Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
T A I P A N
Volume II
Segunda Parte
Ficou no tombadilho o dia inteiro e parte da noite e, mais uma vez, dormiu. Ao amanhecer, observou o sol e fez uma marca no mapa, determinando outra vez que o navio fosse colocado à capa. Então mergulhou por sobre a amurada e nadou nu no mar. Os marinheiros fizeram o sinal-da-cruz, supersticiosamente. Havia tubarões nadando em torno.
Mas os tubarões se mantiveram à distância:
Tornou a subir a bordo e ordenou que o imaculado navio fosse lavado e os conveses esfregados — com areia, escova e água — o cordame substituído, as velas cuidadas, embornais e canhões limpos. Sua própria roupa e a dos homens ele atirou por sobre a amurada. Entregou novos trajes aos marinheiros e pegou roupas de marinheiro para si mesmo.
Foi servida a todos uma dose dupla de rum.
Ao amanhecer do sétimo dia, Hong Kong apareceu no horizonte, bem em frente. O Cume estava amortalhado em neblina. Havia cirros no alto e nuvens gordas mais embaixo.
Ele ficou em pé no gurupés, com a espuma encapelando-se logo abaixo. — Distribua seus malefícios, Ilha! — gritou, e o vento leste lhe levou a voz. — Estou em casa!
O China Cloud voltou para o porto, através do canal oeste. O sol que se levantava era forte, o vento, vindo do leste, firme e úmido.
Struan estava no tombadilho, nu até à cintura, com a pele muito bronzeada e o cabelo vermelho-dourado clareado pelo sol. Focalizou seu binóculo nos navios no porto. Primeiro o Resting Cloud. Bandeiras de código drapejavam na mezena: “Zenith” — o proprietário deve vir imediatamente a bordo. Já era de se esperar, pensou. Lembrou-se da última vez — há uma eternidade — em que lera “Zenith” no Thunder Cloud e isto prenunciava a notícia de tantas mortes e a chegada de Culum.
No porto, havia mais navios para transporte de soldados do que antes. Todos tinham bandeiras da Companhia das índias Orientais. Ótimo. Os primeiros reforços. Viu um grande bergantim perto da nau capitania. A bandeira russa drapejava à popa e a bandeirola tzarista estava acima do mastro principal.
Havia muito mais sampanas e juncos do que o habitual, cortando as ondas.
Depois de examinar meticulosamente o resto da frota, virou-se para a praia, enquanto o cheiro do mar se misturava, agradavelmente, com o da terra. Podia ver atividade perto do Cabo Glessing e muitos europeus e grupos de mendigos caminhando pela Estrada da Rainha. O Tai Ping Shan parecia ter crescido apreciavelmente.
O Leão e o Dragão adejavam sobre a feitoria abandonada da Casa Nobre e o vazio Vale Feliz.
— Quatro pontos a estibordo!
— Sim, sim, senhorrrr — cantou o timoneiro.
Struan, habilmente, pilotou a lorcha para colocá-la ao lado do Resting Cloud. Vestiu uma camisa e subiu para bordo.
— Bom-dia — disse o Capitão Orlov. Conhecia o Tai-Pan bastante bem e não lhe perguntou onde estivera.
— Bom-dia. Estão com o sinal “Zenith”. Por quê?
— Ordens de seu filho.
— Onde está ele?
— Em terra.
— Por favor, traga-o para bordo.
— Chamaram-no, quando seu navio entrou no porto.
— Então, por que não se encontra aqui?
— Posso receber meu navio de volta, agora? Por Thor, Olhos Verdes, estou mortalmente cansado de ser um capitão-lacaio. Deixe-me ser um capitão do chá, ou um capitão do ópio, deixe-me levar o navio para águas do Ártico. Conheço cinqüenta lugares onde posso pegar uma carga de peles... mais prata para cevar seus cofres. Não é pedir demais.
— Preciso de você aqui. — Struan riu, e remoçou anos.
— Pode rir, pelo prepúcio de Odin! — O rosto de Orlov se retorceu, com o seu próprio sorriso. — Foi para o mar, enquanto eu estava preso num pontão ancorado. Você parece um deus, Olhos Verdes. Pegou tempestade? Tufão? E por que minha vela grande está mudada, como também a sobre de proa, e de mezena, a giba? Há novas adriças, estais e estingues por toda parte. Por que, hein? Você arrancou o coração de meu lindo navio, só para limpar sua alma?
— Que tipos de pele, Capitão?
— De foca, zibelina, vison... dê o nome de qualquer pele e lhe direi que há, desde que eu possa dizer a qualquer um: “Saia do meu navio e vá para o inferno”, até a você.
— Em outubro, você viaja para o norte. Sozinho. Será que isso o satisfaz? Peles para a China, hein?
Orlov deu uma espiada em Struan e percebeu, imediatamente, que não navegaria para o norte em outubro. Um calafrio o percorreu e ele detestou o dom da profecia, que o atormentava. O que irá acontecer comigo entre junho e outubro?
— Posso pegar meu navio agora? Sim ou não, por Deus? Outubro é um mês ruim e está muito longe. Posso pegar meu navio agora, sim ou não?
— Sim.
Orlov marinhou por sobre a amurada e caiu ruidosamente em pé no tombadilho.
— Soltem a amarra dianteira — gritou.
Depois, acenou para Struan e riu, estrepitosamente. O China Cloud afastou-se da nave-mãe e serpenteou, elegantemente, em direção à sua amarração de tempestade, ao largo do Vale Feliz.
Struan desceu para os alojamentos de May-may. Ela estava profundamente adormecida. Ele disse a Ah Sam para não acordá-la; voltaria mais tarde. Depois, foi para o convés acima, para seus próprios alojamentos particulares, tomou banho, fez a barba e vestiu roupas limpas. Lim Din trouxe-lhe ovos, frutas e chá. A porta da cabina se abriu e Culum entrou às pressas.
— Onde esteve? — começou, num ímpeto. — Há mil coisas que precisam ser feitas e a venda de terras é hoje à tarde. Você poderia ter me avisado, antes de desaparecer. Isso aqui está um verdadeiro torvelinho e...
— Você não bate nas portas, Culum?
— Claro, mas estava com pressa. Desculpe.
— Sente-se. Que mil coisas são essas? — perguntou Struan. — Pensei que você pudesse resolver tudo.
— Você é o Tai-Pan, eu não sou — disse Culum.
— Sim. Mas diga o que teria feito, se eu não voltasse hoje. Culum hesitou.
— Teria ido para a venda de terras. Comprado terras.
— Fez algum acordo com Brock sobre os lotes pelos quais não faríamos lances um contra o outro? Culum ficou constrangido com o olhar de seu— pai.
— Bom, de certa forma, sim. Fiz um acerto provisório. Sujeito à sua aprovação.
Puxou um mapa e estendeu-o sobre a escrivaninha. O local da nova cidade cercava o Cabo Glessing, duas milhas a oeste do Vale Feliz. O lugar plano para construção era restrito pelas montanhas que o cercavam, e tinha pouco menos de meia milha de largura, ficando afastado da praia apenas meia milha. O Tai Ping Shan elevava-se acima do local e bloqueava a expansão para leste.
— Esses são todos os lotes. Escolhi o oito e o nove. Gorth disse que eles queriam o catorze e o vinte e um.
— Você confirmou isso com Tyler?
— Sim.
Struan deu uma olhada no mapa.
— Por que escolher dois lotes um junto do outro?
— Bom, nada sei a respeito de terra e nem de feitorias ou ancoradouros, então fiz perguntas a George Glessing. E a Vargas. E depois, em particular, a Gordon Chen. E...
— Por que Gordon?
— Não sei. Pensei que era uma boa idéia. Ele parece ser muito inteligente.
— Continue.
— Bom, todos concordaram que os melhores lotes marinhos eram o oitavo, o nono, o décimo, o décimo quarto e o vigésima primeiro. Gordon sugeriu que os dois fossem juntos para o caso de querermos nos expandir e, então, um cais serviria para as duas feitorias. Por sugestão de Glessing, mandei o Capitão Orlov medir a profundidade ao largo da praia. Ele disse que há um bom fundo de rochedos, mas a plataforma é rasa. Teremos de aterrar e colocar nosso cais bem afastado.
— Que lotes suburbanos você escolheu? Culum, nervosamente, apontou-os.
— Gordon achou que deveríamos fazer lances para aquela propriedade ali. É... bom, é um morro, e... bom, acho que seria um lugar ótimo para a Grande Casa.
Struan levantou-se, foi até às vigias da popa e olhou o morro pelo binóculo. Ficava a oeste do Tai Ping Shan, em frente ao local.
— Teremos de construir uma estrada para lá, hein?
— Vargas disse que, se pudermos comprar os lotes suburbanos 9A e 15B, teremos ahn... acho que ele chamou de “uma servidão”, ou algo parecido, e isto protegeria nossa propriedade. Mais tarde, poderíamos construir no local e alugar os prédios se quiséssemos. Ou os revenderíamos, em outra ocasião.
— Discutiu isso com Brock?
— Não.
— Com Gorth?
— Não.
— Com Tess?
— Sim.
— Por quê?
— Sem nenhuma razão especial. Gosto de conversar com ela. Conversamos a respeito de uma porção de coisas.
— É perigoso conversar com ela a respeito de um assunto desses. Queira você ou não, submeteu-a a um teste.
— O quê?
— Se Gorth ou Brock fizerem lances para o 9A e o 15B, você saberá que ela não é digna de confiança. Sem os lotes menores, o morro fica arriscado.
— Ela nunca diria nada — afirmou Culum, beligerantemente. — Foi em particular, entre nós. Talvez os Brocks tenham a mesma idéia. Não provará nada, se eles fizerem lances contra nós.
Struan examinou-o. Depois, disse:
— Quer um drinque, ou chá?
— Chá, obrigado. — As palmas das mãos de Culum estavam pegajosas. Ele ficou imaginando se Tess realmente conversara com Brock, ou com Gorth. — Para onde você foi?
— Que outras coisas precisam de decisões? Culum se concentrou, com um esforço.
— Há uma porção de correspondência, tanto para você como para o tio Robb. Não sabia o que fazer com ela e então coloquei tudo no cofre. Vargas e Chen Sheng calcularam nossas despesas no Vale Feliz e eu... bom... eu assinei pela prata. Longstaff pagou a todos, como você disse. Assinei pela prata e contei as barras. Ontem, um homem chegou da Inglaterra no navio de Zergeyev. Roger Blore. Disse que pegou a embarcação em Cingapura. Quer ver você com urgência. Não me falou o que deseja mas, bom... de qualquer jeito eu o instalei no pontão pequeno, Quem é ele?
— Não sei, rapaz — disse Struan, pensativamente.
Tocou a campainha na escrivaninha e o camaroteiro entrou. Struan mandou que um escaler fosse buscar Blore.
— Que mais, rapaz?
— As encomendas para a compra de materiais e abastecimentos de navios se amontoam. Temos de encomendar novos estoques de ópio... mil coisas. Struan brincou com seu caneco de chá.
— Brock já lhe deu resposta?
— Hoje é o último dia. Ele me convidou para ir a bordo do White Witch esta noite.
— Tess não deu indicação a respeito de qual será a decisão do pai?
— Não.
— E Gorth?
Outra vez, Culum abanou a cabeça.
— Vão partir para Macau amanhã. Exceto Brock. Fui convidado a ir com eles.
— E vai?
— Agora que você voltou, eu gostaria. Por uma semana... ; disser que poderemos casar-nos logo. — Culum bebeu um pouco de chá. — Vai ser preciso comprar mobília e... bom, esse tipo de coisa.
— Você se encontrou com Sousa?
— Sim, encontramos. A terra é maravilhosa, e o projeto já está traçado. Jamais poderemos agradecer-lhe o suficiente. Estarmos pensando... bom, Sousa nos contou a respeito do quarto separado para o banho e toalete que você mandou projetar para sua casa. Nós... bom... nós pedimos a ele para construir a mesma coisa para nós.
Struan ofereceu um charuto e acendeu-o.
— Por quanto tempo você teria esperado, Culum?
— Não entendo.
— Que eu voltasse. O mar poderia ter-me engolido.
— Ah, não você, Tai-Pan.
— Um dia poderá engolir... engolirá. — Struan soprou uma baforada de fumaça e olhou-a flutuar. — Se eu, algum dia, for embora outra vez sem lhe dizer para onde, espere quarenta dias. Não mais. Ou estou morto ou não tornarei a voltar.
— Está bem. — Culum ficou imaginando onde seu pai queria chegar. — Por que você partiu assim?
— Por que você conversa com Tess?
— Isso não é resposta.
— O que mais aconteceu desde que eu fui embora?
Culum estava desesperadamente tentando entender, mas não conseguia. Ele tinha pelo pai um respeito ainda maior do que antes, mas não sentia nenhum amor filial. Conversara durante horas com Tess e descobrira nela uma fantástica profundidade. E haviam discutido seus pais, tentando avaliar aqueles dois que eles amavam, temiam, e, algumas vezes, odiavam mais do que qualquer outra coisa na terra, mas para quem corriam, ao primeiro sinal de Perigo.
— As fragatas voltaram de Quemoy.
— E?...
— Destruíram entre cinqüenta e cem juncos. Grandes e pequenos. E três ninhos de piratas na costa. Talvez tenham afundado Wu Kwok, talvez não.
— Acho que logo saberemos.
— Anteontem, eu visitei sua casa no Vale Feliz. Os vigias... ah, você sabe que ninguém quer ficar ali à noite... acho que a casa foi invadida e muito saqueada. Struan ficou pensando se o cofre secreto havia sido violado.
— Não há nenhuma notícia boa?
— Aristotle Quance fugiu de Hong Kong.
— Hein?
— Sim. A Sra. Quance não acredita, mas todos, pelo menos quase todos, o viram no navio, o mesmo que levou a tia Sarah para a Inglaterra. A pobre mulher acredita que ele ainda está em Hong Kong. Você sabia a respeito de George e Mary Sinclair? Eles vão casar. Isto é bom, embora Horatio esteja terrivelmente aborrecido. Mas, também, nem tudo está bem. Acabamos de saber que Mary está muito doente.
— Malária?
— Não, uma enfermidade qualquer, contraída em Macau. É muito estranho. George recebeu uma carta, ontem, da madre superiora da Ordem Católica de Enfermeiras. O pobre coitado está mortalmente preocupado! Não se pode confiar nesses papistas.
— O que disse a madre superiora?
— Só que achava seu dever informar a respeito de Mary ao parente mais próximo. E que Mary dissera para escrever a George. Struan franziu a testa.
— Por que diabo ela não foi para o Hospital Missionário? E por que não informou Horatio?
— Não sei.
— Você contou a Horatio?
— Não.
— Será que Glessing disse a ele?
— Duvido. Eles parecem se odiar agora.
— É melhor você ir com os Brocks, e ver como ela está.
— Achei que você ia querer notícias em primeira mão, por isso enviei o sobrinho de Vargas, Jesus, de lorcha, ontem. O pobre George não conseguiu uma licença, por parte de Longstaff e eu também queria ajudá-lo.
Struan se serviu de mais chá e, depois, olhou para Culum com um respeito novo.
— Muito bem.
— Bom, eu sei que ela é quase como uma tutela sua.
— Sim.
— A única coisa além disso é que o inquérito sobre o acidente com o arquiduque foi arquivado, há alguns dias. O júri achou que fora apenas um acidente mesmo.
— Você acha que foi?
— Claro. Não acha?
— Visitou Zergeyev?
— No mínimo uma vez por dia. Ele esteve no inquérito, claro, e... disse muitas coisas lisonjeiras a seu respeito. Como você o ajudou, salvou-lhe a vida, coisas assim. Zergeyev não pôs a culpa em ninguém e disse que já informara o tzar, neste sentido. Disse, abertamente, que acreditava dever sua vida a você. Skinner tirou uma edição especial do Oriental Times, dando cobertura ao inquérito. Eu a guardei para você. — Culum entregou-lhe o jornal. — Não ficaria surpreso se você receber uma comenda real do tzar, pessoalmente..
— Como vai Zergeyev?
— Está caminhando, agora, mas seu quadril ficou muito rígido. Acho que sente muitas dores, embora jamais fale disso. Diz que nunca cavalgará outra vez.
— Mas está bem?
— Tão bem quanto é possível a um homem que vive para cavalgar.
Struan foi até o aparador e serviu xerez para dois. O rapaz mudou, pensou. Sim, mudou muito. Estou orgulhoso de meu filho. Culum aceitou o copo e ficou a olhá-lo. — À sua saúde, Culum. Você se saiu muito bem.
— À sua, .papai. — Culum escolheu a palavra intencionalmente.
— Obrigado.
— Não me agradeça. Quero ser Tai-Pan da Casa Nobre. E muito. Mas não quero esperar por uma herança.
— Nunca pensei que você fosse esperar por herança — replicou Struan.
— Sim, mas considerei o assunto. E sei que, na verdade, não gosto da idéia.
Struan perguntou a si mesmo como seu filho podia dizer uma coisa dessas tão calmamente.
— Você mudou muito nas últimas semanas.
— Estou aprendendo a respeito de mim mesmo, talvez. Por causa de Tess, principalmente... e por ter ficado sozinho por sete dias. Descobri que não estou preparado ainda para ficar sozinho.
— Gorth tem a mesma opinião que você, sobre a questão da herança?
— Não posso responder por Gorth, Tai-Pan. Só por mim mesmo. Sei que você tem razão na maioria das coisas, que eu amo Tess, que você está indo contra tudo em que acredita para me ajudar.
Outra vez, Struan lembrou as palavras de Sarah.
Bebeu seu xerez, contemplativamente.
Roger Blore tinha vinte e poucos anos, e um rosto tão tenso quanto seus olhos. Suas roupas eram caras, mas surradas, e seu físico de pequenas dimensões, enxuto e destituído de gordura. Tinha cabelo louro-escuro e seus olhos azuis estavam profundamente fatigados.
— Por favor, sente-se, Sr. Blore — disse Struan. — E agora, por que todo esse mistério? E por que precisava ver-me a sós? Blore continuou em pé.
— O senhor é Dirk Lochlin Struan?
Struan ficou surpreendido. Muito poucas pessoas sabiam de seu nome intermediário.
— Sim. E quem poderá ser o senhor?
Nem o rosto do homem e nem o seu nome significavam nada para Struan. Mas seu sotaque era de pessoa bem-educada — Eton, Harrow ou Charter House.
— Posso ver o seu pé esquerdo, senhor? — pediu o jovem, cortesmente.
— Pela morte de Cristo! Mas que sujeitinho insolente! Diga o que quer e saia!
— Tem toda razão em se irritar, Sr. Struan. As possibilidades de que o senhor seja o Tai-Pan são de cinqüenta contra uma. Cem contra uma. Mas preciso ter certeza de que o senhor é quem diz ser.
— Por quê?
— Porque tenho uma informação para Dirk Lochlin Struan, o Tai-Pan da Casa Nobre, cujo pé esquerdo foi meio arrancado por um tiro... uma informação da maior importância.
— Da parte de quem?
— Do meu pai.
— Não me lembro do seu nome e nem do seu pai, e tenho uma boa memória para nomes, por Deus!
— Meu nome não é Roger Blore, senhor. Trata-se apenas de um pseudônimo... por uma questão de segurança. Meu pai é membro do Parlamento. Tenho quase certeza de que o senhor é o Tai-Pan. Mas, antes de dar a informação, preciso ter absoluta certeza. Struan tirou o punhal de sua bota direita e levantou a bota esquerda.
— Pode puxar — disse, com um tom perigoso. — E se a informação não for “da maior importância”, vou gravar minhas iniciais em sua testa.
— Então suponho que estou arriscando a minha vida. Uma vida pela outra. Ele arrancou a bota, suspirou de alívio e se sentou, debilmente.
— Meu nome é Richard Crosse. Meu pai é Sir Charles Crosse, membro do parlamento de Chalfont, St. Giles.
Struan encontrara Sir Charles duas vezes, há alguns anos. Naquele tempo, Sir Charles era um pequeno proprietário rural sem recursos, um veemente defensor do livre comércio e da importância do comércio asiático, bem-visto no Parlamento. Ao longo dos anos, Struan dera-lhe apoio financeiro e nunca lamentara o investimento. Devia ser a respeito da ratificação, pensou, com ansiedade.
— Por que não disse logo isso?
Crosse esfregou os olhos, cansado.
— Posso beber alguma coisa, por favor?
— Grogue, conhaque, xerez... sirva-se.
— Obrigado, senhor. — Crosse se serviu de um pouco de conhaque. — Obrigado. Desculpe, mas... bom, estou um pouco cansado. Papai me disse para ter muito cuidado... para usar um pseudônimo. E falar só com o senhor... ou, se estivesse morto, com Robb Struan. — Desabotoou a camisa e abriu uma bolsa que tinha amarrado em torno da cintura. — Ele lhe mandou isto. — Entregou a Struan um envelope sujo, com muitos selos, e se sentou.
Struan pegou o envelope. Estava endereçado a ele, datado de Londres. 29 de abril. Abruptamente, ele ergueu os olhos e sua voz desafinou.
— Você é um mentiroso! É impossível que tenha chegado aqui tão depressa. A carta é de apenas sessenta dias atrás!
— Sim, é, senhor — disse Crosse, alegremente — fiz o impossível. — Riu, nervosamente. — Papai jamais me perdoará.
— Ninguém fez nunca a viagem em sessenta dias. Qual o seu jogo?
— Parti numa terça-feira, 29 de abril. Diligência de Londres a Dover. Peguei o paquete para Calais no último minuto. Uma diligência para Paris e outra para Marselha. O paquete francês para Alexandria, faltando um segundo para a partida. Por terra para Suez, através dos bons ofícios de Mehemet Ali... a quem papai encontrou certa vez, e, depois, o paquete de Bombaim, por um átomo de segundo. Apodreci em Bombaim durante três dias e, então, tive um golpe fabuloso de sorte. Comprei passagem num clíper de ópio para Calcutá. Então...
— Que clíper?
— O Flying Witch, pertencente a Brock e Filhos.
— Continue — disse Struan, erguendo as sobrancelhas.— E, depois, um navio mercante de carreira indiana para Cingapura. O Bombay Prince. Então, que falta de sorte, não havia nenhum navio programado para Hong Kong por semanas. Mas tive sorte. Consegui convencer o pessoal de um navio russo, aquele e embarquei — disse Crosse, apontando pelas vigias da popa. — Era o jogo mais arriscado de todos, mas era minha última chance. Dei ao capitão os últimos guinéus que tinha. Antecipadamente! Pensei que eles, com certeza, iriam cortar a minha garganta e me atirar no mar, logo que partíssemos, mas era minha última chance. Cinqüenta e nove dias, na verdade, senhor... de Londres a Hong Kong.
Struan levantou-se e serviu outra dose a Crosse e uma dupla para si mesmo. Sim, é possível, pensou. Não é provável, mas é possível.
— Sabe o conteúdo da carta?
— Não, senhor. Pelo menos, sei apenas a parte que se refere a mim.
— E qual é?
— Papai diz que sou gastador, trapalhão, jogador e louco por cavalos — disse Crosse, com franqueza cândida. — E há um mandado de prisão por dívida contra mim, na prisão de Newgate. Que ele me confia à sua generosidade, e espera que seja capaz de encontrar um uso para meus “talentos”... qualquer coisa que me mantenha fora da Inglaterra, e distante dele pelo resto de sua vida. E expõe as paradas da aposta.
— Que aposta?
— Cheguei ontem, senhor. 28 de junho. Seu filho e muitos outros são testemunhas. Talvez deva ler a carta, senhor. Posso garantir-lhe que meu pai jamais aposta comigo, a não ser em questões da “máxima importância”.
Struan reexaminou os selos e os rompeu. A carta dizia: “Westminster, 11 horas da noite de 28 de abril de 41. Meu caro Sr. Struan: acabo de me inteirar, secretamente, de um despacho do Ministro de Relações Exteriores, Lord Cunnington, enviado ontem para o Ilustre William Longstaff, plenipotenciário de Sua Majestade na Ásia. O despacho diz, num trecho: ‘O senhor desobedeceu e negligenciou minhas ordens e parece considerá-las inúteis. Obviamente, parece decidido a resolver os negócios do Governo de Sua Majestade de acordo com seus caprichos. De maneira impertinente desconsiderou as instruções no sentido de que cinco ou seis portos chineses no continente se tornassem acessíveis aos interesses comerciais britânicos, e plenos canais diplomáticos permanentemente estabelecidos, nesse particular; de que isto fosse feito prontamente, de preferência através de negociações, mas, se as negociações fossem impossíveis, através do uso da força enviada para este explícito propósito e com despesas consideráveis. Em vez disso, o senhor procura um miserável rochedo, que mal tem nele uma só casa, e isto através de um tratado inteiramente inaceitável, e, ao mesmo tempo, a se dar crédito aos despachos navais e militares, continuamente vem empregando mal as Forças de Sua Majestade que estão sob seu comando. De maneira alguma pode Hong Kong se tornar, um dia, o empório comercial na Ásia — como Macau não se tornou. O Tratado de Chuenpi é totalmente repudiado. Seu sucessor, Sir Clyde Whalen, chegará aí a qualquer momento, meu caro senhor. Talvez possa ter a gentileza de transmitir seu cargo ao vice, Sr. C. Monsey, ao receber este despacho, e partir da Ásia imediatamente, numa fragata para tanto destacada, pela presente. Apresente-se no meu escritório logo que puder...”
“Estou sem saber que...”
Impossível! Impossível que tenha podido cometer um erro tão estúpido, louco e absurdo!, pensou Struan. Continuou a ler: “Estou sem saber que atitude tomar. Não há nada que possa fazer até a informação ser dada oficialmente na Casa. Não ouso usar abertamente esta informação secreta. Cunnington pediria minha cabeça e eu seria afastado da política. Mesmo colocar isto no papel, para si, desta maneira, é dar aos meus inimigos
— e quem, em política, só tem poucos? — uma oportunidade para me destruir e, comigo, todos aqueles que defendem o livre comércio e a posição pela qual o senhor vem lutando durante todos esses anos. Peço a Deus que meu filho coloque isto só em suas mãos.
“(A propósito, ele nada sabe a respeito do conteúdo particular desta carta.)
“Como sabe, o Ministro de Relações Exteriores é um homem autoritário, guia-se por seus próprios princípios, é o baluarte do nosso partido Whig. Sua atitude, no despacho, é perfeitamente clara. Temo que Hong Kong seja uma questão vencida. E, a menos que o Governo seja derrotado e os Conservadores de Sir Robert Peel subam ao poder — uma impossibilidade, eu diria, em futuro previsível — Hong Kong, provavelmente, permanecerá uma causa vencida.
“A notícia da falência do seu banco espalhou-se nos círculos internos na City — muito ajudada por seus rivais, liderados pelo jovem Morgan Brock. ‘Em grande confiança’, Morgan Brock, judiciosamente, lançou as sementes da desconfiança, juntamente com a informação de que os Brocks agora possuem a maioria — senão todas — das suas ações importantes, e isto prejudicou incomensuravelmente sua influência aqui. Além disso, uma carta do Sr. Tyler Brock e de certos outros negociantes chegou, quase simultaneamente com o despacho do Tratado de Chuenpi, de Longstaff, em violenta oposição ao estabelecimento em Hong Kong e à conduta de Longstaff, durante as hostilidades. A carta era endereçada ao Primeiro-Ministro, ao Ministro de Relações Exteriores, e cópias foram enviadas aos seus inimigos — que, como sabe, são muitos.
“Sabendo que pode ter posto o remanescente de seus recursos, se ainda tem alguns, em sua querida ilha, escrevo para lhe dar uma oportunidade de se desemaranhar e salvar alguma coisa do desastre. Talvez tenha entrado em algum tipo de acordo com Brock — rezo para que sim — embora, a se acreditar no arrogante Morgan Brock, o único acordo que agradaria a eles seria a eliminação de sua Casa. (Tenho boas razões para acreditar que Morgan Brock e um grupo de interesses bancários continentais — franceses e russos, segundo outros boatos — iniciaram a repentina corrida ao banco. O grupo continental propôs a manobra quando, de alguma maneira, transpirou a notícia da planejada estrutura internacional do Sr. Robb Struan. Eles quebraram seu banco, em troca de cinqüenta por cento num plano similar que Morgan Brock está, agora, tentando executar.)
“Sinto muito dar notícias tão más. Faço isso com boa fé, esperando que, de alguma maneira, a informação seja útil e o senhor possa sobreviver à luta, mais uma vez. Ainda acredito que seu plano para Hong Kong seja o correto. E pretendo continuar a tentar executá-lo.
“Sei pouco a respeito de Sir Clyde Whalen, o novo Capitão-Superintendente do Comércio. Ele serviu com distinção na Índia e tem uma excelente reputação como soldado. Não é administrador, segundo creio. Ouvi dizer que parte amanhã para a Ásia; assim, sua chegada deve estar iminente.
“Para finalizar: confio meu filho mais moço ao senhor. Ele é um gastador, uma ovelha negra, um trapalhão cujo único propósito na vida é jogar, preferivelmente em cavalos. Há um mandado por dívidas contra ele, da prisão de Newgate. Eu lhe disse que — pela última vez — pagaria seus débitos aqui, se ele, imediatamente, empreendesse esta perigosa viagem. Ele concordou, apostando que, se realizasse o feito impossível de chegar a Hong Kong em menos de sessenta e cinco dias — metade do tempo normal — eu lhe daria mil guinéus, como despedida.
“Para garantir que a entrega fosse a mais rápida possível, eu estipulei mil guinéus para menos de sessenta e cinco dias; quinhentos a menos para cada dia que ultrapassasse o período determinado; desde que ele permanecesse fora da Inglaterra pelo resto de minha vida — e o dinheiro seria pago na proporção de cem guinéus por ano, até se esgotar. Anexo está o primeiro pagamento. por favor, avise-me pela volta do correio da data em que ele chegou.
“Se houver alguma maneira pela qual possa usar seus ‘talentos’ e controlá-lo, conquistará a imorredoura gratidão de um pai. Tentei, que Deus me perdoe, e a ele também, e fracassei. Muito embora eu o ame profundamente.
“Por favor, aceite o meu pesar, por sua má sorte. Meus cumprimentos para o Sr. Robb, e concluo com a esperança de que terei o prazer de encontrá-lo pessoalmente, em circunstâncias mais favoráveis. Tenho a honra de ser, senhor, seu mais obediente criado, Charles Crosse.”
Struan fitou o porto, lá fora, e a ilha. Lembrou-se da cruz que queimara no primeiro dia. E dos vinte guinéus de ouro de Brock. E das três moedas restantes de Jin-qua. E dos loques de prata que deveriam ser investidos em alguém que, um dia, viria com um certo carimbo. Agora, todo suor e todo trabalho e todos os planos e todas as mortes estariam desperdiçados. Devido à estúpida arrogância de um homem — Lord Cunnington. Bom e doce Cristo, o que farei, agora?
Struan superou o choque da notícia e forçou a si próprio a pensar. O Ministro de Relações Exteriores é um homem brilhante. Ele não repudiaria Hong Kong impensadamente. Deve haver uma razão. Qual será? E como controlarei Whalen? Como encaixar um “soldado e não administrador” no futuro?
Talvez eu devesse parar de comprar a terra hoje. Vamos deixar o resto dos negociantes comprar e que vão para o inferno. Brock será liquidado, junto com os outros, porque Whalen e a notícia não chegarão antes de um mês, ou mais. Nessa ocasião, estarão mergulhados numa frenética atividade de construção. Sim, esta é uma saída e, quando a notícia for do conhecimento geral, nós nos retiraremos todos para Macau — ou para um dos portos obtidos por Whalen através de tratado — e os demais serão liquidados. Ou quase. Sim. Mas se eu posso obter essa informação, Brock também pode. Então, talvez ele não seja destruído. Talvez.
Sim. Mas dessa maneira você perde a chave para a Ásia: este miserável rochedo gasto, sem o qual todos os portos abertos e o futuro não terão sentido.
A alternativa é comprar, construir e apostar no fato de que, como Longstaff, Whalen pode ser persuadido a ir além das determinações, que o próprio Cunnington pode ser envolvido. Para derramar a riqueza da Casa Nobre na nova cidade. Um jogo. Fazer Hong Kong florescer. De modo que o governo seja forçado a aceitar a colônia.
É mortalmente perigoso. Você não pode forçar a Coroa a fazer isso. Os riscos são terríveis, terríveis. Mesmo assim, você não tem escolha. Tem de jogar.
Pensar em jogo fez com que lembrasse o jovem Crosse. Ora, é um rapaz de méritos. Como posso usá-lo? Como posso fazer que fique de boca calada com relação à sua fantástica viagem? Sim, e como posso dar a Whalen uma impressão favorável de Hong Kong? E me aproximar de Cunnington? Como posso manter o tratado do jeito que eu quero?
— Bom, Sr. Crosse, fez uma viagem notável. Quem sabe quanto tempo o senhor levou?
— Só o senhor.
— Então fique calado a respeito. — Struan escreveu alguma coisa num bloco de papel. — Entregue isto ao chefe dos meus funcionários. Crosse leu a nota.
— Vai me dar o total dos cinco mil guinéus?
— Coloquei no nome de Roger Blore. Acho melhor que conserve este nome... por enquanto, pelo menos.
— Sim, senhor. Agora, eu sou Roger Blore. — Ele se levantou. — Ainda precisa de mim agora, Sr. Struan?
— Quer um emprego, Sr. Blore?
— Temo que... bom, Sr. Struan, tentei dúzias de coisas, mas nunca funciona. Papai tentou tudo e, bom... eu me aceito... talvez seja uma fatalidade... eu me aceito como sou. Sinto muito, mas o senhor está desperdiçando suas boas intenções.
— Aposto com você cinco mil guinéus que aceitará o emprego que vou lhe oferecer. O rapaz sabia que ganharia a aposta. Não havia nenhum emprego que o Tai-Pan pudesse oferecer-lhe e ele aceitasse.
Mas espere. Este não é um homem para se brincar, e nem para se apostar assim sem mais nem menos. Esses olhos calmos e diabólicos são impassíveis. Detestaria vê-los do outro lado de uma mesa de pôquer. Ou no bacará. Tenha cuidado, Richard Crosse Roger Blore. E este é o homem que cobraria uma dívida.
— Bom, senhor Blore? Onde está a sua coragem? Ou não é o jogador que finge ser?
— Os cinco mil guinéus são minha vida, senhor. A última parada que posso ganhar.
— Então aposte sua vida, por Deus!
— Não está arriscando a sua, senhor. Então a aposta é desigual. Essa soma é desprezível para o senhor. Então me dê vantagens. Cem a um. Struan admirou o atrevimento do rapaz.
— Muito bem... a verdade, Sr. Blore. Diante de Deus. — Lhe estendeu a mão e Blore teve uma tontura, porque contara que pedir tais vantagens iria acabar com a aposta. Não faça isso, seu louco, ele disse a si mesmo. Quinhentos mil guinéus! Apertou a mão de Struan.
— Secretário do Jóquei Clube de Hong Kong — disse Struan.
— O quê?
— Acabamos de formar um Jóquei Clube. Você é secretário, a tarefa é conseguir os cavalos. Traçar uma pista de corridas. Uma sede de clube. Começar a mais rica e a mais fina estrebaria da Ásia. Tão boa quanto Aintree, ou qualquer outra no mundo. Quem ganha, rapaz?
Blore procurou, desesperadamente, desafogar-se. Pelo amor de Deus, concentre-se, gritou, para si mesmo.
— Uma pista de corridas?
— Sim. Você vai iniciá-la, administrá-la... cavalos, o jogo, arquibancadas, apostas, prêmios, tudo. Comece hoje.
— Mas, por Jesus Cristo, onde vai conseguir os cavalos?
— Onde o senhor conseguirá os cavalos?
— Na Austrália, por Deus! — exclamou Blore. — Ouvi dizer que eles têm cavalos de sobra, por lá! — Tornou a entregar a ordem de pagamento a Struan e deu um berro de êxtase. — Sr. Struan, jamais se arrependerá disso. — Deu a volta e correu para a porta.
— Aonde vai? — perguntou Struan.
— Para a Austrália, claro.
— Por que não vai ver o general primeiro?
— Hein?
— Pelo que me lembro, eles têm alguma cavalaria. Peça emprestados alguns cavalos. Eu acho que o senhor pode fazer a primeira corrida no próximo sábado.
— Será?
— Sim. Sábado é um bom dia para corridas. E a Índia é mais próxima do que a Austrália. Eu o enviarei para lá, pelo primeiro navio disponível.
— Enviará?
Struan sorriu.
— Sim. — Ele entregou de volta o papel. — Os quinhentos são um bônus sobre seu primeiro ano de salário, Sr. Blore, quinhentos por ano. O restante é o dinheiro para o prêmio das primeiras quatro ou cinco corridas. Vamos dizer oito corridas, com cinco cavalos cada, sábado sim, sábado não.
— Que Deus o abençoe, Sr. Struan.
Então, Struan ficou sozinho. Acendeu um fósforo e ficou olhando a carta arder. Misturou as cinzas à poeira do chão e depois desceu. May-may ainda estava na cama, mas trocara de roupa e estava linda.
— Olá, Tai-Pan — disse May-may. Ela o beijou, rapidamente, e depois continuou a se abanar. — Estou muito satisfeita por você ter voltado. Quero que compre para mim um
pequeno lote de terra, porque decidi me tornar negociante.
— Que tipo de negociante? — ele perguntou, ligeiramente agastado com a brusca recepção, mas satisfeito por ela aceitar suas idas e vindas sem perguntas e sem brigas.
— Você verá, não se preocupe. Mas quero alguns taéis para começar. Pago dez por cento de juros, o que é muito bom. Cem taéis. Você será um sócio inativo. Ele estendeu o braço e colocou a mão sobre o seio dela.
— Por falar em inatividade, eu acho... Ela tirou a mão dele.
— Os negócios antes do repouso. Você compra a terra para mim e me empresta os taéis?
— Repouso antes dos negócios?
— Ayeeee yah, com esse calor? — ela disse, com uma risada. — Muito bem. É péssimo fazer qualquer esforço com esse calor... sua camisa já está grudando nas costas. Mas venha, não se preocupe. — Ela, obedientemente, caminhou em direção à porta do quarto de dormir, mas ele a agarrou.
— Só estava brincando. Como vai você? O bebê lhe deu algum problema?
— Claro que não. Sou uma mãe muito cuidadosa e só como alimentos muito especiais, para construir um belo filho. E fico pensando coisas bem agressivas, para que ele se torne um bravo Tai-Pan.
— Quantos taéis você quer?
— Cem. Eu já disse. Não tem ouvidos? Você está estranhíssimo hoje, Tai-Pan. Sim. Seguramente muito estranho. Não está doente, não é? Recebeu más notícias? Ou apenas se sente cansado?
— Só cansado. Cem taéis, pode contar com isso. E qual é o “negócio”?
Ela bateu palmas, toda excitada e tornou a se sentar à mesa.
— Ah, você verá. Pensei muito, desde que você foi embora. O que faço por você? Faço amor, oriento você... são coisas excelentes, claro, mas não é o bastante. Então, agora quero ganhar taéis para você também e para a minha velhice. — Ela riu outra vez, e ele ficou deliciado com sua risada. — Mas só com os bárbaros. Ganharei fortunas... ah, você vai achar que eu sou genteintelíssima.
— Não existe essa palavra.
— Você sabe muito bem o que eu quero dizer. — Ela o abraçou. — Quer fazer amor agora?
— Há uma venda de terras dentro de uma hora.
— É verdade. Então é melhor você trocar de roupa e voltar correndo. Um pequeno lote na Estrada da Rainha. Mas não pago mais do que dez taéis de aluguel por ano! Você trouxe presente para mim?
— O quê?
— Bom, é um bom hábito — ela disse, com os olhos inocentes — quando o homem deixa a mulher traz presente para ela. Jades. Coisas assim.
— Não trouxe jades. Mas da próxima vez, serei mais atencioso.
Ela deu de ombros.
— É um bom hábito. Sua pobre velha mãe é muito pobre. Comemos mais tarde, hein?
— Sim. — Struan foi para seu camarote particular, no convés logo acima, Lim Din fez uma curvatura. — O banho está bem frio, senhor. Quer assim?
— Sim.
Struan tirou as roupas amassadas e ficou deitado na banheira, deixando a mente considerar as implicações da notícia dada por Sir Charles, sua fúria com a estupidez de Cunnington quase a esmagá-lo. Ele se enxugou e vestiu roupas limpas, mas em poucos minutos sua camisa estava úmida de suor outra vez.
É melhor eu me sentar para pensar no assunto, ele pensou. Deixar Culum se encarregar da terra. Aposto minha vida que Tess contou ao pai sobre o plano dele com relação ao morro. Talvez Culum seja acuado e forçado a fazer lances altos demais. O rapaz fez tudo bem; devo confiar isso a ele.
Então, mandou recado a Culum para fazer os lances em nome da Casa Nobre, e também lhe disse para comprar um lote pequeno, porém bom, na Estrada da Rainha. E mandou recado a Horatio de que Mary não estava bem e determinou que uma lorcha o levasse imediatamente a Macau.
Depois, sentou-se numa funda poltrona de couro e ficou olhando para a ilha, através de uma vigia, deixando a mente vaguear.
Culum comprou os lotes marinhos e suburbanos, orgulhoso de estar fazendo os lances pela Casa Nobre e ganhando mais prestígio. Muitos lhe perguntaram onde estava o Tai-Pan — onde ele estivera — mas respondeu laconicamente que não tinha idéia e continuou a deixar implícita a hostilidade não mais sentida.
Comprou o morro — e os lotes que o tornavam seguro – e ficou aliviado ao ver que os Brocks não faziam lances contra ele, provando ser Tess digna de confiança. Mesmo assim, decidiu ser mais cauteloso, no futuro, e não a colocar em tal posição outra vez. Era perigoso ser aberto demais com relação a certos assuntos, pensou. Perigoso para ela e perigoso para ele próprio. Por exemplo, o fato de que pensar nela, ou seu mais leve toque o deixavam quase louco de desejo. Fato que ele não poderia jamais discutir com ela e nem com seu pai, mas só com Gorth, que o compreendia: “Sim, Culum, rapaz. Sei disso muito bem. É uma dor terrível, terrível. A pessoa fica quase sem poder caminhar. Sim... e é terrivelmente difícil de controlar. Mas não se preocupe rapaz. Somos amigos e eu entendo. É bom sermos francos, eu e você. É terrivelmente perigoso para você viver como um monge. Sim. Pior do que isso, é acumular problemas para o futuro... e ainda pior, ouvi dizer que, com isso, os filhos nascem doentes. A dor em suas entranhas pode ser uma advertência de Deus. Sim, essa dor deixa um homem doente pelo resto da vida, esta é a verdade absoluta e então, que Deus me perdoe! Não se preocupe, conheço um lugar em Macau. Não se preocupe, meu velho.
E, embora Culum não acreditasse realmente nas superstições que Gorth enumerou, as dores que suportava noite e dia minaram sua vontade de resistir. Queria alívio. Mesmo assim, jurou, se Brock concordar que nos casemos no próximo mês, então não irei a um bordel. Não irei!
Ao anoitecer, Culum e Struan foram para bordo do White Witch. Brock os esperava no tombadilho, com Gorth a seu lado. A noite estava fresca e agradável.
— Decidi a respeito do seu casamento, Culum — disse Brock. — No próximo mês seria impróprio. No próximo ano, provavelmente melhor. Mas, daqui a três meses Tess estará fazendo dezessete anos e então, nesse dia, dia dez, você pode casar.
— Obrigado, Sr. Brock — disse Culum. — Obrigado.
Brock sorriu para Struan.
— Isso convém a você, Dirk?
— É sua decisão, Tyler, não minha. Mas acho que três meses ou dois não fazem muita diferença de um mês. Ainda digo que seria bom no próximo mês.
— Setembro convém a você, Culum? Como eu disse? Seja honesto, rapaz.
— Sim. Naturalmente. Eu esperei, mas... bom, sim Sr. Brock. — Culum jurou que esperaria os três meses. Mas lá dentro dele mesmo, sabia que não poderia.
— Então isto será acertado convenientemente.
— Sim — Struan replicou. — Serão três meses, então. Sim, ele disse a si mesmo, três meses. Você assinou uma sentença de morte, Tyler. Talvez duas.
— E, Dirk, talvez possa me dar um pouco do seu tempo amanhã? — Podemos fixar o dote.
— Ao meio-dia?
— Sim. Ao meio-dia. E agora acho que podemos nos reunir às senhoras, lá embaixo. Vai ficar para a ceia, Dirk?
— Obrigado, mas tenho de resolver algumas coisas.
— Como as corridas, hein? Tenho de lhe dar os parabéns. Foi uma ótima idéia trazer aquele sujeito, o Blore, lá da Inglaterra. É mesmo um jovem galã. A última corrida de cada rodada será a Parada Brock. Nós daremos o dinheiro do prêmio.
— Sim. Ouvi dizer. É conveniente que a melhor pista da Ásia fique aqui.
Blore fizera o anúncio durante a venda de terras. Longstaff concordara em ser o primeiro presidente do Jóquei Clube. A taxa anual para se ser sócio foi estipulada em dez guinéus, e todo europeu na ilha entrou imediatamente. Blore foi assediado por voluntários para montar os animais que o general concordara em fornecer.
— Sabe montar, Dirk?
— Sim. Mas nunca corri a cavalo.
— Estou no mesmo caso. Mas talvez nós devêssemos praticar um pouco, hein? Você monta, Culum?
— Sim. Mas não sou um perito. Gorth deu-lhe uma palmada nas costas.
— Podemos conseguir montadas em Macau e Culum praticará um pouco. Talvez a gente possa vencer nossos pais, hein? Culum sorriu, com constrangimento.
— Sim, podemos ver isso, Gorth — disse Struan. — Bom, boa-noite. Verei você ao meio-dia, Tyler.
— Sim. Boa-noite. Dirk.Struan partiu. Durante o jantar, Culum tentou amenizar o antagonismo que existia entre Gorth e Brock. Achou estranho que gostasse de ambos, pudesse entender os dois — porque Gorth queria ser Tai-Pan, e Brock não passaria o controle, por algum tempo. E, estranho, porque ele se sentia mais sensato com relação a isso do que Gorth. Não é tão estranho, realmente, pensou. Gorth não tinha sido deixado de repente sozinho por sete longos dias, com toda a responsabilidade. No dia em que eu me casar com Tess, vou jogar fora as vinte moedas de Brock. Não é direito guardá-las, agora. Aconteça o que acontecer, vamos começar da estaca zero. Só três meses. Ah, meu Deus, obrigado.
Depois do jantar, Culum e Tess foram para o convés sozinhos. Ambos estavam sem fôlego sob as estrelas, segurando as mãos um do outro e sentindo uma dor. Culum roçoulhe os lábios, numa primeira tentativa de beijo, e Tess se lembrou da aspereza do beijo de Nagrek e do fogo que suas mãos lhe despertaram e a dor por ele causada — não uma dor, realmente, mas uma agonia-prazer cuja lembrança sempre a fazia arder outra vez. Ela estava satisfeita de logo poder apagar o fogo que havia dentro dela. Só três meses e, depois, a paz.
Eles voltaram para a fétida cabina abaixo, e depois que Culum partiu ela ficou deitada em seu beliche. Seu anseio lhe doía e ela chorou. Porque sabia que Nagrek a tocara de uma maneira como só Culum deveria tê-la tocado, e sabendo que este fato deveria ser mantido secreto para ele, por toda a eternidade. Mas como? Ah, meu amor, meu amor.
— Eu lhe digo, papai, foi um erro — dizia Gorth, na cabina grande, mantendo a voz baixa. — Um erro terrível!
Brock bateu o canecão sobre a mesa e a cerveja se espalhou, chegando a cair no chão.
— Foi minha decisão, Gorth, e o assunto está encerrado. O casamento deles será em setembro.
— E foi outro erro não fazer lances para o morro. Aquele demônio nos passou para trás outra vez, por Deus.
— Use seu cérebro, Gorth — sibilou Brock. — Se tivéssemos feito isso, então o jovem Culum saberia com certeza que Tess andava contando a mim, inocentemente, coisas que não deveria contar. O morro não tem importância. Talvez chegue uma ocasião em que ela diga algo importante, que vá destruir Dirk, e é isso que eu quero saber, nada além disso. Brock desprezou a si mesmo por ouvir a conversa de Tess, por usá-la, sem ela saber, para espionar Culum e como um instrumento contra Dirk Struan. Mas detestou Gorth mais do que nunca, e confiou nele ainda menos. Porque sabia que Gorth tinha razão. Mas desejava a felicidade de Tess acima de qualquer outra coisa e saber disso fazia com que ele se tornasse perigoso. Agora o descendente do maldito Struan ia unir-se a sua adorada Tess.
— Juro por Cristo que matarei Culum, se ele lhe arrancar um fio de cabelo — disse, com voz terrível.
— Então, por que deixar que Culum se case com ela tão depressa, por tudo que é sagrado? Claro que ele vai magoá-la, e vai usá-la contra nós, agora.
— E o que fez você mudar de idéia, hein? — exclamou Brock. — Você era a favor, entusiasticamente, do casamento.
— Ainda sou, mas não dentro de três meses, por Deus! Isto vai arruinar tudo.
— Por quê?
— Claro que vai arruinar tudo — ele disse. — Quando eu era a favor, Robb estava vivo, hein? E o Tai-Pan ia partir este verão para sempre e passar seu cargo de Tai-Pan para Robb... e depois para Culum, em um ano. É verdade. Se eles se casassem no próximo ano, seria perfeito. Mas agora o Tai-Pan vai ficar. E agora você concorda que eles se casem em três meses, e o Tai-Pan vai tirá-la de você e vai exercitar Culum contra nós, e agora eu acho que ele nunca irá embora. Com certeza jamais, enquanto você for Tai-Pan de Brock e Filhos!
— Ele nunca iria sair da Ásia, dissesse o que dissesse a Culum. Ou a Robb. Eu conheço Dirk.
— E eu conheço você!
— Quando ele partir, ou morrer, então eu estarei partindo.
— Então, é melhor que ele morra logo.
— É melhor você se munir de paciência.
— Sou paciente, papai.
Estava na ponta da língua de Gorth contar a Brock a vingança que ele planejara para Struan — através de Culum — em Macau. Mas não contou. Seu pai estava mais preocupado com a felicidade de Tess do que em se tornar Tai-Pan da Casa Nobre. Seu pai não tinha mais a necessária inflexibilidade devoradora que Struan possuía numa medida capaz de lhe possibilitar ser o Tai-Pan.
— Lembre-se, papai, ele enganou você com a prata, com a casa dos dois, o casamento, e até no baile. Tess é a sua fraqueza — ele vociferou. — Ele sabia disso e você está agindo com ela como se ela fosse o guia para o seu carrasco, e marcha para um desastre!
— Não é verdade! Não é verdade! Sei o que estou fazendo — disse Brock, tentando manter a voz baixa, com as veias de suas têmporas grossas como os nós de um chicote. — E eu avisei você antes. Não vá atrás daquele demônio. Ele vai lhe cortar os colhões e se alimentar com eles. Eu conheço aquele demônio!
— É, conhece mesmo, papai! — Gorth farejava a idade de seu pai e sabia que, na verdade, pela primeira vez poderia esmagá-lo, de homem para homem. — Então saia do caminho e deixe um homem cumprir sua tarefa de homem, por Deus!
Brock ficou em pé de um pulo e a cadeira caiu. Gorth também ficou em pé, esperando que o pai pegasse sua faca, sabendo que agora, e para sempre, já podia esperar, porque sabia a medida do outro.
Brock viu claramente que aquela era sua última chance de dominar Gorth. Se não pegasse a faca, estava perdido. Se pegasse a faca, teria de matar Gorth. Sabia que poderia — mas só com esperteza, não mais apenas usando a força. Gorth é seu filho, seu filho mais velho. Não é um inimigo, ele disse a si mesmo.
— Não é direito — ele disse, sufocando seu desejo de matar.
— Não é direito para você, nem para você e nem para mim, agir assim. Não, por Deus! Eu lhe digo pela última vez vá, vá atrás dele e encontrará seu Criador. Gorth sentiu a emoção da vitória.
— Só com pagode nós vamos sair dessa confusão. — Deu um chute em sua cadeira, tirando-a do caminho. — Vou para terra.
Brock ficou sozinho. Terminou o canecão, mais outro e ainda outro. Liza abriu a porta, mas ele não a notou e ela o deixou bebendo, foi para a cama e rezou pela felicidade do casamento. E pelo seu homem.
Gorth foi para terra. Para a casa da Sra. Fortheringill.
— Não quero saber de suas coisas, Sr. Brock — disse ela. — A última moça foi brutalmente ferida.
— O que significa uma macaca para você, feiticeira velha? Aqui está! — Gorth atirou vinte soberanos de ouro sobre a mesa.
— E aqui está a mesma coisa para você manter a boca fechada.
Ela lhe deu uma jovem Hakka e um quarto no porão, nos fundos da casa. Gorth abusou da moça, açoitou-a brutalmente e deixou-a agonizante. No dia seguinte, partiu no White Witch para Macau, a quarenta milhas sudoeste.
Todos os Brocks estavam a bordo, exceto o próprio Brock. Culum também se encontrava no tombadilho, de braços dados com Tess.
Cinco dias mais tarde era a data da corrida.
E, durante esse período, os alicerces da nova cidade haviam sido construídos. Liderados pela Casa Nobre, os comerciantes utilizaram todos os labores e habilidades do Tai Ping Shan para cavar, carregar e construir. Os negociantes despejavam de volta na terra toda a prata que Longstaff lhes dera. Os fabricantes de tijolos em Macau e os cortadores de madeira em Kwangtung — e todos aqueles ligados à construção de casas, feitorias, ancoradouros — começaram a trabalhar dia e noite para satisfazer o zelo frenético dos comerciantes na substituição àquilo que haviam abandonado. Os salários subiram. Os cules começaram a faltar — só a Casa Nobre empregava três mil pedreiros, construtores e artesãos de todos os tipos — muito embora cada nova maré trouxesse mais trabalhadores. Estes logo encontravam tarefas bem pagas. O Tai Ping Shan crescia ainda mais. A praia em torno ao Cabo Glessing pulsava de energia.
E o dia da corrida era o décimo quarto, desde que Struan e May-may haviam partido de sua casa, no Vale Feliz, para se instalarem a bordo do Resting Cloud.
— Você não está com bom aspecto, garota — disse Struan. — É melhor ficar na cama, hoje.
— Acho que vou ficar — disse ela. Permanecera inquieta durante toda a noite e sua cabeça, pescoço e costas começaram a doer. — Não é nada, não se preocupe. Você está com excelente aspecto.
— Obrigado.
Struan usava roupas novas que mandara fazer em homenagem à corrida. Um casaco de montaria verde-escuro da mais fina e leve lã. Calças de tecido grosso de algodão, pregueadas, metidas sob suas botas de cano curto, colete de primorosa casimira, gravata verde.
May-may aliviou a dor nos ombros e Ah Sam colocou o travesseiro de maneira mais confortável para ela.
— É apenas um demônio do verão. Mandei buscar um médico. Você vai em terra, agora?
— Sim. A corrida começa dentro de uma hora. Acho que vou chamar nosso médico, garota. Ele...
— Eu mandarei buscar um médico. Médico chinês. E não quero mais falar sobre este assunto. Agora, não se esqueça, vinte taéis no cavalo número quatro, na quarta volta. O astrólogo disse que tem todas as condições para ganhar.
— Não vou esquecer. — Struan lhe deu palmadinhas nas faces. — Descanse.
— Quando eu ganhar, vou me sentir fantasticamente melhor, hein? Agora, vá embora. Ele a ajeitou na cama e mandou buscar chá novo e uma garrafa de cerâmica cheia de água quente, para suas costas. Depois, foi para terra.
A pista de corridas fora demarcada a oeste do Cabo Glessing, e estava cheia de gente. Parte da praia, perto do poste que marcava tanto as linhas de partida como de chegada, havia sido isolada com corda, para os europeus, a fim de impedir a entrada das hordas de chineses curiosos, que se apinhavam no local. Tendas haviam sido armadas aqui e acolá. Um padoque e barracas para apostas foram construídos. Bandeiras sobre varas de bambu marcavam a pista oval.
As apostas eram pesadas e Henry Hardy Hibbs tinha o livro mais grosso.
— Façam suas escolhas, cavalheiros — ele gritava, com voz sonora, batendo em seu quadro-negro, no qual estavam anotadas as paradas. — Major Trent, no garanhão Satã, o favorito da primeira. Pago à vista. Três contra um!
— Maldito seja, Hibbs — disse Glessing, cheio de irritação, suando com o calor do dia. — Com três contra um, você vai ganhar. Quero seis contra um na égua cinzenta. Um guinéu!
Hibbs deu uma olhada para o quadro-negro e sussurrou com voz rouca:
— Para o senhor, Capitão, cinco. Um guinéu. Em Mary Jane Glessing deu meiavolta. Estava furioso por não se encontrar em Macau e porque a prometida carta de Culum não chegara Ó Deus, ele pensou, frenético de preocupação, eu já deveria ter notícias dele, a essa altura. Que diabo o estará retardando? O que estará fazendo aquele patife do Horatio? Será que a está apoquentando, outra vez?
Caminhou melancolicamente em direção ao padoque e viu Struan e Zergeyev juntos, mas Longstaff se uniu aos dois e então ele não parou.
— Qual a sua escolha, Alteza? — Longstaff dizia, jovialmente
— O capão — respondeu Zergeyev, apoiando-se numa bengala. A excitação e o cheiro dos cavalos o animavam e diminuíam muito sua dor constante. Queria poder cavalgar, mas abençoava sua sorte por ter sobrevivido ao ferimento. E bendizia Struan Sabia que, sem a operação realizada por Struan, teria morrido.
— Olá, Alteza — disse Shevaun, ao se aproximar, de braços dados com Jeff Cooper. Estava vestida de verde brilhante e protegia-se do sol com uma sombrinha laranja. — Tem algum palpite para mim? — Gratificou a todos com um sorriso. Particularmente a Struan.
— O capão é o melhor cavalo, mas não sei quem é o melhor jóquei, Shevaun — disse Zergeyev. Shevaun deu uma olhada no grande cavalo marrom, com a. pelagem lustrosa e os olhos saltados.
— Ora — disse ela, com um brilho malicioso no olhar. — Pobre cavalo! Se eu fosse um cavalo e isto tivesse sido feito comigo, eu jamais correria nem um metro. Para ninguém! Que barbaridade!
Todos riram com ela.
— Vai apostar no capão, Tai-Pan?
— Não sei — disse ele, preocupado com May-may. — De certo modo, minha favorita é a potranca. Mas acho que farei minha escolha final quando estiverem no portão de partida.
Ela o observou por um instante, imaginando se ele falava através de parábolas.
— Vamos dar uma olhada com mais cuidado na potranca — disse Jeff, forçando uma risada.
— Por que não vai você, Jeff, meu caro? Vou ficar aqui à sua espera.
— Vou junto — disse Longstaff, sem perceber a repentina irritação de Cooper. Este hesitou e, depois, eles se afastaram juntos.
Brock tirou o chapéu, cortesmente, ao passar por Shevaun, Struan e Zergeyev, mas não se deteve. Estava alegre por Struan ter decidido não montar um dos cavalos, pois não gostava de montar e sua alfinetada em Struan fora involuntária. Maldito seja, pensou.
— Como vai o seu ferimento, Alteza? — perguntou Shevaun.
— Muito bem. Estou quase bom outra vez, graças ao Tai-Pan. — Eu não fiz nada — disse Struan, embaraçado com o elogio de Zergeyev. Notou Blore lá no padoque, em conversa particular com Skinner. Fico imaginando se apostei corretamente no rapaz, pensou.
— Como é modesto, senhor — disse Shevaun a Struan, e fez uma graciosa mesura.
— Não dizem que noblesse oblige? Struan notou a aberta admiração de Zergeyev pela moça.
— Tem um belo navio, Alteza. — A embarcação russa, tinha quatro mastros e uma capacidade de carga de oito toneladas. Muitos canhões.
— Seria uma honra mandar o capitão mostrar-lhe o navio — disse Zergeyev. — Talvez nós possamos falar-lhe de assuntos específicos. Quando estiver preparado.— Obrigado, eu gostaria de fazer isso. — Struan teria continuado, mas Blore se aproximou às pressas, sujo de poeira e exausto.
