Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DIAS DA REVOLUÇÃO / Alexandra Lucas Coelho
OS DIAS DA REVOLUÇÃO / Alexandra Lucas Coelho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A 3 de Fevereiro de 2011 eu estava em Ponta Delgada a apresentar Viva México. Tinha voo no dia seguinte para Lisboa, de onde voltaria para o Rio de Janeiro. As notí­cias da praça Tahrir eram de batalha campal, com o re­gime ao ataque. Pedi uma semana de férias, comprei um bilhete de avião e em vez de regressar ao Rio voei para o Cairo. As páginas que se seguem não são uma cobertura jornalística. São um relato dos dias antes, durante e de­pois da queda de Hosni Mubarak.

Ainda mal tudo começara na praça Tahrir e já mui­ta gente no exterior temia ou duvidava do futuro. Mas o presente existe independentemente do futuro.

Durante 18 dias, centenas de milhares de pessoas uniram-se espontaneamente num espaço público, inven­taram uma organização democrática sem precedentes e derrubaram um ditador há 30 anos no poder. Para isso, não recorreram à força contra ele, não desistiram quando ele recorreu, e depois da vitória foram limpar o lixo.

Não acredito em revoluções com 52 anos. As revo­luções são momentos extraordinários. A praça Tahrir foi um desses momentos: um triunfo do homem sobre si mesmo. O epílogo está sempre em aberto, mas o que vem a seguir não eliminará o que aconteceu.

A minha pergunta não é: e depois? A minha pergunta é: isto é real?

Foi.

Essa é a inspiração.

 

 

 

 

SÁBADO, 5 DE FEVEREIRO

O voo para o Cairo está atrasado oito horas. No aeropor­to de Amesterdão as televisões mostram uma carrinha da polícia egípcia numa corrida louca para atropelar o máximo de gente. Manifestantes contam como foram pre­sos e espancados e levaram choques eléctricos. Imagens de tanques debaixo dos viadutos à volta da praça Tahrir, chuva de pedras em frente ao Museu Egípcio, pandei­retas resistindo na noite. E os líderes ocidentais falam em transição, pedem calma, acautelam o futuro, porque sabe-se lá se o partido dos Irmãos Muçulmanos não vai tomar conta de tudo.

Um clássico ocidental: o presente dos outros pode sempre esperar um pouco mais.

 

DOMINGO, 6 DE FEVEREIRO

As Pirâmides despontam na janela do avião, à entrada do deserto, com a cidade toda para trás como um manto. Visto do céu, ao começo da manhã, o Cairo parece cober­to de terra. A cada dia mais uma camada de poeira pousa sobre os tectos, os minaretes, as cruzes captas. Mas as fitas que brilham, negras e ondulantes, são os braços do Nilo.

Há milhares de anos que este lugar é fértil, há mil anos que é uma cidade e há muito que os árabes lhe cha­mam Mãe das Cidades. Escreveu Ibn Battuta, viajante dos viajantes, lá no século XIV: «Cheguei finalmente ao Cairo, mãe das cidades e sede do Faraó, o tirano, senhora de vastas regiões e campos frutíferos, ilimitada na mul­tiplicação dos seus edifícios, ímpar na beleza e no es­plendor, lugar de encontro de quem vem e vai, paragem dos frágeis e dos poderosos, cujas multidões se levantam como as ondas do mar e dificilmente podem ser contidas nela, apesar de todo o seu tamanho e capacidade.»

Quase vinte milhões, hoje.

O bater de borboleta do Cairo varreu o mundo árabe várias vezes até lhe prenderem as asas. Agora soltou-se e ninguém o apanha. A história é muito antiga, os homens são muito jovens.

 

A primeira vez que aqui aterrei não saí do aeroporto. Foi em Abril de 2002. A nova Biblioteca de Alexandria ia ser inaugurada. Eu vinha passar um mês em Alexandria com uma mala cheia de Durrell, Kavafis, Forster, Plutarco & etc. Chegando ao Cairo, apanharia um autocarro para Ale­xandria. Mas mal cheguei ao Cairo o meu jornal informou­-me de que o exército de Israel estava a entrar nos terri­tórios palestinianos e pediu-me que fosse para Jerusalém.

Voei assim do Cairo directamente para o conflito israelo-palestiniano, sem saber sequer onde ficava Ra­mallah. A tensão regional era tão grande que a inaugura­ção da biblioteca passou para o Outono.

Então, a segunda vez que aterrei no Cairo foi em Novembro de 2002, com a mesma mala cheia de Durrell, Kavafis, Forster, Plutarco & etc. E os dias de inauguração da nova Biblioteca de Alexandria deram-me a primeira visão do déspota egípcio, desalojando os bairros em re­dor para a senhora Mubarak passar.

Oito anos passados, foi justamente em Alexandria que a polícia do déspota espancou até à morte um jovem, Khaled Said, incendiando a revolta egípcia num grupo do Facebook.

Inflexível e surdo, o regime fez tudo para piorar a si­tuação, ao mesmo tempo que na Tunísia o povo derruba­va o déspota Ben Ali.

 

Porque é que os jovens egípcios haveriam de deixar a coisa por menos? Quando o mundo olhou melhor, a pra­ça Tahrir era uma revolução.

 

Tanques e soldados ao longo das avenidas, entre o aero­porto e o centro. Ar pesado de tanto dióxido de carbono, sfumato como uma pintura da Renascença.

Acampo no quarto de uma jornalista amiga, junto à ponte Tahrir, que desagua na praça. De um lado as águas do Nilo, douradas, quietas. Do outro um clamor em mo­vimento, milhares avançando para se juntarem a cente­nas de milhares.

A praça Tahrir é a grande rotunda do Cairo, uma rosa-dos-ventos onde em dias de trânsito normal os car­ros se cruzam entre ocidente e oriente, norte e sul.

Na ponta norte, o Museu Egípcio, atracção de tu­ristas que talvez esqueçam o nome do enigmático Akhe­naton mas não esquecerão o tesouro do seu filho Tu­tankhamon. Na ponta sul, os 20 andares e corredores do Mugamma, colosso temível da burocracia egípcia. Para oriente, a Universidade Americana do Cairo, que há dé­cadas forma as elites locais. E, mais para oriente, a Sharia Tahrir ou a Talaat Harb, ruas de belas fachadas art déco impregnadas de fuligem, com cafés onde os homens se sentam a fumar narguilé.

Aqui vinha todas as manhãs Naguib Mahfouz, o mais reconhecido romancista árabe, Prémio Nobel em 1988. No café Ali Baba lia os jornais e recebia quem aparecesse, como quem abre a porta de casa. E foi por aqui que Ga­mal Abdel Nasser planeou a sua revolução republicana de 1952.

Centrípeta e pulsante, a praça Tahrir é o destino na­tural de uma revolução.

 

A multidão avança entre as barricadas, cartão de iden­tidade em punho. Um, dois, três, quatro checkpoints até conseguirmos entrar na praça. Um soldado faz a primei­ra triagem, despachando os jornalistas estrangeiros para um oficial junto a um tanque.

Será assim hoje e nos próximos dias, invariavelmente: o oficial fala um broken english, a primeira coisa que quer saber é o país de origem, Portugal suscita uma de duas reacções, «Luís Figo!» ou «Cristiano Ronaldo!», e quan­do esse momento chega sei que vou passar. Liberdade­-Igualdade-Fraternidade, sim, mas que seria de tudo isso sem o futebol?

Depois, mulheres e homens são revistados em se­parado. Uma revista ligeira que no caso das mulheres se pode prolongar por dois ou três controles, sem inter­romper o fluxo contínuo de milhares espremidos entre as barricadas, o tanque e as árvores.

E então a praça abre-se para nós, fervilhante.

 

Nos dias anteriores à minha chegada foi pior. Muitos dos jornalistas estrangeiros que tentavam entrar na praça Tahrir tornaram-se presas de caça. A ofensiva do regi­me incluiu apelos sanguinários nos media, destruição de equipamento, detenções e agressões.

Um jornalista egípcio foi morto.

 

Khaled está imóvel à entrada da praça, fita tricolor na ca­beça, cartaz em árabe nas mãos.

Há muita gente assim, no meio do caminho, com mensagens, desenhos e anedotas anti-Mubarak, mas Khaled tem uns olhos azuis fulminantes. Parece uma ver­são árabe do Vincent Gallo.

«Ainda não estamos cansados, a liberdade é cara», diz ele, intensamente, traduzindo o seu cartaz. Está com 25 anos, é finalista de Comunicação na Universidade do Cairo. «Queria ir-me embora, encontrar uma vida me­lhor. Depois de acabar os meus estudos não terei traba­lho, a não ser que alguém da televisão me conheça. Gos­tava de ser produtor de programas, mas não temos media verdadeiros. Temos media orientados pelo governo, que nos dizem o que querem e como pensar. Dizem-nos que Mubarak é um homem pacífico, que não deixou o Egipto entrar em mais guerras. Mas aqui a polícia pode apanhar qualquer pessoa sem motivo.»

E tudo isto se reflecte na educação das escolas públi­cas, como a de Khaled.

«Não é uma universidade a sério, não é do século XXI. Eles não estão interessados na educação do Egipto. As pessoas no Egipto são tão inteligentes, podem fa­zer tantas coisas! Temos pessoas como Ahmed Zewail, o famoso cientista [Nobel da Química em 1999]. Aqui ele não tem dignidade, e por isso foi para a América. Temos Magdi Yacoub, cirurgião pioneiro em transplan­tes. O povo egípcio não tem hipóteses aqui! Não temos dignidade, não temos direitos. A primeira vez que sin­to que estou a andar no meu país é agora. Bebo na pra­ça, como na praça, durmo na praça, e na praça sinto os meus direitos voltarem.»

Vem do bairro 6 de Outubro, além das Pirâmides, quase uma cidade onde mora a classe média que não tem dinheiro para morar no centro. Tem um irmão e três ir­mãs. O pai trabalha numa gráfica.

De repente, um toque de ferros a toda a volta. «É si­nal de que vem aí um ataque», explica Khaled, perfil em riste, avaliando a situação.

Entre fardas oficiais, bandos à paisana ou mesmo ca­melos recrutados nas Pirâmides, o regime já atacou os ma­nifestantes com gás lacrimogéneo, canhões de água, paus, bastões, pedras, cocktails molotov e armas de fogo. De acor­do com as contas da Human Rights Watch, até agora mais de 300 pessoas terão morrido e milhares ficaram feridas nos protestos em todo o Egipto, a grande maioria aqui.

A praça Tahrir desenvolveu formas de alerta. Num ápice há gente a correr em todas as direcções, saltan­do grades e separadores. Mas, tão depressa como veio, o alerta vai.

E Khaled volta ao orgulho egípcio. «São os jovens que estão a fazer esta revolução: as velhas gerações acei­taram a situação, nós não. Somos nós que usamos a nova tecnologia, o Facebook, sites que nos mostram as diferen­ças entre nós e os outros países. Com liberdade eu sei que seríamos o país mais desenvolvido do mundo.»

 

Sentido de humor, já têm para dar. «Mubarak, vai embo­ra, quero ir para casa!», diz o cartaz de uma mulher re­chonchuda. Está de túnica e lenço, ao lado de uma outra de túnica e lenço, e de uma terceira coberta até aos olhos. Trazem um carrinho de bebé, com o bebé encostado a um cartaz.

Muçulmanas devotas, sem dúvida. Mas túnicas e len­ços não revelam que Egipto têm elas na cabeça. Para isso é preciso começar a falar. Então ouçam o que diz em bom inglês a mulher do cartaz, Intisar, 41 anos, professora de História: «Queremos quem ajude o povo. Queremos um país civilizado, sem diferenças entre muçulmanos e cris­tãos. Quando os muçulmanos rezam, aqui na praça, os cristãos estão ao nosso lado. Há uma irmandade.»

 

Ser cristão no Egipto é quase de certeza ser copta, um ramo muito antigo do cristianismo ortodoxo. Durante o mês que passei em Alexandria, em 2002, fiz uma amiga copta que me levou à missa. Não tinha uma vida fácil. As minorias religiosas em lugares intensamente religio­sos não têm vidas fáceis.

Espero que no passado dia 1 de Janeiro ela estivesse bem longe da Catedral de São Marcos, a principal igreja copta de AIexandria, onde um bombista suicida matou mais de 20 pessoas e feriu cem.

 

À AI Qaeda interessa dividir. O que vejo na praça Tahrir, desde o primeiro momento, é o contrário: jovens mas também os pais deles, e os avós; muçulmanos mas tam­bém cristãos; religiosos e laicos; pobres e ricos; analfa­betos e intelectuais; homens e mulheres. Pensando bem, creio que nunca vi uma praça que fosse tanto um micro­cosmo humano. E isso tem lugar exactamente aqui, na capital de um mundo que desde o 11 de Setembro é visto como o inimigo da civilização.

Fortalecida em cada um, esta revolução acontece apesar do medo ou do cepticismo ocidental. Tem o ím­peto do que é sem artifício. E isso é parte da revolução: como os jovens egípcios estão a desarmar o Ocidente, comovendo-o.

 

«Compaixão não chega, deviam passar aqui uma noite», diz um cartaz.

 

Mahmud, 24 anos, barrete vermelho da Nike, impermeá­vel laranja, agarra firmemente um jornal com os rostos de alguns mortos na praça. Também vem do bairro 6 de Outubro, como Khaled. «Chamei todos os meus amigos para virem», diz, sem deixar de erguer o jornal, bem firme. «Porque se toda a gente sair daqui a polícia vai apanhar­-nos como reféns e nunca mais veremos a nossa família.»

 

Pausa. Está a fazer um esforço para não se emo­cionar. É a falta de sono, o alerta constante, a adrena­lina de mudar o próprio destino, de subitamente ser soberano.

«Ficaremos aqui até à morte. Estou a falar a sério.» Mal diz isto fica com os olhos cheios de lágrimas, mas continua a olhar em frente, como um jovem soldado apertando os músculos da cara. E as lágrimas a caírem, sem uma palavra.

 

Depois Mahmud recomeça. «Os meus pais disseram-me para não vir, porque se preocupam comigo, mas eu ficarei até ao fim. Confio em Deus. Sei que estou a fazer uma coisa boa, não má. Estive no exército dois anos, dentro e fora do Cairo.»

Um homem vem avisar-nos sobre os polícias infil­trados na praça. «Usam roupas como as nossas e depois batem-nos.»

Décadas de medo, e de máscaras. Mahmud não conhe­ceu outro Egipto. Mas a brecha da Internet alastrou como uma raiz, partindo o chão em todas as direcções.

«O Facebook é o grande responsável por eu estar aqui», diz. «É o único lugar livre.»

