sala de espera e, encontrando o smoking jacket vermelho num quarto anexo, cortou-lhe as mangas. Quando no dia seguinte quiseram saber quem havia feito aquilo, ela se fingiu de inocente, saiu de casa e andou a pé as quatro quadras até a loja de música. Winston comprou um novo smoking jacket idêntico ao antigo.
Uma das tarefas de Hattie na loja era fazer demonstrações nos pianos. Tocando músicas que na realidade não estavam na partitura, ela aumentou a vendagem da mercadoria do pai. Quando algum raro cliente, com conhecimento bastante para descobrir a diferença, voltava para se queixar, Hattie protestava, com a cara mais deslavada, dizendo: "Eu toquei o que estava lá". Quando a loja estava vazia ela se punha a tocar sem parar. Nas quintas-feiras, depois do trabalho, ia ao convento tomar lições de música.
O sonho de Hattie se desfizera como uma bolha de sabão; além disso, ou em conseqüência, ela contraiu a coréia, ou dança de São Vito, uma doença física que a fazia sacudir-se e contorcer-se toda. Havia componentes de fundo nervoso. A neurose se tornou tão virulenta que os membros da família tinham que tirar os sapatos quando subiam as escadas a fim de não perturbar Hattie, e os pratos da família tinham que ser colocados sobre flanelas porque Hattie não suportava o seu retinir. Embora as concessões não se destinassem a suprir a falta de cuidados e de educação, elas se prolongaram enquanto a parte aguda da doença se manifestou.
Querendo se vingar devido ao sonho perdido, Hattie se tornou a enfant terrible da família, não por força de uma rebeldia declarada ou confrontação direta, mas por meio de pequenos atos de malvadeza e por brincadeiras que feriam diretamente. Uma vingança que sempre fazia se relacionava com a função que Hattie tinha, de levar as vacas para casa, trazendo-as do pasto, que ficava nas redondezas de Elderville. Passando o tempo à toa quando ia para casa, sem mais nem menos parava para visitar amigos pelo caminho enquanto as vacas e a família Anderson ficavam esperando.
Outra das suas brincadeiras de mau gosto era dirigida contra Winston, que regia o coro metodista e tinha designado Hattie para manejar os foles do órgão da igreja. Uma domingo Hattie foi embora antes do último canto, deixando os foles vazios e seu pai a ver navios. Resplandecente em seu casaco estilo Príncipe Albert, Winston Anderson levantou a batuta enquanto o coro se aprontava para o canto. Seus olhos pretos que nem carvão reluziram quando o único som que saiu do órgão foi o silêncio.
Hattie voltou a infernizar a todos quando seu pai tinha seus cinqüenta anos e começou a dar sinal dos efeitos de um ferimento que sofrerá durante a guerra. Uma bala que lhe havia entrado no ombro quando recebeu um tiro durante a Guerra Civil nunca fora retirada. E a sua circulação ficou afetada; suas pernas incharam tanto e tornaram-se tão pesadas que eram necessárias duas pessoas para poder levantá-lo. Quando então começou, a beber para aliviar a dor, sua esposa e filhos fizeram tamanho escarcéu que bebidas não entravam mais em casa. Quando porém Winston conseguiu obter a bebida sozinho, a família designou Hattie para verificar como é que ele conseguia isto. Descobrindo uma porção de garrafas na prateleira atrás do piano, a detetive, perguntando triunfalmente: "Em que outra parte poderia um músico colocar uma garrafa?", conseguiu driblar o pai que a tinha driblado em seus sonhos.
O rancor de Hattie chegou ao paradoxo quando, enquanto seu pai ainda estava vivo, e também depois de morto, ela sepultava o ressentimento contra ele transformando-o em idealização, idolatria e ligação patológica, o que se tornava evidente quando ela acariciava o seu smoking jacket, que sobrevivera.
No entanto, atravessando ocasionalmente a armadura protetora da memória supercompensadora, estava o fato de que Hattie às vezes dizia que lançava a culpa de seus "problemas" sobre seu pai. Embora jamais definisse esses seus problemas, toda a gente que a conhecia sabia que tinha problemas. Esses problemas estavam simbolizados numa fotografia da revista McCall que Hattie havia recortado e conservado junto com outras lembranças em sua imensa coleção de coisas guardadas. A foto era de uma mulher atraente em pé junto de uma cerca. A legenda dizia: "Não, não a amavam em especial. Ela notava isso".
Não sendo amada, Hattie Anderson Dorsett era incapaz de amar. Desprovida de cuidados maternos, tornara-se uma pessoa incapaz de proporcionar esses cuidados. Uma solitária, isolada numa grande família, que mais tarde isolou emocionalmente sua única filha. A ira, resultante do sonho frustrado de uma carreira musical, foi a herança do meio ambiente que, transmitida de geração em geração, eventualmente fez de Sybil o seu alvo.
A herança emocional de Sybil da parte de Winston Anderson, que havia falecido antes que ela nascesse mas que lhe era apresentado como uma figura mitológica, tinha assim três aspectos. O receptáculo da fúria reprimida de Hattie contra Winston, Sybil, que não podia competir com a imagem que Hattie idealizava a respeito dele, era também a vítima da idolatria do pai de Hattie e do conflito reprimido que resultou do fato de Hattie fazer do seu pai um ideal e ao mesmo tempo o culpado de tudo. Por causa desse conflito dizia à filha que nenhum homem prestava.
Havia outros ingredientes na família dos Anderson que serviam de veículo para essa síndrome; a reação recíproca entre Hattie e Winston constituía um fragmento dependente da neurose familiar mais ampla.
Aileen, a mãe, a quem Hattie se referia como uma "senhora espetacular, fantástica", não revelava nenhum problema emocional particular, com exceção talvez da passividade em deixar que seu pai bancasse o déspota contra a família. Aliás, problemas deve ter havido para que se ramificassem em problemas emocionais em todos os filhos, os quais por sua vez legaram problemas emocionais aos próprios filhos (um dos netos de Winston e Aileen Anderson se suicidou).
Quatro das filhas de Anderson, incluindo Hattie e sua irmã mais velha, Edith, que era uma verdadeira tirana com todas as meninas da família, eram igualmente volúveis e agressivas. Quatro das outras eram por demais dóceis, muito calmas, não ligavam para nada e todas as quatro casaram-se com verdadeiros tiranos. Fay, a mais nova das irmãs, deixava à mostra a neurose de família com seu peso de duzentas libras.
Hattie e Edith se pareciam muito na estatura, na aparência e nas atitudes. Mais tarde revelaram os mesmos sintomas: fortes dores de cabeça, alta pressão sangüínea, artrite e aquilo que se denominava vagamente de nervosismo. Em Hattie esse nervosismo se tornou violento depois da esmagadora experiência de ser retirada da escola. Não se sabe se Edith ficou esquizofrênica, ou a que se deve atribuir a esquizofrenia de Hattie. O que está claro é que Hattie já era esquizofrênica aos quarenta anos de idade, quando Sybil nasceu.
Os filhos de Edith sofriam de uma variedade de doenças psicossomáticas, inclusive úlceras e asma. Sua filha era doentia e vivia se queixando, até que se tornou uma religiosa fanática, uniu-se a um grupo de curandeiros fervorosos, e orgulhosamente anunciava que havia recuperado a saúde. Contudo, a filha da religiosa fanática sofria de uma rara perturbação sangüínea e ficou semi-inválida durante toda a vida.
A filha de um dos filhos de Edith tinha quase todas as doenças físicas e atitudes emocionais de Hattie, embora num grau mais suave.
Ainda mais importante no que se relacionava com a germinação da doença de Sybil foi que dois membros da família — Henry Anderson, irmão mais novo de Hattie, e Lillian Green, neta de Edith — davam provas de ter personalidades múltiplas ou, pelo menos, duplas.
Henry freqüentemente saía de casa, desaparecia e não podia voltar devido a um ataque de amnésia que o fazia esquecer-se de seu endereço ou de seu nome. Numa ocasião, contraiu pneumonia. Delirava quando um membro do Exército da Salvação o encontrou. Graças à carteira de identidade achada durante uma busca rotineira, o voluntário do Exército pôde devolvê-lo a Elderville.
Lillian, que se casou e teve três filhos, freqüentemente se afastava da família sem nenhum aviso. Depois de um certo número de episódios assim, seu marido contratou um detetive para segui-la e trazê-la para casa.
Harry e Lillian apresentavam algumas evidências que podiam levar a atribuir a enfermidade de Sybil a uma predisposição genética, mas a Dra. Wilbur continuou convencida de que a origem, induzida pela mãe, não se encontrava nos genes, e sim no ambiente de sua infância.
A casa dos Anderson, em Elderville, parecia não ser absolutamente a incubadeira da neurose de Sybil, pois em Elderville, que Sybil visitava todos os verões, havia um interlúdio tão tênue como gaze nas tiranias de furor e nas constantes perversões de Hattie. Ali parecia que as fronteiras do mundo imaginário de Sybil se alargavam para incluir a própria realidade; e essa realidade se transformou de tal forma que ela se igualava a alguns aspectos do mundo fantasioso que Sybil imaginava.
Ali tios e tias abraçavam e beijavam Sybil, levantavam-na bem alto no ar, prestavam atenção quando ela cantava ou declamava para eles e diziam que tudo o que ela fazia era maravilhoso.
Nenhuma visita terminava sem que levassem Sybil ao teatro que servia também de cinema, onde sua tia Fay tocava piano. Sentada no banquinho do piano ao lado da sua tia, no teatro vazio, com o piano fechado e as teclas movimentando-se sem produzir sons, Sybil fazia de conta que estava tocando para acompanhar o filme. Ficando para a matinê enquanto Fay tocava, Sybil olhava para ela e ficava toda faceira, imaginando-a sua mãe.
Só quando chegava o tempo de retornar a Willow Corners é que Sybil se apercebia de como desejaria permanecer em Elderville. Certo verão virou-se para a tia Fay e lhe disse:
— A senhora quer ficar comigo? — Acariciando os cabelos de Sybil e endireitando-lhe as franjas, Fay respondeu: — Você é uma Dorsett. Seu lugar é entre os Dorsett. Você vai voltar no próximo verão.
Durante as nove esplêndidas férias de verão, duas vezes houve ocorrências em Elderville que deram a impressão de que o pretenso mundo entrava em colapso.
Certo domingo de julho de 1927 Sybil e sua prima Lulu estavam na cozinha da casa dos Anderson, ajudando sua tia Fay na louça. A tia Fay, que via Lulu a todo instante e Sybil somente duas semanas na época do verão, dava mais atenção a Sybil do que a Lulu. Quando tia Fay saiu da cozinha para levar café à avó Anderson, Lulu e Sybil continuaram seu trabalho doméstico em silêncio. Mas Sybil, que estava enxugando as colheres de sopa prateadas, não despregava os olhos dos lindos arco-íris que se formavam na bandeja de cristal que Lulu estava enxugando. Em seguida, de repente, o arco-íris foi se projetando pelo recinto quando a bandeja — que Lulu jogara de encontro à porta entre a cozinha e a sala de estar — flutuou no espaço. No pânico que se seguiu à queda do vidro, a cabeça de Sybil latejava e a cozinha parecia rodopiar.
As tias e tios surgiram correndo, escancarando a porta, atraídos pelo tinir do vidro; ficaram olhando atentamente para o prato. Agora o prato jazia ali no chão da sala de estar, feito em pedaços.
Os adultos olhavam para as crianças e as crianças se entreolhavam.
— Quem fez isto? — Via-se a acusação estampada naqueles rostos, os quais se moviam compulsivamente dos minúsculos estilhaços de vidro, no chão, para os rostos espantados das duas crianças. Quando o silêncio era mais profundo, Lulu anunciou:
— Foi Sybil!
— Foi você quem o quebrou! — ressoou a voz acusadora de Hattie, dirigida para Sybil.
— Não ligue para isso, Hattie — desculpou Fay —, ela ainda é uma criança. Não fez de propósito.
— Não fez de propósito? Ora esta, Fay, você pode muito bem ver que ela não o deixou cair mas o arremessou por maldade. Que castigo é este meu de ter uma filha assim!
Sybil permaneceu em pé com os olhos fixos, mas Lulu desatou a chorar.
— Foi Sybil — disse Lulu entre lágrimas. — Foi Sybil.
Em seguida a filha de Hattie encaminhou-se para a janela da sala de estar e esmurrou-a, implorando:
— Deixem-me sair. Oh! Deixem-me sair. Eu não fiz aquilo. Foi ela. Ela está mentindo. Deixem-me sair. Por favor, por favor! — E assim Sybil se transformou em Peggy Lou.
— Vá para o seu quarto — ordenou-lhe Hattie — e fique sentada na cadeira até que eu a chame.
(Sybil esqueceu o incidente da bandeja, mas aquela foi uma cena que Peggy Lou não só recordava como também reviveu muitas vezes. Em Nova York, entre outubro de 1954 e outubro de 1955, durante o primeiro ano de análise, Peggy Lou, que havia quebrado uma janela no consultório da Dra. Wilbur durante aquele período, também havia destruído cristais antigos num valor de dois mil dólares em lojas da Fifth Avenue. Cada vez, com o barulho, Sybil reaparecia e dizia ao empregado: "Lamento muito. Eu pagarei".)
O outro episódio inquietante de Elderville aconteceu no mês de julho de 1927. Hattie estava no pátio, rindo daquele seu jeito cômico. Ao ouvir esse som já conhecido, Sybil levantou-se da mesa da cozinha, foi olhar pela janela e viu sua mãe sozinha na estrebaria. E a risada se repetiu.
Sybil viu que o seu primo Joey e seu tio Jerry estavam a cerca de um metro e meio de distância de sua mãe. Estavam carregando uma caixa que Sybil tinha visto na mesa da cozinha. Naquele momento, a tia Fay ficou em pé perto de Sybil. Envergonhada com as risadas esquisitas, sem motivo e freqüentes de sua mãe, especialmente na presença de parentes de quem Hattie em geral procurava ocultar sua extravagância, Sybil estremeceu e se afastou.
— Entre, Sybil — disse Fay amavelmente. — Vamos tocar juntas.
— Mais tarde — respondeu Sybil, que não conseguia sair da janela.
Depois viu sua tia Fay chamando pela janela Joey e Jerry, querendo que dissessem alguma coisa a Hattie. Joey respondeu lá do pátio:
— Fay, deixe-a sozinha. — Sybil sabia que Hattie era a tia predileta de Joey e que ele estava tentando protegê-la.
Um caixão de defunto, pensou Sybil, quando olhou para a caixa que Joey e Jerry estavam levantando. Era menor do que as caixas e esquifes que ela muitas vezes via na casa funerária, atrás de sua casa em Willow Corners . .. Foi Mareia quem completou o pensamento: a caixa é suficientemente grande para conter mamãe.
Em pé, muito quieta, Mareia continuou meditando: as caixas crescem exatamente como as árvores e os homens. A caixa ficará maior e será suficientemente grande para encerrar o corpo de mamãe. Mareia achou que devia sair e impedir que Joey e Jerry pusessem o caixão na carroça, que devia ter-se preocupado com sua mãe e que não estava preocupada porque queria que sua mãe morresse!
Mareia não podia, porém, saber que o desejo de que a mãe morra ocorre freqüentemente em garotinhas que sentem maior afeição pelo pai. Mareia desconhecia que o desejo desponta porque as garotinhas encaram suas mães como rivais que perturbam a afeição dos seus pais.
Todavia, quando Hattie — que normalmente se comportava bem em Elderville — riu como fazia em Willow Corners, o desejo de sua filha se acentuou, agora impulsionado por nova fúria.
Por causa do intenso sentimento de culpa que seu desejo despertou, Mareia afastou este desejo dos seus pensamentos e devolveu o corpo a Sybil, que não sabia nada a respeito da pequena caixa de Mareia que se havia tornado grande.
WILLARD
Em suas ponderações solitárias a respeito do caso Dorsett, a Dra. Wilbur percebia cada vez mais claramente a evidência na estranha saga de uma criança violenta, ofendida em seus sentimentos, privada de uma infância normal, sendo assim induzida a uma psiconeurose por força das razões mais paradoxais — para poder sobreviver. Não obstante, todos os fatos reunidos tinham uma única fonte — Sybil e suas personalidades alternativas.
A mãe havia falecido. Além da própria paciente o pai constituía claramente a única testemunha em que os quase três anos de análise podiam ser confirmados. Por isso, em abril de 1957, depois que a doutora havia explorado minuciosamente as provas disponíveis sobre o relacionamento mãe—filha, decidiu incluir Willard Dorsett no exame do caso. Sybil pediu-lhe que fosse a Nova York.
Tanto Sybil como a Dra. Wilbur certamente se sentiriam mais otimistas quanto às possibilidades de levar de Detroit para Nova York o velho Willard Dorsett, já com setenta e quatro anos de idade, se houvesse um tribunal que fosse de justiça legal e não de emoções humanas. Willard vivia em Detroit, felizmente casado e ainda trabalhando. Conforme ambas pressentiam, Willard Dorsett não se disporia a ir de própria iniciativa, pois suas relações tanto com a filha como com a Dra. Wilbur tinham ficado tensas.
Willard já havia deixado claro que a seu ver Sybil, com trinta e quatro anos, estava muito velha para ser cuidada feito criancinha por ele. Mas quando o dinheiro dela acabara ao final de dois anos em Nova York, concordara em pagar as despesas para evitar que o tratamento tivesse que ser suspenso. (Embora a doutora tivesse começado a análise sem levar o fato ao seu conhecimento, no entanto achou por bem informá-lo do andamento dela no fim do primeiro ano.)
A doutora estava inclinada a encarar a ajuda como pagamento de uma dívida, a dívida de um pai para com uma filha que através da análise estava se debatendo e praticamente lutando contra a maré para se recuperar. Ele ajudava-a de má vontade e quando lhe dava na veneta. Com aquela idade, Sybil não tinha conta bancária ou emprego fixo, e suas únicas fontes de renda eram as vendas esporádicas de quadros, o trabalho irregular como professora particular e a ocupação temporária como terapeuta artística num hospital de Westchester. A obrigação de Willard Dorsett para com sua filha, pensava a doutora, representava também a dívida de um pai que tinha esbanjado o dinheiro da filha. Tinha vendido o piano de Sybil, o conjunto do quarto de dormir, bem como vários de seus quadros, sem consultá-la a respeito e sem dar-lhe o dinheiro apurado com as vendas. Chegara até ao cúmulo de obrigá-la a arcar com a metade das despesas dos funerais da mãe. A doutora enfureceu-se e perdeu as estribeiras quando uma vez Willard deixou de enviar a Sybil o seu cheque mensal, omissão esta que foi a mais angustiante, porque era a repetição de um episódio que ocorrera nos dias do curso secundário de Sybil. A omissão do pai em remeter o dinheiro, juntamente com a proibição que lhe impusera de tomar emprestado, forçara-a a viver durante cinco semanas à base de laranjas e biscoitos, numa ração de dois por dia.
Tanto os episódios do presente como os do passado incutiram em Sybil a idéia de que seu pai lhe dava as coisas sob coação, ou por um sentido de dever, e não porque realmente se preocupasse com ela. Notando a depressão de
Sybil na presente circunstância, a Dra. Wilbur escreveu a Willard Dorsett, dizendo-lhe que a omissão' causara uma agonia à qual sua filha não estava suficientemente boa para resistir. Este respondeu que era um homem muito ocupado e que nem sempre podia ir atrás de minúcias. Tampouco o preocupava o fato de que atualmente a doutora não estivesse recebendo dinheiro pelo tratamento. Vicky relatou que ele chegou a dizer:
— A Dra. Wilbur é uma médica da Park Avenue, cheia do dinheiro. Que ela o gaste nesse tratamento.
O Willard Dorsett de 1957, que escrevera que estava ocupado demais para se preocupar com a filha, era claramente o mesmo homem que surgira até agora na análise, preocupado demais atrás de sua mesa de desenho, rodeado e isolado pelo ruído de suas ferramentas. O fato de que esse isolamento era quase completo pareceu ser posto em evidência por este diálogo que surgiu durante a análise:
— Vicky — perguntara a doutora —, Mr. Dorsett nunca viu as atrocidades que Mrs. Dorsett infligia a Sybil?
— O máximo que ele fazia era perguntar: "O que houve com seu braço?", ou: "Onde é que se machucou?", e em seguida sacudia os ombros e saía — respondeu Vicky.
Passado muito pouco tempo para que Willard pudesse responder à carta de Sybil, ela encontrou uma carta dele na sua caixa postal. Temerosa de lê-la enquanto se achava sozinha, porque várias cartas dele haviam sido a causa de ela se transformar em outra pessoa (conforme a doutora declarou), ou então de se "apagar", conforme ela mesma descrevia, Sybil esperou até que Teddy Reeves chegasse a casa.
A carta dizia:
Querida Sybil,
Frieda acaba de me lembrar que está na hora de eu lhe escrever uma carta. Frieda está se tornando cada vez mais uma Dorsett. Diversas vezes tem me dito que é feliz. Sinto-me contente em vê-la satisfeita. Recebemos sua amável carta ontem. Sempre gostamos de receber notícias suas. Tenho a esperança de que este semestre não será tão difícil ôu que você não tenha
trabalhado demais. Esperamos que esteja se saindo bem em seus testes.
Meu trabalho está indo bem. O tempo tem sido frio. Bom para ficar em casa uns dias por semana. Mas sinto-me satisfeito porque ainda estou em forma para ter meu emprego e ganhar meu dinheirinho. Tudo indica que no próximo ano teremos bons negócios. Frieda ainda gosta de seu trabalho. A Social Security subiu sete por cento, de modo que tive um aumento nisso. Estou recebendo agora cento e quatro dólares por mês.
Já ajuda bastante. Estou contente porque entrei para a Social Security. Isso foi há muitos anos atrás. Já estou ficando velho. Parei de assistir à novela na televisão e agora tenho que deitar porque preciso levantar-me cedo. Nenhuma novidade especial. Portanto, por esta vez, até logo. De seu pai,
Willard.
Sybil não experimentou nenhum sentimento de aborrecimento pelo que acabava de ler, mas aceitou a situação com um sorriso amarelo diante da preocupação do pai com Frieda e consigo mesmo, e a consciência de que sua ênfase a respeito da Social Security como uma dádiva todo-poderosa que apaziguava a ameaça da pobreza nada mais era do que um meio esconso de lembrar que ele não era nenhum Rockefeller. Além da casa em que morava, tinha ainda três outras propriedades, uma vultosa conta bancária e bons rendimentos, acrescidos do salário de Frieda; mas o que ele queria era inculcar em Sybil a idéia de que a mesada da Social Security representava uma grande diferença.
Era também divertido ver a assinatura, "Willard", coisa que nunca havia feito antes. Omisso, arredio, eis que de repente se abria em repentina informalidade, num gesto de camaradagem, hospitalidade e familiaridade.
Dessa vez Sybil conseguiu suportar o impacto. O fato de que ela, em menos de três anos e meio de análise, já pudesse reagir tão bem constituía indício de maturidade crescente, uma aceitação de um tipo de situação que no passado fora motivo para se dissociar.
Com seu nariz encurvado como o bico de uma ave de rapina, Frieda entrou agitada na loja do marido, no porão da residência espaçosa e confortável, num subúrbio de Detroit. Sem dizer uma palavra a mulher entregou ao marido uma carta e saiu girando levemente os calcanhares.
Dez minutos depois, voltou à sala e, falando mais alto do que o ruído das brocas, Frieda cantou staccato: — É a carta? É dela? — Os lábios estreitos de Frieda se contorceram muito pouco e o seu rosto estremeceu quase que imperceptivelmente: — Garanto como o chateia.
Willard encolheu os ombros e disse: — Vamos falar sobre isto amanhã.
— O que é que ela diz? — e a cantarolagem voltou, em escala ascendente.
Frieda Dorsett não gostava de mulheres, e a filha de seu marido não era exceção à regra, principalmente porque Sybil representava uma ameaça. O casamento com Willard foi a primeira felicidade concreta que ela conheceu em seus cinqüenta e sete anos, e por isso não estava disposta a submeter-se a nenhuma interferência, real ou imaginária, da enteada.
Os ultrazelosos pais de Frieda a tinham casado aos catorze anos de idade com um homem de trinta e um. Aos dezesseis anos, Frieda deu à luz um filho. Karl Obermeyer, seu primeiro marido, era membro e convertedor da seita de Willard, mas não conseguira convertê-la, e assim ela achava que tanto o casamento como o nascimento de um filho eram desnorteantes. Depois da morte de Karl, vítima de um ataque, aos trinta e oito anos, ela se meteu numa série de negócios, tornou-se contadora e aprendeu a viver às próprias custas, sustentando também o filho. Sempre se gabava de que a sua inteligência deixara para trás a educação que recebera e que depois que o marido faleceu começou a ler e a estudar sozinha, para se atualizar.
Mulher que venceu pelos próprios esforços, fisgou Willard — alguns diziam que era por causa do dinheiro, outros por amor. Encontraram-se em San Francisco em 1949, mas só se casaram em 1956. Quando ele se mudou para Detroit, ela também fixou residência lá; alugou um apartamento perto do dele, fazia-lhe' as refeições, cuidava
Willard dissera a Sybil que não queria casar-se novamente, e que não se casaria com Frieda mesmo que levasse em consideração o fato de ela ter sido uma boa companheira; mas depois escrevera a Sybil em Nova York, dizendo que tinha mudado de idéia. "Acho", explicava ele, "que vou me casar com Frieda, porque ela está sempre aqui comigo, no apartamento, e isto causa má impressão."
Continuando em sua persistência, Frieda aconselhava esquivamente:
— Willard, Sybil é uma garota doente. Você é ainda um homem vigoroso e cheio de saúde. Você deve pensar em si mesmo. Promete que não vai permitir que ela interfira em nossa felicidade?
— Nossa felicidade — respondia ele pensativamente. Levantava-se da cadeira e passeava pela sala. — Mas eu amo minha filha, e sempre procurei ser um bom pai.
— Às vezes chego a pensar que você tenta demais — respondeu Frieda decididamente —, e ela não procura na devida medida ser uma boa filha.
— Frieda, ela é um gênio, uma garota inteligente e bem dotada — retrucou ele com convicção —, mesmo com tudo o mais que ela tem.
— Então, por que não arranja um emprego, como todo mundo? Ou, então, por que não se casa? Se ela permitisse que eu me aproximasse, ia ver como lhe arranjaria um homem. Por que não usa sapatos de salto alto? Por que usa relógio de homem? Como gostaria de pintar-lhe os lábios, encurtar-lhe aqueles vestidos cafonas, cachear-lhe os cabelos!
— A doutora, a doutora — resmungou entre os dentes Willard. — Mas não deve demorar muito. Tenho fé em Deus de que em breve Sybil ficará boa e poderá ajeitar a vida por si mesma.
— Afinal, o que é que ela escreveu? — insistiu Frieda?
Após uma pausa cheia de tensão, Willard replicou lentamente, enquanto suas resistências iam desaparecendo:
— É possível que eu precise ir a Nova York. Veremos — E continuou — Bom, não conseguirei acordar se não for já para a cama..
Com seus cinco pés e onze polegadas de altura, Willard Dorsett tinha uma figura imponente. Andava muito teso e seu rosto era atraente e de ossatura fina. Seu cabelo era sedoso, de um branco translúcido, e não perdera um único fio com o passar do tempo. Seu rosto confiante conservava um ar juvenil e cores muito saudáveis; os dentes, sem mancha alguma, estavam todos intatos. Como >nunca comera um pedaço de carne nem tomara um gole de álcool, conservara a linha e pesava pouco mais que no dia em que abandonara os estudos universitários. Sua voz, que era suave e baixa, e sua recusa sistemática a discutir, mesmo quando o provocavam, refletiam sua convicção de que era pecaminoso demonstrar sentimentos. A expressividade de seus dedos longos e magros não combinava com seu alheamento geral. Seu nariz adunco era o nariz de Sybil, a insígnia dos Dorsett.
Os dedos eram a marca exterior de uma natureza sensível e artística, que se expressava construindo edifícios melhores que os de seus concorrentes, e encontrava um escape numa diversidade de interesses estéticos. Na universidade estudara oratória e canto. Em Willow Corners, cantara como tenor no coro da igreja e no clube do povoado, e organizara um excelente quarteto masculino. Tocava violão no estilo espanhol e tinha um interesse tão ávido pela música clássica que, apesar de sua religião opor-se às coisas mundanas, comprara um dos primeiros fonógrafos de Edison. Também se interessava por economia, tinha um sentido verdadeiro de responsabilidade comunal e era muito respeitado em todos os lugares onde vivera. Era quase literalmente adorado pelos homens que trabalharam para ele.
Perfeccionista em seu trabalho, Willard desejava fazer as coisas à perfeição não apenas pelo trabalho em si, mas também porque acreditava que quando se contempla a perfeição do próprio trabalho ela glorifica a Deus. Contemplando o trabalho, sente-se respeito por ele, e, na rua, ouvia com freqüência o comentário deferente e surpreso: "Esse é Willard Dorsett", que lhe agradava e divertia um pouco. Sim, pensava, sendo um Dorsett, tenho uma boa cabeça e poderia ter feito muito mais com ela se não tivesse passado cinqüenta anos de minha vida em Willow Corners. Querendo usar aquela sua cabeça, sentia-se em êxtase quando se encontrava com gente bem-educada, dotada e que viajara muito.
A compulsão que transformava Willard num perfeccionista em seu trabalho também o fazia ser muito meticuloso nos detalhes, e essa preocupação com os detalhes freqüentemente bloqueava a comunicação.
— Você não pode dizer que é a metade maior — explicava a Sybil. — Se é a metade, é uma metade. Como pode ser a metade e maior ao mesmo tempo?
A compulsão fazia-o também um escravo do hábito. Sua comida padrão durante vinte anos foi dois sanduíches de ovo frito e uma fatia de torta de maçã.
De uma inteligência superior à normal, Willard também tinha limitações e uma ingenuidade superiores às normais. Era um homem inteligente num ambiente primitivo, um homem que se sentia aniquilado porque Joey, o sobrinho de Hattie, se atrevia a fumar na casa dos Dorsett, um homem que se inclinava ante a sabedoria convencional a ponto de escrever no livro de autógrafos de sua filha: "Veracidade, honestidade, amabilidade, pureza e temperança são as maiores virtudes do melhor dos homens". Sua mente era uma curiosa mistura de interesses humanísticos e rigidez puritana. Seu puritanismo era um amálgama de Willow Corners, a igreja, a era vitoriana e sua desmedida reação contra os loucos anos 20, que considerava como uma indicação da decadência moral da civilização, um presságio do fim do mundo.
Homem intensamente religioso, aderia rigidamente às doutrinas de sua fé fundamentalista e era tão literal em suas leituras das Escrituras, que, diferentemente de alguns membros mais sofisticados de sua confissão, por exemplo o Pastor Weber, seu mentor de Omaha, tomava as prédicas de sua igreja sobre o fim do mundo ao pé.da letra, ao ponto de passar toda a vida à beira do precipício do iminente fim do mundo. A própria igreja e a congregação de
Willow Corners, a que pertencia, transformaram-se em algo tão inquietante para ele, que, embora continuasse observando suas doutrinas até o fim da vida, deixou a igreja durante catorze anos.
Talvez sua fuga da igreja fosse também uma fuga do pai, um beligerante e aborrecido homem de seis pés de altura, com feições ossudas e cavanhaque, o qual, tendo sido lutador na juventude, encontrou na igreja uma boa válvula de escape para sua agressividade e hostilidade. Aubrey Dorsett, o pai de Willard, era filho de Arnold e Theresa, que chegaram a Willow Corners como colonos e cujos filhos, além de Aubrey, foram Thomas, Emmanuel, Frederick e Theresa II.
Aubrey, que era um beato, encontrava nos delírios ' evangélicos, nas prédicas incontroladas e nas aleluias entoadas com extática paixão o substituto para o mau vocabulário que não podia utilizar, já que era um homem piedoso. Seus desvarios evangélicos na primeira fila da igreja tinham sua complementação diante da agência do Correio de Willow Corners, onde Aubrey discursava contra os "romanos" e o "cornudo de Roma" (o papa), denunciando os odiados católicos à multidão reunida. Aubrey Dorsett predizia o fim do país se alguma vez um católico chegasse ao poder. Hostil não apenas com os odiados romanos, mas também com os membros de sua própria congregação e, na realidade, com todo o mundo, inclusive sua família, Aubrey procurava o calcanhar de Aquiles de todos os que o rodeavam, e freqüentemente o explorava em público com um vigor verbal que se igualava às suas façanhas físicas dos dias em que se dedicava à luta. Depois, tendo descoberto a ferida e mergulhado nela, procedia à salvação da alma de sua vítima.
Uma vítima muito especial era Mary, com quem Aubrey se casara à força e a quem estava sempre vexando, comparando-a com Val, o amor de sua vida, que não o aceitara. Em diversas ocasiões, durante seu casamento, confiou a direção de sua serraria a um empregado, e desapareceu silenciosamente para ir encontrar-se com Val em Nova York. Depois, voltava para pavonear-se de sua infidelidade ante Mary.
Como pai, Aubrey exigia uma obediência cega e forçada a seus três filhos — Theresa III, a primogênita, Willard, o segundo, e Roger, dezoito meses mais jovem que Willard —, que sorrissem sempre, como convinha a um cristão, e que nunca rissem, pois era pecaminoso. Embora seus três rebentos tivessem temperamento musical, Aubrey jamais lhes pediu que cantassem ou tocassem. Temia que, caso o fizessem, incidissem no pecado do orgulho. Não desejava que seus filhos fossem "inchados".
Envergonhado com a beligerância do pai, Willard recorreu à passividade. Incomodado pelas aleluias e arengas de seu pai, por sua agressividade e sua brusquidão, Willard se fechou numa concha de silêncio. Incapaz de ver a si mesmo na imagem de um pai que o envergonhava e de quem sentia vergonha, o pai com que sua natureza artística e sensível se achava em conflito, Willard se identificou com sua mãe, gentil e artística, mas passiva. E a identificação com a mãe era responsável pela natureza paradoxal do Willard Dorsett aparente.
Inquestionavelmente masculino, sexualmente ativo, apesar de sua professada rigidez puritana, atraente para as mulheres e lascivamente perseguido por elas durante os nove anos em que esteve viúvo, um homem que pensava e trabalhava com cimento e ladrilhos, Willard também tinha uma faceta claramente feminina. Menino e adolescente, freqüentemente ajudava a mãe no trabalho doméstico. Fazia frutas e verduras em conserva, e depois ensinou a Hattie essas habilidades. Costurava, e pagou seus estudos universitários trabalhando como alfaiate; e depois costurou todas as roupas de bebê de Sybil. Tinha um gosto excelente para decoração interior e, respeitando esse gosto, Hattie confiara-lhe a decoração de seu primeiro lar.
Por outro lado, a identificação de Willard com a mãe não só ajudou a modelar sua personalidade, como afetou a sua escolha de uma companheira. Como Aubrey Dorsett, Hattie Anderson era abertamente agressiva, sempre conspícua e claramente cruel. Willard se casou com seu pai em forma feminina.
De fato, tanto Willard como seu irmão Roger pareceram haver-se casado com o pai. De alguma maneira, os dois irmãos conseguiram encontrar mulheres singulares e de caráter forte, as duas chamadas Henrietta. Como Willard, também Roger se casou com alguém que não era de sua religião. A esposa de Roger era uma enfermeira católica, com quem se casou provavelmente como rebelião contra os histéricos sentimentos anticatólicos da gente de sua igreja, especialmente seu pai. A Hattie de Roger fumava, quando nenhuma outra mulher de Willow Corners se atrevia a fazê-lo, e usava ruge e batom, o que era uma afronta para seus parentes fundamentalistas. Mas sua verdadeira excentricidade residia na originalidade de seu trabalho noturno. Em seu tempo livre, aquela Hattie Dorsett tinha uma casa de jogo e de encontros para monjas no sótão de sua casa de pedra vermelha de Rochester, Minnesota. Chegava a arrumar roupas discretas para as monjas, a fim de facilitar-lhes o caminho mundano. Roger não queria saber desses negócios, mas dizia-se que chegou a ter relações carnais com algumas das monjas.
Aquela Hattie teve dois filhos, mas não gostava de ter meninos, e queria tirar Sybil da mãe. A motivação, que nunca ficou muito clara, provavelmente girava em torno do fato de sempre ter desejado uma filha, mas também podia estar baseada numa compreensão da situação em que Sybil se encontrava. Como enfermeira psiquiátrica, é possível que aquela Hattie se desse conta de que a cunhada era incapaz de criar uma criança.
A irmã de Willard, Theresa III, não se casou com alguém como o pai; reagiu contra ele e o ambiente, tornou-se uma solitária neurótica e excêntrica. Na adolescência, Theresa havia amado e fracassado; depois culpara os irmãos pelo seu fracasso. Aos quarenta anos se casou com um velho rico e mudou-se para a fazenda dele, em outro Estado. Voltou a Willow Corners apenas em duas ocasiões depois disso: primeiro, quando sua mãe teve um ataque cardíaco; depois, quando morreu. Em casa, na fazenda, escandalizava os vizinhos usando roupa de homem, e na igreja, que sempre ia atrás dela por causa de seu dinheiro, não dando esmolas. O dinheiro, que nem Theresa nem o marido confiavam aos bancos, estava espalhado por diversos buracos e esconderijos da enorme fazenda. Quando a economia ruiu, em 1929, aqueles bancos caseiros não lhes falharam. Quando Willard e Roger perderam os bosques madeireiros em que Theresa havia investido com eles, pediu-lhes seu dinheiro de volta. Por causa das velhas feridas ocasionadas pelo seu malogrado romance juvenil, os irmãos tiveram que hipotecar suas casas para que ela pudesse ter sua "libra de carne". Depois, quando entrou na posse da hipoteca da casa de Willard, Theresa decidiu que seus pais deviam ocupá-la. Não hesitou um instante em ordenar a Willard e família que fossem embora.
Cercada de riqueza, Theresa agiu como uma mendiga depois da morte do marido. Fechando todos os cômodos de sua casa, exceto um, retirou-se para esse quarto, que era aquecido no inverno apenas por um pequeno aquecedor a petróleo. Nos últimos anos de sua vida, Theresa reconciliou-se com Willard. Depois da morte de Hattie, Willard e Sybil visitaram Theresa. Sybil, que vira sua tia Theresa em apenas duas ocasiões, compreendeu então por que as pessoas a confundiam com Theresa e por que seu pai a chamava freqüentemente por esse nome.
Willard ficava ainda mais suave e baixava ainda mais a voz, mostrando-se quase reverente, quando falava de sua mãe. Tornava-se quase dogmático e empregava uma voz forte ao falar do pai e de Tom, seu tio, tranqüilizando-se de novo ao referir-se a Roger e Theresa. Willard sempre tivera sentimentos esquisitos com relação aos irmãos (Roger morreu com cinqüenta e seis anos de idade), e nunca lhe foi fácil recordá-los nem esquecê-los.
Willard, que tinha uma personalidade mais forte do que Roger ou Theresa, ergueu uma concha protetora contra as perturbações domésticas, mas isso não queria dizer que fosse fraco. Silencioso, mas forte, não era raro que fizesse prevalecer a sua vontade. Colocado frente ao fato de que tanto sua esposa quanto sua filha tinham problemas emocionais, Willard absolvera a si mesmo da responsabilidade hereditária pela doença da filha. Convenceu-se de que seu pai era aborrecido e Theresa, uma excêntrica, mas que nenhum deles era emocionalmente perturbado. Observando os descendentes dos quatro irmãos de seu pai, tinha que admitir algumas singularidades no clã, mas apressou-se a atribuí-las às famílias das pessoas com quem seus tios haviam casado.
Por exemplo, seu tio Thomas, que tinha toda a terra e todo o dinheiro que queria, teve cinco esposas, três das quais ele enterrou e uma das quais o abandonou. Foram elas, pensava Willard, as culpadas, e não o tio Tom. A primeira mulher de Tom enlouqueceu, perdeu o cabelo e as unhas, adquiriu uma cor branca de alabastro e morreu de uma paralisia generalizada. Bernard, o filho desse casamento, era muito voluntarioso em criança e, embora bastante indolente depois de adulto, tornara-se inventor. A primeira frase que seu filho, também chamado Bernard, disse à mãe foi: "Vou matá-la". E, segundo contavam as más-línguas, o comportamento dele realmente a matou. Depois, Bernard, Jr., o filho de Bernard, foi internado como esquizofrênico.
Francês Dorsett, a esposa de Frederick, tio de Willard, e Carol, uma filha desse casamento, eram sujeitas a freqüentes depressões como parte de uma psicose maníaco-depressiva. Mas, como essa enfermidade tinha uma tendência familiar muito forte, Willard tinha um bom pretexto para afirmar que Carol herdara esse gene de sua mãe, e não dos Dorsett. Como Francês e Carol, quando não estavam nos hospitais estaduais, visitavam com freqüência a família de Willard, este sempre perguntava a Sybil se ela se preocupava por ser parecida com a tia Francês e a prima Carol. Depois, como se ainda não tivesse feito bastante mal, lembrava-lhe:
— Você não tem por que se preocupar. Elas não são Dorsett.
Naturalmente toda essa história familiar era bem conhecida de Sybil. E, o que é mais importante, ela percebia muito bem as necessidades e temores de seu pai. Por isso, enquanto estava em Nova York esperando pela carta do pai, de Detroit, Sybil enfrentava dois temores — o de que ele poderia vir e o de que poderia não vir. Noite após noite, continuamente, ela sonhava durante esse período de ansiosa expectativa:
Ela estava andando por uma casa enorme, procurando o pai, ou então na mesma casa ele estava procurando por ela, ou ainda ambos estavam se procurando mutuamente. Ela entrava por todos os quartos numa busca frustrada, ciente de que o pai estava em algum lugar ali dentro, sabendo porém que não poderia encontrá-lo.
— Você deveria dizer a seu pai, no sonho, que está à procura dele — disse-lhe a Dra. Wilbur na análise. — O sonho expressa um forte desejo sexual por ele porque ele exercia um fascínio sobre você, mas representa também uma negação do desejo.
Sybil admitia que nutria sentimentos sexuais pelo pai quando ele lhe falava a respeito de sexo.
— Em questões de sexo existem algumas coisas que ainda não posso responder — dizia ele, na época em que se encontrava com Frieda. — Vocês, jovens, sabem mais a respeito de sexo do que nós, os mais velhos.
A Dra. Wilbur não tinha dúvida de que Willard tinha estimulado Sybil sexualmente não só quando ela já era adulta, mas também quando criança, tanto na prolongada cena primai como por suas negativas de aproximação física depois que ela se tornou o que ele convencionou chamar "grande demais".
Sybil teve outro sonho:
Parecia que homens a estavam perseguindo sexualmente. Seu pai não estava lá. A perseguição continuou e ninguém chegou para socorrê-la.
Tendo esperado durante muito tempo que seu pai viesse interferir em seu benefício, salvando-a da situação em que se achava, Sybil estava de novo esperando. E visto que os dias iam passando, via-se como que numa teia de sentimentos ambivalentes. Esses sentimentos teriam sido mais simples se Willard fosse um pai claramente rejeitador. Ela mantinha, porém, vínculos de amizade com ele, um relacionamento em que ele normalmente não lhe correspondia, por passividade, mas que era acelerado por acentuados desejos edipianos e por uma estreita afinidade de gostos.
Quando um crítico de arte em St. Paul, Minnesota, garantiu a Willard que o talento de Sybil para a pintura era autêntico, o pai se sentiu orgulhoso pelos seus trabalhos.
Chegou mesmo a fazer questão de montar e emoldurar pessoalmente os quadros. Quando pai e filha olhavam juntos para um quadro era como se fossem dois olhos olhando para o mesmo trabalho. Entre ambos existia uma reciprocidade, uma harmonia de pensamentos que se tornava cada vez mais forte como resultado de duas circunstâncias de infância.
Primeiro, quando Sybil tinha apenas seis semanas de idade, apareceu-lhe uma doença no tímpano. Ninguém soubera dizer o que havia com ela e ela só se sentia aliviada quando o pai a segurava no colo. Por coincidência, toda vez em que a segurava seu pai sentava-se perto do fogão da cozinha. O calor que ela recebia, juntamente com o de seu pai, acalmava-a: e o apego pelo pai começou assim.
Segundo, visto que não conseguia identificar-se com sua mãe, porque esta abusava dela e fazia-lhe sentir vergonha, Sybil cada vez se sentia mais impelida a identificar-se com o pai. Tinha que ter alguém, e convenceu-se de que o pai era a pessoa de quem poderia depender, especialmente dado o fato de que ela parecia não ser igual aos Anderson e sim aos Dorsett.
Assim, em seu consciente Sybil sempre cultivara e protegera a imagem paterna, embora houvesse épocas em que essa imagem não constituía uma fortaleza invencível. "No colégio", escreveu Sybil em seu diário quando era aluna secundária, "eu tinha colegas de quarto, colegas de classe, uma irmã maior, um conselheiro. Meu conselheiro, o Dr. Termine, era gordo e jovial, muito acolhedor. Era como o pai que eu nunca tive. Sempre tinha um tempinho para falar comigo. Era tão diferente!"
E quando a Dra. Wilbur perguntou a Sybil de maneira incisiva:
— Seu pai ama você? — Sybil deu uma resposta reticente e calculada:
— Suponho que sim.
Por isso a resposta de Willard Dorsett demorou tanto tempo.
DEIXAR DE SER
CONFRONTO E VERIFICAÇÃO
Às quatro horas da tarde do dia 4 de maio de 1957 Dorsett entrava na ante-sala do consultório da Dra. Wilbur — um senhor confiante, complacente, bem conservado, desconfiado e inacessível, que assumia facilmente as suas responsabilidades.
Dez minutos bastaram para que sua muralha defensiva começasse a ruir e ele gaguejasse. Enxugou a testa com extremo cuidado, usando um lenço recentemente engomado, quando, sentado na pequena cadeira verde do consultório, percebeu que as perguntas que a Dra. Wilbur lhe fazia não eram as que ele imaginara. Esperara ser indagado sobre a condição de Sybil como mulher de trinta e quatro anos de idade, sozinha em Nova York, procurando recuperar-se. Ao invés disso, a Dra. Wilbur estava fazendo perguntas sobre sua vida em Willow Corners e a vida de casado com Hattie. O ano de casamento com Frieda tinha sido muito bom, como que um véu sobre as lembranças, não somente de Willow Corners mas também de Omaha e Kansas City. Mas agora a médica estava, impiedosamente, arrancando o véu, revelando as partes mais desagradáveis.
A angústia de Willard se tornava mais intensa diante do embaraço que ele sentia por se ver na presença da Dra. Wilbur, com quem nos últimos meses mantivera uma volumosa troca de correspondência a respeito das finanças de Sybil. Ele mesmo se decidira a vir, e agora que se achava aqui a todo instante sentia que a doutora não era a mesma mulher que havia conhecido em Omaha.
Desconhecia, porém, as razões da mudança. Acontece que em Omaha ela não era uma psicanalista, e a abordagem psicanalítica enfatizava fortemente o poder determinante da infância. Em Omaha a doutora ainda não sabia que Sybil era uma personalidade múltipla, e não dispunha da riqueza de informações que Sybil e as outras personalidades haviam revelado daquela época para cá — informações que indiciavam Hattie e apontavam um dedo acusador contra Willard como responsáveis pela gênese da doença de Sybil. Foi principalmente para constatar a verdade do papel de Hattie e Willard no aparecimento da doença que a doutora havia pedido aquele encontro.
No entanto havia também outra finalidade. O tom cada vez mais insatisfatório e evasivo das cartas de Willard e suas omissões em amparar Sybil financeira e psicologicamente eram chocantes para a analista. Não importava qual fosse o seu papel no passado, no presente, a Dra. Wilbur estava firmemente convencida, Dorsett Willard havia condenado a si mesmo.
Como analista a Dra. Wilbur absteve-se de julgar o passado, mas, como amiga de Sybil, estava decidida a forçar Willard a assumir maior responsabilidade como pai. Por isso, encarava a entrevista como uma verificação da culpa inicial dos pais e como um confronto com um pai que estava constantemente faltando às obrigações para com a filha. A doutora estava disposta a não poupar palavras nem reprimir o tom acusatório em sua maneira de agir que, diante das circunstâncias, fluía naturalmente. Avaliando o caráter e as capacidades de Willard Dorsett, tornou-se claro que a única maneira de constatar o que procurava era assumir a ofensiva, desfechando um ataque direto.
— Mr. Dorsett, por que sempre confiou o inteiro cuidado e educação de Sybil a sua esposa? — perguntou a doutora.
Willard Dorsett não era um homem que ponderasse ou olhasse para quem estava em volta de si para pesar ou medir sua disposição de espírito. Em Willow Corners tinha sido um homem muito ocupado, ausente de casa desde a madrugada até o sol descer. Desconhecia todos os detalhes de sua vida doméstica, e tinha a idéia de que não precisava estar inteirado deles. Como poderia, perguntava-se, dar uma resposta viável às perguntas da doutora a respeito desses detalhes, já tão distantes e há tanto tempo esquecidos?
Por que havia confiado a Hattie todo o cuidado e a educação de Sybil? Como resposta ele deu de ombros. Obviamente, a pergunta parecia-lhe irrelevante. Era o mesmo que perguntar a um açougueiro por que vende carne, ou a um fazendeiro, por que semeia trigo. Quem é que tinha que cuidar de uma criança? A mãe, ora.
Sabia ele que o comportamento de Hattie era estranho? Willard moveu-se abruptamente em sua cadeira e tomou a defensiva. Quando finalmente se resolveu a falar, foi para dizer:
— Em primeiro lugar, Mrs. Dorsett era uma mulher admirável, inteligente e de talento. — Então, hesitou.
— E o que mais? — perguntou a doutora. Ele ficou confuso.
— Pois bem — continuou ele —, tínhamos muitos problemas. Financeiros e de outra ordem. Um deles era a própria Hattie, que em certas épocas se tornava difícil.
— Só difícil? — perguntou a doutora.
— Sim, ela era nervosa.
— Só nervosa?
Ele limpou a fronte e mudou de posição:
— Tinha lá seus dias maus.
— É verdade que estava num estado ruim, na fazenda, quando Sybil tinha seis anos de idade?
Willard desviou o olhar e, finalmente, respondeu afirmativamente.
— É verdade que, quando saiu de sua prostração, Mrs. Dorsett despencou colina abaixo, no trenó de Sybil?
Ele se torceu todo ao dizer:
— Sim. Sybil deve ter-lhe dito que era uma colina alta. Como vê, imaginação de criança. Mas, na realidade, a colina não era muito alta. — Ele possuía um modo quase cômico de esquivar-se à realidade dos fatos.
— Mas,, alta ou baixa, é verdade que sua senhora desceu por aquela colina dando gargalhadas, num trenó de criança? Naquele instante, o que o senhor pensou sobre o comportamento dela? — A doutora estava induzindo-o, ardilosamente, a reconhecer o fato. — Mr. Dorsett, achou prudente permitir que aquela senhora de atitudes estranhas e nervosa, sujeita ao que o senhor chama de "dias maus", assumisse a inteira responsabilidade da educação de sua filha?
Ao invés de responder diretamente, ele murmurou em voz baixa:
— Hattie era esquisita.
— Ela era mais do que esquisita, Mr. Dorsett. Ela era mais do que nervosa, se aquilo de que me informaram é verdade. — O bombardeio de recordações fez o consultório como que girar. Cada recordação, surgindo do passado sepultado, reavivava aquela dor indistinta e triste em suas mãos, aquela lembrança persistente da nevralgia de que passou a sofrer depois de perder todos os seus bens e o dinheiro.
— Realmente — explicou Willard —, Hattie e Sybil nunca se entenderam. Julgava que mãe e filha deviam ser amigas e me inquietava com suas discussões. Quando estavam às turras eu costumava dizer: "Hattie, vá descansar um pouco". Não perdia a esperança de que, com o tempo, as duas acabassem se entendendo.
— Isto foi quando Sybil contava entre treze e dezenove anos — lembrou a doutora. — Mas não aconteceram certos fatos quando ela era mais jovem? Criança até?
— A senhora deve estar sabendo de alguma coisa que eu desconheço — respondeu ele na defensiva, brincando com as próprias unhas.
A doutora queria saber se ele estava a par de que, ainda em criança, Sybil havia sofrido uma série incomum de lesões. Com aborrecimento ele respondeu rapidamente:
— Claro, como toda criança ela teve acidentes. Será que ele se lembrava de alguns desses acidentes?
Não, não podia dizer que se lembrava. Sabia ele que Sybil teve um ombro deslocado, a laringe fraturada?
— Como podia eu saber? — respondeu ele, contraindo seus lábios finos.
— Como aconteceram esses acidentes?
Willard não respondeu, mas a contração involuntária em seu rosto traiu seu constrangimento. Atordoado e confuso, finalmente respondeu:
— Nunca vi Hattie tocar a mão em Sybil.
Acaso se lembrava das queimaduras nas mãos da filha, e de seus olhos pretos?
— Sim — respondeu calma e vagamente. — Agora que a senhora está me transportando para aquela época, parece que me lembro destas coisas. — Ficou até mais confuso e disse: — Afinal de contas, não vi quando isto aconteceu. Deve ter sido quando me achava ausente de casa.