— Quase pronto para começar, Tai-Pan... está muito bonita, Srta. Tillman, boa-tarde, Alteza — disse ele, correndo. — Todos apostaram no número quarto na quarta, e eu decidi cavalgá-la eu mesmo... ah, sim, Tai-Pan. Examinei o garanhão, a noite passada, Ele aceitou a brida e então poderemos usá-lo na próxima corrida. Alteza, deixe que eu o conduza para sua posição, vai dar partida à primeira volta.
— Ah, é?
— Sua Excelência não lhe falou nisso? Diabo!. .. quero dizer, será que faria esse favor? — Jamais Blore trabalhara com tanto afinco e nem se excitara tanto. — Quer me acompanhar, por favor? Guiou Zergeyev apressadamente, através da multidão.
— Blore é um rapaz simpático — disse Shevaun, satisfeita por estar, afinal, a sós com Struan. — Onde o encontrou?
— Ele me encontrou — disse Struan. — E estou satisfeito com isso.
Sua atenção foi distraída por uma discussão perto de uma das tendas. Um grupo de soldados-guardas estava expulsando um chinês do cercado. O chapéu do cule caiu e, com ele, o longo rabicho. O homem era Aristotle Quance.
— Desculpe-me por um segundo — disse Struan. — Ele foi até lá correndo e ficou diante do homenzinho, protegendo-o com seu corpo. — Está tudo bem, rapazes, ele é um amigo meu! — disse.
Os soldados deram de ombros e se afastaram.
— Com todos os raios, Tai-Pan — desabafou Quance, ajeitando suas roupas sujas.
— Salvo no último minuto. Que Deus o abençoe!
Struan empurrou o chapéu de cule outra vez na cabeça de Quance e o puxou para baixo de uma das abas da tenda.
— Que diabo está você fazendo aqui? — sussurrou.
— Eu tinha de ver as corridas, por Deus! — disse Quance, ajeitando o chapéu de modo que o rabicho caísse às suas costas. .. e queria falar com você.
— Isso não é hora! Maureen está em meio à multidão, em algum lugar.
Quance empalideceu.
— Que Deus me proteja!
— Sim, muito embora eu não saiba por que Ele iria fazer isso. Suma, enquanto ainda está salvo. Ouvi dizer que ela comprou passagem para a Inglaterra, na próxima semana. Se suspeitar... bom, você pode imaginar por si mesmo!
— Só a primeira corrida, Tai-Pan? — implorou Quance. — Por favor. E tenho uma informação para você.
— O quê?
Para choque de Struan, Quance lhe contou a respeito do que Gorth fizera com a prostituta.
— Que horror! A pobre moça está quase morta. Gorth é louco, Tai-Pan. Louco.
— Mande informar-me, se a moça morrer. E então... bom, terei de pensar a respeito do que fazer. Obrigado, Aristotle. Mas suma, enquanto é tempo.
— Só a primeira corrida? Por favor, pelo amor de Deus! Não sabe o que isso significa para um pobre velho!
Struan deu uma olhada em torno. Shevaun, deliberadamente, ignorava-os. Depois, notou Glessing, que passava por perto.
— Capitão!
Quando Glessing reconheceu Quance, seus olhos se reviraram para o céu.
— Por Júpiter! Pensei que já se encontrasse em alto-mar!
— Faça-me um favor, sim? — disse Struan, depressa. — A Sra. Quance está junto ao poste de partida. Quer livrar Aristotle de problemas e afastá-lo do caminho dela? Melhor ainda, leve-o para lá. — Struan apontou para o local onde os chineses estavam dando voltas. — Deixe-o olhar a primeira corrida e, depois, leve-o para casa.
— Pois não. Bom Deus, Aristotle, estou satisfeito de vê-lo — disse Glessing e, depois, dirigindo-se a Struan: — Teve notícias de Culum? Estou terrivelmente preocupado com a Srta. Sinclair.
— Não. Mas eu disse a Culum que fosse vê-la logo ao chegar. Deveremos ter notícias a qualquer momento. Tenho certeza de que ela está bem.
— Espero que sim. Ah, onde devo levar Aristotle depois da corrida?
— Para a casa da Sra. Fortheringill.
— Por Júpiter! Como é aquilo lá, Aristotle? — perguntou Glessing, deixando a curiosidade dominar o que havia de melhor nele.
— É aterrorizante, meu rapaz, aterrorizante. — Quance agarrou-lhe o braço e sua voz ficou rouca. — Não se pode dormir um minuto e a comida é horrível. Só tem quentão para o desjejum, almoço, chá, jantar e ceia. Pode me emprestar alguns guinéus, Tai-Pan?
Struan resmungou e se afastou.
— O que é quentão, Aristotle?
— É, ah... uma espécie de mingau.
Struan tornou a se unir a Shevaun.
— Um amigo seu, Tai-Pan?
— Não é boa política notar alguns amigos, Shevaun.
Ela lhe bateu de leve no braço, com seu leque.
— Não é preciso nunca me advertir a respeito de política, Dirk. Senti sua falta — ela acrescentou, gentilmente.
— Sim — disse ele, percebendo que seria fácil e sensato casar com Shevaun. Mas não é possível. Por causa de May-may, — Por que você quer ser pintada nua? — ele perguntou de repente, e percebeu, pelo relâmpago nos olhos dela, que seu palpite era correto.
— Aristotle disse isso? — a voz dela era neutra.
— Bom Deus, não! Ele jamais faria isso. Mas, há alguns meses, estava a nos atormentar. Disse que tinha uma nova encomenda. Para um nu. Por quê? Ela corou e se abanou, rindo.
— Goya pintou a Duquesa de Alba. Duas vezes, eu acho. Ela se tornou famosa no mundo inteiro. Os olhos dele se enrugaram, de divertimento.
— Você é um demônio, Shevaun. Você realmente o deixou... bom, ver o tema?
— Foi licença poética da parte dele. Discutimos a idéia de dois retratos. Você não aprova?
— Acho que seu tio e seu pai iriam subir pelos ares, se ouvissem falar disso, ou se os retratos caíssem em mãos erradas.
— Você os compraria, Tai-Pan?
— Para esconder?
— Para apreciar.
— Você é uma moça estranha, Shevaun.
— Talvez eu despreze hipocrisia. — Ela o olhou inquisitivamente. — Como você.
— Sim. Mas você é uma moça, num mundo dominado pelos homens, e certas coisas você não pode fazer.
— Há uma porção de “certas coisas” que eu gostaria de fazer.
— Houve vivas e os cavalos começaram a desfilar. Shevaun tomou uma decisão final. — Acho que deixarei a Ásia. Dentro de dois meses.
— Isso soa como uma ameaça.
— Não, Tai-Pan. É apenas porque estou apaixonada... e também apaixonada pela vida. E concordo com você. Que a hora de escolher o vencedor é quando eles estão no portão de partida.
— Ela se abanou, rezando para que seu jogo justificasse o risco.
— Qual você escolhe?
Ele não olhou para os cavalos.
— A potranca, Shevaun — disse, tranqüilamente.
— Qual é o nome dela? — ela perguntou.
— May-may — disse ele, com uma suave luz nos olhos.
O leque de Shevaun hesitou e, depois, continuou como antes.
— Uma corrida jamais está perdida até o vencedor ser julgado e engrinaldado. — Ela sorriu e se afastou, com a cabeça erguida, mais bonita do que nunca. A potranca perdeu a corrida. Só por uma cabeça. Mas perdeu.
— De volta, tão cedo, Tai-Pan? — perguntou May-may, com voz fraca.
— Sim. Cansei da corrida, e estava preocupado com você.
— Eu ganhei?
Ele abanou a cabeça. Ela sorriu e suspirou.
— Ah, está bem, não tem importância. — O branco de seus olhos estava cor-de-rosa e seu rosto pálido sob o dourado.
— O médico esteve aqui? — perguntou Struan.
— Ainda não. — May-may deitou-se de lado, e se encolheu, mas isto não aliviou seu desconforto. Ela afastou o travesseiro, mas também não ajudou, e então recolocou-o no lugar. — Sua pobre velha mãe está mesmo velha demais — disse, com uma tristeza desesperançada.
— Onde dói?
— Em lugar nenhum, em toda parte. Um bom sono vai curar tudo, não se preocupe.
Ele lhe massageou o pescoço e as costas e não quis permitir-se pensar o impensável. Mandou vir chá novo e comida leve e tentou convencê-la a comer, mas ela não tinha apetite algum.
Ao anoitecer, Ah Sam entrou e falou rapidamente com May-may.
— O médico chegou. E Gordon Chen — disse May-may a Struan.
— Ótimo! — Struan se levantou e se espreguiçou.
Ah Sam aproximou-se de uma caixa de jóias e tirou uma pequena estátua de marfim, uma mulher nua deitada de lado. Para pasmo de Struan, May-may apontou para partes da estatueta e falou demoradamente com Ah Sam. Esta fez um aceno afirmativo com a cabeça e saiu, seguida por Struan, completamente confuso.
O médico era um ancião, com um longo rabicho bem oleoso, usando uma roupa negra antiga e surrada. Seus olhos eram claros e alguns cabelos compridos cresciam numa verruga em sua face.Ele tinha dedos longos e finos e as costas de suas mãos magras eram cheias de veias azuis.
— Sinto muito, Tai-Pan — disse Gordon, e fez uma curvatura, juntamente com o médico. — Este é Kee Fa Tan, o melhor médico do Tai Ping Shan. Viemos tão rápido quanto pudemos.
— Obrigado. É melhor virem por... — Ele parou. Ah Sam se aproximara do médico, fizera uma profunda curvatura e lhe mostrara a estátua, indicando partes dela, da mesma maneira que May-may. E agora respondia a perguntas, loquazmente.
— Que diabo ele está fazendo?
— Dando um diagnóstico — disse Gordon Chen, ouvindo atentamente Ah Sam e o médico.
— Com a estátua?
— Sim. Pareceria impróprio para ele ver a Senhora sem necessidade, Tai-Pan. Ah Sam está explicando onde são as dores. Por favor, tenha paciência, tenho certeza de que não é grave.
O médico contemplou a estátua em silêncio. Finalmente, ergueu os olhos para Gordon e disse alguma coisa, com brandura.
— Ele diz que o diagnóstico não é fácil. Com sua permissão, gostaria de examinar a Senhora. Fervendo de impaciência, Struan mostrou o caminho até o quarto. May-may deixara cair as cortinas que rodeavam a cama. Era apenas uma discreta sombra, por trás delas.
O médico foi à cabeceira de May-may e, outra vez, ficou em silêncio. Depois de alguns minutos, falou tranqüilamente. Obedientemente, a mão esquerda de May-may saiu de debaixo das cortinas. O médico tomou-lhe a mão e examinou-a com muita atenção. Depois, colocou os dedos em seu pulso e fechou os olhos. Seus dedos começaram a bater suavemente na pele.
Os minutos se passaram. Os dedos batiam devagar, como se procurassem algo impossível de achar.
— O que ele está fazendo agora? — perguntou Struan.
— Auscultando-lhe o pulso, senhor — sussurrou Gordon. — Precisamos ficar muito silenciosos. Há nove pulsos em cada punho. Três na superfície, três um pouco mais abaixo e mais três muito profundos. Estes lhe dirão a causa da doença. Por favor, Tai-Pan, seja paciente. É muito difícil escutar com os dedos.
As batidas de dedos continuaram. Era o único som na cabina. Ah Sam e Gordon Chen olhavam fascinados. Struan mexeu-se, desajeitadamente, mas não fez nenhum som. O médico parecia estar num devaneio místico. Depois, de repente — como se encontrassem uma presa fugidia — as batidas pararam e o médico fez uma forte pressão. Por um minuto, ficou como uma estátua. Depois, deixou o pulso cair sobre a colcha da cama, e May-may, silenciosamente, deu-lhe o pulso direito, e ele repetiu o procedimento.
E, outra vez, após muitos minutos, as batidas cessaram, abruptamente. O médico abriu os olhos, suspirou e colocou o pulso de May-may sobre a colcha. Fez sinal para Gordon Chen e para Struan. Gordon Chen fechou a porta atrás deles. O médico riu suavemente, com nervosismo, e começou a falar de maneira tranqüila e rápida. Os olhos de Gordon se arregalaram.
— O que há? — disse Struan, asperamente.
— Eu não sabia que a Mãe estava grávida, Tai-Pan. — Gordon virou-se outra vez para o médico e fez uma pergunta e o médico respondeu longamente. Depois, houve um silêncio.
— Bom, que diabo ele disse?
Gordon olhou para ele e tentou, sem conseguir, aparentar calma.
— Ele diz que Mãe está muito doente, Tai-Pan. Que um veneno lhe entrou no sangue, através dos membros inferiores. Este veneno centralizou-se em seu fígado e o fígado está agora — ele procurou a palavra — mal-ajustado. Logo haverá febre, muita febre. Uma febre alta. E depois de três ou quatro dias, novamente febre. Repetidas vezes.
— Malária? A febre do Vale Feliz?
Gordon se virou e fez a pergunta.
— Ele diz que sim.
— Todos sabem que são os gases noturnos... e não um veneno através da pele, por Deus — ele gritou para Gordon. — Há semanas que ela não vai lá! Gordon encolheu os ombros.
— Só estou dizendo o que ele diz, Tai-Pan. Não sou médico. Mas eu confiaria neste médico... acho que deve confiar.
— Qual é a cura?
Gordon perguntou ao médico.
— Ele diz, Tai-Pan: “Tratei de alguns daqueles que sofriam do veneno do Vale Feliz. As recuperações bem-sucedidas foram de homens fortes, que tomaram um certo remédio antes do terceiro ataque da febre. Mas esta paciente é uma mulher, e embora tenha vinte e um anos e seja forte, com um espírito de fogo, toda sua força está indo para o filho que está com quatro meses em seu útero”. — Gordon parou, constrangido. — Ele teme pela vida da Senhora e da criança.
— Diga-lhe que traga o remédio e trate dela agora. Não depois de nenhum ataque.
— Esse é o problema. Ele não pode, senhor. Não sobrou nenhum remédio.
— Então lhe diga para conseguir algum, por Deus!
— Não existe nenhum em Hong Kong, Tai-Pan. Ele tem certeza.
O rosto de Struan se ensombreceu.
— Deve haver algum. Diga-lhe para conseguir... custe o que custar.
— Mas, Tai-Pan, ele...
— Pelo sangue de Deus, diga a ele! Outra vez, houve uma conversa.
— Ele diz que não existe nenhum em Hong Kong, não haverá nenhum em Macau e nem em Cantão. Que o remédio é feito com a casca de uma árvore muito rara, que cresce em alguma parte nos Mares do Sul, ou em terras do outro lado do oceano. A pequena quantidade que ele tinha veio de seu pai que também era médico, e que a recebeu de seu pai. — Gordon acrescentou, desamparadamente: — Ele diz que tem completa certeza de que não há mais.
— Vinte mil taéis de prata, se ela for curada.
Os olhos de Gordon se arregalaram. Ele pensou um momento e depois falou rapidamente com o médico. Ambos fizeram curvaturas e saíram correndo. Struan tirou seu lenço, enxugou o suor do rosto e caminhou de volta para o quarto.
— Olá, Tai-Pan — disse May-may, com voz ainda mais fraca. — Qual o meu pagode?
— Eles foram pegar um remédio especial que a curará. Não precisa se preocupar.
Ele a ajeitou o melhor que pôde, com a mente atormentada. Depois, correu para a nau capitania e perguntou ao médico-chefe da Marinha a respeito da casca de árvore.
— Sinto muito, meu caro Sr. Struan, mas esta é uma história da carochinha. Existe uma lenda a respeito da Condessa Cinchón, mulher do vice-rei espanhol no Peru, que introduziu na Europa uma casca de árvore vinda da América do Sul, no século dezessete.
Era conhecida como “casca de árvore dos jesuítas” e, algumas vezes, como “casca de árvore cinchona”. Transformada em pó e tomada com água, segundo se supunha curava a febre. Mas, quando foi tentada na índia, falhou completamente. Era inútil! Os malditos papistas dizem qualquer coisa para conseguir convertidos.
— Onde diabo posso obter um pouco dessa casca?
— Realmente não sei, meu caro senhor, no Peru, suponho. Mas, por que sua ansiedade? A Cidade da Rainha está abandonada, agora. Não precisa se preocupar, se não está respirando o gás noturno.
— Um amigo acaba de adoecer com malária.
— Ah! Então é bom dar um forte purgativo calomelo. Logo que possível. Não posso prometer nada, naturalmente. Faremos sangrias, imediatamente.
Struan tentou, em seguida, o médico-chefe do Exército e, sucessivamente, à medida que o tempo passava, todos os médicos de menor importância — tanto militares como civis — e todos lhe disseram a mesma coisa.
Então, Struan lembrou-se de que Wilf Tillman estava vivo. Foi apressadamente para o pontão de transporte de ópio de Cooper-Tillman.
E todo esse tempo, enquanto Struan questionava os médicos, Gordon Chen voltara ao Tai Ping Shan e mandara chamar os dez líderes da Tríade que estavam sob seu comando. Depois, eles foram para seus quartéis-generais e mandaram chamar os dez líderes sob o comando de cada um deles. Espalhou-se a notícia, com incrível rapidez, de que uma certa casca, de uma certa árvore, deveria ser encontrada. Por sampana, por junco, a notícia se filtrou, através do porto, até Kowloon, logo chegando a povoados e vilas, burgos e cidades. Em toda extensão da costa, no continente. Logo todos os chineses de Hong Kong — pertencentes ou não à Tríade — sabiam que estava sendo procurada uma rara casca de árvore. Não sabia por quem, e nem qual a razão: só que uma grande recompensa era oferecida. E a história caiu nos ouvidos dos agentes anti-Tríade dos mandarins. Eles começaram a procurar a casca de árvore, e não só por causa da recompensa; sabiam que uma porção da casca poderia, talvez, ser usada como isca para desmascarar os líderes da Tríade.
— Desculpe chegar sem ser convidado, Wilf. Eu — Struan parou, alarmado com a visão de Tillman.
Tillman estava enterrado num travesseiro, encharcado de suor, com o rosto esquelético — cor de linho antigo não lavado — os brancos dos alhos de um amarelo sujo.
— Entre — disse ele, com voz mal audível. E então Struan viu que Tillman, cujos dentes eram bonitos, fortes e brancos, estava agora desdentado.
— O que aconteceu com seus dentes?
— Calomelo. Afeta algumas pessoas... — À voz de Tillman se arrastava, monotonamente. E seus olhos ganharam um brilho curioso. — Eu estava esperando por você. A resposta é não!
— O quê?
— Não. Um simples não. — A voz de Tillman ficou mais forte. — Sou o tutor dela, e ela jamais se casará com você.
— Não vim aqui pedir a mão dela. Só vim ver como você estava e como a malária...
— Não acredito em você. — A voz de Tillman se elevou, histericamente. — Você está, simplesmente, esperando que eu morra!
— Isso é ridículo! Por que eu iria querer que você morresse? Tillman, fracamente, ergueu a campainha que estava na fétida colcha da cama e a tocou. A porta se abriu e um negro alto, escravo de Tillman, entrou descalço.
— Jebidiah, peça ao Sr. Cooper e à senhorita para virem aqui imediatamente. Jebidiah fez um aceno afirmativo com a cabeça e fechou a porta.
— Ainda vendendo seres humanos. Wilf?
— Jebidiah está contente de ser quem é, vá para o inferno! Você tem sua maneira de ser e nós temos a nossa, seu porco maldito!
— Maldita seja sua maneira de ser, maldito traficante de escravos!
O segundo navio em que Struan trabalhara estava gravado em sua memória e, vez por outra, ele tinha pesadelos de que estava a bordo, outra vez. Com sua parte do dinheiro do prêmio de Trafalgar, comprara sua saída da Marinha e se empregara como cabineiro num navio mercante inglês que fazia a travessia do Atlântico. Só em alto-mar descobriu que se tratava de uma embarcação ilícita, dedicada ao comércio de escravos, que ia buscálos em Dacar e, depois, cruzava o Atlântico Sul, enfrentando as calmarias, até Savannah, com os homens, mulheres e crianças comprimidos no porão como animais. Seus gritos e gemidos agonizantes encheram-lhe os ouvidos e o fedor o sufocou, semana após semana. Ele era um menino de oito anos, desprotegido. Desertou em Savannah. Foi o único navio de que desertou, em toda sua vida.
— Você é pior do que os traficantes de escravos — disse, com voz dura. — Compra a carne, põe em bloco e pega o lucro. Já yi um mercado de escravos.
— Nós os tratamos bem! — gritou Tillman. — São apenas selvagens e nós lhes damos uma boa vida. É verdade! — Seu rosto se contorceu, enquanto jazia deitado, lutando para ganhar forças, desesperado de inveja da vitalidade e da saúde de Struan, sentindo-se perto da morte. — Você não vai se beneficiar com a minha morte, que Deus o amaldiçoe pela eternidade!
Struan virou-se para a porta.
— É melhor você esperar. O que tenho para dizer lhe interessa.
— Nada que você possa dizer me interessa!
— Você me chama de vendedor de escravos? Como você conseguiu sua amante, maldito hipócrita? A porta se abriu com violência e Cooper entrou às pressas.
— Ah, olá, Tai-Pan! Não sabia que estava a bordo.
— Olá, Jeff — disse Struan, mal conseguindo controlar sua raiva.
Cooper olhou para Tillman.
— O que há, Wilf?
— Nada. Queria ver você e minha sobrinha. Shevaun entrou e parou, surpreendida.
— Olá, Tai-Pan. Está bem, tio?
— Não, filha. Eu me sinto muito mal.
— O que há, Wilf? — perguntou Cooper.
Tillman tossiu, fracamente.
— O Tai-Pan veio fazer uma “visita”. Pensei que esta é uma ocasião perfeita para resolver um assunto importante. Devo ter outro ataque de febre amanhã e acho... bom — os olhos sem vida voltaram-se para Shevaun. — Estou orgulhoso de lhe dizer que Jeff pediu formalmente sua mão em casamento e aceitei com alegria.
Shevaun empalideceu.
— Não quero me casar ainda.
— Considerei tudo com muito cuidado e...
— Não vou casar!
Tillman se apoiou num cotovelo, com grande esforço.
— Agora, você escute! — ele gritou, fortalecido pela raiva. — Sou seu tutor legal. Durante meses, tenho mantido correspondência com seu pai. Meu irmão aprovou formalmente a união, se eu decidisse que era vantajosa para você. E eu decidi que é. Portanto...
— Mas eu não decidi, tio. Estamos no século dezenove, e não na Idade Média. Não quero casar ainda.
— Não estou preocupado com seus desejos, e você tem toda razão, estamos no século dezenove. Você está prometida. Você vai se casar. A esperança de seu pai e a minha era de que, durante sua visita aqui, Jeff gostasse de você. Ele gostou. — Tillman se deixou cair de costas, exausto. — É um casamento muito bom. E não há mais nada a discutir.Cooper aproximou-se de Shevaun.
— Shevaun, querida, você sabe como eu me sinto. Eu não tinha nenhuma idéia de que Wilf estava... Esperei que, bom... Ela se afastou dele, num recuo, e seus olhos encontraram os de Struan.
— Tai-Pan! Diga a meu tio. Diga-lhe que ele não pode fazer isso... ele não pode prometer minha mão... diga a ele que não pode!
— Quantos anos você tem, Shevaun? — perguntou Struan.
— Dezenove.
— Se seu pai aprovar e seu tio também, você não tem escolha. — Olhou para Tillman. — Suponho que você pôs isso por escrito? Tillman fez um sinal em direção à escrivaninha.
— A carta está ali. Embora você não tenha nada a ver com isso.
— É a lei, Shevaun. Você é menor, portanto obrigada a fazer o que seu pai quiser.
— Struan, tristemente, virou-se para a porta, mas Shevaun o deteve.
— Sabe por que eu estou sendo vendida? — ela exclamou.
— Cale a boca, menina! — gritou Tillman. — Você não me trouxe outra coisa senão problemas, desde que chegou aqui, e é tempo de aprender boas maneiras e respeito pelos mais velhos e por seus superiores.
— Estou sendo vendida por ações — ela disse, com amargura. — Da Cooper-Tillman.
— ‘Não é verdade! — disse Tillman, com o rosto cadavérico.
— Shevaun, você está superexcitada — começou Cooper, todo infeliz. — Foi tudo muito repentino e... Struan começou a se afastar, mas ela o deteve.
— Espere, Tai-Pan. É um trato. Sei como funciona a mente de um político. A política é um negócio caro.
— Cale a boca! — gritou Tillman, e depois gemeu de dor e tornou a cair na cama.
— Sem a renda vinda daqui — ela continuou, depressa, trêmula — papai não pode custear sua campanha como senador. O tio é o irmão mais velho e, se o tio morrer, Jeff pode comprar os interesses de Tillman por uma soma nominativa, e então...
— Ora, Shevaun — interrompeu bruscamente Cooper. — Isto nada tem a ver com meu amor por você. Quem você pensa que eu sou?
— Seja honesto, Jeff. É verdade, não. Sobre a soma nominativa?
— Sim — disse Cooper, depois de uma pausa sombria. — Posso comprar os interesses de Tillman nessas circunstâncias. Mas não fiz esse acordo. Não estou comprando uma escrava. Eu amo você. Quero que seja minha mulher.
— E se eu não for, você não comprará os interesses do tio?
— Não sei. Decidirei quando chegar a hora. Seu tio poderia comprar minhas ações, se eu morresse antes dele. Shevaun virou-se para Struan.
— Por favor, compre-me, Tai-Pan.
— Não posso, garota. Mas também não acho que Jeff esteja comprando você. Eu sei que ele está apaixonado por você.
— Por favor, compre-me — ela disse, com voz trêmula.
— Não posso, garota. É contra a lei.
— Não é. Não é. — Ela chorava incontidamente. Cooper abraçou-a, atormentado. Quando Struan voltou para o Resting Cloud, May-may ainda estava dormindo, tranqüilamente.
Enquanto a vigiava, ele ficou imaginando, obtusamente, o que fazer com relação a Gorth e Culum. Sabia que deveria ir para Macau, imediatamente. Mas não até May-may estar curada — ah, Deus, fazei com que ela se cure. Devo mandar o China Cloud, com Orlov? Talvez Mauss? Ou esperar? Eu disse a Culum para se proteger — mas será que ele fará isso? Ah, Jesus Cristo, ajudai May-may.
À meia-noite, houve uma batida na porta.
— Sim?
Lim Din entrou maciamente. Ele olhou para May-may e suspirou.
— Senhor gordo veio ver Tai-Pan, pode?
As costas e o pescoço de Struan doíam e ele tinha a cabeça pesada, enquanto subia o passadiço até seus alojamentos, no próximo convés.
— Desculpe chegar sem ser convidado e tão tarde, Tai-Pan — disse Morley Skinner, erguendo de uma cadeira seu corpanzil gorduroso e suado. — É, um tanto importante.
— Sempre fico satisfeito de me encontrar com a imprensa, Sr. Skinner. Sente-se. Quer uma bebida? — tentou desviar seus pensamentos de May-may e se forçou a concentrar-se, sabendo que aquela não era uma visita casual.
— Obrigado. Uísque.
Skinner deu uma olhada no rico interior da grande cabina: tapetes chineses verdes sobre os conveses bem esfregados; cadeiras e sofás e o odor de couro limpo e oleado, sal e alcatrão; e o fraco e doce e oleoso cheiro de ópio, vindo dos porões abaixo. Lâmpadas a óleo bem-arrumadas forneciam uma luz pura e cálida e lançavam sombras às vigas do convés principal. Comparava tudo com o galpão que tinha em Hong Kong — um quarto miserável, sujo e fedorento, sobre o grande cômodo que abrigava a impressora.
— É uma gentileza sua me ver, tão tarde — disse ele. Struan ergueu seu copo.
— Saúde!
— Sim, “saúde”. É um bom brinde, nesses dias ruins. Com malária e tudo mais. — Os olhinhos de porco se estreitaram. — Ouvi dizer que tem um amigo com malária.
— Sabe onde encontrar cinchona?
Skinner abanou a cabeça.
— Não, Tai-Pan. Tudo que já li a respeito diz que isso é uma história fantástica. Lenda. — Puxou a prova de um exemplar do semanário Oriental Times e entregou-a a Struan. — Achei que gostaria de ver o editorial a respeito das corridas de hoje. Vou tirar uma edição especial amanhã.
— Obrigado. Foi por isso que veio me ver?
— Não, senhor — Skinner deu goles sedentos no uísque e olhou para o copo vazio.
— Sirva-se, se quiser outro.
— Obrigado — Skinner se arrastou até o garrafão, com as nádegas elefantinas meneando-se. — Queria ter a sua forma, Sr. Struan.
— Então, não coma tanto.
Skinner riu.
— Comer nada tem a ver com a gordura. A pessoa é gorda ou não é. Uma dessas coisas que o Senhor Deus estabelece, quando se nasce. Sempre fui corpulento. — Encheu
o copo e voltou. — Uma informação me chegou às mãos, a noite passada. Não posso revelar a fonte, mas queria discuti-la com o senhor, antes de publicá-la.
Que podre você farejou, meu bom amigo?, pensou Struan. Há tantos para escolher. Só espero que seja o certo.
— É verdade que sou proprietário do Oriental Times, sim. Pelo que sei, só nós dois temos conhecimento disso. Mas, eu nunca lhe disse o que publicar ou não. Você é o diretor e o editor. É totalmente responsável e, se publicar ataques a alguém, é quem será processado. Por quem quer que seja o ofendido.
— Sim, Sr. Struan. E aprecio a liberdade que me dá. — Os olhos pareceram afundar mais, nos rolos de geléia. — A liberdade exige responsabilidade... perante si próprio, o jornal, a sociedade. Não necessariamente nesta ordem. Mas isto é diferente, as...como direi?... “potencialidades” são de longo alcance. — Puxou um pedaço de papel. Estava coberto com hieróglifos escritos às pressas que só ele poderia ler. Ergueu os olhos. — O Tratado de Chuenpi foi repudiado pela Coroa e Hong Kong junto com ele.
— Isso é uma piada, Sr. Skinner? — Struan ficou imaginando quão convincente fora Blore. Será que você apostou corretamente, meu rapaz?, perguntou a si mesmo. O jovem tem um excelente senso de humor: O garanhão aceitou a brida. Cavalos de caneta seriam mais aptos.
— Não, senhor — disse Skinner. — Talvez seja melhor eu ler.
E leu tudo, quase palavra por palavra, que Sir Charles Crosse escrevera, e que Struan dissera a Blore para soprar secretamente nos ouvidos de Skinner. Struan decidira que Skinner era a pessoa indicada para agitar os negociantes até um estado de fúria que os levasse todos, cada qual à sua maneira, a se recusar a deixar Hong Kong perecer; a fazerem agitação, como haviam feito há tantos anos e, afinal, dominado a Companhia das Índias Orientais.
— Não acredito nisso.
— Acho que talvez devesse acreditar, Tai-Pan. — Skinner esvaziou o copo. — Posso?
— Claro. Traga o garrafão para cá. Vai evitar suas idas e vindas. Quem lhe deu a informação?
— Não posso dizer-lhe.
— E, se eu insistir?
— Ainda assim, não lhe direi. Isto destruiria meu futuro como jornalista. Há questões éticas muito importantes envolvidas. Struan testou-o.
— Um jornalista precisa ter um jornal — ele disse, bruscamente.
— É verdade. Esse é o risco que estou correndo ao falar com o senhor. Mas, se quer pôr as coisas nesses termos, ainda assim não lhe contarei.
— Tem certeza de que é verdade?
— Não. Mas acredito que seja.
— Qual a data do despacho? — perguntou Struan.
— 27 de abril.
— E acredita, seriamente, que possa ter chegado aqui tão depressa? Ridículo!
— Eu disse a mesma coisa. Mas ainda acho que a informação é verdadeira.
— Se for verdadeira, então estamos todos arruinados.
— Provavelmente — disse Skinner.
— Não provavelmente... com toda certeza.
— O senhor se esquece do poder da imprensa e do poder coletivo dos negociantes.
— Não temos nenhum poder contra o Ministro de Relações Exteriores. E o tempo age contra nós. Vai publicar isso?
— Sim. Na ocasião certa. Struan movimentou o copo e ficou a observar as lanternas bruxuleando, com suas bordas chanfradas.
— Acho que, quando fizer isso, haverá um pânico monumental. E Longstaff o repreenderá, imediatamente.
— Não estou preocupado com isso, Sr. Struan.
Skinner estava perplexo; Struan não reagia como ele esperava. A menos que o Tai-Pan já soubesse, disse a si próprio, pela centésima vez. Mas não faz sentido ele ter mandado Blore a mim. Blore chegou há uma semana — e, esta semana, o Tai-Pan investiu muitos milhares de taéis em Hong Kong. Seria ação de um louco. Então Blore serviu de correio para quem? Brock? É pouco provável. Porque ele está gastando tão grandes somas quanto Struan. Deve ser o almirante — ou o general — ou Monsey. Monsey! Quem, senão Monsey tem essas ligações de alto nível? Quem, senão Monsey, detesta Longstaff e quer o seu lugar? Quem, senão Monsey, está vitalmente interessado em que Hong Kong seja bem-sucedida? Porque, sem este sucesso, Monsey não tem nenhum futuro no Corpo Diplomático.
— Parece que Hong Kong está morta. Todo dinheiro e esforço que dispendeu nela... que todos dispendemos... será jogado fora.
— Hong Kong não pode acabar. Sem a ilha, todos os futuros portos continentais que tivermos serão lixo.
— Eu sei, senhor. Todos sabemos.
— Sim. Mas o Ministro de Relações Exteriores pensa de outra maneira. Por quê? Eu fico imaginando por quê. E o que, possivelmente, poderíamos fazer? Como convencê-lo, hein? Como?
Skinner era tão favorável a Hong Kong como Struan. Sem Hong Kong, não haveria Casa Nobre. E, sem Casa Nobre não haveria nenhum semanário Oriental Times e nem emprego algum.
— Talvez não seja preciso nós convencermos aquele patife — disse ele, bruscamente, com os olhos gelados.
— Hein?
— Aquele patife nem sempre estará no poder.
O interesse de Struan aumentou. Esta era uma nova perspectiva, e inesperada. Skinner era um leitor voraz de todos os jornais e periódicos e um homem muito bem informado a respeito de questões parlamentares “publicadas”. Ao mesmo tempo – com uma memória extraordinária e um profundo interesse pelas pessoas — Skinner tinha múltiplas fontes de informação.
— Acha que existe uma chance de mudança de governo?
— Aposto dinheiro que Sir Robert Peel e os Conservadores vão derrubar os Whigs este ano.
— É um jogo diabolicamente perigoso. Eu próprio poria dinheiro contra você.
— Apostaria o Oriental Times contra a queda dos Whigs dentro de um ano... e que Hong Kong será mantida pela Coroa?
Struan estava cônscio de que uma aposta assim colocaria Skinner completamente de seu lado e o jornal seria um preço pequeno a pagar. Mas uma rápida concordância mostraria suas intenções.
— Você não tem a menor possibilidade no mundo de ganhar essa aposta.
— É muito boa, Sr. Struan. O inverno na Inglaterra, ano passado, foi um dos piores que já houve... do ponto de vista econômico e industrial. O desemprego é incrível. As colheitas foram terríveis. Sabe que o preço do pão subiu até um xelim e dois penies por unidade, segundo a correspondência da semana passada? O torrão de açúcar está custando oito penies por libra; o chá sete xelins e oito penies; o sabão nove penies cada; os ovos estão a quatro xelins a dúzia. As batatas um xelim a libra. O bacon três xelins e seis penies a libra. Vejamos, agora, os salários; artesãos de todos os tipos, pedreiros, bombeiros, carpinteiros... na maioria ganham dezessete xelins e seis penies por semana, por sessenta e quatro horas de trabalho; os trabalhadores rurais, nove xelins por semana, por Deus sabe quantas horas; operários de fábricas cerca de quinze xelins... isto, se conseguirem encontrar trabalho. Bom Deus, Sr. Struan, o senhor vive no alto da montanha, com uma incrível riqueza que lhe permite dar mil guinéus a uma moça, só porque tem um vestido bonito, e então não sabe, não pode saber que uma pessoa em cada nove, na Inglaterra, é indigente. Em Stockton, quase dez mil pessoas ganharam menos de dois xelins por semana, o ano passado. Trinta mil, em Leeds, menos de um xelim. Quase todos estão passando fome, e somos a nação mais rica da terra. Os Whigs estão com a cabeça na forca e não querem encarar o que todos percebem ser absurdamente injusto. Nada fizeram com relação aos Cartistas, a não ser fingir que são anarquistas. Não querem enfrentar as terríveis condições existentes nos moinhos e fábricas. Bom Cristo, crianças de seis ou sete anos estão trabalhando em jornada de doze horas, e as mulheres também, e representam trabalho barato, então põem os homens na rua. Por que deveriam os Whigs fazer alguma coisa? Possuem a maior parte das fábricas e moinhos. E o dinheiro é o deus deles... cada vez mais, sempre mais, e o resto das pessoas que vá para o inferno. Os Whigs não querem enfrentar o problema irlandês. Meu Deus, houve inanição no ano passado, e de novo este ano, toda Irlanda estará em rebelião outra vez, e já era tempo. E os Whigs não moveram um dedo para reformar o sistema bancário. Por que iriam fazer isso... também possuem os bancos! Veja sua própria falta de sorte! Se tivéssemos uma lei adequada para proteger os depositantes contra as malditas maquinações, contra os malditos Whigs... — ele parou, com um esforço, as mandíbulas tremendo e o rosto corado. — Desculpe, eu não pretendia fazer um discurso. Claro que os Whigs têm de cair. Eu diria que, se não caírem nos próximos seis meses, haverá um banho de sangue na Inglaterra que fará a Revolução Francesa parecer um piquenique. O único homem que pode nos salvar é Sir Robert Peel, por tudo que é sagrado!
Struan lembrou-se do que Culum dissera a respeito da situação na Inglaterra. Ele e Robb haviam dado pouca atenção, considerando suas palavras como divagações de um estudante universitário. E ele não levara muito em conta as coisas que seu próprio pai escrevera, considerando-as desimportantes.
— Se Lord Cunnington cair, quem será o próximo Ministro de Relações Exteriores?
— O próprio Sir Robert. Se não for ele, Lord Aberdeen.
— Mas ambos são contra o livre comércio.
— Sim, mas os dois são liberais e pacíficos. E, uma vez no poder, terão de mudar. Sempre que a oposição ganha o poder e a responsabilidade, muda. O livre comércio é a única maneira pela qual a Inglaterra poderá sobreviver, sabe disso, e, então, terão de apoiá-lo. E precisarão de todo apoio que puderem, dos poderosos e dos ricos.
— Está dizendo que eu deveria apoiá-los?
— O Oriental Times, com a chave, o estoque e a impressora, contra uma queda dos Whigs este ano.
— Acha que pode contribuir para isso?
— Quanto a Hong Kong, ah, sim, sim.
Struan ajeitou sua bota esquerda, para ficar mais confortável, e se recostou na cadeira, outra vez. Deixou que se fizesse um silêncio.
— Cinqüenta por cento das ações, e faço um acordo — disse.
— Tudo ou nada.
— Talvez eu devesse pô-lo para fora e acabar com tudo.
— Talvez devesse. Tem riqueza mais do que suficiente para durar sempre, para si e os seus. Estou lhe perguntando quanto quer Hong Kong... e o futuro da Inglaterra. Acho que tenho uma solução.
Struan se serviu de mais uísque e encheu outra vez o copo de Skinner.
— Feito. Tudo ou nada. Quer cear comigo? Sinto-me um tanto faminto.
— Sim, aceito. Obrigado. Falar dá fome. Muito obrigado. Struan tocou a campainha e abençoou seu pagode por ter arriscado. Lim Din veio e ele pediu comida.
Skinner bebia sofregamente seu uísque e agradecia a Deus por ter julgado o Tai-Pan corretamente.
— Não lamentará isso, Tai-Pan. Ouça um momento. A perda de Longstaff... sei que ele é um amigo seu, mas estou falando de um ponto de vista político... é uma grande sorte para Hong Kong. Em primeiro lugar, ele é de alta estirpe, em segundo é um Whig e, em terceiro, um tolo. Sir Clyle Whalen é filho de um proprietário rural, em segundo lugar não é nenhum tolo e, em terceiro, trata-se de um homem de ação. Em quarto lugar, conhece a índia... passou trinta anos a serviço da Companhia das Índias Orientais. Antes disso, pertencia à Marinha Real. Finalmente, o que é o mais importante de tudo, embora seja, externamente, um Whig, tenho certeza de que deve, em segredo, odiar Cunnington e o atual governo, e tudo faria para provocar sua derrubada.
— Por quê?
— Ele é irlandês. Cunnington tem sido a ponta de lança da maior parte da legislação referente à Irlanda, no curso dos últimos quinze anos, e é diretamente responsável... todos os irlandeses sentem isso... pela desastrosa política que a Inglaterra tem adotado com relação à Irlanda. Esta é a chave para chegar a Whalen, se descobrirmos uma maneira de explorá-la. — Skinner mastigava a unha do polegar manchada de tinta.
Lim Din e outro criado voltaram com pratos de carnes frias, salsichas em salmoura, carnes doces, pastéis frios, tortas frias e grandes canecões de cerveja fresca, além de champanha, num balde de gelo.
Skinner sorriu, cobiçosamente.
— Um festim próprio para um dono de fábrica!
— Próprio para um dono de jornal! Sirva-se.
A mente de Struan fervia. Como dobrar Whalen? Será que os Whigs cairão? Devo colocar meu poder a serviço dos Conservadores, agora? Parar de apoiar homens como Crosse? Já agora circularão na Inglaterra notícias de que a Casa Nobre ainda é a Casa Nobre e mais forte do que nunca. Devo apostar em Sir Robert Peel?— Quando publicar o seu despacho, todos serão tomados de pânico — ele disse, aproximando-se da caça.
— Sim, senhor Struan. Mas sou profundamente contrário à perda de Hong Kong, e penso também no futuro do meu jornal. — Skinner enfiou mais comida na boca, e conversava enquanto mastigava. — Mas há maneiras e maneiras de apresentar uma notícia. É isso que torna o trabalho em jornal tão excitante. — Riu, e um pouco da comida escorreu-lhe pelo queixo. — Ah, sim, tenho o futuro do meu jornal para pensar. — Voltou toda sua atenção para a comida e comeu, monstruosamente.
Struan comeu pouco, perdido em seus pensamentos. Afinal, quando até mesmo Skinner já estava farto, ele ficou em pé e lhe agradeceu pela informação e pelos conselhos.
— Eu lhe informarei em particular, antes de publicar o despacho — disse Skinner, inchado. — Será dentro de uns poucos dias, mas preciso de tempo para planejar. Obrigado, Tai-Pan. — Ele foi embora.
Struan desceu. May-may ainda estava desassossegada, em seu sono. Ele mandou fazer uma tarimba no quarto dela e se deixou mergulhar num meio-sono. Ao amanhecer, May-may começou a tremer. Havia gelo em suas veias, em sua cabeça e em seu útero. Era o décimo quinto dia.
May-may se encontrava deitada, frágil e desamparada como um bebê, sob o peso de doze cobertores. Seu rosto estava cinzento, os olhos horríveis. Por quatro horas, seus dentes bateram. Depois, abruptamente, os calafrios se transformaram em febre. Struan banhou-lhe o rosto com água gelada, mas isto não trouxe nenhum alívio. May-may entrou em delírio. Agitava-se na cama, resmungando e gritando, numa mistura incoerente de chinês e inglês, consumida pelo fogo terrível. Struan a segurava e tentava confortá-la, mas ela não o reconhecia, não o escutava.
A febre desapareceu tão depressa como viera. O suor escorria de May-may, encharcando-lhe as roupas e os lençóis. Seus lábios se partiram ligeiramente e ela proferiu um gemido extático de alívio. Seus olhos se abriram e, aos poucos, começaram a focalizar as coisas.
— Sinto-me tão bem, tão cansada — ela disse, fracamente. Struan ajudou Ah Sam a mudar os travesseiros, lençóis é roupas ensopados.
Então May-may dormiu — como dormem os mortos, inerte. Struan sentou-se numa cadeira e ficou a observá-la. Ela acordou após seis horas, serena mas esgotada.
— Olá, Tai-Pan. Estou com a febre do Vale Feliz?
— Sim. Mas o seu médico tem um remédio que pode curá-la. Ele vai consegui-lo dentro de um ou dois dias.
— Bom. Muito bom. Não se preocupe, não tem importância.
— Por que está sorrindo, garota?
— Ah — ela disse, e fechou os olhos, satisfeita, enfiando-se mais entre os lençóis e travesseiros limpos. — De que outra maneira se pode dominar o pagode? Se a pessoa sorri quando perde, então ganha na vida.
— Você vai ficar boa — disse ele. — Completamente boa. Não se preocupe.
— Não tenho preocupações por mim. Só por você.
— O que você quer dizer? — Struan estava exausto com sua vigília, e angustiado com o fato de que ela parecia mais magra do que antes, fantasmagórica, com os olhos cercados por sombras profundas. E envelhecida.
— Nada. Gostaria de tomar um pouco de sopa. Um pouco de sopa de frango.
— O médico mandou alguns remédios para você. A fim de que se sinta mais forte.
— Ótimo. Eu me sinto fantasticamente fraca. Tomarei o remédio, depois da sopa. Ele mandou vir a sopa e May-may bebeu um pouquinho, depois se deitou outra vez.
— Agora descanse, Tai-Pan — disse ela. Franziu a testa. — Quantos dias antes da próxima febre?
— Três ou quatro — ele disse, muito infeliz.
— Não se preocupe, Tai-Pan. Quatro dias são uma eternidade, não se preocupe. Vá descansar, por favor, e, mais tarde, conversaremos.
Ele foi para sua própria cabina e dormiu mal, acordando a intervalos de poucos momentos, depois tornando a dormir e sonhando que estava acordado, ou permanecendo num meio-sono que não lhe trazia nenhum descanso.
O sol crepuscular estava baixo no horizonte, quando ele despertou. Tomou banho e fez a barba, com o cérebro confuso e anuviado. Olhou para seu rosto no espelho e não gostou do que viu. Pois seus olhos lhe diziam que May-may jamais sobreviveria a três embates daqueles. Doze dias de vida era o que lhe restava, no máximo.
Houve uma batida na porta.
— Sim?
— Tai-Pan?
— Ah, olá, Gordon. Quais são as notícias?
— Nenhuma, eu lamento. Estou fazendo tudo que posso. Como vai a Senhora?
— O primeiro ataque veio e passou. Não foi nada bom, rapaz.
— Está sendo feito todo possível. O médico mandou alguns remédios para manter a força dela, e alguns alimentos especiais. Ah Sam sabe o que fazer.
— Obrigado.
Gordon partiu e Struan voltou outra vez para suas reflexões. Procurava desesperadamente uma solução. Onde conseguirei cinchona? Devia haver alguma, em qualquer parte. Onde haveria casca de árvore peruana na Ásia? Não era casca de árvore peruana, mas casca de árvore dos jesuítas.
Então seus pensamentos vagueantes explodiram numa idéia.
— Pelo amor de Deus! — ele gritou, com uma irrupção de esperança. — Se quer mutucas, procure um cavalo. Se quer casca de árvore dos jesuítas... em que outra parte poderá procurá-la, seu idiota!?
Dentro de duas horas, o China Cloud corria como uma Valquíria no porto colorido pelo crepúsculo, com todas as velas levantadas, mas bem rizadas, como proteção contra a monção, que se tornava mais forte. Quando cruzou o canal oeste e alcançou a plena força das ondas e do vento do Pacífico, o navio cambou e o cordame cantou, com exultação.
— A sudeste! — rugiu Struan, no meio do vento.
— Sudeste será, senhorrr — ecoou o timoneiro.
Struan olhou para os ovéns, lá no alto, desenhados contra a noite que chegava implacavelmente, e ficou aborrecido de ver tanta lona rizada. Mas sabia que, com aquele vento leste e aquele mar, as rizes teriam de permanecer.
O China Cloud entrou no novo curso e abriu caminho em meio à noite, mas ainda lutava contra o mar e o vento. Logo iria dar a volta outra vez e então o vento ficaria à sua popa, permitindo-lhe correr livremente.
Depois de uma hora, Struan gritou:
— Todos os homens ao convés... preparar para cuidar do navio!Os homens correram do castelo de proa e ficaram em pé, de prontidão, no escuro, sobre as cordas, amarras e adriças.
— Oeste para sudeste — ele ordenou.
O timoneiro virou a roda do leme para o novo curso, fazendo o clíper virar com o vento. As vergas rangeram e se esticaram a sotavento, as adriças gemeram e se espicharam e o navio entrou no novo curso, enquanto Struan gritava:
— Soltem as rizes da vela principal e da gávea!
O navio rompia as ondas, com o vento bem para a ré do trais, as ondas cascateando à proa.
— Firme para a frente — ordenou Struan.
— Sim, sim, senhorrr — disse o timoneiro, forçando a vista para ver a tremeluzente luz da bitácula e manter um curso firme, enquanto o leme lutava contra ele.
— Assuma, Capitão Orlov!
— Estava na hora, Olhos Verdes.
— Talvez você consiga uma velocidade maior — disse Struan. — Gostaria de chegar imediatamente a Macau! — ele desceu.
Orlov agradeceu a Deus por estar preparado, como sempre, para uma partida imediata. Soube, no momento em que viu o rosto do Tai-Pan, que era melhor o China Cloud sair do porto em tempo recorde, do contrário ficaria sem o navio. E embora sua cautela de homem do mar lhe dissesse que era perigoso tanto pano à noite, em mares cheios de recifes e rochedos, ele exclamou, exultante: “Soltem as rizes do sobre de proa e da gávea superior”, e festejou a alegria de estar no mar e no comando outra vez, após tantos dias ancorado. Impeliu o navio um ponto a estibordo e soltou novas rizes, fazendo
o ganhar cada vez mais velocidade.
— Apronte o escaler dianteiro, Sr. Cudahy! Deus sabe que é melhor estar pronto, quando ele chegar ao convés, e erga a lanterna do timoneiro!
— Sim, sim, senhorrr.
— Baixe a lanterna do timoneiro! Não vamos conseguir nenhum a essa hora da noite! — disse Orlov, corrigindo a si mesmo. — Não vou esperar pelo amanhecer e nem por nenhum maldito timoneiro. Eu mesmo cuidarei do navio. Temos carga urgente a bordo.
Cudahy se curvou, abaixando-se, e aproximou os lábios da orelha de Orlov.
— Será ela, senhor? Aquela que ele estava procurando, comprando seu peso em ouro? Viu o rosto dela?
— Vá lá para a frente, senão eu mando estripar você! E fique com a boca calada, e mande os outros ficarem, pelo sangue de Cristo! Todos devem permanecer confinados ao navio, quando chegarmos a Macau!
— Sim, sim, meu Capitão, senhorrr — disse Cudahy, com uma risada, e ficou em pé, com toda sua altura, dominando o homenzinho de quem gostava e a quem admirava.
— Nossas bocas são conchas de ostras, pelas barbas de São Patrício. Não tema! — Deu um pulo para o passadiço do tombadilho abaixo, e seguiu em frente.
Orlov caminhou pelo tombadilho, imaginando que mistério todo seria aquele, e o que havia de errado com a pequena moça envolta em lençóis que o Tai-Pan trouxera para bordo em seus braços. Viu o atarracado chinês Fong seguindo Cudahy como um cão paciente e imaginou também por que o homem fora enviado a bordo a fim de ser treinado como capitão, e o motivo de ter o Tai-Pan posto um pagão a bordo de cada um dos clíperes.
Gostaria de ter visto o rosto da moça, disse a si próprio. Seu peso em ouro, sim, é o que diz o boato. Eu queria... ah, como eu queria não ser como sou, para poder olhar para o rosto de um homem ou de uma mulher e não ver repulsa e não precisar provar que sou um homem como todos os outros, e melhor do que qualquer outro, nesses mares. Estou cansado de ser Orlov, o Corcunda. Terá sido por isso que senti medo, quando o Tai-Pan disse: “Em outubro, você irá para o norte, sozinho”?
Olhou melancolicamente por sobre a amurada, para as ondas negras que passavam velozmente. Você é o que é, e o mar está esperando. E você é capitão do mais belo navio do mundo. E, uma vez na vida, você olhou para um rosto e viu os olhos verdes examinando-o, simplesmente, como a um homem. Ah, Olhos Verdes, pensou, a infelicidade desaparecendo, eu iria para o inferno em troca do momento que você me ofereceu.
— Alto aí, seus idiotas! Dobrem imediatamente os sobrejoanetes! — gritou.
Para obedecer a sua ordem, os homens correram para o alto outra vez, a fim de aproveitar mais a potência do vento. E então, quando viu as luzes de Macau no horizonte, ele ordenou que as velas fossem rizadas e diminuiu cautelosamente a velocidade do navio. — Mas sempre com a máxima força possível — ao entrar no raso porto de Macau, com o prumador a gritar as profundidades.
— Belo serviço, Capitão — disse Struan. Orlov deu a volta, espantado.
— Ah, não vi você. Aparece de repente, como um fantasma. O escaler está pronto para ser baixado. — Depois, acrescentou, despreocupadamente: — Achei que podia dar conta, sem esperar pelo amanhecer e por um piloto.
— Você lê os pensamentos, Capitão. — Struan olhou para as luzes e para a cidade invisível, perdida na água, mas se erguendo numa crista de montanha. — Ancore em nossa bóia costumeira, proteja pessoalmente minha cabina. Não deve entrar... e nem ninguém mais. Todos estão confinados a bordo. Com a boca fechada.
— Já dei essas ordens.
— Quando as autoridades portuguesas subirem a bordo, peça desculpas por não ter esperado o piloto e pague as taxas costumeiras. E o imposto para os chineses. Diga que estou em terra.
Orlov sabia muito bem que não adiantava perguntar por quanto tempo ele demoraria.
O amanhecer clareava o horizonte, quando o China Cloud ancorou a meia milha do cais ainda não discernível no porto a sudoeste. ira o mais próximo que o navio podia chegar, em segurança; a baía era perigosamente rasa e, portanto, quase inútil — outra razão pela qual Hong Kong era uma necessidade econômica. Ao encaminhar depressa para a praia, no escaler, Struan notou as luzes em movimento de outro clíper, que se dirigia para o sul — o White Witch. Alguns navios europeus de menores dimensões estavam ancorados e centenas de sampanas e juncos seguiam seu curso silencioso.
Struan correu ao longo do desembarcadouro ainda alugado pela Casa Nobre. Viu que não havia luz alguma na grande residência da companhia, também alugada aos portugueses. Era uma mansão com colunas, quatro andares, na extremidade mais afastada da praia marginada de árvores. Ele se virou para o norte e caminhou ao longo da praia, contornando a alfândega chinesa. Cruzou uma rua larga e começou a subir a ladeira suave que levava à Igreja de São Francisco.
Estava satisfeito por se encontrar de volta a Macau, de volta à civilização, pisando em ruas pavimentadas, em meio a majestosas catedrais e graciosas casas no estilo mediterrâneo, praças com fontes e amplos jardins, docemente perfumados devido à abundância de flores.
Hong Kong, um dia, será assim, disse a si próprio... com pagode. Depois lembrou-se de Skinner, e Whalen e a malária e de May-may a bordo do China Cloud, tão frágil e tão fraca e da febre que voltaria, em dois ou três dias. E o Blue Cloud? Deveria, em breve, estar de volta à Inglaterra. Será que derrotará o Gray Witch? Ou se encontrará mil milhas atrás, no fundo do mar? E todos os outros clíperes? Quantos perco, nesta temporada? Que
o Blue Cloud chegue primeiro! E como estará Winifred? Será que Culum está bem, onde se encontrará Gorth, e o ajuste de contas acontecerá hoje? A cidade ainda estava adormecida, ao amanhecer. Mas ele sentia olhares de chineses a observá-lo. Subiu o morro e cruzou a bela Praça de São Francisco.
Além da praça, em direção ao norte, no ponto mais elevado do istmo, ficavam as ameias do antigo forte de São Paulo do Monte. E, por trás, o setor chinês de Macau: ruelas e casebres, construídos por sobre casebres, incrustando-se na encosta norte do morro e ali descendo, até sumir.
Por mais meia milha, havia terra plana, e o istmo se estreitava até menos de cento e cinqüenta jardas. Havia jardins, passeios. o verde-esmeralda da pequena pista de corridas de cavalos e o campo de críquete que os ingleses haviam instalado e mantido, ao longo de séculos. Os portugueses não aprovavam as corridas e não jogavam críquete.
A uma centena de jardas além do campo de críquete, estava a muralha onde Macau terminava e começava a China.
A muralha tinha vinte pés de altura, dez de espessura e se estendia de uma praia à outra. Só após ter sido construída, há três séculos, o imperador concordara em arrendar o istmo aos portugueses e permitir-lhes que se instalassem na terra.
No centro da extensão da muralha, havia uma torre de guarda com um portal e um único portão majestoso. O portão para a China estava sempre aberto, mas nenhum europeu o atravessava.
As botas de Struan faziam um ruído alto, enquanto ele corria através da praça e abria os altos portões de ferro lavrado do palácio do bispo, caminhando em seguida pelos jardins cultivados há três séculos. Um dia, terei um jardim como este, prometeu a si mesmo.
Cruzou o pátio dianteiro pavimentado, com as botas batendo forte, e subiu até a grande porta. Puxou o sino e ouviu-o ecoar, lá dentro, puxou-o repetidamente, com insistência.
Afinal, uma lanterna bruxuleou ao longo das janelas do piso térreo e ele ouviu passos aproximando-se e uma torrente de reclamações em português. A porta se abriu.
— Bom-dia. Quero ver o bispo.
O criado meio vestido e meio adormecido olhou para ele sem o reconhecer e sem compreender, depois soltou outra torrente de palavras em português e começou a fechar a porta. Mas Struan empurrou o pé na porta, abriu-a e caminhou para dentro da casa.Entrou no primeiro cômodo — um belo gabinete com estantes — e se sentou numa cadeira com encosto entalhado— Então deixou os olhos caírem sobre o criado boquiaberto.
— O bispo — repetiu.
Meia hora mais tarde, Flarian Guineppa, Bispo de Macau, General da Igreja de Roma, entrou caminhando imperiosamente no aposento de que Struan se apoderara. Era um aristocrata de elevada estatura, que carregava com jovialidade seus cinqüenta anos. Seu nariz era romano e adunco, a testa alta, os traços gastos. Usava um barrete magenta e manto da mesma cor, e em torno de seu pescoço tenso estava pendurado um crucifixo cravejado de jóias. Seus olhos negros estavam cheios de sono e eram hostis. Mas, quando deram com Struan, a raiva causada pelo sono desapareceu. O bispo ficou parado no umbral, com todas as fibras do corpo alertas.
Struan levantou-se,
— Bom-dia, Reverendíssimo. Desculpe vir sem ser convidado, e tão cedo.
— Seja bem-vindo, em nome de Deus, senhor — disse o bispo, amavelmente. Fez sinal em direção a uma cadeira. — Vou tomar um pequeno desjejum. Quer acompanharme?
— Obrigado.
O bispo falou laconicamente em português com o criado, que fez uma curvatura e saiu às pressas. Depois, caminhou devagar até a janela, com os dedos sobre seu crucifixo, e olhou para o sol que nascia. Viu o China Cloud ancorado na baía, bem em frente, e os grupos de sampanas que o cercavam. Que emergência, ficou imaginando, traz a mim o Tai-Pan da Casa Nobre? O inimigo que conheço tão bem, mas jamais encontrei?
— Obrigado por ter-me despertado. O amanhecer está muito lindo.
— Sim.
Os dois homens fingiam uma cortesia que nenhum dos dois sentia.
Para o bispo, Struan representava os ingleses protestantes, materialistas, maus, fanáticos, que infringiram as leis de Deus e para sua danação eterna — negaram o Papa, como os judeus haviam negado Cristo; o homem que era o líder deles, quase sozinho destruíra Macau e, com Macau, a dominação católica sobre os pagãos asiáticos.