 

Dalia, 22 anos, linda. E a mãe, Afaf, vaga lembrança de in­glês na juventude. Braço dado, ambas de lenço na cabeça, no primeiro dia em que vêm à praça. «Vi no Facebook», diz Dalia, «e queria ver com os meus olhos. Depois dos mártires mortos pensei: "Mubarak tem de ir embora, não protegeu o seu povo." Não estamos a pensar em países de fora, queremos o melhor para o Egipto. Não seremos ini­migos de nenhum país.» Nem Irão nem Estados Unidos. «Quando Obama estava para ser presidente, desejámos-lhe o melhor sem interferir. Adorámos o discurso dele no Cairo. Mas ainda estamos à espera de que ele o concretize.»

Universidade de AI Azhar, 4 de Junho de 2009. Pri­meiro gesto para encerrar a dita guerra de civilizações, de Bush e Bin Laden.

«Somos um grande povo, por causa da nossa civiliza­ção e por causa do nosso coração», diz Afaf, num árabe traduzido pela filha. «O nosso sonho é paz. É importante que o Ocidente visite o Oriente e vice-versa, para nos co­nhecermos.»

«Agora sentimos que o Egipto é o país mais impor­tante para os árabes», acrescenta Dalia. «Somos emoti­vos, amamos as pessoas, mas com esta corrupção não nos podíamos sentar e fechar a boca.»

Mãe e filha. Onde está o pai? «Ele também quer que Mubarak saia, mas acho que não virá aqui. Estas pessoas representam-no.» E Dalia, sente-se representada? «Sinto­-me confusa. Às vezes sinto que tudo o que ele fez de mal foi não ouvir as pessoas.» Tem pena de Mubarak.

 

Antes isso que medo.

       Homens com pensos nos olhos, no queixo, na cabe­ça, com a cara inchada, preta, com braços ao peito. São os feridos de todos estes dias. Aqui estão, continuam, can­tam: «Ele vai embora! Nós não vamos embora!»

«Ele» é sempre o mesmo: Hosni Mubarak. Uma pala­vra é sempre a mesma: «lrbal!» Em árabe: vai-te embora!, parte!, desaparece!

«Esta é a primeira vez que dizemos o que pensamos», diz Khaled «Vincent Gallo», acompanhando-me através da multidão.

 

«Mubarak? Basta!», diz uma mulher robusta chamada Lulu. «Choramos nos nossos corações as pessoas mor­tas.» Tira da mala uma tira de papel com os rostos desa­parecidos. Não só veio sozinha à praça Tahrir, como veio em segredo, casada e mãe de três filhos. «O meu marido não quer que eu venha. O meu marido não me fala destas coisas. Eu tenho um salário bom, porque sou contabilis­ta, mas vejo as outras pessoas sem trabalho.»

 

Abdulkhaman, 23 anos, instrutor de kung Eu, grande pen­so na cara. Estilhaços. «Foi na quarta-feira. Um sniper na ponte.»

Por cima dele e de todos nós, um rapaz empolei­rado num semáforo, bandeira a ondular pelas costas, como asas.

 

Claro, o mundo inteiro viu a praça na televisão. Mas ago­ra pensem em meio milhão de pessoas a quererem ser um milhão, e no som disso à nossa volta. A praça é um cânone de canções e slogam, gritos e discursos, apelos e anúncios, constantemente entrelaçados.

Há plásticos a fazer de tendas, e tendas-tendas. Há bancas de cigarros e de chá e de biscoitos. Há a mul­tidão próxima da Irmandade Muçulmana, para a direita, e a multidão próxima dos artistas, para a esquerda.

E para cá e para lá toda a gente se cruza continua­mente: os belos rapazes de trunfa afro e jeans justos, saídos de uma capa da Motown; as belas raparigas de nariz adunco, cabelos negros, olhos negros e fundos; as mães com bebés ao ombro, a balouçar, felizes como num parque; os homens de meia-idade e fatos pardos que nem acreditam que isto está a acontecer; os Irmãos Muçulmanos de barbas até ao peito; os polícias à pai­sana e os espiões; os repórteres do costume e mais; as crianças, tantas.

 

Mona Hala, actriz, olhos esmeralda, 26 anos. «Este é o quarto dia em que aqui estou. Ontem comprei remédios, água, comida para as pessoas. É a primeira vez que vejo o povo egípcio a fazer uma revolução. Costumava dizer às pessoas que a situação era injusta e elas respondiam: "Enquanto tivermos comida e os nossos filhos estiverem bem..." Mas agora já não têm medo. Isso é bom, estou muito feliz.»

Com a certeza de que o regime vai cair. «Mubarak tem de sair, não tem outra alternativa. Todos os dias faz coisas estúpidas que mostram ao mundo a merda que ele nos dá.

 

Vejo aqui os Irmãos Muçulmanos e as outras oposições. Mas os media egípcios não mostram a realidade. Só vejo a BBC, a AI Jazeera ou a AI Arabiya [canal pan-árabe de notícias baseado no Dubai, rival da AI Jazeera]. E as pes­soas estão a conhecer novas culturas pelo Facebook, pelo Skype... Foi no Facebook que ouvi falar da revolução.»

Passa um grupo a cantar que morrerá para Mubarak sair.

«É importante dizer que esta é uma revolução pa­cífica, não usamos armas, nem nada que possa magoar alguém», diz Mona. Ela estava cá quando a polícia en­trou a matar. «Claro que tivemos medo, mas não saímos. Foi horrível. A polícia fechou todas as saídas e estavam a usar pedras, facas, molotovs, tiros. Uma amiga actriz foi morta aqui.»

E se mais gente ainda não veio a Tahrir é porque «muita gente não sabe dos seus direitos».

 

O cartaz de um rapaz: «Agora sou egípcio com orgulho!» O rapaz tem dois vergões vermelhos na cabeça e um ca­pacete amarelo das obras, não vá começar outra guerra de pedras. É professor de Inglês. Chama-se Ahmed, tem 24 anos. «Esta revolução é um corpo sem cabeça, porque se tivesse cabeça eles cortavam-na. É a grande vantagem desta revolução: ninguém a lidera.»

 

Aqueles que saltam do passado para o futuro, sentados em gabinetes mundo fora, acham que essa é justamente a desvantagem desta revolução. Perguntam: «E depois? E com quem?»

Mas a história está parada na praça Tahrir. Este é o momento que estas pessoas nunca mais esquecerão. É daqui que tudo virá, o bater da borboleta. Qualquer fu­turo terá este momento.

 

Pedrinhas alinhadas no chão, desenhando uma frase: «Não deixes a revolução morrer.»

 

Copinhos de papel alinhados no chão, desenhando uma frase gigante, e um rapaz agradecendo em inglês à revolu­ção anterior: «Power of the people - Thanx Tunis».

 

A placa a apontar «Ramses» para a direita e um autoco­lante por cima: «Out».

 

Jovens médicos de bata branca montam bancas, trazem antibióticos e analgésicos, fazem curativos.

«Vim para apoiar o meu povo», diz Tareq, 25 anos. «O que tivemos foram 30 anos de opressão, de corrup­ção, de roubo. Agora as pessoas estão fortes. É tempo de dizerem o que querem. Esta é a revolução das pessoas, cristãos, muçulmanos, somos um. Queremos democra­cia, liberdade, segurança social.» Basicamente, tudo.

«Sabe quanto ganho? 235 libras por mês: 30 dólares. É um dólar por dia. Como médico, não é justo que eu tenha melhor salário?»

 

Um homem vem dizer que há muita gente fora da praça que não está a conseguir entrar. E oferece pão e pepino. «O governo não respeita esta revolução, diz que nós so­mos um agente estrangeiro, que nos estão a oferecer re­feições do Kentucky Fried Chicken. Olhe o nosso Ken­tucky!!» Estende o pão e o pepino.

Nos próximos dias ouvirei isto como uma senha, sempre que alguém aparece com pão, queijo, pepino ou falafel: «Kentucky! Kentucky!»

O humor recicla tudo.

 

Khaled e eu caminhamos ao lado do Museu Egípcio, na zona conhecida como «linha da frente», por causa dos combates com bandos pró- Mubarak. Gente aos pés de tanques cobertos de graffiti. Carros calcinados, barrica­das, uma war zone.

O museu foi devassado e está cercado pelo exército. Daqui a uma semana virá a confirmação: sim, foram le­vadas 18 peças. Algumas acabarão por ser reencontradas, como um Akhenaton de sete centímetros, abandonado junto a um caixote de lixo, aqui na praça.

 

Um cartaz: «Estados Unidos, não se envolvam, nós afir­maremos a nossa vontade!»

Graffiti a agradecer ao Facebook e ao Twitter. Toda a gente de telemóvel a filmar, a fotografar, praça fora.

Um amigo pôs-me um vídeo do Gil Scott-Heron no Facebook, «The Revolution Will Not Be Televised», mas isso já não é verdade. Esta revolução não só está a ser te­levisionada, como está a ser televisionada por toda a gen­te, e isso também é parte da revolução.

Nenhuma revolução até hoje terá tantos vídeos, tan­tas fotografias, partilhadas por tantos milhões, sem outra agenda que não esta: a revolução.

 

Pai, bigode e bengala, Meher, 57 anos, contabilista.

Filho, gel e jeans, Ahmed, 24 anos, funcionário da Vodafone.

Pergunto: porque é que a revolução não aconteceu

antes?

O pai olha para o filho e responde: «Porque nós éramos cobardes.» O filho protesta, mas o pai insiste: «Mubarak ameaçava-nos, não nos dava oportunidade de falar, chamava a polícia e eles prendiam-nos.» O que sen­tiu este pai agora? «Uma coisa no estômago. Estou feliz, feliz. Só quero que Mubarak vá embora.»

«Se Mubarak for embora este será um bom país», diz o filho. A hipótese de os Irmãos Muçulmanos tomarem o poder não o assusta. «Vivemos juntos, muçulmanos e cristãos. É o nosso país.»

«Ouviu falar sobre a explosão na igreja de Alexan­dria?», pergunta o pai. «Nós achamos que foi Mubarak que fez isso porque nos quer separar.»

O filho usa Facebook, Twitter, Yahoo e Hotmail. E o pai? «Eu também uso a Internet. Jogo xadrez.»

 

Duas garotas sentadas no passeio, lenço à volta da cara, uma delas com sardas, Mariam e Takwa. Pergunto: «Do you speak english?» Elas levantam as sobrancelhas: «OF COURSE!!!!!»

Mariam, a das sardas: «Estou orgulhosa do meu país.

Estivemos a dormir durante 3° anos e tínhamos de acordar.»

Takwa: «Não queremos mais Mubarak. Chega de não sermos compreendidos.»

Mariam: «O nosso Deus não nos vai deixar e tudo o que queremos vai aparecer.»

Uma tem 13, a outra 14 anos. Seguiram a revolução no Facebook. Poderiam explicar duas ou três coisas a quem no Ocidente pensa que o Deus delas não é compatível com o Facebook, para já não falar da democracia.

 

Crepúsculo, hora de oração. Dois homens curvam-se e calha que Meca fica para o lado de uma pilha de Fantas, Colas e Sprites.

Um negro vindo de Assuão: Nasser, 46 anos, jornalis­ta - «Vim para isto. Quando Mubarak for embora volto à minha terra.»

Gente a trazer cobertores e a tocar tambores. Tanta gente com pensos na cabeça. Pensar que toda esta gente foi atacada apenas há três dias.

A lua está um crescente deitado sobre a praça, como o sorriso do gato no País das Maravilhas.

O centro do mundo é aqui.

 

Primeira fotografia Tahrir no meu Facebook: Khaled «Vincent Gano» à entrada da praça.

Quando eu já tiver partido, ele há-de deixar um co­mentário em baixo: «Foram os melhores dias da minha vida.»

 

SEGUNDA-FEIRA, 7 DE FEVEREIRO

O dia está nublado. O trânsito voltou às ruas. À volta da praça vendem-se bandeiras, fitas para pôr à volta da cabeça, chapéus de palhaço, cabeleiras. Tudo tricolor, como a bandeira egípcia: vermelho, branco, negro, águia amarela ao centro.

Passo os checkpoints. Os manifestantes desdobram grandes posters dos mortos na praça.

O primeiro cartaz da manhã diz: «GAME OVER».

Há um livro de Manuel de Freitas com este título, um eixo na poesia portuguesa dos anos 2000, e é nis­so que penso. As palavras chamam o que cada um traz, a praça expande-se em todas essas presenças, a memória gemina. Se na praça Tahrir penso no livro, quando vir o livro pensarei na praça Tahrir.

O homem do cartaz chama-se amar Mohammed e foi ferido há quatro dias. Tem um grande penso no queixo.

 

Uma mulher a caminho dos 60 aproxima-se com um saco cheio de pão. Não fala inglês. Só quer repetir: «Nô Muba­rale! Nô Mubarak!»

 

Já Ahmad, 25 anos, barrete feito de bandeiras egípcias, alarga-se mais: «Quero dizer que estou aqui desde o pri­meiro dia e juro que não sairei até Mubarak cair. Para mim é a única oportunidade, to be or not to be. Quero que os meus filhos sejam livres, sou engenheiro, quero traba­lhar. Não sou casado. Não tenho trabalho, como poderia casar? Sou muçulmano e eles são cristãos [aponta para o lado]. Estamos aqui a fazer a história. Vamos mudar o mundo, mas para melhor. Vê aquele homem? É um actor famoso. Vê aqueles homens? Futebolistas. Todos os egíp­cios estão aqui.»

Aproxima-se um Ismail, com um grande penso na cabeça.

Ahmad prossegue, apontando o dedo para mim: «Tem sorte em estar aqui. Vai contar aos seus netos e eu vou contar aos meus netos: estive na praça Tahrir.»

Ismail acena e contribui: «Vê como estou sujo? Mas não vou sair daqui enquanto ele não for para o inferno.»

Ele, cujo nome nem vale a pena pronunciar.

 

Um cartaz no chão: «Sou o povo. E tu quem és?»

 

John, 21, Fadi, 21, cristãos coptas do Cairo, muito cool nos seus óculos escuros seventies. «Agora dizem que cristãos e muçulmanos são um só, mas o Cairo não é para cristãos, tudo aqui é para muçulmanos», diz John. Fadi abana a ca­beça, vai por outro caminho. «Esta é a minha revolução, o meu país. O nosso país é para todas as religiões. É difí­cil, mas podemos viver aqui. Eu quero viver aqui, amo o meu país. A revolução está a unir cristãos e muçulmanos. Ontem houve uma missa aqui na praça.»

Algures no meio de meio milhão.

 

E vai haver um casamento.

E já, já, uma simulação de funeral: um pequeno cai­xão enfaixado nas cores nacionais, levado em ombros, num brado, em massa. Homenageia o jornalista egípcio Ahmed Mahmoud, morto durante a revolução.