Lembrava-se da conta no nariz de Sybil? E a resposta, em posição de defesa, foi:
— Foi Sybil quem enfiou a conta no nariz. A senhora sabe muito bem como são as crianças. Andam sempre enfiando coisas no nariz e nos ouvidos. Mrs. Dorsett teve que levar Sybil ao Dr. Quinoness, que tirou a conta.
A doutora perguntou incisivamente:
— Foi isso o que a sua mulher lhe contou? Willard cruzou as mãos, como que para insistir em sua própria firmeza, e resistiu, dizendo:
— Sim, foi Hattie quem me contou isto. Eu não tinha nenhum motivo para pôr em dúvida a sua alegação.
A Dra. Wilbur insistiu:
— E o que lhe disse a respeito do ombro e da laringe? Que Sybil havia deslocado o próprio ombro e machucado a laringe?
Ele sabia que a Dra. Wilbur esperava uma resposta, mas quis ganhar tempo pensando no que iria dizer.
— Para ser sincero,— disse, finalmente —, não consigo lembrar exatamente o que Hattie me disse. Mas costumava me dizer que Sybil levava muitos tombos. Creio que nunca me preocupei em saber como aconteciam. Ignorar as coisas é um dos meus defeitos.
— E o depósito de trigo, em cima da carpintaria? Fechou os olhos, como se assim pudesse esconder-se dos horrores que haviam sido evocados. Abriu os olhos e encorajou-se a ouvir. Sim, lembrava-se daquele incidente.
— Como imaginou que Sybil pudesse ter subido e puxado a escada?
Willard sabia perfeitamente que aquilo não podia ter acontecido, mas o que Hattie lhe havia contado veio-lhe à lembrança como tábua de salvação. Por isso respondeu à doutora:
— Foi o fanfarrão da cidade quem fez aquilo.
— Mas será que foi ele mesmo? — perguntou a doutora.
— Na verdade — respondeu Willard calmamente —, o garoto disse que não sabia nada a respeito.
— Então, quem foi o culpado? — insistiu a doutora.
O edifício de complacência de Willard Dorsett estava começando a ruir, e ele afundou em sua cadeira. Sua voz normalmente era suave e baixa. Dessa vez ele murmurou, numa voz fracamente perceptível:
— Seria Hattie?
Este era um momento capital. Como um molusco, Willard Dorsett permanecera encaramujado, insulado no mundo privado de suas próprias preocupações. Tinha sido resoluto em seguir um caminho de conformismo, recusando-se a olhar para qualquer outra direção. Agora, o molusco, fora do oceano, estava sendo fervido em água quente, com sua casca se fendendo. Os muitos anos em que se manteve a distância, recusando-se a ver, a tomar conhecimento, convergiam agora num momento de repentina constatação em que instintivamente, por uma recordação poderosa, Willard Dorsett chegou a acreditar que foi Hattie quem colocou Sybil no depósito de trigo; que foi Hattie a responsável pela fratura da laringe da filha, pela deslocação do ombro, pelas várias queimaduras, pela conta no nariz.
— Seria Hattie? — repetia Willard, apavorado. Mas, desta vez, era para convencer-se a si mesmo. — Ó Senhor misericordioso, não foi Hattie! — Sua cabeça estava inclinada. Estava rezando.
— Hattie — respondeu a Dra. Wilbur. — Se o que Sybil me disse é verdade.
Willard ficou pensando nas respostas que iria dar. Olhou para o cortinado verde e, depois, para a doutora. Mais uma vez, fechou os olhos, mas só momentaneamente, porque a doutora continuou com o bombardeio:
— Mr. Dorsett, havia algumas coisas que, segundo Sybil, aconteciam de manhã bem cedo...
Ele estava agora acuado, numa situação que lhe quebrava a paz tão tardiamente assegurada com Frieda, depois que as lembranças de Willow Corners, Omaha e Kansas City haviam sido esquecidas.
— De manhã bem cedo — dizia-lhe a doutora; e, quando a médica narrou, de novo, as torturas ritualísticas das manhãs, ele sentiu-se interiormente angustiado. Quando a doutora se referiu à abotoadeira, novamente curvou a cabeça. Era um momento de revelação.
— Então era por isso que Sybil gritava daquele jeito aos sábados, quando tentávamos abotoar seus sapatos brancos — murmurou ele.
Em seguida, pensando ainda na angústia evocada com a lembrança da abotoadeira, disse que o que lhe havia sido descrito estava além de toda compreensão. Acrescentou, também, que estava ausente de casa e não podia saber o que estava se passando. Não podia examinar a fundo como as coisas tinham acontecido, acrescentou.
A atmosfera era como a de lava sendo expelida de um vulcão, quando Willard Dorsett repetia e tornava a repetir:
— Não sei. Como é que podia saber se ninguém me contava nada? Eu acreditava em Hattie. — Depois acrescentou, em parte como defesa própria, em parte como uma confissão: — Eu era dominado por Hattie de tal forma que não podia pensar.
— Pense, Mr. Dorsett — ordenou a doutora. — Pode me dizer se estas coisas que Sybil me contou de fato aconteceram? Existem cicatrizes internas e lesões que levam a dar crédito ao que ela contou.
Que maus bocados estou vivendo agora, pensou Willard ao tirar o lenço do bolso do colete do seu terno cinzento e enquanto enxugava as gotas de suor que iam se formando em sua testa. O depósito de trigo e a abotoadeira constituíam uma evidência inegável em suas recordações. Bem que ouviu o grito penetrante de sua filha quando ela viu aquela abotoadeira inofensiva. E as cicatrizes e lesões também constituíam prova. Dobrou o lenço com cuidado e recolocou-o no bolso do colete. Em seguida, encarou firmemente a doutora, tendo diante dos seus olhos, pela primeira vez, o panorama total de todo o passado.
— Doutora — disse finalmente, em voz baixa —, tenho certeza de que as lembranças de Sybil são perfeitamente corretas, em todos os sentidos. Não tinha conhecimento destas coisas, mas, agora, olho para trás e lembro-me da maioria dos episódios relativos às lesões físicas. Depois que isto ocorria havia épocas em que Sybil ficava de cama e a avó, minha mãe, cuidava dela. Com a avó Sybil se sentia bem. — Ao perceber o que estava dizendo, parou um pouco, para depois continuar: — Não tinha conhecimento dessas coisas; mas, conhecendo Hattie, não tenho dúvidas de que ela era capaz disso. — E com estranha objetividade e sem nenhuma emoção acrescentou: — Estou certo não só de que eram possíveis como, também, de que realmente aconteceram.
Foi um momento decisivo, do tipo daqueles que os dramaturgos clássicos da Grécia chamam de peripécia — o momento em que a ação de um drama faz uma reviravolta repentina e catastrófica, uma reversão. Na qualidade de testemunha, corroborando a verdade do testemunho de Sybil a respeito das atrocidades, as quais a Dra. Wilbur já considerava como a raiz fundamental da multiplicidade de personalidade, Willard Dorsett havia incriminado a si próprio. Admitindo que Hattie era inteiramente capaz das atrocidades que lhe eram atribuídas, ele estava igualmente confessando que, deixando de proteger a filha contra uma mãe perigosamente destrutiva, tinha-se tornado cúmplice dos atos dessa mãe. E era precisamente disso que a Dra. Wilbur suspeitava.
Incontestável era agora o fato de que as violentas tiranias deste pai não neurótico (a doutora estava convencida de que ele não sofria de neurose), as quais se evidenciavam em suaves evasões, o meneio dos ombros que revelava uma vontade de não assumir nenhum compromisso e o ensimesmamento que praticou durante toda a sua vida contribuíram para aumentar as virulentas tiranias da mãe, a ponto de induzir Sybil a procurar uma solução psiconeurótica para a realidade intolerável de sua infância. A mãe era a causadora principal da multiplicidade de personalidades de Sybil, mas o pai — tinha agora a Dra. Wilbur a plena certeza —, não por ação mas por omissão, constituía uma raiz importante de co-responsabilidade. A mãe tinha levado Sybil à armadilha, mas o pai, embora Sybil pessoalmente nunca tivesse admitido totalmente o fato, fizera com que ela tivesse a impressão de que dessa enrascada não havia mais jeito de safar-se.
A doutora disse simplesmente:
— «Mr. Dorsett, o senhor acaba de me dizer que considera a mãe de Sybil completamente capaz das atrocidades de que falamos. Então, repetindo uma pergunta anterior, posso lhe perguntar por que consentiu que sua filha fosse educada por ela?
Ele pensou se devia responder ou evitar a auto-incriminação que uma resposta inevitavelmente implicaria.
— Pois bem, cabe à mãe criar o filho — respondeu ele, medindo as palavras. Mais uma vez, encaramujou-se dentro de si mesmo.
— Mr. Dorsett, mesmo que tal mãe seja claramente esquizofrênica? Mesmo, Mr. Dorsett, que tal mãe esquizofrênica tenha em pelo menos três ocasiões estado a ponto de matar a filha?
Atordoado, colocando-se sempre na defensiva, ele respondeu:
— Fiz o que pude. — Depois, disse à Dra. Wilbur que havia levado Hattie a um psiquiatra da Mayo Clinic, em Rochester. O médico de lá diagnosticou e constatou que Hattie era uma esquizofrênica que, embora não precisasse ser hospitalizada, devia submeter-se a um tratamento como paciente não interna. — Hattie viu o médico somente uma vez — observou Willard. — Não voltou mais porque, disse, a única coisa que o médico fazia era ficar olhando para a cara dela.
Diante desta nova revelação, a Dra. Wilbur achou graça e, ao mesmo tempo, ficou intrigada. O diagnóstico do outro psiquiatra confirmava o da própria Dra. Wilbur. Era a confirmação que tornava as atrocidades duplamente plausíveis, como resultado de um comportamento esquizofrênico. Juntamente com as observações da Dra. Wilbur, isto significava que as provas que a médica procurava estavam, finalmente, à mão. Não precisou mais pensar se isto seria em si uma confirmação, embora as várias personalidades de Sybil lhe tivessem contado a respeito das atrocidades de Hattie. Cada vez mais vinha a doutora rejeitando as evidências de tudo aquilo, baseando-se no fato de que todas as personalidades pertenciam ao inconsciente de Sybil e que o inconsciente absorve aquilo que se realiza conscientemente, embora muitas vezes a mente consciente desconheça o que a mente inconsciente está fazendo. Por isso, o que as outras personalidades haviam dito podia ter sido uma mera repetição de Sybil, uma repetição fantasiosa que imaginava torturas, crueldades ou até uma recordação perversa, no sentido de se proteger. Naturalmente que as cicatrizes e lesões internas representavam dados objetivos. Mas havia a possibilidade remota de que tivessem sido auto-infligidas. Agora porém não havia mais necessidade de perguntar.
A visita de Hattie Dorsett à Mayo Clinic para se consultar com um psiquiatra constituía, outrossim, um fator inquietante, porque parecia confirmar o fato de que Willard Dorsett havia conscientemente confiado a filha aos cuidados de uma pessoa diagnosticada como esquizofrênica. Como explicação para esta atitude Willard Dorsett se limitou a dizer apenas o seguinte:
— Ela era a mãe. Nunca pude imaginar que uma mãe pudesse ser nociva à filha. — Era o eco de uma perene estereotipia. Ou, quiçá, com mais violência e aspereza, fosse a mesma voz de negação com que os alemães, vendo o morticínio em massa de judeus nos campos de concentração nazistas, proclamavam nada saber.
A analogia era duplamente adequada, já que Sybil se identificara com os judeus nos campos de concentração alemães. Pensava em sua mãe como Hitler, o torturador, e em si mesma como uma judia torturada. Freqüentemente sonhava que era prisioneira de um campo e que seu guardião era uma mulher de cabelo branco: a imagem onírica de sua mãe. Os pensamentos e os sonhos adquiriam uma força maior pelo fato de que Sybil pertencia a um grupo religioso que pensava em si mesmo como numa minoria e que denunciava do púlpito os ditadores como a encarnação das palavras proféticas que se encontram no Livro de Daniel e no Apocalipse, na Bíblia: que um homem mau se erguerá e conquistará o mundo. Quando Sybil finalmente reassumiu sua existência, depois dos dois anos de predomínio de Peggy Lou, foi para descobrir que um homem mau estava negando a liberdade a milhões de pessoas, exatamente como sua mãe negava a liberdade a uma.
A aversão que a Dra. Wilbur havia sentido por Willard Dorsett por causa de seus lapsos financeiros com Sybil converteu-se em verdadeira ira. A Dra. Wilbur estava convencida de que Willard Dorsett não soubera de nada porque não quisera saber. No começo pensara nele como nos pais com quem tivera que se encontrar nos outros casos, distantes, passivos, empenhados em não saber os fatos que poderiam preocupá-los, bonachões demais para enfrentar as mulheres com quem haviam casado, eficazes em seus negócios, mas ineficazes no lar. Era uma doença comum a muitos homens americanos: a síndrome da mãe dominante e do pai recessivo, que, freqüentemente, se revelava como a raiz dos problemas familiares.
Não obstante isso, agora a doutora acreditava que, embora tudo isso fosse verdade no caso de Willard Dorsett, o fato principal a seu respeito era que não tomara nenhum tipo de medida contra a mais destrutiva das mães de que a doutora tivera conhecimento.
Através do conhecimento do comportamento de Willard obtido na análise, a doutora sabia, também, que ele fora um fracasso em prestar assistência a Sybil. Foi para esta falta de assistência à jovem que a doutora, inicialmente, teve sua atenção implacavelmente voltada.
Ao ver que Sybil estava emocionalmente perturbada, Willard (isso foi a doutora quem lhe disse) reagiu como se não quisesse tomar conhecimento. Esquivava-se do assunto, lançando mão do subterfúgio de nunca perguntar a Sybil o que havia com ela, quando estavam sozinhos, ocasião em que esta estava livre para se abrir com ele. Ao invés, fazia as perguntas na presença de Hattie ou quando, obviamente, não havia oportunidade para se falar. Tocava no assunto nos poucos momentos em que os dois ficavam sozinhos com ela fazendo a parte de contabilidade para ele ou entre um freguês e outro, na loja de ferragens.
Ao invés de penetrar no âmago do problema da filha, embelezava-a e cobria-a de cuidados que eram próprios dele. Estava muito preocupado com o iminente fim do mundo, um assunto que era tão real para ele, que chegara a sair do colégio porque queria utilizar todo o tempo de que dispunha (nunca era preciso em determinar quanto tempo ainda lhe sobrava) para vivê-lo não nos bancos de uma universidade, mas sim lá fora, na vida real. E por isso, quando Sybil revelou sintomas de depressão, tirou o corpo fora do problema real, limitando-se a perguntar-lhe se estava preocupada com o fim do mundo.
Lançara mão de soluções momentâneas e de panacéias de ocasião — por exemplo, um violão para curar a doença emocional para a qual o Dr. Quinoness havia recomendado que procurasse um psiquiatra. Quando Sybil se queixava de que as coisas lhe pareciam irreais, ria-se da queixa fazendo uma espécie de careta ou então lhe dizia: "O Dr. Quinoness vai lhe dar algumas injeções e você vai ficar boa". Willard Dorsett muitas vezes chegou a tirar da idéia de Sybil essas preocupações, dizendo-lhe que era tudo imaginação. Em resumo, por meio de uma série de negações estratégicas, o pai ignorou completamente e recusou-se a enfrentar o problema que estava na raiz das preocupações reais da filha.
— E qual era essa preocupação? O comportamento de Sybil algum dia lhe pareceu estranho? — foi o que a doutora perguntou ao pai.
Sim, Willard lembrava-se de que houve vezes em que Sybil não parecia ser ela mesma; que na realidade com freqüência tinha-se tornado difícil determinar que personalidade estava atuando, porque raramente Sybil era a mesma. Era uma criatura muito taciturna e melancólica, e parecia encarnar muitos tipos diferentes de pessoas. Sybil ficou mudada — lembrava-se seu pai — depois da morte da avó, ou na quinta série (quando esqueceu toda a tabuada de multiplicar que havia aprendido), ou então na sexta série (quando pediram a Willard que fosse à escola porque, depois de perambular fora de sua sala de aula, Sybil foi encontrada no vestiário, falando duma maneira que não era própria dela). Havia também ocasiões, lembrava-se o pai, em que Sybil esquecia completamente a música que havia aprendido muito bem, quando ele e Sybil davam concertos de violão ou cantavam em pequenos conjuntos vocais.
De acordo com o depoimento de Willard, Sybil pareceu estranha em Omaha, quando andava por cima dos móveis depois que o colégio a mandou para casa, e dizia: "Saia do meu caminho, senão o machuco". Naquela ocasião seu comportamento tinha sido tão estranho, disse Willard, que Hattie e ele tiveram que trancar todas as portas e esconder as chaves. E ele também ficava sem saber o que fazer quando Sybil desaparecia.
— Não sei o que fiz de errado — disse ele —, mas estou certo de que fatos estranhos aconteceram. Eu procurei ser um bom pai.
A lista que a Dra. Wilbur possuía sobre as coisas erradas que ele fizera era extensa. Um exemplo de deslealdade na infância foi aquele que se deu por ocasião da extração das amígdalas, não lhe explicando o que ia acontecer, mas simplesmente atraindo-a à casa do Dr. Quinoness (cujo andar superior servia de clínica particular) dizendo-lhe que ia passar todo o dia brincando com os filhos dele. Esta mentira deslavada produziu tamanho pavor que Sybil começou a se debater desde o momento em que a máscara de éter se aproximou do seu rosto. Seu pai lhe segurava as pernas para baixo.
Embora não fosse um pai que rejeita e mantivesse bom relacionamento com a filha, Willard muitas vezes contribuiu para Sybil sentir-se repudiada, especialmente quando não lhe permitiu que estivesse presente à encomendação do corpo de sua avó.
— Fiz aquilo com a única finalidade de poupar a Sybil a agonia que isso lhe causaria — explicou Willard.
— Mas — rebateu a doutora — Sybil sentiu-se mais agoniada em ver-se repudiada, mais angustiada por não lhe ser possível externar a dor.
Sybil sentira angústia e rejeição também quando tinha treze anos e Willard, cansado das queixas de Hattie por ter que viver sob o mesmo teto que o sogro, falou em alugar uma casinha para Hattie e Sybil morarem, enquanto Willard continuaria a viver com o pai na velha casa.
— Meninas têm que ficar com a mãe — explicou Willard.
Willard Dorsett, dizia a doutora, desapontou a filha quando não lhe permitiu que pulasse uma série (embora o seu qi fosse cento e setenta e seu ritmo de estudos fosse prejudicado por crianças menos dotadas), com medo que ela ficasse com o que ele denominava "cabeça inchada".
Quando a Dra. Wilbur acusou Willard de ter acabado, por motivos religiosos, com a amizade entre Sybil e Danny Martin, que tinha sobre ela um efeito tranqüilizante e que poderia ter resultado num casamento, o pai se sentiu melindrado.
— Eu não quis que Sybil ficasse andando com aquele rapaz para o seu próprio bem — disse Willard. — Fiz o que me pareceu certo. Não queria que se casasse com um sujeito que não fosse de nossa religião, e tenho certeza de que, se fosse mais velha, teria concordado comigo.
E acrescentou:
— Na realidade, mais tarde ela concordou com essa filosofia. Quando se encontrava com um homem que divergia de sua filosofia religiosa, ela imediatamente dava o assunto por encerrado. Sybil era piedosa.
Havia razões para Willard Dorsett ter agido de maneira errada que a doutora deixou de lado, porque se transformariam nas respostas que o malquistariam para sempre. No exemplo de Danny Martin bem que a doutora gostaria de ter dito a Willard que ele sacrificou a felicidade da filha no altar de um tacanho preconceito religioso. Como a doutora gostaria de perguntar: "Que acha que sua filha estava tentando dizer quando subiu na sua cama e se pôs entre vocês dois, naquela ocasião em que estavam tendo relação sexual?" Quanto a doutora gostaria de lhe lançar no rosto a pergunta: "Por que são vocês tão hipócritas que pregam decência e no entanto acham moral e correto satisfazer os instintos sexuais, durante nove anos, na presença de sua própria filha? E por que é que tempos depois o senhor seduziu sua filha com palavras bonitas, enquanto dava muita importância ao fato de ela ser muito grande, na idade de dois anos e. meio, para sentar-se em seu colo, grande demais para todas essas pequenas intimidades que teriam feito com que Sybil sentisse que tinha um pai vivo, um pai vigilante?" A sedução verbal era uma referência indireta ao fato de que, enquanto cortejava Frieda, Willard muitas vezes havia feito observações a Sybil como: "Vocês, jovens, sabem muito mais sobre sexo do que nós, de modo que estou certo de que vocês podem nos dizer alguma coisa a respeito".
E, da mesma maneira como se abstinha de fumar ou praguejar na presença daquele homem modesto e puritano, a Dra. Wilbur evitava, também, fazer perguntas que seriam um desafio ao seu puritanismo.
— Procurei ser um bom pai — repetiu Willard Dorsett quando apertou a mão da doutora, no fim do encontro, que durou duas horas. Suas palavras já não tinham, porém, aquelas velhas cadências de tranqüilidade, e sua armadura havia ruído.
A porta se fechara atrás de um homem que havia sido visivelmente abalado. Julgando-se ainda na defensiva, ansioso por restabelecer a autoconfiança e apagar o passado que o havia apanhado de surpresa, voltou para Butler Hall e telefonou a Frieda, graças a quem podia estabelecer uma conexão com o presente. Evidentemente, nessa conversa, não fez menção ao encontro martirizante, embora este produzisse resultados imediatos. Durante todo o tempo em que ainda viveu, nunca mais deixou de providenciar para que Sybil recebesse pontualmente o cheque da mesada.
Pouco depois de sua conversa telefônica com Frieda, avisaram-no da portaria: "Sua filha e a amiga dela estão esperando pelo senhor".
— Sim, sim, estou esperando por elas — respondeu ele. — Diga-lhes que desço já.
Com um conjunto de gabardina azul e uma blusa vermelha, Sybil estava esperando no saguão, juntamente com Teddy Reeves. De repente enfunou o peito, começou a assobiar uma melodia e afastou-se empertigada de Teddy. Aproximando-se de Willard, que se encaminhara em sua direção, Sybil disse, numa voz clara e firme:
— Por que o senhor nunca me levou a um jogo de futebol americano?
Foi um momento fantástico e Willard foi reconduzido àquela noite em que ouvia um martelar de pregos em sua carpintaria de Willow Corners. Querendo saber quem poderia estar lá àquela hora, resolveu investigar. Na carpintaria havia uma criatura magra, trajando brim azul com um cinto; os braços estavam cobertos com um suéter vermelho, de lã. Willard não conseguia ver o rosto, porque a pessoa estava de costas para ele. Quando, porém, chamou, a pessoa se virou. Sybil, no saguão de Butler Hall, parecia agora com aquela de então.
— Paizinho — repetiu ela quando fizeram sinal para um táxi que os levaria ao Carnegie Hall —, por que o senhor nunca me levou a um jogo de futebol americano?
Teddy Reeves sabia que Sybil havia mudado de personalidade, mas não sabia em que pessoa se havia transformado. E o pai, preocupado, não sabia que, não levando a filha a um jogo de futebol americano, havia frustrado um filho.
OS MENINOS
No exato momento em que, naquele dia 4 de maio de 1957, Willard Dorsett ia entrando no consultório da Dra. Wilbur, Sybil Dorsett estava enfiando a chave na fechadura do seu apartamento de Morningside. Quando a porta se abriu de todo ela olhou com espanto para a sala de nove por cinco metros que era a passagem principal do apartamento. Das oito horas da noite até o presente momento, um espaço de oito horas, a sala tinha sido transformada por aquilo que se parecia com uma grande parede.
O cheiro de tinta fresca que entrou pelas narinas de Sybil constituía prova não só de que o trabalho era recente, como também da realidade da parede. Também a tinta vermelha que se grudou nos seus dedos quando tocou na inexplicável parede era mais um testemunho da sua realidade. Mas não era exatamente o que parecera à primeira vista. Examinando mais de perto, Sybil constatou que a parede — na realidade uma separação — tinha somente dois metros e meio de altura.
O apartamento, que anteriormente era a sala de jantar de uma antiga mansão, dispunha de duas cozinhas, mas não oferecia intimidade. Teddy Reeves dormia na cozinha menor, e Sybil dormia na parte comprida da sala que tinha uma lareira antiga que ardia com lenha. Na casa Dorsett-Reeves a área em frente à lareira era conhecida pelo nome de sala de estar. Para ir ao seu quarto Teddy tinha que passar pela cama de Sybil. Era um arranjo esquisito e insatisfatório, para o qual nem Sybil e nem Teddy conseguiam encontrar solução.
A separação, que dividia a sala ao meio e ocultava a área onde Sybil dormia, tornava a cama oculta. Teddy podia ir diretamente ao seu quarto. Embora Sybil estivesse sobremodo contente com a solução, preocupava-se em saber qual o motivo da existência daquele protetor de sua intimidade.
A ansiedade era ainda maior porque a sua descoberta se dera no final de todo um dia trancado por longos períodos de tempo perdido. Mesmo quando tirou a chave da fechadura, fechou a porta e se dirigiu para o final da separação, sentiu um movimento interno intenso — "interferência das outras", conforme tinha aprendido a chamar a isso. Havia um clamor surdo.
Mais ainda, a separação era firme e, embora armada às pressas, tinha sido trabalhada com muito apuro — digna, conforme pensou ela, de duas gerações de carpinteiros Dorsett — seu pai e seu avô. Ela iria mostrá-la a seu pai antes que ele voltasse para Detroit.
Sybil ouviu a chave de Teddy na fechadura.
— Que cheiro de tinta! — gritou Teddy, parando de repente e olhando para o tabique. — A separação é maravilhosa. Por que não me disse que ia levantá-la? — perguntou a outra.
— Porque não quis — disse Sybil. Mas, mesmo quando falou, sabia que não podia ter certeza de quem não queria. Era concebível que os pregos que seus dedos inquietos haviam encontrado nos bolsos do macacão azul que usara o dia inteiro pertencessem ao carpinteiro que havia feito a separação. Um carpinteiro Dorsett?
Na manhã seguinte o consultório da Dra. Wilbur, praticamente um tribunal no dia anterior, transformou-se num confessionário. Uma personalidade entrou empavonada e empertigada. Dirigiu-se ao sofá, sentou-se e confessou:
— Eu fiz aquilo.
— Mas fez o quê? — perguntou a doutora.
— Claro, eu levantei a separação. Deixei que Mike fincasse os pregos e, sozinho, fiz todo o serviço pesado. Vicky e Peggy Lou fizeram a maioria dos desenhos e medidas, e pintaram alguma coisa. A gente tem que dar o braço a torcer, porque as garotas são de morte: sabem trabalhar.
Por esta vez a Dra. Wilbur não deu muita importância para o nome "Mike” nem para a maneira altaneira de se referir às garotas. O que impressionou grandemente a doutora foi o fato de as personalidades alternantes terem transformado o desejo e a necessidade de intimidade de Sybil em uma solução construtiva, que a personalidade atuante não encontrara. Enquanto a mente consciente vacilara, a inconsciente agiu.
A atenção da doutora foi rapidamente reconduzida à situação imediata, onde percebeu que o paciente — uma personalidade que a doutora não havia encontrado antes — estava olhando para ela muito seriamente.
— Sou Mike — anunciou a voz. — Quero fazer-lhe uma pergunta. — Esta voz já era diferente daquela que lhe havia falado a respeito da separação.
— O que gostaria de saber? — perguntou a doutora.
— Como é isso?
— Isso, o quê?
— Nós somos diferentes?
— Diferentes? — repetiu a doutora.
— Sim — explicou Mike. — As outras são garotas. Mas eu sou um menino, e Sid também.
— Você está vivendo num corpo de mulher — lembrou a doutora a Mike.
— Não é exatamente isso — retrucou Mike com segurança.
— Isso é só o que parece — acrescentou Sid com igual segurança.
O momento passou. Confiantes em sua masculinidade, os garotos agitavam-se para saber quem e o que eram. Por uma descrição que ele próprio fizera, Sid tinha pele clara, cabelos escuros e olhos azuis; Mike, pele azeitonada, cabelos escuros e olhos castanhos. Sid tinha derivado seu nome das iniciais de Sybil — Sybil Isabel Dorsett. Mike atribuía seu nome a duas fontes — pai e avô. O nome de Mike, que se originara no fato de Willard chamar sua filha de "Mike" toda vez que esta vestia macacão, tinha sido reforçado por uma expressão favorita do avô Dorsett: "Pelo amor de Mike".
Mike e Sid falaram do concerto a que assistiram na noite anterior juntamente com o pai e da ajuda que deram a Sybil em sua gravação em madeira e em escultura. Falaram da coleção de selos e da vida no apartamento Dorsett-Reeves.
Sid, que fora o carpinteiro da separação, era também o pau-para-toda-obra de Sybil.
— Sybil nunca sabe quem faz os consertos. — Um sorriso largo iluminou o seu rosto. — Sabe de uma coisa? Vou apanhar seis engradados de maçã e fazer uma estante de livros para Sybil.
Conforme os garotos se queixaram, Nova York não lhes oferecia quase nenhuma oportunidade para os esportes com que se divertiam em Willow Corners, onde, vestindo macacão de malha azul e um suéter vermelho, tinham passado longas horas patinando ou batendo bola no quintal da casa dos Dorsett. Em Willow Corners, tinham observado, diziam eles, o milagre de construção levado a efeito pelos homens de seu pai. A coisa de que Mike e Sid mais gostavam era trepar no balanço comprido de corda de modo que podiam ir tão alto a ponto de atingir a própria casa quando se jogavam para a frente e a casa do vizinho quando voltavam.
— Puxa vida — disse Mike —, como era divertido.
— A senhora deveria ter-nos visto — disse Sid.
A vida em Willow Corners, é claro, não estava isenta de frustrações. Muito bem caracterizava esta frustração o megafone que outras crianças usavam na escola para ampliar o som nas competições esportivas.
— Sid e eu nunca usamos o megafone — disse Mike melancolicamente — porque nós nunca fomos a um jogo de futebol americano. Nosso pai não nos levava.
Já no primeiro encontro com a Dra. Wilbur tinha havido indícios que lançavam uma luz sobre a pergunta inicial de Mike: "Como é isso?"
Sem ser perguntado, Sid havia dito:
— Sou parecido com meu pai. Ele é um construtor. Eu sou um construtor tão bom quanto ele.
Mike havia feito a observação:
— Vovô era forte e eu sou forte. Ele podia martelar pregos e eu posso martelar pregos com tanta força quanto ele. Ele era grande e eu posso ser tão grande como ele. Eu não tenho as mãos aleijadas.
Ao dizer isto Mike enfunava o peito com autêntico orgulho masculino. Com esta pequena pantomima a Dra. Wilbur constatou que, embora no começo da consulta Sid tivesse falado primeiro, quem entrara na sala tinha sido Mike. A doutora sabia também que as pistas que haviam sido deixadas, como seixos atirados na água, estavam produzindo ondulações em resposta à pergunta inicial de Mike. Ela levantou a hipótese de que Sid se identificava com o pai e Mike com o avô Dorsett.
Garotos nos anos de 1920 e 1930 em Willow Corners, Mike e Sid continuavam garotos em Nova York, em 1950. O que possuíam era a juventude eterna de uma personalidade alternante, uma juventude com a constante, embora não realizada, promessa de crescimento.
Quando se encaminharam para a porta a doutora ficou surpresa pelo fato de que vestiam calças largas azuis, correspondentes nova-yorkinos dos macacões de brim azul de Willow Corners.
Para Mike e Sid, que haviam permanecido crianças durante mais de vinte anos, crescer tinha um significado: tornarem-se homens feitos.
Durante semanas revelaram à Dra. Wilbur a intensidade do seu desejo.
— Era tão escuro na garagem — disse Mike à Dra. Wilbur. — A gente chegava a sentir o cheiro da serragem e das tábuas, e como era bom. Aquele cheiro era gostoso. Havia lá dentro um banco comprido com uma caixa embaixo. A caixa tinha livros que as crianças não devem olhar. Quer saber o que mais havia naquela caixa? Trancas de cabelos de mulher. — As trancas eram madeixas castanho-vermelhas, os remanescentes da juventude de Hattie.
— Aquela caixa era pecaminosa — declarou Mike. — Tinha pecado.
Quando levantou os olhos em direção à doutora notou-se neles um lampejo maldoso. — Quer saber de uma coisa? — perguntou. — Coloquei aquelas trancas em mim, de brincadeira. Fiquei parecido com uma garota. Não gostei.
Mike esperava que a doutora compartilhasse do seu desapontamento, mas, vendo que ela não dava nenhuma resposta, disse em tom confidente:
— Eu não gostei de me parecer com uma garota. Não quero ser um efeminado e fazer coisas sujas como nossa mãe. Por isso tirei logo aquelas trancas.
— Sua mãe não era uma garota decente — respondeu a doutora. — Ela era uma garota suja, essa é a verdade. Mas, Mike, muito poucas são as garotas como sua mãe. Você pode ser uma garota sem ser aquilo que você chama de garota suja.
Com convicção ele respondeu:
— Estou muito contente porque não sou de modo algum uma garota.
— E o que tem contra as garotas?
— Ninguém gosta de garotas. Ninguém mesmo.
— Eu gosto de garotas.
— Sim, algumas garotas são legais. — E Mike deu um amplo sorriso. — Eu gosto de Vicky, e Peggy Lou é ótima. Mas sinto-me contente por ser um garoto.
— Você diz que é um garoto, mas não é igual a seu pai, não é verdade?
Houve um silêncio — um silêncio que finalmente foi quebrado não por Mike, mas por Sid.
— Quase — respondeu Sid.
— Como, quase? — perguntou a doutora.
— Pernas, braços e tudo o mais — explicou Sid.
— Sim, pernas e braços, Sid; mas em que é diferente do seu pai?
— Não sei — respondeu Sid.
— Existe alguma coisa diferente do seu pai?
— Não sei.
— Existe?
— Já disse que não sei — repetiu Sid, agastado.
— O que você pensa? Acha que existe alguma diferença de seu pai?
— Pois bem — admitiu Sid, depois de longa pausa; — nunca consegui isto, mas, quando crescer, vou conseguir.
— Sid, quando você nasceu não tinha aquela coisa como os outros garotos. Portanto, deve sempre haver alguma coisa diferente.
Sid ficou pensativo.
— Realmente — disse, finalmente —, às vezes eu costumava fazer de conta que era uma garota. Quando eu fazia isso, uma senhora de cabelos cinzentos começava a rir. E no entanto ninguém ri porque sou um garoto, e isto é o que realmente sou.
— O que você pretendia ser era real, Sid — disse a doutora calmamente. — Você se parece com seu pai e pode ser igual a ele no modo de pensar e de sentir, e na maneira de encarar as coisas. As diferenças que as pessoas vêem nos sexos são menores do que até pessoas entendidas costumam julgar. Mas, sexualmente, você nunca chegará a ser igual a seu pai. Ele tem um pênis, e você não. Ele não tem vagina, e você sim. Portanto, como é que você pode julgar que foi feito igual a ele, se não é igual?
— Mas acontece que sou.
— Seu pai era um garoto que se tornou homem.
— E é justamente o que Mike e eu queremos ser, quando crescermos. Vamos ter tudo o que nosso pai tem. Papai faz barba. E nós também vamos fazer barba. Papai ...
— Mas esse é um corpo de mulher...
— Doutora, quer saber de uma coisa? — falou Mike num tom de voz claro e firme, que parecia empurrar Sid para o lado, a fim de assumir o controle da situação. — Se eu empurrar com força, posso fazê-lo sair.
— Mas você tentou — declarou a doutora, pronunciando cada palavra com cuidado — e não conseguiu.
— E no entanto eu poderia tê-lo feito. — A certeza no tom da voz de Mike combinava com a expressão confiante em seus olhos.
— Se você podia, devia também tê-lo feito — insistiu a doutora.
— A senhora está dizendo isso por dizer — respondeu Mike, com um largo sorriso contagiante.
— Não estou dizendo isso só por dizer. Esta é a pura verdade, tanto para você como para Sid — lembrou a doutora aos seus pacientes. — Garotos num corpo de mulher não chegarão a ser homens.
Não convencido disso, Mike perguntou:
— E se eu fizer um filho numa garota? Vai dizer que não é meu?
— Mike — respondeu a doutora com firmeza. — Não posso dizer sim ao que é impossível. Nesse corpo em que você reside existe um útero, ovários e uma vagina. Cada uma dessas características é tão especial, tão preciosa como um pênis o é num corpo de homem. Sem os órgãos feminino e masculino a perpetuação da raça humana seria impossível. Para que nasça uma criança é preciso que haja os órgãos femininos bem como os masculinos funcionando juntos. Pois bem, nesse corpo — nesse seu corpo, Mike — existe um par de ovários, onde os óvulos são...
— Eu não quero esses órgãos de maricas — interrompeu Mike —, e eu não tenho isso. Não eu... eu sou um menino.
— Mike, você só tem a metade daquilo que é necessário para fazer uma criança, e essa metade não é exatamente a que você julga ser. Todas estas partes do corpo
— os órgãos da mulher e do homem — são importantes tanto para um como para o outro. Mas um não é mais importante do que o outro. Nenhum deles é sujo. Está entendendo?
— Eu fui feito como meu pai e meu avô — protestou Mike. — Se eu quiser posso fazer um filho em uma mulher. Quantas vezes preciso lhe dizer que se empurrar com força, posso, também, fazer ele sair?
— E por que não tenta?
— Vou fazer isso quando for mais velho.
— Mike, você não tem o pênis, ou aquelas duas bolinhas, os testículos, que ficam dependuradas dentro do saquinho e contêm as células masculinas. Sem isso não é possível fazer um filho numa garota.
— Completamente impossível? — perguntou Mike.
— Nunca? — Pela primeira vez desde que comparecera ao consultório da doutora, o tom de sua voz era sombrio, baixinho.
— Nunca. É completamente impossível.
Então ele respondeu com melancólica insistência:
— Mas eu quero. Eu quero. Eu preciso!
Mike Dorsett não se conformava com a situação especial de sua vida.
Na análise dos dois, Mike mostrou ser o mais agressivo, e Sid o mais ponderado. Este detalhe o identificava com o avô, e Sid com o pai.
Sybil identificava-se não com sua mãe, da qual tinha pavor e vergonha, e sim com os membros masculinos da família. O pai havia desapontado Sybil ao manter relações sexuais com Hattie, mas jamais ergueu a mão para castigá-la; a necessidade de ter alguém levou-a a escolher o pai, identificação ainda mais natural porquanto ela se parecia com ele.
Willard era construtor e carpinteiro, e então ela tornou-se um construtor e carpinteiro ao dissociar-se em uma personalidade masculina. Essa a gênese de Sid, que erguera a parede divisória.
O avô Dorsett era agressivo e fanático. Suscitou o medo, a raiva e o ódio de Sybil. Sybil encontrara a maneira de tratar com esse avô e de haver-se com essas emoções dissociando-se em uma personalidade masculina cujo nome era Mike. Em Mike, Sybil encontrou um agressor capaz de enfrentar a agressão do avô. Sybil sentia pavor e vergonha do avô. Mike refletia os sentimentos de Sybil, mas, ao mesmo tempo, identificava-se com o agressor tornando-se, também, agressor.
Em fins de maio de 1957, Mike perguntou à doutora:
— Como Sybil podia relacionar-se com o avô? Ele mandava sempre, e sempre tinha razão. A única forma de convivência era eu vencê-lo ou juntar-me a ele. Eu me uni a ele.
Sid e Mike surgiram fortes e não afetados por neurose. Tanto quanto a doutora conseguiu determinar, nenhum dos dois estava sujeito a medo, ansiedade ou abatimento, e nem mesmo a tristeza sem motivo. Sid, porém, era mais contemplativo do que Mike e, muitas vezes, vítima de sentimentos que se misturavam entre amor, medo e ódio por seu pai, e também pelo avô. Sobre a mãe, Mike mantinha silêncio absoluto. Sempre relutava em falar de Sybil, embora falasse francamente do avô, do pai e das "garotas", conforme ele chamava Vicky, as Peggys, Marcia, Vanessa, Mary, Ruthie e as outras que ainda não haviam surgido na análise.
Tanto Mike como Sid eram capazes de sentir raiva,
mas era uma raiva controlada, menos furiosa do que a de Peggy Lou, embora tenha ficado evidente que ela tinha ligação com Peggy Lou. A Dra. Wilbur descobriu que Mike e Sid descendiam de Peggy Lou, ramos de uma árvore genealógica que não tinha relação com herança genética, e sim frutos emocionais das manobras defensivas às quais as personalidades alternantes deviam sua existência.
Como cérebro atuando por trás de Mike e Sid, Peggy Lou delegou-lhes seus sentimentos. Por um curioso fenômeno, Sybil perdera as emoções, as atitudes e as características que ela legara às personalidades, transferindo-as para aquela personalidade em quem se dissociara, ao passo que Peggy Lou, proliferando em subpersonalidades, entre as quais Mike e Sid, nada perdera do que havia outorgado a elas. Que Mike era produto do desejo de Peggy Lou, ficou claro numa conversa entre a Dra. Wilbur e Vicky.
— Peggy Lou — disse Vicky — está contrafeita em relação a sexo porque sua mãe se negou a explicar como é que a gente nasce. Às vezes Peggy Lou costuma dizer que ela era um garoto e que se chamava Mike. Toda vez que se julgava um garoto, vestia um macacão azul e um suéter vermelho. Brincava com garotos e procurava fazer tudo como os garotos fazem. Mas em seguida ficava como que possessa, porque sabia que não era um garoto. Mesmo hoje em dia fica fora de si porque sabe que é uma garota. Chega simplesmente a enfurecer-se porque quer ter filhos e casar-se quando for suficientemente crescida. Ela quer ser o marido. Quando estiver bastante crescida quer ser o homem, no casal.
Identificados com Willard e Aubrey Dorsett, ascendentes emocionais de Peggy Lou, Mike e Sid, garotos num corpo de mulher, eram também figuras mitológicas e resposta visando a compensar o mito da inferioridade feminina, especialmente conforme anunciado no mundo ignorante de Willow Corners.
Embora Mike e Sid sintetizassem o ponto de vista antifeminista de que as mulheres nutrem secretos desejos masculinos, e uma inveja de pênis tão forte que se transforma em total identificação com o pênis, e desenvolvem a capacidade muito feminina de auto-cerceamento a tal ponto violenta e total que conseguem repudiar a feminilidade, seus sentimentos estavam enraizados nas influências ambientais de um meio e eram rejeitados por evidência genética, médica e psicológica. Estes garotos sem pênis talvez fossem a concretização de uma rebelião da mulher não tanto por serem do sexo feminino, mas em virtude das conotações de feminilidade evocadas pela cultura atrasada de Willow Corners. Ademais, aquela revolta, como Mike deixou claro ao dizer "não quero ser uma garota suja como minha mãe", constituía uma revolta contra as distorções a respeito do sexo que a mãe tinha criado. Detestando o sexo feminino, de que sua mãe era parte, repúdio intensificado pelo puritanismo do pai, Sybil estendeu esse ódio à pessoa do sexo feminino que era uma personalidade, e ao corpo que sua mãe violou.
— Pois bem, nesse corpo... nesse seu corpo, Mike — havia dito a Dra. Wilbur —, existe um par de ovários, onde estão os óvulos.
Ao que Mike respondera: "Eu não quero isso".
Mike e Sid eram também seres independentes, autônomos, com emoções próprias. A urgente necessidade que Mike experimentara de "fazer um filho numa garota" era a expressão daquela autonomia. Embora, porém, ambos pensassem e agissem como agentes livres, negando que o corpo em que viviam fosse estranho aos seus desejos, gozavam, contudo, de uma liberdade limitada. De mais a mais, a análise punha em risco tal liberdade porque, encarando a apresentação que os garotos faziam de si mesmos como uma complicação séria num caso já sobrecarregado de complicações e já seguindo um curso hesitante, a Dra. Wilbur estava decidida a fundir Mike e Sid num todo feminino, que eles resolutamente rejeitaram logo que possível.
A pergunta inicial que Mike fizera: "Como é isso?", gerara uma resposta fundada em múltiplas origens. Talvez houvesse também uma resposta sutil no fato de que o inconsciente a que Mike e Sid pertenciam, da mesma forma que as demais personalidades alternantes, não estabelece as distinções sexuais que uma sociedade estratificada impõe.
A singularidade, que antes se baseava na circunstância de Sybil ter desenvolvido mais personalidades alternantes do que qualquer outra personalidade múltipla conhecida, fundamentava-se agora no fato de ser ela a única personalidade múltipla a atravessar as fronteiras da diferença sexual para desenvolver personalidades do sexo oposto. Nenhuma personalidade do sexo masculino desenvolveu personalidades femininas l. Sybil Dorsett era a única mulher conhecida de múltipla personalidade cujo séquito de personalidades alternantes incluía homens.
1 Após 1957 registraram-se outros casos de personalidades múltiplas que desenvolveram "eus" do sexo oposto.
A VOZ DA ORTODOXIA
Depois da aparição de Mike e Sid, repentinamente, a análise começou a adentrar-se pelos terríveis caminhos do conflito religioso. A serpente havia chegado ao sofá.
— Quero que você seja livre — disse a Dra. Wilbur a Sybil em setembro de 1957. — Não apenas de sua mãe e de seus sentimentos ambivalentes em relação a seu pai, mas também dos conflitos religiosos que a distorcem e dividem.
Sybil desejava ser livre, mas aterrorizava-a que a análise lhe arrancasse sua religião. O terror, além disso, era bastante intensificado por ela se dar conta de que a ajuda que sempre esperara de Deus estava agora chegando de Freud. Não estando disposta a aceitar esta conclusão, embora tivesse chegado a ela por si mesma, perguntava-se se Freud e a Igreja poderiam ter razão ao mesmo tempo. Por sua vez, este questionar-se aumentava a sensação de estar simultaneamente frenética, ansiosa e acuada.
Desejando libertar-se das distorções religiosas que a acossavam e dividiam, mas desejando também continuar agarrada a suas crenças fundamentais, compreendia que o problema consistia em conservar Deus ao mesmo tempo em que abandonava a parafernália com que sempre o cercara. Isso significava libertar-se dos empecilhos ambientais devidos a uma infância na qual a religião era onipresente, Armageddon, um tema de discussão à mesa, e o fim do mundo, uma realidade ameaçadora. Também houvera ameaça nos resmungos do avô Dorsett acerca das sete pragas finais, a inevitável guerra com a China, e como, com a chegada ao poder dos católicos, viria o fim da humanidade, um fim que também fora preparado, afirmava o avô, pela pérfida e sacrílega teoria da evolução que Darwin formulara.
Além disso, a cripta da catedral do tormento religioso de Sybil estava também ocupada por uma variedade de figuras simbólicas do passado, que exerciam no presente uma pressão asfixiante. Uma delas era nada mais nada menos do que Satã, a serpente que se havia aproximado sub-repticiamente durante a infância de Sybil, uma presença viva e muito real. Temendo que entrasse rastejando à noite, também temia que nada que fizesse ou pudesse fazer serviria para impedir que ele "a levasse".
Havia igualmente nessa cripta de tormento um anjo com uma espada de fogo, que depois de expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden porque eram "maus", ameaçava expulsar Sybil de sua casa, porque também ela era "má".
Por conseguinte, quanto mais a análise levava a que Sybil mergulhasse na herança religiosa de uma superestrita observância de sua fé rígida, mais aflita e dividida se sentia. Entretanto, enquanto interiormente se rebelava, exteriormente se conformava literalmente à ortodoxia.
A voz daquela ortodoxia foi ouvida no consultório naquele dia de setembro. Sybil estava sentada no sofá, junto da doutora. A discussão passava da necessidade de liberdade no presente à falta de liberdade imposta pelo passado.
— Eu compreendia as razões para não fumar, não dançar, não ir a festas de aniversário aos domingos — explicava Sybil. — Mas me rebelava interiormente. Ao cabo de algum tempo, deixei de me rebelar. Depois, comecei de novo. E agora estou tentando não fazê-lo.
— Por que — perguntou desanimada a doutora — está tentando não fazê-lo agora?
Sybil ficou em silêncio.
— De acordo — instigou a doutora. — Explique-me que sentido tem não ir a uma festa de aniversário em domingo.
—- Porque a Bíblia diz que não se deve buscar o prazer próprio no dia do Senhor. A gente tem que pensar em Deus. E não fazer coisas seculares — falara sem titubear, mas logo acrescentou defensivamente: — Não quero falar disso.
— A Bíblia — lembrou-lhe a doutora — não diz: "Trabalharás seis dias e descansarás no sétimo"? Por acaso ir a uma festa não faz parte do descanso do sétimo dia de que fala a Bíblia?
— Pode-se ir a uma festa em qualquer outro dia — replicou Sybil sem responder. — Mas não no dia do Senhor, porque é preciso guardá-lo desde o nascer do sol até que ele se ponha. Foi isso o que Deus nos disse.
A doutora corrigiu:
— Foi isso o que os profetas da Bíblia disseram que Deus nos disse. Não confundamos as coisas.
— Deus falava através deles — replicou Sybil com convicção.
— Talvez — comentou a doutora.
— A Bíblia foi escrita sob inspiração de Deus — afirmou Sybil. — Não é algo que uma pessoa qualquer tenha escrito.
— Os profetas eram seres humanos e não podemos estar absoluta, positiva e totalmente certos de que entenderam com toda a correção as coisas.
— Deus — replicou Sybil — não lhes teria permitido cometer erros.
— Mas permite que a gente cometa erros! — havia um tom de ironia na voz da doutora.
— Sim — aceitou Sybil. Mas sua expressão facial se tornou tensa ao acrescentar: — Mas não em algo tão importante como a sua lei, o guia das gerações vindouras.
— Não faz parte da adoração a Deus amar o próximo? — perguntou a doutora.
— É parte dela — replicou autoritariamente Sybil.
— Não é toda ela. Deus disse: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo".
— E se alguém comemora seu aniversário no dia do Senhor — argumentou a doutora —, deve privar-se da comemoração desse dia?
— Sim — insistiu Sybil. — Deus disse que Ele devia ser o primeiro.
— Não estamos adorando a Deus quando comemoramos nosso aniversário?
— Não — disse Sybil.
— De acordo — persistiu a doutora. — Vocês comemoram o Natal... o aniversário de Cristo, não?
— Não na nossa congregação. Está certo pensar e lembrar que Ele nasceu entre os homens, mas deve-se ter em conta que não foi nesse dia específico, 25 de dezembro.
— Não é adequado honrar o dia em que nascemos, se é que somos filhos de Deus?
Sybil replicou severamente:
— Não se podem fazer festas de aniversário e sair cantando e gritando e todas essas coisas no dia do Senhor. Há muitas coisas que se tem que abandonar se se quer seguir a Deus. E não há por que ser fácil. São João Batista disse: "Lutei a luta dos justos".
Houve um silêncio momentâneo. Depois, com uma objetividade calculada para trazer à tona as dúvidas reprimidas de Sybil, tal como haviam sido expressas por outras personalidades, a Dra. Wilbur disse:
— Bem, há uma coisa que realmente não compreendo na sua religião: a coisa pela qual o homem lutou durante todos os tempos foi a sua liberdade.
— Talvez sim. Mas ninguém quer libertar-se de Deus
— deu a última palavra a inquebrantável Sybil.
Poucos dias depois, Peggy Lou e Peggy Ann demonstraram ira e terror combinados quando a Dra. Wilbur começou a falar de religião.
— É uma verdadeira confusão — disse Peggy Lou, falando tanto por Peggy Ann quanto por si mesma. — É fútil falar dele. Essa conversa nunca acaba. — Passeando pela sala, Peggy Lou deteve-se repentinamente. — Supõe-se que ele tem que fazer alguma coisa mais do que atemorizar uma pessoa. Supõe-se que tem que ajudá-la. Mas a mim nunca me ajudou. Nunca ajudou Peggy Ann ou a qualquer um de nós.
O fogo da religião havia sido iniciado e, no entanto, a Igreja continuava em pé. Mas, com um movimento rápido e seco, e enquanto voltava a passear pela sala, Peggy Lou deu o primeiro sinal de que o edifício sem saída já estava condenado:
— Gostaria de destruir a Igreja!
Vanessa entrou no consultório alguns dias depois da explosão de Peggy Lou. Embora ainda não estivesse disposta a derrubar a Igreja, expressou desprezo tanto pelas proibições da Igreja quanto pela sua congregação.
— Não sou uma devota — disse Vanessa com um atraente gesto de cabeça. — Mas, ainda que o fosse, a gente da Igreja de Willow Corners teria feito que eu me afastasse. Eram fanáticos, injustos, irracionais e hipócritas. Não sei como se atreviam a chamar-se a si mesmos de cristãos. — Os lábios de Vanessa torceram-se no sorriso satírico. — As coisas que era preciso fazer para ser boa! — ironizou. — O irônico é que as coisas que se desejavam fazer não eram más. O domingo, queriam que se passasse sentada. E, naturalmente, meu caro Watson, isso era uma perda de tempo.
Parou de falar e cravou seu olhar no da doutora.
— E, doutora, devo confessar que não compreendo o significado do amor de Deus. Mamãe estava sempre me dizendo que Deus era amor, e eu não podia compreender o que era isso de amor. Mas sabia que não queria que Deus fosse como minha mãe.