Para Struan, o bispo representava tudo que ele desprezava nos católicos — o fanatismo dogmático de homens autocastrados que buscavam o poder, homens que sugavam gota a gota dinheiro dos pobres, em nome de um Deus católico, e com essas gotas de dinheiro construíam majestosas catedrais, para a glória de sua versão da divindade, e que, de maneira idolatra, haviam instalado um homem em Roma, como Papa, e tornando este homem árbitro infalível de outros homens.
Criados de libré, obsequiosamente, trouxeram bandejas de prata, chocolate quente e levíssimos croissants, manteiga fresca e a doce geléia de kumquat por causa da qual o mosteiro era famoso.
O bispo fez uma ação de graças e o latim aumentou o constrangimento de Struan, mas ele nada disse. Os dois homens comeram em silêncio. Os sinos das inúmeras igrejas badalavam matinas e a fraca e gutural litania dos coros de monges na catedral enchiam o silêncio. Depois do chocolate, veio o café, proveniente do Brasil, colônia portuguesa: quente, doce, forte, delicioso. A um sinal da mão do bispo, um criado abriu uma cigarreira cravejada de jóias e ofereceu-a a Struan.
— São de Havana, se lhe agradam. Depois do desjejum, aprecio a “dádiva” de Sir Walter Raleigh à humanidade.
— Obrigado. — Struan escolheu um. Os criados acenderam os charutos e, a um sinal do bispo, foram embora.
O bispo observava as espirais de fumaça.
— Por que o Tai-Pan da Casa Nobre viria procurar minha ajuda? Ajuda papista? — acrescentou, com um sorriso irônico.
— Pode apostar com segurança, Reverendíssimo, que não está sendo procurado de maneira impensada. Já ouviu falar na casca de árvore chamada cinchona? A casca dos jesuítas?
— Ah, é isso. Está com malária. A febre do Vale Feliz — ele disse, suavemente.
— Sinto desapontá-lo. Não, não tenho malária. Mas uma pessoa a quem quero, sim. A cinchona cura a malária?
Os dedos do bispo brincaram com o grande anel em seu dedo médio, e depois tocaram seu crucifixo.
— Sim. Se a malária do Vale Feliz for a mesma malária existente na América do Sul. — Os olhos dele eram penetrantes. Struan sentiu-lhes o poder, mas devolveu a mirada com a mesma firmeza. — Há muito anos, eu era missionário no Brasil. Contraí a malária ali existente. Mas a cinchona me curou.
— Tem cinchona aqui? Em Macau?
Houve um silêncio, rompido pelos estalidos das unhas batendo na cruz, lembrando a Struan o médico chinês a dar pancadinhas no pulso de May-may. Ficou imaginando se julgara corretamente o bispo.
— Não sei, Sr. Struan.
— Se a cinchona puder curar nossa malária, estou disposto a pagar. Se quer dinheiro, terá. Poder? Eu lhe darei. Se quer minha alma, pode ficar com ela... não subscrevo seus pontos de vista, de maneira que seria. uma troca segura. Alegremente, até mesmo passaria pelo ritual de me transformar em católico, mas não teria sentido, como sabe e eu sei. O que quer que desejar, eu lhe darei, se estiver em meu poder lhe dar. Mas quero um pouco da casca. Quero curar uma pessoa da febre. Diga seu preço.
— Para quem vem como suplicante, suas maneiras são curiosas.
— Sim. Mas estou supondo que, a despeito de minhas maneiras, ou do que pensa a meu respeito e eu ao seu, temos os meios de realizar um negócio. Tem cinchona? Se tiver, curará a malária do Vale Feliz? E se curar, qual será o seu preço?
O aposento estava muito silencioso, um silêncio sobrecarregado de movimentos de mentes, vontades e pensamentos.
— Não posso responder a nenhuma dessas perguntas agora — disse o bispo. Struan levantou-se.
— Voltarei hoje à noite.
— Não há necessidade de que volte, senhor.
— Quer dizer que não haverá negócio?
— Estou dizendo que hoje à noite pode ser cedo demais. Levará tempo para mandar o aviso a todos os curadores de doentes e para obter uma resposta. Entrarei em contato com o senhor logo que tenha uma resposta. Para todas as suas perguntas. Onde estará? No China Cloud ou em sua residência?
— Mandarei um homem sentar-se à sua porta, à espera.
— Não há necessidade. Mandarei notícia. -. O bispo permaneceu em sua cadeira. Depois, vendo a profundidade da preocupação de Struan, acrescentou, compassivamente:
— Não se preocupe, senhor. Mandarei um aviso para ambos os lugares, em nome de Cristo.
— Obrigado. — Quando Struan partia, ouviu o bispo dizer: “Vá com Deus”, mas não parou. A porta da frente bateu atrás dele.
No silêncio do pequeno aposento, o bispo suspirou profundamente. Seus olhos contemplaram o crucifixo cravejado de jóias pendurado em seu peito. Rezou, silenciosamente. Depois, mandou buscar seu secretário e ordenou que começasse a procura. Em seguida, mais uma vez sozinho, ele se dividiu nas três pessoas que todos os generais da igreja devem ser, simultaneamente. Antes de tudo, Pedro ungido, primeiro bispo de Cristo, com o que isso implicava, espiritualmente. Em segundo lugar, o guardião militante da igreja temporal, com todas as conseqüências. E, finalmente, apenas um simples homem, que acreditava nos ensinamentos de um homem simples que era o Filho de Deus.
Voltou a se instalar em sua cadeira e deixou essas facetas de si mesmo discutirem uma com a outra. E ficou a escutá-las.
Struan subiu as escadas de mármore da residência da companhia, fatigado mas, estranhamente, em paz. Fiz tudo que podia, pensou.
Antes de tocar na porta, esta foi amplamente aberta, com um floreio. Lo Chum, o mordomo dos funcionários da Casa Nobre de Macau, exibiu-lhe um sorriso desdentado. Era um velho baixinho, com um rosto que parecia de marfim antigo e um sorriso de duende, e estava a serviço de Struan desde que este pudera pagar a um criado. Usava uma limpa bata branca, calças negras e sandálias de corda.
— Hallo-ah, Tai-Pan. O banho está pronto, o desjejum está pronto, as roupas estão prontas, tudo que o Tai-Pan quiser. Não se preocupe.
— Olá, Lo Chum. — Struan nunca deixava de se maravilhar diante da rapidez com que circulavam as notícias. Sabia que, se tivesse, logo ao desembarcar, corrido pelo desembarcadouro diretamente para a mansão, a porta teria sido aberta rapidamente, do mesmo jeito, e Lo Chum ali estaria, como estava agora.
— Quero banho e roupas — disse Struan.
— Compradore Chen Sheng foi embora. Diz que volta às nove horas, pode?
— Pode — respondeu Struan, cansado.
Lo Chum fechou a porta e disparou na frente de Struan, subiu a escadaria de mármore e abriu a porta do quarto de dormir do patrão. A grande banheira de assento, de ferro, estava cheia de água fumegante, como sempre, um copo de leite se encontrava sobre uma mesinha, como sempre, seus aparelhos de barbear se achavam separados a um canto, a camisa e as roupas limpas sobre a cama — como sempre. É bom estar em casa, pensou Struan.— Tai-Pan quer moça no banho, hein? — uma risada, como um relincho.
— Ayeee yah, Lo Chum. Sempre disse que moça no banho traz muitos problemas. Acorde o Senhor Culum... diga para vir aqui. — Struan falou, tirando as roupas sujas.
— Senhor Culum não dormiu.
— Onde o Senhor Culum foi? — perguntou Struan. Lo Chum pegou as roupas e deu de ombros.
— Passou a noite toda fora, senhor.
Struan franziu a testa.
— A mesma coisa toda noite, hein?
Lo Chum abanou a cabeça.
— Não, senhor. Uma, duas noites dormiu aqui. — Saiu, afobado.
Struan mergulhou no banho, perturbado pelo relato das ausências de Culum. Espero em Deus que Culum tenha suficiente bom senso para não ir a Chinatown.
Pontualmente, às nove horas, uma rica liteira parou diante da mansão. Chen Sheng, compradore da Casa Nobre, fez uma pesada curvatura. Seu traje era escarlate e o chapéu cravejado de jóias, e ele tinha muita consciência de sua majestade.
Subiu os degraus e a porta foi aberta por Lo Chum. pessoalmente — como sempre. Isto dava a Chen Sheng grande prestígio, pois Lo Chum só abria a porta pessoalmente para o Tai-Pan e para ele.
— Ele está à minha espera? — perguntou, em dialeto cantonês.
— Claro, Excelência. Sinto muito ter marcado seu encontro para tão cedo, mas achei que iria desejar ser o primeiro.
— Ouvi dizer que ele partiu de Hong Kong com uma pressa frenética. Sabe qual é o problema?
— Ele foi diretamente ao Tai-Pan dos saias-compridas e...
— Sei disso — disse Chen Sheng, com petulância. Não podia adivinhar por que Struan correra ao mosteiro. — Realmente, não sei por que sou tão paciente com você, Lo Chum, ou por que continuo a lhe pagar uma soma mensal, a fim de me manter informado, nesses tempos difíceis. Eu já sabia que o navio estava no porto, antes de você mandar me avisar. É uma desagradável falta de interesse por meus assuntos.
— Realmente, sinto muito, Excelência — disse Lo Chum. — Claro, o Tai-Pan trouxe sua concubina, no navio.
— Ah! — Ótimo, pensou. Estou satisfeito de devolver as crianças e me livrar dessa responsabilidade. — Isso é um pouco melhor, embora eu fosse receber esta informação, por parte de outras pessoas, em menos de uma hora. Que outras maravilhosas informações tem você para merecer um pagamento tão alto. todos esses anos?
Lo Chum mostrou o branco dos olhos.
— Que sabedoria poderia ter eu, um miserável escravo, diante de um mandarim como o senhor? — falou muito tristemente. — Atravessamos tempos difíceis, Excelência. Minhas esposas me aborrecem, pedindo dinheiro, e meus filhos gastam taéis no jogo, como se a prata crescesse como arroz. É terrível. Só tendo conhecimentos prévios de grande importância a pessoa pode defender-se contra o destino. É terrível pensar que tais conhecimentos podem cair nos ouvidos errados.
Chen Sheng brincava com o rabicho, imediatamente cônscio de que Lo Chum tinha uma informação muito especial.
— Concordo. Em tempos difíceis como esses, é muito importante... os deuses assim decretaram... assistir os pobres — disse ele, com gravidade. — Eu estava pensando em lhe enviar um presente sem valor, em nome de seus ilustres ancestrais: três porcos assados, catorze galinhas poedeiras, duas peças de xantungue de seda, uma pérola no valor de dez taéis da mais pura prata, uma bela fivela de cinto de jade do início da dinastia Ch’ing, no valor de cinqüenta taéis e alguns doces e pastéis sem importância completamente inadequados para seu paladar, talvez você prefira dá-los aos seus criados.
— Uma dádiva de tal magnificência eu dificilmente poderia aceitar — disse Lo Chum, com grande deferência. — Isto me colocaria como seu devedor para sempre.
— Se recusar, então só posso supor que é uma oferta inadequada para seus ilustres ancestrais e perderei prestígio.
Finalmente, Lo Chum permitiu-se ser persuadido a aceitar, e Chen Sheng se permitiu ser persuadido de que o presente era principesco.
— Ouvi dizer que o Tai-Pan procura algo — sussurrou Lo Chum — porque sua concubina está muito doente. Doente com a febre venenosa de Hong Kong. — O quê? — Chen Sheng ficou horrorizado com a notícia, mas satisfeito porque o montante do presente fora bem gasto. — Por favor, continue.
Lo Chum lhe contou a respeito do médico e do estranho remédio — e tudo que Ah Sam sussurrara aquela manhã a um proprietário de sampana que Lo Chum enviara até ela.
— Há também boatos de que o Tai-Pan ofereceu vinte mil taéis como recompensa. O filho dele, filho ilustre de sua terceira esposa e seu filho de criação, iniciou uma busca frenética da droga em Hong Kong.
A mente de Chen Sheng mergulhou nas implicações. Fez sinal a Lo Chum e foi conduzido até o gabinete de Struan.
— Hallo-ah, Tai-Pan — ele disse, expressivamente. — É bom vê-!o em Macau. -. Hallo-ah, Chen Sheng — disse Struan. Fez sinal em direção a uma cadeira. — Sente-se.
— O navio Blue Cloud chegou primeiro à Inglaterra?
— Não sei. Digo-lhe depressa, quando souber. Chen Sheng queria me ver?
Chen Sheng estava preocupado, Ele, o líder das Tríades de Macau, recebera de Jin-qua a responsabilidade pessoal da segurança de Tchung May-may e das suas crianças. Só ele, entre todos os associados de Jin-qua, sabia que ela era neta de Jin-qua e que, como concubina do Tai-Pan, seu valor para eles, pessoalmente, era enorme, e seu valor para a futura causa da Tríade — que era a causa da China — inestimável. A notícia de que a frota voltaria imediatamente a Cantão, em vez de ir direto a Pequim, poupara-lhes quase quatro milhões de taéis — cem vezes o custo da educação de May-may. Abençoara seu pagode por May-may existir; sem ela, teria tido de encontrar ele próprio um montante substancial daquele resgate.
E, agora, a estúpida e inútil mulher tivera o mau pagode de pegar uma doença incurável. Pelo menos, emendou depressa, incurável a menos que nos seja possível encontrar a droga. E se pudermos, ela melhorará, e nosso investimento nela — e no Tai-Pan será garantido e haverá vinte mil taéis de recompensa. Então, outro fragmento de informação se encaixou no lugar e ele pensou, então isto explica por que Gordon Chen mandou chamar a Macau ontem, secretamente, quarenta membros da Tríade, da sede Hong Kong. Deve haver um pouco da droga aqui. Ficou imaginando o que Gordon Chen diria se lhe contasse que seu “Professor” secreto lhe fora enviado por ordens de Jin-qua — que Jin-qua era o líder da Tríade de toda Kwangtung e que ele, Chen Sheng, era o vice de Jin-qua. Ah, disse a si próprio, é muito aconselhável manter em segredo muitas coisas; nunca se sabe quando alguém vai escorregar.
— Crianças de Tai-Pan lá em casa muito bem, muito felizes — Disse, jovialmente.
— Quer ver eles, hein? Levar de volta a Hong Kong?
— Vejo hoje. Levo de volta logo. Digo quando. — Struan ficara imaginando se deveria contar a Chen Sheng a respeito de May-may.
— Tai-Pan. Suas crianças muito boas. — Começou Chen Sheng. — Acho que é melhor levar crianças para mamãe. Fazer feliz mamãe. Médico importante aqui diz que pode. Não tem problemas. Acho que tem remédio aqui em Macau. Chen Sheng dá um jeito.
— Como sabia que ela está aqui, e com malária?
— O quê? Não entendo.
— Como sabia que minha mulher tem doença grave?
Chen Sheng deu uma risadinha para si próprio e encolheu os ombros.
— Sabia de qualquer jeito, não se preocupe.
— Tem remédio aqui? Verdade?
— Se tiver aqui, consigo. Mando junco depressa para o China Cloud, Traga mulher para terra. Chen Sheng ajeita.
Ele fez uma curvatura cortês e saiu.
Struan foi para bordo do China Cloud e deu à tripulação licenças para desembarcar por turnos. Logo o junco de Chen Sheng se aproximou. May-may foi cuidadosamente levada para terra, aos cuidados de um médico chinês, e carregada para sua casa, encravada no morro de Santo Antônio.
A casa estava limpa e os criados se encontravam de prontidão, havendo chá preparado. Ah Sam deu uma volta, solicitamente, e abraçou as crianças que esperavam na casa, com sua ama, ajeitou May-may na grande cama e levou os filhos até ela. Houve lágrimas de felicidade, novas corridas de um lado para outro, gritos, e Ah Sam e May-may ficaram satisfeitas por estarem em casa, afinal.
O médico trouxera alimentos e remédios especiais para fortalecer May-may e manter a força da criança em seu útero, e lhe ordenara para ficar na cama.
— Voltarei logo — disse Struan.
— Ótimo. Obrigada, Tai-Pan, obrigada.
— Vou para a sede e, depois, talvez para a casa de Brock.
— Ele estão em Macau?
— Sim. Todos, com exceção de Tyler. Pensei que lhe havia dito. Não se lembra? Culum e Tess estão aqui também.
— Ah, sim — ela respondeu. Lembrou-se do que fora combinado com Gordon Chen. — Sinto muito. Eu tinha esquecido. Minha cabeça está como uma peneira. Claro que me lembro, agora. Estou muito feliz de ter saído do navio e de me encontrar em casa. Obrigada.
Ele voltou para a sede da companhia. Culum não voltara, então caminhou pela praia, até à casa de Brock. Mas nem Tess e nem Liza sabiam onde se encontrava Culum. Gorth disse que os dois haviam jogado na noite da véspera, no English Club, mas ele, Gorth, saíra cedo.
— Vou levá-lo até à porta — disse Gorth. Quando estavam sozinhos, junto à porta, sorriu sardonicamente, exultando na doçura da vingança. — Sabe como é... eu estava visitando uma senhora. Talvez ele estivesse fazendo a mesma coisa. Não há perigo nenhum nisso, não é? Ele estava ganhando no jogo quando eu o deixei, se é isto que o está preocupando.
— Não, Gorth, não estou preocupado com isso. Sabe que há boas leis britânicas relativas a assassinato... um julgamento rápido e uma rápida forca, seja quem for a vítima. Até mesmo uma prostituta.
Gorth empalideceu.
— O que quer dizer com isso?
— Se alguém se tornar merecedor da forca, eu serei alegremente o carrasco.
— Está me ameaçando? Há leis contra isso também, por Deus!
— Se houver morte... então haverá acusação de homicídio, por Deus!
— Não sei o que quer dizer! — explodiu Gorth. — Está me acusando falsamente!
— Não estou acusando você de nada, Gorth. Só lembrando você de fatos. Sim. Ouvi dizer que há duas possíveis testemunhas para uma possível morte... que estariam preparadas para falar no tribunal.
Gorth controlou seu pânico. Foi aquela maldita cadela Fortheringill, e também o patife do Quance. Ela foi paga o suficiente para manter o bico calado. Bom, vou cuidar dos dois imediatamente, se for necessário, mas não será, porque a cadela não vai morrer, de qualquer jeito.
— Não tenho medo de falsas acusações como as suas.
— Não estou acusando você, Gorth — disse Struan.
Ficou fortemente tentado a provocar agora a inevitável luta. Mas sabia que teria de esperar que Gorth cometesse seu primeiro erro, insultá-lo imperdoavelmente em público. Só assim poderia, aberta e livremente, mandar ajudantes com um desafio formal e matá-lo diante de uma platéia. Só dessa maneira poderia impedir a ruptura do casamento de Culum e Tess e evitar dar a Brock um meio de destruí-lo nos tribunais de justiça. Porque May-may estava certa — todos na Ásia sabiam que ele estava louco para matar Gorth.
— Se encontrar Culum, por favor diga-lhe que estou procurando por ele.
— Dê os seus próprios recados! Não sou seu lacaio. Você não será por muito tempo mais o Tai-Pan da Casa Nobre, por Deus.
— Cuidado — disse Struan. — Não tenho medo de você.
Gorth engoliu a isca.
— Nem eu, Dirk. Eu lhe digo de homem para homem tenha cuidado, ou vou atrás de você. Struan caminhou de volta para a sede da companhia, encantado consigo mesmo. Você está fisgado, Gorth.
Culum ainda não voltara. E não havia notícia alguma do bispo. Struan disse a Lo Chum para tentar encontrar Culum. E foi para a praia, subiu o morro em direção à catedral, em seguida entrou em ruas menos transitadas, passando por graciosos restaurantes na calçada e sombrinhas coloridas. Cruzou uma extensa praça e atravessou um grande pórtico.
A freira, à escrivaninha, ergueu os olhos.
— Bom-dia. Fala inglês? — perguntou Struan.
— Um pouco, senhor.
— Tem uma paciente. Srta. Mary Sinclair. Sou amigo dela.
Uma longa pausa.
— Quer vê-la?
— Por favor.
Ela fez sinal para uma freira chinesa e lhe falou rapidamente, em português. Struan seguiu a freira chinesa por um corredor e subiu algumas escadas que davam no quarto de Mary.
Era pequeno, sujo e rançoso, e tinha as janelas totalmente cerradas. Um crucifixo pendia sobre a cama. O rosto de Mary estava abatido, seu sorriso era fraco. E o sofrimento a envelhecera.
— Olá, Tai-Pan.
— Qual é o problema, Mary? — ele perguntou brandamente.
— Nada que eu não mereça.
— Eu vou tirar você deste maldito lugar — disse Struan.
— Estou ótima, Tai-Pan. Eles são muito bons para mim.
— Sim, mas isto não é lugar para uma moça inglesa protestante.
Um monge magro e tonsurado entrou. Usava uma batina simples — suja de manchas de sangue e remédios derramados — e um crucifixo simples de madeira.
— Bom-dia — disse o monge, com um inglês cultivado e sem sotaque. — Sou Padre Sebastião. O médico desta paciente.
— Bom-dia. Acho que a tirarei de seus cuidados.
— Eu não aconselharia isso, Sr. Struan. Ela não deve ser movimentada por um mês, pelo menos.
— O que há com ela?
— Tem problemas internos.
— É inglês?
— É tão estranho isso, Sr. Struan? Há muitos ingleses, e também escoceses, que reconhecem a verdade da Igreja de Cristo. Mas o fato de ser católico não diminui os meus méritos como médico.
— Tem aqui a casca de árvore cinchona?
— O quê?
— Casca de árvore cinchona. Casca dos jesuítas.
— Não. Jamais usei isso. Nunca vi. Por quê?
— Por nada. O que há de errado com a Srta. Sinclair?
— É muito complicado. A Sra. Sinclair não deverá ser movimentada por um mês... melhor dois.
— Sente-se suficientemente bem para ser movimentada, garota?
— O irmão dela, Sr. Sinclair, não faz objeção ao fato de permanecer aqui. E eu acredito que o Sr. Culum Struan também aprova o que eu sugiro.
— Culum esteve aqui hoje? — Struan perguntou a Mary.
Ela abanou a cabeça e falou com o monge, o rosto trágico.
— Por favor, conte ao Tai-Pan. A respeito... a meu respeito. O Padre Sebastião disse com gravidade.
— Acho que tem razão. Alguém deve saber. A Srta. Sinclair está muito doente, Sr. Struan. Ela bebeu uma poção de ervas chinesas... talvez veneno fosse a palavra certa... para provocar um aborto. O veneno deslocou o feto, mas causou uma hemorragia que está agora, graças a Deus, quase sob controle.
Struan sentiu um repentino suor.
— Quem mais sabe disso, Mary? Horatio? Culum?
Ela abanou a cabeça.
Struan tornou a se virar para o monge.
— Quase sob controle? Quer dizer que a moça está bem? Que dentro de um mês, aproximadamente, ela estará bem?
— Fisicamente, sim. Se não houver gangrena. E se esta for a vontade de Deus.
— O que quer dizer “fisicamente”?
— Quero dizer, Sr. Struan, que é impossível considerar o físico sem o espiritual. Esta senhora pecou terrivelmente contra as leis de Deus... contra as leis da Igreja Católica e também de sua igreja... e então a paz, o acerto de contas, têm de ser feitos com Deus, antes de ela poder curar-se. Era isto que eu estava tentando dizer.
— Como... como ela chegou aqui?
— Foi trazida para cá por sua ama, que é católica. Consegui uma licença especial para tratá-la e, bom, nós a colocamos aqui e a tratamos o melhor que pudemos. A madre superiora insistia que alguém fosse informado, porque sentimos que não estava resistindo. Foi enviada notícia para o Capitão Glessing. Supusemos que ele fosse o pai, mas a Srta. Sinclair jura que não... que não era. E nos implorou para não revelar a causa de sua doença. — O Padre Sebastião fez uma pausa. — Essa crise, graças a Deus, passou.
— Manterá isso em segredo? O que... o que aconteceu com ela?
— Só o senhor e as freiras sabem. Temos juramentos diante de Deus, que não podem ser rompidos. Não precisa temer por nós. Mas sei que não haverá cura para esta pobre pecadora sem um acerto de contas. Porque Ele sabe.
O Padre Sebastião afastou-se.
— O... o padre era um de seus “amigos”, Mary?
— Sim. Eu não... eu não me arrependo de minha vida, Tai-Pan. Eu não... não posso. E nem do que fiz. É o pagode. — Mary olhava através da janela. — Pagode. — Ela repetiu. — Eu fui estuprada, muito jovem... pelo menos... não é verdade. Mas eu não sabia o que... Eu não entendia, mas fui um pouco forçada, da primeira vez. Depois, eu... não foi necessário forçar... eu queria.
— Quem foi ele?
— Um de meus colegas de escola. Ele morreu. Foi há tanto tempo.
Struan procurou lembrar, mas não identificou nenhum menino que tivesse morrido. Nenhum menino que pudesse ter ido à casa dos Sinclair.
— E, depois disso — Mary continuou, cheia de vacilação — eu tive necessidade. Horatio... Horatio estava na Inglaterra e, então, eu pedia... pedia a uma das amas para procurar um amante para mim. Ela me explicou que eu... que eu poderia ter um amante, muitos amantes e que, se fosse inteligente, e ela fosse inteligente, eu poderia ter uma vida secreta e coisas bonitas. Minha verdadeira vida nunca foi agradável. Você sabe o pai que eu tive. Então, a ama me mostrou como. Ela... procurava para mim. Nós... ficamos... nós ficamos ricas juntas, e eu estou satisfeita. Comprei as duas casas e ela sempre trouxe só homens muito ricos. — Ela parou e, depois de um longo tempo, gemeu: — Ah, Tai-pan, estou com tanto medo.
Struan sentou-se a seu lado. Lembrou-se do que lhe dissera há apenas poucos meses. E da confiante resposta da moça.
Struan estava à janela aberta, melancolicamente a observar a praia lá embaixo. Entardecia. Os portugueses todos vestiam trajes de noite e davam voltas de um lado para outro, fazendo mesuras, conversando animadamente — com os jovens fidalgos e as moças a se namorarem cautelosamente, sob os olhares vigilantes de pais e aias. Algumas liteiras, com seus cules, labutavam à procura de clientes ou depositavam pessoas que chegavam atrasadas para o passeio. Aquela noite, havia um baile no palácio do governador e ele fora convidado, mas não sabia se iria. Culum não voltara ainda. E não havia notícias do bispo.
Ele vira Horatio, aquela tarde. Horatio ficara furioso porque Ah Tat, ama de Mary, desapareceu.
-Tenho certeza de que foi ela quem deu à pobre Mary a poção, Tai-Pan — disse ele. Mary contara-lhe que bebera por engano um chá de ervas por ela encontrado na cozinha, e nada mais.
— Isso é tolice, Horatio. Ah Tat está com vocês dois há anos. Por que faria uma coisa dessas? Foi um acidente.
Depois da partida de Horatio, Struan procurara os homens com quem Culum e Gorth haviam estado, na noite anterior. Na maioria, eram camaradas de Gorth e todos disseram que, algumas horas depois de Gorth sair, Culum fora embora; que ele bebera, mas não estava mais bêbado do que os outros, do que habitualmente ficava.
Seu estúpido idiota Culum, pensou Struan. Você devia ter tido cuidado.
De repente, notou um criado imaculado, de peruca e libré, que se aproximava, e reconheceu o brasão do bispo, instantaneamente. O homem vinha sem pressa pela praia, mas passou pela sede da companhia sem parar, e desapareceu na praia mesmo.
A luz sumia rapidamente agora, e as luzes do passeio marginado por lanternas começaram a dominar o clarão do entardecer. Struan viu uma liteira com cortinas parar diante da casa. Dois cules, apenas, entrevistos, depuseram-na e sumiram numa ruela.
Struan saiu correndo do aposento e desceu as escadas.
Culum estava estirado, inconsciente, na parte de trás da liteira, com as roupas rasgadas e manchadas de vômito. Fedia a álcool.
Struan ficou mais divertido do que zangado. Puxou Culum até colocá-lo em pé, atirou-o sobre o ombro e, sem se preocupar com os olhares dos transeuntes, carregou-o para a casa.
— Lo Chum! Banho, depressa!
Struan depositou Culum na cama e o despiu. Não havia ferimentos no seu peito e nem nas costas. Ele o virou. Arranhaduras causadas por unhas no estômago. E manchas provocadas por mordidas amorosas.
— Idiota — disse ele, examinando-o rapidamente, mas de maneira minuciosa. Não havia ossos quebrados. Nenhum dente arrancado. O anel de sinete e o relógio haviam sumido. Os bolsos estavam vazios.
— Você foi “depenado” rapazinho. Talvez, pela primeira vez, mas, com certeza, não pela última. — Struan sabia que drogar a bebida de um rapaz era um truque antigo em bordéis.
Criados trouxeram baldes de água quente e encheram a banheira de ferro. Struan ergueu Culum, colocou-o no banho e o ensaboou e lhe passou uma esponja. Lo Chum segurava a cabeça pendurada.
— Patrãozinho bebeu demais, fez muito amor.
— Ayeee yah! — disse Struan.
Ao retirar Culum do banho, sentiu uma dor forte, como uma punhalada, no tornozelo esquerdo, e percebeu que a caminhada de hoje lhe cansara o tornozelo mais do que esperava. É melhor envolvê-lo em gaze durante alguns dias, pensou.
Enxugou Culum e colocou-o na cama. Deu-lhe palmadinhas leves no rosto, mas isto não o acordou, e então jantou e ficou esperando. Sua preocupação aumentou com a passagem do tempo, porque sabia que, àquela hora, por mais que Culum tivesse bebido, já deveria estar recuperado.
A respiração de Culum era profunda e regular. As batidas do coração, fortes. Struan levantou-se e se espreguiçou. Não havia nada a fazer, senão esperar.
— Vou ver a senhora. Fique olhando com cuidado, está bem? — disse ele.
— Lo Chum olha como se fosse uma mãe!
— Mande notícia, está bem? Quando o patrão acordar, não deixe de mandar notícia. Entendido?
— Não precisa perguntar se entendido, sim? Sempre entendido muito bem, não se preocupe.
Mas Lo Chum não mandou notícia alguma, aquela noite.
Ao amanhecer, Struan saiu da casa de May-may e voltou para a sede da companhia.
May-may dormira em paz, mas Struan ficara à escuta de todos os movimentos de transeuntes, e de cada liteira — e de muitos ruídos que apenas sua imaginação criava. Lo Chum abriu a porta da frente.
— O que adianta Tai-Pan vir cedo, hein? Desjejum pronto, banho pronto, o que Tai-Pan quer ver, hein?
— Patrão acordou?
— Por que perguntar? Se acorda, mando notícia. Entendido tudo muito bem, Tai-Pan — disse Lo Chum, com sua dignidade ofendida. Struan foi para o andar superior. Culum ainda dormia, profundamente.
— Uma, duas vezes, patrão faz a mesma coisa — e Lo Chum resmungou, fez ruídos com os maxilares, fungou, bocejou e gemeu alto. Depois do desjejum, Struan mandou dizer a Liza e Tess que Culum voltara, mas não lhes contou em que condições. Em seguida, tentou concentrar-se nos negócios.
Assinou papéis e aprovou gastos maiores nas construções de Hong Kong, indignado com os custos crescentes da madeira, do tijolo e do trabalho e toda sorte de suprimentos para navios, reparos de navios, equipamento náutico.
Maldição! Os preços tiveram um aumento de cinqüenta por cento — e não há sinal de que vão descer. Devo começar a construir clíperes para o próximo ano, ou vou apostar nos que já temos? Apostar que o mar não afundará nenhum? É preciso comprar mais.
Então, mandou fazer um novo clíper. Ele o chamaria de Tessan Cloud e o navio seria dado a Culum, como presente de aniversário. Mas, mesmo o pensamento de um novo e belo clíper não o entusiasmou como de costume. Fez com que ele se lembrasse do Lótus Cloud, que logo deveria ser construído em Glasgow, e do combate naval, no ano seguinte, com Wu Kwok — se ainda estivesse vivo — ou com Wu Fang Choi, o pai, e seus piratas. Ficou imaginando se os filhos de Scragger desembarcariam na Inglaterra a salvo. Outro mês se passaria, no mínimo, antes de eles chegarem — e mais três meses para a notícia voltar.
Fechou seu escritório e foi para o English Club, onde bateu papo com Horatio por um momento, em seguida com alguns negociantes, e jogou bilhar, mas não se divertiu nem um pouco com a companhia e nem com o jogo. A conversa foi toda sobre negócios, toda cheia de ansiedade com relação a sinais de desastre quanto ao nível internacional e à expansão de seus grandes lances comerciais da temporada.
Sentou-se no grande e tranqüilo salão de leitura e pegou os últimos jornais — de três meses atrás — chegados com a correspondência.
Com esforço, concentrou-se num editorial. Falava das disseminadas perturbações industriais nos Midlands, e garantia que era imperativo pagar um salário justo para uma jornada de trabalho justa. Outro artigo lamentava que a grande máquina industrial da Inglaterra estivesse operando com apenas metade de sua capacidade, e insistia que grandes mercados novos deveriam ser encontrados para a riqueza produtiva que a nação podia vomitar; mais produção significava mercadorias mais baratas, aumento dos empregos, salários mais altos.
Havia outros artigos falando de tensão e de nuvens de guerra sobre a França e a Espanha, por causa da sucessão do trono espanhol; a Prússia metia seus tentáculos em todos os Estados alemães, a fim de dominá-los, e— uma confrontação franco-prussiana estava iminente; havia nuvens de guerra sobre a Rússia e o Sacro Império Romano dos Habsburgos; nuvens de guerra sobre os Estados italianos, que queriam derrubar o adventício rei francês de Nápoles, e desejavam unir-se, ou não se unir, e o Papa, apoiado pelos franceses, estava envolvido na arena política; havia ainda nuvens de guerra sobre a África do Sul, porque os Bôers — que, nos últimos quatro anos, haviam migrado da colônia do Cabo para se estabelecerem no Transvaal e no Estado Livre de Orange — agora ameaçavam a colônia britânica de Natal, e esperava-se que a guerra já fosse anunciada nos próximos despachos; havia manifestações anti-semitas e pogroms em toda a Europa; os católicos lutavam contra os protestantes, maometanos contra indianos, contra católicos, contra protestantes, e esses lutavam entre si mesmos; havia guerras com os índios peles-vermelhas na América, hostilidade entre os Estados do norte e do sul, hostilidade entre a América e a Grã-Bretanha, com relação ao Canadá, perturbações na Irlanda, Suécia, Finlândia, Índia, Egito, os Bálcãs...
— Seja lá o que se leia! — explodiu Struan, sem se dirigir a ninguém, em particular.
— O mundo inteiro está louco, por Deus!
— O que há de errado, Tai-Pan? — perguntou Horatio, repentinamente despertado de seu devaneio cheio de ódio.
— O mundo inteiro está louco e você pergunta o que há de errado! Por que diabo as pessoas não param de se destruir, e não vivem em paz?
— Concordo plenamente — gritou Masterson, do outro lado da sala. — Plenamente. É um lugar terrível para se ter filhos, por Deus! O mundo inteiro está se arrebentando. Arrebentou-se. Era muito melhor antigamente, não? Que horror!
— Sim — disse Roach. — O mundo está andando depressa demais. O maldito Governo encontra-se desgovernado... como sempre. Por Deus, a gente pensa que eles aprendem, mas não aprendem nunca. Todo maldito dia a gente lê que o Primeiro-Ministro disse: “Temos todos de apertar os cintos.” Pelo amor de Deus, você já ouviu alguém declarar que podíamos afrouxar os cintos um pouquinho?
— Ouvi dizer que o imposto de importação sobre o chá vai dobrar — disse Masterson. — E, se aquele maníaco do Peel chegar a ganhar, o patife, com certeza vai criar um imposto sobre a renda! Aquela invenção do demônio.
Houve uma grita geral e Peel foi atacado por todos.
— O homem é um miserável anarquista! — disse Masterson.
— Tolice — disse Roach. — Não é uma questão de impostos, o problema é que há gente demais. O negócio é controlar a natalidade.
— O quê? — rugiu Masterson. — Não comece com essa idéia horrorosa e blasfema! Você é um anticristo, pelo amor de Deus?
— Não, por Deus! Mas estamos sendo engolidos pelas classes inferiores. Não estou dizendo que nós deveríamos controlar a natalidade, mas que eles deveriam, por Deus! A maioria dessa ralé é de malfeitores!
Struan atirou os jornais para um lado e foi para o Hotel Inglês. Era um prédio imponente, cheio de colunas, como o clube. Na barbearia, aparou e lavou o cabelo. Mais tarde, mandou chamar Svenson, o marinheiro sueco massagista. O velho retorcido esmurrou-o com mãos de aço e esfregou gelo sobre seu corpo todo, enxugando-o em seguida com uma toalha áspera, até sua carne arder.
— Por Lord Harry, Svenson, sou um homem novo.
Svenson sorriu, mas não disse nada. Sua língua fora arrancada por corsários no Mediterrâneo há muitos anos. Fez sinal para que Struan repousasse na mesa acolchoada e o cobriu de leve com cobertores, deixando-o a dormitar.
— Tai-Pan! — era Lo Chum.
Struan acordou instantaneamente.
— O patrão Culum?
Lo Chum abanou a cabeça e sorriu, desdentado.
— O senhor da saia comprida!
Struan seguiu o taciturno monge jesuíta ao longo das galerias cobertas em torno ao pátio interno, com seu belo jardim.
O relógio da catedral bateu as quatro horas.
O monge virou-se no final da galeria, e abriu uma grande porta de teca que dava para uma vasta ante-sala. As paredes eram cobertas de tapeçarias. Tapetes cobriam o chão de mármore gasto.
Bateu respeitosamente numa porta, na outra extremidade, e entrou num aposento. Imponente como um rei, Falarian Guineppa estava sentado numa cadeira de encosto alto, semelhante a um trono. Ele fez gestos dispensando o monge, que se curvou e saiu.
— Sente-se, por favor, senhor.
Struan sentou-se na cadeira indicada. Era ligeiramente mais baixa do que a do bispo e ele sentiu a força de vontade do homem se estendendo para dominá-lo.
— Mandou chamar-me?
— Pedi-lhe para vir ver-me, sim. Cinchona. Não existe nenhuma em Macau, mas creio que há alguma em nossa missão em Lo Ting.
— Onde fica isso?
— No continente. — O bispo endireitou uma dobra em seu traje carmim. — Cerca de cento e cinqüenta milhas noroeste. Struan levantou-se.
— Vou mandar alguém imediatamente.
— Já fiz isso, senhor. Por favor, sente-se. — O bispo estava solene. — Nosso emissário partiu ao amanhecer, com ordens de fazer um tempo recorde. Acho que conseguirá. Ele é chinês e vem daquela área.
— Quanto tempo acha que ele levará? Sete dias? Seis dias?
— Também estou preocupado com isso. Quantos ataques de febre já teve a moça?
Struan teve vontade de perguntar ao bispo como ele sabia a respeito de May-may, mas se conteve. Percebeu que as fontes para informação secreta dos católicos eram uma legião e, de qualquer maneira, a “moça” seria uma dedução simples para um homem tão astuto como o bispo.
— Uma. Ela começou a suar há dois dias, mais ou menos a essa hora.
— Então terá outro ataque amanhã, ou, com certeza, dentro de quarenta e oito horas. Levará pelo menos sete dias para o mensageiro chegar a Lo Ting e voltar... se tudo correr bem e não houver dificuldades imprevistas.
— Não creio que ela possa suportar mais dois ataques.
— Ouvi dizer que ela é jovem e forte. Deveria poder suportar oito dias.
— Ela está grávida de quatro meses.
— Isso é péssimo.
— Sim. Onde fica Lo Ting? Dê-me um mapa. Talvez eu possa reduzir esse prazo em um dia. — Nessa viagem, meus contatos são mil vezes mais felizes do que os seus — disse o bispo. — Talvez sejam sete dias. Tudo dependerá da vontade de Deus.
Sim, pensou Struan. Mil vezes. Queria ter o conhecimento que os católicos acumularam no curso dos séculos, através de constantes incursões à China. Que Lo Ting será esse? Pode haver cinqüenta, num raio de duzentas milhas.
— Sim — disse ele, afinal — tudo dependerá da vontade de Deus.
— É um homem estranho, senhor. Estou satisfeito de ter tido a oportunidade de conhecê-lo. Gostaria de tomar um cálice de Madeira?
— Qual o preço da casca de árvore? Se existir e se chegar a tempo e curar a enfermidade?
— Gostaria de tomar um cálice de Madeira?
— Obrigado.
O bispo tocou a sineta e, imediatamente, um criado de libré apareceu à porta, com uma bandeja de prata lavrada na qual se achavam a garrafa e os cálices.
— A uma melhor compreensão de muitas coisas, senhor. Eles beberam — e se mediram, reciprocamente.
— O preço, Reverendíssimo?
— Há muitas dúvidas, no momento. A resposta pode esperar. Mas duas coisas não podem. — O bispo saboreou seu vinho. — Madeira é um aperitivo perfeito. — Ele voltou à sua linha de raciocínio. — Estou gravemente preocupado com a Srta. Sinclair.
— Eu também — disse Struan.
— O Padre Sebastião é um médico maravilhoso. Mas ele me levou a acreditar que, se a senhorita não for espiritualmente ajudada, poderá matar-se.
— Não, Mary, não! Ela é muito forte. Não faria uma coisa dessas.
Falarian Guineppa juntou os dedos finos. Um raio de sol liquefez o grande anel de rubi.
— Se fosse inteiramente confiada ao Padre Sebastião, e à Igreja de Cristo, poderíamos transformar sua maldição em bênção. Seria a melhor coisa para ela. Acredito, com todo meu coração, que esta é a única solução real. Mas,— se não for possível, antes de ter alta eu passarei a responsabilidade sobre ela a alguém que a aceite.
— Eu aceito.
— Muito bem, mas eu não acho que seja sensato, senhor. Mesmo assim, sua vida e sua alma... e a dela... estão também nas mãos de Deus. Rezo para que o senhor e ela recebam a bênção da compreensão. Muito bem. Antes de ela partir, farei tudo ao meu alcance para salvar sua alma... mas, logo que estiver em condições de partir, eu mandarei notícias.
O relógio da catedral bateu cinco horas.
— Como está o ferimento do Arquiduque Zergeyev? As sobrancelhas de Struan se franziram.
— Essa é a segunda coisa que não pode esperar?
— Para vocês britânicos, talvez.
Falarian Guineppa abriu uma gaveta e tirou uma pasta de couro para documentos bem fechada.
— Pediram-me para lhe dar isto, com prudência. Parece que certas autoridades diplomáticas estão muito preocupadas com a presença do arquiduque na Ásia.
— As autoridades da Igreja?
— Não, senhor. Pediram-me para lhe dizer que pode, se quiser, passar adiante os documentos. Pelo que soube, alguns selos garantem sua validade. — Um fraco sorriso passou-lhe pelo rosto. — A pasta também está selada.
Struan reconheceu o selo do escritório do governador-geral.
— Por que me dariam segredos diplomáticos? Há canais diplomáticos, o Sr. Monsey está a meia milha daqui e Sua Excelência se encontra em Hong Kong. Ambos se acham bem familiarizados com o protocolo.
— Eu nada lhe estou dando. Simplesmente, faço o que me pediram para fazer. Não se esqueça, senhor, por mais que eu, pessoalmente, deteste o que representa, o senhor é um poder na Corte de St. James e suas ligações comerciais são mundiais. Vivemos em tempos arriscados, e Portugal e Grã-Bretanha são antigos aliados. A Grã-Bretanha tem sido uma boa amiga de Portugal, e é sensato os amigos ajudaram-se mutuamente, não? Talvez seja apenas isso.
Struan pegou a pasta oferecida.
— Mandarei notícia logo que voltar o mensageiro enviado a Lo Ting. — Falarian Guineppa disse. — A qualquer hora. Gostaria que o Padre Sebastião examinasse a senhora?
— Não sei — disse Struan, levantando-se. — Talvez. Vou pensar a respeito, Reverendíssimo.
— Como desejar, senhor. — O bispo hesitou. — Vá com Deus.
— Fique com Deus, Reverendíssimo — respondeu Struan.
— Olá, Tai-Pan — disse Culum, com a cabeça latejando e a língua com gosto de esterco seco.
— Olá, rapaz. — Struan depôs a pasta ainda sem abrir, que o queimara durante todo o caminho para casa. Foi até o aparador e se serviu de um conhaque forte.— Comida, mestre Culum? — perguntou Lo Chum, todo satisfeito. — Porco? Batata? Um caldo de carne? Hein?
Culum abanou a cabeça, fracamente, e Struan dispensou Lo Chum.
— Tome isto — disse ele, dando o conhaque a Culum.
— Não posso — disse Culum, nauseado.
— Beba.
Culum engoliu o conhaque. Sufocou e logo bebeu mais do chá que havia ao lado da cama. Ficou deitado de costas, com as têmporas latejando.
— Gostaria de falar? Dizer-me o que aconteceu?
O rosto de Culum estava cinzento e o branco de seus olhos avermelhado.
— Não consigo lembrar de nada, por Deus. Sinto-me muito mal.
— Comece do princípio.
— Eu estava jogando uíste com Gorth e alguns poucos amigos nossos — disse Culum, com um esforço. — Lembro-me de ter ganho cerca de cem guinéus. Bebemos bastante. Mas eu me recordo de ter posto os ganhos no bolso. Depois... bom, o resto é um vazio.
— Lembra-se para onde foi?
— Não. Não me lembro direito. — Ele bebeu mais chá, com muita sede, e enxugou o rosto com as mãos, tentando afastar a dor. — Ah, meu Deus, eu me sinto terrível.
— Lembra-se para que bordel você foi?
Culum abanou a cabeça.
— Você tem um bordel para o qual vai regularmente?
— Bom Deus, não!
— Não precisa se exaltar, rapazinho. Você esteve num bordel... isto é claro. Foi “depenado” é claro. Sua bebida foi drogada... é claro.
— Fui drogado?
— É o truque mais velho do mundo. Por isso, eu lhe disse para nunca ir a uma casa não recomendada por um homem em que você pudesse confiar. É a primeira vez que vai a uma casa em Macau?
— Sim, sim. Bom Deus, eu fui drogado?
— Agora, use sua cabeça. Pense, rapaz! Lembra-se da casa?
— Não, nada. Tudo um vazio.
— Quem escolheu a casa para você, hein?
Culum se sentou na cama.
— Estávamos bebendo e jogando e eu estava, ah... bastante bêbado. Então, ah... todos começaram a falar de... de garotas. E, ah... — ele olhou para Struan, expondo sua vergonha e seu tormento — eu estava — ah... com a bebida... eu me senti aceso por uma garota. Decidi, então, que tinha... de ir para um bordel.
— Não há perigo nisso, rapaz. Quem lhe deu o endereço?
— Acho... não sei... mas acho que todos me deram um endereço. Escreveram os endereços... ou me disseram os endereços, não consigo lembrar. Eu me lembro de ter saído do clube. Havia uma cadeira à espera e eu entrei. Espere um minuto... eu me lembro agora! Eu disse a ele para me levar ao “E & F”!
— Nunca iriam “depenar” você ali, rapaz. E nem colocar uma droga em sua bebida. E nem trazer você de volta desse jeito. Prezam mais a reputação da casa.
— Não. Tenho certeza. Foi o que eu disse ao homem. Sim. Tenho absoluta certeza!
— Por que caminho conduziram você? Pelo Chinatown?
— Não sei. Parece que me lembro... não sei.
— Você disse que se sentia “aceso”. Como assim?
— Bom, era como... Eu me lembro de me sentir muito quente e, bom... pela morte de Cristo, eu estou frenético de desejo por Tess e com a bebida e tudo... Não tenho paz, então... então eu fui para o bordel... — As palavras se arrastavam. — Ah, Deus, minha cabeça está explodindo. Por favor, deixe-me sozinho.
— Você levou protetores?
Culum abanou a cabeça.
— Aquele fogo. Aquela necessidade. Foi diferente, a noite passada?
Outra vez Culum abanou a cabeça.
— Não. Tem sido a mesma coisa há semanas, mas... bom, de certa maneira, suponho que sim... bom, não, não sei bem. Eu estava duro como ferro e meus rins ardiam como fogo e eu precisava de uma garota, e... não sei! Deixe-me sozinho! Por favor ... desculpe, mas por favor...
Struan foi até a porta.
— Lo Chum... ahhhh!
— Sim, patrão?
— Vá à casa de Chen Sheng. Traga médico da moça doente aqui, depressa! Entendido?
— Muito entendido! — Lo Chum disse, em tom rabugento. — Já tem bom dotô lá embaixo para a doença da cabeça doendo e tudo que é doença. O patrãozinho é como Tai-Pan, não se preocupe!
No andar inferior, Struan conversou com o médico, através de Lo Chum. E o médico disse que enviaria os remédios e alimentos especiais imediatamente, aceitando um pagamento generoso.
Struan voltou para o andar de cima.
— Consegue lembrar alguma outra coisa, rapaz?
— Não, nada. Desculpe. Eu não queria decepcioná-lo.
— Escute, rapaz! Vamos, Culum, é importante!
— Por favor, papai, não fale tão alto — disse Culum, abrindo os olhos desamparadamente. — O quê?
— Parece que fizeram você tomar um afrodisíaco.
— O quê?
— Sim, afrodisíaco. Há dúzias de afrodisíacos que poderiam ser colocados dentro de uma bebida.
— Impossível. Era apenas a bebida e minha necessidade... necessidade... é impossível!
— Só há duas explicações. Primeiro, que os cules levaram você para uma casa... e não foi a sede do “E & F” em Macau... onde eles conseguem mais dinheiro por um cliente rico e uma parcela do roubo. Lá, a moça ou as moças drogaram você, roubaram-no e o mandaram de volta. Para seu bem, espero que tenha sido só isso o que aconteceu. A outra possibilidade é a de que um de seus amigos tenha dado o afrodisíaco a você no clube, e combinado para que a cadeira ficasse à sua espera... e o levasse a uma determinada casa.
— Não faz sentido! Por que alguém faria isso? Por cem guinéus, um anel e um relógio? Um de meus amigos? Isso é loucura.
— Mas, vamos imaginar que alguém o odeie, Culum. Vamos dizer que o plano fosse colocar você com uma moça doente... com sífilis.
— O quê?
— Sim. Temo que tenha acontecido isso.
Culum morreu, por um instante.
— Você só está tentando me assustar.
— Por Deus, meu filho, não. Mas é uma possibilidade muito concreta. Mais provável do que a outra, porque você foi trazido de volta.
— Quem faria isso comigo?
— Essa pergunta você mesmo tem de responder, rapaz. Mas, mesmo que tenha sido o que aconteceu, nem tudo está perdido. Ainda. Mandei buscar remédios chineses. Você precisa beber tudo, sem faltar nada.
— Mas não existe cura para a sífilis!
— Sim. Quando a doença está instalada. Mas os chineses acreditam que se pode matar o veneno da sífilis, ou aquilo que a provoca, quando se toma precauções imediatas para purificar o sangue. Anos atrás, quando vim para cá pela primeira vez, a mesma coisa aconteceu comigo. Aristotle me encontrou numa sarjeta, no quarteirão chinês, mandou buscar um médico chinês e tudo acabou bem. Foi assim que o encontrei... e o motivo pelo qual é meu amigo há tanto tempo. Não posso ter certeza de que a casa ou a moça estavam contaminadas ou não, mas nunca peguei a sífilis.
— Ah, que Deus me ajude!
— Sim. Não teremos certeza por uma semana. Se, até daqui a uma semana, não houver inchação, dor ou supuração... desta vez você escapou. — Viu o terror nos olhos do filho e foi dominado pela compaixão. — Você tem uma semana do inferno em sua frente, rapazinho. Esperando para saber. Sei como é isso... procure não se torturar muito. Ajudarei no que puder. Como Aristotle me ajudou.
— Eu me matarei. Eu me matarei se... ah, Deus, como posso ter sido tão tolo? Tess! Ah, Deus, é melhor dizer...
— Você não vai fazer uma coisa dessas! Diga a ela que foi atacado por assaltantes, no caminho de casa. Nós daremos queixa como tal. Diga a mesma coisa a seus amigos. Que você acha que deve ter bebido demais... depois de estar com a moça. Que não consegue lembrar de nada, a não ser que se divertiu muito e acordou lá. E, durante a semana, comporte-se da maneira habitual.
— Mas Tess! Como é que eu posso...
— É o que você vai fazer, rapazinho! É o que vai fazer, por Deus!
— Não posso, papai, é simplesmente imp...
— De maneira alguma você contará a qualquer pessoa a respeito dos remédios chineses. Não vá a nenhum bordel até termos certeza, e não toque em Tess, até se casarem.
— Estou com tanta vergonha.
— Não precisa ter, rapaz. É difícil ser jovem. Mas, neste mundo, o homem deve ter cuidado com as costas. Há uma porção de cães loucos por aí.
— Quer dizer que foi Gorth?
— Não estou dizendo nada. Acha que foi?
— Não, claro que não. Mas é isso que você está pensando, não?
— Não esqueça, você tem de agir de maneira normal, senão perderá Tess.
— Por quê?
— Acha que Liza e Brock iriam permitir que se casasse com Tess, se descobrissem que você é tão imaturo e estúpido a ponto de ir a bordéis em Macau bêbado... e a um bordel desconhecido, encher-se de poções de amor e ser roubado? Se eu fosse Brock, diria que você não tem bom senso suficiente para ser meu genro!
— Desculpe.
— Descanse um pouco, rapaz. Voltarei mais tarde.
E, no caminho todo, até à casa de May-may, Struan ficou decidindo sobre a maneira de matar Gorth — se Culum tivesse sífilis. Da maneira mais cruel. Sim, ele pensou, friamente, eu posso ser muito cruel. Este não vai ser um assassinato simples — e nem rápido. Por Deus!
— Você está com um aspecto terrível, querido Culum — disse Tess. — Precisa mesmo ir dormir cedo.
— Sim.
Passeavam ao longo da praia, na noite tranqüila. Ele acabara de jantar e tinha a cabeça desanuviada, mas sua agonia era quase insuportável.
— O que há? — ela perguntou, sentindo o tormento de Culum.
— Nada, querida, bebi demais, foi só isso. E aqueles assaltantes não eram lá muito gentis. Por Deus, juro que não beberei durante um ano. — Por favor, meu Deus, não deixai que nada aconteça. Fazei com que a semana passe depressa, e nada aconteça.
— Vamos voltar — ela disse e, pegando firmemente no braço dele, encaminhou-o para a residência dos Brocks. — Uma boa noite de descanso vai fazer muito bem a você.
— Ela se sentia muito maternal e não podia deixar de se sentir feliz, ao ver que ele estava quase desamparado. — Estou satisfeita por você repudiar a bebida por um ano. Meu pai se embriaga terrivelmente, algumas vezes... e Gorth, puxa vida, muitas vezes vi ele embrutecido.
— Eu o vi — disse ele, corrigindo-a.
— Eu o vi embrutecido. Ah, estou tão satisfeita por nos casarmos logo.
Que possível razão teria Gorth para fazer isso?, Culum perguntou a si mesmo. O Tai-Pan deve estar exagerando. Deve estar. Um criado abriu a porta e Culum levou Tess para a sala de visitas.
— De volta tão cedo, amores? — perguntou Liza.
— Estou um pouco cansada, mamãe.
— Bom, já vou indo — disse Culum. — Verei você amanhã. Vai para o jogo de críquete?
— Ah, sim? Vamos, mamãe!
— Quem sabe não quer nos acompanhar, caro Culum?
— Obrigado. Gostaria, sim. Eu as verei amanhã. — Culum beijou a mão de Tess. — Boa-noite, Sra.Brock.
Boa-noite, rapaz.
Culum virou-se para a porta, justamente quando Gorth entrava.
— Ah, olá, Gorth.
— Olá, Culum. Eu estava esperando você. Vou tomar uma bebida no clube. Por que não vem também?
— Hoje à noite não, obrigado. Estou exausto. Noites demais dormindo tarde. E há o críquete, amanhã.
— Uma bebida não lhe fará mal. Depois de apanhar, é a melhor coisa.
— Hoje à noite não, Gorth. Mas obrigado. Verei Você amanhã.
— Como quiser, amigo velho. Mas tome conta de você mesmo. — Gorth fechou atrás de si a porta da frente.
— Gorth, o que aconteceu a noite passada? — Liza o examinou.
— O pobre rapaz atravessou um mau pedaço. Saí do clube, como lhe disse, antes dele, então não sei. O que ele contou a Tess?
— Que bebeu muito e foi atacado por bandoleiros. — Ela riu. — Pobre Culum, acho que vai se curar do demônio da bebida por um longo tempo.
— Quer ir pegar meus charutos, Tess, querida? — perguntou Gorth. — Estão na cômoda.
— Pois não — disse Tess, e saiu correndo.
— Ouvi dizer — falou Gorth — ouvi dizer que nosso Culum andou saindo fora da linha.
— O quê? — Liza parou de costurar.
— Não tem perigo — disse Gorth. Talvez eu não devesse ter contado. Não tem perigo quando o homem é cuidadoso, por Deus! Sabe do que um homem gosta.
— Mas ele vai casar com a nossa Tess! E ela não vai casar com um devasso.
— Sim. Acho que vou ter uma conversa com o rapaz. É melhor ter cuidado em Macau, não há dúvida quanto a isso. Se papai estivesse aqui, seria diferente. Mas tenho de proteger a família... e o pobre rapaz de suas fraquezas. Não vá dizer nada a respeito disso, hein?
— Claro que não. — Liza detestava aquilo que tornava os homens masculinos. Por que não podiam controlar-se? Talvez seja melhor eu pensar outra vez a respeito desse casamento. — Tess não vai casar com um devasso. Mas Culum não é assim, de jeito nenhum. Tem certeza do que está dizendo?
— Sim — disse Gorth. — Pelo menos, foi o que alguns dos rapazes disseram.
— Eu queria que seu pai estivesse aqui.
— Sim — disse Gorth. E depois acrescentou, como se estivesse tomando uma decisão súbita. — Acho que vou visitar Hong Kong por um ou dois dias, a fim de conversar com papai. É melhor. E, depois, falarei com o próprio Culum. Partirei com a maré.
Struan terminou de ler a última página da tradução inglesa dos documentos russos. Lentamente, ajeitou as páginas, recolocou-as na pasta e deixou que esta permanecesse em seu colo.
— Que há? — perguntou May-may. — Por que está tão fantasticamente silencioso, hein? — Ela estava recostada na cama, sob um mosquiteiro, com seu vestido de seda dourada tornando-lhe a pele mais branca.
— Nada, garota.
— Deixe os negócios para lá e converse comigo. Há uma hora, você parece um professor.
— Deixe-me pensar por cinco minutos. Depois, conversarei com você, hein?
— Sim — ela disse. — Se eu não estivesse doente, estaríamos juntos na cama o tempo todo.
— Claro que sim, garota. — Struan foi até à porta do jardim e ficou olhando o céu noturno. As estrelas estavam brilhantes e tudo fazia prever bom tempo. May-may ajeitou-se na cama e ficou a observá-lo. Ele está parecendo muito cansado, pensou. Pobre Tai-Pan, tantos problemas.
Ele lhe contara a respeito de Culum e seus temores por ele, mas nada com relação a Gorth. Dissera também que a casca de árvore que curava a febre chegaria dentro de poucos dias. E lhe contara a respeito de Mary, maldizendo Ah Tat.
— Louca assassina. Ela deveria ter visto o que estava fazendo. Se Mary me cantasse, ou a você, poderíamos tê-la mandado para ter o bebê em segurança,
secretamente. Para a América, ou alguma outra parte. O bebê poderia ter sido adotado e...
— E Glessing? — ela perguntou. — Será que ainda teria casado com ela? Nove meses depois?
— Isso acabou, de qualquer jeito!
— Quem é o pai? — May-may perguntou.
— Ela não me contaria — disse Struan, e May-may sorriu para si mesma. — Pobre Mary — acrescentou. — Agora, a vida dela acabou.
— Bobagem, Tai-Pan. O casamento pode realizar-se se Glessing e Horatio jamais souberem.
— Você perdeu a cabeça? Claro que tudo isso acabou... o que você diz é impossível. Desonesto, terrivelmente desonesto.