 

Um coração de pedras no asfalto, dirigido a toda a gente: «Welcome to Freedom».

 

Um coração de papel na mão de um rapaz, dirigido a Mu­barak: «Vai-te embora, quero casar!»

 

Um cartaz em árabe com uma só palavra em inglês: «Facebook». Quem o segura é Ismail, 20 anos, busto le­vantino esculpido por um grego, estudante de Literatura. «Estou a agradecer porque usámos o Facebook para con­seguir a nossa liberdade.»

Eu fotografo-os, eles filmam-me.

 

No passeio dos artistas, onde conheci a radiosa Mona dos olhos esmeralda, conheço agora o radioso Medo dos olhos cor de amêndoa. «Toda a gente me chama Medo», diz ele, de seu nome completo Mohammed Abdel Kader.

 

Tem 25 anos e é actor. Os actores egípcios parecem estar em peso na revolução. Só à nossa volta há dezenas.

«Não nos conhecíamos, conhecemo-nos aqui», diz Medo. «Organizámo-nos no Facebook e decidimos mu­dar o nosso futuro na rua. Esta é a revolução da juven­tude do 25 de Janeiro.» Sorri, sentado no chão, entre plásticos a fazer de tendas e as pernas de tanta gente. «Tentamos ter tudo limpo, receber bem os estrangei­ros...» Tem um papel na mão, onde estava a escrever quando começámos a falar. «É para o nosso sindicato de artistas, que está contra nós, contra a revolução, e diz que vamos ser expulsos. Estou a escrever que não estamos com eles, estamos com a revolução. Os artistas aqui pedem que o presidente deixe o poder e seja julga­do, que a Constituição seja mudada e que a Lei Marcial seja levantada.»

Chega Kamiz Ez el Arab, dramaturgo e escritor de canções, blazer e camisa azul, cigarro permanente. Aos 47 anos, podia ser pai de Medo. «Como sou parte da revolu­ção desde o começo, não me sinto velho», diz, risonho. «Sabe o elefante? É velho, é lento. E quando põe a pata não se mexe mais. O Egipto é assim, lento e seguro.»

Mas ainda há dois dias a praça combatia os pró­-Mubarak. Mubarak continua sem se demitir. E se o impasse se arrasta até Setembro, data em que o man­dato dele termina? «Não. Ele está a ganhar tempo, mas as pessoas quebraram a barreira do medo. Acho que a mudança já aconteceu, a mudança de espírito: não mais medo.

 

Isso é novo. Há um mês as pessoas nem diriam o nome de Mubarak. Neste momento o espírito é de­safiador. Perdemos gente aqui. Há barricadas humanas, gente deitada debaixo dos tanques para os impedir de avançar.»

Por trás de nós, desatam a cantar. No refrão percebe­-se a palavra «faraó». Kamiz sorri e traduz: «Ele vive no seu castelo, celebrando as suas vítimas, e a sua velha mu­lher finge tomar conta dos filhos do Egipto...»

 

É um homem do Egipto laico, Kamiz. Que pensa do medo ocidental quanto à Irmandade Muçulmana? «O movimen­to islâmico é parte da sociedade egípcia. Isso é um argu­mento que Mubarak usa para assustar o mundo ocidental.»

Sendo o maior movimento de oposição, a Irmanda­de está ilegalizada e tem sido violentamente perseguida. Foi tão apanhada de surpresa pela revolução como o re­gime. Mas reagiu, juntou-se aos jovens, está aqui sem es­tar a liderar nada, tão perto que uma rapariga de lenço se aproxima, a chamar os artistas para a oração. Kamiz responde-lhe que é mais importante continuarem onde estão.

Depois irrompe num refrão, de punho no ar, com os amigos em volta: «Artistas, artistas, somos a consciência do povo!!!»

A resistência não é uma coisa nova para ele. Foi pre­so três vezes, entre 1984 e 1996. «Ensinava na universida­de, mas despediram-me.» E a experiência diz-lhe que a evolução não ter um líder é uma coisa boa: «Nas nego­ciações, a ausência de um líder é um problema. Na revo­lução é uma vantagem, porque os líderes são intimida­dos. Mas não é possível intimidar toda esta gente.»

 

Nos últimos anos apareceram grupos de protesto no Egipto como o Kifayia (em árabe, Basta), fundado em 2004 por intelectuais, ou o Movimento 6 de Abril, fun­dado em 2008 no Facebook para apoiar lutas de traba­lhadores.

Mas nenhum teve o impacto-dominó do grupo We Are All Khaled Said, depois de Khaled Said ter sido morto pela polícia, emJunho de 2010. Este grupo reuniu dezenas de milhares de seguidores no Facebook, e incentivou-os a sair à rua a 25 de Janeiro, feriado nacional.

A administração da página manteve o anonimato por causa das ameaças do regime.

Até hoje.

Wael Ghonim, 3° anos, executivo da Google, aca­ba de confirmar ser ele o administrador da página numa dramática entrevista ao canal privado egípcio Dream TV São 17 minutos de comoção, que terminam com Ghonim a abandonar o estúdio, em pranto, depois de ver fotogra­fias de jovens mortos na praça Tahrir. Estava preso quan­do eles morreram. Hoje foi o seu primeiro dia de liberda­de, ao fim de 12 dias.

Nessa entrevista, diz que tem uma vida confortá­vel nos Emirados Árabes Unidos para dizer duas coisas: a sua agenda é só o amor ao Egipto, onde nasceu e cresceu; e traição teria sido ficar nos Emirados, à beira da piscina. Em vez disso, na véspera de 25 de Janeiro comunicou à Google que tinha um assunto pessoal a resolver no Egipto e foi para a praça Tahrir viver a revolução. Três dias depois estava nas mãos da segurança de Mubarak. Vendado, in­terrogado, atravessou o cativeiro sem saber o que estava a acontecer lá fora e sem que ninguém lá fora soubesse dele.

A sua obsessão, quando se viu em liberdade e ouviu que morrera gente, foi honrá-la. «Não sou um herói, só usei o teclado na Internet, nunca pus a minha vida em risco, os verdadeiros heróis são aqueles no terreno», dis­se, com a voz a tremer, antes de quebrar completamente e abandonar o estúdio da Dream TV

Patriótico, vibrante, inteiramente vulnerável, emo­cionou de tal forma quem o viu que hoje muita gente de­cidiu vir à praça pela primeira vez.

Os ocidentais escondem-se cada vez mais para cho­rar, mas os árabes choram muito, a começar pelos seus mortos.

 

Kamiz apresenta-me mais um rapaz com idade para ser seu filho, Mohammed Iziza, actor, activista do grupo We Are AlI Khaled Said. É um matulão de barbas e boné. «Os músculos dele foram muito importantes quando a violência rebentou», diz Kamiz. Também vem de Ale­xandria e conhecia Khaled Said: «Era uma pessoa muito amada, tal como a sua família.»

 

Noite escura. Oficialmente passam 11 minutos do reco­lher obrigatório. Mas qual recolher obrigatório? Dezenas de milhares continuam na praça. Kamiz só se despede porque tem turno de vigia no seu prédio. «Todos os mo­radores se organizaram para proteger as casas desde que a polícia desapareceu das ruas.»

Ainda que não concordem quanto ao que se pas­sa em Tahrir. «As ruas estão divididas», admite Kamiz. «Há pessoas que nos acusam de estarmos a parar a eco­nomia. Ontem abriram os bancos, mas a maior parte dos salários ainda não foi paga.»

 

Chegam cobertores e mantimentos.

Passam-me uma folha, que é o jornal da praça, cartoon de Mubarak ao centro.

Raparigas de jeans e lenços palestinianos, preparadas para passar a noite.

Uma rapariga coberta por um grande lenço branco muçulmano, braço em riste com telemóvel na ponta, a fotografar.

 

Saindo da praça a esta hora, entramos numa escuridão de vultos furtivos, como se nos afastássemos do fogo que os antigos acendiam, cercados pela selva.

No Norte de África, no centro da maior cidade ára­be, Tahrir é a clareira, o lugar dos homens.

 

TERÇA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO

As ruas em volta da praça: sol em travessas art déco caí­das e decaídas, venezianas semicerradas, velhas árvores. Velhos cheios de vagar, mas não só.

Por exemplo, Amra, 30 anos, e Mohammed, 25 anos, sentados num café, a lerem o AI Abram de hoje. Não a edição semanal em inglês, onde por exemplo Edward Said escreveu, mas a edição diária árabe, politicamente alinhada com o regime.

Amra é engenheiro de comunicações, casado e com um bebé. Comprou casa no bairro 6 de Outubro, o tal além das Pirâmides onde mora quem não tem dinheiro para vir mais para o centro. Por 200 metros quadrados pa­gou um milhão de libras egípcias. Cerca de 120 mil euros.

Fala como quem tem uma vida tranquila. Mas desde o começo está com este dilema: ir à praça ou não ir?

«Talvez até agora eu não estivesse convencido de que a revolução resultaria. Quando vi os vídeos da violência fiquei com medo, mas agora já não tenho medo. Agora a praça é o lugar mais seguro do Cairo. Há tanta gente lá que eles não vão repetir a violência outra vez, estão ex­postos ao mundo inteiro.» Então, mesmo visto de fora, algo já mudou? «Claro que mudou. As pessoas quebraram o medo. Já não me sinto confuso. Posso cheirar a liber­dade, finalmente. Posso cheirá-la no ar. As pessoas estão a falar na rua. Mesmo os jornais do regime falam outra língua.»

Aponta a primeira página do AI Ahram. «Este é um conselheiro de Mubarak fotografado na praça, e o título principal é sobre a libertação do tipo da Google!»

Wael Ghonim.

Que pensa Mohammed, o amigo ao lado? «Algo está a mudar e é preciso testemunhar isso, porque é história viva. No começo eu não estava no Cairo, só voltei no

sábado. Mas no começo ninguém previu que isto podia ser tão grande. As pessoas estavam cépticas. Diziam: “Ah, um grupo de jovens a tentar imitar a Tunísia..." Havia um hype tunisino. Mas ao fim de alguns dias era claro que algo grande estava a acontecer, e que tínhamos de ser parte disso.»

O clique foi a praça encher depois da violência, dos mortos e dos feridos. «O que aconteceu prova que a for­ma de pensar mudou muito. As pessoas não tinham cons­ciência de ter direitos neste país. Agora que as barreiras caíram, sentem-se fortes. E o tom do regime também mudou.»

Mas o que estes dois amigos esperam não é o que a praça espera. «Creio que não é mau Mubarak continuar no poder até Setembro para nos poupar o caos», diz Amra. «O mau é não separar o presidente do partido, para asse­gurar que podemos avançar para uma sociedade civil, sem um estado policial.»

 

Gatos ao calor, homens a preparar as brasas do narguilé, trânsito entre palmeiras e polícias sinaleiros, corações à venda para o dia de São Valentim, de veludo e com lantejoulas.

No caminho para Gizé, tanques de um lado e do ou­tro da estrada.

 

As Pirâmides estão fechadas e os camelos bocejam. Ima­ginam um milhão de turistas a fugir? Foi o que aconteceu no Egipto.

Mas e este homem a meter a sua câmara digital entre as grades do portão, a ver se as duas Pirâmides maiores cabem no enquadramento?

«O meu nome é Riad», diz, estendendo a mão. Um pai de família bolachudo. Cá está a mulher, de lenço, Reda, e o mais novo de sete filhos, Raged. São a família R.

«Estamos há 16 dias no Egipto. Vínhamos só por duas semanas, mas com a situação assim não sabemos quando voltamos ao meu país.»

Que, na verdade, não é um país. «Vimos da Palestina. De Gaza.» Talvez só mesmo alguém de Gaza possa tirar fotogra­fias às Pirâmides em pleno estado de emergência, pois o que é um estado de emergência para quem só conhece o estado de emergência?

 

Enquanto isso, os guardas e os guias de Gizé apoiam Mubarak.

«Espero que os turistas venham, inshallah. Mubarak é um bom homem, eu gosto dele.»

«Porque há 30 anos que é presidente e não há guerra.» «Mubarak é o número um.»

«Amamos Mubarak.»

«Mais dois ou três dias e a praça está acabada», rema­ta um velho. E porque é que Mubarak há-de ficar? «Por­que tem uma grande cabeça. Se Mubarak deixar o Cairo vai ser um problema.»

 

Outra posição tem Adam, 40 anos, sentado à entra­da da sua loja de «Horse & Camel riding». Apesar de a loja estar deserta há dias, Adam concilia. «Os da praça pedem coisas boas e nós não estamos em guerra, são só pessoas a expressarem-se. Estive uma vez na praça, e eles pedem liberdade, democracia, justiça, coisas boas para todos. lnshallah o negócio vai voltar e toda a gente no Egipto terá os seus direitos. Não era uma boa vida. Não falo de mim, porque trabalho com os turistas, mas para as pessoas que trabalham para o go­verno os últimos anos foram muito duros, com salários muito baixos.»

 

Na loja de Hassan compram-se papiros que mostram, por exemplo, o aparelho reprodutor da mulher tal como o concebiam os antigos egípcios, diz ele.

 

Hassan é um homem prolixo e zangado. Prolixo, por­que faz parte do negócio, zangado, porque não há negócio.

«Estou com a praça, mas eles querem tudo ao mes­mo tempo, não esperam pela reacção! Têm de dar tempo ao governo para mudar! Temos de dar tempo a Mubarak para se corrigir! Ele aprendeu a lição!»

Hassan vive no tempo pré-praça Tahrir. A revolu­ção do Egipto também é isto: o choque de dois tempos. O tempo oriental, lento, sinuoso, protocolar. E o tempo global, multiplicador, sintético, imediato.

Quando vem à tona o polémico tema dos camelei­ros e cavaleiros que foram pagos para sair daqui e atacar os manifestantes na praça, Hassan e vizinhos protestam pela generalização. «Foram 30 pessoas com camelos e ca­valos à praça, e aqui moram 5° mil pessoas!»

 

Por cima das lojas há um terraço de onde se avistam as Pirâmides, desertas como nunca terão estado em muito tempo. Mas em cima do terraço há uma estranha colecção de garrafas com uns rastilhos dentro. Cocktails molotov, prontos a usar.

 

Regresso ao centro pela auto-estrada. Bairros inteiros de tijolo inacabados.

 

Ao crepúsculo a praça está compacta: se aqui cabe um milhão, então será um milhão. É a maior manifestação desde o início dos protestos. Wael Ghonim apareceu num dos vários palcos e falou, emotivamente. Os artistas estão no seu lugar.

Mas Kamiz quer apresentar-me um escritor na outra ponta da praça, junto ao tão citado KFC (Kentucky Fried Chicken). Uma operação épica que implica trespassar massas bruxuleantes, ondulando bandeiras, debaixo de uma lâmina de lua.