— Compreendo — comentou a doutora.
— Mamãe dizia que me amava, mas se aquilo era amor...
— Então você não queria amor...
— E dizem que tenho que amar a Deus...
— E você sentia medo...
— Porque — explicou Vanessa — não sabia o que Deus e o seu amor iam fazer comigo.
— Sim — concordou a doutora. — Assim, você tinha medo.
Antes que Vanessa saísse da sala, Marcia entrou em cena e acrescentou algumas variações ao tema. Religiosa, mas ressentida contra as proibições religiosas, que haviam criado nela um sentido de alienação e a haviam privado da oportunidade de crescer livre, olhou pensativa a doutora.
— As coisas que eram boas para todos os outros não o eram para mim. E o pior era que sabia que não poderia fazer essas coisas: dançar, ir ao cinema, usar jóias, inclusive quando crescesse. Alguém acreditaria, Dra. Wilbur, que não vi meu primeiro filme senão quando vim viver em Nova York? — revelou com um gesto irônico, mas quase cômico.
Marcia sorriu.
— Olhando para trás — disse —, me dou conta de como estava presa por todas aquelas tolices sobre o fim do mundo. Era algo que se devia esperar, pois haveria uma vida melhor depois. Tinha que acreditar nisso. Mas, no meu íntimo, desejava que não fosse assim, porque havia muitas coisas que queria fazer, e era como se o fim fosse chegar antes que eu tivesse uma oportunidade. Mas não me parecia bem pensar dessa forma, e tinha sentimentos ambíguos; o mesmo tipo de sentimentos que tenho agora quando me dou conta de que as coisas podem ser diferentes.
Mike e Sid, que também intervieram na época do debate religioso, afirmaram sua crença em Deus, mas também seu desprezo pelos rituais e histrionismos religiosos. Não eram religiosos, mas estavam preocupados com a religião. O que ressentiam especialmente eram os resmungos do avô acerca de Armageddon e a evolução. Eles, especialmente Mike, estavam mais interessados em enfrentar o avô e defender Sybil, assim como a si mesmos, contra ele, do que na verdade ou na falsidade do que ele dizia.
Ruthie, que era apenas um bebê e que a Dra. Wilbur havia descoberto somente em conexão com a cena primai, falou de sua revolta no cercado de areia da igreja.
— Nossas mãos estavam na areia — disse Ruthie. — A areia tinha um tato suave. Deixamo-la correr entre nossos dedos. Gostávamos da areia, enterrávamos coisas na areia. Logo ficamos bastante grandes para ouvir a respeito desse anjo em que não confiávamos. Levantávamo-nos domingo de manhã e brincávamos. Achávamos que tinham esquecido, mas então acordavam. Dizíamos:
"Não quero ir! Não quero ir!" Papai olhava. Mamãe dizia que tínhamos que ser pessoas más. Se papai usava uma camisa branca e mamãe estava preparando bolinhos, então sabíamos que iríamos à areia. Assim, quando víamos a camisa branca e os bolinhos ficávamos doentes, tínhamos que ir para a cama, e papai e mamãe iam à igreja sem nós. De todas as personalidades de Sybil era Mary, a muito dona-de-casa, aquela para quem a religião tinha mais significado. Mary, que havia rechaçado as doutrinas, os rituais, o florido simbolismo da fé, havia assumido a religiosidade sem pretensões da avó Dorsett.
— Rezo a Deus — disse à doutora —, mas não vou à igreja. Trato de ser honesta, veraz e paciente, e levar a vida de uma boa cristã. Creio no "viver e deixar viver". Isso me reconforta.
Não obstante isso, à medida que progrediam as discussões sobre religião, a Dra. Wilbur podia ver que Mary estava perdendo sua serenidade. Enquanto Sybil estava preocupada com a possibilidade de a análise privá-la de sua religião, a Mary preocupava que a análise fizesse sua religião parecer inconsistente. E, com o tempo, a sensação de armadilha que a religião dava a todas as personalidades, mas muito especialmente às Peggys, alcançou e oprimiu Mary. Sentindo-se deprimida e esmagada, Mary disse à Dra. Wilbur:
— Estou encurralada aí dentro, no interior dessas paredes. Peggy Lou me deu uma imagem da Igreja, e não há saída. Estou encurralada nesse edifício sem portas. Parece ter a forma de uma cúpula e ser construído de blocos de neve comprimida.
À medida que prosseguia a análise, os conflitos religiosos vieram mais e mais à superfície. Seria fácil mas não verídico dizer que enquanto Sybil, a personalidade primária, representante da mente consciente, se conformava, os outros, cujo domínio era o inconsciente, se rebelavam. A verdade era que, embora a resignação mais assinalada ocorresse em Sybil e a rebelião nas Peggys, tanto a resignação quanto a rebelião expressavam-se com variedade de formas em todas as personalidades, muitas das quais estavam mais divididas dentro da autonomia de suas identidades individuais.
Todas as personalidades tinham convicções e atitudes religiosas independentes. Todas, exceto as Peggys, acreditavam em Deus. Todas se sentiam encurraladas pela Igreja. Sob a pressão do confronto com a religião na análise, Mary desejava morrer e as Peggys, escapar. Marcia e Vanessa conseguiram acabar com algumas das velhas restrições e começaram, de acordo com as indicações da Dra. Wilbur, a separar Deus da Igreja, da congregação e das proibições eclesiásticas. Sentindo-se mais livre, Vanessa comprou um par de brincos vermelhos para combinar com seu cabelo, e Marcia foi ao cinema nos feriados. Marcia também se atreveu, ao menos experimentalmente, a acender um cigarro e a tomar um gole de xerez.
Vicky, que representava o papel de observadora sem declarar suas próprias convicções, dado que, afinal de contas, fora somente uma visitante na igreja dos Dorsett, começou a sentir-se preocupada com Marcia e Vanessa.
— Não há nada de mau no que fizeram até agora — disse Vicky à Dra. Wilbur. — Mas estão mostrando muito claramente a sua nova liberdade. Separando-se dos outros vão fazer com que a integração seja muito mais difícil.
— Sim, eu sei, Vicky — aceitou a Dra. Wilbur. — Mas talvez a integração aconteça fazendo com que os outros vão até onde Marcia e Vanessa se encontram.
Vicky sacudiu os ombros. Depois, fitou os olhos da doutora e expressou sua preocupação com a mudança produzida na própria Sybil.
— Sybil — informou Vicky à doutora — não sabe qual é a sua relação com Deus desde que se inteirou da existência do resto de nós. Olhe, Dra. Wilbur, ela sempre acreditou que esta sua condição era algo maligno. Em pequena pensava que era uma forma de castigo, obra de Satanás. Quando a senhora lhe falou de nós, voltou a velha sensação de algo maligno, embora já não esteja tão segura com relação a Satanás.
E Vicky continuou:
— Freqüentemente Sybil se pergunta se não terá desagradado a Deus. Também não tem certeza se seus motivos são sempre corretos. As palavras a aterrorizam — todas estas conversas daqui —, e ter que tornar as coisas melhores e depois ter que enfrentar todo o mundo — Vicky apoiou a cabeça na mão, pensativa. — Sybil teme que, se melhorar, algo terrível acontecerá. É como se a serpente fosse agarrá-la de novo, embora a serpente esteja perdendo o nome.
Até o Natal, Sybil começou a sentir-se perturbada pelas aulas de zoologia e a teoria da evolução que estava freqüentando em Columbia. Juntas, a Dra. Wilbur e Sybil liam parágrafos de A origem das espécies e A origem do homem. Para Sybil era difícil aceitar que a estrutura física do homem mostrava vestígios de sua descendência de uma forma inferior.
— Somos filhos de Deus — insistia definitivamente. Afinal de contas, a evolução é apenas uma hipótese.
O tema da evolução levou Mike a dizer:
— Olhe... o avô estava enganado. E Mary a assinalar:
— Não importa de onde viemos e sim o que fazemos com nossas vidas.
Peggy Lou exclamou:
— Os animais têm a liberdade que jamais tivemos, nós, em nossa congregação.
E Vanessa, agora cética, ironizou:
— Que alívio não ter que ser uma criatura de Deus!
A análise passou da religião em Willow Corners à religião em Omaha, onde a serpente da infância se fez menos ameaçadora. A congregação de Omaha era mais bem-educada, menos rígida e mais humanista do que a de Willow Corners. O Pastor Weber, um sacerdote que também era predicador, considerou Sybil uma artista e percebeu o impacto subjugador que uma interpretação demasiadamente literal da fé havia provocado sobre ela, enquanto filha única e isolada de uma família que não havia experimentado a influência mediadora de gente jovem. O Pastor Weber arrancou Sybil do isolamento, pondo-a à luz dos holofotes.
— E quatro grandes bestas saíram do mar, cada uma diferente das outras...
A voz do Pastor Weber, ressonante e poderosa, trovejava na igreja de Omaha durante o serviço especial da noite de domingo.
— ...A primeira era como um leão e tinha asas de águia.
As quinhentas pessoas do auditório desviaram o olhar do predicador para dirigi-lo a um andaime situado a uns três metros acima dele, a um cavalete coberto com papel de esboço e tão largo quanto o interior da igreja. Seguindo a luz dos focos que iluminavam o andaime, o auditório fixou a vista na insignificante figura de uma mulher ataviada com um vestido de gaze azul-clara e um pequeno avental branco: Sybil.
Sybil, delicada, etérea sob as luzes que a envolviam ... "angélica", como a descreveu um observador, dava vida, com traços rápidos, ao leão com asas de águia sobre o papel de esboço. O auditório olhava boquiaberto, transfigurado.
Enquanto o evangelista falava da segunda besta, "como um urso" com três costelas entre os dentes, e de uma terceira besta, semelhante a um leopardo mas com quatro cabeças e em cujas costas havia quatro asas de galinha, também essas bestas apareceram em rápida sucessão sobre o papel.
Retratando a mensagem das Escrituras, transformando em imagens as palavras do predicador, Sybil esboçou a quarta besta, terrível, espantosa, muito forte, com grandes dentes de ferro e dez chifres.
— Estando a contemplar os chifres, vi que saía do meio deles outro chifre pequeno, e foram-lhe arrancados três dos primeiros — retumbava a voz do predicador —, e este outro tinha olhos como de homem e uma boca que falava com grande arrogância.
No papel, tremendamente reais, apareciam os olhos que fixavam o auditório cativado e a boca que, embora muda, falava.
— Daniel toma a posição — disse o predicador a seu auditório — de que começamos perfeitamente, de que o homem foi criado perfeito e que logo veio a degeneração. Em lugar de provir do zoológico, vamos para o zoológico. Estamos nos convertendo em animais.
As figuras, já não representativas, haviam-se tornado abstratas; a tradução instantânea da mensagem do predicador.
— O homem se fez tão pecador — advertiu a voz dele —, que Deus teve que criar um animal especial para descrever esta geração que vive em pecado.
Sobre o papel, a quase três metros acima do predicador, e criada pelos traços relampejantes do carvão, achava-se uma abstração da fúria divina que fora evocada.
Durante três domingos sucessivos Sybil subiu no andaime, uma figura pequena com um traço poderoso. O auditório extasiava-se. Os pais de Sybil mostravam-se visivelmente orgulhosos da filha. O Pastor Weber demonstrava seu júbilo porque Sybil Dorsett podia expressar sua filosofia em imagens.
No entanto a própria Sybil olhava os esboços ao terminar cada uma das três funções dominicais noturnas e se perguntava como acontecera que no papel houvesse muito, muito mais do que ela havia desenhado.
O VINHO DA IRA
A verdadeira importância do grande espetáculo na igreja de Omaha, não manifestada na época mas revelada na análise, consistia no fato de que na sacristia Sybil não estava sozinha. Os animais que surgiam do mar e eram passados para o papel haviam sido postos ali mais pelas outras personalidades do que pela própria Sybil. A maioria dos desenhos foi feita por Mike e Sid. Mais significativo ainda era o fato de que entre as personalidades que estavam naquele andaime havia cinco que a Dra. Wilbur ainda não conhecia: Marjorie, Helen, Sybil Ann, Clara e Nancy Lou Ann.
Marjorie era uma lourinha pequena e esbelta, de pele clara e nariz chato e arrebitado. Helen tinha cabelos castanho-claros, olhos cor de avelã, nariz reto e lábios finos. Sybil Ann era pálida, alta e esguia, com cabelos louros, olhos cinzentos, o rosto oval e nariz reto.
Das três, somente Marjorie era tranqüila. Helen vivia constantemente apavorada; Sybil Ann, de uma indiferença que chegava à neurastenia.
Marjorie era vivaz e ria à toa. Gostava de muitas coisas — reuniões e teatro, feiras e viagens, e sobretudo jogos de competições intelectuais, dos quais Sybil quase que invariavelmente se abstinha. Marjorie não hesitava em externar aborrecimento ou impaciência, mas nunca demonstrou zanga. Fato significativo, Marjorie Dorsett não estava acabrunhada, no presente, e nem demonstrou ter estado abatida no passado. Através de alguma imunidade especial, emergira incólume do bombardeio de Willow Corners.
Marjorie gostava de contar piadas maliciosas, e também mexia com as pessoas. Por exemplo, quando a doutora lhe perguntou se conhecia alguma das outras personalidades, levantou as pálpebras, desviou recatadamente os olhos e gracejou:
— Eu nunca direi! — Pouco depois, sorriu amplamente, dizendo: — Talvez diga, sim. — Em seguida, acrescentou baixinho: — Gosto de ajudar essas outras pessoas. Elas riem ou choram — informou Marjorie —, e muitas vezes ouço-as resmungando perto de mim, com as cabeças juntas. É um cantarolar persistente, desde que cheguei.
Marjorie Dorsett numa falou de Sybil. Quando se referia à pessoa que tinha aquele nome, Marjorie lançava mão do circunlóquio "você sabe quem".
A Dra. Wilbur não podia compreender por que razão Marjorie havia estado na sacristia da igreja de Omaha juntamente com Sybil, uma vez que não pintava nem tinha interesse em arte ou em religião.
Helen, que parecia uma criatura sem força de vontade, era, no entanto, ambiciosa, decidida a ser alguém, "fazer coisas como bem entendo e com que a senhora, Dra. Wilbur, se orgulhe de mim".
Quando foi mencionado o nome de Hattie, levantou-se rapidamente do sofá onde estivera sentada calmamente para trepar de quatro na mesa e depois pôr-se embaixo dela. Com os braços dobrados sobre os seios, a cabeça recurvada sobre o pescoço e os olhos abertos de pavor, Helen encolheu-se toda. Seus dentes emitiram sons barulhentos e inarticulados.
— Helen? — perguntou a doutora amavelmente, colocando uma mão no ombro da paciente.
— Ela está nesta sala — gritou Helen, começando a tremer ainda com mais violência do que antes. — Está ali, atrás das cortinas.
— Quem?
— Mamãe.
— Não há ninguém mais aqui, Helen. Só você e eu.
— Não quero ver minha mãe novamente.
— Você nunca mais a verá.
— Nunca? — Parou de bater os dentes e o pavor desapareceu dos seus olhos. Quando a doutora ajudou a paciente a sair de baixo da mesa e a pôr-se de pé, Helen observou subitamente, num tom realista que rompeu com o terror reativado da infância: — Meus músculos estão entorpecidos.
Conforme se dera com Marjorie, que não pintava nem tinha interesse especial em assuntos de religião, Helen parecia ter ocupado um lugar indevido na sacristia.
Sybil Ann encolheu-se, no consultório. Ela não falava com a doutora, só cochichava. Depois das apresentações iniciais, Sybil Ann sentou-se em silêncio, olhando para o espaço vazio. Era como se estivesse se apagando do cenário e pretendesse dizer, como conseqüência: "Não fui feita para ocupar espaço. Perdoe-me por existir".
Ademais, quando Sybil Ann estava presente, o próprio corpo passava por uma mudança notável. Parecia praticamente encolher. Na primeira vez em que apareceu, quando o corpo parecia encolher-se, o elegante vestido cinza que Sybil Ann estava usando pareceu espichar. Nas outras personalidades o vestido assentava direitinho, enquanto no corpo de Sybil Ann assumia as proporções de um saco. Era como se Sybil Ann estivesse se ocultando dentro das fronteiras do vestido cinza.
Do denso silêncio que as envolvia surgiram finalmente palavras pronunciadas cautelosamente. Sybil Ann disse à Dra. Wilbur:
— Tenho que me forçar até para mover os olhos, é tão fácil ficar parada contemplando o nada!
Conforme a Dra. Wilbur ficou sabendo posteriormente, essa frágil personalidade raramente comia e dormia, e em geral demonstrava pouco interesse por aquilo que lhe ia em volta. Muitas vezes dizia: "Não sinto nada". Quando estava numa de suas melhores disposições de espírito, distraía-se nas bibliotecas e museus, preferindo a música à pintura. Nas ocasiões, muito raras, em que ela mesma pintou, invariavelmente produziu uma pintura triste com pessoas solitárias, de rostos cobertos ou virados. Na sacristia, em Omaha, imprimira um certo ar de depressão nas caras dos animais.
Tipicamente, Sybil Ann assumia comando do corpo quando "tudo era demais". No entanto, sua emersão era mais uma resposta à situação apresentada que um meio de conviver com ela. De todas as personalidades, a mais abatida era Sybil Ann, capaz de ficar sentada horas a fio tão calada e imóvel como o pelicano em cima do piano da família Dorsett, em Willow Corners.
Quando, ao terminar a visita feita à Dra. Wilbur em seu consultório, Sybil Ann finalmente se levantou para sair, seu andar foi lento e arrastado. — É muito trabalho — disse ela tristemente -— pôr um pé adiante do outro, e tenho que ir pensando em fazer isto porque, do contrário, paro.
Vendo o cansaço e a enorme fraqueza de Sybil Ann, a Dra. Wilbur diagnosticou que ela devia estar sofrendo de neurastenia, um tipo de neurose resultante de conflitos emocionais que, em geral, se caracterizam por fadiga, abatimento, preocupação e muitas vezes por dores localizadas sem aparentes causas objetivas. A Dra. Wilbur tinha a certeza de que Sybil Ann se identificava com Hattie Dorsett na fase catatônica, na fazenda.
Clara, que estava no consultório durante a revelação do episódio da igreja de Omaha, nas férias do Natal de 1957, continuou acompanhando em silêncio o diálogo sobre religião, o qual se estendeu por todo o resto de dezembro e os primeiros meses de 1958. Em março apresentou-se à Dra. Wilbur com um conciso currículo autobiográfico. "Tenho vinte e três anos. Nunca tive mãe. Simplesmente, existo." Prosseguiu explicando seu papel religioso no conglomerado de personalidades Dorsett.
— Sobre religião sei mais do que as outras — disse Clara Dorsett. — Eu estive no jardim de infância com Ruthie e na escola dominical com Sybil e as outras. Às vezes penso que a religião é tão importante para mim como para Mary, e até mais importante. Creio em Deus sem ressalvas, na Bíblia como a revelação de sua verdade e em Satanás, que é a sua antítese.
De repente a sala transformou-se, como um cálice em que o vinho da ira está contido. Clara passou a andar, fazendo uma veemente acusação:
— Sybil tem um caráter tão deplorável! É honesta, mas causa nojo. O caso é que fica remoendo na cabeça que vai tentar, mas não consegue fazer nada.
— Parece que você não gosta de Sybil — disse a doutora.
— E não gosto mesmo — respondeu Clara secamente.
Personalidade contra personalidade numa mulher dividida.
— Por que não? — perguntou a doutora.
— Por que teria que gostar dela? — respondeu Clara, implacável. — A única coisa que quero fazer, ela não me deixa.
— E o que quer fazer? — perguntou a doutora.
— Oh, não é nada de mais. Gosto de estudar e aprender. Ela me atrapalha o caminho — explicou Clara.
— O que gosta de estudar?
— Música e inglês. Especialmente história, assuntos sobre medicina, química e zoologia — respondeu Clara.
— É disso, também, que Sybil gosta — acentuou a doutora rapidamente.
— Não, ela não gosta — disse Clara com ar desdenhoso. — Um grande obstáculo a detém. De fato, não consegue fazer nada. Nem sempre foi assim, mas, agora, é um caso muito sério.
— E por quê, Clara? — perguntou a doutora, a fim de certificar-se sobre o que a recém-chegada sabia a respeito de Sybil. — Qual é o obstáculo?
— Raiva — respondeu Clara, de maneira autoritária.
— Eu tenho alguns meios para remover esse obstáculo — afirmou a doutora. — Quer me ajudar a fazê-lo?
— Por que deveria eu ajudar? — E o ressentimento de Clara se acentuou. — Por acaso ela, algum dia, fez algo por mim?
— Neste caso — sugeriu a doutora habilmente —, ajude-me a abrir uma brecha naquela parede — não por causa de Sybil, mas em seu próprio benefício, Clara.
— Em meu benefício? — perguntou Clara, levantando os ombros em sinal de desânimo. — Doutora, acho que a coisa não tem sentido.
— Clara, não está vendo que se você me ajudar a dar uma mão a Sybil você também se beneficiará?
— Mas Sybil é tão desligada de tudo! Se eu quisesse tentar, nunca conseguiria coisa alguma com ela.
— Tente, Clara! — O pedido da doutora, antes uma sugestão, transformou-se numa súplica, — Para seu próprio benefício, Clara — disse a doutora suavemente —, amanhã cedo, quando Sybil acordar, eu gostaria de que todas vocês fizessem alguma coisa.
— Os garotos também? — perguntou Clara.
— Sim, todos vocês — respondeu a doutora.
— O que devemos fazer? Por acaso ir à igreja? Amanhã é sábado.
— Não, não quero que vocês vão à igreja — respondeu a doutora com firmeza. — Quero, simplesmente, que vocês durmam mais e, depois, digam a Sybil que a razão por que ela não pode fazer todas as coisas que gostaria de fazer é que as complicações da doença a impedem.
Clara, que estivera andando de cá para lá enquanto conversava, parou de repente.
— Mas, doutora — protestou ela —, a senhora disse a Sybil que ela podia ir à aula apesar da doença, mesmo que a análise tomasse muito de seu tempo.
— Sim — explicou a doutora —, foi o que eu disse. Mas isto foi antes que eu soubesse da extensão da doença com que tinha de lidar. Naquela ocasião julgava que o trauma básico se resumia na dor pela morte da avó, isto é, pensava que por causa daquele acontecimento Sybil se dissociara em outras personalidades. Naquela época, não imaginava que tivesse havido tanta dor assim, ou quão complicadas eram as raízes do caso de Sybil.
— A senhora sabe muito bem — respondeu Clara confidencialmente — que Sybil está aflita porque perdeu um bocado de tempo, e receia que a senhora venha a descobrir isto.
— Mas isto é ridículo — afirmou a doutora. — Sybil sabe perfeitamente que eu estou a par desses anos que ela perdeu.
— Ela fica remoendo o passado — declarou Clara. — Continua pensando que a mãe vai feri-la. — Depois de uma pausa, Clara acrescentou: — Sinto-me contente por nunca ter tido mãe.
A doutora fez de conta que não percebeu o comentário, e respondeu:
— Estou certa de que vamos libertar Sybil do passado.
— Sim, ela quer libertar-se — retrucou Clara de maneira irritadiça. — Quer esquecer tudo, mas não quer se dar ao trabalho de enfrentar coisa nenhuma.
— Para se ver livre do passado, antes ela tem que enfrentar tudo — respondeu a doutora. — Sei que ela pode fazer isto, porque tem grande resistência, perseverança e muita coragem. Aliás, todas vocês têm.
— Coragem? — perguntou Clara, com um tom sarcástico. — Ela não pode fazer nada. Não pode enfrentar nada. E a senhora chama isto de coragem?
— Ela tem muitas habilidades, e é prendada em muitas coisas — respondeu a doutora convictamente. — Quando tivermos derrubado aquele muro de ódio e raiva, então ela estará livre para constatar do que é capaz.
Clara sacudiu a cabeça seriamente e disse:
— Nunca houve um jeito de se conseguir isto.
— Mas, do meu jeito — sustentou a doutora —, conseguirá isto — sob uma condição.
— Qual é a condição? — disse Clara, meio confusa.
— Podemos derrubar a parede — continuou a doutora com firmeza — se você e as demais me ajudarem.
E Clara olhava ainda mais perplexa. A doutora prosseguiu:
— Amanhã, quando falar a Sybil a respeito da análise, queira, por favor, começar a contar também as várias coisas que você sabe.
— Mas que coisas? — perguntou Clara vagamente.
— As coisas que vocês aprenderam, sentiram, recordam... — insistiu a doutora.
— Lembro-me de uma porção de coisas a respeito da igreja — recordou Clara. — Os incidentes na igreja de Willow Corners estão vivos na memória.
— Diga isto a Sybil.
— De que adiantará? — Clara encolheu os ombros. — Sybil não gosta de ouvir as coisas. Aquela parede enorme, a senhora sabe.
— Vamos demolir aquela parede; todas nós trabalhando em conjunto. — A doutora olhou para Clara com firmeza e continuou: — Então Sybil conseguirá fazer as coisas que vocês querem que ela faça. Ela não irá mais interferir nos estudos de vocês.
— Acontece que não quero ajudá-la — foi a reação da intransigente Clara. — Por que deveria eu ajudá-la?
— Então, por que não se junta às outras? — insistiu a doutora. — Vocês todas podem fazer as coisas de que gostam, e podem fazê-las juntas.
Clara levantou-se e começou a andar novamente pela sala. Depois, com um sorriso, voltou-se para a doutora e disse:
— A senhora nunca viu tamanha corja de individualistas. Todas elas querem as coisas como bem entendem.
— Tente! — renovou a doutora o seu pedido ardente. Clara riu.
— Só queria que a senhora nos visse quando brigamos. Parece-me estar vendo, agora mesmo, como as Peggys fervem de raiva.
— Clara, ouça-me, o que estou lhe pedindo é para o seu bem e para o bem de todas vocês. Vocês todas devem trabalhar em conjunto. Todas vocês devem procurar aproximar-se de Sybil. Não está vendo o que está em jogo? Não quer fazer um pouco de força para compreender?
A sala como que se impregnou de uma ameaça que pairava, quando Clara respondeu:
— Sybil não deve viver!
Quem se apresentou no dia seguinte no consultório da Dra. Wilbur foi Nancy Lou Ann Baldwin. O barulho do tráfego, que vinha da rua, penetrando na sala, constituía para Nancy o temível som de explosões, pois ela vivia constantemente apavorada.
— Não gosto de coisas que explodem — observou Nancy. — Explodindo, sempre explodindo. Quando a gente é pequena e nossa mãe nos joga pedras, nos bate com objetos, nos amarra, e a gente acaba tendo vertigens e começa a ver as coisas pequenas, é o mesmo que ver uma bomba explodir. Então há barulho, um tremendo estrondo. O pior de tudo é que nossa mãe não está morta.
— Sua mãe foi enterrada em Kansas City. Agora não há mais explosões que possam perturbá-la. — As palavras de tranqüilização da doutora atuaram como um encanto.
— Não consigo ver como é que a senhora sabe disto
— protestou Nancy. — A mãe pode estar enterrada em Kansas City e, ao mesmo tempo, estar explodindo em minha cabeça. De mais a mais, existem muitas outras modalidades de explosão que eu posso citar, e não vejo como a senhora pode evitá-las. A senhora não pode evitar que um tubo de gás ou uma caldeira venham a explodir.
— A sua casa não possui uma caldeira de calefação.
— A doutora desferiu uma nota realista e prática para acalmar o terror.
A resposta tresloucada que Nancy deu, enquanto seus lábios se encrespavam, foi:
— Pois bem, acho que tem que ser um "bum" bem grande para que haja uma explosão. — E o pavor voltou, quando ela acrescentou: — Mas a senhora não pode evitar que o próprio mundo venha a explodir. E então o "bum" vai ser muito grande.
— Nancy, o mundo não vai explodir.
— Então por que construíram esses abrigos de proteção civil? Por que por toda parte vemos sinais do fim do mundo? Satanás destruirá o mundo e Deus o tornará perfeito, de modo que não haverá mais pecado. Na luta final, no Armageddon, de acordo com a profecia, tudo será destruído.
— Ainda não chegou o tempo destes acontecimentos — disse a Dra. Wilbur, decidida a libertar Nancy desta obsessão.
Sem prestar atenção para a interrupção, Nancy continuou:
— Antes do final dos tempos a profecia nos diz que os rios secarão e ficarão da cor do sangue. A profecia também nos diz que antes do fim do mundo os católicos assumirão o poder e controlarão o governo e as mentes dos homens. E estamos vendo que ambas as previsões estão se realizando. Por toda parte lemos a respeito de rios que foram poluídos. E a poluição é o sangue de que a profecia nos fala. E visto que não se pode viver muito tempo sem água, todos nós acabaremos morrendo, como diz a profecia. Também a profecia a respeito dos católicos está se realizando. Há muito tempo que os católicos começaram a exercer o seu domínio, construindo escolas e universidades. Mas, de 1936 a 1939 — não me lembro exatamente da data — eles não podiam fazer muita coisa. De qualquer maneira, não podiam fazer muita coisa antes que o Vaticano fosse reconhecido como um Estado livre, com o direito de se pronunciar. E a partir dessa época eles tornaram-se mais poderosos. Dra. Wilbur, tempos virão em que teremos a mesma sorte que os judeus sob o regime nazista, a não ser que adoremos os padres católicos, os papas e os cardeais. Os católicos vão se tornar cada vez mais poderosos e, se não formos espertos, acabaremos tendo um católico por presidente. Se conseguirem isto, controlarão toda a educação. Desejam um secretário de Educação ainda mais católico do que o presidente. Controlando as crianças, eles sabem muito bem que podem controlar os pais. Não perderão uma única chance para nos escravizar.
Nancy movia-se inquieta e apreensiva pela sala. Virou-se para a doutora, dizendo:
— Jamais serei uma católica. Jamais farei o que eles me ordenam que faça, e temo o que eles possam fazer. Não quero ir parar atrás das grades de uma prisão. Mas não farei o que eles querem de mim.
Os caminhos ocultos da história já não estavam mais ocultos. O crescendo daquele sentimento poderoso preencheu a pequena sala com o som, cada vez mais forte, de toda uma orquestra. Nancy despencou sobre o sofá.
— Dra. Wilbur, às vezes me sinto tão apavorada com todas estas coisas que preferiria morrer agora mesmo.
A Dra. Wilbur respondeu calmamente, com palavras amáveis:
— Por que iria você querer morrer? Você teria que abrir mão de muitas coisas. Gente amável. Coisas que podem ser feitas. Música, arte, natureza. — Em seguida, a doutora acrescentou, intencional e significativamente:
— Andar junto com Sybil é encontrar-se a si mesma.
A disposição de espírito estava quebrada. O terror foi substituído por raiva e sentimento de defesa.
— Por que a senhora está me acuando? — perguntou Nancy.
— Querida, não a estou acuando — respondeu a doutora num tom tranqüilizador. — Estou, simplesmente, tentando fazê-la ver que não há motivo nenhum para querer morrer.
— Nenhum motivo? — observou Nancy, pensativa.
— Existem motivos particulares e motivos públicos.
— E quais são esses motivos particulares? — perguntou a doutora calmamente, completamente certa de que, apesar da turbulência daquela sessão, aquele era seu primeiro encontro com Nancy.
— Oh — respondeu Nancy —, todas nós estamos tentando fazer com que Sybil faça as coisas, mas não adianta. Estar ligada a Sybil é uma constante frustração. Isto me enfurece e me apavora. E às vezes tenho a impressão de que seria melhor entregar os pontos, como uma criança sem responsabilidades. Mas, depois, me lembro que estou muito ligada às Peggys, e a senhora sabe o que elas sentem por Sybil. Sybil faz Peggy Lou ferver de raiva a todo instante.
Entregando-se repentinamente a um estado de espírito descansado e casual, Nancy explicou:
— Eu estou tão ligada às Peggys que tomei os nomes do meio delas. Mas elas usam o nome Dorsett e eu, não. Eu sou Nancy Lou Ann Baldwin. Miss Baldwin era uma professora que Sybil pretendia ser, na época em que eu apareci.
— Nancy, quais são as outras coisas particulares que a afligem? — quis a doutora saber. — O que você quer fazer que não pode?
— Andar sobre pernas que não sejam fracas — respondeu secamente Nancy. — Mas, justamente neste momento, ando mais aflita com assuntos públicos. — E o terror voltou a estampar-se em seus olhos. — Os católicos se introduzirão sorrateiramente e, quando nós menos suspeitarmos, nos pegarão — avisou ela.
— Eles não vão me pegar porque não tenho medo deles e não tenho esses temores que você tem. Eu creio...
— Já não há muito tempo a perder — disse Nancy, nervosamente. Em seguida, mais calma, continuou: — Preferiria morrer. Mas Deus não me permite. A senhora sabe que eu teria que praticar isso contra mim mesma, e suicidar-se é tão errado como seguir as ordens dos católicos. Em ambos os casos minha alma seria entregue ao Demônio.
— Então, Nancy... — A doutora tentou desfazer aquele estado de espírito introduzindo outro ponto de vista.
Mas Nancy interrompeu abruptamente:
— Mas não quero que o Demônio vença!
— Nancy — respondeu a doutora, mudando completamente de assunto —, o que acha se você, Clara e algumas das outras — principalmente Marcia — procurassem se unir a Sybil?
— Clara tem o mesmo problema sobre religião que eu tenho — interrompeu Nancy novamente. — A preocupação dela é a mesma que a minha. Estou certa de que, quando ontem falou com a senhora, disse as mesmas coisas que...
Desta vez foi a doutora quem interrompeu.
— Se você e Clara ajudarem Sybil a ser forte e a fazer as coisas que ela quer fazer — disse a doutora incisivamente —, haverá uma pessoa a mais ajudando a manter a democracia que você receia que os católicos nos arrebatem.
Absorta em seus pensamentos, Nancy respondeu-lhe dizendo:
— É preciso estar sempre preparados para o dia em que os católicos destruírem nossa democracia. Temos que estar vigilantes!
— Nancy — insistiu a doutora com voz firme —, Deus nos deu a mente para que a usemos...
— Claro — de novo Nancy havia interrompido as palavras da doutora. — E deu-nos as profecias para que soubéssemos como usar a mente para nos prepararmos na luta contra a tomada do poder pelos católicos.
— Ouça, Nancy... — começou a doutora.
— Foi isso o que ele fez! — insistiu Nancy veementemente.
— Deus nos deu o cérebro para que o usemos — explicou a Dra. Wilbur. — E você não deveria desperdiçá-lo com uma preocupação privada de fundamento.
Nancy protestou:
— Mas ele disse que nos afastássemos das forças tenebrosas, aproximando-nos das forças da luz, e isso significa que temos que segui-lo.
— -Neste país sempre tivemos liberdade de religião e de culto — recordou a doutora a Nancy.
— Pois foi absolutamente inútil — replicou Nancy.
— Sendo nosso governo um governo do povo — continuou a doutora —, você e eu somos parte do governo tanto quanto qualquer outra pessoa, e...
— Já sei disso tudo — interrompeu-a Nancy secamente.
— E isso significa — afirmou a doutora — que, se têm tanto medo de perder nossa democracia, você e Clara deveriam unir-se a Sybil para que ela possa fazer tudo que está a seu alcance para que outras pessoas se afastem dos poderes das trevas.
— Desculpe, Dra. Wilbur — interrompeu uma voz que não era a de Nancy. — Creio ter algo a dizer.
— Sim, Vicky? — A doutora conhecia bem aquela voz.
— Bem, desculpe-me por interferir, mas a senhora sabe que nunca digo nada que não seja absolutamente necessário. Acho que a senhora está cometendo um erro ao dizer isso a Nancy. Olhe, Sybil tem os mesmos medos e temores que Nancy e Clara. Na verdade, ainda que Marcia acredite estar se desligando da religião, ela própria ainda tem esses mesmos temores.
— Compreendo.
— E eu tenho tentado ajudar Nancy, Clara, Marcia e Sybil. Tem sido melhor. A senhora me disse, uma vez: "Vicky, por que você não procura ajudar Sybil?", e é o que tenho feito. Mas se Nancy e Clara agora se unirem a Sybil, com o grande temor que têm, só aumentarão o temor que Sybil já sente. Acho que seria muito medo para uma pessoa só. Esta é uma das razões por que não tenho incentivado mais Nancy e Clara a se unirem a Sybil. Por que aproximá-las, se elas não nos darão força? Elas só têm coisas erradas: não só terrores extremos sobre religião, mas também idéias depressivas e suicidas — mais do que elas jamais confessariam aqui, e muito mais do que lhe disseram. Não quero que elas tragam essas idéias até Sybil porque não estou certa de ter força suficiente para lutar com tudo isso. Não direi mais. Só não acho muito acertado tentar aproximar Nancy e Clara de Sybil neste momento.
— Seria um erro, Vicky — informou a Dra. Wilbur a sua ajudante na análise —, se não fôssemos fazer nada a respeito dos temores de Nancy e Clara. Certo? Mas eu tenho a firme intenção de fazê-lo. Agora, se Nancy quiser falar mais um pouco comigo, creio que poderemos esclarecer alguns pontos.
— Está certo — concordou Vicky. — Deixarei Nancy voltar. Mas, por favor, Dra. Wilbur, lembre-se de meu conselho. É mais que um conselho, na verdade. É um aviso.
Depois que a Dra. Wilbur constatou que cinco novas personalidades haviam sido reveladas, olhou retrospectivamente para a época em que, depois do encontro com Vicky, passou a estudar atentamente a literatura sobre personalidades múltiplas. Em suas especulações verificou que o caso de Sybil era mais complexo do que o de Miss Beauchamp e o de Doris Fisher. Agora ela sabia que o caso de Sybil Dorsett, precipitado por uma multiplicidade de traumas, era o mais complexo de que se tinha conhecimento.
As múltiplas raízes da complexidade de Sybil — a mãe esquizofrênica, apoiada e instigada pelo pai omisso e passivo, a ingenuidade e hipocrisia do meio ambiente, bem como a histeria engendrada pelo credo religioso fundamentalista, especialmente quando exemplificado pelo avô Dorsett — haviam sido esclarecidas e interpretadas. Mas a doutora desconhecia, ainda, quando ocorrera a primeira dissociação, embora soubesse que durante a primeira dissociação nem todas as personalidades haviam emergido, e que todas as que até aqui se haviam apresentado já existiam ao tempo em que Sybil tinha doze anos de idade. A doutora não podia determinar se, com catorze personalidades alternantes em evidência, outras mais viriam.
Embora a evidência de doença mental em ambos os lados da família constituísse um possível fator genético, a Dra. Wilbur estava certa de que a doença fora causada por fatores do meio ambiente. A Dra. Wilbur sabia que a análise devia continuar a fim de desenraizar incidentes específicos de abuso do meio ambiente e minorar a doença.
Agora a doutora estava convencida de que as personalidades não constituíam parte da personalidade total em luta pela identidade, sendo, na verdade, defesas contra o intolerável meio ambiente que havia produzido os traumas da infância. A mente e o corpo de Sybil estavam possuídos pelos outros, que eram não espíritos invasores, e sim partes proliferantes da criança primitiva.
Todas as personalidades eram mais jovens do que Sybil, com suas idades oscilando de acordo com a época de ocorrência do trauma particular em que haviam emergido para combater.
Mesmo com a revelação das cinco novas personalidades, a estratégia de tratamento permaneceu a mesma — desenraizar e analisar os traumas, tornando, dessa maneira, desnecessária a defesa contra cada trauma particular e a personalidade que fazia a defesa. A integração seria feita mediante a fusão das várias personalidades em Sybil, a personalidade atuante exaurida, devolvendo-lhe os modos de comportamento que aquelas haviam roubado da Sybil original.
Uma crescente e violenta investida contra os traumas subjacentes era claramente Indicada; um ataque furioso durante o qual cada personalidade teria que ser analisada como uma "pessoa" em si e em seu próprio direito. E por último, naturalmente, todas teriam que ser integradas na Sybil atuante. A integração, contudo, ainda era uma meta distante e longínqua, por causa da emergência complicada das novas personalidades. Os lampejos de integração que haviam ocorrido tiveram curta duração.
A Dra. Wilbur constatou também, serenamente, que havia riscos a enfrentar. O ato de enfrentar um trauma radicado mediante a intensificação da dor muitas vezes provocava regressões. Não havia nenhuma certeza de que, erradicando o trauma, se chegaria à integração da personalidade que se defendia contra ele. Talvez Sybil ficasse mais fragmentada pela mesma terapia que pretendia curá-la. Mas a enfermidade era tão séria, e a necessidade de integração tão grande, que valia a pena correr todos os riscos possíveis numa luta mais intensa.
O RELÓGIO COMPREENSÍVEL
Peggy Lou e Peggy Ann, Vicky e Mary, Marcia e Vanessa, Mike e Sid, Marjorie e Ruthie, Helen e Sybil Ann, Clara e Nancy. Estas catorze personalidades alternantes entraram e saíram do consultório da Dra. Wilbur, cada uma delas com suas próprias emoções, atitudes, gostos, talentos, ambições, desejos, comportamentos, sotaques, modos de pensar e imagens corpóreas. Doze delas eram femininas e duas, masculinas. Todas mais jovens do que Sybil.
Todas eram diferentes uma da outra e de Sybil; cada uma sabia da existência de Sybil e de cada uma das outras personalidades. Sybil, contudo — e nisto é que consistia a grande ironia de seu transe —, só teve conhecimento das outras depois que a Dra. Wilbur lhe falou a respeito. A ironia se tornava evidente pelo fato de que, mesmo depois de a doutora a ter alertado sobre a verdade, Sybil se recusava a ter um encontro com as outras, negava-se a aproximar-se delas, a aceitá-las. Em fins de 1957 e começo de 1958 os nomes Peggy Lou, Peggy Ann, Vicky, Marcia, Vanessa, Mary, Mike, Sid, Marjorie, Ruthie, Helen, Sybil Ann, Clara e Nancy, no que dizia respeito a Sybil, constituíam ainda meramente produtos da apresentação intelectual da doutora. A Dra. Wilbur estivera com elas, mas Sybil não.
Para Sybil o que continuava sendo real — conforme tinha sido antes que a sua condição fosse classificada como personalidade múltipla — era o fato de que ela perdia a noção do tempo. Em fins de 1957 e começo de 1958 Sybil continuava prometendo a si mesma que não perderia a noção do tempo. E quando, apesar da promessa, novamente a perdia, simplesmente se prometia que aquilo não havia mais de acontecer. Somente quando o tempo passava sem que ela perdesse a noção dele sentia que estava melhorando.
Os meses de novembro e dezembro de 1957 foram de melhora. Neste período, nem uma vez sequer Sybil sofreu a angústia de se achar numa situação estranha sem saber como é que chegara àquele ponto. Tanto Sybil como a Dra. Wilbur tinham ousado confiar em que estavam entrando na terra prometida da integração.
Todavia, essa terra prometida desapareceu na manhã de 3 de janeiro de 1958, quando a Dra. Wilbur abriu a porta da sala de espera, na hora da consulta Dorsett. Ninguém estava ali. E somente cinco dias depois o correio da manhã trouxe um indício do possível paradeiro de Sybil.
A carta, endereçada à Dra. Wilbur em seu consultório anterior — Medicai Arts Building, 607; Omaha, Nebraska — e despachada de lá, continha uma pista. Escrita com garatujas de criança e datada de 2 de janeiro de 1946, em papel timbrado do Broadwood Hotel, de Filadélfia, dizia o seguinte:
Querida Dra. Wilbur,
A senhora disse que me ajudaria. A senhora disse que gostava de mim. A senhora disse que eu era boa. Por que não me ajuda?
Peggy Ann Dorsett
Fazia 14 anos que a Dra. Wilbor havia saído de Omaha, e o fato de Peggy Ann estar escrevendo de lá dava a entender uma séria confusão. O teor da carta era petulante, o tom revelava desapontamento e insatisfação diante da maneira como a análise estava sendo conduzida. Ademais, o carimbo do Correio de Filadélfia contribuiu para o desapontamento da doutora. A esperança que tinha alimentado, juntamente com Sybil, em novembro e dezembro, estava despedaçada.
Da parte da doutora não havia mais lugar para inatividade, mesmo que essa tivesse sido a atitude tomada na ocasião em que nem Sybil nem uma das outras personalidades comparecera ao encontro do dia 3 de janeiro, e que a doutora tinha seguido em episódios semelhantes. A doutora sempre temera que agir poderia desencadear uma cadeia de acontecimentos que acabaria fazendo com que o nome de Sybil Dorsett aparecesse nos registros policiais e levando a paciente a um hospital de doentes mentais. Decidida a proteger sua paciente contra ambas as eventualidades, a doutora novamente deixou de apelar para a polícia.
Apesar dos cinco dias decorridos desde que Peggy Ann havia escrito a carta, de Filadélfia, a doutora resolveu telefonar para o Broadwood Hotel. Ela relutou somente porque não sabia por quem chamar. O nome no registro do hotel poderia ser Peggy Ann Dorsett ou Peggy Ann Baldwin, uma vez que Peggy Ann usava os dois nomes. Podia ser também que tivesse dado entrada como Sybil Dorsett, um nome que, segundo indicação de Vicky, as outras personalidades muitas vezes usavam. Com efeito, Sybil podia ter dado entrada com qualquer um dos quinze nomes das personalidades. Talvez fosse uma recém-chegada. A Dra. Wilbur presumia que pudessem surgir ainda outras personalidades, no futuro.
— Broadwood Hotel. Bom dia. — O encarregado de reservas do Broadwood estava na linha.
— Bom dia — disse a doutora. — Por favor, há alguma Miss Dorsett hospedada aí?
— Quarto 1 113 — respondeu o encarregado de reservas. — Um momento, por favor.
— Não incomodem o 1 113 — pediu a doutora imediatamente. Não sabendo que Miss Dorsett iria encontrar, decidiu rapidamente: — Posso falar com a gerente do hotel? — A doutora raciocinou que devia ser melhor não falar com Peggy Ann em seu estado confuso.
— Sou médica — disse a Dra. Wilbur à gerente, momentos depois. — Um dos meus pacientes, Miss Dorsett, do quarto 1 113, não está passando bem. Agradeceria muito se a senhora pudesse dar uma olhada e me dizer como ela está se sentindo. Gostaria que a senhora não lhe dissesse que telefonei. — A doutora deu seu telefone à gerente e pediu-lhe que telefonasse a cobrar. Sentou-se e esperou.
Quinze minutos depois chegou o telefonema da gerente.
— É a Dra. Wilbur?
— Sim.
— Aqui é Mrs. Trout, do Broadwood, em Filadélfia.
— Pois não. Como está ela passando?
— Muito bem, doutora, muito bem. Parecia pálida e magra, mas bem disposta. Estava sentada à mesinha ao lado da cama, fazendo um desenho a lápis no papel timbrado do hotel.
— Miss Dorsett falou alguma coisa? — perguntou a Dra. Wilbur.
— Não falou muito. Só disse que ia dar umas voltas e fazer alguns desenhos. Pedi-lhe que não saísse porque o tempo não está para se ficar zanzando por aí. O serviço de meteorologia previu uma tempestade terrível. Estava pálida, mas a meu ver não está doente.
A Dra. Wilbur agradeceu a Mrs. Trout e, depois de esperar alguns minutos, resolveu telefonar para o Broadwood a fim de convencer Peggy Lou a ir para casa; isto porque, embora Peggy Ann tivesse escrito a carta, Mrs. Trout havia falado com Peggy Lou. Pois era Peggy Lou quem desenhava em preto e branco. O que parecia provável era que Peggy Lou e Peggy Ann tivessem feito a viagem juntas, conforme muitas vezes acontecia — Peggy Lou como defesa de Sybil contra a raiva, e Peggy Ann contra o medo.
Quando a doutora completou a ligação para o quarto 1113 não havia ninguém lá. Mais tarde, quando conseguiu falar com Mrs. Trout, que estava atendendo na portaria porque a encarregada da noite se atrasara com a tempestade, esta informou que Miss Dorsett havia saído debaixo daquela tempestade. Informou ainda que lhe pedira que não saísse, porque uma tempestade estava se aproximando, mas que ela respondera que saberia tomar cuidado. Às dez e quinze da noite, ao tentar de novo falar com o quarto 1113, a doutora foi informada de que Miss Dorsett havia deixado o hotel.
À doutora, agora, só restava confiar em que Sybil voltasse a si e chegasse em casa sã e salva ou, então, que a personalidade alternante que assumira o controle das ações dela retornasse, ou ainda que Vicky, conforme havia feito em muitos dos obscurecimentos mentais momentâneos que Sybil sofrerá no decorrer da análise, de alguma maneira conseguisse se comunicar por telefone com a doutora. Mas... nada de telefonema.
Na manhã seguinte, ao sair para colocar algumas revistas na mesinha da sala de espera, a doutora deu com a figura esguia de Sybil Dorsett esperando. Por desconhecer qual a personalidade que estava presente, sem se referir a nenhum nome, a doutora disse simplesmente: — Entre, por favor.
Fez-se um silêncio acabrunhador.
— Aconteceu de novo — disse a paciente, com tristeza na voz. — Contar-lhe tudo vai ser ainda mais difícil do que eu pensava.
— Sybil?
— Sim, sou Sybil. Quando "dei por mim", estava numa rua de Filadélfia, num bairro horrível de armazéns. Este obscurecimento foi o pior que já tive, foi realmente um pesadelo. E isso depois que pensamos que nunca mais iria acontecer. Oh, doutora, sinto-me tão envergonhada.
— Acalme-se antes de falar nisso — disse a doutora, em tom tranqüilizador.
— Eu sempre prometo a mim mesma que nunca mais irá acontecer de novo e que farei todo o possível para evitá-lo. Mas, desta vez, realmente não esperava que acontecesse. Quantas vezes já recomecei tudo?
— Não sei quantas vezes — respondeu a doutora. — Por favor, peço-lhe que desista de recomeçar, porque
não lhe faz nenhum bem. Por que não continua do ponto em que está?
— Não sei o que fizeram em meu nome — disse Sybil, impensadamente. — Talvez lesões corporais. Assassínio.
— Sybil — respondeu a doutora, com firmeza. — Já lhe disse muitas vezes que nenhuma das outras age contra seu código de ética.
— Sim, a senhora me disse isso — respondeu Sybil com ansiedade. — Mas a senhora sabe disso realmente? Não podemos ter certeza.
— Sybil — disse a doutora, ao acaso —, não gostaria de ouvir as outras personalidades gravadas na fita?
— Não — Sybil sacudiu a cabeça decididamente. — A única coisa que quero ouvir dessas outras, como a senhora as chama, é que não existem mais.
— Mas isto vai lhe trazer tranqüilidade — persistiu a doutora. — Quando as Peggys me contarem sua história de Filadélfia, por que não gravá-la? Assim, você pode ouvi-la sozinha, depois.
— As Peggys? — perguntou Sybil, consternada. — A senhora sabe que foram elas? Como pode ter certeza disto?
— Porque Peggy Ann me escreveu do Broadwood — respondeu a doutora, numa maneira direta e concreta.
— Do Broadwood? — perguntou Sybil, surpresa. — E a senhora sabe que eu estive lá?
— Você foi parar em Filadélfia porque as Peggys a levaram até lá. Elas são uma parte de você sobre a qual você não tem nenhum controle. Mas vamos acabar com isto tudo quando conseguirmos reunir vocês, garotas, numa só.
— Filadélfia é uma prova de que não estou melhorando nada — respondeu Sybil, consternada. — Nunca mais vou melhorar.
— Você sabe que quero ajudá-la — disse a doutora meigamente. — Sabe que lido com estes problemas há mais de três anos e que eles são parte da sua doença.
— Sim, sei disto. A senhora já me disse muitas vezes.
— E quando você fica diferente — disse a doutora incisivamente —, torna-se desnecessariamente desconfiada e apavorada.
— Não fico esquisita? — perguntou Sybil impensadamente.
— Não, não fica esquisita — disse a doutora enfaticamente.
— Fico simpática?
— Sim, Sybil, muito simpática. Gosto de você. E não sei se você consegue adivinhar o quanto gosto de você.
— A doutora correspondera ao pedido de aprovação com o genuíno sentimento de crescente orgulho pela paciente.
Havia um esboço de lágrimas nos olhos de Sybil — as lágrimas que no ano e meio iniciais da análise ela não tinha sido capaz de derramar. Sybil perguntou calmamente:
— A senhora continua achando que eu posso ficar boa?
— Sybil, acho e desejo isto, de todo o coração e com toda a minha experiência como psicanalista.
A mão esguia de Sybil moveu-se em direção à mão da Dra. Wilbur, quando doutora e paciente se sentaram juntas no sofá.
— Mas, então — perguntou Sybil em voz baixa e carinhosa —, por que eu pioro?
— Em análise — respondeu a doutora objetivamente —, quanto mais a gente se aprofunda, tanto mais perto se chega do centro dos conflitos. Quanto mais a gente se aproxima do centro dos conflitos, tanto mais se tem que enfrentar, em termos de resistência e de conflitos, em si.
— Mas eu não estou enfrentando nada — observou Sybil amargamente. — Eu simplesmente fujo.
— Não é você, a Sybil atuante e que representa a mente consciente, que foge, e sim as outras, que pertencem ao inconsciente — explicou a doutora.