— Sim. Mas o que jamais é sabido não tem importância, e a razão para esconder é boa, e não má, pode ter certeza.
— Como ele jamais saberá, por Deus? Hein? Com certeza, descobrirá. Certamente, vai saber que ela não é virgem.
Há maneiras, Tai-Pan, May-may pensou. Maneiras de enganar. Vocês homens são tão simplórios em relação a certas coisas. As mulheres são muito mais espertas a respeito da maioria das coisas importantes.
E ela resolveu mandar alguém a Marr-rry, capaz de explicar tudo que era necessário e, assim, acabar com essa tolice suicida. Quem? Obviamente, a Irmã Mais Velha, a terceira esposa de Chen Sheng, que outrora estivera num bordel e sabia, com certeza, esses segredos. Vou mandá-la amanhã. Ela saberá o que dizer a Marr-rry. Então Marr-rry não é mais problema. Com pagode. Mas, e Culum, Gorth, e Tess? Em breve, não haverá problema, com o assassinato. E o problema de minha febre? Este será resolvido de acordo com meu pagode. Todas as coisas são resolvidas de acordo com o pagode, então por que se preocupar? É melhor aceitar. Tenho pena de você, Tai-Pan. Você pensa tanto e planeja tanto e tenta eternamente mudar o pagode, de acordo com seus caprichos, mas não é assim, é?, ela perguntou a si mesma. Mas, decerto, ele faz apenas o que você faz, o que todos os chineses fazem. Ri do destino e do pagode e dos deuses e tenta usar homens e mulheres para executar seus objetivos. E mudar o pagode. Sim, claro que isso está certo. De muitas maneiras, Tai-Pan, você é mais chinês do que os chineses.Afundou mais na coberta perfumada e esperou que Struan conversasse com ela.
Struan, entretanto, estava completamente concentrado no que soubera através dos documentos da pasta.
Os documentos incluíam uma cópia traduzida de um relatório secreto preparado pelo Tzar Nicolau I, em julho do ano passado, 1840, e continha, o que era incrível, mapas das ilhas entre a Rússia e a China. Só os mapas, os primeiros que Struan vira, tinham um valor incalculável. Havia também uma análise das implicações dos documentos.
O relatório secreto fora preparado pelo Príncipe Tergin, chefe da Comissão de Planejamento do Ministério de Relações Exteriores. Dizia:
“É nossa opinião, baseada em dados, que dentro de meio século o Tzar governará do Báltico ao Pacífico, dos mares gelados do norte até o Oceano Indico, e estará em posição de dominar o mundo se a seguinte estratégia for adotada, dentro dos próximos três anos.
“A chave para a dominação do mundo é a Ásia, e mais a América do Norte. A América do Norte está quase em nossas mãos. Se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nos derem dez anos de liberdade, na parte russa da América, o Alasca, toda a América do Norte será nossa.
“Nossa posição ali é sólida e amistosa. Os Estados Unidos de maneira alguma consideram nossa vasta extensão territorial nas terras desérticas do norte como uma ameaça. A consolidação do Alasca até nosso ‘forte comercial’ mais ao sul, ao norte da Califórnia — e de lá, por terra, até o Atlântico — pode ser realizada pelo método habitual: emigração imediata, em vasta escala. A maior parte do oeste dos Estados Unidos e todo leste do Canadá, com exceção de uma pequena parte, estão atualmente quase despovoados. Portanto, o volume de nossa emigração para os ermos do norte pode ser mantido em segredo — e deve ser. De lá, os emigrantes, que seriam nossas valentes tribos guerreiras eurasiáticas — uzbeks, turcos, siberianos, kirghiz, tardzhiks e uigurs — muitas das quais consistiriam, deliberadamente, em povos nômades, abrir-se-iam num leque e reivindicariam toda a terra, quase à vontade.
“Devemos manter relações cordiais com a Inglaterra e os Estados Unidos, durante os próximos dez anos. Por essa época, a emigração terá tornado a Rússia a mais viril potência européia e nossas tribos — que, outrora, formaram as hordas de Tamerlão e Gêngis Khan — armadas com equipamento moderno e comandadas por russos podem, segundo nossos desejos, empurrar os anglo-saxões para o mar.” Mas, mil vezes mais importante — a Ásia. Podemos ceder a América, nunca a Ásia.
“A chave para a Ásia é a China. E a China fica aos nossos pés. Temos quase cinco mil milhas de terra contínua de fronteira com o Império Chinês. Devemos controlar a China, ou jamais estaremos em segurança. Não podemos nunca permitir que ela se torne forte ou seja dominada por outra grande potência, caso contrário ficaremos presos numa armadilha entre Leste e Oeste e poderemos ser forçados a entrar em guerra nas duas frentes. Nossa política para a Ásia é axiomática: a China deve ser mantida fraca, vassala e sob a esfera russa de influência.
“Só uma potência — a Grã-Bretanha — se interpõe entre nós e o sucesso. Se puder ser impedida, através da astúcia ou de pressão, de adquirir e consolidar uma ilha-fortaleza ao largo da China, a Ásia será nossa.
“Claro, não ousamos alienar nossa aliada Grã-Bretanha, nesta oportunidade. A França, a Polônia, a Prússia e os Habsburgos não estão, de maneira alguma, satisfeitos com a détente dos Dardanelos, como também a Rússia, e devemos permanecer em guarda constante contra suas contínuas hostilidades. Sem o apoio britânico, nosso território sagrado estaria aberto a uma invasão. Contanto que os britânicos sustentem sua posição declarada na China — que eles ‘meramente desejem estabelecer relações comerciais e armazéns comerciais abertos a uma participação igual de todas as nações ocidentais’ — poderemos avançar para Sinkiang, Turquestão e Mongólia, e controlar as vias terrestres para a China. (Já dominamos as rotas de invasão, facilmente alcançáveis a partir da passagem de Khyber e de Kashmir e, em seguida, entrando na índia britânica.) Caso se filtre alguma notícia sobre nossas conquistas territoriais, nossa posição oficial será a de que ‘a Rússia está meramente dominando tribos selvagens hostis em nosso interior’. Dentro de cinco anos, deveremos estar colocados nos umbrais do coração da China, a noroeste de Pequim. Então, através de simples pressão diplomática, estaremos em posição de forçar conselheiros do Imperador Manchu e, através dele, controlar o Império Chinês, até a ocasião em que possa ser convenientemente repartido em Estados vassalos. A hostilidade entre os senhores manchus e os súditos chineses é muito favorável a nós e, é claro, continuaremos a encorajá-la.
“Custe o que custar, devemos encorajar e assistir os interesses comerciais britânicos no sentido de se instalarem nos portos continentais da China, onde seriam contidos pela pressão chinesa direta que nós, no devido tempo, controlaríamos diplomaticamente. E, a todo custo, precisamos desencorajar a Inglaterra de fortificar e colonizar qualquer ilha — como fizeram em Cingapura, Malta, Chipre (ou uma posição inexpugnável, como Gibraltar) — que não estaria sujeita à nossa pressão e serviria como bastião permanente para seu poderio militar e naval. Seria vantajoso iniciar relações comerciais imediatas e próximas com firmas escolhidas naquela área.
“A pedra angular para a nossa política externa deve ser ‘deixemos a Inglaterra dominar os mares e as rotas comerciais, e ser a primeira nação industrial da terra. Mas que a Rússia domine a terra’. Pois, uma vez garantida a terra — e é nossa herança sagrada, um direito dado por Deus, civilizar a terra — os mares se tornarão russos. E, assim, o Tzar de todas as Rússias dominará o mundo.”
Zergeyev poderia facilmente ser uma chave para o plano, pensou Struan. Será ele o homem enviado para descobrir a nossa força na China? Para estabelecer “relações comerciais com firmas escolhidas”? Não fará parte de sua missão informar, em primeira mão, sobre as atitudes americanas diante do Alasca russo? Será ele o homem enviado para preparar o Alasca russo para as hordas? Lembre-se de que ele lhe disse: “A terra é nossa, o mar é de vocês!”
O comentário sobre esse relatório era igualmente ousado e penetrante: “Com base neste documento secreto e nos mapas anexos, cuja validade não deve ser questionada, podem ser tiradas certas conclusões de longo alcance:
“Primeira, com relação à estratégia norte-americana: Deve-se notar que, embora os Estados Unidos estejam gravemente preocupados com a atual disputa de fronteiras entre o país e o Canadá britânico, não deseja, segundo parece, adquirir mais território no continente norte-americano. E, devido às relações amistosas existentes entre os Estados Unidos e a Rússia — cuidadosamente alimentadas, segundo se acredita, para alcançar esse objetivo — o sentimento político dominante, atualmente, em Washington, é de que o envolvimento russo no Alasca e para o sul, pela costa oeste, não atinge a soberania do país. Em suma, os Estados Unidos da América não invocarão a Doutrina Monroe contra a Rússia e assim — espantosamente — deixarão sua porta dos fundos aberta para uma potência estrangeira, contrariando seus óbvios interesses. E, seguramente, contrariando os interesses do Canadá britânico. Se quinhentos mil membros de tribos eurasiáticas forem introduzidos, discretamente, no norte, como é perfeitamente possível, com certeza os ingleses e americanos ficarão numa posição completamente insustentável.” É preciso notar, além disso, que embora o atual Tzar sinta desprezo pela América russa, este território constitui uma chave russa para o continente. E, se chegar a ocorrer uma guerra civil nos Estados Unidos, relativa à questão dos escravos, como realmente parece inevitável, essas tribos russas estariam em posição de dominar o conflito. Isto, certamente, levaria a Inglaterra e a França à guerra. As hordas nômades russas, com curtas linhas de comunicação por sobre o Mar de Bhering e uma capacidade primitiva de viver ao largo da terra, teriam uma nítida vantagem. E, como a maior parte das terras ocidentais e a sudoeste é escassamente povoada, esses povoadores — ou “guerreiros” — poderiam abrir caminho para o sul com relativa facilidade.
“Assim, se a Inglaterra quiser manter sua posição como potência mundial e anular o constante desejo da Rússia de dominar o mundo, deve primeiro eliminar a ameaça do Alasca russo ao Canadá e aos débeis Estados Unidos. Deve persuadir este país, por todos os meios a seu alcance, a invocar a Doutrina de Monroe para expulsar a ameaça russa. Ou deve exercer pressão diplomática e comprar este território, ou tomá-lo através da força. Pois, a menos que a Rússia seja rapidamente contida, toda a América do Norte, dentro de meio século, estará sob seu domínio.
“Em segundo lugar, a Inglaterra deve manter absoluta predominância na China. É necessário verificar a extensão de território já conquistado pelos russos até o outro lado dos Urais e ver até onde eles já penetraram em terras que se encontram frouxamente sob o domínio histórico do Imperador chinês.” Com uma série de mapas, datas e lugares, cópias traduzidas de tratados, todo o panorama do deslocamento russo para leste estava documentado.
“Durante os últimos trezentos anos (desde 1552), exércitos moscovitas trabalharam firmemente em direção a leste, em sua procura de uma fronteira ‘definitiva’! Por volta de 1640, Okhotsk; no Mar de Okhotsk, norte da Manchúria, no Oceano Pacífico, foi alcançada. Imediatamente, esses exércitos moveram-se para o sul e, pela primeira vez entraram em conflito com hordas sino-manchus.
“O Tratado de Nerchinsk, em 1689, assinado entre a Rússia e a China, fixava a fronteira norte entre os dois países ao longo do Rio Argun e das Montanhas Stanovoi. Toda a Sibéria, a leste da Manchúria, era cedida à Rússia. Até então, esta linha era uma fronteira russa ‘definitiva’ ao norte da China.
“Mais ou menos nessa ocasião, em 1690, um russo chamado Zaterev foi enviado por terra a Pequim, como embaixador. A caminho, ele examinou os meios de uma possível invasão do incrivelmente rico coração da China. A melhor rota que descobriu seguia o corredor natural do Rio Selenga, que se dirige para as planícies ao norte de Pequim. A chave para esta rota é a posse do Turquestão, da Mongólia Externa e da província chinesa de Sinkiang.
“E, como declarou o relatório do Príncipe Tergin, os exércitos russos já dominam a Eurásia, ao norte da Manchúria, em direção ao Pacífico, e já se encontram nas fronteiras de Sinkiang, do Turquestão e da Mongólia Externa. É desta direção que, adequadamente, partirá a invasão russa à China, e continuará a partir, por um longo tempo.”
O relatório acrescentava: “A menos que a Grã-Bretanha mantenha uma atitude firme de que a China e a Ásia estão sob sua esfera de influência, os conselheiros russos estarão em Pequim dentro de uma geração. Os exércitos russos controlarão todas as rotas de acesso fáceis procedentes do Turquestão, Afeganistão, Kashmir, para a Índia britânica, e todo Império Britânico Indiano pode ser invadido e engolido à vontade.
“Se a Inglaterra quiser continuar como potência mundial, é vital que a China seja transformada em baluarte contra a Rússia. É vital que os avanços russos sejam detidos na área de Sinkiang. É vital que uma fortaleza britânica dominante seja localizada na China, porque, sozinha, a China não tem capacidade de defesa. Se a China for deixada fenecer em seus hábitos milenares e não for ajudada a emergir na era moderna, será conquistada facilmente pela Rússia e o equilíbrio da Ásia destruído.
“Em conclusão: É lamentável que Portugal não seja suficientemente forte para deter a fome de terra dos russos. Nossa única esperança é que nossa antiga aliada, a Inglaterra, impeça, pela superioridade e pela força, o que parece inevitável.
“Só por esta razão preparamos ilegalmente este dossiê, sem nenhuma permissão, oficial ou não. O relatório do Príncipe Tergin e os mapas foram adquiridos em São Petersburgo, e chegaram a mãos não-oficiais e amistosas em Portugal. E delas passaram às nossas.
“Pedimos a Sua Eminência — que não tem conhecimento de qualquer destas informações — para colocar esses documentos nas mãos do Tai-Pan da Casa Nobre, que garantirá, segundo acreditamos, sua chegada ao destino correto, permitindo sejam tomadas medidas, antes de ser demasiado tarde. E, como medida de nossa sinceridade, assinamos nossos nomes, rezando para que nossas carteiras e talvez as nossas vidas estejam em mãos igualmente seguras.”
O relatório era assinado por dois peritos portugueses em política externa, de menor importância, que Struan conhecia ligeiramente.Ele atirou a ponta de seu charuto no jardim e espiou-a consumir-se. Sim, disse a si próprio, é inevitável. Mas não, se conservarmos Hong Kong. Maldito Lord Cunnington.
Como usar as informações? É fácil. Logo que eu voltar a Hong Kong, uma palavra nos ouvidos de Longstaff e de Cooper. Mas, o que ganho com isso? Por que eu próprio não vou para meu país? Este tipo de conhecimento representa uma oportunidade única na vida. E Zergeyev? Será que conversaremos sobre “assuntos específicos”, agora? Devo negociar com ele?
— Tai-Pan?
— Sim, garota?
— Quer fechar a porta para o jardim? Estou ficando com muito frio.
A noite estava quente.
Calafrios convulsionavam May-may. Calores a consumiam. Durante o delírio, May-may sentiu seu útero romper-se e gritou. A vida em formação deixou-a e levou-lhe tudo, menos uma simples centelha de sua alma e força. Então, a febre cedeu e o suor livrou-a do pesadelo. Durante horas, ela oscilou à beira da morte. Mas seu pagode determinou que voltasse.
— Olá, Tai-Pan. — Sentia o contínuo vazamento do seu útero. — É mau pagode perder bebê — sussurrou.
— Não se preocupe. Procure só melhorar. A qualquer momento a casca de árvore cinchona vai chegar. Sei que vai.
May-may reuniu suas forças e deu de ombros, com um vestígio de seu antigo ar imperioso.
— Malditos sejam os homens de saias compridas. Como pode um homem correr de saias, hein?
Mas o esforço esgotou-a e ela deslizou para a inconsciência. Dois dias depois, parecia muito mais forte.
— Bom-dia, garota. Como se sente hoje?
— Fantasticamente bem — disse May-may. — Está um belo dia, hein? Viu Marrrry?
— Sim. Ela parece muito melhor. Uma mudança incrível. Quase miraculosa!— Por que uma mudança tão boa, hein? — ela perguntou, inocentemente, sabendo que a Irmã Mais Velha fora vê-la, na véspera.
— Não sei — ele disse. — Vi Horatio, pouco antes de partir. Ele trouxe algumas flores. Por falar nisso, ela lhe agradeceu pelas coisas que você lhe enviou. O que foi?
— Mangas e um pouco de chá de ervas que meu médico recomendou. Ah Sam foi lá, há dois ou três dias. — May-may descansou por um momento. Mesmo falar era um grande esforço para ela. Precisava ficar muito forte, aquele dia, disse a si própria com firmeza.
Há muito a fazer hoje, e amanhã chegará a febre outra vez. Ah, bem, pelo menos agora não há problemas para Marr-rry — ela está salva. Tão fácil, agora que a Irmã Mais Velha explicou a ela o que todas as mocinhas nos bordéis aprendem — que, com cuidado e meticuloso fingimento, lágrimas de fingida dor e medo, e as modestas manchas finais, denunciadoras, cuidadosamente colocadas, uma moça pode, se necessário, ser virgem dez vezes, para dez homens diferentes.
Ah Sam entrou, prosternou-se e murmurou alguma coisa para ela. May-may se alegrou.
— Ah, muito bom, Ah Sam! Você pode ir. — E, depois para Struan: — Tai-Pan, preciso de alguns taéis de prata, por favor.
— Quantos?
— Muitos. Estou pobre. Sua velha mãe gosta muito de você. Por que perguntar essas coisas?
— Se você se apressar e melhorar, eu lhe darei todos os taéis de que você precisar.
— Você me dá grande prestígio, Tai-Pan. Grande prestígio. Vinte mil taéis pelo remédio para a cura... Ayeee yah, valho para você tanto quanto uma imperatriz.
— Gordon lhe contou?
— Não. Eu estava escutando, à porta. Claro! Acha que sua velha mãe gosta de não saber o que o médico diz e o que você diz, hein? — ela deu uma olhada para a porta.
Struan virou-se e viu uma linda jovem curvando-se, graciosamente. Seu cabelo estava enrolado num espesso coque escuro no alto de sua bela cabeça, e enfeitado com ornamentos de jade e flores. Seu rosto em forma de amêndoa era como o mais puro alabastro.
— Essa é Yin-hsi — disse May-may. — Ela é minha irmã.
— Não sabia que você tinha irmã, garota. Ela é muito bonita.
— Sim, mas... bom, ela não é realmente irmã, Tai-Pan. As senhoras chinesas muitas vezes chamam umas às outras de “irmã”. É cortesia. Yin-hsi é seu presente de aniversário.
— O quê?
— Eu a comprei para seu aniversário.
— Você está fora de si?
— Ah, Tai-Pan, você é muito exasperante, algumas vezes demais! — disse May-may, começando a chorar. — Seu aniversário é daqui a quatro meses. Nessa ocasião, eu estarei com a barriga enorme, então mandei procurar uma “irmã”. Foi difícil decidir a melhor escolha. Ela é a melhor e agora, como estou doente, dou logo o presente, não vou esperar. Não gosta dela?
— Bom Deus, garota! Não chore, May-may. Escute. Não chore... Claro que gosto de sua irmã. Mas não se faz isso, comprar moças como presente de aniversário, pelo amor de Deus!
— Por que não?
— Ora, porque não!
— Ela é muito boazinha... quero que seja minha irmã. Eu ia ensinar a ela, durante esses quatro meses, mas agora... — Começou a soluçar, outra vez.
Yin-hsi veio correndo da porta, e se ajoelhou diante de May-may, segurando-lhe a mão e lhe enxugando as lágrimas, com solicitude, além de ajudá-la a beber um pouco de chá. May-may avisara-a de que os bárbaros são, algumas vezes, estranhos e mostram sua felicidade gritando e praguejando, portanto não deveria preocupar-se.
— Veja, Tai-Pan, como ela é bonita! — disse May-may. — Claro que gosta dela, não?
— Isso não vem ao caso, May-may. Claro que gosto dela.
— Então, está tudo decidido. — May-may fechou os olhos e tornou a se aninhar nos travesseiros.
— Não está decidido.
Ela reuniu forças para uma repreensão final.
— Está sim, e não vou mais discutir com você, por Deus! Peguei muito dinheiro por ela e ela é a melhor e não posso mandá-la embora, porque perderia todo prestígio e teria de se enforcar.
— Não seja ridícula!
— Juro a você que ela se enforca, Tai-Pan. Todos sabem que eu estava procurando uma nova irmã para mim e para você e, se você a mandar embora, o prestígio dela acaba. Acaba de vez. Ela vai se enforcar, pode ter certeza!
— Não chore, garota, por favor.
— Mas você não gostou de meu presente de aniversário.
— Gosto dela, e você não precisa mandá-la embora — ele disse, depressa; faria qualquer coisa para impedir suas lágrimas. — Diga a ela que fique. Ela será... uma irmã para você e, quando você estiver boa nós... nós encontraremos um bom marido para ela. Hein? Não há necessidade de chorar. Vamos, garota, pare com essas lágrimas.
Afinal, May-may parou de chorar e ficou outra vez deitada de costas. Sua irritação tira-lhe muito de sua preciosa energia. Mas valeu a pena, exultou. Agora, Yin-hsi ficará. Se eu morrer, ele estará em boas mãos. Se eu viver, ela será minha irmã, e a segunda irmã da casa, pois claro que ele a quererá. Claro que ele a quererá, ela disse a si mesma, enquanto adormecia. Ela é tão bonita.
Ah Sam entrou.
— Patrão. O patrãozinho está aí fora. Pode encontrar com ele?
Struan estava alarmado com a terrível palidez de May-may.
— Chame o médico depressa, entendido?
— Entendido, patrão.
Struan, desanimado, saiu do quarto. Ah Sam fechou a porta, e se ajoelhou ao lado da cama, dizendo a Yin-hsi:
— Segunda Mãe, eu preciso mudar a roupa da Suprema Senhora, antes do médico chegar.
— Sim. Eu vou ajudá-la, Ah Sam — disse Yin-hsi. — Papai certamente é um estranho gigante. Se a Suprema Senhora e você não me tivessem avisado, eu ficaria muito assustada.
— Papai é muito bom. Para um bárbaro. Claro, a Suprema Senhora e eu temos treinado Papai — Ah Sam franziu a testa, diante de May-may, que estava profundamente adormecida. — Ela parece realmente muito mal.
— Sim. Mas meu astrólogo previu boas notícias, de modo que devemos ser pacientes.
— Olá, Culum — disse Struan, ao entrar no belo jardim da frente, cercado por muros.
— Olá, Tai-Pan. Espero que não se incomode por eu vir aqui. — Culum ergueu-se do banco à sombra do salgueiro e tirou uma carta. — Acaba de chegar e... bom, em vez de mandar Lo Chum, achei que gostaria de ver como você estava. E saber como ela está.
Struan pegou a carta. Tinha uma anotação “Pessoal, Particular e Urgente” — e vinha de Morely Skinner.
— Perdeu a criança anteontem — disse ele.
— Terrível! — disse Culum. — A cinchona veio?
Struan abanou a cabeça.
— Sente-se, rapaz. — Abriu a carta.
Morely Skinner escrevia que pretendia reter a notícia sobre o “repúdio” até Struan voltar — achava perigoso liberá-la em sua ausência — mas agora era imperativo publicar
o relatório, imediatamente: “Uma fragata inglesa chegou hoje de manhã. Meu informante, na nau capitania, disse que o almirante ficou deliciado com o despacho particular do almirantado que recebeu, e alguém o ouviu dizer: ‘Está mesmo na hora, diabo! Com sorte, estaremos no norte dentro de um mês.’ Isto só pode significar que ele também sabe da notícia e a chegada de Whalen é iminente. Não posso enfatizar o suficiente a necessidade de sua volta. A propósito, ouvi dizer que há uma curiosa cláusula adicional no acordo entre Longstaff e Ching-so sobre o resgate de Cantão. Finalmente espero que tenha podido provar, de uma maneira ou de outra, o valor da casca da árvore cinchona. Lamento que, pelo que sei, não haja nenhuma por aqui. Sou, senhor, o seu mais humilde criado, Morely Skinner.”
May-may não resistirá a outro acesso de febre, pensou Struan, angustiado. Esta é a verdade, e você precisa encará-la. Amanhã, estará morta — a não ser que chegue a cinchona. E quem sabe se realmente irá curá-la?
Se ela morrer, você precisa salvar Hong Kong. Se ela viver, você precisa salvar Hong Kong. Mas, por quê? Por que não deixar aquela maldita ilha como era antes? Você pode estar errado — Hong Kong pode não ser necessária à Inglaterra. O que você prova, com sua louca cruzada para abrir a China e trazê-la para o mundo em seus termos, à sua maneira? Deixe a China ao seu próprio pagode e volte para seu país. Com May-may, se ela viver. E deixe Culum encontrar seu próprio valor como Tai-Pan. Um dia, você morrerá, e então a Casa Nobre encontrará seu próprio valor. Esta é a lei — a lei de Deus, a lei da natureza, e a lei do pagode.
Vá para a Inglaterra, e goze aquilo por que você suou e se sacrificou. Libere Culum de sua servidão de cinco anos; há mais do que suficiente para sustentar você, ele e os filhos de seus filhos. Deixe Culum decidir se quer ficar ou não. Vá para a Inglaterra e esqueça. Você é rico e poderoso e poderá freqüentar as cortes dos reis, se quiser. Sim. Você é o Tai-Pan. Parta como o Tai-Pan e a China que vá para o inferno. Desista da China. Ela é uma amante-vampiro.
— Mais notícias ruins?
— Ah, desculpe, Culum, esqueci de você. O que disse?
— Mais notícias ruins?
— Não, mas são importantes.
Struan notou que os últimos sete dias haviam marcado Culum. Não há mais traços juvenis em seu rosto, rapaz. Você é um homem. Então, lembrou-se de Gorth e pensou que não poderia sair da Ásia sem um ajuste de contas — com Gorth e com Brock.
— Hoje é o seu sétimo dia, rapaz, o último, não é?
— Sim — disse Culum.
Ó Deus, ele pensou, protegei-me contra outra semana dessas. Duas vezes, sentira um medo mortal. Uma vez, doera ao urinar e, outra, parecia haver uma inchação e coceira. Mas o Tai-Pan o acudira, e pai e filho se aproximaram mais um do outro. Struan lhe contara a respeito de May-may.
E, nas vigílias noturnas, Struan falara ao filho como um pai algumas vezes pode falar, quando a dor — ou, algumas vezes, a felicidade — abre todas as portas. Planos para o futuro, problemas do passado. Como é difícil amar alguém e viver com alguém, no curso dos anos. Struan levantou-se.
— Quero que vá para Hong Kong imediatamente — disse a Culum. — Irá no China Cloud, com a maré. Colocarei o Capitão Orlov oficialmente sob suas ordens. Nesta viagem, você será o capitão do China Cloud.
Culum gostou da idéia de ser capitão de um verdadeiro clíper. Sim.
— Logo que chegar a Hong Kong, mande o Capitão Orlov levar Skinner para bordo. Entregue-lhe pessoalmente uma carta que lhe darei. Depois, faça a mesma coisa com outra, para Gordon. Em hipótese alguma vá você próprio para terra, ou permita qualquer outra pessoa a bordo. Logo que Skinner e Gordon tiverem escrito suas respostas, mandeos de volta à terra e retorne para cá, imediatamente. Você deve estar de volta amanhã à noite. Parta com a maré do meio-dia.
— Está bem. Não posso agradecer-lhe o suficiente por... bom, por tudo.
— Quem sabe, rapaz? Talvez você nunca tenha estado sequer a uma légua da sífilis.
— Sim. Mas, mesmo assim... muito obrigado.
— Verei você no escritório, dentro de uma hora.
— Ótimo. Assim terei tempo bastante para me despedir de Tess.
— Já pensou na possibilidade de vocês tomarem as rédeas de seu destino? Não esperarem três meses?
— Você quer dizer, fugir?
— Só perguntei se chegou a pensar nisso. Não estou dizendo que devia fazer tal coisa.
— Gostaria de poder... de podermos fazer isso. Resolveria... Mas não é possível, senão eu faria isso. Ninguém nos casaria.
— Brock, certamente, ficaria furioso. Gorth também. Eu não recomendaria essa maneira de agir. Gorth já voltou? — ele perguntou, sabendo que não.
— Ainda não. Deve voltar esta noite.
— Mande um recado para o Capitão Orlov, a fim de se encontrar conosco em meu escritório, dentro de uma hora.
— Você o colocará absolutamente sob minhas ordens? — perguntou Culum.
— No que diz respeito à marinharia, não. Mas, em todas as outras questões, sim. Por quê?
— Por nada, Tai-Pan. Eu o verei dentro de uma hora — disse Culum.
— Boa-noite, Dirk — disse Liza, entrando na sala de jantar da sede da companhia.
— Desculpe interromper sua ceia.
— Não faz mal, Liza — disse Struan, levantando-se. — Por favor, sente-se. Não quer acompanhar-me?
— Não, obrigada. Os jovens estão aqui?
— Hein? Como poderiam estar aqui?
— Estou com a ceia deles pronta há mais de uma hora — disse Liza, com irritação.
— Pensei que estivessem vadiando outra vez. — Ela se virou para a porta. — Desculpe interromper sua ceia.
— Não entendo. Culum partiu no China Cloud, com a maré do meio-dia. Como você poderia estar a esperá-lo para a ceia?
— O quê?
— Ele partiu de Macau com a maré do meio-dia — Struan repetiu, pacientemente.
— Mas Tess... pensei que estivesse com ele. Jogaram críquete a tarde inteira.
— Tive de mandá-lo para lá, de repente. Hoje de manhã. A última coisa que me disse foi que ia se despedir de Tess. Ah, deve ter sido logo antes do meio-dia.
— Eles não disseram que ele ia embora hoje, só que me veriam mais tarde. Sim, foi antes do meio-dia! Então, onde está Tess? Ela não voltou o dia inteiro.
— Não há nada com que se preocupar. Ela, provavelmente, está com amigos... sabe como os jovens não notam a passagem do tempo. Liza mordeu o lábio, cheia de ansiedade.
— Ela nunca se atrasou, antes. Nunca se atrasou tanto. Ela é caseira, não é como essas namoradeiras que há por aí. Se alguma coisa aconteceu com ela, Tyler vai... Se partiu com Culum naquele navio, vai haver o diabo.
— Por que iriam fazer isso, Sra. Brock? — perguntou Struan.
— Que Deus os ajude, se fizeram. E se você os ajudou.
Depois que Liza partiu, Struan se serviu de um copo de conhaque, e foi para a janela, a fim de observar a praia e o porto. Quando viu o White Witch quase atracando, desceu as escadas.
— Vou para o clube, Lo Chum.
— Sim, patrão.
Gorth irrompeu no saguão do clube como um touro selvagem, com um chicote nas mãos. Empurrou para fora de seu caminho pasmados criados e freqüentadores e invadiu o salão de jogos.
— Onde está Struan?
— Acho que está no bar, Gorth — disse Horatio, chocado com a expressão de Gorth e com o chicote que se retorcia malevolamente.
Gorth deu a volta, passou como um raio pelo saguão e entrou no bar. Viu Struan numa mesa, com um grupo de comerciantes. Todos saíram do caminho, quando Gorth se aproximou de Struan.
— Onde está Tess, seu filho da puta?
Fez-se um silêncio mortal no bar. Horatio e os outros se apinhavam à porta.
— Não sei e, se me chamar assim outra vez, eu o matarei.
Gorth deu um puxão em Struan, aproximando-o de si.
— Não estará no China Cloud?
Struan libertou-se das mãos de Gorth.
— Não sei. E se estiver, o que importa? Não há nenhum mal quando um casal de jovens...
— Você planejou isso! Você planejou isso, seu patife! Você disse a Orlov para casá-los!
— Se fugiram, o que importa? Se estão casados agora, o que importa?
Gorth bateu em Struan com o chicote. Uma das extremidades, com a ponta de ferro, cortou nitidamente o rosto de Struan.
— Nossa Tess casada com aquele devasso sifilítico? — ele gritou. — Seu filho da puta fedorento!
Então eu tinha razão, pensou Struan. Foi você! Pulou sobre Gorth e agarrou o punho do chicote, mas outros, no bar, caíram sobre os dois e os separaram. Na confusão, um candelabro numa das mesas tombou no chão e Horatio apagou as chamas que consumiam o tapete felpudo. Struan se soltou, com violência, e olhou para Gorth.
— Vou mandar meus padrinhos visitá-lo esta noite.
— Não preciso de padrinhos, por Deus! Agora. Escolha suas malditas armas. Vamos! Depois de você, Culum. Juro por Deus!
— Por que me provocar, hein, Gorth. E por que ameaçar Culum?
— Você sabia, seu filho da puta. Ele está sifilítico, por Deus!
— Você está louco!
— Não adianta esconder, por Deus! — Gorth tentava soltar-se das mãos de quatro homens, mas não conseguia. Deixem-me livre, por Deus!
— Culum não tem sífilis! Por que diz que sim?
— Todos sabiam. Ele esteve em Chinatown. Você sabia disso, e por isso foi que partiram... antes que tudo aparecesse, de maneira terrível. Struan pegou o chicote, com a mão direita.
— Soltem-no, rapazes. Todos recuaram. Gorth pegou sua faca e se preparou para um ataque, e uma faca pareceu surgir, como por milagre, na mão esquerda de Struan.
Gorth simulou que ia atacar, mas Struan permaneceu imóvel como um rochedo e deixou Gorth ver, por um instante, a sede primitiva de matar que o consumia. E seu prazer. Gorth parou no meio do caminho, farejando perigo.
— Este não é lugar para lutar — disse Struan. — Este duelo não foi uma escolha minha. Mas não há nada que eu possa fazer. Horatio, quer ser padrinho?
— Sim. Sim, claro — respondeu Horatio.
Ele estava com a consciência doendo por causa das sementes de chá que arranjara para Longstaff. É essa a maneira de pagar por uma vida de ajuda e amizade? O Tai-Pan mandou-lhe notícia a respeito de Mary e lhe deu uma lorcha para ir a Macau. Ele foi como um pai para vocês dois e, agora, você o apunhala pelas costas. Sim — mas você não é nada para ele. Você só está destruindo um grande mal. Se puder fazer isso então compensará seu próprio mal, quando enfrentar a Deus, como irá acontecer.— Ficaria honrado em ser seu outro padrinho, Tai-Pan — dizia Masterson.
— .Então, talvez possam vir comigo, senhores — Struan enxugou o fio de sangue do queixo e atirou o açoite por sobre o balcão do bar, encaminhando-se para a porta.
— Você é um homem morto! — gritou Gorth, quando ele saía, novamente confiante. — Se apresse, seu filho da mãe! Struan só parou quando estava fora do clube, a salvo, na praia.
— Escolho maças como armas.
— Bom Deus, Tai-Pan... isso não é habitual — disse Horatio. — Ele é muito forte e você... bom, você... as últimas semanas lhe pesaram mais do que você percebe.
— Concordo plenamente — disse Masterson. — Uma bala entre os olhos é mais sensato. Ah, sim, Tai-Pan.
— Voltem e digam a ele agora. Não discutam. Minha mente é firme!
— Onde... onde você... bom, claro que isto deve ser mantido em segredo, não? Talvez os portugueses tentem impedi-lo.
— Sim. Contratem um junco. Vocês dois, eu, Gorth e seus padrinhos partiremos ao entardecer. Quero testemunhas e um duelo justo. Haverá espaço mais do que suficiente no convés de um junco.
Não vou matar você, Gorth, Struan exultou. Ah, não, isso seria fácil demais. Mas, pelo Senhor Deus, a partir de amanhã você nunca mais caminhará, nunca mais se alimentará com as próprias mãos, nunca mais verá, nunca mais voltará a fazer sexo. Eu mostrarei a você o que é a vingança.
Ao cair da noite, a notícia do duelo correra de boca em boca e, com a notícia, começaram as apostas. Muitas eram a favor de Gorth: ele estava em sua plena força e, afinal de contas, tinha boas razões para desafiar o Tai-Pan, se fosse verdade o boato de que Culum tinha sífilis e, sabendo disso, o Tai-Pan enviara Tess e Culum para o mar, com um capitão capacitado a casá-los, além do limite de três milhas.
Os que puseram dinheiro no Tai-Pan assim agiram porque esperavam, embora não acreditassem, que ele ganhasse. Todos sabiam de sua frenética ansiedade com relação à cinchona, e que sua legendária amante estava morrendo. E todos viam a perturbação que isso lhe causara. Só Lo Chum, Chen Sheng, Ah Sam e Yin-hsi tomaram emprestado cada tostão que puderam e apostaram no Tai-Pan, com confiança, pedindo aos deuses para velarem por ele. Sem o Tai-Pan. estariam perdidos, de qualquer jeito.Ninguém falou do duelo a May-may. Struan deixou-a, cedo, e voltou para sua residência. Queria dormir profundamente. O duelo não o perturbava; tinha certeza de que podia cuidar de Gorth. Mas, no processo, poderia ser mutilado, e sabia que precisaria ser muito forte e muito rápido.
Calmamente, caminhou pelas ruas tranqüilas, no calor de mais uma bela noite estrelada.
Lo Chum abriu a porta.
— Boa-noite, senhor. — Fez sinal, delicadamente, para a ante-sala. Liza Brock estava à espera.
— Boa-noite — disse Struan.
— Culum está com sífilis?
— Claro que não! Pelo sangue de Cristo, nós nem mesmo sabemos se eles estão casados. Talvez simplesmente tenham ido fazer uma viagem secreta.
— Mas ele esteve numa casa... quem sabe onde? Aquela noite em que foi assaltado.
— Culum não tem sífilis, Liza.
— Então, por que os outros disseram isso?
— Pergunte a Gorth.
— Eu perguntei e ele me disse que lhe contaram.
— Direi outra vez, Liza. Culum não tem sífilis.
Os grandes ombros de Liza estremeceram de soluços.
— Ah, Deus, o que fizemos?
Ela queria poder impedir o duelo. Gostava de Gorth, embora não fosse seu filho. Sabia que também teria culpa pelo sangue derramado — de Gorth, do Tai-Pan, de Culum ou do seu homem. Se não tivesse forçado Tyler a deixar Tess ir para o baile, então talvez tudo isso não tivesse acontecido.
— Não se preocupe, Liza — disse Struan, bondosamente. — Tess está bem, tenho certeza. Se casaram, você nada tem a temer.
— Quando o China Cloud voltará?
— Amanhã à noite.
— Deixará o nosso médico examiná-lo?
— Quem decide isso é Culum. Mas não proibirei. Ele não tem sífilis, Liza. Se tivesse, acha que eu permitiria o casamento?
— Sim, acho — disse Liza, atormentada. — Você é um demônio, e só o demônio sabe o que tem na cabeça, Dirk Struan. Mas eu juro por Deus, se você estiver mentindo eu o matarei, se meus homens não o matarem. Saiu às apalpadelas para a porta. Lo Chum abriu-a e fechou-a após sua saída.
— Senhor, é melhor ir dormir — disse Lo Chum alegremente. — Amanhã chega logo, hein?
— Vá para o inferno.
A aldrava de ferro da porta da frente causou um eco surdo, através da residênciaadormecida. Struan ficou atentamente à escuta, na ventilada calidez de seu quarto e, depois, ouviu os passos macios de Lo Chum. Saiu da cama, com a faca na mão, e agarrou seu robe de seda. Foi até o patamar, rápida e silenciosamente, e espiou por sobre a balaustrada. Dois andares abaixo, Lo Chum pôs a lanterna no chão e destrancou a porta. O relógio antigo bateu 1:15.
Padre Sebastião estava no umbral.
— O Tai-Pan pode ver-me?
Lo Chum fez um sinal afirmativo com a cabeça e pôs de lado a machadinha que segurava atrás das costas. Começou a subir a escada, mas parou quando Struan gritou.
— Sim?
O Padre Sebastião esticou o pescoço para o alto, em meio à escuridão, com os tendões do pescoço saltados, devido ao imprevisto do grito.
— Sr. Struan?
— Sim? — disse Struan, com a voz estrangulada.
— Sua Eminência me mandou aqui. Temos a casca de cinchona.
— Onde está?
O monge segurava uma pequena bolsa suja.
— Aqui. Sua Eminência disse que o senhor estava à espera de um mensageiro.
— E o preço?
— Nada sei a respeito disso, Sr. Struan — gritou com voz fraca Padre Sebastião. — Sua Eminência, simplesmente, disse-me para tratar qualquer pessoa à qual o senhor me conduzisse. Só isso.
— Estarei aí num segundo — berrou Struan, voltando às carreiras para o quarto. Enfiou as roupas às pressas, lutou com as botas, correu para a porta e parou. Depois de pensar um segundo, pegou o chicote de ferro e desceu as escadas, aos saltos. Padre Sebastião viu a maça e recuou.
— Bom-dia, Padre — disse Struan. Disfarçou a náusea provocada pelo hábito sujo do monge e detestou, de novo, todos os médicos.
— Lo Chum, quando o Sr. Sinclair chegar aqui, leve-o até lá, entendido?
— Entendido, senhor.
— Vamos, Padre Sebastião!— Só um momento, Sr. Struan! Antes de irmos, devo explicar uma coisa. Nunca usei cinchona antes... nenhum de nós usou.
— Bom, isso não importa, não é?
— Claro que importa! — exclamou o descarnado monge. — Tudo que sei é que devo fazer um “chá” com esta casca, fervendo-a. O problema é que não sei ao certo por quanto tempo fervê-la, ou se é preciso fazer um chá forte ou fraco. Ou a quantidade que o paciente deve tomar. Ou em quantas doses. O único tratado médico disponível que fala na cinchona é em latim arcaico... e muito vago!
— O bispo disse que ele teve a malária. Quanto chá tomou?
— Sua Eminência não se lembra. Só que tinha um gosto muito amargo e o enjoou. Acha que tomou chá durante quatro dias. Sua Eminência me disse para deixar bastante claro que estamos fazendo o tratamento sob sua responsabilidade.
— Sim. Entendo muito bem. Vamos!
Struan correu porta afora, com o Padre Sebastião a seu lado. Seguiram pela praia, procurando um caminho mais curto, e começaram a percorrer uma silenciosa avenida marginada de árvores.
— Por favor, Sr. Struan, não tão depressa — disse o Padre Sebastião sem fôlego.
— Está prevista mais febre para amanhã. Precisamos correr.
Struan cruzou a Praça de São Paulo e se encaminhou, impacientemente, para outra rua. De repente, seus instintos advertiram-no e ele parou, atirando-se para um lado. Uma bala de mosquete atingiu o muro, junto dele. Puxou para baixo o padre aterrorizado. Outro disparo. A bala cortou o ombro de Struan e ele amaldiçoou a si mesmo por não trazer pistolas.
— Corra, para salvar a vida!
Ele arrastou o monge, erguendo-o, e empurrou-o através da estrada, até um pórtico, onde se encontraram em segurança. Luzes apareciam nas casas.
— Por aqui! — sussurrou, e saiu correndo, Abruptamente, mudou de direção, e outro tiro deixou de atingir seu alvo por uma fração de centímetro, enquanto ele alcançava uma ruela segura, com o Padre Sebastião arquejando a seu lado.
— Ainda tem a cinchona? — perguntou Struan.
— Sim. Pelo amor de Deus, o que está acontecendo?
— Assaltantes! — Struan pegou o braço do assustado monge e correu através das profundidades da ruela, saindo no espaço aberto do forte de São Paulo do Monte. Nas sombras do forte, tomou fôlego.
— Onde está a cinchona?
Padre Sebastião ergueu frouxamente a bolsa. O luar banhou o lívido corte de chicote no queixo de Struan e bruxuleou em seus olhos, parecendo torná-lo maior e mais diabólico.
— Quem era? Quem disparava em nós? — perguntou.
— Assaltantes — repetiu Struan.
Sabia que, na verdade, homens de Gorth — ou Gorth — deveriam estar emboscados. Ficou imaginando, por um momento, se Padre Sebastião fora enviado como engodo. Era improvável — o bispo não fada isso, e nem era preciso trazer cinchona. Bom, logo saberei, pensou. E, se for o caso, cortarei algumas gargantas de papistas.
Observou, cansadamente, a escuridão. Tirou sua faca da bota e afrouxou a correia do chicote de ferro em torno do pulso. Quando Padre Sebastião respirava menos pesadamente, foi mostrando o caminho pela ladeira acima, passando pela Igreja de Santo Antônio e descendo o morro por uma rua que ia dar diante do muro da casa de May-may. Havia uma porta, na alta e grossa muralha de granito.
Bateu com força, com a aldrava. Em poucos momentos, Lim espiava através da vigia. A porta se abriu, depressa. Entraram no pátio da frente e a porta foi trancada atrás deles.
— Estamos em segurança, agora — disse Struan. — Lim Din, chá... beber muito, depressa! — fez sinal para que o Padre Sebastião se sentasse e colocou o chicote de ferro sobre a mesa. — Recupere o fôlego, primeiro.
O monge tirou as mãos do crucifixo que agarrava e franziu as sobrancelhas.
— Será que alguém realmente tentava matar-nos?
— Assim me pareceu — disse Struan. Tirou o casaco e olhou para o ombro. A bala queimara a carne.
— Deixe-me dar uma olhada nisso — disse o monge.
— Não é nada. — Struan tornou a vestir o casaco. — Não se preocupe, Padre. Você a tratará, mas a responsabilidade é toda minha. O senhor está bem?
— Sim. — Os lábios do monge estavam secos e tinha ha boca um gosto ruim. — Primeiro, prepararei o chá de cinchona.
— Ótimo. Mas, antes de começarmos, jure pela cruz que jamais falará a ninguém a respeito desta casa, ou do que acontece aqui.
— Isso não é necessário, pode ter certeza. Não há nada que...
— Sim, há! Gosto de minha privacidade! Se não jurar, então eu tratarei dela, por mim mesmo. Parece que sei o mesmo que o senhor a respeito do uso da cinchona. Decida.O monge estava aborrecido com sua falta de conhecimento e desejava desesperadamente curar, em nome de Deus.
— Muito bem, juro pela cruz que meus lábios estão selados.
— Obrigado. — Struan mostrou o caminho até a porta da frente e, dali por um corredor. Ah Sam saiu de seu quarto e fez uma curvatura tímida, puxando mais contra o corpo
o pijama verde. Seu cabelo estava desgrenhado, o rosto ainda inchado de sono. Ela os acompanhou à cozinha, com a lanterna.
A sala para cozinhar era pequena, com uma lareira e um braseiro a carvão, contígua ao repleto jardim posterior à casa. Estava cheia de potes, panelas e chaleiras. Centenas de molhos de ervas e cogumelos secos, vegetais, vísceras, salsichas estavam pendurados nas paredes escurecidas pela fumaça. Sacos de palhinha cheios de arroz entulhavam o chão cheio de manchas de sujeira.
Duas empregadas de cozinha, dopadas pelo sono, encontravam-se meio erguidas em beliches sujos, olhando, tontas, para Struan. Mas quando ele, descuidadamente, varreu da mesa uma confusão de panelas e pratos sujos, a fim de abrir espaço, elas pularam de suas camas e fugiram da casa.
— Chá, senhor? — Ah Sam perguntou, confusa.
Struan abanou a cabeça. Pegou a bolsa de pano, manchada de suor, das mãos do nervoso monge, e abriu-a. A casca era marrom, comum e partida em pequenos pedaços. Cheirou-a, mas não tinha odor algum.
— E agora?
— Precisamos de alguma coisa para ferver o caldo. — Padre Sebastião pegou uma panela mais ou menos limpa.
— Primeiro, quer fazer o favor de lavar as mãos? — Struan apontou para um pequeno barril e o sabão próximo.
— O quê?
— Primeiro, lave as mãos. Por favor. — Struan abaixou-se sobre o barril e ofereceu o sabão. — Não fará nada até lavar as mãos.
— Por que é necessário?
— Não sei. Uma antiga superstição chinesa. Por favor... vá, Padre, por favor.
Enquanto Struan lavava a panela e a colocava sobre a mesa, Ah Sam observava, de olhos brilhantes. Padre Sebastião esfregar as mãos com sabão, passar água e enxugá-las com uma toalha limpa.
Depois, fechou os olhos, uniu as mãos e sussurrou uma prece silenciosa.
— Agora, algo para medir — disse, voltando à terra, e escolhendo, ao acaso, uma xicrinha, encheu-a até a borda com cinchona. Passou a casca para a panela e então, lenta e metodicamente, acrescentou dez medidas iguais de água. Pôs a panela para ferver no braseiro de carvão. — Dez para uma, como começo — disse, com voz rouca. — Esfregou as mãos, nervosamente, dos lados do seu hábito. — Agora, gostaria de ver a paciente. Struan fez sinal a Ah Sam e indicou a panela.
— Não toque!
— Não vou tocar, senhor! — disse Ah Sam. Agora que superara seu susto inicial, por ser acordada de repente, estava começando a gostar de todos esses estranhos procedimentos. — Não vou tocar, senhor, não se incomode!
Struan e o monge saíram da cozinha e foram para o quarto de dormir de May-may. Ah Sam os acompanhou. Uma lanterna espalhava áreas de luz na escuridão. Yin-hsi estava escovando seu
cabelo despenteado diante do espelho. Parou e se curvou, apressadamente. Sua cama, um colchão, estava no chão a um lado da grande cama de dossel de May-may.
May-may tremia de leve, sob o peso dos cobertores.
— Olá, garota. Temos a cinchona — disse Struan, aproximando-se. — Afinal. Tudo está bem, agora!
— Sinto tanto frio, Tai-Pan — ela disse, desamparadamente. — O que você fez com seu rosto?
— Não é nada, garota.
— Você se cortou. — Ela estremeceu, fechou os olhos e caiu outra vez no nevoeiro que começava a engolfá-la. — Está tão frio. Struan virou-se e olhou para o Padre Sebastião. Viu o susto em sua face esticada.
— O que há de errado?
— Nada, nada.
O monge colocou uma pequena ampulheta sobre uma mesa e, ajoelhando-se ao lado da cama, pegou o pulso de May-may e começou a contar suas batidas cardíacas. Como pode uma moça chinesa falar inglês?, perguntou a si mesmo. Será que a outra moça é uma segunda amante? Estarei num harém deste demônio? Ah, Deus, protegei-me, dai-me o poder de Vossa cura e deixai-me ser o Vosso instrumento, esta noite.
O pulso de May-may estava tão lento e fraco que ele teve grande dificuldade em auscultá-lo. Com extrema delicadeza, virou-lhe o rosto e lhe observou os olhos.
— Não tenha medo — disse. — Não há nada para temer. Você está nas mãos de Deus. Preciso olhar seus olhos. Não tenha medo. Você está em Suas mãos.
Indefesa e petrificada, May-may fez como ele lhe disse. Yin-hsi e Ah Sam permaneciam em pé, atrás, e espiavam cheias de apreensão.— O que ele está fazendo? Quem é? — sussurrou Yin-hsi.
— Um médico bárbaro, um demônio feiticeiro — Ah Sam respondeu, também num sussurro. — Ele é um monge. Um desses padres de saias compridas que adoram o Deushomem nu, que eles prenderam numa cruz.
— Ah! — Yin-hsi estremeceu. — Ouvi falar deles. Como foi terrível fazerem uma coisa dessas! São realmente uns demônios! Por que não traz um pouco de chá para Papai? É sempre bom para a ansiedade.
— Lim Din está pegando o chá, Segunda Mãe — sussurrou Ah Sam, jurando que nada a faria se mover dali, pois assim poderia perder algo de grande importância. — Eu gostaria de poder entender a língua terrível que eles falam.
O monge colocou o pulso de May-may sobre a coberta da cama e ergueu os olhos para Struan.
— Sua Eminência disse que a malária provocou um aborto. Preciso examiná-la.
— Pode examinar.
Quando o monge afastou os cobertores e lençóis, May-may tentou impedi-lo e Yin-hsi e Ah Sam, ansiosamente, correram para ajudá-la.
— Não — gritou Struan. — Fiquem lá! — Ele se sentou ao lado de May-may e segurou-lhe as mãos. — Está tudo bem, garota. Vamos — disse ao padre.
Padre Sebastião examinou May-may e, depois, instalou-a confortavelmente outra vez.
— A hemorragia quase já parou. Isso é muito bom. Colocou seus longos dedos na base do crânio dela e apalpou cuidadosamente.
May-may sentiu que os dedos suavizavam um pouco de sua dor. Mas o gelo se formava nela outra vez, e seus dentes começaram a bater.
— Tai-Pan. Sinto tanto frio. Posso mandar colocar uma garrafa quente nos cobertores? Por favor. Sinto tanto frio.
— Sim, garota. Espere só um pouquinho. — Havia uma garrafa quente às suas costas. Ela estava deitada debaixo de quatro cobertores acolchoados.
— Tem um relógio, Sr. Struan? — perguntou Padre Sebastião.
— Sim.
— Por favor, vá para a cozinha. Logo que a água ferver, anote a hora. Quando tiver fervido uma hora... — Os olhos do Padre Sebastião espelharam seu terrível desespero. — Duas? Meia hora? Quanto tempo? Ah, Deus, por favor, ajudai-me neste momento de necessidade.— Uma hora — disse firmemente a Struan, com confiança. — Marcaremos a mesma quantidade para ferver por duas horas. Se a primeira não fizer efeito, tentaremos a segunda.
— Sim. Sim.
Struan examinou seu relógio à luz da lanterna, na cozinha. Tirou a infusão do braseiro e colocou-a num balde de água, para esfriar. A segunda panela já fervia.
— Como vai ela? — perguntou, quando o padre entrou, tendo logo atrás Ah Sam e Yin-hsi.
— Os calafrios estão fortes. O coração se encontra muito fraco. Pode lembrar-se por quanto tempo ela tremeu, antes de começar a febre?
— Quatro horas, talvez cinco. Não sei. — Struan despejou um pouco do líquido quente dentro de uma pequena xícara de chá e o provou. — Pelo sangue de Cristo, é terrivelmente amargo!
O padre tomou um gole e também fez uma careta.
— Bom. Vamos começar. Só espero que ela possa mantê-lo no estômago. Uma xícara de hora em hora. — Ele escolheu uma xícara ao acaso, numa prateleira manchada de fumaça, e pegou um trapo sujo na mesa.
— Para que é isso? — perguntou Struan.
— Terei de coar a casca, separando-a do chá. Este pano está bom. A mistura é bastante grossa.
— Eu vou fazer isso — disse Struan. Pegou o coador de chá de prata que já tinha pronto e poliu-o outra vez, com um lenço limpo.
— Por que está fazendo isso?
— Os chineses têm sempre muito cuidado em manter o bule e as xícaras limpos. Dizem que isso torna o chá mais saudável. — Começou a despejar o chá malcheiroso numa imaculada xícara de porcelana. Queria que a força da bebida estivesse certa.
— Por que não a mesma coisa com a próxima dose, hein?
Levou o bule e a xícara para o quarto de dormir. May-may vomitou a primeira xícara. E a segunda. Apesar de suas súplicas patéticas, Struan forçou-a a beber outra vez. May-may não vomitou — faria tudo para não ter de engolir outra vez. Ainda assim, nada aconteceu. A não ser que seus calafrios se tornaram mais fortes. Uma hora mais tarde, Struan fez com que ela bebesse outra vez. Ela não vomitou,
mas os calafrios continuaram a piorar.
— Vamos dar duas xícaras — disse Struan, lutando contra o pânico. E ele a forçou a consumir a dose dupla.
Hora após hora, o processo foi repetido. Agora amanhecia.Struan olhou para seu relógio. Seis horas. Nenhuma melhora. Os tremores faziam May-may se agitar como um raminho ao vento do outono.
— Pelo amor de Deus — explodiu Struan — precisa funcionar!
— Com o amor de Deus, está funcionando, Sr. Struan — disse Padre Sebastião.
Segurava o pulso de May-may. — O calor da febre deveria começar há duas horas. Se não começou, ela tem uma chance. Seu pulso se acha imperceptível, sim, mas a cinchona está funcionando.
— Agüente firme, garota — disse Struan, agarrando a mão de May-may. — Mais algumas horas. Agüente.
Mais tarde, houve uma batida no portão do muro do jardim. Struan saiu de casa, meio tonto, e destrancou a porta.
— Olá, Horatio. Venha cá, Lo Chum.
— Ela está morta?
— Não, rapaz. Acho que está curada, com a graça de Deus!
— Você conseguiu a cinchona?
— Sim.
— Masterson se encontra no junco. Está na hora de Gorth chegar. Vou pedir a eles, os seus padrinhos, para adiarem o duelo até amanhã. Você não está em condições de lutar com ninguém.
— Você não precisa se preocupar. Há outras maneiras de matar uma serpente além de arrancar sua cabeça com uma pisadela. Estarei lá dentro de uma hora.
— Está bem, Tai-Pan. — Horatio saiu às pressas, levando Lo Chum.Struan trancou a porta e voltou para May-may.
Ela estava deitada na cama, completamente imóvel. Padre Sebastião lhe tomava o pulso. O rosto dele estava enrijecido pela ansiedade. Curvou-se e auscultou-lhe as batidas do coração. Passaram-se segundos. Ele ergueu a cabeça e olhou inquisitivamente para Struan.
— Por um momento, pensei... mas ela está bem. As batidas de seu coração estão terrivelmente lentas, mas ela é jovem. Com a graça de Deus... a febre passou, Sr. Struan. A cinchona peruana curará a febre do Vale Feliz. Com são maravilhosos os desígnios de Deus!
Struan sentia-se estranhamente distanciado.
— Será que a febre voltará? — perguntou.
— Talvez. Ocasionalmente. Porém, mais cinchona a deterá... não há nada mais com que se preocupar, agora. Esta febre está morta. Não entende? Ela se curou da malária.
— Será que viverá? Diz que seu coração está muito fraco. Será que viverá?— Se Deus quiser, a chance é boa. Muito boa. Mas ainda não tenho certeza.
— Preciso ir, agora — disse Struan, levantando-se. — Quer fazer o favor de ficar aqui até eu voltar?
— Sim. — Padre Sebastião ia fazer o sinal-da-cruz sobre ele, mas se decidiu contra.
— Não posso abençoar sua partida, Sr. Struan. Vai para uma matança, não é?
— O homem nasceu para morrer, Padre. Apenas tento proteger a mim mesmo e aos meus o melhor que posso, e também escolher a ocasião de minha morte, apenas isso. Pegou o chicote de ferro e amarrou-o ao pulso, depois saiu da casa. Enquanto caminhava pelas ruas, sentiu olhos que o observavam, mas não prestou atenção. Ele tirava força da manhã e do sol, e da vista e do odor do mar. Está um belo dia para matar uma cobra, pensou. Mas quem vai morrer é você. Não tem força para enfrentar Gorth com um chicote de ferro. Hoje, não.
Havia uma grande multidão perto do junco. Comerciantes, um destacamento de soldados portugueses comandado por um jovem oficial, marinheiros. O junco estava ancorado num desembarcadouro ao largo da praia. Quando Struan apareceu, os que haviam apostado nele ficaram desalentados. E os que haviam apostado em Gorth, exultantes.
O oficial português, cortesmente, interceptou Struan.
— Bom-dia, senhor.
— Bom-dia, Capitão Machado — respondeu Struan.
— O governador-geral quer que o senhor saiba que duelos são proibidos em Macau.
— Sei disso — disse Struan. — Agradeça a ele em meu nome, por favor, e diga-lhe que serei o último a infringir as leis portuguesas. Sei que somos todos hóspedes, e os hóspedes têm responsabilidades perante seus anfitriões.
Ele ajeitou a correia de seu chicote de ferro e caminhou em direção ao junco. A multidão se dividiu e ele viu animosidade nos rostos dos homens de Gorth e daqueles que desejavam vê-lo morto. Havia muitos. Lo Chum esperava no tombadilho alto, ao lado de Horatio.
— Bom-dia, senhor. — Estendeu o material para fazer a barba. — Quer?
— Onde está Gorth, Horatio?
— Seus padrinhos estão procurando por ele. Struan rezou para que Gorth estivesse deitado num bordel, bêbado como uma cabra. Ah, Deus, tomara que nossa luta seja amanhã! Começou a fazer a barba. A multidão observava, silenciosamente, e muitos se benziam, espantados com a serenidade do Tai-Pan.