«Esta multidão é dos Irmãos Muçulmanos)), diz ele, apontando para onde se ouve uma récita do Corão. «E esta multidão são os comunistas!)), remata, eufórico. «Isto é um momento único!))

Subimos e descemos bermas, rotundas, separado­res cobertos de gente. Bancas de comida, uma multi­plicação de tendas, vários palcos, como nos festivais de rock.

 

O escritor amigo de Kamiz é IbrahimAbdel Meguid, que só conheço por causa do livro No One Sleeps inAlexandria. Comprei-o em 2002, na livraria da Universidade Ameri­cana do Cairo, agora barricada pela revolução, mas nunca o li. Aguarda o regresso a Alexandria.

Meguid disse a Kamiz que estaria aqui em frente; e encontrá-lo? Os passeios estão cheios de gente esten­dida em cobertores. O tanque à entrada da Talaat Harb está cheio de gente estendida a seus pés. E todo o asfal­to está cheio de gente de pé e em movimento, pendura­da nos semáforos, sentada em cima de cabines telefó­nicas, comendo sanduíches, empurrando carrinhos de bebé, fazendo comboios humanos e filmando tudo isto à exaustão.

Depois de ligar dez vezes a Meguid, Kamiz atende uma chamada da mãe, e quando desliga tem 13 chamadas não atendidas de Meguid.

Enquanto isto - será possível?! -, ao olhar para trás vejo Khaled «Vincent Gallo».

É mais fácil encontrar um amigo por acaso na praça Tahrir do que combinando.

 

Um rapaz de capacete - por causa das pedras - parti­lha a anedota mais recente: «Mubarak vai para o inferno e encontra dois anteriores presidentes, um envenenado, o outro alvejado. Eles perguntam-lhe: "Foi um tiro ou foi veneno?" Mubarak responde: "Foi o Facebook."»

 

«Pode dizer em inglês a Mubarak para ir embora?», diz um cartaz em inglês. «Talvez ele não perceba árabe.»

 

Passa das oito da noite quando Kamiz localiza Meguid. Cumprimento-o pelo seu «Ninguém Dorme em Alexan­dria» e ele responde logo: «Agora ninguém dorme em todo o Egipto!»

É um homem imponente, de voz grossa e cabeleira grossa. Aos 64 anos está um praticante diário do Face­book. Tem 5000 amigos, até já teve de fazer outra ins­crição. «Os jovens recriaram o nosso país. Vivemos há 30 anos num regime policial. Ninguém podia fazer nada se a polícia não deixasse. O ser humano não tinha valor, qual­quer polícia o podia levar para a prisão e torturar. O regi­me via as pessoas como menos que animais. Nos últimos anos deu liberdade para escrever nos jornais mas nunca deu resposta. Escrevi milhares de textos!»

Como toda a gente nesta praça, culta ou analfabeta, com idade para ser seu neto ou da sua idade, Meguid quer falar, e falar, e falar. A praça Tahrir é um speaker's corner gigante.

«Hosni Mubarak roubou todo o nosso dinheiro com os seus amigos ladrões, deu-lhes a terra do Egipto e eles construíram casas e cidades, e venderam por milhões. Esta é a revolução da nova era do Egipto e eu venho apoiá-la, mas a revolução é dos jovens. Eles querem dig­nidade. É o primeiro slogan desta revolução. Mubarak faz de forte mas está a preparar-se para deixar o Egipto, te­nho a certeza. Ele não pode ficar. A revolução continuará até que todo o regime caia.»

Pelo menos dois candidatos a líder apareceram na praça. Mohammed ElBaradei (ex-líder da Agência Inter­nacional de Energia Atómica) e Amr Moussa (secretário­-geral da Liga Árabe). Mas muita gente vê ElBaradei como um estrangeirado, sem apoio de base, e Moussa como um diplomata do regime.

«Não gosto de Moussa, nem de ninguém do regime», diz Meguid. O seu amigo Osama Jad, poeta, 40 anos, completa: «As pessoas acham que por visitarem a revolu­ção são revolucionárias, mas não são...»

 

Oferecem-me biscoitos de sésamo. Há gente a distribuí-los pela praça. A toda a hora chegam sacos de donativos, comida, remédios, cobertores.

«Muita gente aparecerá depois de a Constituição ser mudada», confia Meguid. Um líder? «Sim. Mas agora não é o momento para isso. É o momento para a democracia.»

O poeta concorda: «O importante é que o próximo presidente vai ser civil. O exército para nos proteger, sim, mas para nos governar não.»

 

Mais um cartaz: «Mubarak, por favor vai embora, tenho de ir à casa de banho.»

 

A mulher de Kamiz, uma actriz pequena e robusta cha­mada Randa, não canta vitória. «Na praça Tahrir pode­mos dizer o que quisermos, mas fora não. A maior parte dos egípcios ainda não está liberta do medo. Tahrir tem a vida que perdemos durante 3° anos. Há amor, coopera­ção. Tornou-se livre como os Estados Unidos, que são um país avançado. Mas eu não gosto do domínio dos Estados Unidos nos países árabes. Eles são livres no seu próprio país, mas quando vêm cá tornam-se ditadores. E não en­tendo a posição da América agora: porque lidam com Mubarak assim, com tolerância.»

 

Dois rapazes entregam-me um saquinho com livros. «Quer em inglês ou em francês?» Vêm da AI Azhar, a gran­de universidade islâmica do Cairo. O que há dentro do saquinho são livros sobre o islão, um bê-á-bá. Um dos ra­pazes chama-se Mohammed, tem 30 anos e formou-se em inglês, mas mal consegue exprimir-se em inglês.

«Isto dá uma ideia da educação no Egipto», comenta Kamiz. E traduz o que o rapaz diz: «Queremos protestar contra este regime. O meu islão coincide com os direitos humanos.»

Cita a Turquia como bom exemplo, e o Irão como mau exemplo.

 

Passa um rapaz com luvas e um grande saco a apanhar lixo. Há sempre voluntários a trabalhar.

 

De dia faz um calor de Primavera, mas agora são nove da noite. Começo a perceber para que servem tantos cobertores.

De regresso ao acampamento dos artistas, Kamiz apresenta-me a toda a gente e anuncia que vou dormir ali. Foi improvisada uma tenda com plástico preto, mas a esmagadora maioria vai ficar ao ar livre: uma esteira de palha em cima do passeio, com cobertores por cima.

Tiro os sapatos, sento-me ao lado de uma actriz de lenço atado como o de uma cigana. Chama-se Nohe e oferece-me o que está a beber, sumo de ananás. Khaled «Vincent Gallo», que não pertence a este grupo mas sabe onde ele fica, aparece para ver se estou bem e pede-me que lhe telefone se precisar de algo. Kamiz oferece-me mais biscoitos. Toda a gente quer tomar conta de mim.

 

Canções, palmas e espirais de cigarro na noite.

O radioso Medo aparece, e pergunta se me estou a ir embora porque estou a fechar o casaco. Digo-lhe que não, que vou dormir aqui. Ele sorri de orgulho: «És uma de nós!» Não é o que todos queremos ser?

A revolução terá sempre esta noite.

 

Trazem-me um chá quente. Há tabuleiros deambulando pela praça. Ondas de música que vão e vêm consoante as pessoas se concentram e dispersam. A temperatura cai e cai.

Randa, a mulher de Kamiz, acaba de voltar da casa de banho. As mulheres usam a mesquita da praça. Os ho­mens, os cafés, ou por aí. De vez em quando paira um cheiro a urina no ar.

A revolução pode não ter cabeça mas tem muitos corpos.

 

«Você veio do Brasil?», pergunta Aya, que tem 26 anos, importa e exporta contentores, e acaba de me perguntar onde moro. «Aqui falamos com muito respeito de Lula da Silva. Quando queremos falar de líderes que são um exemplo falamos de Erdogan, na Turquia, de Susilo, na lndonésia, e de Lula da Silva, no Brasil.»

O único não-muçulmano do trio. Nenhuma proxi­midade regional ou cultural. Será a economia, mesmo. A soberania.

«Se o Egipto tivesse continuado o que era nos anos 50 podia estar bem. Mas depois de três guerras tudo parou.»

 

1956, Canal do Suez. 1967 e 1973, as duas guerras com Israel.

E depois Mubarak.

 

«Húmus! Húmus! Húmus!», apregoa um homem com um tabuleiro de copinhos. 22h. Sameh, jovem encenador e realizador, fala-me de uma amiga brasileira, Cláudia Nunes, que se esqueceu da câ­mara no Cairo, em Setembro, quando veio ao Festival de Cinema de Ismailia, onde ganhou o Grande Prémio com Número Zero, sobre meninos de rua em Goiás.

A odisseia da câmara mete o Museu Egípcio e resgate à polícia. Agora o aparelho está tão bem guardado que Sameh precisa de dias para o localizar e por isso desiste da ideia inicial: que eu o levasse para o Brasil.

Em compensação, liga o telemóvel: mensagens calo­rosas de Cláudia, desejando o melhor à revolução.

 

Um rapaz vem mostrar-me um desenho que acabou de fazer com Mubarak e um burro. Insiste que lhe tire foto­grafias: «Porque já não tenho medo.»

 

23h. Kamiz foi embora para o seu turno de vigia.

Tenho à minha direita o esqueleto do Nile Ritz Carlton e à minha esquerda a silhueta do Interconti­nental Semiramis. Hotéis de cinco estrelas, com vista para a mansidão das falucas, flutuando nas águas do Nilo. Imagino o clarão quando ardeu a sede do partido de Mubarak, no começo dos protestos, tão perto do Museu Egípcio.

 

Medo fala-me de Ismailia, a cidade onde nasceu, famo­sa pelo futebol. Do pai que trabalhou 20 anos em Milão. «Tinha uma banca de comida. E eu fui para Itália quando tinha seis anos. Fui à escola lá. Chorava muito para voltar ao Egipto. Então o meu pai mandou vir os meus tios para Itália e voltou para o Egipto.»

Com cobertores no colo, parece que estamos à fo­gueira. Só não consigo decidir se Medo é um ícone bi­zantino ou se saiu de um Caravaggio. Quando cresceu, queria voltar para Itália a todo o custo.

«Mas depois deste 25 de Janeiro vi uma luz e sou­be que estava enganado: o Egipto vai ser um país livre, haverá muito trabalho e muito dinheiro e poderemos fazer do nosso futuro o que quisermos. Sabemos que o Egipto é importante pela sua localização, que todos os olhos do mundo estão no Egipto, mas antes não sen­tíamos que as pessoas fossem importantes. As pessoas eram negativas. Nunca nos unimos numa ideia, mas agora aconteceu. Todos os egípcios estão a pensar numa ideia. E tornaram-se positivos.»

 

23h28. Dois homens já dormem ao meu lado, embrulha­dos em cobertores.

 

Vida quotidiana: Medo veio aos 20 anos de Ismailia, vive sozinho num apartamento junto às Pirâmides e sonha com Hollywood.

Mostra-me um inquérito que está a ser distribuído na praça: «Como soube da revolução de 25 de Janeiro? Pela Internet? Por um amigo? Por um partido? Por canais de satélite?»

Medo conclui: «Os media egípcios não são uma opção.» Eu mostro-lhe as fotos que tirei das Pirâmides: «Até hoje não sabemos como o faraó as construiu», diz ele.

 

Cada vez há mais clareiras no horizonte. A praça senta­-se, deita-se, esfrega as mãos, enrola-se, ri, canta, ador­mece, acorda.

«Somos crianças feitas para grandes férias», escreveu Ruy Belo. A filha dele, Catarina, é arabista e vive no Cai­ro, onde ensina filosofia medieval. Alguns dos seus alunos estarão algures aqui, enrolados em cobertores. Ela está em casa, no bairro de Zamalek, a uns cinco ou seis qui­lómetros. Dos 12 professores do seu departamento, na Universidade Americana do Cairo, só três não deixaram a cidade no grande êxodo dos estrangeiros.

 

E o exército aqui à volta, tanque a tanque, em que pensará?

 

QUARTA-FEIRA, 9 DE FEVEREIRO

À meia-noite a data muda no mostrador do telemóvel. A temperatura cai e cai.

 

Medo pede-me o caderno e escreve o meu nome em árabe, para me ensinar letras. Depois fala de nomes de mulhe­res. «Pomos o nome delas no nosso coração e fechamo-lo.» E depois fala da ex-namorada Menna, que significa presen­te. «Mas o nome completo dela é Mennatollah, que signi­fica presente de Deus. Terminámos no dia 25 de Janeiro. Por favor não me perguntes porquê. Muitas coisas aconte­ceram.» Por exemplo, a revolução. «Mas não foi por causa da revolução.»

Ela tem 24 anos, menos um que ele, e conheceram-se na Escola de Teatro. Medo tira o telemóvel e mostra-me fotografias. Eles os dois no Mar Vermelho, ele, tronco nu de ApoIo, ela, de fato-de-banho género estrela dos anos 50. Ele de óculos de mergulho. Ele debaixo de água. Eles felizes ao sol.

Um rapaz e uma rapariga à nossa frente estendem um cobertor, deitam-se e estendem outro cobertor por cima deles. Impensável no mundo árabe, onde um beijo público já é algo difícil de imaginar. Mas não estão a apro­veitar a revolução para nada mais. Estão só deitados, ele com o braço à volta dela, cheios de casacos por baixo dos cobertores, apenas juntos para passarem a noite na praça. Enfim juntos.

Não sendo aquilo que o Ocidente já começaria a pensar, é uma grande coisa.

Medo está fascinado. «É a primeira vez que vejo pes­soas livres no Egipto. Antes de 25 de Janeiro era impossí­vel ver isto em público. É por isso que vimos aqui todos os dias. Nem conseguimos acreditar que somos iguais. Estamos a tratar-nos como iguais. Pobres e ricos a dor­mir na rua. Acho que não aconteceu em muitos lugares do planeta.»

Puxa um cobertor para me cobrir o colo.

 

Ele ama a ex-namorada e acha que ela o ama, mas não se falam. Ela esteve aqui esta noite e não se falaram. Ele já lutou muito por ela e está cansado disso.

Quando foram ao Mar Vermelho, como foi, ficaram juntos? «Alugámos dois quartos e dormimos só num.» Pausa. «Mas isto não é comum. Poucas pessoas fazem isto.» Por isso é que alugaram dois quartos. Só um seria impossível.

 

Já estou semideitada.

       Medo mudou a conversa para Deus: «Leio o Corão e a Bíblia e é a mesma mensagem. Então, porquê lutar?

 

Se o Islão é a última mensagem de Deus, porque não acreditar no Islão?»

Está genuinamente espantado.

