A travessia começou desfavorablemente. Em primeiro lugar, chovia. Segundo, não gostava de deixar ao Claire, especialmente em circunstâncias tão difíceis. E em terceiro lugar, estava muito preocupado pelo John; não lhe tinha gostado de seu aspecto quando se despediu: semiconsciente e respirando com muita dificuldade com as facções irreconhecíveis pelas rodelas
E como último problema, o nono conde do Ellesmere lhe tinha pego na mandíbula. Tinha agarrado o pescoço do pequeno, sacudindo-o até lhe fazer chocar os dentes.
-Sei muito bem o que está dizendo. Mas eu digo que vem comigo, isso é tudo, já conhece a causa.
-Não vou! -repetia o moço-. Não pode me obrigar! -deu-se meia volta e se dirigiu para a cabana.
Jamie agarrou ao moço pelo pescoço lhe fazendo voltar.
-Deixa de dar patadas -ordenou-lhe Jamie-. É de muito má educação. E quanto ao de te obrigar, é obvio que posso.
O rosto do conde brilhava, e fechava e abria a boca como se fora um pescado. Lhe tinha cansado o chapéu e a chuva lhe obscurecia as mechas de cabelo.
—É um signo de lealdade que queira ficar com seu padrasto —continuou Jamie, secando-a cara-. Mas não pode lhe ajudar e corre o risco de te contagiar. Por isso virá -terminou Jamie, agarrando ao conde do braço e levando-o até um dos cavalos selados, onde teve a satisfação de ver como o moço colocava um pé no estribo e montava sobre ele.
-Caipira! -disse com voz enfurecida, enquanto tentava desmontar do cavalo.
-Não o tente -avisou ao moço; este se endireitou bruscamente e o olhou furioso-. Eu não gostaria de ter que te atar os pés aos estribos, mas o farei se for necessário.
Os olhos do moço se entrecerraron formando dois triângulos azuis, mas acatou as palavras do Jamie.
Cavalgaram quase toda a manhã em silêncio enquanto a chuva caía sobre suas cabeças e molhava a capa que cobria seus ombros. Willie era capaz de aceitar uma derrota; embora ainda estava mal-humorado quando desmontaram para comer, foi procurar água sem protestar e guardou os restos da comida enquanto Jamie se ocupava dos cavalos.
-Está muito longe?
A metade da tarde, a curiosidade do William pôde mais que sua obstinação.
-A uns dois dias.
Naqueles terrenos montanhosos, era mais rápido ir a cavalo que a pé. Mas não havia razão para se dar pressa e sim para tomá-las coisas com tranqüilidade. Claire lhe havia dito com firmeza que não devia trazer para o Willie antes de seis dias. Para então, John não representaria um perigo de contágio. Ou se estaria recuperando... ou teria morrido.
Claire tinha assegurado ao Willie que seu padrasto ia se curar, mas Jamie viu a preocupação em seus olhos, o que lhe provocou uma sensação de vazio no oco do estômago.
Não podia ajudar. As enfermidades sempre lhe deixavam uma sensação de impotência que lhe produzia medo e fúria de uma vez.
-Esses índios são pacíficos?
Pôde detectar o tom de dúvida na voz do Willie.
-Sim. -deu-se conta de que Willie esperava que acrescentasse “milord” e teve a perversa satisfação de não fazê-lo-. Conhecemo-los há mais de um ano e estivemos alojados em suas casas. Os habitantes da Anna Ooka são mais amáveis e hospitalares que muitas pessoas que conheci na Inglaterra.
-viveste na Inglaterra?
O moço lhe dirigiu um olhar surpreendido e Jaime se amaldiçoou por seu descuido, mas, felizmente, Willie estava mais interessado em quão índios na história pessoal do James Fraser e a pergunta passou com uma vaga resposta.
John era o único, sem nenhum tipo de dúvidas, além do Claire, que sabia a verdade sobre a paternidade do Willie. Era possível que a avó do Willie suspeitasse a verdade, mas baixo nenhuma circunstância admitiria que seu neto era o bastardo de um traidor jacobita em lugar do legítimo herdeiro do defunto conde.
Rezou uma pequena oração a Santa Bride pela melhoria do John Grei e tratou de apartar a preocupação de sua mente.
em que pese a suas dúvidas começava a desfrutar de da viagem. Mas se John morria, seu tênue laço com o William ficaria quebrado. Fazia muito que tinha aceito com resignação aquela situação, e não se queixava; mas se sentiria realmente despojado se o sarampo lhe roubava, não só a seu melhor amigo, mas também também toda conexão com seu filho.
Tinha deixado de chover. depois de rodear uma montanha apareceram sobre um vale; Willie lançou uma exclamação de surpreso deleite. Contra um pano de fundo de nuvens obscurecidas pela chuva, o arco íris surgia da ladeira de uma montanha distante e caía em um longínquo vale.
-É maravilhoso! -disse Willie. voltou-se para o Jamie com um amplo sorriso, esquecidas já suas diferenças-. Alguma vez tinha visto algo semelhante?
-Nunca -respondeu Jamie, sonriéndole.
Sempre tinha tido o sonho ligeiro no bosque e qualquer som despertava imediatamente. Permaneceu imóvel um momento, inseguro do que o tinha produzido. Então, escutou um pranto contido. Controlou seus desejos de consolar ao moço. Estava fazendo esforços para que não lhe ouvisse e se merecia conservar seu orgulho.
Estaria doente? Talvez lhe doía algo e era muito orgulhoso para admiti-lo.
-Milord?
Os soluços cessaram bruscamente.
-Sim? -disse o conde tentando mostrar frieza.
-Está doente? -Sabia que não era isso, mas era um bom pretexto-. Tem retortijones?
-Eu... ah... sim, acredito que talvez tenho... algo pelo estilo.
Jaime se incorporou.
-Não é muito sério -disse com calma-. Tenho uma poção que padre todos os males de estômago. Descansa, vou procurar água.
levantou-se e se afastou, cuidando-se de não olhar ao moço. Quando retornou do arroio com a panela cheia de água, Willie se tinha divulgado o nariz e secagem as lágrimas. Não pôde evitar lhe tocar a cabeça ao passar. Embora devia evitar essas familiaridades.
-Como se lhe atirassem das tripas, não? -perguntou, enquanto colocava a água a ferver.
-Mmm.
-Isso passa logo.
Procurou em seu embornal e tirou uma mescla de flores e folhas secas que Claire lhe tinha dado. Não sabia como tinha suposto que ia necessitar as, mas fazia muito que tinha deixado de questionar seus métodos de cura, já fossem para enfermidades do espírito ou do corpo. Sentiu uma apaixonada gratidão por ela. Sabia o que tinha sentido ao ver o moço.
Uma coisa era conhecer sua existência e outra muito distinta ver a prova de que seu marido tinha compartilhado a cama com outra mulher.
Não o tinha reprovado. Ao menos, isso pensou, ao recordar súbitamente que quando Claire se inteirou do do Laoghaire se converteu em uma fera. Talvez com a Geneva Dunsany foi diferente porque a mãe do moço já estava morta.
Ao dar-se conta disso sentiu como se lhe cravassem uma estocada. A mãe do moço tinha morrido. Não sua verdadeira mãe, a que morreu no parto, a não ser a que chamou mãe durante toda sua vida. E agora seu pai; ou o homem ao que chamava pai. Jamie sentiu um involuntário rictus em sua boca; seu pai estava doente de um mal que tinha matado a um índio ante os olhos do moço uns dias antes.
Não, não era estranho que o moço sofresse na escuridão. Era uma dor que ele conhecia bem desde que perdeu a sua mãe durante a infância.
Não era teimosia, nem sequer lealdade o que fazia que Willie tivesse insistido em ficar na Colina. Era amor pelo John Grei e medo por sua perda. E era esse mesmo amor o que fazia chorar ao moço aquela noite, desesperadamente preocupado por seu pai.
Uma rajada de ciúmes golpeou o coração do Jamie. Com firmeza a rechaçou; tinha a sorte de saber que seu filho desfrutava de uma afetuosa relação com seu padrasto.
A água começava a ferver, derrubou-a sobre a mescla e um aroma doce subiu com a fumaça.
-Já está -disse lhe alcançando a jarra ao moço-. Isto o alivia tudo. Fez-o minha esposa, que é uma boa curadora.
-É-o? -O moço tocou com a língua o líquido-. Vi-a... fazer coisas. Índio que morreu.
A acusação era clara; ela o tinha cuidado e o homem tinha morrido.
-Sim? -disse com curiosidade, já que Claire não tinha tido tempo de lhe contar nada— Que classe de coisas?
Que diabos teria feito?, perguntou-se. Nada que causasse a morte do homem, isso o teria notado ao vê-la.
-Tinha barro na cara. E cantava. Acredito que era uma canção papista, era em latim e tinha algo que ver com os sacramentos.
-Como? —Jamie ocultou sua própria surpresa ante essa descrição-. Sim, bem. Talvez quis lhe dar ao homem um pouco de consolo ao ver que não podia lhe salvar. Os índios som muito mais sensíveis aos efeitos do sarampo. Uma infecção que matasse a um deles não faria nada em um homem branco. Eu tive sarampo quando era um menino e não me passou nada.
Sorriu e se estirou, mostrando sua evidente saúde.
A tensão do moço se relaxou um pouco e bebeu um sorvo do chá quente.
-Isso é o que disse a senhora Fraser. Disse que papai ia se pôr bem. Ela... ela me deu sua palavra.
-Então, pode estar tranqüilo -disse Jamie com segurança-. A senhora Fraser é uma mulher de palavra. —acomodou-se a capa sobre os ombros. Não era uma noite fria mas pequenas rajadas de brisa baixavam da colina-, Está-te sentando bem?
Willie o olhou desconcertado.
-Né? Sim, sim, obrigado. Está muito bom. Sinto-me muito melhor. Talvez não foi a comida.
-Talvez não -disse Jamie ocultando um sorriso-. Mas acredito que manhã melhoraremos nossa comida. Se a sorte nos acompanha teremos trutas.
Seu intento de distração teve êxito.
-Trutas? Pescaremos?
-pescaste na Inglaterra? Não acredito que possa comparar-se com estes arroios, mas seu pai me contou que há boa pesca no lago de sua comarca.
Conteve a respiração. por que tinha perguntado isso? Tinha levado ao William a pescar quando tinha cinco anos ao lago que havia perto do Ellesmere. Queria que o moço recordasse?
-OH, sim. É muito boa nos lagos, mas nada é como isto. Nunca vi algo assim. Não se parece em nada a Inglaterra!
-Não, claro —Jamie esteve de acordo-. Não estranhas a Inglaterra?
William pensou durante um momento enquanto terminava seu chá.
-Não acredito. Algumas vezes estranho a minha avó e a meus cavalos, mas nada mais. Todo o resto são tutores, lições de baile, de latim e de grego. Puf!
Franziu o nariz e Jamie riu.
-Então, não te interessa o baile?
-Não, terá que fazê-lo com garotas. -lançou um olhar ao Jamie-. Você gosta da música?
-Não -respondeu sonriendo-, Mas eu gosto das moças.
E às moças gostará dele, pensou, com ombros largos, pernas largas e pestanas largas e escuras que ocultavam seus lindos olhos azuis.
-Sim, bom, a senhora Fraser é muito bonita -disse o conde com amabilidade. Sua boca se curvou repentinamente-. Embora estava muito graciosa com o barro na cara.
-Imagino. Quer outra-taza, milord?
Claire lhe havia dito que essa mescla era sedativo e parecia funcionar. William bocejava e lhe fechavam os olhos.
-A noite está fria. Quer te deitar a meu lado e compartilhar as mantas?
Embora a noite não estava tão fria, Willie aproveitou a desculpa com prontidão e ficou dormido imediatamente. Jaime permaneceu acordado comprido momento, com um braço brandamente apoiado sobre o corpo dormido de seu filho.
-Agora é o momento adequado?
O moço olhou para a água. Estavam baixo a fria sombra de um grupo de salgueiros negros, mas o sol ainda estava em cima do horizonte e a água do arroio brilhava como o metal.
-Sim, as trutas se alimentam ao pôr do sol. Vê essas ondas na água? Estão acordadas.
Sem aviso, uma linha chapeada saltou no ar e caiu salpicando água. Willie ofegou.
-É um peixe -indicou Jamie innecesariamente-. Agora olhe.
-Apanhaste-o! Apanhaste-o!
Podia ouvir os gritos do Willie dançando excitado, mas não podia apartar sua atenção do peixe.
Não tinha carretel, somente a vara que sustentava o linha. Não podia ver outra coisa que os brilhos de luz, mas sentia os puxões como se tivesse a truta entre suas mãos, lutando e retorcendo-se.
E então...
Livre. O linha se afrouxou e ele ficou sentindo as vibrações do esforço em seus músculos enquanto recuperava o fôlego.
-escapou! Má sorte!
Willie o olhou com simpatia.
-Boa sorte para a truta. -Jamie fez uma careta zombadora e se secou a cara-, Quer provar?
Muito tarde, recordou que devia chamá-lo «lorde», mas Willie estava muito ansioso para notá-lo.
Com uma expressão decidida, Willie estirou o braço e arrojou o linha. A vara se deslizou entre seus dedos e caiu na água.
O moço dirigiu um olhar de profundo desespero ao Jamie, que não ocultou a risada. O jovem lorde, surpreso e não muito contente, demorou um momento em recuperar-se e lhe devolver o sorriso. Fez um gesto para o cano que flutuava a uns três metros da borda.
-Se for procurá-la, assustarei aos peixes?
-Sim. Toma a minha. Recolherei-a mais tarde.
Willie se umedeceu os lábios e se concentrou enquanto sustentava com força o novo cano. Voltando-se para o rio moveu o braço para atrás e para adiante e arrojou o linha. ficou imóvel; o extremo de seu cano estendido formava uma linha perfeita com seu braço. O linha pendurava sobre a cabeça do William.
-Bem lançada, milord -disse Jamie, esfregando-a boca com um nódulo-, Mas acredito que devemos pôr primeiro outra mosca.
-Sim? -Willie afrouxou sua rígida postura e olhou envergonhado ao Jamie-. Não tinha pensado nisso.
depois dessas desgraças, o conde permitiu que Jamie lhe colocasse uma nova mosca e o agarrasse da boneca para lhe ensinar a forma adequada de lançar o linha, Em pé depois do moço, agarrou a boneca direita do Willie, maravilhando-se da elasticidade do braço e do tamanho dos ossos, que já prometiam grandeza e força. Quando a boneca do William se liberou, Jamie teve um momento de confusão e uma curiosa sensação de perda ao romper o contato.
-Isto não está bem -disse Willie, voltando-se para olhá-lo-. Você lança com a mão esquerda.
-Mas eu sou canhoto, milord. A maioria dos homens lançam com a direita.
-Canhoto?
A boca do Willie se curvou outra vez.
-Minha mão esquerda é mais conveniente para a maioria das coisas que a direita.
-É o que pensei que significava. Eu também. —Willie parecia agradado e um pouco envergonhado por sua declaração-. Mi... minha mãe dizia que não era correto e que devia aprender a usar a outra, como devem fazê-lo-os cavalheiros. Mas papai disse que não e fez que me deixassem escrever com a mão esquerda. Disse que não importava se parecia torpe com a pluma, posto que quando se tratasse de brigar com espada seria uma vantagem.
-Seu pai é um homem inteligente.
Seu coração se debateu entre a gratidão e o ciúmes, mas o primeiro sentimento era muito major.
-Papai era soldado. -Willie se endireitou um pouco e ergueu seus ombros com orgulho-. Brigou em Escócia, em... bom, ejem. Tossiu e seu rosto ficou arroxeado ao ver a capa do Jamie e dar-se conta de que, possivelmente, estava falando com um guerreiro derrotado naquela guerra. Jogou nervosamente com o cano sem saber onde olhar.
-Sim, sei. Ali foi onde o conheci. -cuidou-se bem de manter um tom indiferente. Recordar as circunstâncias daquele primeiro encontro seria injusto para o John, o qual lhe permitia passar aqueles valiosos dias com seu filho-. Era um soldado muito galhardo -acrescentou Jaime-. E tinha razão sobre as mãos. Já começaste a aprender com a espada?
-Só um poquito. -Willie esqueceu seu desconforto entusiasmado pelo novo tema—. Aprendi a fazer fintas e a parar. Papai diz que terei uma espada adequada quando chegarmos a Virginia. Já sou o bastante alto para estocadas e paradas.
-Ah, bem, se agarrar a espada com a mão esquerda, não acredito que haja problema em que o faça com o cano. vamos tentar o de novo ou não teremos comida.
-Fiz-o! Fiz-o! pesquei um peixe!
No terceiro intento Willie o obteve. Esquecendo sua dignidade e seu título, começou a saltar.
-Claro. -Jamie recolheu a truta, que tinha um bom tamanho, e deu uma palmada nas costas do saltitante conde para felicitá-lo-. Bem feito, moço! Parece que há rivalidade, vamos tentar tirar um par mais, né?
Para quando o sol se ocultava pelas longínquas montanhas negras tinham uma respeitável quantidade de trutas. Os dois estavam empapados, esgotados, médio cegados pelo resplendor e muito contentes.
-Nunca provei nada tão delicioso -disse Willie com voz de sonho-. Nunca.
Estava nu, envolto em uma manta, e tinha tendido a roupa em uma árvore. tornou-se para trás com um suspiro de felicidade e um leve arroto.
O moço havia tornado a cabeça para observar o fogo e podia olhá-lo mais abertamente. Jamie permaneceu imóvel, sentindo o batimento do coração de seu coração. Era um desses estranhos momentos que ocorriam raramente mas nunca se esqueciam. Momentos que gravava em seu coração e sua mente, um instante que recordaria em cada detalhe durante toda sua vida.
Tinha uma lembrança assim de seu pai: sentado na parede da quadra, com o frio vento de Escócia agitando seu cabelo escuro. Podia evocá-lo e cheirar o aroma da palha seca, sentir seus próprios dedos gelados pelo vento e seu coração esquentado pela luz dos olhos de seu pai.
Tinha breves visões do Claire, de sua irmã, do Ian... pequenos momentos recortados do tempo e perfeitamente preservados por uma estranha alquimia da memória, fixados em sua mente como um inseto à luz. E agora tinha outro. Durante toda sua vida poderia recordar este momento. Recordaria a dourada luz do fogo no doce rosto de seu filho.
-Deo gratias -murmurou, dando-se conta de que o havia dito em voz alta quando o moço se voltou surpreso.
-Como?
-Nada. Deve dormir -disse, se sentando e colocando-a capa-. Amanhã será um comprido dia.
-Não tenho sonho.
Para demonstrá-lo Willie se sentou e se passou as mãos pela cabeça, esfregando-se vigorosamente o cabelo. Jamie sentiu um sobressalto ao reconhecer aquele gesto como próprio. De fato, ia fazer exatamente o mesmo e teve que conter-se com grande esforço. Respirou profundamente e começou a preparar as moscas para os anzóis. Tinham-nas usado todas, e se queria pescar para o café da manhã precisava as repor.
-Posso ajudar?
Willie não espero a permissão e se sentou ao lado do Jamie. Sem comentários, este empurrou a caixa de madeira com plumas de pássaros para o moço e agarrou um anzol da cortiça onde penduravam.
Durante um momento trabalharam em silêncio, até que Willie se cansou do trabalho e começou a fazer perguntas ao Jamie sobre a pesca, a caça, o bosque, os índios e o lugar ao que se dirigiam.
-Não -respondeu Jamie a uma dessas perguntas-. Nunca vi um couro cabeludo na aldeia. São boa gente, agora bem, se lhes fizer algum dano não demoram para vingar-se -sorriu ironicamente-. Nesse aspecto, recordam-me um pouco aos highlanders.
-A avó diz que os escoceses têm filhos... –terminou bruscamente seu comentário, com o rosto ruborizado e a vista concentrada em seu trabalho.
-Como coelhos?
Jamie deixou ver a ironia e o sorriso. Willie lhe olhou cautelosamente.
-Algumas vezes as famílias escocesas são muito grandes, é certo. Consideramos que os filhos são uma bênção. Willie se endireitou enquanto seu rubor desaparecia.
-Entendo. Você tem muitos filhos?
-Não, não muitos -respondeu, com os olhos cravados no chão.
-Sinto muito... não pensei,
é me queixar levantou a vista e viu que Willie se ruborizou outra vez.
-Pensou o que? -perguntou intrigado.
Willie tragou ar.
-Bom, a... a... enfermidade, o sarampo. Não vi meninos, mas não o pensei quando o disse.- quero dizer— que talvez tinha algum, mas...
-OH, não. -Jamie sorriu para lhe tranqüilizar-. Minha filha já é maior e faz tempo que vive em Boston.
-Já. —Willie deixou escapar o ar com grande Isso alívio é tudo?
-Não, também tenho um filho -disse enquanto o anzol se cravava na ponta de seu polegar e uma gota de sangue caía sobre a superfície de metal-. Um bom moço ao que quero muito, embora agora não está em casa.
Ao final da tarde Ian tênia os olhos frágeis e a frente quente. sentou-se em seu camastro para me saudar em meio de alarmantes balanços e com os olhos desfocados. Não tinha a mais mínima dúvida, não obstante lhe examinei a boca para confirmá-lo; as pequenas manchas brancas confirmavam com toda segurança o diagnóstico. No pescoço começavam a apreciar umas pequenas manchas rosadas.
-Bem -pinjente resignada-. Tem-no. O melhor é que te venha comigo a casa e assim poderei te cuidar com mais comodidade.
-Tenho o sarampo? vou morrer me? -perguntou.
Não parecia muito interessado; sua atenção se centrava em alguma visão interior.
-Não -pinjente decidida, esperando ter razão-. Encontra-te muito mal, não?
-Dói-me um pouco a cabeça —respondeu.
Por sorte ainda podia caminhar, pensei, enquanto o ajudava pelo atalho. Embora parecia fraco e desajeitado me levava mais de vinte centímetros e ao menos quinze quilogramas de peso.
Não havia mais de vinte metros até a cabana, mas ao chegar Ian tremia pelo esgotamento. Quando entramos, lorde John se sentou e fez um gesto para levantar-se da cama, mas o impedi.
-Fique -pinjente, depositando ao Ian na outra cama-. Me posso arrumar isso
Eu tinha dormido ali, tinha travesseiro, lençóis e uma manta. Ajudei ao Ian a tirá-los calções e as meias e o meti na cama. Tinha febre e aspecto de estar muito mais doente do que parecia com a luz do abrigo.
A infusão de casca de salgueiro que tinha deixado repousando estava escura e aromática, lista para beber. Servi-a com cuidado, olhando a lorde John.
-Fiz-a para tí. Mas se pode esperar...
-É obvio, dásela ao moço -disse, fazendo um gesto-. Esperarei. Posso ajudar em algo?
Pensei em lhe sugerir que, se realmente queria me ajudar, podia ir até o privada em lugar de usar a bacinilla que eu tinha que esvaziar, mas podia ver que ainda não estava em condições de sair sozinho durante a noite. Assim que me limitei a negar com a cabeça e me ajoelhei para dar a medicina ao Ian.
Logo me sentei na cama e pus a cabeça do moço em meu regaço para lhe dar uma massagem nas têmporas. Coloquei os polegares sobre suas sobrancelhas e pressionei para cima; deixou escapar um gemido de desgosto, mas logo se relaxou deixando cair a cabeça sobre minha saia.
-Está bem -murmurou. Sua mão, grande e quente, fechou-se apertando minha boneca—. É o que fazia o chinês, não?.
-Assim é. refere-se ao Yi Tien Cho, o senhor Willoughby -expliquei a lorde John, que observava o procedimento com gesto assombrado.
Vacilei ao mencionar ao pequeno chinês ante lorde John, já que a última vez que nos encontramos na Jamaica, lorde John tinha quatrocentos homens, entre soldados e marinheiros, percorrendo a ilha em perseguição do senhor Willoughby como suspeito de um crime particularmente atroz.
-O não o fez, sabe? -senti-me forçada a dizer.
Lorde John arqueou uma sobrancelha.
-Isso está bem -disse com secura—, já que nunca conseguimos apanhá-lo.
-Me alegro.
Olhei ao Ian e movi os polegares pressionando outra vez.
-Né... Devo supor que sabe quem matou à senhora Alcott?
-Sim, sei -pinjente vacilando-, mas...
-Sabe? Um assassino? Quem foi? O que aconteceu, tia? Ai!
Os olhos do Ian se abriram com interesse e se fecharam pela dor que lhe produzia a luz.
-Fica aquieto -pinjente esfregando os músculos de diante de suas orelhas-. Está doente.
-Está bem, tia. Mas quem foi? Não pode começar a contar coisas como esta e as deixar na metade, esperando que durma sem conhecer o resto. Pode fazê-lo?
Abriu um olho pedindo ajuda a lorde John, quem lhe sorriu.
-Não quero responsabilidades no assunto —assegurou-. Entretanto —continuou com firmeza, dirigindo-se ao Ian—, deve pensar que talvez a história incrimine a alguém que sua tia prefere proteger. Nesse caso seria uma desconsideração insistir nos detalhes.
-Não, nada disso -assegurou-lhe Ian- Tio Jamie não mataria ninguém salvo que tivesse uma boa razão.
Pela extremidade do olho viu como lorde John se sobressaltava. Era evidente que não lhe tinha ocorrido que poderia ter sido Jamie.
-Não -assegure-. Não foi ele.
-Bom, se eu tampouco fui, a quem mais ia proteger tia Claire?
-Está-te fazendo ilusões, Ian -pinjente secamente-. Mas já que insiste...
A história implicava a alguém mais: a mulher que primeiro conheci como Geillis Duncan e mais tarde como Geillis Abernathy, quão mesma mandou seqüestrar ao Ian em Escócia, teve-o prisioneiro na Jamaica e lhe fez passar por coisas que muito tempo depois pôde começar a nos explicar.
Os dois doentes estavam esperando minha história, assim, reprimindo a macabra necessidade de começar com o “era uma vez...”, apoiei-me na parede e com a cabeça do Ian ainda sobre minhas saias comecei a história do Rose Hall e seus donos: a bruxa Geillis Duncan; o reverendo Archibald Campbell e sua estranha irmã Margaret; a profecia do Fraser e a noite de fogo e sangue de crocodilo, quando os escravos de seis plantações com o passar do rio Yailahs se rebelaram e mataram a seus amos, animados pelo houngan Ishmael.
Dos acontecimentos posteriores na cova do Abandawe, no Haiti, não disse nada. depois de tudo, Ian tinha estado ali- E esses acontecimentos não tinham nada que ver com o assassinato de Mina Alcott.
-Um crocodilo -murmurou Ian—. O viu, tia?
-Não só o vi, mas também o pisei -assegurei-. Ou mas bem primeiro o pisei e logo o vi. Se o tivesse visto teria saído correndo.
ouviu-se uma risada da cama. Lorde John se arranhava um braço sonriendo.
-Deve encontrar a vida muito aborrecida aqui depois de suas aventuras nas Antilhas.
-Posso suportar um pouco de aborrecimento -disse com sabedoria.
Falar da Jamaica me tinha distraído um pouco de minhas preocupações pelo Ian. A dor de cabeça não era um sintoma estranho para alguém com sarampo, mas a dor severo e prolongada sim. A meningite e a encefalite eram perigosas e possíveis derivações da enfermidade.
-Como está sua cabeça? -perguntei.
-um pouco melhor -respondeu, tossindo com os olhos fechados. Logo os abriu com cuidado-. Tenho muito calor, tia.
Molhei um trapo em água fria e o passei pela cara fazendo que se estremecesse.
-A senhora Abernathy me deu a beber ametista para a dor de cabeça -murmurou.
-Ametista? -Estava assombrada, mas segui falando com suavidade-. Bebeu ametista?
-Em vinagre. E pérolas em vinho doce, mas isso era para a cama -disse-. Era muito boa para as pedras preciosas. Queimou pó de esmeralda na chama de uma vela negra e esfregou meu pênis com o diamante; disse que era para mantê-lo duro.
Ouvi um débil som da outra cama, levantei a vista e vi lorde John apoiado em um ombro com os olhos muito abertos.
-E funcionaram as ametistas?
Sequei a cara do Ian com o trapo.
-O diamante, sim.
Tentou rir com picardia adolescente, mas só pôde tossir.
-Temo-me que aqui não temos ametistas -pinjente-, mas há vinho se quiser.
Queria e lhe ajudei a beber um pouco rebaixado com água; logo se voltou a deitar com o rosto avermelhado e os olhos inchados. Lorde John também se deitou deixando seu cabelo loiro solto sobre o travesseiro.
-Para isso é para o que ela queria aos moços. –molhou-se os lábios que começavam a gretar-se o Dizia que a pedra crescia nas vísceras do moço que elegia. Este não tinha que ter estado nunca com uma moça, isso era importante. Se não era assim a pedra não funcionaria. Se o moço já tinha conhecido mulher...
Fez uma pausa para tossir e ficou sem fôlego, com o nariz gotejando. Alcancei-lhe um lenço.
-Para que queria ela a pedra?
O rosto de lorde John estava cheio de simpatia. Sabia muito bem como se sentia Ian nesse momento, mas a curiosidade lhe impulsionava a perguntar. Não me opus, eu também queria saber.
Ian começou a negar com a cabeça, mas se deteve com um gemido.
-Ah! Minha cabeça parece que vá arrebentar! Não sei. Não me disse isso. Só que era necessário, que tinha que tê-la para estar-se... gura -quase não pôde terminar por um ataque de tosse.
-Melhor não fale... -comecei, quando me interrompeu um suave golpe na porta.
Fiquei imóvel enquanto lorde John saía da cama e tirava a pistola de uma de suas largas botas.
-Quem anda aí? —perguntou lorde John com voz surpreendentemente forte.
A resposta foi uma série de arranhões e um fraco gemido.
-É seu maldito cão, Ian -pinjente.
-Está segura? -perguntou lorde John em voz baixa, ainda empunhando a pistola-. Poderia ser uma armadilha dos índios.
-Cilindro! —gritou Ian com voz rouca e entrecortada.
Cilindro conhecia a voz de seu amo, rouca ou não; ouviu-se um profundo e alegre latido, seguido de uma série de frenéticos saltos e arranhões.
-Odioso cão -pinjente, me apressando a abrir a porta. Deixa de fazer ruído ou te converterei em um tapete, em uma jaqueta ou em um pouco parecido.
Minha ameaça recebeu a atenção que merecia. Cilindro entrou enlouquecido de alegria e lançou seus setenta quilogramas sobre a cama do Ian, fazendo que se balançasse perigosamente. Passando por cima os gritos de protesto de seu ocupante, procedeu a lhe lamber a cara e os braços, que tinha levantado para proteger-se.
-Cão mau -disse Ian, tratando de apartá-lo e rendo em que pese a seu desconforto-. Cão mau, abaixo, hei-te dito.
-Abaixo! -repetiu lorde John, com tom gelado.
Cilindro, interrompido em suas demonstrações de afeto, voltou-se para lorde John e lhe mostrou os dentes.
Lorde John levantou sua pistola com gesto convulsivo.
-Abaixo, a dhiobhu,il!-ordenou Ian, empurrando os quartos traseiros de Cilindro-. Aparta o traseiro peludo de minha cara, animal malvado!
Cilindro esqueceu imediatamente a lorde John, deu umas voltas ao redor da cama e se desabou perto do corpo de seu amo. Lambeu a orelha do Ian e, com um grande suspiro, colocou-se sobre o travesseiro com o focinho entre as patas,
-Quer que o tire, Ian? —ofereci-me, embora não sabia como fazê-lo.
-Não, deixa-o -disse tossindo-. É um bom moço. Verdade, a charaid!
Apoiou uma mão no cangote do cão e sua bochecha sobre o corpo peludo.
-Muito bem, então a dormir.
Toquei-lhe a frente, olhando os olhos amarelos que me vigiavam. A febre tinha baixado um pouco e já se dormiu.
Movi-me pela habitação sem fazer ruído, me ocupando de guardar os resultados do trabalho do dia na despensa.
Quando retornei, Ian dormia profundamente e Cilindro logo que abriu um olho para me ouvir. Olhei para lorde John que ainda estava acordado, mas ele não me olhou.
Sentei-me ao lado do fogo e agarrei a grande cesta da lã. Tinham passado dois dias desde que Jamie e Willie se partiram. Dois dias de caminho até a aldeia tuscarora e outros dois dias para retornar, se não acontecia nada que os detivera.
-Tolices -murmurei.
Nada os ia deter. Logo estariam de volta em casa.
A cesta estava cheia de meadas de lã e de linho. Algumas me tinha dado isso Yocasta e outras as tinha fiado eu. A diferença era óbvia, mas utilizaria meus fios para algo, não para meias ou casacas mas sim para cobrir a bule.
Jamie se havia sentido impressionado e divertido no Lallybroch, quando descobriu que eu não sabia tecer. Jenny e as faxineiras se ocupavam da malha e eu realizava outras tarefas. Mas agora que devia aprender, surpreendida-a tinha sido eu, ao me inteirar de que Jamie sim sabia tecer.
-É obvio que sei -havia-me dito, me contemplando intrigado-. Ensinaram-me quando tinha sete anos. Em sua época não lhes ensinam de tudo aos meninos?
-Bom -senti-me meio tola-, algumas vezes ensinam às meninas, mas aos meninos não.
Assim descobri que Ian também sabia tecer, o qual era uma ocupação muito útil para as largas horas aos cuidados das ovelhas ou as vacas. Eu tinha aprendido o básico e estava tecendo um xale, mas essa atividade que para o Jamie e Ian resultava relaxante para mim não servia aquela noite.
Deixei a malha sobre minha saia e fechei os olhos um momento. Cuidar doentes é uma tarefa pesada e estava muito cansada. Por um instante, desejei que todos se fossem. Abri os olhos e olhei a lorde John ressentidamente, mas o ataque de autocompasión se desvaneceu ao vê-lo. Jazia de costas, com um braço detrás da cabeça e olhando sombrio para o teto.
Os olhos escurecidos faziam que seu rosto parecesse marcado pela ansiedade e a dor. Talvez fora efeito do fogo, mas me senti envergonhada. Era certo que não o tinha querido ali, que estava molesta por sua intrusão em minha vida e o peso das obrigações que havia me trazido sua enfermidade. Sua presença, por não falar da do William, causava-me insegurança. Mas logo partiriam, Jamie voltaria para casa, Ian melhoraria e teria de novo minha paz, minha felicidade e meus lençóis limpa. O que lhe tinha acontecido a ele era para sempre.
John Grei tinha perdido a sua esposa, como ele a considerava. Fazia falta valor para trazer aqui ao William e deixá-lo ir com o Jamie. Eu não queria me fazer à idéia de que aquele maldito homem não tinha podido evitar o sarampo.
Levantei-me para pôr uma panela no fogo. Uma boa taça de chá me parecia o mais apropriado. Quando me levantei vi que lorde John movia a cabeça distraído em seus pensamentos.
-Chá? -pinjente, incômoda atrás de meus poucos caridosos pensamentos.
Sorriu fracamente e assentiu.
-Agradeceria-o, senhora Fraser.
Tirei a caixa de chá, duas taças, as colheres e o de açúcar, essa noite não poria melaço. Uma vez que esteve tudo preparado me sentei perto da cama e bebemos em silêncio; a ambos invadia um estranho acanhamento.
-Lamento-o -pinjente formalmente, uma vez que deixei minha taça-. Tinha a intenção de dar minhas condolências pela morte de sua esposa.
-É uma coincidência que me diga isso neste momento -respondeu-. Estava pensando nela.
Como estava acostumada a que todo mundo adivinhasse meus pensamentos com apenas me olhar à cara, a mudança resultou lhe gratifique.
-A estranhas muito...?. Vacilei um pouco, mas a pergunta não lhe pareceu indiscreta
-Realmente, não sei. Parece-te uma insensibilidade?
-Não posso dizê-lo -respondi, um pouco cáustica—. Com segurança, sabe melhor que ninguém como te afetou.
-Sim, afetou-me -deixou cair a cabeça sobre o travesseiro— Ou me afeta. Por isso vim, entende?
-Não, não o entendo.
Ian tossiu e me levantei para vê-lo. Uma mão lhe pendurava fora da cama; ainda estava quente mas a febre já não representava perigo; a levantei e o mesé o cabelo com suavidade.
-É muito boa com ele. Tem filhos?
Assombrada, levantei a vista e o olhei. Observava-me com o queixo apoiado no punho.
-Eu..., nós temos uma filha.
-Nós? -disse cortante-. A garota é do Jamie?
-Não a chame "a garota» -disse irracionalmente zangada-. Seu nome é Brianna e sim é do Jamie.
-Minhas desculpas -disse ceremoniosamente-. Não quis lhe ofender. Estava surpreso.
Olhei-o diretamente, muito cansada para ser diplomática.
-E um pouco ciumento, possivelmente?
Seu rosto, carregado de diplomacia, não deixava traslucir nada depois da fachada de amabilidade. Mas o segui olhando até que deixou cair a máscara e um brilho de compreensão iluminou seus olhos azuis.
-Então, uma coisa mais que temos em comum.
Assombrou-me sua acuidade.
-Não me diga que não o pensou quando decidiu vir aqui.
Estudou-me com os olhos entrecerrados.
-Pensei-o, sim -disse finalmente-. Entretanto, até no caso de que eu fora o bastante mesquinho para pensar que te ofenderia ao trazer para o William aqui, devo te pedir que cria que tal ofensa não foi o motivo de minha viagem.
-Acredito-te -pinjente-. O que passa é que não entendo qual foi o motivo.
Não o olhei, mas senti que se encolhia de ombros.
-O óbvio... permitir que Jamie visse o moço.
-E o outro óbvio.,, ver o Jamie.
produziu-se um marcado silêncio.
-É uma mulher notável -disse finalmente.
-Em que sentido? -perguntei sem levantar a vista.
-Não é nem cautelosa nem sinuosa. De fato não acredito ter conhecido a ninguém, já seja homem ou mulher, tão cruamente sincero.
-Bom, não foi uma eleição. Nasci assim.
-Quão mesmo eu -disse muito brandamente.
Não respondi, não acreditava que o houvesse dito para que eu o ouvisse.
Levantei-me e fui até o aparador. Agarrei três potes: hortelã, valeriana e gengibre silvestre e amassei as folhas e as raízes secas no morteiro, enquanto a água da panela começava a ferver.
-O que está fazendo ?—perguntou lorde John.
-Preparando uma infusão para o Ian. A mesma que te dava faz quatro dias.
-Ah. Ouvimos falar de ti enquanto viajávamos desde o Wilmington -disse Grei. Seu tuno era o de uma conversação normal-- Parece que é muito conhecida na zona graças a suas habilidades.
-Mmm.
-Dizem que é uma mulher com poderes. O que querem dizer, sabe?
-Algo, desde parteira a médica e desde adivinha a feiticeira. Depende de quem o diga.
Fez um som que podia ser uma pequena gargalhada e logo ficou em silêncio.
-Crie que estão a salvo.
Era uma afirmação, mas me estava perguntando isso.
-Sim. Jamie não tivesse levado a moço se pudesse haver algum perigo. Se conhecer o Jamie seguro que sabe, não? -acrescentei.
-Conheço-o.
-Conhece-o, realmente.
-Conheço-o o bastante bem, ou acredito conhecê-lo, para me arriscar a mandar ao William só com ele. E para estar seguro de que não lhe dirá a verdade.
-Não, não o fará, tem razão nisso.
-Você o faria?
Levantei a vista surpreendida.
-Realmente crie que o faria?
Estudou meu rosto cuidadosamente e sorriu.
-Não -disse com calma-. E te dou tas obrigado.
Soprei e deixei cair o preparado na bule. Guardei os potes e me voltei a sentar para continuar tecendo.
-Foi muito generoso de sua parte deixar que Willie fora com o Jamie. E valente -acrescentei um tanto irritada.
-Jamie teve minha vida em suas mãos durante muitos anos-respondió-. Confio que seja igual com o William.
-E sim Willie recorda a uma moço de quadra chamado MacKenzie mais do que você acreditava? Ou lhe ocorre olhar sua cara e a do Jamie?
-Os moços de doze anos não destacam por sua aguda percepção -disse secamente-. E acredito que para um moço que viveu toda sua vida na segura crença de que é o nono conde do Ellesmere, a idéia de que poderia ser o filho ilegítimo de uma moço de quadra escocês, é algo que não entraria em sua cabeça ou que, de ser assim, apartaria imediatamente.
Fiquei em silêncio. Ian tossia mas seguia dormido. O cão se moveu e estava enroscado sobre suas pernas como uma manta de pele.
Grei esteve tanto tempo em silêncio que me surpreendeu quando falou de novo:
-Disse-te que sentia algo por minha esposa. É assim. Afeto. Confiança- Lealdade. Conhecíamo-nos de toda a vida; nossos pais eram amigos e eu conhecia seu irmão. Poderia ter sido minha irmã,
—E ela estava satisfeita com isso... sendo sua irmã?
Lançou-me um olhar entre interessada e furiosa.
-Você não é uma mulher com a que se possa viver comodamente. -encolheu-se de ombros com impaciência—. Sim, acredito que ela estava satisfeita com a vida que levava. Nunca disse o contrário.
Minha resposta foi um suspiro muito forte.
-Fui um marido adequado para ela -disse à defensiva-, Que não tivéssemos filhos não foi por mi...
-Não quero ouvir isso!
-Não quer? -Sua voz era baixa para não despertar ao Ian, mas tinha perdido o tom diplomático, havia zango nela-. Perguntou-me por que tinha vindo, questionou meus motivos e me acusou de ter ciúmes. Talvez não queira saber, porque se o faz não poderá seguir pensando de mim o que decidiu pensar desde o começo.
-E como diabos sabe o que decidi pensar sobre tí?
-Não é assim?
Olhei-o à cara durante um minuto sem me preocupar com ocultar nada.
-mencionaste o ciúmes -disse Grei.
-Fiz-o. Você também.
Olhou para outro lado e depois de um momento continuou.
-Quando soube que Isobel tinha morrido... não significou nada para mim. Tínhamos vivido Juntos durante anos, embora não nos víamos desde fazia dois. Pensei que tínhamos compartilhado uma cama e uma vida, que deveria me importar. Mas não era assim. -Respirou profundamente e continuou-: Mencionou a generosidade. Não foi isso. Vim para ver... para saber sim ainda podia sentir. SIM eram meus próprios sentimentos os que tinham morrido ou só Isobel.
-Só Isobel? -repeti.
Permaneceu imóvel olhando ao longe.
-Ao menos posso sentir vergonha -disse muito brandamente. Dava-me conta de que já era muito tarde, o fogo tinha diminuído e a dor de meus músculos me dizia que fazia momento que deveria haver ido à cama.
Ian estava inquieto. fui arrumar lhe os lençóis e lhe dava uma taça da infusão.
-Sentirá-se melhor pela manhã.
Tinha manchas no pescoço, mas a febre tinha baixado.
Ficava uma boa quantidade da infusão, assim servi outra taça e a alcancei a lorde John. Surpreso, sentou-se na cama e agarrou a taça.
—E agora que vieste e o viu... ainda lhe afeta?
Olhou-me fixamente durante um momento.
—OH, sim.
Com mão firme bebeu da taça.
Ian passou uma má noite e quando conseguiu sumir-se em um sonho reparador, perto da madrugada, aproveitei para descansar e desfrutar no chão de umas poucas horas de sonho, até que despertou e! zurro do Clarence, a mula.
Era uma criatura muito sociável que se alegrava profundamente ante a presença de qualquer que considerasse amigo, categoria que abrangia virtualmente a tudo o que andará sobre quatro patas. Cilindro, ofendido por ter sido substituído em seu posto de cão guardião, saltou da cama do Ian, passou-me por cima e saiu pela janela aberta uivando como um lobo.
Meu coração deixou de saltar quando vi que não eram Jamie e Willie, mas minha desilusão se transformou em assombro quando vi quem era o visitante: o pastor Gotcfried, chefe da Igreja luterana de Salem. Tinha visto o pastor nas casas de meus doentes, mas isto era algo insólito.
demoravam-se quase dois dias a cavalo de Salem e o alemão luterano mais próximo a nossa propriedade estava a umas dezoito milhas. O pastor não era um homem acostumado a cavalgar, assim pensei que tinha que ser algo muito urgente o que lhe trazia para casa.
-Fora, cão malvado! -disse a Cilindro, que mostrava os dentes e rugia ao cavalo do pastor-. Quieto, hei dito!
O pastor era um hombrecito rechoncho, com uma barba cinza e frisada que emoldurava seu rosto habitualmente luminoso e sorridente. Embora agora estava pálido e tinha um aspecto esgotado.
-Meine me Dê -saudou, tirando o chapéu e inclinando a cabeça-, Ist Euer Mann hier.
Eu falava um pouco de alemão e me dava conta de que procurava o Jamie; assinalei o bosque com a cabeça. Segui fazendo gestos até que uma voz falou cortante,
-Was ist os? -quis saber lorde John, saindo à porta.
pôs-se os calções, embora seguia descalço e com o cabelo solto.
O pastor me dirigiu um olhar escandalizado, pensando o pior, mas trocou de expressão ante as rápidas explicações de lorde John. O pastor rói dirigiu uma inclinação de desculpa e falou ansioso com Grei.
-O que é o que está dizendo? —perguntei.
-Conhece uma família chamada Mueller?
-Sim —respondi, me alarmando imediatamente—. Faz três semanas ajudei a nascer à filha da Petronella Mueller.
-Ah! —Grei se umedeceu os lábios e olhou ao chão-. Temo-me que... a menina morreu. E também a mãe.
-Não, não. -Deixei-me cair no banco ao lado da porta— Não. Não pode ser.
-Diz que tinham Maseru, suponho que será sarampo.
-Mas para que quer ao Jamie? —perguntei.
-Acredita que Jamie fará entrar em razão ao Herr Mueller. São amigos?
-Não, não exatamente. Jamie golpeou ao Gerhard Mueller na boca e o atiro ao chão a primavera passada frente ao moinho.
-Já vejo. Suponho que o término «raciocinar» não é o adequado.
-Com o Mueller não se pode raciocinar com nada que seja mais sofisticado que uma tocha. Mas no que está sendo pouco razoável?
Grei franziu o sobrecenho e me dava conta de que não entendia o de sofisticado embora captava o sentido. voltou-se, perguntou ao pastor e logo escutou. Pouco a pouco e com constantes interrupções surgiu a história.
Havia uma epidemia de sarampo no Cross Creek, tal como havia dito lorde John. Era evidente que se estendeu por Salem; mas os Mueller, que viviam isolados, tinham contraído a enfermidade fazia muito pouco. Quando apareceu em sua família, Mueller pensou que era culpa de uns índios que tinham acontecido pedindo comida e bebida. Como Mueller os tratou mau, os índios, ofendidos, fizeram signos misteriosos antes de partir.
Mueller estava convencido de que a enfermidade era um malefício dos índios. Pintou símbolos nas paredes e mandou chamar o pastor para que realizasse um exorcismo. Mas aquelas precauções não serviram para nada. Quando Petronella e a recém-nascida morreram, o ancião perdeu o pouco julgamento que tinha, jurou vingança contra os selvagens e obrigou a seus filhos e a seus genros a que o acompanhassem aos bosques.
Tinham retornado três dias atrás, os filhos pálidos e silenciosos e o ancião pictórico de fria satisfação. O pastor estava ali quando aconteceu. Na quadra lhe tinham ensinado duas largas caudas de cabelo negro que penduravam da porta, com a palavra Rache grafite ao lado.
-Isso quer dizer «vingança» -traduziu lorde John.
-Sei -disse com a boca seca-. Tenho lido ao Sherlock Holmes. Quer dizer que ele...
-É evidente.
O pastor seguia falando e me sacudia o braço tratando de me transmitir sua urgência.
-Mueller vem para cá.
Grei me olhou alarmado.
Impressionado pelos couros cabeludos, o pastor tinha ido procurar ao Herr Mueller, mas descobriu que tinha partido para a Colina do Fraser para ver-me para mim.
Se não tivesse estado sentada me teria desacordado. Senti que o sangue abandonava minhas bochechas,
-por que? -perguntei-. Pensará que...? Não pode ser! Não pode acreditar que eu tivesse algo que ver com a morte da Petronella e da menina. Pode ser?
Voltei-me para o pastor.
-O pastor diz que não sabe o que pensava Mueller ou o que se propunha ao vir até aqui -disse lorde John-, Encontrou-o duas horas depois, desacordado a um lado do caminho.
O corpulento granjeiro tinha passado vários dias sem comer em sua busca de vingança e ao voltar tinha bebido muita cerveja. O pastor não tinha tentado levantá-lo, mas sim tinha deslocado a nos acautelar.
Não tinha dúvidas de que meu Mann poderia enfrentar-se ao Mueller, mas se Jamie não estava... Sugeriu que nos partíssemos e tratei de lhe explicar que não podíamos deixar ao Ian.
-Ele não passou o sarampo -disse lorde John voltando-se para mim-. Não deve ficar aqui ou correrá perigo de contagiar-se. Não é assim?
-Sim. -Tratei de me recuperar-. Sim, deve ir-se imediatamente. Você já não é contagioso. Mas Ian sim. -Tentei me arrumar o cabelo, horrorizada por e! lembrança dos couros cabeludos do celeiro do Mueller.
Lorde John falava autoritariamente ao pequeno pastor para que partisse logo. Eu lhe sorri tratando de lhe tranqüilizar.
-lhe diga que estarei bem, quer? Ou não se irá.
-Fiz-o. Disse-lhe que sou um soldado e que não vou deixar que te passe nada.
O pastor se aproximou de mim e do cavalo apoiou uma mão sobre minha cabeça.
-Seid gesegnet -disse-, Benediáte.
-Diz... -começou lorde John.
-Entendi-o.
Permanecemos em silêncio observando como se afastava. Perguntei-me quem teria sido o branco da cega vingança do Mueller. Sua granja estava longe, mas podia ter chegado até algumas aldeias de tuscaroras ou cherokee. Teria entrado em alguma aldeia? E se era assim, que matança teria deixado detrás de si? Ou pior, que matança seguiria?