Após barbear-se, ele se sentiu um pouco melhor. Olhou para o céu. Colares de cirros enfeitavam o firmamento e o mar estava calmo como um lago. Gritou para Cudahy, que trouxera o China Cloud:
— Proteja minhas costas.
— Sim, senhorrr.
Struan espichou-se sobre uma escotilha e adormeceu, imediatamente.
— Bom Deus — disse Roach — ele não é humano.
— Sim — disse Vivien — ele é o próprio Demônio.
— Por que não dobra a aposta, hein, se está tão confiante?
— Não. A não ser que Gorth chegue bêbado.
— Digamos que ele mate Gorth... e Tyler?
— Travarão um duelo de vida ou morte, eu acho.
— O que fará Culum, hein? Se Gorth vencer hoje?
— Nada. O que pode ele fazer? A não ser odiar, talvez. Pobre rapaz, eu até gosto dele. Ele odeia o Tai-Pan, de qualquer maneira... então talvez abençoe Gorth, hein? Ele se torna Tai-Pan, por direito. Onde está o demônio do Gorth?
O sol se erguia implacavelmente no céu. Um soldado português saiu correndo de uma rua adjacente e conversou animadamente com o oficial que, imediatamente, começou a fazer seus homens marcharem depressa para a praia. Transeuntes começaram a seguilos.
Struan acordou para uma dolorida realidade, com cada fibra de seu corpo pedindo sono. Pôs-se de pé, cambaleando. Horatio olhava-o, com uma expressão de estranheza.
O corpo de Gorth, brutalmente maltratado, jazia, numa viela suja, perto das docas do bairro chinês e, em torno do cadáver, estavam os corpos de três chineses. Outro chinês, mais morto do que vivo com o cabo de uma lança partida enterrado na virilha, jazia gemendo aos pés de uma patrulha de soldados portugueses.Comerciantes e portugueses se apinhavam em torno, procurando ver melhor. Os que conseguiram ver Gorth deram meiavolta, enjoados.
— A patrulha diz que ouviu gritos e ruído de luta — disse o oficial português a Struan e aos outros, que se encontravam por perto. — Quando correram para cá, viram o Sr. Brock no chão, como está agora. Três ou quatro chineses enfiavam-lhe lanças. Quando os demônios assassinos viram nossos homens, desapareceram daqui. — Apontou para um grupo de silenciosos barracos, ruelas retorcidas e becos. — Os soldados saíram à caça deles, mas... — Deu de ombros.
Struan sabia que fora salvo pelos assassinos.
— Oferecerei uma recompensa pelos que escaparam — disse. — Cem taéis mortos, quinhentos vivos.
— Economize seu dinheiro, no caso dos “mortos”, senhor. Os pagãos apenas apresentarão três cadáveres... os primeiros que conseguirem encontrar. Quanto aos “vivos” — o oficial apontou com um polegar, num gesto de desdém, para o prisioneiro — a menos que esse degenerado filho da mãe nos diga onde estão os outros, seu dinheiro está bem seguro. Pensando melhor, acho que as autoridades chinesas seriam, digamos, mais hábeis, num interrogatório. — Falou com dureza, em português, e os soldados colocaram o homem numa porta quebrada e o carregaram.
O oficial limpou uma mancha de poeira de seu uniforme.
— Uma morte estúpida e desnecessária. O Senhor Brock não deveria ter-se arriscado a vir a esta área. Parece que não houve honra satisfeita.
— Tem muita sorte, Tai-Pan — zombou um dos amigos de Gorth. — Muita sorte.
— Sim. Estou satisfeito por este sangue não se encontrar em minhas mãos.
Struan virou as costas para o cadáver e se afastou, devagar. Saiu da ruela e subiu a ladeira, em direção ao antigo forte. Na crista do morro, cercado de mar e de céu, sentou-se num banco e agradeceu ao infinito a bênção da noite e a bênção do dia.
Não prestava atenção aos transeuntes, aos soldados, ao portão do forte, à canção dos sinos da igreja. Nem aos pássaros cantando, ao vento suave ou ao sol reconfortante. E nem à hora.
Mais tarde, tentou decidir o que fazer, mas sua mente não queria funcionar.
— Controle-se — disse alto.
Desceu o morro, foi até à residência do bispo, mas este não se encontrava lá. Dirigiu-se à catedral e perguntou por ele. Um monge lhe disse para esperar no jardim do claustro. Struan sentou-se num banco, à sombra, e ficou à escuta das fontes borbulhantes. As flores lhe pareciam mais coloridas do que nunca, seu perfume mais suave. As batidas de seu coração, a força de seus membros e até mesmo a constante dor no tornozelo — não eram um sonho, mas a realidade.
Ah, meu Deus, obrigado pela vida.
O bispo olhava-o, sob a galeria do claustro.
— Olá, Eminência — disse Struan, maravilhosamente reconfortado. — Vim agradecer-lhe. O bispo franziu os lábios finos.
— O que estava vendo, senhor?
— Não sei — respondeu Struan. — Apenas olhava para o jardim. Apreciando-o. Apreciando a vida. Não sei exatamente.
— Creio que estava muito próximo de Deus, senhor. Talvez não ache, mas eu sei que sim. Struan abanou a cabeça.
— Não, Eminência. Só feliz, num dia esplêndido, num lindo jardim. Só isso.
Mas a fisionomia de Falarian Guineppa não mudou. Seus dedos esguios tocaram o crucifixo.
— Eu fiquei a observá-lo por um longo tempo. Senti que estava próximo. Logo o senhor! Certamente, isto não está certo. — Suspirou. — Entretanto, como poderemos nós, pobres pecadores, saber os desígnios de Deus? Invejo-o, senhor. Queria falar comigo?
— Sim, Reverendíssimo. A cinchona curou a febre.
— Deo gratias! Mas é maravilhoso! Como são esplêndidos os desígnios de Deus!
— Vou fretar uma embarcação para ir imediatamente ao Peru, com ordem para carregar cinchona — disse Struan. — Com sua permissão, gostaria de mandar o Padre Sebastião, para que descubra como cultivam a casca, de onde vem, como eles tratam a malária lá... tudo. Dividiremos a carga e o conhecimento igualmente, quando ele voltar. Gostaria que ele, sob sua autoridade, escrevesse um relatório médico, de imediato, e o enviasse para o Lancet, na Inglaterra, e para o Times, falando do seu tratamento bemsucedido da malária com a cinchona.
— Um tratado médico-oficial como esse teria de ser enviado através de canais oficiais do Vaticano. Mas eu lhe direi que faça isso. Quanto a mandá-lo... isto eu terei de considerar. Entretanto, mandarei alguém com o navio. Quando partirá?
— Dentro de três dias.
— Está bem. Dividiremos igualmente a carga e os conhecimentos. É muita generosidade.
— Não estabelecemos um preço para a cura. Ela está curada. Então, agora, quer fazer o favor de me dizer o preço?
— Nada, senhor.
— Não entendo.
— Não há preço para um punhado de cinchona que salvou a vida de uma moça.
— Claro que há um preço, pode pedir o que quiser! Estou pronto para pagar. Vinte mil taéis foram oferecidos em Hong Kong, Eu lhe enviarei uma ordem de pagamento à vista.
— Não, senhor — respondeu, com paciência, o sacerdote de elevada estatura. — Se fizer isso, eu simplesmente rasgarei o papel. Não quero pagamento pela casca de árvore.
— Farei uma doação a uma igreja católica em Hong Kong — disse Struan. — Um mosteiro, se quiser. Não brinque comigo, Eminência. Comércio é comércio. Diga seu preço.
— Nada me deve, senhor. Nada deve à igreja. Mas deve muito a Deus. — Ele ergueu a mão e fez o sinal-da-cruz. — In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti — disse, tranqüilamente, e foi embora.
May-may se achou acordando, com os braços de Struan a apoiá-la e a xícara em seus lábios. Vagamente, ouviu Struan conversar, com tranqüilidade, com o Padre Sebastião, mas não fez o esforço necessário para entender as palavras em inglês. Obedientemente engoliu a cinchona e se deixou deslizar outra vez para o estado de inconsciência.
Ouviu o monge partir, sentiu que a presença estranha se fora, e isto lhe agradou. Percebeu que Struan a erguia outra vez e engoliu a segunda xícara, com o gosto ruim ainda a enjoá-la.
Através da névoa confortável, ouviu Struan sentar-se na cadeira de bambu e logo escutou sua respiração pesada e regular, percebendo que dormia. Isto a fez sentir-se muito segura.
O ruído das amas conversando na cozinha, o humor irritável e cáustico de Ah Sam, e o perfume de Yin-hsi eram tão agradáveis que May-may não quis deixar o sono dominá-la inteiramente.
Ficou deitada, quieta, e reuniu forças durante aquele minuto. E soube que iria viver.Queimarei incenso para os deuses pelo meu pagode. Talvez uma vela para o deus de saias compridas. Afinal de contas, o monge trouxe a casca, não foi? — por pior que seja o gosto. Talvez eu devesse tornar-me uma cristã de saias compridas. Isto daria ao monge grande prestígio. Mas o meu Tai-Pan não aprovaria. Mesmo assim, talvez eu me torne. Porque, se não existe nenhum Deus de saias compridas, então não haverá perigo e, se ele existir — então terei sido muito esperta. Fico imaginando se o deus bárbaro é como nossos deuses chineses. Que a pessoa descobre serem muito estúpidos, quando pensa seriamente a respeito. Mas, realmente, não são. São como seres humanos, com todas as nossas fraquezas e forças. É muito mais sensato do que fingir, como fazem os bárbaros, que seu deus é perfeito e vê tudo, escuta tudo, a tudo julga e pune.
Estou satisfeita por não ser um deles. Ouviu o sibilar das roupas de Yin-hsi e respirou sua presença perfumada. Abriu os olhos.
— Parece melhor, Suprema Senhora — sussurrou Yin-hsi, ajoelhando-se perto dela.
— Veja, trouxe-lhe algumas flores.
O pequeno buquê era muito bonito. May-may fez um sinal afirmativo com a cabeça, fracamente, mas sentiu que suas forças fugiam. Struan estava estirado na cadeira de encosto inclinado, profundamente adormecido, o rosto rejuvenescido pelo repouso, sombras escuras sob os olhos e o vermelho cru de um vergão no queixo.
— Papai está aí há mais de uma hora — disse Yin-hsi. Usava calças de seda azulclaro e uma túnica que ia até os joelhos, trespassada, cor verde-oceano, e havia flores em seus cabelos.
May-may sorriu e movimentou a cabeça, verificando que entardecia.
— Quantos dias se passaram desde que esta febre começou. Irmã?
— Foi a noite passada. Papai chegou com um monge de saias compridas. Eles trouxeram a bebida mágica, não se lembra? Eu mandei aquela miserável escrava Ah Sam ao templo, hoje de manhã cedo, a fim de agradecer aos deuses. Por que não me deixa lavá-la? Deixe que eu lhe ajeite o cabelo. Vai sentir-se muitíssimo melhor.
— Ah, sim, por favor, Irmã — disse May-may. — Devo estar com uma aparência terrível.
— Sim, Suprema Senhora, mas só porque quase morreu. Dentro de dez minutos, estará tão bonita quanto sempre foi... eu prometo!
— Seja silenciosa como uma borboleta, Irmã — disse May-may. — Não acorde o Papai, seja lá o que você fizer, e diga àqueles miseráveis escravos que, se Papai acordar antes de eu estar apresentável, você, pessoalmente, sob minhas ordens, vai colocar instrumentos de tortura em seu polegares.
Yin-hsi, toda satisfeita, afastou-se. Um vasto silêncio caiu sobre a casa.
Yin-hsi e Ah Sam entraram outra vez no quarto, nas pontas dos pés, banharam May-may com água perfumada, trouxeram calças que acabavam de sair do sol, do mais fino xantungue escarlate, com uma túnica também escarlate, e ajudaram-na a se vestir. Banharam-lhe os pés e mudaram as ataduras, seguraram-na enquanto ela escovava os dentes e lavava a boca com urina de bebê. Finalmente, May-may mastigou folhas de chá perfumadas e se sentiu muito purificada.
E, mesmo tendo o movimento e a mudança minado muito de sua força, May-may se sentiu renascida.
— Agora um pouco de sopa, Suprema Senhora. E, em seguida, uma manga fresca — disse Yin-hsi.
— E, em seguida — disse Ah Sam, com um tom de importância, as argolas de prata tilintando... temos notícias maravilhosas para a senhora.
— O quê?
— Só depois de ter comido, Mamãe — disse Ah Sam. Quando May-may começou a protestar, Ah Sam abanou a cabeça, com firmeza. — Temos de cuidar da senhora, ainda é uma paciente. A Segunda Mãe e eu sabemos que boas notícias são maravilhosas para a digestão. Mas, primeiro, precisa de alguma coisa para digerir.
May-may bebeu um pouco de caldo e comeu um pouquinho da manga cortada em fatias. Elas a encorajaram a comer mais.
— Deve fortalecer-se, Suprema Senhora.
— Termino a manga se você contar as notícias agora — disse May-may.
Yin-hsi franziu a testa. Depois, fez um sinal para Ah Sam.
— Vá, Ah Sam. Mas comece com o que Lo Chum lhe contou... como tudo começou.
— Não tão alto — disse May-may, em tom de advertência. — Não acordem Papai.
— Bom — começou Ah Sam — na noite antes de chegarmos, há sete terríveis dias, o filho bárbaro de Papai caiu nas garras do demônio em pessoa, um bárbaro. Esse monstro bárbaro armou uma trama tão suja, tão diabólica, para destruir o filho bem-amado de Papai, que quase não posso descrevê-la. E, a noite passada, hoje, enquanto a bebida mágica destruía sua doença febril, as coisas chegaram ao seu clímax fatal. Passamos a noite acordados, de joelhos, implorando aos deuses. Mas de nada adiantou. Papai estava perdido, a senhora estava perdida, nós estávamos perdidos e o pior era que... o inimigo tinha ganho o jogo. — Ah Sam fez uma pausa e, com estudada fraqueza, cambaleou até a mesa, pegou o pequeno copo cheio com o vinho que Yin-hsi trouxera como presente para May-may e bebeu-o, dominada pela emoção.
Quando estava reanimada, contou toda a história com pausas aflitivas, incríveis suspiros e movimentada gesticulação.
— E ali, no chão sujo — concluiu Ah Sam, com um sussurro soluçante, batendo os dedos na porta — cortado em quarenta pedaços, cercado pelos cadáveres de quinze assassinos, jazia o cadáver do demônio bárbaro Gorth! Assim Papai foi salvo.
May-may bateu as mãos alegremente, e congratulou-se por sua previsão. Os deuses estão certamente velando por nós! Graças a Deus falei com Gordon Chen, naquela oportunidade. Se não fosse ele...
— Ah, que maravilha! Ah, Ah Sam, você contou de uma maneira maravilhosa. Quase morri, quando você chegou àquela parte em que Papai saía de casa hoje de manhã.
Se não me tivesse dito antes de começar que as notícias eram maravilhosas, então eu realmente teria morrido.
— Olá, garota! — Struan estava acordado, fora desperto pelas palmas de May-may. Yin-hsi e Ah Sam levantaram-se depressa e fizeram curvaturas.
— Eu me sinto fantasticamente melhor, Tai-Pan — disse May-may.
— Seu aspecto está fantasticamente melhor.
— Precisa de alimento, Tai-Pan — disse May-may. — Provavelmente não comeu o dia inteiro.
— Obrigado, garota, mas não estou com fome. Vou pegar alguma coisa na residência, mais tarde. — Struan levantou-se e se espreguiçou.
— Por favor, coma aqui — disse May-may. — Fique aqui esta noite. Por favor. Não quero... bom, por favor, fique. Isto me faria muito feliz.
— Claro, garota — disse Struan. — Precisa tomar a cinchona durante os próximos quatro dias. Três vezes por dia.
— Mas, Tai-Pan, eu me sinto ótima. Por favor, não é preciso mais.
— Três vezes por dia, May-may. Durante os próximos quatro dias.
— Pelo sangue de Cristo, tem gosto de fezes de passarinho misturadas com vinagre e bílis de cobra.Uma mesa cheia de alimentos foi trazida para o quarto. Yin-hsi serviu-os e, depois, deixou-os sozinhos. May-may apanhou elegantemente alguns camarões fritos.
— O que fez hoje? — perguntou.
— Nada de importante. Mas um problema está resolvido. Gorth está morto.
— Ah? Como? — May-may perguntou e ficou adequadamente surpresa e chocada, quando ele lhe contou as novidades. — Você é muito inteligente, Tai-Pan. Mas seu pagode é fantasticamente bom.
Struan empurrou seu prato, sufocou um bocejo e pensou a respeito de pagode.
— Sim.
— Será que Brock vai ficar terrivelmente zangado?
— A morte de Gorth não foi por minhas mãos. Mesmo se fosse, ele merecia morrer. De certo modo, eu sinto ele ter morrido dessa maneira.
A morte de Gorth e a fuga vão deixar Brock furioso, pensou. É melhor me preparar, com um revólver ou uma faca. Será que ele vem atrás de mim, como um assassino de emboscada? Ou abertamente? Eu me preocuparei com isso amanhã.
— Culum deve voltar logo.
— Por que não vai para a cama? Parece muito cansado. Quando Lo Chum trouxer a notícia, Ah Sam o acordará, hein? Acho que também gostaria de dormir agora.
— Acho que vou dormir, sim, garota. — Struan beijou-a, ternamente, e prendeu-a em seus braços. — Ah, minha garota. Fiquei com tanto medo, por sua causa.
— Obrigada, Tai-Pan. Vá dormir agora, e amanhã eu estarei muito melhor, e você também.
— Tenho de ir a Hong Kong, garota. Logo que possível. Por uns poucos dias. Ela sentiu um aperto no coração.
— Quando irá, Tai-Pan?
— Amanhã, se você estiver bem.
— Pode fazer uma coisa por mim, Tai-Pan?
— Claro.
— Leve-me com você. Não quero... ficar sozinha aqui, enquanto você está lá.
— Você ainda não está suficientemente bem para se mover, e eu preciso ir, garota.
— Ah, mas amanhã eu estarei bem. Prometo. Ficarei na cama, no navio, e podemos permanecer no Resting Cloud, como antes. Por favor.— Serão apenas uns poucos dias,
garota, e seria melhor para você ficar aqui. Muito melhor. Mas May-may se aninhou perto dele, arreliando-o.
— Por favor. Serei muito boa, tomarei todas as xícaras sem criar problemas e ficarei na cama, e ficarei boa, comerei, comerei, comerei, ficarei fantasticamente muito boa. Prometo. Por favor, não me deixe até eu realmente melhorar.
— Bom, durma e decidiremos amanhã. Ela o beijou.
— Nada de decidir amanhã. Se for embora, eu não comerei, não tomarei as xícaras de chá, por Deus! Ouça! — disse ela, imitando as maneiras dele. — Sua velha mãe vai pôr os pés no tombadilho e não se mexerá!
Struan abraçou-a, com força. Minuto a minuto, sentia que ela ficava mais forte. Deus abençoe a cinchona.
— Está bem, mas não iremos amanhã. No dia seguinte, ao amanhecer. Se você estiver suficientemente bem. Se você...
— Ah, obrigada, Tai-Pan. Eu estarei muito bem.
Ele a afastou de si e examinou-a minuciosamente. Sabia que levaria meses para ela recuperar sua antiga beleza. Mas não é só um rosto que torna a pessoa bela, disse a si próprio. É aquilo que se encontra por trás, nos olhos e no coração.
— Ah, garota, você é tão linda. Eu a amo. Ela tocou o nariz dele, com seu dedinho.
— Por que dizer essas coisas à sua velha mãe? — Ela o abraçou com força. — Eu também acho que você é maravilhosamente lindo.
Então ele lhe deu as duas xícaras e ela tapou o nariz e bebeu-as. Ela colocou algumas folhas perfumadas de chá na boca, para tirar o gosto. Ele a ajeitou na cama como se fosse uma criança, beijou-a outra vez e foi para seu quarto.
Tirou a roupa e se deitou, permanecendo cheio de felicidade nos lençóis frescos. O sono veio rapidamente. E enquanto ele dormia, o assassino chinês continuava a ser interrogado. Seus torturadores eram muito pacientes — e muito hábeis na arte de extrair informações.
O China Cloud voltou ao porto de Macau pouco depois do amanhecer. Quando se aproximava de sua amarração, Struan correu pelo desembarcadouro. Seu escaler estava à espera.
— Dirk!
Ele ergueu os olhos, espantado.
— Bom-dia, Liza!
Liza Brock estava lívida e abatida.
— Vou com você.
— Claro. — Struan estendeu a mão para ajudá-la a subir, mas ela recusou-a.
— Largar! — ele ordenou.
Os remadores deram um forte impulso. O dia estava esplêndido e o mar calmo. Struan viu a pequena figura do Capitão Orlov no tombadilho do navio e sabia que estava sendo observado. Bom, ele pensou.
— Vou levar o corpo de Gorth de volta a Hong Kong amanhã — disse Liza. Struan não respondeu. Simplesmente, fez um aceno afirmativo com a cabeça e olhou para seu navio. Quando chegaram ao passadiço, ele deixou Liza subir primeiro ao convés.
— Bom-dia — disse o Capitão Orlov.
— A Srta. Brock está a bordo? — perguntou Struan.
— Sim.
— O senhor... o senhor os casou? Culum e a minha Tess? — perguntou Liza.
— Sim. — Orlov virou-se para Struan. — Você me colocou sob as ordens dele. Ele ordenou que eu os casasse. O capitão é o capitão e esta é sua lei. Eu obedeci às ordens.
— Concordo plenamente — disse Struan, com brandura. — Você não era responsável, exceto em questões de marinharia. Tornei isto claro a Culum. Liza virou-se para Struan, furiosamente.
— Então foi deliberado. Você combinou tudo isso. Sabia que eles iam fugir.
— Não, ele não sabia, Sra. Brock. — Culum saía do passadiço, confiante, porém tenso. — A idéia foi minha. Olá, Tai-Pan. Ordenei a Orlov que nos casasse. A responsabilidade é minha.
— Sim. Vamos para baixo, rapaz.
Liza, com o rosto cinzento, pegou Culum pelo ombro.
— Tem sífilis?
— Claro que não. O que pôs isso em sua cabeça? Acha que eu casaria com Tess, se tivesse?
— Peço a Deus que esteja dizendo a verdade! Onde está Tess?
— Na cabina. Nós... venha para baixo.
— Ela... ela está bem?
— Claro, Sra. Brock!— Este não é o lugar para tratar de assuntos de família — disse Struan. Ele desceu o passadiço e Liza o acompanhou.
— Olá — disse Tess, timidamente, saindo da cabina principal.
— Olá, mamãe.
— Você está bem, amor?
— Ah, sim, ah, sim.
Então mãe e filha se atiraram nos braços uma da outra. Struan fez sinal a Culum para sair da cabina.
— Desculpe, Tai-Pan, mas decidimos que assim era melhor.
— Escute, rapaz. Houve problemas enquanto você estava fora. — Ele contou a Culum a respeito de Gorth. — Não há dúvida de que foi ele. Ele projetou tudo, como nós pensamos.
— Não há nenhuma possibilidade de que, após sete dias... há?
— Não. Mas é melhor ir ao médico de Brock. Isto fará com que Liza se tranqüilize.
— Você tinha razão outra vez. Você me advertiu. Deus do céu, você me advertiu. Por que Gorth faria uma coisa dessas?
— Como podia qualquer homem fazer isso a outro, ele perguntou a si próprio.
— Não sei. Está tudo bem entre você e Tess?
— Ah, sim. Maldito Gorth! Ele estragou tudo. — Ele tirou duas cartas do bolso. — Aqui estão as respostas de Skinner e Gordon.
— Obrigado, rapaz. Não se preocupe...
— Vamos desembarcar — disse Liza, colocando-se com todo seu peso à porta. — Vou levar Tess, e... Culum interceptou-a.
— Não vai levar minha esposa para parte alguma, Sra. Brock. Quanto aos boatos a respeito da sífilis, iremos ao seu médico imediatamente, e resolveremos isso agora mesmo.
— Tyler vai anular esse casamento. Foi sem permissão.
— Estamos casados diante de Deus, legalmente, e não se fala mais nisso. — Culum dizia o que ele e Tess haviam planejado. Mas sua ousadia parecia vazia, agora, por causa de Gorth. — Sinto muito que tenhamos fugido... não, não sinto. Estamos casados e farei tudo que estiver ao meu alcance para ser um bom genro, mas Tess fica comigo e fará o que eu disser.
— Tyler vai açoitá-lo!
— Ah, mamãe, não — exclamou Tess, correndo para Culum.
— Estamos casados e é a mesma coisa que se esperássemos três meses. Diga a ela, Tai-Pan, diga a ela que está errada.
— Tenho certeza de que seu pai vai ficar zangado, Tess. E com razão. Mas também tenho certeza de que ele perdoará a ambos. Liza, não pode perdoá-los aqui, agora?
— Não sou eu, Dirk Struan, quem tem de perdoar.
— Vamos, mamãe — disse Tess.
Nada pode acontecer agora, ela disse a si mesma. Agora que somos marido e mulher e ele me amou e doeu como antes, mas de maneira diferente. E ele está satisfeito e tem sido tão gentil e maravilhoso. Ela se esquecera de Nagrek para sempre.
— Vamos todos tomar juntos o desjejum.
Liza enxugou os lábios sobre os quais nasciam gotas de suor.
— É melhor você ir para casa. Mandarei um aviso para seu pai.
— Vamos ficar no Hotel Inglês — disse Culum.
— Não precisa fazer isso, Culum — disse Struan. — Há uma suíte para você em nossa residência.
— Obrigado, mas decidimos que assim é melhor. Achamos que devemos voltar para Hong Kong imediatamente, ver o Sr. Brock e pedir seu perdão. Por favor, Sra. Brock, vamos ser amigos. Papai me disse o que aconteceu com Gorth. Não foi culpa dele.
— Acho que foi, rapaz. E você não pode partir imediatamente. Temos de levar o caixão de volta, amanhã.
— O quê? — perguntou Tess.
— Gorth foi morto, querida — disse Culum. — Ontem.
— O quê?
— Ele foi traiçoeiramente morto por assassinos! — Liza gritou.
— Ó, Deus, não!
Struan contou-lhe tudo. Exceto o que Gorth tentara fazer a Culum.
— Não tive escolha senão desafiá-lo. — Finalizou Struan. — Mas seu sangue não está em minhas mãos. Acho que é melhor todos desembarcarmos. Tess soluçava, quieta. Culum mantinha seu braço em torno dela.
— Vamos, querida, enxugue os olhos. Não foi culpa nossa... nem de papai. — Ele a conduziu para fora da cabina. Struan rompeu o silêncio.
— Eles estão casados e felizes, Liza. Por que não deixar as coisas como estão?
— Se fosse por mim, eu diria sim. Se o que Culum diz é verdade. Mas Tyler não fará isso... você o conhece, como ele o conhece. Eu sei que você planejou isso, Dirk. Ele vai saber. Ele o matará... ou tentará matá-lo, e acho que você planejou tudo assim. Tyler e você matarão um ao outro, quando ele começar a persegui-lo, ou você a ele. Por que não deixou as coisas como estavam? Três meses não eram mais tanto tempo. Mas agora... ó, Deus!
Struan ergueu os olhos das cartas, enquanto Culum entrava desanimado no escritório e se sentava.
— Vai tudo bem?
— Sim. O médico disse que eu estou são.
— Já almoçou?
— Não. Nenhum de nós tinha vontade de comer. Ah, Deus!... tudo ia tão bem. Maldito Gorth e maldita sua loucura.
— Como vai a Sra. Brock?
— Tão bem quanto se poderia esperar... como diriam os jornais. Como vai... a cinchona chegou?
— Sim. Ela está ótima, agora.
— Ah, isso é maravilhoso!
— Sim.
Mas, apesar de seu sentimento de bem-estar, Struan estava perturbado por uma vaga mas penetrante apreensão. Não era nada que ele pudesse articular, só uma sensação de perigo, em alguma parte. As cartas não lhe deram nenhuma sugestão quanto ao que poderia ser. Gordon Chen escrevia que ainda tinha esperanças de achar a cinchona. E Skinner dissera que liberaria a notícia imediatamente, e esperava Struan naquele mesmo dia.
Mas agora não poderá mais ser hoje. Queria muito ter sido firme e dito a May-may que ela ficaria.
— Voltarei a Hong Kong amanhã. É melhor vocês dois virem comigo.
— Acho melhor irmos no White Witch, com a Sra. Brock e Lillibet — disse Culum.
— A Sra. Brock mandou notícia a Brock por uma lorcha, hoje pela manhã. A nosso respeito... e sobre Gorth.
— Não se preocupe, rapaz. Liza Brock se conformará e Tyler também não o incomodará. Ele fez um juramento, lembra-se? Culum observou o Tai-Pan por um momento.
— Você sabia que eu ia levar Tess no China Cloud?
— Bom, rapaz, quando ela sumiu eu fiquei esperando que sim — disse Struan, circunspectamente.
Culum pegou um peso de papel que se encontrava sobre a escrivaninha. Era de jade branco e pesado.
— Fui muito estúpido.
— Não acho. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Agora você está com tudo resolvido.
— Fui estúpido porque agi outra vez como um fantoche.
— Hein?
— Acho que você colocou em minha cabeça a idéia de fugir. Eu acredito que você, deliberadamente, colocou Orlov sob meu comando, sabendo que eu lhe ordenaria para nos casar. Acho que você mandou a mim e a Tess para fora sabendo que isto enlouqueceria Gorth e o faria atacar você publicamente, dando-lhe a oportunidade de matá-lo diante de todos. Não foi isso?
Struan ficou sentado, imóvel, em sua cadeira. Seus olhos não se desviaram dos olhos de Culum.
— Não sei direito como lhe responder, Culum. Não sei bem se você quer mesmo uma resposta. O fato é que você queria casar com Tess depressa e está casado. O fato é que Gorth realmente tentou matá-lo, da maneira mais traiçoeira que um homem poderia imaginar. O fato é que ele está morto. O fato é que eu lamento não ter tido o prazer de matá-lo, mas o fato é que seu sangue não está em minhas mãos. O fato é que, estando ele morto, você está vivo... você e Tess. O fato é que Brock, embora querendo fazer de tudo, com relação ao assunto, estará preso pelo juramento sagrado prestado por ele, e dar a você um ancoradouro seguro, num porto seguro. E o fato final é que, agora, logo você poderá assumir. Como o Tai-Pan.
Culum recolocou o peso de papel em seu lugar.
— Não estou preparado para ser o Tai-Pan.
— Eu sei. Mas logo estará. Voltarei para a Inglaterra dentro de poucos meses — disse Struan. — Levarei o Lótus Cloud no próximo ano e cuidarei de Wu Kwok. Mas tudo o mais será problema seu.
Culum pensou em ser Tai-Pan, em agir sozinho. Mas sabia que agora não agia mais sozinho. Agora, ele tinha Tess.
— Acho que posso fazer as pazes com Brock... se você não tentar fazer tudo em meu lugar — disse ele. — Planejou tudo isso? Posso ter um “sim” ou um “não”? — Ele esperou, desesperadamente desejoso de ouvir um “não”.
— Sim — disse Struan, deliberadamente. — Usei certos fatos para alcançar um fim calculado.
— Quando eu for Tai-Pan, ingressarei em Struan e Companhia com Brock e Filhos
— disse Culum. — Brock será o primeiro Tai-Pan e eu só assumirei depois dele! Struan ficou em pé, de um salto.
— Aquele filho da mãe não será o Tai-Pan da Casa Nobre. Ele não dirigirá meus navios!
— Não são seus navios. São da companhia. Será Brock só outro peão, para ser usado ou abusado de acordo com seus caprichos?
— Juro por Deus, Culum, eu não entendo você. Você tem toda a sua vida em suas próprias mãos e agora fará a única coisa capaz de destruí-la.
Culum de repente viu o pai com clareza — como homem. Viu a dimensão e a força do rosto castigado pelas intempéries, o cabelo vermelho-dourado e o verde surpreendente dos olhos. E percebeu que seria sempre o instrumento desse homem. Sabia que não poderia nunca combatê-lo, e nem convencê-lo de que a única maneira para ele sobreviver como Tai-Pan seria unir-se a Brock e apostar que Brock deixaria a ele e a Tess em paz.
— Não poderei nunca ser o Tai-Pan da Casa Nobre. Não sou como você — disse, com calma determinação. — Eu não quero ser, e nunca serei. Houve uma batida à porta.
— Sim? — disse Struan, irritado. Lo Chum abriu a porta.
— Soldado quer ver senhor, pode?
— Dentro de um minuto. Culum levantou-se.
— Acho que vou embora e...
— Só uni minuto, Culum. — Struan deu as costas a Lo Chum. — Pode mandar entrar. Lo Chum se abespinhou, cheio de irritação, e abriu mais a porta. O jovem oficial português entrou.
— Boa-tarde, senhor.
— Por favor, sente-se, Capitão Machado. Conhece meu filho, Culum?
Apertaram-se as mãos e o oficial se sentou.
— Como líder dos cidadãos de nacionalidade inglesa, meus superiores pediram-me para lhe comunicar oficialmente o resultado de nossa investigação sobre o assassinato do Senhor Brock — ele começou.
— Pegou os outros? — interrompeu Struan. O oficial sorriu e abanou a cabeça.
— Não, senhor. Duvido que vamos pegar. Passamos o assassino às autoridades chinesas, como é nossa obrigação fazer. Eles o submeteram a uma investigação à sua maneira, que é inimitável. Ele admitiu ser membro de uma sociedade secreta. A Hung Mun. Tríades, creio que a chamam assim. Parece que ele veio para cá, de Hong Kong, há alguns dias. Segundo ele, há uma sede dessa sociedade que floresce no Tai Ping Shan. — O oficial sorriu, outra vez. — Parece também que tem muitos inimigos, senhor Struan. Aquele cabrão declarou que seu... seu filho natural, Gordon Chen, é o líder.
— É a melhor piada que já ouvi em minha vida — disse
Struan, fingindo divertir-se. Mas considerava muito cuidadosamente a possibilidade de ser verdade. E, se for? Ele perguntou a si mesmo. Não sei. Mas é melhor descobrir depressa, de qualquer jeito.
— Os mandarins também se divertiram, assim disseram -•contou-lhe Machado. — De qualquer maneira, infelizmente, o demônio pagão morreu antes de se poder conseguir
o nome do verdadeiro líder. — Acrescentou com desdém. — Declarou ter sido enviado aqui para assassinar o Sr. Brock obedecendo a ordens do líder. Claro que ele deu os nomes de seus cúmplices, mas também não fazem sentido, como o resto de sua história. Foi um simples roubo. Esses malditos Tríades não passam de bandoleiros. — Ou talvez — ele disse, com agudeza — uma questão de vingança.
— Hein?
— Bom, senhor. O jovem senhor Brock não era... como direi... exatamente admirado em certas áreas de má reputação. Parece que freqüentava um bordel perto do qual foi encontrado. Agrediu brutalmente uma prostituta, há mais ou menos uma semana. Ela morreu anteontem. Acabamos de receber uma queixa contra ele, dos mandarins. Quem sabe? Talvez os mandarins tenham decidido que dente por dente, e tudo não passe de uma forma de desviar a atenção. Sabe como eles são tortuosos, em sua maneira de agir. Talvez seja bom que esteja morto, porque teríamos de tomar medidas embaraçosas para todos. — Ele se levantou. — Meus superiores, é claro, enviarão um relatório oficial a Sua Excelência, já que um cidadão de nacionalidade inglesa foi envolvido.
Struan estendeu-lhe a mão.
— Quer agradecer a eles em meu nome? E será que tudo isso não poderia ser silenciado? Quero dizer, a parte referente à prostituta. Meu filho é casado com a irmã dele, e gostaria de proteger o nome dos Brocks. Tyler Brock é um antigo sócio.
— Entendo — disse o oficial, com um tom ligeiramente irônico. Deu uma olhada em Culum. — Parabéns, senhor.
— Obrigado.
— Mencionarei sua sugestão a meus superiores, Sr. Struan. Tenho certeza de que eles avaliarão a delicadeza de sua posição.
— Obrigado — disse Struan. — Se pegar os outros, a recompensa ainda vale.
O oficial bateu continência e saiu.— Obrigado por sugerir aquilo — disse Culum. — O que iria acontecer com Gorth?
— Ele teria sido enforcado. Existem sólidas leis inglesas referentes a assassinato.
— Seria irônico, se essa história fosse verdadeira.
— Hein?
— Gordon Chen e a sociedade secreta. Se, realmente, você não teria planejado o desafio a Gorth porque já combinara secretamente que ele fosse assassinado.
— É uma terrível acusação. Terrível.
— Não o estou acusando — disse Culum. — Eu simplesmente disse que seria irônico. Sei que você é o que é; qualquer assassinato que cometer terá de ser abertamente, de homem para homem. Esta é a maneira como a mente do Tai-Pan funcionaria. Mas a minha, não. Nunca serei assim. Estou cansado de colocar pessoas em armadilhas e usálas. Você precisa me suportar como puder. E, se sua Casa Nobre morrer em minhas mãos... bom, para usar suas próprias palavras, é uma questão de pagode. Seu prestígio está salvo. Você partirá como o Tai-Pan, aconteça o que acontecer em seguida. Jamais o entenderei e você jamais me entenderá, mas podemos ser amigos, mesmo assim.
— Claro que somos amigos — disse Struan. — Só uma coisa... prometa que nunca se unirá a Brock.
— Quando eu for Tai-Pan, terei de fazer o que achar melhor. A decisão não caberá mais a você. É a lei que você criou e à qual eu jurei obedecer.
Da praia, vieram ruídos. Em alguma parte, à distância, os sinos de uma igreja começaram a bimbalhar.
— Vai jantar conosco esta noite? No clube?
— Sim. Culum partiu. Struan permaneceu à sua escrivaninha. Como posso inflamar Culum?, perguntou a si mesmo.
Não conseguia imaginar uma resposta. Mandou buscar seu secretário e tomou providências no sentido de que todos os negócios da companhia fossem concluídos antes de sua volta para Hong Kong. Saiu do escritório e, a caminho da casa de May-may, pensou em Brock. Será que ele vai invadir o clube furioso, esta noite, como Gorth fez?
Struan parou por um momento, e olhou para o mar. O White Witch e o China Cloud estavam lindos, ao sol da tarde. Seus olhos vaguearam por Macau, e viu a catedral. Por que aquele bispo diabólico não deu um preço justo para a casca de árvore? Seja justo você próprio, Dirk. Ele não é nenhum demônio. Sim, mas prendeu você numa armadilha. Agora, você jamais o esquecerá, pelo resto de sua vida — e fará todo tipo de favores à igreja. É aos demônios católicos. Serão mesmo demônios? Vamos ver a verdade.
Não. O único demônio que você conhece é Gorth, e Gorth está morto — liquidado. Graças a Deus! Sim.
Gorth está morto. Mas não esquecido.
O China Cloud soltou as amarras ao amanhecer. O mar estava calmo e o vento era firme e vinha do leste. Mas, após duas horas no mar, a brisa se tornou mais fresca e Struan deixou May-may na cabina grande e foi para o convés.
Orlov examinava o céu. Estava claro no horizonte mas, lá longe, reuniam-se algumas nuvens cúmulos.
— Não há perigo ali — disse.
— Também não há nada errado lá — disse Struan, com um gesto em direção ao mar.
Caminhou pelo convés e, depois, balançou-se nos cabos do mastro dianteiro. Subiu com facilidade, o vento puxando-o agradavelmente, e só parou quando segurava as adriças do mastaréu de joanete, no alto do mastro dianteiro.
Examinou o céu e o mar, procurando meticulosamente os ventos ou tempestades que poderiam estar à espreita, o recife escondido ou o baixio não mapeado. Mas não havia nenhum sinal de perigo no horizonte.
Por um momento, deixou-se gozar a velocidade, o vento, a ausência de limites, abençoando seu pagode pelo vida e por May-may. Ela estava muito melhor — ainda muito fraca, porém forte, em comparação com a véspera.
Examinou todo o cordame à vista, procurando ver se havia danos ou fraquezas e, depois, desceu pelas cordas e voltou para o tombadilho. Uma hora mais tarde, o vento refrescou outra vez e o clíper adernou mais, fazendo a espuma bater nas velas mais baixas.
— Ficarei satisfeito ao voltar ao porto esta noite — disse Orlov, contrafeito.
— Sim. Você também está sentindo isso?
— Não sinto nada. Só que ficarei satisfeito ao chegar ao porto esta noite. — Orlov cuspiu a barlavento e substituiu seu naco de fumo. — O mar está tranqüilo, o vento tranqüilo, o céu está limpo... mas, mesmo assim, há alguma coisa horrível preparando-se.
— Tem Sempre alguma coisa em preparo nessas águas.
— Com sua permissão, vamos rizar as velas e mandarei o prumador ir dando as profundidades. Talvez seja apenas um baixio, um maldito rochedo por aí. — Orlov estremeceu e fechou mais seu casaco de marinheiro, embora o dia estivesse quente e o vento calmo.
— Sim. Então o prumador foi mandado para a frente, e mediu as profundidades. E a tripulação subiu pelo cordame e diminuiu a pressão sobre as velas do China Cloud.
No fim da tarde, o navio estava salvo na entrada do canal oeste. A Ilha de Hong Kong encontrava-se a bombordo, o continente a estibordo. Uma viagem perfeita, sem nenhum incidente.
— Talvez nós estejamos apenas ficando velhos — disse Struan, com uma risada curta.
— Quanto mais velho se fica, mais o mar quer levar-nos — disse Orlov, sem rancor, olhando para o oceano, à popa. — Se não fosse pelo meu belo navio, eu me demitia hoje. Struan caminhou para o timão.
— Vou substituir você por um turno, timoneiro. Vá para a frente.
— Sim, sim, senhor. — O timoneiro deixou-os a sós no tombadilho.
— Por que? — Struan perguntou a Orlov.
— Sinto que o mar me observa. Está sempre observando um marinheiro, testando-o. Mas chega um tempo em que o observa de maneira diferente, com ciúme, sim, com ciúme, pois o mar é uma mulher. E perigosa. — Orlov cuspiu por sobre a amurada o naco de fumo e lavou a boca com o chá frio que havia na bolsa de lona perto da bitácula. — Eu não tinha nunca agido como padre e nem casado ninguém, antes. Foi mortalmente estranho... estranho, Olhos Verdes, olhar aqueles dois, tão jovens, ansiosos e confiantes. E ouvi-lo falar igual a você, inchado como um pavão, ele estava. “Por Deus, Orlov, você vai nos casar, por Deus! Sou o capitão do China Cloud, por Deus! Você conhece a lei do Tai-Pan, por Deus!” E ali estava eu, arengando e esbravejando, terrivelmente relutante, de modo a dar a ele prestígio, mas sabendo, o tempo todo, que o velho Olhos Verdes era quem mexia os cordéis. — Orlov deu uma risadinha e olhou para Struan. — Mas agi muito bem e deixei que ele me comandasse... como você queria que eu fosse comandado. Foi como... bom, como meu presente de casamento para o rapaz. Ele lhe contou nosso acordo?
— Não.
— Faça o nosso casamento e você conservará seu navio, por Deus! Se não casar, eu vou tirar você do mar, por Deus!” — Orlov sorriu. — Eu teria casado os dois, de qualquer maneira.
— Eu estava pensando em lhe tirar seu navio, eu mesmo.
O sorriso de Orlov sumiu.
— Hein?
— Estou pensando em reorganizar a companhia... colocar a frota sob o comando de um homem. Gostaria de assumir esse cargo?
— Em terra?
— Claro que em terra. Você pode administrar uma frota do tombadilho de um clíper? Orlov fechou o punho e o estendeu em direção ao rosto de Struan.
— Você é um demônio do inferno! Você me tenta com um poder que vai além dos meus sonhos, para tirar a única coisa que eu amo na terra. Num tombadilho, esqueço quem eu sou. Por Deus, você sabe disso. Em terra, quem sou eu, hein? Stride Orlov, o corcunda!
— Você poderia ser Stride Orlov, tai-pan da mais nobre frota da terra. Eu acho que é trabalho para um homem de verdade. — Os olhos de Struan não se desviaram do rosto do anão.
Orlov deu a volta, foi para a amurada a barlavento e começou a proferir uma torrente de obscenidades em norueguês e russo, que durou minutos. Voltou, pisando forte.
— Quando será isso?
— No fim deste ano. Talvez mais tarde.
— E minha viagem para o norte? À procura de peles? Esqueceu disso?
— Você iria querer cancelá-la, não?
— O que lhe dá o direito de transformar todo mundo em títere? Hein?
— Timoneiro! Venha à popa! — Struan devolveu o timão ao marinheiro, enquanto o China Cloud saía do canal para as águas calmas do porto.
Uma milha mais adiante, estava a saliente península de Kowloon. A terra, de cada lado do navio, era barrenta e árida e se esfarinhava rapidamente. A bombordo, mais ou menos uma milha adiante, estava a rochosa ilha que fora chamada de Ponto Norte e formava um promontório. Além do Ponto Norte, invisível daquela posição, estavam o Vale Feliz, o Cabo Glessing e a pequena parte do porto em uso.
— Norte por noroeste — ordenou Struan.
— Norte por noroeste, senhorrr — ecoou o timoneiro.
— Firme para a frente. — Ele olhou para Orlov por sobre seu ombro. — E então?
— Não tenho escolha. Sei quando você decide alguma coisa. Você não me demitiria sem pensar duas vezes. Mas, há condições.
— Quais?
— Em primeiro lugar, quero o China Cloud. Por seis meses. Quero voltar para casa.
Pela última vez. — Ou sua mulher e filhos voltam com você ou ficam para trás, disse Orlov a si mesmo. Ficarão, e vão cuspir em sua cara, e mandarão você para o inferno e você desperdiçará seis meses de vida de um navio.
— Combinado. Logo que tiver aqui outro clíper, o China Cloud será seu. Você trará de volta uma carga de peles. Qual a outra?
— A outra, Olhos Verdes, é sua lei: quando você está a bordo, é capitão. Quero a mesma coisa.
— Combinado. E a outra?
— Não há “outra”.
— Não discutimos dinheiro.
— O dinheiro que vá para o inferno! Serei tai-pan da frota da Casa Nobre. O que mais pode um homem desejar?
Struan sabia a resposta. May-may. Mas nada disse. Eles apertaram-se as mãos, selando o acordo e, quando o navio estava a um quarto de milha ao largo de Kowloon, Struan ordenou que o China Cloud entrasse numa amura sudoeste-pelo-sul e se encaminhasse diretamente ao porto.
— Todos os homens ao convés! Apresentem-se! Assuma, Capitão. Coloque-se ao lado do Resting Cloud. Nossos passageiros farão o transbordo primeiro. Depois, coloque as âncoras de tempestade.
— Obrigado, Capitão — rosnou Orlov. — É bom estar no porto, por Deus!
Struan observou a terra com seu binóculo. Agora, via as profundezas do Vale Feliz: prédios abandonados, nenhum movimento. Moveu as lentes, ligeiramente, e ajustou o foco, fazendo tornarem-se mais nítidos os locais de construção da nova Cidade da Rainha, em— torno do Cabo Glessing. Os andaimes de sua nova e grande feitoria já estavam erguidos e via cules azafamando-se como formigas: carregando, construindo, cavando. Também já estavam erguidos os andaimes no outeiro onde ordenara que fosse construída a Grande Casa. E via o estreito e esguio corte da estrada que agora serpenteava morro acima.O Tai Ping Shan crescera apreciavelmente. Onde havia algumas poucas centenas de sampanas, indo e vindo do continente, agora havia mil.
Mais navios de guerra e de transporte estavam ancorados, além de mais alguns poucos navios mercantes. Casas, barracos e abrigos temporários alastravam-se pela fita da Estrada da Rainha, que marginava a praia. E toda a faixa da praia próxima à arrebentação pulsava de atividade.
O China Cloud saudou a nau capitania, enquanto contornava o promontório e um canhão disparou em resposta.
— Sinal da nau capitania, senhorrr! — gritou o vigia. Struan e Orlov viraram seus binóculos para as bandeiras, que diziam: “Pede-se ao Capitão para vir a bordo imediatamente.”
— Quer que eu pare junto? — perguntou Orlov.
— Não. Ponha o escaler ao lado, quando estivermos à distância de duas correntes. Você é responsável pelo transbordo de meus passageiros para o Resting Cloud com segurança. Sem olhos de intrusos vendo o que não devem.
— Pode deixar por minha conta. Struan foi para baixo e disse a May-may que a veria logo, e fez com que ela, Ah San e Yin-hsi se preparassem para o transbordo.
Os olhos de Orlov percorreram rapidamente o navio. Um emprego em terra, hein? Bom, veremos. Há muitas léguas para viajar ainda, disse a si mesmo. Que o demônio o leve. Sim, mas eu enfrentaria o próprio demônio por Olhos Verdes — cria de Odin. Ele precisa de um homem como eu. Mas tem razão, novamente. Aquele é um cargo para homem. Esse pensamento o animava muito.
— Fiquem ativos! — rugiu para a tripulação, sabendo que muitos binóculos estariam fixados neles, e manteve a vela a todo pano, avançando, despreocupadamente, em direção à nau capitania. Seu coração cantou com o cordame e, depois, no último minuto, gritou: — Timão a sotavento! — e o navio deu a volta, atirando-se em seguida para a frente, sem fôlego, como um sabujo a perseguir uma ninhada de perdizes.
Baixaram o escaler e Struan desceu pelas cordas. Quando o cúter se afastou, o China Cloud mudou de direção alguns pontos, colocando-se com perfeição ao lado do Resting Cloud.
— Todos os homens para baixo! — ordenou Orlov. — Desocupe o convés, Sr. Cudahy. O nosso e o deles. Estamos baldeando uma carga que não precisa ser contada, por Deus!
Struan abriu a porta da cabina principal da nau capitania.
— Por Deus, Dirk! Estamos todos arruinados — disse Longstaff todo agitado, aproximando-se dele a acenar com um exemplar do Oriental Times em seu rosto. — Já viu isso? Arruinados! Arruinados!
Struan pegou o jornal. A manchete, na página editorial interna, era imensa: Ministro de Relações Exteriores Repudia os Comerciantes na China.
— Não, Will! — disse.
— Por tudo que é sagrado, como ousou ele fazer uma coisa tao estúpida, hein? Que louco idiota! O que vamos fazer?
— Deixe-me ler, Will. Então verei de que se trata.
— O idiota do Cunnington repudiou nosso tratado. É disso que se trata. E eu estou demitido! Substituído! Eu! Como ele ousa? Struan ergueu as sobrancelhas e assobiou.
— Não foi informado ainda através de despacho?
— Claro que não! Quem diabo informa o plenipotenciário, hein?
— Quem sabe se não é tudo falso?
— Aquele sujeito, o Skinner, jura que é verdade. É melhor que seja, do contrário eu o processarei, por Deus!
— Quando saiu isso, Will?
— Ontem. Como diabo esse obeso e fedorento peralvilho Skinner pôs suas mãos gordas e sujas num despacho secreto que eu nem sequer recebi ainda? Devia ser chicoteado! — Serviu-se de uma taça de Porto, esvaziou-a e se serviu de outra. — Não dormi um só minuto, a noite passada, preocupado com o nosso futuro na Ásia. Leia isso. Maldito Cunnington!
Enquanto Struan lia, descobriu que começava a ferver. Embora o artigo apresentasse, ostensivamente, os fatos amplos, e documentasse o despacho palavra por palavra, como Cross escrevera para ele, o editorial de Skinner implicava que Cunnington, bem conhecido pela sua maneira imperiosa de tratar as questões estrangeiras, repudiara totalmente não só o próprio tratado, mas toda a experiência da comunidade comercial, e também da Marinha Real e do Exército: “Lord Cunnington, que nunca esteve a leste de Suez, arvora-se em perito para opinar sobre o valor de Hong Kong. Muito provavelmente não sabe se Hong Kong fica ao norte ou ao sul de Macau, a leste ou a oeste de Pequim. Como ousa sugerir que o Almirante de nossa gloriosa frota é um saco de vento e nada sabe sobre marinharia e o valor histórico de maior porto da Ásia? Onde estaríamos nós, sem a Marinha Real? Ou o Exército, ambos igualmente desprestigiados — não, insultados – pela estúpida e equivocada maneira de tratar os nossos assuntos? Sem Hong Kong, onde nossos soldados encontrariam um refúgio, ou ossos navios um santuário? Como ousa esse homem, que está seu posto há demasiado tempo, dizer que, com toda sua experiência, todos os negociantes que, honradamente, investiram seu futuro e sua riqueza em Hong Kong são idiotas? Como ousa sugerir que essas pessoas, cuja vida foi passada na China, para a glória da Inglaterra, nada sabem a respeito dos negócios chineses, do imenso valor de um porto livre, de um empório comercial e uma ilha fortificada... — E o artigo avaliava a ilha e descrevia como, com grande risco para si próprios, os negociantes desenvolveram o Vale Feliz, e como, ao terem de abandoná-lo, destemidamente começaram a nova cidade, para a glória da Grã-Bretanha. Era uma peça magistral de manipulação de notícia.
Struan escondeu seu encanto. Sabia que, se ele — que introduzira a história — podia ser atiçado pelo editorial, outros iriam à violência.
— Estou chocado! Que ele tivesse ousado! Cunnington devia ser destituído!
— É exatamente o que eu penso! — Longstaff esvaziou seu copo outra vez, e bateu o na mesa. — Bom, agora estou demitido. Todo o trabalho, o suor, as conversas, a guerra... tudo por água abaixo, por causa daquele autoritário e precipitado maníaco, que acredita ser o dono do mundo.
— Ele não vai conseguir levar isso a cabo, Will! Temos de fazer algo com ele! Não conseguirá levar isso a cabo!
— Já conseguiu, por Deus! — Longstaff levantou-se e caminhou pela cabina, e Struan sentiu uma ponta de piedade por ele.
— O que vai acontecer? Minha carreira está arruinada... todos estamos arruinados!
— O que você fez com relação a isso, Will?
— Nada. — Longstaff olhou para fora, pelas vigias da cabina.
— Essa maldita ilha é a origem de todos os meus problemas. Esse rochedo do inferno me destruiu. Destruiu a todos nós! — Ele se sentou, soturnamente. — Ontem, quase houve um motim. Uma delegação de comerciantes veio aqui e pediu que eu me recusasse a partir. Outra, comandada por Brock, pediu que eu partisse da Ásia imediatamente, com a frota, e me apresentasse em Londres para pedir o impeachment de Cunnington e, se necessário, bloqueasse o porto de Londres. — Ele apoiou o queixo nas mãos. — Bom, a culpa foi minha. Eu deveria ter seguido minhas instruções ao pé da letra. Mas isso não teria sido certo. Não sou um conquistador sedento de poder, querendo tomar todas as terras. Maldito seja tudo! — Ele ergueu os olhos, o rosto retorcido de humilhação. — O almirante e o general estão encantados, é claro. Quer uma bebida?
— Obrigado. — Struan serviu-se de um conhaque. — Nem tudo está perdido, Will. Pelo contrário. Ao chegar a nosso país, você pode colocar em ação sua influência.
— Hein?
— O que você fez aqui está certo. Você poderá convencer Cunnington, se ele ainda estiver ocupando o cargo. Cara a cara, você estará em posição muito forte. Tem a razão do seu lado. Definitivamente.
— Você já encontrou Cunnington? — perguntou Longstaff, amargamente. — Não se discute com aquele monstro.
— É verdade. Mas eu tenho alguns amigos. Vamos dizer que você tivesse uma chave para provar que estava certo e ele errado?
Os olhos de Longstaff brilharam. Se Struan não se mostrava preocupado com a terrível notícia, nem tudo estava perdido.
— Que chave, meu caro amigo? — perguntou.
Struan saboreava seu conhaque.
— Os diplomatas são permanentes, os governos mudam. Antes de você chegar à Inglaterra, Peel será Primeiro-Ministro.
— Impossível!
— Provável. Digamos que você leve notícias da mais alta importância, provando que Cunnington é um idiota. Como Peel e os Conservadores iriam encarar você?
— Admiravelmente. Puxa vida! Que notícias, Dirk, meu amigo?
Houve uma confusão do lado de fora da porta, e Brock invadiu a sala, embora uma desafortunada sentinela tentasse, inutilmente, detê-lo. Struan ergueu-se, num átimo de segundo, pronto para puxar a faca.
O rosto de Brock estava inchado de ódio.
— Eles estão casados?
— Sim.
— Gorth foi assassinado?
— Sim.
— Quando deverá chegar o White Witch?
— Antes do entardecer, eu acho. Estava programado para partir no meio da manhã.
— Primeiro, falarei com Liza. Depois, com os dois. Então, em nome do Senhor, virei falar com você. — Saiu furioso.
— Que patife mal-educado! — Longstaff estava ofendido. — Poderia ter, pelo menos, batido à porta.
Struan relaxou como um gato relaxaria, depois de um perigo passar — os músculos se afrouxando, prontos para se enrijecerem outra vez, diante da próxima ameaça, mas os olhos imutáveis, ainda observando onde estava o perigo.
— Você nada tem a temer de Cunnington, Will. Ele está liquidado.
— Sim, claro, Dirk. E que bons ventos o levem! — Olhou para a porta, lembrou-se da luta e sentiu que a luta entre Dirk e Brock seria igualmente rancorosa. — O que Brock tem em mente, hein? Será que ele vai desafiar você para um duelo? Claro que ouvimos falar de sua briga com Gorth. As más notícias costumam circular rapidamente, não é? Que coisa terrível! Foi uma tremenda sorte que ele tivesse sido morto por outros.
— Sim — disse Struan. Agora que o perigo passara, ele sentia-se ligeiramente enjoado e fraco.
— O que deu naqueles dois jovens idiotas, para fugirem assim? É lógico que Brock só poderia ficar louco. Estupidez!
— Não foi estupidez, Will. Era a melhor coisa que podiam fazer.
— Claro. Se você diz que era. — E Longstaff ficou imaginando se os rumores eram verdadeiros: de que o Tai-Pan, deliberadamente, precipitara o casamento e o duelo. O Tai-Pan era esperto demais para não ter planejado isso, disse a si próprio. Então, Tai-Pan versus Brock. — E Peel, Dirk?
— Você é um diplomata, Will. Os diplomatas não devem ter ligações partidárias específicas. Pelo menos, deveriam ter boas relações com todos os partidos.
— É exatamente o que eu penso. — Os olhos de Longstaff se arregalaram. — Você quer dizer que eu devo tornar-me um Conservador... apoiar Peel?
— Apoiar igualmente os Whigs e os Conservadores. Hong Kong é bom para a Inglaterra. Você é Hong Kong, Will. Talvez isto — Struan agitou o papel — seja um grande golpe de sorte para você. Prova que Cunnington não só é um idiota, mas também um falador. É chocante ler um despacho particular nesse jornal. — Depois, falou-lhe da pasta de documentos, mas só o suficiente para deixar Longstaff tonto.
— Bom Deus!
Se, como o Tai-Pan sugeria, havia uma cópia do verdadeiro relatório secreto, com mapas de áreas de fronteira entre a Rússia e a China, e do interior, por Deus, isso seria um passaporte para um posto de embaixador e um cargo de nobreza.
— Onde a conseguiu?
— De uma fonte acima de qualquer suspeita. — Struan levantou-se. — Eu colocarei a pasta em suas mãos, antes de você partir. Use-a como quiser. Certamente, provará que você tem razão e Cunnington está errado, além de tudo o mais.
— Jantará comigo, Dirk? — Longstaff não se sentia tão bem há anos. — Podemos conversar a respeito dos velhos tempos.
— Hoje à noite, não, desculpe-me. Quem sabe, amanhã?
— Ótimo. Obrigado. E estou muito satisfeito por nossos pontos de vista terem sido comprovados.
— E, finalmente... há uma outra coisa que necessita de atenção imediata. Os Tríades.
— Hein?
— Gorth Brock foi assassinado pelos Tríades de Hong Kong. Do Tai Ping Shan.
— Puxa vida! Por quê?
— Não sei.