— A senhora diz que são inconscientes e que são parte de minha pessoa — observou Sybil pensativamente.
— Mas diz, também, que elas podem me levar aonde bem entendem. Oh, doutora, estou com um medo terrível. É um transe a que nunca me acostumei. Essas outras me guiam, me possuem, me destroem.
— Sybil, não se trata de possessão — declarou a doutora, enfaticamente. — Não se trata de nenhuma invasão de fora. Vem de dentro, e pode ser explicado não em termos sobrenaturais, e sim muito naturais. Ainda não consegui determinar as idades precisas das personalidades, mas algumas delas são garotinhas que andam pelo seu corpo de mulher. Quando foram para Filadélfia, as Peggys estavam fugindo de sua mãe. Negam que sua mãe fosse a delas também, mas é somente uma negação superficial. No íntimo delas se aninha medo e raiva contra sua mãe. Medo e raiva fazem com que fujam para se libertarem do sentimento de trapaça que sua mãe criou nelas. E porque as Peggys e algumas das outras personalidades são garotinhas, em certo sentido conservam você sempre uma garotinha.
— Não somente maluca — respondeu Sybil com uma amarga ironia —, mas também imatura!
A doutora passou um braço em volta de Sybil e falou com ardor:
— Ninguém jamais disse que você é maluca, com exceção de você mesma, e quero que apague do seu vocabulário essa palavra ao se referir a você mesma. Sua mãe interferiu no seu crescimento. Você não foi totalmente vencida por ela porque tinha uma fibra e uma tempera que fizeram sua vida diferente da dela. E quando você constatou que sua mãe estava errada, começou a fazer consigo mesma as coisas que queria fazer — embora houvesse pedaços e partes do passado que formavam outras personalidades, que a fizeram diferente das outras pessoas e temerosa do que você era!
A doutora fitou firmemente os olhos de Sybil ao falar.
— Doente sim, mas esquizofrênica não! Sua mãe era esquizofrênica. Ela percebia as coisas de maneira totalmente diferente de você. Certa vez você me contou que ela não podia ver o todo de um edifício, mas somente uma parte; que quando você assistiu à ópera Hansel e Gretel ela apenas conseguia ver os bombons de açúcar em cima da porta e não a porta como tal, ou então o conjunto como um todo. Você vê os conjuntos. Sim, você está fragmentada, mas a sua fragmentação não é a de uma personagem esquizofrênica. Por favor, não diga, nunca mais, que é uma esquizofrênica. Seu tipo de fragmentação é o resultado de uma dissociação, e não de distúrbio da percepção. Você é sã, suficientemente sã para ter sobrevivido à câmara de torturas a que sua mãe a submetia e fazer ainda muito por você mesma, apesar da terrível infância que teve. Agora, conte-me suas experiências em Filadélfia. Isso ajudará muito.
Quando Sybil deu a própria versão da história ocorrida entre os dias 2 e 7 de janeiro em Filadélfia, a doutora desejava muito pedir a Peggy Lou que também desse a sua versão do ocorrido. Contudo, àquela altura da análise não havia jeito de chamar as Peggys. O que restava era aguardar que aparecessem espontaneamente, o que só aconteceu um mês mais tarde.
Nesse meio tempo Sybil voltou à escola. Vivia constantemente infernizada com o pensamento do que podia ter acontecido, ou talvez com o que de fato teria acontecido em Filadélfia. Ela não aceitara e não podia aceitar a garantia da Dra. Wilbur de que as criaturas dentro dela eram incapazes de praticar coisas más. Desde que a análise havia começado, essas personalidades a tinham levado não somente a Filadélfia, mas também a Elizabeth, Trenton, Altoona, e mesmo até San Francisco. Não sabia é aonde elas muitas vezes já a tinham levado antes que a análise começasse. Essas outras controlavam-lhe a bolsa, transportavam seu corpo, agiam sem a sua vontade. Só depois- do fato consumado é que ela ficava sabendo o que as outras tinham feito. E sempre havia o receio de que o que tinha sido feito fosse pior, muito pior, que o que a Dra. Wilbur lhe havia dito.
E mesmo que essas outras nada fizessem de errado, sob um ponto de vista legal ou criminal, o claro-escuro de suas ações estava proporcionando uma experiência que se mudava e recompunha tão constantemente que, não importava qual fosse a intenção aparente de cada ação que ela mesma iniciasse ou se propusesse a iniciar — essas outras seriam as vitoriosas, atuando na evidência de seu desespero.
Um mês depois da volta de Filadélfia chegou o dia em que a Dra. Wilbur disse:
— Tenho Peggy Ann e Peggy Lou gravadas em fita. Se você ouvir o que elas fizeram em Filadélfia estou certa de que ficará muito aliviada. — A doutora se mostrou propositalmente indiferente, porém tinha sérias dúvidas de que Sybil concordasse, depois da persistente e teimosa recusa, em ouvir. O problema fundamental consistia em levá-la a ouvir.
— E então? — perguntou a doutora. Sybil não respondeu.
— Sybil, isto pode ser um momento decisivo na análise.
— Não vejo como — respondeu Sybil. Suas palavras eram abafadas e sua garganta estava claramente contraída.
— Somente você conhecendo as outras elas se tornarão parte de você e você poderá fazer suas as experiências delas, poderá tornar suas as lembranças que elas guardam.
— Não quero nenhuma parte disso. Doutora, por que está me torturando?
— Se isto fosse uma doença física — explicou a doutora —, você não faria em pedacinhos a receita de um remédio que poderia superar uma crise e ajudá-la a melhorar.
— Não vejo em que se enquadra a analogia — respondeu obstinadamente Sybil.
— Enquadra-se mais do que você pensa — insistiu a doutora. — Essas outras personalidades não são a doença e sim sintomas de sua doença. Elas invadem o seu espírito, oprimem-na, subvertem suas intenções e seus desejos. É somente mediante uma aproximação com elas que você poderá encaminhar-se para uma vida mais normal.
Os lábios de Sybil se torceram num sorriso irônico.
— Parece tão fácil — disse ela. — Mas, doutora, tanto a senhora como eu sabemos que a coisa não é assim tão fácil.
— Ninguém disse que é fácil — respondeu a doutora.
— Mas o que lhe posso garantir é que será infinitamente mais difícil melhorar se você não se dispuser a conhecer
— e aceitar — essas outras.
— Filadélfia foi uma prova de que nunca ficarei boa
— respondeu Sybil sombriamente. Levantou-se da cadeira e pôs-se a olhar pela janela, com ar distraído.
— Sybil — chamou a doutora —, resistir não lhe fará nenhum bem.
— E aí vem, de novo, essa palavra imunda—revidou Sybil, virando-se para encarar a doutora.
— Todos os pacientes se valem da resistência — garantiu-lhe a doutora.
— Mas — respondeu Sybil com uma curva torcida em seus lábios — eu não sou propriamente uma paciente e sim várias pacientes. — A ênfase dada ao plural ressoou aterradoramente. — Ao menos é o que a senhora está me dizendo. E vejo-me obrigada a ouvir e encarar a realidade - sou uma anomalia.
— Sybil, Sybil — insistiu a doutora —, você está distorcendo a verdade. As outras são parte de você. Todos nós temos diferentes partes de nossas personalidades. A anomalia reside não na divisão e sim na dissociação, na amnésia e nos terríveis traumas que deram origem às outras.
— Isto é um mero eufemismo — respondeu Sybil tristemente. — Quando fala em outras, a senhora quer dizer outras pessoas. Não quero vê-las e nem tenho motivos para isto.
— Já lhe disse por que deveria vê-las — disse a doutora. — Mas vou lhe dizer de novo, porque ouvindo a realidade a gente se sente melhor. É um passo decisivo em direção à cura.
Sybil permanecia em silêncio, e a doutora viu que seria bem mais difícil do que ela imaginara.
— Antes ou depois terá que acontecer — disse a doutora. — Então por que não agora? Afinal de contas, você me permitiu fazer a gravação. Não a fiz propriamente por minha causa.
— Tenho medo —- disse Sybil, enquanto um calafrio lhe perpassava o corpo.
— Quando se ouve, perde-se o medo.
— Mas se eu ouvir desaparecem os obscurecimentos da vontade? — perguntou Sybil, desesperada.
— Garanto-lhe que, no final, sim — respondeu a doutora, decisivamente. — Quanto mais conhecer as outras personalidades, mais nos aproximaremos do momento em que você voltará a ser uma só.
Sybil caiu em cheio na cadeira, olhando desconfiada para a doutora. Seus olhos se dilataram mais do que antes.
Agarrou a cadeira e, perfeitamente cônscia das possíveis conseqüências, murmurou:
— Está bem.
A doutora levantou-se da cadeira, que estava perto do sofá, abriu uma gaveta, preparou o gravador e encarou fixamente Sybil.
— Posso rodar a gravação? — perguntou. Houve um momento de silêncio e, finalmente, Sybil fez sinal que sim.
As mãos da doutora estavam no gravador. Os carretéis da fita rodaram. Encolhida num canto do sofá, Sybil pensava: Esses carretéis rodam contra mim.
A voz na fita dizia: "Ouvi o tinido do vidro no laboratório de química. Fazia-me lembrar Lulu e o prato. Tive que correr até a porta juntamente com Sybil..."
— É a voz de minha mãe — gritou Sybil. — Como a senhora conseguiu gravar a voz da minha mãe? — e precipitou-se para a janela. Por um momento a doutora julgou que Sybil se tivesse transformado em Peggy Lou; mas, quando a voz na fita dizia "tive que correr até a porta juntamente com Sybil, e fui com ela até o elevador", Sybil, com sua voz e sem as mudanças físicas que acompanhavam a presença de Peggy Lou, repetiu:
— É a voz de minha mãe. Desligue. Não suporto isso. Acabo ficando louca. Não estou preparada.
A doutora desligou o gravador. Sybil voltou da janela, sentou-se na cadeira e ficou olhando para o nada.
— Não é a voz de sua mãe — disse a doutora calmamente. — É a voz de Peggy Lou. Posso continuar para que você fique tranqüila a respeito?
Embora Sybil não tivesse dado nenhuma resposta, a doutora ligou o gravador.
A voz de Peggy Lou dizia: "Senti Sybil agarrar nossa pasta com zíper. Ela estava feito doida porque o elevador não chegava. Assumi a direção dos atos dela. Quem entrou no elevador fui eu. Sim, fui eu!"
— O que significa isto? — perguntou Sybil nervosamente. — Desligue isso aí. — A doutora agiu conforme Sybil pedira.
— Nossa pasta de zíper — murmurava Sybil enquanto ia andando pela sala. — Ela pensa que tem posses-
são simultânea comigo. Oh, Dra. Wilbur, Dra. Wilbur, que devo fazer?
— Vamos ouvir — insistiu a doutora quando os carretéis começaram a rodar de novo.
"Eu saí do laboratório", dizia Peggy Lou, "porque não queria ser repreendida por ter quebrado o vidro. Não o quebrei. Também não fui eu, quando Lulu me acusou. Naquela ocasião fui castigada. Sim, puseram-me de castigo. Não foi nada bonito."
— Desligue isso, por favor, desligue — implorava Sybil. Depois, no silêncio que se seguiu e oprimida por sentimentos de terror, Sybil começou a rememorar: — Quantos anos passei sem pensar naquela bandeja... mas agora me lembro. Minha mãe me castigou, embora Lulu a tivesse quebrado. Mas como é que essa Peggy Lou sabe disso?
— Peggy Lou é parte de você. Ela a defendeu contra a raiva que você sentiu por ser injustamente castigada — respondeu a doutora.
— Não quero que ela tome a minha defesa. Não quero nada com ela — respondeu Sybil secamente.
— Sybil — observou a doutora com prudência —, você está opondo todo tipo de resistências, o que não lhe vai fazer nenhum bem.
— Lá vem, novamente, essa palavra suja. — Sybil fez um esforço para sorrir, mas a tentativa fracassou.
— É por causa daquela bandeja — explicou a Dra. Wilbur — que Peggy Lou fica andando por aí quebrando vidros.
— Pois bem, gostaria que ela parasse de fazer isso — respondeu Sybil irritada. — Eu tenho que pagar cada vidro que Peggy Lou quebra. Não posso permitir que Peggy Lou faça isso.
— Quando removermos o trauma relacionado com a bandeja — insistiu a doutora —, Peggy Lou irá parar. Quando você for capaz de ficar zangada por seus próprios direitos, Peggy Lou se fundirá com você. Está pronta para ouvir mais?
A doutora ligou o gravador. A voz de Peggy Lou reiniciou a conversa:
"O laboratório de química tinha um cheiro esquisito.
Fazia-me pensar na velha farmácia de Willow Corners, onde eu moro. Foi lá que a mãe de Sybil nos encontrou quando voltamos para casa depois da temporada no campo. Estava terrivelmente perturbada. Vi-me obrigada a ir embora".
— Pare, por favor, por favor — o pedido era frenético.
A doutora fez o que ela pedia e, no silêncio que se seguiu, Sybil murmurou:
— A velha farmácia. Lembro dela. O velho Dr. Taylor. Música. Música maravilhosa.
Momentaneamente perdida em suas recordações, Sybil se acalmou um pouco.
Aproveitando o momento de calma, a doutora explicou:
— Olhe, Peggy Lou compartilha das suas lembranças. Tem suas próprias lembranças também, aquelas de que você não sabe nada. Quando todas essas recordações voltarem, teremos feito um grande progresso no caminho da sua transformação numa única pessoa.
A doutora tornou a ligar o gravador e Peggy Lou prosseguiu:
"Quando estava no metrô e no trem para Filadélfia, não parava de pensar que Sybil não faria as coisas que eu queria que fizesse. Queria dinheiro para material de desenho. Ela dizia que precisava dele para pagar suas aulas de laboratório. Gosto de química, mas me aborrece porque Sybil trabalha demais com as fórmulas. Não precisaria estudar tanto se eu ajudasse com as multiplicações. Aprendi a multiplicar na escola, mas ela não. Poderia ajudá-la, se quisesse, mas não quero. Quero fazer as coisas que me agradam. Era isso que pensava a caminho de Filadélfia. Fazia muito tempo que não íamos a nenhum lugar. Isso me irrita. Irrita muito. Olhe, gosto muito de viajar, mas essa Sybil nunca vai a parte alguma. Assim, fui a Filadélfia para me desforrar".
Aquela vez a própria doutora fez parar a fita.
— Isso é tudo? — perguntou Sybil.
— Não, mas vamos descansar um minuto — replicou a doutora.
Sybil parecia mais tranqüila, capaz, pela primeira vez naquela sessão, de responder não com as emoções, mas com a mente.
— Há tantas coisas a assimilar — disse em voz baixa.
— O que é isso sobre as fórmulas?
— Escute, Sybil — explicou a doutora —, você já sabe que foi Peggy Lou quem a dominou do terceiro ao quinto ano. Já lhe disse que ela aprendeu a tabuada. Quando você tem problemas com multiplicações, é por esse motivo. Se pudermos chegar a um ponto.com Peggy Lou e você em que ela a deixe usar os conhecimentos que ela possui e você não, você não terá mais dificuldades. Temos que romper a parede que há entre vocês. É a isso que me refiro quando falo de nos dirigirmos para a integração.
— Sim, compreendo — concordou Sybil. — Isso esclarece muito o que a senhora esteve dizendo.
Ligou-se o gravador novamente e Sybil escutou a voz de Peggy Lou dizendo:
"Assim, pensei que iria para o Broadwood para desenhar, fazer esboços e me divertir. Mas quando cheguei lá olhei o que trazia comigo e tudo o que tinha era nossa pasta com zíper. Disse na recepção do hotel que minha bagagem chegaria no dia seguinte e me acreditaram. Fui com o ascensorista para o quarto 1 113. Gostei do quarto porque tinha um teto bem alto, paredes creme e da janela tinha-se uma vista maravilhosa. Além disso, o quarto era muito quente e tranqüilo. Fechei a porta depois de o boy sair, e enfiei a pasta, as luvas e o cachecol no armário. Mas não tirei o casaco. Fiquei longo tempo junto à janela. Então me dei conta de que não tinha pijama. Aquilo me deixou encantada, porque podia ir fazer compras e divertir-me muito. Queria conseguir os pijamas mais divertidos que pudesse achar... do tipo que manteria Sybil acordada a noite toda e que faria sua mãe dizer: 'Você não tem gosto. As pessoas cultas e refinadas usam roupas de tons suaves'. Bem, peguei o metrô e me dirigi à loja Mayflower, na Wayne Avenue; comprei um pijama de listras muito ousadas, e foi maravilhoso. Peggy Ann foi comigo".
— O pijama. As luvas. O cachecol vermelho. A pasta
— fez eco Sybil, enquanto sua expressão se tornava tensa com a lembrança aterrorizada.
A voz de Peggy Lou continuou:
"Voltei ao hotel e subi para meu quarto. Lavei minha roupa, tomei um banho, lavei a cabeça, pus meu bonito pijama, liguei a televisão e cantei com ela. A televisão faz companhia. Depois fui para a cama. Mais tarde, de madrugada, as pessoas do quarto contíguo puseram o rádio tão alto que acordei e não pude dormir mais. Como fiquei irritada! Então, levantei-me e olhei pela janela. Do outro lado da rua estava a Roman Catholic High School para rapazes e um velho edifício que antes era o Philadelphia Morning Record. A estação do metrô ficava perto do hotel. A distância podia ver as luzes vermelhas e verdes da ponte. Estive olhando pela janela muito tempo, até que não se ouviu mais o rádio e voltei a me enfiar na cama.
"Quando despertei, a neve da noite anterior havia desaparecido e o sol brilhava. Fiquei contentíssima de ver o sol e passei muito tempo à janela, olhando o reflexo que produzia nos edifícios e na ponte. Perto da ponte havia uma grande igreja com um campanário muito alto e delgado. Recortava-se escuro contra as silhuetas dos edifícios do outro lado do rio, que estavam atrás dele. Gostei da cena e voltei a olhá-la várias vezes enquanto me vestia. Liguei para a portaria e pedi um desjejum reforçado, porque Sybil nunca nos dá comida suficiente. O camareiro era muito amável e tornamo-nos amigos. Enquanto comia, sentei-me na poltrona grande perto da janela e pus migalhas de pão no peitoril da janela. Vieram pombas e outros pássaros para comer as migalhas; dividi meu chocolate e minhas torradas com eles. Decidi o que faria cada dia enquanto estivesse naquele quarto.
"Depois saí e caminhei pelas ruas. Não tinha ido muito longe quando vi um velho edifício de tijolos vermelho-escuros. Subi os degraus e encontrei-me na Academy of Fine Arts. Vi algumas litografias que estavam expostas. Eram brancas e pretas, como meus desenhos, de modo que fiquei um tempo estudando-as. Depois subi a escadaria para ver o que havia nas galerias de cima. Passei muito tempo naquele museu e travei amizade com um dos guardas. Falamos de arte e nos entendemos muito bem.
"Também passei meio dia na Betsy Ross House. Fui ao museu da faculdade de medicina, onde havia o cérebro de um homem de quarenta e oito anos com um ferimento de bala e o cérebro de uma mulher de trinta e oito anos que tivera um ataque cardíaco. Havia um montão de crianças pequenas em frascos de vidro. Aqueles frascos eram realmente interessantes. Diverti-me muito em Filadélfia.
"Passei muito tempo desenhando, tanto na rua, quanto no hotel. Gostava de desenhar em papel do hotel. Era de graça, não precisava comprar. Também eram de graça os meus esboços quando desenhei a mulher de pé, sozinha, num precipício. Desenhei-a em preto. Estava feliz.
"Fui feliz em Filadélfia. Ia aonde queria, desenhava, dormia dez horas por dia, passava três ou quatro horas, cada dia, comendo. Era o mesmo tipo de sensação que tive várias vezes antes, e tinha certeza de que ninguém voltaria a dizer-me nunca o que devia fazer. Então chegou o dia em que fui apanhada por uma tempestade de neve. O vento me batia nas costas e a neve me cercava. Estava sem galochas e luvas, as orelhas me doíam por causa do frio. O casaco que usava não era suficiente. Quando me voltei para regressar ao hotel, o vento me fustigou a cara o caminho todo. A mulher que fora ao quarto me perguntar como eu estava tinha-me prevenido para não sair, e deveria tê-la escutado. Não o fiz. Quando o vento me açoitou, já não me senti tão segura. Tinha vontade de quebrar uma das janelas do edifício feio diante do qual estava passando. Parei e pus a mão sobre o vidro. Era liso e frio. Quando o toquei, acreditei ouvir alguém dizendo em voz muito baixa: 'Você não quer quebrar o vidro. Você disse que não faria isso de novo'. Voltei-me esperando encontrá-la, doutora. A senhora não estava ali. Mas eu não queria quebrar o vidro, estivesse a senhora ali ou não, porque já não estava irritada. Sentia frio, muito frio. Pensei: Vou deixar que Sybil fique com o corpo. Estava cansada demais para pensar naquilo, mas suponho que foi outra forma de me desforrar."
Um clique assinalou o fim da gravação, fazendo-se silêncio no recinto.
— Na ponte, luzes vermelhas e verdes — meditou Sybil mais para si do que para a doutora. — Uma igreja ampla, com um campanário bem alto e esguio. Não lembro disso. A pasta com zíper, as luvas, o cachecol vermelho, o pijama. O porteiro, a mulher na mesa. Acertei em minhas suposições, mesmo nunca tendo encontrado Peggy Lou. Em seguida Sybil voltou-se para a doutora e disse calmamente:
— Quando Peggy Lou está dando comida aos pássaros se parece com São Francisco de Assis.
— Como vê, Peggy Lou não é nenhum monstro — observou a doutora.
— Sim, parece ter uma boa dose de senso estético — concordou Sybil. — O desenho da mulher em cima do penhasco é muito bom. A senhora me disse que ela sempre pinta em preto e branco.
— Ela vê o mundo em preto e branco. Não concebe gradações cromáticas.
— Deixar que Sybil fique com o corpo? — repetiu Sybil. — Mas que bobagem dizer isto. Como se o corpo fosse dela.
— Como está vendo, Sybil — explicou a doutora —, este relato da viagem a Filadélfia, que revela em que ponto uma personalidade alternante que está controlando o corpo o abandona, nos oferece uma compreensão real da dinâmica das personalidades múltiplas. Como pode ver, é evidente que, exausta em face da tempestade, Peggy Lou devolveu o corpo a você, porque ela preferiu não ser.
— Mas ela pode escolher? — perguntou Sybil, um tanto ansiosa.
— Pode — respondeu a doutora. — Uma vez que a personalidade alternante tenha dado vazão às emoções que em qualquer tempo a provocaram, não há motivo para ela continuar funcionando. Filadélfia constituía a maneira de Peggy Lou dar vazão, no presente, àquilo que você e ela reprimiram no passado. Agindo exatamente como ela fez durante cinco dias, dissipou a raiva e os sentimentos hostis despertados no laboratório de química. Quando você não consegue dominar tais sentimentos, então Peggy Lou os controla por você.
Assim, em Willow Corners e Elderville, Peggy Lou fora a fugitiva que não foge. Somente em Filadélfia, umas três décadas depois, ocorrera o vôo. Sua mãe, que Peggy Lou se recusava a reconhecer como sua, mas de quem estava sempre fugindo, era a chave do passado em torno do qual girava a ação do presente.
Quando o vidro se quebrara na aula de química, o ruído evocara dois episódios do passado. Na velha farmácia de Willow Corners, Sybil havia colocado seu cotovelo no balcão. Um vidro de remédio caiu no chão e se ouviu a voz acusadora de Hattie: "Você o quebrou". Na cozinha dos Anderson, em Elderville, a prima Lulu acusara Sybil de ter quebrado a bandeja de cristal que ela mesma destruíra. De novo se ouvira a acusação da mãe de Sybil: "Você a quebrou".
Na aula de química, como na velha farmácia de Willow Corners e na cozinha dos Anderson, em Elderville, a cabeça de Sybil começou a latejar e a sala pareceu dar voltas. Nos três incidentes as reações físicas ante as emoções haviam sido as mesmas.
No dia seguinte Sybil escutou a fita de Peggy Ann. Era muito interessante ouvir que Peggy Ann estava livre dos modismos verbais e erros de Peggy Lou.
"Eu caminhava pela 17th Street e pela Dodge", dizia a voz de Peggy Ann, "para averiguar aonde fora a Dra. Wilbur. Andei vários quarteirões e nenhum deles tinha números. Então, voltei-me e caminhei na outra direção para achar ruas com números. Pensei que se pudesse encontrar a 16th Street, a artéria principal de Omaha, poderia encontrar a 17th. Caminhei e caminhei, até ficar muito cansada e com frio, mas não consegui achar as ruas com números. Comecei a irritar-me, a ficar agitada, e senti vontade de quebrar uma janela. 'Você não quer quebrar o vidro', ouvi. 'Você disse que não faria isso de novo. Voltei-me para ver quem havia falado comigo. Queria falar com ela, então corri rua abaixo, mas não consegui encontrá-la. Senti-me novamente triste e muito solitária. Queria encontrar a única pessoa que gostava de mim. Então percebi que gostava da Dra. Wilbur acima de tudo, e que a estava procurando. Queria falar-lhe das mãos, da música e das caixas. Não sei exatamente o que eram essas caixas, mas era do que pensava querer falar com ela. E queria perguntar-lhe por que não estava melhorando, já que ela dissera que eu melhoraria. Estava com medo.
"A Dra. Wilbur está justamente aqui", ouviu-se a voz da doutora na fita.
"A Dra. Wilbur foi embora", insistia Peggy Ann.
"Você pode ver que eu sou a Dra. Wilbur?
"A Dra. Wilbur foi embora e nos deixou sem esperança.
"Onde é que vocês estavam quando a Dra. Wilbur as deixou?
"Estávamos em Omaha.
"E agora, onde é que estão?
"Em Omaha."
A fita chegou ao fim. A doutora achou curioso que Peggy Ann tivesse assumido a responsabilidade pelo vidro quebrado, cuja culpada, na realidade, era Peggy Lou. Mas acontece que as duas personalidades andavam tão intimamente ligadas que, muitas vezes, partilhavam das mesmas experiências e chegavam até a adotar uma as emoções da outra. Conforme exemplificado no caso de Peggy, raiva e medo não andavam separados.
Depois, a doutora se voltou para Sybil, que havia ficado em silêncio durante o relato de Peggy Ann na fita gravada.
— Ela me roubou o passado — disse Sybil, finalmente. — As duas fizeram isto comigo. Tanto Peggy Lou como Peggy Ann.
— O passado — respondeu a doutora, com convicção — não será motivo de perturbação para você, uma vez que nos encaminhamos para uma reintegração. As mãos de sua mãe já não lhe causam mais pavor. Nós vamos resolver os conflitos e os espoliadores devolverão a você o que lhe roubaram.
A doutora explicou que Peggy Ann era a parte apavorada e terrificada de Sybil, e que de Filadélfia havia trazido para casa aquele medo.
— Mas Peggy Ann nem sequer sabia que havia estado em Filadélfia — respondeu Sybil pensativamente. — Que barafunda é esta nas emoções que chegou a produzir coisas deste tipo?
— Pois bem — respondeu a doutora —, também tenho gravações das outras personalidades. Vamos ouvi-las amanhã?
— A senhora disse que além de mim existem outras catorze — respondeu Sybil. — A gente vai levar a vida toda ouvindo. — Mudando de assunto, Sybil repetiu a razão de seu terror nos encontros anteriores: — Peggy Lou tem a voz da minha mãe.
— Isto é interessante — observou a doutora. — Como você sabe, Peggy Lou insiste em que sua mãe não era a dela também.
— Peggy Lou — respondeu Sybil tristonhamente — tem todas as vantagens. Pode negar aquilo que tenho que enfrentar. — Em seguida, num ímpeto repentino de curiosidade há muito tempo reprimido, Sybil perguntou: — De onde é que ela veio? Como foi criada? Perguntas, perguntas e mais perguntas. Mas não há respostas.
— Respostas, existem muitas — afirmou a doutora —, mas ainda nem eu as tenho.
Então Sybil afirmou, num tom menos conciliador:
— Sabe duma coisa? Não vou ouvir as outras por muito tempo. Só me causam aflição. E por que devo eu estar me sujeitando a isto?
Então a doutora lembrou a Sybil:
— Saber é melhor do que desconhecer. Conforme lhe disse antes, é importante para você que se lembre e aceite como suas as coisas que acontecem com as outras catorze personalidades. Como suas, Sybil, porque elas são parte de você. Se você reconhecer isto, posso lhe dizer que esta atitude é o primeiro passo dado no sentido de sua reintegração.
O AVENTAL BRANCO FANTASMA
Quando Sybil acordou, na manhã seguinte, seus pensamentos não haviam ainda sido totalmente desembaraçados do sonho que a forçara a despertar.
Sonhara que ela e seus pais tiveram que sair inesperadamente da cidade porque, se continuassem nela, aquilo significaria a sua ruína. Por súbita inspiração decidira levar seus pais a outra cidade para inspecionar uma casa onde pudessem viver e estar a salvo. Sentia-se muito orgulhosa de ter podido apresentar seu pai aos donos dessa casa e mostrar-lhe que, realmente, ela havia conhecido essas pessoas. De fato tinha sido aquela mesma sensação de satisfação que experimentara quando seu pai confirmou o que ela contara à Dra. Wilbur.
Depois ela ficara na ampla sala de espera da casa, na outra cidade, junto com as crianças dos moradores, que ela conhecera — sete casais de gêmeos e outra criança, em fila. Quatro casais gêmeos tinham cabelos castanho-escuros; os outros três pares, cabelos louros. A outra criança tinha cabelos idênticos aos de Sybil.
— Por que não me apresenta seus irmãos e irmãs? — perguntou Sybil a uma das crianças.
Ato contínuo, porém, os pais e os quinze filhos começaram a sair e Sybil e seus pais começaram a entrar. Quando percebeu que a apresentação a estas crianças que, com exceção de uma, estavam todas em fila de dois não havia sido feita, acordou.
Mas aquilo foi um sonho. Na vida consciente Sybil continuava terminantemente decidida a não querer encontrar-se com as crianças — Marcia e Vanessa, Mike e Sid, Ruthie e Marjorie, Peggy Lou e Peggy Ann — que eram gêmeas. Tão resoluta era a resistência que a Dra. Wilbur resolveu examinar o assunto com sua co-analisadora.
— Vicky — confidenciou a doutora na semana em que Sybil ouvira a gravação das Peggys —, falei com Sybil a respeito de você e das outras. Parece que não adianta nada. Não consigo convencer Sybil de sua existência, e nem lembrá-la das coisas que lhes aconteceram.
— Receio que também não tenha nenhuma solução a propor — disse Vicky. — Mas, talvez, se lhe contar a vida que levo com as outras, talvez adiante.
A doutora concordou.
— Eu estou no centro e Sybil está à minha direita, de costas viradas para todas nós.
— Entendo — disse a doutora. — Mas existe alguma relação entre Sybil e vocês?
Vicky fez uma pausa, refletindo, e depois continuou:
— Sim, ela está abaixo, tão abaixo que nem se lembra disso. E ela não quer lembrar-se porque isso lhe causa dor.
— E ela eliminou, removeu de si e relegou às outras o que causa dor?
— Creio que se pode falar nesses termos — respondeu Vicky pensativa. — Como vê, sou uma pessoa completa, e Sybil, não. Mas nunca lhe diga isto, por favor, porque senão ela ficará transtornada. Faz parte do seu complexo.
O que estaria Vicky procurando dizer? ficou a Dra. Wilbur especulando consigo mesma. Era evidente, pelo teor da conversa, que Sybil era uma personalidade esgotada, drenada, e Vicky, mais integral. Mas havia alguma coisa mais do que isto.
— Vicky — respondeu a doutora calmamente —, sabe que acaba de fazer uma declaração muito importante? O que você quer dizer é que Sybil não é uma pessoa integrada porque partes dela foram drenadas e vazadas para as outras personalidades. Estou ou não certa?
— Está certa — respondeu Vicky.
— Por esses anos deve ter havido uma infinidade de dissociações, as quais produziram estas outras em primeiro lugar.
— Correto — disse Vicky.
— As dissociações devem ter sido causadas por traumas, ou ser o resultado de realidades intoleráveis contra as quais cada uma das personalidades tinha que defender Sybil.
— Até aqui a senhora tem nota dez em suas observações — disse Vicky.
— Mas — acrescentou a doutora — muitas vezes estive me perguntando quando tudo isso teria começado. Antes da primeira dissociação houve um momento, uma época, em que Sybil era uma pessoa integrada.
— E como é que isto aconteceu? — murmurou Vicky em voz baixa. — Quem é que existia? Eu estava a caminho. Adiantaria alguma coisa se lhe dissesse quando apareci pela primeira vez?
— Você não está querendo dizer aquela época, da sexta série, depois que Danny Martin deixou Sybil? — perguntou a doutora.
— Foi naquela época que decidi entrar no mundo como uma personalidade ativa — explicou Vicky. — Não foi a primeira vez em que apareci.
— Mas, diga-me, quando foi a primeiríssima vez?
— Muito antes que Sybil estivesse na sexta série eu já existia. Tínhamos três anos e meio quando apareci pela primeira vez.
A Dra. Wilbur prestava toda a atenção ao interessante relato de Vicky.
— Em certo dia do começo de setembro de 1926, estávamos viajando com os pais de Sybil por estradas sulcadas por outras viaturas que haviam passado por lá. Íamos de Willow Corners para Rochester, em Minnesota. Minnesota era outro Estado, e estávamos muito eufóricas porque íamos para lá. O carro fez uma parada diante de um edifício de tijolos vermelhos. Mr. Dorsett voltou para Willow Corners, enquanto Mrs. Dorsett nos levou ao St. Mary's Hospital.
"O médico fez o diagnóstico, dizendo que era tonsilite folicular; mas isto não era tudo. Ele não podia compreender por que nós estávamos mal alimentadas, uma vez que pertencíamos a uma família de posses. Oh, não queira ver a cara que Mrs. Dorsett fez quando o médico lhe disse que ela devia alimentar melhor sua filha! Mas a senhora e eu sabemos que foram os clisteres e os laxativos aplicados depois das refeições que causaram a subnutrição.
"Gostamos dos dias que passamos no St. Mary's Hospital. O médico era alto e jovem. Quando ia ao nosso quarto sempre nos erguia, nos abraçava com toda a força e dizia: 'Como está passando a minha garota, hoje?' Ele espiava dentro de nossa garganta e, depois, nos deixava espiar a dele. O doutor ria, e nós ríamos também. Gostávamos de passar o tempo com ele.
"Quando nos levantou no ar vimos que uma de suas abotoaduras estava solta. Dissemos-lhe que podíamos abotoá-la.
" 'Você acha que pode?', perguntou ele.
" 'Posso', respondemos prontamente, 'porque eu coloco as do meu pai todos os sábados.'
"'Está bem, benzoca', disse o médico, enquanto nos fazia sentar.
"Ninguém nunca nos tinha chamado de benzoca. "Em seguida colocamos a abotoadura direitinho no punho da manga da camisa."
— Isto é formidável — disse a doutora.
— Quando ele saiu do nosso quarto esperávamos que voltasse logo. Mas quando voltou, não olhou mais para a nossa garganta nem nos ergueu mais. Limitou-se a sorrir, e disse: "Tenho boas notícias para você. Você vai para casa".
"Agarramo-nos ao seu pescoço. Olhávamos para a cara dele e perguntávamos: 'O senhor gostaria de ter uma garotinha?'
"Ele havia gostado da maneira como ajeitáramos a abotoadura. Tínhamos certeza de que ele gostaria que a ajeitássemos sempre. E por isso esperávamos que ele dissesse: 'Sim, quero uma garotinha'.
"Mas ele não disse aquilo, não disse nada e simplesmente virou as costas e saiu de nossa presença. E vimos aquele avental branco se movendo em direção à porta. O avental branco se desvaneceu no nada; assim, novamente tinha desaparecido a nossa tábua de salvação."
Vicky fez uma pausa. Fascinada pela narração, a doutora não dizia uma palavra. Vicky continuou:
— Quando chegamos ao hospital, eu era parte de Sybil. Mas a partir do momento em que o doutor nos deixou, já não era mais parte dela. Desde o instante em que aquele avental branco passou por aquela porta, já não éramos mais uma pessoa só. Eu me tornei eu mesma.
A Dra. Wilbur não estava surpresa diante do fato de que a dissociação tivesse começado nessa época. Na realidade tinha havido muitos fatos evidentes que comprovavam essa possibilidade. Anteriormente, a análise havia revelado que, durante uma visita que fizera à família dos Anderson em Elderville, com a idade de quatro anos, Sybil se havia tornado Marcia. Muito antes de falar do episódio do St. Mary's, Vicky havia dito: "Sybil não passava duma garotinha quando eu cheguei". E na reconstituição da poderosa experiência dos dois anos perdidos entre a terceira e a quinta séries, Sybil deixara claro que aquela não tinha sido a primeira dissociação.
Naquela mesma semana, a Dra. Wilbur contou a Sybil o que Vicky havia relatado. Inicialmente Sybil não se lembrava de nada, mas repentinamente se recordou e disse:
— Em minha casa, em Willow Corners, eu estava sentada no tapete da varanda envidraçada. Tinha então catorze anos de idade. Alguma coisa daquilo tem relação com o que a senhora acaba de me contar. — Depois de uma pausa continuou: — De repente, eu estava sentada lá e comecei a pensar no avental branco do doutor que se afastava de mim. Percebi que depois disso não me lembrava de mais nada. Não havia nada. Lembrava de meus pais quando me levaram ao hospital num lindo dia de setembro, mas não podia lembrar-me da volta do hospital para Willow Corners. A coisa seguinte de que me lembrei, depois que o doutor me deixou, foi que estava numa varanda envidraçada e que usava uma roupa que nunca tinha visto antes. Quando perguntei de onde tinha vindo o vestido, mamãe me respondeu: "Você sabe muito bem que foi Mrs. Engle quem o fez". Mas eu não tinha mais lembrança disso.
"Daquele dia em diante, toda vez que eu ficava com medo e não havia ninguém para me ajudar, eu passava a ver aquele avental branco se afastando de mim."
Mais tarde, naquele mesmo dia, Peggy Lou estava falando que tinha medo de coisas brancas por causa do "avental branco que nos deixou sem esperanças".
— Nós? — perguntou a Dra. Wilbur. — Você estava no St. Mary's?
— Fui para lá como parte de Sybil — respondeu Peggy Lou. — Mas, quando aquele avental branco nos deixou, voltei a ser eu mesma... ou melhor, não exatamente. Daí por diante Peggy Ann e eu éramos uma só. Chamávamo-nos de Peggy Louisiana.
Quando alguns dias depois Vicky retornou ao consultório da doutora, a análise de novo girou em torno da primeira dissociação. Vicky disse à doutora:
— Sybil deixou o hospital, em Rochester, quando a outra Sybil, a apavorada, a tímida, se retirou.
Sorrindo, Vicky disse:
— As Peggys e eu nos lembramos de quando saímos do St. Mary's Hospital e voltamos para casa, mas Sybil não se lembra.
— Sim, ela me disse isto — respondeu a doutora calmamente.
Embora aquela que ainda se chamava Sybil tivesse ido realmente com os pais de Rochester para Willow Corners, o fato é que no carro havia outras duas crianças. Vicky e Peggy Louisiana se tornaram independentes, personalidades alternantes, e daquele momento em diante havia muita coisa que Sybil não via, muita coisa que ficava oculta nela, e que assim permaneceria durante trinta e nove anos.
Quando a doutora perdeu a esperança de conseguir remédio para a situação partindo de conjeturas exteriores, eis que a salvação veio de dentro. Sybil, a criança original, deixara de existir.
Estas que acabavam de surgir para a vida partilhavam entre si tudo aquilo que a nova Sybil havia perdido. Toda a agressividade e hostilidade, toda a raiva da criança original passara para Peggy Louisiana. Para aquela que mais tarde se chamaria Vicky haviam passado o equilíbrio, a confiança e a capacidade da criança original em vencer as vicissitudes do mundo. Em Vicky estava também centralizada a continuidade da memória e a visão da vida em seu conjunto.
Embora observando, registrando e lembrando, nesse estágio Vicky estava inativa. Foi Peggy Louisiana que Hattie e Willard levaram para casa naquele dia de setembro.
A Sybil original tinha sido uma criança ativa, que aos dois anos já era capaz de abrir uma porta; mas, em virtude das opressões, tornara-se acanhada e retraída. Depois de voltar de Rochester, Peggy assumiu o comportamento ativo que tinha sido subjugado e perdido na Sybil original. Peggy andava por cima de cercas, brincava de cabra-cega e mostrava que era muito afoita.
— O hospital lhe fez muito bem — disse Hattie a Willard. — Ela melhorou.
A Dra. Wilbur pôde constatar que a maior parte daquilo que Sybil havia sido, muito de sua libido e muitas de suas aquisições e comportamentos, havia sido entregue às outras personalidades que se haviam criado na primeira dissociação. O que apareceu em Sybil foi uma personalidade drenada, cujo medo inicial da mãe se havia ampliado a ponto de incluir não somente figuras maternais, mas todas as pessoas. Exaurida de medo, essa personalidade drenada tinha resolvido nunca mais voltar a assumir o risco de se envolver com seres humanos. Mera personalidade atuante, desprovida de sentimento, era também uma personalidade despojada, porém protegida por poderosas defesas construídas internamente contra as verdadeiras forças que a tinham dividido. Uma vez que não queria voltar do hospital para casa, a criança original não foi, mas enviou duas defensoras internas que seriam suas delegadas para representá-la.
Para Sybil, a personalidade atuante, isto constituía o começo do tempo em que a memória já não registrava mais, do tempo roubado por aquelas que vieram para defendê-la.
As defensoras originais, Peggy e Vicky, mais tarde tiveram suas próprias descendências. Era uma árvore genealógica muito especial, uma genealogia de funcionamento psicológico e de herança emocional. Em 1935, a que era conhecida simplesmente por Sybil e tinha doze anos de idade, transformara-se em todas as catorze personalidades que até aquele momento se haviam apresentado na análise.
A Dra. Wilbur estabelecera a descendência de Vicky da seguinte maneira: Marcia, que apareceu em 1927, Mary (1934), Vanessa (1935) e Sybil Ann, cuja data precisa de aparecimento era desconhecida. A descendência de Peggy se constituía de Peggy Ann, na qual a Peggy original se havia desenvolvido; de Peggy Lou, que apareceu em 1926; de Sid, chegado no começo de 1928; de Mike, que entrou naquele mesmo ano, porém em data posterior.
Tornou-se também claro à Dra. Wilbur que Vicky e Peggy não haviam perdido nada do que as suas descendentes haviam herdado, ao passo que Sybil tinha perdido tudo aquilo que Vicky e a Peggy original tinham recebido. Vicky e Peggy retiveram como suas as emoções, as características, as aquisições e os estilos de comportamento que tinham infundido nas vidas de suas descendências.
Ruthie, Helen, Marjorie e Clara, conforme constatação da doutora, não descenderam nem de Vicky nem de Peggy, mas diretamente da Sybil original.
Sentada em seu gabinete de estudos, no dia seguinte, a Dra. Wilbur estava pensando naquela noite, havia coisa de quatro anos antes, quando fora pela primeira vez à Academy of Medicine Library a fim de ler alguma coisa sobre personalidades múltiplas. Desde aquela noite vinha tentando fixar a época da primeira dissociação e descobrir qual o trauma inicial que causara a proliferação de Sybil em múltiplas personalidades. Agora a Dra. Wilbur sabia que a primeira dissociação se dera no St. Mary's Hospital, quando Sybil tinha três anos e meio, e que essa dissociação havia proliferado não como conseqüência de um trauma, e sim pela sucessão de traumas causados por Hattie Dorsett, a raiz fundamental, ajudada e instigada pelas poderosas raízes associadas do fracasso de Willard Dorsett em providenciar meios de libertação. O trauma foi reforçado pela sensação de cilada causada pela religião, particularmente na maneira como era projetada por um avô religiosamente histérico.
Em meios sociais impregnados de ingenuidade e adornados do fogo e do enxofre de uma fé fundamentalista, os histéricos florescem.
Agora a Dra. Wilbur também podia associar a esses efeitos traumatizantes da infância os temores que tomavam conta de Sybil e Peggy Lou, conforme elas os haviam externado nos primeiros dias da análise. O medo que tinham de se aproximar de gente, evidente nos primeiros dias da análise, nada mais era do que um prolongamento do medo de se aproximar da mãe. As mãos que a paciente temia eram as mãos da mãe, instrumentos de tortura. O medo da música tinha muitas causas: a imobilização de Sybil à perna do piano enquanto Hattie tocava; a obsessiva virtuosidade de Hattie, que ignorava a presença de Sybil; o harpejar implacável de Hattie quando a própria Sybil tentava tocar; a frustração de Willard e Hattie com relação à música; o uso que Willard fazia do violão como uma solução de emergência para o problema psicológico de Sybil, combinado com sua insistência para que ela estudasse violão ao invés de violino.
Já não tinha também mais dúvidas sobre a origem da raiva enfurecida em Sybil, que só se externara em Peggy Lou. A Dra. Wilbur via também claramente por que Vicky, inventando a seu modo uma mãe carinhosa que se projetava no mundo imaginário de Sybil, constituía uma solução neurótica para o dilema da infância. Como origem dessa fúria estava também o fato de que o sentimento de engano, manifestado desde os primeiros instantes da análise, constituía a herança do passado: a lembrança de captura, de prisão, de controle, de síndrome de tortura e sentimento de engano que a religião lhe incutia.
Estava também claro que as catorze personalidades alternantes, que haviam começado a atuar de maneira construtiva, mas que se tornaram altamente destruidoras entre si e em relação a Sybil, teriam que ser reintegradas antes que a criança original pudesse ser recomposta.
A doutora estava de posse de um dos ensaios que Sybil tinha escrito para ela, um processo prescrito como parte da terapia. Escrito logo após o episódio de Filadélfia, revelava a confusão e o desespero que fizeram com que ela se afastasse da terra prometida da reintegração, com a qual tão recentemente a doutora lhe acenara.
A carta dizia:
Tenho algumas coisas para dizer, e não estou certa se posso dizê-las quando estiver aí; em todo o caso, antes, quero revelá-las, porque não quero ficar falando a hora toda, quando o que preciso é de sua ajuda e de alguma compreensão de minha parte. Preciso saber o que estou combatendo. Filadélfia me machucou muito. Pela primeira vez não tinha mais dúvida de que havia desaparecido para sempre a época do tempo perdido. Antes tinha dúvidas, porque progredia um pouco e logo a coisa se repetia; mas, depois de dois meses inteiros sem nunca ter perdido a consciência, não é verdade? — e a senhora sofreu aquela decepção comigo! Agora, como nunca, tenho a obrigação moral de lhe dizer. A tensão e o desespero são enormes. Oh, simplesmente não consigo encontrar paz em parte alguma, e isto é tudo. Mas não há coisa que mais me interesse do que o 'porquê' daquilo. A senhora disse uma porção de coisas que se revolveram em meu cérebro continuamente. A senhora falou dos meus temores. O temor não pode ser, de modo algum, pior do que os sentimentos que tenho nestes últimos dias. Sinto-me perplexa. Nos livros de Fenichel e de Alexander li que isto causa aquele sintoma e vi, realmente, muitos exemplos. Mas, nos livros, nunca encontro alguma coisa sobre o que fazer com isto. Estou pronta a lutar ou aceitar ou fazer o que for preciso, mas como posso fazer com que o meu íntimo aceite aquilo que os meus sentidos não percebem? De tudo quanto a senhora disse, concluí que é exatamente disto o que eu preciso. Tenho tentado tantas vezes, mas parece que não vou conseguir. Tudo o que faço é entrar em pânico. São exatamente estes os terríveis sintomas. Desde que comecei a escrever esta carta por duas vezes tive que ir deitar-me e descansar. Sei que tudo isto não passa de tensão que desgasta as minhas forças. Mas, mesmo sabendo disto, não me parece que mude as coisas. A única coisa que realmente vale a pena e ajuda é quando a senhora e eu, aos poucos, vamos resolvendo algum problema ou recordação. Nessas ocasiões, consigo algum alívio até que, depois, alguma coisa comece de novo. Não sei o que fazer. Às vezes chego a me perguntar para que serve tudo isto. Não há nenhuma solução. Integração? Ê uma grande miragem. O outro sentido da palavra é mais fácil de se atingir do que este. O problema real é que nunca fui capaz de convencer a senhora de minhas insuficiências e inutilidades. Será que conseguiremos falar a respeito disto? Quando é que voltarei ao seu consultório como "eu mesma"? Quando é que tomarei decisões como "eu mesma"? Não há nenhuma solução.
Mas haveria uma solução?
SUICÍDIO
"Acordar em plena consciência", "permanecer independente". Estes eram os triunfos de Sybil em sua existência fragmentada, depois de decorridos quase quatro anos desde que a análise começara. E no entanto ela continuava a cair vítima do mesmo acontecimento original, que se reproduzia na forma ritualística de sempre. Pode-se dizer que Sybil vivia entre parênteses. Fora dos parênteses havia aproximadamente um terço de sua vida atuante.
Quando ela acordava como alguma outra personalidade ou quando se transformava posteriormente numa delas, notando a transfiguração e aceitando o fato como um aspecto rotineiro do dia-a-dia da casa Dorsett-Reeves, Teddy Reeves contava a Sybil o que se passara.
Na semana seguinte àquela em que a análise descobriu a primeira dissociação, Teddy informou Sybil da seguinte forma:
— Na hora do café Mike esteve aqui durante quinze minutos. Perguntei-lhe o que gosta de desenhar, e ele me disse: "Carros, trens e ônibus".
— Vanessa esteve aqui às três horas da manhã. "Vou mudar de roupa e dar uma saída", disse. "Sybil tem uma aula. É o que está no horário de aulas que escrevi esta manhã." Obriguei-a a ir dormir. (Sybil tinha feito a seguinte observação: "Acho que Vanessa é mais parecida comigo do que qualquer outra. Ela, em geral, continua o trabalho que eu comecei. Fui eu quem escreveu o horário de aulas".)
— Mary chegou às duas horas da madrugada. Começou a querer me convencer a ir com ela para alguma outra cidade. Quando lhe disse "agora não", começou a chorar. (Sybil observou: "Mary chora as lágrimas que eu não posso chorar".)
Capri, a gata de Sybil, com sua maneira de agir, revelava aquilo que Teddy relatava com palavras. De tanto "voltar a si", Sybil se tornou perita em deduzir qual das outras personalidades estivera presente, pela simples atitude da gata. Com Mary, Capri era mansa, amável, gostava de ser segurada e tratada com carinho. Com Marcia, Capri se esfregava no rosto dela, em sinal de contentamento.
Mas era com Peggy Lou, em cuja presença a gata sé tornava brincalhona, que Capri passava pela transformação mais completa. Sabendo instintivamente que era Peggy Lou, a gata corria pelo apartamento e se jogava freneticamente no colo ou nos ombros de Peggy Lou. "Que gatinha bonita", dizia Peggy Lou, segurando o animal um tanto apertado. Mas Capri nem ligava. A gata, que não fazia nenhuma cerimônia para arranhar qualquer uma das outras, não arranhava Peggy Lou.
É possível que também Capri seja múltipla, dizia Sybil ironicamente.
A ironia, talvez uma maneira de Sybil se conformar com a realidade dos fatos, não conseguia disfarçar o fato de que sua vida propriamente atuante se tornara cada vez mais aterradora, pois, desde Filadélfia, mais uma vez se transformara numa série de vinhetas fragmentadas.
Aquela Sybil que na vida atuante vivia desligada dos próprios sentimentos, quando sonhava se aproximava da verdade a respeito de si mesma, pois a Sybil adormecida era totalmente inconsciente. Nos sonhos ela aproximava-se mais de sua verdadeira identidade do que em qualquer outra ocasião. O ditado "dormir é esquecer" não se aplicava a ela. Para ela, estar acordada significava esquecer; estar dormindo era lembrar. Seus sonhos voltavam-se para os acontecimentos originais que a haviam levado a tornar-se múltipla e que, em sua vida atuante, eram reproduzidos em suas outras personalidades.
Na semana em que ficou sabendo que tinha sido uma personalidade múltipla desde a idade de três anos e meio, por exemplo, sonhou que estava num trem que se dirigia ao ponto final da linha. O trem fez uma parada inesperada. Sybil levantou-se do seu banco e dirigiu-se à plataforma traseira do vagão para ver o que havia acontecido.
Viu, ainda em construção, uma enorme plataforma que seu pai estava erguendo, com escoras bem à vista.
Claro que o trem não poderia continuar a viagem enquanto a plataforma não estivesse terminada, pronta.
Inexplicavelmente ela se viu fora do trem, num armazém. Olhando para fora pela janela do armazém, notou uma pequena forma amarela e branca que se esgueirava pelo peitoril da janela, tentando ganhar a rua. Era um gatinho.
Sybil ficou observando como o pequeno e patético gatinho esfregava o nariz pela soleira da porta numa tentativa de encontrar comida. Movimentava-se em círculos, coxeando. Será que está com paralisia? perguntava-se ela. Logo percebeu que ele estava morrendo de fome. Pouco distante do gatinho, uma visão horrível — o corpo estraçalhado e decapitado da mãe gata. A cabeça jazia a alguns centímetros de distância do corpo.