 

0h25. Dois rapazes com caixas de cartão vêm distribuir pão pita e triângulos de queijo, um clássico nesta parte do mundo. «As pessoas ricas querem ajudar e compram comida», diz Medo.

 

Que recorda ele de Roma? «Pombos. E muitas igrejas.»

 

Partilho a cabeceira com os rapazes que estão dentro da tenda de plástico. Um dos rapazes lê um relatório chama­do «Democracia e Revolução», elaborado pelos Advoga­dos para os Estudos Sindicais e Democráticos.

 

Medo está aqui há 12 noites. Foi três vezes a casa tomar duche, mudar de roupa, ver o Facebook e os e-mails, e car­regar o telemóvel, mas dormiu sempre na praça. «Adoro estar aqui. Não me sinto bem quando estou em casa. Sinto que não está certo. Que há algo que eu devia estar a fazer. Que os meus irmãos estão aqui, e em perigo, e a qualquer momento pode acontecer qualquer coisa, cavalos, came­los, armas brancas, tiros. Vimos muitas coisas terríveis.»

Estava aqui no dia das pedras? «Estava. Atirei pedras. No Islão, um homem que se defende ou defende a sua fa­mília ou os seus irmãos é um shahid e vai para o paraíso.» Medo acredita no paraíso? «Claro, tem de haver um paraíso e um inferno. Os bons vão para o paraíso e os maus para o inferno. É por isso que somos diferentes. As pessoas podem escolher. Posso escolher ser um bom homem ou um mau homem.»

Um homem de fé.

 

E um homem de teatro. «Gosto muito de um escritor chamado Eugene Ionesco. É francês, creio. E de Albert Camus. E de Brecht.»

E Shakespeare? «Ah, claro li dez ou 11 peças. Fui o mercador de Veneza e o Harnlet.» Recita em árabe: «Akun au'le akun, tilka eia aI mas ala.»

Ser ou não ser, na praça Tahrir.

 

0h55. O homem ao lado acorda, senta-se, entrega um copo de chá a Medo. Medo partilha com ele pão e queijo. Vêm distribuir pacotinhos de balava, aquele doce árabe que se desfaz na boca. Como um, a olhar para o céu, azul petróleo, como se nunca escurecesse completamente.

 

Chegam novos hóspedes. Levantamo-nos todos para reor­ganizar espaço e cobertores. Somos duas mulheres e um monte de homens.

E nem um só gesto duvidoso.

 

1h36. Música lá ao fundo, junto ao KFC. Um homem vem distribuir pão. Outro oferece tâmaras. Há garrafas de água mineral para quem quiser. Eu estou a tentar não querer nada, além do meu balava, para não ter de atraves­sar toda a praça até à mesquita.

 

E todos estes cobertores, vieram de onde?, pergunto. «De Israel!]), responde um rapaz de barrete de lã, com cara de quem acabou de chegar do Monty Python Flying Circus. Digo-lhe que podia ser comediante. Ele respon­de que é comediante. E depois diz a verdade sobre os co­bertores: «Vieram das nossas casas.»

Cobertores de muitos armários do Cairo, cheios de borbotos, com fitas descosidas, sabe-se lá quem já emba­laram.

E agora vem alguém distribuir nada menos que ca­checóis. Cachecóis às riscas, alegres como um arco­-íris, todos iguais. Seria uma remessa de alguma fábrica? Então todos põem os cachecóis e de repente parecem uma equipa de qualquer coisa.

 

O rapaz que desenhou o burro e já não tem medo con­tinua acordado e vem mostrar-me o seu novo desenho. Há uma produção contínua de arte. Aliás, atrás de mim há um estendal de folhas coloridas.

 

1h44. Bananas e mais cachecóis. Goiabas frescas.

       Nem álcool nem droga.

 

Muitas coisas na praça Tahrir são difíceis de imaginar na Europa. Uma delas é esta: tudo ser tão organizado e não haver uma organização oficial. As dádivas são solidarie­dade. Distribuí-las é solidariedade e organização. Cada um dá o que tem, isso funciona e chega a todos. Lembro­-me de Gaza, onde ao longo dos anos nunca vi uma casa suja, nunca vi um mendigo.

Quando não há estado, as pessoas organizam-se. Todas essas heranças estão na praça Tahrir. A fraternida­de do clã árabe. A auto-organização. O acolhimento.

Uma revolução de indivíduos que intuitivamente criaram uma comunidade.

 

O comediante do barrete tem uma coisa em comum com Mubarak.

Como te chamas?, pergunto-lhe eu.

Pausa.

«Hosni», responde ele, abatido. «Peço desculpa, peço desculpa.»

Pausa.

«Chama-me Yusef.»

 

Nohe canta, sentada na noite. Uma voz ondulante, de há séculos.

 

3h15. Um jovem Mahmoud aparece a anunciar que está de partida para o Parlamento, para levar comida e co­bertores aos manifestantes que decidiram dormir lá em frente. «Eles não têm nada.»

 

3h20. Medo fala de Michael Jackson. «Quando eu era novo dançava como ele.» Não sei se já disse que Medo tem 25 anos.

 

Às 3h29, um homem oferece chá e três rapazes de barrete limpam a praça.

 

3h43. Tumulto geral. Toda a gente corre para o palco junto ao KPC. Nós também, desembrulhando-nos dos cobertores. A multidão grita desvairada: «Desce! Desce! Desce!»

Medo explica: «É um cantor que chorou por Mu­barak na televisão, chamando-lhe meu pai, e agora veio aqui.»

«Como a revolução ficou grande, ele quer abraçar a revolução!», grita um homem, indignado.

Ninguém parece espantado por serem 3h43 da ma­nhã. Tudo se passa como se fossem 3h43 da tarde.

Quando voltamos aos nossos cobertores ouvimos ti­ros para o ar, e pouco depois o tumulto passa.

 

Às 4h15 duas mulheres cobertas de negro distribuem do­ces. Às 5h tento fechar os olhos.

Um frio de gelar a ponta do nariz.

 

Passam rapazes a bater palmas para a primeira oração. A maior parte das pessoas não se levanta.

 

Perto das 6h aparece um jornalista da TV India. «Isto não é espantoso?», diz, naquele inglês que só se fala na Índia. Mas eu sou a única que lhe dou réplica. Do ponto de vista destes jovens, a Índia não é a Turquia nem o Brasil, e nem sequer tem um Cristiano Ronaldo. Sobretudo, tem estado do lado errado, politicamente.

 

O céu clareia nas nossas costas. E então irrompem pe­lotões a correr, incentivados por um auto-treinador. Rapazes amarrotados, de barbas por fazer, após mais uma noite na praça Tahrir, e toca a correr para aquecer o dia.

 

Saio da praça às 6h30 para dormir umas horas.

 

A meio da tarde, um amigo fotógrafo telefona-me a dizer que está num 9.º andar, numa casa que tenho de ver, de um homem que tenho de conhecer, e explica-me como chegar lá.

Então atravesso a praça até ao começo da Talaat Harb. É o começo de toda uma outra história.

 

Há que contornar o tanque, os homens deitados a seus pés, as bancas de jornais e de livros. Vejo uma grande porta com um rapaz do lado de lá a quem digo: «Pierre?» É uma espécie de senha. Entro.

Escadas de mármore, um esplendor gasto, elevador soluçante, com vidros partidos. No 9.º andar, umas esca­das das levam ao telhado. A vista é assombrosa: toda a praça, um imenso formigueiro. Mas não vejo o meu amigo, não era disto que ele estava a falar. Desço ao 9.º outra vez: será esta porta de vidro? Sim, basta empurrar.

E eis Pierre ao computador, transmitindo a revolução.

Pensem num escritório com armários de madeira e vidro cheios de livros encadernados, pinturas a óleo, ve­lhas caixas de tabaco, candeeiros art déco. Agora pensem em tudo isto com a patine de um século misturada com sacos-cama, câmaras de filmar, pilhas de jornais, laranjas, biscoitos, óculos, maços de cigarros, porta-chaves, rapa­rigas no sofá com portáteis da Apple, rapazes de caracóis teclando em iPhones. Pensem num lugar antigo onde toda a gente está ocupada a fazer o presente.

A começar por Pierre, t-shirt XXL, corpanzil de Fran­eis Ford Coppola. As barbas e os óculos ajudam, mas ele não concorda. «Acho que sou mais parecido com o Orson Welles.»

Pierre Sioufi, 50 anos. Profissão? «Fiz umas pinturas, mas não sou pintor, representei uns papéis, mas não sou actor. No fim de tudo tenho de dizer que sou um playboy.»

Ainda não passaram cinco minutos e ele já é toda uma história da revolução. «Alguns jornalistas dizem que tenho uma mão nesta revolução, mas não tenho, quem dera.»

Claro que tem.

A mão do anfitrião.

 

«Sou absolutamente egípcio. Estive numa escola fran­cesa, mas antes aprendi inglês nas canções dos Beatles e em livros pomo. O meu pai era coleccionador de livros e curiosidades, e tinha alguns clássicos pomo, em in­glês e francês. Acabei os franceses e passei aos ingleses. E ajudou que, quando os meus pais queriam falar noutra língua para eu não perceber, falavam inglês. Na verdade, aprendi inglês e francês antes de árabe.»

O remate é surpreendente: «Também não vi assim tantas coisas em árabe que quisesse ler.» Absolutamente egípcio e politicamente incorrecto? «Por isso é que não faço política.»

Está sempre sentado à secretária, sempre de cigarro na mão, sempre de Facebook aberto, e uma romaria de gen­te entra e sai, senta-se, pergunta-lhe coisas, beija-o. Árabes soixante-huitards e os filhos deles, bloggers, videastas, total­mente ligados na revolução, para cima e para baixo, entre a praça e o 9.º andar.

A praça está toda na varanda, tão perto e inteira que é uma extensão da casa. Ou a casa é um zoom sobre a re­volução. Que casa é esta?

«Era a casa dos meus avós», diz Pierre. «Depois ha­via a casa dos meus pais, que não é muito longe, e mais para baixo a galeria do meu pai. Eu tinha uma pequena bicicleta com quatro rodas e ia com ela à galeria, pelo passeio.»

Fez-se ao mundo sem nunca perder o Cairo. E no dia 25 de Janeiro instalou-se aqui porque era em cima da praça.

 

Há muito que ninguém cá morava, mas agora toda a gen­te cá mora enquanto for preciso.

«Há uma revolução a acontecer. Estou a olhar para ela, estou a pôr a história desta revolução no Facebook desde o primeiro dia para quem quiser. A praça Tahrir era o lugar favorito do meu avô. Na altura não havia o [hotel] Semiramis e daqui víamos até às Pirâmides...» Pausa para mais uma pergunta de alguém, mais um abraço de quem chega, a falar árabe, inglês ou francês.

Pierre não é um homem solene. «Não acredito muito em revoluções, mas a revolução agora está aqui...» No fim das contas, um romântico. Aliás, teve um blogue chama­do Kikhote, por causa de Dom Quixote.

 

QUINTA-FEIRA, 10 DE FEVEREIRO

Meio milhão na praça, e continuam os reencontros: vi esta cara ontem. Desta vez não é Khaled «Vincent Gano». É um rapaz chamado Obada, 24 anos, cabeleira espetada, óculos bicolores muito cool. Alguém os esqueceu em al­gum lugar, e ele mudou as lentes.

Assim como está, blusão de capuz rosa, jeans e ténis, podia estar numa esquina do Harlem, mas na verdade viveu sempre no Cairo. Tanto ouve Bob Marley como Bob Dylan, Edith Piaf ou o trip-bop libanês dos Soapkills. Onde aprendeu tão bem inglês? «Nos filmes.» Vários por dia, enquanto estudou cinema. A mãe não trabalha, o pai edita manuais escolares e já esteve preso seis meses, os cinco irmãos já passaram todos pela praça, mas ele va­gueia sozinho, quase mudo de emoção.

Hão-de aparecer, daqui a nada ou um dia: os filmes, os livros, as canções de quem esteve na praça Tahrir aos 24 anos. Obada até foi preso, logo no princípio.

«Eu quero outro presidente e espero escolhê-lo.» Vê alguém?

«Não. Mas alguém vai aparecer da juventude que fez a revolução. Alguém como Ghonim. É um momento dourado para um herói chegar. Toda a gente que aqui está espera que alguém chegue e diga: "Vamos!" Não precisamos de um anjo do céu para nos guiar. Só de um homem.»

Começam a cair pingas grossas. Tapamos a cabeça e corremos.

 

A meio do caminho, Obada encontra um amigo, John, que está a fazer um filme sobre esperar. Liga a câmara e pede às pessoas que falem sobre esperar. Quando dou por mim já falei sobre esperar.

Os jornalistas na praça Tahrir são só uma pequena parte de todos os que registam e partilham.

 

Fiquei de continuar a conversa com Pierre, e de repente penso que Obada gostaria de ver aquela casa. Então che­gamos juntos à porta mágica, que já se abre sem senha.

Vai ser um longo dia.

Logo no patamar Obada está impressionado: «Aquele é um grande actor!», sussurra-me, apontando um homem debruçado sobre o ecrã do telemóvel. Depois pergunta para quem vou escrever. Falo-lhe numa revista de Ber­lim, Lettre lnternational. «Berlim! Eu adorava ir a Berlim! À Berlinale!»

Lá fora rebentam trovões.

Quando chegamos ao 9.º andar, Obada vai pela casa fora como se levitasse. Havemos de nos encontrar daqui a umas horas.

 

Sento-me a falar com Pierre.

«Os miúdos estão a fazer um trabalho incrível», diz ele. «Coisas que nunca pensámos possíveis. Acho que o regime acabou. Agora, como mudá-lo é que vai ser difí­cil. As pessoas não concordam sobre quem são as pessoas que podem falar por nós.»

Entram rapazes com câmaras.

Pierre mostra no computador o que tem em curso.

«Um baralho com as pessoas que queremos que caiam.» Como os americanos fizeram a Saddam e compinchas, no Iraque. Neste caso, o Ás de Espadas é Mubarak. «Mas talvez a revolução acabe antes de acabarmos isto...»

E o exército? Não poderá ser uma surpresa? «Não penso que vá atacar. O receio é que os jovens oficiais pre­parem um golpe. Isso seria um desastre.»

Há planos para a revolução tomar o edifício da tele­visão. Pierre tem dúvidas. «É uma escalada muito perigo­sa. Mas eles têm feito muitas coisas que não esperávamos que fossem bem-sucedidas. Foram eles que fizeram isto, não nós [aponta para a praça, lá em baixo].»

E Tahrir continua indomável, sem nenhum grupo a controlar. «Toda a revolução é bastante individualista. A decisão de vir é individual. O regime quebra não pe­los islamistas mas porque os miúdos querem um novo país, democrático, aberto. Então as ideias surgem e as pessoas individualmente decidem: sim, é uma boa ideia, vamos fazer isso. Ou não. Sei que há activis­tas políticos que estão a tentar ajudar. Os jovens são bem-educados, ouvem-nos, mas não quer dizer que acatem.»