Estremeci-me pese ao calor do sol. Mueller não era o único homem que acreditava na vingança. A família, o clã ou a aldeia de que tivesse matado procurariam vingança e não se deteriam com os Mueller, se é que conheciam a identidade dos assassinos. E se não era assim, se somente sabiam que os assassinos eram brancos... estremeci-me outra vez.
-Quanto eu gostaria que Jamie estivesse aqui.
Não me dava conta de que tinha falado em voz alta até que lorde John respondeu.
-Eu também. Embora comece a pensar que William estará mais seguro fora, e não só pela enfermidade.
-Não deveria estar levantado! -exclamei e te agarrei do braço-. vá deitar te imediatamente.
-Estou bastante bem -disse irritado, mas não protestou quando insisti em que voltasse para a cama.
Ajoelhei-me para examinar ao Ian; estava inquieto e com muita febre, tinha os olhos fechados, a cara desfigurada pelas rodelas e os gânglios do pescoço inflamados e duros. Cilindro colocou o focinho baixo meu cotovelo, cheirando a seu amo e gemendo.
-ficará bem -disse com firmeza— por que não vai fora a vigiar se vierem visitas?
Cilindro desoyó minha sugestão e se sentou pacientemente observando como lavava ao Ian e lhe dava a bacinilla enquanto esperava o alegre anúncio do Clarence de que se aproximavam visitas.
Foi um comprido dia. depois de várias horas me sobressaltando ante cada ruído, cumpri com a rotina. Ocupei-me do Ian, que se sentia muito mal, dos lhes anime, do jardim, de agarrar pepinos e de pôr a lorde John, que queria me ajudar, a debulhar feijões.
-me fale sobre esse Mueller -disse lorde John.
Tinha recuperado o apetite e terminou seu prato de papa fritas.
-É o chefe de uma grande família de alemães luteranos, como já te terá dado conta- Vivem a umas dezoito milhas daqui, abaixo, no vale do rio.
-Se?
-Gerhard é corpulento e teimoso. Fala pouco inglesa. É velho. Mas é forte!
-Essa briga que teve com o Jamie... pode lhe guardar rancor?
-É uma pessoa vingativa, mas não acredito que por isso lhe guarde rancor. Não foi exatamente uma briga. Foi... Sabe algo sobre mulas?
Sorriu e arqueou as sobrancelhas.
-um pouco,
-Bom, Gerhard Mueller é uma mula. Não é que tenha mau caráter ou que seja estúpido, mas não disposta atenção a nada que não seja o que está em sua cabeça e costa muito trabalho tirar o daí. Jamie interveio em uma discussão que teve com uma filha do moleiro pelos sacos de trigo, e teve que lhe fazer raciocinar de um murro. Finalmente, Mueller, depois de que o moleiro lhe desse um saco mais de farinha, aceitou v partiu agradecido.
-Já vejo. Então, não tem má vontade?
-Absolutamente. Foi muito amável comigo quando fui à granja para ajudar no nascimento da menina.
Me fez um nó na garganta ao recordar que já não estavam.
-Toma -disse Grei e empurrou a jarra com cerveja para mi. Bebi e fiquei um minuto com os olhos fechados.
-Obrigado -pinjente, abrindo os olhos.
Grei me observava com expressão de profunda simpatia.
-Não é que não tenha acontecido antes -expliquei-. Aqui morrem muito facilmente, em especial os jovens, e quase não posso fazer nada.
Senti algo quente em minha bochecha e me surpreendeu tocar uma lágrima. Grei tirou um lenço e me alcançou isso. Não estava muito limpo, mas não me importou.
-Perguntei-me o que é o que ele viu em ti -disse em um tom deliberadamente ligeiro.
-Ah, sim? Que adulador.
Soei-me o nariz.
-Quando começou a me falar de ti, ambos pensávamos que estava morta. E embora indubitavelmente é uma mulher formosa, nunca falou de sua aparência.
Para minha surpresa me agarrou a mão e a apertou.
-Tem seu valor.
Isso me fez rir.
-Se soubesse... -respondi.
Sorriu-me fracamente e passou um dedo, suave e quente, pelos nódulos de minha mão.
-Ele nunca se detém por temor a machucar-se. Acredito que seu tampouco.
-Não posso. -Suspirei e me soei o nariz-. Sou médica.
-Sim, é-o. E não te agradeci que me tenha salvado a vida.
-Não fui eu. Não há muito que possa fazer ante uma enfermidade. Tudo o que posso fazer é... estar aí.
-um pouco mais que isso -disse secamente e soltou minha mão-. Tem mais cerveja?
Começava a ver claramente o que tinha visto Jamie no John Grei.
A tarde passou tranqüila. Ian tossia e se queixava, mas se desenvolveu a erupção e a febre baixou um pouco. Não queria comer e pensei que poderia lhe dar leite. Isso me fez recordar que era hora de ir ordenhar. Deixei minha costura, murmurei algo a lorde John e fui até a porta. Ao me abri-la encontrei frente a Gerhard Mueller no pátio de entrada.
encolheu-se da última vez que o tinha visto. Seu rosto era a caveira de um ancião. Seus olhos se cravaram em mim com a única faísca de vida que ficava em seu corpo.
-Herr Mueller -disse com uma voz que soou tranqüila a meus ouvidos-, Wie geht é Euchf.
Deu um passo para mim e involuntariamente retrocedi.
-Frau Klara -disse em tom de súplica.
Detive-me. Queria chamar lorde John, mas vacilei. Não ia chamar me por meu nome de pilha se desejasse me fazer danifico.
-Estão mortas -disse-. Mein Madchen. Mein Kind. As lágrimas saíram de seus olhos injetados em sangue e correram por suas bochechas.
-Sei.-respondi—. O sinto.
Assentiu outra vez e me deixou levá-lo até o banco, onde me obrigou a me sentar com ele.
Súbitamente se voltou e me abraçou me apertando contra sua casaca suja. sacudia-se por causa dos soluços e, até sabendo o que tinha feito, passei-lhe os braços pelo pescoço. Por fim me soltou e de repente viu lorde John, quem não sabia se devia intervir ou não. O ancião se sobressaltou ao vê-lo.
-Mein Gott! —exclamou horrorizado.
O sol pegava no rosto de lorde John iluminando suas rodelas.
O ancião começou a procurar ligo em seu casaco, dizendo coisas em alemão que não pude entender.
-Diz que tinha medo de ter chegado tarde e se alegra de que não seja assim —explicou Grei enquanto contemplava ao ancião granjeiro com desgosto-. Diz que lhe trouxe algo, um talismã que a manterá a salvo da enfermidade e a protegerá das maldições.
O ancião tirou algo envolto em tecido e o deixou sobre minha saia.
-Agradece-lhe toda a ajuda que deu a sua família e pensa que é uma mulher muito boa, tão querida para ele como uma de suas noras. Diz que...
Mueller abriu a parte de tecido com mãos trementes e Grei não pôde continuar.
Abri a boca mas não pude deixar sair som algum. Devi fazer algum movimento involuntário, porque caiu ao estou acostumado a deixando ao descoberto um molho de cabelo grisalho no que ainda havia um pequeno adorno de prata e as plumas de pássaro carpinteiro empapadas em sangue.
Mueller continuava falando e Grei tratava de traduzir, mas eu só entendia pela metade. Em meus ouvidos ressonavam as palavras que tinha escutado um ano antes, ao lado do arroio, na voz suave do Gabrielle traduzindo ao Nayawenne.
Seu nome significa: "Pode ser, pode acontecer». Agora, tudo o que ficava como consolo eram suas palavras: «Ela diz que não deve preocupar-se; a enfermidade é enviada pelos deuses. Não será por sua culpa.
Jamie cheirou a fumaça muito antes de que a aldeia fora visível para eles. Willie viu como ficava rígido e se içava na cadeira olhando cautelosamente ao redor.
-O que acontece? -sussurrou o moço-. O que há?
-Não sei. -Manteve a voz baixa, embora não havia possibilidade de que ninguém os ouvisse. baixou-se do cavalo, entregou as rédeas ao Willie e assinalou um penhasco ao pé do qual havia uns arbustos.
-Leva os cavalos atrás do penhasco -disse-. Ali há um atalho esboçado pelos veados que conduz até um bosque. Fica entre as árvores e me espere ali. -Vacilou porque não queria assustar ao moço-. Se ao obscurecer não tornei, vete imediatamente, não espere à manhã. Retorna pelo arroio que acabamos de cruzar, gira a sua esquerda e continua até ouvir uma cascata; detrás dela verá uma cova que usam os índios em suas caçadas.
Jamie apertou a perna do moço para lhe dar ânimos.
-Fique ali até que amanheça -disse-, e se não ter retornado para então, volta para casa. Deve manter o sol a sua esquerda durante a manhã e a sua direita depois do meio-dia. depois de dois dias de viagem deixa as rédeas do cavalo soltas, pois estará o bastante perto como para que encontre sozinho o caminho.
Respirou profundamente perguntando-se que mais podia lhe dizer, mas não ficava nada.
-Que Deus te acompanhe, moço.
Dirigiu-lhe um sorriso para lhe dar confiança; deu uma palmada ao cavalo para que começasse a andar e se voltou para o aroma de queimado. Não era o aroma característico das fogueiras que se faziam nas aldeias; nem sequer o dos grandes fogos das cerimônias que Ian lhe tinha explicado, quando queimavam árvores no centro da aldeia. O aroma provinha de um fogo muito major.
Com grande precaução, aproximou-se até uma pequena colina de onde sabia que teria uma vista panorâmica da aldeia. logo que saiu do amparo do bosque pôde ver as nuvens de fumaça cinza que subiam do lugar onde se encontravam as moradias índias.
Encontrar-se ante tal desolação o encheu de receio. Observou com cuidado procurando alguma sinal de vida entre as ruínas. Nada se movia, salvo a fumaça agitada pelo vento. Teriam sido os cherokee atacando do sul? Ou os últimos habitantes de alguma das tribos algonquinas do norte?
Uma baforada de fumaça acompanhada de aroma de carne queimada lhe golpeou a cara. inclinou-se para vomitar e ao endireitar-se, enquanto se limpava a boca, ouviu um latido longínquo. Isso lhe tranqüilizou, pois sabia que os habitantes da zona não levavam cães para atacar. deu-se a volta e baixou rapidamente nessa direção com o coração pulsando rapidamente. Se havia superviventes da matança os cães estariam com eles.
Ao chegar à aldeia continuou em silêncio, sem atrever-se a gritar, O fogo se iniciou fazia menos de um dia pois a metade das paredes ainda se mantinham em pé. O cão o descobriu primeiro; era um grande cão cruzado amarelo. Jamie o conhecia posto que pertencia a Onakara, um de quão índios saía de caça com o Ian. O cão não ladrou nem correu, mas sim ficou esperando com as orelhas papa e gemendo brandamente. Jamie se aproximou com lentidão estendendo a mão.
-Balach math -murmurou—. Onde está sua gente?.
O cão o farejou e ao reconhecê-lo-se relaxou um pouco.
Sentiu então uma presença humana, levantou a vista e se encontrou com o rosto do dono do cão. A cara da Onakara estava grafite com raias brancas, mas seus olhos não tinham vida.
-Quem tem feito isto? -perguntou Jamie em seu vacilante tuscarora-, Segue vivo seu tio?
Onakara não respondeu, deu-se a volta e entrou no bosque seguido por seu cão. Jamie caminhou atrás deles. Ao cabo de meia hora saíram a um claro onde os superviventes tinham instalado o acampamento. Enquanto o atravessavam viu rostos conhecidos. Em uns viu que o reconheciam, em outros distinguiu aquele olhar de dor e desespero que ele conhecia tão bem. Faltavam muitos.
Tinha visto antes cenas como aquela. Enquanto caminhava, os fantasmas da guerra e a morte apareciam a seus pés. Entretanto, notou algo diferente a suas lembranças de guerras anteriores. O que tinha passado com a Anna Ooka?.
Nacognaweto estava em uma loja, no lado mais afastado do claro. Onakara levantou o tecido que tampava a entrada e fez um gesto ao Jamie para que entrasse. Um brilho apareceu nos olhos do ancião mas se desvaneceu ao vê-lo. O cacique fechou os olhos para recuperar-se e abri-los depois.
-Não se encontrou com a mulher que padre, nem com a mulher que vive em minha casa?
Habituado ao costume a Índia que considerava de má educação pronunciar o nome da pessoa, salvo em uma cerimônia, Jamie soube que se referia ao Gabrielle e à anciã Nayawenne. Negou com a cabeça sabendo que aquele gesto ia destruir a última faísca de esperança que ficava.
Não seria um consolo, mas tirou o frasco com brandy e o ofereceu a modo de desculpa por não trazer boas notícias. Nacognaweto o aceitou e, com um gesto, chamou uma mulher para que lhe desse uma jarra. O ancião serve uma quantidade que tivesse convexo a um escocês e depois de beber o alcançou ao Jamie.
Bebeu um sorvo por cortesia e lhe devolveu a jarra. Não era ético para os costumes índios tratar imediatamente o assunto da visita, mas não tinha tempo para bate-papos e o ancião tampouco tinha vontades das ouvir.
-O que passou? -perguntou bruscamente.
-Enfermidade -respondeu brandamente Nacognaweto. Seus olhos se umedeceram-. Estamos malditos.
A história foi surgindo interrompida por goles de brandy. O sarampo tinha aparecido na aldeia estendendo-se como o fogo. Durante a primeira semana morreram um quarto dos habitantes da tribo; agora já só ficava uma quarta parte com vida.
Quando começou a enfermidade, Nayawenne cantou sobre as vítimas. Mas quando continuou estendendose foi ao bosque em busca de... Jamie não conhecia tantas palavras, mas pensou que devia ser um talismã ou uma planta. Ou talvez esperava uma visão que lhe dissesse o que tinha que fazer.
Como chegar a um acordo com o diabo que havia lhes trazido essa enfermidade ou o nome do inimigo que os tinha amaldiçoado. Gabrielle e Bena a tinham acompanhado porque era velha e não devia andar sozinha; nenhuma das três tinha retornado.
Nacognaweto se balançava ligeiramente obstinado à jarra. A mulher se inclinou para tirar-lhe mas a fez a um lado e ela obedeceu.
Tinham procurado as mulheres e não tinham conseguido encontrar seu rastro. Talvez as tinham atacado outros índios ou tinham adoecido e morto no bosque. Mas a aldeia não tinha chamán que falasse por eles e os deuses não os escutavam.
-Estamos malditos.
O cacique falava arrastando as palavras e a jarra se balançava perigosamente entre suas mãos. A mulher se ajoelhou e lhe pôs as mãos nos ombros para sujeitá-lo.
-Deixamos os mortos nas casas e lhes prendemos fuego-explicou a mulher. Seus olhos estavam escuros pela dor—.Agora iremos ao norte, a Ogianethaka. -Suas mãos apertaram os ombros do cacique enquanto fazia um gesto ao Jamie-. Você ir agora.
Saiu invadido pela dor e a pena que assolavam o lugar. Em meio de tanto dor sentiu um enorme alívio egoísta porque esta vez não tinha cansado sobre ele. Sua mulher estava viva e seu filho estava a salvo.
Olhou para o céu e viu o pálido resplendor do sol ao ficar. Apurou o passo. Não ficava muito tempo pois a noite chegaria rapidamente.
Oxford, abril de 1971
-Não -disse com firmeza. Roger se deu a volta com o telefone na mão. Olhava o céu chuvoso através da janela-. Não há possibilidade. Vou de Escócia a semana que vem, já lhe disse isso.
-Vamos, Rog. -Tratava de persuadi-lo-a voz da decana-. É justo a classe de coisa que pode fazer e me havia dito que sua garota não vem até julho. Rog, vêm dos Estados Unidos e tenho entendido que lhe dão muito bem as norte-americanas -acrescentou com uma risita.
-Olhe, Edwina -disse tratando de ser paciente-, tenho muitas coisas que fazer durante as férias e entre elas não está passear turistas norte-americanos pelos museus de Londres.
-Não, não. —Assegurou-lhe—. Já temos aos que se ocuparão das visitas turísticas. Só lhe necessitamos para as conferências.
-Sim, mas...
-Dinheiro, Rog —ronronou no telefone, utilizando sua arma secreta-. São norte-americanos, já lhe disse isso, e sabe o que isso significa.
Fez uma pausa para lhe permitir que considerasse a quantidade que ia receber por ocupar-se da semana de conferências. O encarregado oficial do grupo de visitantes universitários norte-americanos se havia posto doente. Em comparação com seu salário normal, parecia uma soma astronômica.
-Ah...
Sentiu que sua resistência se debilitava.
-Sei que pensa te casar, Rog. Poderia comprar algumas costure para as bodas, não crie?
-Alguma vez lhe hão dito que é muito sutil, Edwina? -perguntou.
-Nunca. -lançou outra risita e logo seguiu com tom de executivo-. Bem, então te verei na segunda-feira para planejar as reuniões.
E cortou a comunicação.
Roger conteve o impulso de arrojar o telefone e o colocou em seu lugar.
Talvez não fora má idéia depois de tudo, pensou sombrio. Realmente não lhe importava o dinheiro, mas ter que ocupar-se das conferências manteria sua mente ocupada. Agarrou a carta enrugada que estava ao lado do telefone, alisou-a e deixou correr a vista pelos parágrafos de desculpa sem lê-los realmente.
Sentia-o tanto, dizia. Um convite especial para uma conferência de engenheiros no Sri Lanka. (Todos os norte-americanos assistiam a cursos do verão?) Contatos valiosos, entrevistas de trabalho (entrevistas de trabalho? Diabos, sabia, nunca voltaria') que não podia deixar passar. Sentia-o muitíssimo. «Verei-te em setembro. Escreverei-te. Com amor.»
-Sim, claro -disse-. Amor.
Enrugou a cã e a atirou sobre o penteadeira, esta pegou contra o marco de prata e caiu ao tapete.
-Poderia me haver dito diretamente que encontrou a outro -disse em voz alta-. Você é a inteligente e eu o parvo. Mas não podia ser sincera e não me mentir como uma puta?
Estava tratando de enfurecer-se e assim encher o vazio que sentia. Mas não funcionava. Agarrou a foto com marco de prata com desejos de rompê-la, mas ficou olhando-a durante comprido momento e a voltou a colocar em seu lugar.
-Sente-o muito -disse—. Sim, eu também.
Maio de 1971
As caixas lhe esperavam na portaria quando retornou da faculdade, cansado e farto dos norte-americanos, o último dia da conferência. Eram cinco grandes caixas de madeira, embaladas e com as brilhantes etiqueta de via marítima internacional.
—O que é isto?
Roger colheu com uma mão o recibo enquanto com a outra procurava a gorjeta para o mensageiro.
—Não sei -disse o homem, suarento e mal-humorado depois de deixar a última gaveta na portaria-. São todo deles, companheiro.
Roger levantou uma caixa para provar. Sim não eram livros seria chumbo. Havia um sobre pego em uma caixa. Com esforço o separou e o abriu.
«Uma vez me disse que seu pai dizia que todos necessitam uma história. Esta é a minha. Quer guardá-la com a tua?»
Não havia saudação nem despedida, somente a letra B escrita com risco firme. depois de contemplá-la um momento, dobrou-a e a guardou no bolso da camisa. Com cuidado, levantou a caixa de acima e a carregou.
-Deve pesar trinta quilogramas!
Roger deixou as caixas na sala e com um chave de fenda e uma garrafa de cerveja se dedicou a abrir a embalagem. Tratou de acalmar-se, mas não pôde. Uma moça envia suas coisas a alguém que pensa deixar?
-Sua história, né? -murmurou-. Pela forma em que o embalou parecem coisas de um museu.
Uma caixa dentro de outra, logo uma capa de aparas e outra caixa que, uma vez aberta, revelou grande quantidade de cajitas e objetos envoltos em papel de jornal. Tirou uma caixa de sapatos e olhou seu interior. Fotografias antigas com borde ondulados v outras novas em cor. Sobressaía-me o bordo de um grande retrato e o tirou.
Era Claire Randall, muito parecida com como ele a tinha conhecido: olhos cor âmbar, quentes e surpreendentes; um arbusto de sedosos cachos cor castanha e um leve sorriso na boca delicada. Voltou-a a guardar na caixa sentindo-se como um assassino. Entre as folhas de periódico saiu uma boneca de trapo com a cara desbotada em que só ficavam os olhos feitos de botões.
Em outro pacote havia uma máscara do camundongo Mickey com uma gomita para sujeitá-la detrás das orelhas. Uma caixa de música em que, ao abri-la, soava a canção do Mago de Oz. Um pulôver vermelho que deveu ser do Frank. Uma gasta bata de seda que em um impulso se aproximou do nariz. Claire. Seu aroma a trouxe para a vida e deixou cair o objeto com um estremecimento.
Abaixo havia objetos mais importantes. Três largos cofres com talheres de prata envoltos cuidadosamente. Cada cofre tinha uma nota escrita a máquina com a história de cada mego. Eram da família.
Com crescente curiosidade, Roger continuou tirando os objetos que formavam a história da Brianna Randall. História. por que a tinha chamado assim? sentia-se intrigado e lhe ocorreu procurar as etiquetas com a direção, Oxford. Sim, tinha-as enviado a ele. por que ali, quando ela acreditava que ele ia estar em Escócia durante o verão? É onde deveria ter estado se não tivesse sido pela conferência de última hora, e não lhe havia dito nada sobre ela.
Em um rincão do fundo havia um joalheiro pequeno mas valioso. Continha vários anéis, broches e jogos de pendentes. O broche de quartzo que lhe tinha agradável para seu aniversário. Colares e cadeias. Faltavam duas coisas: o bracelete de prata que lhe tinha agradável e o colar de pérolas de sua avó.
—Por todos os Santos!
Olhou outra vez para estar seguro e derrubou todo o conteúdo do joalheiro. Não havia pérolas. Um colar de barrocas pérolas escocesas engastadas com antigas argolas de ouro. Não as levaria a uma conferência de engenheiros no Sri Lanka. Para ela as pérolas eram uma relíquia, não um adorno. Não as usava. Eram seu vínculo com...
-Não o terá feito! -disse em voz alta-. Me diga que não o fez!
Atirou o joalheiro sobre a cama e baixou correndo as escadas fazia a cabine Telefónica.
Demorou séculos em conseguir a conferência internacional e, depois de uma série de ruídos e atrasos, obteve comunicação. O telefone soou três vezes e seu coração saltou para ouvir que o foram atender. Ela estava em casa!
-Lamentamo-lo -disse uma voz de mulher, agradável mas impessoal—, este número foi desligado ou está fora de serviço.
«Não pôde fazê-lo! Não? Sim, claro que podia, maldita temerária! Onde infernos estará?»
Estava zangado e tamborilava inquieto com os dedos em sua coxa enquanto esperava a conexão através de telefonistas e secretárias do hospital, até que por fim lhe chegou uma voz conhecida, profunda e ressonante.
-Havia Joseph Abernathy.
-Doutor Abernathy? Aqui Roger Wakefield. Sabe onde está Brianna? -perguntou sem preâmbulos.
A voz profunda se agudizó levemente pela surpresa.
-Com você. Não está aí?
-Não está —respondeu com toda a calma que pôde, embora um estremecimento o encheu de temor— ia vir em outono, depois de graduar-se e assistir a uma conferência.
-Não. Não, não é assim. Terminou seu trabalho de curso no fim de abril, levei-a a jantar para celebrá-lo e me disse que se ia diretamente a Ardia sem esperar a cerimônia de graduação. Espere, me deixe pensar... sim, isso; meu filho Lenny a levou a aeroporto... quando? na terça-feira... o 27. Quer dizer que não chegou?
A voz do doutor Abernathy aumentava de tom pela agitação.
-Não sei. -A mão livre do Roger estava crispada-. Não me disse que ia vir. -obrigou-se a respirar profundamente-. Onde ia o vôo, a que cidade, sabe? Londres?. Edimburgo?
Se o que queria era surpreendê-lo com uma chegada inesperada, tinha-o conseguido mas duvidava de que essa fora sua intenção.
Visões de seqüestros, assaltos ou bombas do IRA cruzaram por sua mente. Algo era melhor que o que lhe diziam suas vísceras. Maldita mulher!
-Inverness -dizia a voz do doutor Abemathy em seu ouvido-. De Boston ao Edimburgo e logo em trem até o Inverness.
-Pelos pregos de Cristo!
Era uma blasfêmia e uma súplica. Se tinha saído de Boston na terça-feira, poderia ter chegado ao Inverness em algum momento da quinta-feira. E na sexta-feira tinha sido 30 de abril, véspera do Beltane, a antiga festa do fogo, quando os topos das colinas da velha Escócia resplandeciam com as chamas de purificação e fertilidade. Momento em que a porta da colina mágica do Craigh na Dun se abriria.
A voz do Abernathy lhe exigia respostas. obrigou-se a concentrar-se.
-Não -disse com certa dificuldade-. Não chegou, mas eu ainda estou em Oxford. Não tenho nem idéia.
O silêncio entre ambos se encheu de temor. Tinha que lhe perguntar.
-Doutor Abernathy -disse com cuidado-, é possível que Brianna tenha ido procurar a sua mãe, ao Claire. me diga, você sabe onde está?
Esta vez o silêncio se carregou de precaução.
-Ah... não. -A voz chegou lema, cautelosa e vacilante-. Não, temo-me que não. Não exatamente. Não exatamente.
Uma boa forma de dizê-lo. Roger se passou uma mão pela cara.
-me deixe lhe perguntar algo -disse Roger cuidadosamente—. Alguma vez ouviu o nome do Jamie Fraser?
A linha ficou em silêncio. Logo chegou um profundo suspiro.
-Por todos os demônios -disse o doutor Abernathy—. O fez.
«Você não o faria?»
Isso foi o que lhe havia dito Joe Abernathy como conclusão a seu largo bate-papo. Pergunta-a flutuava em sua mente enquanto conduzia para o norte, quase sem ver os sinais da estrada pela que passava a toda velocidade.
«Você não o faria?»
-Eu o faria -havia dito Abernathy-. Se você não conhecesse seu pai, se alguma vez o tivesse conhecido e de repente descobre onde está, não quereria conhecê-lo, descobrir como é realmente? Eu sentiria curiosidade.
-Você não entende -foi a resposta do Roger. Esfregando-a frente em um gesto de frustração-. Não é como se uma pessoa que foi adotada descobre o nome de seu verdadeiro pai e se apresenta na porta dê sua casa.
-Acredito que é exatamente assim. -A voz profunda se tornou fria-. Bri era adotada, não? Acredito que o teria feito antes de não ter tido esse sentido da lealdade para o Frank.
Roger negava com a cabeça sem ter em conta que Abernathy não podia vê-lo.
-Não é assim, o caminho até a porta da casa. Isso... a forma de ir através. Olhe, Claire o contou?
-Sim, fez-o. -Tinha respondido com tom reflexivo—. Disse que não era como passar por uma porta giratória.
-Por dizer o de forma suave.
O pensar no círculo de pedras do Craigh na Dun fez que Roger se estremecesse.
-Por dizer o de forma suave. Você sabe como é?
-Sim, maldição, sei! Sinto muito, olhe, não é... não posso explicar-lhe nem acredito que ninguém possa. Essas pedras... é evidente que não todos as ouvem. Mas Claire o fez. Bri também e eu também. E para nós... Claire tinha passado através das pedras do Craigh na Dun dois anos antes, na festa do Samhaln de primeiro de novembro. Roger se estremeceu e não era pelo frio.
-Então, não todo mundo pode passar, mas você sim pode. -A voz do Abernathy denotava curiosidade e algo que soava a inveja.
-Não sei. Pode que sim. O caso é... —Tratou de controlar seu medo-. Embora tivesse podido acontecer não há forma de saber se o obteve, nem onde saiu.
-Já vejo. Você não sabe nada sobre o Claire, então? Não sabe se o obteve?
-Não. -Não quis afundar mais por telefone com quase um desconhecido-. É uma mulher e não há muitas referências sobre o que faziam individualmente as mulheres. Salvo que ferissem algo espetacular, como que as queimassem por bruxas ou as pendurassem por assassinas. Ou as assassinassem.
-Estraga. Mas ela o fez, ao menos, uma vez. Foi... e retornou.
-Sim, fez-o. Mas não sabemos se Brianna pôde chegar até ali, nem se sobreviveu às pedras e saiu na época correta. Tem idéia de quão perigoso podia chegar a ser o século XVIII?
-Não —tinha respondido com secura Abernathy—, Embora acredite que você se. Mas sei que Claire pareceu adaptar-se bem.
-Sobreviveu. Não é muito para promocionar umas férias. Se tiver sorte retornará com vida.
Os nervos fizeram rir ao Abernathy.
-Sim. Bem. O fato é que Bri se foi a algum site e acredito que provavelmente você tenha razão. Quero dizer que se fosse eu, o teria feito. Você não tivesse ido?
«Você não tivesse ido?»
Dobrou à esquerda, passou uma caminhonete e seguiu.
«Eu o teria feito.» A voz do Abernathy ressonava em seus ouvidos.
INVERNESS 30, dizia o sinal. Torceu bruscamente para a direita e o pequeno Morris derrapou sobre o pavimento molhado. A chuva caía com força. «Você não tivesse ido? Tocou o bolso de sua camisa, onde guardava sobre seu coração uma foto da Brianna. Seus dedos tocaram o relicário de sua mãe, que tinha guardado no último momento para que lhe desse sorte.
«Você não tivesse ido?
-Sim, talvez o faria -murmurou-. Mas lhe houvesse isso dito. por que não me disse isso?
Nem o aroma dos móveis recém lustrados, nem a cera do piso, nem a pintura fresca, nem o ar renovado do vestíbulo, nem nenhuma das provas aromáticas do ardor doméstico da Fiona podia competir com o delicioso aroma que saía da cozinha.
Roger deixou sua mala na entrada. Era evidente que a velha casa paroquial tinha tomado uma nova direção. Mas sua transformação em estalagem não tinha podido alterar seu espírito original.
Recebido com entusiasmo pela Fiona, e um pouco menos pelo Ernie, instalou-se em sua antiga habitação e se dedicou imediatamente a investigar os passos da Brianna. Não era difícil, já que uma mulher de um metro oitenta e com cabelo avermelhado chamava muito a atenção.
Tinha chegado ao Inverness desde o Edimburgo. Disso estava seguro porque a tinham visto na estação. Também sabia que uma mulher ruiva tinha alugado um carro e tinha pedido que a levassem a campo. O condutor não sabia onde se dirigiam até que de repente a mulher lhe disse: "Aqui, me deixe aqui!».
-Disse que ia encontrar se com seus amigos -explicou o condutor-. Levava uma mochila e ia vestida para uma excursão, disso estou seguro. Era um dia muito úmido para caminhar pelo páramo, mas já sabe como são esses turistas norte americanos
Claire tinha deduzido que o passo se abria durante as antigas festas do sol e do fogo. Tudo fazia pensar que era assim. Claire tinha passado a primeira vez na festa do Bekane, em primeiro de maio, e a segunda vez no Samhain, em primeiro de novembro. Brianna parecia ter seguido os passos de sua mãe no Beltane.
Bom, ele não esperaria até novembro. Só Deus sabia o que podia lhe acontecer em cinco meses. Beltane e Samhain eram festas do fogo, entretanto, entre médio havia uma festa do sol.
O solstício do verão era a próxima festa. Ainda faltavam quatro semanas para em 20 de junho. Apertou os dentes ao pensar na espera; sentia a necessidade de ir-se já, esquecendo o perigo, mas não ajudaria em nada a Brianna se seguia seu cavalheiresco impulso e morria no intento.
Com calma começou a fazer os preparativos. Pelas tardes se distraía de seus pensamentos jogando às damas com a Fiona, indo ao botequim com o Ernie ou, como último recurso, revisando as caixas guardadas na garagem.
E algumas noites até conseguia dormir.
-Tem uma foto em seu escritório.
Fiona não o olhou, mas sim seguiu atenta a sua tarefa de recolher os pratos.
-Muitíssimas. -Roger bebeu um gole de chá muito quente-. Quê-la? Sei que há umas de sua avó. Agarra as que queira, só há uma que quero guardar.
Olhou-o um pouco surpreendida.
-Da abuelita? Sim, a papai gostava. Mas refiro a grande.
- A grande?
Roger tratou de pensar a qual se referiria Fiona.
-É daquela que matou a seu marido e partiu.
Fiona franziu a boca.
-Aquela que... Refere ao Gillian Edgars?
-Sim —repetiu Fiona com teima-, por que tem uma foto dela?
-Bom... alguém me deu isso.
-Quem?
Fiona normalmente era insistente mas nunca tão direta. O que seria o que a incomodava?
-A senhora Randall. A doutora Randall, quero dizer. por que?
Fiona não respondeu e apertou os lábios com força.
Roger a observou com cautela.
-Você conhecia o Gillian Edgars?
Fiona não lhe respondeu diretamente.
-estiveste nas pedras do Craigh na Dun. Joyce me disse que seu Albert lhe tinha contado que te viu na quinta-feira, quando ia ao Drumnadrochit.
-Sim. Não é um crime, não?
Tratou de brincar, mas Fiona não o seguiu.
-Sabe que é um lugar estranho; todos os círculos o são, e não me diga que foste admirar a paisagem.
-Não lhe diria isso.
sentou-se na cadeira e a olhou.
-Você a conhece. Claire me disse que a tinha conhecido.
A chispada de curiosidade que tinha sentido para ouvir mencionar 3. Gillian Edgars se conveio em uma labareda de excitação.
-Não posso conhecê-la posto que está morta. Não é assim?
Roger a agarrou de um braço.
-Está morta?
-É o que todos pensam. A polícia não encontrou rastros dela.
-Talvez não procuraram no lugar correto.
Tudo o sangue abandonou seu rosto ruborizado. Roger a sustentou com força. Ela sabia algo. Mas o que era o que sabia?
-me diga, Fiona. Por favor, me diga, o que sabe sobre o Gillian Edgars e essas pedras?
liberou-se de sua mão mas não partiu. Permaneceu ali olhando-o assustada.
-Façamos um trato -disse, esforçando-se por falar com calma para não assustá-la-. Se me disser o que sabe, eu te direi por que a doutora Randall me deu essa foto e por que fui ao Craigh na Dun.
-Tenho que pensá-lo.
inclinou-se para agarrar a bandeja com os pratos sujos e saiu pela porta antes de que pudesse dizer uma palavra para detê-la.
Voltou a sentar-se. Tinha sido um bom café da manhã, como todos os da Fiona, mas agora lhe pesava no estômago. Não devia ser tão ansioso, disse-se. depois de tudo, o que podia saber Fiona? E se cumpria o trato e lhe contava tudo?
Não sobre o Claire Randall e Gillian, a não ser sobre ele e Brianna.
Pensou no Bri. Era como uma rocha atirada no lago de seu coração, enviando ondas de medo em todas direções.
«Ela está morta.» Fiona havia dito isso do Gillian. «Não é assim?» «Ela está morta?'-, tinha respondido ele, com a foto da mulher vívida em sua memória, os olhos grandes e verdes e o cabelo flutuando pelo vento quente que saía do rogo, decidida a voar através das portas do tempo. Não, ela não tinha morrido.
Ao menos não então, porque Claire a tinha encontrado. Antes? Depois? Como podia pensar em todo isso com coerência?
Não podia ficar sentado. Saiu ao vestíbulo e se deteve na porta da cozinha. Fiona estava ao lado da pilha olhando pela janela. Seu rosto estava aceso e nele se via um gesto de decisão.
-Não deveria contá-lo mas o farei, tenho que fazê-lo. A mãe do Bri, a encantadora doutora Randall, perguntou-me sobre minha avó. Sabia que tinha sido uma... uma druida.
-Druida? Refere às das pedras?
Roger estava assombrado. Claire o havia dito mas nunca acreditou.
Fiona deixou escapar um comprido suspiro.
-Então sabe. É 1o que pensava.
-Não, não sei. Tudo o que sei é o que Claire, a doutora Randall, disse-me. Ela e seu marido viram umas mulheres dançando de madrugada no círculo de pedras, no Beltane, e sua avó era uma delas.
Fiona sacudiu a cabeça.
-Não só uma delas. A avó era a llamadora.
-Vêem e sente-se -disse levando-a até a mesa-. Me conte, o que é uma llamadora?
-A que chama ao cair o sol. -Fiona se sentou sem opor resistência-. É a canção do sol, canta-se em língua antiga, algumas palavras são parecidas com o gaélico mas não todas. Primeiro dançamos no círculo, logo a llamadora se detém frente à pedra Y... não é exatamente um canto, são versos que se recitam, como o faz o ministro na igreja. Terá que começar justo no momento adequado, quando a primeira luz aparece sobre o mar; desta forma, quando se termina, os raios do sol atravessam a pedra.
-Recorda algumas palavras?
O estudioso que havia no Roger sentia curiosidade entre tanta confusão.
-Sei-as todas -respondeu Fiona com uma cara que lhe recordou à avó-. Agora eu sou a llamadora.
Roger se deu conta de que estava boquiaberto.
-Isso não precisa sabê-lo -disse Fiona com praticamente- e não lhe direi isso. Você quer informação sobre a senhora Edgars.
Fiona tinha conhecido ao Gillian Edgars, era uma das novas bailarinas. Gillian fazia pergunta às mulheres maiores, ansiosa de aprendê-lo tudo. Queria aprender a canção do sol, mas só a llamadora e sua sucessora podiam conhecê-la.
Fiona fez uma pausa e se olhou as mãos.
-É um ritual de mulheres, só de mulheres. Os homens não podem formar parte e nós não lhes dizemos nada. Nunca.
Pôs uma mão sobre as dela.
-Faz bem em me dizer isso , Fiona -disse brandamente-. Me conte o resto, por favor. Tenho que sabê-lo.
Olhou-o diretamente aos olhos.
-Sabe onde foi Brianna?
-Isso acredito. foi por onde o fez Gillian, não é assim? Fiona continuava olhando-o sem responder. O irreal da situação o sacudiu. Não podia estar sentado ali, na cômoda cozinha que conhecia desde sua infância, bebendo chá com uma taça que tinha grafite a cara da rainha e discutindo sobre pedras sagradas e viaje pelo tempo com a Fiona. Com a Fiona, cujos interesses se limitavam ao Ernie e à economia doméstica.
Ou isso era o que ele acreditava.
-Tenho que ir atrás dela, Fiona... se puder. Poderei?
Fiona sacudiu a cabeça com evidente medo.
-Não lhe posso dizer isso Se só as mulheres conhecerem o ritual, talvez só elas podem fazê-lo.
Isso era o que lhe preocupava, ou uma das coisas às que temia.
-Só há uma forma de descobri-lo, não? -disse, tratando de parecer despreocupado.
-Eu tenho seu caderno -deixou escapar Fiona.
-O que- como? o do Gillian? Escreveu algo?
-Sim, fez-o. Há um site onde... -O olhou de esguelha e se umedeceu os lábios-. Nós deixamos nossas coisas ali, preparadas de antemão. Ela deixou seu caderno Y... e eu o agarrei, depois...
depois de que encontrassem morto no circulo ao marido do Gillian, pensou Roger que queria dizer Fiona.
-Sabia que a polícia o queria -continuou Fiona-, mas... bom, não queria entregar-lhe a eles. Entretanto, pensava: e se tiver algo que ver com o assassinato? Não podia guardá-lo se era importante Y... -Olhou ao Roger, rogando que a compreendesse-. Era seu caderno, o que ela tinha escrito, tinha-o deixado naquele lugar,..
-Que era secreto -terminou Roger.
Fiona assentiu e respirou profundamente.
-Assim que o li.
-Por isso sabe como se foi -disse brandamente Roger.
Fiona se estremeceu e lhe dirigiu um sorriso.
-O caderno não teria ajudado à polícia, pode estar seguro.
-Pode me ajudar a mim?
-Isso espero -disse com simplicidade; abrindo o aparador tirou um caderno envolto em tecido verde.
Este é o grimoire da bruxa Geillis. É um nome de bruxa e tomei para mim; com o que nasci não importa, só o que vou fazer comigo, só o que vou chegar a ser.
O que é isso? Não posso dizê-lo, somente ao fazê-lo descobrirei o que tenho que fazer. O meu é o caminho do poder. O poder absoluto corrompe absolutamente, sim, como? Bom, a presunção de que o poder pode ser absoluto, porque nunca o é. Porque somos mortais, você e eu. E entretanto, dentro dos limites da carne muitas costure são possíveis. Se essas coisas forem possíveis além desses limites, esse é o reino de outros, não o meu. E essa é a diferença entre eles e eu, esses outros que foram antes para explorar o Reino Negro, aqueles que procuram poder na magia e invocando aos demônios.
Eu vou com o corpo, não com a alma. E ao negar minha alma, não lhe dou poder a nenhuma força, só às que posso controlar. Não peço favores nem a deus nem ao diabo, renego de ambos. Porque se não haver alma, nem morte que considerar, então nem deus nem o demônio mandam, suas batalhas não têm conseqüências para alguém que vive somente na carne,
Nós decidimos em um momento e, entretanto, é para sempre. Só uma vida nos é dada e, entretanto, seus anos podem viver-se em muitas épocas, em quantas?
Se quer exercer o poder, deve escolher sua época e seu lugar, porque somente quando a sombra da pedra cai a seus pés, a porta do destino se abre realmente.
-Um caso de loucura -murmurou Roger-. E um estilo de prosa horrível.
A cozinha estava vazia e falava para dar-se confiança. Mas isso não lhe ajudava. Passou as páginas com cuidado seguindo as linhas de letra redonda e clara. Havia uma seção titulada: «Festas do sol e festas do fogo».
Em meio do que era uma evidente loucura havia método e organização, uma estranha mescla de fria observação e vôo poético. A parte central se titulava «Casos estudados», e se a primeira seção lhe tinha posto a pele de galinha, esta lhe gelava o sangue.
Era uma lista cuidadosa, com datas e lugares, dos corpos encontrados na proximidade dos círculos de pedras.
A aparência de cada um estava cotada; debaixo, umas poucas palavras especulavam sobre as possíveis causa.
14 de agosto de 1931. Sul-o-Mere, Grã-Bretanha. Corpo de um homem sem identificar. Idade: 40 ânus aprox. Encontrado perto de um círculo de pedras. Sem causa evidente de morte, queimaduras em braços e pernas. Descrição da roupa; «farrapos». Não há foto.
Causas possíveis do fracasso; r) homem, í) data equivocada, 54 dias depois da festa do sol, 1de abril de 1950. Castierigg, Escócia. Corpo de mulher, sem identificar. Idade: 15 anos. Encontrada fora do círculo.
Causas possíveis do fracasso: i) data equivocada, 2) falta de preparação.
1 de maio de 1963. Tomnahurich, Escócia. Corpo de mulher, identificado como Mary Walker Willis. Morte devida a ataque cardíaco, ruptura da aorta. Relatório sobre o “estranho” estado de suas roupas.
Falha: esta pessoa sabia o que estava fazendo, mas não o conseguiu. Devido talvez à omissão de um adequado sacrifício.
A lista continuava, aterrando ao Roger com cada nome. Tinha encontrado vinte e dois em um período que ia desde meios de 1600 em meados de 1900 em diversos lugares de Escócia, Inglaterra e Grã-Bretanha, todos eles lugares com pedras pré-históricas. Alguns eram acidentes, pensou Roger, gente que caminhava por ali, que não sabia nada.
Mas uns poucos, dois ou três, pareciam saber algo, apreciava-se certa preparação em suas roupas, talvez tinham acontecido antes e o tentavam de novo, mas então não lhes funcionou. Seu estômago se curvou como uma fria serpente. Claire tinha razão: não era como passar por uma porta giratória.
Logo estavam os desaparecimentos... estavam em uma seção à parte, com idade, sexo, data e as circunstâncias em que se produziram. Umas cruzes determinavam a quantidade de gente que tinha desaparecido em cada festa. Voltou a página e se deteve como se lhe tivessem chutado o estômago.
1 de maio de 1945- Craigh na Dun, Inverness, Escócia. Claire Randall, 27 ânus, dona-de-casa. Vista por última vez pela manhã cedo, disse que ia visitar o círculo de pedras em busca de uma planta especial; não retornou ao anoitecer. O carro estava estacionado ao pé da enche. Não havia rastros no círculo.
Deu a volta à página cuidadosamente, como se esperasse que estalasse em sua mão. Assim Claire, sem dar-se conta, tinha dado provas ao Gillian para seu experimento. Teria encontrado os informe da volta do Claire, três anos depois?
Não, evidentemente não, decidiu Roger depois de revisar as outras páginas; ou, se o tinha feito, não o tinha escrito.
A última seção se titulava "Técnicas e preparações». E começava assim:
Algo jaz aqui mais antigo que o homem, as pedras guardam seu poder. Os antigos conjuros falam das linhas da terra" e do poder que flui através delas. O propósito das pedras tem que ver com essas linhas, estou segura. Mas as pedras desviam as linhas de poder ou som só assinale?
Começou a ler cada vez mais rápido até que decidiu fechar o caderno. Leria o resto mais tarde. Agora tinha que sair a tomar o ar. Não era estranho que o caderno tivesse turbado a Fiona.
Caminhou rapidamente rua abaixo, dirigindo-se para o Não sem preocupar-se da chuva. Era tarde, soava o sino de uma igreja e o tráfico de caminhantes cruzando as pontes para os botequins era intenso. Mas por cima do sino, pisada-las e as vozes, ouvia as últimas palavras que tinha lido como se se dirigiram diretamente a ele.
Devo te beijar, menino? Devo te beijar, homem? Sente os dentes debaixo de meus lábios quando o fizer. Posso te matar tão facilmente como te abraço. O sabor do poder é o sabor do sangue, ferro em minha boca, ferro em meu coração.
É necessário o sacrifício.
20 de junho de 1971
Em Escócia, na véspera do solstício do verão, o sol está no céu com a lua. Solstício do verão, a festa da Litha, Alban Eilir. Era perto de meia-noite e a luz era tênue e leitosa, mas era luz.
Podia sentir as pedras muito antes das ver. Claire e Geillis tinham razão, pensou, a data era importante. Em suas visitas anteriores lhe tinham parecido mágicas mas silenciosas.
Agora podia as ouvir, não com os ouvidos, a não ser com a pele; era um zumbido baixo como o das gaitas de fole.
Chegaram ao outro lado da crista da colina e se detiveram uns nove metros do círculo. Para baixo havia um vale escuro e misterioso baixo a lua ascendente. Ouviu o ofego de uma respiração e lhe ocorreu que Fiona podia estar realmente atemorizada.
-Olhe, não é necessário que fique -disse-lhe-. Se tiver medo deveria ir, eu estarei bem.
-Não tenho medo por mim, tolo -murmurou-. Vamos.
Sentiu frio em que pese a sua roupa de casaco. Seu traje parecia súbitamente ridículo: casaca de abas largas, meias tecidas, colete de lã e calções fazendo jogo. Uma peça de teatro na faculdade, tinha explicado à alfaiate
Fiona entrou primeiro no círculo; não queria que a observasse. Obediente ficou de costas, deixando que ela fizesse o que tinha que fazer. Levava uma bolsa de plástico, certamente com objetos para a cerimônia. Tinha-lhe perguntado o que continha e a resposta foi que se ocupasse de seus próprios assuntos. Fiona estava quase tão nervosa como ele.
O constante zumbido lhe incomodava. Não era em seus ouvidos, a não ser em todo seu corpo. Esperava que fora assim, que só os que ouviam as pedras pudessem passar através delas. Nunca se perdoaria que algo acontecesse a Fiona; embora lhe havia dito que tinha estado muitíssimas vezes no círculo durante as festas, sem que nada lhe ocorresse. Olhou por cima de seu ombro e viu uma tênue chama na base da grande pedra.
Fiona cantava com voz suave e aguda. Não podia entender as palavras. Todas as outras viajantas que conhecia eram mulheres. Funcionaria com ele? Acreditava que sim. Se a habilidade era genética, por que não? Claire tinha viajado e também Brianna.
Brianna era a filha do Claire. E ele era o descendente da outra viajante do tempo que conhecia, Geillis, a bruxa.
arranhou-se violentamente o peito para aliviar a irritação e sentiu o tato do relicário de sua mãe, que levava para que lhe desse sorte. Tênia suas dúvidas sobre as especulações do Geillis: não pensava tentá-lo com sangue- Fiona tentaria substitui-la por fogo, mas depois de cotovelo, as pedras preciosas não fariam mal, e se ajudavam... Não poderia dar-se pressa Fiona?
Para distrairse tocou o bolso do peito onde guardava o relicário. Se podia... se funcionava... Viu o rosto do Jerry MacKenzie em sua mente.
Brianna tinha ido encontrar a seu pai, poderia fazer ele o mesmo? Fiona! Aquilo ficava pior, lhe tocavam castanholas os dentes e a pele parecia lhe arder. Então Fiona se aproximou, agarrou-lhe a mão e lhe disse algo enquanto o conduzia dentro do círculo. Não podia ouvi-la pelo ruído, cada vez mais forte, que estava dentro de seu corpo.
Apertou os dentes e olhou o rosto apavorado da Fiona; inclinou-se e a beijou nos lábios.
-Não o diga ao Ernie -disse.
deu-se a volta e caminhou através da greta da pedra.
Um leve aroma de queimado lhe chegou com o vento do verão. Voltou a cabeça tratando de situá-lo. Ali. Uma chama na colina próxima, uma rosa de fogo do solstício do verão.
Uma vaga sensação de que algo ia mal interrompeu sua paz. De repente sentia seu corpo e lhe doía.
-Roger!
A voz estalou em seu ouvido e se sacudiu. Uma dor percorreu seu peito e se tocou com a mão. Sentiu umidade e pensou que estava sangrando.
-Já despertaste, por fim! É um bom moço. Espera, devagar.
Piscou confundido e a sombra se converteu na silhueta da cabeça da Fiona, escura contra o céu.