Struan contou o que o oficial português lhe contara sobre os Tríades. E sobre Gordon Chen. Sabia que tinha de dar a Longstaff esta informação pois, do contrário, iria parecer que tentara proteger seu filho, quando fosse oficialmente divulgada. Se Gordon estivesse envolvido com a sociedade, isto iria afastá-lo. Caso contrário, não haveria nenhum prejuízo.
— Ora essa — disse Longstaff, com uma risada. — Uma história ridícula.
— Sim, espalhada por meus inimigos, não há dúvida. Mas faça uma proclamação a respeito dos Tríades e ordene ao Major Trent para esmagá-los. De outra maneira, teremos os malditos mandarins atrás de nós.
— Boa idéia. Excelente, por Júpiter! Vou chamar Horatio... ora bolas, eu o mandei a Macau, numa folga de duas semanas. Você me cederia Mauss?
— Claro. Eu o mandarei procurá-lo.
Quando Struan partiu, Longstaff sentou-se, entusiasmado, à sua escrivaninha.
— Meu caro Sir William — ele disse para seu copo. — Eu me sinto ótimo. Para dizer a verdade, estou felicíssimo por deixar essa ilha fedorenta. Não dou a mínima para o que vai acontecer com ela... com os negociantes, os chineses ou os malditos Tríades. — Foi à janela e começou a rir. — Veremos o que a pasta contém. E quando voltarmos para a Inglaterra decidiremos. Se Cunnington cair, poderemos voltar com segurança para Hong Kong, e levando vantagem. Se Cunnington continuar, posso concordar que ele está certo e jogar a ilha no lixo, como uma coisa à-toa. Porque terei os documentos, uma chave para a alcova de qualquer Ministro de Relações Exteriores, e terei também uma porção de chá.
— Estourou de rir. Fazia alguns dias, um emissário particular, Ching-So viera vê-lo, para lhe dizer que as sementes pedidas Horatio poderiam ser embarcadas dentro de duas semanas. — Acho que teve um belo dia de trabalho, Excelência!
À bordo do Resting Cloud, Struan encontrou May-may já na cama, em seus próprios alojamentos, com excelente aspecto e ainda mais
— Estou muito satisfeita por me encontrar em casa, Tai-Pan. Você viu, não é? Sua velha mãe obedece como um marinheiro. Tomei duas xícaras de cinchona e estou preparada para mais três.
— Hein? — ele disse, com uma repentina suspeita.
— Ora, é a pura verdade. E não me olhe assim. Estou falando-, sério! Será que sou uma prostituta Hoklo? Uma miserável mendiga? Tenho cara de quem mente? Promessa é promessa, e não esqueci. Claro — ela acrescentou, com doçura — agora eu tomo o veneno com gosto de esterco misturado com suco de manga, coisa de que qualquer mulher normal se lembraria imediatamente, mas não os homens, ah, meu Deus, não... seria simples demais. — Ela ergueu a cabeça, com seu antigo ar imperioso. — Os homens!
Struan disfarçou o sorriso e o prazer de ver que ela voltara a ser como antes. — Retornarei mais tarde. E você fique na cama.
— Ora! Será que deixo de cumprir promessa? Será que sou um esterco inútil de tartaruga? — Estendeu a mão, como uma imperatriz. — Tai-Pan! Ele beijou-lhe a mão, com galanteria, e ela explodiu em risos e o abraçou.
— Vá, meu filho, mas nada de sujos bordéis!
Struan deixou-a, e foi para sua própria cabina. Destrancou seu cofre e tirou da pasta uma das duas cópias dos documentos e mapas, que mandara fazer meticulosamente. Colocou-os no bolso, com os pequenos sacos que continham os restos da casca de cinchona.
Entrou outra vez em seu escaler.
— Boston Princess — ordenou, dando o nome do pontão de Cooper-Tillman.
O sol morria no horizonte, mas tinha um brilho opaco, como se um véu tivesse sido puxado através do céu.
— O que acha disso, Mestre?
— Não sei, senhorrr. Vi tempo assim nos Mares do Sul, antes de clima bom e de tempestade. Se a lua tiver um anel em torno esta noite, então talvez vá chover, por um período.Ou coisa pior. Struan acrescentou para si mesmo. Levantou-se e olhou para o canal oeste. Não havia sinal do White Witch. Bom, cogitou, talvez permaneçam fora e voltem ao amanhecer. Não vou pensar a seu respeito ainda, Tyler.
O escaler parou ao lado do Boston Princess. Era um navio mercante adaptado, de grandes dimensões e três conveses, permanentemente ancorado. Struan subiu correndo a prancha de desembarque.
— Permissão para subir a bordo — disse ao oficial americano que se encontrava no convés. — Talvez o Sr. Cooper queira receber-me. É urgente.
— Só um minuto, Sr. Struan. — O oficial foi para baixo. Struan acendeu um charuto e atirou o fósforo por sobre a amurada. O China Cloud passava ao largo, encaminhandose para sua amarração, que ficava em águas profundas, em frente ao Vale Feliz.
— Olá, Tai-Pan — disse Jeff Cooper, chegando rapidamente ao convés. — Suponho que tenha ouvido dizer o que fez aquele estúpido filho da mãe do Cunnington? Ficamos muito sentidos ao saber do duelo, e todo o resto. Aqueles dois jovens loucos fugiram?
— Sim. Como vai Wilf?
— Morreu.
— Maldição! Quando morreu?
— Há três dias.
— Vamos para baixo, hein?
— Está bem. O que achou da demissão de Longstaff e do repúdio ao tratado?
— Não significa nada. Apenas um estúpido erro político. Tenho certeza de que será corrigido.
Cooper mostrou o caminho até embaixo. A cabina principal era luxuosa.
— Conhaque?
— Obrigado. — Struan aceitou a bebida. — Saúde!
Struan abriu a pequena bolsa e tirou um pouco da cinchona.
— Está vendo isso, Jeff? É uma casca de árvore. Casca de cinchona. Algumas vezes chamada casca de árvore dos jesuítas. Com ela se faz um chá que cura a malária.
— Tem certeza?
— Sim. Curei minha amante. Esta revelação é particular... mas cura com certeza. Cooper pegou um pedaço da casca, com os dedos trêmulos.
— Ah, meu Deus, Tai-Pan, percebe o que fez? Percebe o que está dizendo?
— Sim. A malária existe no mundo inteiro... vocês têm a doença nos Estados Unidos por toda a Flórida e no território da Louisiana. Conheço a cura e como obter a casca de árvore. O que isso leva você a pensar?
— Trata-se de um serviço prestado à humanidade e representa uma fortuna para quem conseguir a casca primeiro.
— Sim, rapaz. Estou propondo uma sociedade. — Struan colocou a casca outra vez na bolsa, repentinamente triste. — É irônico, não? Há poucas semanas, isto poderia ter salvo Robb e a pequena Karen... e todos os outros, até Wilf, embora eu o desprezasse.
— Ele teve uma morte terrível — disse Cooper.
— Sinto muito. — Struan provou o conhaque e esqueceu o passado — Minha proposta é simples. Formamos uma nova companhia especializada na casca. Colocamos dinheiro em proporção igual. Quatro diretores... você, um designado seu, eu e Culum. Você administra a companhia. Eu forneço os dados referentes a onde, e como, e o que fazer de imediato, e você começa a planejar amanhã.
Cooper estendeu a mão.
— Negócio feito.
Struan contou-lhe onde obtivera a casca, de quem, e a respeito do navio que fretara e ia partir de Macau no dia seguinte, para o Peru.
— O bispo mandou dizer que o Padre Sebastião seguirá a bordo. Proponho a parceria, e não nos arriscaremos. Os custos dessa embarcação serão debitados da companhia e enviaremos outro navio... mas diretamente da América. Contrataremos dois médicos e dois homens de negócios para irem no navio e descobrirem tudo que puderem a respeito da cinchona. No dia em que partir o navio dos Estados Unidos, divulgaremos a notícia lá, usando suas relações. Estaremos um passo à frente de nossos concorrentes e cumpriremos minha aposta com o bispo. Divulgaremos a notícia aqui imediatamente, para afastar a maldição do Vale Feliz. E, logo que possível, na Europa. Quando nossos navios tiverem voltado, médicos no mundo inteiro estarão gritando por cinchona. Meus navios transportarão a mercadoria para o Império Britânico... você toma conta do continente americano... e dividiremos o resto do mundo. Podemos vender toneladas do produto só no sul da Itália.
— Quem mais sabe a respeito disso?
— Só você. Hoje. Vou dar a Skinner uma matéria a respeito esta noite, se conseguir encontrá-lo. Então, o assunto negócios está encerrado. Como vai Shevaun?
— Bem e mal. Aceitou o fato de que está prometida. Mas tenho de admitir, por mais que eu a ame, que ela não me ama.
— Vai comprar os interesses de Tillman?
— Se Shevaun casar comigo, não. Se ela não tivesse concordado... bom, seria um mau negócio não fazer isso. Agora que Wilf está morto, preciso encontrar um outro sócio. Isto significará uma participação nas ações... sabe muito bem dos problemas.
— Sim. O que foi feito de Zergeyev?
— Ah, ele ainda está aqui. O quadril já não o incomoda tanto. Nós o vemos muitas vezes. Jantamos com ele duas ou três vezes por semana. — Cooper sorriu, polidamente.
— Ele é muito ligado a Shevaun e ela parece apreciá-lo. Está fazendo uma visita a seu navio, agora. Struan esfregou o queixo, especulativamente.
— Então, tenho outro jogo para você. Mais perigoso do que a cinchona.
— Qual?
— Mande Shevaun para casa, por um ano. Dê a ela o poder de decisão... é uma puro-sangue. Se quiser voltar no fim de um ano, você se casará com ela, feliz. Se decidir contra você, dê-lhe liberdade. De qualquer maneira, diga-lhe que continuará a pagar a seu pai sua “parcela”, durante toda a vida dele. Quanto aos irmãos dela, que vão para o inferno. Não esqueça, podemos tirar vantagem das ligações do Senador Tillman, em nosso negócio da cinchona. O dinheiro que lhe dá renderá juros.
Cooper aproximou-se de sua escrivaninha para pegar os charutos e para dar tempo a si mesmo. Por que estaria o Tai-Pan sugerindo isso? Será que planejaria ele próprio ir atrás de Shevaun? Não, não havia necessidade de ser tão tortuoso: bastaria acenar, para Shevaun ir correndo.
— Tenho de pensar a respeito disso, Tai-Pan — disse. — Quer um charuto?
— Não, obrigado. E, enquanto estiver considerando isso, acrescente um novo jogo. Peça a Zergeyev para oferecer a ela passagem para os Estados Unidos em seu navio... acompanhada, claro.
— Você está louco!
— Não, rapaz. — Struan apresentou a cópia dos documentos, bem amarrados com uma fita verde. — Por favor, leia isso. Cooper pegou os papéis.
— O que é isso?
— Leia. Não tenha pressa.
Cooper sentou-se à sua escrivaninha e desamarrou a fita.
Bom, Struan dizia a si próprio, a cinchona está lançada. E Culum? Talvez o rapaz tenha razão, ele precisa de um sócio. Jeff é a solução. Struan-Cooper-Tillman. Pelo menos, Struan-Cooper; podemos esquecer Tillman, agora. Por que não? É uma grande vantagem para Jeff. Ganhamos uma vantagem com as Américas. Jeff é hábil e honesto. Pense a respeito disso com cuidado. É uma boa saída. Longstaff? Já foi mais bem cuidado do que nunca, em sua vida. Quando se afastar de você, fará só o que o próximo homem forte lhe disser. E Skinner? Até agora, agiu bem. Blore? É preciso ver o que anda fazendo. Mauss também. E depois? Depois, é ir para casa, ver May-may. Talvez Orlov tivesse razão. Talvez você só estivesse sentindo o mar a espiá-lo — teve um bom trabalho para ganhar seu dinheiro. Não ponha de lado sentimentos assim sem lhes dar nenhuma importância.
Inexoravelmente, sua mente se voltou para Brock: sim. Há um assassinato para ser cometido. E Liza tinha razão. Quando começa, talvez nunca termine. Ou terminará com ambos.
— Será que isso é verdadeiro?
— A fonte poderia ser classificada como “acima de qualquer suspeita”. O que acha disso?
— É diabólico. Zergeyev, obviamente, é um dos homens enviados para investigar a “esfera britânica de influência” na Ásia, e estudar os meios de emigração para o Alasca russo. — Cooper ficou pensando, por um momento. Depois, disse: — O que faremos com relação a isso? Bom, seguindo sua linha de pensamento: Shevaun. Zergeyev ficaria encantado em escoltá-la à América. Ela o seduz, deliberadamente, ou sem saber, e o leva para Washington. Seu pai, que é a pessoa indicada para receber isso tudo, claro, diz a Zergeyev, em particular, que os Estados Unidos estão aborrecidos com os russos e querem que vão embora. A Doutrina de Monroe e tudo mais. É isso que tem em mente?
— Você é um homem esperto, Jeff.
— Essas informações fazem Lord Cunnington parecer um idiota.
— É verdade.
— E evidenciam a necessidade, e a importância vital, de Hong Kong.
— Sim.
— Agora, temos a decidir como levar essas informações, de maneira imediata e segura, às mãos do senador. Ele verá sua cotação crescer enormemente nos círculos políticos, por causa delas, e procurará tirar todo o proveito. Deveremos arriscar-nos a deixar Shevaun inteirar-se dessa história ou, simplesmente, dar-lhe uma cópia do dossiê para levar a seu pai?
— Eu não a deixaria ler o dossiê, e nem mesmo lhe diria o que contém. Afinal de contas, ela é uma mulher. As mulheres tendem a fazer coisas imprevisíveis. Ela pode apaixonar-se por Zergeyev. Então jogará no lixo os Estados Unidos da América porque a lógica da fêmea diz que ela precisa proteger seu companheiro, sem levar em conta pátria, ou seja lá o que for. Seria desastroso, se Zergeyev soubesse que estamos a par do conteúdo do dossiê.
— Gostaria de pensar a respeito de tudo isso — disse Cooper Amarrou a pasta e devolveu-a. — Soa um tanto pomposo, Tai-Pan, mas meu país saberá lhe agradecer.
— Não quero agradecimentos, Jeff. Talvez ajudasse, se o Senhor Tillman e outros diplomatas começassem a ridicularizar os ridículos equívocos de Lord Cunnington em nossa área.
— Sim. Pode considerar como feito. A propósito, você me deve vinte guinéus.
— A troco de quê?
— Não se lembra de nossa aposta? Sobre quem seria a mulher que posava nua? No primeiro dia, Dirk. A pintura de Aristotle mostrando a cessão da ilha fazia parte da aposta, não se lembra?
— Sim. Quem era ela? — perguntou Struan. Vinte guinéus não são muito contra a honra de uma dama, pensou. Sim, mas, diabo, eu gostava daquela pintura.
— Shevaun. Ela me disse, há dois dias... disse que ia mandar fazer uma pintura de si mesma. Como a Duquesa de Alba.
— Você vai deixar?
— Não sei. — O rosto de Cooper se enrugou num pálido sorriso e perdeu, por um momento, sua angústia habitual. — A viagem marítima impediria isso, não é?
— No caso daquela moça, não. Vou mandar a bolsa para bordo amanhã. Segundo me lembro, o perdedor deveria mandar Aristotle pintar o vencedor, também. Está feito.
— Talvez você queira aceitar a pintura. Como um presente. Vou mandar Aristotle pintar nós dois, hein?
— Bom, obrigado. Sempre gostei daquela pintura. Cooper fez um sinal em direção aos documentos.
— Vamos falar com mais calma a respeito disso, amanhã. Esta noite eu decidirei se mando ou não Shevaun. Struan pensou a respeito de amanhã. Devolveu os documentes a Cooper.
— Coloque em seu cofre. É uma questão de segurança.
— Obrigado. Obrigado por confiar em mim, Tai-Pan.
Struan foi para terra, dirigindo-se ao escritório provisório que mandara construir em seu novo terreno junto ao mar. Vargas esperava-o.
— As notícias ruins primeiro, Vargas.
— Há um informe de nossos agentes, senhor, em Calcutá.
Parece que o Gray Witch estava com três dias de vantagem do Blue Cloud, de acordo com as últimas informações.
— Qual a próxima?
— Os custos da construção estão imensos, senhor. Com o editorial de ontem, mandei parar todo o trabalho. Talvez devêssemos reduzir nossas perdas.
— Continue imediatamente o trabalho’ e dobre nossa força de operários, amanhã.
— Sim, senhor. As notícias da bolsa de valores da Inglaterra são ruins. O mercado está muito nervoso. O orçamento não se equilibrou ainda e estão previstos problemas financeiros.
— Isso é normal. Você não tem alguma calamidade especial para contar?
— Não, nenhuma, senhor. Claro que os roubos são incrivelmente freqüentes. Houve três casos de pirataria, desde que o senhor partiu, e uma dúzia de tentativas. Dois juncos piratas foram capturados e a tripulação publicamente enforcada. Cerca de quarenta a cinqüenta ladrões, assaltantes, e assassinos cortadores de gargantas são chicoteados, toda quarta-feira. É difícil uma noite em que uma casa não seja invadida. É uma tristeza. Ah, a propósito, o Major Trent determinou um toque de recolher para todos os chineses, ao anoitecer. Esta parece ser a única maneira de controlá-los.
— Onde está a Sra. Quance?
— Ainda no pequeno pontão, senhor. Ela cancelou sua passagem para a Inglaterra. Segundo parece, há um boato de que o Sr. Quance ainda se encontra em Hong Kong.
— E é verdade?
— Eu não gostaria de pensar que perdemos o imortal Quance, senhor.
— O que tem andado fazendo o Sr. Blore?
— Está gastando dinheiro como se as pedras de Hong Kong; fossem feitas de ouro. Claro, não é nosso dinheiro — disse Vargas, tentando não mostrar sua desaprovação — mas “fundos do Jóquei Clube”. Pelo que entendi, o clube deverá ser uma entidade-não-lucrativa, e todos os seus lucros serão empregados em corridas, cavalos e assim por diante. — Ele enxugou as mãos num lenço. O dia estava muito úmido. — Ouvi dizer que o Sr. Blore organizou uma briga de galos, sob os auspícios do Jóquei Clube. Struan animou-se.
— Ótimo. Quando será?
— Não sei, senhor.
— E Glessing, o que está fazendo?
— Cumprindo todos os deveres de um mestre do porto. Mas ouvi dizer que está furioso com Longstaff por não ter permitido que fosse a Macau. Há um boato de que será mandado de volta para a Inglaterra.
— Mauss?
— Ah, o Reverendo Mauss. Voltou de Cantão e tem quartos do hotel.
— Por que o “ah”, Vargas?
— Nada, senhor. Apenas outro boato — respondeu Vargas, aborrecido por ter dado com a língua nos dentes. — Bom, parece... claro que nós católicos não aprovamos, e sentimos tristeza porque os protestantes não têm as mesmas crenças que nós, em benefício da salvação de suas próprias almas. De qualquer maneira, ele tem um seguidor querido, um Hakka que se batizou, chamado Hung Hsiu-ch’uan.
— Será que Hung Hsiu-ch’uan tem alguma coisa a ver com a Hung Mun... os Tríades?
— Ah, não, senhor, o nome é muito comum.
— Sim, eu me lembro dele. Um homem alto, com aspecto curioso. Continue.
— Bom, não há muita coisa para contar. Só que ele começou a pregar entre os chineses de Cantão. Sem o consentimento do Reverendo Mauss, e chamando a si próprio de irmão de Jesus Cristo, afirmando que fala com seu pai, Deus, todas as noites. Que é o novo Messias, vai limpar os templos, como seu irmão fez, e uma “porção de outras tolices idolatras. Obviamente, é louco Se não fosse um sacrilégio tão grande, seria muito divertido.
Struan pensou a respeito de Mauss. Gostava dele como homem e tinha pena dele. Depois, lembrou-se outra vez das palavras de Sarah. Sim, disse a si próprio, você usou Wolfgang de diversas maneiras. Mas, em troca, deu-lhe o que ele queria — a oportunidade de converter os pagãos. Sem você, ele estaria morto há muito tempo. Sem você... deixe para lá. Mauss tem sua própria salvação com que se preocupar. Os caminhos de Deus são aparentemente estranhos.
— Quem sabe, Vargas? Talvez Hung Hsiu-ch’uan seja aquilo que ele proclama. De qualquer maneira — acrescentou, vendo Vargas se empertigar — eu concordo. Não é divertido. Falarei com Wolfgang. Obrigado por me contar.
Vargas pigarreou.
— Acha que eu poderia ter uma licença, na próxima semana? Este calor e... bom, seria agradável ver a minha família.
— Sim. Tire duas semanas, Vargas. E acho que seria bom para a comunidade portuguesa ter o seu próprio clube. Vou começar a fazer uma subscrição. Você está indicado como tesoureiro e secretário temporário. — Rabiscou num bloco de papel e arrancou uma folha. — Pode tirar isto imediatamente, em dinheiro. — Era uma ordem de pagamento à vista no valor de mil guinéus.
Vargas ficou esmagado.
— Obrigado, senhor.
— Não agradeça — disse Struan. — Sem o apoio da comunidade portuguesa, não teríamos comunidade nenhuma.
— Mas, senhor, essa notícia... esse editorial! Hong Kong está liquidada. A Coroa repudiou o tratado. Dobrar a força de trabalho? Mil guinéus? Eu não entendo.
— Hong Kong estará viva enquanto nela existir um negociante e houver uma só embarcação da Marinha no porto. Não se preocupe. Algum recado para mim?
— O Sr. Skinner deixou uma mensagem. Gostaria de vê-lo, quando o senhor assim quiser. O Sr. Gordon Chen, também.
— Mande dizer a Skinner que darei uma passada no jornal, esta noite. E a Gordon que eu o encontrarei a bordo do Resting Cloud, às oito horas.
— Sim, senhor. Ah, a propósito, uma outra coisa. Lembra-se de Ramsey? O marinheiro que desertou? Bom, ele viveu nas montanhas todo esse tempo, numa caverna, como um eremita. No Cume. Sobreviveu roubando comida da vila de pesca de Aberdeen. Parece que estuprou várias mulheres e os chineses o amarraram e entregaram às autoridades. Ontem, foi julgado. Cem chicotadas e dois anos de servidão penal.
— Seria preferível que o tivessem enforcado — disse Struan. — Jamais resistirá a dois anos. — As prisões eram armadilhas mortíferas, indescritivelmente brutais.
— Sim. Terrível. Mais uma vez obrigado, senhor. Nossa comunidade apreciará muito seu gesto — disse Vargas. Ele partiu, mas voltou quase no mesmo minuto.
— Com licença, Tai-Pan. Um de seus marinheiros está aí. O chinês, Fong.
— Mande-o entrar.
Fong fez uma silenciosa curvatura, ao chegar.
Struan observou o chinês robusto, cheio de marcas de varíola. Nos três meses em que permanecera a bordo, mudara, de “várias maneiras. Agora, usava com facilidade roupas européias de marinheiro, com o rabicho bem enrolado sob um gorro de tricô. Seu inglês era passável. Um excelente marinheiro. Obediente, fala mansa, rápido no aprender.
— O que está fazendo fora do navio?
— Capitão disse que podia vir para terra, Tai-Pan. Meu turno de vir.
— O que você quer, Fong?
Fong entregou um pedaço de papel amassado. A caligrafia que havia nele era infantil: “Aberdeen, em algum lugar, camarada. Oito toques de sino, turno intermediário. Venha só.” Estava assinado: “O pai de Bert e de Fred.”
— Onde conseguiu isso?
— Um cule me parou. E me deu.
— Sabe o que diz?
— Eu leio sim. Não leio fácil. Muito difícil, pode ter certeza. Struan observou o pedaço de papel.
— O céu. Já viu?
— Sim, Tai-Pan.
— O que lhe disse o céu?
Fong sabia que estava sendo testado.
— Tai-fung — ele disse.
— Quanto tempo?
— Não sei. Três dias, quatro dias, mais ou menos. Tai-fung, pode ter certeza. O sol já se encontrava abaixo do horizonte e sua luz morria rapidamente. A praia e os locais de construção estavam pontilhados de lanternas.
O véu que havia sobre o céu se tornara mais espesso. Uma gigantesca lua sangrenta se achava dez graus acima do horizonte límpido.
— Acho que você tem um bom faro, Fong.
— Obrigado, Tai-Pan.
Struan levantou o papel.
— O que o seu faro diz a respeito disso?
— Para não ir sozinho — disse Fong.
Com a chegada da escuridão, o céu começou a se cobrir de nuvens e a unidade intensificou-se. Os negociantes da China, experimentados na leitura do vento e do mar, sabiam que logo começaria a chover. As nuvens anunciavam, simplesmente, as primeiras chuvas da temporada, que aliviariam, por algum tempo, o constante abafamento, e fariam a poeira assentar. Apenas um aguaceiro, se estivessem com pagode. Se o pagode estivesse contra eles, poderia haver uma tempestade. E só o pagode decidiria se a tempestade se transformaria em tufão.
— Estou com calor, Tai-Pan — disse May-may, abanando-se na cama.
— Eu também — disse Struan. — Estava mudando uma camisa amassada e úmida por outra, limpa. — Eu lhe disse que você devia ficar em Macau. Lá é muito mais fresco.
— Talvez, mas então eu não teria o prazer de lhe dizer que estou com calor, que diabo!
— Eu gostava mais de você quando estava doente. Não era atrevida e não vivia com esse vulgar praguejar.
— Ora! — ela bufou. — Não seja mendaz comigo!
— Não seja o que, com você?
— Mendaz Tai-Pan. Não sabe inglês? Enquanto você estava fora o dia inteiro, sem se preocupar com sua pobre velha mãe, eu andava terrivelmente ocupada lendo seu livro de palavras do Dr. Johnson, melhorando minha mente com a língua bárbara. Todo mundo sabe o que é “mendaz”. Quer dizer “mentiroso”. É o que você é, por Deus. — Fez uma expressão amuada, que a tornou ainda mais bonita. — Você não me adora mais!
— Eu me lembro bem de seu traseiro mendaz.
May-may forçou um gemido sofrido.
— Tai-Pan quer ir pra cama com vaca cria, hein, senhor? Ah, pode, sim!
Struan se aproximou da cama e May-may recuou.
— Ora, Tai-Pan, era uma brincadeira. Ele a apertou com força.
— Ah, garota, fique boa, isso é que é importante.
Ela usava uma túnica macia de seda azul, tinha o cabelo penteado com elegância e seu perfume era embriagador.
— Não ouse ir para bordéis, hein?
— Não seja tola.
Ele a beijou e acabou de se vestir. Colocou sua faca na bainha, às suas costas, e o pequeno punhal na bota esquerda, e tornou a amarrar o cabelo, bem arrumado, com uma fita à nuca
— Por que corta seu cabelo, Tai-Pan? Deixe crescer, num rabicho, como fazem as pessoas civilizadas. É muito bonito. Lim Din bateu e entrou.
— Senhor. Está aí o Senhor Chen. Pode?
— Eu o verei na cabina acima.
— Você volta, Tai-Pan?
— Não, garota. Vou desembarcar, em seguida.
— Peça a Gordon para vir ver-me, está bem?
— Sim, garota.
— Onde você vai?
— Vou sair, ora. E é melhor você se comportar, enquanto eu estiver fora. Não voltarei antes da meia-noite. Mas apareço aqui logo que estiver a bordo.
— Ótimo — ela ronronou. — Mas me acorde, se eu estiver dormindo. Sua velha mãe gosta de saber que o filho mendacioso está bem. Ele lhe deu palmadinhas afetuosas e foi para a cabina, no convés acima.
— Olá, Gordon.
Gordon Chen usava um traje longo de seda azul e calças leves de seda. Estava agitado e muito preocupado.
— Boa-noite, Tai-Pan. Seja bem-vindo. Fiquei muito feliz ao saber a respeito da cinchona. Como vai a Sra. T’chung?
— Muito bem, obrigado.
— Sinto muito meus inadequados esforços não terem dado resultado.
— Obrigado por tentar.
Gordon Chen ficou outra vez aborrecido porque tivera de gastar número substancial de taéis na procura, mas seu aborrecimento não era nada comparado com sua ansiedade com relação a Hong Kong. Toda hierarquia das Tríades em Kwangtung estava num tumulto, devido às notícias chegadas da Inglaterra. Fora convocado por Jin-qua e recebera ordens de sondar o Tai-Pan, usar todo o poder dos Tríades e todos os meios necessários — barras de prata, impostos, aumento do comércio — para impedir os bárbaros de sair da ilha e encorajá-los a ficar.
— É um assunto de grave importância, Tai-Pan; senão, eu não me intrometeria. Hong Kong. Aquele editorial. É verdadeiro? Se for, estamos perdidos... arruinados.
— Ouvi dizer que você é o Tai-Pan dos Tríades de Hong Kong.
— O quê?
— Tai-Pan dos Tríades de Hong Kong — repetiu Struan, com brandura, e lhe contou o que dissera o oficial português. — História estúpida, hein?
— Não é estúpida, Tai-Pan, é realmente terrível! Uma mentira chocante! — Se Gordon estivesse sozinho, teria arrancado os cabelos, rasgado as roupas e gritado de raiva.
— Por que os Tríades iriam assassinar Gorth?
— Não sei. Como eu iria saber o que fazem esses anarquistas? Tai-Pan dos Tríades? Eu? Que acusação sórdida!
Minha vida não vale o preço dos excrementos de um cule, ele gritava para si mesmo. Aquele miserável traidor! Como ousou divulgar segredos! Não perca a cabeça. O Tai-Pan dos bárbaros está olhando para você e é melhor dar uma resposta inteligente!
— Simplesmente, não tenho a menor idéia. Deus do céu! Tríades no Tai Ping Shan, debaixo do meu nariz? Terrível.
— Você tem inimigos que pudessem espalhar uma história dessas?
— Devo ter, Tai-Pan. Deus do céu! Fico imaginando se... — os brancos de seus olhos apareceram.
— Se o quê?
— Bom, eu sou... bom, você é meu pai. Será que alguém está tentando atacá-lo, através de mim?
— Talvez seja verdade, Gordon. Talvez você seja o chefe dos Tríades.
— Um anarquista? Eu? Ó deuses, por que me abandonaram? Gastei cinqüenta taéis de incenso e oferendas para mandar dizer preces, ainda a semana passada. Não sou, sem favor, o mais generoso patrocinador dos seus templos? Não fiz, pessoalmente, a doação de três templos e quatro cemitérios, e não tenho em minha lista pessoal de pagamentos uma comitiva de quarenta e três sacerdotes budistas? Por que eu iria me associar a esses criminosos? Com a ajuda dos deuses, estou ficando rico. Não tenho necessidade alguma de roubar e nem de saquear.
— Mas gostaria de afastar os manchus do trono da China?
— Manchus ou chineses, é tudo a mesma coisa para mim, Tai-Pan. Por que iria eu preocupar-me com isso? Nada tem a ver com meus negócios. — Ah, deuses, tapai os ouvidos, por um momento. — Não sou chinês... sou inglês. Acho que a última pessoa em quem confiaria qualquer sociedade secreta chinesa seria eu. Representaria um perigo.
— Talvez. Não sei. Talvez você deva gastar alguns taéis, Gordon. Organize um sistema de espionagem. Descubra quem são esses homens e quais os seus líderes.
— Imediatamente, Tai-Pan.
— Três meses devem bastar para um homem astuto como você apresentar os líderes.
— Seis meses — disse Gordon Chen, automaticamente, tentando desesperadamente pensar numa maneira de sair da armadilha
Teve uma inspiração. Claro. Vamos deixar os bárbaros lidarem com os miseráveis anti-Tríades. Vamos recrutar espiões entre eles e fazer com que montem uma sociedade subsidiária e iniciá-los em falsas cerimônias. Excelente! Então... deixe-me ver. Vamos deixar escapar que o verdadeiro líder da Tríade é... quem? Vou pensar em algum inimigo, quando chegar a ocasião. Depois, nós revelaremos seus nomes aos bárbaros como os verdadeiros Tríades e eles serão decapitados.
— Ah, sim, Tai-Pan, vou começar imediatamente a fazer isso.
— Acho que deve. Porque, de uma forma ou de outra, eu vou esmagar os Tríades.
— E eu farei tudo que puder para ajudá-lo — Gordon disse, com fervor.
Dez cabeças devem satisfazer até a você, Tai-Pan, ele pensou. É pena que Chen Sheng seja da família, senão seria a pessoa perfeita para ser apontada como “líder dos Tríades”. Com algum pagode eu seria o próximo na fila de candidatos a compradore da Casa Nobre. Não se preocupe, Jin-qua ajudará você a encontrar o engodo certo.
— Tai-Pan, vamos falar de coisas mais importantes. E esse editorial? Hong Kong está liquidada? Poderemos perder uma fortuna. Seria desastroso, se perdêssemos a ilha.
— Há alguns pequenos problemas. Mas eles serão resolvidos. Hong Kong é permanente. Esse Governo sairá em breve. Não se preocupe. A Casa Nobre e Hong Kong são a mesma coisa.
A ansiedade de Gordon Chen desapareceu.
— Tem certeza? Esse Cunnington será afastado?
— De uma maneira ou de outra. Sim.
Ele olhou para seu pai com admiração. Ah, pensou ele, até através de um assassinato. Excelente. Ele teria gostado de dizer ao Tai-Pan que eliminara Gorth e, assim, salvara sua vida. Mas isto poderia esperar para uma ocasião mais importante, disse a si próprio, muito encantado.
— Excelente, Tai-Pan. Você me tranqüilizou de uma maneira maravilhosa. Concordo. A Casa Nobre e Hong Kong são a mesma coisa — Se não forem, você está liquidado, pensou. Mas é melhor não tornar a pôr os pés no continente, outra vez. Enquanto estiver circulando essa história sobre as Tríades. Não. Você está comprometido com Hong Kong. É o seu lugar ou o seu túmulo. — Então, será melhor nos expandirmos, apostarmos muito. Trabalharei para tornar Hong Kong muito forte. Ah, sim. Pode confiar em mim! Obrigado, Tai-Pan, por me tranqüilizar.
— A minha Senhora quer dizer-lhe olá. Vá lá embaixo, hein?
— Obrigado. E obrigado por me avisar sobre aquela ridícula, porém perigosa história. — Gordon Chen curvou-se e saiu.
Struan observara seu filho com muito cuidado. Será, ou não? perguntou a si mesmo. A surpresa poderia ter sido verdadeira, e o que ele disse faz muito sentido. Não sei. Mas se Gordon for, então você terá de ser muito esperto para pegá-lo. E aí?
Struan encontrou Skinner na sala de impressão do Oriental Times. Era sufocante e barulhenta. Cumprimentou o jornalista pela maneira como apresentara a notícia.
— Não se preocupe, Tai-Pan — disse Skinner. — Haverá uma suíte amanhã. — Entregou a prova tipográfica a Struan. — Ficarei satisfeito quando este maldito verão terminar. — Usava sua habitual sobrecasaca negra de lã e calças de tecido grosso.
Struan leu o artigo. Estava cheio de invectivas, sarcasmo, e enfatizava que todos os negociantes deveriam unir-se para bombardear o Parlamento e destruir Cunnington.
— Acho que isso vai fazer alguns dos rapazes enlouquecerem — disse Struan, com aprovação.
— Ah, espero que sim. — Skinner afastou os braços do corpo, a fim de aliviar a feroz coceira nas axilas.
— Maldito calor! Você arrisca a vida, Tai-Pan, saindo assim à noite — disse. Struan usava apenas uma camisa fina, calças de linho e botas leves.
— Devia experimentar. Suaria menos... e não teria brotoejas.
— Não fale nessa maldita praga. Nada tem a ver com o calor, é uma doença de verão. O homem nasceu para suar.
— Sim, e para ser curioso. Você mencionou algo em sua matéria a respeito de uma estranha cláusula adicional no acordo de Longstaff com o Vice-rei Ching-so. O que era?
— Apenas uma dessas informaçõezinhas esquisitas que um jornalista recolhe. — Skinner enxugou o rosto com um trapo que deixava manchas de tinta, e se sentou num banquinho alto. Contou a Struan a respeito das sementes. — Amoras, camélias, arroz, chá, todo tipo de flores.
Struan ficou pensando, por um momento.
— Sim, é bastante curioso.
— Que eu saiba, Longstaff não é nenhum jardineiro. Talvez fosse idéia de Sinclair... ele tem um pendor para a jardinagem Pelo menos, a irmã tem. — Skinner espiou os cules chineses trabalhando nas impressoras. — Ouvi dizer que ela está bastante doente.
— A moça está se recuperando, tenho a satisfação de informar. O médico disse que foi uma perturbação estomacal.
— Ouvi dizer que Brock foi a bordo da nau capitania esta tarde.
— Sua informação é muito boa.
— Fiquei imaginando se deveria preparar um obituário.
— Algumas vezes não me divirto com seu humor.
O suor escorria pelo queixo de Skinner e caía em sua camisa amarrotada.
— Não era brincadeira, Tai-Pan.
— Prefiro considerar assim — disse Struan, descontraidamente. — É mau pagode falar em obituários. — Espiou a impressora vomitando o jornal do dia seguinte. — Pensei a respeito de Whalen. Longstaff chamou a cidade velha de Cidade da Rainha. Agora, temos uma nova cidade. Quem sabe se Whalen não deveria ter a honra de escolher outro nome.
Skinner deu uma risadinha.
— Isso o envolveria de uma maneira ótima. Que nome decidiu, Tai-Pan?
— Vitória.
— Eu gosto. Vitória, hein? Com uma simples pincelada, Longstaff é apagado. Considere “sugerido”, Tai-Pan. E deixe comigo. Whalen jamais perceberá que a idéia não foi dele... eu garanto. — Skinner cocou a barriga, satisfeito. — Quando o jornal será meu?
— No dia em que Hong Kong for aceita pela Coroa, e o tratado ratificado por ambos os governos. — Struan entregou-lhe um documento. — Está tudo aqui. Com o meu carimbo. Claro, desde que o Oriental Times ainda esteja funcionando, na ocasião.
— Tem alguma dúvida, Tai-Pan? — perguntou Skinner, todo feliz.
Ele enxergava claramente o futuro. Dez anos, disse a si mesmo. Então, eu serei rico. Então, irei para a Inglaterra e me casarei com a filha de um proprietário rural e comprarei uma pequena casa de herdade em Kent e abrirei um jornal em Londres. Sim, Morley, meu velho, pensou, você percorreu um longo caminho a partir das vielas de Limehouse e daquele maldito orfanato e dos tempos em que remexia a sarjeta. Que Deus amaldiçoe aqueles demônios que me deram à luz e me abandonaram.
— Obrigado, Tai-Pan. Não vou falar, não tema.
— A propósito, talvez você goste de uma matéria exclusiva. A cinchona cura a malária do Vale Feliz.
Por um momento, Skinner ficou sem fala.
— Ah, meu Deus, Tai-Pan, isso não é uma matéria... é a imortalidade. —
Finalmente, exclamou: — Exclusiva, você diz? Esta é a maior matéria do mundo! Claro
— acrescentou, astutamente — o gancho para essa matéria é quem, “ele” ou “ela”, foi
curado. -Escreva o que quiser... mas não me envolva, e nem às pessoas próximas a mim.
— Ninguém irá acreditar nisso, a menos que vejam a cura com seus próprios olhos. Os médicos dirão que é tolice.
— Deixe dizerem. Os pacientes deles morrerão. Escreva isso! — Struan declarou, bruscamente. — Eu acredito tanto na história que estou investindo nela, substancialmente. Cooper e eu somos agora sócios no negócio da cinchona. Dentro de seis meses, teremos estoques disponíveis.
— Posso publicar isso?
Struan deu uma curta risada.
— Eu não lhe contaria, se fosse segredo.
Na Estrada da Rainha, Struan recebeu um sopro do calor da noite. A lua estava alta e nevoenta, num céu quase completamente nublado. Mas, ainda assim, não havia nenhum nimbo.
Seguiu pela estrada e não parou, até chegar ao ancoradouro. Ali, desviou-se ligeiramente em direção ao interior e desceu uma rua suja e esburacada. Subiu então um pequeno lance de escadas e entrou numa casa.
— Deus do céu — disse a Sra. Fortheringill, com os dentes postiços tornando grotesco seu sorriso. Estava na sala de jantar, ceando: arenques, pão preto e um jarro de cerveja. — Senhoras — gritou, e tocou uma campainha que tinha presa ao cinto. — Não há nada como uma boa brincadeira, numa noite quente, é o que eu sempre digo. — Notou que Struan estava em mangas de camisa— — A idéia é não perder tempo tirando a roupa, Tai-Pan?
— Só vim ver, ah... seu hóspede.
Ela sorriu, com doçura.— Aquele velho malandro já ficou aqui tempo demais. Quatro moças galoparam para dentro da sala. Seus quimonos de lã, enfeitados de plumas, estavam manchados, e elas fediam a perfume misturado com suor antigo. Mal chegavam aos vinte anos — mas tinham o aspecto endurecido, áspero e usado, devido à vida que levavam. Esperavam que Struan escolhesse.
— Nelly está ótima para você, Tai-Pan — disse a Sra. Fortheringill. — Tem dezoito anos, goza de boa saúde e é vigorosa.
— Obrigada, madame — Nelly fez uma mesura e seus seios grande saíram do quimono. Era robusta e loura, com os olhos envelhecidos e baços. — Quer vir comigo, Tai-Pan, amor?
Struan deu um guinéu a cada uma delas e mandou-as embora.
— Onde está o Sr. Quance?
— No segundo andar, aos fundos, à esquerda. O Quarto Azul. — A Sra. Fortheringill espiou-o por sobre os óculos. — Os tempos estão muito difíceis, Tai-Pan. Seu amigo, Sr. Quance, come como um cavalo e xinga de uma maneira terrível. É chocante para as moças. Sua conta está atrasada há muito tempo.
Onde consegue as moças, hein?
Um brilho pétreo iluminou os olhos da velha.
— Onde há mercado há sempre senhoras para servir, não é? Na Inglaterra. Algumas na Austrália. Aqui e acolá. Por quê?
— Quanto lhe custa uma delas?
— O negócio é secreto, Tai-Pan. Tem o seu, nós temos o nosso. — Ela fez um sinal com a cabeça, em direção a mesa, e mudou de assunto. — Gostaria de cear? O arenque veio especialmente da Inglaterra. Pelo paquete desta semana.
— Obrigado, mas já comi.
— Quem vai pagar a conta do querido Sr. Quance?
— Quanto é?
— Ele tem as notas. Ouvi dizer que a Sra. Quance está bem zangada.
— Vou discutir as contas com ele.
— Seu crédito jamais estará em questão, Tai-Pan.
— A moça que dormiu com Gorth morreu? — perguntou abruptamente Struan. A velha se tornou, outra vez, um modelo de distinção.
— O quê? Não sei o que quer dizer. Não há casos de mau comportamento em meu estabelecimento!
Struan empunhou a faca e fez a ponta tocar nas fanadas dobras de pele que pediam do pescoço da Sra. Fortheringill.
— Morreu?
— Aqui, não. Levaram-na embora. Pelo amor de Deus, não...— Morreu, ou não?
— Ouvi dizer que sim, mas nada tem a ver comigo...
— Quanto Gorth lhe pagou para manter a boca calada?
— Duzentos guinéus.
— O que aconteceu com a moça?
— Não sei. Esta é a verdade, juro por Deus! Vieram parentes buscá-la. Ele lhes pagou cem guinéus e ficaram satisfeitos. Levaram-na embora. Era apenas uma paga. Struan afastou a faca.
— Talvez vá ter de repetir isso num tribunal.
— O miserável está morto, pelo que ouvi dizer, então não vai ser preciso falar nada, eu acho. E como poderia eu dizei qualquer coisa? Não conheço o nome dela, e pelo que sei não existe nenhum cadáver. Sabe como é, Tai-Pan. Mas jurarei sobre uma Bíblia a Brock, se é isso que quer.
— Obrigado, Sra. Fortheringill.
Ele subiu as escadas até o Quarto Azul. Suas paredes caiadas de branco estavam cinzentas de sujeira e o vento soprava através das rachaduras. Havia um grande espelho, numa das paredes, e cortinas com rufos carmesim cercavam a grande cama de armação. Havia pinturas empilhadas no chão e penduradas nas paredes, o chão estava salpicado de tintas a óleo e aquarela. No centro do quarto, achava-se um cavalete e, espalhados em torno dele, dúzias de potes de tinta e pincéis.
Aristotle Quance roncava na cama. Só seu nariz e barrete de dormir eram visíveis.
Struan pegou um jarro quebrado e atirou-o contra a parede. Explodiu em pequenos fragmentos, mas Quance só se enroscou mais sob as cobertas. Struan pegou um jarro maior e espatifou-o contra a parede.
Quance levantou-se devagarinho e abriu os olhos.
— Deus do céu! O próprio Demônio, minha Virgem Santa! Pulou da cama e abraçou Struan.
— Tai-Pan, meu amado patrono! Eu o idolatro! Quando chegou?
— Tome cuidado! — disse Struan. — acabo de chegar hoje!
— Soube da morte de Gorth.
— Sim.
— Dei graças a Deus. Há três dias, aquele miserável veio aqui e jurou que cortaria minha garganta, se eu contasse alguma coisa sobre a moça.
— Quanto ele lhe deu para não contar?
— Nem um centavo, meu senhor! Diabo, eu só pedi cem.
— Como vão as coisas com você?
— Uma tristeza, meu caro amigo. Ela ainda está aqui, em pessoa. Ah, que Deus me proteja! Então tenho de permanecer metido neste buraco. Não posso me mexer... não ouso. — Quance pulou outra vez para a cama e, pegando um grande bastão, bateu no chão três vezes. — Pedindo o café — explicou. — Não quer me acompanhar? Agora, conte-me todas as suas novidades!
— Você toma o desjejum às nove da noite?
— Ah, meu caro amigo, quando se está num prostíbulo, age-se como uma prostituta!
— Estourou de rir e, depois, agarrou o próprio peito. — Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, estou fraco. Vê diante de você a sombra de um homem... um verdadeiro fantasma do imortal Quance.
Struan sentou-se na cama.
— A Sra. Fortheringill disse alguma coisa a respeito de uma conta. Eu lhe dei um saco de ouro, por Deus!
— Conta?
Quance deu um busca embaixo do travesseiro e tirou um sanduíche meio comido, dois livros, alguns pincéis e várias peças de roupa feminina, e encontrou o papel. Ele o empurrou nas mãos de Struan, sem fôlego.
— Veja o que aquela usurária está cobrando a você.
— Cobrando a você, é o que quer dizer — disse Struan. Leu o total. — Deus todopoderoso!
A conta se elevava a quatrocentos e dezesseis libras, quatro xelins e quatro penies e um quarto de pêni. Sete libras e seis penies por dia, com alojamento e comida. Cento e sete libras de tintas, pincéis, telas. O restante tinha o cabeçalho: “Contas variadas”.
— Que diabo quer dizer isso? Quance cerrou os lábios.
— Puxa vida, foi o que tentei fazer aquela gata velha me explicar.
Struan foi até à porta e berrou, para baixo:— Sra. Fortheringill!
— Chamou-me, Tai-Pan? — ela perguntou, com doçura, do fundo do poço das escadas.
— Sim. Quer fazer o favor de vir até cá?
— Queria que eu viesse? — ela perguntou, com doçura ainda maior, ao entrar no quarto.
— Que diabo é isso? — Struan apunhalava rancorosamente a conta, com um dedo.
— “Variadas... quase trezentas e vinte libras?
— Ah — ela respondeu, brejeiramente. — Transações, Tai-Pan.
— Hein?
— O Sr. Quance gosta de companhia todas as horas, e esse é o volume de suas transações, desde que se encontra sob nossos cuidados. — Ela fungou, com desdém. — Mantemos os livros em ordem, aqui. Tudo correto, nos menores detalhes.
— Mentira! — uivou Quance. — Ela falsificou os livros, Tai-Pan. É chantagem.
— Chantagem? — gritou a Sra. Fortheringill. — Ora, seu... seu... e aqui estou eu, com as minhas damas, a salvá-lo de algo pior do que a morte, e pela segunda vez consecutiva!
— Porém, mais de trezentas libras? — disse Struan.
— Absolutamente correto, por Deus. Ele gosta de pintá-las e também de... meu guarda-livros é o melhor da Ásia. Tem de ser!
— É impossível — insistiu Struan.
Quance ficou em pé na cama e colocou uma mão sobre o coração e com a outra apontou para a mulher.
— Recuso a conta toda, em seu nome, Tai-Pan! — Estava inchado como um pavão.
— É usura!
— Ah, é? Bom, eu lhe digo já, seu velho de merda, e bem na sua cara... dê o fora daqui! E vou mandar um recado para aquela mulher esta noite. — A mulherzinha deu uma volta e gritou: — Senhoras!
— Ora, Sra. Fortheringill, também não precisa aborrecer-se assim — disse Quance, amavelmente. As moças vieram correndo. Oito, ao todo.
— Levem tudo para fora e ponham no meu quarto — ela ordenou, fazendo um aceno em direção às tintas, pincéis e quadros. — Não haverá mais crédito, e essas coisas são minhas, até a conta ser paga, sem faltar um centavo! — E saiu, abespinhada.
— Quance engatinhou para fora da cama, com sua camisola de dormir tufada.
— Senhoras! Não vão tocar em nada, por Deus!
— Ora, comporte-se como um bom menino — disse Nelly, calmamente. — Se a Madame disse que é para irem, elas vão, nem que o próprio Senhor Deus fique na frente!
— Ah, sim, meu engraçadinho — disse outra. — A nossa Nelly explicou direitinho.
— Só um minuto, senhoras — disse Struan. — O Sr. Quance recebeu uma conta. Esta é a razão de todo o problema. Srta. Nelly, ah... a senhorita, bom, passou tempo com ele?
Nelly olhou para Struan.
— Falou em tempo, Tai-Pan? Nosso querido Sr. Quance tem um apetite pelo tempo que não tem igual, nem mesmo na Bíblia.— Ah, sim, Tai-Pan — disse outra, com uma risadinha. — Algumas vezes ele quer duas juntas. Ah, ele é uma graça!
— Para pintar, por Deus! — gritou Quance.
— Ah, deixe disso, Sr. Quance — disse Nelly. — Somos todos amigos.
— Durante algum tempo, ele nos retrata — disse outra, amavelmente.
— Quando? — outra perguntou. — Eu não fui retratada.
— Mentiras, por Deus! — Quance protestou para Struan, e, quando viu a expressão do Tai-Pan, piscou e voltou a se encolher na cama. — Vamos, Tai-Pan — implorou. — Não precisa precipitar-se. A gente não pode evitar... ser popular.
— Se acha que vou pagar por seu “quentão”, está completamente louco!
— “Quentão”, isso é jeito de falar! — exclamou Nelly indignada. — Somos senhoras respeitáveis, ora essa. Somos gente fina e não gostamos de palavras grosseiras!
— É uma palavra latina que significa “tempo”, querida Srta. Nelly — disse Quance, com voz rouca.
— Ah — disse ela, e fez uma mesura. — Perdão, Tai-Pan! Quance pôs a mão no peito e revirou os olhos.
— Tai-Pan, se você me abandonar, estou liquidado. Prisão por dívidas! Eu lhe suplico — ele escorregou para fora da cama e se ajoelhou, com atitude suplicante: — Não vire as costas para um velho amigo!
— Vou pagar essa conta e levar todas as suas pinturas, para cobrir o empréstimo. Mas é o último vintém. Entende, Aristotle? Não pagarei mais nada!
— Deus o abençoe, Tai-Pan. Você é um príncipe!
— Ah, sim — disse Nelly, e avançou furtivamente para Struan. — Vamos, amor. Pague a conta da Madame e isso vai por conta da casa.
— E eu? — outra perguntou. — Claro que Nelly sabe mais truques.
Todas fizeram acenos amáveis com a cabeça e esperaram.
— Eu recomendaria — começou Quance, mas o olhar de Struan fez com que se interrompesse. — Todas as vezes em que olha para mim assim, Tai-Pan, eu me sinto perto da morte. Desamparado. Perdido. Abandonado.
Apesar de sua irritação, Struan riu.
— Que o diabo o leve! — E caminhou em direção à porta. Mas um repentino pensamento fez com que parasse. — Por que este quarto é chamado Quarto Azul? Nelly se inclinou e pegou o urinol embaixo da cama. Era azul.
— Madame começou uma moda nova, Tai-Pan. Cada quarto tem uma cor diferente. O meu é verde. — O meu é aquele dourado, velho e rachado — disse outra, com uma fungadela. —
Não é fino, de maneira nenhuma! Struan abanou a cabeça, desamparadamente, e desapareceu.
— Agora, senhoras — disse Quance, com um sussurro exultante, e houve um silêncio cheio de expectativa. — Como será tudo pago, proponho uma modesta comemoração, depois do desjejum.
— Ah, ótimo — disseram elas, e se reuniram em torno da cama.
À meia-noite, a lorcha avançou para a praia, em Aberdeen, e Struan pulou para o banco de areia, tendo Fong a seu lado. Antes, ele mandara seus homens desembarcarem, secretamente, a oeste, e se postarem em torno do poço. Caminhou pela praia e se aproximou do poço e da encruzilhada. Fong carregava uma lanterna e estava muito nervoso.
A lua achava-se escondida pelas nuvens baixas, mas vestígios de seu clarão se filtravam através das sombras. O ar estava carregado com o mau cheiro da maré baixa, e as centenas de sampanas no estreito braço de mar pareciam percevejos amontoados. Nenhuma lanterna, com exceção da que Fong levava, rompia a escuridão. Não havia som algum, a não ser o provocado pela inevitável voracidade dos cães.
A aparência da vila era igualmente agourenta.
Quando Struan chegou à encruzilhada, observou a noite. Sentia muitos olhos a espiá-lo das sampanas.
Afrouxou as pistolas no cinto e evitou cuidadosamente a luz da lanterna que Fong colocara à beira do poço.
O silêncio se intensificou. De repente, Fong se enrijeceu e apontou, tremendo, para alguma coisa. Logo além da encruzilhada, bem no meio do caminho, estava um saco. Parecia um saco de arroz. Com as pistolas prontas, Struan fez sinal a Fong para avançar, pois não confiava nele. Fong avançou, tomado pelo pânico.Ao chegarem ao saco, Struan atirou um punhal para Fong, com o cabo voltado para ele.
— Abra. Fong ajoelhou-se e cortou a aniagem. Deixou escapar um gemido aterrorizado e recuou.
Scragger estava no saco. Não tinha pernas e nem braços, olhos ou língua, e os tocos de seus membros estavam cauterizados com alcatrão.
— Boa-noite, camarada! — a maligna risada de Wu Kwok ecoou sepucralmente, dentro da noite, e Struan ficou em pé de um salto. A risada parecia vir das sampanas.
— O que você quer, seu demônio do inferno? — gritou Struan.
Houve uma torrente gutural de frases em chinês e Fong empalideceu. Gritou algo, em resposta, com a voz tensa.
— O que ele disse?
— Ele... Wu Kwok disse para eu ir... até lá.
— Fique onde está — disse Struan. — O que quer, Kwok? — ele gritou em direção às sampanas.
— Quero você vivo! Por Quemoy, por Deus! Você e suas malditas fragatas!
Vultos saíram aos bandos das sampanas e subiram a encosta furiosos, com lanças e espadas. Struan esperou até poder ver claramente o primeiro dos piratas e então derrubouo, com um tiro. Imediatamente, mosquetes chamejaram nas mãos dos tripulantes de Struan, emboscados. Houve grito, e a primeira onda de vinte ou trinta piratas foi aniquilada.
Outra onda de bandidos, aos gritos, subiu o caminho. Novamente, os mosquetes fizeram-nos em pedaços, mas quatro conseguiram chegar ao poço. Struan derrubou um deles a faca, Fong outro, e balas de mosquete mataram os outros dois.
Houve novo silêncio.
— Maldito seja, camarada!
— Maldito seja você, Wu Kwok! — gritou Struan.
— Minhas frotas vão lutar contra o Leão e o Dragão!
— Saia do seu buraco de rato e me enfrente, e eu o matarei agora. Patife!
— Quando eu pegar você, essa vai ser sua maneira de morrer, camarada. Um membro por semana. Aquele malandro viveu cinco, seis semanas, mas você vai levar um ano para morrer, aposto. Nós nos encontraremos dentro de um ano, ou antes! — Outra vez, a risada maligna e, depois, silêncio. Struan ficou tentado a atirar em direção às sampanas, mas sabia que havia a bordo centenas de homens, mulheres e crianças.
Olhou para o saco entreaberto.
— Apanhe isso, Fong. — E gritou para seus homens, que se encontravam em torno, na escuridão: — Voltem para a lorcha, rapazes!
Cobriu Fong, e os dois se retiraram. Quando estava no meio do mar, colocou uma corrente em torno do saco, leu um serviço fúnebre e atirou-o nas profundezas. Observou-o desaparecer, num pequeno círculo de espuma do mar.
Struan teria gostado de contar a Scragger a despedida de seus filhos.
Ele os colocara aos cuidados do capitão em Whampoa, com cartas para agentes da Casa Nobre em Londres, aos quais conferiu a responsabilidade pelos meninos e seu aprendizado escolar.
— Bom, boa sorte, rapazes. Quando voltar para a Inglaterra, eu irei visitar vocês.
— Posso falar com Vossa Senhoria em particular? — o pequeno Fred perguntara, tentando não chorar.
— Sim, rapaz. Vamos. — Struan levara-o para uma cabina, e Bert, o eurasiano, ficara triste, por ser deixado só, e Wu Pak segurara-lhe a mão.
— Sim, Fred? — perguntara, quando os dois se encontravam sozinhos.
— Meu papai disse que devíamos ter um nome decente antes de partimos, Excelência.
— Sim, rapaz. Está nos documentos de vocês. Eu lhe disse, a noite passada. Não se lembra?
— Desculpe, Excelência. Eu esqueci. Será que podia dizer de novo, por favor?
— Você é Frederick MacStruan — ele dissera, pois gostara do menino e o nome do clã era um bom nome. — E Bert é Bert Chen.
— Ah — dissera o menino. — Sim, agora eu me lembro. Mas, por que temos nomes diferentes? Eu e meu mano?
— Bom — dissera Struan, esfregando a mão na cabeça do menino, a lembrar, com dor pungente, a perda de seus próprios filhos — vocês têm mães diferentes, não é? O motivo é este.
— Sim. Mas somos irmãos, Excelência — dissera Fred, com os olhos enchendo-se de lágrimas. — Desculpe, mas não podemos ter o mesmo nome? Chen é um bom nome, e bonito. Frederick Chen está ótimo, Tai-Pan.
Então Struan mudara os documentos e o capitão testemunhara sua assinatura.
— Veja, rapazes, agora vocês são ambos MacStruan. Albert e Frederick MacStruan. Então os dois choraram, muito felizes, e o abraçaram.
Struan foi para baixo e tentou dormir. Mas não conseguia. O fim de Scragger atormentava-o. Sabia que era uma tortura favorita de Wu Fang Choi, o pai de Wu Kwok e avô do pequeno Wu Pak. A vítima a ser desmembrada tinha três dias para escolher qual o membro que seria cortado primeiro. E, na terceira noite, um amigo do homem era mandado secretamente até ele, a fim de sussurrar-lhe que ia receber ajuda. Então o homem escolhia o membro que achava ser menos necessário, até a ajuda chegar. Depois que o alcatrão selara o toco, o homem era forçado a escolher ainda outro membro e, mais uma vez, havia a promessa de uma ajuda iminente, que jamais chegaria. Só os muito fortes sobreviviam a duas amputações.
Struan saiu do beliche e foi para o convés. As nuvens se achavam inchadas e mais espessas: o brilho do luar desaparecera. A maré estava cheia, mas não apresentava perigo.
— Chuva, amanhã, Sr. Struan — disse Cudahy.
— Sim — respondeu. Espiou em direção a leste, para onde soprava o vento. Sentia o mar a observá-lo.
— Suprema Senhora — disse Ah Sam, tocando em May-may para acordá-la. — O escaler do Papai se aproxima.
— Lim Din preparou o seu banho?
— Sim, Mamãe. Ele subiu para dar as boas vindas ao Papai.
— Você pode voltar para a cama, Ah Sam.
— Devo acordar a Segunda Mãe? — Yin-hsi estava encolhida numa cama, a uma canto da cabina.