 

O som da praça sobe.

       Há rumores de que no aeroporto os empregados es­tão a ir para casa, e nos ministérios também.

Pierre é gentil com toda a gente que telefona. As pes­soas sentam-se à frente dele e falam. O seu amigo Sherif, um editor de livros de arte que passa os dias nesta casa de cachimbo na mão, fala numa marcha a caminho do palá­cio presidencial que estará a deixar o exército nervoso.

«O regime colapsou quando pediu ao exército para tomar conta da praça», diz Pierre. «Mas o exército está a mostrar um auto controle espantoso. Temos um regime militar desde 1952, o que não é aceitável para a maior par­te das pessoas, e acho que o exército percebeu isso.»

A revolução alastra. «O sistema ainda está a tentar defender as suas instituições, mas as instituições len­tamente dizem que estão com o povo.» Anunciam-se greves. Os Irmãos Muçulmanos falam com os jovens. «Quebrou-se aquela imagem que as autoridades cria­ram sobre o perigo do fundamentalismo. Ninguém tem uma agenda a não ser: o regime tem de cair. É um dos grandes feitos desta revolução, a abertura de canais de comunicação entre islamistas, cristãos e a juventude. Descobrir que era possível falarem uns com os outros.»

 

Esta casa é um exemplo.

 

Entra um homem barbudo com uma criança de fita tricolor na cabeça, claramente um Irmão Muçul­mano ou simpatizante. Chama-se Magdi Ashour e tem 40 anos. «É um amigo que fiz na praça», diz Pierre, depois de Magdi passar à sala seguinte para dar uma entrevista ao New York Times. «Um dia estávamos a fil­mar na praça e ele olhava, com ar zangado. Fui lá ver se podíamos falar. Foi a primeira vez que falei com alguém dos Irmãos sem ser em choque. Disse-lhe: "Espero que não se importe que estejamos a filmar..." E começámos a falar.»

 

Quando acaba a sua entrevista, Magdi acena timidamen­te. Não, não se importa de ainda conversar comigo. «Não pertenço oficialmente aos Irmãos Muçulmanos, mas te­nho amigos lá e estou com eles na praça», diz, com o filho ao lado.

Ao todo, é pai de quatro, mora ao pé das Pirâmides, trabalha numa fábrica que faz jeans. Amigos que estão no Facebook contaram-lhe o que estava a acontecer, ele foi ter à praça e ficou lá a dormir. Só voltou a casa para levar o filho de 14 anos. Queria dar-lhe esta experiência.

«Não vou sair até o presidente sair ou eu morrer», diz tranquilamente. «Já tive um amigo que morreu nesta re­volução, jurei honrar a morte dele. Foi alvejado em frente ao Ministério do Interior. O erro do governo foi começar a usar violência. Por cada morto haverá mais cinco resis­tentes. Além do meu filho trouxe o meu irmão. Gostava de trazer a minha mulher, mas o nosso bebé de quatro meses está no hospital. Quando estiver melhor, planeio trazê-los. Não tenho medo de que morram. Amo-os muito mas estamos a lutar por uma causa, e uma crença.» É o momento. «Ninguém esperava isto. Talvez seja pelo sangue novo da juventude, por causa da Internet, por­que antes as pessoas tinham medo de serem levadas e torturadas.»

Ele sabe do que fala. Foi detido desde o 11 de Setembro «pelo menos uma vez por mês». Dá mais de cem vezes.

A primeira foi assim: «Levaram-me de ollios venda­dos e disseram-me para tirar toda a roupa, o que é muito desrespeitoso. Deixaram-me três dias de mãos amarra­das, pendurado num gancho. Deram-me choques eléctri­cos no corpo, incluindo nas partes íntimas. Eu não podia usar a casa de banho. Os choques duravam uma hora, até eu desmaiar, depois batiam-me para me reanimar. E isto foi antes de começarem a fazer perguntas. A per­gunta que faziam sempre era: "Conheces Osama Bin Laden?" E eu respondia que o conhecia como conheço a rainha de Inglaterra. Eles insistiam que eu o conhecia pessoalmente.»

Ano após ano, a tortura repetiu-se. «Perdi 25 por cento da minha memória. Fui hospitalizado, medicado.» Mas porquê ele? «É a barba. A forma como pareço. Isto acontece sistematicamente a quem tem barba. Mas sabe porque não a tiro? Porque vão achar que me estou a dis­farçar para um ataque terrorista.»

 

É tudo isto que mantém Magdi na praça. Quer fa­zer cair o regime que o perseguiu quase dez anos. «Não espero um governo islâmico. Todos concordamos em re­lação a algumas leis e a um processo democrático, todos estamos ao abrigo dessas leis. Se houver algum problema, voltamos à lei. Há diálogo na praça. Esta conversa é um exemplo disso: vim aqui por minha vontade.»

 

Quem traduz é uma das muitas voluntárias que acampa­ram nesta casa, a luminosa Marwa, 33 anos, egípcia a vi­ver em Genebra, onde ensina técnicas de liderança. Voou para o Cairo só para viver a revolução.

 

Pierre desvenda um segredo. Uma jornalista da AI Ja­zeera refugiou-se nesta casa. Daqui transmitiu, escapan­do ao regime.

E, aproveitando que por momentos ninguém pre­cisa de atenção, é agora que Pierre vai falar dos Soussa, esse apelido português que está na sua família assim com três esses? Sim, mas com todo o charme de quem se está nas tintas para agradar, ele atalha já: «O que sei são provavelmente rumores. Não acredito que tenha­mos necessariamente de estar orgulhosos dos nossos ancestrais...»

Nisto irrompe pela sala um repórter igual ao Paul Bowles, mas só até ligar o seu microfone de rádio para perguntas do género: «Como se sente por deixar o seu apartamento ser usado pela revolução?» Pierre responde:

 

«Os jornalistas e os jovens aqui só estão a tentar passar a revolução...» O sósia de Bowles prossegue: «Chama-se Pierre, portanto é cristão...» Pierre: «Não sou muçulmano nem cristão. Sou um não-crente que nasceu cristão. A mi­nha avó pediu à minha mãe para nunca fechar este aparta­mento. A minha mãe manteve a promessa até morrer, no ano passado. E eu percebi que uma cobertura ao vivo era o necessário para evitar um banho de sangue.»

 

Quando o sósia de Bowles termina, eu volto aos Soussa.

«Um Soussa veio para o Egipto como médico do rei...», começa Pierre. Mas logo ressalva, para que não haja dúvidas: «A história individualmente não é impor­tante. O que importa é a força da mudança. Podemos es­tar lá no momento certo ou não.» Como agora.

E este manualzinho de português numa estante, edi­ção de I960? «O meu avô foi a Portugal como turista e contava na família - é um mito! - que o governo portu­guês lhe disse: "Pode ficar com este castelo, mas tem de o recuperar." E o meu avô achou que não valia a pena.»

O neto não sabe que castelo seria esse. Pierre-Tewfick Sioufi, nome completo. O Soussa não sobreviveu nele.

«A minha família são católicos gregos do lado liba­nês. A minha mãe morreu libanesa. O meu pai nasceu egípcio, mas o pai dele nasceu iraquiano, em Bassorá, e a mãe era uma grega de Alexandria.» Bem-vindos ao Médio Oriente. «Os Soussa tinham uma grande fábrica de taba­co…»

 

Lado da mãe. E estes livros todos? «A maior parte era do meu bisavô.»

Agora os pais de Pierre estão mortos e ele não tem irmãos. «Não tenho nada que temer.» Este é o seu país. «Nunca fiquei mais de três meses fora do Egipto. Viajei temporadas, Paris, Bruxelas, Holanda, Itália, Alemanha, Polónia, Áustria...»

Trabalhou como jornalista, fez instalações e fotogra­fia além de pintar, e tendo representado prefere encenar. Sobretudo, coleccionou. «Desde posters de cinema a fras­cos de perfume...»

Tem um apartamento neste prédio, mas não tão alto, e às quatro da manhã de 25 de Janeiro dominar a vista da praça era fundamental. «Antes da revolução, o plano era alugar esta casa e viver luxuosamente na Europa, não ter de me preocupar com dinheiro.» Onde na Europa? «Provavelmente na Holanda. Gosto do tempo frio. Não percebo os europeus que correm atrás do sol.»

E não acredita «no caos», faz questão de dizer. «Acre­dito numa democracia que não seja como a americana.»

 

A tarde avança e a casa transborda. Percorro-a toda pela primeira vez: corredores com velhos retratos de família e um telefone com meio século; um calendário com gatos e por cima uma pintura erótica; aparadores com porcela­nas raras e uma vasta garrafeira no salão dos jovens, que tem colchões no chão, portáteis em cima da mesa, e uma parafernália de cabos.

 

Mas também há quem deixe o seu portátil aberto numa sala de passagem, em cima de um colchão: Hassan, cineasta jordano, cabelo pelos ombros, 33 anos, metade dos quais vividos no Cairo.

«Os meus amigos e a minha ex-mulher são egípcios. Na noite de 28 de Janeiro eu e a minha família tivemos uma grande discussão porque eles não queriam que eu me juntasse à revolução. O meu pai tinha um argumento forte, o meu direito de residência está em nome dele – é um investidor no país, portanto deram-lhe a ele e à famí­lia direito de residência. Disse que se eu me envolvesse, isso ia envolvê-lo e ao seu trabalho, o que ele não podia permitir. Então nas noites de batalha o que fiz foi estar online todo o tempo, espalhar informação.»

O assunto era «definitivamente» da sua conta. «Sou de origem palestiniana, como três quartos dos jordanos, nunca vi a Palestina, mas sei o que é opressão e injustiça, e emociona-me ver gente combater pela sua liberdade.» Ser jordano complicou a aproximação à praça duran­te os dias de confronto, e chegou a ser detido. Depois instalou-se em casa de Pierre, a que chama «nervo elec­trónico central» da revolução. «Fiquei a ajudar receben­do e enviando informação do que se estava a passar pelo país.» Notícias, fotos, filmes, traduções, além do portátil aberto, para quem precise.

 

Na cozinha há sacos de comida, as pessoas entram e servem-se. A varanda está apinhada de amigos, amigos dos amigos e fotógrafos, tudo debruçado sobre a praça Tahrir. Meio milhão? Um milhão? A vibração é brutal, como se estivéssemos pendurados sobre as cabeças. Na verdade, é exactamente isso. E o céu rosa e doura­do até ao Nilo.

Reencontro Obada, chá na mão, feliz da vida.

Na pequena sala da TV há quem já roa as unhas, porque acaba de ser anunciado que Mubarak - aliás, o exército; aliás, Mubarak; as versões alternam - vai fa­lar. Felizmente a sala abre para a varanda, porque a tensão é explosiva.

Alguma coisa grande está para acontecer.

«Nunca vi a praça assim», diz Mona, uma cinquen­tona miúda e grisalha, amiga de Pierre, olhos brilhantes.

A praça grita: «Mudança! Mudança!»

Um general aparece na TV Afinal sempre é o exérci­to que fala. Mas para não dizer nada.

A praça grita: «Exército e povo, uma só mão!» Khaled Abol Naga, actor galã no Egipto, filma tudo, incansável. Está a alimentar um blogue e a twitter. Há muita gente ligada ao Twitter, o que permite que às 17h54 alguém grite: «Wael Ghonim twittou: "Missão cumprida"!»

Pierre abre o Twitter.

Há quem comece a celebrar. Há quem ache que o exército fez um golpe. A AI Jazeera anuncia que a ten­tativa de assassinato de Ornar Suleiman, o vice recém­-nomeado por Mubarak, foi feita pelo exército.

 

A praça está frenética. Um bebé vem trazido em bra­ços pela sala. Obada quer comprar champanhe. Agarra no meu caderno e escreve em árabe: «REVOLUÇÃO».

Estamos todos colados ao ecrã, de pé, sentados, dei­tados, encavalitados. A Al Jazeera entrevista um soldado que entregou a arma, se juntou ao povo e está a dizer que o líder do exército tem de se demitir porque durante todo este tempo não impediu o regime.

A sala grita de alegria.

 

Vou ter com Pierre, que está ao computador. «Come­çar outra vez com o exército é um pouco preocupante. Mas talvez não houvesse outra escolha...»

 

Na varanda, a jovem blogger Gigi lbrahim olha a praça, eufórica: «Isto vai mudar todo o Médio Oriente! Será um novo século! Eu estava à espera desta revolução e agora estou a vê-la acontecer!» É linda e rápida, Gigi. Daqui a dias estará na capa da Time.

Revolução também é isto: o rosto do novo Médio Oriente ser Gigi, Medo, Obada, Khaled. O Ocidente a descobrir que pode ser o Outro. Mais, que gostava de ser o Outro.

 

20h41. Confirma-se que Mubarak vai falar, mas quando?

 

22h25. Na salinha da TV devemos ser uns 70. Uma amálgama.

­

22h46. Mubarak fala. Silêncio, um riso solto, depois um protesto. E pouco a pouco as caras na sala vão caindo. Bocas abertas. Mãos na boca. Cabeças a abanar. Lágrimas.

Um rugido sobe da praça, por cima da voz de Muba­rak: «Fora! Fora! Fora!»

Mas Mubarak não se demite. Só transfere poderes para Suleiman. A sala é uma amostra da praça: incredu­lidade e raiva.

«Ele não tem sentimentos!», grita Gigi, de olhos in­jectados. «Todo o país quer que ele saia e ele transfere o poder? Quem é Suleiman? Ninguém o escolheu! Nin­guém escolheu sequer Mubarak e agora Mubarak escolhe Suleiman?!»

Uma rapariga chora convulsivamente, outra abana a cabeça. «Mubarak perdeu a cabeça! Ficou megalómano!», diz Hassan, o dono do portátil sempre aberto. «Não per­cebo porque está a desafiar o seu povo!»

E Suleiman ainda aparece a pedir às massas que vão para casa.

 

Fúria na praça. Mas sobretudo abatimento. Tantas noites não dormidas para isto. Tanta electricidade. Muitos ho­mens estão simplesmente nos passeios, semi-atordoados. Depois alguém vem sempre por trás, a fazer um V de vi­tória, para que ninguém tenha uma imagem de derrota da praça Tahrir.

 

SEXTA-FEIRA, 11 DE FEVEREIRO

A praça está apinhada e milhares marcham para o edifí­cio da TV estatal, à beira do Nilo. Sigo-os.

É um belo dia de Primavera antes da Primavera. Um tanque, arame farpado, checkpoints, e do lado de lá uma espécie de minipraça Tahrir: milhares ao longo do rio, tendas, cobertores, rapazes pendurados em árvores.