Seu corpo havia tornado para vingar-se. sentia-se terrivelmente doente e com um espantoso aroma de café e a carne queimada. Tratou de incorporar-se mas se derrubou sobre a erva. Estava úmida e isso lhe resultou agradável em seu rosto chamuscado.
As mãos da Fiona lhe secavam a cara e a boca.
-Está bem? -disse uma vez mais.
Mas esta vez teve forças para responder.
-Fui-susurró-. Estou bem. Porquê...?
-Não sei. Desapareceu, já não estava; logo houve um estalo de fogo e apareceu atirado dentro do círculo com o casaco ardendo. Tive que apagá-lo com o recipiente térmico de café.
Desde aí o aroma de café e a umidade que sentia no peito. Havia uma queimadura no tecido molhado de sua casaca. O relicário de sua mãe se derreteu.
-O que aconteceu, Roger?
Fiona tinha o rosto manchado de lágrimas. Quanto tempo tinha estado inconsciente?
-Eu... -ia começar a dizer que não sabia, mas se interrompeu—. me Deixe pensar um pouco, quer?
Pôs a cabeça sobre os joelhos, respirando o aroma de erva úmida e roupa chamuscada.
Levantou a cabeça e respirou profundamente.
-Estava pensando em meu pai -disse—. Assim que passei através da pedra estava pensando se poderia encontrá-lo e eu... fiz-o.
-Fez-o? Seu pai? Era um fantasma, isso quer dizer?
Sentiu, mais que viu, o som de seus dedos fazendo chifres contra o diabo.
-Não. Não exatamente. Não... não posso explicá-lo, Fiona. Mas o encontrei. Conheci-o. —A sensação de paz ainda permanecia nele-. Então houve uma espécie de explosão. Algo me golpeou aqui. -Seus dedos tocaram a queimadura de seu peito-- E uma força me empurrou... fora; e isso é tudo o que sei, até que despertei. Obrigado, Fee, salvou-me de me queimar vivo.
A moça fez um gesto lhe tirando importância e se sentou em cuclillas, pensativa.
-Estava pensando, Roger, o que ela dizia no caderno sobre ter certo amparo se a gente levava alguma pedra preciosa. Havia pedras no relicário de sua mãe, não?
-Pôde ouvir que Fiona tragava com dificuldade-. Talvez... se não tivesse tido isso... possivelmente não estaria vivo. Ela falava do homem que não tinha amparo e se queimou e você te queimou onde estava o relicário.
-Sim, pode ser.
Roger começava a recuperar-se. Olhou a Fiona com curiosidade.
-Sempre diz «ela». por que alguma vez diz seu nome?
-A gente não nomeia a alguém a menos que queira que vinga-respondió—. Tem que sabê-lo. Seu pai era ministro.
-Agora que o menciona -disse, tratando de brincar sem consegui-lo-, eu não pronunciava o nome de meu pai, mas talvez... a doutora Randall disse que pensou em seu marido quando retornou.
Fiona assentiu com o rosto carrancudo.
-Já quase é de dia! Tenho que ir!
-Ir ? -Fiona abriu os olhos com horror- vais tentar o outra vez?
-Farei-o, tenho que ir.
ficou em pé. Tremiam-lhe os joelhos mas podia caminhar.
-Está louco, Rog? Morrerá, estou segura!
Sacudiu a cabeça com o olhar cobre na pedra grande.
-Não -disse e confiou em que isso fora verdade-. Não, sei o que saiu mau. Não acontecerá outra vez.
-Agora não pode, seguro que não!
-Sim, poderei. -Sorriu-lhe e lhe agarrou a mão, pequena e fria-. Espero que Ernie não tenha retornado ou fará que a polícia te busque; será melhor que volte.
encolheu-se de ombros com impaciência.
-Está pescando com sua primo Neil; não retornará até na terça-feira. O que quer dizer com que não acontecerá de novo, por que não?
Isso era o mais difícil de explicar mas o devia.
-Quando te disse que pensava em meu pai estava pensando no pouco que conhecia dele, as fotos com uniforme ou com minha mãe. O caso é... que fui a sua época. Dá-te conta?
Olhou-a e viu que piscava lentamente compreendendo.
-Não encontrou só a seu pai? -perguntou brandamente.
Negou com a cabeça sem poder falar. Não havia imagens para transmitir o que tinha sido encontrar-se consigo mesmo.
-Tenho que ir -repetiu devagar. Apertou-lhe a mão-. Fiona, não sabe como lhe agradeço isso.
Contemplou-o por um momento com os olhos úmidos.
Logo se soltou e tirando o anel de compromisso o colocou na mão.
-É uma pedra pequena, mas é um diamante de verdade -disse-. Talvez te ajude.
-Não me posso levar isso
Quis devolver-lhe mas Fiona deu um passo atrás e escondeu as mãos detrás das costas-Não se preocupe, está assegurado —disse-, Ernie é muito bom com os seguros. -Tratou de lhe sorrir, embora as lágrimas corriam por suas bochechas-. Eu também.
Não tinham nada mais que dizer-se. Guardou o anel no bolso de sua jaqueta e olhou de esguelha a grande pedra escura. Podia ouvir o zumbido que agora parecia como o pulso de seu sangue, como se ressonasse em seu interior.
Não necessitavam palavras. Tocou-lhe a cara como despedida e caminhou para a pedra, vacilando ligeiramente. Entrou na greta.
Fiona não ouviu nada, mas o ar claro do dia do solstício do verão se estremeceu com o eco de um nome.
Fiona esperou comprido momento, até que o sol chegou à ponta da pedra.
—Sun leat, a charaid chóir -disse brandamente—. Sorte, querido amigo.
Baixou lentamente pela colina e não olhou para trás.
Escócia, junho de 1769
O nome do alazão era Bruto, mas por sorte não casava com seu caráter. Era forte e maciço, e parecia oferecer segurança, embora só fora por resignação do animal.
Brianna soltou as rédeas e o deixou descansar depois da ascensão. Contemplou de acima o pequeno vale e a granja grafite de branco, com as janelas e chaminés de pedra cinza.
Nunca a tinha visto antes mas estava segura de que era Lallybroch. Tinha ouvido muitas vezes as descrições de sua mãe sobre aquele lugar. Por outra parte, era a única casa importante em muitos quilômetros à redonda; não tinha visto nada parecido nos últimos três dias, salvo pequenas casas de campo abandonadas e em rumas.
Havia alguém em casa posto que saía fumaça da chaminé. Era perto de meio-dia e talvez todos estariam comendo dentro.
Tragou com a boca seca pela excitação e o receio. Quem haveria? A quem veria primeiro? Ao Ian? Ao Jenny? Como se tomariam sua aparição? E o que lhes ia contar?
Tinha decidido lhes dizer a verdade no referente a quem era ela e o que estava fazendo ali. Sua mãe lhe havia dito que se parecia muito a seu pai e esperava que isso a ajudasse a convencê-los. Os highlanders que tinha conhecido até então se mostraram cautelosos ante seu aspecto e sua forma de falar. Talvez os Murray não acreditassem. Então recordou e se tocou o bolso de sua casaca. Se não acreditavam utilizaria a única prova que possuía.
Um súbito pensamento a fez estremecer-se. Estariam Jamie Fraser e sua mãe ali? Essa idéia não lhe tinha ocorrido antes, convencida como estava de que se foram a América do Norte, mas não tinha por que ser assim. Quão único sabia era que estariam na América do Norte em 1776, mas não onde estavam naquele momento.
Bruto levantou a cabeça e relinchou. Chegou uma resposta por detrás e Brianna agarrou as rédeas enquanto o cavalo se dava a volta. Bruto voltou a cabeça com interesse para observar a um formoso baio sobre o que ia um cavaleiro alto e vestido de marrom.
O homem deteve suas arreios ao vê-los e logo a esporeou para aproximar-se. Era jovem e tinha a cara moréia a pesar do chapéu. Ao aproximar-se e dar-se conta de que estava ante uma mulher, em seu rosto apareceu uma expressão de surpresa que não lhe impediu de tirar o chapéu e saudar. Não era exatamente uma boa moço, mas tinha um rosto forte e agradável, com os olhos castanhos e o cabelo escuro e encaracolado.
-Senhora -disse-, posso ajudá-la?
Brianna se tirou o chapéu e sorriu.
-Isso espero. Isto é Lallybroch?
Assentiu assombrado para ouvir seu estranho acento.
-Sim, assim é. Tem negócios por aqui?
-Sim -disse com firmeza-. Tenho-os. —estirou-se e respirou profundamente-. Sou Brianna Fraser.
Resultava-lhe estranho dizê-lo em voz alta, pois nunca tinha usado antes o sobrenome. Mas extrañamente lhe parecia o correto.
-Para servi-la, senhora. Jamie Fraser Murray -acrescentou formalmente com uma inclinação-, do Broch Tuarach.
-O jovem Jaime! -exclamou a mulher, sobressaltando-o por sua ansiedade-. Você é o jovem Jaime!
-Minha família me chama assim -disse ceremoniosamente para dar a entender que não gostava que o fizesse uma desconhecida vestida com roupas inadequadas.
-Me alegro de te conhecer -disse e lhe estendeu a mão-. Sou sua prima. -Olhou com incredulidade a mão estendida e o rosto da jovem-. Jamie Fraser é meu pai -acrescentou.
Observou-a de cima abaixo até que um amplo sorriso apareceu lentamente em sua cara.
-Vá se o é! -disse e te estreitou a mão com força-. É igual a ele. -Riu e o humor transformou sua cara-. Minha mãe vai se ficar de pedra!.
A grande roseira silvestre que adornava a porta tinha folhas novas e centenas de pequenos casulos verdes que começavam a brotar. Enquanto seguia ao jovem Jamie, Brianna levantou a vista e olhou o dintel. Na gasta madeira se gravou «Fraser, 1716». Se sentiu turvada ao vê-lo e ficou olhando-o com a mão apoiada na sólida madeira.
-Está bem, prima?
O jovem Jamie se voltou para olhá-la.
-Sim.
apressou-se a segui-lo, baixando, embora não era necessário, a cabeça para entrar.
-Salvo mamãe e a pequena Kitty, somos todos altos -explicou com um sorriso ao vê-la agachar a cabeça-. Meu avô, e teu também, construiu esta casa para sua esposa, que era uma mulher muito alta. É a única casa dos Highlands onde pode passar pela porta sem baixar a cabeça.
«... teu também.» Essas palavras a fizeram sentir um súbito calor face à fria entrada. Frank Randall, igual a Claire, era filho único. Tinha vindo a procurar a seu pai sem dar-se conta de que encontraria a toda uma família.
Uma grande família. abriu-se uma porta e quatro meninos entraram correndo; depois deles ia uma moça, alta e com o cabelo castanho e encaracolado.
-|Ah corram, corram, pescaditos! -gritou, estendendo as mãos como pinzas— O malvado caranguejo lhes comerá!
Os meninos passaram correndo entre risadas e gritos e olhando por cima do ombro com aterrorizado deleite. Um deles, de uns quatro anos, viu a Brianna e ao jovem jamie na entrada e trocou de direção gritando.
-Papai! Papai! Papai!
-Vamos, pequeno Matthew -disse, levantando-o em seus braços-. Que classe de maneiras te ensina sua tia Janet? O que pensará sua prima ao verte correndo como uma galinha louca?
O menino riu e observou a Brianna.
-Papai! É uma senhora?
-É obvio, já te disse que era sua prima.
-Mas leva calções! As senhoras não usam calções,
Matthew a contemplou assombrado.
A jovem parecia opinar o mesmo mas o interrompeu com firmeza agarrando ao menino.
-Estou segura de que terá boas razões para levá-los, mas não é de boa educação fazer notar estas coisas às pessoas. Agora vá lavar te.
-Onde está a avó, Matt? -perguntou o pai.
-Na sala de atrás com o avô. vieram uma senhora e um homem -respondeu o menino com prontidão-. Há duas panelas de café, uma bandeja de pãozinhos e toda uma torta Dundee, mamãe diz que esperam que lhes dê de comer, mas maldição...
-E se tampou a boca-. De maneira nenhuma pensa lhes dar o bolo de groselhas.
O jovem Jamie olhou com seriedade a seu filho e interrogativamente a sua irmã Janet.
-Uma senhora e um homem?
Janet fez uma careta de desgosto.
-A Grizzler e seu irmão.
O jovem Jamie olhou de esguelha a Brianna.
-Imagino que mamãe estará encantada de ter uma desculpa para deixá-los. -Fez um gesto ao Matthew-. vá procurar a sua avó, moço. lhe diga que há uma visita que gostará de ver. E cuida sua linguagem, né?
O jovem Jamie se voltou fazia Brianna sonriendo.
-É meu primogênito. E ela -assinalou a jovem- é minha irmã Janet Murray. Janet... a senhorita Brianna Fraser.
Brianna não sabia se lhe dar a mão ou não, assim que se contentou com um sorriso e uma inclinação de cabeça.
-Estou muito contente de te conhecer -disse afetuosamente.
Janet a observou com assombro. Brianna não sabia se era pelo acento ou pelo que havia dito.
-Nunca adivinhará quem é. Jen -disse—. Nem em mil anos!
Janet arqueou uma sobrancelha e olhou a Brianna com os olhos entreabridos.
-Prima -murmurou olhando-a de cima abaixo-. Tem o ar dos MacKenzie, isso sem dúvida. Mas disse que era uma Fraser.,. -Seus olhos se abriram mais-, Ah, não pode ser! –disse a Brianna com um amplo sorriso que iluminava sua cara-. Não pode ser!
A risada alegre de seu irmão foi interrompida pelo ruído de uma porta e de uns passos ligeiros.
-Se?. Mattie disse que tínhamos uma convidada-la voz se deteve e Brianna levantou a vista com o coração acelerado.
Jenny Murray era pequena e magra. Contemplou a Brianna com a boca aberta.
-Senhor, senhor-disse brandamente.
Brianna sorriu saudando sua tia, a amiga de sua mãe, a única e querida irmã de seu pai. «Por favor, por favor, que goste, que se alegre de lombriga", desejou súbitamente.
-Mamãe, posso ter a honra de te apresentar...?
-Jamie Fraser! Sabia que havia tornado, disse-lhe isso, Jenny Murray!
A voz, com tons agudos de acusação, vinha do fundo do corredor. Assombrada, Brianna viu uma mulher que surgia das sombras avançando com indignação.
-Amyas Kettrick me disse que tinha visto seu irmão cavalgando perto do Balriggan! Mas não, não me foste dizer isso, Jenny, disse-me que era tola, que Amyas é cego e que Jamie estava na América! Todos mentem para proteger ao malvado covarde! Hobart! -gritou-, Vêem aqui imediatamente!
-Tranqüila! -disse Jenny com impaciência-. Você é tola, Laoghaire! -Agarrou à mulher do braço e a obrigou a dá-la volta—, Não pode ver a diferença entre um homem crescido e uma moça com calções?
-Uma moça?
A mulher olhou surpreendida a Brianna.
-Jesus, María e José! Quem é você, em nome de Deus?
Brianna respirou profundamente, olhando a uma e a outra, e tratando de manter a firmeza da voz enquanto respondia.
-Meu nome é Brianna. Sou filha do Jamie Fraser.
Laoghaire abria e fechava a boca como se se afogasse. Jenny deu um passo para agarrar as mãos da Brianna. Suas bochechas se ruborizaram, lhe dando um aspecto juvenil.
-Do Jamie? De verdade é filha do Jamie?
Oprimiu-lhe as mãos entre as suas.
-É o que diz minha mãe.
-Isso diz, né? -Laoghaire tinha recuperado a voz e os brios-. Se Jamie Fraser for seu pai, quem é sua mãe?
Brianna ficou rígida.
-Sua esposa. Quem ia ser?
A mulher lançou uma gargalhada. Não foi uma risada alegre.
-Quem ia ser? -disse burlando-se-. E quem é essa esposa?
Brianna sentiu como empalidecia e de repente compreendeu. Idiota, pensou, em vinte anos pôde voltar-se para casar. Desejava correr em busca de sua mãe.
-Vêem te sentar na sala, quer?
A voz do jovem Jamie era firme, como o braço que a guiava através do vestíbulo para uma das portas. Não distinguia as vozes entre a confusão de acusações e explicações.
Viu um homenzinho com cara de coelho junto a outro muito mais alto que ficou em pé, com rosto de preocupação, quando entraram na sala.
Foi este quem impôs ordem.
-A filha do Jamie? -Olhou-a com interesse, mas menos surpreso que outros—, Qual é seu nome, a leannan?
-Brianna.
Estava muito turvada para lhe sorrir.
-Brianna. -Fez-lhe um gesto para que se sentasse-. Sou seu tio Ian, moça. Bem-vinda. -Observou divertido sua roupa-. dormiste à intempérie? tiveste que andar bastante para nos encontrar, sobrinha.
-Diz que é sua sobrinha -disse Laoghaire-. veio para ver o que pode conseguir.
-Eu que você não diria isso, Laoghaire -disse Ian-. Ou vós não tentastes me tirar quinhentas libras?
-Esse dinheiro é meu -disse furiosa— e sabe. Você foi testemunha e assinou aquele papel.
-Fiz-o -disse com paciência—. E terá seu dinheiro logo que Jamie possa mandá-lo. Prometeu-o e é um homem de honra. Mas...
-De honra, né? É honorável cometer bigamia? Abandonar mulher e filhos? me roubar a minha filha para arruinar sua vida? Honorável! —Olhou a Brianna com os olhos brilhantes e em tom ameaçador lhe disse-: Perguntarei-te outra vez o nome de sua mãe.
-Não importa... —começou Jenny, mas Laoghaire a interrompeu.
-Ah, claro que importa! Se a teve com uma prostituta na Inglaterra é uma coisa, mas se for...
Fazendo ornamento de uma tranqüilidade que não sentia, Brianna colocou a mão no bolso e tirou seu conteúdo.
-O nome de minha mãe é Claire -disse e deixou o colar de pérolas sobre a mesa.
-Ai, senhor, senhor... -disse brandamente Jenny e olhou a Brianna com os olhos cheios de lágrimas-. Estou tão contente de verte... sobrinha.
-Onde está minha mãe? Sabem?
Brianna passou a vista por todos eles, com o coração lhe pulsando ferozmente.
Ian e Jenny trocaram um rápido olhar, logo Ian ficou em pé, equilibrando-se sobre a perna de madeira.
-Está com seu pai -disse, tocando o braço da Brianna-. Não se preocupe, moça, os dois estão bem.
-Muito obrigado.
Tratou de sorrir ao Ian. «a salvo e juntos», pensou com silenciosa gratidão.
-São minhas, tenho direito.
Laoghaire assinalou as pérolas.
-Não, não o são! -disse Jenny com um broto de fúria-. Eram de minha mãe, meu pai as deu ao Jamie para sua esposa Y...
-E sua esposa sou eu -interrompeu Laoghaire, olhando a Brianna com frieza-. Eu sou sua esposa -repetiu-. Casei-me com ele de boa fé e prometeu me pagar pelo mal que me fez. -Levantou o queixo e olhou a Brianna-. Se realmente for sua filha, suas dívidas são as tuas. Diga-lhe Hobart!
-Ah, vamos, irmã -disse, tratando de acalmá-la-. Penso que não...
-Não, você nunca pensa. -Estirou uma mão para as pérolas-. São minhas!
Por puro reflexo, Brianna fechou a mão sobre elas.
-Um momento -disse Brianna com uma calma e uma frieza que a surpreenderam a ela mesma-. Não sei quem é você e não sei o que aconteceu você e meu pai, mas...
-Sou Laoghaire MacKenzie, e o bastardo de seu pai se casou comigo faz quatro anos, baixo falsas promessas, devo acrescentar.
-Sim? Mas minha mãe agora está com ele...
-Disse que não podia viver na mesma casa comigo, nem compartilhar a cama. Assim que se foi e retornou com a bruxa. Foi ela. Ela o enfeitiçou. Desde dia que chegou ao Leoch fez invisível. Jamie não podia lombriga.
Brianna sentiu um calafrio.
-Então ela desapareceu. Disseram que a tinham matado no levantamento. Ele conseguiu a liberdade e retornou da Inglaterra. Mas não era certo: nem ela estava morta, nem ele estava livre. Eu sabia, não se pode matar a uma bruxa com aço, terá que queimá-la.
Os olhos do Laoghaire se voltaram para o Jenny.
-Você a viu em minhas bodas. Uma aparição. Estava entre os dois. Mais tarde soube que a tinha visto e não me tinha querido dizer isso Ela é a filha da bruxa! E vós sabem! Deveram queimar à mãe no Cranesmuir para salvar ao Jamie Fraser do feitiço. Vos pinjente que tomassem cuidado com o que trazia para casa!
-Sujeira -disse Brianna em voz alta dirigindo-se ao Laoghaire ante a surpresa de todos-. Se terá que proteger-se de alguém é de você, maldita assassina!
Laoghaire se tinha ficado com a boca aberta e era incapaz de falar.
-Não o contaste tudo sobre o Cranesmuir, verdade?-continuou Brianna-. Minha mãe deveu havê-lo feito, mas pensou que foi muito jovem para saber o que fazia. Mas não era assim.
-O que...?-disse Jenny com um fio de voz.
-Tratou de matar a minha mãe. -Brianna quase não podia controlar sua voz. Fez-o, não? Disse a minha mãe que Geillis Duncan estava doente e a chamava. Soube que iria posto que sempre ia ver os doentes. Sabia que foram prender ao Geillis Duncan por bruxa, e se minha mãe estava ali também a levariam a ela para queimá-la. Desse modo poderia o ter a ele, ao Jamie Fraser.
A habitação estava em silêncio quando Hobart se aproximou e agarrou a sua irmã pelo braço.
-Vamos, a, leannan -disse com calma—. Te levarei a casa.
Saudou o Ian, quem lhe fez um gesto que indicava simpatia e lástima.
-Se for a filha do Jamie Fraser -disse Laoghaire com voz fria e clara-, e deve sê-lo por seu aspecto, inteira-se disto. Seu pai é um mentiroso e um alcoviteiro, um estelionatário e um descarado.
Brianna sentiu que a fúria se evaporava deixando-a sem forças.
-Ele seguiu amando-a -sussurrou, mais para si mesmo que para outros. Nunca a esqueceu.
-É obvio que não a esqueceu. -Abriu os olhos e se encontrou com o rosto do Ian e sua expressão de bondade—. E nós tampouco -disse, enquanto apoiava uma de suas grandes mãos sobre as dela.
—Não quer um pouco mais, prima Brianna?
Joan, a esposa do jovem Jamie, sorria-lhe do outro lado da mesa.
-Não, muito obrigado. Não posso comer nada mais –disse Brianna sonriendo-. Estou enche!
Isso fez rir ao Matthew e a seu hermanito Henry até que um olhar de sua avó os fez calar. Brianna notou que havia uma alegria especial. Não se deu conta da causa até que Ian fez um comentário.
-Não acreditávamos que Jamie chegasse a ter um filho próprio.
-O sorriso do Ian era o bastante cálida para derreter o gelo-, Chegou a conhecê-lo?
Negou com a cabeça, sonriendo em que pese a ter a boca enche. Isso era, pensou, estavam encantados com ela, e não por ela mesma, mas sim pelo Jamie. Queriam-no e se alegravam por ele.
Ao dar-se conta lhe encheram os olhos de lágrimas.
-Escreveu a tio Jamie para lhe avisar de que vinha a nos ver?-perguntou o jovem Jamie.
-Não -respondeu com a voz rouca pela emoção-. Não sei onde está.
-Certo. Havia-o dito e o tinha esquecido.
-Sabem onde estão ele e minha mãe?
Brianna se inclinou com ansiedade. Jenny sorriu e se levantou da mesa.
-Sim, mais ou menos. Quando terminar vêem comigo e te ensinarei sua última carta.
Brianna se levantou para seguir ao Jenny, mas se deteve bruscamente perto da porta. Tinha visto os quadros das paredes da sala, mas não os tinha cuidadoso com atenção. Em um deles estavam os dois meninos, o menor era Jamie. No outro havia uma mulher.
Brianna Ofegou e sentiu que lhe punha a pele de galinha.
-O parecido é notável.
Jenny olhava a Brianna e ao retrato com uma mescla de orgulho e temor.
-Notável —repetiu Brianna, tragando saliva.
-Agora sabe por que lhe reconhecemos imediatamente -continuou sua tia.
-Sim, sei.
-Era minha mãe, sabe? Sua avó, Ellen MacKenzie.
-Fui-dijo Brianna-. Sei.
Duzentos anos depois tinha estado frente ao mesmo quadro na Galeria Nacional de Retratos, negando furiosamente a verdade que lhe mostrava.
Em seu pescoço se encontrava o colar de pérolas, com as argolas de ouro.
-Quem o pintou? -perguntou Brianna, embora não necessitava a resposta. O cartão do museu dizia “autor desconhecido”.
-Minha mãe -respondeu Jenny com orgulho-. Tinha grande habilidade para o desenho e a pintura. Muitas vezes desejei ter esse dom.
«É dela de quem o herdei», pensou Brianna com um leve estremecimento.
Frank Randall brincava dizendo que não podia desenhar uma linha reta. E Claire nem sequer isso. Mas Brianna tinha o dom das linhas e as curvas, das luzes e as sombras; agora conhecia a origem desse dom. Que mais terei herdado?", perguntou-se.
-Ned Gowan me trouxe isso do Leoch -disse Jenny, tocando o marco com respeito-. Salvou-o dos ingleses quando destruíram o castelo depois da insurreição. E agora já não há clã, nem castelo.
-Não há? Estão todos mortos?
O horror de seu tom de voz fez que Jenny a olhasse muito surpreendida.
-Não. Mas Leoch não existe. Os últimos Chefes, Colum e seu irmão Dougal, morreram à mãos dos Estuardo.
-Leoch era um grande castelo?
-Não sei, nunca cheguei a vê-lo e agora já não existe.
Entrar no dormitório do piso de acima foi como entrar em uma caverna. Como as demais habitações era pequena, com as paredes brancas e as janelas grandes. Jenny abriu o grande armário e tirou uma caixa que colocou sobre a cama.
-Aqui está -disse, tirando umas folhas dobradas e enrugadas que entregou a Brianna-. Sabemos que estão na Carolina do Norte e que não vivem perto de nenhum povo -explicou Jenny-. Ao Jamie custa escrever desde que faz um tempo se rompeu a mão, mas o faz todas as noites que pode. Para nos enviar as cartas tem que esperar a chegada de algum viajante ou a que ele ou Fergus vão até o Cross Creek.
Brianna se deu conta de que Jenny não sabia nada sobre o episódio com o Jack Randall o Negro. Era uma estranha sensação o saber costure sobre um homem que nunca tinha visto e que inclusive sua amada irmana desconhecia.
-Sente-se, criatura -disse Jenny.
-Obrigado -murmurou Brianna; escolheu uma banqueta e abriu a carta.
Segunda-feira, 19 de setembro. Colina do Fraser
Meu queridísima Jenny:
Todos gozamos de boa saúde e ânimo; e confiamos em que em meu lar todos estejam bem.
Seu filho Ian vos envia seu afeto. Pede-me que diga ao Matthew e ao Henry que os envia de presente a pele curtida de um animal, chamado puercoespín por seus prodigiosos espinhos. Também te mando um presente para tí, feito com o corpo desse mesmo animal, os índios o preparam dessa forma tão engenhosa que poderá ver.
Claire teve interessantes conversações, se pode chamar-se assim à série de gestos e caretas que utilizam para entender-se, com uma anciã a Índia muito bem considerada como curandeira, quem lhe deu muitas novelo curativas.
Terça-feira, 20 de setembro
Hoje estive muito ocupado reparando o curral que protege durante a noite a nossas poucas vacas, porcos, etc., dos ursos, que por aqui são muito grandes. Mas não tema, não se aproximam dos humanos.
Em matéria de armamento nossa situação melhorou muito. Fergus comprou um rifle novo e várias facas excelentes.
Quarta-feira, 21 de setembro
O urso voltou, encontrei seus rastros. Logo chegaram quatro índios tuscarora- Conhecemo-los e são muito amáveis. Estavam decididos a caçar a nosso urso; lhes dei de presente tabaco e uma faca, Indicaram-me, com toda amabilidade, que o urso tinha abandonado a zona e se dirigia ao oeste.
Por precaução deixei meu rifle preparado.
Segunda-feira, 26 de setembro
Ian e seus amigos índios tornaram da caçada.
Claire, com sua habitual capacidade para notar as enfermidades, disse que um de nossas hóspedes não estava bem. E terminou hospedado em nosso celeiro.
Sábado, 1 de outubro
Uma grande surpresa no dia de hoje. chegaram duas hóspedes...
-Tem que ser um lugar selvagem -disse Jenny, sobressaltando a Brianna-. Índios, ursos e puercoespines- E muito solitário no alto das montanhas. -Olhou a Brianna com ansiedade-. Mas quererá ir, não?
-Irei logo que possa -assegurou a sua tia.
O rosto do Jenny se relaxou.
-Ah, bom -disse, mostrando uma bolsa de couro decorada com pele de puercoespín-. É o presente que me mandou.
-É precioso -disse Brianna voltando para a carta, mas Jenny seguiu perguntando.
-Ficará durante um tempo?
-Ficar ?
-Só um par de dias. Sei que desejas ir mas eu gostaria de muito poder conversar contigo.
-Sim -disse brandamente Brianna-. É obvio que ficarei.
-Isso está bem -disse com um sorriso e olhou a sua sobrinha com alegria-. É igual a meu irmão!.
Uma vez sozinha, Brianna continuou lendo a carta.
chegaram duas hóspedes do Cross Creek. Acredito que recordará a lorde John Grei, a quem conheci no Ardsmuir. Voltei-o a ver na Jamaica, onde era governador da Coroa.
Sua esposa, embarcada da Inglaterra com seu filho, contraiu umas febres durante a viagem e faleceu. Lorde John decidiu levar a moço a Virginia para ver suas propriedades e distrair o de sua dor.
O moço se chama William e lorde John é seu padrasto. Seu interesse pelos índios me recorda ao Ian de não faz muito tempo. Tem uns doze ânus e é um formoso moço.
Brianna voltou a página e se encontrou com uma lacuna que chegava até em 4 de outubro.
Terça-feira, 4 de outubro
O índio do celeiro morreu de sarampo, em que pese a todos os esforços do Claire. Não sabemos como enterrá-lo para não ofender os costumes dos índios e para que não criam que fomos os causadores de sua morte.
Confesso-te que sinto algo dava preocupação pela ameaça que representam os índios e a enfermidade, enviarei-te esta carta com nossas hóspedes.
Se tudo for bem te escreverei logo.
Seu irmão que mais te quer,
Jaime Fraser
P.D. 20 de outubro
Estamos todos bem. Ian esteve doente de sarampo, igual a lorde John, mas os dois se recuperam bem. Claire diz que Ian está muito bem e que não deve temer por ele. Escreve-te ele mesmo. J.
Na última página a letra era diferente, mais cuidada e escolar, mas com manchones de tinta.
Querida mamãe:
Estive doente mas já estou bem. Tive febre e sonhos estranhos. Havia um grande lobo que me falava com voz de homem, mas tia Claire diz que deveu ser Cilindro, que não se moveu de meu lado durante todo o tempo que estive doente; é um bom cão e não remói muito freqüentemente.
Picava-me todo o corpo, como se me tivesse sentado sobre um formigueiro, e a cabeça me doía muito pela febre. Mas hoje me comi três ovos com advenha para tomar o café da manhã e fui só duas vezes à privada, assim já estou bem. Ao princípio acreditei que a enfermidade me tinha deixado cego, mas tia Claire disse que me passaria e assim foi. Fergus me está esperando para levá-la cã.
Seu filho devoto e obediente,
Ian Murray
-E eu acreditava que este era um lugar primitivo –murmurou Brianna enquanto dobrava as folhas.
Não tão primitivo, depois de tudo, pensou enquanto seguia ao Ian pelo pátio da granja e passavam às outras construções. Tudo estava bem cuidado. A única diferença real com uma granja moderna era a ausência de equipamento. Não havia tratores. Os animais eram saudáveis, embora talvez, um pouco mais pequenos que os do século XX.
Ian usava sua saia escocesa com a naturalidade de quem não o considera um uniforme, a não ser parte de seu corpo. Entretanto, Brianna sabia que não era habitual usá-la porque Jenny o tinha cuidadoso primeiro com assombro e logo com um sorriso quando baixou a tomar o café da manhã.
O tecido era velho e estava gasto, mas se notava que tinha sido conservada com cuidado. Deveram ocultá-la depois do Culloden, junto com as pistolas, espadas e gaitas de fole, os símbolos do orgulho conquistado.
Não, não exatamente conquistado, pensou, ao recordar ao Roger Wakefield.
«Os escoceses têm muita memória -havia-lhe dito-, e não são gente que perdoe com facilidade. Há uma lápide com o nome MacKenzie, uma grande quantidade de meus parentes jazem ali. Não sinto algo muito pessoal mas tampouco perdoei.»
Não, não conquistados. Vencidos, dispersos, mas vivos. Como Ian, coxo mas em pé. Como seu pai, banido mas ainda um highlander.
Com um esforço, afastou ao Roger de sua mente e se apressou a seguir ao Ian.
Seu rosto alargado se iluminou de prazer quando Brianna lhe pediu que lhe ensinasse Lallybroch. Tinham acordado que o jovem Jamie a levaria ao Inverness a semana seguinte, onde poderia encontrar uma embarcação que a levasse até as colônias com certa segurança.
Foi uma larga caminhada. Passaram por um campo semeado de batatas. Ian lhe explicou que tinha sido idéia do Claire e que mais de uma vez lhes salvou de morrer de fome.
Fazia vento mas o dia era caloroso e Brianna suava quando se detiveram ante um estreito atalho e se sentaram sobre umas grandes pedras. Desde aquele ponto, com o vale a seus pés, a casa parecia pequena e uma intrusão da civilização no selvagem entorno de penhascos e urzes.
Ian tirou uma garrafa de pedra de seu embornal e lhe tirou a cortiça com os dentes.
-Isto também é devido a sua mãe -disse com um sorriso enquanto lhe oferecia a garrafa-. Refiro a meus dentes. –passou-se a língua pelos incisivos, com gesto pensativo e sacudindo a cabeça-. É muito boa com as ervas.
-Quando era pequena sempre me dizia que comesse verdura e que me limpasse os dentes.
A cerveja era forte e amarga, mas resultava muito refrescante depois da caminhada.
-Quando foi pequena, né? -Ian a olhou divertido-. Sua mãe soube fazer bem as coisas, não?
Brianna lhe sorriu lhe devolvendo a garrafa.
-Ao menos soube escolher um homem alto.
Ian riu e a olhou com afeto.
-Que agradável é verte, moça. É muito parecida com ele. Quanto eu gostaria de estar quando Jamie te veja!
-Não sei o que saberá sobre mim -disse a jovem-. Não te disse nada?
Ian franziu o sobrecenho.
-Não -disse lentamente-. Mas talvez não teve tempo de me dizer nada. Não esteve muito tempo quando voltou Claire. -deteve-se mordendo o lábio e a olhou-. Sua tia estava preocupada. Pensava que podia culpá-la.
-Culpá-la por que?
Olhou-lhe intrigada.
-Pelo Laoghaire.
-O que tem que ver a tia Jenny com o Laoghaire?
-Foi ela quem pressionou ao Jamie para que se casasse com o Laoghaire. O fazia por seu bem. Então acreditávamos que Claire tinha morrido.
Seu tom guardava uma pergunta, mas Brianna se limitou a assentir olhando para o chão. Era terreno perigoso e melhor não dizer nada para que Ian continuasse.
-Foi quando voltou para casa da Inglaterra, onde esteve prisioneiro vários anos...
-Sei.
Ian a olhou surpreso, mas não disse nada e sacudiu a cabeça.
-Bom, quando voltou tinha trocado. Era como falar com um fantasma. Olhava-me, falava, sorria, mas não estava aqui. -Respirou profundamente-. depois da derrota do Culloden era diferente. Estava ferido e tinha perdido ao Claire. -Olhou de esguelha a Brianna mas esta continuou imóvel-. Era uma época de desespero, tinha morrido muita gente na batalha, e também depois, por enfermidades ou por fome. Os soldados ingleses continuavam assolando-o tudo e matando. Em casos assim não pode pensar em morrer porque a luta por sua vida e pela de sua família te ocupa todo o tempo.
Alguma lembrança daquela época fez aparecer um sorriso nos lábios do Ian.
-Jamie se escondeu ali. Há uma cova detrás desse grande arbusto. Por isso te trouxe até aqui.
Olhou para onde lhe indicava.
-Vinha a lhe trazer comida quando estava doente. Disse-lhe que tinha que voltar para casa, que Jenny tinha medo de que morrera ali, sozinho. Abriu um olho, brilhante pela febre, e com voz rouca me disse que não o ia pôr fácil aos ingleses e que não pensava morrer. Logo ficou dormido.
Olhou-a com ironia.
-Fiquei toda a noite com ele, mas tinha razão o muito teimoso.
Brianna assentiu e se levantou de repente para subir pela colina. Ian não protestou e ficou observando-a. A boca da cova era pequena, mas uma vez atravessada, o espaço se alargava. ajoelhou-se e colocou a cabeça; o frio foi imediato e posso sentir como a umidade se condensava em suas bochechas.
Sete anos! Sete anos vivendo ali, passando fome e fria. «Eu não agüentaria nem sete dias», pensou. «Não o faria?», disse outra parte de sua mente. Então sentiu outra vez a mesma sensação de reconhecimento que quando viu o retrato do Ellen.
Permaneceu imóvel, escutando, e pensou que sabia o que Jamie Fraser tinha encontrado ali: não isolamento a não ser solidão, não sofrimento a não ser resignação. Ali descobriu um irônico parentesco com as rochas e o céu, uma paz que transcendia o desconforto física. Não tinha visto a cova como uma tumba, mas sim como um refúgio.
Ian deveu ouvi-la quando retornava, mas não se voltou. Brianna se sentou a seu lado.
-É seguro usá-la agora? -disse bruscamente, assinalando a saia escocesa.
-Sim. passaram anos da última vez que vieram os soldados. depois de tudo, o que ficou?
Fez um gesto para o vale.
-Você está aqui. E Jenny.
-Sim, isso é verdade -disse finalmente, olhando-a-. E agora está você também. Sua tia e eu estivemos falando ontem à noite: queremos que quando vir ao Jamie e tudo esteja bem entre vós lhe pergunte o que quer que façamos.
-Fazer? Com o que?
-Com o Lallybroch. Talvez não saiba, mas seu pai fez uma escritura depois do Culloden cedendo Lallybroch ao jovem Jamie, se por acaso o matavam ou o condenavam por traidor. Mas isso foi antes de que você nascesse, antes de que soubesse que tinha uma filha própria.
-Sim, sabia. -Teve um súbito conhecimento do que queria lhe dizer e lhe pôs a mão no braço surpreendendo-o-, Não vim por isso, tio -disse brandamente-. Lallybroch não é meu e não o quero. Tudo o que quero é ver meus pais.
-Sim, bom. De todos os modos deve dizer-lhe se ele desejar...
-Não, não o fará —o interrompeu com firmeza. Ian a olhou com olhos sorridentes.
-Sabe muito sobre o que fará para não havê-lo visto nunca. -Brianna lhe devolveu o sorriso enquanto o sol esquentava seus ombros-. Suponho que sua mãe lhe contaria isso. Ela o conhecia.
-Sim -vacilou. Desejava saber mais sobre o Laoghaire e não sabia como perguntar-lhe O que era isso da aparição, tio Ian?
-Está pensando no que disse Laoghaire? -Sem esperar resposta se deu a volta e começou a baixar para o arroio-. É a visão de uma pessoa quando esta está longe. Algumas vezes ocorre quando alguém morre longe de seu lar. Dá má sorte ter uma aparição, mas é pior encontrar-se com sua própria imagem, pois indica que vais morrer.
-Espero que não. Mas ela disse...
-É certo que Jenny viu sua mãe nas bodas do Jamie. Então se deu conta de que não eram um bom casal, mas já era muito tarde.
agachou-se frente ao arroio e se molhou a cara. Brianna o imitou e bebeu a água fresca. Como não tinha toalha se secou com as abas da camisa, deixando ao descoberto a cintura ante o olhar escandalizado do Ian.
-foste contar me por que meu pai se casou com ela -disse e, ao dar-se conta da expressão do Ian, voltou-se a cobrir.
-Sim, havia-te dito que quando Jamie retornou da Inglaterra estava como sem vida. Não sei o que, mas algo lhe aconteceu ali, disso estou seguro. Então Jenny organizou o matrimônio. Talvez já seja o bastante major para saber o que uma mulher pode fazer por um homem, ou ele por ela. Refiro-me a consolá-lo e a encher seus vazios. Mas acredito que Jamie se casou com o Laoghaire por lástima. -encolheu-se de ombros e sorriu-. Bom. Não tem sentido pensar o que tivesse podido acontecer, não? Mas deve saber que tinha abandonado a casa do Laoghaire tempo antes de que sua mãe retornasse.
Brianna sentiu uma quebra de onda de alívio.
-Bom. Me alegro se soubesse. E minha mãe... quando retornou...?
-Jamie se sentiu muito contente de voltar a vê-la -disse Ian com simplicidade. Esta vez o sorriso lhe iluminou a cara-. E eu também.
Recordava-lhe a loja de cães da cidade de Boston: um espaço grande, algo escuro e com a atmosfera densa pelo aroma de animais. O grande edifício do mercado do Inverness albergava grande quantidade de empresas: venda de comida, agentes de seguros, recrutamento de pessoal para a Marinha Real... Mas era o grupo de homens, mulheres e meninos amontoados em um rincão o que dava mais força a aquela desagradável visão.
de vez em quando algum homem ou mulher saía do grupo e ensinava os ombros e queixo para demonstrar sua boa saúde. A maior parte dos que se ofereciam a si mesmos para a venda olhavam aos paseantes com expressões que foram da esperança ao temor, muito parecidas com as dos cães enjaulados que tinha visto quando seu pai a levou a adotar um cachorrinho.
O jovem Jamie passava lentamente entre o grupo com o chapéu sobre o peito para que não o esmagassem e os olhos entrecerrados, observando o que se oferecia. Ian tinha ido ao escritório para ocupar da passagem a América, deixando a Brianna com sua primo para escolher um servente que a acompanhasse na viagem. Em vão tinha protestado dizendo que não necessitava acompanhante; depois de tudo tinha viajado sozinha da França.
Os homens tinham sorrido com amabilidade e aqui estava, seguindo obediente ao jovem Jamie como uma das ovelhas de sua tia Jenny. Agora começava a compreender o que sua mãe queria dizer ao descrever aos Fraser como «pessoas teimosas como rochas».
Sua primo Jamie interrompeu seus pensamentos assinalando a um homem.
-O que te parece esse, Brianna?
-Parece o Estrangulador de Boston -murmurou, gritando logo ao ouvido de sua primo-: Não! Parece um boi!
-É forte e parece honrado.
Brianna pensou que parecia muito estúpido para ser insincero, mas se limitou a sacudir a cabeça. Claire lhe havia dito que a comida podia ser terrivelmente má ou incrivelmente boa. Tudo o que se come está acostumado a estar salgado ou é fresco e então é uma autêntica maravilha.
E o que tinha comprado sua primo era maravilhoso, tinha decidido Brianna. Era uma torta quente em forma de meia lua, cheia de carne picada e condimentada com cebola.
Enquanto comia, advertiu que a olhava um homem com uma casaca andrajosa.
-Sim?
-Necessita um servente, senhora?
-Bom, eu não diria que o necessito, mas de todas maneiras vou ter que aceitar um. Está interessado?
-É... eu... quer dizer, não sou eu. Mas poderia considerar tomar a minha filha? -disse bruscamente-. Por favor!
-Sua filha? -Brianna o olhou assombrada.
-O suplico, senhora! -Surpreendida viu como os olhos do homem se enchiam de lágrimas-. Não sabe quão urgente é nem a gratidão que lhe guardarei se aceitar.
-Bom... mas...
-É uma garota forte em que pese a sua aparência e cheia de vontade. Estará encantada de servi-la e você, desse modo, comprará seu contrato.
-Mas por que, qual é o problema?
-Há um homem. O... ele a deseja. Não como faxineira, mas sim como... como concubina.
As palavras lhe saíam com dificuldade e seu rosto se estava pondo arroxeado.
-Hum. -Brianna descobriu a utilidade dessa ambígua expressão-. Já vejo. Mas não tem por que deixar que sua filha vá com ele, certo?
-Não tenho eleição. -Sua angústia era evidente—. O contrato de minha filha está em posse do senhor Ransom, o corredor, e a venderá sem vacilar a esse... esse...
Agarrou-lhe uma mão entre as suas.
-Vi-a com um aspecto tão nobre e orgulhoso que pensei que meus rogos tinham sido escutados. Ah, senhora, não se negue ante a súplica de um pai. Tome-a!
-Mas vou a América! Nunca... -mordeu-se o lábio- quero dizer, não poderá vê-la em muito tempo.
-América? -sussurrou-. Prefiro que se vá a um lugar selvagem e longe de mim, que ver como a desonram ante meus olhos.
Brianna não sabia o que lhe dizer.
-Y... qual... sua filha, qual é?
-Deus a benza! vou procurar a!
Oprimiu-lhe a mão com ardor e desapareceu entre a multidão.
-Esta é Elizabeth -anunciou uma voz agitada-. Saúda a senhora, Lizzie.
Brianna a olhou e soube que a decisão já estava tomada.
-Ai, querida -murmurou, vendo a pequena cabeça loira que se inclinava em uma reverência-, um cachorrito. A cabeça se levantou mostrando um rosto magro e uns aterrados olhos cinzas que ocupavam quase toda a cara.
-Para servi-la, senhora -disse a boquita.
-Ah... quantos anos tem, Lizzie? Posso te chamar Lizzie?
A jovem sussurrou algo e olhou a seu pai, que respondeu ansioso.
-Quatorze, senhora. Mas tem boa mão para a cozinha e a costura. E é muito limpa.
Permaneceu com as mãos apoiadas sobre os ombros de sua filha. Seus olhos, suplicantes, encontraram-se com os da Brianna. Seus lábios se moveram sem emitir som algum, mas Brianna ouviu claramente como diziam «por favor».
Mais à frente via seu tio falando com o jovem Jamie. De um momento a outro viriam a procurá-la.
Respirou profundamente e se ergueu. Bom, pensando-o bem ela era muito mais Fraser que sua primo. vamos ver se também podia chegar a ser tão teimosa como uma rocha.
Sorriu a jovem, ofereceu-lhe a mão e o pedaço de torta que ainda não tinha provado.
-É um trato, Lizzie. Quer morder para selá-lo?
-Ela comeu de minha comida -disse Brianna com toda a segurança que pôde-. portanto é minha.
Surpreendida viu como essa declaração punha fim à discussão.
-Mas do que te servirá uma moça? -disse o jovem Jamie-. Não tem força nem para levar a bagagem.
-Sou o bastante forte para levar minha bagagem, obrigado -assinalou Brianna.
-Mas uma mulher não deveria viajar sozinha.
-Não estarei sozinha, terei ao Lizzie.
-E menos a um lugar como a América!
-Parece o fim do mundo pela forma em que falas, mas tenho entendido que nunca esteve ali -disse Brianna com exasperação-. Eu, em troca, nasci na América!
O tio e o primo a olharam com idênticas expressões de assombro. Viu então uma oportunidade de tomar um pouco de vantagem na discussão, aproveitando o desconcerto de ambos.
-É meu dinheiro, minha faxineira e minha viagem. Dava-lhe minha palavra e a manterei.
Ian se esfregou o lábio para evitar sorrir.
-Acredito que não há lugar a dúvidas sobre de quem herdou a teimosia, criatura.
O jovem Jamie fez um último intento.
-É muito pouco comum que uma mulher expresse livremente suas opiniões.
-Crie que as mulheres não devem ter opiniões?
-Isso acredito.
Ian olhou a seu filho.
-estiveste casado, quanto tempo? Oito anos? -Sacudiu a cabeça-. Ah, bom, seu Joan é uma mulher com tato.
-voltou-se para o Lizzie-. Muito bem, vá despedir te de seu pai e eu irei procurar os papéis. -Observou afastar-se à pequena criatura e, com gesto de dúvida, voltou-se para a Brianna-. Talvez seja melhor companhia que a de um homem, mas sua primo tem razão em uma coisa: não te servirá de amparo. Mas bem, será você quem tem que cuidá-la.
Brianna endireitou os ombros e levantou o queixo.
-Posso arrumar me disse isso.
Manteve a mão apertada sujeitando a pedra que tinha na palma. Deste modo se dava forças enquanto via como a costa de Escócia se afastava.
Brianna nunca se considerou escocesa, mas tinha uma estranha sensação ao separar-se daquela gente e aqueles lugares que tinha conhecido fazia tão pouco tempo. Talvez se contagiava da emoção dos outros passageiros.
Muitos estavam na coberta como ela, alguns chorando abertamente. Ou possivelmente era o medo ante o comprido viaje que a esperava. Mas tinha a certeza de que não era nenhuma dessas coisas.
-Isso é tudo, espero.
Era Lizzie aparecendo a seu lado para ver as últimas imagens de Escócia. Seu rosto pálido permanecia inexpressivo, mas Brianna não o interpretava como uma falta de sentimentos.
-Sim, já estamos em caminho.
Em um impulso, Brianna agarrou a jovem e a envolveu com o xale, protegendo-a do vento e dos outros passageiros.
-Tudo vai bem -disse tanto para o Lizzie como para si mesmo.
Tinha sobrevivido a muitas despedidas e sobreviveria a esta também. O que a fazia mais dura era que já tinha perdido pai, mãe, amor, casa e amigos. Estava sozinha por necessidade, mas também por eleição, já que inesperadamente tinha encontrado de novo um lar e uma família no Lallybroch. Teria dado algo por ficar mais tempo, mas antes tinha que cumprir sua promessa; já retornaria a Escócia e ao Roger.