Não muito afastados da mãe, havia três gatinhos amontoados. No começo Sybil não o notara, mas o fato é que esses três gatinhos estavam mais próximos de morrer de fome do que o primeiro.
Vou levá-los para casa, pensou Sybil, saindo correndo do armazém para a rua. Pode ser que Capri acabe gostando deles, e assim seremos uma família feliz.
Mas Sybil sabia que antes de apanhar os gatinhos teria que dar um fim no corpo da gata. Apanhou primeiro a cabeça e depois o corpo e jogou ambas as partes no rio que corria ao lado do armazém. Mas as partes caíram perto da margem, onde a água era rasa, e Sybil ficou chateada consigo mesma porque não arremessara com mais força as partes desmembradas do animal morto, pois era claro que acabariam sendo empurradas de volta para a terra.
Deixando de lado esses temores a respeito do corpo da gata morta, Sybil voltou sua atenção para o grupo de três gatinhos. Curvou-se para apanhá-los e ficou subitamente admirada ao verificar que debaixo deles havia outros três gatinhos que antes não tinha visto.
De algum lugar conseguiu um cobertor rosa e branco axadrezado, igual àquele que usava em sua própria cama. Ajeitou o cobertor no fundo de uma caixa, murmurando "pobrezinhos dos meus mimis", e colocou os gatinhos em cima dele. Quando ia saindo em direção à sua casa, acordou.
Atordoada com o sonho, que mostrava um conhecimento inconsciente que ainda não havia atingido o nível consciente, Sybil sentiu-se apavorada e culpada. Para ela o sonho tinha um significado ameaçador.
Para Sybil o trem representava a vida, que se encaminha para um destino mas que é sustada por um trabalho novo (análise), o que significava voltar atrás em seu caminho (reconstituição de acontecimentos da vida na infância) para se tornar uma só. Os vários graus de inanição dos gatinhos simbolizavam os anos durante os quais Sybil tentara viver e trabalhar normalmente, para então descobrir que chegara ao final da linha (novamente o trem) mantendo um mero artifício de normalidade.
Os gatinhos também simbolizavam Sybil. O fato de serem mais do que um era um reconhecimento tácito de que ela possuía várias personalidades. O primeiro gatinho, que procurava sair com dificuldade, representava a própria Sybil. Os outros gatinhos, que foram descobertos em grupos separados, eram as outras personalidades. O primeiro grupo simbolizava o aparecimento inicial, na análise (e na vida) de Vicky e das Peggys, e o segundo grupo, o ulterior aparecimento das outras personalidades, que estavam enterradas mais profundamente.
Uns gatinhos eram mais magros que os outros, como eram também algumas das personalidades. "Algumas, como Vicky, Peggy, Marcia, Vanessa, Mary, Mike e Sid, são ativas", dissera a Dra. Wilbur, "outras, como Sybil Ann, são passivas. Todas elas são fortes, ou fracas, dependendo da emoção que na ocasião há para defender." A Dra. Wilbur era naturalmente a figura anônima do sonho, que sabia como ajeitar as coisas.
A Sybil o ato de salvar os gatinhos não pareceu uma atitude de cuidado pessoal de sua parte, mas, como o trem, representava a análise, que estava procurando salvar tanto a ela como a todos os "gatinhos" em sua "família" ainda misteriosa.
Sybil levantou-se da cama, começou a vestir-se procurando libertar-se da realidade do fato de que ter que se desfazer de sua mãe morta antes de levar os gatinhos sãos e salvos para casa significava uma só e única coisa — isto é, que somente se ela se desfizesse de sua mãe ficaria boa, forte, e realmente uma "família". Família era o eufemismo que Sybil usava para significar tornar-se independente.
Quando Sybil foi para a cozinha tomar café, pôs de lado o sonho, não percebendo que sua explicação deixara de notar o fato de que a "obra nova" que estava impedindo a passagem do trem — ou seja, do livre fluxo da vida —, que ela interpretara como sendo a "análise", no sonho, tinha sido construída pelo pai. Os gatinhos mortos de fome podiam ser interpretados como representantes do definhamento sexual. Os mesmos acontecimentos que tinham desviado Sybil de uma infância normal haviam-na desviado também de uma condição normal de mulher adulta.
Pontos muito importantes, que Sybil não percebeu a respeito do seu sonho, eram suas próprias emoções ao dispor da gata mãe. Com precisão profissional, porém sem nenhuma repugnância, ela arremessou a gata mãe para o rio, e só ficou perturbada quando percebeu que havia o perigo de os despojos voltarem à margem do rio.
Mais tarde, durante a hora em que, naquela manhã, esteve com a Dra. Wilbur, Sybil falou sobre as personalidades que os gatinhos simbolizavam no sonho.
— Quantas e quantas peripécias não tive eu que vencer para poder vir a Nova York — observou Sybil ressentida —, e elas assumiram a direção da análise. Elas se tornaram suas amigas, viajam e fazem amizade com pessoas que eu gostaria de conhecer. E no entanto deixam-me jogada de lado.
Passando por cima das explicações da Dra. Wilbur, Sybil não permitiu que a doutora tomasse a defesa de nenhuma das personalidades, especialmente de Vicky. Quando a doutora fez ver que, pelo despeito que demonstrava pelas outras personalidades, Sybil estava querendo fugir do assunto, e que em termos psicanalíticos esse esquivamento se chamava resistência, Sybil começou a jogar indiretas.
— Vicky está procurando ajudar você — protestou a doutora.
Fazendo então um levantamento da situação financeira atual, Sybil explicou:
— Cheguei a Nova York com cinco mil dólares. Três mil dólares foram gastos com o pagamento da análise e para comprar algumas coisas extras que não consegui comprar com o dinheiro que papai me mandava. Mas dois mil dólares foram gastos para pagar os vidros que Peggy Lou quebrou, dinheiro esse que foi tirado dos cinco mil dólares.
Depois de sair do consultório Sybil foi para a escola. Quando ia saindo do laboratório de química, Henry — que estava sentado perto dela e a quem ela conhecia de outras aulas — acompanhou-a até o elevador.
Entre os dois existia uma certa afinidade. Ambos eram do meio-oeste; ambos gostavam de música e liam muito, eram estudantes de medicina (agora que tinha o diploma de mestrado em arte, Sybil decidira seguir uma carreira que incluísse tanto arte como a psiquiatria infantil). Embora Henry fosse oito anos mais novo do que Sybil, ela possuía um aspecto jovem, parecendo mais nova do que ele.
Henry acompanhou Sybil até a casa dela. Quando iam chegando perto do velho prédio de pedra marrom, ficaram parados em pé, batendo papo. Não querendo deixá-la, Henry deu-lhe os seus apontamentos das aulas que ela perdera enquanto estava em Filadélfia, para que os lesse.
— Se você quiser, vou ajudá-la — disse ele espontaneamente. Ela o convidou a entrar.
Os dois trabalharam, como estudantes, sem a mínima insinuação de sexo. Ele teria gostado de tomar uma cerveja, mas resolveu tomar-chá gelado, que ela lhe trouxe junto com os biscoitos que Teddy dissera que haviam sido feitos por Mary. Sybil gozou duas agradáveis horas de integridade.
Quando Henry estava para sair e ambos estavam na porta entreaberta, a disposição de espírito mudou. Já não mais como um simples colega, ele passou gentilmente sua mão pelo ombro de Sybil e olhou para ela amorosamente:
— Quero marcar um encontro com você para o baile de quarta à noite.
Sybil ficou apavorada. Respondendo que não, encolheu-se para evitar o contato de Henry.
— Você não gosta de mim nem um bocadinho? — perguntou ele.
— Claro que gosto de você — respondeu ela calmamente.
— E então? — perguntou ele.
— Mas eu não quero me encontrar com ninguém — respondeu ela com firmeza.
— Você é muito bonita para ficar sempre sozinha
— protestou ele. — Há muita gente que gosta de você, e não deveria agir dessa maneira. Você é uma excelente companhia. Seria divertido sairmos juntos.
Sybil sacudiu a cabeça e disse um não muito decidido.
— Então que me diz de irmos jantar? — perguntou ele.
— Não — respondeu ela. — Por favor, não me force. Nós nos veremos no laboratório. Eu aprecio a sua amizade, mas, por favor, não me force.
— Mas, por quê? — insistiu ele.
Houve uma terrível pausa, depois do que ele perguntou:
— O que há?
No silêncio que se seguiu Sybil podia sentir as pressões internas, as interferências que as outras exerciam. A pressão estava ali presente, embora não soubesse claramente o que significava. Sybil não sabia que Vicky estava pensando: "Ele é bonitão. Não sei por que não quer encontrar-se com ele", ou então que Peggy Lou estava tinindo de raiva: "Que sujeita. Nunca faz coisíssima alguma que eu gosto de fazer".
— Sybil — disse Henry quando tentou abraçá-la.
— Gosto de você. Já faz muito tempo que sinto uma afeição especial por você. Por que não podemos nos encontrar?
Libertando-se do braço, Sybil pegou na maçaneta da porta, dando a entender a Henry que ela queria que ele fosse embora.
— Tem certeza? — perguntou ele.
— Toda — respondeu Sybil.
Ouviram-se passos no saguão. Henry virou-se para verificar quem era; quando fez isto, ela fechou a porta, passando a chave. A sensação que experimentou quando
o fez lembrava-lhe o momento no seu sonho em que, depois de colocar os gatinhos no cobertor, ela fechara a caixa. No sonho fizera uns buracos na caixa, mas agora, na "caixa" que ela fechara sem remorso ou escrúpulo não penetrava ar.
Ali estava, do outro lado da porta que ela mesma fechara, com seus trinta e cinco anos de idade e solteirona... excluída do grupo dos casados, o terceiro prato em suas mesas. Isolada, sozinha, contando unicamente com Teddy, sentiu-se excluída do mundo. E o carinho e a paciente compreensão de Teddy quanto às estranhas circunstâncias de sua vida doméstica conjunta também constituíam algo profundamente inquietante.
Teddy era testemunha das ocasiões nas quais Sybil se fechava no apartamento ou de quando voltava transformada em outra personalidade. Mais ainda: Teddy estabeleceu relações distintas com cada uma das distintas personalidades de Sybil. O conhecimento dessa situação agravou a insegurança de Sybil e deu à sua solidão uma dimensão nova e pavorosa. O que os outros diziam a Teddy? A privacidade tornava-se impossível desde que vozes desconhecidas alardeavam segredos no próprio apartamento.
Henry. Companhia masculina. Talvez o pai da criança que Sybil queria tão desesperadamente, mas que provavelmente não teria. Toda vez que um homem entrava em sua vida, ela queria mais seus filhos do que o próprio homem. E o desejo por Henry, embora enterrado profundamente, estava ali, à tona.
O baile? Ela não podia ir ao baile, porque sua religião não o permitia. Ela não teria ido, mesmo que o fator religião não se interpusesse em seu caminho.
E por que não aceitar o jantar? É que uma coisa levaria a outra. Se se permitisse assumir algum compromisso com Henry, ele acabaria por conhecê-la muito bem e saberia tudo a seu respeito. Nesse caso, não iria querer mais nada com ela. Sabia muito bem que devia precaver-se contra essa eventualidade. Não devia ter nenhuma aproximação especial, com homem algum, enquanto não ficasse completamente boa. Boa? Encolheu os ombros. Será que iria ficar boa, algum dia?
O relógio da cômoda estava batendo oito horas. Teddy só voltaria dentro de duas horas. Sybil saiu. Quando ia andando, os edifícios da cidade pareciam espichar-se indefinidamente rumo ao leste. Ela continuou andando em direção oeste.
A vida havia parado quando ela mudara de direção. Tinha ainda todo um mundo para forjar. Por enquanto a análise estava fazendo com que ela retroagisse, e não avançasse. A ambição de tornar-se médica tinha sido firmemente frustrada pelos esquecimentos que a acometiam nas aulas de ciências, e essa ambição constantemente se afastava. Não suportava tentar e fracassar.
. Agüentava até com muita dificuldade o simples fato de estar acordada. Quando estava atuando por si só, independente, ela sabia que uma das outras poderia assumir a direção dos atos. Mesmo quando não havia uma usurpação de direção dos atos da vida, sempre existia aquela eterna pressão interna, aquela interferência das outras. Sentia-se sozinha, inútil, fútil. Convencida de que nunca iria ficar boa, Sybil se entregava a auto-recriminações e queixas.
Certa de que a sua vida havia parado enquanto seguia um caminho que lhe revelava somente angústia, Sybil tinha a sensação de que, na realidade, havia chegado ao final da linha. E desta maneira não queria viver.
Chegou ao rio Hudson, de águas profundas e verde-castanhas. Viu sua imagem refletida na água, afundando. A morte traria o descanso.
Aproximou-se mais do rio, mas antes que pudesse realmente atingir a margem virou-se, sentindo seu corpo impelido pela vontade de outrem. Controlado por Vicky, o corpo procurou e encontrou uma cabina telefônica num dos conjuntos residenciais de Riverside Drive. Vicky discou e disse numa voz firme e clara:
— Dra. Wilbur, Sybil queria se jogar no rio Hudson, mas eu não deixei.
REINTEGRAÇÃO
COMEÇANDO A LEMBRAR
No começo, Sybil duvidou que o uso de medicamentos conseguisse alguma mudança decisiva. Por fim concordou com o tratamento à base de Pentotal, pois confiava na Dra. Wilbur. Efetivamente, as poucas aplicações de choques elétricos, que ela pedira para dar-lhe uma sensação de maior segurança após a tentativa de suicídio, não tinham produzido nenhuma diferença sensível em sua maneira de sentir.
A própria doutora havia sugerido o Pentotal com certa relutância porque acreditava que o melhor tratamento no caso de Sybil era a psicanálise pura. Mas as ameaças de suicídio, e a sua quase concretização, faziam necessário eliminar de algum modo, e rapidamente, a intensa ansiedade e depressão. Pela sua longa experiência, a Dra. Wilbur sabia que a ab-reação — a liberação ou descarga emocional resultante da volta à consciência de uma experiência dolorosa que fora reprimida porque era intolerável ao consciente — era um mecanismo muito útil e que se podia ativar com Pentotal. Descarregando e insensibilizando as emoções dolorosas, o Pentotal costumava levar a uma auto-compreensão mais profunda.
A primeira aplicação de Pentotal, feita na veia, diminuiu apreciavelmente a angústia de Sybil. Nas consultas seguintes, cinqüenta e seis e às vezes setenta horas após a ministração do Pentotal, Sybil experimentou uma sensação de liberdade que antes nunca sentira. Sendo um barbitúrico de efeito anestésico e hipnótico, o Pentotal tinha conferido uma sensação de bem-estar, experiência que antes Sybil nunca tivera. Nos dias da aplicação, Sybil se sentia eufórica. O Pentotal trazia à tona o ódio debilitante e profundamente enterrado que ela sentia por sua mãe. Embora Sybil ainda não pudesse aceitar esse ódio, o fato de que já não estivesse mais sepultado preparava o caminho para a posterior aceitação.
A liberdade que Sybil conhecia por meio do Pentotal era experimentada também pelas outras personalidades. Vicky era um verdadeiro registro de todas as memórias, tanto da própria como das de todas as outras personalidades, inclusive de Sybil. As outras catorze personalidades tinham suas próprias memórias, bem como algumas das lembranças das outras personalidades alternantes, e Sybil, também.
Somente Sybil não possuía nenhuma das memórias das outras. Porém, visto que o Pentotal desencadeava alguns fragmentos do passado, as memórias relativas às outras e as memórias de fatos que a própria Sybil tinha vivido, mas que havia esquecido, começaram a tornar-se conscientes.
A memória não foi uma coisa que simplesmente chegasse. Depois do tratamento com Pentotal, a Dra. Wilbur colocou Sybil frente às lembranças profundas que haviam regressado durante o "sono" do Pentotal e que se desvaneciam ao despertar.
— Oh, eu tinha esquecido tudo aquilo — observava Sybil quando, ao acordar, percebia que sua memória estava mais completa. Então, depois de se lembrar do acontecimento por muito tempo, ela o esquecia de novo. A doutora tentava então novamente, até que, gradualmente, aquilo que tinha sido lembrado sob o efeito do Pentotal começasse, também, a ser lembrado durante a sua vida normal.
Dando-se conta do novo estado de coisas, Sybil tinha a sensação de haver, estivesse onde estivesse, uma passarela em expansão que ia para além do doloroso presente e mesmo do mais aterrador passado. As passarelas estavam orientadas para a terra prometida, tanto no sentido de libertar-se dos outros, quanto no de se converter numa coisa só com eles. Nem Sybil nem a Dra. Wilbur sabiam qual destas duas formas a cura adotaria.
Pela primeira vez Sybil começou também a experimentar as emoções que eram atribuíveis a cada uma das personalidades. Começando a compreender também o que desencadeava a dissociação, a paciente sabia agora, não só intelectualmente, mas também emocionalmente, que "quando estou zangada, não posso existir". Como se sabe, a raiva era da esfera de atuação de Peggy Lou.
A impressão que a própria Sybil tinha era de que aos poucos desaparecia o conflito que a levara ao rio Hudson... e depois a afastara dele. Mais preocupada agora com o "quem sou eu?", informou à doutora: "O Pentotal me faz sentir que sou eu mesma". No entanto, embora diminuído, o conflito não havia desaparecido. No momento o barbitúrico dava uma sensação de liberdade e, simultaneamente, os sentimentos de irrealidade que a haviam perseguido quase desde o início de sua vida iam sendo gradualmente substituídos por uma sensação de solidez. Sempre muito afastada de seus sentimentos, antes, agora estava aproximando-se deles.
Fazendo-se à vela com a velocidade de uma escuna num temporal, Sybil passou a encarar as aplicações semanais de Pentotal como ventos propícios. Também o fato de a Dra. Wilbur ir aplicar o Pentotal no apartamento de Sybil contribuiu como mais um fator de alívio. Sentindo-se com mais vida, mais interessada, Sybil redecorou o apartamento, tornando-o mais atraente para as visitas da médica. Havia a sensação da picada na veia, e a impossibilidade ocasional de encontrar outra veia (depois de meses de tratamento e de muitas veias terem sido furadas), mas ela aceitou o problema do não raro inchamento da parte injetada da anatomia, como também o sentimento de calafrio que a percorria e os soluços ("Até parece que estou bêbada", dizia Vicky. "Aqui estou, recebendo tratamento quando não estou -doente"). Todos esses desconfortos estavam ali. Mas nada disso interessava à luz do novo e esplêndido dia que o Pentotal trouxera.
Nirvana? Não. A euforia era muitas vezes desfeita, às vezes destruída, pelas memórias despertadas de horrores da infância, que Sybil havia sepultado com tanto cuidado.
— Sua mãe a enganou, e isso é quase como se você tivesse resolvido tapear-se a si mesma — dizia a Dra. Wilbur. — Mas você está começando a desfazer-se de sua mãe. — Sybil já havia começado a agir dessa maneira no sonho que tivera sobre a gata mãe, mas estava apavorada com o desejo exagerado.
— Estou ajudando você a crescer — continuava a doutora. — Já está melhorando e vai poder fazer uso de todos os seus talentos. — O encantamento, os exorcismos de Hattie Dorsett ainda eram fortes. — Sua mãe lhe ensinou a não confiar em si mesma. Vou ajudá-la a ganhar essa confiança. Os números virão em seguida. A música também. Você vai fazer muitas coisas direito.
— Tenho tanto frio, mas tanto — dizia Sybil, batendo os dentes.
Reintegração? Longe disso. Quando o passado refluía, havia sobejas razões para retroceder em direção às outras personalidades que se constituíam nas defesas contra o passado. Apesar disso, no vale da dissociação surgiam também os primeiros lampejos de fusão.
Houve um vislumbre numa sexta-feira à noite, em plena primavera. Sentada na cama, depois de ter sido despertada de um tranqüilo sono de três horas, que se seguiu à ingestão de Pentotal sódico, Sybil pensava no dia anterior, grande parte do qual estava completamente obscura para ela. De repente, acreditou entrever uma ação nessa obscuridade.
Seria uma recordação? Não sabia. Se fosse, tratava-se de algum tipo diferente de memória; pois estava lembrando-se não do que fizera como Sybil, mas sim do que — e aquilo era o mais espantoso da lembrança —, do que ela fizera como Mary e como Sybil Ann. Sybil se dava conta perfeitamente da existência de duas pessoas, cada uma das quais sabendo o que a outra dizia ou fazia. Juntas, as duas pessoas foram ao supermercado, compraram alguns alimentos e conversaram sobre, os preços de suas compras.
O aspecto talvez mais extraordinário da lembrança residia no fato de que Sybil se recordava de em determinado momento ter sido Mary, e de, no seguinte, já ser Sybil Ann; e mais, que quando ela era a Sybil verdadeira, a outra estava ao lado, em pessoa, e ela podia lhe falar, externar opiniões, e até aconselhar-se.
Sybil podia ver a si mesma se transformando em Sybil Ann. Na qualidade de Sybil Ann, voltou ao apartamento e, de repente, ficou obcecada pela idéia de querer sair para fazer uma viagem. De qualquer maneira, essa viagem não se concretizou, mas, enquanto estava se arrumando, com os olhos de Sybil Ann olhou para uma bolsa que estava em cima do armário, julgando que iria levá-la junto e mandá-la de volta logo que chegasse a algum lugar. Observando que o nome na carteira de identidade era Sybil I. Dorsett, Sybil, na pessoa de Sybil Ann, pensou: "Esta deve ser a dona". A memória de ser Sybil Ann era tão distinta que chegara a confundir-se sobre quem seria Sybil.
Este relance no tempo presente foi seguido, algumas semanas depois, por uma percepção do passado ainda mais desconcertante e rápida. Na hora do café Teddy disse:
— Gostaria de saber do que é que Peggy Lou estava falando quando disse que letras formam palavras, palavras formam orações e orações formam períodos.
— E você vem perguntar a mim o que Peggy Lou queria dizer com isso? — respondeu Sybil. — A mim? Eu devia ser a última a ser consultada. Você sabe muito bem o que Peggy Lou e eu sentimos uma pela outra.
— Peggy Lou também falou alguma coisa sobre pequenas caixas cinzentas colocadas em fila, das quais era obrigada a tomar conta, e que tinha que sair — continuou Teddy. — Há vários anos venho ouvindo falar destas letras, palavras e caixas.
Sybil respondeu, pensativa:
— Não tenho a mínima idéia. — Mas, quando falou, olhou para o alto na parede vermelha sem nada, que ficava justamente em cima e, embora ciente de que ela mesma era Sybil, ao mesmo tempo se sentiu como se fosse uma garotinha. Não era questão de ser parecida com uma criança, e sim ser realmente uma criança. Em seguida, Sybil percebeu que estava falando o seguinte:
— Quando eu era uma criancinha não permitiam que eu ouvisse contos de fadas ou outras histórias que não fossem verdadeiras. E nem me permitiam que inventasse histórias. Mas eu gostava de escrever, especialmente contos sobre animais e poesias. Quando papai e mamãe me obrigaram a prometer que não faria mais, achei um jeito de "escrever" sem estar escrevendo. Cortava palavras e escolhia letras nas manchetes dos jornais, e colocava as letras em caixinhas cinzentas que levava para a escola. Então colava as palavras em folhas de cartolina, de modo que as letras formavam palavras e as palavras formavam períodos, e assim é que eu escrevia sem estar escrevendo. Entendeu?
Admirada, Teddy lembrava à sua companheira de quarto:
— Como é que você acabou de dizer que não tinha a mínima lembrança?
— Eu não tinha — respondeu Sybil calmamente —, mas, depois, me lembrei. Eu inventei aquela técnica quando estava na terceira e quarta séries, depois que minha avó morreu.
Na terceira e quarta séries, depois que minha avó morreu? A calma desapareceu quando Sybil se apercebeu do que tinha dito.
Da névoa que se estendia espessa sobre os dois anos perdidos de Sybil (entre os nove e os onze anos de idade), as lembranças de Peggy Lou estavam saindo para transformar-se em lembranças de Sybil. Respondendo à recordação de Peggy Lou como se fosse sua própria, a personalidade primária que se chamava Sybil fora capaz de recordar um incidente da infância da personalidade alternante. De repente, Sybil se deu conta de que naquele momento não só se sentia como Peggy Lou, mas também era uma coisa só com ela. O Pentotal abrira a linha de comunicação não utilizada que existia entre Sybil e uma de suas outras personalidades, para restaurar um fragmento dos anos perdidos. Sybil, que jamais tivera dez ou onze anos, convertera-se, mediante um rápido retrocesso ao passado, numa menina dessa idade. O que começara como uma conversa casual durante o desjejum transformara-se numa pedra miliar no caminho da restauração da Sybil original.
Com seu novo sentimento de unicidade com Peggy Lou chegou também uma atitude totalmente nova, tanto para com Peggy Lou quanto para com as outras personalidades. Sybil estava começando a ser mais capaz de distinguir o que fazia, como ela dizia, sendo "outra pessoa", do que fazia "sendo ela mesma". A Sybil que, segundo a descrição de Vicky, estava afastada agora se havia aproximado.
Ciente, agora, das outras, através dos olhos da Dra. Wilbur, de Teddy e, também, por sua própria experiência, Sybil ficava imaginando com humor por que com todo esse bando de "garotas e garotos" o véu de solidão que lhe descia na cabeça não tinha ainda sido removido.
— Vamos dar uma festa para nós mesmas — cochichou Mary nos refólios do ser. Sybil achou graça.
No Natal de 1958 Sybil tinha concordado em incluir as outras personalidades nos cartões de boas-festas para a Dra. Wilbur. Uma série de cartões, colados um no outro, como as dobras de um acordeão, desenhados somente por Sybil, dizia:
À nossa Dra. Wilbur:
Múltiplas Boas Festas — Sybil
Com Amor — Vicky
Boas Férias — Vanessa Gail
Feliz Natal — Mary
Bom Papai Noel — Marcia e Mike
Bons Augúrios — Sybil Ann
Boas Entradas de Ano Novo — Peggy
A Dra. Wilbur sabia que a bola de Natal ao lado do Boas Entradas de Ano Novo de Peggy se referia ao vidro quebrado; sabia também que Sybil tinha deixado de enviar felicitações de Clara, Nancy, Marjorie, Ruthie, Helen, Sid, e que Peggy Lou e Peggy Ann eram representadas pela única Peggy. Não desconhecia também que o fato de Sybil sair de sua persistente negação das outras para se unir ao espírito da mensagem natalícia se enquadrava em um ponto decisivo da análise.
Infelizmente, para Sybil o Pentotal se transformou numa coisa "mágica", e a Dra. Wilbur passou a ser a "fada" que podia proporcionar satisfação. A dependência que Sybil foi criando com relação à doutora durante as aplicações de Pentotal fez com que Sybil se sentisse amada e ao mesmo tempo importante. Ao exigir Pentotal, Sybil agia também como se pudesse controlar a doutora e, controlando a doutora, ter também sob seu controle Hattie Dorsett. A salvo e abrigada nessa dupla dependência, Sybil revivia os dias de repouso que conhecera nos seios de sua mãe antes de ser desmamada e de ter que se haver com a chupeta que havia substituído o bico do seio quente da mãe. Eufórica em todos esses aspectos Sybil passou a encarar o Pentotal como meio de arrebatamento e de salvação.
No entanto a Dra. Wilbur estava ficando cada vez mais preocupada com a administração de Pentotal a Sybil.
A doutora não gostava do fato de ter que usar agulha, não gostava do fato de Sybil estar se tornando dependente do medicamento e não via com bons olhos que Sybil usasse o Pentotal para contornar problemas. Estava claro para a doutora, embora certamente não para Sybil, que a mera medicação não conseguiria alterar os problemas ou conflitos psíquicos que jaziam na base de tudo. Embora o Pentotal, por seus efeitos, revelasse seu valor em descobrir memórias sepultadas e tempo perdido, em aproximar Sybil das outras personalidades e assim suavizar o seu esgotamento, contudo não abria nenhuma brecha nos traumas básicos, essas distorções profundas criadas principalmente por Hattie Dorsett e perpetuadas através das próprias manobras defensivas de Sybil. No entanto, era justamente da solução desses traumas que dependiam a recuperação final, a cura e a reintegração.
O que mais inquietava a doutora era que o Pentotal, proporcionando a Sybil a liberdade de se sentir bem, ameaçava também subjugá-la à escravidão do hábito. Percebendo que os ganhos não compensavam os riscos, a Dra. Wilbur decidiu suspender o tratamento à base de Pentotal.
Conseqüentemente, o primeiro fim de semana do começo de março de 1959 foi ruim não só para Sybil, mas para "todas as demais", conforme ela chamava as outras personalidades. Foi a semana do desmame do Pentotal.
— Que mal fiz eu para que a Dra. Wilbur me tirasse o Pentotal? — murmurou Sybil a Teddy Reeves. — Que fiz eu para que a doutora me excluísse?
— A doutora vai voltar — continuavam as Peggys a dizer. — Estamos certas de que ela virá.
Sacudindo a cabeça seriamente, Marcia dizia:
— Não, a doutora não vem e nunca mais virá. Nancy dizia:
— Quem sabe se vem? Bem que deveria vir.
— Não — observou Vicky. — A doutora não vai voltar. Ela não vai dar o braço a torcer e continuar com o Pentotal. A decisão de parar com aquele remédio foi para o nosso próprio bem. Ela disse que nós estávamos ficando psicologicamente viciadas com ele. Eu tenho confiança nela.
Ao ouvirem alguém subindo as escadas ou andando
no saguão, sentindo um tremor de excitamento, Marcia e Vanessa, Mike e Sid, Nancy, Sybil Ann, Mary e as Peggys pensavam que fosse a Dra. Wilbur. Mas quando os passos se afastavam, morria a esperança.
Durante todo o fim de semana as Peggys estiveram impossíveis. Mary chorava; Nancy, Vanessa e Marcia faziam um escarcéu de enlouquecer. Sentindo o seu desespero aumentado pelo das outras, Sybil disse a Teddy:
— Estou costurando o último pano da cortina para aquela parede, mas não vou fazer mais droga nenhuma. A Dra. Wilbur não vai mais voltar. Para quê, então?
E Vicky comentou com Teddy:
— Você na realidade não pode censurá-las. O fim do Pentotal é a perda maior que elas tiveram desde a morte da avó.
Na segunda-feira, no consultório da doutora, Sybil pediu:
— Por favor, dê-me Pentotal na quarta-feira à noite, « antes das provas finais de química da quinta-feira. Assim estarei na melhor disposição possível para fazer as provas.
— Não, Sybil. Não — disse a doutora.
— Mas o Pentotal era a única coisa com que eu podia contar — suplicou Sybil.
— Você tem uma tempera mais rija. Vamos encontrar outros meios mais fortes e mais seguros.
— Mas eu não agüento sem Pentotal.
— Sybil, o que você está me dizendo é que existem algumas coisas que sente mas não pode vencer como Sybil. Por exemplo, a que está sentindo neste momento. Mas sabe muito bem que não precisa continuar assim, não é?
— Não sei. A senhora quer que eu me dissocie — respondeu amargamente Sybil.
— Sybil — respondeu a doutora —, dou graças a Deus porque você não bebe. Do contrário, se tornaria uma alcoólatra. A relação entre garrafas e seios é muito real. O Pentotal lhe trouxe o repouso dos seios de sua mãe, exatamente como o álcool age com relação ao alcoólatra. E não resta dúvida de que você tem uma inclinação psicológica poderosa para o Pentotal. Os progressos obtidos não foram suficientemente grandes que justificassem o risco.
Rejeitada novamente, recém-privada da doce dependência que o Pentotal lhe proporcionava, Sybil se sentia desesperançada. A resistência que ela havia criado contra a perspectiva de ter que enfrentar os problemas fundamentais havia sido solapada, e ela estava apavorada diante do fato de que, agora, provavelmente se aproximaria das raízes verdadeiras de sua doença.
Com esta constatação emergiu, também, a raiva sufocante que Sybil costumava sentir quando Hattie Dorsett a castigava sem motivo. De acordo com o modo de pensar de Sybil, a doutora era tão onipotente como Hattie — e justamente tão imprestável como ela. Como se dera no passado, agora também Sybil acreditava que o castigo fora irracional, cruel e completamente sem fundamento.
Ao deixar o consultório da doutora, Sybil foi andando por uma calçada que se contorcia loucamente. Quando chegou a casa tomou um Seconal e foi dormir. Ao acordar, enfiou o rosto no travesseiro, incapaz de enfrentar o novo dia.
Por que deveria enfrentar tudo isto? pensava ela. A troco de que lutava tão arduamente, e sozinha? Não havia nenhuma saída. E disto Sybil tinha certeza.
FUTUROS INDEPENDENTES
Durante o mês de maio de 1959, várias das personalidades fizeram tentativas individuais no sentido de conseguir garantir um futuro independente. Ao mesmo tempo, Sybil, reagindo a essas tentativas, especulava sobre se ia para a frente, se para trás ou se, na realidade, estaria sequer se movendo em alguma direção.
Naquela manhã de maio os raios do sol penetravam intensamente no apartamento quando Mary acordou, dirigiu-se a passos largos para a parede divisória de antigamente e, com uma vaga lembrança, constatou que, recentemente, havia feito algo que a tornara desnecessária.
De repente, como se fossem imagens numa tela, as respectivas cenas passaram diante dos seus olhos. Dan Stewart, representante de uma companhia imobiliária, estava perguntando a ela, na varanda da frente duma casa de rancho em Crompond, Nova York:
— Quantos são, em sua família?
— Sou sozinha — foi a resposta dela.
— Espaço mais que suficiente — disse ele, rindo gostosamente. — E muitos cômodos para companhia. A senhora pode promover grandes reuniões de fim de semana.
Pagando o que ele chamara de "dinheiro em caixa", ela assinara um cheque de quinhentos dólares como pagamento de entrada para aquela casa, avaliada em vinte e dois mil dólares.
Estava quase assinando Mary Lucinda Saunders Dorsett, mas depois se lembrou de que a conta não estava aberta em seu nome, e sim no de Sybil.
— Sybil I. Dorsett? — observou o representante, examinando o cheque. — A senhorita tem algum parentesco com os Dorsett de Glens Falls?
— Não, sou do meio-oeste.
— A assinatura do contrato — dissera-lhe ele — será dentro de umas duas semanas. Eu lhe telefono.
Já pronta e vestida, Mary dirigiu-se para a cozinha a fim de tomar café e disse a Teddy:
— Vou arrumar a minha trouxa e dar o fora, assim não incomodarei mais.
— Eu não quero que você vá embora — disse Teddy quando ia se encaminhando para a ponta da mesa onde Mary estava, colocando uma mão no ombro dela, como que tranqüilizando-a. — Quero que fique justamente onde está. O seu lugar é aqui.
— Quando eu era criança — respondeu Mary tristemente —, sempre quis um quarto que fosse meu. — Fez uma breve pausa e acrescentou: — Mas só o consegui quando tinha nove anos de idade. Sempre quis uma certa privacidade, mas nunca a tive. Às vezes costumava pensar que mais dia menos dia acabariam me jogando para fora de casa.
Teddy saiu para o trabalho, mas antes deixou um lembrete tranqüilizador dizendo que o apartamento de Morningside era o lugar a que Mary Lucinda Saunders Dorsett pertencia.
Uma vez sozinha Mary acendeu a lareira. Em seguida encolheu-se perto da lareira com Capri ao lado e começou a costurar cortinados violeta-marrons para o quarto de dormir na casa do rancho, que em breve seria sua.
Dois dias depois Sybil, em pé ao lado de sua caixa postal, colocou em sua bolsa uma carta fechada que recebera de seu pai, e notou com grande contentamento uma carta dirigida pelo Book-of-the-Month Club a Marcia Dorsett, abrindo em seguida um envelope que o banco lhe enviara. Sua conta estava a descoberto. O cheque de quarenta e sete dólares que enviara à Hartley's Pharmacy na noite anterior fora devolvido.
Sybil foi folheando o canhoto dos cheques cancelados. Um cheque de quinhentos dólares? Mas ela não havia assinado nenhum cheque daquela importância. Evans Real Estate? Nunca ouvira falar nessa imobiliária. Num estágio menos sofisticado de sua multiplicidade ela encararia um cheque que não havia assinado como um mistério, mas agora verificou que uma das outras tinha assinado o cheque. Quem teria sido? Na realidade pouco interessava quem o tinha assinado. Em termos de dólares e centavos todos eles estava assinados por Sybil I. Dorsett.
Quando Sybil recebeu um telefonema de um certo Dan Stewart, informando-lhe que as formalidades de conclusão do negócio de "sua" casa estavam para ser ultimadas, ela entrou em pânico. No começo de nada valeram as ponderações da Dra. Wilbur, que continuava dizendo:
— Quando você estiver boa estas coisas não vão mais acontecer. — A doutora, finalmente, contratou os serviços de um advogado, que, alegando incapacidade mental, salvou Sybil do compromisso assumido por Mary. A Dra. Wilbur, que via a casa de Mary em grande parte como uma fuga à cena primai, encarou o fato como produto do mesmo cérebro que levou os garotos a construir a parede divisória e induziu Peggy Lou, em repetidas fugas, a procurar novos lugares.
Curiosa a respeito do papel das outras, que, ao contrário de Sybil, tinham tomado conhecimento da compra, a Dra. Wilbur discutiu o assunto da casa de Mary com duas dignas representantes: Vicky e Peggy Lou. Vicky disse:
— Mary estava tão louca por aquela casa que lhe permiti ultimar os entendimentos que haviam sido iniciados. Sabia perfeitamente que, no final, ela não conseguiria ter a casa. Mas que mal havia em deixar que seu sonho se concretizasse, nem que fosse por uns instantes? Certamente o que ela fez não era pior do que apanhar um vestido numa loja, vesti-lo e depois devolvê-lo. Quantas mulheres não fazem isso? E isso é desonesto. O que Mary fez não era desonestidade.
E Peggy Lou explicou:
— Eu estava presente quando deixei que Mary comprasse aquela casa; deixei que ela externasse seus sentimentos porque muita gente tem sido cruel com ela. Não houve prejuízo nenhum para Stewart em deixar que Mary comprasse aquela casa.
À pergunta prática da Dra. Wilbur: — E quem é que vai pagar esta casa? — Peggy Lou respondeu categoricamente: — Sybil. Ela tem a obrigação de trabalhar e tomar conta de nós.
A própria Sybil tinha desejado tremendamente a casa que Mary tinha comprado, mas ela mesma se recusara a fazer o negócio. O desejo de Mary era o seu desejo; a ação de Mary era a voz desinibida duma Sybil inconsciente.
As outras tinham o poder de forjar realidades a partir dos sonhos, coisa que Sybil não possuía. A casa perdida tinha muitas finalidades, muitos obstáculos que impediam a lembrança de coisas passadas e do futuro.
Peggy Lou estava olhando de perto quando Sybil, sentada em sua mesa no apartamento de Morningside Drive, escrevia:
20 de julho de 1959. Querida Carol. Muito desejaria poder aceitar o seu convite para passar algumas semanas em sua casa de Denver. Como gostaria de estar com você e Carl, revivendo velhos tempos! Os verões de Nova York são mormacentos e sinto necessidade de sair. Cheguei até a consultar horários de vôos em companhias de aviação. Mas, Carol, finalmente decidi que este verão não posso viajar. Existem razões que me prendem em Nova York. Perdoe-me. Esperemos que outra oportunidade chegue.
Mais tarde, naquela mesma manhã, a carta não saía da mente de Peggy Lou quando ela se embarafustou pelas ruas, tentando vencer suas emoções.
Peggy Lou estava certa de que iria a Denver, quando Sybil tinha telefonado para a companhia de aviação e dissera à Dra. Wilbur:
— Todas nós estamos radiantes de alegria. — Mas, agora, Sybil entornara o caldo. Não é bonito. Não é bonito, continuava Peggy Lou dizendo quando ia apressando o passo para acompanhar o andamento de sua fúria que aumentava.
Havia também um sentimento de traição. Quando estava esperando que o sinal da rua abrisse, Peggy Lou repentinamente percebeu que havia chegado ao final da linha e que não poderia, ou no mínimo não gostaria de continuar a viagem com Sybil. Elas tinham destinos diferentes e diferentes estilos de vida. Sybil não tem as mesmas idéias que eu, protestou Peggy Lou. Ela acha que minhas idéias são erradas. E ela é a pessoa que toma conta de tudo. Tenho que lhe dar crédito, porque existem épocas em que ela faz o que eu quero que ela faça. Mas isto agora se acabou. Nunca mais poderei confiar em Sybil.
Ademais, de acordo com o ponto de vista de Peggy Lou, a traição era uma falha da parte de Sybil em fazer aquilo que Peggy Lou desejava, e também uma violação de um entendimento — um contrato entre as personalidades negociado pela Dra. Wilbur. A doutora conseguira que Peggy Lou não saísse mais para viagens aonde ela bem entendesse, contanto que Sybil se comprometesse a levar Peggy Lou a lugares novos.
Além disso, tal como Peggy Lou via, sua traição era ao mesmo tempo um fracasso por parte de Sybil no sentido de fazer o que Peggy Lou desejava, e a violação de um acordo: um contrato entre as personalidades, negociado pela Dra. Wilbur. A doutora fizera com que Peggy Lou aceitasse não viajar por sua conta, desde que Sybil prometesse levá-la a passear.
Bem, pensou Peggy Lou, acelerando o passo, Sybil não cumpriu sua parte do trato, mas eu sim. Não fui a nenhuma parte fora da cidade, desde o caso de Filadélfia. Peggy Lou tomou a transcendental decisão de mudar de status... de libertar-se para deixar de ser uma personalidade estranha.
O Grande Projeto em que há tempo vinha meditando, mas que até agora não chegara à sua eclosão, era romper completamente com Sybil e as outras personalidades. Peggy Lou resolveu que assumiria o comando do corpo e o levaria para um lugar distante, de onde nunca regressaria.
No passado Peggy Lou teve que ficar zangada para poder atuar. Quando a raiva se extinguia, Sybil sempre retornava. Anteriormente Peggy Lou nunca se negara a devolver o corpo a Sybil. Mas, no futuro, as coisas seriam diferentes. Jamais o corpo iria pertencer a alguma outra a não ser Peggy Lou.
Sabia muito bem quais as conseqüências desta sua atitude. Sua existência possibilitara a sobrevivência de Sybil. Muitas foram as vezes em que Sybil, espumando de raiva, pensara definitivamente que para ela só restavam sofrimentos, e que não teria nunca a chance de realizar coisa alguma sem a interferência das suas personalidades. Quando nesses momentos se perguntava: "De que adianta?", Sybil estava beirando o suicídio. Mas, tomando a si a raiva, Peggy Lou tinha praticamente permitido que Sybil vivesse.
Mas agora que ela ia ser a única ocupante do corpo, agora que seria uma personalidade absoluta, cuja existência não dependeria mais somente de raiva, as coisas iriam tomar outro rumo. Sybil não conseguiria sobreviver.
Embalada pela perspectiva de supremacia e pelo doce sentimento de vingança contra Sybil, Peggy Lou constatou que havia ainda uns aspectos de ordem prática que precisavam ser considerados antes que se engajasse neste novo estilo de vida só dela. Tudo deveria ser cuidadosamente planejado a fim de não ser surpreendida pela polícia ou por outros, que se poriam à procura de uma pessoa desaparecida.
Passaria a mão nos duzentos dólares que Sybil guardava numa caixa, no apartamento, e daria o fora de Nova York imediatamente. Aqueles que lhe fossem ao encalço procurariam pela pessoa física chamada Sybil Dorsett, uma professorinha que vestia com sobriedade. Por isso Peggy Lou procuraria um emprego que nada tivesse a ver com ensinar e se embonecaria com as roupas mais vistosas que o dinheiro permitisse comprar. Os perseguidores procurariam por Sybil Dorsett no norte ou talvez no meio-oeste. E por isso Peggy Lou planejou dirigir-se para o sul.
Ao entrar na East 74th Street, de repente lembrou-se de que, antes que estes pensamentos lhe viessem à cabeça, estava a caminho de uma consulta com a Dra. Wilbur. Então Peggy Lou resolveu comparecer à consulta, pois queria ver a doutora pela última vez.
Quando ia se aproximando do consultório da doutora, Peggy Lou começou a coordenar as idéias e foi repassando pela cabeça o que iria dizer. O ponto capital seria dizer: Sou eu quem permite que Sybil viva, e ela nada faz por mim. No entanto, o pensamento de ter que se despedir da doutora deixou Peggy Lou triste.
Ao aproximar-se do edifício em que, durante cinco anos, pudera falar livremente e reivindicar os seus direitos, seus pensamentos se voltaram para um dia de neve do inverno anterior quando, para se livrar da neve assustadora, fora à Grand Central Station comprar uma passagem para algum lugar quente. Não fazia muito tempo que estava na estação quando lhe surgiu ao lado a Dra. Wilbur.
Peggy Lou não sabia que Sybil, "aparecendo" por uns instantes na estação, havia telefonado para Teddy, e esta para a Dra. Wilbur, e por isso não conseguia compreender como é que a Dra. Wilbur tinha ido até lá.
— Oh, Dra. Wilbur, de onde é que a senhora vem? — perguntara Peggy Lou ao ver a doutora.
Evitando uma resposta taxativa, a Dra. Wilbur limitara-se a dizer:
— Temos que levar você para casa e enfiá-la numa cama bem quente.
E Peggy Lou, ao invés de sentir-se chateada porque a doutora havia interferido em seus planos, abraçou-a efusivamente, dizendo:
— Oh, Dra. Wilbur, que prazer em vê-la. — Saíram juntas da estação para o ponto de táxi, com Peggy Lou tiritando de frio. Mesmo depois que a doutora agasalhou a fujona com seu casaco de vison, Peggy Lou continuava a tremer, mas não de frio. Era um prazer total estar envolta num casaco de vison. E a Dra. Wilbur prometeu a Peggy Lou que algum dia lhe daria uma manga daquele vison como lembrança sua.
Peggy Lou entrou no consultório da doutora com emoções confusas e embaralhadas. Em seguida, repentinamente desesperançada diante do fluxo de sentimentos poderosos que a sufocavam, Peggy Lou contou à doutora todos os detalhes do Grande Projeto de emancipação.
— Que mal lhe fiz para você me deixar? — perguntou a doutora amavelmente. Em resposta, Peggy Lou se abraçou ainda mais à doutora e disse:
— Oh, Dra. Wilbur. — O gesto e o tom de voz eram idênticos àqueles que transpiraram no dia coberto de neve.
Vanessa estava em frente ao espelho em que Sybil nunca se olhava.
O corpo em que Vanessa vivia era muito esguio para o seu gosto. Um pouco mais de carne, umas curvas mais fornidas, seios mais voluptuosos: eis o que ela desejaria ter. Seus cabelos — aqueles lindos cabelos ruivos-castanho-escuros, flamejando com suas paixões — estavam mais próximos aos desejos do seu coração.
Pobre Sybil, pensava Vanessa. Como gozaria mais a vida se não tivesse que andar apertando o cinto para poder equilibrar as suas finanças. Desde que chegou a Nova York não conseguiu um emprego. O cheque do pai mal dá para cobrir as despesas indispensáveis. Por enquanto, a conta com a Dra. Wilbur está em suspenso. Sybil não tem dinheiro para comprar roupas, apetrechos para seus trabalhos artísticos e para viajar.
Enquanto estava pintando cuidadosamente os lábios com batom, o que Sybil ainda não fazia, Vanessa repentinamente teve uma confusão e agitação mental. Sybil não estava ganhando nada. Peggy Lou e Marcia estavam gastando, sem dar a mínima atenção à advertência de Sybil. Naquele momento Vanessa tomou uma atitude decisiva: ela passaria a ser o arrimo de família.
Lembrando-se dum aviso de Precisa-se de auxiliar colocado numa lavanderia da Amsterdam Avenue, decidiu que o ideal seria ir trabalhar lá, e já nas primeiras horas daquela manhã o emprego era de Vanessa.
As demais ficaram satisfeitas quando descobriram que tinham um emprego. Peggy Lou achou aquilo tudo uma delícia, e os garotos pensaram logo que poderiam ganhar uns trocados dando uma mãozinha no manejo das máquinas. Vicky achou que um emprego seria uma medida não só economicamente sábia, mas serviria também como excelente terapia. Também Sybil concordou em que este era o tipo de emprego que fazia sentido. Mas a quem mais dizia respeito o emprego era a Vanessa, a qual se revezava com as outras na execução das simples tarefas que o serviço exigia.
Quando Sybil recebeu o seu primeiro cheque de pagamento, Vanessa Dorsett visitou uma pequena loja de roupas na Broadway e comprou dois vestidos lindíssimos a preços realmente excepcionais. Por meio da Dra. Wilbur, Vanessa chegou a convencer Sybil a ir a um teatro.
Fosse como fosse, o fato é que a partir de meados de agosto de 1959 até meados de outubro Sybil tinha um emprego que lhe era garantido por Vanessa. Entretanto, quando o emprego interferiu no comparecimento às aulas, que naquela altura chegavam ao seu ponto culminante, Sybil, com a aprovação da Dra. Wilbur, deixou o emprego. De todas as personalidades, Vanessa foi a única que não pôde aceitar sair de um trabalho que lhe dera roupa nova e a oportunidade de limpar sua sensação de culpa e a hipocrisia passada. Para Vanessa, os dois meses na lavanderia haviam representado uma purificação.
Nesse meio tempo Marcia encontrou uma solução melhor que a lavanderia. Ela queria empregar os seus talentos fazendo composições. Eu posso fazer várias coisas, pensava ela quando ia à caixa postal, se ainda ninguém tiver pensado em fazer a mesma coisa.
Enfiou ansiosamente a chave na fechadura. Pleiteando aceitação do público, neste momento havia dois dos seus mais recentes esforços de criação. Um desses trabalhos era uma melodia popular intitulada Um feriado a dois, para a qual ela havia escrito letra e partitura. Encontrando uma cópia da canção numa gaveta, Sybil ficou perplexa. Marcia ouvira Sybil perguntar-se: o que é que vão pensar se eu morrer e encontrarem entre meus pertences esta melodia fútil? Naturalmente, Sybil se tinha mostrado contrária a que se enviasse a música para uma editora musical. Aquilo era bem do tipo de Sybil. Já derrotada antes de começar a luta. Apesar da opinião de Sybil, Marcia havia enviado a canção.
Será que hoje viria alguma resposta? Se encontrasse comprador, ela depois poderia comprar todas as pinturas de que gostasse, e não precisaria mais lançar mão do dinheiro de Sybil.
O artigo enviado à revista (Parents) já tinha sido remetido há três semanas e agora podia haver alguma resposta. O artigo tinha o título: "Uma mãe carinhosa pode ser perigosa". Frases do texto remoíam em sua mente. "Esta mãe era ambivalente. Este tipo de amor constantemente inconsciente é perigoso para a criança confiada. Pode uma mãe carinhosa fazer com que seu filho se torne um neurótico em potencial? Psicólogos e psiquiatras nos dizem 'sim, é possível'."
Não havia nenhuma resposta à canção, e nem ao artigo. Mas havia uma carta enviada pelo clube do livro de Marcia, a qual dizia: "Se você conseguir um amigo para sócio, receberá quatro livros grátis". Marcia resolveu colocar na lista de sócios a sua amiga Sybil I. Dorsett.
Sua amiga se havia oposto a que o nome de Marcia constasse na caixa postal, mas Marcia arrumou uma caixa postal própria informando Sybil, por meio da Dra. Wilbur, que naquela época iria receber mais correspondência do que Sybil. E Marcia tinha razão.
Quando ia subindo as escadas para o seu apartamento, Marcia ruminava amuada a sua situação. Foi ela a única que se pôs em evidência, quando Sybil simultaneamente experimentou uma raiva secreta e sentimentos de repulsa, foi ela a única que tomou a si esses sentimentos que Sybil não podia agüentar. Vicky dissera: "Marcia sente o mesmo que Sybil, só que com maior intensidade". Não é de admirar, pensava Marcia, uma vez que sou tão chegada a ela, que quando ela está dormindo eu não possa nem sequer abrir os olhos. Mas eu quero ser alguém na vida, quero ser uma pessoa conhecida. Se conseguir vender minha canção e meu artigo, insisto em usar o meu nome verdadeiro. A fama e o dinheiro serão meus.
O mesmo acontece com minhas pinturas. Meu estilo é tão individual que meu trabalho não pode ser confundido com os quadros dos outros. E sou mais esperta do que a maioria delas, com exceção, talvez, de Vicky e Vanessa.
Minha existência, pensava Marcia enquanto abria a porta do seu apartamento, é muito precária. Quando Sybil estiver bem e feliz não vai mais precisar de mim ou de nenhuma de nós.
Dentro do apartamento, Marcia podia perceber que Teddy se sentia constrangida com ela. Conforme Marcia constatou, Teddy receava suas depressões e tinha medo de seus ímpetos de suicídio.
Como era seu costume, Marcia encaminhou-se para o seu cavalete e começou a pintar com grande variedade de cores. Depois deixou abruptamente o cavalete, pensando: Tenho tudo e não tenho nada, tenho tanto talento e uma existência tão frágil.