Rihan, 16 anos, veio com uma amiga e dois amigos. «Não dormimos desde ontem.» Estão os quatro vestidos de vermelho, preto e branco, as cores da bandeira, eles com faixas tricolares, elas com grandes chapéus de felpa.

Em frente, o edifício redondo da TV cercado por uma bateria de tanques a perder de vista. Nunca aconte­ceu na história do Egipto, o exército contra o povo, e é melhor pensar que não vai acontecer.

 

De regresso à praça Tahrir, juventude em marcha, e não só. Tantos milhares que se torna impossível entrar pelas traseiras do Museu Egípcio.

Circulam os primeiros rumores de que Mubarak já não está no Cairo. Que a declaração de ontem foi grava­da. Que o exército vai tomar conta.

 

Dou a volta e reentro pela ponte. Está tudo a cantar. Em vez dos pedidos de demissão, canções revolucionárias.

 

Subo ao 9.º andar de Pierre. Os miúdos montam filmes. O Mac de Hassan está como sempre em cima de um colchão.

Na varanda, um italiano desvairado grita para os telhados em inglês: «Abaixo Mubarak! Abaixo Muba­rak!» Depois atira-se para uma cadeira, ofegante, e cum­primenta-me: «Olá, sou um revolucionário.» Estende um cartão, vermelho como o nome: Davide Rossi. Profes­sor da Libera Università degli Studi di Scienze Umane Bellinzona. Cabelos louros pelos ombros, olhos azuis ar­regalados, algo de Depardieu na pele de Obélix, mas com um lenço palestiniano ao pescoço.

O pico do nosso encontro no mundo é o momento em que lhe digo que sou portuguesa e ele desata a bradar alegremente:

 

«Grandola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

 

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grandola, vila morena

 

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade...»

 

Umas três estrofes, sem hesitar.

 

Frente à televisão uma mulher de lenço agarra uma almo­fada com o retrato de Khaled Said.

Será?

É.

 

A mãe de Khaled Said, o rapaz morto em Alexandria que desencadeou tudo isto.

 

Então às seis da tarde ali estamos todos, como ontem. Mas o que hoje acontece é que Ornar Suleiman aparece na TV e, sem rodeios, diz que Mubarak renunciou.

O grito da praça varre o mundo. Toda a casa grita, salta, corre, chora, dança, e volta a gritar.

Uma palavra em todos os abraços: MABRooooooooooooooooooooKKKKK!

Mabrook no Twitter, no Facebook, no Messenger, nos Chats, na Tv, nos SMS que entopem a rede. A palavra árabe para parabéns.

 

11 de Fevereiro de 2011. Yes, they could, Mr. Obama.

 

Um por um, todos os jovens abraçam a mãe de Khaled Said. Não apenas os jovens. Magdi, o amigo dos Irmãos Muçulmanos, que acaba de subir da praça, eufórico, curva-se perante ela e beija-lhe a mão. E a ele, e às suas barbas, sucede um rapaz com tranças rasta.

É o puro momento da revolução: honra os mortos e une os vivos.

O rapaz seguinte traz um cartão de identidade na mão. Mora no Dubai, fala um inglês perfeito, mas é egípcio e chama-se Khaled Said. Veio só para viver isto. A mãe de Khaled Said agarra-lhe na cabeça. Choram os dois juntos.

 

Memória deste Khaled Said: «Juntei-me a amigos no Dubai. Fizemos um grupo de egípcios expatriados à volta do mundo. Em 24 horas tinha 600 membros, se­guidos por 1200 no dia seguinte, e agora vai em 2000. A 2 de Fevereiro, quando a praça Tahrir foi atacada toda a noite por gangsters, adormeci às 6h da manhã, chorando, impotente, furioso, triste. Mas no fundo do meu espírito tinha esperança. Então decidi que devia ir ao Cairo, ser parte daquilo. Sentia que não era nada comparado com as pessoas lá. Não sou um combaten­te, não posso enfrentar um gangster armado, mas não vou dizer aos meus netos que estava sentado num sofá noutro país a ver as notícias quando a revolução acon­teceu.»

 

«Estou muito, muito feliz», diz a mãe do outro Khaled Said, ícone da revolução. «É a primeira vez que estou feliz desde que ele morreu. E Khaled está feliz também. Posso vê-lo a dançar nas ruas de Alexandria.»

Afaga a almofada.

Chama-se Leila Mazouk EI Said e tem 67 anos.

«Alguém me disse que a morte dele ia trazer o bem a muita gente. Eu tinha uma grande crença. Dizia às pes­soas na praça: "Não saiam, fiquem aí." E passei duas noi­tes lá. Quando os cavalos e os camelos vieram, eu estava lá, e vi os jovens morrerem. Estes jovens têm ideias muito boas para o futuro. Eu acredito que nos vão levar para o futuro. São educados e inteligentes. Ghonim é inteligen­te e foi capaz de liderar as pessoas porque falou com o coração, não como Mubarak, que fala com um pedaço de papel.»

Khaled Said ajuda a traduzir as palavras da mãe de Khaled Said: «o sonho dele era ser livre. Que nin­guém moleste ninguém nas ruas. Que não se torture ninguém.»

Os abraços continuam. A toda a família Said, aliás, porque além da mãe veio o tio e a irmã, que também já passaram muitas horas na praça.

 

Depois, aqui mesmo, na sala da televisão, forma-se uma roda de palmas para dançar ao centro. As raparigas esvoa­çam, radiantes. Os rapazes agarram na cabeça uns dos outros e olham-se de muito perto, como se precisassem de um espelho para acreditar. A varanda está apinhada de câmaras na mão, mãos na boca, lágrimas. Sherif sorri, atordoado. Pierre está numa comoção.

Houve o momento em que todos gritaram juntos, a fracção de segundo que abre o antes-e-depois, e agora a história pousa em cada um. Extraordinário é ser real.

 

Memória de Marwa, que voou de Genebra para viver a revolução:

«No dia dos cavalos e dos camelos [que atacaram a praça]: eu estava sentada em casa a ver televisão em di­recto e imediatamente fui para o computador e marquei um voo nessa noite para o Cairo. Não podia ver aquilo a acontecer ao meu país e ao meu povo e simplesmente agitar uma bandeira nas ruas de Genebra. Portanto, fui.» Instalou-se em casa de Pierre.

       «No primeiro dia, andei de um lado para o outro, a observar e tirar fotografias, simplesmente estupefacta perante o que era estar em Tahrir com milhares e milha­res de pessoas... e sentir a atmosfera espantosamente po­sitiva e a atitude amigável de todos à minha volta… Toda a gente era tão amável, prestável, sem assédio... isto foi muito novo para mim como mulher no Egipto, andando pelas ruas... na verdade, inédito!

Mais tarde, nessa noite, fui apresentada a alguns dos amigos do meu tio e sentei-me com eles na praça à uma da manhã, e todos cantámos canções patrióticas, alguns recitaram poesia, rimos, e falámos e cantámos e batemos palmas…­ era surreal. O grupo incluía um islamista, ao lado dele duas raparigas sem lenço e com jeans muito justos a fumarem, do outro lado uma mulher velada mui­to conservadora com a sua filha pequena que ia para o centro e dançava, e ao pé dela estava uma rapariga cris­tã... havia jovens e velhos, conservadores e progressistas, gente da Núbia, do Cairo, de toda a parte no Egipto... e todos cantámos e rimos juntos alegremente, e todos concordámos que no futuro não haveria mais assédio de raparigas.

Depois, no segundo dia, a praça estava muito me­nos cheia e andei a passear e conversei com perfeitos desconhecidos, gente reunida em pequenos grupos, ge­ralmente em volta de uma pessoa eloquente, com uma ideia, um ponto de vista, e eles simplesmente discutiam e debatiam.

Lembrou-me o que lemos nos livros de história so­bre os velhos mercados árabes, onde as pessoas ficavam em grupos e recitavam poesia e discutiam política. Foi incrível! Comecei a pensar como podia contribuir para a praça, portanto no terceiro dia perguntei o que era preciso e percebi que eles precisavam de cobertores para quem dormia na praça, e plásticos para proteger da chuva, e comida, medicamentos, meias, gorros... Então organizei-me com as minhas redes e conseguimos, com a contribuição de algumas pessoas extraordinárias, trazer muitas coisas para a praça, de modo que os que lá esta­vam a dormir tivessem uma vida mais fácil.

 

Também ajudei a fazer chá de gengibre de manhã e a distribuí-lo àqueles que tinham ficado sem voz, de cantar toda a noite ou dormir ao frio. E à noite fazíamos sopa de lentilhas, para os manter quentes.

Outro dos meus papéis era actualizar constante­mente o Facebook com notícias, imagens, etc., do que realmente estava a acontecer na praça, para desfazer rumores.

Também trabalhei como tradutora não oficial; tradu­zi alguns dos vídeos online de canções para os estrangei­ros saberem o que estava a ser cantado e o papel que a arte estava a ter nesta revolução pacífica e civilizada.

Ajudei a fazer circular mantimentos nos dias em que a praça esteve cheia, especialmente biscoitos e sumo para as mulheres e crianças, porque estava quente e po­dia tornar-se difícil para elas entrarem e saírem da praça para terem acesso a comida e bebidas.

Finalmente, ouvi os outros à minha volta e aprendi muito sobre o meu próprio país, sobre política, coisas em que nunca tinha pensado, e isso abriu-me a cabeça para uma grande quantidade de nova informação e novas possibilidades. Fiz muitos amigos em Tahrir, alguns dos quais penso que vão durar uma vida.»

 

O ditador caiu e na praça avança a grande catarse.

Desapareceram os checkpoints. Não há qualquer con­trole na entrada. Os tanques estão cheios de crianças penduradas nos canhões e a posar com soldados. As mães compõem o quadro, dão instruções aos filhos, que balan­çam as pernas, seguram bandeiras, fazem V de vitória.

Música, dança, comboios de gente e de bandeiras, caras pintadas e caras esfuziantes.

Mas também um homem parado no meio do cami­nho, a segurar um retrato. Chama-se Mahmud e o retrato é do seu irmão Mohammed, morto na praça. As pessoas param e beijam o retrato. Não precisam de perguntar nada.

Quem fez a revolução foram estas pessoas de bra­ço ao peito, de venda no olho, mortas nas fotografias. As que durante 18 dias não tomaram banho, quase não dormiram, apanharam lixo, montaram tendas, correram perigo.

Nas cidades árabes, as pessoas não cuidam do espaço público como cuidam do privado, porque o estado nunca as fez sentir que esse espaço lhes pertencia.

O que aconteceu na praça Tahrir nestes 18 dias foi uma mudança de propriedade. O espaço público passou a ser de cada um.

 

Em 2002, o Egipto parecia um daqueles bichos que se en­rolam para dentro quando lhes tocamos. O 11 de Setem­bro estava muito fresco e depois disso o mundo árabe só se enrolou mais para dentro. Os árabes olhavam em volta e não viam razões para gostarem de si mesmos, quando os seus próprios líderes só gostavam de si mesmos e o res­to do mundo estava contra eles.

 

Vi isso no Egipto em 2002 como na Síria em 2009. Uma casca antiocidental que por dentro era humilhação e abandono. Gente longamente reprimida por otomanos, por europeus e pelos seus próprios líderes, fruto de toda a ambição e de todo o erro, sem liberdade de expressão nem de movimento, cortada da criação contemporânea. Espantoso era ainda sobrar amor-próprio, hospitalidade, alegria.

Todo este passado convergiu para a praça Tahrir. Ao tomarem a história nas mãos, sem ajuda de fora nem manipulação por dentro, os egípcios voltaram a apaixonar-se por si mesmos.

Então, nesta noite de 11 de Fevereiro de 2011, é como os apaixonados quererem que o mundo saiba. Param-nos, agarram-nos, querem ouvir da nossa boca de estrangeiros como nunca vivemos nada assim, como Tahrir mudou a história, como eles são capazes.

«Welcome to Egypt!!!»

«S0, what do you think of Egypt???»

«Egypt is very good, yes??? And Mubarak vampire!!!»

 

Não havendo qualquer tipo de controle, continuam a en­trar massas noite fora. Milhares que provavelmente nun­ca tinham entrado ao longo destes 18 dias.

Está uma meia-lua amarela, iluminando as tintas tricolores com que os rapazes pintam a cara, circulando com latinhas e pincéis. Onde há dias era a frente de ba­talha, agora há piqueniques de gente. A ponte por onde vieram os cavalos e os camelos está atulhada. À 1h20 re­benta um fogo-de-artifício por cima do Nilo.

Percorro toda a praça ao lado de um fotógrafo e de uma jornalista. Somos as duas apalpadas várias vezes, o impensá­vel ainda esta manhã. E, junto ao Museu Egípcio, um bando de rapazes comandado por um a cheirar a álcool começa a tornar-se desagradável.

É no meio desta nova multidão que a jornalista ame­ricana Lara Logan, da CBS, será sexualmente agredida. A notícia correrá mundo.

Não sei quem era o bêbado do bando que nos cercou nem a multidão que agrediu Logan, mas não eram os re­volucionários da praça Tahrir. Doentes ou mercenários, há-os por toda a parte. Sobretudo, os rufias do regime não desapareceram. Muitos terão voltado esta noite, entre a multidão.

 

Mensagens no meu Facebook:

De Gaza: «Viva o Egipto, viva os grandes egípcios que deram um exemplo sem precedentes à história da humanidade. Esta lição inesquecível vai desenhar o belo rosto do futuro do mundo árabe.»

De Lisboa: «Pessoas verdadeiras, como vizinhos nos­sos, as mesmas que víamos há dias a serem esmagadas.»

 

SÁBADO, 12 DE FEVEREIRO

Kamiz, o escritor de canções, telefona a ver se nos conse­guimos ver na praça: «Hoje é o Dia da Limpeza!»

Então o mundo vê este espectáculo inédito: milhares de pessoas com vassouras e pás a limparem a praça; com luvas de borracha a apanharem lixo do chão; com batas a reunirem sacos de lixo.

Raparigas todas cobertas e raparigas de jeans cola­dos, avós e netos, grupos de homens: quando não estão em plena acção, estão a caminho, cabeça levantada, vas­soura ao ombro, como uma enxada. A revolução venceu ao fim de 18 dias insones e tensos. E no dia a seguir qual é a tarefa mais importante? Limpar o lixo como quem lim­pa 30 anos. Onde antes afundávamos os pés em plástico e entulho, agora não há uma beata. Circulam avisos, pedin­do para não atirarmos beatas para o chão nem usarmos termos insultuosos até alguém nos insultar.

Mais, que é aquilo? Tinta fresca? Sim, raparigas e ra­pazes e crianças a pintarem os separadores de trânsito, devolvendo-lhes as listas brancas e pretas.