Lizzie permaneceu rígida como um pau. Suas orelhas eram largas e transparentes e se sobressaíam, tenras e frágeis, de seu cabelo fino e murcho como as de um camundongo. Brianna lhe secou as lágrimas. Seus olhos permaneciam secos e sua boca firme enquanto olhava a terra por cima da cabeça do Lizzie. Mas aquele rosto frio, de lábios trementes, bem poderia ter sido o seu.
Permaneceram em silêncio até que a terra desapareceu.
Inverness, julho de 1769
Roger caminhou lentamente através da cidade, olhando a seu redor com uma mescla de fascinação e deleite. Inverness tinha trocado um pouco em duzentos anos, disso não havia dúvida; entretanto, era possível reconhecer a cidade, mais pequena e com a metade de suas enlameadas ruas sem pavimentar; mas «reconhecia» essas ruas pelas que tinha caminhada centenas de vezes.
notava-se a mesma umidade fria no ar, mas o molesto aroma dos motores tinha sido substituído por um distante aroma de águas residuais. A diferença mais notável estava nas márgenes do rio. Onde um dia se levantariam uma nobre profusão de agulhas e campanários do Iglesias, agora não havia mais que pequenas edificações.
Existia uma única ponte de pedra, mas o rio Ness era, naturalmente, o mesmo de sempre. O caudal era baixo e as gaivotas se faziam companhia enquanto pescavam pececillos entre as pedras.
Aqui e lá, confortáveis residências se isolavam com amplos jardins, como uma grande dama que estende suas saias fazendo caso omisso da presença do povo vizinho.
Ali estava Mountgeraid, a grande casa, luzindo exatamente como sempre a tinha conhecido, salvo que as grandes haja ainda não tinham sido plantadas e em seu lugar, contra a parede do jardim, havia uns ciprestes italianos com aspecto de nostalgia por seu ensolarado país de origem.
Mas tinha outras coisas que fazer: Mountgeraid e seus fantasmas teriam que guardar-se seus segredos. Com um pouco de pesadumbre deixou atrás a grande casa e voltou seu nariz de estudioso para a rua que levava aos moles.
Com uma sensação que só podia qualificar-se de deixa vu empurrou a porta do botequim e entrou. Era o mesmo ambiente que visse uma semana antes (duzentos anos depois); o aroma familiar da levedura de cerveja reconfortou seu espírito. E1 nome tinha trocado, mas não o aroma da cerveja.
Roger bebeu um gole de sua jarra de madeira e quase se afogou.
-Tudo bem?
O dono de cantina se deteve com um cubo de areia na mão, observando ao Roger.
-Bem -respondeu Roger com voz rouca-. Estou bem.
O dono de cantina assentiu e continuou esparramando areia sem perder de vista ao Roger, se por acaso lhe ocorria vomitar no chão. Roger se esclareceu garganta e memorou tragar um sorvo. O sabor era bom, muito bom em realidade. O inesperado era a quantidade de álcool. Era muito mais forte que a cerveja moderna. Claire lhe havia dito que o alcoolismo era endêmico naquela época e Roger se deu conta facilmente da razão. Entretanto, se a bebedeira era o pior risco ao que se enfrentava, podia corrê-lo.
Permaneceu tranqüilo, saboreando a cerveja, escutando e olhando.
Era um botequim do porto, muito concorrida por capitães de navios e comerciantes, assim como por marinheiros e trabalhadores dos armazéns próximos. Ali se realizavam negócios e transações. Mas não só se comercializava com mercadorias.
Em um rincão estava sentado um capitão de navio que destacava pelo corte de sua casaca e o tricornio negro da mesa. Um escrivão com um livro de contas e um porquinho lhe ajudava a entrevistar a emigrantes que procuravam passagens para as colônias. Os que não tinham médios para pagar as passagens tinham outras possibilidades.
-Os moços e você podem ter possibilidades -disse o capitão. Olhou à mulher que não levantava a vista e franziu o sobrecenho-. Mas ninguém comprará uma mulher com tantos meninos. Talvez possa ficar com algum. Mas terá que vender às meninas.
O homem olhou a sua família. Sua esposa mantinha a cabeça baixa sem olhar a ninguém. Uma das meninas se moveu, queixando em voz baixa porque lhe tinham apertado a mão. O homem se deu a volta.
-Muito bem -disse em voz baixa-, Podem... poderiam ir juntas?
O capitão se esfregou a boca com indiferença.
-Não seria estranho.
Roger não quis presenciar os detalhes do transação. levantou-se bruscamente e abandonou o local; a cerveja negra tinha perdido seu sabor.
Tinha crescido ouvindo a história dos Highlands; Conhecia muito bem a classe de coisas que tinha levado às famílias a tal estado de desespero, lhes obrigando a aceitar separações permanentes e situações de semiesclavitud como preço pela sobrevivência.
Caminhou lentamente olhando a coleção de navios ancorados nos moles de madeira. Podia cruzar a França, é obvio, e embarcar ali. Ou viajar por terra até o Edimburgo, um porto muito mais importante que o do Inverness. Mas já séria tarde para embarcar esse ano. Brianna lhe levava seis semanas de vantagem e não podia desperdiçar o tempo. Só Deus sabia o que podia lhe passar a uma mulher sozinha.
-O primeiro é o primeiro –murmurou-. Mas deveria me assegurar de onde foi, antes de decidir a viagem.
Foi para a direita pelo estreito espaço que deixavam duas lojas de departamentos. Seu espírito corajoso da manhã se evaporou, entretanto se recuperou um pouco ao ver que estava frente ao que procurava: o escritório do capitão de porto estava situada no mesmo edifício de pedra onde estaria duzentos anos depois. Roger sorriu com ironia. Os escoceses não estavam acostumados a fazer mudanças só pelo gosto de trocar.
Havia muita gente ocupada no interior; quatro escrivães detrás de um mostrador de madeira faziam recibos e levavam o dinheiro cobrado a um escritório interior.
Quando Roger conseguiu captar a atenção de um dos empregados, não teve grande dificuldade em conseguir os registros dos navios que tinham zarpado do Inverness nos últimos meses.
-Espere -disse Roger ao jovem empregado que lhe entregava um grande livro forrado de couro-. Quanto lhe pagam por trabalhar aqui?
O empregado arqueou as sobrancelhas.
-Seis xelins por semana -disse, desaparecendo para o grito irritado do Munro» que saiu do outro escritório.
Roger se levou o livro de registros até uma pequena mesa, ao lado da janela.
Em sua cabeça ressonou uma voz fria e tranqüila que lhe dizia: «É um parvo. Ela estará aqui ou não estará, ter medo a olhar não trocará nada. Começa".
Meia hora mais tarde tinha deixado de maravilhar-se do poético e pitoresco dos nomes dos navios e percorria os artigos com crescente desespero. Não estava, não estava ali.
Mas tinha que estar, tinha que ter embarcado para as colônias. A que outro maldito lugar podia ter ido? Salvo que, depois de tudo, não tivesse encontrado a notícia... mas estava seguro, nenhuma Outra coisa a tivesse feito arriscar-se a passar pelas pedras.
Respirou profundamente e fechou os olhos. Logo os voltou a abrir e começou a ler de novo, repetindo todos os nomes para assegurar-se de que não deixava passar nenhum.
Mas não havia Randalls naqueles navios. esfregou-se os olhos, cansados de decifrar aquela letra. Não tinha abandonado a busca, mas se perguntou o que faria se não a encontrava. Lallybroch, é obvio. Tinha estado ali uma vez em seu próprio tempo. Poderia encontrá-lo de novo, sem a guia de caminhos e sinais da estrada?
Seus pensamentos se detiveram ante um nome, quase ao final da página. Não era Brianna Randall, o nome que ele procurava. Mas sim um nome conhecido: «Fraser. Brian Fraser».
Ao olhar mais de perto viu que tampouco era Brian, a não ser Brianna. Fechou os olhos com um profundo alívio. Era ela, tinha que ser ela! Não tinha visto nenhuma outra Brianna no registro. E tinha sentido que usasse o sobrenome Fraser. Ia em busca de seu pai e esse sobrenome lhe correspondia por direito de nascimento.
O navio era o Phillip Alomo e tinha saído do Inverness em 4 de julho do ano do Senhor de 1769, para o Charleston, Carolina do Sul.
Franziu o sobrecenho súbitamente inseguro. Carolina do Sul. Era esse seu destino real ou o mais perto que podia chegar? Um rápido olhar ao resto dos navios registrados lhe revelou que não havia nenhum para a Carolina do Norte. Talvez só tinha tomado o primeiro navio para as colônias do sul com a intenção de fazer o resto da viagem por terra.
levantou-se e foi devolver o livro ao mostrador.
-Obrigado -disse-. Poderia me dizer se houver algum navio que saia logo para as colônias?
-Sim -disse, agarrando o registro com uma mão e aceitando uma fatura de um cliente com a outra-. O Glorificaria sai depois de amanhã para as Carolinas. -Olhou ao Roger de cima abaixo-. Emigrante ou marinheiro? -perguntou.
-Marinheiro -respondeu com rapidez. Passando por cima as sobrancelhas arqueadas pela surpresa, fez um gesto para os guichês-. Onde tenho que ir assinar?
O empregado assinalou a porta.
-Seu capitão, o capitão Bonnet, deve estar no botequim.-Não acrescentou o que sua expressão fazia evidente: se Roger era marinheiro, ele, o escrivão, era um louro africano.
-Bem, mo ghille. Obrigado. me deseje sorte! -gritou Roger, com um sorriso zombador.
-Que tenha sorte!
E agitou a mão.
Encontrou ao capitão Bonnet no botequim, tal como lhe haviam dito. Estava em um rincão, envolto em uma nuvem de fumaça ao que se somava a fumaça do charuto do marinho.
-Seu nome?
-MacKenzie -disse Roger em um súbito impulso. Se Brianna o tinha feito, ele também podia.
-MacKenzie. Alguma experiência, senhor MacKenzie?
-A pesca de arenques no Minch.
Não era mentira; durante sua adolescência tinha pescado arenques no verão. A experiência lhe tinha deixado uma boa musculatura, ouvido para a cadência da linguagem das ilhas e um marcado desgosto pelos arenques. Mas ao menos sabia o que era sustentar uma corda entre as mãos.
-Ah, bom, é um moço grande. Mas ser pescador não é o mesmo que ser marinheiro.
O suave acento irlandês deixava aberta a possibilidade de que fora uma pergunta, uma afirmação ou uma provocação.
-Não pensava que essa ocupação requeresse grandes habilidades.
Sem nenhuma razão aparente o capitão Bonnet lhe punha os cabelos de ponta.
-Talvez mais do que crie, embora nada que um homem com vontade não possa aprender. Mas a que se deve que um moço como você dita converter-se em marinheiro?
-Acredito que isso não é seu assunto —respondeu tranqüilamente. E com certo esforço manteve as mãos quietas nos flancos.
Os pálidos olhos verdes do Bonnet o estudaram desapasionadamente, sem piscar.
-Estará embarcado ao pôr do sol -disse Bonnet- Cinco xelins ao mês, carne três dias à semana e pudim de ameixas os domingos. Terá uma rede, mas a roupa é tua coisa. Terá liberdade para abandonar o navio uma vez que a carga esteja desembarcada, não antes. Estamos de acordo, senhor?
-Estou de acordo -disse Roger, e de repente sentiu a boca seca.
Tivesse dado algo por uma cerveja, mas não agora, não ante aqueles frios olhos verdes.
-Pergunta pelo senhor Dixon quando subir a bordo. É o pagante.
Bonnet se tornou para trás, tirou um livrinho de couro de seu bolso e o abriu. Audiência concluída.
Roger partiu sem olhar para trás. Sentia um frio sorvete na nuca. Se se dava a volta sabia que encontraria aquele olhar fixo tomando nota de todas suas debilidades.
Antes de embarcar-se no Gloriana, Roger se considerava em um estado físico razoavelmente bom. De fato, comparado com a maioria dos especímenes mau alimentados que constituíam o resto da tripulação, considerava-se bem dotado. Necessitou exatamente quatorze horas, a duração de uma jornada de trabalho, para descobrir seu engano.
Tinha esquecido a profunda fadiga que provocava a roupa molhada e fria. Recebia com agrado a pesado trabalho de carregar, porque o esquentava temporalmente, embora sabia que aquele calor não duraria, já que ao sair a coberta o vento gelado congelaria sua roupa molhada.
Em dois dias terminaram de carregar os barris de sal, os cilindros de tecido e os pesadas embalagens de quinquilharia que, por seu peso, terei que levantar com cordas. Para o qual o tamanho do Roger resultou muito útil.
Os passageiros subiram a bordo ao anoitecer: uma fila de emigrantes carregados com vultos de todo tipo, jaulas com galinhas e meninos.
-São emigrantes que se pagam a passagem trabalhando –explicou seu companheiro Duff, olhando com olho prático-. Alguns podem pagar assim, mas a maioria não. Têm que conseguir comida para sua família durante a viagem.
-O capitão não lhes dá a comida?
-Sim. -Duff tossiu e cuspiu-. Mas em troca de um preço.
-Sorriu zombador e se secou a boca-. vá jogar lhes uma mão, moço. Não queremos que as lucros do capitão caiam à água, verdade?
Surpreso pela quantidade de roupa que levava uma menina, a que subiu a bordo, dedicou-se a observar de perto às demais mulheres e se deu conta de que todas levavam um vestido sobre outro, como se levassem postas todas suas posses.
Roger sorriu a um pequeno, obstinado às saias de sua mãe. Não devia ter mais de dois anos, com cachos loiros e um gesto de temerosa desaprovação acima de tudo o que via.
-Vêem, homem -disse Roger brandamente, estendendo uma mão para animá-lo. Já não precisava controlar seu acento, saía-lhe de forma natural o highland que falasse durante sua infância-. Sua mãe não pode subir; anda, vêem comigo.
O menino permitiu que Roger o arrancasse das saias de sua mãe e o levasse pela coberta enquanto a mulher os seguia em silêncio. Quando lhe entregou ao menino o olhou fixamente e Roger se afastou com certa insegurança, como se a tivesse abandonado para que se afogasse.
Quando voltava para seu trabalho viu uma moça com um jovem, alto e arrumado, e um menino em braços. Ao vê-los, Roger sentiu algo que podia ser inveja.
-Você, MacKenzie! -O grito o tirou de sua contemplação-, Há uma carga esperando e não vai subir sozinha a bordo!
Uma vez que embarcaram e se fizeram ao mar, a viagem transcorreu com a mesma tónica durante algumas semanas. O tempo tormentoso que tinham em Escócia rapidamente degenerou em ventos fortes e grandes cheire, provocando imediatamente enjôos e vômitos.
Roger teve a sorte de não enjoar-se. Sua experiência na pesca de arenques tinha sido suficiente para lhe dar uma boa perspectiva do tempo, junto com o conhecimento de que sua vida podia depender de se o sol brilhava esse dia ou não.
Seus companheiros não eram amistosos mas tampouco hostis. Ao Roger não preocupava essa frieza; gostava que o deixassem sozinho com seus pensamentos, assim tinha a mente liberada enquanto seu corpo se ocupava das obrigações alvos do navio.
Estava mais interessado em quão passageiros na tripulação ou o capitão. Viam-nos muito pouco, já que só podiam subir a coberta duas vezes diárias para tomar o ar, esvaziar seus bacinillas (já que as letrinas do navio não estavam preparadas para tanta gente) e recolher as pequenas quantidades de água, racionada cuidadosamente para cada família. Roger esperava aquelas breves aparições e tratava de estar trabalhando perto do lugar onde apareciam.
Seu interesse era profissional e pessoal; seu instinto de historiador despertava com a presença daquela gente e sua melancólica solidão se acalmava para ouvi-los falar. Neles estava a semente de um novo país, a herança do antigo. Tudo o que aqueles pobres emigrantes sabiam e valoravam permaneceria para que outros o conservassem.
-Senhor -disse uma vocecita a seu lado-. Senhor, posso ir tocar o ferro?
Olhou fazia abaixo e sorriu a uma pequena menina com seus dois hermanitos agarrados das mãos.
-Sim, a leannan -disse-. Adiante.
A menina assentiu e os três passaram com cuidado, sem incomodar a ninguém, para subir e tocar a ferradura cravada no mastro como amuleto de boa sorte. O ferro era amparo e cura; as mães enviavam freqüentemente a seus pequenos a tocar a ferradura.
Roger pensava que tivesse sido melhor que o ferro tivesse efeitos internos, vendo a palidez dos rostos e as queixa por forúnculos, febre e dentes que caíam. Continuou com seu trabalho, medindo a água que entregava aos emigrantes. A maioria sobrevivia a base de papa de aveia e ocasionalmente ervilhas secas e bolachas duras, o que constituía o total das "provisões» que lhes proporcionava durante a viagem.
Mas não tinha ouvido queixa a respeito; a água era poda, as bolachas não estavam mofadas e se a ração de cereal não podia considerar-se generosa, tampouco mesquinha. A tripulação estava melhor alimentada graças às ocasionais cebolas.
-Amanhã fará bom tempo, não? -disse uma jovem muito bonita de cabelo castanho claro que conhecia do mole do Inverness e a que chamavam Morag.
-Espero que seja assim -respondeu enquanto lhe recolhia o balde para a água e lhe sorria-. por que o diz?
A jovem assentiu assinalando com o queixo.
-Há lua nova nos braços da velha, nisso terra significa bom tempo. Suponho que será o mesmo no mar, não?
-Não perca o tempo conversando, moça, e lhe pergunte.
Roger se voltou e viu uma mulher de média idade falando com o Morag.
-Quer te calar? -sussurrou a jovem-. Não o farei, já disse que não!
-É uma moça teimosa, Morag -declarou a mulher maior enquanto se adiantava-. Se não o fizer você, farei-o eu!
A mulher apoiou uma mão no braço do Roger e lhe dedicou um encantador sorriso.
-Qual é seu nome, jovem?
-MacKenzie, senhora -disse respetuosamente Roger, ocultando um sorriso.
-Ah, é MacKenzie! Bom, já vê, Morag, poderia ser parente de seu homem e seguro que lhe agradará te fazer esse favor.
A mulher se voltou com ar triunfal para a jovem e logo para o Roger com toda a força de sua personalidade.
-Está amamentando a uma criatura e morre de sede. Uma mulher precisa beber mais quando dá de mamar ou lhe seca o leite. Mas é tão parva que não se atreve a pedir um pouco mais de água. Aqui ninguém lhe terá inveja, não? -dirigiu a pergunta, com cara de aborrecimento, às outras mulheres da cauda.
Como era de esperar todas as cabeças se moveram ao mesmo tempo, aceitando o que a mulher queria. Embora já tinha escurecido, o rosto do Morag estava visivelmente avermelhado. Com os lábios apertados aceitou o balde cheio de água e fez uma pequena inclinação de cabeça.
-O agradeço, senhor MacKenzie —murmurou.
O capitão, a tripulação, os passageiros, inclusive a questão tão importante do tempo, não ocupava mais que um fragmento dos pensamentos do Roger, No que pensava dia e noite, molhado ou seco, com fome ou alimentada, era na Brianna. Podia evocar seu rosto sem dificuldade.
O resto era também uma ilusão. Quando ela se foi, atravessando as pedras, levou-se toda sua paz. Vivia em uma mescla de medo e fúria, condimentada pela dor da traição como se lhe atirassem pimenta nas feridas. As mesmas perguntas davam voltas em sua mente sem respostas, como uma serpente mordendo-a cauda.
«por que se tinha ido?»
«O que estava fazendo?"
«por que não o havia dito?»
O esforço para encontrar uma resposta à primeira pergunte-lhe fazia repetir todo uma e outra vez, como se essa resposta fora a chave de todo o mistério da Brianna.
Sim, sentia-se sozinho. Sabia muito bem como se sentia um quando não se tênia a ninguém no mundo. Com essa segurança era uma razão pela que Brianna e ele estavam juntos. Claire também sabia, pensou de repente. ficou-se órfã depois de perder a seu tio e, embora se casou, esteve separada de seu marido durante a guerra... Sim, ela sabia muito sobre o que era estar sozinha. Por isso se tinha preocupado em não deixar a Brianna sozinha, sem ninguém que a amasse.
Ele tinha tentado amá-la como é devido; ainda o tentava, pensou com ironia, movendo-se inquieto em sua rede. Durante o dia, o esforço do trabalho aplacava as exigências de seu corpo. Mas de noite... a Brianna de suas lembranças era muito real.
Não tinha vacilado. Soube do primeiro momento que a seguiria. Algumas vezes, entretanto, não estava seguro de se ia salvar a ou a atacá-la grosseiramente; algo, sempre que esclarecesse situação entre eles. Havia dito que esperaria, mas tinha esperado muito.
O pior de tudo não era a solidão, pensou revolvendo-se inquieto, a não ser a dúvida. Duvidava dos sentimentos dela e dos dele. Tinha pânico de não conhecê-la verdadeiramente.
Pela primeira vez desde que passasse entre as pedras, deu-se conta do que tinha significado sua negativa e também de que sua vacilação era sabedoria. Mas tinha sido sabedoria ou só medo?
Se ela não tivesse passado pelas pedras, teria se entregue finalmente com todo seu coração? Ou se teria afastado procurando algo mais?
Uma súbita tormenta impediu aos passageiros sair a coberta durante três dias. Enquanto isso os marinheiros permaneciam em seus postos sem apenas tempo para comer e descansar. Quando tudo terminou, Roger se deixou cair em sua rede, muito cansado para tirá-la roupa molhada.
Esgotado, empapado, com o corpo cheio de sal e com vontades de dar um banho quente e passar uma semana dormindo, teve que responder à chamada da tarde depois de só quatro horas de descanso.
À posta do sol estava tão exausto que todos os músculos lhe tremiam enquanto ajudava a colocar um barril de água fresca,
Uma menina, cheia de alegria por poder sair da adega, corria e saltava como louca, fazendo sorrir ao Roger apesar de seu cansaço. A menina se apoiou no corrimão nas pontas dos pés, observando com cautela.
-Crie que a tormenta a causou um Cirein Croin? O avô diz que pôde ser. Com suas caudas levantam as ondas –lhe informou a menina.
-Não me tinha ocorrido pensá-lo. Onde estão seus hermanitos, a leannan?
-Com febre -respondeu com indiferença-, Olhe! -gritou-. Olhe, está aí!
O terror na voz da menina fez que Roger se inclinasse para olhar. Uma silhueta escura aparecia na superfície.
-Um tubarão -disse Roger, estremecendo-se involuntariamente e acalmando à menina-. É só um tubarão. Sabe o que é um tubarão, não? Comemo-nos um a semana passada!
A menina estava pálida, tinha os olhos muito abertos e lhe tremia a boca.
-Está seguro?
-Sim -disse Roger com amabilidade e lhe deu água para que bebesse-. É só um tubarão.
-Isobel!
Um grito indignado fez que a menina retornasse a ajudar nas tarefas familiares, deixando ao Roger sem outra distração que seu trabalho e seus próprios pensamentos. Pensou que o navio era um frágil carapaça e que quão único podia fazer era rezam «Pelos que se arriscam no mar. Senhor, tenha misericórdia».
Uma das mulheres lhe aproximou, agarrou-o do braço e lhe mostrou o menino que levava em braços.
-Senhor MacKenzie, o capitão quereria esfregar os olhos do Gibbie com seu anel? Tem-nos inflamados de estar tanto tempo na escuridão.
Roger vacilou e logo se burlou de si mesmo. Como o resto da tripulação, tratava de manter-se afastado do Bonnet, mas não havia razão para negar-se à petição da mulher; o capitão já tinha feito uso de seu anel de ouro como remédio, conhecido popularmente, para os problemas nos olhos.
-Sim, claro -disse, esquecendo-se de si mesmo por um momento-. Venha.
A mulher piscou surpreendida, mas o seguiu. O capitão parecia tão cansado como outros. Estava falando com seu assistente quando viu o Roger. Sua expressão se endureceu mas se relaxou quando ouviu o que queria. Sem comentários, esfregou o anel de ouro que levava em seu dedo mindinho sobre os olhos fechados do pequeno Gilbert. Uma banda Lisa de ouro, observou Roger. Parecia um aliança de casamento e por seu tamanho podia ser o da mulher. O formidável Bonnet com um símbolo de amor?
-A criatura está doente -fez notar Dixon.
Assinalou as manchas vermelhas debaixo das orelhas e suas bochechas ardendo de febre.
-Não é mais que a febre do leite -disse a mulher, abraçando ao menino Com um gesto defensivo-. Estão-lhe saindo os dentes.
O capitão assentiu com indiferença e se deu a volta. Roger acompanhou à mulher até a cozinha a procurar um pedaço de bolacha para que o menino o mastigasse e logo a mandou à adega com os outros.
ficou pensando na conversação que tinha ouvido. O capitão pensava deter-se em New Bem e no Edenton antes de chegar ao Wilmington. Era evidente que não tinha pressa e procurava os melhores preços para sua carga. Diabos, demorariam semanas em chegar ao Wilmington!
Não podia ser, pensou Roger. Só Deus sabia o que poderia lhe passar a Brianna até então. Decidiu baixar do Gloriana no primeiro porto que tocassem e seguir caminho para o sul da melhor forma que pudesse. É verdade que tinha dado palavra de que ficaria no navio até terminar de descarregá-lo; mas como não cobraria seu salário resultaria bastante justo. Dixon tinha deixado ao capitão e caminhava entre os passageiros, saudando os homens e detendo-se falar com as mulheres com criaturas. Roger pensou que aquilo era bastante estranho. O assistente não era um homem sociável com a tripulação e muito menos com os passageiros, aos que considerava uma carga bastante molesta.
-MacKenzie!
Um dos marinheiros o chamava para que ajudasse a arrumar as velas rasgadas pela tormenta. Roger grunhiu e estirou seus músculos doloridos. Não lhe importava o que pudesse acontecer na Carolina do Norte, estaria muito contente de abandonar o navio.
Duas noites mais tarde, um grito despertou ao Roger. Correu pela coberta médio dormido e se deteve o receber um golpe no peito.
-Fique onde está, tolo! -grunhiu Dixon.
-O que acontece? O que acontece?
Roger sacudiu a cabeça. Havia mais gente na escuridão, pois podia sentir os corpos que tropeçavam enquanto ele se esforçava por manter-se em pé.
—Assassinos! -gritou uma mulher-. Malvados agarra...!
A voz se cortou bruscamente, e se ouviu um forte golpe na coberta de acima.
-O que acontece? -De novo em pé, Roger se abriu caminho gritando ao Dixon-. O que acontece? Abordaram-nos?
Suas palavras foram apagadas pelos gritos e gemidos de mulheres e meninos, interrompidos pelos uivos e as maldições dos homens.
Uma luz vermelha brilhava. O navio se incendiava? aferrou-se à escada e pôde agarrar ao Dixon por um pé.
-me solte! -O pé se liberou lhe dando uma patada na cabeça-. Fica aquieto! É que quer te contagiar a varíola?
-Varíola? Que diabos acontece aqui?
Com os olhos acostumados à escuridão, Roger lhe sujeitou o pé e o torceu. Pego por surpresa, Dixon se soltou da escada e caiu pesadamente sobre o Roger e os homens de abaixo.
Roger não fez caso dos gritos de fúria e surpresa, e subiu a coberta. Havia um grupo de homens com faróis que lançavam fazem de luz vermelha, branca e amarela que iluminavam as facas.
Procurou outro navio com os olhos, mas o oceano estava negro e vazio. Não havia piratas, a luta tinha lugar perto da escotilha que ia à adega. A metade da tripulação se reuniu ali, armada com facas e paus. Um motim?, pensou, e desprezou a idéia. A cabeça sem chapéu do Bonnet destacava por cima das demais, brilhando à luz dos faróis.
-O que acontece? -gritou ao ouvido do contramestre, que levava um farol.
O homem se sobressaltou e o olhou com fúria.
-Não tem varíola, verdade? -A atenção do Hutchinson voltou a centrar-se na escotilha aberta-, Fique abaixo!
-Já a tive. O que é o que...?
O contramestre o olhou assombrado.
-Teve-a? Não tem picadas. Bom, não importa, baixa, necessitamos ajuda!
-Para que? -perguntou Roger.
-Varíola! -voltou a gritar o contramestre.
Fez um gesto para a escotilha aberta. Um dos marinheiros apareceu no alto da escada com um menino chutando desesperado baixo o braço. Umas mãos atiravam das costas do homem e uma voz de mulher uivava cheia de terror.
O marinheiro quis defender-se da mulher e soltou ao menino. Roger o recolheu como se fora uma bola de rugby enquanto o homem e a mulher, abraçados como amantes, caíam pela boca da escotilha. ouviram-se mais gritos e gemidos.
Roger tratou de acalmar ao menino, sentindo através de sua roupa como ardia pela febre. O contramestre os iluminou e olhou ao menino com desgosto.
-Espero que tenha acontecido a varíola, MacKenzie -disse. Era o pequeno Gilbert, o menino com os olhos inflamados. Em dois dias tinha trocado tanto que Roger quase não o reconhecia. antes de que pudesse reagir alguém lhe arrancou o pequeno corpo febril.
Os passageiros se recuperaram da surpresa do ataque. Um grupo de homens subiam pela escada armados com o que podiam e caíam sobre os marinheiros com enlouquecida fúria.
Alguém chocou contra Roger e o fez cair. Tratou de levantar-se apoiando-se em mãos e joelhos, mas o chutaram nos flancos.
Tão grande era a confusão que Roger sentiu que o despedaçavam. Alguém o agarrou por cabelo, mas conseguiu liberar-se enquanto golpeava a outro nas costelas. Durante um momento se encontrou fora da briga, ofegando para recuperar o fôlego. Duas figuras se aproximaram e lhe voltaram a golpear. À luz do farol do contramestre, Roger viu o rosto de um de seus atacantes: o mando do Morag MacKenzie, com seus olhos verdes cheios de fúria.
-Já é suficiente -disse Hutchinson, e o homem foi arrojado sem cerimônias escotilha abaixo.
Os companheiros do Roger o ajudaram a levantar-se e logo o deixaram enjoado e cambaleando-se enquanto terminavam sua tarefa. A resistência teve uma curta vida pois, embora os passageiros foram armados com a fúria do desespero, estavam fracos detrás seis semanas encerrados na adega, com enfermidades e mau alimentados. Os mais fortes foram golpeados até que se renderam, os mais fracos obrigados a retroceder v os doentes de varíola...
Roger olhou por cima do corrimão e vomitou. Estremecido pelo esgotamento caminhou lentamente pela coberta.
Quão marinheiros encontrou em seu caminho permaneciam em silêncio. Chegou até sua rede, desoyó as perguntas de seus companheiros e se cobriu a cabeça com a manta tratando de não ouvir os gemidos, de não ouvir nada.
-É o melhor, moço -havia-lhe dito Hutchinson ao vê-lo vomitar-. A varíola se estende como um incêndio, não resistiriam até chegar a terra.
Era isso melhor que uma morte lenta? Não para os que ficavam. Os gemidos seguiam atravessando o silêncio.
Tinha ouvido dizer a um marinheiro que os tubarões nunca dormem. Então se deu conta da carga que tinham arrojado ao mar.
Ao dia seguinte, em metade do guarda, Roger teve a oportunidade de baixar à adega. Não fez nenhum esforço para não ser visto, tinha aprendido que, naqueles lugares, atuar de forma furtiva chamava mais a atenção.
Se alguém lhe perguntava diria que tinha ouvido um ruído e pensava que podia haver algum problema com a carga. desprendeu-se, já que se não punha a escada havia menos possibilidades de que o seguissem. Não havia sinais de presença humana. Entretanto, estava seguro de que ali havia alguém.
«por que está aqui, companheiro?", pensou. E se algum dos passageiros se refugiou ali? Se alguém estava escondido o mais seguro era que tivesse varíola. Roger não ia poder fazer nada. Então, por que incomodar-se em procurar?. Porque não podia deixar de fazê-lo, era a resposta. Não podia reprovar-se nada por não ter salvado aos passageiros com varíola. Talvez uma morte rápida tinha sido o melhor. Mas não tinha dormido; os sucessos da noite anterior lhe produziam uma sensação de horror e impotência. Agora tinha que fazer algo. Devia procurar.
Algo se moveu nas sombras da adega. Um rato, pensou, e se deu a volta. O movimento o salvou de um objeto que passou voando perto de sua cabeça. agachou-se e se dirigiu para onde tinha notado o movimento. Não havia espaço para correr nem site para esconder-se. Ouviu um grito de alarme e se encontrou com a ossuda boneca do Morag MacKenzie.
Chutou-lhe tratando de lhe morder, mas Roger não se alterou. Tirou-a das sombras e a arrastou até a tênue luz da escotilha.
-Que diabos está fazendo aqui?
-Nada! me deixe! me deixe, por favor! Suplico-lhe isso, por favor! -Como não tinha torça para lutar suplicava com desespero-. Por favor, suplico-lhe isso, não posso deixar que o matem, por favor!
-Não vou matar a ninguém. Pelo amor de Deus, te acalme!.
Das sombras, detrás da cadeia da âncora, chegou o pranto de uma criatura- A jovem ofegou e o olhou enlouquecida.
-Vão ouvir! Deixe ir com ele!
Seguiu-a lentamente; ela não podia fugir, não tinha onde ir. Encontrou-os em um rincão do casco, entre o madeiramento e a cadeia da âncora.
-Não vou fazer lhe danifico -disse brandamente.
Ela não respondeu.
Seus olhos se foram acostumando à escuridão. Viu uma mancha branca que resultou ser seu peito; estava amamentando ao menino.
-Que diabos faz aqui? -perguntou, embora sabia muito bem.
-Estou escondida -respondeu com fúria-. Não te dá conta?
-O menino está doente?
-Não! -Protegeu ao bebê e tratou de afastar-se,
-Então...
-É só um sarpullido Todas as criaturas o têm, minha mãe me disse isso!
Pôde detectar o medo na voz.
-Seguro? -disse com toda a suavidade que pôde.
Estirou uma mão para ela.
Morag lhe cravou a mão e Roger a retirou com um gemido de dor.
-Maldita seja! Feriste-me!
-Fique aí! Tenho a adaga de meu marido -advertiu-lhe-. Não deixarei que me tire isso, matarei-te, juro que o farei!
Acreditou-. levou-se a mão à boca e sentiu o sabor de seu próprio sangue, doce e salgada.
-Não me vou levar isso. Mas se for varíola...
-Não o é! Juro que não é varíola! É um sarpullido do leite. Vi-o centenas de vezes. Sou a maior de nove irmãos e sei quando um pirralho está realmente doente.
Roger vacilou e logo, bruscamente, decidiu-se. Se estava equivocada e a criatura tinha varíola, ela também estaria infectada e devolver a à adega propagaria a enfermidade.
E se tinha razão, os dois sabiam que aquele sarpullido condenaria a morte à criatura.
-Não te vou delatar -sussurrou Roger.
Respondeu-lhe um silêncio cheio de suspeitas.
-Necessita comida, não? E água fresca. Sem água ficará sem leite muito em breve. E então, o que acontecerá a criatura?
Podia ouvi-la respirar com dificuldade.
-Quero vê-lo.
-Não!
Os olhos lhe brilhavam de medo; parecia um rato encurralado.
-Juro que não lhe tirarei isso, mas preciso vê-lo.
-por que o jura?
Procurou um juramento celta, mas não lhe ocorreu nenhum e disse o que tinha na mente.
-Pela vida de minha mulher -disse- e sobre a cabeça de meus filhos que ainda não nasceram.
Pôde sentir a dúvida e logo como se afrouxava a tensão.
-Não posso deixá-lo solo para ir roubar comida. Os ratos o comeriam vivo. me morderam enquanto dormia.
Ainda vacilava, mas ao fim se tirou a criatura de entre as roupas e a entregou.
Não agarrava meninos muito freqüentemente.
-Cuidado com a cabeça!
-Já a tenho -disse, sustentando a cabecita com uma mão.
Deu uns passos para pôr o menino ante a tênue luz.
As bochechas estavam cheias de pústulas que pareciam de varíola. Roger sentiu um asco instantâneo. Imune ou não, fazia falta valor para tocar algo contagioso e não impressionar-se.
A criatura não parecia doente; seus olhos estavam claros e embora tinha febre não era o calor que sentiu a noite anterior no corpo do outro menino. O bebê gemia e se movia, mas suas patadas eram firmes, não os débeis espasmos de um moribundo.
-Muito bem -sussurrou finalmente-. Acredito que talvez tenha razão.
Devolveu-lhe ao menino com uma mescla de alívio e desgosto e a aterradora noção da responsabilidade que tinha aceito.
-Quanto tempo? -sussurrou Roger agarrando-a do braço-. Quanto tempo dura o sarpullido do leite?
-Quatro dias ou talvez cinco -sussurrou como resposta-. Mas se for diferente pode durar só dois. Então, todos se darão conta de que não é varíola.
Dois dias. Se era varíola o menino morreria em dois dias. Mas se não, ele poderia arrumar-se. E ela também teria que fazê-lo.
-Pode manter desperta todo esse tempo? Os ratos...
-Sim, posso -disse com ferocidade-, Posso fazer o que tenho que fazer. Ajudará-me?
-Sim, farei-o. -Deu-lhe a mão e depois de um instante de dúvida a estreitou-. Quantos anos tem? -perguntou súbitamente Roger.
-Ontem tinha vinte e dois anos -respondeu com secura-. Hoje talvez tenha cem.
A pequena mão se liberou da do Roger e se retirou à escuridão.
A bruma se acumulou durante a noite. Ao amanhecer, o navio parecia navegar dentro de uma nuvem tão espessa que do corrimão não podia ver-se o mar e só pelos rangidos do casco sabiam que flutuavam sobre a água e não sobre o ar.
A escuridão beneficiava ao Roger; podia andar pelo navio quase sem ser visto e deslizar-se pela escotilha com a pequena quantidade de mantimentos que me separava de sua comida e escondia dentro de sua camisa.
A criatura estava dormida. Roger só viu a curva da bochecha coberta de pústulas vermelhas. Morag captou seu olhar de dúvida e não disse nada, mas lhe agarrou a mão e a pôs no pescoço do pequeno.
O pulso pulsava forte baixo seu dedo e a pele estava quente e úmida. Isso lhe deu confiança e sorriu a jovem mãe, quem lhe respondeu com apenas um brilho de sorriso.
Um mês de viagem a tinha feito emagrecer e os últimos dois dias tinham gravado em seu rosto as linhas permanentes do temor. Seu cabelo caía sem vida, sujo e gordurento. Em seus olhos se via o esgotamento e cheirava a urina, a sedimentos, a leite azedo e a suor.
Seus lábios estavam tão pálidos como o resto de sua cara. Roger a agarrou amavelmente dos ombros e a beijou na boca.
Ao chegar ao alto da escada se deu a volta e a olhou. Seguia ali, olhando-o com a criatura em braços. Talvez poderiam obtê-lo; ao menos Roger estava convencido de que tinha razão e o menino não tinha varíola- Ninguém tinha necessidade de baixar à adega, já que tinham subido um barril com água fresca no dia anterior. O a seguiria alimentando, se é que ela conseguia seguir acordada...
Enquanto Roger cruzava a popa ouviu um ruído e o navio tremeu.
-Baleia! -chegou o grito de acima.
Houve outro movimento e a tripulação ficou em silêncio. Como seria de grande?, perguntou-se Roger. esforçou-se por olhar, tratando inutilmente de ver através da névoa.
-Ignorantes -disse uma voz com suave acento irlandês. Roger deu um salto e uns dentes se materializaram em uma sombra que resultou ser Bonnet. O capitão fumava um charuto que iluminava suas facções-. Arranham-se para livrar-se dos parasitas-explicó Bonnet—. Para as baleias não são mais que uma pedra flutuante.
Roger deixou escapar um suspiro um pouco menos ruidoso que os das baleias. Tinha estado perto Bonnet? Tinha-o visto sair da adega?
-Não danificarão o navio? —perguntou, usando o mesmo tom despreocupado do capitão.
-Nunca se sabe -disse enquanto exalava a fumaça do charuto-. Qualquer desses animais poderia nos afundar se tivesse capacidade para a maldade. Em uma ocasião vi um navio, ou o que ficou dele, destroçado por uma baleia zangada.
-Não parece preocupado pela possibilidade.
Bonnet deixou escapar a fumaça entre seus lábios.
-Seria um desperdício de forças me preocupar por isso. O sábio deixa em mãos dos deuses as coisas que estão além de seu poder e reza para que Danu esteja com ele. Conhece o Danu, MacKenzie?
-Conheço o Danu, a que dá sorte -respondeu Roger, confiando contra toda esperança em que a deusa celta fora uma boa blusa de marinheiro e estivesse a seu lado.
-Homem instruído —repetiu Bonnet brandamente, sem ligeireza-, mas não sábio. É homem de oração, MacKenzie?
Roger ficou tenso, mas Bonnet o tinha pego pela boneca e não o soltava.
-Pinjente que um homem sábio não se preocupa com as coisas que estão além de seu poder. Mas neste navio, MacKenzie, tudo está em meu poder. Apertou-o com mais força-, E todos. -Roger conseguiu soltar-se-. por que? -perguntou Bonnet, com relativo interesse-. A mulher não é tão bonita. E um homem instruído não arriscaria meu navio e minha sorte só por um corpo quente.
-Não há risco. -As palavras soaram roucas-. O menino não tem varíola, é só um sarpullido.
-Desculpa que ponha minha ignorante opinião por cima da tua, MacKenzie, mas aqui sou o capitão.
A voz seguia sendo suave, mas o rancor era evidente.
-É uma criatura!
-É-o e sem nenhum valor.
-Sem valor para um capitão, em todo caso!
-E que valor pode ter? -perguntou implacável-. por que?
-Por piedade. Ela é pobre e não há ninguém que a ajude.
Bonnet se moveu e Roger foi atrás dele. O capitão tirou um punhado de moedas, escolheu um xelim de prata e guardou o resto.
-Ah, piedade -disse-. Diria que é jogador, MacKenzie?
Arrojou a moeda e Roger, por reflexo, apanhou-a.
-Pela vida do lactante, então -disse Bonnet com tom de diversão-. Poderíamos chamá-la uma aposta entre cavalheiros. Cara, vive; cruz, morre.
Não havia lugar para o medo. Arrojou a moeda e viu como caía sobre coberta. Seus músculos se contraíram.
-Parece que Danu está de seu lado esta noite -disse a suave voz de acento irlandês enquanto recolhia a moeda.
Começou a dar-se conta do acontecido quando o capitão o agarrou dos ombros e o fez dar meia volta.
-Caminha comigo um momento, MacKenzie.
Demorou para encontrar sentido às palavras do Bonnet. Quando o fez se deu conta, com uma vaga sensação de assombro, de que lhe estava contando a história de sua vida de forma direta e prática.
Órfão a muito temprana idade no Sligo, tinha aprendido rapidamente a cuidar-se trabalhando como grumete em navios mercantes. Mas um inverno em que faltaram navios encontrou trabalho no Inverness, cavando os alicerces para uma grande casa que foram edificar perto do povo.
-Eu tinha só dezessete anos -disse-. Era o mais jovem do grupo de trabalhadores. Não sei por que me odiavam. Talvez era por minha forma de ser ou porque sentiam ciúmes de minha força e tamanho. Ou porque as moças me sorriam. Ou possivelmente só porque era estrangeiro. Sabia que não era muito popular entre eles, mas não soube bem até o dia em que terminamos os alicerces.
Bonnet fez uma pausa e deu uma chupada a seu charuto.
-Estavam cavados os fossos, levantadas as paredes e a grande pedra angular lista. Eu tinha ido procurar minha comida e, quando retornei ao lugar onde dormia, detiveram-me uns moços que trabalhavam comigo. Tinham uma garrafa, sentaram-se em uma parede e me convidaram a beber. Teria que ter desconfiado porque nunca tinham sido amistosos, mas bebi e bebi e ao momento estava totalmente bêbado por minha falta de costume. Para minha surpresa me levantaram e me deixaram cair no porão que tinha ajudado a construir. Todos estavam ali, inclusive Joey o Parvo, que não era do grupo, a não ser um mendigo que vivia debaixo da ponte, não tinha dentes e comia pescado podre. Estava tão enjoado pelo uísque e a queda que logo que podia ouvir o que diziam, embora me pareceu que discutiam. O chefe do grupo estava zangado com os dois que me tinham levado até ali. O tomo servirá, dizia, e lhe fazemos um favor. Mas os outros diziam que não, que eu era melhor. Alguém podia sentir falta de ao mendigo. Outro riu e disse que não teriam que pagar meu salário. Então me dava conta de que queriam me matar.
Tinham falado antes, enquanto trabalhávamos. Um sacrifício, diziam, para os alicerces, para que a terra não trema e se derrubem as paredes. Mas não tinha emprestado atenção. De havê-lo feito tivesse pensado que foram enterrar um frango, que era o habitual.
Enquanto falava não tinha cuidadoso ao Roger. Tinha os olhos cravados na névoa, como se o que descrevia estivesse acontecendo outra vez naquela cortina espessa.
Roger estava empapado de suor frio e lhe doía o estômago.
-Seguiram discutindo -continuou Bonnet- e o mendigo começou a fazer ruídos porque queria que lhe dessem mais bebida. Até que o chefe disse que não falariam mais e arrojou uma moeda ao ar. Eu não tive forças para me dar a volta e olhar. Então fizeram sentar ao parvo. Ainda lembrança sua cara sorridente e sua boca aberta. Um momento depois a pedra caiu e lhe esmagou a cabeça.
-me golpearam -continuou Bonnet-. Quando despertei estava no fundo de um navio de pesca. O pescador me baixou na costa, perto do Peterhead, e me aconselhou que procurasse um navio. Disse-me que eu não estava feito para a vida de terra firme.
Sacudiu o charuto para lhe tirar a cinza.
-Tinha meu salário no bolso. Eram homens honrados com toda segurança.
Roger se inclinou sobre o corrimão, aferrando-se à única coisa sólida em um mundo de névoas.
-E retornou a terra?
-Quer dizer se os busquei. -Bonnet se voltou e se apoiou no corrimão de cara ao Roger- Sim, sim. Anos mais tarde. Um por um os encontrei a todos.
Abriu a mão em que tinha a moeda.
-Cara, vive; cruz, morre. Uma possibilidade justa, não te parece, MacKenzie?
-Para eles?
-Para ti.
A voz com acento irlandês era tão inexpressiva que poderia ter estado falando sobre o tempo.
Como em um sonho, Roger sentiu o peso do xelim em sua mão.
-Uma possibilidade justa -disse Bonnet- A sorte te acompanhou antes, MacKenzie. Vejamos se Danu te ajuda outra vez.
-É minha vida, atirarei eu -disse Roger, surpreso para ouvir sua própria voz tão tranqüila e segura-. Cruz, escolho cruz.
Fechou os olhos e pensou uma vez mais na Brianna. "Sinto muito", disse em silêncio e levantou a mão. Não abriu os olhos, nem se moveu. Mas notou que Bonnet retirava a moeda.
Demorou um momento em dar-se conta de que estava sozinho.
Wilmington, colônia da Carolina do Norte
1 de setembro de 1769
Era o terceiro ataque, tivesse o que tivesse Lizzie. Pareceu recuperar-se depois do primeiro acesso de febre e, depois de um dia de descanso, insistiu em que estava em condições de continuar viagem. Mas não fizeram mais que cavalgar durante um dia para o norte do Charleston quando a febre voltou de novo.
Brianna tinha pacote os cavalos e acampado perto de um arroio. Durante a noite procurou água para dar de beber ao Lizzie e lavar seu corpo ardoroso. Pela manhã a febre tinha desaparecido e, embora Lizzie estava débil e pálida, podia voltar a montar. Brianna vacilou, mas finalmente decidiu que era melhor avançar para o Wilmington que retroceder. Agora corria pressa encontrar a sua mãe, tanto por ela como pela saúde do Lizzie.
A jovem se estremecia e Brianna pensou, uma vez mais, que era malária. Ao chegar à costa os mosquitos não as tinham deixado em paz e a moça tinha marcas de picadas no pescoço. Necessitava quinina, mas não tinha nem idéia de como chamavam ali à quinina, nem como a administravam. A malária era uma enfermidade antiga e a quinina provinha das novelo; assim estava convencida de que algum médico poderia ajudá-la,
Mas estavam no Wilmington e ainda não tinha encontrado a ajuda que procurava. A mulher da estalagem mandou a procurar o farmacêutico assim que viu o Lizzie. Brianna sentiu um súbito alívio ao ver um jovem bem vestido e com as mãos razoavelmente limpa.
ficou fora enquanto examinava ao Lizzie, mas para ouvir um grito de angústia abriu a porta, descobrindo ao jovem farmacêutico com uma lanceta na mão e ao Lizzie com o rosto da cor do giz e um talho na curva do cotovelo.
-Isto é para drenar os humores, senhorita! -explicou o farmacêutico, tratando de proteger-se-. Não compreende? Se não o fizer, a bílis intoxicará todo seu corpo e será muito prejudicial para ela!
-Se não sair agora mesmo eu sei quem será o prejudicado-dijo Brianna-. Fora daqui!
-Se não me fizer caso condenará a sua faxineira! -gritou indignado-. Não sabe como cuidá-la!
Era verdade, nem sequer sabia qual era a enfermidade do Lizzie. O farmacêutico tinha falado de «febres» e a posadera de «aclimatação». Era comum que os emigrantes adoecessem ao estar expostos a novos gérmenes. A mulher tinha acrescentado que esses emigrantes não estavam acostumados a sobreviver à aclimatação.
Água era quão único tinha, a fazia ferver e a deixava esfriar.
Deixou cair um pouco entre os lábios ressecados do Lizzie, logo a lavou e a voltou a deitar. A jovem lhe dirigiu um sorriso que pareceu um suspiro e ficou dormida como uma boneca de trapo.
Brianna se deixou cair em uma banqueta que havia debaixo da janela, em um vão intento de respirar ar fresco. No caminho desde o Charleston a atmosfera tinha estado pesada e as envolvia como uma grosa manta. Brianna fechou os olhos e apoiou a cabeça no marco de madeira. A febre do Lizzie parecia ter desaparecido... mas por quanto tempo? Se continuava era muito provável que acabasse com a jovem; esta tinha perdido todo o peso que tinha ganho durante a viagem e sua pele tinha adquirido uma cor amarelada.