Conforme a Dra. Wilbur tinha observado, Marcia era uma aparente contradição: de um lado, altamente produtiva; por outro lado, também destrutiva. Servindo de fundamento para a animação e criatividade havia uma obscura qualidade relacionada com a tremenda necessidade de uma mãe carinhosa, bem como um desejo igualmente grande de matar retrospectivamente a mãe que tivera. A existência básica de Marcia era oriunda da vontade de que sua mãe morresse, externada há muito tempo, quando Marcia tinha desejado que a caixinha ficasse maior. Mas, dentro de Marcia, o desejo de morte da mãe se alternava com a morte que ela desejava para si mesma. Quando Sybil ficou parada nas margens do rio Hudson, pronta para se jogar dentro dele, Marcia tinha sido a força interior propulsiva.
Quando voltou ao cavalete, Marcia pensava: Quero viver sem aflições, asfixias e choros. Quero me projetar no mundo. Quero levantar-me de manhã e sentir-me bem, e quero deitar-me à noite e adormecer e poder acordar para abrir os meus olhos, esteja Sybil dormindo ou não.
Sentada em sua mesinha, no dia 17 de agosto de 1959, Sybil escreveu a seguinte carta à Dra. Wilbur:
Não vou lhe dizer que não há nada errado. Nós duas sabemos que existe algo errado. Mas não é aquilo que eu levei a senhora a crer. Não tenho nenhuma personalidade múltipla. Não tenho nem sequer um "sósia" para me ajudar a sair das dificuldades. Eu sou todas elas. Tenho sempre me ocultado sob as aparências delas. As dissociações não constituem o problema, porque na realidade elas não existem; mas existe alguma coisa de errado, ou então eu não lançaria mão desse expediente para pretender fazer aquele papel. E a senhora poderia me perguntar a respeito de minha mãe. As últimas coisas que lhe contei a respeito dela não correspondem à verdade. Minha mãe só era um pouco mais do que nervosa. Havia dias em que era volúvel, esperta, superirrequieta, mas me amava. Zelava extremamente por mim e me olhava a todo instante. Eu não era uma pessoa interessante e encantadora como ela. Meus pais eram melhores do que muitos pais que há por aí. Tínhamos uma casa bonita, muitas coisas para comer e roupas lindas. Eu tinha uma enorme quantidade de brinquedos e livros. Meus pais interferiram com minha música e meus desenhos, mas isto se deveu a uma carência de compreensão, e não a uma falta de cuidado. Não tinha motivos para me queixar. Por que razão nasci para ser esquisita como sou, não sei.
Depois de escrever a carta Sybil sumiu durante dois dias. Quando voltou a si, deu com aquilo que havia escrito antes de se dissociar e escreveu à Dra. Wilbur nos seguintes termos:
Ê muito difícil ter que sentir, crer e admitir que não possuo controle consciente sobre minhas personalidades. Ê muito mais ameaçador ter alguma coisa incontrolável do que saber que a qualquer momento posso parar (quase que ia dizendo esta "tolice") sempre que precise. Quando escrevia a carta anterior tinha resolvido que queria mostrar à senhora como eu podia ser muito serena e calma e não precisar pedir à senhora que me ouvisse ou me explicasse alguma coisa, nem tampouco necessitar de ajuda. Dizendo-lhe que tudo isto a respeito das personalidades múltiplas não era realmente verdadeiro, e sim meras suposições, eu podia mostrar, ou assim eu pensava, que hão precisava da senhora. Sim, teria sido mais fácil se a suposição fosse válida. Mas a única artimanha de que me sinto culpada consiste no fato de eu pretender, durante tanto tempo antes de me dirigir à senhora, que nada estava errado. Fazer de conta, por assim dizer, que as personalidades não existiam foi o que fez com que eu "perdesse" cerca de dois dias.
Três semanas depois Sybil reconfirmou a sua crença na existência das outras personalidades numa carta que endereçou a Miss Updyke, a enfermeira do tempo em que freqüentava a escola secundária.
Quando já estava me submetendo a análise há alguns meses, escrevi-lhe que a Dra. Wilbur me havia explicado o assunto referente a personalidades múltiplas e que os "períodos apagados", conforme eu sempre os chamava, não eram apagados totalmente, mas que só minha memória estava apagada. Eu permanecia ativa enquanto outra "pessoa" assumia o controle de tudo e dizia ou fazia as coisas que eu não era capaz de fazer por alguma razão qualquer — não sei se por medo de conseqüências, se por falta de confiança, falta de dinheiro, ou pela simples razão de querer safar-me de problemas e pressões demasiado fortes para que pudesse enfrentá-los pessoalmente, como pessoa "dona de minhas faculdades".
O ponto que estou tentando solucionar tem dois aspectos. Os "períodos apagados" que tive desde a idade de menos de quatro anos eram períodos em que eu, como uma das outras quinze personalidades que haviam emergido de tempos em tempos, fazia coisas com a finalidade de dar vazão a problemas ou perturbações do passado ou do presente. Muitos desses problemas começaram com minha mãe, que às vezes era catatônica, outras vezes ria histericamente, fazia gozações com muita agudeza, dançava em plena rua e falava alto demais na igreja, ou então agia como uma "imbecil" nas reuniões festivas, às vezes era cruel e às vezes inacessível. Estamos tentando desmanchar, resolver o que foi feito e o que a senhora em sua aversão por minha mãe parecia sentir.
Quando Miss Updyke leu a carta recordou-se do dia em que Sybil voltava para casa e, feito um camaleão, revelou uma rápida sucessão daquelas manifestações que na ocasião foram consideradas estados de melancolia. Em dado momento, Miss Updyke se lembrava, Sybil tinha repousado a cabeça no seu colo, mas depois tinha insistido em dizer que "nunca que faria uma coisa destas".
As outras, que tinham sido negadas no passado por falta de conhecimento, e eram negadas no presente por questão de vergonha, começaram a ser reconhecidas.
PRISIONEIROS NO PRÓPRIO CORPO
Observando Mary dar os primeiros passos no sentido de comprar uma casa, Peggy Lou planejando usurpar a individualidade de todas, Vanessa purgando seus pecados numa lavanderia e Marcia tomando de assalto a cidadela editorial, Sybil começou a considerar-se cada vez mais a refém das personalidades que ela não fora capaz de negar.
No que dizia respeito a Sybil, esses atos eram parte da interferência que ela tentara banir de sua vida por meio da não-aceitação. Por outro lado, Vicky chegou à conclusão de que essas ações constituíam impulsos no sentido de uma cura, embora fossem ações das partes e não do conjunto. Aliás, ela mesma declarou à Dra. Wilbur:
— Procuro manter Sybil a salvo de perigos e proporcionar-lhe tantos dias bons quantos as outras permitem.
Na prática os dias livres de interferência eram poucos: os armários de Sybil, apesar dos seus limitados fundos monetários, continuavam a se abarrotar de roupas que ela não havia comprado; seus quadros eram completados em sua "ausência"; e o remédio teimava em acabar muito antes que desse tempo para renovar a receita — pois as outras personalidades tomavam doses individuais.
Certa ocasião Sybil "voltou a si" no apartamento e descobriu que tinha uma venda num olho que a fazia parecida com um ciclope. Numa outra ocasião surpreendeu-se calçando patins de gelo e fazendo piruetas pelo chão da sala de estar.
Prisioneira, muitas vezes chegava atrasada para os encontros marcados porque suas captoras de propósito lhe escondiam a bolsa ou as roupas de baixo. Ou então as captoras a enganavam e a levavam suficientemente longe para que não conseguisse chegar em tempo ao destino. Muitas vezes era reprovada nas provas porque aquelas que a retinham como refém haviam dado, por maldade, respostas incorretas, ou porque um carcereiro particular — Peggy Lou — havia subtraído as fórmulas mais importantes de matemática e química.
Com um elenco de catorze personalidades que se revezavam e que apareciam espontaneamente em cena, a figura esguia de Sybil Dorsett, perambulando e vagueando pelas ruas de Nova York, muitas vezes chegava a frustrar toda possibilidade de compreensão.
Peggy Lou ficava andando pela chuva, entrava numa loja da Broadway, apanhava um prato de vidro, fazendo menção de quebrá-lo. Vicky então interferia e dizia que não o fizesse.
— A senhorita quer comprar o prato? — perguntava o empregado.
— Não — respondia Peggy Lou. — Quero quebrá-lo.
— Ponha o prato no lugar — ordenava Vicky.
E Peggy Lou obedecia feito cordeirinho. Juntas, Peggy Lou e Vicky saíam da loja, deixando o empregado a pensar que a freguesa devia estar tanta, pois falava sozinha.
De repente ambas, Peggy Lou e Mary, sentiram-se mal na esquina da 71 st Street com a Lexington. Peggy Lou se encostou num edifício de apartamentos.
— O que está havendo? — perguntou um guarda.
— Ela está se sentindo mal — respondeu Vicky.
— Quem é ela? — perguntou o guarda.
— Sou eu — respondeu Peggy Lou.
Peggy Lou e Vicky, achando-se no meio da Madison Avenue, com tráfego vindo de ambas as direções, de repente pararam.
— Eu vou à loja de presentes que fica ali em frente — disse Peggy Lou, movendo-se para a frente.
— Eu não quero ir — respondeu Vicky, virando-se e pondo-se a andar na direção de onde haviam vindo.
O guarda de trânsito gritou:
— Pelo amor de Deus, senhorita, resolva-se! Durante vários meses Sybil repetiu a tentativa de ir a uma galeria de arte e apanhar um quadro que fizera parte da mostra de arte. Toda vez que tentava fazer isto Marcia a desviava para outro lugar qualquer. No final quem recuperou o quadro não foi Sybil, e sim a Dra. Wilbur.
Marcia e Peggy Lou levaram Sybil a um café na parte sul de Manhattan. Sybil "voltou a si" e viu que estava sem dinheiro e longe de casa demais para andar a pé. Apanhou uma moeda que havia sido deixada no balcão como gorjeta e telefonou para a Dra. Wilbur. Mais uma vez a doutora tirou-a da enrascada. No dia seguinte Sybil voltou ao café para pagar a dívida.
Ironicamente, as raptoras se referiam a Sybil não como sua refém, e sim sua protetora, a anfitriã de seu corpo. Todas elas se queixavam de que ela não lhes dava comida suficiente, que não providenciava os pratos que preferiam — tarefa esta difícil, uma vez que cada uma tinha seus gostos particulares.
Quando uma ficava doente as outras sentiam os estragos da doença. Quando Sybil teve um acesso de colite
Vicky se queixou dizendo: "Veja só como fiquei magra e abatida". Quando Sybil Ann ou Nancy Lou Ann ficavam acamadas por causa da depressão, as outras também ficavam sem fazer nada. Mary e Sybil Ann sofriam ataques imprevistos, que causavam muitos transtornos nas demais. Quando fazia frio e Peggy Lou saía precipitadamente, com roupa insuficiente, Vicky protestava, dizendo que "isto deixa resfriada também a mim". Vicky dizia, também: "A cabeça me dói, quando Mary chora".
Prisioneiras eram também as raptoras, porque os compromissos sociais de Sybil nem sempre coincidiam com suas conveniências individuais. Embora gostassem de estar com grupos de pessoas, também tinham predileções individuais tanto para com estranhos como entre si. Marcia e Vanessa gostavam de fazer as coisas juntas, como também as duplas Mike e Sid, Marjorie e Ruthie e as Peggys. Embora não fossem uma dupla inseparável, Mary e Vanessa eram amigas especiais.
Quanto aos estranhos, Vanessa alardeava que gostava de todo mundo que não fosse hipócrita. Peggy Lou dava vazão ao seu rancor contra aquilo que ela chamava de "pessoas pretensiosas como a mãe de Sybil". Vicky adulava e incensava as pessoas inteligentes e sofisticadas. Tanto Mary como Sybil tinham um apego especial por crianças. Mary, numa demonstração mais de uniformidade do que de autonomia, fez a seguinte observação a respeito de uma senhora de que elas não gostavam:
— Nenhuma de nós gostou dela.
Entediada com conversas sobre música, Peggy Lou muitas vezes tapava os ouvidos durante a conversa. Com as medidas transbordando com as conversas de mulheres em geral, Mike e Sid às vezes conseguiam fazer com que Sybil cancelasse um compromisso, ou então ficavam perturbando durante a visita inteira.
— Eu gostaria de continuar construindo a nova estante de livros — confidenciou Mike a Sid por ocasião de uma visita em que os dois eram cativos.
— Tenho alguma coisa para bater a máquina e quero ir para casa — respondeu Sid.
Resumindo o que significava ser prisioneiro numa situação social, Marjorie disse à Dra. Wilbur:
— Quando Sybil vai visitar suas amigas eu a acompanho, mas elas ficam falando sobre coisas de que elas gostam e que não me interessam — casas, móveis, crianças. Mas quando Laura Hotchkins chega passam a falar de concertos, coisa de que eu gosto.
Delas todas Nancy Lou Ann era a que mais se interessava por política, interesse este que estava estreitamente vinculado com o cumprimento da profecia bíblica. Conforme já ficou evidente as outras pessoas dentro de Sybil tinham atitudes religiosas diferentes e gostos por leituras diferentes. Usavam também vocabulário, grafia, expressões e imagens corpóreas diferentes. As reações que tinham diante do sexo também eram diferentes. O medo de se aproximar de gente, o resultado dos abusos de Hattie Dorsett, permeava a atitude sexual delas todas. Em Peggy Lou e Marcia esse medo se transformara em terror. Em Vanessa era um tanto sublimado por uma certa dose de joie de vivre, e em Sybil Ann era neutralizado por um cansaço estafante.
Incipientes e insidiosas invejas e ciumeiras muitas vezes estouravam entre as personalidades. Peggy Lou andava furibunda porque Vicky tinha vasto conhecimento de móveis americanos antigos. Para não ficar atrás de Vicky, Peggy Lou queimava as pestanas durante horas a fio, debruçando-se sobre livros que tratavam do assunto, decorando página atrás de página, até que pudesse vangloriar-se de ser entendida no assunto. Vicky assistia de camarote a todas essas gabolices com um sorriso de gozação.
Muitos talentos e ambições entre as personalidades eram os mesmos e ao mesmo tempo diferentes. De acordo com a opinião de Vicky, Sybil era a que pintava melhor. Vicky muitas vezes deu aula junto com Sybil, e mesmo no lugar dela. Tanto Sybil como Vicky queriam tornar-se médicas. Quando perguntaram se Sybil devia estudar medicina, Peggy Lou respondeu:
— Ela tem dificuldade em se concentrar. Mas eu conseguiria, se quisesse tentar.
As personalidades se revezavam, mas também coexistiam. Criavam embaraços a algumas das atividades de Sybil, mas cooperavam em outras. Sid tinha levantado a parede divisória. Conforme se dera na sacristia de Omaha, havia harmoniosos quadros pintados em conjunto. Peggy Lou, que não gostava de pintar a óleo, ajudava com um quadro a óleo. Marcia falava entusiasticamente duma pintura abstrata que "todas nós fizemos juntas".
Marcia muitas vezes assistia às aulas de química e às experiências de laboratório quando Sybil não podia ir, tomando apontamentos para Sybil estudar depois, e assinava o nome de Sybil na folha de presença. Como uma secretária que assina pelo patrão na ausência deste, Marcia, muitas vezes, apunha porém suas próprias iniciais abaixo da assinatura de Sybil I. Dorsett.
Basicamente, nenhuma das personalidades era mais inteligente do que a outra, embora houvesse sensíveis diferenças naquilo que havia sido estudado, ensinado e assimilado. Embora suas idades flutuassem, cada personalidade tinha uma idade que prevalecia. Diferenças nas idades, na qualidade das emoções, no grau de atividade e passividade e, naturalmente, nos traumas que cada uma das personalidades resguardava influenciavam em grande escala o comportamento. Tão distintas eram estas diferenças que quando as várias personalidades telefonavam à Dra. Wilbur ela sabia quem estava na linha não só pelo timbre de voz, mas também pelo comportamento descrito.
— Dra. Wilbur, estou naquele bar com luzes coloridas. Todo mundo está se divertindo — disse a voz. — Será que não posso tomar uma cerveja?
— Claro que pode, Peggy Lou — respondeu a doutora.
— Mas isto não seria malfeito? — Peggy Lou voltara atrás em sua intenção.
— Não — disse a doutora, tranqüilizando-a. — Há muita gente que bebe cerveja.
— Pois bem, não bebo — decidiu Peggy Lou. — Vou para casa.
Raptora e prisioneira, Sybil contava com Teddy Reeves para servir de mediadora entre as personalidades, para relatar suas chegadas e saídas, para preencher as lacunas que se formavam entre um apagamento e um retorno. Um coro grego comentando a ação fragmentada de Sybil, Teddy participava também do interesse de Sybil em personalidades múltiplas.
Por exemplo, em 1957, quando o filme As três faces de Eva foi lançado, Sybil e Teddy foram assisti-lo juntas porque tinham ouvido falar que se tratava de um filme sobre personalidade múltipla.
No filme Eva White transformou-se em Eva Black, a qual, falando ao médico, fazia uns olhos de galanteadora. Teddy agarrou o braço de Sybil e cochichou:
— Exatamente como você faz. — Não entendendo direito, Sybil pensou que Teddy estava julgando que ela era galanteadora.
— É assim que me comporto com as pessoas? — perguntou Sybil espantada.
— Não — respondeu Teddy. — Esta é a maneira como você fica quando muda de uma para outra. Durante um momento você fica com um olhar que parece de sapo.
— No filme, é exatamente como com Sybil — contou mais tarde Teddy à doutora.
— Não — explicou a doutora. — Sybil e Eva não têm o mesmo tipo de personalidade. As razões para serem personalidades múltiplas não coincidem. Mas concordo em que Sybil e Eva têm o mesmo tipo de olhar apagado quando mudam.
Apesar da aproximação entre Sybil e Teddy em circunstâncias extraordinárias, suas relações começaram a estremecer. Desalentadoras para Teddy haviam sido as afirmações de Peggy Lou e os acabrunhamentos de Marcia. Inquieta com o desassossego de Teddy, Sybil começou a ficar cada vez mais solitária e taciturna.
Mas a tensão só chegou ao auge certa noite, em fins do verão de 1959, quando Teddy fez algumas observações mordazes a respeito da Dra. Wilbur.
— Ela está explorando vocês para satisfazer aos seus próprios interesses pessoais — falou ferinamente Teddy.
— Não quero mais ouvir falar disso — respondeu Sybil enraivecida, levantando-se da mesa.
— É isto mesmo. Você nunca quer ouvir a verdade — atalhou Teddy.
Espumando de raiva, Peggy Lou entrou direto no assunto e disse:
— Vou embora imediatamente.
— Não, você não vai! — respondeu Teddy, autoritariamente. — Você não vai escapulir novamente. Você vai ficar aqui, goste ou não goste.
— Saia da minha frente — avisou Peggy Lou —, se não quer que lhe meta a mão na cara.
— Experimente, se for capaz — desafiou Teddy.
— Saia da minha frente, ou você vai ver — ameaçou Peggy Lou, dirigindo-se para a porta.
Com Teddy tentando barrar a passagem, Peggy Lou correu para uma grande janela de sacada. Teddy agarrou-a pelo braço, segurando-a firme. Safando-se, Peggy Lou esborrachou-se no chão de quatro e, de costas viradas para Teddy, enfiou-se debaixo dum grande armário. Apesar de repetidas tentativas, Teddy não conseguiu que Peggy Lou saísse. Finalmente apelou por telefone para a Dra. Wilbur.
Chegando ao local após uma hora, a doutora se agachou no chão e pôs-se a chamar:
— Peggy Lou. — Nada de resposta. — Peggy, é a Dra. Wilbur — repetiu a doutora diversas vezes.
— Hã? — Peggy Lou, com as costas ainda viradas e certa de que estavam querendo enganá-la, murmurou: — De onde a senhora veio?
— De minha casa, para ver você.
— Onde é que a senhora vive?
A doutora descreveu o seu apartamento.
— É mesmo a Dra. Wilbur? — perguntou Peggy Lou, descrente.
— Sim, sou eu.
— Aquela sujeita ainda está aqui? — quis Peggy Lou saber.
— Sim.
— Diga-lhe que dê o fora. Não saio enquanto ela não der o fora.
Finalmente a Dra. Wilbur conseguiu convencer Peggy Lou para que saísse do esconderijo.
Alguns meses depois "aquela sujeita" foi embora.
— Em geral não costumo deixar que alguém se aproxime de mim — observou Sybil tristemente. — Eu só deixei a senhora, e talvez Teddy. Mas, Dra. Wilbur, veja o que aconteceu.
VIAGEM À UNIFICAÇÃO
No outono de 1959 a Dra. Wilbur enfrentou a realidade de que a análise da Dorsett estava chegando a um ponto estacionário. Os progressos eram lentos e as resistências, fortes. Durante períodos mais longos ou mais curtos, Sybil mostrava sinais de progresso sensível; depois uma das outras personalidades acabava descambando para um estado de acabrunhamento, de conflito, trauma, medo e autodestruição. Todo o trabalho sofria, e às vezes vinham os fracassos. Um destes, externo, claro, foi o fato de Sybil ter saído da escola — porque estava muito doente para estudar.
O progresso tinha que ser mais rápido. Uma ação nova se tornava indispensável. Fato este que a Dra. Wilbur sentia com segurança e intensidade crescentes.
Voltou a ler as sessões de hipnose que o Dr. Morton Prince tivera com Christine Beauchamp e ouviu a opinião de colegas a respeito do caso Dorsett. Todos diziam:
— Continue. Você está indo bem; está no caminho certo. — A opinião era a de que devia continuar pelo caminho que tinha percorrido até então.
Meditando nos graves problemas com que tanto a sua paciente como ela mesma se defrontavam, a Dra. Wilbur sabia que estava frente a uma crise profissional.
Sua convicção de que a pura psicanálise era o tratamento indicado no caso Dorsett permaneceu inabalável, mas estava disposta a realizar experiências até quando não houvesse ameaça para a paciente ou para o tratamento como tal. A doutora estava cônscia também de que nutria forte simpatia por Sybil não somente como paciente, mas como um ser humano.
A Dra. Wilbur estava também convencida de que as manifestações de multiplicidade e as doenças físicas de que Sybil padecia fincavam suas raízes em experiências sufocantes e opressoras de sua infância, as quais sempre podiam ser alteradas através da análise.
A pergunta que se impunha era a seguinte: será que vou conseguir encontrar um meio de acelerar o processo de reintegração? A experiência com Pentotal havia demonstrado, de maneira conclusiva, que a sintomatologia relacionada com traumas e conflitos específicos poderia desaparecer, como realmente desaparecera, quando o trauma fosse revelado e o conflito exposto claramente à personalidade atuante.
A Dra. Wilbur sabia que voltar à aplicação de Pentotal era muito perigoso em virtude da dependência. Procurou, pois, outros meios.
A paciente era uma histérica. A partir de Charcot e Freud, sabia-se que os histéricos são facilmente hipnotizáveis. A doutora resolveu investigar pelo menos as possibilidades dessa técnica. Antes de se tornar uma psicanalista, havia empregado a hipnose com êxito em outros pacientes. Agora, iria fazer experiências com hipnose em análise. Mais uma vez decidiu-se a explorar também esse campo.
Ao final de uma hora de análise sombria e infrutífera realizada no outono de 1959, a Dra. Wilbur disse amavelmente:
— Sybil, quando você veio pela primeira vez ao meu consultório de Nova York, pediu-me para não hipnotizá-la. Concordei com o seu pedido, mas acontece que existem distúrbios profundos que na ocasião eu não conhecia. Agora, porém, acredito que a hipnose pode ser muito útil.
Sybil respondeu calmamente:
— Nada tenho a opor.
A caminhada rumo à unificação entrava numa fase nova e intensificada. Agora, cercada por um conforto igual ao de uma criança no seio materno, que o consultório da doutora oferecia, embalada pela força do sono hipnótico, Sybil regredia no tempo. As outras personalidades regrediam ou progrediam — progrediam para que, através de estágios gradativos, pudessem alcançar a idade de Sybil. Conforme a Dra. Wilbur sabia, a integração seria mais fácil se todas as personalidades tivessem a mesma idade. A sua existência verdadeira indicava uma vinculação aos traumas do passado e uma imaturidade em toda a personalidade, o que tornava a integração impossível.
Com seus dois anos de idade, Ruthie constituía o ponto de partida natural.
— Como está se sentindo? — perguntou a doutora, depois de chamá-la numa das primeiras sessões de hipnose. — Está bem?
— Sim.
— Você se lembra de mim?
— Sim.
— Quando me viu pela última vez?
— Cadeira marrom.
— Sim. Alguma vez você já esteve aqui? Quando é que esteve aqui?
— Um dia, e mais um dia.
— Sim, e com que se parece a sala?
— Cadeira.
— Está bem. Como você sabe, Ruthie, você tem dois anos. Não é verdade? Você gostaria de ter três?
— Sim.
— Dentro de dez minutos vou dizer que são sete e cinco. De agora até lá você vai crescer um ano inteiro. Ruthie, vai dar tudo certo. Você vai crescer e mais tarde todas as outras vão crescer também. Você gostaria que isto acontecesse?
— Sim. Assim eu posso pintar.
— Você pode desenhar o que quiser e fazer coisas com os lápis de cor. Ou então você pode também ajudar Sybil a pintar.
— Posso mesmo?
— Sempre que ela pintar você pode ajudá-la.
— Sim.
— Tem alguma coisa mais que gostaria de fazer?
— Tudo.
— Então você vai ajudar todo mundo a fazer tudo. E você vai crescer, crescer, crescer. Você nunca mais será tão criança. Quando tiver três anos, você vai parar um pouquinho e depois vai crescer de novo. Quero que você escolha um dia bonito para fazer três anos — um dia de que você gostou muito.
— Titia Fay.
— Está bem, você escolhe um dia do verão em que visitou a tia Fay.
— Ela era minha mãe.
— Ela não era realmente. Você gostava de fazer de conta que ela era sua mãe. Isto foi porque sua mãe não era muito boa, e nós estamos a par disto. Nós vamos ajudar você a crescer de modo que você não precise mais se preocupar com sua mãe. Está entendendo, queridinha?
— Sim.
Ruthie se transformou numa menina de três anos, com plena consciência da doutora de que isto não era mero processo mecânico, nem simples sugestão. O avanço na idade só poderia efetivar-se quando os traumas e os conflitos fossem resolvidos. A progressão na idade estava sendo utilizada como um meio para se chegar ao fim.
Dois meses depois a doutora disse a Ruthie:
— Dentro de dez minutos você terá seis anos e estaremos então na primavera. Depois vou ajudá-la a crescer para se pôr em dia com as outras. Em dez minutos você terá seis anos de idade e nunca mais ficará mais nova; e conforme formos continuando você irá ficando mais crescida. Vai ver que quanto maior você vai ficando mais coisas pode fazer daquelas que você quer fazer, e vai fazer menos coisas que os outros querem que você faça. Você vai crescer um ano, dois anos, três anos, e vai escolher um dia que era bom.
— Papai pode me ajudar a fazer uma mercearia no monte de feno?
— Então deve ser verão? — concluiu a doutora.
— Não, é inverno — insistiu Ruthie.
— Mas um monte de feno no inverno?
— Hã-hã. E há neve em cima dele. Então a gente pode abrir um buraco nele e pôr lá dentro a caixa de papas de aveia e as panelas vazias e fazer um armazém dentro do monte de feno.
— Está bem. Agora você está com seis anos de idade.
— Nós estamos na fazenda e é inverno — disse Ruthie. Aquele era o inverno da catatonia de Hattie Dorsett e da camaradagem de Sybil com o pai. Ruthie tinha se divertido na fazenda, ela estava livre de sua mãe e perto de seu pai.
— Você tem seis anos de idade e não vai mais ter menos do que isto. Vou ajudar você a crescer para combinar com as outras, e finalmente com Sybil. Você quer?
— Sim.
— Então, quando eu tocar o seu cotovelo direito, quero que você fale a Mike e Sid juntos. Sid. Mike.
— Oi.
— Oi. Vocês dois gostariam de crescer?
— Claro que sim. Não quero ser um mariquinhas — respondeu Mike, entusiasmado. — Quero crescer como papai e fazer o que ele faz.
— Vocês dois vão começar a crescer. Há alguma coisa que gostariam de me dizer, antes que comecem a ficar mais velhos?
Mike fez uma pergunta surpreendente:
— Acha que as garotas vão nos matar?
— Se eu acho que as garotas vão matar vocês? — perguntou a doutora, com ar de descrédito.
— Sim — respondeu Mike apreensivo.
— As garotas? Que garotas? — perguntou a doutora, numa tentativa de esclarecer o que Mike realmente quisera dizer.
— Marcia e Vanessa — respondeu Mike em voz baixa.
— Se elas se matam, nós vamos morrer também? — perguntou Sid preocupado.
— Não sei a quem é que vocês se referem, quando dizem "elas" — insistiu a doutora.
— Estão dizendo por aí — explicou Sid — que as garotas vão se matar uma à outra, e que está chegando o tempo em que algumas delas não vão mais existir.
— O tempo está chegando — respondeu a doutora com ênfase — em que nenhum de vocês existirá sozinho. Todos vocês vão trabalhar juntos. Mas, agora, quero voltar à pergunta de vocês. Mike, está ouvindo? Sid? Quero que vocês entendam bem claramente o que vou dizer. Se Marcia e Vanessa estivessem mortas, vocês também estariam. Por isso vocês devem ajudá-las a viver e pôr-se em dia com Sybil; por isso elas não querem morrer.
— Mas elas são tão ruins — disse Sid.
— Sim, eu sei — respondeu a doutora amavelmente. Depois acrescentou com intensidade: — Mas vocês podem ajudá-las, para que elas sejam melhores. Vocês podem animá-las. Ninguém vai matar ninguém. E agora vocês estão ficando mais velhos, mais velhos, mais velhos.
A Dra. Wilbur sentiu-se reanimada com as sessões de avanço de idade, especialmente devido ao fato de que estava se realizando uma autêntica análise. Os garotos tinham acabado de revelar as intenções de suicídio que as outras personalidades nutriam, bem como os temores de que a reintegração resultasse na morte delas.
Com o processo de avanço na idade, em abril de 1960 nenhuma das personalidades tinha menos que dezoito anos. Sybil tinha, no entanto, trinta e sete anos e três meses. Sendo que a identidade de idades constituía um passo importante no sentido da reintegração, a Dra. Wilbur discutiu este assunto com Vicky no dia 21 de abril.
— Sinto-me acabrunhada só com a idéia de ficar tão velha — respondeu Vicky.
— Então, vamos fazer a tentativa, Vicky? Fez-se silêncio.
A psicanalista pensou um momento. Depois procurou outra abordagem.
— Vicky, você é a única que sabe tudo a respeito de todos, você é a trilha da memória, a força positiva no complexo Sybil. Por que você não deveria ter a mesma idade que ela se você já tem toda a memória dos anos que a fazem mais velha do que você? Não seria mais justo?
— Suponho que sim. — Vicky não estava muito entusiasmada com a perspectiva de aproximar-se dos quarenta anos. Depois, tamborilando levemente com o indicador na ponta da mesa, observou: — Já lhe disse algum dia que Sybil gostaria de ser como eu, mas que não consegue?
— Se você tiver a idade dela, para ela será mais fácil — explicou a doutora. — Então vamos?
Vicky disse cautelosamente: — A doutora é a senhora.
Em seguida, quando a paciente estava sob transe hipnótico, a Dra. Wilbur perguntou:
— Estão todos aqui? Alguém respondeu:
— Sim.
— Ruthie — chamou a doutora.
— Sim — disse Ruthie, agora com dezoito anos.
— Mike — perguntou a doutora em seguida —, você gostaria de ter trinta e sete anos de idade?
— Claro — respondeu Mike.
— Sid?
— Claro — respondeu Sid.
Quando a doutora fez a mesma pergunta a Peggy Lou, a resposta foi:
— Sim, já que não há outro jeito.
— Mas ninguém é obrigado a fazer isto — respondeu a doutora. — O que é que você tem contra?
— Bom — disse Peggy Lou, hesitando —, vou sentir falta dos meus programas de televisão.
— Pessoas com trinta e sete anos de idade assistem a programas de televisão — disse a doutora, rindo.
— Não quero ter que ficar estudando o tempo todo — respondeu Peggy Lou, apreensiva.
— Não. Ninguém gosta de ficar estudando o tempo todo, e isso não faz bem a ninguém — respondeu a doutora. — Você não precisa fazê-lo.
Então Peggy Lou concordou.
Em seguida a doutora perguntou a Peggy Ann, que respondeu:
— Sim, concordo.
— Mas você parece estar um pouco em dúvida — observou a doutora.
— Quero saber se terei que ir à igreja — Peggy Ann perguntou.
— Não, você não precisa ir à igreja — respondeu a doutora, num tom tranqüilizador.
— Mas as outras pessoas crescidas vão — declarou Peggy Ann.
— Sybil é crescida — observou a doutora —, e ela não vai à igreja. Vocês agora têm dezoito anos e não vão.
— Está bem, está bem — concordou Peggy Ann.
A doutora chamou pelo nome cada uma das personalidades. Nancy Lou Ann, Marcia, Vanessa, Clara, Marjorie, Helen e Sybil Ann não tinham objeções.
Mary, contudo, protestou, dizendo:
— Sinto-me tão cansada.
— Se você tivesse a idade de Sybil — observou a doutora —, você não estaria tão cansada assim e se sentiria melhor, porque teria a ajuda e o apoio das outras. Você não gostaria disso?
— A senhora vai continuar a ser minha amiga? — perguntou Mary, preocupada.
— Quer apostar a vida? — respondeu a doutora enfaticamente.
— A senhora não vai me deixar na mão? — perguntou Mary.
— Jamais a deixarei na mão — prometeu a doutora.
— Então está bem — concordou finalmente Mary.
— Vicky — perguntou a doutora —, você está pronta?
— Vou arriscar — declarou Vicky.
— Estão todos a postos? — perguntou a doutora.
— Sim — respondeu Vicky —, estamos prontos.
— Agora, vamos começar — anunciou a doutora decididamente. — Vocês todos vão crescer. Daqui a quinze minutos vocês todos terão a idade de trinta e sete anos e três meses — a idade de Sybil.
— Trinta e sete anos é velhice pra burro — objetou Nancy Lou Ann. — É idade demais para se fazer alguma coisa.
— Não, isto não é idade para não fazer nada — insistiu a doutora. — Eu faço uma infinidade de coisas, e tenho mais do que trinta e sete anos. — Em seguida, procedendo à tentativa de sugestão hipnótica, a Dra. Wilbur repetiu várias vezes, com a voz numa cadência de encantamento:
— Vocês estão ficando mais velhos, mais velhos, mais velhos; vocês estão crescendo, crescendo, crescendo: vinte e cinco, vinte e oito, trinta e um, trinta e três. Dentro de seis minutos todos vocês terão trinta e sete anos e três meses.
Os segundos tiquetaquearam. Os minutos passaram. Esperando, a Dra. Wilbur não sabia que surgira um êxtase repentino que fluía rapidamente pelos sentidos das quinze personalidades de sua paciente. Em cada veia e fibra de Sybil passava um fluido renovador, que se acelerava, à medida que ela e as outras se encaminhavam para uma nova fase de cura. Ainda em seu sono hipnótico elas podiam sentir uma onda flutuando, sustentando-as com nova energia.
A paciente parecia repousada e tranqüila. Finalmente a doutora proclamou:
— Agora, todos vocês têm trinta e sete anos e três meses, e nunca mais ficarão mais jovens. Quando acordarem, verão que todos têm trinta e sete anos e três meses. Todos terão idades iguais.
Em seguida, o receio de sair perdendo se infiltrou:
— Agora que somos velhos, a senhora vai gostar de nós? — perguntou Peggy Lou, com voz triste.
— Eu sempre gostarei de todos vocês — respondeu a doutora.
— Continuará sendo nossa amiga como tem sido até agora? — perguntou Marcia.
— Serei sua amiga de sempre.
— Mas as coisas vão ser muito diferentes — observou Vanessa com apreensão.
— Sempre que tiverem divergências de opinião — observou a doutora —, podem trocar idéias sobre o assunto entre vocês mesmos. Não precisam brigar por causa disso.
— Ou fugir — acrescentou Peggy Lou.
— Vocês terão mais coisas em comum e poderão gozar juntos as coisas de que gostam — explicou a doutora. — Uma das razões de conflito e da falta de entrosa-mento tem sido a grande diferença em suas idades. Se Marcia está tristonha, as demais poderão animá-la. Se Sybil está apática, as demais poderão reanimá-la.
Marcia perguntou:
— Quer dizer que nós não podemos mais telefonar à senhora se não nos sentirmos bem?
— Não — respondeu a doutora seriamente. — Não é isso que quero dizer.
A doutora sabia que o receio básico que Marcia tinha externado em nome de todos era o seguinte: "Se eu melhorar, vou ser repudiada?" O fim do tratamento, para essas personalidades atormentadas, implicava sua perda da doutora, que se tinha tornado também uma amiga.
— Agora vocês vão acordar —- começou a doutora a falar em cadência hipnótica. — Um — atenção. Estão acordando. Dois — atenção, atenção, atenção. Agora podem acordar. Três.
Sybil abriu os olhos. Ela e a doutora se entreolharam atentamente — seus olhos refletiam as esperanças de uma e da outra. Finalmente a doutora falou:
— Querida, como se sente?
— Mais tranqüila — murmurou Sybil. Em seguida acrescentou: — Vou dispor de mais tempo, e todas poderão dispor dele.
— É isso mesmo — respondeu a doutora com expectativa. — Agora, vocês vão para casa e vão passar um dia bom. Quero vê-los de manhã cedo. — E, com esperança e segurança renovadas, acrescentou: — Agora não há nenhuma criança por perto para evitar que vocês cheguem aqui na hora certa.
Por meio do avanço de idade pela hipnose a Dra. Wilbur metamorfoseou o que eram fixações no passado em partes viáveis do presente. A esperança era que isso se tornasse o alicerce sobre o qual construir a superestrutura de reintegração, um meio de abrir o caminho para a Sybil original e restaurá-la.
ELES TAMBÉM FAZEM PARTE DE MIM
Na manhã do dia seguinte, 22 de abril de 1960, a Dra. Wilbur perguntou:
— Sybil, você gostaria de encontrar-se com as outras?
— Se a senhora quiser... — foi a resposta de consentimento.
— Vou apresentá-la primeiro a Ruthie — disse a doutora, quando Sybil se encontrava num profundo sono hipnótico. — Até há alguns meses atrás ela tinha apenas dois anos de idade. Quando eu tocar seu cotovelo direito, estarei chamando Ruthie.
Ruthie foi convocada; silêncio. A doutora esperou. Em seguida a voz de Sybil falou calmamente:
— Eu a vejo.
O momento estava carregado de significado, porque aquela era a primeiríssima vez que Sybil tinha uma percepção visual de uma de suas outras personalidades, a primeira vez em que elas existiam para ela dentro de sua própria consciência. Ademais, a maneira como Sybil "viu" constituía uma lembrança da libertação de Sybil da psicose, pois Ruthie tinha sido percebida, não flutuando no espaço ou como a imagem projetada de uma alucinação, mas somente no olho da mente.
— Você a vê? — perguntou a doutora. — Então, diga-me: por que você a deixou ficar para trás?
— Porque ela tinha idéias teimosas, próprias. Ela não fazia o que eu dizia. — Era um conceito curioso, a expressão do abismo escancarado entre os comandos da mente consciente e a sua execução pelo inconsciente.
— E, agora, o que pensa a respeito disso? — perguntou a doutora.
— Não creio que esteja certa — respondeu Sybil —, porque as coisas mudam a toda hora.
Em seguida acrescentou:
— Ruthie está com os braços abertos, e acho que ela me quer.
— O que você acha dela? — perguntou a doutora em voz baixa. — Você gosta dela? Gostaria de ter Ruthie com você agora?
Depois de um silêncio em que se podia ouvir a respiração, Sybil disse:
— Sim, eu a quero. Ela me pertence.
— Então Ruthie estará com você — respondeu a doutora.
— Eu a quero — repetiu Sybil.
— Ela tem a mesma idade que você, e poderá ajudá-la — explicou a doutora.
— Quero que ela me ajude — admitiu Sybil.
— Então, como é que se sente? — perguntou a doutora.
Numa voz pouco mais perceptível que um cochicho, Sybil respondeu:
— Sinto-me mais feliz!
— Sybil — continuou a doutora —, as outras estão aqui presentes, e você terá que escolher qual a próxima que quer encontrar.
— Claro que é Vicky — disse Sybil sem relutância.
— Ela me ensinou muita coisa, mesmo sem eu a ter encontrado.
— Ela nos prestou, também, uma grande ajuda — explicou a doutora —, contando-nos o que as outras não sabiam ou não podiam dizer.
Então Sybil perguntou:
— Vicky é minha amiga?
E a doutora respondeu, com forte convicção:
— É muito sua amiga. Agora vou pedir a Vicky que venha. Vicky?
— Oi — disse Vicky.
A apresentação de personalidades adormecidas, que estavam compartilhando o inconsciente, era simples.
— Vicky — disse a doutora —, esta é Sybil. Silêncio. Embaraço.
— Ela quer que sejamos amigas? — perguntou Sybil. A doutora fez a pergunta a Vicky, e de Vicky chegou a resposta graciosa:
— Gostaria muito.
E a outorga de amizade:
— Não há obstáculos. Agora, vocês duas, garotas, sigam em frente e sejam amigas.
Repentinamente, lágrimas fluíram. Lágrimas de Sybil. Agora aquela garota exausta estava chorando diante da perspectiva de ter uma amiga dentro dela. E atrás das lágrimas veio a declaração da doutora:
— Vicky é parte de você — e em seguida a pergunta:
— Sybil, por que você deixou Vicky para trás?
Sybil insistiu:
— Eu não a deixei. Quando eu não podia fazer alguma coisa Vicky a fazia por mim. Eu não a deixei.
A doutora afirmou, então:
— Vicky é parte de você, e é muito simpática.
— Agora tenho estas duas amigas — disse Sybil. — Elas me procuraram voluntariamente. — E em seguida a confissão, a declaração de aceitação: — São iguais a mim. Também são eu.
Fez-se mais silêncio. Em seguida Sybil disse:
— Gostaria de ir para casa. Isto é o que desejo.
— Muito bem — concordou a doutora. — Vou explicar às outras que você vai encontrá-las em outra ocasião. E por hoje encerramos tudo.
— Sim — concordou Sybil. — Gostaria de encontrá-las um pouco mais adiante. — Instintivamente, Sybil sabia que encontrar cada uma das personalidades seria pôr-se frente a frente com conflitos e traumas dos quais cada uma a defendia. Muito sabiamente, Sybil decidiu que encontrar duas personalidades era suficiente para um dia.
— Ponha-se de lado, Sybil, e descanse. Quero dar algumas explicações às outras, e depois podem ir para casa.
— Peggy Ann — chamou a doutora.
— Pronto — disse Peggy Ann.
— Todos estão entendendo por que Sybil não vai encontrar vocês hoje?
Sem hesitar Peggy Ann respondeu:
— Claro que compreendemos. Conosco está tudo bem. Não temos nenhuma queixa contra Sybil. Nós fizemos algumas coisas para magoá-la. Peggy Lou e eu a levamos até Filadélfia, Elizabeth, e a outros lugares. Fizemos das nossas.
— As outras compreendem? — perguntou a Dra. Wilbur.
— Os garotos estão rindo — respondeu Peggy Ann. — Acham a coisa engraçada.
— O quê?
— Toda essa história de ficar mais velho e encontrar Sybil. E também eu acho engraçadíssimo que os garotos agora sejam homens feitos. Ter trinta e sete anos já é ser homem.
— No caso deles, não — disse a doutora. — Eu quisera que eles se tornassem uma mulher.
Atordoada, Peggy Ann respondeu somente com um:
— Oh!
Voltando em seguida para o assunto do início, a doutora acrescentou:
— Vamos esperar um pouquinho e deixar que Sybil se enquadre na idéia de encontrar todas vocês. Está bem?
— Está bem — respondeu Peggy Ann.
— Isto é muita gentileza da parte de vocês — disse a doutora. — Quando conhecer vocês melhor Sybil vai ver como são bons.
— Oh, doutora — falou Peggy Ann sem pensar. — Espero que Sybil não continue dizendo "nós" ao invés de "eu".
— Então — disse a Dra. Wilbur, mudando de assunto —, vou tocar o cotovelo direito de vocês e pedir que falem com Sybil.
— Sim? — disse a voz de Sybil.
— Agora gostaria de acordar você — disse a doutora. — Quando você estiver acordada saberá que você, Vicky e Ruthie estão juntas, que vocês estarão sempre juntas e que nunca precisarão estar afastadas. Agora você vai acordar. Um — atenção; você está acordando. Dois — atenção, atenção. Agora pode acordar. Três.
Em qualquer análise os períodos de progresso tendem a ser seguidos por períodos de regressão; para cada passo à frente existe pelo menos um passo atrás. Depois que Sybil conseguiu um entendimento com Vicky e Ruthie, continuou a relutar em encontrar-se com as outras personalidades. Em julho de 1960, um mês depois do entendimento, esse encontro ainda não se tinha realizado. Mais ainda: conforme Peggy Lou tinha deixado claro à Dra. Wilbur, muitos dos velhos conflitos tinham voltado a atormentar a vida de Sybil, que novamente estava com mania de suicídio.
Agora uma mulher feita, Peggy Lou começou a sessão com:
— Estou com medo de fazer alguma coisa estúpida. Estou preocupada.
— É mesmo? — perguntou a Dra. Wilbur, pensativa.
— Durante tanto tempo fui uma garotinha, e agora sou uma mulher feita. Alguns dos meus hábitos antigos já não são mais adequados.
— Eu nem me preocuparia com isso — respondeu a doutora. — Pelo que estou vendo, você está agindo muito bem. Agora, gostaria de lhe perguntar uma coisa.
— Pode perguntar.
— Sybil sentiu-se mais feliz quando encontrou Ruthie e Vicky. Mas o que aconteceu com essa felicidade?
— Todos os velhos sentimentos — respondeu Peggy Lou com segurança — voltaram a afligi-la. Pensei que isto não aconteceria mais.
— Ela me telefonou — confidenciou a doutora. — Nunca sei se devo ou não ir vê-la quando ela me procura — continuou a doutora. — Às vezes acho que ela se sente culpada por ter me chamado.
— De fato — respondeu Peggy Lou.
— Não quero prejudicar sua maneira de sentir em relação a si mesma, e muito menos o sentimento que vocês têm a respeito de vocês mesmas. Os antigos desejos de suicídio voltaram?
— Até mais fortes do que antes — respondeu Peggy, preocupada. — Os receios que ela tem é que a levam a isso. Os maiores temores que tem no momento se referem a religião e escola. Ela tentou falar-lhe ontem, mas não pôde.
Os temores eram tão acentuados que levaram a uma regressão, mesmo após o entendimento com Vicky e Ruthie.
— Sybil tem a impressão que é muita coisa a enfrentar — explicou Peggy Lou. — Ouvi Vicky dizer a Sybil: "Está bem, você assume cada dia quando o momento chegar". Mas Sybil tem medo de que as coisas se tornem como eram na época da tensão.
— O que há com a religião que tanto aterroriza Sybil, especialmente se levarmos em conta que Mary continua defendendo Sybil dos mais sérios conflitos religiosos?
— O problema é o medo terrível de achar que não existe nada de concreto nela — respondeu Peggy Lou, pensativa.
— Poderia estar receosa de descobrir que não quer ficar em sua religião? — perguntou a doutora.
— Ela temeria isso — referiu Peggy Lou —, se lhe ocorresse.
— Isso a apavoraria? — perguntou a doutora.
— Há uma razão para ela ter medo — explicou Peggy Lou.
— É mesmo?
— Pois bem — continuou Peggy Lou —, ela acredita em Deus e acha que os Mandamentos são verdadeiros. Eles dizem: "Não matarás". Isto faz com que seja errado ela matar-se a si mesma. Sua vida não lhe pertence.
— Entendo...
— Mas isso é uma inibição, o último empecilho no caminho da autodestruição. Se isso fosse afastado... bem, eu não sei, doutora, realmente não sei.
— Não haveria outras coisas que a impedem de fazê-lo?
— Existem várias coisas — respondeu Peggy Lou com convicção. — Nós somos uma das razões. Como vê, agora que conseguiu gostar de nós, ela sente responsabilidade para conosco e não quer destruir-nos.
Peggy Lou sempre exercera fortes pressões para fazer com que Sybil vivesse. Mas agora ela agia de outra maneira, pois o fazia em concerto com as outras. Agora, a força vital residia menos nas ações das outras do que na nova reação de Sybil para com elas.
— Por isso — continuou Peggy Lou —, a evidência aumenta. Sybil tem medo de suicidar-se por causa de Deus, por nossa causa e também por causa da senhora. Ela não quer magoá-la. Ela não pode magoá-la e não pode fazer aquilo que Deus não quer que faça. Mas a senhora sabe que se ela vier a achar que Deus não existe... lá se foi um dos freios. Ela não tem medo do castigo em si. Às vezes ela pensa que passa depressa. Mas ela teme que possa vir a achar que Deus não existe e que não há ninguém que a impeça a não ser a senhora e nós.
— Então — perguntou a Dra. Wilbur —, você quer dizer que ela quer acreditar em Deus e nos Mandamentos?
— Pois bem — respondeu Peggy Lou —, existem algumas coisas que Sybil julga que a senhora acha estúpidas. A verdade de tudo isso é que ela tem medo de descobrir que seja ela quem pensa que é estupidez. Se ela pensar assim, tudo vai ruir por terra.
— É por isso, então, que ela tem medo de falar de religião? — perguntou a doutora.
— E quando as coisas iam mal ela costumava pedir a Deus que a ajudasse, e ela pensava que ele o fazia — continuou Peggy Lou. — Ela acreditava nele.
— Sim.
— E no entanto as coisas iam mal — continuou Peggy Lou ceticamente —, mesmo quando apelava para Deus. Mas ela sempre achou que deveria haver uma explicação. Estava tudo bem racionalizado. Foi a senhora quem complicou tudo, e agora ela quer tentar desmanchar o emaranhado. Sabe que não pode chegar a lugar nenhum, a menos que o faça. O que eu sei é que ela tem que resolver em que acredita. Não sei o que os outros pensam, pois simplesmente ficam aí parados.
— Então, Peggy, você e aquelas que ainda podem agir independentemente de Sybil se juntarão a mim, para fazer com que ela possa ir para a frente e concluir algo?
— Pois bem, acho que sim — respondeu Peggy Lou com intensidade.
A nova Peggy Lou estava sendo ao mesmo tempo imparcial com Sybil e uma escora ao seu lado.
O mormacento verão nova-yorkino de 1960 trouxe temperaturas incrivelmente elevadas. Enquanto a nação se lançava na campanha eleitoral Kennedy-Nixon, o caso Dorsett estremecia com um cataclismo particular.
A Dra. Wilbur franziu as sobrancelhas de admiração. Sybil tinha sido hipnotizada, e Peggy Lou chamada a comparecer. Na esperança de ouvir o decidido "oi" de Peggy Lou, a doutora ouviu um — "eu me chamo Sybil".
A voz não era diferente da de Peggy Lou, mas a mensagem era incompreensível. "Eu me chamo Sybil"?
Fixando seu olhar na paciente que dormia, a doutora disse calmamente:
— Mas eu chamei por Peggy Lou.
— A senhora não entende, doutora — foi a resposta. — Eu sou Peggy Lou e ouvi a senhora. Sou também Sybil. Sou também Vicky.
Um conglomerado? Como assim? Até o momento, havia criado uma união apenas entre Sybil, Ruthie e Vicky. Peggy Lou era uma das personalidades que ainda não estavam identificadas com Sybil. No entanto, sem apresentações e por sua própria vontade, Peggy Lou se introduzira no pequeno círculo interno: "Sou Peggy Lou e ouvi a senhora. Também sou Sybil. E Vicky também". A doutora chamou de novo por Peggy Lou.
— Estamos ouvindo a senhora — veio a resposta.
— E sua surpresa não nos surpreende. Mas a senhora vai se acostumar conosco. Isto é o que nos tornamos.
— Vicky — chamou a doutora.
— Nós somos Vicky. A doutora chamou:
— Sybil?
— Nós somos Sybil.
Peggy Lou, Vicky e Sybil haviam falado com uma só voz.
— Está bem — disse então a doutora. — Está na hora de acordar. Quando acordar você vai sentir-se descansada. Você não vai procurar resolver nenhum problema. Sem que nada perguntasse, os outros que ainda não são parte de você me disseram que estão com você e que vão ajudá-la. Quando você acordar não vai se sentir só. Sentirá um pouco mais de segurança em si mesma, terá um pouco mais de confiança. Você cuidará dos seus afazeres sem medo.
A paciente acordou.
— Sybil? — chamou a doutora.
— Sim — foi a resposta.
— Só Sybil? — perguntou a doutora.
— Por que a senhora diz isso? — perguntou Sybil.
— Quem mais deveria haver? Eu sou só eu, e não estou pronta para dar a mão a todos os outros.
— Querida, como se sente? — perguntou a doutora.
— Sinto-me melhor.
— Está um pouco menos apavorada? — continuou a doutora.
— Acho que sim.