— Não. Volte para a cama. Mas primeiro dê-me a minha escova e o pente e veja se Lim Din preparou o desjejum, para o caso de Papai querer comer.
May-may ficou deitada um momento, lembrando-se do que Gordon Chen lhe dissera. Aquele assassino sujo! Imagine acusar meu filho de estar ligado a uma sociedade secreta! Ele foi mais do que suficientemente pago para ficar com a bom fechada e morrer em silêncio. Que loucura!
Saiu da cama, cautelosamente. Nos primeiros segundos, suas pernas estavam fracas e trêmulas. Depois, parou de sentir fraqueza e ficou em pé, ereta.— Ah — disse alto — agora estou melhor. — Caminhou para o espelho e se examinou, criticamente. — Você está velha — disse, para seu reflexo.
— Não está, não. E não devia sair da cama — disse Yin-hsi, sentando-se em seu leito. — Deixe-me escovar seu cabelo. Papai voltou? Fico tão satisfeita de ver como está melhor. Seu aspecto é realmente ótimo.
— Obrigada, Irmã. O barco dele se aproxima. — May-may deixou Yin-hsi escovar e entrançar seu cabelo. — Obrigada, querida.
Perfumou-se e voltou para a cama, sentindo-se reanimada. A porta se abriu e Struan entrou, na ponta dos pés.
— O que você está fazendo acordada? — perguntou.
— Queria ver você voltar a salvo. Seu banho está pronto. E o desjejum. Estou muito feliz por você voltar são e salvo!
— Acho que vou descansar, por algumas horas. Volte a dormir, garota, e tomaremos o desjejum quando eu acordar. Disse a Lim Din para me deixar dormir, a não ser que aconteça alguma coisa urgente. Ele a beijou rapidamente, um pouquinho embaraçado com a presença de Yin-hsi.
May-may notou isso e sorriu para si mesma. Como os bárbaros eram engraçados! Struan fez vagamente um aceno de cabeça para Yin-hsi e saiu do quarto.
— Ouça, querida Irmã — disse May-may, quando teve certeza de que Struan já não podia ouvir. — Tome um banho com água perfumada e, quando Papai estiver profundamente adormecido, vá para sua cama e durma com ele.
— Mas, Suprema Senhora, tenho certeza de que Papai não indicou, de maneira nenhuma, que queria minha presença. Eu estava observando, com muito cuidado. Se eu for sem ser convidada, ele... ele pode ficar muito zangado e me mandar embora, e então eu perderia muito prestígio diante da senhora e diante dele.
— Você precisa entender que os bárbaros são muito diferentes de nós, Yin-hsi. Não têm a mesma idéia de prestígio que nós. Agora, faça o que eu digo. Ele vai tomar banho e irá para a cama. Espere uma hora. Depois, vá para junto dele. Se ele acordar e lhe ordenar que saia, tenha paciência e diga — ela mudou para inglês: — A Suprema Senhora mandou que eu viesse.
Yin-hsi repetiu as palavras em inglês, decorando-as.
— Se não adiantar, volte para cá — continuou May-may. — Não haverá perda de prestígio, eu lhe prometo. Não tenha medo. Conheço muito Papai e sei como ele encara essa questão de prestígio. Não podemos, realmente, deixar que ele visite esses sujos bordéis. Esse teimoso foi direto a um deles, a noite passada.
— Não! — disse Yin-hsi. — Perdemos muito prestígio. Ah, querida. Eu, com certeza, desagrado Papai. Talvez seja melhor me vender a um coveiro.
— Ah! — disse May-may. — Eu ensinaria a ele, se estivesse boa. Não se preocupe, Yin-hsi. Ele nem mesmo a viu ainda. Eu já lhe expliquei. Ele é um bárbaro. É terrível ir a um bordel, quando você está aqui, e até mesmo Ah Sam.
— Concordo plenamente. Que homem terrível!
— São todos terríveis, querida — disse May-may. — Espero que ele esteja cansado e não mande você embora, como prevejo que vai fazer. Só durma na cama dele. Com Papai, temos de trabalhar bem as coisas. Mesmo na idade dele, ainda é muito tímido com relação ao amor.
— Ele sabe que eu não sou virgem? — Yin-hsi acariciava a cabeça de May-may.
— Ele ainda é bastante jovem para não precisar de virgens, a fim de se excitar, querida Irmã. E velho demais para ter a paciência de ensinar a uma virgem a fazer o amor, novamente. Basta dizer a ele: A Suprema Senhora me mandou vir.
Yin-hsi repetiu as palavras, em inglês, outra vez.
— Você é muito bonita, irmã. Vá, agora. Espere uma hora e então vá para junto dele. — May-may fechou os olhos e se instalou na cama, toda contente.
Yin-hsi olhou para Struan. Um dos braços dele estava atirado descuidadamente por sobre o travesseiro e dormia profundamente. As cortinas nas vigias da cabina estavam bem fechadas, para vedar a claridade da manhã. Tudo se achava muito silencioso.
Yin-hsi tirou seu pijama e deslizou cautelosamente por sob as cobertas, ao lado de Struan.
O calor da cama a excitou.
Ela esperou, sem fôlego, mas ele não acordou. Chegou mais perto dele e, suavemente, pôs uma mão sobre seu braço e esperou. Ainda assim, ele não acordou. Ela se moveu para mais perto ainda, e colocou seu braço em torno do peito dele, deixando-o descansar ali. E esperou.
Através da névoa de seus sonhos, Struan percebeu que May-may estava a seu lado. Sentia seu perfume e sua proximidade, e ficou satisfeito por sua febre ter-se tornado uma coisa distante, do passado, e por ela estar bem outra vez. Encontravam-se juntos ao sol, e ele podia sentir o bem-estar de May-may. Perguntou-lhe o que ela gostaria de ganhar de aniversário e ela, simplesmente, riu e abraçou-o ao sol, que era escuro e estranho, irreal, porém belo. Depois, ficaram muito juntos e ele escutou-lhe a conversa e, em seguida, nadaram juntos e ele achou isso estranho, pois sabia que ela não nadava, e imaginou como aprendera. Mais tarde, ficaram deitados, nus, na praia, lado a lado, todo o corpo dela tocando-o. Então, ela começou a tremer e ele ficou aterrorizado, temendo que tivesse febre outra vez, e lá estava o monge com sua batina manchada de sangue, e a taça de chá curou a febre de May-may e aí caiu a escuridão. Mas havia nuvens lá no alto, e estava escuro, quando deveria ser dia e Fong gritava, no meio das ondas: Tai-fung! Fugiram das nuvens e foram para a cama, salvos.
Ele estremeceu, adormecido, começou a acordar e sentiu o corpo cálido e macio tocando-o, e sua mão vagueou, e ele cobriu-lhe o seio e sentiu o tremor percorrê-la e a ele também.
Ficou deitado, quase acordando, na penumbra do quarto. O seio dela era macio em sua mão e ele sentiu a rigidez do mamilo.
Então, abriu os olhos.
Yin-hsi sorriu, recatadamente.
Struan apoiou-se sobre um cotovelo.
— Pelo sangue de Cristo, que diabo você está fazendo aqui? Yin-hsi piscou os olhos, com ar de quem não entende.
— Suprre... ma... Senhora... me mandou.
— Hein? — Struan tentava desanuviar as idéias.
— Suprrre... ma... Senhora... me mandou... Tai-Pan.
— Hein? May-may? May-may? Ela está louca? — Apontou para a porta. — Saia!
Yin-hsi abanou a cabeça.
— Suprrre... ma Senhora me mandou.
— Não me importa se você foi mandada pela Rainha da Inglaterra! Saia!
Yin-hsi fez uma expressão amuada.
— Suprrre... ma Senhora me mandou! — E plantou a cabeça firmemente no travesseiro, olhando para ele.
Struan começou a rir.
Yin-hsi estava confusa. Meu Deus, a Suprema Senhora tinha razão. Os bárbaros são
incríveis! Como você ousa ir a um bordel e me fazer perder prestígio diante da Tai-tai? Será que sou uma bruxa velha, por Deus? Ah, não, Tai-Pan! Não vou sair daqui! Sou muito atraente e sou a Segunda Irmã e Segunda Senhora em sua casa, é isso aí!
— Por todos os deuses! — disse Struan, recompondo-se. — Vou casar com May-may, nem que seja a última coisa que eu faça na vida. E que todo mundo vá para o inferno!
Deitou-se de novo e ficou imaginando o que ele e May-may fariam na Inglaterra. Ela será a favorita de Londres... desde que não use nunca roupas européias. Juntos, abalaremos a sociedade inglesa. Agora, tenho de voltar rapidamente para meu país. Talvez possa destruir pessoalmente o Ministro de Relações Exteriores! Ou derrubar Whalen. Sim. Agora, a chave para Hong Kong está em Londres. Então, é voltar para casa — quanto antes, melhor.
Virou a cabeça no travesseiro, olhou para Yin-hsi e realmente a viu, pela primeira vez. Achou-a muito desejável. Seu perfume era tão encantador como sua pele.
— Ah, garota eu estou seriamente tentado.
Ela se aproximou mais e aninhou-se contra ele.
O White Witch entrou com dificuldade no porto, pouco antes do meio-dia. Seu mastro dianteiro fora arrancado e havia no convés principal um emaranhado de vergas quebradas e cordame torcido.
Brock aproximou-se num escaler, enquanto o navio se encaminhava para suas amarrações.
— Por Deus, alguém vai pagar por isso! — rugiu, ao chegar ao convés, descobrindo, por instinto, ao ver as velas rasgadas e não rizadas, espalhadas entre as adriças, que o navio soltara pano demais. — O que aconteceu?
— Bom-dia, senhor — disse Michaelmas. Era o primeiro-imediato, um homem rijo e com marcas de bexiga. — Assumi o lugar do Sr. Gorth. Até saber o que o senhor pretendia. — Havia um chicote em seu grande punho! — O vento nos pegou duas horas depois da partida de Macau. O maldito vento quase nos fez virar. Arrancou o mastro e nos afastou do curso cinqüenta léguas.
Brock cerrou o punho e sacudiu-o junto ao rosto do homem.
— Não sabe se defender do vento? Não sabe rizar as velas, nesta temporada?
— Sim, senhor Brock — disse Michaelmas, sem medo. — Mas as rajadas nos pegaram a sotavento. Não me repreenda por causa do vento, por Deus! O punho de Brock atirou-o contra a amurada e ele caiu, inconsciente, no convés.
— Bennyworth! — gritou Brock ao segundo-imediato, um jovem atarracado e troncudo. — Você é o capitão, até segunda ordem! Lance as âncoras de tempestade. Vamos ter mau tempo. — Então, viu Culum no tombadilho. Os marinheiros se dispersaram, quando ele subiu no cordame e transpôs o curto passadiço. Ele se agigantou diante de Culum.
— Bom-dia, Sr. Brock, eu queria...
— Onde está a Sra. Brock?
— Lá embaixo, senhor. Não foi culpa do Sr. Michaelmas. E eu queria...
— Cale o bico! — Brock rosnou e, depois, deu as costas com desprezo para Culum. Culum ferveu com o insulto; Brock jamais viraria as costas para o Tai-Pan.
— Ninguém tem permissão para desembarcar! — Brock gritou. — Limpe tudo isso, Pennyworth, do contrário será demitido, como aquele patife do Michaelmas. Mande-o embora do meu navio! — Rodopiou, virando-se de novo para Culum. — Falarei com você com calma.
— Gostaria de falar agora.
— Mais uma só palavra, antes de eu estar preparado, e reduzo você a pó. Culum seguiu Brock até embaixo e desejou que o Tai-Pan estivesse ali. Ah, Deus, como posso tratar com Brock? Por que entramos naquele maldito vento?
Tess estava em pé, à porta de sua cabina. Ela sorriu com meiguice e fez uma mesura, mas Brock passou direto e abriu a porta da cabina principal, batendo-a atrás de si.
— Ah, que Deus nos ajude, querido — Tess gritou para Culum.
— Não se preocupe, tudo vai acabar bem. — Culum tentou manter a voz calma, desejando desesperadamente ter uma pistola. Foi até um armeiro, tirou uma malagueta e fez sinal a Tess para entrar na cabina. — Não se preocupe. Ele fez um juramento sagrado. Prometeu.
— Vamos fugir, enquanto podemos — ela implorou.
— Não podemos fugir agora, querida — disse Culum. Não se preocupe. É melhor esclarecer tudo logo. Devemos fazer isso.
— Então, você deixou Tess escapar e aquele patife lhe tampou os olhos, hein? — disse Brock.
— Sim. — disse Liza, tentando conter seu pânico. — Eu estava observando com cuidado e jamais pensei que isso acontecesse, mas aconteceu, e a culpa é minha. Mas estão casados, rapaz, e não adianta nós...
— Quem decide sou eu, por Deus! O que houve com Gorth? Ela lhe contou tudo que sabia.
— Foi Gorth quem desafiou Dirk Struan — disse. Estava aterrorizada, não só por si mesma mas, ainda mais, por Tess e Culum e por seu homem. Se Tyler for atrás de um demônio como aquele, está perdido. — Foi Gorth, Tyler. Ele chamou o Tai-Pan de nomes terríveis. E bateu-lhe com um chicote. Foi em público. Eu disse a Gorth para esperar... para vir buscar você ... mas ele me bateu e saiu.
— O quê?
Ela afastou o cabelo da orelha direita. Estava inchada e negra e dentro havia sangue coagulado.
— Ele ainda me feriu de maneira terrível. — Desabotoou a blusa. Seu peito estava horrivelmente machucado. — Ele fez isto. Seu filho. Era um demônio, e você sabia disso.
— Por Deus, Liza. Se ele... se eu soubesse... é melhor que esteja morto. Mas não por assassinos e não sem honra, por Deus!
Com uma expressão terrível, tirou um caneco de cerveja do barril e Liza agradeceu a Deus por ter tido a previdência de pôr à mão um barrilete novo.
— O médico tem certeza quanto à sífilis? Daquele jovem patife?
— Ele não tem sífilis e não é um patife. É seu genro!
— Sei disso. Que Deus o amaldiçoe!
— Tyler, perdoe os dois. Eu lhe suplico. Ele é um bom rapaz e está terrivelmente apaixonado por Tess e ela está feliz e...
— Cale a boca! — Brock engoliu a cerveja e bateu o caneco na mesa. — Dirk planejou isso tudo. Sei disso. Para me humilhar! Primeiro, ele destruiu meu filho mais velho... e, depois, não me deixou casar minha filha de maneira decente. Maldito Struan! Até isso ele me fez! — Atirou o canecão contra a antepara. — Vamos enterrar Gorth no mar, hoje.
— Tyler, amor — começou Liza. Ela lhe tocou o braço. — Tyler, amor, tem outra coisa. É preciso que seja dita. Você precisa perdoar. Há muita coisa a ser perdoada. A respeito de Nagrek.
— Hein?— Gorth me contou o que você e ele fizeram com Nagrek. Foi terrível... mas ele mereceu. Porque teve relações com Tess. Ele fez isso. Mas Culum não sabe, parece. Então, nossa menina foi salva de um destino terrível.
Os músculos em torno da órbita vazia de Brock começaram a tremer fortemente.
— O que você está dizendo?
— É verdade, Tyler — disse Liza, e então seu tormento irrompeu. — Pelo menos, dê a eles uma chance. Você fez um juramento, diante de Deus. E Deus nos ajudou com relação a Tess. Perdoe os dois. — Ela enterrou a cabeça nos braços e soluçou, convulsivamente.
Os lábios de Brock se mexeram, mas não saiu nenhum som. Ele percorreu o corredor arrastando os pés, e então ficou em pé diante de Culum e de Tess. Viu o terror nos olhos de Tess. Isto o magoou e tornou-o cruel.
— Você preferiu não atender à minha vontade. Três meses eu disse. Mas você...
— Ah, papai, ah, papai...
— Sr. Brock, será que eu posso...
— Cale a boca. Logo terá sua vez de falar! E você, Tess, você preferiu fugir como uma puta qualquer. Muito bem. Vá dizer adeus a sua mãe. E, depois, saia de nossa vida, suma com seu homem.
— Papai, por favor, ouça...
— Vá! Eu quero falar com ele.
— Não vou sair! — Tess gritou, histericamente. Ela pegou a malagueta. — Você não vai tocar nele. Eu lhe mato! Ele lhe arrancou das mãos a malagueta, antes que ela percebesse seus movimentos.
— Saia e desembarque. — Brock observava a si mesmo, como se tudo aquilo fosse um pesadelo; queria perdoar e desejava que ela o abraçasse, mas algum outro eu, malvado, impulsionava-o, e ele não podia resistir. — Saia, por Deus!
— Está bem, querida — disse Culum. — Vá pegar suas malas. Ela saiu da cabina,
aos recuos, e depois correu. Brock fechou a porta, com um chute.
— Jurei dar a você um ancoradouro e porto seguro. Mas foi quando você ia casar direito.
— Ouça, Sr. Brock...
— Ouça você, por Deus, senão o esmago como se fosse um percevejo. — Um fio de saliva escorria pelo canto de sua boca. — Eu combinei com você de maneira justa, de homem para homem, que três meses estava bem. Você concordou. Mas não cumpriu sua palavra. Eu disse: “Seja honesto, rapaz.”
Culum nada disse. Rezou pedindo forças e sabia que estava derrotado. Mas tentaria, por Deus.
— Foi ou não foi?
— Sim.
— Então, acho que estou livre de cumprir o juramento.
— Posso falar, agora?
— Não terminei. Mas, mesmo tendo ludibriado, você está casado. Quer responder a uma pergunta? Diante de Deus? Então estaremos quites.
— Claro. — Culum queria contar a Brock a respeito da sífilis e do bordel e dos motivos para tudo aquilo.
— Diante de Deus?
— Sim. Nada tenho a esconder e... Brock interrompeu-o.
— Seu pai planejou tudo isso? Meteu em sua cabeça a idéia de fugir? Sabendo que isto deixaria Gorth louco? Sabendo que isto deixaria Gorth tão louco a ponto de desafiá-lo em público, para seu pai poder lutar com ele de maneira legal? Você foi para o bordel bêbado, sem saber onde estava, com quem se deitaria? Não precisa responder a isto. Está escrito em seu rosto.
— Sim... mas precisa ouvir. Há uma porção...
— Você tem garantias minhas. Mas vou dizer-lhe claramente. Estou atrás de seu pai. Estou atrás da Casa Nobre. Nunca vou descansar, até estar arruinada. Agora, sua única garantia será Brock e Filhos. Só lá, Culum. Maldito Struan! E, até esse dia, você estará morto para mim. Você e Tess.
Abriu violentamente a porta.
— O senhor não escutou o que eu tinha para dizer! — gritou Culum. — Não é justo!
— Não fale a respeito de “justiça” — disse Brock. — Eu lhe pedi pessoalmente. Três meses! Eu disse: “Seja honesto, rapaz”. Mas você, ainda assim, deixou de cumprir sua palavra. Não tem honra nenhuma a meus olhos, por Deus!
Afastou-se, e Culum ficou a segui-lo com o olhar, sufocado pela angústia, o alívio, a vergonha e o ódio.
— Você não agiu de maneira justa — disse ele, sentindo-se magoado com sua própria voz. Brock apareceu no convés e a tripulação se manteve afastada.
— Pennyworth!
O segundo-imediato parou de supervisionar os trabalhos de recolhimento das vergas e cordame partido e caminhou com dificuldade até onde se encontrava Brock.
— Procure Struan — disse Brock. — Diga a ele que estou a esperá-lo no Vale Feliz. Entre o ancoradouro dele e o meu. — Parou, com o rosto retorcido num sorriso sem alegria. — Não. No outeiro, na Vale Feliz. Sim. O outeiro que seria dele. Diga a ele que estou esperando por ele no outeiro, no Vale Feliz... onde ele queria enfrentar Gorth.
— Sim, senhor. — Pennyworth mordeu o lábio. — Sim, senhor. — E, se você contar isso a qualquer outra pessoa além dele, eu castro você, juro por Deus. — Brock começou a descer o passadiço.
— Quem vai consertar o navio, senhor?
— Você. É o capitão do White Witch. Mas depois que der o recado
Struan observava Yin-hsi. Ela ainda dormia, a seu lado. Ele a comparou com May-may. E May-may com sua amante chinesa de anos atrás. E as três com Ronalda, sua única esposa. Tão diferentes. Entretanto, em muitas maneiras, tão parecidas. E ficou imaginando por que as três orientais o excitavam mais do que Ronalda, que era seu amor — até ele conhecer May-may. E ficou perguntando a si próprio o que era o amor.
Sabia que as três chinesas tinham muito em comum: a pele incrivelmente sedosa e um humor, uma entrega, uma muda comunicação que excediam a tudo que já vira. Mas May-may superava de longe as outras duas. Era perfeita.
Tocou afetuosamente em Yin-hsi. Ela estremeceu, mas não acordou. Com cuidado, ele deslizou para fora da cama e espiou o céu, através das vigias. As nuvens eram ainda mais pesadas. Vestiu-se e desceu.
— Então... — disse May-may. Ela estava sentada na cama, inda.
— Então... — ele disse.
— Onde está minha irmã?
— Suprrre...ma Senhorr...ra me mandou vir.
— Ah — disse May-may, e jogou a cabeça para trás. — Você é mendaz e cheio de luxúria e já não adora mais sua velha mãe.
— É verdade — disse Struan, para arreliá-la. Ela parecia mais bela do que nunca e a palidez de seu rosto lhe ficava bem. — Acho que vou mandar você embora!
— Ayeee yah! E eu me importo muito!
Ele riu, e ergueu-a em seus braços.
— Cuidado, Tai-Pan — disse ela. — Você gostou de Yin-hsi? Estou tão satisfeita. Satisfeitíssima.
— Quando quer ser Tai-tai?
— O quê?
— Bom, se não está interessada, não falaremos mais disso.
— Ah, não, Tai-Pan! Quer dizer Tai-tai? Verdadeira Tai-tai, segundo os costumes? Não está falando isso de brincadeira? Por favor, não brinque comigo a respeito de uma coisa tão importante.
— Não estou brincando, May-may. — Sentou-se na cadeira, segurando-a nos braços. — Vamos para meu país. Juntos. Tomaremos o primeiro clíper disponível e nos casaremos a caminho de casa. Dentro de poucos meses.
— Ah, maravilhoso. — Ela o abraçou. — Solte-me, por um momento.
Ele a soltou e, capengando ligeiramente, ela caminhou até à cama.
— Veja, já estou quase boa.
— Vá para a cama, agora — ele disse.
— Pretende mesmo casar? De acordo com seus costumes? E com os meus?
— Sim. De acordo com ambos, se você quiser.
Ela se ajoelhou, graciosamente, diante dele, e tocou o tapete com a testa.
— Juro que serei digna de me tornar Tai-tai.
Ele a ergueu depressa e colocou-a na cama.
— Não faça isso, garota.
— Eu me ajoelhei porque você me deu o maior prestígio da terra. — Ela o abraçou outra vez e, depois, afastou-o um pouco e riu. — Gostou muito do presente de aniversário, hein? É por isso que quer casar com sua pobre mãe velha?
— Sim e não. Foi só por causa da idéia.
— Ela é ótima. Gosto muito dela. Estou satisfeita de que também goste.
— Onde você a encontrou?
— Era concubina na casa de um mandarim que morreu há seis meses. Eu já lhe disse que ela tinha dezoito anos? A casa dele entrou num período de dificuldade e então a Taitai chamou um casamenteiro para encontrar um bom marido para ela. Ouvi falar a seu respeito e conversei com ela.
— Onde? Em Macau?
— Ah, não. Há dois ou três meses. — May-may se aconchegou mais, de encontro a ele. — Conversei com ela em Cantão. A Tai-tai de Jin-qua foi quem me contou a seu respeito. Quando engravidei, pensei, ah, ótimo, e então mandei buscá-la. Porque meu homem é cheio de luxúria e em vez de ficar em casa talvez vá para um bordel. Você me prometeu não ir a bordel, mas foi, a noite passada. Maldição!
— Não procurei nenhuma mulher. Fui apenas visitar Aristotle.
— Ah! — May-may agitou um dedo, na cara dele. — Isso o que você diz. Eu não tenho ciúme de prostituta, mas não aquelas. Ah, muito bem, desta vez eu acredito em você.
— Muito obrigado.
— Yin-hsi é ótima, então você não precisa ir a bordéis. Ah, estou tão feliz. Ela canta maravilhosamente e toca muitos instrumentos, costura à perfeição e aprende tudo muito depressa. Eu lhe ensino inglês. Ela vai para a Inglaterra conosco. E Ah Sam e Lim Din também. — Franziu a testa, de leve. — Mas voltaremos à China? Muitas vezes?
— Sim. Talvez.
— Ótimo. Voltaremos, é claro. — Outra vez, um sorrisinho. — Yin-hsi é muito prendada. Ela é boa na cama? Os olhos de Struan semicerraram-se, de divertimento.
— Não fiz amor, se é isso que você está perguntando.
— O quê?
— Gosto de escolher quem vai para minha cama, e quando.
— Ela está em sua cama e você não fez amor?
— Sim.
— Juro por Deus, Tai-Pan. Não vou entender você nunca. Não a deseja?
— Claro. Mas decidi que hoje não era a ocasião. Talvez hoje à noite. Ou amanhã. Quando eu escolher. Não antes. Mas aprecio sua consideração.
— Juro por Deus que você é mesmo esquisito. Ou talvez estivesse tão cansado, por causa de uma suja prostituta, que não reagiu. Hein?
— Pense o que quiser. Houve uma batida à porta.
— Sim?
Lim Din entrou, com passos macios.
— Tai-Pan, há um senhor aqui. Quer ver Tai-Pan. Pode?
— Que senhor?
— Senhor Peeennnyworth.
Brock observou Struan subir a estrada que levava até o cume do outeiro à sombra da igreja sem teto, abandonada. Viu o chicote de ferro reunido num molho e se sentiu um pouco enjoado. Entretanto, estava satisfeito por haver, afinal, um ajuste de contas.
Ajustou a correia de seu próprio chicote de ferro, levantou-se e saiu para terreno aberto. Agarrou a faca com a mão esquerda.
Struan viu Brock no momento em que saía do abrigo da igreja e, por um instante, esqueceu o plano que decidira executar. Parou. Só se lembrou de que o outro era um inimigo seu, a quem precisava destruir. Com um esforço, Struan desanuviou as idéias e continuou a subir o caminho, com os músculos tremendo de ansiedade em começar.
Afinal, os dois homens se enfrentaram.
— Você planejou a fuga e o duelo, não foi? — rosnou Brock.
— Sim — Struan deixou cair o chicote de ferro. Este tilintou, com ódio. Outra vez, ele precisou esforçar-se para lembrar o que decidira dizer. Brock agarrou o cabo de seu chicote de ferro, deu um passo para a frente e se preparou. Só os olhos de Struan se moveram.
— Sinto muito Gorth ter morrido do jeito que morreu — disse Struan. — Eu teria gostado de matá-lo. Brock não deu resposta. Mas deslocou seu peso, imperceptivelmente, com o vento leste agitando-lhe o cabelo. O punhal de Struan apareceu em sua mão esquerda e ele se agachou ligeiramente.
— Tess está com sífilis.
Brock parou no meio do caminho.
— Não! O médico disse que Culum está sadio.
— Os médicos podem ser comprados — disse Struan, sentindo a sede de sangue tomar conta dele. — Ela foi contaminada de sífilis, de propósito!
— Seu, seu... — Brock fez girar malignamente a maça e investiu contra Struan. A farpa de metal deixou de alcançar os olhos de Struan por apenas uma fração de polegada.
Struan recuou rapidamente e tornou a atacar, Brock se desviou e eles começaram a cercar um ao outro como dois animais.
— Foi o que Gorth planejou — disse Struan. Desejaria parar de falar. — Está ouvindo? Foi o que Gorth quis fazer.
A cabeça de Brock estalava. Tudo que ele conseguia pensar, era em cercar o inimigo e matá-lo.Novamente houve uma violenta escaramuça, e outra vez eles brandiram suas maças. Brock fugiu a uma punhalada de Struan, que saiu de seu alcance, com uma contorção, e percebeu não poder conter-se mais e nem se manter afastado por muito tempo.
— Gorth planejou a sífilis!
— Que Deus amaldiçoe suas mentiras! — Brock aproximou-se lentamente de Struan.
— Gorth deu a Culum uma bebida drogada. Com um afrodisíaco. Gorth pagou a um bordel para que ele se deitasse com uma mulher sifilítica. Queria que Culum contraísse sífilis! Aquele seu filho maldito! Entende?
— Mentiroso!
— Mas, graças a Deus, Culum não tem sífilis... só contei para fazer você entender por que eu queria matar Gorth. Culum não tem sífilis. E nem Tess.
— O quê?
— Sim. É a verdade, juro por Deus!
— Demônio! Blasfemo! Jura falso!
Struan negaceou, Brock recuou e assumiu uma ameaçadora posição de ataque. Mas Struan não investiu com a arma. Atravessou a porta aberta da igreja abandonada e ficou em pé, diante do altar.
— Juro diante de Deus que é a verdade!
Ele se virou e perdeu o controle. Todos os ruídos pareceram cessar e o mundo inteiro era Brock e a frenética vontade de matar. Começou a voltar pela nave, lentamente.
— Gorth assassinou uma prostituta em Macau e outra aqui — ele silvou. — Esta é outra verdade. O sangue dele não está em minhas mãos, mas o seu estará.
Brock recuou do pórtico, sem desviar nunca o olhar de Struan. O vento parará de soprar, e ele sabia que isto era estranho, agourento e estranho. Mas não prestou atenção.
— Então você... você tinha motivo — disse Brock. — Eu... retiro o que eu disse. Você tinha motivo, por Deus! — Agora, estava do lado de fora, no gramado, e parou, acossado. — Eu retiro o que disse sobre Gorth, mas isto não significa que nossas contas estejam ajustadas. — Sua raiva de Gorth, de Struan, e de todos aqueles anos fustigava-o e ele só sabia que, agora, tinha de lutar, investir, matar. A fim de continuar vivo.
Então, sentiu outra vez o vento no rosto. Abruptamente, sua mente se desanuviou. Olhou para o continente. Struan perdeu repentinamente o equilíbrio, com a rapidez do movimento de Brock, e hesitou.— O vento mudou — resmungou Brock.
— Hein? — Struan fez um esforço para se concentrar e recuou, sem confiar em Brock. Então, ambos olharam para o continente chinês, escutando com atenção e provando o vento. Vinha do norte. Lento, mas inequívoco.
— Talvez seja uma ventania — disse Brock, com a voz cheia de mortificação, o coração batendo; toda sua força o abandonara.
— Vindo do norte, não! — disse Struan, sentindo-se igualmente esvaziado. Ah, Deus, por um momento, eu fui um animal. Se o vento não tivesse mudado...
— Tufão!
Olharam para o porto. Os juncos e sampanas corriam em direção à terra.
— Sim — disse Struan. — Mas eu disse a verdade. A respeito de Gorth.
Brock sentiu um gosto de bílis na boca e cuspiu.
— Peço desculpas por Gorth. Sim. Aquilo foi provocado, e ele está morto, o que me dá ainda mais pena.
— Onde foi que eu errei?, perguntou a si mesmo. Onde? — O que foi feito, está feito. Mas eu já lhe disse umas verdades, na Colônia. Sim, eu errei em chamar você hoje, mas já lhe disse umas verdades em Cantão, e não vou mudar. Não vou mudar, e nem você. Mas, no dia em que me aparecer outra vez com uma maça na mão, ninguém vai nos fazer parar. Escolha esse dia, como eu disse antes. Concorda?
Struan se sentia curiosamente fraco.
— Concordo. — Ele recuou, desamarrou seu chicote de ferro e embainhou sua faca,
observando Brock, sem confiar nele. Brock também depôs as armas.
— E você perdoa Culum e Tess?
— Estão mortos para mim, como eu disse. Até Culum fazer parte de Brock e Filhos, e Brock e Filhos ser a Casa Nobre, e eu ser o Tai-Pan da Casa Nobre.
Struan atirou ao chão sua maça e Brock a dele. Ambos os homens partiram depressa do morro, por caminhos diferentes.
Aquele dia inteiro o vento norte aumentou. Ao cair da noite, a Cidade da Rainha estava preparada como nunca estivera. As janelas trancadas, as portas calçadas e aqueles que haviam tido a previdência de construir porões abençoaram seu pagode. Os que viviam em residências improvisadas ou temporárias procuraram prédios mais sólidos. Mas poucos prédios eram sólidos — exceto no Vale Feliz. E poucos homens estavam dispostos a se arriscar a respirar os gases noturnos, embora tivessem lido no Oriental Times daquele dia a notícia sobre a cura da malária. Naquela ocasião, não existia cinchona disponível.
Todos os navios cerraram as escotilhas e todas as âncoras disponíveis foram lançadas ao fundo. Os navios foram colocados tão distantes quanto possível uns dos outros, a fim de lhes dar o máximo espaço de movimentação, quando o vento mudasse de direção.
Mas alguns diziam que, como o vento soprava constantemente do norte, não havia possibilidade de ser um tufão em início. Ninguém tinha notícia de um tufão que soprasse só do norte. O vento do tufão mudava constantemente de direção.
Até Struan inclinava-se a concordar. Jamais o barômetro estivera tão elevado. E jamais houvera um tufão sem queda do barômetro.
Ao entardecer, chuviscou, com nuvens baixas, e houve um alívio do calor.
Struan considerara cuidadosamente os perigos. Se só tivesse a si mesmo com que se preocupar, teria partido no China Cloud, em direção ao sul, até o vento mudar. Então, tomaria o curso mais seguro e escaparia. Mas algum instinto, que ele não entendia, dizialhe para não se arriscar no mar. Em vez disso, levou May-may, Yin-hsi, Ah Sam e Lim Din para a grande feitoria abandonada no Vale Feliz e colocou-os em seus alojamentos no terceiro andar. Sentiu que a chuva e o vento afastariam os gases noturnos. May-may estaria mais protegida por tijolo e pedra do que no mar, ou num buraco no chão, e isto era o mais importante.
Culum agradecera a Struan a oferta de um abrigo na feitoria, mas dissera que preferia levar Tess para o escritório do mestre do porto. Ficava num prédio baixo, de granito, e Glessing separara espaço para Culum e Tess nos alojamentos que faziam parte do edifício.Struan contara-lhes o que acontecera no outeiro, e que havia sido feita uma espécie de paz. E o dia inteiro, enquanto se preparava contra um tufão que poderia não chegar nunca, ele ficou meditando sobre a violência do homem.
— O que há, Marido? — perguntara May-may.
— Não sei. Brock, eu, o tufão... não sei. Talvez o teto de nuvens esteja baixo demais.
— Eu lhe digo o que está errado. Você pensa demais sobre o que aconteceu... pior ainda, imagina o que poderia ter acontecido. Ah! Que tolice! Seja chinês! Eu lhe ordeno! O que passou, passou. Foi feita a paz com Brock! Não perca tempo assim triste, como uma galinha constipada. Coma alguma coisa, beba um pouco de chá e faça amor com Yin-hsi.
Ela riu e chamou Yin-hsi, que veio às pressas pelo grande aposento, sentou-se à cama e lhe segurou a mão.
— Olhe para ela, por Deus! Já conversei um bocado com ela. Ele sorriu e se sentiu melhor.
— Assim é melhor — disse ela. — Penso em você o tempo todo, não se preocupe. Yin-hsi está sozinha, no quarto vizinho. Espera, atenta a noite inteira.
— Pare com isso, garota. — Ele deu uma risadinha e May-may falou rapidamente em chinês com Yin-hsi. Yin-hsi ficou toda atenta e depois, bateu palmas, extasiada, e sorriu radiante para Struan, saindo em seguida.
— O que você disse, May-may? — ele perguntou, cheio de suspeita.
— Eu disse a ela como você faz amor. E como deixar você fantasticamente excitado. E para não ter medo quando você gritar, no final.
— Vá para o inferno! Será que não posso ter nada particular?
— Tai-tai sabe o que é melhor para seu menino zangado. Yin-hsi está esperando você, agora.
— O quê?
— Yin-hsi. Eu disse a ela para se preparar. O amor à noitinha é bem agradável, pode ter certeza. Já se esqueceu? Struan grunhiu e caminhou para a porta.
— Muito obrigado, mas estou ocupado.
Desceu as escadas e, de repente, descobriu que se sentia muito melhor. Sim, era tolice preocupar-se com o passado. E, outra vez, abençoou seu pagode por ter May-may.
Brock mandara retirar da carlinga e prender ao costado, para maior segurança, o mastro de proa quebrado do White Witch. Todas as vergas quebradas e cordame retorcido haviam sido separados e o navio tivera as escotilhas cerradas. Ele mandara lançar três âncoras e uma outra, de lona, própria para tempestades, à popa, para manter a embarcação em direção ao vento.
O dia inteiro, ele se sentiu atoleimado. Sua cabeça e o peito doíam-lhe, e sabia que teria pesadelos, aquela noite. Teria gostado de se embriagar, atordoar-se. Mas sabia que o perigo se aproximava. Deu uma última volta pelo convés encharcado de chuva, com uma lanterna, e depois desceu para ver como iam Liza e Lillibet.
— Aqui está o seu chá, amor — disse Liza. — É melhor mudar de roupa, vestir algo seco. Aqui estão. — Apontou para o beliche, onde se encontravam um casaco e calças navais, e um chapéu de marinheiro e botas.
— Obrigado, amor. — Sentou-se à mesa e bebeu o chá.
— Papai — disse Lillibet — quer jogar comigo? — E quando Brock se manteve em silêncio, pois não a escutara, ela puxou-lhe o casaco molhado. — Papai, joga comigo?
— Deixe seu pai em paz — disse Liza. — Eu jogo com você. Levou Lillibet para a cabina vizinha e agradeceu a Deus pela paz entre seu homem e Struan. Brock contou-lhe o que acontecera e ela agradeceu a Deus por atender às suas preces. O vento foi um milagre, disse a si mesma. Agora, ele precisava de paciência. Acabaria por dar sua bênção a Tess. Liza pediu a Deus para proteger Tess e Culum, e o navio, e a todos eles, e se sentou e começou a disputar uma partida do jogo-da-velha com Lillibet. Aquela tarde, o caixão de Gorth fora colocado num escaler. Liza e Brock foram até águas profundas e Brock disse o serviço fúnebre. Quando acabou, amaldiçoou o filho e lançou o esquife nas profundezas. Voltaram ao White Witch e Brock foi para sua cabina, trancando a porta em seguida, e ali chorou pelo filho e por sua filha. Chorou pela primeira vez, depois de adulto, e a alegria de viver abandonou-o.
A noite inteira, o vento e a chuva foram piorando aos poucos. Ao amanhecer, o aguaceiro era forte, mas não terrível, e o mar estava agitado, mas não ameaçador.
Brock dormira vestido e apareceu no convés com os olhos lacrimejantes. Examinou o barômetro. Ainda 29.8 polegadas, firme. Bateu-lhe com a junta de um dedo, mas o registro não se alterou.
— Bom-dia, senhor — disse Pennyworth.
Brock fez um aceno com a cabeça, apaticamente.— Parece que é só uma chuvarada — disse Pennyworth, perturbado com a falta de ânimo de Brock. Brock observou o mar e o céu. A capa de nuvens estava cerca de cem pés de altura e escondia as montanhas da ilha e o Cume, mas isto também não era fora do comum.
Brock forçou-se a ir adiante e examinar as amarras das âncoras. Estavam firmes: três âncoras e três amarras da grossura da coxa de um homem. O bastante para resistir a qualquer tempestade, pensou. Mas isto não lhe causou satisfação. Nada sentiu.
O China Cloud estava elegantemente fundeado nas águas do porto, com o pessoal de plantão agachado a sotavento, no tombadilho. Todos os outros navios estavam fundeados também sem problemas, com a grande nau capitania dominando o porto. Alguns poucos juncos e sampanas atrasados procuravam amarrações ao lado da vila flutuante, na praia abrigada do vento de uma pequena enseada, perto do Cabo Glessing.
Brock desceu e Pennyworth e o resto do pessoal em serviço ficaram muito aliviados ao vê-lo ir embora.
— Ele envelheceu, desde ontem — disse Pennyworth. — Parece um morto-vivo.
À luz do amanhecer, Struan examinava as persianas do primeiro andar. Desceu até o piso principal e examinou as outras. Observou o barômetro: 29.8, firme.
— Pelos deuses! — disse, e sua voz estrondeou pelo edifício. — Que essa maldita chuva comece a cair de uma vez, ou pare logo, e vamos acabar com isso!
— O que, Tai-Pan? — May-may gritou do patamar.
Estava minúscula e linda.
— Nada, garota. Volte para a cama — ele disse. May-may ficou escutando a chuva cair e desejou estar em Macau, onde o ruído da água sobre os telhados seria doce.
— Não gosto desta chuva — disse. — Espero que as crianças estejam bem. Sinto muita falta delas.
— Sim. Volte para a cama, seja uma boa menina. Vou sair um pouco.
Ela fez um aceno jovial.
— Tenha cuidado, hein?
Struan vestiu seu grosso casaco marítimo e saiu.
Agora, a chuva era oblíqua. Não aumentara, durante a última hora. Na verdade, pensou, parecia estar diminuindo. As nuvens estavam muito baixas. Observou a posição do China Cloud. É lindo e está em segurança, disse a si mesmo.Voltou e examinou o barômetro. Nenhuma mudança. Tomou um bom desjejum e se preparou para sair outra vez.
— Vive para cima e para baixo! Por que é tão impaciente? Onde vai agora, hein? — perguntou May-may.
— Ao escritório do chefe do porto. Quero ver se Culum está bem. De maneira alguma você deve sair, e nem abrir qualquer janela ou porta, Suprema Senhora Tai-Tai, ou não Suprema Senhora Tai-Tai.
— Sim, Marido — May-may beijou-o.
A Estrada da Rainha estava toda enlameada e quase vazia. Mas o vento e a chuva eram revigorantes e ele se sentia melhor do que trancafiado na feitoria. Parecia um aguaceiro de primavera na Inglaterra, pensou; não, nem tão forte assim. Entrou no escritório do mestre do porto e sacudiu a água da chuva. Glessing levantou-se de sua escrivaninha.
— Bom-dia. Que tempestade estranha, não? Quer um pouco de chá? — Fez sinal para uma cadeira. — Suponho que esteja procurando Culum e a Sra. Struan. Eles foram ao serviço religioso matinal.
— Hein?
— Voltarão a qualquer momento. Hoje é sábado.
— Ah, eu tinha esquecido.
Glessing despejou o chá de um grande vaso, depois tornou a colocá-lo junto ao fogareiro. O aposento era grande e cheio de mapas. Um mastro atravessava o teto de caibros e, ao lado dele, havia uma portinhola. Bandeiras de código estavam em cubículos bem divididos, mosquetes em armeiros, e a sala inteira era limpa e bem-arrumada.
— O que acha da tempestade?
— Se for um tufão, estamos bem em seu caminho. É a única resposta. Se o vento não muda de direção, então o vórtice vai passar sobre nós.
— Que Deus nos ajude, se você estiver com razão.
— Sim.
— Uma vez, fui apanhado por um tufão ao largo de Formosa. Jamais quero estar num mar como aquele, outra vez, e nós não estávamos nem mesmo perto do vórtice. Se é que isso existe.
Uma rajada de vento, carregada de chuva, bateu com força nas persianas cerradas. Observaram o indicador de vento. Ainda inexoravelmente norte. Glessing pôs a xícara sobre a mesa.
— Sou-lhe devedor, Sr. Struan. Recebi uma carta anteontem, de Mary. Ela me contou como foram gentis... o senhor e Culum. Particularmente o senhor. Parece que ela está bem melhor.
— Eu a vi pouco antes de partir. Estava, com certeza, dez vezes melhor do que a primeira vez em que a visitei.
— Ela diz que terá alta em dois meses. E que o senhor disse aos papistas que aceitaria a responsabilidade por ela. Claro, isto cabe a mim, agora.
— Como quiser. É apenas uma formalidade. — Struan ficou imaginando o que faria, quando descobrisse a verdade a respeito de Mary. Lógico que ele teria de descobrir; como poderia May-may imaginar que não?
— O médico disse qual era a doença?
— Uma perturbação estomacal.
— Foi o que ela escreveu. Mais uma vez, obrigado. — Glessing movimentou um mapa sobre sua escrivaninha e enxugou um pouco de chá que caíra na teca. — Culum contou que o senhor esteve na Marinha Real, em menino. Em Trafalgar. Espero que não se incomode com a minha pergunta, mas meu pai teve a honra de servir também, naquela oportunidade. Fiquei imaginando em que navio se encontrava o senhor. Ele era ajudante-de-ordens do Almirante Lord Collingwood no...
— No Royal Sovereign — disse Struan, tirando-lhe a palavra da boca. — Sim, eu estava a bordo.
— Por Júpiter! — foi tudo que Glessing conseguiu gaguejar. Struan escondera o fato de Glessing deliberadamente, sempre sabendo que tinha outro ás para jogar, caso precisasse atraí-lo para seu lado.
— Sim. Claro, não me lembro de seu pai... eu era um menino carregador de pólvora, e morto de medo. Mas o almirante se encontrava a bordo e eu estava no Royal Sovereign.
— Por Júpiter! — Glessing repetiu. Vira o navio de 110 canhões ao largo de Spithead, uma vez, em menino. — Uma companhia de oitocentos e trinta e seis navios e o futuro Tai-Pan da Casa Nobre. Não é de admirar a nossa vitória, por Deus!
— Obrigado — disse Struan. — Mas tive pouco a ver com o combate.
— Por Deus, Tai-Pan — se me permite chamá-lo assim... acho isso maravilhoso. Estou muito satisfeito. Sim, estou. Palavra de honra! Eu o detestava, como sabe. Mas não detesto mais. Ainda acho que minha decisão era correta, na Batalha de Chuenpi, mas percebo agora que aquele maldito filho da mãe de Longstaff estava certo, quando disse que, se eu fosse o senhor, ou o senhor fosse eu, nossas atitudes seriam as mesmas.
— Por que está aborrecido com Longstaff?
O rosto de Glessing perdeu a animação.
— O maldito teve a impertinência de interferir em questões navais! Ele “sugeriu” ao almirante que eu fosse enviado para a Inglaterra! Graças a Deus o almirante é da Marinha Real e aquele patife foi demitido! E, por falar em idiotas, tenho certeza de que leu o jornal de ontem à noite. Aquele estúpido filho da mãe, o Cunnington! Como ousa dizer que Hong Kong é um rochedo abandonado, onde mal existe uma só casa! Que maldita coragem, declarar uma coisas dessas! É o melhor porto do mundo! Como ele ousa dizer que não sabemos nada sobre o mar?
Struan lembrou-se do primeiro dia — bom Deus, só fazia pouco mais de seis meses? — e percebeu que tinha razão. Glessing poderia afundar junto com Hong Kong, mas lutaria até à morte para proteger o Cabo Glessing.
— Talvez o novo designado, Whalen, concorde com Cunnington.
— No que me diz respeito, tudo farei para impedir isso. O almirante também. Ele quase teve uma apoplexia, quando leu o jornal. Vamos pôr a cabeça para pensar. Veja a frota. Ancorada com toda proteção e segurança, como se estivesse no porto de Portsmouth. Diabo, o que suportaríamos, num dia como este, sem Hong Kong? Meu bom Deus! Eu estaria morto de medo, se estivesse fundeado em Macau. Hong Kong é necessária, e não se fala mais no assunto. Até aquele general idiota viu a luz uma vez na vida e concorda plenamente — e ele continuou a amaldiçoar Cunnington e Longstaff, para divertimento de Struan.
A porta se abriu e uma rajada de vento e chuva agitou os mapas. Culum e Tess entraram, muito animados, apesar do tempo.
— Olá, Tai-Pan — disse Culum. — Será que podemos tomar um pouco de chá, Glessing, meu velho? Rezamos por você!
— Obrigado. — Glessing fez sinal para o vaso de ferro no fogareiro. — Sirvam-se. Tess fez uma mesura para Struan e tirou seu casaco encharcado.
— Bom-dia, Tai-Pan.
— Está linda hoje, Sra. Struan — disse ele.
Ela corou e serviu o chá mais apressadamente.
— Vocês dois parecem muito felizes — disse Struan.
— Sim, estamos — disse Culum. — Agradecemos a Deus. E pedimos para o vento mudar.
— Não quer mudar de idéia, rapaz? E ir para a residência?
— Não, obrigado. Estamos completamente seguros, aqui.Struan notou uma pequena caixa de prata, cravejada de pedras preciosas, pendente da corrente de relógio de Culum.
— O que é isso, Culum?
— Um presente. Foi Tess quem me deu.
A caixinha continha agora os vinte soberanos de ouro de Brock, e Culum sentia-se culpado por nunca ter contado a Tess seu significado. Colocara-os na caixa depois que ele e Tess desembarcaram do White Witch pela última vez: para lembrá-lo de Tyler Brock, de que Brock não fora justo, não lhe dera a oportunidade de falar.
— Foi de minha avó. Não é um grande presente de casamento — disse Tess a Struan. — Mas, sem dote nenhum, temos de nos conformar.
— Não se preocupe com isso, garota. Você faz parte da Casa Nobre. Quando irão para a casa de vocês!
— Dentro de três semanas — Culum e Tess disseram, juntos, e riram, outra vez felizes.
— Ótimo. Faremos uma comemoração. Bom, até mais tarde.
— Olhe para aquele idiota, Tai-Pan! — disse Glessing. Ele estava focalizando seu telescópio, através de uma portinhola, numa lorcha que entrava no canal norte, com as velas rizadas.
— Que diabo estará fazendo? Não é dia para sair — disse Struan.
— Com sua permissão, Sr. Struan, farei sinal para que ancore em seu desembarcadouro no Vale Feliz. Terá problemas para ancorar nas Estradas. E seu desembarcadouro está desimpedido.
— Sim, com prazer. Que navio é aquele?
— É uma lorcha da Marinha, Com a flâmula de vice-capitão superintendente. — Ele fechou o telescópio. — Seu capitão precisa fazer um exame de sanidade mental, imagine partir de Macau com um tempo desses. Ou então o Sr. Monsey está com uma pressa diabólica. Qual a sua opinião?
Struan sorriu.
— Não sou nenhuma bola de cristal, Capitão Glessing.
Glessing deu as necessárias ordens a um marinheiro, que prontamente amarrou as bandeiras de código na adriça. Abriu a escotilha do teto. A chuva respingou-os, enquanto as bandeiras eram levadas para cima.
— Onde está Longstaff? — perguntou Struan.
— A bordo da nau capitania — disse Glessing. — Devo confessar que estaria mais feliz se me encontrasse também a bordo.
— Eu, não — disse Culum.
— Ah, meu Deus, não! — Tess acrescentou.
Struan acabou de tomar seu chá.
— Bom, estou de partida. Sabem onde me encontro, para o caso de precisarem de mim.
— Não será perigoso, Tai-Pan? — perguntou Tess. — Ficar ali, com a febre do Vale Feliz, e tudo mais.
— O vento e a chuva afastarão quaisquer gases venenosos — disse Struan, com uma confiança que não sentia.
— Não esqueça, Tess, sobrou alguma cinchona, e logo teremos uma porção — disse Culum. — Tai-Pan, acho que o novo empreendimento é maravilhoso. Um serviço prestado a toda humanidade.
Struan contara a Culum a respeito de seu acerto com Cooper, antes da notícia ser publicada. Também encorajara Culum a procurar mais o americano; quanto mais pensava numa ligação de Cooper e Culum, mais gostava da idéia.
— Jeff é muito inteligente, rapaz. Você vai gostar de trabalhar com ele. — Vestiu a capa de chuva. — Bom, vou embora. Escutem, vocês dois. Não se preocupem com Brock. Não se preocupe com seu pai, menina. Tenho certeza de que mudará de idéia, se lhe derem tempo. Basta dar tempo a ele.
— Espero que sim — disse Tess. — Ah, espero que sim.
À saída, Struan parou junto do barômetro.
— Meu Jesus Cristo! Baixou para 29.5 polegadas!
Glessing olhou a hora, ansiosamente. Eram quase dez horas.
— Isto representa quase meia polegada em meia hora. — Fez uma anotação num gráfico de pressão e seguiu Struan, que correra para fora.
Um quarto do horizonte, a leste, estava negro, e não parecia haver divisão alguma entre mar e céu. O vento tornara-se mais forte, com muitas rajadas, ainda soprando diretamente do norte, e a chuva mais pesada.
— Lá está ele, sem dúvida — disse Struan, tenso. — Fechem tudo, se querem sobreviver. — Começou a correr a toda a velocidade pela Estrada da Rainha, em direção ao Vale Feliz.
— Para dentro! Culum, Tess! — ordenou Glessing. Bateu a porta e passou a tranca.
— De maneira alguma abram qualquer porta, até novas ordens. — Fechou todas as janelas e examinou os trincos, percebendo que Struan tinha razão. O vórtice ia passar diretamente sobre eles. — Fico muito satisfeito por você ter feito as pazes com seu pai, Culum. Agora, eu acho, é bom tomar algum desjejum — disse ele, acalmando-os. — Sra. Struan, quer tomar conta de tudo?
Struan corria o mais rápido que podia. Alguns cules chineses que trabalhavam em liteiras corriam para o Tai Ping Shan, e alguns poucos europeus extraviados procuravam abrigo, às pressas. Através da chuva, Struan via a lorcha da Marinha à sua frente, no porto, encaminhando-se velozmente para o Vale Feliz, com muitas rizes nas velas. O mar agitado estava de um opaco verde acinzentado. A linha escura de um pé-de-vento percorreu o porto com incrível velocidade; sua beirada apanhou a lorcha, rasgou-lhe a vela principal e fê-la adernar. Struan concentrou suas energias e foi envolvido pelo vento. Demorou apenas uns poucos segundos, mas ele sentiu o açoite cego da chuva e quase foi derrubado. Quando conseguiu abrir os olhos, fitou o mar. Surpreendentemente, a lorcha ainda flutuava, e seguia em frente com dificuldade, — restando-lhe uma mezena, com o convés lavado e os farrapos da vela principal arrastados atrás.
Mais uma vez, Struan começou a correr. Chegou a seu desembarcadouro, no Vale Feliz, exatamente a tempo de ver os vagalhões de brancas cristas apanharem a lorcha e atirarem-na contra a estacaria. Um marinheiro pulou da amurada, com a amarra dianteira, mas escorregou e caiu entre o cais e o navio. Suas mãos agarraram a beirada do cais, e ele gritou quando o navio bateu no desembarcadouro, cortando-o ao meio. Quando o mar puxou outra vez o navio, o marinheiro desaparecera.
Struan gritou para os assustados marinheiros no convés e correu em frente. Um dos marinheiros atirou-lhe a corda e ele amarrou-a depressa em torno de um pilar. Outro, com risco de vida, pulou e conseguiu pisar a salvo no cais, com a amarra da popa.
O mar subia, e a lorcha e as estacas do cais rangiam. Então, a lorcha foi afinal amarrada e os homens começaram a pular em terra.
— Vão para a feitoria!
Struan lhes fez sinal para segui-lo, e correu para a porta da frente. Abriu-a com um empurrão, enquanto o vento o impelia. A tripulação de oito homens entrou correndo, a rogar pragas e bendizer sua sorte.
Struan tirou suas roupas ensopadas e, depois, notou Horatio e Monsey.— Meu Deus, o que está fazendo aqui, Horatio? Olá, Sr. Monsey!
— Jamais pensei que veríamos terra outra vez — ofegou Monsey. Horatio encostou-se numa parede, com o peito arquejante e vomitou.
A porta se abriu e, num torvelinho de vento e chuva, o capitão — um jovem tenente— entrou zangado, sacudindo-se como um cão. Struan foi até lá e bateu a porta.
— Meu Deus do céu! — disse o homem, a Struan. — Viu o céu?
— Que diabo estavam fazendo no mar, num dia desses? Não tiveram bom senso suficiente para usar os olhos em Macau?
— Sim, por Deus! Mas recebi ordens de vir a Hong Kong, então vim para Hong Kong. Estamos nas mãos de um maníaco!
— Hein?
— Aquele maldito Capitão-Superintendente do Comércio, Sir Clyde Malfadado Whalen, por Deus! Aquele estúpido patife irlandês quase faz meu navio afundar com toda a tripulação. Eu disse a ele que o tempo estava ruim e ele só olhou para o céu e declarou: “Há tempo mais do que suficiente para chegar lá. Ordeno que parta!” Graças a Deus existe Hong Kong.
— Como está o mar, lá fora?
— Mais uma hora e jamais teríamos chegado. Vagas de vinte ou trinta pés. E aquele maldito vento! Não muda de rumo e não recua... é impossível! É um tufão, ou não? Como isso é possível?
— Porque a tempestade segue para leste daqui e estamos bem em seu caminho, rapaz!
— Ah, que Deus nos proteja!
— Fiquem à vontade. Vou pegar um pouco de chá e grogue para todos.
— Obrigado — disse o jovem. — Desculpe a explosão. Struan atravessou a sala, aproximando-se de Monsey e de Horatio.
— Consegue subir as escadas e ir para cima, Sr. Monsey?
— Sim. Obrigado, Tai-Pan. É muito gentil.
— Ajude-me com Horatio.
— Claro. Não sei o que deu no pobre rapaz. Está murmurando coisas sem nexo, desde que saímos de Macau. É muito esquisito.
— É medo — disse Struan.
Ajudaram Horatio a tirar o casaco encharcado. Seu rosto estava acinzentado e opaco, agora, e ele estava dominado pela náusea. Juntos, quase o carregaram pelas escadas acima e colocaram-no no sofá na ala oeste das instalações, parte que antes pertencia a Robb.
Struan aproximou-se do aparador e serviu doses de conhaque. Monsey pegou uma, com as mãos trêmulas, e esvaziou o cálice. Aceitou nova dose.
— Obrigado. Caminhou pelo corredor até o patamar e lá virou, tomando o corredor da ala leste. Sua suíte ocupava a extremidade sul deste pavimento.
May-may, Yin-hsi e Lim Din jogavam mah-jong numa pequena mesa, na vastidão da sala de estar. Havia lanternas acesas e as chamas dançavam alegremente.
— Olá, Tai-Pan — disse May-may. Ela pegou outra das pedras de bambu e marfim e atirou-a, com uma praga. — Ah, que dia terrível, Tai-Pan! — disse. — Meu pagode está horrível. Não ganhei um só jogo. Perdi quatrocentas, e estamos jogando há horas. Que horror, que horror, que horror! Mas estou satisfeita de ver você, não se preocupe.
A chuva castigava as persianas e o vento aumentava. — Maldito barulho! Pode me emprestar alguns taéis? Estou arruinada!
— Descontarei de sua mesada. Volte para seu jogo, garota. — Struan sorriu. — Temos companhia lá embaixo e por toda parte, então não saiam.
— Para que sair?
Ele voltou aos alojamentos de Robb.
Monsey parecia melhor. Tirara suas roupas ensopadas e se enrolara num cobertor. Horatio dormia, inquieto.
— Deus nos salvou desta vez, Tai-Pan — disse Monsey.
— Por que diabo partiram de Macau? Parece que procuravam mesmo problemas. Deviam ter visto o tempo.
— Negócios oficiais, Tai-Pan — zombou Monsey. — Sua Excelência Imperial Whalen chegou de fragata a noite passada. Ele me ordenou a vir a Hong Kong com um despacho oficial para o ex-plenipotenciário. Com este tempo, veja só! Como se um ou dois dias fossem fazer alguma diferença! Não tive coragem de lhe contar que a “grande notícia” já fora publicada no jornal.
— Como é ele?
— Eu diria que é bastante exasperante. Chegou a Macau cerca de meia-noite, numa fragata, sem se fazer anunciar. Dentro de quatro minutos, fui convocado para ir a bordo. Ele apresentou suas credenciais, deu-me para ler o despacho do Ministro de Relações Exteriores... palavra por palavra como estava na matéria de Skinner; como esses malditos jornalistas conseguem documentos secretos? E me ordenou para partir ao amanhecer, a fim de entregar imediatamente o despacho a Longstaff. Disse que chegaria imediatamente a Hong Kong, que Longstaff deveria partir na mesma hora. E que eu deveria procurar o almirante e o general e lhes dizer que tudo deveria estar pronto para uma imediata partida para o norte. — Monsey afundou numa cadeira. — Um irlandês. O que mais posso dizer?