Não ia encontrar ajuda no Wilmington. Devia vender os cavalos e procurar um bote que as levasse rio acima. Embora lhe voltasse a febre, cuidaria melhor ao Lizzie em uma embarcação que naquele quarto quente e sujo, e enquanto isso se aproximariam de seu destino.
levantou-se, lavou-se a cara e se tirou as calças enquanto fazia planos para a viagem. Seguro que no rio não faria tanto calor e poderiam descansar dos cavalos. Navegariam até o Cross Creek, onde se encontrariam com a Yocasta MacKenzie.
-Tia -murmurou-. Tia avó Yocasta.
imaginava a uma bondosa anciã de cabelos brancos, que a receberia com a mesma alegria que encontrou no Lallybroch. Uma família. Estaria bem ter uma família outra vez. Roger apareceu em seus pensamentos, como acontecia freqüentemente- Apartou-o a um lado com determinação; já teria tempo de pensar nele quando terminasse sua missão.
Yocasta saberia exatamente onde estavam Jamie Fraser e sua mãe e a ajudaria a encontrá-los. Sua mãe se ocuparia do Lizzie, ela sabia ocupar-se de tudo.
Atirou uma manta no chão e se deitou sobre ela nua. ficou dormida imediatamente, sonhando com montanhas e com neve branca e poda.
À tarde seguinte as coisas tinham melhorado. A febre tinha desaparecido deixando ao Lizzie débil, mas com a cabeça limpa e o corpo tão frio como o permitia o clima. Recuperada depois de uma noite de descanso, Brianna se tinha lavado o cabelo e o corpo. ficou calções e casaca e, depois de lhe pagar a posadera para que cuidasse do Lizzie, partiu para ocupar-se de seus assuntos.
Levou-lhe quase todo o dia (tendo que suportar as bocas abertas e os olhares de incredulidade, quando os homens se davam conta de que era uma mulher) vender os cavalos pelo que ela pensava que era um preço decente. Falaram-lhe de um homem chamado Viorst que levava passageiros do Wilmington ao Cross Creek em sua canoa. Mas não pôde encontrá-lo e não tinha intenção de passear-se pelos moles ao anoitecer, com ou sem calções.
Quando retornou à estalagem, ao pôr do sol, encontrou ao Lizzie comendo.
-Está melhor! -exclamou Brianna.
Lizzie assentiu enquanto tragava.
-Estou bem, e a senhora Smoots foi muito amável ao me deixar lavar todas nossas coisas. Sinta tão bem sentir-se limpa outra vez! -disse com ardor.
-Não deveria lavar e engomar ainda -disse Brianna sentando-se a seu lado em um banco-. Pode te cansar e voltar a recair.
-Bom, não acredito que você gostasse de te encontrar com seu pai levando a roupa suja.
-Encontrar a meu pai? Inteiraste-te que algo, Lizzie?
-Sim, foi quando estava lavando. Meu pai dizia que a virtude traz consigo um prêmio.
-Estou segura disso -respondeu Brianna secamente-. O que é o que averiguou e como?
-Bom, estava pendurando suas anáguas, essas com a cinta...
Brianna levantou um jarro com leite e o agitou amenazadoramente sobre a cabeça do Lizzie. A moça se fez a um lado entre risadas nervosas.
-Está bem!
Enquanto lavava, um dos patrões saiu ao pátio a fumar seu cachimbo e ficou a conversar com o Lizzie. Então se inteirou de que o cavalheiro, chamado Andrew MacNeill, não só tinha ouvido falar do James Fraser, mas também também o conhecia.
-Conhece-o? O que te disse? Está ainda aqui esse MacNeill?
Lizzie levantou uma mão para que a deixasse continuar.
-Vou o mais rápido que posso. Não, não está aqui. Tratei de fazer que ficasse, mas devia partir a New Bern e não podia esperar. -Estava quase tão excitada como Brianna-. O senhor MacNeill conhece m pai e a sua tia avó Cameron também; diz que é uma grande senhora, muito rica, com uma grande mansão, numerosos escravos Y...
-Não importa isso. O que disse de meu pai? Mencionou a minha mãe?
-Claire -disse triunfalmente Lizzie-. Disse que esse era o nome de sua mãe, não? Perguntei-lhe e disse que sim, que o nome da senhora Fraser era Claire. Disse que era uma surpreendente curadora e que a tinha visto operar um homem em meio da mesa do comilão com todos os comensais olhando.
-Essa é minha mãe. -Riu e os olhos lhe encheram de lágrimas-. Estão bem? Tinha-os visto ultimamente?
-Isso é o melhor de tudo! -Os olhos do Lizzie se abriram e se inclinou para diante-. Ele está no Cross Creek! Um homem, conhecido dele, vai ser Julgado por uma agressão e foi para declarar como testemunha. O senhor MacNeill diz que a corte não se reúne até na segunda-feira de na próxima semana porque o juiz está doente.
-na segunda-feira que vem..., e hoje é sábado. Pergunto-me quanto se demorará para chegar rio acima.
-Não sei, mas a senhora Smoots me há dito, que seu filho fez a viagem uma vez. Podemos lhe perguntar a ele.
Brianna se deu a volta olhando ao redor.
-Quem é Smoots filho? -perguntou, olhando a todos os homens que comiam ou bebiam na estalagem.
-Yonder, o moço dos olhos castanhos. Posso ir buscá-lo?
Cheia de entusiasmo, Lizzie se levantou e se abriu passo entre a gente
Brianna tinha a jarra de leite nas mãos mas não se serve. Tinha a garganta fechada pela excitação. Pouco mais de uma semana!
Wilmington era um pequeno povo, pensou Roger. Em quantos lugares podia estar ela? Se é que estava ali.
-Está aqui -murmurou-. Maldição, sei que está aqui! Tinha-lhe resultado fácil ir desde o Edenton ao Wilmington. Quando teve que descarregar a adega do Gloriana, agarrou uma gaveta com chá e o levou até um depósito do porco. Logo esperou a que passassem os outros homens, torceu à direita em lugar de a esquerda e se dirigiu ao povo. À manhã seguinte encontrou trabalho como carregador em um pequeno navio que transportava equipamento navais até um depósito do Wilmington, de onde seriam embarcados em um navio maior com rumo à Inglaterra.
Sem remorsos, voltou a escapar do navio no Wilmington. Tinha que encontrar a Brianna e não podia perder tempo. Sabia que ela estava ali. A Colina do Fraser estava nas montanhas, assim necessitaria um guia e Wilmington parecia o lugar adequado para encontrá-lo.
Em um rápido percurso pela rua principal e o porto pôde contar vinte e três botequins, Diabos, aquela gente bebia como esponjas! Existia a possibilidade de que tivesse procurado uma habitação em uma casa, mas os botequins eram o melhor lugar para começar a busca.
Na quinta encontrou a um homem que a tinha visto, e a uma mulher na sétima. «Um homem ruivo e alto», disse o primeiro. E a segunda, com expressão escandalizada, explicou-lhe que tinha visto uma mulher robusta, vestida com calções de homem, com a casaca na mão e a parte traseira à vista de todos».
Ao anoitecer averiguou que a jovem alta e ruiva que levava roupa de homem tinha sido comentário público durante quase uma semana. Com esta informação, e depois de um intercâmbio de palavras com dois bêbados, abandonou o botequim número quinze. É que as mulheres não tinham sentido comum? É que Brianna não sabia do que eram capazes alguns homens?
deteve-se em meio da rua secando o suor do rosto. Decidiu gastar um penique ou duas na comida e talvez o dono o deixasse dormir nas quadras. Assim que se encaminhou ao Blue Bull.
Ali estava ela. Sentada ao lado do fogo, com sua rabo-de-cavalo iluminada pelas chamas e conversando animadamente com um jovem, cujo sorriso Roger desejou apagar de um golpe, Em lugar disso deu uma portada e se dirigiu para ela. Brianna se deu a volta e contemplou a aquele barbudo. Ao reconhecê-lolhe iluminaram os olhos e um grande sorriso se apareceu em seu rosto.
-Ah! -disse-. É você.
Então sua expressão sofreu uma mudança. Gritou. Um grito escandaloso que fez que todos a olhassem.
-Maldita seja! -Agarrou-a do braço-. Que demônios crie que está fazendo?
Seu rosto ficou mortalmente pálido e seus olhos se escureceram pela impressão. Tratou de liberar-se.
-me deixe! .
-Não o farei! Você te vem comigo agora mesmo!
Agarrou-a do outro braço, levantou-a e a fez dirigir-se para a porta.
-MacKenzie! -Maldição, era um dos marinheiros do cargueiro-. O que lhe está fazendo à moça, MacKenzie? Deixa-a!
Houve um movimento de interesse entre os paroquianos. Tinha que sair agora ou não poderia fazê-lo nunca.
-lhes diga que tudo está bem, lhes diga que me conhece! –sussurrou no ouvido da Brianna.
-Está bem -disse Brianna com voz rouca-. Está tudo bem. Conheço-o.
O marinheiro retrocedeu um pouco, ainda com dúvidas. Uma jovem, com uma garrafa na mão, gritou com voz gritã.
-Senhorita Bri! Não se irá com esse malvado, não?
-Está bem -repetiu com mais firmeza-. Conheço-o. –Fez um gesto à moça—, Lizzie, vete à cama. Eu... eu voltarei mais tarde.
deu-se a volta e caminhou com rapidez para a porta.
-Que escás fazendo aqui? -perguntou na porta.
Tinha-a agarrado do braço e a arrastava rua abaixo para a sombra de um grande castanho.
voltou-se para ele assim que chegaram às sombras.
-O que está fazendo aqui?
-te buscar! E o que está fazendo aqui você? E vestida assim, por todos os Santos! Teria sido o mesmo sair nua à rua!
-Não seja idiota! O que está fazendo aqui?
-Já lhe hei isso dito, te buscar.
Agarrou-a pelos ombros e a beijou com força. A fúria, o aborrecimento e o alívio por havê-la encontrado se mesclavam com a intensidade de seu desejo, lhe fazendo tremer. O mesmo acontecia a Brianna, que se estremecia entre seus braços.
-Bem -sussurrou Roger, enterrando a boca entre os cabelos da jovem-. Está bem, estou aqui. Eu me ocuparei de ti.
endireitou-se liberando-se de seus braços.
-Bem? -exclamou-. Como pode dizer isso? Pelo amor de Deus, está aqui!
O horror de sua voz era inconfundível-E onde ia estar quando te lança ao inferno arriscando o pescoço...? por que demônios o fez?
-Estou procurando a meus pais. O que outra coisa podia estar fazendo aqui?.
-Isso já sei! O que quero dizer é por que diabos não me disse isso!
-Porque não me tivesse deixado vir, por isso! Teria tratado de me deter Y...
-Tem toda a razão! Tivesse-te encerrado em seu quarto, maça de pés e mãos' De todas as estupidezes...
Brianna lhe deu uma torta.
-te cale!
-Maldita mulher! Esperava que te deixasse ensinar o culo na praça do mercado? Que classe de homem crie que sou?
Intuiu o movimento antes de vê-lo e pôde lhe sujeitar a boneca.
-Não estou de humor para lhe toque isso moça! me pegue outra vez e te juro por minha Santa mãe que te arrependerá!
Brianna fechou a outra mão e lhe deu um murro no estômago, tão rápido como o ataque de uma serpente.
Roger teve desejos de golpeá-la. Agarrou-a do cabelo e a beijou com toda a força que pôde.
Lutou e se retorceu deixando escapar sons afogados, mas Roger não se deteve até que ela cedeu, e os dois caíram de joelhos. Brianna se abraçou a seu pescoço e começou a chorar. Roger a sustentava enquanto ela tossia e chorava.
-por que? -Soluçava-, por que me seguiu? Não te dá conta? Agora o que vamos fazer?
-Fazer? Fazer o que?
Não sabia se chorava de fúria ou de medo. Certamente, pensou Roger, seria por ambas as coisas.
A jovem o contemplou através das mechas despenteadas de seu cabelo.
-Retornar! Você é a única pessoa que amo. Como vou retornar se você estiver aqui? E como vais retornar, se eu estiver aqui?
-Por isso? Por isso não me queria dizer isso? Pór que me ama? me valha Deus!
Soltou-lhe as bonecas e se atirou sobre ela- Agarrou-lhe a cara com as duas mãos e tratou de beijá-la. Brianna dobrou as pernas e o golpeou nas costelas.
-Pelo Judas! -disse Roger, agarrando-a do cabelo-, O que é isto, luta livre?
-me solte- -Brianna sacudiu a cabeça, tratando de liberar-se-. Detesto que me atirem do cabelo.
Roger a soltou e lhe aconteceu as mãos pelo pescoço.
-Muito bem. Você gosta que lhe estrangulem?
-Não.
-A mim tampouco. Tira o braço de meu pescoço, quer?
Com lentidão, Brianna afrouxou a pressão.
-Bem -sussurrou Roger-. Diga-o. Quero ouvi-lo.
-Quero-te -disse entre dentes—, Entende?
-Sim, entendo. -Agarrou-lhe a cara com suavidade e a aproximou.
Tremente, Brianna o abraçou-. Está segura?
-Sim. O que vamos fazer? -disse e começou a chorar.
Roger estava atirado ao lado de um caminho, sujo, machucado, morto de fome e com uma mulher que tremia e chorava contra seu peito, e que de vez em quando lhe golpeava com os punhos. Não se havia sentido tão contente em toda sua vida.
-Tranqüila -sussurrou embalando-a-. Não passa nada, conheço outra forma de retornar. Não se preocupe, cuidarei de ti.
Por fim deixou de chorar e se sentou.
-Tenho que me soar o nariz. Tem um lenço?
Deu-lhe o trapo úmido que usava para atar o cabelo. depois de fazer toda classe de ruídos, Brianna suspirou profundamente e abraçou com força ao Roger, que sorria na escuridão.
-Sinto muito -disse-. Não queria que viesse detrás de mim. Mas... Roger, me alegro muito de que esteja aqui!
Beijou-a na nuca, que estava úmida e salgada pelo suor e as lágrimas.
-Eu também -respondeu, e por um momento todos os perigos dos últimos dois meses pareceram insignificantes. Todos salvo uma coisa...
-Quanto tempo levava planejando-o? -perguntou. E pensou que podia fixar o dia graças à mudança que percebeu em suas cartas.
-Bom... uns seis meses -respondeu, confirmando suas suspeitas-. Desde que fui a Jamaica durante as férias de Páscoa.
-Sim?
Jamaica em lugar de Escócia. Lhe tinha pedido que se vissem ali e ele se negou ofendido por não havê-lo planejado juntos.
Brianna suspirou profundamente e se soou o nariz.
-Seguia sonhando -explicou-. Comigo pai. Pais. Com os dois. Havia um sonho em particular... Soavam tambores e eu sabia que havia algo oculto esperando, algo horrível. Minha mãe estava ali, bebendo chá com um crocodilo. -Roger grunhiu e a voz da oven se fez mais cortante-. Era um sonho, dá-te conta? Logo ele saía de entre os canos.
Não podia ver seu rosto porque estava escuro, mas seu cabelo era ruivo, via reflexos acobreados quando movia a cabeça.
-O que estava entre os canos era ele?
-Não. Estava entre minha mãe e essa coisa horrível. Não podia vê-la mas sabia que estava ali, esperando. -estremeceu-se involuntariamente e Roger a abraçou com mais força-. Então soube que minha mãe ia se levantar para ir para aquela coisa e tratei de detê-la, mas não podia me fazer ouvir. Então gritei a ele que fora a salvá-la. Viu-me! Viu-me e me ouviu. Então despertei.
-Sim? -disse Roger com cepticismo-, E isso te fez ir a Jamaica?
-Fez-me pensar -respondeu cortante-. Você tinha investigado. Não os encontrou em Escócia depois de 1766 e tampouco apareciam nas listas de emigração às colônias. Foi então quando disse que era melhor abandonar; que não encontraríamos nada.
Roger se alegrou de que a escuridão ocultasse sua culpa.
-Mas o lugar onde se desenvolvia meu sonho era tropical... Não podia ser que estivessem nas Antilhas?
-Já procurei -disse Roger-. Olhei as listas de passageiros de todos os navios que se dirigissem a qualquer parte desde o Edimburgo ou Londres entre 1760 e 1770. Disse-lhe isso -acrescentou com impaciência.
-Já sei -respondeu com igual impaciência-. Mas e se não eram passageiros? por que ia a gente às Antilhas então? Quero dizer, agora.
-A maioria para comercializar.
-Exato. Por isso podiam ter ido em um navio de carga e não figurar na lista de passageiros.
-De acordo -disse lentamente-. É certo, não figurariam. E como foi buscá-los?
-Registros dos depósitos, livros de contas das plantações, declarações nos portos. Passei todas as férias em bibliotecas e museus. Y... e os encontrei.
«Diabos, tinha visto a notícia.»
-Sim? -disse, lutando por manter a calma.
Brianna riu um pouco insegura.
-O capitão de um navio chamado Artemis, cujo nome era James Fraser, vendeu cinco toneladas de guano na baía do Montego em 2 de abril do ano 1767.
-Sim? Capitão de um navio? depois de tudo o que disse sua mãe sobre como se enjoava no mar? E não é por te desanimar mas devem existir centenas do James Fraser. Como pode saber...?
-Pode ser, mas em primeiro de abril, uma mulher chamada Claire Fraser comprou um escravo no mercado de escravos do Kingston.
-Que ela o que?
-Não sei por que -disse Brianna com firmeza-, mas estou segura de que foi por uma boa razão.
-Bom, claro, mas...
-Os papéis dizem que o nome do escravo era «Temeraire», e o descrevem dizendo que lhe faltava um braço. Isso o explica, não? De todos os modos procurei esse nomeie em uma coleção de periódicos velhos, não só das Antilhas, mas também também das colônias do sul. Minha mãe não ficaria com um escravo; se o comprou deveu lhe dar a liberdade de algum jeito. As notícias de emancipação figuravam nos periódicos locais. Pensei que talvez o encontraria.
-E o encontrou?
-Não. -ficou em silencio por um instante-. Encontrei... outra coisa. A notícia de sua morte. a de meus pais.
-Onde? -perguntou brandamente-. Como?
Escutava-a pela metade enquanto se amaldiçoava. Deveu ter sabido que era muito obstinada para convencê-la. Tudo o que tinha conseguido com sua estupidez foi obrigá-la a guardar o segredo. E tinha tido que pagá-lo com meses de preocupação.
-A notícia é de 1776, assim estamos a tempo de encontrá-los. -Suspirou-. Me alegro de que esteja aqui. Estava muito preocupada pensando que podia descobri-lo antes de que retornasse. Não sabia o que faria.
-O que ia fazer... já sabe -disse em tom despreocupado-. Tenho um amigo com um menino de dois anos. Diz que nunca tinha aceito que se maltratasse aos meninos, mas que agora o entende. Nestes momentos sinto o mesmo sobre os maus entendimentos às mulheres.
-O que quer dizer com isso?
Soltou uma leve gargalhada.
-Quero dizer que se fosse um homem desta época, em lugar do que sou, nada me daria mais agradar que me tirar o cinturão e te dar uma surra.
-Assim como não é desta época, não pode fazê-lo? Ou pode, mas não desfrutaria?
Não parecia tomá-lo a sério.
-Desfrutaria -assegurou-lhe-. Nada eu gostaria mais.
Brianna se estava rendo. Em um arranque de fúria a apartou e se sentou.
-O que passa contigo? Acreditei que tinha encontrado a outro homem. Suas cartas dos últimos meses... e logo a última. Estava seguro. Por isso quero te pegar, não por me mentir ou por ir sem me avisar, mas sim por me fazer acreditar que te tinha perdido!
-Sinto muito -disse depois de um silêncio-. Nunca quis que pensasse isso. Quão único desejava era evitar que o descobrisse até que fora muito tarde. -Olhou-o-. Como te deu conta?
-Suas caixas. Chegaram à universidade.
-Como? Mas os pinjente que as enviassem no fim de maio, quando você estivesse em Escócia!
-Deveria ter sido assim, mas uma conferência de última hora me reteve em Oxford. Chegaram um dia antes de partir.
A voz da Brianna soou curiosamente rouca.
-Creíste que tinha encontrado a outro... e mesmo assim veio a me buscar?
-Teria vindo embora te tivesse casado com o rei do Siam. Maldita mulher.
Suspirou lentamente.
-Disse maltratar à esposa.
-Você disse que estava segura. É a sério?
-Sim -respondeu brandamente.
-No Inverness, disse-te...
-Disse-me que me teria toda ou não me teria. E eu te disse que te entendia. Estou segura.
Acariciou-a e afundou o rosto entre seus cabelos. Brianna se aferrou a seus ombros e se tornou para trás. Sim, dizia-lhe. Lhe respondeu lhe abrindo a blusa e deixando ao descoberto seus peitos brancos e suaves.
-Por favor -disse Brianna-. Por favor!
-Se tomar agora será para sempre -sussurrou.
-Sim -respondeu.
A porta do botequim se abriu lhes provocando um sobressalto. Roger ficou em pé e lhe deu a mão para ajudá-la a levantar-se- Esperaram até que as vozes se perderam na distância.
-Vêem -disse Roger, grampeando-os calções.
Havia um abrigo escuro e tranqüilo a certa distância do botequim; detiveram-se na entrada esperando; não ouviram nada na parte de atrás da estalagem; não havia luz nas janelas do piso superior.
-Espero que Lizzie se foi à cama.
-Sabe o que é um matrimônio a prova? -disse Roger, perguntando-se quem seria essa Lizzie.
-Não exatamente. É uma espécie de matrimônio temporário?
-Mais ou menos. Nas ilhas e nas partes mais afastadas das montanhas de Escócia, onde é difícil encontrar algum ministro, um homem e uma mulher se casam a prova, fazem votos por um ano e um dia. Ao finalizar o prazo procuram um ministro e se casam, ou se separam e se vão cada um por seu lado.
A jovem lhe oprimiu a mão.
-Não quero nada temporal.
-Eu tampouco. Mas não acredito que encontremos um ministro por aqui. Ainda não se construíram Iglesias. O mais próximo deve viver em New Bern. -Levantou as mãos- Disse-te que o queria tudo, e se você quer te casar comigo...
-Sim, quero.
-Muito bem.
Roger respirou profundamente e começou.
-Eu, Roger Jeremiah, aceito a Brianna Ellen como legítima algema. Para protegê-la e cuidá-la... -A mão da Brianna apertou a sua-. Na saúde e a enfermidade, na pobreza e na riqueza, até que a morte nos separe.
«Se fizer estes votos, manterei-os custe o que custar.»
O que estaria pensando ela agora?
Brianna falou com grande determinação.
-Eu, Brianna Ellen, tomo a ti, Roger Jeremiah... -sua voz era apenas mais alta que os batimentos do coração de seu próprio coração, mas ouvia cada palavra- enquanto durem nossas vidas.
A frase significava bastante mais para ambos, pensou Roger, que o que tivesse significado uns meses atrás. O passar através das pedras para pensar na fragilidade da vida.
Houve um momento de silêncio logo que interrompido pelo murmúrio de vozes distantes do botequim. Roger levantou a mão da Brianna e a beijou no dedo anelar, onde um dia, se Deus o permitia, teria seu anel.
O abrigo estava muito escuro e despi-la foi uma sucessão de frustrações e deleites.
-E eu que acreditava que aos cegos levava anos desenvolver o sentido do tato... -murmurou.
A risada cálida da jovem lhe fez cócegas no pescoço.
-Ânfora -murmurou sobre a suave curva de seus lábios, deslizando as mãos pelas curvas de seus quadris sólidos e frescas que prometiam abundância-. Como uma vasilha grega. Tem um traseiro precioso!
Vibrava contra ele e sua risada passava de seus lábios aos do Roger como uma corrente. Sua mão baixou pelo quadril do Roger, primeiro vacilante e logo com mais segurança.
-Bom... é como uma corda... não, como uma enguia..., talvez como uma serpente,., Joder, como se chama?
-Tinha um amigo que o chamava Dom Contente -disse Roger-, mas para meu gosto é um nome muito frívolo.
Abraçou-a e a beijou outra vez.
Brianna tremia, mas Roger não acreditava que fora de risada. Aproximou-a mais, surpreso pelo puro tamanho corporal da jovem. Agora que estava nua, todos os complexos planos de ossos e músculos se transformaram em uma imediata sensação entre seus braços.
Fez uma pausa para respirar.
-Nunca pude beijar a uma mulher sem me inclinar -disse, tratando de recuperar o fôlego.
-Bom, homem, não queremos que fique rígido o pescoço.
A voz da Brianna voltava a tremer, outra vez de risada, certamente, e Roger pensou que era uma mescla de humor e nervosismo.
-Ja, ja, ja -exclamou e a abraçou outra vez.
Seus peitos eram firmes e arredondados, e cada vez que os tocava lhe intrigava sua suavidade e firmeza.
Não podia beijá-la e despir-se de uma vez, assim arqueou as costas para que Brianna lhe baixasse os calções. liberou-se deles sem deixar de abraçá-la. Finalmente deixou de beijá-la respirando com dificuldade.
-me poderia soltar isso um momento? Sei que é uma boa asa, mas tem usos melhores.
Em lugar de soltá-la, Brianna ficou de joelhos. Roger se moveu inquieto.
-Mulher, está realmente segura de que quer isso?
Não estava seguro de se ele o desejava ou não, mas seu membro tremia de desejo.
-Não quer que o faça?
As mãos femininas se moviam acariciando suas coxas e Roger sentia que lhe punham todos os cabelos de ponta.
-Bom... sim. Mas faz dias que não me banho –respondeu Roger.
Deliberadamente, Brianna esfregou o nariz sobre o estômago do homem e respirou profundamente.
-Embriaga-me este aroma -sussurrou-. Cheira a macho.
-O que quer que lhe eu faça? -murmurou ele.
Que suave e quente era seu corpo.
Sentiu os cabelos da jovem em suas coxas e seus pensamentos abandonaram toda coerência.
-upo'em?
-O que?
Foi como despertar de um desvanecimento.
-Pergunto-te se chupar bem -disse Brianna, tornando o cabelo para trás.
-Ah... sim, acredito que sim.
-Crie? Não está seguro?
Brianna parecia ter recuperado a compostura com a mesma rapidez com que Roger a tinha perdido para ouvir a risada contida da jovem.
-Bom... não -disse-. Quero dizer, eu não... quer dizer, ninguém... Sim, isso acredito.
antes de que pudesse protestar a levantou para deitá-la sobre a palha onde tinham atirado suas roupas. Excitado mas com cuidado, Roger fez sua parte. Já o tinha feito em outra ocasião; então se tinha encontrado com emanações femininas que recordavam a flores de igreja.
Mas Brianna não era essa classe de mulher higiênica. Seu aroma o encheu de desejo e luxúria. Beijou-a em seu pêlo encaracolado.
-Maldição -disse.
-O que acontece? -perguntou com certo alarme-. Cheiro tão mal?
-Não. -Riu-. É que faz um ano que me pergunto de que cor é seu pêlo. E agora que o tenho em frente não posso vê-lo.
Brianna lançou uma risita.
-Quer que lhe diga isso?
-Não, deixa que me surpreenda pela manhã.
Inclinou a cabeça surpreso pela variedade de texturas em tão breve espaço. Então sentiu suas mãos sobre sua cabeça como uma bênção.
-Estou-o fazendo bem? -perguntou médio em brincadeira.
-OH, fui-dijo brandamente-. com certeza que sim.
aferrou-se a seus cabelos.
-E como diabos sabe? -perguntou.
A resposta foi uma risada afogada- Logo, sem saber como, encontrou-se sobre ela, sua boca na sua, todo o peso de seu corpo apertando-a e sentindo o calor de sua pele.
Ela tinha gosto a ele e ele a ela. Se Deus não o ajudava, não ia poder conter-se. Mas o fez. Brianna estava ansiosa e o tocava muito rápido. Agarrou-lhe as mãos e as colocou sobre seu peito.
-Sente meu coração -disse-lhe com voz rouca- e me diga se se detiver.
Não tinha querido ser gracioso e lhe surpreendeu sua risada nervosa.
-Amo-te -murmurou-. OH, Bri, amo-te.
-Continua! -sussurrou Brianna.
Fechou os olhos e permaneceu assim, pressionando brandamente.
-Roger?
-Sim?
-É... é realmente grande, não?
Sua voz tremia.
-Ah... -Tratou de recuperar-se-. O normal. -Um relâmpago de preocupação o sacudiu-. Faço-te mal?
-Não, não exatamente. É... Poderia ficar aquieto um minuto?
-Um minuto, uma hora. Toda a vida sim o deseja.
Pensou que morreria feliz, assim, sem mover-se.
-Agora está bem -sussurrou Brianna em seu ouvido e, como um autômato, começou a movê-lo mais lentamente que pôde, guiado pela mão dela em suas costas.
Sabia que agora o fazia danifico mas não podia deter-se. Deixou escapar um som profundo; agora, tinha que fazê-lo agora.
-Amo-te -disse Brianna com a voz rouca-. Fica comigo.
-Toda a vida -respondeu abraçando-a.
Descansavam de seus esforços juntos e em paz.
-Está bem, meu amor? -murmurou Roger-- Tenho-te feito mal?
-Sim, mas não importa. -Passou-lhe a mão pelas costas lhe produzindo um estremecimento-, esteve bem? Tenho-o feito bem? -disse com nervosismo.
-Fenomenal!
Inclinou a cabeça e a beijou.
-esteve bem então?
-foi a hóstia!
-É muito blasfemo para ser filho de um ministro -disse a mulher com tom acusador-. Talvez essas velhas senhoras do Inverness tinham razão e está diabólico.
-Não são blasfêmias. São preces de agradecimento.
Brianna se pôs-se a rir.
-Ah, então tudo está perfeitamente bem -disse com evidente alívio.
-Joder, sim -disse, fazendo-a rir outra vez-. Como pode pensar outra coisa?
-Bom, não disse nada absolutamente. Ficou como alguém a quem golpeiam na cabeça; pensei que talvez te tinha desiludido.
Agora lhe tocou rir ao Roger.
-Não; OH, não -disse, recuperando-se finalmente-. Comportar-se como se lhe tivessem tirado a coluna vertebral é uma prova da satisfação masculina. Não muito galante, mas sim sincera.
-0h, está bem. -Pareceu satisfeita com a resposta-. O livro não dizia nada sobre isso, não se incomodaram em falar do que passava depois.
-Que livro é esse? -moveu-se com cuidado e seus corpos se separaram com um som especial-. Toma -alcançou-lhe a camisa.
-O homem sensual -Agarrou a camisa com gesto afetado-. Falava de natas, cubitos de gelo, fellatios...
-Aprendeu isso de um livro?
Roger estava tão escandalizado como as senhoras da paróquia de seu pai.
-Não pensará que o fiz a todos com os que saí?
Agora era ela a escandalizada.
-Escrevem livros para lhes dizer às mulheres o que têm que fazer...! Isso é terrível!
-O que tem de terrível? Do que outra forma o ia aprender?
Roger se esfregou a cara sem encontrar resposta. Se lhe tivessem perguntado uma hora antes, teria se declarado a favor da igualdade sexual. Mas ainda ficavam restos do filho do ministro presbiteriano, que pensava que as jovens deviam chegar ignorantes de noite de bodas.
-Está bem -disse-. Mas ainda tem muito que aprender.
-Insígnia me você -sussurrou Brianna e lhe mordeu no lóbulo da orelha.
Brianna despertou com o canto de um galo; Roger se moveu ao senti-la. Faziam o amor três vezes e se sentia feliz e ardida. O tinha imaginada centenas de vezes e se equivocou. Não havia forma de imaginá-lo que significava sentir-se assim, além dos limites da carne, penetrada e poseída.
-Sinto muito -disse Roger, brandamente.
-Porquê?
Acariciou-o sem vacilações. Agora podia lhe tocar todas as partes; não podia agüentar as vontades de vê-lo nu à luz do dia.
-Por isso. -Fez um gesto, assinalando o que os rodeava-. Devi esperar. Queria... o melhor para ti.
-Esteve muito bem -respondeu brandamente.
-Queria que tivesse uma noite de bodas adequada. Com uma boa cama, lençóis limpa... teria que ter sido melhor em sua primeira vez.
-Já tive boas camas e lençóis limpa. Mas isto, não. Não pôde ser melhor.
Beijou-lhe, pegando seu corpo ao do Roger.
-vais matar me, Bri.
-Sinto muito -disse ela-. Apertei-te muito? Não quis te fazer danifico.
Roger riu.
-Não, mas dá descanso a pobre ferramenta, quer?
-Roger?
-me diga.
-Acredito que nunca fui tão feliz.
-Isso está bem.
-Embora... embora não retornássemos, não me importa se estivermos juntos.
-Retornaremos. -Com uma mão cobriu seus peitos-. Disse-te que há outra forma de voltar.
-É certo?
-Isso acredito.
Falou-lhe sobre o grimoire; a mescla de notas cuidadosas e loucas divagações, e sobre o passo pelas pedras do Craigh na Dun.
-A segunda vez, pensei em tí -explicou-lhe brandamente-. Vivi e apareci na época correta. Mas o diamante que Fiona me deu se derreteu em meu bolso.
-Então, há uma forma de dirigi-lo?
Brianna não pôde ocultar um tom de esperança em sua voz.
-Pode ser -vacilou-. Havia um... suponho que pode chamar-se poema.
E o recitou.
Brianna o escutou com os braços apoiados nos joelhos. ficou em silencio por um momento.
-É uma loucura -disse finalmente.
-O ter certificado de loucura desgraçadamente não garante que esteja equivocado -disse Roger com secura.
Se desperezó e se sentou com as pernas cruzadas.
-Não deixa de ser um ritual tradicional. O que diz sobre as quatro direções está nas lendas celtas. E a faca, o altar e as chamas formam parte da bruxaria.
-Ela atravessou o coração de seu marido e lhe prendeu fogo. Brianna recordou, igual a ele, o aroma de carne queimada no círculo de pedras e se estremeceu.
-Espero que não tenhamos que fazer um sacrifício humano-disse Roger, tratando de lhe tirar importância-. Entretanto, o metal e as pedras preciosas... Levava alguma jóia quando veio?
Assentiu a modo de resposta.
-Seu bracelete. E tinha o colar de pérolas de minha avó no bolso. Mas as pérolas não se danificaram, passaram em perfeito estado.
-As pérolas não são pedras preciosas -recordou-lhe-. São orgânicas, como as pessoas. -passou-se a mão pela cara; tinha sido um comprido dia e a cabeça lhe dava voltas-. Tinha o bracelete de prata e engastes de ouro no colar além das pérolas. E sua mãe levava um anel de prata e outro de ouro, não? Seus anéis de matrimônio.
-Estraguem. Três pontos que definem o plano, quatro encerram à terra e o quinto é o número do amparo... -murmurou Brianna-. Ela quereria dizer que faziam falta pedras preciosas para... para o que tentava fazer? Esses seriam os «pontos»?
-Pode ser. Tinha desenhos e uma lista de pedras preciosas com suas propriedades mágicas. Parece que há linhas de força que percorrem a Terra e de vez em quando se curvam em nós. Se se chegar a um desses nós, está em um lugar onde o tempo não existe.
-Assim se a gente passar por um, poderá fazê-lo de novo- em qualquer momento.
-O mesmo lugar em um tempo diferente. Se as pedras preciosas tiverem sua própria força, podem chegar a torcer as linhas...
-Qualquer pedra preciosa?
-Só Deus sabe -disse Roger-. Mas é nossa melhor possibilidade, não?
-Sim -aceitou Brianna-. E de onde tiraremos as pedras?
-Esse é outro assunto. Estive pensando enquanto dormia. Sei... acredito saber onde encontrar uma pedra. Mas... —vacilou-. Tenho que ir imediatamente. O homem que a tem está em New Bern, mas não ficará muito tempo ali. Se coxo algo de seu dinheiro poderei partir em um bote pela manhã e estar em New Bern ao dia seguinte. Será melhor que você espere aqui. Logo...
-Não posso ficar aqui!
-por que não? Não quero que venha comigo. Em realidade sim -corrigiu-se-, mas acredito que é mais seguro que fique aqui.
-Não digo que queira ir contigo, digo-te que não posso ficar aqui -repetiu arranca-rabo a sua mão. Quase tinha esquecido seu descobrimento, mas agora voltava a recuperar toda a excitação do dia anterior-, Roger, encontrei-o, encontrei ao Jamie Fraser!
-Fraser? Quando? Aqui? -disse com assombro.
-Não, está no Cross Creek e sei onde estará na segunda-feira; tenho que ir, Roger. Não o compreende? Está tão perto e eu já cheguei tão longe...
-Sim, já vejo. -Roger parecia algo ansioso-. Mas não pode esperar uns dias? Há um dia de navegação até New Bern e outro para voltar. Em um dia ou dois poderia estar de volta.
-Não -respondeu-. Não posso. É pelo Lizzie.
-Quem é Lizzie?
-Minha criada... você a viu. ia golpear te com a garrafa.
-Brianna riu ante a lembrança-. Lizzie é muito valente.
-Se já me der conta -disse Roger secamente-. Mas isso o que...
-Está doente -interrompeu Brianna-. Não viu quão pálida estava? Acredito que tem malária; embora a febre e os tremores desaparecem, voltam-lhe para os poucos dias. Tenho que encontrar a minha mãe o mais rápido que possa. Tenho que fazê-lo.
-Muito bem -disse-. Muito bem! Voltarei o mais breve possível. Mas me fará um favor, quer? Ponha um vestido!
-Você não gosta de meus calções? -Sua risada se deteve bruscamente, como se algo lhe tivesse passado pela cabeça-. Roger, vais roubar essas pedras?
-Sim -respondeu com simplicidade.
-Não -disse finalmente-. Não o faça, Roger.
-Não se preocupe, o homem que a tem -disse, tratando de tranqüilizá-la- a roubou a outra pessoa.
-Não me preocupo com ele, mas sim por ti!
-Não me passasse nada. Estarei de volta antes de que te dê conta.
-Mas e se não ser assim...
-Tudo sairá bem -disse com firmeza-. Pinjente que te cuidaria e o farei.
-Mas...
Fez-a calar com um beijo e muito brandamente a aproximou de seu corpo.
Brianna ofegou quando a penetrava e mordeu suas costas, mas Roger não disse nada.
-Sabe? -disse Roger, médio dormido-. Acredito que me casei com minhas seis vezes tia avó.
-Que você o que?
-Não se preocupe, não é incesto -assegurou-lhe.
-Ah, bom -disse com sarcasmo-. Como posso ser sua tia avó, caramba?
-Bom, como te disse, estava pensando e não me tinha dado conta antes. Mas o tio de seu pai era Dougal MacKenzie. que causou todo o problema ao ter um filho com o Geillis Duncan, não?
O insatisfactorio método anticoncepcional que tinha utilizado lhe tinha feito pensar nisso. Embora lhe parecia melhor não mencioná-lo.
-Bom, não acredito que a culpa fora toda dele. Brianna também parecia meio dormida. Estava a ponto de amanhecer, os pássaros se ouviam e o ar tinha trocado.
-Se Dougal for mim tio avô eu não sou sua tia avó, a não ser uma prima em sexto ou sétimo grau.
-Tampouco, porque não pertencemos à mesma geração de descendentes; você está muito mais acima pelo lado de seu pai.
-Ao diabo com isso. Se estiver seguro de que não é incesto...
-Não o tinha pensado. -assombrou-se-. Sabe o que significa? Eu também sou parente de seu pai. Acredito que é meu único parente vivo, além de ti!
Roger se sentiu comovido pelo descobrimento.
-Não, não é assim -murmurou Brianna.
-Como?
-Não é o único. Está Jenny. E seus filhos. E seus netos. Minha tia Jenny é você... mmm, talvez tenha razão. Porque se ela for minha tia... eu sou... ahh -bocejou e apoiou a cabeça no ombro do Roger-. Quem lhes disse que foi?
-A quem? .
-Ao Jenny e ao Ian. Quando foi ao Lallybroch.
-Não estive ali.
Se desperezó, aproximando-se de seu corpo.
-Não? Mas então... -Sua voz se quebrou-. Como sabia que eu estava aqui?
-Mmm?
aparto-se súbitamente deixando-o com os braços vazios e olhando-o com receio.
-Como sabia onde estava? -repetiu com tom gélido-. Como sabia que tinha vindo às colônias?
-Ah... eu...
despertou para descobrir, muito tarde, o perigo.
-Não havia forma de saber que tinha saído de Escócia, salvo que tivesse ido ao Lallybroch e eles lhe houvessem isso dito, mas se não foi ao Lallybroch...
-Eu...
Procurou uma explicação, mas não havia outra que não fora a verdade.
-Sabia. Leíste a notícia da morte! Soube todo o tempo, verdade?
-Não -disse, tratando de ganhar tempo-. Quero dizer, sim, mas...
-Desde quando sabia? por que não me disse isso? -gritou Brianna.
pôs-se em pé e recolhia sua roupa.
-Espera -suplicou-. Bri, me deixe te explicar...
-Sim, me explique! Eu gostaria de ouvir sua explicação!
-Olhe -também se levantou-, descobri-o na primavera. Mas eu... sabia que te ia fazer mal. Não lhe queria dizer isso porque sábia que não poderia fazer nada, salvo te romper o coração...
-O que quer dizer com isso de que não posso fazer nada?
Começou a vestir-se com os olhos brilhando pela fúria.
-Não pode trocar os fatos, Bri! Não te dá conta? Seus pais o tentaram, sabiam o do Culloden e fizeram todo o possível para deter o Carlos Estuardo mas não puderam. Fracassaram! Geillis Duncan tratou de que um Estuardo fora rei e falhou. Todos fracassaram! Não pode ajudá-los, Bri -disse com mais calma-. É parte da história, do passado- Você não é deste tempo, não pode trocar o que vai acontecer.
-Você não sabe -disse com rigidez.
-Sei! Escuta, se tivesse pensado que havia a mais mínima possibilidade... mas não há nenhuma. Joder, Bri, não queria que sofresse!
-Não é teu assunto, para que ditas por mim -disse com fúria-. Não importa o que pensasse. É algo muito importante, Roger, como pôde fazê-lo?
sentia-se traída e isso era mais do que Roger podia suportar.
-Maldição, tinha medo de que, se lhe dizia isso, fizesse o que tem feito! –estalou-. Deixaria-me e tentaria passar através das pedras. E agora os dois estamos aqui...
-Culpa-me porque você está aqui? Não fiz todo o possível para que não me seguisse como um idiota?
-Um idiota? Assim me agradece que tenha vindo a te buscar, arriscando minha maldita vida para te proteger?
Tratou de agarrá-la sem estar seguro de querer sacudi-la ou possui-la de novo. Mas não pôde fazer nada; um forte empurrão lhe fez perder o equilíbrio e cair.
Brianna saltava sobre um pé e amaldiçoava, enquanto ficava as calças.
-Maldito arrogante- maldito seja, Roger! Vete! Vete e que lhe pendurem, se for isso o que quer! Vou procurar a meus pais! E os salvarei!
Girou e se encaminhou para a porta antes de que pudesse detê-la.
-Vou. Venha ou não, não me importa. Retorna a Escócia, passa pelas pedras, não me importa. Mas não tente me deter!
E partiu.
Lizzie tinha os olhos bem abertos quando a porta se abriu de repente.
-Está bem, Bri?
Não o parecia; Brianna ia e vinha sussurrando como uma serpente, detendo-se para chutar sua roupa.
-Está bem? -repetiu, insegura.
-Bem! -disse Brianna.
Desde abaixo chegou uma voz rouca.
-Brianna! Voltarei a te buscar! Ouve-me? Voltarei!
Brianna não respondeu. Fechou a janela com fúria e se deu a volta como uma pantera deixando a habitação em uma sufocante escuridão.
Lizzie ficou imóvel na cama, temerosa de mover-se e de falar. Ouviu a Brianna tirá-la roupa e os roucos murmúrios que chegavam de abaixo, até que tudo ficou em silêncio. Então juntou o valor suficiente e se voltou para ela.
-Está.., está bem? -perguntou em voz baixa.
Por um momento acreditou que Brianna não lhe responderia.
-Sim. -A resposta chegou em uma voz sem matizes-. Agora, durma.
Não o fez. Era impossível dormir no estado no que estava Brianna. Não chorava, mas tremia de uma maneira que estremecia a cama.
Tentou não intervir. «Tola, é seu amiga e sua senhora e lhe aconteceu algo terrível e você não faz nada! Em um impulso se aproximou da Brianna e lhe agarrou a mão.
-Bri? -disse brandamente-. Posso te ajudar em algo?
Brianna lhe apertou a mão e logo a soltou.
-Não -respondeu com suavidade-. Vete a dormir, Lizzie, não passa nada.
Por último, incapaz de dormir, Lizzie se levantou da cama e abriu as persianas. Sem saber como atuar se dedicou a fazer o que sempre fazia quando tênia problemas: arrumar as coisas. Recolheu a roupa que Brianna se tirou violentamente e a sacudiu.
Estava suja e com restos de palha. O que tinha feito Brianna? Derrubar-se pela terra? Naquele instante a cena apareceu em sua mente, tão clara que a impressão a sacudiu:
Brianna lutando com o diabo negro que a tinha levado. Era uma mulher alta e forte, mas aquele MacKenzie era um bruto enorme, ele poderia... deteve-se, não queria pensá-lo, Mas sua imaginação não se detinha.
Com grande desgosto se aproximou a camisa e a cheirou. Sim, ali estava, aroma de homem, forte e azedo. Pensar naquela malvada criatura com seu corpo apertado contra o da Brianna, deixando seus aromas como um cão que marca seu território, fez-a estremecer-se de asco.
Com gestos trementes recolheu os calções e as médias para lavá-los. Tiraria-lhes os rastros daquele MacKenzie e, se ao dia seguinte ainda estavam molhados... bom, muito melhor. Ainda ficava o sabão que lhe desse a posadera e tinha a bacia com água.
Começava a entrar luz pela janela quando Brianna ficou dormida. Sua respiração era tranqüila, não despertaria ainda.
Não quis olhar, mas não podia fingir que não o tinha visto. Ali estava, uma grande mancha escura entre as pernas das calças que obscurecia a água.
O sol aparecia no céu com um tom avermelhado, confundindo a água da bacia, o ar da habitação e o mundo que as rodeava, com a cor do sangue fresca.
Brianna pensou que podia ficar a gritar, mas em lugar disso aplaudiu as costas ao Lizzie e falou brandamente.
-Não se preocupe, tudo irá bem. O senhor Viorst diz que nos esperará. Assim que se sinta melhor partiremos. Agora não se preocupe por nada, te limite a descansar.
Lizzie assentiu sem poder responder, os dentes lhe tocavam castanholas apesar de ter três mantas e um tijolo quente nos pés.
-Trarei-te algo de beber, querida. Descansa -repetiu Brianna e, depois de lhe dar outra palmada, levantou-se e saiu da habitação.
Não era culpa do Lizzie, é obvio, pensou Brianna, mas não podia ter eleito pior momento para ter outro ataque de febre. depois da terrível cena com o Roger, Brianna tinha dormido até tarde mas mau. Ao despertar encontrou sua roupa lavada e tendida para secar-se, seus sapatos lustrados, a habitação limpa e ordenada e ao Lizzie atirada no estou acostumado a tremendo pela febre.
Por enésima vez contou os dias. Faltavam oito dias até na segunda-feira; se o ataque do Lizzie seguia o processo habitual poderiam partir dentro de dois dias. Ficariam seis dias e, segundo o jovem Smoots e Hans Viorst, em cinco ou seis dias se podia chegar até o Cross Creek naquela época do ano.
Não podia perder ao Jamie Fraser, não podia! Tinha que estar ali na segunda-feira fora como fora.
O botequim estava enche. Tinham chegado dois novos navios ao porto e os marinheiros bebiam e jogavam às cartas. Brianna passou entre as mesas com uma jarra de uma infusão de hortelã quente, sem fazer caso dos assobios e as olhadas. Roger queria que levasse um vestido, não? Maldita seja, com as calças os podia manter a distância, mas agora estavam molhados e devia esperar para voltar-lhe a pôr.
Um dos homens se moveu e o resplendor de um anel chamou sua atenção. Voltou a olhar assombrada. Era um anel de ouro, mais largo do habitual e com uma inscrição gravada. Brianna não podia lê-la de ali mas sabia de cor.
Apoiou uma mão nas costas do dono do anel. O homem se voltou e sorriu ao vê-la.
-Ah, coração, vieste a trocar minha sorte?
Brianna se obrigou a sorrir.
-Isso espero. Posso tocar seu anel para que me dê sorte?
E sem esperar a permissão esfregou o anel contra sua manga. Logo o levantou para admirá-lo à luz e poder ler assim a inscrição.
«Do F. ao C. com amor. Sempre.»
-É muito bonito. Onde o conseguiu?
Olhou-a surpreso e logo com cautela. Brianna se apressou em esclarecer sua pergunta.
-É muito pequeno para você. Não se zangará sua esposa se o perder?
«Como o terá conseguido? E o que lhe terá passado a minha mãe?», pensou desesperada.
-Se tivesse uma esposa, querida, deixaria-a por ti. Agora estou ocupado, mas mais tarde... né?
-Amanhã -respondeu Brianna-. À luz do dia.
Observou-a assombrado e logo lançou uma gargalhada.
-À luz do dia, então. Espero-te em meu navio, o Gloriana, perto do embarcadero.
-Fazia muito que não comia?
A senhorita Viorst contemplou a tigela vazia da Brianna com alegre incredulidade. Era uma corpulenta holandesa da mesma idade que Brianna que a tratava com afeto maternal, como se fora maior que ela.
-Acredito que desde anteontem. -Brianna aceitou uma segunda ração de pão com manteiga-, OH, muito obrigado!