— Acha que pode fazer o que quer hoje?
— Hoje à tarde vou tentar fazer casas de botões — respondeu Sybil.
— Vai ser um dia muito bom para todas vocês — vaticinou a Dra. Wilbur.
— Eu sou realmente só eu — insistiu Sybil.
— Todas vocês são realmente só vocês mesmas — respondeu a doutora profeticamente.
Essa profecia não tinha, porém, nenhum otimismo sobre quando se realizaria a integração. O que acontecera naquela sessão fora espontâneo, espetacular, mas a doutora não podia ter certeza do verdadeiro significado. Peggy Lou tinha se unido claramente à Sybil adormecida, a Vicky e a Ruthie, não pela hipnose e sim espontaneamente. A doutora não havia dito: "Peggy Lou, quero que você encontre Sybil". Foi a própria Peggy Lou quem disse: "Sou Sybil, e Vicky também". Uma vez que a fusão espontânea havia ocorrido no estado hipnótico, a união era com a Sybil adormecida e não com a Sybil atuante. A doutora acreditava que o curso de ação mais prudente consistia em aguardar e ver o que iria acontecer com essa integração espontânea.
Enquanto isso, entre julho de 1960 e começo de janeiro de 1962, a análise continuou, traumas foram resolvidos e o resíduo maciço do passado começou a desfazer-se. No entanto, os dois anos e meio foram um período de vigilante espera pelo alargamento da brecha por onde se faria a integração total de Sybil em uma única personalidade.
O ÓDIO CURA
Um dia, no começo de janeiro de 1962, enquanto Sybil e a Dra. Wilbur iam de carro pela West Side Highway num de seus agora freqüentes encontros fora do consultório, Sybil mostrava-se inquieta e sombria. Habitualmente gostava dos momentos não-profissionais com a doutora, mas naquele dia nublado sua depressão superava o entusiasmo.
— Você está deprimida — arriscou a doutora — porque está irritada e voltou sua raiva contra si mesma. Provavelmente é por causa de sua mãe.
— Isso não faz com que eu me sinta melhor — replicou Sybil em tom de defesa. Virando-se para a janela, deixou bem claro que o assunto estava encerrado.
As mãos da doutora seguravam o volante; seus olhos fixavam o trânsito, mas seus pensamentos sondavam o vazio que, claramente, ainda separava a Sybil consciente da inconsciente. Praticamente todas as outras personalidades, que representavam o inconsciente, haviam declarado com vigor o seu ódio a Hattie Dorsett, um ódio que Sybil também havia expressado com seu sonho da mãe gata. No entanto, nem as reações de suas outras personalidades nem seu comportamento no sonho se haviam filtrado para o conhecimento consciente de Sybil.
Agora, quando se tornara visível o abismo entre a verdade interna e a tomada de consciência exterior, era o momento exato, decidiu a Dra. Wilbur, para realizar um assalto contra a fortaleza que oprimia a liberdade de Sybil de ser apenas uma.
— Sybil — disse a doutora, colocando a mão no ombro dela.
— Sim? — replicou Sybil, hesitante.
— Você se importaria — perguntou a doutora — se eu a hipnotizasse para chegar à causa da sua depressão?
— Aqui? — perguntou incrédula Sybil.
— Aqui — foi a resposta cheia de decisão. Contra o fundo de buzinadas e carros em marcha
lenta, surgiu o cantochão hipnótico. À medida que a consciência desaparecia e Sybil vagava para o sonho, enterrava as unhas no estofamento do carro. Murmurou:
— Quando alguém é sua mãe, espera-se que você a ame e honre.
— Não quando não conquista seu amor, nem lhe dá razão para honrá-la — disse a doutora.
— Queria agradá-la porque era minha mãe — explicou Sybil com uma voz tensa e muito baixa. — Mas nunca conseguia. Ela dizia que eu era esquisita. Quando penso nela sinto-me sufocar, e me dá vontade de chorar. Amarrava-me. Fazia-me um mal terrível. Sempre me fazia coisas... coisas repugnantes.
A voz de Sybil esmorecia, seu corpo tremia.
— Sybil? — chamou suavemente a doutora.
— Deixava-me tão confusa! — foi a resposta. — Nunca compreendi nada. Enfiava aquilo dentro de mim. Era uma coisa preta com um buraco. Agora vejo.
Silêncio. Um gemido quase inaudível de sofrimento. A Dra. Wilbur conteve a respiração. Sabia que Sybil, agora, como um cirurgião que aponta o bisturi para a lesão crucial, estava à beira de uma revelação traumática. A voz elevou-se:
— Disse a mim mesma que amava minha mãe, e que só fingia odiá-la. Mas não era fingimento.
A voz de Sybil interrompeu-se. A crise havia passado. Logo prosseguiu:
— Na realidade, odiava-a... desde que me lembro. Um ódio terrível inundou Sybil:
— Odeio-a — gritou. — Sempre que me maltratava, eu imaginava que me atirava ao seu pescoço. E essa não era a única maneira de matá-la em que pensava. Cravava-lhe um punhal. Muitas vezes desejei cravar-lhe um punhal. Fazia figuras dela e espetava-as com pregos. Nunca fiz isso em casa. Às vezes na escola. Às vezes na loja de ferragens. Mas queria matá-la. Desejava isso. Quando morreu, acreditei por um momento que a havia assassinado. Fazia tanto tempo que eu queria isso! Queria matar minha mãe.
Naquele momento a Dra. Wilbur pôde ver que o paroxismo de ódio, vertido do inconsciente, estava invadindo o consciente. O movimento interno lançou Sybil para a frente. A Dra. Wilbur segurou-a antes que se chocasse contra o painel, mas não pôde — e talvez não ò tivesse feito, mesmo que pudesse — interromper a torrente de ódio. Foi uma série de erupções curtas, de violência crescente:
— Odeio-a. Odeio aquela puta. Quero matar minha mãe. Embora seja minha mãe, quero vê-la morta. Odeio-a! Entende? Odeio-a! ..
Os punhos de Sybil socaram o painel. Voltando-se para dentro de si mesma, Sybil havia extravasado a ira que lhe fora negada desde aquele momento no St. Mary's Hospital, quando a Sybil original havia deixado de existir.
Houve silêncio no carro, mas de fora chegou o som das buzinas e o ruído de um automóvel patinando por causa do estouro de um pneu. Dando-se conta do que ocorria no exterior, a Dra. Wilbur percebeu que a raiz do trauma que ocasionara a proliferação original em personalidades múltiplas fora arrancada. A doutora resolveu despertar Sybil.
— Parece que não tenho muito boa opinião sobre minha mãe — foi o comentário imediato de Sybil.
Surpresa porque sua paciente se recordava de alguma coisa, a Dra. Wilbur contra-atacou:
— Pelo contrário... você pensava muitíssimo bem dela. E desejava desesperadamente que ela a amasse.
Sorrindo com amargura, Sybil replicou:
— Desejar matar a própria mãe não é exatamente uma demonstração de carinho.
Ainda mais surpresa do que antes por Sybil lembrar-se tanto do que havia dito sob hipnose, a doutora percebeu que haviam chegado a um ponto crucial da análise. Sybil recordava-se não apenas do que havia dito hipnotizada, como também se recordava, e o aceitava como seu, do "assassinato" em efígie de Hattie Dorsett cometido por Mike. Esses dois acontecimentos, complementando a admissão fundamental de seu ódio por Hattie, tão necessária para a recuperação, haviam representado alguns passos vitais em direção à integração.
Pela primeira vez desde os seus três anos e meio de idade, Sybil podia irritar-se. Por conseguinte, diminuía a necessidade que tinha das personalidades que assumiam a ira, e essas personalidades ficavam agora parcialmente integradas em Sybil. Além disso, agora que o desejo de assassinar a mãe, sentido por Marcia, convertera-se em desejo de Sybil, era possível que Marcia e Sybil se aproximassem. Mas o mais notável de tudo era que, enquanto era devolvida a Sybil a capacidade de irritar-se, desimpediam-se simultaneamente os caminhos para outras emoções. O ato de expressar sua ira contra Hattie Dorsett havia transformado Sybil numa mulher que já não estava desprovida de emoções. Sybil havia começado a distanciar-se do vácuo, dirigindo-se para a unidade.
Hattie Dorsett, que não morrera realmente até que Sybil a matasse com seu ódio na West Side Highway, já não era o principal obstáculo ao retorno de Sybil à saúde.
A libertação de Sybil foi quase imediata. Revelou-se de uma forma dramática várias semanas depois, durante uma visita a seu pai em Detroit. Estava sentada no sofá do jardim-de-inverno quando Willard se aproximou. No princípio, apenas lembrando o que acontecia no passado, esperou que ele se refugiasse atrás do Architectural Forum. Quando, em vez disso, ele se sentou junto dela, ansioso por falar e aparentemente receptivo quanto ao que ela tivesse a dizer, Sybil, pela primeira vez, não sentiu inibição alguma que a impedisse de falar com ele.
— Quando eu estava com seis anos e você teve neurite — ouviu-se dizendo numa onda de recordações, pouco depois de a conversa ter iniciado —, você deixou que eu me aproximasse de você pela primeira vez.
Houve uma contração involuntária no rosto de Willard quando respondeu com voz suave:
— Não me dei conta de que acontecesse isso.
— Quando fomos para o campo naquele verão — continuou ela inexoravelmente —, nossa união intensificou-se. Mas quando regressamos e você voltou para o seu trabalho e eu comecei a ir à escola, tornamo-nos estranhos novamente.
Ruborizado e na defensiva, Willard Dorsett contestou:
— Dei-lhe tudo: uma boa casa, boas roupas, brinquedos. Inclusive aulas de violão. Fiz essas coisas porque me preocupava com você.
— Papai — Sybil fez uma pausa, sopesando as palavras. Depois, levada por uma emotividade que tão recentemente lhe fora devolvida, insurgiu-se: — Você me deu um violão sabendo que eu queria um violino. Não percebe agora que estava trabalhando no vazio? Que nunca se preocupou em se comunicar comigo?
Willard ergueu-se com um movimento abrupto e rápido:
— Percebi — disse — que as aulas de violão a deixavam nervosa, mas realmente não soube por quê.
Fez uma pausa, refletindo.
— Agora vejo muitas coisas de maneira diferente. Sempre quis fazer por você o que mais lhe convinha, mas não soube como.
Notando muito bem a proximidade do pai, e surpresa com o fato de ele não tê-la feito sentir-se culpada por haver-se mostrado tão direta, pela primeira vez em sua vida, Sybil decidiu trazer à tona o que estivera escondido no mais profundo de seu ser.'
— Papai — disse —, houve coisas que me aconteceram quando eu era muito pequena...
Willard Dorsett fechou os olhos para deter a torrente de recordações de sua filha, que agora fluía perigosamente próxima à culpa que, cinco anos antes, no consultório da Dra. Wilbur, ele havia aceitado como sua própria.
— Papai, está se sentindo bem? — perguntou Sybil, ansiosa.
Abrindo os olhos, ele ergueu a mão num gesto de súplica, dizendo:
— Sybil, não diga mais nada. Já sou um homem velho. Poupe-me pela minha idade, se não por outro motivo.
— Quando eu era bem pequena, papai — insistiu Sybil, apesar da súplica —, aconteceram coisas horríveis. Você não as impediu.
— O paiol de trigo. O abotoador de botina — murmurou Willard. Depois, olhando diretamente para a filha, implorou: — Perdoe-me.
Desta vez foi Sybil que se pôs de pé, caminhando de um lado para o outro. Perdoar os anos perdidos, o tempo ausente? A ira surgida há tão pouco impedia-lhe esse perdão.
— Deixemos que o passado permaneça enterrado — foi o mais próximo de uma conciliação a que pôde chegar. Estava disposta a esquecer, não no velho sentido de retirar-se do que não podia suportar, mas no modo totalmente novo para ela de não se referir ao que sucedera há tanto tempo.
O momento passou e o estado de ânimo externo mudou. Willard e Sybil começaram a falar de coisas menos dolorosas e dos prazeres que a esperavam durante a visita. Mas antes que Frieda chamasse para dizer que a comida estava servida, Willard Dorsett falou pela primeira vez com a filha a respeito de suas fugas.
— Se eu lhe desse mais dinheiro — perguntou —, essas fugas acabariam?
— Dinheiro sempre ajuda — disse Sybil simplesmente. — Mas depois de trinta e seis anos fugindo, a solução não está em mais dinheiro.
Depois, acrescentou:
— Mas as fugas se fazem menos freqüentes. Estou melhorando.
— Já que estamos falando de dinheiro, Sybil — prosseguiu Willard —, quero que você saiba que se alguma coisa me acontecer, você não ficará desamparada. O novo dúplex que estou construindo será seu.
— Obrigada, papai — disse Sybil, atrevendo-se a confiar na preocupação por ela, que finalmente fora expressa.
Naquele momento Willard fez uma pergunta curiosa:
— Diga-me, Sybil: quem são essas pessoas com quem você fala e que acredita conhecer?
Surpresa, Sybil estudou o homem que durante tantos anos havia vivido sob o mesmo teto que as Peggys, Vicky, Marcia, Vanessa, Mary e os outros.
— Papai, você não compreendeu bem o que a Dra. Wilbur lhe disse sobre essa gente. Não falo com eles, nem acredito conhecê-los. Não sabia de sua existência até que a Dra. Wilbur me falasse deles. Só agora estou começando a conhecê-los, começando a falar com eles.
Esta declaração era demais para Willard, que não pôde assimilá-la. Procurando um significado para ela, conseguiu dizer:
— Há muitas coisas a seu respeito, Sybil, que não posso compreender.
Ainda profundamente perplexo, levou-a à sala de jantar para comer o que Frieda havia preparado.
Naquela noite, no quarto de hóspedes da casa de seu pai, Sybil sonhou com a varanda envidraçada da casa dos Dorsett em Willow Corners. Hattie estava morta e Sybil fora lá expressamente para visitar o pai. A única cama da casa — o familiar e enorme leito de ferro branco, em que seus pais haviam dormido — estava agora colocada na varanda. Como Sybil tinha que dormir em algum lugar e aquela era a única cama da casa, dormia num lado dela. Seu pai dormia no outro. Acordando de repente, viu o rosto de um homem na janela. Os lábios moveram-se. O estranho dizia a alguém que não podia ser visto: "Estão trepando".
— Não mexa a cabeça, papai — disse Sybil em voz alta, despertando-o. — Há um homem olhando pela janela. Pensa que estamos dormindo juntos.
Então, observando que o homem da janela tinha uma máquina fotográfica, tapou os olhos com o braço para não ser reconhecida na foto.
— Papai — pediu —, traga-me um copo de leite quente, para que eu possa dormir melhor.
Enquanto seu pai atendia seu pedido, estudou em silêncio o rosto de homem, para fazer um desenho detalhado e entregá-lo à polícia. Preocupava-a que ele tivesse o cabelo ruivo.
Cuidadosamente, estendendo os braços por entre as colunetas da cabeceira da cama, tateou procurando o telefone no chão.
— Telefonista — disse —, ligue-me com a polícia. Ouviu uma voz respondendo:
— Já foram dormir.
— Então faça o favor de tentar a Polícia Central — insistiu Sybil.
— Foram dormir — repetiu a voz em tom sepulcral.
— Mas preciso de ajuda! — exclamou Sybil. — Há um homem na minha janela.
— Seu pai tem seguro? — perguntou a voz.
— O que é que isso tem a ver? — gritou Sybil.
— Chamarei a sua agência de seguros, minha senhora — replicou obsequiosa a voz —, se a senhora tiver o número ...
De repente Sybil se viu remexendo num monte de cartões de visita de companhias de seguros. Enquanto procurava um nome, deu-se conta de que as letras eram pequenas demais para poder lê-las.
— Número, por favor; número, por favor —• martelava a voz.
— Não consigo ler os números — protestou Sybil indefesa. — Os cartões me escapam por entre os dedos.
Suas mãos tentavam inutilmente controlar os cartões, que se embaralhavam com movimento próprio.
— Coloque o fone no gancho, por favor — disse finalmente a voz da telefonista.
— Por favor — suplicou Sybil. — Alguém tem que me ajudar.
O silêncio arrasador que se seguiu lhe disse a verdade, uma verdade que jamais pudera enfrentar antes: que ninguém ia fazer nada contra o homem da janela, nem ajudá-la em qualquer outra coisa.
Três meses mais tarde, uma carta de Frieda Dorsett datada de 12 de abril de 1962 chegou ao consultório da Dra. Wilbur. Dizia:
O médico de meu marido me chamou hoje e me disse que o pai de Sybil não vai durar muito. Conforme lhe escrevi anteriormente, Mr. Dorsett sofre de um câncer incurável.
O doutor sugeriu que lhe escrevesse e informasse que ele gostaria de falar-lhe e explicar a situação, se a senhora lhe telefonar. Anexo envio-lhe seu cartão.
Nem Sybil nem o pai mencionaram se ela planeja vir vê-lo. Eu não sugeri nada porque não sei se ela pode afastar-se da senhora. Parece-me que não se dão conta da gravidade da doença dele. Mr. Dorsett não pára de dizer que estará melhor dentro de um ou dois dias. Os médicos deram-lhe remédios suficientes para eliminar a dor, mas também lhe tiraram a razão. Faz uma semana que não pergunta pelas cartas de Sybil, que sempre tiveram grande importância para ele. A última vez em que tentei ler-lhe uma, fez-me calar.
Ficarei contente se Sybil vier a casa, se é que eu posso tomar conta dela, mas francamente isso me preocupa há muito tempo. A senhora sabe que preciso trabalhar e não posso ficar com ela o dia todo.
Gostaria que me dissesse se tem alguma sugestão a fazer.
Duas semanas mais tarde, a Dra. Wilbur informou Sybil da morte de Willard. Sybil recebeu a notícia sem alterar-se, mas não Mary, que amara ao pai sem reservas. Sybil não queria ir ao enterro, e foi a sua decisão que prevaleceu. Entretanto, na noite do funeral, Sybil sonhou que estava numa festa onde a Dra. Wilbur lhe dizia que seu pai estava morto. "Não está, não está", ouviu seu próprio protesto.
Depois, correndo até a varanda envidraçada, encontrou-o vivo na cama, com gente em pé ao seu redor. Atirou-se na cama, junto dele, ainda protestando: "Não está morto. Não está morto".
Mas Willard estava realmente morto para Sybil, de um modo muito mais devastador do que jamais poderia ter pensado. A notícia comunicada por Frieda de que Willard deixara a filha sem um único centavo colocou Sybil frente à terrível verdade para a qual seus sonhos já a haviam preparado.
— Olhe, Sybil — disse-lhe a Dra. Wilbur, tentando consolá-la —, você sempre teve um grande complexo de Eletra em relação a seu pai, mas também sempre o odiou. A Sybil original odiava tanto ao pai quanto à mãe.
O ódio era reforçado pela ironia das palavras paternas, que agora voltavam para zombar dela: "Se alguma coisa me acontecer, você não ficará desamparada".
Desamparada? Sem a mesada do pai e sem herança, Sybil mal podia sobreviver. Felizmente tinha seu diploma em arte e deixara de freqüentar as aulas preparatórias ao curso de medicina. Além disso, a análise continuaria de graça... seria um investimento da Dra. Wilbur, na esperança de conseguir a integração de Sybil. No entanto, no que concernia a Sybil, aquele era um favor que deveria ser pago. Quanto ao aluguel, à comida, à roupa e a outras necessidades, Sybil dependia dos presentes de seus amigos. Esses presentes, também os considerava como empréstimos. Seus pequenos ganhos vinham-lhe das aulas que dava intermitentemente e da venda de quadros (já não trabalhava no hospital de Westchester). E também do trabalho ocasional na lavanderia, ao qual fora levada por Vanessa.
Nesse meio tempo, a análise, impulsionada pela força da ira que Sybil podia sentir agora, dava passos visíveis. Vicky estava conseguindo juntar as diversas personalidades falando-lhes do passado e do presente da Sybil Dorsett total.
— A turminha — disse Vicky à Dra. Wilbur — está se tornando amistosa.
Já não havia duas Peggys: apenas Peggy Louisiana.
Além disso, a união Peggys aceitava com bom humor a perspectiva de fundir-se com Sybil. Numa manhã de maio de 1962, usando um impermeável de gabardina e olhando de soslaio, Peggy entrou no consultório da doutora, olhou embaixo de cadeiras e mesas, e finalmente anunciou em tom pontificai:
— Devemos chegar ao fundo desses traumas. Necessitamos de um bom trabalho detetivesco, Dra. Wilbur... quer dizer, Dr. Watson.
— Bem, Mr. Holmes — acompanhou-a a doutora —, o que é que vamos descobrir hoje?
Peggy respondeu:
— As peças, Dr. Watson, todas as peças que nos resolverão este caso inusitado.
Durante três dias sucessivos, Peggy representou o papel de Sherlock Holmes, enquanto cooperava na tarefa de desenterrar e erradicar os traumas do passado.
Mas, de repente, bem quando a Dra. Wilbur começava a acreditar na possibilidade de uma integração imediata, Mary caiu numa profunda depressão.
Sentada no consultório da doutora no início de junho de 1962, Mary encontrava-se tão deprimida que não podia falar. No dia seguinte, nenhuma das personalidades compareceu à sessão. Quando a Dra. Wilbur telefonou para o apartamento, não houve resposta. Indo até lá, encontrou Mary embaixo do toucador, negando-se a sair. Conseguindo finalmente tirá-la dali, a doutora colocou-a na cama. No dia seguinte, quando novamente ninguém apareceu, a doutora regressou ao apartamento e a cena se repetiu. Houve muitas dessas cenas. Numa ocasião, Mary murmurou :
— Estou aqui.
— Onde?
— Num lugar de pedra, sem portas, sem janelas, paredes curvas e abertas em cima — respondeu Mary. — Não há nenhuma maneira de eu chegar à abertura lá em cima. Não há saída. Estou encurralada dentro destas paredes.
No começo, a Dra. Wilbur pensou que as paredes simbolizassem o desejo frustrado de Mary de chegar a ter uma casa própria.
— Que lugar é esse, Mary? — perguntou a doutora.
— Tem a forma de um iglu — respondeu Mary. Recordando as discussões anteriores sobre religião com Mary, nas quais esta dissera estar encurralada "dentro destas paredes", a doutora perguntou:
— Esse iglu poderia ser a Igreja?
— Não sei. Não sei — soluçou Mary.
Quando ficou evidente que a religião era o iglu aprisionador e que esse iglu havia formado um funil no progresso da análise, a Dra. Wilbur teve que derrubar o edifício, pedra por pedra. Isso significava analisar novamente o problema religioso subjacente. Quanto mais se concentrava na religião, mais deprimida Mary se sentia. E quanto maior era a depressão de Mary, mais deprimido (e mais suicida) se tornava o ser total. Marcia desejava se atirar no rio Hudson. Desta vez Vicky, que protegera Sybil anteriormente, disse à Dra. Wilbur:
— Marcia quer atirar-se no rio, e me parece que vou deixá-la fazer isso.
— Espere até que eu chegue lá — pediu a Dra. Wilbur. E embora Vicky se houvesse contagiado da depressão intensamente persuasiva de Mary, esperou.
O pesadelo suicida continuou enquanto Mary explicava:
— Embora a gente possa arder por toda a eternidade, só deve doer algum tempo. — Ou então: — Não me importa se não for para o céu. A única razão por que gostaria de ir para lá é para estar com minha avó, e se minha mãe estiver lá vai me impedir de todas "as maneiras de me reunir à vovó.
Depois, chorando, Mary falava do que chamava de "minha amarga infância" e das paredes nuas da igreja de Willow Corners.
Peggy protestou:
— Queremos fazer coisas, mas Mary nos atrapalha. Era paradoxal que, com a libertação de Sybil de sua mãe, que ocorrera na West Side Highway, continuasse havendo um desejo de suicidar-se tão forte em alguma das outras personalidades. A Dra. Wilbur sempre considerara os desejos de suicídio de Sybil como uma expressão do ódio por sua mãe, que se voltava contra ela mesma. No entanto, a doutora imaginou que a libertação de Sybil talvez não tivesse afetado Marcia, que sempre carregara o peso daquele desejo e que ao mesmo tempo sentia, tal como Vicky explicara, a maior necessidade da mãe.
Por sua vez, Mary não fora profundamente afetada pela libertação da mãe atingida por Sybil, pois aquele não era um dos principais problemas de Mary. Os maiores problemas desta personalidade estavam relacionados com a avó Dorsett, o pai e a religião fundamentalista que havia modelado suas vidas. Enquanto Mary aceitara a fé simples de sua avó, de que se devia viver uma vida exemplar, esteve serena. Entretanto, quando permitira ser oprimida pela Igreja e pela teologia, que não importavam à sua avó, mas ao pai e ao avô Dorsett, passara a sentir o peso da armadilha religiosa que, em alguma medida, a maior parte das personalidades, inclusive Sybil, compartilhavam. Para Mary não haveria solução nem diminuição de suas inclinações suicidas até que se visse livre de seu conflito religioso.
Os anos entre 1962 e 1965 ficaram desperdiçados pelo conflito. Ano após ano, Mary permaneceu encurralada em seu iglu; ano após anos se produziu a luta entre a sobrevivência e o suicídio, entre melhorar e continuar doente.
— Todas temos medo de sarar — revelou Marcia à Dra. Wilbur. Mas também havia outro medo. Um medo sutil, indefinível, existencial; um medo que Mike e Sid haviam expressado anteriormente quando perguntaram:
— Vão matar-nos?
"Vou morrer?", perguntava à Dra. Wilbur cada uma das personalidades. Para algumas delas, a integração parecia sinônimo de morte. A segurança da doutora de que, embora se unificassem com Sybil, as personalidades individuais não deixariam de existir, só as convencia em parte.
— Há tantas coisas que preciso fazer — disse Vanessa a Marcia. — Sabe, não viverei muito tempo.
Inclusive Sybil, compreendendo mal o que a Dra. Wilbur queria dizer ao afirmar que Vicky possuía mais da Sybil original do que a própria Sybil, comentou com grande veemência:
— Não quero morrer e deixar meu lugar para esses tagarelas.
Então houve dois acontecimentos novos que fizeram a terra prometida afastar-se ainda mais.
A Dra. Wilbur pensara que Mike e Sid se haviam integrado pouco depois da progressão de idade até os trinta e sete anos. Parecera-lhe teoricamente impossível que "homens" de trinta e sete anos encontrassem sustento no corpo de uma mulher. Parecera-lhe provável que se conformassem em ser a parte masculina que existe em toda mulher. Mas num dia de 1964 ouviu:
— Sou Mike e quero falar com a senhora, Dra. Wilbur.
— Olá, Mike — respondeu a doutora. Bem, pensou, nunca tratara de uma personalidade múltipla antes, de modo que realmente não sabia o que esperar. Por que se surpreender?
— Quero saber algo — perguntou Mike, hostil.
— O quê?
— Até quando vai durar essa farsa de integrar-nos, Sid e eu, com todas essas mulheres?
— Mas já lhe expliquei há muito — lembrou-lhe a Dra. Wilbur — que você vive num corpo de mulher, e tem que aceitar esse fato.
— Então, por que a senhora nos converteu em homens? Isso foi como um ato divino. Não a preocupa?
Mike estava encurralando a doutora do mesmo modo como algumas das personalidades se queixavam que ela os encurralava.
— Não transformei nem você nem Sid em homens — respondeu finalmente. — Assim como nunca foram meninos, agora tampouco são homens.
Depois, acrescentou com voz suave:
— Vocês continuam não tendo pênis.
— Isso é uma mentira — replicou irado Mike. — Uma mentira nojenta. Como todo o resto, o pênis existe na mente de seu possuidor. Meu pênis existe na minha mente. Sou um homem igual aos outros. — Olhou fixamente a doutora e acrescentou: — Não vou ser parte de uma mulher. Nem Sid.
— Onde está Sid? — a doutora tentava ganhar tempo.
— Aqui mesmo — respondeu Sid. — Vim com Mike. Ele falou por nós dois. Agora que nosso pai está morto, somos os homens da família, e nenhuma mulher doutora vai se interpor no nosso caminho.
— Sid — perguntou a doutora —, o que foi que eu fiz para que vocês me falem dessa maneira? Pensei que éramos amigos.
— Então aja como uma amiga — respondeu-lhe Mike. — Dê-nos a liberdade de sermos o que somos.
— Isso é o que estou tentando fazer — respondeu a Dra. Wilbur.
— Não tente enganar-nos com duplos sentidos — desafiou Sid. — Integrar-nos com esse bando de mulheres não é liberdade. É uma prisão.
— Já fomos reféns delas durante bastante tempo — acrescentou Mike, sombriamente. — Chegou a hora da nossa libertação. Queira a senhora ou não, não vamos ser parte de uma mulher. Seremos homens por direito próprio.
— Vocês são o que são — disse a doutora.
— Bem, pois deixe-me dizer-lhe algo — declarou Mike. — A senhora está preparando Sybil para que saia pelo mundo por si mesma. Animou-a a sonhar com ser uma mulher independente e conquistar uma posição social. Professora? Talvez. Mas os melhores lugares em educação são para homens. E Sid e eu não vamos ajudá-la como fizemos no passado. Não vamos construir nada para ela, nem consertar as coisas da casa. E quanto a esse sonho estúpido de ser médica, ela não tem os requisitos suficientes. Todos esses anos estudando matérias científicas de que ela não gostava não a levaram a parte alguma. As faculdades de medicina são muito seletivas em relação às mulheres que aceitam, e não vão aceitá-la. Este mundo continua sendo para homens e, na realidade, as mulheres não têm oportunidade alguma. Doutora, já é hora de que se diga a verdade sobre Sybil Dorsett. É uma mulher, e uma mulher não pode alcançar o sucesso no mundo.
Então, saíram do consultório. Da porta, Mike lançou um ultimato:
— Dê-nos nossa liberdade, doutora. Este mundo não pertence à senhora, mas a nós.
Com Mike e Sid revoltados, e com Mary ainda dentro do iglu, o momento era bastante mau. De novo a Dra. Wilbur teve que recorrer à paciência dos oito anos anteriores.
Na manhã seguinte, a paciente foi Sybil, ajudada por Vicky, Peggy e Ruthie, todas bem perto dela, como que para dar-lhe forças. Como no início da análise, Sybil falava de música, mas não da mesma maneira.
— Não toco piano desde que era uma menina — disse Sybil, saudosa. — Perdi tudo aquilo. Preocupa-me.
— Tocará — prometeu-lhe a Dra. Wilbur com o mesmo tom que o Dr. Taylor empregara para o violino na velha farmácia de Willow Corners. — Tocará piano muito bem.
— Como pode dizer isso? — disse Sybil perplexa.
— Talvez a surpreenda — replicou a Dra. Wilbur — saber que uma das suas outras personalidades toca maravilhosamente. Quando você se unificar com ela, a habilidade de tocar piano lhe será devolvida, tal como Peggy lhe devolveu a capacidade de irritar-se.
O espanto apareceu no sorriso de Sybil.
— Qual? — perguntou.
— Vanessa — respondeu a Dra. Wilbur. — Vou ter uma conversa com Vanessa e tentar convencê-la a aproximar-se mais de você. Ainda está bastante longe, Sybil, mas logo, quando os quinze forem uma coisa só, as coisas serão diferentes.
Pensando em Mary, Mike e Sid, a doutora esperava não ser otimista demais.
Em março de 1964, Mike e Sid ainda lutavam recalcitrantes contra a integração, mas Mary havia saído do iglu. Numa sessão, anunciara:
— A Igreja não importa. O importante é viver uma boa vida cristã e amar o próximo.
Era a mesma filosofia, a filosofia da avó Dorsett, que Mary havia enunciado no começo da análise, mas que se tornara confusa no momento em que a Igreja pretendera agarrá-la.
Resolvidos os problemas de Marcia e Mary, Sybil sentia-se bastante bem, agora, para procurar seu primeiro trabalho de tempo integral desde que chegara a Nova York.
— Vanessa — disse Vicky à Dra. Wilbur — acha que não temos roupa adequada para o nosso regresso ao mundo.
A Dra. Wilbur saiu às compras com Sybil e deu-lhe vários conjuntos de presente. Fortalecida pela roupa nova e pela segurança em si mesma que Peggy lhe devolvera, Sybil, que tinha dificuldades para voltar a ensinar, visto que não o fazia há dez anos, percorreu as ruas de Nova York, passando por diversas agências de emprego.
Despertando às quatro e quarenta e cinco da manhã de 8 de agosto, Sybil percebeu que tinha uns "sentimentos muito nitidamente de Peggy". Fechou os olhos e divagou alguns segundos para ver se podia descobrir o que Peggy desejava. À mente de Sybil chegaram botes de cor púrpura com velas verdes. Numa ocasião pintara uma artemísia na aula do Prof. Klinger, mas nunca gostara muito da combinação de vermelho com verde. Então Peggy disse: "Olhe, há três bandeiras rosa na embarcação". Sybil saiu da cama. Eram cinco horas da manhã, cedo demais para ir procurar um emprego. Resolveu dar a Peggy as tintas e o papel para que desenhasse botes púrpura e verdes com bandeiras rosa. Uma combinação horrível, pensou Sybil, mas por que não agradar a Peggy? Às seis, os botes desenhados por Peggy navegavam de vento em popa. Peggy queria dar ao desenho o nome de Bandeiras rosa; Sybil preferia Sobre as embarcações e a navegação a vela mas acabou concordando com Peggy.
Mais tarde, naquela mesma manhã, Sybil visitou as agências, sentindo-se tranqüila e cheia de energia. Atribuiu seu estado de espírito tão feliz ao fato de haver permitido que Peggy fizesse seu desenho. Naquela manhã Sybil conseguiu um trabalho de recepcionista no Hotel Gotham de Nova York.
Trabalhava ali há uma semana quando Ramón Allegre convidou-a para sair. Aceitou. Desde o começo sua resposta a Ramón, administrador especialmente designado para o Gotham, e que logo voltaria para a sua América do Sul natal, foi positiva.
No dia seguinte ao primeiro encontro, a Dra. Wilbur partiu para uma convenção em Zurique e umas férias no exterior. Acompanhando-a ao aeroporto, Sybil falou-lhe de Ramón:
— Gosto dele — disse com uma franqueza nada vacilante que a doutora nunca a havia visto demonstrar por nenhum outro homem. — Pediu-me que saíssemos novamente esta noite.
— Ele a está apressando — disse a doutora, sorrindo.
— A senhora acha que se trata disso? — perguntou Sybil. — Faz tanto tempo que não tenho um encontro, que me esqueci do vocabulário.
Enquanto o avião da Dra. Wilbur ganhava altura rapidamente, Sybil ficou olhando-o até desaparecer. Depois, encontrando alguns bancos, sentou-se para contemplar a vista. Sentia-se em paz e não sozinha, apesar de a Dra. Wilbur não estar com ela. Pensar em Ramón contribuía igualmente para a sua sensação de bem-estar. Aquilo seria euforia? Essa palavra nunca fizera parte de seu vocabulário, até aquele momento.
Naquela noite, depois de regressar a seu apartamento e antes de Ramón passar para apanhá-la, Sybil continuou sentindo-se como se a doutora a acompanhasse. A Dra. Wilbur lhe dissera freqüentemente que era assim que devia ser, mas nunca experimentara aquela sensação. Desta vez Sybil a sentia realmente. Estava contente por haver podido falar com a doutora sobre Ramón. Sybil sabia que a aproximação que tivera com a doutora fora do consultório fora uma parte importante, talvez a mais crucial, da terapia. E agora Ramón. Também sentia paz ao pensar nele ... um homem a quem não fechara a porta.
RAMÓN
Ramón Allegre despertara em Sybil sentimentos que até então eram para ela completamente novos. Sempre receosa de ver a mesma pessoa, homem ou mulher, muitas vezes de medo que o amigo descobrisse seus lapsos de tempo ou desse com uma das outras personalidades, e habitualmente incapaz de fazer planos uma vez que o dia seguinte podia não lhe pertencer, Sybil aventurou-se a manter com Ramón oito semanas de encontros contínuos.
De dia tinham alguns rápidos encontros para se verem, preocupados mas não distantes. Ã noite e nos fins de semana iam a concertos, teatros, galerias de arte, faziam longos passeios pelo Central Park e, vez ou outra, uma noite no apartamento de Morningside Drive.
Desde que Teddy havia mudado, somente duas pessoas haviam sido admitidas na intimidade de Sybil: Laura Hotchkins, uma amiga de Whittier Hall, e Flora Rheta Schreiber, uma amiga e escritora profissional a quem a Dra. Wilbur apresentara Sybil em 1962. Enquanto Laura e Flora sabiam que Sybil era uma personalidade múltipla e Flora havia estado com as outras personalidades, Ramón nada sabia da condição de Sybil. Assim, saindo sempre com ele, Sybil estava exprimindo sua confiança na própria capacidade de permanecer ela mesma.
Realmente, numa quinta-feira à noite, quando estava fazendo o jantar para Ramón, de repente Sybil constatou que ela já não era mais aquela que tinha sido — uma pessoa exausta, incapaz de amar ou de um envolvimento pessoal. Pouco antes de encontrar-se com Ramón confidenciara a Flora, a quem a Dra. Wilbur e ela haviam aproximado da análise:
— Não consigo sentir nada. Como é que a gente pode sentir alguma coisa quando as próprias emoções são todas misturadas? A gente está tão ocupada com os sentimentos que complicam a existência que não há lugar para outros.
Mas agora Sybil não era mais o abrigo da personalidade que tinha sido quando Stan — que tinha proposto um casamento platônico e que se sentia satisfeito com ela só porque ela não era quente — a tinha cortejado e repudiado.
Com Ramón a coisa era diferente. Estava presa de sentimentos intensos. Seria aquilo amor? Os sentimentos eram novos, tão novos como a experiência de solidez que havia substituído os sentimentos de instabilidade do passado.
Será que estou boa? pensava ela. Era a saúde que tinha arrancado o tremendo peso e a trouxera para perto duma porta metafórica, através da qual estava entrando de novo no mundo?
O que havia atrás dessa porta? Sybil não sabia. Tivera uns lampejos, entrevira aquilo que ela sabia pertencer ao mundo das pessoas sadias, e no entanto sabia que ela ainda era colocada à parte.
Vicky lhe havia dito: "Ramón é uma pessoa decente, mas está muito indócil". Peggy dissera: "Ele é da Colômbia. É um lugar formidável. Ê um país aonde quero ir". Vicky e Peggy eram muito amigas dela. Algumas das outras, contudo, nunca haviam procurado aproximação e lutaram contra a integração. Embora tivesse ocultado o fato a Ramón, ela continuava uma personalidade múltipla.
Preparando o jantar, Sybil admitiu para si mesma que suas depressões e sentimentos suicidas não haviam sido eliminados pela euforia de seu romance. Inclusive naquelas oito semanas tivera ataques de desespero e desejos de um pouco de descanso. O descanso da morte.
Foi ao quarto, começou a vestir-se, olhou-se no espelho. Até conhecer Ramón, os espelhos não faziam parte de sua vida. Atrevendo-se finalmente a olhar, não desgostara do que vira. Parando na frente do espelho, Sybil se deu conta também de que a verdade sobre si mesma, que procurara ocultar de Ramón, estava mudando. Com a idade de quarenta e um anos, esperava-o com a expectativa de uma adolescente. Pela primeira vez, estava apaixonada.
A campainha da porta tocou, e lá estava Ramón, com um ramalhete de rosas na mão.
— Cara — disse ele ao beijá-la —, tive muita saudade de você. — Fazia exatamente duas horas que se haviam visto no escritório, e menos de vinte e quatro horas desde que se encontraram pela última vez.
— Ramón — respondeu ela —, eu também tive saudades de você.
Para Sybil, que muitas vezes caracterizava pessoas, estados de espírito e coisas em cores, que descrevia seus dois anos perdidos como azuis e que concebera galinhas com pés azuis, Ramón parecia todo marrom, parecido com a Terra. Ele a tomava em seus braços com tanta facilidade, apertava-a com tanto ardor que ela, que antigamente detestava o mais leve contato, não recuava.
— É um novo desenho, cara? — perguntava Ramón com os seus olhos pousando no revestimento da lareira, onde havia uma figura sorumbática de giz branco e preto. — É um auto-retrato?
Sybil ficou confusa. Era o retrato de Sybil feito por Peggy.
— Esta figura parece onipotente — observou Ramón. Silêncio.
— Sempre gostei daquele quadro ali — comentou Ramón ao se dirigir para uma figura abstrata em azul num fundo azul mais escuro. Dessa vez Sybil se sentiu mais à vontade, porque tinha sido ela quem fizera aquela pintura.
— Olhe o sombreado — disse ela. — Todas as sombras do azul, que significa amor.
— Nunca julguei o amor azul — respondeu Ramón.
— Azul como o céu, o mar. Eu sempre vi o amor azul — foi a resposta de Sybil.
Ramón estudou o quadro com atenção.
— Dá uma impressão de amor — admitiu. Em seguida, olhando para quadros e pinturas em que predominavam figuras de crianças, observou: — Você raramente pinta gente adulta. Você declarou guerra ao mundo dos adultos?
Sybil riu.
— Não é propriamente isso — zombou ela. — Mas um dos meus temas preferidos é uma casa ampla, onde muitos irmãos e irmãs ficam enfileirados em pé. Suspeito que seja porque sou filha única.
— Essa é a primeira coisa que você me conta sobre seu passado — respondeu ele. — Já se vão oito semanas e eu não sei nada dele.
A observação deixou Sybil inquieta. Circunspecta e cuidadosa em ocultar a verdade a respeito de si mesma, tinha abafado toda a sua autobiografia.
— Tudo o que sei a seu respeito — continuou Ramón — é que você tem a mesma idade que eu e que, como eu, também nunca se casou. Creio que pelas mesmas razões. Ambos estivemos ocupados com outras coisas.
O desassossego se tornara agudo. Sybil mudou de assunto, dizendo:
— É melhor eu ir tirar a caçarola do forno.
No jantar Ramón, um católico romano, rezou antes de começar a comer. Sybil surpreendeu-se com seus pensamentos vagueando em direção ao sentimento fortemente anticatólico de Nancy e ao enleamento de Mary numa Igreja anticatólica. Os conflitos religiosos de Mary haviam sido resolvidos.
Depois de rezar Ramón observou:
— Hoje de manhã recebi uma carta de minha sobrinha. Quer lê-la?
— Não sei ler espanhol — respondeu Sybil, mas apanhou a carta. — Há mais desenhos do que palavras — observou ela, enquanto a examinava com prazer. — Como eu quando tinha seis anos.
Embora não conhecesse a sobrinha de Ramón, Sybil sentia-se afeiçoada a ela e a seus dois irmãos, de quem Ramón falava a toda hora. Sybil chegara a pensar neles como filhos de Ramón, porque ela sabia que, depois da morte da mãe deles, a irmã de Ramón, e de seu marido num desastre de automóvel, ele tinha resolvido adotar as crianças.
Desde o começo, os fortes sentimentos familiares de Ramón haviam comovido Sybil. À medida que lhe fora contando sua história, sentira-se também muito impressionada pela energia que ele demonstrara ao realizar seu sonho de melhorar de posição. Ramón, o mais velho de nove irmãos, foi o único da família que conseguiu estudar. Com uma bolsa, pôde estudar numa universidade católica de Bogotá. Trabalhando de noite e estudando durante o dia, conseguira um título da Facultad de Ciências Empresariales de la Universidad de Colômbia. Formado administrador, conseguira um certo número de cargos especiais em hotéis americanos de primeira categoria.
Quando Sybil devolveu a carta a Ramón, este observou :
— Vejo que você gosta de crianças.
— Como todas as professoras — disse Sybil —, embora já não lecione há anos. Tenho estado ocupada com o trabalho da universidade, como vê. — Sentiu-se inquieta por ter permitido que os vínculos do passado se entrelaçassem com o presente.
— Você devia ter se casado — disse Ramón. — Seria uma mãe maravilhosa.
O quarto ficou em silêncio. A mente de Sybil foi invadida pelas muitas declarações de maternidade que fizera na infância: "Quando crescer, vou ter muitos filhos. Poderão brincar uns com os outros. Serei boa para eles. Vou deixá-los fazer o que quiserem. Não vou bater neles, não os amarrarei, nem os enterrarei num paiol de trigo. Não farei..."
Lembrava-se de como havia imaginado que era uma mãe, como fizera projetos para as suas cinqüenta bonecas, e também para as bonecas de papel. Então, de repente, deu-se conta de que naqueles jogos imaginários jamais pensara em ter um filho. A idéia de família de Ramón coincidia com suas fantasias primitivas.
Enquanto servia o café, Sybil pensou: "Eu poderia amar essas crianças, eu que provavelmente nunca poderei ter filhos".
— Posso imaginar como você devia ser quando pequena — observou Ramón. Sim, pensou Sybil, aquela garotinha, aquelas garotinhas, haviam estado com ela por muito tempo.
A conversa descambava para livros, música e religião.
— Eu costumava ter idéias confusas sobre religião — comentou Sybil. — Agora já não penso da mesma maneira.
— E pensava consigo: "Como foi bom Nancy acabar com aquele seu forte sentimento anticatólico. Nancy nunca teria aceito um católico, e nem me permitiria que o aceitasse". Agora, a diferença de credo religioso não separava Sybil de Ramón.
Ramón ligou o rádio pára ouvir o noticiário. Um locutor estava falando do depoimento de um psiquiatra num caso de assassinato.
— Complejos americanos — disse Ramón com irritação. — Pessoas com problemas reais não precisam disso que vocês americanos chamam "terapia". Latinos e europeus não se permitem essas bobagens de psiquiatria como vocês americanos.
Silêncio.
— Está aborrecida com alguma coisa, cara? Não quis ofendê-la.
— Oh, não, Ramón. — Ela olhou para os cabelos castanhos e para os seus olhos ágeis. Complejos americanos. Complexos americanos? Como estava por fora. Ele nunca poderia compreender as emoções que haviam complicado sua existência.
Sybil levantou-se da mesa para ajoelhar-se perto da lareira.
— Estes dias de outubro podem ser frios — disse ela enquanto acendia um fósforo.
— Deixe-me ajudá-la, cara — respondeu ele, ajoelhando-se ao lado dela.
Ela pensou: Quero me entregar a ele. Quero ter um filho que seja meu mesmo. Oxalá eu pudesse. Estou com medo. Durante oito semanas meus temores o tornaram receoso. Tocamo-nos e beijamo-nos, mas não passou disto. Quero mais — tenho que ter mais.
Correspondendo ao seu convite mudo, Ramón acariciava-a. A cabeça de Sybil recostou-se no peito dele. Ele abraçou-a fortemente.
— Quando tenho uma ereção — disse ele —, eu meço o comprimento. São dezoito centímetros. Está bom?
Ela sorriu nervosamente e lembrou-se de como costumava pensar que o amor machuca, que quando as pessoas amam eles machucam, colocam faroletes e garrafas lá dentro. Em seguida baniu esses pensamentos como lembranças que pertenciam à era de antes que ela tivesse superado o passado.
— Cara, eu adoro você — murmurou Ramón apaixonadamente.
— Não, Ramón — respondeu ela, com um tremor de desejo que explodia, enquanto ia se libertando do seu abraço.
Ele recuou em direção a ela e começou, com o máximo cuidado, a abrir o zíper de seu vestido.
Ela sacudia a cabeça, puxava para cima o zíper e acabou sentando-se no sofá.
— Eu amo você, Sybil.
— Eu também amo você, Ramón. E é por isso que minha resposta é um não.
— Mas eu não entendo isto — protestou ele.
— Sei que você não entende — respondeu ela. — Eu tenho medo.
— Medo de mim, Sybil? — perguntou ele, confuso. — Eu amo você.
— Eu também amo você — respondeu ela. — Mas tenho motivos para ter medo. — Ele olhou para ela duma maneira que refletia perplexidade e ternura. Ansioso por saciar os seus instintos, estava também ansioso por proteger Sybil contra os temores. Disse calmamente:
— Talvez não seja o momento oportuno. — Vestiu o casaco e dirigiu-se à porta. — Até amanhã à noite; vamos à ópera. Venho buscá-la às seis horas. Antes vamos jantar. Vamos a algum lugar onde não tenhamos estado antes. — Beijou-lhe as pontas dos dedos e foi embora.
Depois que a porta se fechou atrás dele, Sybil pensou: Será que ele volta, será que não volta?
Na manhã do domingo seguinte Sybil e Ramón passeavam no Central Park.
— Você está quieta hoje, mi amor — observou Ramón.
— Estava pensando nas folhas caídas — respondeu ela — e nas rochas eternas.
— Minha pequenina está romântica — respondeu ele.
— Quando era criança, escrevia poesias — respondeu ela.
Ramón sugeriu que fossem dar um passeio de charrete.
— Afinal de contas — brincou ele —, sou um visitante em seu país.
Enquanto passeavam de charrete, Ramón puxou do bolso uma caixinha embrulhada em papel branco e amarrada com fita azul.
— Tenho alguma coisa para você — disse, ao abrir o pacote. Ela suspirou profundamente quando descobriu um anel com diamante e rubi, que ele colocou em seu dedo.
— Não será um noivado comprido — disse ele. — Nós vamos nos casar imediatamente. Você vai comigo a
Bogotá por causa das crianças. Depois vamos voltar aos Estados Unidos com nossa família. Está feliz?
Assaltada por sentimentos conflitantes, Sybil permanecia calada. Ela queria àquelas crianças mais, se possível, do que ao próprio Ramón. Se ela fosse a mãe delas, seria boa para elas, desfaria tudo o que tinham feito com ela. Tudo o que lhe parecia impossível atingir estava agora era seu dedo, simbolizado pelo anel de Ramón.
— Você está calada — instou Ramón. — Por quê? Durante um certo tempo o único som que se ouvia era o das patas dos cavalos.
— Nós não vamos ficar em Bogotá durante muito tempo — explicou Ramón. — Você vai ficar com saudades daqui.
Saudade de quê? pensava ela. Ela estava pronta para ir agora. Queria casar-se com Ramón, queria ajudá-lo a tomar conta daquelas crianças.
— Preciso que você me dê a sua resposta imediatamente, não temos muito tempo, cara — suplicou Ramón.
— As crianças não podem esperar. Precisam de uma mãe.
Emoções conflitantes tornavam Sybil incapaz de dar uma resposta. Para Ramón ela parecia séria, absorta. Abriu os lábios como se quisesse falar, mas fechou-os de novo.
— Está se sentindo bem? — perguntou Ramón, ansioso.
Sybil começou a ficar trêmula. Ela não queria selar a sua sorte.
— Você deve dizer sim — insistia Ramón. — Sim é o que tenho visto em seus olhos durante muitas semanas.
Finalmente Sybil falou, numa voz baixa e cortada:
— Ramón, eu amo você. Quero me casar com você e ajudá-lo a criar as crianças. Mas não posso.
Embasbacado e frustrado, ele protestou:
— E por quê? Existe outro no caminho? Silêncio. Ela podia dizer-lhe que havia alguém mais, embora não houvesse nenhum marido ou namorado a obstruir-lhe o caminho. Como ele não haveria de caçoar dela se lhe dissesse que ela era uma personalidade múltipla. Ele era igual aos habitantes do mundo incompreensivo. Pode-se falar com as pessoas a respeito de qualquer outra doença, até de doenças mentais, mas esta ela havia mantido oculta de quase todos.
— Não responde, cara? — perguntou Ramón.
— Dê-me tempo, Ramón — implorou Sybil.
— Sybil, não temos tempo a perder. Tem que ser agora. Essas crianças têm que ter uma mãe. Quero que essa mãe seja a mulher que amo.
Tempo, pensava Sybil agoniada. O tempo sempre a traíra. Ela só perguntou:
— Mas por que tanta pressa assim?
— Você não está vendo? — respondeu ele. — Não posso ficar com essas crianças, a não ser que tenha uma esposa. Não posso trazer estas crianças para viver aqui, a não ser que a esposa seja uma americana.
A insistência do pedido de Ramón de repente tornou-se aterradoramente clara. Ele queria uma mãe para essas crianças, mas queria uma americana sem complexos. Quem iria criar essas crianças? Não seria Sybil sozinha, mas Peggy, Marcia, Vanessa, Mary, Mike e Sid. Ramón nunca entenderia isto.
— Tem que ser agora — gaguejou Ramón.
As outras estavam tomando seus lugares dentro dela. Estava ficando boa. Mas, embora tivesse chegado até a soleira da porta, ainda não tinha entrado. O tempo poderia salvar esse amor, mas Ramón lhe dera um ultimato: agora ou nunca.
— Case-se comigo. Você continua aqui. Eu vou buscar as crianças — prontificou-se Ramón.
— Ramón — respondeu Sybil entre lágrimas de desespero. — Não vale a pena. Simplesmente não posso casar-me com você.
— Pelo amor de Deus, mas por quê? — gritou ele.
— Não posso — repetiu ela.
Virando-lhe as costas, olhou pela janela, combatendo seu desespero.
Em seguida repôs o anel na caixinha e devolveu-a a Ramón.
— Mulher misteriosa — gaguejou Ramón com raiva. — Diga-me a razão de todo este mistério, senão vou embora e nunca mais me verá. — Imediatamente, sua voz mudou, passando de zangada para carinhosa. — Se existe alguma coisa de sério, alguma coisa grave, você pode dizer-me. Eu a amo, Sybil. Eu prestarei atenção.