E ajoelham-se para isso, quando necessário, porque é o país deles.

 

DOMINGO, 13 DE FEVEREIRO

Alerta de madrugada: o exército está a desmantelar o acampamento na praça.

 

Às 8h30 há carros a entrar, vindos da ponte. O tanque ainda lá está, mas os carros passam ao lado. Parece irreal que de repente haja trânsito onde há horas só havia pes­soas. E homens de cara franzida dobram cobertores e plásticos no meio do asfalto, como se tivessem sobrado de um sonho.

Gente à espera nas paragens de autocarro. Polícias sinaleiros, de boina e bastão, pilhas de vassouras e pás de plástico nas bermas, despojos do Dia da Limpeza. Nos canteiros centrais, um caos de plásticos e cobertores com soldados a toda a volta, colete, capacete, arma em riste, em plena operação.

Uma rapariga enterra a cara nas mãos. Vários ho­mens resistem dentro das tendas, imóveis. Outros discu­tem com os soldados.

Há tantos soldados, que uns podem vigiar e discutir, enquanto outros derrubam os plásticos e as cordas dos abrigos.

 

A tensão acumula-se mais à frente, junto ao KFC e ao prédio de Pierre. Aí milhares de pessoas protestam, com pandeiretas, canções, cartazes, gritos, e dando os braços e as mãos em corrente, para fazer barreira contra os soldados.

No meio da multidão há mesmo um sit in de mulhe­res veladas, fitas tricolores sobre os lenços muçulmanos.

Também há mulheres de pé, cara de poucos amigos, telemóvel focado nos soldados, para registar tudo.

Foi-se o medo.

 

Os resistentes contam que pelas cinco da manhã os sol­dados começaram a forçar o fim do acampamento. «Insultaram-nos», clama Wael, professor, 30 anos. «Entra­ram na praça à força e usaram bastões. Um fotógrafo chi­nês ou japonês ficou ferido. Nós dizíamos: "Matem-nos, mas não deixamos a praça. Temos muitos pedidos, não só a queda de Mubarak." E dizíamos: "Exército e povo, uma só mão." Mas eles forçaram as pessoas a sair da estrada. São muito maus sinais. Não consigo entender o que estão a fazer.»

Devolver o trânsito à economia da cidade. Mas será já o momento e será este o método?

Um homem grita: «É preciso que caia todo o regime, não só Hosni Mubarak!»

Wael diz: «Precisamos de um plano, de uma agenda para os nossos pedidos. Precisamos de um governo civil e não militar! Nós estamos aqui, não nos lavámos, não nos deitámos, eu deixei o meu trabalho, a minha mulher, os meus filhos, tudo!»

A multidão grita: «Bancos suíços, dêem-nos o nosso dinheiro de volta! Mubarak e os seus roubaram-nos.»

Outro grupo canta: «Mubarak é um cobarde / um agente dos americanos...»

Uma mulher grita: «Tenho três filhos e 160 libras por mês!» Menos de 20 euros.

Os soldados gritam. «Para trás! Para trás!»

Wael pergunta: «Viu alguma vez uma revolução as­

sim? É pacífica!»

No palco gritam: «O exército está a tentar acabar com a revolução. Mas a revolução não vai morrer! Quere­mos que os prisioneiros políticos sejam livres!»

 

Num dos canteiros centrais, um rapaz de barrete pinta um cartaz, enquanto uma rapariga velada ajuda a segurar. O cartaz vai dizer: «O exército é a nossa família.»

Muita gente colabora na desmontagem, muita gente não se mexe.

Um homem deitou-se com o cobertor por cima, como um morto. Mas antes arrumou os sapatos sujos e gastos do lado de fora, um junto ao outro.

 

No canteiro maior há homens a tentar impedir os jorna­listas de fotografar o desmantelamento. Polícias à paisa­na, gente ao serviço, delatores. Um deles grita comigo, exige ver a câmara, ameaça com o exército. Chama um oficial, que vem, escuta e depois lhe fala à parte. Afastam­-se os dois.

O exército deve ter recebido instruções para não criar casos com a imprensa.

Amanhã é Dia de São Valentim e, entre os restos de tendas e plásticos, alguém esqueceu um balão vermelho em forma de coração. Oscila no céu, preso por uma fita.

 

À tarde, milhares voltam a tomar a praça, com carros e tudo. E à noite é quase milagre não se morrer atropelado, porque são mais milhares ainda.

 

SEGUNDA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO

A caminho do aeroporto atravesso a praça Tahrir. O velho táxi pára e arranca no meio do que é já uma rotunda en­garrafada. Aqui estamos, parados no semáforo onde tan­ta gente esteve pendurada. Aqui vamos, rente à berma onde dormi.

Nos próximos dias será assim. Tahrir vai oscilar en­tre o trânsito e o pós-revolução, incerto e tantas vezes desapontador, como tudo o que se segue aos momentos extraordinários.

 

EPÍLOGO EM ABERTO

(ou troca de mensagens no Facebook depois de eu voltar a casa)

 

KHALED «VINCENT GALLO», 25 ANOS, O ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO.

11 DE MARÇO, 2IH32

 

A praça Tahrir foi um país dentro do país. Um país com poder, um país de respeito, um país de liberdade, que lu­tava por ser digno. O Egipto tal como o sonhamos.

Então isto foi o que aconteceu quando o Egipto de­cidiu dizer não à injustiça e à perda de direitos e ficou pronto a pagar o preço, fosse qual fosse. Os manifestan­tes estavam com o moral muito elevado, na sua máxima capacidade.

 

Agora há perigos, medos e remorsos, mas isso é normal. Eu sabia que enfrentaríamos muitos problemas durante um tempo, depois da revolução. Mas mais tarde descan­saremos. É um momento difícil que temos de aguentar para passar ao futuro. E nós podemos.

 

SHERIF BORAIE, 59 ANOS, o EDITOR DE LIVROS DE ARTE QUE ESTAVA EM CASA DE PIERRE

13 DE MARÇO, 11H51

 

Para mim, o regime caiu no dia 25 de Janeiro. O que se seguiu foi a mecânica. Sexta, 28, todo o Egipto foi para as ruas. Quarta, 2, foi a batalha de Tahrir. Depois disso, a praça tornou-se um lugar de solidariedade, determina­ção, liberdade e esperança. As pessoas rejubilaram com a vitória, decididas a protegê-la.

 

Agora, o exército expôs a sua verdadeira cara, protegendo o antigo regime. Atacando e aprisionando revolucionários, chamando-lhes gangsters e sentenciando-os em tribunais militares secretos enquanto os chefes dos gangues estão livres. De novo, o sectarismo é usado para distrair e dividir as pessoas. E as pessoas foram enganadas, levadas a pen­sar que o exército não fará o mal. Estão a formar-se novas alianças no interior do antigo regime, incluindo a Ikwan [Irmandade Muçulmana]. É provável um confronto.

 

PIERRE SIOUFI, 50 ANOS, O DONO DA CASA SOBRE A PRAÇA TAHRIR

16 DE MARÇO, 9H12

 

Os estados de espírito vão-se manifestando à medi­da que os acontecimentos se desenrolam, e porque os acontecimentos foram tão rápidos de alguma forma uma pessoa sente-se um pouco perdida agora quanto ao que aconteceu, quando e porquê, e quais eram os sentimen­tos em momentos diferentes.

Neste momento já não há consenso sobre nada, a maior parte das pessoas que conheço está a discutir o referendo, entre apoiantes do Sim e do Não [os apoian­tes do Sim aprovam que a Constituição seja simplesmen­te emendada, os apoiantes do Não querem uma nova Constituição] .

Normalmente, o Sim ganharia por mais de 90 por cento. Acho que o pior resultado que o regime apresen­tou foram uns saudáveis 88 por cento.

A minha posição é que votarei pelo Não, mas tenho medo de que isso obrigue o exército a ficar no comando por um tempo mais longo, e isso é perigoso para a de­mocracia. Os exércitos não são conhecidos pelo apoio à democracia em nenhuma parte do mundo.

Quanto a esse ponto, pergunto-me porque o exér­cito recuou um passo. Eles congelaram a Constituição, o que significaria que proporiam uma nova Constituição, mas, quando as pessoas [que estavam na praça] foram para casa e a situação acalmou um pouco, decidiram ofe­recer apenas emendas, o que não é a mesma coisa. Uma promessa é uma promessa e ninguém deveria poder vol­tar atrás na sua palavra. Para mim, isto não é um sinal mui­to bom e eu preferiria considerar o referendo como uma coisa inconstitucional e pedir uma nova Constituição.

 

Em vez disso, até os revolucionários estão a lutar entre si quanto à melhor forma de devolver o exército às caser­nas, no quadro do referendo.

Seja como for, o exército devia ser enviado para as ca­sernas tão depressa quanto possível. Se apoiei esta revolu­ção foi porque acreditava que finalmente teríamos um esta­do de direito, não uma lei marcial. Acredito que as pessoas acusadas devem ter um julgamento civil e têm direito a um advogado, etc. Com o exército no comando isto não é pos­sível, porque eles substituíram as leis civis por leis militares, e portanto estamos num estado de ditadura militar de fac­to, o que está longe de ser democrático, por definição.

 

HASSAN EL KREIDLI, 35 ANOS, O JORDANO, HÁ 16 ANOS NO CAIRO, QUE CEDEU O SEU COMPUTADOR A QUEM PRECISAVA.

17 DE MARÇO, 16H25

 

Tahrir foi o quartel-general da revolução. Pôs coragem nos corações. Derrotar a polícia revelou como o regime realmente era frágil. Grandes grupos de homens dormi­ram nos passeios, corpo contra corpo para darem calor um ao outro. As pessoas ficaram unidas em espírito e na causa. Era óbvio para toda a gente em Tahrir que o destino de cada um se tornara o destino de todos. Independente­mente da idade ou da classe, havia um respeito comum.

 

Avassalador e utópico mas REAL. Foi um vislumbre do que o futuro iria conter se fôssemos bem-sucedidos.

 

A revolução ainda não acabou.

 

Agora é tempo de ficarmos focados no objectivo, que é mudar esta vida de opressão e corrupção cancerosa.

Há muita conversa e discussão. Muita descon­fiança. Ainda sentimos a presença do regime, tentan­do voltar do avesso a revolução, tentando roubá-la. Há muita desinformação. Ao lançar gangsters e assas­sinos contra civis, o regime só mostrou o quanto está doente e desesperado.

Mas dia após dia, quando as coisas se tornam dema­siado confusas, são descobertas novas verdades que nos devolvem a energia. Um dia, os egípcios acordam e há um incêndio no Ministério do Interior, num certo es­critório, onde estão a queimar documentos. O regime ainda está vivo. Deprime-me. Semanas depois a polícia da Segurança de Estado é desmantelada. Grande triun­fo para o povo. A Segurança de Estado, ou SS [sigla da expressão em inglês, State Security], como gostamos de lhe chamar, tem muito sangue nas mãos. Foram desco­bertas sepulturas nos edifícios deles. Uma longa história negra de espionagem interna.

Agora o assunto em cima da mesa é a Constituição, claro. A televisão continua a alimentar a propaganda de a emendar. Todos os meus amigos e muito mais gente querem que ela seja completamente mudada. O refe­rendo é no sábado, mas a maior parte das pessoas sente que não vai ser honesto.

[O Sim ganhou com 77 por cento.]

 

KHALED SAID, 29 ANOS, O EGÍPCIO QUE VEIO DO DU­BAI PARA TAHRIR E QUE TEM O NOME DO JOVEM QUE DESENCADEOU A REVOLUÇÃO.

18 DE MARÇO, 05H58

 

A revolução que começou a 25 de Janeiro não é só do Egipto, é uma revolução da mente. As pessoas estão a começar a pensar mais, a analisar mais e a não tomar tudo como garantido. Agora podem dizer orgulhosa­mente que não, embora alguns ainda tenham medo.

 

A revolução começou e nunca vai acabar.

 

Não tenho medo, estou muito optimista, sinto-me mui­to orgulhoso de ser egípcio e feliz de me apresentar como Khaled, o egípcio. Sempre que faço isso vejo as expres­sões mudarem de imediato, como se olhassem para um herói, um homem livre. Alguns árabes olham para mim e provavelmente dizem para eles próprios: eu invejo-vos, vocês já conseguiram, nós não.

 

MARWA KASSEM, 33 ANOS, A EGÍPCIA QUE VEIO DE GENEBRA PARA AJUDAR NA PRAÇA TAHRIR

28 DE MARÇO, 15H24

 

O que aconteceu em Tahrir foi uma montanha russa de emoções e acontecimentos, bela, fortalecedora, inacre­ditável, inesperada e definitivamente A melhor coisa que ALGUMA vez aconteceu ao Egipto em TODA a sua história e uma das melhores coisas que aconteceu ao mundo, por ter inspirado tantos e lhes ter dado esperança.

Cada vez que vejo fotografias, vídeos ou ouço con­versas sobre isso, é como se o meu coração se expandisse e frequentemente vêm-me lágrimas aos olhos.

 

NUNCA, realmente, ao longo dos 18 dias do levantamento, tive uma única dúvida quanto à validade ou ao carácter ge­nuíno desta revolução. Acreditei nela com todo o coração e não fiz qualquer cedência quanto ao que penso que TEM de acontecer para um Egipto melhor.

 

Agora, não sinto que haja quaisquer remorsos, mas defi­nitivamente há muita confusão. Derrubámos Mubarak, mas as raízes do seu regime e a sua influência (e de toda a sua família, na verdade) não foram eliminadas.

Preocupam-me os planos ocultos, os acordos debai­xo da mesa, os interesses dos poderes estrangeiros para controlar o futuro do Egipto. Tal como eles se preocu­pam com a posição estratégica do Egipto e a proximidade de Israel, eu preocupo-me com a situação económica e com o presidente que nos há-de fazer atravessar os pró­ximos quatro anos daquele que é provavelmente o tem­po mais desafiador da história egípcia.

Mas, enquanto houver gente que ACREDITA que o Egipto pode alcançar o seu verdadeiro potencial, nada pode parar-nos.

 

MEDO ABDEL KADER, 25 ANOS, O ACTOR QUE RECITOU SHAKESPEARE NA LONGA NOITE DA PRAÇA TAHRIR 5 DE ABRIL, 04H57

 

Foi fantástico ver gente com direitos roubados e di­nheiro roubado, reprimida e mantida em silêncio por 30 anos, finalmente sair do seu silêncio. Estou muito or­gulhoso de ser um dos rebeldes que escrevem uma nova história para um novo Egipto. Quer a revolução seja bem-sucedida ou não, será uma honra para mim.

 

                                                                                Alexandra Lucas Coelho  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"