A comida ajudava a lhe dar um pouco de consolo. A febre do Lizzie havia tornado detrás dois dias de navegação. Esta vez o ataque foi mais largo e severo. Brianna temeu que a jovem não suportasse a viagem pelo rio Cape Fear.
-Se morrer, avisará a meu pai? -tinha sussurrado Lizzie.
-Farei-o, mas isso não acontecerá, assim não chateie –tinha respondido Brianna com firmeza.
Viorst, alarmado pelo mal estado da jovem, tinha-as levado a casa que compartilhava com sua filha, um pouco mais abaixo do Cross Creek. A grande força de vontade da jovem se impôs uma vez mais à enfermidade, mas tal e como se encontrava Brianna temia que seu frágil corpo não resistisse tantas exigências.
Finalmente o tinham conseguido; estava no Cross Creek um dia antes do julgamento. Em algum lugar perto dali tinha que estar Jamie Fraser e junto a ele estaria Claire.
tocou-se d bolso secreto de sua calça. Ali estava o anel. Sua mãe estava viva e isso era o único importante. depois de comer foi ver o Lizzie. Hanneke Viorst estava sentada ao lado da cama remendando roupa. Sorriu ao ver a Brianna.
-Também deves descansa? -disse, fazendo um gesto para a outra cama.
-Ainda não, muito obrigado. O que preciso é que me emprestem uma mula, se for possível.
Viorst lhe havia dito que River Run estava a um bom trecho do povo. Jamie Fraser podia estar ali ou haver ficado no Cross Creek. Queria ir ao povo e procurar o lugar onde se realizaria o julgamento. Não podia correr o risco de não encontrá-lo.
em que pese a seu cansaço, o caminho em mula lhe resultou relaxante. Entre a enfermidade do Lizzie e suas dolorosas lembranças quase não tinha emprestado atenção às mudanças da paisagem. Agora se sentia como sim a tivessem transportado magicamente a um lugar diferente. ia encontrar se com o Jamie Fraser.
Como seria? O tinha perguntada centenas de vezes e o tinha imaginado de mil formas diferentes. em que pese a tudo o que tinha comido voltou a sentir um vazio no estômago.
Ao chegar ao botequim atou a mula e entrou no escuro refúgio. O lugar estava vazio e o dono dormitava em um banco. levantou-se o vê-la e, depois da habitual surpresa por seu aspecto, serve-lhe uma cerveja e lhe indicou como chegar até o tribunal.
-veio para o julgamento? -perguntou com curiosidade.
-Sim, bom, em realidade, não. De que julgamento se trata? -perguntou, ao dar-se conta de que não sabia nada.
-OH, é o do Fergus Fraser -disse o taberneiro, como se todo mundo conhecesse o Fergus-. Os cargos são assalto a um oficial da Coroa. Mas o absolverão, Jamie Fraser veio das montanhas para declarar.
-Conhece o Jamie Fraser? -perguntou com nervosismo.
-Se espera um momento você também o conhecerá. Saiu quando você chegava.
Brianna se tinha posto em pé de um salto e o homem deu um grito de surpresa ao vê-la sair correndo.
Chegou à luz da rua piscando e então o viu. Um homem alto, magro e elegante urinando ao lado de uma árvore. Usava uma saia escocesa de cores desbotadas e uma camisa branca. Jamie a viu e sua expressão de receio se converteu em surpresa ao dar-se conta de que era uma mulher.
Brianna não teve nenhuma dúvida, não era tão grande como o tinha imaginado, mas tinha suas mesmas facções: nariz largo, queixo forte e olhos rasgados.
Ao mover-se, o sol iluminou seu cabelo acobreado.
-O que quer, moça? -perguntou.
Sua voz era mais profunda do que esperava e com um marcado acento escocês.
-A ti -deixou escapar.
-Sinto muito, moça -disse com um sorriso-. Sou um homem casado.
Brianna tratou de detê-lo sem atrever-se a agarrá-lo do braço.
-Não, digo-o a sério. Tenho uma esposa em casa e não está longe daqui. Mas... -Observou-a e descobriu sua roupa gasta-. Tem fome? Tenho dinheiro se quer comer.
-É... é Jamie Fraser?
Olhou-a com atenção.
-O mesmo. -Seus olhos se entrecerraron pelo sol. Deu um passo para ela-. Mas quem o pergunta? -disse brandamente-. Tem alguma mensagem para mim?
-Meu nome é Brianna -disse. Jamie franziu o sobrecenho com insegurança e algo iluminou seus olhos. Tinha ouvido esse nome e significava algo para ele-. Sou sua filha. Brianna –disse com voz entrecortada.
Jamie permaneceu imóvel, sem trocar de expressão. Primeiro ficou pálido e logo seu pescoço e seu rosto avermelharam, como se começassem a arder.
Brianna tentou sorrir.
Jamie piscou e deixou de olhar sua cara para passar a observar seu aspecto Y... seu tamanho.
-meu deus -grunhiu-. É enorme.
Brianna voltou a ruborizar-se.
-De quem será a culpa? -perguntou furiosa.
Jamie deu um passo atrás, surpreso e nervoso.
-OH, não, moça! -exclamou-. Não quis dizer isso! É que... -interrompeu-se olhando-a fascinado-. É certo? -sussurrou-. É você, Brianna?
Pronunciava seu nome com um estranho acento, Briná, que a fez estremecer,
-Sou eu -disse, tentando sorrir—. Não o vê?
-Sim, sim, posso vê-lo.
Então lhe tocou a cara e percorreu a delicada linha de seu queixo. Brianna voltou a estremecer-se.
-Não pensava que fosse tão maior. Tinha visto os retratos, mas mesmo assim, em minha mente foi uma criatura, minha menina. Não esperava...
-Retratos -disse Brianna-. Viu as fotos? Então, mamãe te encontrou, não? Disse que tinha uma esposa em casa...
-Claire -interrompeu-a-. Não a viu? ficará muito contente!
Pensar em sua mãe pôde com ela. As lágrimas que retinha desde fazia dias saíram todas juntas com uma mescla de risadas e soluços.
-Vamos, criatura, não chore! -exclamou alarmado. Tirou um lenço e quis lhe secar lhas lágrimas-. Não chore, a leannan, não se preocupe -murmurou--. Tudo está bem, m'annsachd, todo está bem.
-Sou... feliz. -Brianna se secou os olhos e se soou o nariz-, O que quer dizer a leannan? E o outro que disse?
-Não sabe gaélico? -perguntou Jamie e sacudiu a cabeça-. Não, é obvio, ela não ia ensinar te -murmurou.
-Aprenderei -disse ela com firmeza-, A leannan
-Quer dizer «querida» -disse ele com um sorriso-, E m'annsachd, «minha bênção».
Brianna ia chamar lhe pai e se conteve. Como devia chamá-lo? Papai não: papai tinha sido Frank Randall durante toda sua vida e não o trairia díciéndoselo a outro homem.
Jamie? Não, isso era impossível.
Jamie a viu vacilar e ruborizar-se, e entendeu o problema.
-Pode me chamar P -disse com voz rouca e se esclareceu garganta-. Se quer fazê-lo -acrescentou.
-P -disse e sorriu aliviada-. P. É gaélico?
Devolveu-lhe o sorriso.
-Não. É... mais simples.
E de repente tudo foi simples. Abriu os braços e ela se deixou abraçar e descobriu que se equivocou. Era tão grande como tinha imaginado e seus braços eram mais fortes do que pudesse atrever-se a pensar.
Depois tudo pareceu acontecer em um estado de atordoamento. As emoções e a fadiga faziam que Brianna fora consciente de uma série de imagens, como fotos, imagens detidas sem movimento.
Lizzie, pálida e magra em braços de uma moço negra com um absurdo acento escocês. Um carro cheio de madeiras v vidros. A voz de seu pai, profunda e cálida, descrevendo a casa que ia construir no alto da montanha e lhe explicando que as janelas eram uma surpresa para sua mãe.
-Mas não uma surpresa como a que vai dar você, moça! -disse, soltando uma profunda gargalhada de alegria.
Logo a grande casa: fresca e com aroma a flores. Uma mulher alta com cabelos brancos, as facções da Brianna e uns olhos azuis que olhavam ao vazio. E umas mãos largas que tocavam sua cara e seu cabelo com curiosidade.
-Lizzie -disse, enquanto uma bela mulher negra se inclinava para tocar a cara pálida-. Casca de quina -murmurou.
Mãos, muitas mãos. Tudo parecia mágico; passavam-na de emano em emano com suaves murmúrios. E comida: bolos, pão-doces e doces; também havia chá, doce e quente, que parecia renovar o sangue de suas veias.
Apareceu uma formosa moça loira com rosto carrancudo. Seu pai a tratava com familiaridade e a chamava Marsali. Lizzie, banhada e envolta em uma manta, com uma jarra de líquido quente entre as mãos parecia ter florescido.
Todos conversavam, mas Brianna só de vez em quando entendia alguma frase.
-P, viu ao Fergus? Está bem?
P?, pensou médio intrigada e também indignada porque alguém mais o chamava assim, porque... porque...
Ouviu a voz de sua tia de longe, dizendo:
-Essa pobre criatura está ficando dormida na cadeira, posso ouvi-la roncar. Ulises, leva a à cama.
depois de ouvir aquilo, uns braços fortes a levantaram, mas não eram os do mordomo, a não ser os de seu pai, assim apoiou a cabeça em seu peito e ficou dormida.
Embora o nome do Fergus Fraser soava a clã escocês, seu aspecto era o de um nobre francês. Um nobre francês caminho da guilhotina, corrigiu-se Brianna.
Marsali suspirou ao ver seu arrumado marido e se inclinou sobre a Brianna, sussurrando ao Jamie.
-O que lhe têm feito esses bastardos?
-Nada importante.
Fez um gesto para que voltasse a sentar-se direita. Tinham tido sorte ao conseguir assentos pois o lugar estava lotado de gente que comentava e murmurava ao fundo da sala.
O juiz chegou e ocupou seu lugar. depois de cumprir com todas as cerimônias, o julgamento começou. Era evidente que não tinha jurado, só o juiz e seus subordinados.
Brianna tinha averiguado mais detalhes da família durante o café da manhã. A jovem pulseira negra se chamava Fedra e o moço alto de sorriso encantador era Ian, o sobrinho do Jamie; sua primo, pensou, sentindo a mesma emoção que no Lallybroch. Marsali, a formosa loira, era a esposa do Fergus, e este, é obvio, era o órfão francês que Jamie tinha adotado formalmente em Paris antes do levantamento dos Estuardo.
O juiz Conant, um cavalheiro de média idade, colocou-se a peruca, arrumou-se a túnica e pediu que lessem os cargos, segundo os quais, Fergus Claudel Fraser, residente do Rowao County, em 4 de agosto deste ano de nosso Senhor de 1769 tinha atacado com traição à pessoa do Hugh Berowne, delegado do delegado do condado, roubando propriedade da Coroa que o deputado tinha em custódia.
O tal Hugh resultou ser uma pessoa nervosa de uns trinta anos. Tinha sido atacado pelo francês quando pretendia cobrar os impostos, ficando em custódia pela dívida um cavalo selado. Este ensinou um dente quebrado, resultado da briga.
O juiz o contemplou com interesse e logo se dirigiu ao prisioneiro:
-E agora, senhor Fraser, podemos ouvir sua versão deste desafortunado sucesso?
Fergus levantou o nariz olhando ao juiz como se fora uma barata.
-Este repugnante sujeito -começou em tom moderado-se ...
-O prisioneiro deve evitar os insultos -disse o juiz com frieza.
-O delegado -continuou Fergus sem alterar-se- aproximou-se de minha esposa quando retornava do moinho com meu filho na cadeira. Esse..., o delegado, baixou-a do cavalo sem nenhuma consideração e lhe informou que ficava com ele e a cadeira de montar como pagamento do imposto. Deixou-a com o menino a cinco milhas de casa e exposta aos raios do sol.
Lançou um olhar furioso para o Berowne. Marsali soprou com força.
-Qual era o imposto que o delegado diz que devia?
-Eu não devo nada! Ele diz que minha terra está sujeita a uma renda anual de três xelins, mas não é assim! Minha terra está isenta desse imposto em virtude dos términos nos que se fez a entrega de terras ao James Fraser por parte do governador Tryon. Disse-lhe ao pestilento salaud que isso era assim quando foi a minha casa para cobrar o dinheiro.
-Eu não sei nada dessa entrega -disse Berowne mal-humorado-. Esses tipos são capazes de dizer algo para não pagar.
O juiz levantou a cabeça e escrutinou a sala.
- Está presente James Fraser?
Jamie se levantou e saudou com respeito.
-Aqui, senhor.
-Que jure a testemunha, Bailiff.
Jamie, uma vez que tomaram juramento, testemunhou que era o proprietário dos terrenos cedidos pelo governador Tryon. Nos términos da cessão se incluía que não se pagariam impostos à Coroa durante dez anos, período que não terminaria até dentro de nove. Finalmente assegurou que Fergus Fraser tinha sua casa e sua granja dentro dos limites do território que gozava de franquia; com permissão dele mesmo. James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser. A atenção da Brianna tinha estado cravada em seu pai. Era o homem mais alto da sala e o mais chamativo, com uma camisa branca e uma casaca de um azul profundo que fazia que ressaltassem seus olhos e seu cabelo.
-Parece que a declaração do senhor Fraser é certa, senhor Berowne -disse o juiz-, portanto, deverei absolver o de cargos...
-Não pode prová-lo! -estalou Berowne-. Não há documentos que o provem, só a palavra do James Fraser.
Seu pai não demonstrou aborrecimento algum, ficou em pé outra vez e fez um gerou fazia o juiz.
-Se Sua Senhoria me permitir isso. -Procurou em sua casaca e tirou umas folhas com um selo vermelho de cera-. Sua Senhoria conhece o selo do governador, estou seguro -disse, deixando os papéis sobre a mesa.
O juiz Conant observou com cuidado o selo, logo o abriu e leu o documento.
-Esta é uma cópia do documento original da entrega de terras -anunciou- assinado por Sua Excelência, William Tryon.
-Como o conseguiu? -estalou Berowne-. Não teve tempo de ir a New Bern e voltar!
O juiz lhe lançou um olhar cortante e disse:
-Dado que este documento constitui uma prova, encontramos que o acusado não é culpado dos cargos de roubo, já que a propriedade em questão é dela. Entretanto, no caso do ataque... -Nesse ponto, notou que Jaime seguia em pé- Sim, senhor Fraser? Tem algo mais que dizer a corte?
-Suplico a corre que alivie minha curiosidade, Sua Senhoria. A declaração original do senhor Berowne descreve com detalhe o ataque que recebeu?
O juiz arqueou uma sobrancelha e procurou entre seus papéis.
-O demandante afirma que Fergus Fraser lhe golpeou no rosto com o punho esquerdo e o derrubou; logo agarrou as rédeas do cavalo e se afastou lhe insultando em francês. O demandante...
Uma forte tosse atraiu a atenção sobre o acusado, que, sonriendo de forma encantadora ao juiz Conant, secou-se a cara com um lenço enganchado do gancho de ferro de seu coto esquerdo.
-Vá! -exclamou o juiz e dirigiu um olhar geada ao demandante.
-Poderia me explicar como recebeu um golpe no lado direito da cara, propinando com o punho esquerdo de um homem que não o tem?
-Sim, crottin -disse alegremente Fergus—. Explica isso.
O juiz Conant considerou mais adequado receber as explicações do Berowne em privado e pôs fim ao julgamento, deixando em liberdade ao Fergus Fraser sem nenhuma mancha em seu bom nome e honra.
-Fui eu -disse Marsali com orgulho, pendurada do braço de seu marido na festa que celebraram depois do julgamento.
-Você? -Jamie a olhou divertido-. Você lhe deu o murro ao delegado?
-Não, peguei-lhe uma patada -corrigiu-. Quando o malvado salaud tratou de me baixar do cavalo lhe dava uma patada na mandíbula. Nunca teria conseguido me baixar -acrescentou, zangada pela lembrança-, mas tirou ao Germaine e tubo que me baixar para agarrá-lo.
-Não entendo -interveio Brianna-. O senhor Berowne não quer admitir que uma mulher lhe pegou?
-Ah, não -disse Jamie, lhe servindo outra jarra de cerveja-. Isso foi obra do sargento Murchison.
-Ah -disse Brianna-. Um que estava no julgamento, com cara de porco ao meio assar?
Seu pai riu ante a descrição.
-Estraga, esse é o homem. Tem problemas comigo -explicou- e não é a primeira nem será quão última trata de me incomodar.
-Não podia pensar que ganharia com uma acusação tão ridícula -burlou-se Yocasta.
Estirou uma mão e Ulises lhe tendeu um prato com pão de milho. Agarrou uma fatia e dirigiu seus desconcertantes olhos cegos para o Jamie.
-Era realmente necessário que rechaçasse ao Farquard Campbell? -perguntou com voz de censura.
-Sim, era necessário. -Ao ver a confusão da Brianna, explicou-lhe-: Campbell é o juiz habitual do distrito. Se não tivesse cansado doente em um momento tão oportuno -riu com picardia-, o julgamento tivesse sido a semana passada. Eles contavam com que não teria tempo de ir a New Bern antes do julgamento e assim tivesse sido. -Sorriu ao Ian e o moço se ruborizou de prazer, já que ele tinha sido quem tinha cavalgado em busca do documento-. Farquard Campbell é um bom amigo, tia -disse a Yocasta-, mas sabe bem que é um homem que respeita a lei e se não conseguia apresentar provas teria que falhar em meu contrário. Isso tivesse significado um novo julgamento e uma perda de tempo que Fergus e eu não podemos nos permitir, posto que temos que recolher a colheita.
Olhou a Brianna ficando súbitamente sério.
-Espero que não cria que sou um homem rico.
-Não tinha pensado nada parecido -respondeu surpreendida.
Jamie lhe sorriu.
-Isso está bem, porque embora tenha muitos terras, ainda não estão cultivadas. E embora sua mãe é uma pessoa muito capaz -disse ampliando seu sorriso- não pode ocupar-se de trinta acres de milho e cevada.
Deixou sua jarra e ficou em pé.
-Ian, quer te ocupar do carro e levá-lo junto com o Fergus e Marsali? Brianna e eu iremos por diante -olhou-a interrogativamente-. Yocasta cuidará de sua criada. Não te importa que vamos tão rápido?
-Não -respondeu, ficando em pé-. Podemos ir hoje?
Tirei as garrafas da despensa uma por uma, desentupindo alguma para cheirar seu conteúdo. Se não se secavam bem antes das guardar, as ervas podiam danificar-se dentro das garrafas e as sementes podiam transformar-se em estranhas formas de mofo. Isso me fez voltar a pensar em meus cultivos de penicilina. Ou o que eu pensava que seriam algum dia, se tinha sorte. Tinha-o tentado durante mais de um ano sem êxito.
Cada uma das novelo é um antídoto para alguma enfermidade, se a gente souber qual é. Sentia uma renovada sensação de perda quando pensava no Nayawenne, não só por ela, mas também por seus conhecimentos. Tinha-me ensinado só uma parte do que sabia e isso me enchia de amargura, embora não tanto como a perda de uma amiga.
Entretanto, conhecia algo que ela não sabia: as virtudes múltiplos desse pequeno cultivo de mofo no pão. Era difícil reconhecê-lo e usá-lo, mas nunca duvidei de que valia a pena a busca do cogumelo da penicilina. Tentaria-o de novo na primavera, pensei enquanto cheirava uma garrafa com manjerona. conservava-se em bom estado, com um perfume a almíscar que me recordava ao incenso.
A nova casa da colina já tinha os alicerces e as habitações estavam marcadas. Podia ver o esqueleto da estrutura da porta da cabana; para a primavera estaria terminada. ia ter paredes com gesso e chãos de carvalho; janelas com vidros e Marcos resistentes para que não entrassem ratos nem formigas e um formoso, cômodo e ensolarado gabinete para minhas práticas médicas.
Minhas gloriosas visões se viram interrompidas por um zurro, Clarence anunciava a chegada de visitas. Podia ouvir vozes a distância, em meio dos gritos de êxtase do Clarence, assim comecei a guardar minhas garrafas. Devia ser Jamie, que voltava com o Fergus e Marsali; ao menos era o que esperava.
Os zurros do Clarence se converteram nos gorjeios que usava para conversações mais íntimas, mas as vozes tinham cessado. Era estranho. Era possível que o julgamento não tivesse ido bem?
Guardei a última garrafa na despensa e fui até a porta. Não havia ninguém. Clarence me saudou com entusiasmo mas nada se moveu. Entretanto, alguém tinha chegado, as galinhas se dispersaram entre os arbustos.
-Sassenach.
Meu coração quase se detém o ouvir a voz do Jamie, mas o alívio deixou passo ao aborrecimento. O que acreditava que...?
Por um segundo pensei que via dobro. Estavam sentados no banco, ao lado da porta, um ao lado do outro, com o sol da tarde iluminando seus cabelos.
Meus olhos se centraram no rosto me deixar, radiante de alegria; logo olhei à direita.
-Mamãe.
Era a mesma expressão de ansiedade, felicidade e saudade, tudo de uma vez. Não tive tempo de pensar quando ela já estava entre meus braços me levantando no ar.
-Mamãe!
Não podia respirar, faltava-me o ar pela impressão e o forte abraço.
-Bri! -ofeguei e me deixou no chão sem me soltar.
Olhei-a com incredulidade. Era real. Procurei o Jamie e o vi de pé a seu lado. Não disse nada, mas o sorriso lhe ocupava toda a cara e tinha as orelhas vermelhas de prazer.
-Eu... ah... não esperava... -pinjente como uma idiota.
Brianna me dirigiu um sorriso que fazia jogo com a de seu pai.
-Ninguém esperava a inquisição espanhola!
-Como?-disse Jamie desconcertado.
Septiembre de 1769
despertou de um sonho pesado ao sentir uma mão sobre seu ombro e se apoiou sobressaltada em um cotovelo, piscando.
Logo que podia distinguir o rosto do Jamie.
-Vou caça à montanha, quer vir comigo, moça?
esfregou-se os olhos tratando de despertar e assentiu.
-Bem. Vê te vestindo.
E saiu em silêncio.
Já se tinha posto os calções e as meias quando Jaime retornou silencioso e carregado com uma braçada de lenha. Fez-lhe um gesto e se agachou para avivar o fogo; Brianna ficou o casaco e saiu em direção à privada.
Fora, o mundo era escuro e irreal. Desde não ser pelo frio que sentiu tivesse acreditado que seguia dormindo. Quando retornou dentro, o ar quase se podia cortar pela fumaça, a comida frita e o aroma dos corpos dormidos; fora, em troca, o ar era doce e tênue, e tinha que respirar profundamente, como a grandes goles, para sentir-se bem.
Jamie estava preparado: uma bolsa de couro pendurava de seu cinturão; uma tocha, o corno de pólvora e um costal de lona penduravam sobre suas costas. Brianna ficou na porta observando como se inclinava sobre a cama e beijava a sua mãe na frente.
sentiu-se como uma intrusa, uma olheira. Sobre tudo quando a mão larga e pálida do Claire saiu de entre as mantas e acariciou e! rosto de seu pai com uma ternura que a comoveu. Claire murmurou algo que Brianna não pôde ouvir.
Brianna o esperou ao bordo do claro. Sorriu-lhe sem falar e se encaminhou para o bosque. Seguiu-o com facilidade por um atalho que passava entre bosques de abetos e castanhos.
O atalho ziguezagueava ao mesmo nível até que começou a ascender. Ainda estava escuro, mas súbitamente o silêncio desapareceu. Um pássaro cantou e de repente toda a ladeira da Montana voltou para a vida com toda classe de gorjeios e sons.
Jamie se deteve para escutar.
Brianna também se deteve, olhando-o. A luz tinha trocado muito lentamente. Jamie levava a comida na bolsa e se sentaram em um tronco a compartilhar as maçãs e o pão.
Logo bebeu de um regato, enchendo-as mãos de água fria e transparente.
Ao princípio, seu coração palpitava e lhe atiravam os músculos das pernas pelo esforço da ascensão, até que seu corpo encontrou o ritmo. Com a chegada da luz já não tropeçou e chegou um momento em que seus pés flutuavam baixo um céu que parecia tão próximo como separado da terra.
Por um instante desejou que fora assim. Tinha laços que a atavam à terra, a sua mãe, a seu pai, ao Lizzie... e ao Roger. O sol da manhã era uma bola de fogo sobre as montanhas. Teve que fechar os olhos para que não a cegasse.
Ali estava o lugar onde tinha querido levá-la; ao pé de um ravina as rochas se amontoavam cobertas de musgo e líquenes. Fez-lhe um gesto para que fora atrás dele. Havia uma greta difícil de ver primeira vista. Em uma das pedras grandes notou como vacilava e se deu a volta.
Brianna sorriu e assinalou a rocha.
-Vai tudo bem -disse brandamente-. É que me faz recordar.
O também recordou e lhe arrepiou o pêlo dos braços. Esperou a que Brianna passasse e se reunisse com ele. Quando saíram ao espaço aberto, no topo da ladeira, o sol começava a sair por cima da colina mais afastada.
A seus pés se estendiam colinas e vales.
-Aqui -disse, detendo-se em umas rochas cobertas de erva-. vamos descansar um momento.
-As sensações são muito diferentes aqui -disse Brianna, enquanto o olhava com um sorriso-, Sabe o que quero dizer? Cavalguei desde o Inverness até o Lallybroch e tudo parecia selvagem. -estremeceu-se ante as lembranças-. Mas não tinha nada que ver com isto.
-Não. Eu acredito... -começou e se deteve-. Os espíritos que vivem aqui -disse com estupidez- são muito velhos e viram aos homens durante milhares e milhares de anos; conhecem-nos bem e por isso não se mostram ante nós.
Brianna assentiu sem parecer surpreendida.
-Mas alguns são curiosos, não? -Levantou a cabeça olhando entre os ramos—, Não te dá a sensação de que nos observam de vez em quando?
-de vez em quando.
Brianna estirou suas largas pernas respirando os aromas da manhã.
-Realmente não te importava? —Falou com muita suavidade, evitando olhá-lo-. O viver nessa cova, perto do Broch Mhorda.
-Não, não me importava.
-Quando ouvi falar disso, pensei que deveu ser terrível. Com frio, só e sujo. -Então o olhou.
-Assim era -disse com um ligeiro sorriso.
-Ian, o tio Ian me levou ali para me ensinar isso
-Fez isso? No verão não parece tão desolado.
-Não. Mas mesmo assim... -vacilou.
-Não, não me importava.
Fechou os olhos e deixou que o sol esquentasse seu rosto. Permaneceram comprido momento em silêncio.
-Roger... -disse súbitamente Brianna e o coração do Jamie se retorceu pelo ciúmes.
Foi uma sensação dolorosa pelo inesperada. Não poderia tê-la para ele, embora fora por pouco tempo? Abriu os olhos e se esforçou em parecer interessado.
-Uma vez tratei de lhe falar do que era estar sozinho. Pensava que talvez não seria tão mau. -Suspirou-, Não acredito que me entendesse.
Jamie deixou escapar um grunhido evasivo.
-Pensei... -vacilou, o olhou de esguelha e logo olhou ao longe-. Pensei que talvez por isso você e mamãe... -Respirou profundamente-. Ela também é assim. Não lhe importa estar sozinha.
Jamie a olhou desejando saber o que era o que fazia que dissesse isso. Como teria sido a vida do Claire durante os anos que estiveram separados, para que Brianna pensasse isso? Talvez ela podia dizer-lhe embora não o perguntaria; o último nome que queria pronunciar naquele lugar era o do Frank Randall.
-Bom, talvez seja verdade -aceitou com cautela- Vi mulheres e homens que não suportam o som de seus próprios pensamentos, e não fazem bom casal com aqueles que podem fazê-lo.
-Não -disse com tristeza-. Talvez não resulte.
O ciúmes tinham desaparecido. Assim tinha dúvidas desse Wakefield? Tinha-lhes contado ao Claire e a ele tudo, sua investigação, a notícia da morte, a viagem desde Escócia, a visita ao Lallybroch, maldita Laoghaire! Mas sobre esse homem que a tinha seguido não lhes tinha contado tudo, pensou. Já estava bem; ele não queria ouvir mais. Tampouco podia se separar de sua mente ao Randall.
Embora tinha ganho. Claire estava com ele, quão mesmo esta gloriosa criatura; esta jovem mulher, corrigiu-se ao olhá-la. Mas Randall as tinha tido durante vinte anos e não havia dúvida de que teria deixado sua marca sobre elas. Mas que marca seria?
-Olhe -disse Brianna, lhe apertando o braço.
Seguiu a direção de seu olhar e viu, a uns seis metros de onde estavam sentados, a dois antílopes à sombra das árvores. Os animais os viram, mas seguiram comendo com a inocência da perfeita vida selvagem; então sentiu a bênção do sol sobre sua cabeça. Aquele era um lugar novo e estava contente de poder estar ali, solo com sua filha.
-O que vamos caçar, P?
Jamie estava de pé, imóvel, olhando para o horizonte, mas ela estava segura de que não procurava um animal; podia falar sem temor de espantar aos antílopes.
-Abelhas -respondeu.
-Abelhas? Como se caçam as abelhas?
Agarrou sua arma e lhe sorriu
-Procurando nas flores.
Sabia que havia abelhas nas flores, pois as ouvia zumbir.
-O que deve fazer -explicou seu pai, rodeando lentamente o lugar- é as observar e ver em que direção vão. E não deixar que lhe piquem.
Uma dúzia de vezes perderam o rastro das pequenas mensageiras que seguiam.
-Ali há algumas! -gritou Brianna, assinalando um brilho vermelho a certa distância.
Jamie sorriu, negando com a cabeça.
-Não, as vermelhas, não. As melhores som as amarelas.
Já estava bem entrada a tarde quando encontraram o que procuravam. As abelhas se reuniram entre os restos de uma árvore de bom tamanho.
-Bem! -disse Jaime com um suspiro de satisfação-. Algumas vezes constróem a colméia entre as rochas e não se pode fazer nada. -Tirou a tocha de seu cinturão e fez um gesto a Brianna para que se sentasse em uma pedra próxima-. Esperaremos até que oscurezca para que todo o enxame esteja na colméia. Enquanto isso, quer que comamos algo?
Compartilharam o resto da comida e conversaram com calma enquanto observavam a luz que desaparecia depois das montanhas próximas. Ensinou-lhe a carregar o comprido mosquete e a deixou disparar e voltá-lo para carregar.
-Muito bem -disse, arqueando uma sobrancelha-. Onde aprendeste a disparar?
-Meu pai atirava ao branco. -Baixou a arma com as bochechas ruborizadas de prazer-. Ensinou-me a atirar com pistola e com escopeta. Também com fuzil de caça. Ah, você não deve conhecer o fuzil de caça.
-Não, suponho que não -respondeu com rosto inexpressivo.
-Como tirará a colméia? -perguntou, para trocar de tema.
-Bom, uma vez que as abelhas vão se dormir farei entrar um pouco de fumaça para as aturdir. Depois separarei a parte do tronco que tem o favo e apoiado sobre uma madeira Lisa o envolverei com minha capa. Uma vez em casa, cravarei uma parte de madeira na base e outro na parte de acima para que façam a cera. -Sorriu-lhe-, Pela manhã, as abajas sairão e procurarão flores.
-Não se dão conta de que já não estão no mesmo tugar?
encolheu-se de ombros.
-E o que poderiam fazer? Não há forma de que encontrem o caminho e tampouco têm sua colméia para voltar para ela. Não, estarão contentes em seu novo lar. -Agarrou a arma-. Me deixe limpá-lo, já há pouca luz para disparar.
O silêncio durava muito. Brianna se esclareceu garganta sentindo que devia dizer algo.
-Mamãe não se preocupará se chegarmos tão tarde?
Sacudiu a cabeça sem dizer nada durante um momento.
-Sua mãe me disse uma vez que os homens queriam voar até a Lua -disse bruscamente-. Não o tinham feito ainda, mas o tentavam. Você sabe algo sobre isso?
Brianna assentiu com os olhos fixos na Lua que surgia entre as árvores.
-Fizeram-no. -Sorriu fracamente-. A nave que os levou se chama Apolo.
Pôde ver que lhe sorria como resposta e movia a cabeça pensativo.
-Sim? E o que disseram ao voltar?
-Não tiveram que dizer nada, mandaram fotos. Falei-te sobre a televisão?
Olhou-a um pouco surpreso e se deu conta de que tudo o que lhe tinha contado sobre sua época era difícil de entender como algo real.
-Sim? -disse, com insegurança-. Viu essas fotos?
-Sim -respondeu com as mãos obstinadas aos joelhos-. Terá que esperar horas. Ninguém sabia quanto tempo foram demorar para sair com seus trajes espaciais. Sabe que não há ire na Lua?
Arqueou uma sobrancelha e assentiu como um aluno aplicado.
-Claire me disse isso -murmurou.
-A câmara, o aparelho que faz essas fotos, estava colocada de forma que pudéssemos ver a nave apoiada sobre o pó; este se levantava como se uns cavalos o pisoteassem. Além disso do pó e umas pequenas pedras, a certa distância se viam uns penhascos rochosos; sem novelo, nem água, nem ar mas tudo invadido por uma beleza misteriosa.
-Parece Escócia -comentou.
Brianna riu ante a brincadeira, mas lhe pareceu que ocultava certa nostalgia.
Para distrai-lo assinalou as estrelas.
-As estrelas são igual ao sol, mas estão tão longe que sua luz demora muitíssimo em nos chegar. De fato, muitas vezes já estão mortas e ainda vemos sua luz.
-Claire me contou faz isso muito tempo -disse brandamente.
ficou em pé com decisão.
-Vamos -disse-. Tiremos a colméia e voltemos para casa.
A noite era o suficientemente cálida para deixar a janela sem amparos.
A primeira noite, Ian tinha cedido galantemente sua cama a Brianna para ir-se dormir a um jergón junto a Cilindro no abrigo para as ervas, assegurando que gostava da intimidade. Ao sair, tinha espalmado ao Jamie com um gesto surpreendentemente adulto de felicitação que me fez sorrir.
Jamie também sorriu. De fato, passou vários dias sem deixar de sorrir. Agora, entretanto, não o fazia; seu rosto tinha uma expressão tenra e pensativa.
Surpreendeu-me que ainda não dormisse. levantou-se antes do amanhecer para passar o dia com a Brianna na montanha; retornaram de noite, com a capa cobrindo uma colméia de abelhas defumadas que ao dia seguinte despertariam irritadas ao descobrir o seqüestro. Anotei mentalmente que devia me manter separada do fundo do jardim onde estavam colocadas as colméias.
Jamie suspirou e aproximei a seu corpo. Não fazia frio, mas usava uma camisa para dormir por deferência a Brianna.
-Não pode dormir? -perguntei-, Você molesta a luz da lua?
-Não -disse, embora a estava olhando—. Não é a lua, é outra coisa.
Esfreguei-lhe brandamente o estômago, suspirou e me oprimiu a mão.
-OH, não é mais que uma tolice Sassenach. -Voltou a cabeça para a cama da Brianna-. Entristece-me que tenhamos que perdê-la.
-Mmm -deixei minha mão sobre seu peito. Sabia que chegaria esse momento, mas não tinha querido romper a magia que unia aos três-. Não pode perder realmente a um filho -pinjente brandamente.
-Ela deve retornar, Sassenach, sabe tão bem como eu.-agitou-se inquieto, mas não se apartou-. Olha-a, não é seu lugar nem seu tempo.
-Sim -pinjente, com um desgosto que oprimia meu coração-. É obvio que deve retornar. Pertence a outra época.
-Sei. -Pôs sua mão sobre a minha sem deixar de olhar a Brianna-. Não deveria me lamentar, mas o faço.
-O mesmo me acontece . -Apoiei a frente em seu ombro, aspirando seu aroma-. Mas o que te disse é verdade. Não se pode perder uma filha. Você... você recorda ao Faith?
Minha voz tremia um pouco; fazia muitos anos que não falávamos de nossa primeira filha, que tinha nascido morta na França.
-É obvio que sim. Crie que poderia esquecê-la?
-Não. -As lágrimas corriam por minhas bochechas por causa da emoção-. Isso é o que quero dizer. Nunca lhe disse isso, mas quando fomos a Paris para ver o Jared, fui ao Hospital dê Anges e vi sua tumba. Pu-lhe um tulipa rosado.
-Eu lhe levei violetas -disse, com tanta suavidade que quase não lhe ouvi.
-Não me disse isso.
-Você tampouco.
-Tinha medo de que sentisse...
Me cortou a voz. Tinha tido medo de que se sentisse culpado, pois uma vez já lhe tinha culpado por isso. Acabávamo-nos de encontrar e não queria arruiná-lo tudo.
-Eu também.
-Sinto que não pudesse vê-la -pinjente finalmente e o ouvi suspirar. voltou-se e me abraçou.
-Não importa. Se for certo o que diz, Sassenach. Sempre a teremos. E Brianna seguirá estando conosco.
-Sim, não importa o que aconteça, não importa aonde vá um filho, nem por quanto tempo. Embora seja para sempre. Nunca o perde. Não pode
Não respondeu e me abraçou com força enquanto suspirava uma vez mas. Fomos ficando dormidos enquanto a lua nos banhava com sua paz.
Eu não gostava de Ronnie Sinclair. Nunca me tinha gostado. Em especial eu não gostava da forma em que olhava a minha filha. Esclareci-me garganta fazendo o suficiente ruído para que o ouvisse.
-Jamie diz que para fín de mês necessitará uma dúzia mais de barris pequenos de uísque, e eu necessito o mais breve possível um grande tonel de madeira de nogueira para a carne defumada.
Assentiu enquanto para uma série de crípticas marca em uma tabela de pinheiro que pendurou na parede. Sinclair não sabia escrever e utilizava uma espécie de taquigrafia pessoal que lhe permitia anotar os pedidos.
-Muito bem, senhora Fraser. Algo mais?
-Não -decidi-. Isso é tudo.
-De acordo, senhoras -vacilou-. Virá ele por aqui antes de que os barris estejam preparados?
-Não, não tem tempo. Terá que preparar a carne e destilar o álcool. Tudo vai atraso por culpa do julgamento. -Olhei-o com uma sobrancelha arqueada-, por que me pergunta isso? Tem alguma mensagem para ele?
Sinclair inclinou a cabeça, pensativo.
-Bom, talvez não seja nada. Mas ouvi que há um desconhecido pelo distrito fazendo perguntas sobre o Jamie Fraser.
Com a extremidade do olho vi que Brianna se sobressaltava.
-Sabe o nome do forasteiro? -perguntou ansiosa-. Ou que aspecto tem?
Sinclair a olhou surpreso. Tinha as costas magra, mas seus braços eram fortes e as mãos tão grandes que podiam ter pertencido a um homem muito mais corpulento que ele.
-Não posso falar de sua aparência -disse com amabilidade, mas por seu olhar me deu vontade de golpeá-lo-. Disse que seu nome era Hodgepile.
Brianna perdeu a expressão de esperança.
-Não acredito que seja Roger -disse-me em voz baixa.
-Eu tampouco acredito -pinjente-. Não tem motivos para usar um nome falso.
Voltei-me para o Sinclair.
-Não terá ouvido algo sobre um homem chamado Wakefield, não? Roger Wakefíeld.
Sinclair sacudiu a cabeça com determinação.
-Não, senhora. Ele já me falou disso. Se Wakefield aparece terá que mandá-lo imediatamente para a Colina. Inteirarão-se em seguida.
Brianna suspirou e se tragou a desilusão- Estávamos em meados de outubro e, embora não falava disso, sua ansiedade aumentava dia a dia.
-... sobre o uísque -dizia Sinclair, e voltei minha atenção para ele.
-O uísque? Hodgepile perguntava sobre o Jamie e o uísque?
Sinclair assentiu.
-No Cross Creek, é obvio, ninguém lhe disse nada. Mas quem me contou isso me disse que parecia um soldado.
-Mas não ia vestido como um soldado, não?
-Não; além disso, dizia que comercializava com peles, mas por sua forma de caminhar parecia que levasse o mosquete. Isso é o que disse Geordie McClintock.
-Poderia ser um dos homens do Murchison. O direi ao Jamie, muito obrigado.
Saímos enquanto Brianna me perguntava que problemas nos traria esse Hodgepile. E não importa quão virulento fora o ódio do Murchison, ou o bons o que fossem seus espiões, não imaginava que seus superiores lhe foram permitir mandar uma expedição armada pelas montanhas para terminar com uma destilaria ilegal de tão pouca importância.
Lizzie e Ian nos esperavam fora recolhendo os pequenos troncos que Sinclair não utilizava.
-Pode carregar os barris com o Ian, querida? -perguntei a Brianna-. Quero examinar ao Lizzie à luz do sol.
Brianna assentiu distraída e foi ajudar ao Ian a tirar meia dúzia de barris pequenos e a carregá-los no carro. Eram pequenos mas pesados.
-Vêem aqui, querida, me deixe te olhar os olhos.
Obediente, Lizzie abriu bem os olhos e me permitiu examiná-la.
Continuava muito magra mas a melhoria era notável.
-Sente-se bem? -perguntei.
Sorriu com acanhamento e assentiu. Era a primeira vez que saía da cabana desde que chegasse com o Ian três semanas atrás. Já não tinha ataques de febre, e confiava em que melhorasse seu fígado.
-Senhora Fraser? -disse.
Sobressaltei-me para ouvi-la falar. Era tão tímida que não nos falava diretamente, a não ser através da Brianna.
-Sim, querida?
-Eu... eu não pude evitar ouvir o que disse o tonelero: que o senhor Fraser lhe pediu que lhe avisasse se esse homem aparecia. E me perguntava...
-Sim?
-Acredita que poderá perguntar por meu pai?
E se ruborizou ainda mais.
-Ai, Lizzie! Sinto muito. -Brianna se aproximou e abraçou a sua pequena criada-. Esqueci-o. Espera um minuto e o direi ao senhor Sinclair.
-Seu pai? -perguntei-- O que lhe passou, perdeu-o?
A moça assentiu apertando os lábios.
-foi; quão único sei, é que veio às colônias do Sul.
Bom, pensei, isso não serviria de muito, mas não se perdia nada por perguntar ao Sinclair. As notícias nos periódicos eram escassas no Sul. Era mais singelo que corressem de boca em boca, em botequins e negócios, ou através de criados e escravos nas plantações.
O pensar em periódicos me fez recordar. Sete anos parecia bastante tempo. Além disso, Brianna tinha razão; sim a casa devia queimar-se em 21 de janeiro nós podíamos evitar estar aí.
Brianna retornou com o rosto ruborizado e subiu ao carro tomando as rédeas enquanto nos esperava com gesto impaciente.
Ian, ao notar o rubor, franziu o sobrecenho e lançou um olhar à loja do tonelero.
-O que passou, prima? Há-te dito algo inconveniente?
Flexionou as mãos, quase tão largas como as do Sinclair.
-Não -disse brevemente-. Nenhuma palavra. Estamos preparados para partir?
Ian levantou o Lizzie e a colocou no carro, logo me deu a mão e me ajudou a subir no assento dianteiro junto à Brianna. Tinha-lhe ensinado a conduzir o carro com as mulas e se mostrava orgulhoso de sua prima. Logo se sentou junto ao Lizzie e partimos. Podia ouvir as histórias que lhe contava à moça e as risitas dela como resposta. Ao ser o menor de sua própria família, Ian estava encantado com o Lizzie, a que tratava como a uma irmã pequena. Olhei de esguelha a Brianna.
-O que é o que fez? -perguntei.
-Nada. Interrompi-o.
E se ruborizou de novo.
-Que diabos estava fazendo?
-Desenhos em um pedaço de madeira. De mulheres nuas.
Ri-me, porque me fazia graça e me impressionava.
-Bom, já não tem esposa e não acredito que consiga outra. Nas colônias há poucas mulheres. Suponho que não lhe pode culpar.
Senti uma inesperada simpatia pelo Sinclair. Sua esposa tinha morrido depois do Culloden e eu sabia o que era sentir-se sozinho.
Brianna se sentiu melhor e começou a assobiar brandamente algo dos Beatles. Uma idéia flutuava em minha mente; se Roger não aparecia, não a deixariam sozinha durante muito tempo; nem aqui e agora nem quando retornasse ao futuro. Mas isso era ridículo, Roger ia vir. E se não...
Sabia que se brigaram, mas Brianna não me tinha explicado o motivo. teria se zangado tanto como para voltar sem ela?
Essa possibilidade também lhe devia ter ocorrido a Brianna. Já não falava tanto do Roger, mas via a ansiedade em seu olhar cada vez que Clarence anunciava um visitante e a decepção ao descobrir que eram colonos do Jamie ou amigos índios do Ian.
-Vamos! -gritou Brianna e o carro avançou mais ligeiro pelo estreito atalho que nos levava até casa.
-É muito distinto do destilado no Leoch -disse Jamie-. Mas... é uma espécie de uísque.
em que pese a sua aparente humildade, Brianna se dava conta de que estava orgulhoso de sua primitiva destilaria- Estava a uns três quilômetros da cabana; situada, explicava-lhe, perto da casa do Fergus, assim Marsali podia aproximar-se várias vezes ao dia para controlar as operações. Em troca desse serviço, Fergus e ela tinham mais quantidade de uísque que os outros granjeiros, os quais proporcionavam a cevada e ajudavam na distribuição do licor.
-Não, querido, não deve te comer essa coisa tão suja –disse Marsali com firmeza.
Agarrou a seu filho da boneca e lhe abriu os dedos para que soltasse o inseto que o menino pensava meter-se na boca.
Marsali atirou a barata ao chão.
Germaine, um menino gordinho e estóico, não chorou pela perda.
-Não lhe teria feito mal -disse Ian, divertido-. Eu as comi com os índios. Embora sejam melhores as lagostas, sobre tudo as defumadas.
Marsali e Brianna sopraram pelo asco e Ian riu com ânimo zombador.
-Disse-te que não! -Marsali sujeitou ao menino--. Quer que ponha a defumar?
Jamie se aproximou secando-a cara com um lenço.
-vamos acabar de uma vez -disse-. Estou morto de fome.
Ian e ele levaram a plataforma umas bolsas de cevada fresca.
-Quanto tempo demora?
Brianna observou com atenção como Marsali removia o grão fermentado.
-Bom, isso depende um pouco do tempo. -Marsali olhou ao céu com ar de perita-. Assim como está de claro, diria que... Germaine!
Só se viam os pés do menino, o resto tinha desaparecido baixo um tronco.
-Já vou eu para buscá-lo.
Brianna avançou rapidamente e levantou o menino. Germaine deixou escapar um grito de protesto e começou a lhe dar patadas.
-Né!
Brianna o deixou no estou acostumado a esfregando-a perna e Marsali deixou escapar um som de exasperação.
-O que agarraste agora?
Gennaine tinha aprendido de sua experiência anterior e se tragou sua última aquisição. Imediatamente ficou arroxeado e começou a tossir.
Com um grito de alarme Marsali caiu de joelhos e tratou de abrir a boca do menino. Germaine se sacudia com os olhos exagerados.
Brianna agarrou ao pequeno do braço, apoiou-o de costas contra ela e com as duas mãos lhe apertou o estômago. Germaine deixou escapar um gemido e algo pequeno e redondo saiu de sua boca.
-Está bem? -perguntou ansioso Jamie, olhando ao menino que agora chorava em braços de sua mãe. Logo olhou agradado a Brianna-. foste muito rápida, moça, bom trabalho.
-Obrigado. Me alegro de que desse resultado.
Brianna sentiu que tremia. Segundos. Tudo tinha durado uns segundos. Da vida à morte e de novo volta à vida em um instante. Jamie lhe oprimiu o braço e se sentiu um pouco melhor.
-O melhor será que leve a menino a casa —disse ao Marsali-. Lhe dê a comida e coloca-o à cama. Já terminaremos nós.
Marsali assentiu sonriendo a Brianna. Também ela estava comovida.
-Muito obrigado, boa irmã.
Brianna sentiu um surpreendente prazer ante aquele título.
-Me alegro de que esteja bem.
E lhe sorriu.
-Esteve muito bem, prima. -Ian, depois de terminado o trabalho, tinha saltado da plataforma para felicitá-la-. De quem aprendeu a fazer isso?
-De minha mãe.
Ian assentiu impressionado. Jamie se inclinou procurando no chão.
-O que se tinha tragado o menino?
-Isto. -Brianna descobriu o objeto médio escondido entre as folhas e o levantou. Parece um botão.
-me deixe ver.
Jamie estendeu a mão e lhe entregou o botão.
-Você não perdeste um botão, não, Ian? -perguntou com rosto carrancudo.
Ian olhou por cima do ombro do Jamie e sacudiu a cabeça.
-Talvez Fergus? -sugeriu.
-Possivelmente, mas não acredito. Nosso Fergus é muito presumido para usar algo assim. Todos os botões de seu casaco são feitos de corno gentil. -Sorriu a Brianna e torceu a cabeça para o atalho-. Vamos, perguntaremos aos Lindsey caminho a casa. Quer terminar de uma vez, Ian?
Kenny Lindsay não estava em casa.
-Duncan Innes veio a buscá-lo faz menos de uma hora -disse a senhora Lindsey-, Estou segura de que irão a sua casa. Querem entrar, MAC Dubh? Você e sua filha podem tomar algo.
-Ah, não, muito obrigado. MIM esposa deve ter o almoço preparado. Mas talvez me possa dizer se este botão é do casaco do Kenny.
depois de observar o botão sacudiu a cabeça.
-Não. Os que leva os fez ele com osso de cervo -declarou com orgulho. Logo olhou especulativamente a Brianna-. Agora está conosco um irmão do Kenny que tem bons terrenos perto do Cross Creek, vinte acres de tabaco. Irá à reunião no Mount Helicón. Talvez lhes possam conhecer ali.
Jamie sacudiu a cabeça sonriendo ante o intento. Havia poucas mulheres na colônia e, embora Jamie havia dito que sua filha estava comprometida, isto não bastava para deter os intentos das casamenteiras.