O "não se atreva a contar" dos dias passados voltou para ameaçá-la. Mas, embora não se atrevesse a contar, não se afastava da verdade sobre si mesma como fizera no passado. Era uma mulher misteriosa para Ramón; entretanto os anos de análise haviam desvendado o mistério para ela. Seu inconsciente parecia-lhe claro, translúcido, enquanto o da maioria das pessoas estava selado pela incomunicabilidade. Seu inconsciente mostrara-se a ela como talvez nunca houvesse acontecido com nenhum outro ser humano.
— Eu a ouvirei — insistiu Ramón.
Ramón estava tão ansioso por captar-lhe os sentimentos, embora fosse tão incompreensível aquilo que ele queria captar... Ramón não tinha penetrado realmente, conforme ela pensara, o véu pesado da solidão que se interpunha entre ela e o mundo. O véu permanecia.
A charrete parou. Quando Ramón ajudou Sybil a descer, ela se deliciou com o contato dele.
Durante a viagem de táxi o silêncio imperou. Depois Ramón e Sybil pararam à entrada da antiga casa marrom. — Você não quer reconsiderar? — perguntou ele. Sua face trazia as sombras da melancolia.
— Oxalá pudesse — disse ela.
Como enfrentar isso? era sua súplica interna. No passado, não enfrentava as crises; deixava que os outros o fizessem por mim. Mas não sou a mesma. Agora posso encarar meus próprios problemas. E também sou capaz de ver a diferença entre o romance e a realidade. Ramón me ama... mas com condições. Eu o amo e desejo filhos dele. Mas está transformando o tempo no velho inimigo traiçoeiro.
Os lábios e as faces de Ramón ficaram lívidos. Descambava para uma cor sombria, para em seguida recuar.
— Não quero a você nenhum mal — disse ele vagamente —, e sim todo o bem. Mas, a não ser que você mude de idéia e me deixe saber o que tem, não nos encontraremos mais.
— Temos, mesmo, que nos despedir desta maneira, Ramón? — perguntou ela.
— A decisão foi sua, Sybil — respondeu ele friamente. — Mas, lembre-se, depende de você.
A avalancha tinha começado, mas a terra ainda não se espatifara. O estrondo veio quando ele censurou amargamente:
— Você não rejeitou somente a mim, mas também àquelas três crianças que você disse que amava sem mesmo conhecer. Mais uma vez lhe digo: você pode ainda voltar atrás. — Virou-lhe as costas, andou alguns passos e voltou para junto dela. Colocou a caixinha com o anel na mão dela.
— Seja como for, fique com ele — disse. — É seu presente de aniversário. Sei que você gosta de coisas bonitas. Leve-o como lembrança da vida que você rejeitou.
Ela voou para dentro de casa.
Tinha repudiado Ramón, pensou Sybil, conforme ela mesma tantas vezes tinha sido rejeitada. Quando tinha três anos e meio perguntou a um médico num hospital: "Você gostaria de ter uma garotinha?" E ele virou-lhe as costas da mesma maneira como ela acabara de fazer com Ramón. Tinha voltado as costas a três crianças da mesma maneira como tempos atrás um médico fizera com uma.
No entanto, num instante percebeu que não tinha motivos para sentir-se culpada por suas ações. Os esforços de Ramón por incutir nela sentimentos de culpa não tinham tido êxito. E essa constatação lhe deu energia.
Terei estado usando o fato de ser uma personalidade múltipla como uma máscara para os verdadeiros temores que me mantêm separada do que mais desejo? perguntou a si mesma. Sou realmente tão nobre, tenho tanta moral para sacrificar-me com o fim de proteger Ramón e seus filhos de minha doença? Mas Sybil sabia que sua própria salvação dependia de que se dedicasse à sua saúde.
Como que confirmando essa repentina visão, a primeira coisa que fez no apartamento foi esvaziar o vaso que continha as três rosas já murchas que Ramón lhe oferecera três dias antes.
Na manhã seguinte Sybil tinha pensado em não ir ao trabalho, mas acabou indo. Consciência de novo, pensou ela. Mas Ramón não estava lá. Sua tarefa especial estava concluída, disseram-lhe, e não havia voltado ao hotel.
Não há tempo a perder. Ramón quis dizer aquilo mesmo que disse.
No fim da semana, julgando muito penoso ficar sozinha onde Ramón e ela haviam estado juntos, Sybil abriu mão do emprego no Gotham.
Sybil estava certa de que Ramón não abrigava sentimentos de vingança contra ela. Tanto por natureza como por princípio estava acima da vulgar satisfação de sentimentos mesquinhos. Provavelmente nunca lhe perdoaria ter desprezado o seu amor, mas isto já era outro assunto.
A recordação era uma tortura constante. Mantinha um fogo lento de remorsos, uma dor trêmula que não queria desaparecer. Tentou vencer seu sofrimento pensando, objetivamente, que houvera uma óbvia manipulação em sua intenção de casar-se. Mas as lágrimas inundavam seus dias. Os comentários dos outros que continuavam dentro dela aumentavam seu problema.
— Era uma boa pessoa — dizia Vicky. — Todos nós gostávamos dele. Você deveria ter-lhe dito a verdade.
E Peggy:
— Era um grande homem. Todas queríamos casar com ele.
E os vitupérios de Vanessa:
— Você o recusou porque talvez no íntimo não o desejasse.
A Dra. Wilbur, que havia regressado pouco depois da partida de Ramón, estava impressionada com o desenvolvimento de sua paciente. Em suas cartas Sybil informava que "esta é a primeira vez em que, com a senhora ausente, eu consegui permanecer eu mesma o tempo inteiro". A psiquiatra que estivera com Sybil durante esse período pôde verificar os progressos dela.
Ademais, tanto no consultório como fora dele, nas primeiras semanas depois da retomada da análise Sybil parecia mais forte e mais confiante. Chegara até a engordar, o que no seu caso estava sempre ligado a uma melhora de saúde, tanto física como mental. Havia um forte aspecto psicossomático na grande hystérie de Sybil.
O namoro com Ramón deixou a doutora preocupada. As referências que Sybil fazia a ele quando lhe escrevia não indicavam a seriedade do namoro. Ela achou que se estivesse no país o namoro poderia ter sido salvo, mediante uma conversa com Ramón.
Mostrando sua maturidade, Sybil insistia que isso não teria adiantado, porque Ramón não entendia problemas emocionais ou doenças mentais. E quando a Dra. Wilbur insistiu para que escrevesse a Ramón, para que ela pudesse falar com ele, ela respondeu:
— O que primeiro me interessa saber é quando vou ficar boa.
— Você já está tão boa — respondeu a doutora — que não se apagou durante a minha ausência. Isso permaneceu também depois que você acabou o namoro com Ramón?
— Sim — respondeu Sybil num tom confiante. — As outras falavam comigo, às vezes, especialmente no começo.
Enquanto a Dra. Wilbur estava assimilando a transformação em sua paciente, Sybil protestou:
— Mas a senhora não respondeu à minha pergunta: quando é que vou ficar boa?
— Sybil, não sei. Você demonstrou vigor em seu namoro com Ramón. Mas os garotos estão ainda lutando pela integração.
Sybil olhou firmemente para a doutora, dizendo:
— A senhora respondeu à minha pergunta. Se me tivesse dito que dentro de um mês, dois ou três eu ficaria boa, eu teria escrito a Ramón para que a senhora falasse com ele. Mas o tempo me traiu de novo.
— Se ele a ama, compreenderá de qualquer maneira — protestou a doutora. — Podemos escrever-lhe e tentar.
— Não — respondeu Sybil calmamente. — Ramón é um homem prático. Ele não vai esperar por uma criatura neurótica.
Quando saiu do consultório da doutora Sybil sentia-se sozinha e deprimida até o fundo da alma. Nos contos, pensava Sybil, as pessoas se pertenciam, amavam, viviam, dançavam, andavam. O que Sybil tinha amado havia desaparecido.
Não esperava poder um dia voltar a amar novamente. E, contudo, havia triunfo na derrota. Em tempos antigos uma crise igual a essa teria feito com que Sybil se dissociasse. Agora, porém, ela não só tinha permanecido em sua autenticidade, mas continuava a reconhecer os novos sentimentos de solidez. O pesar que sentira por Ramón era por demais real, tão seguramente como as emoções do passado pareciam irreais. Embora o pesar fosse terrível, a nova realidade era boa. Apesar da dor, pela primeira vez sentiu-se suficientemente firme para poder defender seu lugar no mundo.
UMA NOVAMENTE
— Vinhas mortas, vinhas velhas, farpas ou cachimbos — disse Marcia em janeiro de 1965, quando estava sob hipnose. — Tenho medo da vida e do mundo, receio entrar nele. Receio ser repudiada, repelida, posta de lado.
— Era o medo natural da reintegração.
— Estou procurando ser uma pessoa de bem entre pessoas de bem — declarou Vanessa. — A vida é para ser vivida e eu já esperei demais.
— Eu acho — admitiu Mike durante a mesma sessão
— que Sybil é mais digna do que pensa que é, ou que eu ou Sid jamais imaginamos. As pessoas se preocupam com ela — Flora, a mãe de Flora, e naturalmente a senhora, doutora, e Ramón.
— Pode ser — acrescentou Sid — que Sybil possa fazer as coisas que Mike e eu queremos fazer mas que não nos permitiram fazer. Talvez não haja nada de mais em uma mulher construir uma parede divisória. Talvez ela possa ser o tipo de mulher que quer ser bem sucedida numa carreira. Com a inteligência de Mike e a minha, e com o nosso entusiasmo, estou certo de que ela pode. Mike e eu não temos nada a opor ao que ela quer fazer. Gostamos da nova Sybil.
A nova Sybil? Quem sou eu? perguntou ela a si mesma. Quem é ela? perguntou da mesma forma a Dra. Wilbur. Porque, embora Sybil não fosse ainda uma pessoa total, já não era mais uma simples personalidade atuante.
A única pessoa que apareceu ao encontro marcado para as Dorsett naqueles dias foi a nova Sybil. Quando a Dra. Wilbur queria comunicar-se com as outras personalidades, só podia fazê-lo por meio de hipnose.
Pouco depois que Mary saiu do iglu, Mary e Sybil Ann foram consolidadas. Vanessa, sempre mais perto de Sybil do que a maioria das outras personalidades, tinha se encaminhado também para a mesma direção. O ataque apaixonado que Vanessa desferia contra a hipocrisia tinha realmente aguçado agora o conhecimento dela tanto no passado como no presente, fornecendo desta maneira à personalidade atuante novas intuições. Marcia, que anteriormente havia expressado um temor típico que a paciente tinha de melhorar, tinha melhorado pela aproximação com Sybil. A aproximação se deu depois que Marcia aceitara o desejo de morte da mãe.
Mesmo quando intimada a comparecer, Peggy não apareceu. Peggy Lou e Peggy Ann já tinham sido consolidadas sob o nome de Peggy; agora a consolidação tinha avançado. Essas guardiãs do passado não integrado, com sua pavorosa fúria e as memórias, haviam voltado para junto de Sybil. Depois de fazer o retrato que Ramón havia admirado — realmente o último trabalho feito por ela — Peggy tinha cessado de existir como uma entidade em separado.
A Sybil que emergira recentemente era, porém, muito diferente daquilo que a Dra. Wilbur esperava. Visto que Vicky tinha todas as memórias e possuía mais da Sybil original do que da Sybil atuante, a doutora pensou que talvez fosse uma boa idéia acabar com todas as outras personalidades, inclusive a Sybil atuante, e permitir que Vicky fosse a personalidade única. De mais a mais, a doutora descobrira que Vicky, como também as demais personalidades, existia com o expresso propósito de disfarçar os sentimentos que a personalidade atuante ou central não conseguia aturar.
Por isso a resposta consistia em preservar a personalidade atuante como tal enquanto se devolviam a ela todas as memórias, emoções, conhecimento e estilos de comportamento das outras personalidades, com o que se restaurariam as capacidades inatas da criança original. Isto significava também que se devolviam à personalidade atuante as experiências da terça parte da vida de Sybil que as outras personalidades sozinhas tinham vivido. Essa tarefa constituía um trabalho pioneiro da Dra. Wilbur.
A doutora sabia que todas as personalidades se haviam aproximado de Sybil. Quando Sybil sofria mudanças, as outras também se modificavam. Anteriormente tinha havido dois planos de negação da mãe de Sybil. Sybil tinha aceito Hattie Dorsett como sua mãe, mas negara o ódio. As outras personalidades haviam negado que fosse sua mãe a mulher que elas odiavam. Depois que Sybil, naquele momento de purgar-se, no carro, aceitara o ódio, as outras personalidades aceitaram Hattie e, agora, a reconheciam como "nossa mãe". Até mesmo Vicky, cujos pais nunca tinham vindo da França para reclamá-la, finalmente admitiu que "a mãe de Sybil é também minha".
Sybil tinha começado a adotar o comportamento das outras. Por exemplo, aquilo que tinha sido prerrogativa exclusiva de Peggy Lou se tornara capacidade de Sybil em desenhar em preto e branco. Efetivamente, entre as personalidades se desenvolveu um acúmulo de estilos de pintura. Por outro lado, Sybil ainda não era hábil nas contas de multiplicar que havia aprendido nas aulas da quinta série de Miss Henderson, embora essa capacidade lhe houvesse sido devolvida por Peggy.
Em maio e junho de 1965 o uso da hipnose diminuiu gradualmente e cada vez mais, agora quase que exclusivamente destinada a manter comunicação com as personalidades que não podiam ser atingidas de outra maneira. Os dias de dissociação de Sybil e o aparecimento espontâneo das personalidades secundárias pareciam superados.
Sybil estava em seu apartamento escrevendo sumários para uma agência de professores onde dera o seu nome, na esperança de conseguir um emprego fora de Nova York. Agora se sentia capaz de agir sem a Dra. Wilbur, e estava ansiosa por poder provar a sua independência. Quando estava escrevendo a máquina seus dedos de repente ficaram entorpecidos. Apavorada, telefonou para a Dra. Wilbur, mas não conseguiu falar com ela. Telefonou para Flora. Quando Flora entrou na linha Sybil estava com todo o corpo entorpecido.
— Estou doente — chorava ela no telefone. — Se alguma coisa me acontecer, por favor, venda o álbum de selos — e veja que a Dra. Wilbur receba o pagamento pela análise.
Sybil tentou falar mais, mas o telefone lhe caiu da mão. Seus braços e pernas movimentavam-se involuntariamente. Arremessando-se pesadamente para a frente foi bater na parede, esborrachou-se pela sala e chegou a tocar no teto. Depois de todas estas piruetas caiu como um monte inerte, no chão.
Foi ali que Flora a achou, muito pálida, com um aspecto horrível. Capaz, finalmente, de falar, Sybil disse com ar de triunfo:
— Presenciei tudo. Entendi o que estava acontecendo em cada minuto.
Erguendo-se, Sybil parecia mais alta do que a sua personalidade normal. Uma voz mais jovem do que a de Sybil, cristalina, cadenciada e alegre, exclamou:
— Sou a garota que Sybil gostaria de ser. Meus cabelos são louros e meu coração é carinhoso.
Dito isto a voz desapareceu, e lá estava Sybil.
— Devo ter me apagado — comentou Sybil. — Novamente? Como pode ser?
Flora percebeu imediatamente que a personalidade loura que havia emergido instantaneamente não era nenhuma das quinze personalidades que ela havia encontrado anteriormente. Será que aparecia agora uma nova personalidade, nesse estágio da análise, quando Sybil estava praticamente reintegrada? Naturalmente, a providência imediata era pôr Sybil na cama, aplicar compressas nos ferimentos e entrar em contato com a Dra. Wilbur. E depois?
— Foi um desarranjo intestinal muito violento — disse a Dra. Wilbur a Flora naquela noite —, seguido de um acesso e de espasmose. Durante todo o tempo em que isto aconteceu Sybil estava perfeitamente a par do que estava sucedendo.
Depois Flora contou à Dra. Wilbur o que se dera com a loura.
— A dissociação foi breve, talvez não tenha ultrapassado um minuto — disse Flora.
— No mês de fevereiro último — respondeu a Dra. Wilbur, pensativa —, dei com esta loura no consultório, embora não a tivesse reconhecido naquele momento. Sybil começou a falar, e depois pareceu apagar durante um minuto, conforme fazia nos tempos antigos. Em seguida ouvi a voz que a senhora descreveu. Foi somente coisa de um minuto, um rápido lampejo.
No dia seguinte a Dra. Wilbur hipnotizou Sybil em seu consultório. Quem emergiu em primeiro lugar foi Mary Ann. — Tivemos uma convulsão — explicou ela. — Há tanta gente que tem convulsões. A gente da velha cidade de Willow Corners — aquela igreja fastidiosa e horrível. Nós odiamos aquela gente.
Vicky disse:
— Na noite passada havia uma pessoa a mais no nosso quarto.
— Cabelos louros — aquela, eu a vi uma vez — acrescentou Marcia. — Não sei o seu nome.
— Quem sabe? — perguntou Vanessa.
— Acho que Vicky sabe — disse Marcia —, porque acho que Vicky a conhece. Quem é ela?
— É uma garota recém-chegada, porém não é nova — respondeu Vicky.
De repente a recém-chegada começou a falar — afetadamente, de maneira estranha, com a cadência de uma linguagem teatral.
— Realmente não sou nova — disse ela. — Já ando pelos dezenove anos. Sou a garota que Sybil gostaria de ser. Nascida num ambiente de tranqüilidade, vivi sem ser percebida. Uma adolescente enquanto as outras permaneciam essencialmente crianças, não herdei traumas da infância. Nunca conheci nem Hattie nem Willard Dorsett, nunca morei em Willow Corners e nunca fui à igreja de Willow Corners. Cheguei em Omaha. Gostava de ir ao colégio e tenho adoração por Nova York. Fiz parte de grêmios estudantis femininos, tive muitos encontros, fui uma animadora nas competições esportivas, uma líder universitária em tudo. Adoro a vida e gosto de viver. A única coisa que atrapalhou o meu caminho é que eu não era livre para ser independente, para ser eu mesma, para poder andar ao sol e enfrentar o mundo. Mas, agora que as outras estão quase prestes a enfrentá-lo, irei com elas. Agora que as outras se desfizeram dos seus traumas, vou juntar-me a elas. Minha vitalidade proporcionará energia; meu gosto pela vida, animação; meu passado incólume, garantia e firmeza. Eu, que nunca estive doente, andarei com Sybil no mundo sem proteção das pessoas de bem.
— Seja bem-vinda — disse Vicky.
— Victoria, você e eu nos pertencemos — respondeu a loura, que ainda não se dera a conhecer pelo nome. — Diferentemente das outras, não andávamos às voltas com traumas mas sim embaladas no desejo de Sybil. Você e eu somos louras — as únicas louras entre as dezesseis. Pelo que entendi, na família da mãe de Sybil havia muitas louras e sua mãe exaltava aquela cor de cabelos. Nós somos louras porque Sybil desejava ser loura.
A loura era uma garota de sonho — a garota que estivera no espelho junto com Sybil, palpitando de anseios adolescentes, quando esperavam por Ramón. E se sua linguagem soava fora do natural é porque se tratava da afetação de uma garota de seus dezoito anos, que arengava seu conhecimento e confiança recentemente adquiridos.
— Vim para libertar Sybil — anunciou a loura. — Quando ela entrar no mundo se desfará daquilo que antigamente eram as vinhas mortas de Marcia e andará comigo por entre árvores que lançam galhos, não no inverno da vida e sim na época de primavera.
Silêncio. A Dra. Wilbur tentou fazer com que a loura falasse mais, mas em lugar dela quem respondeu foi Vicky.
— A loura representa a adolescência de Sybil — disse Vicky.
— Não é tarde? — perguntou a Dra. Wilbur.
— Agora ela precisa estar com Sybil — respondeu Vicky.
— Existe mais alguém? — perguntou a doutora, como se estivesse revivendo os primeiros dias da análise.
E por que deveria haver? parecia Vicky expressar com o encolher de ombros.
— Na verdade não contávamos com a loura. Mas, conforme ela lhe disse, andou por aí durante dezenove anos, embora em estado de inatividade. Como podia ela atuar, se Sybil, com todo o peso de infância, passou pela adolescência somente num sentido de desenvolvimento estritamente físico? — Vicky fez uma pausa. Em seguida acrescentou: — Como foi difícil para Sybil ter uma adolescência! Ela deixou tantas coisas de si para trás, fixadas na infância. Agora que Sybil pôs fora de combate os traumas da infância, a senhora devia contar com o retorno da adolescência perdida em busca da satisfação que a maturidade proporciona.
Quando as palavras de Vicky iam sendo pronunciadas, ouviu-se de novo a voz cadenciada e afetada da loura.
— Ocultei-me até que Sybil começou a namorar. Quando constatei que Ramón não daria certo, surgi para proteger a adolescente Sybil contra um desgosto profundo. Como sabe, ela era uma adolescente quando estava namorando Ramón.
— Se Sybil quer ainda sentir-se como uma adolescente apaixonada, não vejo por que não possa — disse a doutora. — Pessoas de todas as idades namoram. Ela pode funcionar como uma loura de seus dezoito anos mesmo tendo quarenta e dois. Sybil pode integrar você.
— E ela integrou — respondeu a loura. — Não represento nenhuma ameaça para a cura final. Na realidade, vou fazer rodar mais depressa as rodas daquele ato de cura.
— Sybil, você escutou? — perguntou a doutora.
— Sim — respondeu Sybil. — E sei que esta parte de mim, que não deu seu nome, está dizendo a verdade.
O desejo, personificado pela garota do sonho, trouxera nova juventude à vida não vivida, à condição de mulher que não atingira o seu desenvolvimento natural devido à depleção e à descontinuidade.
Frustrante, aterrador, proporcionador de nova vida, o episódio do aparecimento da loura foi o clímax da doença de Sybil.
Depois desse acontecimento, houve muitos dias em que simplesmente permanecia sentada, assimilando as emoções, atitudes, conhecimento e experiências que, desde o início de junho daquele ano, as outras personalidades haviam começado a compartilhar com ela voluntariamente. Enquanto dava uma outra olhada à nova personalidade que eclodia, ocorria em seu íntimo uma tremenda reorganização dessa personalidade. O passado se fundia com o presente; as características de cada uma das personalidades, com as das outras. O passado regressava, e com ele a menina original chamada Sybil, que não existira como entidade desde que tinha três anos e meio. Nem tudo apareceu imediatamente em nível consciente, mas as coisas significativas que passaram para essa dimensão foram uma memória normal e um sentido novo do tempo. Depois de trinta e nove anos, o relógio deixava de ser incompreensível.
Uma semana depois da crise do dia 7 de julho Sybil estava conversando animadamente com a Dra. Wilbur a respeito dos seus planos de se tornar uma terapeuta ocupacional. Estes planos implicavam a saída de Nova York.
— Parece que os antigos temores já desapareceram — observou a Dra. Wilbur. — Você parece estar boa.
— Oh, sim, doutora, já estou boa — respondeu Sybil, sorrindo. — Já venci meu último acesso. Mas eu estava plenamente consciente de tudo o que estava se passando durante o acesso. Não foi da mesma maneira como se dava no passado. — E depois acrescentou: — E a loura? Pois bem, sinto que ela está comigo. Sei que nunca mais me dissociarei.
— Antes você nunca disse isto — observou a doutora —, mesmo durante todo este tempo em que nenhuma das outras apareceu.
— Não disse nada — afirmou Sybil —, porque antes nunca senti que era assim.
— Podemos saber — explicou a doutora — se todas as memórias das outras são agora suas. Vamos tirar a prova?
Nas diversas sessões de hipnose que se seguiram a Dra. Wilbur comparou as memórias de Sybil com aquelas das outras personalidades que ainda possuíam identidades individuais.
Nenhuma dessas personalidades tinha uma memória sequer que Sybil não tivesse também.
A atitude de Sybil para com essas personalidades havia se modificado por completo, indo da negação inicial à hostilidade e depois até a aceitação — até o amor. Tendo aprendido a amar essas partes de si mesma, efetivamente substituiu a autodepreciação pela auto-estima. Essa substituição constituía uma medida importante de sua integração e recuperação.
Três semanas depois da crise do dia 7 de julho, a Dra. Wilbur hipnotizou Sybil e chamou por Vicky Antoinette.
— Vicky, como vão as coisas? — perguntou a doutora. — Que progresso está havendo?
— Como a senhora sabe, agora sou parte de Sybil
— respondeu Vicky. — Ela sempre quis ser igual a mim. Agora nós somos uma só. Eu costumava dizer: "Este ou aquele acontecimento se deu antes de meu tempo". Agora digo: "É depois do meu tempo". A senhora vê que não sou mais completamente livre.
Aquela foi a última Vez em que a Dra. Cornelia B. Wilbur falou com Victoria Antoinette Scharlot.
No dia 2 de setembro de 1965 a Dra. Wilbur registrou o seguinte em seus apontamentos diários de análise do caso Dorsett: "Todas as personalidades se reduziram a uma só".
O dia 30 de setembro foi um dia de mudança na velha casa de pedra marrom. Os móveis e os quadros de Sybil foram para a Pensilvânia, onde ela conseguira um emprego como terapeuta ocupacional; ela própria passara a morar no apartamento de Flora para passar as últimas duas semanas em Nova York.
A Sybil que entrou no apartamento de Flora era nova não somente para Flora, mas até para si mesma. Não era o mesmo que a Sybil atuante. Tampouco era alguma das outras quinze personalidades. Ela era todas elas. Como Miranda em A tempestade, parecia encontrar-se no limiar da descoberta, quase literalmente gritando:
Ó milagre:
Quantas criaturas agradáveis existem aqui:
Como ê formosa a humanidade:
Ó bravo novo mundo,
Que contém semelhante povo!
O mundo parecia novo porque ela era nova; real porque ela, pela primeira vez em sua vida de adulta, era uma personalidade total e real. Quando tirou o seu casaco, guardou as malas, afundou numa cadeira e ficou em silêncio. Em seguida falou:
— Já estive aqui, e, no entanto, nunca vim aqui antes.
— Quem é esse eu? — perguntou Flora.
— Aquele que pode sentir — respondeu Sybil. — Agora tenho sentimentos novos, sentimentos reais. E não é assim que costumava ser.
Este "não é assim que costumava ser" era a chave para compreender que, embora Sybil tivesse agora as sensações que haviam sido mascaradas durante trinta e nove anos pelos outros, sua escala de referências continuava sendo a da personalidade primária.
Flora tinha preparado um lanche, e enquanto comiam falaram por uns instantes sobre coisas sem maior importância. Depois, a propósito de uma coisa de somenos que havia sido dita anteriormente, Sybil observou:
— As memórias fazem uma pessoa amadurecer emocionalmente. — Embora tivesse sido feita de maneira generalizada, para Flora a observação de Sybil se referia claramente ao seu estado, o que se confirmou pelo que Sybil prosseguiu dizendo: — Agora que as outras me devolveram suas memórias, tenho conseguido amadurecer emocional-mente; agora que sou completa, sou madura.
Paradoxalmente, enquanto esta nova Sybil parecia mais madura, parecia também mais jovem do que seus quarenta e dois anos. Essa impressão se acentuou ainda mais quando ela observou:
— Estou descobrindo coisas que todo mundo de minha idade já conhece faz muito tempo.
Na manhã seguinte, no café, Sybil disse:
— Houve uma época em que esperei conseguir chegar a saber o que estava fazendo sempre que estivesse fazendo alguma coisa. — Depois, com intensidade compulsiva: — Agora me inteiro do que acontece a cada minuto. Quando acordo, sei o que fiz ontem e posso planejar o que vou fazer hoje.
Olhou para Flora e sua mãe, e perguntou com ardor:
— Vocês entendem o que significa ter o dia todo pela frente, um dia que se sabe que será seu?
Finalmente, depois de trinta e nove anos, podia dispor de um dia completo só para ela; um dia cheio. Antes o seu tempo ficava à mercê das outras personalidades.
Com a oportunidade de auto-realizar-se, todas as manhãs, quando planejava o dia, os seus olhos cintilavam e traíam um alvoroço que todo mundo podia perceber, e que era desproporcional à natureza da atividade. Esse alvoroço continuava com intensificada consciência quando as horas do dia iam se desdobrando e sendo preenchidas com coisas corriqueiras — leitura de livros, televisão, bate-papos.
— Vejo o nome de um figurão da vida pública no jornal — observou ela a Flora certa noite. — Ouço-o de novo na televisão. Depois alguém fala a respeito do assunto. Sempre o reconheço!
E transparecia um reminiscente tormento em seus olhos quando acrescentava:
— No passado, houve muitas ocasiões em que eu não pude fazer isto. — Demorava-se na expressão "no passado" com o fascínio que alguém sente por um horror que passou. Depois, interpretando o isolamento, a marginalização que havia representado ser uma personalidade múltipla, explicou: — Via o nome num jornal, mas quando o mencionavam de novo na televisão freqüentemente não era eu e sim um dos outros que o via. Quando surgia numa conversa, talvez um outro é que estivesse lá. As partes não encaixavam uma na outra.
Estava novamente usando o eu como escala de referência do antigo indivíduo primário. Triunfalmente acrescentou:
— Agora as partes estão juntas. O mundo parece um todo.
Sua expressão tornou-se repentinamente pensativa quando, olhando fixamente para Flora, comentou com ansiedade:
— Sei que para outras pessoas não causa nenhuma impressão poder ver um programa de televisão inteiro, sem interferências de seu interior. Mas para mim é toda uma revelação.
Outras idéias iam sendo expressas:
— Aqui tudo é tranqüilo, muito tranqüilo — disse outra tarde. — Pensando nisso percebo que também há tranqüilidade dentro de mim. Não discuto comigo mesma.
Em outra noite, quando voltava com Flora e sua mãe de um jantar, Sybil resumiu a noitada com o supremo elogio, dizendo:
— Eu estive lá durante o tempo todo. Eu mesma, Sybil. Vejo as comidas, lembro-me de cada palavra da conversa. De tudo.
Coisas simples assumiam o caráter de acontecimentos. Por exemplo, certa manhã, quando Sybil estava fazendo as compras, ao voltar para o apartamento descobriu que tinha esquecido de comprar suco de laranja. — Maravilhoso! — observou ela de bom humor. — Como é fantástico a gente poder esquecer da mesma maneira como os outros o fazem! — Mais do que uma tirada de humor, esta declaração era uma confissão de inclusão — de sentir-se parte integrante da raça humana.
Um dia Sybil quis ir a uma loja para comprar um vestido. Flora foi com ela. A loja estava apinhada de gente. A vendedora foi atender uma freguesa que tinha entrado depois de Sybil.
— Desculpe, mas eu cheguei primeiro — protestou Sybil. Flora prendeu a respiração. No passado tal afirmação teria sido impossível, teria que partir de uma das outras personalidades, provavelmente de Peggy Lou. No entanto, a única personalidade presente era a recente e confiante Sybil.
Uma nova indicação do êxito da análise aconteceu em seguida. A vendedora entregou a Sybil a nota da compra. Ela a examinou, multiplicando o número de metros para verificar se o total estava certo. No passado, Sybil teria pedido a seu acompanhante que fizesse isso por ela. Mas, possuidora agora do conhecimento de que Peggy Lou fora depositária desde o quinto ano de Miss Henderson, e ajudada pela fase pós-analítica de seu tratamento, durante a qual a Dra. Wilbur ensinara à nova Sybil como usar os conhecimentos que as personalidades lhe haviam devolvido, Sybil realizou o cálculo por si mesma.
Na seção de roupas, Sybil resolveu comprar um vestido marrom com punhos vermelhos e dourados, e um cinturão. Ao sair da loja, comentou com Flora:
— Comprei a roupa marrom por Sybil, mas os punhos interessam ao que existe de Peggy em mim.
Fora da loja, Flora foi chamar um táxi. Sybil a deteve, dizendo:
— Vamos tomar o ônibus.
Lembrando do intenso terror por ônibus que Sybil sentia, Flora se deu conta de como era importante aquela sugestão.
— Todo o mundo pode tomar um ônibus e ir a algum lugar. É tão simples — comentou tranqüilamente Sybil. Depois, já no ônibus, Sybil expressou os pensamentos que Flora tivera enquanto se encontravam na loja. — Antes costumava fazer com que outras pessoas calculassem por mim, ou não me preocupava com a mais simples das contas. Mas agora faço-a por mim mesma. Posso pedir as coisas que desejo, calcular o troco num táxi, medir o tecido de que necessito para uma roupa ou para cortinas, medir as telas para meus quadros... fazer todas as coisas que antes não podia.
Deu novamente aquela curiosa ênfase à palavra "antes", que além do mais vinha acompanhada pela alegria de haver expressado uma nova liberdade.
Havia, ainda, momentos em que Sybil demonstrava lampejos daquilo que costumavam ser as outras entidades. A nova Sybil andava de cá para lá na sala de estar, dizendo:
— Vou embora. Vou arranjar outra vida. Tudo está tão excitante. Há muito que fazer, muitos lugares a que quero ir. — A Flora, isto lembrava o momento em que Peggy Lou havia planejado romper com as outras para sempre. Um toque de Vicky ficava evidente quando havia visitas e Sybil conversava sobre a mobília americana primitiva ou declarava com convicção:
— Não posso compreender como alguém consegue se entediar.
A loura tão tardiamente identificada e que foi integrada tão depressa parecia nunca estar ausente na animação do novo entusiasmo de Sybil.
A nova Sybil consertava um vaso de cerâmica quebrado como Mike e Sid podiam fazer, preparava um cozido com carne de carneiro que Mary costumava fazer e, o que era mais surpreendente, tocava o Noturno de Chopin. No passado, somente Vanessa sabia tocar piano.
Traços de Nancy Lou Ann pareciam estar presentes quando Sybil confidenciou a Flora:
— Sinto-me envergonhada de ter tido uma visão estreita e fanática. Agora não tenho medo dos católicos! — E quando Sybil acrescentava: — Minhas crenças religiosas fundamentais continuam sendo as mesmas, mas há uma modificação nelas que eliminou o tormento e que lhes dá uma nova perspectiva — era como se estivesse dizendo: "Mary saiu do iglu" .
As personalidades, como entidades autônomas e independentes, tinham desaparecido, integradas com êxito, contribuindo para a unicidade dos vários aspectos de uma personalidade harmoniosa.
Naturalmente, embora essa unicidade trouxesse uma sensação de alegria por estar,viva, uma sensação de encantamento por ter um dia todo pela frente, nova confiança para enfrentar o mundo, e um equilíbrio que surgia de uma nova maturidade e uma juventude que não tinha nada que ver com a juventude cronológica, a psique recém-curada de Sybil ainda era um tanto frágil... e não estava disposta a confiar totalmente em si mesma.
Havia momentos de pânico agudo, rapidamente reprimido, erupções de medo com relação ao futuro.
— Não quero ficar doente de novo — murmurava de vez em quando. — Tenho medo do que possa acontecer à medida que o dia passa.
Flora contemplava o acervo de temores de Sybil e chegava à conclusão de como era normal que Sybil tivesse medo da velhice, exatamente como todo o mundo.
O mais doloroso era falar de Ramón. Foi somente na noite anterior ao dia em que começava em seu novo emprego que disse, afinal:
— Teria pedido a ele que esperasse — exclamou angustiada —-, se tivesse sabido que ia melhorar tão depressa.
E Sybil, que em outra época teria sido incapaz de chorar, deixou que as lágrimas corressem.
Durante as duas semanas da estada de Sybil com Flora, a Dra. Wilbur se manteve em estreito contato. Sybil recebia telefonemas seus diariamente; diversas vezes a doutora foi ao apartamento para jantar. Sybil e a doutora falavam sobre seus novos planos. Sybil arranjara colocação como terapeuta ocupacional num hospital da Pensilvânia para crianças emocionalmente perturbadas. Para ela, aquela ia ser uma colocação temporária, até que pudesse entrar para o magistério.
Na noite da partida — 15 de outubro de 1965 — a doutora e a ex-paciente deixaram o apartamento de Flora. Duas mulheres que tinham empreendido, juntas, uma jornada de onze anos começavam suas caminhadas em separado rumo à aurora da nova era de uma Sybil renovada. O fato de que houvesse uma décima sétima personalidade que suplantava a personalidade exaurida atuante constituía prova de que a verdade é interior, e a superfície, uma mentira. Porquanto, sepultada sob a personalidade esgotada, que o mundo via, havia estado essa nova mulher, essa mulher completa, durante tanto tempo negada.
25 de setembro de 1966
Veja só! Já estou aqui há quase um ano. Ê o primeiro ano contínuo de minha vida. É formidável ver como os dias se desdobram em semanas...
8 de janeiro de 1967
Para mim é ainda uma maravilha ó quanto uma pessoa de bem pode realizar; sou tão feliz
O NOVO TEMPO DA NOVA SYBIL
Eu, a Flora da história e a autora do livro, tenho estado em contato estreito com Sybil nos sete anos e tanto que se passaram desde que ela saiu do meu apartamento. Tomando conhecimento de trechos de algumas das cartas que ela me tem escrito, vocês terão uma idéia de relance da nova Sybil em sua nova era.
4 de novembro de 1965
Gostaria que você visse a minha casa. Connie (Dra. Wilbur) disse que saía mais barato comprar do que alugar, e me emprestou o dinheiro para a entrada... O quarto de hóspedes é bastante grande. Ê para você, a Dra. Connie e Laura, alternadamente, claro. Está vendo? Estou tão emocionada por ter, finalmente, meu cantinho próprio! Capri está aqui comigo. Seu lugar favorito é a sacada da janela da frente. Às vezes fico me perguntando se ela percebe que estou sozinha...
20 de janeiro de 1966
Neste último inverno tive tempo de ler alguns livros: Amizade e fratricídio, A procura de Amélia Earhart, Papa Hemingway, A volta do júri (Nizer), Dinheiro dos outros, O rei no castelo, O espelho chinês e os três volumes de Bruce Catton sobre a Guerra Civil. A maioria destes livros, como a maioria dos artigos de revistas que li, tratam de acontecimentos e de pessoas que estavam nos jornais na época em que tantas coisas estavam acontecendo comigo que não era capaz de seguir o curso de coisa alguma. Eram coisas de que eu ouvia falar somente por controle remoto. Há tanta coisa em que tenho que me atualizar! Por exemplo, Alger Hiss e Whittaker Chambers não passavam para mim de meros nomes.
25 de setembro de 1966
Veja só! há quase um ano. Ê o primeiro ano contínuo de minha vida. Ê formidável ver como os dias se desdobram em semanas e as semanas em meses, sobre os quais posso relancear os olhos e recordar. Até agora só faltei a um dia do trabalho (dor de ouvido no último inverno). É a maior experiência que jamais tive em minha vida. As pessoas simplesmente encaram tudo como corriqueiro, e acho que perdem o significado real das coisas.
Tudo correu muito bem. Nem tudo muito fácil, mas sem nenhum problema. Depois de sete meses cheguei até a ser aumentada nos meus vencimentos. Fiquei tão surpresa porque não esperava nada disso, uma vez que eu tinha assinado um contrato estipulando o salário. Estou ainda pensando em voltar a ensinar, porém. Existe uma boa possibilidade.
Você me perguntou se as aulas de arte que mencionei eram para mim ou por mim. Parece-me que lhe falei a respeito delas anteriormente. Você sabe, muitas vezes eu converso com você mentalmente e depois me esqueço de que na realidade não lhe disse nada. As aulas são de pintura a óleo e para adultos. Ensino-os no ateliê da minha residência. Veja só: residência e não casa. Finalmente, Mary e as demais têm uma residência, mas não existe nenhuma Mary e nenhuma das outras. Só eu.
8 de janeiro de 1967
Para mim é ainda uma maravilha o quanto uma pessoa de bem pode realizar; sou tão feliz!
14 de janeiro de 1967
Você nunca vai imaginar o que finalmente consegui terminar. O quadro para colocar acima de seu sofá-cama. Não é aquele que eu tinha começado para vocês duas. Simplesmente não tive ânimo para terminar aquele depois que sua mãe morreu. Não podia enfrentar os sentimentos de perda, e estou certa de que você compreende. Por isso, comecei um quadro completamente diferente. É um em caseína (parecida com óleo e tão firme quanto ele), está com a moldura e pronto para levá-lo a você quando formos a Nova York. O que, se Connie ainda não lhe falou, deve ser dentro de duas semanas. Ela tem compromissos lá, e eu vou junto para levar o quadro (o qual, por falar nisso, é de humor e impressão, não de realismo) e para ver você e Laura, e também para fazer algumas compras. Até lá...
8 de fevereiro de 1967
Muito obrigada pelos livros que me mandou. Que estúpida fui quando os esqueci depois de você ter tido tanta amolação para consegui-los. Claro que Connie diria que é meu inconsciente que não queria deixar seu lar. Pois bem, foi uma visita curta, mas podemos sempre esperar por outra. Eu pensava que tinha deixado os livros num táxi quando demos umas voltas e só dei pela falta deles muito depois. Mas nem sequer imaginei que alguém pudesse tê-los escondido de propósito.
11 de agosto de 1967
Hoje vou lhe escrever umas notícias-relâmpago, porquanto você e Connie devem ser as primeiras a saber da minha grande novidade — ao menos grande para mim, seja como for. Ontem descobri ao certo que a partir de 1º de setembro serei professora assistente. Estou tão comovida! Entrevistaram outras dezoito e eu estava certa de que nunca teria uma chance, mas me disseram que a escolha foi unânime e não havia nenhum problema depois que me entrevistaram. Isto ajuda o meu ego. Não é para me sentir feliz? Mais detalhes e novidades dentro de pouco...
24 de agosto de 1967
Passei o fim de semana com Connie. Ela me fez uma permanente e eu costurei um vestido de verão de náilon branco estampado, o qual depois ela vestiu para que eu fizesse a bainha. Lavamos e ajeitamos os nossos três poodles. Eles não gostam muito. A minha cadelinha choraminga e os dois de Connie tentam morder-nos. Mais divertido ainda. Sua TV a cores e o estéreo são maravilhosos, mas mesmo assim encontramos tempo para jogar scrabble (nosso jogo favorito). De três jogos ela ganhou dois, como acontece quase sempre.
Trabalho muitíssimo, mas gosto muito. Ficaria contente se você pudesse ver como a minha laranjeira floresce. Tenho todo tipo de flores no jardim...
20 de novembro de 1968
Ê maravilhoso como as coisas estão indo bem. Depois de pouco mais de três anos há momentos em que ainda não consigo acreditar em como sou feliz. Posso lembrar-me de tudo e posso dar conta de todos os minutos do dia. Você pode muito bem compreender como me sinto tranqüila por ser somente Sybil porque você me conheceu quando eu não era assim.
No dia 6 de junho de 1969 Sybil escreveu dizendo que viria a Nova York representando sua faculdade numa convenção. Na cidade que durante onze anos tinha sido a sua moradia fragmentada ela fez visitas juntamente comigo, mas andou também sozinha pela cidade. No dia 2 de julho de 1969 recapitulava aquela visita, do posto de observação de sua moradia:
Quando eu andava pelas ruas de Nova York, muitas lembranças semi-esquecidas me vinham à mente, mas todas elas sem emoções exageradas. Simplesmente relembrava velhos tempos, recordando os sentimentos que então me provocavam, sem contudo revivê-los. Quando, porém, tornava a visitar lugares familiares, tomava consciência de memórias que não eram recordações daquilo que tinha acontecido a mim, mas antes a uma das minhas anteriores personalidades. Lá estava a loja de roupas onde Peggy Lou fez compras, o hotel onde Marcia e Vanessa passaram uma noite, e o confronto no Metropolitan Museum of Art com Marian Ludlow, que tinha sido amiga de Vicky. Marian me reconheceu imediatamente. Lembrando-me dela através de Vicky, que agora é parte de mim, conversei com Marian aceitando-a como minha amiga.
Todas as cartas que escreveu posteriormente continuavam a externar a alegria que sentia por ser uma pessoa normal num mundo em que se movimentava sem nenhum incidente num tempo em que os relógios não pareciam mais ter seus caprichos. Os temores do passado tinham sido postos de lado.
Naturalmente, de vez em quando surgia uma espécie de melancólica saudade, que ela expressou numa carta do dia 28 de maio de 1970:
Teria realizado muito mais coisas do que na realidade fiz se durante todos aqueles anos as coisas tivessem sido diferentes. Contudo, creio que tenho uma intuição e uma compreensão dos meus estudantes que não teria tido de nenhum outro modo. Jamais me esquecerei de que fui uma personalidade múltipla. Mas, embora eu ainda reconheça sentimentos associados a essas personalidades anteriores, esses sentimentos são iguais aos de qualquer outra criatura — simplesmente aspectos diferentes de uma pessoa.
E o tempo? O tempo é tão maravilhoso porque está sempre presente. Há alguns dias aconteceu uma coisa na aula de que vocês vão achar muita graça. Uma das minhas alunas, que é professora, adoeceu e faltou a muitas aulas. Quebrando a cabeça com uma folha de presença, não conseguia imaginar que tivesse perdido tanto tempo assim. "Miss Dorsett", perguntou ela, "a senhora sempre conseguiu dar conta do seu tempo?" Eu me saí pela tangente com um "sim, por quê? Sim", da maneira mais indiferente que pude.
Sua declaração me fez lembrar meus encontros diretos com os usurpadores do tempo de Sybil: Peggy Lou, que certo dia emergiu espontaneamente quando eu estava almoçando com Sybil no velho prédio marrom; a loura; e aquela vez em que a Dra. Wilbur hipnotizou Sybil para me apresentar a todas as personalidades, perguntando-lhes se estariam prontas a cooperar comigo caso eu fosse escrever este livro. Nunca tinha encontrado Vicky, mas ela respondeu muito educadamente: "Conheço Flora há muito tempo". Ruthie se queixou de que "Sybil não nos dá comida suficiente" e Peggy Lou observou que "não compreendo por que a senhora quer escrever um livro sobre Sybil com todas as pessoas".
Enquanto Sybil recordava ter sido uma personalidade múltipla em tempos idos, a Dra. Wilbur estava ainda vivendo de perto com as personalidades múltiplas. Com efeito, em sete anos a Dra. Wilbur diagnosticara e tratara seis casos de personalidade múltipla — cinco mulheres e um homem. Nenhum desses casos foi submetido a psicanálise, mas todos foram tratados com psicoterapia psicanalítica e hipnose. Todos foram integrados, embora um, tendo sofrido uma recaída, teve que ser reintegrado em um segundo tratamento.
Na ocasião em que a Dra. Wilbur os viu pela primeira vez, todos esses casos tinham uma idade que variava de doze a trinta e três anos; dois deles possuíam cada um duas personalidades; três tinham quatro personalidades cada um; um, sete personalidades. Com exceção de uma, que tinha doze anos, todas as mulheres tinham instrução secundária. Mas nenhuma delas era tão inteligente ou talentosa ou um caso tão complicado como o de Sybil Dorsett, que continuava a fazer história na medicina.
Todos esses casos tinham sintomas que seguiram uma seqüência previsível como a do sarampo. Cada um tinha uma personalidade central, ou atuante, que correspondia à Sybil atuante, e personalidades alternantes das quais a personalidade atuante não tinha conhecimento e diante de cujas memórias e experiências ela (ou ele) era amnésica. Em cada um dos seis casos havia uma personalidade "Vicky", que sabia tudo a respeito de todas as personalidades e que servia como trilha de memória.
As causas de múltipla personalidade continuam, porém, indefiníveis, embora a evidência tanto nestes casos como no de Sybil indique pelo menos um fator comum de relação de causa e efeito: um ambiente inicial (o seio da família) tacanho, simplório e histérico. Por exemplo, uma professora primária com quatro personalidades, que a Dra. Wilbur tratou no hospital da University of Kentucky Medical School, era filha de um ministro rabugento. Esse pai fanático, que faz lembrar o avô Dorsett de Sybil, não permitia que seus filhos saíssem de casa depois do escurecer porque acreditava pia e santamente que quando o sol descia o Diabo começava a espreitar nas colinas.
Pode-se perfeitamente assegurar e pressupor que o ambiente histérico gera um histérico; em seguida o histérico se torna uma personalidade múltipla com a finalidade de revestir-se de identidades que lhe possibilitam fugir dos padrões tacanhos dum ambiente opressivo. O que todavia continua indefinível é por que motivo uma pessoa em semelhante ambiente deva procurar este meio particular ao passo que outra não, no mesmo ambiente.
O que está claramente comprovado é que a fuga, que se realiza sem o conhecimento da personalidade atuante, longe de ser um ato consciente é uma estratégia da mente inconsciente. Claro está, também, que as personalidades, que são parte da estratégia e que existem sem conhecimento da personalidade atuante, funcionam como entidades independentes, autônomas.
A autonomia, constatada no caso das personalidades de Sybil e, através de observação direta desses outros seis casos, reafirmada pela Dra. Wilbur e seus colegas, resistiu também diante da investigação atenta de dimensões objetivas. A constatação surpreendente foi que a personalidade atuante e cada uma das personalidades secundárias de uma personalidade múltipla dada reagem como pessoas diferentes.
Item: As quatro personalidades de uma pessoa de vinte e quatro anos, cada uma das quais foi submetida independentemente a um teste psicológico de associação verbal, tiveram reações completamente diferentes diante de palavras isoladas e de grupos de palavras. Além disso, de personalidade para personalidade não houve vazamento nem fecundação cruzada de uma única associação de palavras. Inequivocamente, as personalidades i, II, m e iv eram tão independentes em suas reações como se fossem quatro indivíduos distintos.
Item: As quatro personalidades de outro paciente (Jonah) de vinte e sete anos de idade foram submetidas a uma série de testes psicológicos e neurológicos. As personalidades reagiram com independência completa de uma para outra. Até seus EEGs (eletroencefalogramas) eram diferentes.
Um estudo que ganhou um prémio da Society for Experimental and Clinicai Hypnosis esquematiza os resultados. Com o título de "Estudo objetivo de uma personalidade múltipla", o artigo foi publicado em Archives of General Psychiatry, em abril de 1972, e teve a colaboração dos doutores em medicina Arnold M. Ludwig, Jeffrey M. Brandsma, Cornelia B. Wilbur, Fernando Bentfeld e Douglas H. Jameson, os quais estabeleceram o quadro do eeg de Jonah e de suas personalidades secundárias — Sammy, King Young e Usoffa — da seguinte maneira:
Embora as quatro personalidades de Jonah tenham sido comprovadas através de testes objetivos e de observação clínica, treze psiquiatras não conseguiram localizar a natureza de sua doença. Que a Dra. Wilbur, que havia recentemente feito uma investigação profunda de onze anos no caso de Sybil Dorsett, tenha feito os diagnósticos não somente de Jonah mas também dos outros cinco casos no decurso de sete anos, parece indicar — justamente pela lei das médias — que esta doença ocorre com mais frequência do que os médicos reconhecem. Não é impossível que muitas pessoas que sofrem de amnésia sejam na realidade personalidades múltiplas. De qualquer maneira, uma vez que o prognóstico é muito bom quando a múltipla personalidade é constatada e devidamente tratada, torna-se de capital importância que se amplie o conhecimento deste campo da ciência médica muitas vezes ignorado e ainda pouco explorado.
Sua importância está implícita numa declaração de Freud, que aparece em A interpretação dos sonhos:
Toda a multiplicidade dos problemas da consciência só pode ser compreendida por uma análise dos processos de pensamento em histeria... Exemplos de toda variedade possível sobre como um pensamento pode ser subtraído do consciente ou então ter sua passagem forçada para o consciente sob certas limitações devem ser encontrados na estrutura de fenômenos psiconeuróticos.
Se traduzirmos "pensamentos" para "personalidades secundárias", teremos então o análogo das sete personalidades múltiplas, inclusive Sybil Dorsett, de quem a Dra. Wilbur tratou.
Durante o fim de semana do Dia de Colombo de 1972 Sybil, a Dra. Wilbur e eu reunimo-nos para comemorar a próxima conclusão do livro. Sybil estava maravilhosa — tão bem que era difícil lembrar que antigamente tinha sido diferente. Está galgando a carreira profissional com alegria e prazer. Seus colegas a respeitam e seus alunos adoram-na. Tem muitos novos amigos, sua casa, dirige seu carro, e efetua pagamentos regulares à Dra. Wilbur pela análise agora longínqua. As diversas mostras de arte do trabalho de Sybil refletem a unidade de uma artista integrada, em contraste com a mistura de estilos disparatados do passado. Em resumo, Sybil está na dianteira de uma vida excelente — de uma vida completa.
Durante o fim de semana que passamos juntas mencionei a Sybil que uma das datilógrafas deste livro ficou tão envolvida nesta história que chegou a sonhar que era Sybil. Na manhã seguinte, na hora do café os lábios de Sybil fizeram uma curvinha num sorriso maldoso, quando ela disse: "Sonhei que eu era Sybil".
A Sybil com quem a datilografa sonhou parecia outra que não aquela mulher que eu tinha diante de mim. O sonho — ou melhor, o pesadelo — recuara tanto no passado que na hora do café daquela manhã de outubro não havia dúvidas de que estávamos presentes somente nós três, e mais ninguém. Sybil estava em excelente disposição de espírito e saúde e eu, como sua amiga, me alegrava intimamente com o desfecho feliz de sua história.
Flora Rheta Schreiber
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