— Por que ele não veio diretamente para cá?
— Não se pode ter dois plenipotenciários aqui, de uma só vez... é nitidamente contra os regulamentos, Sr. Struan. Existe uma coisa chamada protocolo, graças aos céus. Tenho de assumir imediatamente o cargo de Longstaff. Logo que ele sair do porto, devo informar o fato a Sua Excelência. Então, ele chegará.
Uma rajada de vento atingiu as persianas, fazendo-as estalejarem
— Maldito seja aquele homem. Quase me matou. As coisas vão ferver na Ásia, com ele no comando. A primeira coisa que disse, foi: “Aquele rochedo amaldiçoado pode afundar, que pouco estou ligando.” Puxa vida! Se não se importa, vou dormir um pouco. Não me sinto bem.
Horatio começou a gemer de novo e, depois, vomitou.
— Dê a ele um pouco mais de conhaque — disse Struan. — Há um quarto de dormir vizinho. Desceu para ver como ia a tripulação da lorcha. Eles já haviam encontrado provisões e bebida. Os que não estavam bebendo ou comendo, dormiam ou tentavam dormir.
O barômetro registrava 29.1, ainda caindo.
— Meu bom Deus, isto significa mais do que três décimos de polegada por hora —
disse o jovem tenente. Era alto e louro. — A propósito, Sr. Struan, sou o Tenente Vasserly-Smythe, R.N. Struan apertou. a mão que ele lhe estendia.
— Obrigado por nos dar abrigo.
Uma janela ao norte abriu-se com violência e a chuva e o vento jorraram para dentro do saguão. Três dos marinheiros bateram a janela e tornaram a fechar as persianas.
— Acho que vou dar uma olhada em meu navio — disse o tenente.
— É melhor vir por este caminho. — Struan conduziu-o por um corredor até uma janela lateral bem reforçada por persianas, e localizada num ponto protegido contra o vento norte. Abriu-a, com cuidado, e olhou para fora.
Viu que o China Cloud e o Resting Cloud estavam bem ancorados. A lorcha do tenente erguia-se e caía, com as ondas rangendo e se raspando contra a estacaria, e a leste não havia horizonte. Apenas escuridão. E a escuridão descia sobre eles.
— Seu navio nunca esteve tão seguro, Tenente.
— Sim. — O jovem deu uma última olhada assustada no céu, a leste, e trancou as persianas. — É o primeiro navio que eu comando. Só estou nessas águas há alguns meses. O que acontece quando vem um tufão?
— Os Ventos Supremos lançam-se contra nós.
— Que ventos são esses?
— Pés-de-vento. Rajadas. Algumas vezes são chamados os Ventos Diabólicos.
O primeiro dos Ventos Supremos varreu o porto uma hora mais tarde e pegou em cheio o Resting Cloud. Suas amarras se romperam e o navio ficou à deriva, sem proteção, em meio à escuridão. Mauss, numa das cabinas, ergueu os olhos de sua Bíblia e agradeceu a Deus por suas graças e por Hung Hsiu-ch’uan. A rajada fez o Resting Cloud adernar, e Mauss foi atirado contra a antepara, ficando inconsciente, enquanto o navio era arrastado para a praia, quase virando. Em seu caminho, estava o Boston Princess, da Cooper Tillman. Os dois navios colidiram, violentamente, e o gurupés do Resting Cloud arrancou parte das instalações superiores da outra embarcação, antes de se quebrar, e então a embarcação adernou, com a proa em direção à praia. A tempestade atirou-o na cidade flutuante das sampanas, afundando dezenas dos barquinhos, e a fez encalhar. Centenas de chineses afogaram-se, e os que ainda estavam a salvo, nas sampanas, agacharam-se sob seus frágeis abrigos de bambu. Mas o próximo Vento Supremo arrancou os abrigos, e muitas famílias foram engolfadas.
A bordo do Boston Princess, Jeff Cooper arrastou-se na cabina principal e ajudou Shevaun a se levantar. O vento aumentou de violência e castigou o navio, mas as amarras resistiram.
— Você está bem? — gritou Cooper por sobre o tumulto.
— Acho que sim. Ah, que Deus nos acuda!
— Fique aí!
Cooper abriu a porta da cabina e lutou para chegar ao convés, cercado por um pandemônio. Mas o vento e a chuva horizontal empurraram-no para baixo. Ele desceu três conveses e seguiu por um corredor que dava no porão. Espiou em torno, com uma lanterna. Onde o Resting Cloud batera, o madeirame estava esmagado e as soldaduras começavam a se desprender. Cooper voltou até onde se encontrava Shevaun.
— Está tudo bem — mentiu ele. — Basta que nossas amarras resistam.
Um Vento Supremo alcançou o Cabo Glessing e arrancou o pau da bandeira, atirando-o como um dardo no escritório do mestre do porto.
O pau da bandeira atravessou a parede de granito e decepou o braço de Glessing à altura do cotovelo. E continuou abrindo caminho até o outro lado do edifício, atirando Culum para um lado e fazendo caírem tijolos, destroços e carvões acesos sobre Tess, antes de, afinal, parar.
A chuva e o vento gemiam através das paredes quebradas e o vestido de Tess se incendiou. Culum ergueu-se com esforço e apagou o fogo, batendo-lhe com as mãos.
Quando acabou, ele segurou Tess em seus braços. Ela estava inconsciente. Tinha o rosto branco e o cabelo parcialmente chamuscado. Ele arrancou-lhe o vestido e examinoua cuidadosamente. Havia queimadura em suas costas.
Culum ouviu gritos. Virando-se, viu Glessing, com o sangue a jorrar do coto. E, do outro lado da sala, enxergou o braço decepado. Culum levantou-se, mas suas pernas não lhe obedeceram.
— Faça alguma coisa, Culum! — ele gritou, no meio do vento.
Os músculos, afinal, atenderam, e ele agarrou uma adriça do mastro da bandeira e atou um torniquete em torno do coto, fazendo parar a hemorragia. Tentou decidir o que deveria fazer em seguida e, então, lembrou-se do que seu pai fizera, quando Zergeyev fora atingido por um disparo.
— Limpe o ferimento — disse, alto. — É o que você precisa fazer. Depois, cauterize-o. Apanhou a chaleira. Havia ainda água dentro, de modo que ele se ajoelhou ao lado de Glessing e começou a molhar o coto.
— Resina, amigo velho — murmurou, com a agonia de Glessing a lhe cortar o coração.Tess gemeu, ao recuperar a consciência. Ergueu-se vacilante, com o vento agitando papéis, bandeiras e poeira, quase a cegá-la. Seus olhos se desanuviaram e ela gritou.
Culum virou-se, em pânico, e viu-a olhando para o braço decepado.
— Ajude-me! Procure as tenazes da lareira! — ele gritou, em meio ao ruído
provocado pela tempestade. Ela abanou a cabeça e recuou histericamente, muito enjoada.
— Pegue as malditas tenazes! — gritou Culum, com as mãos em fogo. — Mais tarde você fica enjoada!
Tess forçou-se a ficar ereta, chocada pela virulência na voz de Culum. Começou a procurar as tenazes.
— Pelo amor de Deus, apresse-se!
Ela as encontrou e, como se aquilo fosse um pesadelo, entregou-as a Culum. Culum pejou um carvão aceso com as tenazes e segurou-o de encontro ao coto.
Glessing gritou e desmaiou outra vez. O fedor de carne queimada era arrasador. Culum lutou contra sua náusea até o coto estar completamente cauterizado. Então, virou a cabeça e vomitou violentamente.
Brock ergueu os olhos do barômetro, com todo o navio vibrando e o madeirame gemendo.
— 28.2 polegada, Liza! Nunca esteve tão baixo! Liza agarrou Lillibet e tentou conter o seu medo.
— Fico imaginando onde estará Tess. Que Deus a proteja!
— Sim — disse Brock.
Então, houve um grito da madeira e todo navio adernou, mas corrigiu sua posição.
— Vou para o convés!
— Fique aqui! Pelo amor de Deus, não se arrisque — mas ela parou, porque ele já fora embora.
— Quando isso vai passar, mamãe? — soluçou Lillibet.
— Daqui a pouco, amor.
Brock enfiou a cabeça, cautelosamente, para fora do passadiço do tombadilho, a sotavento. Ergueu o pescoço para olhar os mastros. Estavam quebrados como raminhos. Houve um ruído monstruoso quando se partiu o mastro principal.
— Agüentem aí! — gritou Brock para baixo do passadiço. — Guarda da proa ao convés!
Um Vento Supremo irrompeu do norte e outra adriça se partiu, e mais outra, e o mastro principal caiu até quase sobre o convés e bateu na mezena e ambos os mastros, vergas e cordame tombaram sobre o convés, destruindo o passadiço do tombadilho. O White Witch adernou terrivelmente.
Brock abriu caminho em meio aos destroços e injuriou a tripulação petrificada.
— Para o convés, patifes! Lutem pelas suas vidas! Cortem os mastros quebrados, do contrário estaremos perdidos!
Exortou os homens no convés e, agarrando-se com uma das mãos, o vento a empurrá-lo e a chuva a cegá-lo, brandiu freneticamente um machado contra as adriças, lembrando-se do outro tufão, que lhe custara um olho, e rezando para conservar o outro e para que Tess estivesse salva e Liza e Lillibet não se afogassem.
Os andaimes da nova cidade há muito haviam sido arrancados, quando um dos Ventos Supremos varreu a praia, derrubando o que restava das tendas dos soldados e destruindo o cais. Arrasou as tavernas, bares e prostíbulos perto das docas e destroçou o estabelecimento da Sra. Fortheringill, pulverizando a pintura e sepultando Aristotle Quance no entulho. Depois, direto como uma flecha, ceifou casebres do Tai Ping Shan, liquidando centenas de famílias, e lançou restos dos destroços a uma milha de distância, no seio do Cume.
Nas profundezas da terra, nas encostas do Tai Ping Shan, Gordon Chen se abrigava no porão secreto que construíra e se congratulava por sua prudência. O porão era de pedra e muito forte e, embora ele soubesse que a casa acima desaparecera, alegremente lembrou a si mesmo de que todos os seus pertences de valor estavam salvos ali, e a casa poderia ser depressa substituída. Seus olhos percorreram fileiras de livros de contabilidade, arquivos de títulos de propriedade de terras, notas promissórias, débitos e hipotecas importantes, caixotes de barras de prata, caixas contendo jades, peças de caras sedas e barriletes do mais fino vinho. E em sua concubina. Flor Preciosa. Ela estava instalada confortavelmente, sob as mais ricas cobertas, na cama encostada a uma das paredes. Ele se serviu de outra xicrinha de chá e deitou-se a seu lado.
Você é um sujeito muito inteligente, disse a si mesmo.
O vento e a chuva castigavam o lado norte da feitoria de Struan no Vale Feliz e, de vez em quando, um dos Ventos Diabólicos a empurrava. Mas, apesar dos tremores ocasionais, e do barulho terrível, o prédio resistiu.
Struan acendeu um charuto. Detestava ficar assim dentro da casa, sem fazer nada.
— Você fuma demais — May-may gritou, em meia aos ruídos da tempestade.
— Fumar acalma os nervos,
— Hábito sujo. Fedorento.
Ele não disse nada, mas deu outra olhada no barômetro.
— Por que você não pára de olhar, a cada dez minutos?
— É para descobrir onde está a tempestade. Quando o barômetro parar de cair, o centro estará sobre nós. Então, subirá. Eu acho.
— Não estou muito satisfeita por nos encontrarmos aqui, Tai-Pan. Seria muito melhor em Macau.
— Não acho.
— O quê?
— Não acho!
— Ah! Temos de dormir aqui outra vez, esta noite? — ela perguntou, cansada de gritar. — Não quero que você, ou Yin-hsi e até mesmo aquela idiota da Ah Sam peguem a febre.
— Acho que estamos bastante seguros.
— O quê?
— Não há perigo!
Ele deu uma olhada em seu relógio. Duas e vinte. Mas, quando espiou através de uma fenda na persiana, não conseguiu ver nada. Só um vago movimento na escuridão e na chuva horizontal que batia nas vidraças. Ficou satisfeito por se encontrarem ao abrigo do vento. Aquele canto da residência era virado para leste, e a oeste, e ao sul, estava protegido da violência. E Struan sentia-se satisfeito por se encontrar em terra. Nenhum navio pode sobreviver a isto, pensou. Nenhum porto no mundo pode proteger por muito tempo as frotas de um ato assim de Deus. Aposto que Macau está sendo atingida. E não há proteção ali. Aposto que metade dos navios estão destruídos, bem como dez mil juncos e sampanas, ao longo de quinhentas milhas da costa. Sim. E o navio enviado ao Peru? Aposto que foi atingido e destruído, e o Padre Sebastião com ele.
— Vou dar uma olhada nos outros.
— Não demore, Tai-Pan.
Ele seguiu pelo corredor e examinou os trincos das persianas. Depois, atravessou o patamar e, distraidamente, endireitou uma pintura de Quance e entrou nos alojamentos de Robb.
Horatio estava sentado — meio à sombra — na cadeira de bambu na qual há muito tempo Sarah se sentara e, à frágil e bruxuleante luz das lanternas, Struan pensou, por um momento, que fosse Sarah.
— Olá, Horatio. Onde está Monsey?
Horatio olhou para Struan sem reconhecê-lo.
— Encontrei Ah Tat — disse ele, com voz fúnebre.
— Não consigo ouvir, rapaz. Você tem de gritar.
— Ah Tat. Sim, eu a encontrei.
— Hein?
Horatio começou a rir, terrivelmente, como se Struan não estivesse no aposento.
— Mary. teve um aborto. Ela é uma puta suja, para fedorentos pagãos, há anos.
— Tolice. Isso é tolice, rapaz. Não acredite -: disse Struan.
— Eu encontrei Ah Tat e lhe arranquei a verdade. Mary é uma puta diabólica dos chineses, e estava grávida de um mestiço. Mas Ah Tat deu-lhe veneno para matá-lo. — Outra vez, uma gargalhada. — Mas eu peguei Ah Tat e lhe bati até ela me dizer a verdade. Ela era a alcoviteira de Mary. Mary vendeu-se aos pagãos. — Seus olhos voltaram para o centro da lanterna. — Glessing jamais se casará com uma puta de chineses. Então, ela será minha outra vez. Toda minha. Eu a perdoarei, se ela rastejar e implorar.
— Horatio! Horatio!
— Ela será minha. Como quando éramos meninos. Ela será toda minha, outra vez. Eu a perdoarei.
Outra rajada diabólica atingiu o prédio, e mais outra, e uma terceira, e parecia que se encontravam no meio de dez mil sorvedouros terríveis, e Struan ouviu janelas e persianas quebrando-se. Correu pelo corredor, até sua suíte. May-may e Yin-hsi estavam assustadas, na cama, e Ah Sam gemia, petrificada. Struan correu até a cama e abraçou May-may. A violência infernal aumentava.
Abruptamente, a tempestade parou.
Fez-se silêncio.
A luz começou a se filtrar através das fendas nas persianas, aumentando de
intensidade com a passagem dos segundos.
— O que aconteceu? — perguntou May-may, com a voz soando irreal, no silêncio esmagador.
Struan depôs May-may na cama e se aproximou da janela. Espiou através de uma das fendas e, depois, abriu cautelosamente a janela e destrancou as persianas. Piscou, enquanto o ar quente e seco invadia o quarto.
Olhou incrédulo para o porto.
O China Cloud ainda estava em suas amarras. O White Witch perdera seus mastros e as pontas das adriças caíam sobre o casco. O Resting Cloud encontrava-se encalhado no Cabo Glessing e a lorcha ainda amarrada no cais da companhia. Viu uma fragata encalhada, adernada, bem acima da arrebentação. Mas o resto da frota e os navios transportadores de soldados e mercantes ainda estavam ancorados, intactos.
Acima, havia pequenas nuvens, céu azul e sol. Mas, no porto, o mar enlouquecera. Ondas piramidais elevavam-se da superfície e se chocavam umas com as outras, e ele viu
o China Cloud fazer água por sobre a amurada, dos dois lados, bem como pela proa e pela popa, ao mesmo tempo. Além, à distância, uma cortina rodopiante de nuvens gigantescas elevou-s& do mar e subiu até sessenta mil pés, dominando tudo.
E, em toda parte, com exceção do ruído das ondas entrechocando-se, havia aquele silêncio sobrenatural.
— Estamos no vórtice!
— O quê?
— O olho da tempestade. É isso. O centro!
May-may e Yin-hsi e Ah Sam aproximaram-se, correndo.
— A frota está salva, por tudo que é sagrado! — disse Struan, exultante. — Os navios estão salvos. Salvos. — Abruptamente, sua alegria desapareceu e ele bateu as persianas e janelas, trancando-as em seguida.
— Vamos — disse, com urgência, abrindo repentinamente a porta, e elas o acompanharam, espantadas. Ele correu pelo corredor, atravessou o patamar, foi até a ala oposta do prédio e abriu a porta da suíte mais ao norte.
As persianas estavam parcialmente quebradas e uma janela espatifara-se, lançando vidro por toda parte.
— Fiquem aqui — disse.
— O que há, Tai-Pan? A tempestade foi embora.
— Façam como eu digo. — Saiu correndo. May-may deu de ombros e se sentou numa cadeira quebrada.
— O que há com Papai? — perguntou Yin-hsi.
— Não sei. Realmente, eu não o entendo, algumas vezes. Graças a Deus o barulho parou. Que silêncio, não? Um silêncio tão grande que chega a incomodar. Yin-hsi foi até uma janela e abriu-a.
— Ah, vejam! — disse. — Não é lindo? Estou tão feliz por a tempestade ter passado. May-may e Ah Sam colocaram-se a seu lado.
Brock estava no convés, paralisado. Via vagas aproximando-se de todas as direções, mas ali, a sotavento da praia, as ondas eram pequenas. O sol estava quente e seco. A água fazia ruído. As nuvens de tempestade em torno eram como as paredes de uma grande catedral, com cinco milhas de largura. Mas as paredes se moviam. O quadrante leste se acercava.
— O que está acontecendo, amor? — perguntou Liza, chegando ao convés com Lillibet. — Ah, que beleza!
— É tão lindo — disse Lillibet.
— Estamos no olho da tempestade! No vórtice! — exclamou Brock. Os marinheiros que chegavam ao convés viraram-se e olharam para ele.
— Ah, veja — disse Lillibet. Apontou para a ilha. — Não é engraçado?
As árvores que pontilhavam a ilha estavam brancas, contra a terra marrom; seus ramos haviam sido despojados de todas as folhas. A nova Cidade da Rainha quase sumira e o Tai Ping Shan estava em ruínas. Pequenas figuras começavam a se mover sobre a praia.
— Vão para baixo — disse Brock, com a voz desafinada. Confusos, eles fizeram o que ele ordenara.
— Capitão Pennyworth!
— Sim, senhor?
— É melhor fazer as pazes com seu Criador — disse Brock. — Só ele sabe o que há do outro lado dessas nuvens diabólicas. Vão todos para baixo.
Ele pegou seu telescópio e focalizou-o na residência da Casa Nobre. Viu Struan em pé no meio de um grupo, diante da porta da frente. Havia algumas cabeças espiando para fora das janelas do terceiro andar.
Fechou o telescópio.
— É melhor entrar, Dirk — disse tranqüilamente. Colocou os remanescentes da portinhola do passadiço no lugar e cerrou-a como pôde, descendo em seguida.
— Acho bom rezarmos — disse ele, alegremente.
— Ah, que bom — disse Lillibet. — Posso começar? Como na hora de dormir?
Culum tinha o braço passado sobre Tess.
— Se escaparmos vivos, maldito seja eu se ficar aqui — disse, ele. — Quero voltar para a Inglaterra e este lugar que se dane.
— Sim — disse Tess, horrorizada com a destruição. Ela olhou, com terror, para a cortina de nuvens que se aproximava, aos poucos. Engoliu a península de Kowloon. — É melhor entrarmos — disse.
Culum fechou a porta e sentiu uma dor terrível nas mãos queimadas. Mas fechou o trinco. Ela abriu caminho entre os destroços e se ajoelhou ao lado de Glessing. O rosto dele estava cadavérico, mas seu coração batia.
— Pobre George.
Struan media a distância do cais até o China Cloud e até as nuvens, que se encontravam mais a leste. Sabia que não havia tempo para tomar um escaler, então correu até a extremidade do cais e pôs as mãos em concha.
— Orlov! — rugiu. — Ó de bordo, China Cloud — sua voz ecoava estranhamente sobre o porto do Vale Feliz, e ele viu Orlov acenar-lhe, e ouviu-o responder fracamente:
— Sim?
— Vire o navio para o sul! Os ventos virão do sul, agora! Embique para o sul!
— Sim — ouviu Orlov responder e, dentro de um momento, viu marinheiros correndo, um escaler foi baixado e os homens começaram a empurrar febrilmente, virando o casco.
Struan voltou correndo para junto do grupo de homens na porta da frente.
— Entrem!
Alguns deles se moveram, mas o jovem tenente ainda olhava para sua lorcha no porto, sem acreditar.
— Deus do céu, ainda está inteira! E olhem para a frota, olhem para os navios! Pensei que já tivessem sido todos destruídos, a esta altura, mas só uma fragata está virada, e aquele clíper perdeu os mastros. Incrível, por Deus! Sul, o senhor disse? Por quê?
— Vamos — disse Struan, puxando-lhe o braço. — Entre... e leve seus homens para dentro.
— O que há?
— Pelo amor de Deus, sairemos do vórtice dentro de alguns minutos. E então haverá uma reversão dos ventos... acho que mudarão de direção e vão soprar do sul. Leve seus homens...
Foi quase derrubado, quando Horatio passou correndo e se dirigiu à Estrada da Rainha, em direção ao cais.
— Volte, seu louco, você será morto! — gritou Struan, mas Horatio não prestou a menor atenção. Struan saiu correndo atrás dele.
— Horatio! Que diabo há com você? — disse, alcançando-o e agarrando-lhe o ombro.
— Preciso dizer a Glessing. Acabar com essa loucura de casamento — gritou Horatio. — Afaste-se de mim... assassino! Você e sua suja puta assassina! Quero ver ambos na forca! — Ele se soltou, e saiu correndo.
Struan tornou a correr atrás dele, mas a chuva começou a cair e ele parou. A muralha de nuvens já estava quase na metade do porto, e o mar fervia à sua chegada. Viu a tripulação do escaler marinhar para bordo do China Cloud e desaparecer sob o convés. Orlov acenou pela última vez, depois também sumiu.
Struan virou-se e correu para o abrigo da residência. Uma rajada envolveu-o e ele redobrou seus esforços. Chegou ao umbral em meio ao aguaceiro e olhou para trás.
Horatio saía correndo do Vale Feliz, pela praia. A muralha de nuvens cobriu o cais e Horatio começou a desaparecer no meio do nevoeiro. Struan viu-o parar e erguer os olhos, e depois a pequena figura foi arrastada como uma folha.
Struan abriu violentamente a porta e a empurrou, em seguida, para fechá-la mas, antes de poder passar a tranca, baixou a escuridão e um Vento Supremo irrompeu, lançando-o lá para dentro do saguão. Fez explodirem todas as janelas do térreo e matou três marinheiros. Então, parou.
Struan levantou-se, espantado por ainda estar vivo. Correu para a porta e, com toda sua imensa força, fechou-a. O sorvedouro passava pelas janelas, sugando destroços, papéis e lanternas da residência — tudo que não estivesse preso por pregos.
Ao correr para as escadas, Struan deu com o corpo esmagado do jovem tenente. Parou, mas outra rajada empurrou-o e arrastou o cadáver, enquanto Struan lutava para escapar à sucção e subir as escadas, pondo-se a salvo.
Quando os ventos sopraram do sul, o White Witch sacudiu-se, bêbado. Adernou até quase virar, inclinou-se sobre as amarras dianteiras mas, por um milagre, endireitou-se outra vez e, tremendo, apontou para o vento. Brock pegou Lillibet e Liza e colocou-as de volta no beliche. Gritou-lhes frases de encorajamento, mas ela não ouviram, e todos eles procuraram, desesperadamente, manter-se vivos.
A água descia pelo passadiço e começou a bater na porta fechada da cabina, insinuando-se por baixo dela. Um Vento Diabólico atingiu o navio. Houve um barulho imenso e a embarcação estremeceu, e Brock percebeu que uma das amarras se partira.
A bordo do Boston Princess, Shevaun mantinha as mãos contra os ouvidos, tentando não escutar o grito dos ventos que assaltavam o navio. Cooper sentiu que a última amarra se partia. Gritou a Shevaun para resistir, mas ela não o escutou. Ele cambaleou até o local onde ela se encontrava e segurou-a de encontro a um balaústre, com todas as forças que lhe restavam.
O navio deu uma guinada. A amurada a bombordo oscilou e começou a fazer mais água, causando o afundamento da embarcação. A tempestade tomou conta da nave e atirou-a contra o navio russo.
Na cabina principal do grande bergantim, um armário com portas de vidro quebrouse, espalhando garrafas, cristal e instrumentos de cutelaria, e Zergeyev segurou-se, praguejou e rezou uma oração. Quando o navio tornou a se equilibrar, com o nariz em direção ao vento, ele chutou os destroços de debaixo dos pés, rezou outra vez e se serviu de mais um conhaque.
Maldita seja a Ásia, pensou. Queria estar em meu país. Maldita seja esta tempestade do demônio. Malditos sejam os ingleses. Maldita seja esta suja ilha. Maldito seja tudo. Maldito o Príncipe Tergin, por me mandar para cá. Maldito o Alasca — e a emigração. E as Américas, e os americanos. Mas bendita Shevaun.
Sim, disse a si mesmo, enquanto o navio rodopiava outra vez e gemia, sob a violência da tempestade. E bendita a Mãe Rússia, por sua santidade e seu lugar na História. O plano do príncipe Tergin é maravilhoso e correto, claro que é, e eu ajudarei na sua execução. Sim. Maldita aquela bala e maldita dor. Não cavalgarei mais pelas planícies infinitas. Acabou. Agora sou forçado a esquecer os esportes. Encare a si mesmo, Alexi! A bala foi sorte — qual é a palavra que usa o Tai-Pan? — ah, sim, pagode. A bala foi pagode. Bom pagode. Agora, posso concentrar todas as minhas energias a serviço da Rússia.
O que fazer? Partir de Hong Kong, agora. Acabou. O estúpido Lord Cunnington estrangulou a Grã-Bretanha e nos deu a chave para a Ásia. Ótimo. Faça um acordo comercial com o Tai-Pan ou com Brock e, depois, vá embora logo que possível e prossiga até o Alasca. Faça acertos referentes às tribos. Depois, retorne para seu país. Não, melhor ainda — vá a Washington. Olhe e ouça e pense, e faça o que nasceu para fazer — sirva a Mãe Rússia até os confins da terra. A terra dela.
Zergeyev sentiu a dor no quadril e, pela primeira vez, gostou dela. Muito bom pagode, pensou. Então, está decidido. Partiremos, se sobrevivermos.
Mas, e Shevaun? Ah, eis uma moça sobre a qual vale a pena pensar, pela cruz! Valiosa politicamente, hein? E fisicamente. Mas não é suficientemente boa para um casamento, mesmo sendo seu pai um senador. Ou talvez seja. Talvez fosse uma medida muito aconselhável. Considere isso, Alexi. Vamos precisar de líderes para a América russa. O continente será dividido em principados. O casamento entre nacionalidades sempre foi uma forma de conquista, hein? Talvez você deva apressar esse dia.
Por São Pedro, gostaria que ela fosse minha amante. Como poderia conseguir isso? Será que ela aceitaria? Por que não? Louco idiota, o Cooper. É muito aborrecido que esteja prometida. Pena. Ela disse que não o amava.
O tufão estava no auge, mas o anel de montanhas ainda desviava a maior parte de sua violência do porto.
O Boston Princess debatia-se no meio do porto, com uma das amuradas sob o mar, fazendo água, pesadamente. Cooper sabia que o fim estava próximo, e segurava Shevaun, gritando que tudo acabaria bem.
O navio afundou mais e seguiu velozmente em direção a Kowloon. Depois encalhou. Os rochedos perfuraram-lhe o casco e as ondas lamberam-lhe os porões, e então um Vento Supremo ergueu-o acima do torvelinho e atirou-o de lado, por sobre a linha da arrebentação.
Agora que o vento soprava do sul, passava por sobre a cordilheira de montanhas e seguia em direção ao continente. E, no funil que formava o Vale Feliz, ele aumentava sua força incrível. Abateu-se sobre a Casa Nobre, procurando seu ponto fraco.
Struan embalava May-may em seus braços, na suíte relativamente protegida, do lado norte. Uma lanterna bruxuleava nervosamente, lançando sombras bizarras e dançantes. Além das janelas espatifadas, a sotavento das rajadas carregadas de chuva, só havia escuridão. Ah Sam estava ajoelhada no chão e Yin-hsi aninhava-se perto de Struan, procurando abrigo.
May-may virou-se e colocou os lábios perto da orelha de Struan, gritando: — Tai-Pan, estou muito infeliz com esse barulho todo.
Ele riu, segurou-a com mais força e ela colocou os braços em torno de seu pescoço. Sabia que nada os atingiria agora. O pior passara.
— Dentro de mais três, ou quatro horas, passará, garota.
— Tempestade horrível. Eu não lhe disse que era um dragão? Um dragão marinho?
— Sim.
— Pelo sangue de Cristo!
— O que há?— Esqueci de tomar a última xícara do nojento chá de cinchona. Hoje é o último dia, lembra-se?
— Você vai tomar, dentro de algumas horas.
— Sim, Marido! — May-may sentia-se muito feliz e saudável. Brincava com o cabelo comprido na nuca de Struan. — Espero que as crianças estejam bem.
— Sim. Não se preocupe. Chen Sheng cuidará deles.
— Quando iremos embora, hein? Estou com uma pressa incrível de me casar.
— Daqui a três meses. Seguramente, antes do Natal.
— Acho que você deve tomar outra esposa bárbara como Terceira Irmã.
Ele riu.
— É muito importante ter muitos filhos. Não ria, por Deus!
— Talvez você tenha tido um bom pensamento, garota — ele disse. — Talvez eu deva ter três bárbaras. Depois, virão você e Yin-hsi. Acho terrivelmente importante arranjarmos outra irmã chinesa, antes de partirmos.
— Ora! Se sua atividade com a Segunda Irmã até agora continuar assim, arranjaremos amantes, por Deus! — Depois ela beijou-lhe a orelha e gritou: — Estou muito satisfeita com meu pagode por me trazer você, Tai-Pan!
Um tiroteio dos Ventos Supremos quebrou as janelas do lado sul e todo prédio se mexeu como se houvesse um terremoto. Os pregos do telhado rangeram diante do puxão incômodo e, depois, uma rajada diabólica arrancou o telhado e atirou-o no mar.
Struan sentiu Yin-hsi ser arrastada para cima, pelo sorvedouro. Tentou agarrá-la, mas ela já desaparecera. Struan e May-may abraçaram-se, apertadamente.
— Não desista, Tai-Tai!
— Nunca! Eu o amo, Marido!
E os Ventos Supremos abateram-se sobre eles.
O sol se ergueu bravamente e espalhou calor sobre a cidade destroçada e o porto seguro.
Culum encontrou o pai no torvelinho da residência. Struan estava esmagado num canto da suíte norte e, em seu braços, havia uma pequena e magra moça chinesa. Culum ficou imaginando como o pai poderia tê-la amado, pois, para ele, não era bonita.
A morte não os enfeara. Seus rostos estavam calmos, como se dormissem.
Culum saiu do quarto e desceu a escadaria quebrada, sendo envolvido, lá fora, pela suave brisa do leste.
Tess estava à espera. E quando viu que ele abanava desamparadamente a cabeça, seus olhos também se encheram de lágrimas e ela segurou-lhe a mão. Saíram do Vale Feliz pela Estrada da Rainha, sem nada ver.
A nova cidade encontrava-se em ruínas, com destroços espalhados por toda parte. Mas, aqui e acolá, havia prédios ainda de pé, alguns meras cascas, outros só ligeiramente danificados. A praia estava cheia de gente que corria de um lado para outro, ou permanecia em pé, em grupos, observando os destroços de suas residências ou casas de negócios. Muitos supervisionavam equipes de cules, resgatando seus pertences enlameados ou fazendo consertos. Cules com liteiras exerciam sua atividade. Os mendigos também. Patrulhas de soldados haviam sido colocadas em pontos estratégicos para impedir o inevitável saque. Mas, estranhamente, havia pouquíssimos saqueadores.
Sampanas e juncos pescavam no calmo porto, entre os pedaços flutuantes de navios quebrados. Outros chegavam trazendo novos povoadores. E o cortejo de chineses da praia até o Tai Ping Shan começara outra vez.
Havia fumaça por sobre a encosta. Alguns incêndios ardiam entre os destroços dos casebres. Mas, além da fumaça, havia a movimentação do trabalho. Restaurantes, casas de chá e de venda de alimentos e vendedores ambulantes faziam negócios outra vez, enquanto os moradores — martelando, costurando, cavando, conversando — consertavam suas casas ou começavam a reconstruir, abençoando seu pagode por estarem vivos.
— Olhe, Culum, amor — disse Tess. Estavam perto do cais. Culum se achava obtuso, com o cérebro mal funcionando.
Ele olhou para onde ela apontava. Numa encosta, seu lar quase concluído estava sem teto e deslocado dos alicerces.
— Ah, meu Deus — ela disse. — O que vamos fazer? Ele não respondeu. O medo dela aumentou, ao sentir o pânico dele.
— Vamos, amor. Iremos... iremos para o hotel e depois... depois para bordo do White Witch. Vamos, amor.
Skinner aproximou-se, correndo. Seu rosto estava manchado, as roupas rasgadas e sujas.
— Com licença, Sr. Culum. Onde está o Tai-Pan?
— O quê?
— O Tai-Pan. Sabe onde ele está? Preciso vê-lo, imediatamente.
Culum não respondeu, então Tess disse:
— Ele... ele está morto.
— Hein?
— Ele está morto, Sr. Skinner. Eu... meu Culum o viu. Ele está morto. Na feitoria.
— Ah, meu Deus, não! — disse Skinner, com voz rouca. Que mau pagode! Ele murmurou condolências e voltou para sua impressora e a máquina destroçada.
— Você é dono de jornal! — ele gritou. — De quê? Não tem impressora e nem dinheiro para comprar outra, e agora o Tai-Pan está morto, de modo que não pode pedir emprestado a ele, então nada tem e está liquidado! Liquidado! Que diabo você vai fazer?
— Chutou os destroços, sem ligar para os cules que estavam a um lado, esperando pacientemente. — Por que diabo ele tinha de morrer numa ocasião dessas? Arengou por alguns minutos e depois sentou-se num banquinho.
— O que vai fazer? Recomponha-se. Pense!
Bom, disse a si mesmo, a primeira coisa é tirar o jornal. Edição especial. Como? Impresso manualmente.
— Sim, impresso manualmente — repetiu, em voz alta. — Você tem a mão-de-obra e pode fazer isso. E então?
Notou os cules a observá-lo. Então fique com a boca calada, advertiu a si mesmo. Tire o jornal e então vá procurar aquele jovem idiota desamparado, Culum, e faça-o empregar dinheiro numa nova impressora. Você pode dobrá-lo facilmente. Sim. E fique com a boca calada.
Chegou Blore. Seu rosto estava sem vida.
— Bom-dia — disse. — Que maldita confusão! As arquibancadas sumiram, e o padoque. Tudo. Perdemos quatro cavalos... o capão também, maldição!
— O Tai-Pan está morto.
— Ah, meu Deus! — Blore recostou-se contra a porta quebrada. — Isso acaba com tudo. Ah, bom, pensei mesmo que era bom demais para poder durar.
— Hein?
— Hong Kong... o Jóquei Clube... tudo. Isto é o fim. Pense bem. A Colônia é um desastre. Esse novo patife, o Whalen, vai dar uma olhada e morrer de rir. Não há esperança agora, sem o Tai-Pan. Diabo, eu gostava dele.— Foi ele quem mandou você me procurar, não? Para me entregar o despacho?
— Não — disse Blore. O Tai-Pan fizera-o jurar segredo. Um segredo era um segredo. — Pobre sujeito. De certa maneira, estou satisfeito por ele não ter vivido para ver o fim da Colônia.
Skinner tomou-o pelo braço e apontou para o porto.
— O que há ali?
— Hein? O porto, por Deus!
— Esse é que é o problema das pessoas. Não usam as cabeças e nem os olhos. A frota está salva... todos os navios mercantes! Perdemos uma fragata, que encalhou, mas será consertada e voltará para o mar dentro de uma semana. O mesmo aconteceu com o Resting Cloud. O Boston Princess afundou em Kowloon. Mas foi tudo. Não entende? O pior tufão da história submeteu Hong Kong ao teste... e ela passou com todas as bandeiras drapejando, por Deus! O tufão foi um grande pagode. Acha que o almirante não vai entender? Pensa que até aquele imbecil do Cunnington ignora que todo nosso poder está na frota... pense o que pensar aquele general debilóide? Poder marítimo, por Deus!
— Santo Cristo, pensa mesmo assim?
Skinner já voltara para dentro e estava tirando o lixo de seu caminho. Sentou-se, pegou uma pena, tinta e papel e começou a rabiscar.
— Se eu fosse você, começaria a fazer planos para as novas arquibancadas. Quer que eu publique que vai cumprir o programa estabelecido?
— Sim. Ótimo! Sim. — Blore pensou um momento. — Vamos começar um costume... teremos uma corrida especial. O maior prêmio do ano... a maior corrida da temporada. Vamos chamá-la o Grande Prêmio Tai-Pan.
— Ótimo. Esta noite, você lerá a respeito disso no jornal. Blore espiou Skinner escrevendo.
— Está fazendo o obituário dele?
Skinner abriu uma gaveta e empurrou um maço de papel em direção a ele.
— Já o escrevera há alguns dias. Leia. Depois você pode ajudar-me com a impressão manual.
Culum e Tess ainda estavam em pé onde Skinner os deixara.
— Vamos, amor — disse Tess, puxando-lhe o braço, angustiada.
Com um esforço Culum concentrou-se.— Por que você não vai para bordo do White Witch? Tenho... tenho certeza de que estão ansiosos para saber se você está salva. Irei para bordo mais tarde. Deixe-me só um pouquinho, está bem, querida? Preciso... bom, só quero ficar um pouco sozinho.
— Ah, Culum, o que vamos fazer?
— Não sei. Não sei.
Viu que ela erguia os olhos para ele e depois partia. Ele continuou caminhando em direção ao Cabo Glessing, sem ouvir e sem ver, o tempo parando, para ele. Ah, Deus do céu, o que farei?
— Sr. Struan?
Culum sentiu que alguém lhe puxava o braço e saiu de seu estupor. Notou que o sol estava alto no céu e ele estava encostado no pau da bandeira partida do Cabo Glessing. O mestre-d’armas olhava-o.
— Receba os cumprimentos de Sua Excelência, Sr. Struan. Quer fazer o favor de subir a bordo?
— Sim, sim, naturalmente — disse Culum, sentindo-se vazio e embrutecido.
Permitiu que o mestre-d’armas o guiasse até o escaler à espera. Subiu o passadiço da nau capitania e, depois, desceu.
— Meu querido Culum — disse Longstaff — que notícia terrível. Terrível. Quer Porto?
— Não. Não, obrigado, Excelência.
— Sente-se. Sim, terrível. Chocante. Logo que ouvi a notícia, mandei buscá-lo para lhe apresentar minhas condolências.
— Obrigado.
— Vou partir com a maré, amanhã. O novo plenipotenciário mandou notícia por Monsey de que está em Macau. — Maldito Whalen, por que diabo não esperou? Maldito tufão! Maldito Dirk! Maldito tudo! — Já conhece Monsey, não?
— Não... não senhor.
— Não importa. Puxa vida, que coisa triste. Monsey estava na residência e não sofreu um só arranhão. Sim, terrível. Tudo é uma questão de pagode. — Aspirou rapé e espirrou. — Ouviu dizer que Horatio foi morto também?
— Não... não, senhor. A última vez... pensei que ele estava em Macau.
Idiota, por que tinha de morrer? Complica tudo.
— Ah, a propósito, seu pai tinha uns documentos para mim. Eu precisava deles, antes de partir.
Culum revistou sua memória. O esforço esgotou-o ainda mais.— Ele não falou a respeito comigo, Excelência. Nada sei a respeito deles.
— Bom, tenho certeza de que os guardo em lugar seguro — disse Longstaff, encantado por ver que Culum não sabia de nada. — Um cofre, Culum, é lá onde devem estar. Onde fica seu cofre particular?
— Eu... eu não sei, senhor. Perguntarei a Vargas.
— Vamos, Culum, recomponha-se. A vida continua. Os mortos devem enterrar os seus mortos, e tudo mais. Não deve desistir, não é? Onde fica o cofre dele? Pense! Na residência? A bordo do Resting Cloud?
— Não sei.
— Então sugiro que verifique, e muito depressa. — A voz de Longstaff se tornou mais aguda. — É um assunto da máxima importância. E não fale com ninguém. Sabe qual o castigo por traição?
— Sim... sim, claro — respondeu Culum, assustado com Longstaff.
— Ótimo. E não esqueça que você ainda é vice-secretário colonial e se encontra sob solene juramento à Coroa. Coloquei os documentos nas mãos de seu pai para que os guardasse em segurança. Documentos diplomáticos altamente secretos referentes a uma “potência amiga”. Mapas, documentos em russo com traduções inglesas. Encontre tudo. Volte a bordo quando tiver o material. Volte a bordo ao entardecer, de qualquer maneira. Se não puder cumprir a tarefa, eu a farei por mim mesmo. Ah, sim, e vou confiar a você algumas sementes. Chegarão dentro de alguns dias. Você vai reencaminhá-las para mim e tratará o assunto com igual sigilo. Ordenança! — gritou. A porta se abriu imediatamente.
— Sim, senhor!
— Acompanhe o Sr. Culum à terra!
Culum voltou para a chalupa em pânico. Ele foi às pressas até o Resting Cloud. Estava no meio da cidade nas sampanas, quase na vertical. Soldados haviam sido colocados nas imediações, como proteção contra saqueadores. Escalou o barco e dirigiuse à cabina.
Lim Din montava guarda, com uma machadinha, em frente aos alojamentos de Struan.
— O Senhor está morto? — perguntou.
— Sim.
Lim Din ficou calado. E nem sua expressão mudou.
— Quando o Tai-Pan tinha papel... documento importante... onde guardava? — perguntou Culum.
— Hein?
— Documento... põe cofre. Tem cofre? Caixa segura?
Lim Din fez sinal para dentro e mostrou-lhe o cofre na antepara do quarto de Struan.
— Isto?
— E a chave?
— Chave não tem. Tai-Pan tem, pode ter certeza.
Onde ele guardaria a chave?, Culum perguntou a si mesmo, desesperado. Em suas roupas! Em suas roupas, claro! Vou ter de... Será que Vargas não terá uma duplicata? Ah, Deus do céu, ajude-me. Haverá... haverá um funeral; com esquife. Onde eu, e... e aquela moça, a moça chinesa? Será que pode ser enterrada com ele? Não, não seria direito. Será que ele tem filhos com ela? Ele não disse que tinha? Onde estarão eles? Nas ruínas? Pense, Culum! Acorde, pelo amor de Deus! E os navios? E dinheiro? Será que ele deixou um testamento? Esqueça isso, não tem importância agora... nada disso. Precisa achar os documentos secretos. O que Longstaff disse? Mapas e um documento russo?
Brock entrou sem ser notado na cabina. Viu o medo e o desamparo na fisionomia do jovem, e as manchas de sangue em suas mãos e no rosto.
— Bom-dia, rapaz — disse, gentilmente. — Vim, logo que soube. Sinto muito, rapaz, não se preocupe. Eu vou fazer tudo para você.
— Ah, obrigado, Sr. Brock — disse Culum, obviamente aliviado. — É apenas que eu... — Ele se sentou, fraco.
— Tess disse que, sem você, ela estaria morta, e Glessing também. Foi um mau pagode o que aconteceu com seu pai, mas não se preocupe. Fui à residência, rapaz, e tomei todas as providências adequadas. Ordenei a Orlov para colocar o Leão e o Dragão a meio-mastro e vou colocar em ordem o Resting Cloud sem demora. Você recupere o fôlego. Vou tomar conta de tudo.
— Ah, obrigado, Sr. Brock. Viu a chave? Eu preciso pegar... — Culum estava quase explicando a respeito dos documentos, mas lembrou-se do que Longstaff dissera a respeito de traição e se deteve em tempo. — Só pensei — ele disse, gaguejando
— Bom, acho que preciso dar uma olhada nos papéis dele.
— Não examinei os seus bolsos — disse Brock, com voz fria.
— Só o deitei ajeitado e coloquei a mulher em outro lugar, escondido. Ah, Dirk, disse a si mesmo, jamais vou esquecer como você estava, e a pagã. Juntos. Mas, por sua própria causa, e por causa das crianças, você será enterrado sozinho, como cristão.
— Fiz alguns acertos relativos a ela, com discrição.
— Sim, claro — disse Culum.
— Vamos fazer uma fusão, Culum. Brocks e Struans. Será o melhor para todos. A Casa Nobre será Brock-Struan. Vou ajeitar os papéis imediatamente para que tudo fique legalizado. — Sim, ele disse a si mesmo. Não vou esfregar esse pagode em sua cara, Dirk, mas eu sou o Tai-Pan, agora. Afinal. Culum será o seguinte, se for suficientemente bom, depois de Morgan e Tom. — Tudo está esquecido entre você, Tess e eu. rapaz. É melhor ir para bordo do White Witch. Tess precisa ser confortada.
— Sim. Está bem, Sr. Brock. Obrigado. Mas... bom, se não se incomoda, gostaria de... voltar à residência, primeiro.
— Vá para bordo ao anoitecer — Brock saiu.
Culum enxugou o rosto com as mãos. É melhor. Fazer uma fusão. Você sempre disse que faria. Recomponha-se, Culum. Vá pegar a chave!
— Senhor? — Lim Din fez-lhe sinal para segui-lo e levou-o a outra cabina. Mauss jazia no chão. Estava feio, morto. — Pagode. Não se preocupe — disse Lim Din, e riu, nervosamente.
Culum saiu às cegas do navio, com o coração doendo, e atravessou as vigias de pranchas da cidade das sampanas, até se aproximar do Cabo Glessing. Caminhou pela Estrada da Rainha, abrindo caminho entre destroços e pertences quebrados, murmurando incoerentes agradecimentos às muitas pessoas que dele se aproximavam oferecendo-lhe sua simpatia. Tinha apenas um pensamento, em sua mente despedaçada: você precisa examinar-lhe os bolsos.
— Culum!
Em sua perturbação, viu Cooper, com Shevaun a seu lado, num grupo de negociantes perto do hotel. Gostaria de prosseguir, mas eles se aproximaram.
— Acabamos de saber, Culum. Sinto muitíssimo — disse Cooper. — Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Foi um pagode terrível.
— Sim — disse Shevaun, com o rosto muito machucado e as roupas em frangalhos.
— Terrível. Acabamos de voltar de Kowloon. Acho simplesmente horrível, tão injusto.
— Eu... eu... bom... sinto muito, não posso falar agora. Preciso... preciso... Observaram-no afastar-se às pressas.— Pobre rapaz — disse Cooper.
— Ele parece louco de susto.
— Não é de estranhar. Depois do que aconteceu com o Tai-Pan e com Glessing.
— Ele vai ficar bom? Glessing?
— Não sei. Espero que sim. — Cooper olhou para o porto. Viu os destroços do Boston Princess e agradeceu a Deus outra vez por estarem salvos. — Se fosse ele, eu estaria da mesma maneira.
Aquele pobre rapaz vai precisar de toda ajuda que lhe puder ser oferecida, disse Cooper a si mesmo. Graças a Deus, o Tai-Pan viveu tempo suficiente para me dar os papéis. Eu fico imaginando se ele teve uma premonição. Não. Com certeza não. E Culum? O que vai fazer? Está desamparado como um bebê. Talvez eu devesse tomar conta dele — devo isto ao Tai-Pan, e mais ainda. Temos juntos, agora, o negócio da cinchona. Vamos cancelar os dois outros diretores, ficaremos só Culum e eu. Por que não juntar forças? Fundir totalmente as companhias? A nova Casa Nobre — Cooper-Struan. Não! Struan-Cooper. Você será justo com Culum. Ele será o próximo. Há gigantescas possibilidades numa fusão, claro. Mas será melhor agir depressa, senão Brock vai colocar
o rapaz a seus pés. Tai-Pan da Casa Nobre. O Tai-Pan. Por que não?
— Por que você está sorrindo? — perguntou Shevaun.
— Um pensamento que me ocorreu — ele disse, e deu-lhe o braço. Você foi muito inteligente, Dirk, meu amigo. Em ambas as jogadas. Sim. Vai me custar um ano para consolidar. — Estou tão satisfeito por termos sobrevivido. Vamos para o desembarcadouro. Precisamos ver se Zergeyev está bem. Escute, Shevaun, decidi mandar você para a América por um ano, no próximo navio.
— O quê? — disse Shevaun, e parou.
— Sim. No final desse período, se você decidir que me ama e quer casar comigo, serei o mais feliz dos homens. Não, não diga nada — Cooper acrescentou, quando ela começou a falar. — Deixe-me terminar. Se você decidir em contrário, então tem sua liberdade e minha bênção. De qualquer maneira, não comprarei os interesses de Tillman. Seu pai receberá, durante toda sua vida...
Shevaun virou-se e os dois começaram a caminhar outra vez, de braços dados, enquanto ele continuava a falar. Mas ela não estava escutando, agora. Um ano, exultava, escondendo sua alegria Livre por um ano. Livre deste maldito lugar! E papai ainda terá suas ações! Ah, Deus, Vós atendestes às minhas orações. Obrigada, obrigada, obrigada. Pobre Dirk, meu amor. Agora eu estou livre e agora você está morto.Olhou para o bergantim russo. Sim, pensou, o Tai-Pan está morto. Mas você está livre, e o arquiduque seria uma escolha perfeita.
— Desculpe, Jeff. O que você disse?
— Só que quero entregar alguns documentos particulares a seu pai.
— Claro, meu caro. E muito obrigada, muito obrigada. O ano passará depressa.
Gordon Chen curvou-se diante de Buda, no templo em ruínas, e acendeu um último bastão de incenso. Chorara por seu pai e por May-may.
Mas agora não é hora de chorar, disse a si mesmo. Pagode é pagode. Agora é hora de pensar.
A Casa Nobre está morta.
Culum não tem a força para levá-la adiante. Brock irá dominá-lo e fundirá as companhias. Não posso cuidar de Brock. Se Culum se unir a Brock, Culum estará liquidado. Então, de nenhuma das duas maneiras, ele poderá ajudar-me. Será que posso ajudá-lo? Sim. Mas não com os bárbaros, e não posso ajudá-lo a ser o Tai-Pan. Isto é uma coisa que só o próprio homem consegue para si mesmo.
A fumaça do incenso fazia delicados anéis no ar e ele a observava, satisfeito com seu perfume.
Só meu pai sabia do nosso acordo. Eu tenho o loque de prata e, no devido tempo, ele se transformará em cinqüenta, cem loques. Sou o chinês mais rico de Hong Kong. E o mais poderoso. O Tai-Pan dos chineses.
Tenho de ser honesto... não sou chinês, e nem inglês. Mas estou contente com meu pagode, e sou mais chinês do que inglês. Casarei com uma chinesa e também meus filhos e os filhos de meus filhos, podem ter certeza.
Hong Kong? Vou ajudar a ilha a se tornar mais forte. Detive os saqueadores, hoje. A força de trabalho será ampla e obediente, no futuro.
Acredito no que o meu pai disse: o governo britânico cairá. Tem de cair. Ah, deuses, peço que caia, para o futuro da China! Vocês são chineses... pensem na China. Vou financiar o maior templo do sul da China... bom, pelo menos, um templo adequado para a sede da Tríade e para o Tai Ping Shan: logo que o governo cair e Hong Kong for absolutamente britânica.
Ele se ajoelhou, tocou o chão com a cabeça, diante da estátua, para confirmar a barganha. Sim, só papai sabe como iríamos ficar ricos. Mesmo assim, metade será de Culum. Todos os meses, eu lhe prestarei contas e dividiremos tudo de maneira justa, enquanto ele cumprir a parte de papai na barganha: que eu controle tudo e me sejam feitas poucas, ou nenhuma, perguntas; e tudo em particular... só entre nós dois.
Vá procurá-lo, agora. Preste suas homenagens.
É uma pena que Culum tenha casado com a filha de Brock, Isto será sua derrocada. Pena que ele não tenha tido a força de prosseguir sozinho. Queria que eu e ele pudéssemos trocar de lugar. Eu mostraria aos bárbaros como dirigir a Casa Nobre. E ao imperador, diga-se de passagem. Se Culum tivesse pelo menos alguma força e estivesse preparado para ouvir conselhos, Chen Sheng e eu poderíamos manter acuados Brock e todos os outros chacais.
Bom, não tem importância. Darei a meu pai e a sua Tai-tai um funeral que se transformará em legenda por cem anos. Mandarei fazer para ele uma tabuleta, e outra para sua Tai-tai, e prantearei durante cem dias. Depois, queimarei as tabuletas, para que renasçam em paz.
Vou mandar buscar Duncan e o bebê e os criarei eu próprio. E iniciarei uma dinastia.
Quase anoitecia. Culum estava sentado nos degraus da igreja abandonada, no outeiro do Vale Feliz, com a cabeça apoiada nas mãos. Estava com os olhos perdidos na distância. Você precisa pegar a chave, dizia a si próprio, repetidas vezes. Não há nada a temer. Precisa pegar a chave e, depois, os documentos. Vamos, Culum.
Superara o pânico, agora. Mas estava consumido pelo desgosto consigo mesmo — e pela solidão. Olhava para a residência, lá embaixo. Vargas e Orlov estavam ainda em pé à porta. Lembrou-se vagamente de ter chegado ao vale, há horas, e vendo-os ali afastara-se, para evitá-los, e depois gritara: “Deixem-me sozinho”, quando vieram atrás dele. Notou que Gordon Chen estava com eles, agora. Gordon não se encontrava lá, antes, lembrou a si mesmo. O que ele quer? Zombar? Ter pena de mim, como os outros? Longstaff... Brock... Cooper... Shevaun... Skinner... Vargas... Orlov. Até mesmo Tess. Sim, eu vi isso no seu rosto quando paramos na Estrada da Rainha. Até o seu. E você tem razão. Está certa.
O que eu faço? O que posso fazer? Não sou meu pai. Eu disse a ele que não sou. Fui honesto com ele. Pegue a chave. Pegue a chave e pegue os papéis. Você precisa entregar os papes. Longstaff ordenou-lhe para ir a bordo. Já está quase na hora. Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!
Observou as sombras se alongarem.
Devo contar a Brock a respeito das moedas de Jin-qua? A respeito das restantes três metades de moedas, e dos três favores, e do juramento sagrado, e do Lótus Cloud. Eu preciso. Ah, Deus, e Wu Kwok? E os aprendizes de capitão chineses, e os meninos que estão sob a tutela de papai? Brock não cumpriria meu juramento, eu sei que não. Não me importo. Que diferença faz?
— Olá. — Ah, olá, Sr. Quance. — Culum olhou de soslaio, atoleimado, para as sombras. — Por favor, deixe-me sozinho. Por favor.
Todos os membros de Aristotle Quance doíam. Há apenas uma hora ele fora desenterrado dos escombros. Seu cabelo e o rosto estavam cheios de sangue coagulado e poeira, e tinha as roupas rasgadas.
— Sinto tanto — disse ele. — Foi o pagode. Só pagode.
— Detesto essa palavra. Por favor, por favor, deixe-me sozinho.
Quance viu o desamparo, a agonia e o ódio por si mesmo no rosto vagamente parecido com aquele que ele conhecia tão bem. Lembrou-se da primeira vez em que vira Struan. Numa viela obscura em Macau, caído, inconsciente, na sujeira. Tão desamparado, exatamente assim, disse a si mesmo. Não, não exatamente, jamais da mesma maneira. Dirk era como um deus, mesmo caído na lama. Ah, Dirk, você sempre teve o rosto de um deus e o poder de um deus — acordado ou dormindo. Sim, e até mesmo morto, sou capaz de apostar. Prestígio. Era o que você tinha.
Tão diferente de seu filho.
Sim, mas não tão diferente. Culum enfrentou-o, com relação ao outeiro. E ficou com você, contra Brock. E apertou a mão de Gordon Chen, diante de você. E fugiu com a moça, sem ligar para as conseqüências. E salvou a vida de Glessing. A centelha está aí.
Lembra-se do que você disse, quando recuperou a consciência? “Não sei quem são, mas obrigado por me devolverem o prestígio.”
Você nunca perdeu o seu, Dirk, meu amigo.
“Sim. Mas devolva a meu filho o dele.”
Não é o que você diria, se estivesse aqui? Estará aqui? Sinto falta de você, rapaz.Aristotle Quance esqueceu sua própria tristeza e se sentou no degrau, ao lado de Culum.
— Sei que não é hora de falar nisso, Tai-Pan, mas será que você poderia emprestarme quatrocentos e cinqüenta guinéus?
— O quê? O que você disse?
— Poderia emprestar-me quatrocentos e cinqüenta guinéus, Tai-Pan? Sei que é um momento terrível, mas aquela velha feiticeira, a Fortheringill, está viva... nenhum tufão ousaria tocá-la, por Deus! E ameaça colocar-me na prisão por dívidas. Não tenho a quem recorrer, a não ser você.
— Você disse “Tai-Pan”. Você me chamou de “Tai-Pan”.
— E você não é?
Então, Culum lembrou-se do que seu pai dissera. A respeito da alegria e da dor de ser Tai-Pan; a respeito de ser homem; de se cuidar sozinho; a respeito da vida e seu combate.
Sua solidão desapareceu. Olhou para os três homens lá embaixo. Sua ansiedade voltou. Era bastante simples para Aristotle dizer “Tai-Pan”, pensou. Mas e eles? Precisa conquistar sua confiança, colocá-los de seu lado. Como? O que papai disse? “Os homens são governados com o cérebro e com magia.”
Levantou-se, todo trêmulo.
— Eu... eu tentarei. Por Deus, realmente tentarei. Jamais o esquecerei, Aristotle. Jamais.
Desceu o morro, com o estômago dando voltas. O mestre-d’armas aproximava-se, vindo do escaler, e eles se encontraram na porta da frente.
— Sua Excelência quer que vá a bordo imediatamente.
— Por favor, diga-lhe que o verei logo que possível — disse Culum, com uma calma que não sentia.
— Ele quer vê-lo agora.
— Estou ocupado. Diga-lhe que estou ocupado!
O homem corou, fez continência e saiu às pressas.
O que haverá nesses papéis, afinal?, Culum perguntou a si mesmo. Reuniu suas forças e encarou Orlov, Vargas e Gordon Chen.
— Brock deu ordens a bordo do meu navio — disse Orlov. Viu as manchas de sangue nas mãos e nas mangas de Culum e estremeceu. — Ordens para baixar a bandeira, por Odin! Eu teria feito isso, de qualquer maneira, logo que soubesse. Devo receber ordens dele, agora, hein?
— Brock irá destruir-nos, Sr. Culum. O que vamos fazer? — disse Vargas, torcendo as mãos.
— Vargas, vá fazer acertos para o funeral. Meu pai e sua senhora serão enterrados juntos.
— O quê?
— Sim. Juntos. Ela é cristã e será enterrada com ele. Gordon, espere por mim. Quero falar com você. Orlov, vá para bordo de seu navio e ice a bandeira. Depois, vá a bordo do White Witch e traga minha senhora para terra.
— Disse para trazê-la?
— Sim. Para cá. — Pegou os vinte soberanos. — Entregue essas moedas a Brock, com meus cumprimentos. Diga a ele que eu mandei dizer que são para comprar um caixão para si mesmo.
Os três homens olharam com estranheza para Culum. Depois, disseram:
— Sim, Tai-Pan. — E obedeceram.
James Clavell
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