-Temo-me que este ano, não. Talvez o próximo; por agora não posso me afastar.
despediram-se amavelmente e seguiram caminho de casa deixando o sol a suas costas.
-Crie que o botão é importante? -perguntou Brianna com curiosidade.
-Não sei. Pode não ser nada, mas também pode significar algo. Sua mãe me contou o que lhe disse Ronnie Sinclair sobre aquele homem que perguntava pelo uísque.
-Hodgepile?
Brianna riu ante o nome e Jamie lhe devolveu o sorriso, mas logo ficou sério outra vez.
-Sim. Se o botão pertencer a alguém do lugar não há problema já que todos conhecem a destilaria. Mas se for de um desconhecido... -Olhou-a e se encolheu de ombros-. Não é tão fácil passar inadvertido por aqui, salvo que queria esconder-se. Um homem que se aproximasse com motivos inocentes se deteria ante uma casa para pedir comida e bebida, e eu me inteiraria em seguida. Tampouco pode ser de um índio, eles não usam estas coisas.
Quando chegaram, Claire estava no jardim; sua magra figura se recortava contra o sol e seus cabelos formavam uma grande auréola de cachos dourados.
Os dois ficaram em silêncio, observando-a.
-Papai estava acostumado a dizer que se mamãe nos deixava, seria por que se teria ido procurar um lugar para viver sozinha com todas seu novelo -disse Brianna, pensando em voz alta.
-Ah. -A voz do Jamie era tranqüila.
«Mas não está sozinha depois de tudo», pensou Brianna.
Kenny Lindsey tomou um sorvo de uísque, fechou os olhos e moveu a língua como um provador profissional.
-Mierda -disse com voz rouca-. Esfola as tripas!
Jamie sorriu ante o completo e serve outro pouco para o Duncan.
-Sim, é melhor que o último -disse-. Não te arranca a língua.
Lindsey se secou a boca com a mão e assentiu.
-Bom, encontrará um bom lar. Woolam quer um barril.
-Puseram-lhes de acordo no preço?
Lindsey assentiu outra vez.
-Um barril para cada uma das casas da Colina, dois para o Fergus -calculou Jamie-. Talvez dois mais para o Nacognaweto, a gente guardado para envelhecê-lo..., sim, podemos apartar uma dúzia para a reunião, Duncan.
A chegada do Duncan tinha sido oportuna. Jamie as tinha arrumado durante o primeiro ano para trocar o uísque por ferramentas, roupa e outras coisas que necessitava com urgência, com os moravos de Salem; mas não havia dúvida de que os ricos escoceses das pIantaciones de Cape Fear seriam um melhor mercado.
Nós não podíamos fazer a viagem até o Mount Helicón, mas Duncan podia levar o uísque e vendê-lo... já estava fazendo listas em minha cabeça. Todos levavam coisas para vender na reunião: lã, tecidos, ferramentas, mantimentos, animais... Eu necessitava com urgência uma pequena panela de cobre, musselina Y...
-Criem que devem lhe dar álcool aos índios?
A pergunta da Brianna me arrancou de meus sonhos ambiciosos.
-por que não? -perguntou Lindsey com certa desaprovação-. depois de tudo, não o damos, moça. Eles o pagam e o pagam bem.
Brianna me olhou procurando apoio e logo ao Jamie.
-Mas os índios não... ouvi que não lhes sinta bem o álcool.
Os três homens a olharam sem compreender.
-Quero dizer que se embebedam com facilidade.
Lindsey a observou.
-O que quer dizer, moça? -perguntou mais ou menos amavelmente.
-O que quero dizer é que me parece mal fazer beber a gente que uma vez começa não pode deixar de fazê-lo.
Olhou-me e sacudi 1a cabeça.
-O alcoolismo não é uma enfermidade ainda. É só uma falta de caráter -pinjente.
-Direi-te uma coisa -disse Jamie-. Vi muitos bêbados em minha vida, mas nunca vi que nenhuma garrafa saísse da mesa para meter-se na boca de ninguém.
Todos grunhiram a modo de aprovação e se serve outra ronda para trocar de tema.
-Hodgepile? Não, não o conheço, embora acredite que ouvi o nome. -Duncan apurou o resto de sua bebida e deixou a jarra-. Querem que pergunte na reunião?
Jamie assentiu. Lizzie estava lhe dando voltas ao guisado para a comida, mas era muito tímida para falar ante tantos homens- Brianna não tinha essas inibições.
-Eu também tenho algo que te pedir, Innes. -Olhou-o aos olhos-. Poderia perguntar por um homem chamado Roger Wakefield?
-Bom, claro. Farei-o. -Duncan ficou nervoso ante a proximidade da Brianna e se bebeu o uísque do Kenny-, Há algo mais que possa fazer?
-Se -pinjente, colocando outra jarra para o Lindsey-. Enquanto pergunta pelo Hodgepile e o jovem do Bri, também poderia perguntar por um homem chamado Joseph Wemyss.
Pude ver como Lizzie suspirava aliviada.
Duncan assentiu, recuperando a compostura quando Brianna se foi à despensa a procurar manteiga. Kenny Lindsey a olhou interessado.
-Bri? Assim chama a sua filha? –perguntou.
-Fui-dije-. Porquê?
Um sorriso apareceu na cara do homem. Logo olhou ao Jamie, tossiu e enterrou a cara na jarra.
-É uma palavra escocesa, Sassenach -disse Jamie, com um amplo sorriso-. Uma bree é uma grande comoção.
Ouctubre de 1769
As vibrações do impacto atravessaram seus braços. Seguindo um ritmo fruto da larga prática, Jamie liberou a tocha, balançou-a para trás e a deixou cair de novo. Apoiou o pé no lenho e golpeou outra vez cravando o afiado metal a um par de centímetros de seus dedos.
Podia haver dito ao Ian que cortasse a lenha e ir ele a procurar a farinha ao pequeno moinho dos Woolam; mas o moço se merecia a visita às três jovens solteiras que trabalhavam com seu pai no moinho. Era uma família de quaisquer e embora as moças se vestiam com cores escuras como os pardais, seus rostos eram vivazes e inteligentes, mimavam ao Ian e lhe ofereciam cerveja e partes de bolo.
Era melhor que passasse o tempo com aquelas jovens virtuosas que com índias de expressão atrevida.
O tronco já estava quase talhado; outro golpe e dois lenhos mais estariam preparados para o fogo. A verdade era que gostava de cortar lenha. Era um dia caloroso de finais de outubro e a camisa lhe pendurava dos ombros. secou-se a cara com a manga e examinou a mancha úmida.
Se seguia molhando-a, Brianna insistiria em lavá-la embora ele protestasse. Enrugaria o nariz e lhe diria «Uf!», para demonstrar seu asco.
Sua mãe tinha morrido fazia muito tempo, quando ele era um menino, mas recordava esse gesto quando aparecia tudo sujo.
Que mistério o do sangue. Como um pequeno gesto ou um tom de voz podia transmitir-se através de gerações?
encolheu-se de ombros, e se tirou a camisa. depois de tudo, aquela era sua terra e ninguém veria as marcas de suas costas.
Amava profundamente aos filhos do Jenny, em especial ao Ian; depois de tudo eram de seu sangue. Mas Brianna... Brianna era algo mais, provinha de sua mesma carne. Uma promessa não falada para seus próprios pais, seu presente para o Claire e dela para ele.
Não pela primeira vez se encontrou pensando no Frank Randall. O que teria pensado ao ter uma criatura de outro homem ao que não tinha nenhum motivo para apreciar?
Sua mente se concentrava mais em seus pensamentos que em suas ações. Mas, enquanto isso, a tocha formava parte de seu próprio corpo, passava a ser um apêndice dos braços que a balançavam. Olhou para o jardim do Claire, ao lado da casa, onde estava o poço que ainda não tinha tido tempo de terminar. encolheu-se de ombros com irritação ao ver que a cabeça da tocha se separava da manga.
Então se abriu a porta e saiu Claire com uma cesta na mão seguida da Brianna e toda sua irritação desapareceu.
-O que passou? -perguntou Claire imediatamente.
Ao vê-lo com a folha da tocha na mão pensou que se feito mal.
-Nada, estou bem -assegurou-. Tenho que arrumar a manga. vais procurar forragem?
-Acredito que irei pelo arroio.
-Não vá muito longe, né? Há índios caçando na montanha. Cheirei-os esta manhã na colina.
-Cheirou-os? -perguntou Brianna.
-É outono e estão secando a carne de veado –explicou Claire-. Se o vento soprar na direção correta se pode cheirar a fumaça a grande distancia. Não vamos longe -acrescentou-. Só até o lago das trutas.
-Bom, suponho que é um lugar seguro.
Sentia certo desgosto ao deixar que partissem sozinhas, mas não podia as obrigar a ficar em casa só porque havia índios perto. Se soubesse com segurança que eram da tribo do Nacognaweto não se preocuparia, mas podiam ser cherokee ou dessa pequena e estranha tribo que se chamavam a si mesmos os Cães. Não confiavam nos estrangeiros brancos e tinham boas razões para isso.
Os olhos da Brianna se posaram por um momento sobre seu peito nu e as cicatrizes, mas não manifestou desgosto nem curiosidade. Deu-lhe um beijo na bochecha como despedida.
Claire devia lhe haver contado, pensou Jamie, o que ocorreu com o Jack Randall nos dias antes do levantamento. Ou talvez não lhe contou tudo. Um leve estremecimento lhe percorreu as costas; deu um passo atrás e seguiu sonriendo.
-Há pão na despensa e um guisado na panela. Não lhes comam o pudim, que é para o jantar -disse Claire, lhe tirando umas ramitas do cabelo.
Jamie lhe agarrou a mão e beijou brandamente os nódulos. Olhou-o surpreso e um leve rubor iluminou sua pele. ficou nas pontas dos pés e lhe beijou na boca; logo se apressou a seguir a Brianna, que já estava no bordo do claro.
-Tomem cuidado! -gritou-lhes.
Saudaram-no com a mão e desapareceram no bosque lhe deixando seus suaves beijos na cara e um profundo agradecimento no coração.
Estava sentado com um punhado de pregos no chão e os colocava com cuidado de uma em uma na manga da tocha.
Tinha frio e ficou a camisa; também tinha fome mas esperaria aos jovens. Quem com segurança, pensou com cinismo, já deviam estar fartos de comer. Quase podia cheirar o aroma dos bolos do Sarah Woolam.
Os índios diziam que o inverno ia ser duro, não como o anterior. Como seria caçar com tanta neve? Em Escócia a capa de neve estava acostumada ser muito magra e os rastros do cervo vermelho se distinguiam facilmente nas ladeiras nuas.
perguntava-se o que lhe teria contado Claire a Brianna. Era estranha, embora agradável, a forma que tinham de comunicar-se; Brianna e ele se mostravam tímidos entre eles. As coisas mais pessoais as contavam ao Claire, confiando ambos em que ela as transmitiria, atuando como intérprete naquela nova e torpe linguagem do coração.
Embora estava agradecido pelo milagre de ter ali a sua filha desejava poder fazer o amor com sua esposa e em sua própria cama. Estava fartando-se de fazê-lo no abrigo de ervas ou no bosque, embora admitia que tinha certo encanto.
Deixou a tocha e foi até a casa para medir com seus passados as dimensões da nova habitação que pretendia construir até que tivessem lista a casa grande. Brianna era uma mulher e necessitava um lugar privado para ela e sua criada. E se isso lhe devolvia a intimidade com o Claire muito melhor.
Ouviu o ruído das folhas secas no pátio, mas não se deu a volta até que percebeu uma débil tosse.
-Lizzie? -preguntó,todavía, olhando ao chão-. Desfrutou de do passeio? Espero que tenham encontrado bem aos Woolam.
Onde estaria Ian com o carro?, perguntou-se. Não os tinha ouvido chegar.
A moça não respondeu, antes bem deixou escapar um ruído que lhe obrigou a voltar-se com surpresa.
-tivestes Um acidente? passou algo com o carro?
Sacudiu a cabeça sem poder falar.
-Ian está bem?
Não queria turvá-la mas começava a assustar-se. Algo tinha acontecido, disso estava seguro.
-Estou bem e os cavalos também.
Silencioso como os índios, Ian tinha aparecido por uma esquina da cabana e se aproximou do Lizzie para acalmá-la.
-O que acontece? -perguntou com um tom mais cortante do que desejava.
-É melhor que o diga -disse Ian-. Não temos muito tempo.
Tocou-lhe o ombro para lhe dar valor. Lizzie pareceu recuperar forças e se ergueu.
-Eu... estava- vi um homem. No moinho, senhor.
-Ela o conhecia, tio -disse Ian. Parecia turbado mas não de medo, a não ser excitado de uma forma especial- Viu-o antes... com a Brianna.
-Sim?
Tratou de lhe dar confiança, mas o pêlo da nuca lhe arrepiava.
-No Wilmington -prosseguiu Lizzie—. Seu nome era MacKenzie; ouvi um marinheiro que o chamava assim.
Jamie lançou um rápido olhar ao Ian, que assentiu.
-Não disse de onde era mas não conheço ninguém do Leoch como ele. Vi-o e o ouvi falar; talvez seja um highlander, mas seguro que estudou no sul; eu diria que é um homem educado.
-E esse senhor MacKenzie conhece minha filha? -perguntou.
Lizzie assentiu com o rosto carrancudo pela concentração.
-Sim, senhor! E ela também o conhece... tinha-lhe medo.
-Medo? por que?
Jamie falava com dureza, mas Lizzie já não podia deixar de falar.
-Não sei. Mas ficou pálida quando o viu e logo vermelha. Estava muito zangada, isso o podia ver qualquer!
-O que fez ele?
-Bom... nada. Lhe aproximou, agarrou-a dos braços e lhe disse que se tinha que ir com ele. Tudo no botequim os olhavam. Ela se soltou, branca como meu avental, mas me disse que tudo ia bem e que a esperasse que retornaria. Y... Y... foi com ele.
-E a deixou ir?
-Deveria ter ido com ela, sei! -gritou, com o rosto decomposto pela angústia- Mas tinha medo, que Deus me perdoe!
-Bom, está bem. -Jamie fez um esforço fardo acalmar-se-. E o que aconteceu então?
-Subi como ela me disse, deitei-me e me pus a rezar.
-Bom, estou seguro de que isso deve ter ajudado muito.
-Tio... -A voz do Ian era suave mas firme e seus olhos castanhos o olhavam sem vacilar-. Não é mais que uma menina, tio, fez-o o melhor que pôde.
-Sim -disse-. Sim, perdoa, não quis te falar assim. Mas que mais aconteceu
-Ela... ela não retornou até o amanhecer. Y... Y...
Ao Jamie ficava já muito pouca paciência e, sem dúvida, lhe notava no rosto.
-Pude sentir o aroma dele em seu corpo -sussurrou-. Seu... sêmen.
A onda de fúria o agarrou por surpresa.
-deitou-se com ela? Está segura?
A jovem só pôde assentir enquanto se retorcia as mãos e olhava ao chão.
-Não o vê? Está esperando um menino e tem que ser dele, era virgem quando se foi com ele. Veio a procurá-la e agora lhe tem medo.
de repente pôde vê-lo tudo e se estremeceu. O olhar da Brianna, seu comportamento: o mesmo estava animada que perdida em seus pensamentos, e estava claro que o brilho de sua cara não era só pelo sol. Conhecia bem a expressão das mulheres grávidas; se a tivesse conhecido antes teria notado a mudança, mas assim...
Claire. Claire sabia. O pensamento lhe chegou com fria segurança. Conhecia sua filha e era médica- Tinha que sabê-lo e não o tinha contado.
-Está segura disso?
A frieza acalmou sua fúria.
Lizzie assentiu e se ruborizou ainda mais, se é que isso era possível.
-Sou sua criada -sussurrou com a vista baixa.
-Quer dizer que Brianna não teve a regra em dois meses -informou Ian com praticamente. O menor de uma família com várias irmãs maiores não tinha a delicadeza do Lizzie-. Está segura.
-Eu... eu não ia dizer nada -continuou a moça-, mas quando vi o homem...
-Crie que virá a reclamá-la, tio? -interrompeu Ian-, Temos que detê-lo, não?
Agora era clara o olhar de fúria e excitação.
-Não sei -disse, surpreso pela calma de sua voz. Se esse tal MacKenzie o desejava, podia reclamar a Brianna como sua esposa por direito consuetudinário, com o filho por nascer como prova ante suas pretensões. Seus próprios pais se casaram assim. Um filho era um laço permanente entre um homem e uma mulher.
-Não virá detrás de vós? Os Woolam lhe devem ter indicado o caminho.
-Não -disse Ian, pensativo-.. Não acredito. Tiramo-lhe o cavalo, sabe?
Sorriu súbitamente ao Lizzie, quem lançou uma risita.
-Sim? E o que o deterá na hora de agarrar o carro ou uma das muías?
O sorriso se aumentou na cara do Ian.
-Deixei a Cilindro sobre o carro -disse-. Acredito que virá caminhando, tio Jamie.
Jamie se viu forçado a sorrir.
-Isso foi atuar rápido, Ian.
O moço se encolheu de ombros com modéstia.
-Bom, não queria que o bastardo nos pilhasse despreparados. E embora faça bastante que a prima Brianna não fala disso... Wakefield, não? -Fez uma pausa-. Não acredito que queira ver esse MacKenzie. Em especial se...
-Eu diria que o senhor Wakefield ficou atrás –disse Jamie- Em especial se...
Não era estranho que Brianna, uma vez que se deu conta, tivesse deixado de esperar a chegada do Wakefield. depois de tudo, como ia explicar o de sua barriga a um homem que a tinha deixado virgem?
Com lentidão afrouxou os punhos crispados. Agora tinha que ocupar-se de tudo.
-Procura suas pistolas -disse ao Ian-. E você, moça -tentou um sorriso-, fique aqui e espera a que voltem Claire e Brianna. lhe diga a minha esposa... que tive que ir ajudar ao Fergus com sua chaminé. E não lhes diga uma palavra disto ou usarei suas tripas como ligas.
Esta última ameaça foi sorte em brincadeira, mas a jovem ficou pálida como se fora certo.
Lizzie observou afastar-se ao Jamie, tão ameaçador como um grande lobo vermelho.
-Mãe querida -murmurou, obstinada a sua medalha-. Virgem bendita, o que tenho feito?
As folhas de carvalho estavam secas e rangiam ao as pisar; as dos castanhos caíam constantemente formando uma lenta chuva amarela sobre a terra seca.
-É certo que os índios podem mover-se pelo bosque sem fazer ruído, ou é algo que nos diziam quando fomos meninas exploradoras?
Brianna chutou as folhas e as fez voar. Vestidas com saias largas e anáguas, fazíamos tanto ruído como uma manada de elefantes.
-Bom, não podem fazê-lo quando o tempo é tão seco, salvo que saltem pelas árvores, como os chimpanzés. Mas na primavera, com a umidade, é diferente. Até eu posso caminhar sem fazer ruído; a terra é como uma esponja.
Ao chegar ao bordo de um pequeno arroio nos separamos. Brianna recolheria agriões enquanto que eu procuraria cogumelos entre as árvores.
Vigiava-a continuamente; tinha um olho sobre ela e outro no terreno. Algo não ia bem, notava-o desde fazia uns dias. Ao princípio pensei que era devido aos nervos causados pela nova situação em que se encontrava. Mas durante as últimas semanas Jamie e ela tinham iniciado uma relação que, embora ainda estava marcada pelo acanhamento de ambos, era cada dia mais cálida. Desfrutavam estando juntos e eu desfrutava vendo-os.
Entretanto algo a preocupava. Em parte tinha preparado esta expedição para ter a oportunidade de poder falar com ela a sós; com o Jamie, Ian e Lizzie em casa, e o constante tráfico de colonos e visitantes, era impossível uma conversação privada. E se o que suspeitava era certo esta ia ser uma conversação que não queria que ouvisse ninguém.
Quando minha cesta já estava quase cheia de grosas cogumelos alaranjadas, Brianna apareceu pelo arroio carregada de agriões.
-É do Roger? -disse-lhe, sem preâmbulos.
Olhou-me surpreendida e logo vi que a tensão de suas costas se relaxava.
-Pergunto-me como ainda pode fazer isso -disse.
-Fazer o que?
-Ler em minha mente. Em realidade, espero que possa.
Tratou de sorrir.
-Acredito que perdi um pouco de prática –disse-. Mas espera um tempo. -Arrumei-lhe o cabelo da cara-. Está tudo bem, neném -pinjente com calma- De quanto tempo está?
-Desde dois meses -disse, exalando um suspiro de alívio.
Olhamos aos olhos e a senti diferente; já a havia sentido assim desde sua chegada. Antes, seu alívio tivesse vindo provocado pelo medo, quando sabe que vão ajudar a. Mas agora era só o alívio de compartilhar um segredo insuportável, pois não esperava que eu arrumasse as coisas. O saber que eu não podia solucionar o problema não diminuía meu irracional sentimento de perda.
Apertou-me a mão como se queria me dar segurança, logo se sentou com as costas apoiada em um tronco e estirando as pernas disse:
-Sabia?
Sentei-me perto dela.
-Isso espero, mas não sabia que soubesse, se isto tiver sentido.
Ao olhá-la agora todo se fazia evidente: o tom de sua pele, as alterações em sua cor e aquela expressão ensimismada. Tudo adquiria uma nova dimensão.
-Roger! -Assentiu, pálida pela luz amarelada que se filtrava pelas folhas-. passaram quase dois meses. Teria que estar aqui... salvo que lhe tenha passado algo.
Minha mente estava ocupada calculando.
-Dois meses, estamos quase em novembro. -Meu coração deu um salto-. Bri, tem que retornar.
-O que? -Levantou a cabeça-. Retornar aonde?.
- Às pedras -pinjente agitando o ramo-. A Escócia e rápido!
Contemplou-me com as sobrancelhas arqueadas.
-Agora? Para que?
-Pode passar grávida. Sei porque eu o fiz. Mas não pode levar a um recém-nascido através de... de...; não pode. Você sabe o que é.
Tinham passado três anos e recordava a experiência com toda claridade.
Seus olhos se obscureceram e seu rosto ficou branco.
-Não pode levar a uma criatura -repeti. Tratava de me controlar e de pensar com lógica-. Seria como saltar às cataratas do Niágara com um menino nos braços. Tem que retornar antes de que nasça O...
Interrompi-me, para seguir com meus cálculos.
-Estamos quase em novembro. Os navios não navegam desde finais de novembro até março. E não pode esperar tanto, isso significaria fazer uma viagem de dois meses pelo Atlântico grávida de seis ou sete meses. Se não nascer no navio, o qual seria uma morte segura para ti, para o menino ou para os dois, ainda teria que cavalgar uns cinqüenta quilômetros até o círculo, conseguir passar e procurar ajuda ao outro lado... Brianna, não pode fazê-lo! Tem que ir agora, logo que possamos arrumá-lo.
-E se vou agora..., como vou estar segura de que chegarei à época correta?
Falava com calma, mas seus dedos se aferravam à saia.
-Você... eu acredito... bom, eu o fiz.
Meu pânico inicial começava a render-se ante um pensamento lógico.
-Você tinha a papai ao outro lado. -Olhou-me com acuidade-, Quisesse ou não retornar com ele, tinha um forte laço afetivo ali; te ia ajudar, ou melhor, nos ia ajudar. Mas já não está. -Seu rosto ficou tenso e logo se relaxou-. Roger sabia... sabe -corrigiu-se-. O caderno do Geillis Duncan diz que se podem usar pedras preciosas para viajar, que servem como amparo e para dirigir a viagem.
-Mas só lhes apóiam em hipóteses! –argumentei-. Quão mesmo essa maldita Geiilis Duncan! Pode ser que não se necessitem pedras preciosas nem nenhum outro acrescentado. Nos antigos contos de fadas, quando a gente se mete em uma colina encantada e logo retorna, e! período da viagem são sempre duzentos anos- Se essa for a medida habitual, então...
-Arriscaria-te a descobrir que pode que não seja assim?
Geiilis Duncan viajou mais de duzentos anos.
Me ocorreu, um pouco tarde, que minha filha já tinha pensado todo isso por si mesmo. Nada do que eu dizia a tinha surpreso.
-Há outra forma -pinjente, lutando para recuperar a calma-. Outra porta, quero dizer. Está no Haiti, agora a chamam A Espanhola. Na selva há umas pedras sobre uma colina. A greta, a porta para passar, está clandestinamente dentro de uma cova.
-Esteve ali? -inclinou-se para diante, interessada.
-Sim. É um lugar horrível. Mas as Antilhas estão muito mais perto que Escócia, e há navios entre o Charleston e Jamaica quase todo o ano. -Aspirei profundamente, me sentindo um pouco melhor-. Não é fácil atravessar a selva mas terá mais tempo, o suficiente para encontrar ao Roger.
“Se for possível encontrá-lo", pensei, mas não o disse. Esse temor em particular ficava para logo.
-Esse lugar funciona como o outro?
-Não sei como funciona! Mas sonha diferente; é um som de sino, em lugar do zumbido. Mas é um caminho, disso estou segura.
-Esteve ali -disse lentamente, me olhando com as sobrancelhas arqueadas-. por que? Queria retornar? depois de te haver encontrado com... ele?
Sua voz vacilava, ainda não podia referir-se ao Jaime como «meu pai».
-Não. Foi pelo Geiilis Duncan. Ela o encontrou.
Os olhos da Brianna se abriram pela surpresa.
-Ela está aqui?
-Não. Está morta.
Respirei profundamente. Às vezes pensava nela e quando estava sozinha no bosque me parecia ouvir sua voz.
-Bem morta -disse com firmeza e a seguir troquei de tema-. Como aconteceu?
-Você é médica. Quantas formas há?
Olhei-a com interesse.
-Alguma vez pensou em tomar alguma precaução?
Olhou-me zangada.
-Eu não planejava ter relações sexuais aqui!
-Você crie que a gente o planeja? Quantas vezes fui a seu colégio e lhes dava bate-papos sobre...?
-Todos os anos! Minha mãe, a enciclopédia sexual! Tem idéia de quão mortificante era para meu ter a minha própria mãe, frente a toda a classe, desenhando frangas?
Seu rosto avermelhou pela lembrança.
-Não o devi fazer bem -pinjente asperamente-, já que parece que não as reconhece quando as vê.
Olhou-me furiosa, mas se deu conta de que o havia dito em brincadeira, para relaxar a tensão.
-Bem –disse-. Mas parecem diferentes quando uma está em terceiro grau.
Agarrou-me por surpresa e ri. Depois de um momento, imitou-me.
-Você sabe o que quero dizer. Deixei-te as receitas antes de ir.
-Sim e nunca me senti tão atalho em minha vida! Pensava que ia sair correndo para me deitar com qualquer assim que fosse?
-Quer dizer que era meu presencia o que te detinha?
-Bom, não só isso -aceitou-. Mas você tinha algo que ver, você e papai. Eu não queria lhes desiludir.
Tremia-lhe a boca e a abrace com força.
-Não poderia, neném -murmurei, embalando-a-. Nunca nos decepcionou, nunca.
Por último, respirou profundamente e se separou de mim.
-Talvez a ti não, nem a papai. Mas o que passará...?
Moveu a cabeça por volta da agora invisível cabana.
-Ele não... -comecei e me detive.
A verdade era que não sabia o que faria Jamie. Era um homem de mundo, com uma boa educação, tolerante e compassivo, mas isso não queria dizer que compartilhasse e entendesse a sensibilidade moderna; sabia com segurança que não o fazia. E não podia pensar que sua atitude para o Roger seria tolerante.
-Bom –pinjente-. Não sentiria saudades que queria lhe dar um murro no nariz ao Roger. Mas não se preocupe -disse ao ver o alarme em seu olhar-. Ele te ama e não deixará de fazê-lo por isso.
Pu-me em pé.
-Temos um pouco de tempo, mas não terá que desperdiçá-lo. Jamie fará correr a voz sobre o Roger rio abaixo. Falando do Roger... -vacilei-. Suponho que não sabe nada, não?
Brianna suspirou profundamente e apertou os punhos.
-Bom, há um problema. -Olhou-me e outra vez foi minha pequena menina-. Não é do Roger.
-Como? -pinjente estupidamente.
-Não é do Roger, Não é filho do Roger.
Voltei-me a sentar. Súbitamente, a preocupação pelo Roger tomava uma nova dimensão.
-Quem?-pinjente-. Aqui ou lá?
«Não tinha planejado ter relações sexuais», havia-me dito. Não, é obvio que não. Não o havia dito ao Roger por medo de que a seguisse; ele era sua âncora, sua chave para o futuro- Mas neste caso...
-Aqui -disse, confirmando meus cálculos.
Procurou em seu bolso e tirou algo. Deu-me isso e estendi a mão de forma automática.
-Cristo bendito. -O anel de ouro brilhava ao sol e minha mão se fechou sobre ele-. Bonnet? Stephen Bonnet?
-Não lhe ia dizer isso, não podia depois de que Ian me explicasse o que tinha passado no rio. Ao princípio não sabia o que faria Jamie, tinha medo de que me culpasse. Mas quando o conheci um pouco melhor soube que trataria de encontrar ao Bonnet, isso é o que tivesse feito. Não podia deixar que o fizesse. Você conheceu esse homem e sabe como é.
-Sei.
Suas palavras ressonavam em meus ouvidos.
“Não planejava ter relações sexuais. Não podia dizê-lo... Tinha medo de que me culpasse..."
-O que te fez? -perguntei, surpreendida de que minha voz soasse tranqüila-. Fez-te mal, neném?
-Não me chame assim, quer? Agora não.
-me quer contar isso
Não queria sabê-lo, preferia fingir que não tinha acontecido nada.
Levantou a vista e me olhou com os lábios rígidos formando uma linha branca.
-Não -respondeu-. Não, não quero. Mas acredito que é melhor que o faça.
Tinha subido a bordo do Gloriana a plena luz do dia, com cautela mas sentindo-se segura por causa de toda a gente que havia ali.
Bonnet estava recém barbeado, com os olhos verdes aleña.
Examinou-a com interesse.
-Pensava que viria ontem à noite -disse, beijando sua mão-. É muito estranho encontrar uma mulher que seja mais bonita à luz do sol que a da lua.
Brianna tratou de liberar sua mão com um sorriso amável.
-Muito obrigado. Ainda tem o anel?
Pulsava-lhe o coração. Embora o tivesse perdido no jogo ainda podia lhe falar sobre ele e sobre sua mãe, mas desejava o ter entre suas mãos. Tratou de esquecer o temor que a tinha açoitado durante toda a noite: que o anel fora tudo o que ficava de sua mãe. Não podia ser sim a nota do periódico era certa, mas...
-Claro, claro. A sorte do Danu esteve comigo e pelo que vejo segue me acompanhando.
Sorriu sem lhe soltar a mão.
-Perguntava-me... se me venderia isso.
-por que?
Pergunta-a direta a desconcertou.
-parece-se com um que tinha minha mãe -respondeu, incapaz de inventar algo melhor que a verdade-. Onde o conseguiu?
Embora seguia sonriendo, algo trocou em sua expressão.
-Assim quer o anel? Vêem meu camarote, querida, e veremos se chegarmos a um acordo.
Uma vez abaixo lhe serve brandy. Ela apenas o provou mas Bonnet se tomou uma taça e se serve outra.
-Onde? -disse em resposta a sua pergunta-. Ah, bom, um cavalheiro não deve contar histórias sobre suas damas, não?-Lhe piscou os olhos o olho-. Uma amostra de amor -sussurrou.
-A dama que lhe deu está isso bem de saúde?
Olhou-a surpreso, com a boca aberta.
-Digo-o pela sorte -continuou Brianna apressadamente. Traz má sorte usar jóias que tenham pertencido a alguém que... que esteja morto.
-Sim? -Voltou a sorrir-. Não posso dizer que tenha notado esse efeito sobre mim. -Deixou a taça e arrotou-. De todos os modos, posso te assegurar que a dama da que obtive o anel estava sã e salva quando a deixei.
-Me alegro de ouvi-lo. Venderá-me isso então?
-Vendê-lo? E o que me oferece em troca?
-Quinze libras esterlinas.
Seu coração começou a pulsar mais ligeiro. Aceitaria? Onde o teria guardado?
-Eu já tenho suficiente dinheiro, coração -disse-, De que cor é o pêlo de entre suas pernas?
soltou-se a mão de um puxão e retrocedeu até a parede da cabine.
-Está-te equivocando. Eu não queria...
-Talvez não -disse com um sorriso-. Mas eu sim. E acredito que talvez foi você a que me confundiu, carinho.
Deu um passo para ela. Brianna agarrou a garrafa e a agitou para lhe pegar na cabeça, mas ele a tirou e lhe deu um forte golpe.
A jovem se cambaleou cegada pela súbita dor. Agarrou-a dos ombros e a obrigou a ajoelhar-se. Logo a agarrou por cabelo lhe colocando a cabeça entre suas pernas enquanto com a outra mão se abria o calção.
-Saúda o Leroi -disse.
Leroi não estava circuncidado nem lavado e tinha um forte aroma de urina. Brianna sentiu que ia vomitar e tratou de apartar a cabeça. A resposta foi um puxão de cabelo que a fez gritar.
-Saca essa língua rosadita e nos dê um beijo. -Bonnet parecia alegre e despreocupado, mas seguia sujeitando-a com força-. Não está mau, não está mau. Muito bem, agora abre sua boca.
antes de que pudesse moverlhe deu um forte puxão em uma orelha.
Se vomitava se afogaria, e sem dúvida a deixaria morrer. Assim que se dedicou a sua tarefa, até que Leroi desapareceu. Soltou-a dando um passo atrás. A jovem começou a tossir apoiada sobre as mãos; então a levantou e a beijou.
-Mmm -disse com prazer-. Hora de ir à cama, né?.
Brianna levantou a cabeça e lhe golpeou com a frente. O homem deixou escapar um grito de surpresa e a soltou. Brianna correu, mas se encontrou com o resto da tripulação que não a deixava passar.
-Você gosta dos jogos, preciosa? -Era a voz do Bonnet em seu ouvido. Um par de mãos a levantaram com facilidade-. Está bem, querida. Ao Leroi também gosta dos jogos. Verdade, Leroi? -Olhou para baixo e ela seguiu seu olhar.
Estava médio nu e Leroi se agitava nervoso contra ela.
Agarrou-a de um cotovelo e a fez entrar no camarote. Deu um passo cambaleante até que ele ficou detrás, ensinando as brancas nádegas à tripulação.
-depois disso... não foi tão mau. Eu... já não resisti mais.
Não se incomodou em despi-la, só lhe tirou o lenço e lhe deixou os seios ao descoberto.
Dois minutos, talvez três. Logo tudo terminou e Bonnet se derrubou sobre ela, respirando pesadamente. Permaneceu imóvel durante intermináveis minutos, contemplando o teto. Finalmente, o homem suspirou e se moveu.
-Não esteve mau, querida, embora haja tido melhores montadas. A próxima vez move mais seu traseiro, né?
incorporou-se, bocejou e começou a vestir-se.
Brianna se assegurou de que não ia reter a e se dirigiu à porta. Enquanto lutava por lhe abri-la pareceu que lhe dizia algo e se deu a volta surpreendida.
-O que?
-Pinjente que o anel está no escritório. Também há dinheiro. Agarra o que queira.
A parte superior do escritório estava coberta de tinteiros, jóias, moedas de prata, ouro, cobre e bronze, papéis e botões de prata.
-Está-me oferecendo dinheiro?
Observava-a com gesto zombador.
-Eu pago por meus prazeres -disse-. Pensava que não o ia fazer?
-Não quero pensar nada -respondeu com voz clara mas distante, como se falasse de longe.
Recolheu seu lenço tratando de não pensar na umidade pegajosa que lhe corria pelas coxas.
-Sou um homem honrado... para ser pirata -disse renda-se.
aproximou-se da porta e a abriu com facilidade.
-te sirva, carinho -disse assinalando o escritório-. Ganhaste-lhe isso.
Ouviu seus passos entre as risadas da tripulação. Tremiam-lhe as mãos quando tratava de agarrar o anel; então agarrou o recipiente onde estava guardado, esvaziou-o em seu bolso e saiu sujeitando-lhe como se levasse um talismã. Encontrou seus sapatos sobre uma mesa e os pôs. Passou entre os marinheiros, muito ocupados para lhe emprestar atenção, subiu pela escada e saiu ao mole.
—Ao princípio, pensei que podia fazer como se não tivesse acontecido. -Respirou profundamente e me olhou. Tinha as mãos cruzadas sobre o estômago, como escondendo-o-. Mas suponho que isso não é possível, não?
Fiquei em silêncio, pensando. Não era momento para delicadezas.
—Quanto? Quanto tempo depois de... do Roger?
—Dois dias.
Arqueei as sobrancelhas.
—por que está tão segura de que não é do Roger? É óbvio que não tomou pastilhas e arrumado minha vida a que Roger não usava o que aqui consideram que são camisinhas.
Sorriu e se ruborizou.
-Não. ELE. mm... ele... ah...
-Coitus interruptus?
Assentiu.
Aspirei ar e o exalei com ruído.
-Há uma palavra -pinjente- para a gente que utiliza esse método de controle da natalidade.
-E qual é? -perguntou circunspeta.
-Pais -respondi.
Roger inclinou a cabeça para beber fazendo uma terrina com as mãos. Foi uma sorte que um raio de sol que passou entre as árvores lhe indicasse aquele arroio um pouco afastado do caminho pelo que ia.
O saber que logo veria a Brianna, possivelmente em menos de uma hora, acalmava seu chateio de forma tão efetiva como a água refrescava sua garganta seca. Tinham-lhe roubado o cavalo e seu único consolo era que já faltava pouco e podia chegar a pé. Além disso, tinha perdido uma pistola quase tão velha como o cavalo e muito menos confiável, um pouco de comida e um cantil com água. A perda do cantil lhe tinha preocupado no último lance do caminho, cheio de pó e com o calor apertando. Mas isso já se solucionou.
Tinha o aspecto de um malfeitor, pensou com pesadumbre. Não era muito apropriado para apresentar-se ante seus sogros. Embora a verdade era que não estava muito preocupado pelo que pudessem pensar Claire e Jamie Fraser. Todos seus pensamentos se centravam na Brianna.
Retornou ao caminho pensando que tinha sido um estúpido ao subestimar a teima da Brianna, um estúpido ao não ter sido sincero com ela. E um estúpido por havê-la obrigado a atuar em segredo. Tinha tratado de mantê-la segura no futuro, e isso não tinha sido uma estupidez, pensou com uma careta ao pensar em tudo o que tinha visto e ouvido durante aqueles meses.
Mas apesar do perigoso, sujo e incômodo que era tudo, tinha que admitir que lhe fascinava estar ali, poder experimentar coisas sobre as que tinha lido e ver objetos de museu que se utilizavam na vida diária. Se não fora pela Brianna não lamentaria a aventura, em que pese ao Stephen Bonnet e as coisas que aconteceram a bordo do Gloriana.
Uma vez mais, sua mão se tocou o bolso. Tinha tido mais sorte da que esperava. Bonnet tinha duas pedras preciosas. Serviriam? Caminhou agachado entre os ramos das árvores até que se limpou o atalho. Era difícil pensar que alguém vivia ali, mas a jovem do moinho lhe tinha assegurado que não podia perder-se, e agora sabia por que: não havia outro lugar ao que dirigir-se.
Enquanto caminhava, seus pensamentos seguiam seu curso, tirando rápidas conclusões.
Como teria sido o encontro entre a Brianna e seus pais? O que lhe teria parecido Jamie Fraser? Seria o homem que tinha imaginado durante o último ano, ou só um pálido reflexo da imagem construída através das histórias de sua mãe?
Pelo menos tinha um pai a quem conhecer, pensou com uma estranha pontada ante a lembrança da véspera do solstício do verão e o estalo de luz do passo através das pedras.
Ali estava! Não se encontrou com a colina, como esperava, a não ser com um claro natural, bordeado de carvalhos e arces. Quando olhou procurando a continuação do atalho ouviu um relincho e descobriu a seu cavalo movendo a cabeça contra a árvore ao que estava pacote.
-Como diabos chegaste aqui? -perguntou assombrado.
-Da mesma forma que você -respondeu uma voz.
Um jovem alto surgiu do bosque ao lado do cavalo, lhe apontando com uma pistola que Roger reconheceu como própria. Depois de uma sensação de ultraje e de apreensão respirou profundamente e fez a um lado seus temores.
-Já tem meu cavalo e minha pistola -disse Roger com frieza-. Que mais quer? Meu chapéu?
tirou-se o maltratado tricornio a modo de convite. O ladrão não podia saber o que outras coisas levava; não lhe tinha ensinado as pedras preciosas a ninguém.
O jovem, em que pese a seu tamanho, não era mais que um adolescente, pensou Roger.
-Algo mais que isso, espero.
Pela primeira vez, o jovem apartou a vista do Roger para olhar a um lado. Ao seguir a direção de seu olhar, Roger sentiu como uma descarga elétrica.
Não tinha visto o homem que havia no bordo do claro, embora tinha que ter estado ali todo o tempo, imóvel. Mais que o inesperado de sua aparição foi seu aspecto o que deixou ao Roger mudo de assombro. Uma coisa era que lhe houvessem dito que Jamie Fraser se parecia com sua filha, e outra muito distinta era ver as facções da Brianna em alguém tão masculino e de aspecto tão feroz.
-Você deve ser MacKenzie -disse.
Não era uma pergunta. A voz era profunda e baixa.
-Sou-o -disse, dando um passo adiante-. E você deve ser... ah... Jamie Fraser?
Estendeu a mão, mas a deixou cair rapidamente. Dois pares de olhos o contemplavam com frieza.
-Esse sou eu -disse o homem ruivo-. Conhece-me?
O tom era evidentemente agressivo.
-Bom... parece-se um pouco a sua filha.
O jovem soltou uma gargalhada, mas Fraser não se alterou.
-E que assuntos tem com minha filha?
Fraser se moveu pela primeira vez, saindo da sombra das árvores. Não, Claire não tinha exagerado. Era imponente, media uns cinco centímetros mais que Roger. Roger sentiu confusão e alarme. Que diabos lhe teria contado Brianna? Não podia ter estado tão zangada como para... Bom, averiguaria-o quando a visse.
-vim para reclamar a minha mulher -disse com valentia.
Algo trocou na expressão do Fraser. Roger não soube que era mas lhe fez atirar o chapéu e levantar as mãos em um gesto reflito.
-Não, não o fará -disse o mais jovem com tom de satisfação.
Roger lhe olhou e sentiu alarme ao ver a forma em que empunhava a pistola.
-Tome cuidado! Não quererá que se dispare por acidente –disse.
O jovem soprou com desprezo.
-Se se disparar não será um acidente.
-Ian.
A voz do Fraser era tranqüila e o jovem baixou a arma a contra gosto. O homem corpulento deu outro passo adiante. Seus olhos, de um azul profundo e desconcertantemente iguais aos da Brianna, estavam fixos nos do Roger.
-vou perguntar te isto só uma vez e quero ouvir a verdade. Desvirginou a minha filha?
Roger sentiu que avermelhava. O que lhe teria contado Brianna a seu pai? E por que? Quão último esperava era encontrar um pai ofendido pela virtude de sua filha.
-É... bom... não é o que pensa -deixou escapar bruscamente-, Quero dizer... nós... isso... nós queríamos...
-Fez-o ou não?
O rosto do Fraser estava a uns trinta centímetros do dele, inexpressivo salvo pelo fogo que saía de seus olhos.
-Olhe... eu... maldição, sim! Ela queria...
Fraser o golpeou justo debaixo das costelas.
-Detenha-se -disse Roger, tratando de recuperar a respiração-. Detenha-se! Disse-lhe que eu...!
Fraser lhe golpeou na mandíbula. O golpe lhe doeu. Roger retrocedeu enquanto seu temor se convertia em fúria. Aquele maldito desgraçado queria lhe matar!
Deu um passo atrás tentando tirá-la casaca. Ante sua surpresa, Fraser não o seguiu, mas sim o esperou com os punhos em alto.
O sangue retumbava nos ouvidos de um Roger que não tinha olhos mais que para o Fraser. Aquele maldito queria brigar, pois teria briga e não voltaria a agarrá-lo por surpresa. Começaram a golpear-se. Um olho do Roger ficou fora de combate; embora ele também golpeava, Fraser não parecia notá-lo.
-Ela é.., minha -disse Roger entre dentes. Estava abraçado ao corpo do Fraser e lhe apertava pelas costelas. ia arrebentar a aquele bastardo como a uma noz-. Minha... Ouça-me?
Fraser lhe deu um golpe na nuca e lhe fez afrouxar a pressão do braço esquerdo. Roger o empurrou com o ombro, mas Fraser baixou a cabeça e arremeteu contra ele atirando-o de costas ao chão. Saía-lhe sangue do nariz e lhe corria pela boca e o queixo. Com uma sensação de, lonjura observou a mancha que se aumentava em sua camisa.
Rodou tratando de evitar a patada, mas não foi o bastante rápido. Enquanto girava desesperado para o outro lado lhe ocorreu, como se se tratasse de outra pessoa, que embora ele era quinze anos mais jovem que seu competidor. Jamie Fraser devia ter empregado todos aqueles anos em combates corpo a corpo.
Uma mão lhe atirou do cabelo e lhe torceu a cabeça. Viu o brilho dos olhos azuis e sentiu a respiração do homem em sua cara.
-Não é suficiente -disse Fraser e o golpeou na boca.
deu-se a volta e tratou de ficar em pé. Estava lutando por sua vida e o sábia. Fraser lhe agarrou os testículo e os retorceu com toda sua força. Roger se dobrou como se lhe tivessem partido o espinho dorsal. Durante um segundo, antes de que a dor lhe fizesse perder a consciência, teve um pensamento claro e frio como o gelo. Pensou: «vou morrer antes de ter nascido!».
Fazia momento que tinha escurecido quando Jamie retornou. Meus nervos estavam tensos pela espera; só podia imaginar como se sentia Brianna. Tínhamos jantado, melhor deveria dizer que tínhamos servido o jantar já que nenhuma tínhamos apetite nem vontades de conversar. Até a natural voracidade do Lizzie se aplacou.
Já fazia uma hora que estavam acesas as velas quando ouvi que as cabras baliam. Brianna levantou a vista com o rosto pálido pela luz amarela das velas.
-Tudo vai bem –pinjente.
A confiança de minha voz a tranqüilizou e assentiu. Embora acreditava que tudo sairia bem. Deus sabia que não ia ser uma agradável velada familiar.
Nas horas transcorridas desde que Brianna esclarecesse minhas suspeitas, tinha considerado todas as reações possíveis do Jamie, várias acompanhadas de golpes de punho sobre objetos sólidos, uma conduta que sempre considerei molesta. O mesmo ocorria com o Bri e eu sabia, quase melhor que ela, o que podia chegar a fazer quando estava molesta.
Tão pouco acostumados a estar juntos e tão ansiosos de sentir prazer o um ao outro, comportaram-se com delicadeza até então, mas não havia forma de levar aquilo com delicadeza. Não estava segura de si meu papel ia ser de advogado ou de intérprete.
lavou-se no arroio e secagem com as abas da camisa.
-Chega muito tarde, não? -perguntei, me pondo nas pontas dos pés para lhe dar um beijo-. Onde está Ian?
-Fergus deveu pedir ajuda com as pedras da chaminé. Ian ficou ajudando-o a terminar o trabalho.
Deu-me um beijo distraído na cabeça e me aplaudiu no traseiro.
-Marsali te deu de jantar?
Observei-o e notei algo diferente que não pude precisar o que era.
-Não. Me caiu uma pedra e talvez me rompeu de novo o dedo. Pensei que era melhor retornar a casa para que me curasse isso.
Isso era, pensei, tinha-me espalmado com a mão esquerda em lugar de com a direita.
-Vêem a luz e me deixe ver.
Fiz-o sentar em um dos bancos ao lado do fogo. Brianna se levantou e se aproximou para olhar.
-Suas pobres mãos, P! -disse ao ver os nódulos esfolados.
-Não é grande coisa -disse, lhe tirando importância-. Salvo pelo maldito dedo.
Apalpei-lhe o quarto dedo da mão direita, da base até a unha, sem me preocupar com seus grunhidos. Estava vermelho e inchado mas não parecia deslocado. Fechei os olhos para sentir melhor o que apalpava. Podia ver o osso em minha mente e o lugar da fratura.
-Aqui? -perguntei, abrindo os olhos.
Assentiu, me olhando com um ligeiro sorriso.
-Justo. Eu gosto de te olhar quando faz isto, Sassenach.
-E o que é o que te pareço? -pinjente, um pouco surpreendida.
-Não posso descrevê-lo exatamente -disse, torcendo a cabeça para me examinar-. É como...
-Madame Lazonga com sua bola de cristal -disse Brianna com tom divertido. Logo olhou ao Jamie e lhe explicou-: Uma adivinha que te diz o futuro.
Jamie riu.
-Sim, acredito que tem razão. Embora eu pensava em um sacerdote quando diz missa e, olhando o pão, vê o corpo de Cristo. Mas não é que queira comparar meu dedo com o corpo de Nosso Senhor -acrescentou com modéstia.
Brianna não e um sorriso curvou a boca do Jamie. Estava cansado, tinha tido um comprido dia, pensei.
-Parecem ridículos -pinjente e te toquei brandamente o dedo-. O osso está quebrado justo debaixo da articulação. Mas não é uma má fratura. Porei-te uma tabuleta no caso de.
fui procurar o que necessitava. Algo estranho acontecia essa noite, mas não podia descobrir o que era. Quando queria, Jaime sábia ocultar o que acontecia. Que diabos teria acontecido em casa do Fergus?
Brianna lhe disse algo em voz baixa e sem esperar resposta se aproximou de mim.
-Tem algum ungüento para suas mãos? –perguntou.
E logo disse em voz mais baixa-: O digo esta noite? Está cansado e ferido. Não é melhor deixá-lo descansar?
Olhei ao Jamie. Não estava depravado, parecia tenso e preocupado.
-Descansará melhor se não souber, mas você não -respondi, também em voz baixa-. Vê e diga-lhe Embora deixe que jante antes -acrescentei com praticamente.
Acreditava que era melhor receber más notícias com o estômago cheio.
Enquanto lhe punha a tabuleta, Brianna lhe esfregou a outra emano com o ungüento.
-Tem rota a camisa, deixe-me isso depois de jantar e lhe remendarei isso. Que tal ficou? -pinjente, terminando a vendagem com um nó.
-Muito bonito, Madame Lazonga-disse-. vou jogar me a perder com tantas cuidados.
-Quando mastigar a comida para ti poderá começar a preocupar-se -pinjente asperamente.
Riu e entregou a outra emano a Brianna para que a curasse.
-Ciamar a tha você, mo chridhe -disse súbitamente.
Era sua forma acostumada de saudá-la quando começavam suas classes de gaélico, mas sua voz era diferente, mais suave. «Como está, querida?» Suas mãos cobriram as dela.
-Tha meu gle mhach, athair -respondeu com um pouco de surpresa. «Estou bem, pai.»
A lição começava normalmente depois do jantar.
Levantou a outra mão lentamente e a colocou no estômago da Brianna.
-An e'n fhirínn a th'agad? -perguntou. «Dirá-me a verdade?»
Agora sabia a razão de sua atitude; sabia a verdade e embora lhe custasse a aceitaria.
Brianna não sabia suficiente gaélico para entendê-lo, mas se dava conta do que queria lhe dizer. Olhou-o geada, logo tomou a outra mão e a aproximou da bochecha.
-P -disse muito devagar—. O sinto.
-Ah, vamos, m'annsachd- disse brandamente-, tudo irá bem.
-Não -disse com voz clara-. Nunca estará bem. Você sabe.
-Tudo o que sei é que eu estou aqui e também sua mãe.
E não queremos verte envergonhada ou ferida. Alguma vez. Ouve-me?
Brianna não respondeu e manteve o olhar fixo em sua saia, com o rosto oculto por seu cabelo.
-Lizzie tinha razão? -perguntou amavelmente-. Foi uma violação?
-Não acreditava que soubesse. Não o disse.
-Adivinhou-o. Não é tua culpa, isso não o pense nunca -disse com firmeza- Vêem aqui comigo, a leannan.
E a fez sentar em seus joelhos.
-Ocuparei-me de que te case e de que seu filho tenha um bom pai -murmurou-. Juro-lhe isso.
-Não quero me casar com ninguém -disse molesta-. Isso não estaria bem. Não posso procurar a outro quando amo ao Roger. E agora, Roger não me vai querer. Quando descobrir...
-Não haverá diferença para ele -disse Jamie, sujeitando-a com mais força, como se pudesse arrumar as coisas por sua força de vontade-. Se for um homem decente não lhe importará. E se lhe importa, bom, não te merece e então o esmagarei, cortarei-o em pedaços e logo procurará um homem melhor.
Brianna soltou uma gargalhada que se converteu em pranto e escondeu a cabeça no ombro de seu pai. Jamie a abraçou e a acalmou murmurando como se fora uma criatura. Meus olhos se encontraram com os do Jamie enquanto ele a deixava chorar acariciando seu cabelo.
Quando Brianna deixou de chorar Jamie me sorriu.
-Tenho muita fome, Sassenach, -disse-. Não nos viria mal beber algo, não?
-Bem -pinjente e me esclareci garganta- vou procurar leite.
-Não referia a isso! -disse com tom de ultraje.
Ignorei-o igual à risada da Brianna e abri a porta.
Fora tudo estava tranqüilo e silencioso.
-O que vamos fazer? -pinjente, dirigindo a pergunta às profundidades do céu.
Quando retornei, as duas cabeças vermelhas estavam juntas e o aroma do guisado se mesclava com o aroma do pinheiro queimado e o ungüento. Súbitamente tive fome.
Fechei a porta com suavidade, procurei pão e manteiga na despensa, logo agarrei algo doce e um pouco de queijo e uma garrafa de vinho para acompanhar a comida.
Um monge franciscano me tinha ensinado que terei que pôr a confiança em Deus e rezar para que nos guiasse.
E ante a dúvida, terei que comer.
Quando retornei contudo, Jamie falava brandamente com a Brianna.
-Quando vivia na cova -dizia Jamie- pensava em ti, quando foi pequena. Imaginava que te tinha em braços, que apoiava sua cabeça sobre meu peito e te cantava olhando as estrelas.
-E o que cantava?
A voz da Brianna também era baixa.
-Velhas canções. Canções de berço que recordava de minha mãe, quão mesmas minha irmã Jenny cantava a seus filhos.
Brianna suspirou profundamente.
-Canta agora para mim, por favor, P.
Vacilou, mas logo voltou a cabeça para ela e começou a cantar uma canção em gaélico. Jamie desafinava e a canção ia e vinha sem música, mas o ritmo das palavras era agradável e consolador.
-Sabe uma coisa, P? —perguntou Bri.
-O que? -disse, suspendendo seu canto.
-Não sabe cantar.
Houve um murmúrio de risadas.
-É certo. Deixo-o então?
-Não.
aproximou-se mais, apoiando a cabeça em seu ombro.
Seguiu sua desafinada canção e logo se interrompeu.
-Sabe uma coisa, a leannan?
-O que?
-Pesa tanto como um cervo grande.
-Devo me levantar, então? -perguntou sem mover-se.
-É obvio que não.
incorporou-se e lhe acariciou a bochecha.
-Meu gradhaich a thn, athair -sussurrou. «Meu amor para ti, pai.»
Jaime a beijou na frente. O fogo os iluminou deixando seus rostos em negro e dourado. As facções do Jamie mais duras e marcadas, as da Brianna mais delicadas, mas com os mesmos rasgos. E ambos, graças a Deus, meus.
Brianna ficou dormida depois da comida, esgotada pelas emoções. Eu não queria pensar, só queria deixar a um lado o presente e o futuro e retornar à paz da noite anterior. Mas os problemas estavam em casa essa noite e não havia paz entre nós.
Jamie se passeava pela casa como um lobo enjaulado, trocando as coisas de site. Desejava falar com o, mas ao mesmo tempo tinha medo. Tinha prometido a Brianna que não lhe falaria do Bonnet, mas era muito malote para mentir e Jaime conhecia muito bem meu rosto.
Levei-me os pratos para lavá-los. Quando retornei, Jamie estava ante a pequena prateleira onde guardava o papel, a tinta e as plumas. Não se tinha despido para meter-se na cama e com a mão machucada, não podia escrever.
-Quer que te escreva algo? -disse ao ver que agarrava uma pluma e a deixava.
-Não, devo lhe escrever ao Jenny mas agora não posso ficar sentado.
-Sei como se sente -pinjente pormenorizada.
Olhou-me surpreso.
-Eu não sei como me sinto, Sassenach -disse com uma estranha risada. Se você crie que sabe, diga-me isso
-Cansado -pinjente e apoiei uma mão em seu braço-. Zangado. Preocupado. -Olhei de esguelha a Brianna, dormida em sua cama-. Com o coração destroçado, talvez -acrescentei muito brandamente.
-Todo isso e bastante mais. -afrouxou-se o pescoço da camisa, como se se afogasse-. Não posso ficar aqui. Quer me acompanhar a dar uma volta?
fui procurar minha capa. Fora estava escuro e não ia poder ver minha cara. Caminhamos comprido momento através das árvores em silêncio.
-Jamie -pinjente finalmente-. O que te passou nas mãos?
-Como?
deu-se a volta surpreso.
-Suas mãos- -Agarrei uma e a sustentei entre as minhas-. Não pôde te machucar assim com as pedras da chaminé.
-Ah. -Permaneceu imóvel-. Brianna... não te disse nada sobre o homem? Disse-te seu nome?
Vacilei e perdi. Conhecia-me muito bem.
-Disse-lhe isso, não?
Sua voz tinha um tom perigoso.
-Fez-me prometer que não lhe diria isso -deixei escapar-. Disse-lhe que foi dar conta, mas, Jamie, o prometi. Não me lhe faça dizer isso por favor!
-Sim, é verdade, conheço-te bem, Sassenach, não pode manter um segredo frente a ninguém que te conheça. Até o Ian pode ler em sua cara como em um livro aberto.
Agarrou-me a mão.
-Não se preocupe. Deixa que ela me diga isso quando queira. Posso esperar.
-Suas mãos -pinjente outra vez.
-Recorda que uma vez me disse «golpeia algo e se sentirá melhor»? Bom, peguei a uma árvore. Doeu-me, mas tinha razão.
-Ah! -deixei escapar um suspiro, aliviada.
-Ela te contou... contou-te o que aconteceu? Quero dizer... Esse homem lhe fez mal?
-Não, não fisicamente.
Vacilei, imaginando que podia ver o anel que tinha no bolso, coisa que, é obvio, era impossível. Brianna só lhe tinha pedido que não dissesse o nome do Bonnet; tampouco ia lhe dar detalhes, salvo que me perguntasse isso. E não o ia fazer, seria o último que queria escutar.
-O que está pensando?
-Estava-me perguntando... sim é algo terrível o ser; violada... se não haver... dano.
Sábia muito bem o que estava pensando. A prisão do Wentworth e as cicatrizes de suas costas, uma cadeia de aterradoras lembranças.
-É bastante mau, suponho -pinjente-, Mas espero que tenha razão. É mais fácil de suportar se não houve danos físicos. Mas neste caso, há uma conseqüência física -senti-me obrigada a acrescentar-. E um pouco muito apreciável!
-Sim, claro -murmurou. Olhou-me inseguro-. Entretanto, que não lhe tenha feito mal já é algo. Se o tivesse feito... matá-lo tivesse sido muito bom para ele –terminou bruscamente.
-Mas do embaraço um não se recupera -disse com sarcasmo-. Se lhe tivesse quebrado um osso, recuperaria-se. Mas assim, alguma vez o esquecerá, sabe, não?
-Sei!
Fiz a um lado e Jamie fez um gesto de desculpa.
-Não quis gritar.
Seguimos caminhando sem nos tocar.
-Sei. Deve me perdoar, Sassenach. Mas eu sei muito mais que você sobre esse assunto.
-Não estava discutindo contigo. Mas você não tiveste um filho, não sabe o que se sente. É...
-Está discutindo comigo, Sassenach. Não o faça. Estou tratando de te dizer o que sei. Tinha afastado de minha mente ao Jack Randall e não quero recordá-lo agora. Mas está aqui.
-encolheu-se de ombros e se esfregou a cara-. Há um corpo e há uma alma, Sassenach -disse lentamente, ordenando suas idéias-. Você é médica, conhece bem um. Mas o outro é mais importante.
Abri a boca para lhe dizer que sabia igual, se não melhor que ele, mas ao final não disse nada.
-Randall -continuou-. A maioria das coisas que me fez podia as suportar. Podia ter medo, podia me machucar e poderia havê-lo matado por isso, mas depois tivesse vivido sem senti-lo em minha pele, mas queria minha alma e a teve. Sim, bom, você sabe de todo isso. -Começou a caminhar mais rápido e tive que me apressar para alcançá-lo-. O que quero dizer é... Esse homem era um estranho para ela e só tomou por um momento? Se era só seu corpo o que queria... então acredito que se curará. Mas se a conhecia, se a que desejava era a ela e não a qualquer mulher, então, talvez chegou até sua alma e lhe fez mal de verdade...
-Você não crie que lhe fez mal de verdade? -minha voz se voltou aguda-. Já seja que a conhecesse ou não...
-É diferente. Disse-lhe isso!
-Não, não o é- Sei o que quer dizer...
-Não sabe!
-Sei! Mas porque...
-Porque não é seu corpo o que importa quando estou contigo-disse-, E você sabe bem que é assim, Sassenach.
voltou-se e me beijou com fúria, me agarrando por surpresa. Sabia o que desejava de mim, quão mesmo eu desejava desesperadamente dele: segurança. Mas nenhum dos dois nos podíamos dar isso essa noite. Abraçou-me com força e logo me soltou.
-Não posso -disse, respirando agitado-. Não posso.
Deu um passo atrás e se voltou para a perto, aferrando-se como se estivesse cego. Permaneceu ali, com os olhos fechados.
-Desejo-te, talvez mais que nunca -disse devagar-. Necessito-te, Claire, mas não posso suportar o me sentir como um homem. Não posso te tocar e pensar no que ele... não posso.
Toquei-lhe o braço.
-Entendo-o -pinjente, e era assim.
Alegrava-me de que não me perguntasse detalhes, pois eu também tivesse desejado não conhecê-los. Como tivesse sido fazer o amor com ele, vendo um ato similar em seus movimentos, mas profundamente distinto em sua essência?
-Entendo-o, Jamie -pinjente outra vez.
Abriu os olhos e me olhou.
-Sim, verdade? Isso é o que quero dizer.
Agarrou-me do braço e me aproximou dele.
depois de um momento me apartei e o olhei.
-Bri é muito forte -pinjente-. Como você.
-Como eu? -Deixou escapar um som zombador-. Que Deus a ajude então.
Suspirou e começamos a caminhar lentamente ao lado da perto.
-Esse homem, esse Roger do que ela fala, ficará com ela? -perguntou bruscamente.
Respirei profundamente sem saber o que responder. Tinha estado com o Roger uns meses e eu gostava, tinha-lhe carinho. Só sabia dele que era muito decente e um jovem honorável. Mas como ia ou seja o que podia pensar, fazer ou sentir quando se inteirasse de que Brianna tinha sido violada? Ainda pior: que estava grávida do violador?
-Você o faria? -disse por fim-. Se fosse eu?
Olhou-me, abriu a boca para me responder e a fechou.
-Queria dizer Sim, certamente!» -disse lentamente-. Mas te prometi uma vez que seria sincero contigo, não?
-Fez-o -pinjente, e me senti culpado.
Como podia obrigá-lo a ser sincero se eu não podia sê-lo?
-Ifrinn! Sim, maldição, faria-o. Você seria minha embora a criatura não o fora. Aceitaria a ti e à criatura, e ao diabo com o mundo.
-E alguma vez voltaria a pensar nisso? -perguntei-. Alguma vez voltaria para sua mente quando eu estivesse em sua cama? Alguma vez veria o pai ao olhar ao filho? Alguma vez me reprovaria isso ou marcaria uma diferença entre ambos?
-Maldita seja -disse-. Frank. Não eu. É ao Frank a quem te refere.
Assenti e me agarrou pelos ombros.
-O que te fez? -exigiu-. O que? diga-me isso Claire!
-ficou comigo -disse com voz tremente- Tratei de que me deixasse mas não quis. E quando Brianna nasceu, amou-a, Jamie. Não sabia se ia poder fazê-lo mas o fez. Sinto muito -acrescentei.
-Não deve senti-lo, Sassenach. O que dizia quando ia a sua cama? Pensava... -se interumpió bruscamente e ficou em silêncio.
-Era minha culpa. Eu não podia esquecer -pinjente finalmente-. Se eu tivesse podido teria sido diferente. -Devi me deter, mas não pude-. Para ele tivesse sido melhor, mais fácil, que me tivessem violado. Isso é o que lhe disseram os médicos, que me tinham violado e que tinha alucinações. Isso era o que todos acreditavam, mas eu insistia em lhe dizer que não tinha sido assim, em lhe dizer a verdade. depois de um tempo me acreditou, ao menos em parte. Esse era o problema, não que eu tivesse a filha de outro homem, mas sim te amava e não podia deixar de fazê-lo, não queria. Frank era melhor que eu. Podia deixar atrás o passado, ao menos pelo Bri. Mas para mim... -não pude continuar.
Jamie me olhou durante um momento.
-E viveu vinte ânus com um homem que não podia te perdoar por algo que não era tua culpa?
Deixei escapar um suspiro.
-Sinto muito -sussurrou e me abraçou com força.
-Que te amasse? Não lamente isso. Nunca.
Ficamos em silêncio até que finalmente o soltei e dava um passo ira.
-É melhor que retornemos a casa -pinjente, tratando de falar em um tom natural-. É muito tarde.
-Sim, suponho que sim. -Ofereceu-me o braço e tomei-. Ah, bom, espero que Roger Wakefield seja melhor homem que nós dois, que Frank e que eu. -Me olhou de esguelha-, E se não o é o esmagarei até convertê-lo em purê.
-Isso será uma grande ajuda para a situação, estou segura-dije rendo.
Soprou e seguiu caminhando. Justo quando chegamos ao atalho da casa o detive.
-Jamie -pinjente vacilante-, Crie que te amo?
-Bom, se não ser assim, Sassenach -disse finalmente-, escolheste um mau momento para me dizer isso
Deixei escapar um suspiro que foi quase uma risada.
-Não, não é isso -assegurei-lhe-. Mas... Não o digo freqüentemente. Talvez porque me criou meu tio, que era afetuoso, mas, bom, não sabia como era a gente casada... o que queria te dizer é como sabe que te amo?
-Sei porque está aqui, Sassenach -disse com calma-. Isso é o que quer dizer, não? Que ele, Roger, veio a procurá-la.
E que então talvez a ame o suficiente.
-Não é algo que alguém faça por amizade sem mais.
Assentiu outra vez, mas eu vacilava querendo lhe dizer mais, para que entendesse o significado.
-Não te disse muito sobre isso, porque... não há palavras para explicá-lo. Mas há uma coisa que posso te dizer, Jamie.
-Estremeci-me involuntariamente-. Não todos os que acontecem das pedras saem outra vez.
-Como sabe, Sassenach?
-Porque os ouvi. Gritavam.
Agarrou-me as mãos entre as suas e me aproximou de seu peito.
-Faz frio, Sassenach. Vamos dentro.
voltou-se para a casa mas o detive outra vez.
-Jamie?
-Sim?
-Devo... quereria... necessita que o diga?
-Não o necessito -disse brandamente-, Mas não me importa se quer dizê-lo. Agora e quando quiser, mas não muito freqüentemente porque não quero perder a satisfação da novidade para ouvi-lo.
Podia ouvir a risada em sua voz e eu também sorri.
-Mas de vez em quando não viria mau, não?
-Não.
Aproximei-me mais e apoiei as mãos em seus ombros.
-Amo-te.
Olhou-me durante um momento.
-Me alegro, Claire. -E me tocou a cara-. Estou muito contente. Vêem a cama, eu te esquentarei.
O pequeno estábulo se encontrava em uma cova pouco profunda, baixo um saliente rochoso, e a entrada estava protegida por uma paliçada de troncos o bastante forte para deter o mais atrevido dos ursos. A luz entrava pela metade superior da porta aberta.
-por que uma porta dobro? -perguntou.
Parecia-lhe um trabalho desnecessário para uma estrutura tão rústica.
-Os animais têm que poder olhar para fora -explicou-lhe seu pai enquanto lhe ensinava como se passavam as tiras de couro ao redor dos madeiros. Com o martelo e sem deixar de sorrir, cravava o couro na madeira-. Assim estão mais contentes, sabe?
Brianna não sabia se os animais estavam contentes na quadra, mas ela sim o era. Só havia cinco minutos de caminho de casa, mas quando chegou à quadra tremia baixo a capa. A luz que se filtrava vinha não só de um farol pendente, mas também também do braseiro do rincão.
Seu pai estava deitado sobre a palha e abafado com a capa, muito perto da pequena vaca salpicada que grunhia de vez em quando. Jamie levantou a cabeça bruscamente para ouvir os passos e se levou a mão ao cinturão.
-Sou eu -disse Brianna, e viu como se relaxava ao vê-la aparecer ante a luz. sentou-se e se esfregou a cara.
-Sua mãe ainda não tornou?
Era evidente que estava sozinha, mas olhou por cima do ombro da jovem esperando que Claire se materializasse na escuridão.
-Não. Disse-me que se não voltava te trouxesse eu a comida.
ajoelhou-se e começou a tirar coisas de uma pequena cesta: fatias de pão com queijo e tomate em conserva, um bolo de maçã e duas garrafas, uma de cidra e outra de caldo de verduras.
-Que bem! -Sorriu agarrando uma das garrafas-, comeste já?
-Sim -assegurou-lhe-. Muito.
Tinha comido, mas não podia deixar de olhar com desejo os pão-doces frescos; o mal-estar dos dias anteriores tinha sido substituído por um imenso apetite.
Jamie captou seu olhar e, com um sorriso, tirou a faca e cortou um dos pão-doces pela metade para lhe dar a maior.
No fundo da quadra havia uma perto que formava um curral para uma enorme cerda com sua cria que quase não se viam na escuridão; dormiam juntas apresentando o profético aspecto de umas salsichas.
O resto do pequeno espaço estava divido em três rústicos pesebres: a gente pertencia à vaca Madalena e a seu bezerro de um mês; o segundo estava vazio, com palha limpa, preparado para receber à vaca salpicada e sua cria tardia, e no terceiro se encontrava a égua do Ian, com os flancos avultados pelo peso da preñez.
-Parece uma sala de maternidade -disse Brianna.
Jamie sorriu e arqueou as sobrancelhas como fazia cada vez que não entendia algo do que se dizia.
-Ah, sim?
-É uma parte especial dos hospitais, onde põem às mães com os recém-nascidos –explicou-. Mamãe me levava com ela às vezes e me deixava olhar aos meninos enquanto fazia sua ronda.
Recordou quando escolhia o que mais gostava. Rosa ou azul? Pela primeira vez se deu conta de que não sabia qual era a cor que lhe tocaria, e preferiu seguir falando.
-Põem aos meninos detrás de um vidro, assim um os pode ver sem lhes jogar o fôlego e encher os de micróbios.
-Micróbios -disse pensativo-. Sim, ouvi falar deles. São pequenos animais muito perigosos, não?
-Podem chegar a sê-lo.
E recordou a sua mãe lhe explicando ao Roger Wakefield todos os perigos dos partos nesta época: só cinqüenta por cento sobrevivia ao parto. Deixou o resto do pão-doce e tragou como se tivesse algo na garganta.
A grande emano de seu pai lhe tocou o joelho.
-Sua mãe não deixará que te passe nada; já brigou contra os gérmenes antes, eu a vi. Não deixou que me vencessem e o mesmo fará contigo. É muito cabezota, sabe?
Riu e desapareceu a sensação de sufoco.
Jamie ficou em pé estirando-se e lançando um grunhido ante um rangido de suas costas.
-Acompanho-te até casa? Isto vai demorar.
Contemplou-o duvidando, mas logo se decidiu.
-Não, ficarei um momento contigo. Não te importa, não?
Agora, decidiu-se impulsivamente. O perguntaria agora. Fazia dias que esperava o momento oportuno. Mas qual era para algo como aquilo? Ao menos agora estavam sozinhos e ninguém os incomodaria.
-Como quer- Me alegro de que me faça companhia.
«Não por muito tempo», pensou. Teria preferido a escuridão, mas as palavras não eram suficientes, precisava lhe ver a cara para lhe perguntar o que queria saber.
Aceitou a jarra de cidra porque tinha a boca seca e não esperou a que ele também bebesse.
-P?
estava-se servindo mais cidra.
-Preciso te perguntar algo.
-Mmm?
-Matou ao Jack Randall?
-Onde ouviu esse nome? -perguntou olhando-a aos olhos-. De seu pai talvez? Do Frank Randall?
-Mamãe me falou dele.
-Fez-o.
Não era uma pergunta, mas lhe respondeu.
-Disse-me... disse-me o que tinha acontecido. O que ele te fez. No Wentworth.
Muito depois, pensou que seu pai deveu sentir-se traído pelo Claire, por haver o contado. Mas estava muito nervosa.
-Não foi agora, fué antes... de que te conhecesse. Ela pensou que nunca te conheceria. Quero dizer... ela não quis... sei que não pensava...
-te cale, quer?-disse Jamie arqueando uma sobrancelha.
Fixou a vista em sua saia. Teria que ter falado com sua mãe, deixar que lhe perguntasse... mas não. Tinha que ouvir o dele.
Seus pensamentos se viram interrompidos pela voz tranqüila de seu pai.
-por que me pergunta isso?
Levantou a cabeça de repente, encontrando-se com o olhar de seu pai. Não parecia estar molesto.
-Preciso saber se isso serve de alguma ajuda. Quero matá-lo A... ele. Ao homem que... -Fez um gesto para sua barriga e tragou saliva-, Mas se o faço e logo não ajuda...
Não pôde continuar.
Não pareceu impressionado.
-Mmm. mataste a algum homem antes?
Disse-o como uma pergunta, mas ela sabia que não era assim.
-Você crie que não posso? me acredite, posso fazê-lo! E entretanto... O que ganharia matando-o?
Não havia forma se soubesse, salvo que seu pai o dissesse.
-Dirá-me isso? -deixou escapar-. Matou-o? Isso te ajudou?
Pensou-o enquanto a olhava atentamente.
-No que me ajudaria cometer um assassinato? -perguntou-. Isso não tiraria a criatura de sua barriga, nem te devolveria a virgindade.
-Isso já sei! —Sentiu que se ruborizava e se deu a volta, irritada com seu pai e consigo mesma-. Mamãe me disse que tratou de matar ao Jack Randall em Paris, em um duelo. O que acreditava que foste recuperar?
-Queria recuperar minha dignidade -respondeu brandamente-. Minha honra.
-E crie que minha honra não vale a pena? Ou crie que é igual a minha virgindade? -disse com tom irônico.
Olhou-a com dureza.
-É o mesmo param?
-Não, não o é -disse.
-Bem.
-Então, me responda, maldição! -Deu um murro sobre a palha, sem nenhum resultado satisfatório-. O te matá-lo devolveu a honra? Ajudou-te? me diga a verdade!
- A verdade? A verdade é que não sei se o matei ou não.
Brianna abriu a boca surpreendida.
-Não sabe se o matou?
-Isso hei dito. -Um movimento de seus ombros revelou sua impaciência- Morreu no Culloden, eu estava ali. Despertei no páramo, depois da batalha, com o cadáver do Randall em cima de mim. Isso é o que sei, não muito mais. -Fez uma pausa pensativo e logo, decidido já, estirou um joelho e fez um gesto-. Olhe.
Era uma velha cicatriz, ainda impressionante, na parte interior da coxa.
-Uma baioneta, suponho -disse, olhando-a com tranqüilidade. Baixou a perna-. Lembrança a sensação da folha golpeando o osso e nada mais. Não sei o que aconteceu depois, nem o que tinha acontecido antes.
Respirou profundamente e Brianna se deu conta, pela primeira vez, do esforço que custava a seu pai manter a calma.
-Depois... bom, a vingança não parecia importante então. Havia milhares de homens mortos no campo de batalha e pensava que em pouco tempo eu seria um mais. Jack Randall... -Fez um gesto estranho, de impaciência-. O era um deles. Pensei que naquele momento podia deixar-lhe a Deus.
Brianna suspirou para ocultar seus sentimentos. A curiosidade e a simpatia lutavam contra a frustração.
-Você está bem? Quero dizer... apesar do que te fez?
Contemplou-a com exasperação e com uma mescla de fúria e diversão.
-Não se está acostumado a morrer por isso, moça. Eu não morri e você tampouco.
-Ainda não. -Involuntariamente pôs uma mão sobre seu abdômen. Olhou-o-. Suponho que em seis meses saberemos se morrerei ou não por isso.
Isso o confundiu.
-Tudo sairá bem.
-vou morrer -disse com frieza.
Seu pai não podia defender a de seu próprio filho.
-Não será assim! -Agarrou-a dos braços com força-. Não o permitirei!
Teria dado algo por lhe acreditar.
-Não me pode ajudar -disse com desespero-. Não pode fazer nada!
-Sua mãe sim que pode -disse, mas não muito convencido.
Brianna se liberou de suas mãos.
-Não, ela não pode, necessita um hospital, com remédios e outras coisas. Se as coisas saírem mau, quão único poderá fazer é... tratar de salvar ao menino.
Tremiam-lhe os joelhos e teve que sentar-se. Jamie lhe serve um pouco de cidra.
-Bebe, moça, está muito pálida.
-Sabe o que é o pior? Você diz que não foi minha culpa, mas sim foi.
-Não é assim!
Fez um gesto para tranqüilizá-lo.
-Falou de covardia e eu fui covarde, devi lutar. Não devi lhe permitir.. mas tinha medo. Se tivesse sido valente isto não teria acontecido, mas não fui, estava assustada! E agora estou mais assustada ainda. Não pode me ajudar e tampouco mamãe, eu não posso fazer nada. E Roger...
mordeu-se o lábio para evitar chorar.
-Brianna... a leannan...
Fez um gesto para aproximar-se, mas Brianna se afastou dele com os braços cruzados.
-Não posso deixar de pensar que poderia matá-lo. É o único que posso fazer. Se... se tiver que morrer, ao menos o levaria comigo e se não, bom talvez possa esquecê-lo se ele estiver morto.
-Não o esquecerá. Mas isso não importa, buscaremo-lhe um marido e uma vez que nasça o menino não terá muito tempo para preocupar-se.
-Como? O que quer dizer me buscando um marido?
-Necessitará um, não? -disse, um pouco surpreso-. A criatura necessita um pai. E se não querer me dizer o nome do que lhe fez isso para fazer que se faça cargo de suas obrigações, então...
-Você crie que me casaria com o homem que fez isto?
-Bom, estive pensando. Não estará jogando um pouco com a verdade, criatura? Tailandês vez não foi exatamente uma violação, possivelmente depois você não gostou do homem, escapou-te e inventou a história. depois de tudo, não está ferida. É difícil submeter a uma moça de seu tamanho se ela não o desejar.
-Crie que estou mentindo?
Jamie arqueou uma sobrancelha com cinismo. Furiosa, levantou uma mão, mas a agarrou pela boneca.
-Ah, não -disse com tom de recriminação-: Não é a primeira moça que o tem feito. Ou queria ao homem e ele te deixou? Foi isso?
Tratou de soltar-se e de lhe golpear com o joelho na entrepierna. Só chegou à coxa; Jamie não a soltou. Brianna se retorceu amaldiçoando suas saias enquanto seu pai ria, como se se estivesse divertindo.
-Maldito bastardo! -gritou- Mas antes de que pudesse mordê-lo-se encontrou chutando no ar-, Quieto! -grunhiu.
Afrouxou a pressão mas sem chegar a soltá-la. Sentia-o como uma força inexorável.
-Posso te romper o pescoço -disse com muita calma. Sentiu os dedos que pressionavam suas artérias-. Poderia te matar.
Sentiu que se sufocava pela fúria.
-Posso fazer o que quiser -continuou-. Poderia me deter, Brianna? me responda.
-Não!
Deixou-a em liberdade. Foi tão repentino que teve que apoiar uma mão para não dar com a cara no chão.
Seu pai a observava com os braços cruzados.
-Maldito seja! -ofegou-. Quero te matar!
Permaneceu imóvel, olhando-a.
-Estraga -disse com calma-. Mas não pode.
Olhou-o sem entender nada. E se encontrou com um olhar carente de fúria e de brincadeira. Seu pai esperava.
E então se deu conta.
-Não -disse-. Não posso, não posso. Embora tivesse lutado com ele... não tivesse podido.
de repente começou a chorar e a tensão se relaxou.
-Não tivesse podido detê-lo -disse, ofegando para poder recuperar o fôlego-. Eu pensava que se tivesse brigado- mas não teria servido- Não tivesse podido detê-lo.
Uma mão grande e afetuosa lhe tocou a cara.
-É uma moça muito valente -sussurrou-. Mas não deixa de ser uma menina. Quer deixar de pensar que é covarde por não lutar contra um leão só com suas mãos? Porque é o mesmo.
Brianna se limpou o nariz com e1 dorso da mão.
-me podia haver isso dito antes, sabe? -disse-. Que não tinha sido minha culpa.
Sorriu fracamente.
-Fiz-o. Mas devia averiguá-lo por ti mesma.
-Suponho.
Uma profunda e pacífica debilidade a cobriu como se fora uma manta. Mas esta vez não tinha pressa por recuperar-se.
Esperou enquanto seu pai lhe limpava a cara e lhe dava de beber.
-Pôde te defender mas não o fez.
Apertou-lhe a mão e logo a soltou.
-Não, não lutei. Tinha dado minha palavra, pela vida de sua mãe. E não o lamento.
Seu olhar era clara como a água.
Agarrou-a pelos ombros e a recostou sobre o feno.
-Descansa um momento, a leannan.
deitou-se e estirou uma mão para tocá-lo.
-É verdade.., que não o esquecerei?
Estava ajoelhado a seu lado e esperou um momento antes de responder.
-Sim, é verdade -disse brandamente-, Mas também é verdade que com o tempo não te importará.
-Não? -Estava muito cansada para seguir lhe perguntando. sentia-se extrañamente longínqua-. Embora não seja o bastante forte para matá-lo?
-É uma mulher muito forte.
-Não o sou. Acaba-me isso de demonstrar, não sou...
Uma mão no ombro a deteve.
-Não é isso o que queria te dizer -disse pensativo-, Jenny tinha dez anos quando morreu nossa mãe. -E ao dia seguinte do funeral a encontrei com o avental de minha mãe.
Tinha estado chorando como eu. Mas me disse: «vá lavar te, Jamie, vou fazer a comida para ti e para papai».
Fechou os olhos e tragou com força.
-Sei o fortes que podem chegar a ser as mulheres. E você é muito forte, me acredite.
ficou em pé e foi ocupar se da vaca que se movia inquieta. Colocou uma mão na cauda desta e falou em gaélico para lhe dar ânimo. Brianna entendia quase todas suas palavras.
Tudo podia sair bem, ou não. Mas acontecesse o que acontecesse, Jamie Fraser estaria ali, lutando. E isso era um alívio.
Jamie estava cansado e era tarde, mas sua mente o mantinha acordado. O parto tinha terminado e tinha levado a Brianna até a cabana dormida como um menino em seus braços. Havia tornado a sair para tranqüilizar-se na solidão da noite.
Doía-lhe todo o corpo pela briga com sua filha, pois era surpreendentemente forte para ser uma mulher. Isso não lhe incomodava, de fato, mas sim, pelo contrário, sentia um curioso e inesperado orgulho. "Ela estará bem», pensou. com certeza que sim.
«Ninguém morre por isso. Nem você, nem eu», havia-lhe dito.
A voz que fazia muito que não escutava voltou para seus ouvidos. Essas insinuações que lhe queimavam em sua memória como se estivessem gravadas em sua pele.
“Suave ao princípio. Suave. Tenro como se fosse meu filho pequeno. Suave e prolongado até que esqueça que houve um tempo em que eu não possuía seu corpo."
"E então -seguia dizendo a voz-, então farei que lhe aduela muito- E me dará as obrigado e me pedirá mais.»
Permaneceu imóvel olhando para as estrelas. Respirou uma e outra vez, lutando contra as lembranças.
Esperou até que chegou a paz. A visão necessária para acalmá-lo: a lembrança do rosto do Jack Randall no Edimburgo, destruído pela morte de seu irmão. E uma vez mais sentiu o dom da piedade enquanto a calma se apoderava de seu ser.
Fechou os olhos sentindo que as feridas se fechavam e liberavam seu coração.
Suspirou, o demônio se partiu. Só era um homem, Jack Randall nada mais. E ante o reconhecimento da fragilidade compartilhada pelos seres humanos, todo o poder do medo e a dor passadas se desvaneciam como a fumaça.
-Vê em paz -sussurrou, para o homem morto e para si mesmo-. Está perdoado.
Pensou que talvez deveu dizer todo isso a Brianna... mas não. Não tivesse podido entendê-lo, tinha que mostrar-lhe
Como lhe dizer com palavras o que tinha aprendido através da dor e a graça? Que só perdoando poderia esquecer, e que o perdão não era um simples ato, a não ser um assunto de prática constante?
Possivelmente ela poderia encontrar essa graça por si mesmo. Talvez aquele desconhecido Roger Wakefield poderia ser seu santuário, como Claire tinha sido o seu. Seu ciúmes naturais de homem se dissolveram pelo apaixonado desejo de que o tal Roger Wakefield pudesse lhe dar a Brianna o que ele não podia lhe dar. Rogava a Deus que chegasse logo e que fora um homem decente.
Mas e se Wakefield não chegava? Bom, haveria outras maneiras de proteger a Brianna e sua criatura. Ao menos, sua filha estava a salvo do homem que a tinha prejudicado. a salvo para sempre. esfregou-se a cara com uma mão que ainda cheirava ao sangue do bezerro.
Sim, o perdão existia e Brianna devia encontrar a forma de perdoar a aquele homem, por seu próprio bem. Mas para ele o assunto era diferente.
-«A vingança é minha, disse o Senhor» -sussurrou para si mesmo-. O inferno -disse em voz alta, envergonhado mas desafiante. Sabia que estava mau, mas não tinha sentido enganar-se nem mentir a Deus.
-O inferno -repetiu, mais alto-. E se sou condenado pelo que fiz... Que assim seja! É minha filha.
Permaneceu imóvel por um momento olhando para o céu, mas não recebeu resposta do firmamento. Assentiu, como se lhe respondessem, e seguiu colina abaixo com o vento frio lhe dando nas costas.
Novembro de 1769
Abri a caixa de instrumentos do doutor Rawlings e contemplei a fila de botellitas; as suaves cores verdes e castanhas pertenciam às raízes e às folhas esmagadas e o dourado claro às destilações. Não havia ali nada que me servisse.
Com muita lentidão abri a tampa que guardava as facas. Tirei o escalpelo de folha curva e provei o frio metal sobre meu pescoço. Era um belo instrumento, bem afiado. Deixei-o sobre a mesa e agarrei a raiz larga e grosa. Só uma; tinha procurado no bosque durante quase duas semanas para encontrá-la.
As espécies de ervas não eram quão mesmas as européias. Talvez poderia conseguir absinto, que se usava para dar gosto a absenta.
-Mas quem faz absenta na Carolina do Norte? -perguntei em voz alta, agarrando novamente o escalpelo.
-Ninguém que eu conheça.
Sobressaltei-me e a folha penetrou profundamente em meu dedo polegar. O sangue se estendeu pela mesa e me cobri o dedo com o avental.
-Sassenach! Está bem? Não quis te assustar.
-Está bem, é só um corte. De onde vem? Acreditei que estava ainda na destilaria.
-Ali estava. Mas ainda não está lista o malte. Está sangrando como um porco, Sassenach. Está segura de que está bem?
-Sim, provavelmente me cortei uma veia. Mas não uma artéria, já se deterá. me agüente a mão levantada, quer?
Jamie me ajudou a me enfaixar isso
-O que fazia com essa faca? -perguntou.
-Ah... ia cortar essa raiz.
-Sim? Nunca te tinha visto usá-los -disse, assinalando os escalpelos- salvo com a gente.
Tremeu-me a mão e me olhou intensamente com o cenho franzido.
-O que acontece, Sassenach? Parece que te tivesse surpreso a ponto de cometer um crime.
-Estava... decidindo -respondi a contra gosto. Não sabia mentir e cedo ou tarde ia ou seja, se Bri...
-Decidindo o que?
-Sobre o Bri- Qual é a melhor forma de fazê-lo.
-Fazer o que? Quer dizer...?
-Se ela quiser que o faça. -Toquei a faca com a pequena folha manchada por meu próprio sangue-. Pode-se fazer com ervas ou com isto. As ervas têm riscos desagradáveis: convulsões, danos cerebrais, hemorragias; mas agora isso não importa, porque não tenho as necessárias.
-Claire, tem-no feito alguma vez?
-Se o tivesse feito seria diferente para ti?
Contemplou-me por um momento.
-Não o tem feito -disse brandamente-. Sei.
-Não, é certo. —Contemplei sua mão que cobria a minha-. Não, nunca o tenho feito.
-Sabia que não seria capaz de matar -disse.
-Sou-o. E o fiz. Matei a um homem, um paciente que tinha a meu cargo. Contei-lhe isso.
-Acredito que não é o mesmo -disse finalmente-. Ajudar a um homem que deseja a morte... é misericórdia, não assassinato. E talvez, também seja um dever.
-Dever?
Olhei-o surpreendida.
-Acredito que é o dever do médico -disse Jamie com doçura-. jurou curar, mas se não poder e pode salvar a um homem da dor...
-Sim -respirei profundamente e apertei o escalpelo-. Jurei, mas isto está por cima do juramento de um médico, Jamie, ela é minha filha. Eu faria algo por ela, até isto.
-Olhei-o com os olhos cheios de lágrimas-. Crie que não o pensei? Que não conheço os riscos? Jamie, poderia matá-la! Olhe, não deveria sangrar tanto, mas o faz. Cortei-me uma veia. Poderia fazer o mesmo com a Brianna e não sabê-lo até que começasse a sangrar Y... então não poderia deter a hemorragia. morreria e não haveria nada que eu pudesse fazer. Nada!
Olhou-me com os olhos obscurecidos pela impressão.
-Como pode pensar em fazer isso, sabendo o que pode acontecer?
Seu tom era de incredulidade.
-Porque sei outras coisas -disse sem olhá-lo-. Sei o que é criar um filho. Sei o que é que lhe troquem o corpo, a mente e a alma sem que a gente queira. Eu sei o que é que ocupem um lugar que acreditava teu, que escolham por ti. Sei o que é, ouve-me? E é algo que ninguém deve fazer se não querer. -Levantei a vista e o olhei com o punho fechado-. E você sabe o que eu não sei, sabe o que é viver com a violação. Quer me dizer que se eu tivesse podido te contar isso, antes do Wentworth, não me tivesse deixado fazê-lo face aos riscos? Jamie, pode ser o filho do violador!
-Sim, sei -disse e se deteve, muito transtornado para seguir-. Sei -disse outra vez—. Mas sei outra coisa: se não poder conhecer seu pai, conheço seu avô. Claire, essa criatura tem meu sangue!
-Seu sangue? -repeti. Contemplei-o compreendendo a verdade-, Desejas tanto um neto, para sacrificar a sua filha?
-Sacrificar? Eu não sou o que pensava matá-la a sangue frio!
Olhou-me com teima.
-Se tiver o filho não se poderá ir. Não poderá, salvo que se separe da criatura,
-Por isso quer separá-la agora?
-Você quer que ela fique. Não te importa que tenha uma vida em outro lugar, que queira retornar. Se ficar e, melhor ainda, se te der um neto... não te importará o que aconteça com ela, não?
Tocou a ele tornar-se para trás, como se o tivessem golpeado.
-Claro que me importa! Isso não quer dizer que me pareça bem que a obrigue A...
-O que quer dizer com que a obrigue? -O sangue queimava meu rosto-. Crie que quero fazer isso? Não! Mas terá a possibilidade de escolher!
Podia sentir seus olhos fixos em mim. Sábia que estava tão afetado como eu. Importava-lhe desesperadamente o que acontecesse com Bri, mas agora que lhe havia dito a verdade os dois tínhamos que assumi-la: privado de sua própria filha e vivendo tanto tempo no desterro, não havia nada que desejasse mais que uma criatura de seu próprio sangue.
Não podia me deter e sabia. Não estava acostumado a sentir-se indefeso e não gostava- Voltou-se bruscamente apoiando-se no bordo do aparador. Nunca me havia sentido tão desolada e com tanta necessidade de sua compreensão.
-Jamie. -Apoiei uma mão sobre suas costas-. Tudo vai sair bem- Estou segura de que será assim.
Falava para lhe convencer a ele tanto como a mim. Não se moveu e me atrevi a pôr minha mão em sua cintura e a apoiar minha bochecha sobre seu ombro. moveu-se bruscamente e apartou minha mão.
-Confia muito em seu poder, não? -perguntou com frieza, voltando-se para me olhar à cara.
-O que quer dizer com isso?
-Crie que é quão única decide? Que a vida e a morte estão em suas mãos?
-Não sou eu quem decide! Mas se ela disser sim, então é meu poder. E sim, o vou usar. Igual ao faz você quando tem que fazê-lo.
Fechei os olhos para lutar contra o medo. Não me faria mal, impressionada fui consciente de que podia me deter: se me rompia a mão...
Muito lentamente inclinou a cabeça e apoiou sua frente sobre a minha.
-me olhe, Claire.
Abri os olhos e o olhei. Soltou-me a mão para me tocar brandamente o peito.
-Por favor -sussurrou e logo se foi.
Estava tão molesta pela discussão com o Jamie que não podia me concentrar em nada, assim que me pus a capa e saí a caminhar. Teria que levar a Brianna ao Cross Creek? Decidisse ter à criatura ou não, estaria mais segura ali?
Não, decidisse o que decidisse, estaria melhor aqui, comigo. Envolvi-me na capa e tratei de esquentar meus dedos.
«Por favor», havia-me dito. Por favor, o que? Por favor, não pergunte a ela, por favor, não o faça se lhe pede isso.
Mas devia fazê-lo. Fazia um juramento, mas Hipócrates não tinha sido cirurgião, nem mulher, nem mãe.
Nunca tinha praticado um aborto, mas tinha adquirido certa experiência no hospital como residente, no cuidado posterior a uma perda.
Nunca pude fazê-lo. E agora tinha que pensar que ia matar a meu próprio sangue. Sim terei que fazê-lo, tinha que ser o mais breve possível; já tinham acontecido quase três meses e, além disso, não podia estar com o Jamie na mesma habitação até que resolvesse isto. Não queria sentir sua angústia, acrescentada à minha.
Brianna tinha levado ao Lizzie a Casa do Fergus para que ficasse ajudando ao Marsali, que tinha que ocupar-se da destilaria, do pequeno Germaine e do trabalho da granja que Fergus não podia realizar com uma só mão. Era muito trabalho para uma moça de dezoito anos, mas as arrumava com empenho e graça. Lizzie podia ajudá-la nas tarefas da casa e cuidar de pequeno para que sua mãe descansasse um pouco.
Brianna retornaria a comer. Ian estava fora caçando com Cilindro. Jamie... embora não houvesse dito nada não retornaria logo. íamos ter tempo para nós.
-Pensei-o -disse com um profundo suspiro-. logo que me dava conta. E me perguntei se poderia fazer algo aqui.
-Não será fácil. Pode ser perigoso e te pode doer. Nem sequer tenho láudano, só uísque. Mas sim, posso fazê-lo se você quiser que o faça. O procedimento tem que ser cirúrgico, já que não tenho as ervas adequadas e de todos os modos não é tão confiável. Ao menos a cirurgia... é segura.
Tinha deixado o escalpelo sobre a mesa; não queria que se fizesse falsas ilusões. Assentiu e seguiu dando voltas. Igual a Jamie pensava melhor caminhando. Até que, finalmente, voltou-se e me olhou.
-Tivesse-o feito? Se tivesse podido?
-Se tivesse podido...?
-Uma vez disse que quando estava grávida me odiava. Se tivesse podido...
-Não a ti! Nunca. -Juntei as mãos para ocultar o tremor que me sacudia-. Não. Nunca.
-Disse-o -disse, me olhando com intensidade-. Quando me falou sobre P.
Passei-me uma mão pela cara. Sim, o havia dito. Idiota de mim.
-Era uma época terrível, morríamos de fome e estávamos em guerra, o mundo se destruía. Parecia que não havia esperanças; tênia que deixar ao Jamie e o pensá-lo apagava todo o resto de minha mente. Mas havia algo mais -pinjente.
-O que era?
-Não foi produto de uma violação -pinjente brandamente-. Eu amava a seu pai.
Assentiu com o rosto algo pálido.
-Sim, mas pode ser do Roger. Você o disse, não?
-Sim. Pode ser. A possibilidade é suficiente para ti?
acariciou-se o abdômen.
-Sim- Bem, não sei, mas... -deteve-se e me olhou envergonhada-. Não sei o que te parecerá, mas... -encolheu-se de ombros apartando as dúvidas-. Poucos dias depois tive de noite uma dor rápida, como se alguém me cravasse algo.
Seus dedos se curvaram no lado direito, justo em cima do osso púbico.
-Implantação -pinjente brandamente-, quando o zigoto joga raízes no útero. Quando se forma o primeiro laço entre a mãe e a criatura.
Assentiu.
-Foi uma sensação estranha. Estava meio dormida, mas de repente soube que não estava sozinha. E pinjente: ah, é você, e me voltei a ficar dormida. Acreditei que era um sonho. Foi bastante antes de sabê-lo. Mas o recordo perfeitamente.
Eu também o recordava.
-Sim, compreendo -pinjente. E logo acrescentei-: Ai, Bri!
Observava-me e me dava conta de que podia acreditar que era eu quem lamentava havê-la tido.
Curvada pela idéia de que pudesse acreditar que não a tinha querido, arrojei o escalpelo e me aproximei dela.
-Bri -disse com temor-. Brianna, quero-te. Crie que te quero?
Assentiu sem falar e estendeu uma mão para mim. Aferrei a ela como a um salva-vidas, como ao cordão que uma vez nos unisse.
Fechou os olhos e pela primeira vez vi as lágrimas entre suas grosas pestanas.
-Isso o soube sempre, mamãe -sussurrou. Seus dedos apertaram minha mão, enquanto que com a outra se tocava o ventre-. Do começo.
No fim de novembro, os dias e as noites eram frios e as nuvens de chuva começavam a aparecer pelas colinas vizinhas. Mas, desgraçadamente, o clima não acalmava o temperamento da gente e todos estavam inquietos por razões evidentes: não havia nenhuma só notícia sobre o Roger Wakefield.
Brianna ainda guardava silêncio sobre a causa da briga; em realidade, já quase nunca se referia ao Roger. Tinha tomado sua decisão: só podia esperar e deixar que Roger tomasse a sua se não o tinha feito já. Entretanto, eu podia ver nela o medo misturado com a fúria quando acreditava que não a viam. As dúvidas rodeavam a todos, como as nuvens às montanhas.
Onde estava Roger? O que aconteceria quando finalmente aparecesse?
Saía da despensa com uma parte de queijo e um recipiente de batatas quando ouvi um golpe na porta. antes de que pudesse responder, a porta se abriu e apareceu a cabeça do Ian esquadrinhando com precaução.
-Brianna não está aqui? -perguntou.
Como era evidente que não estava, entrou tratando de repeinarse o cabelo.
-Tem um espelho, tia? –perguntou-. E um pente?
-Sim, é obvio -pinjente.
Ian levava sua melhor casaca e uma camisa limpa, algo estranho para um dia de trabalho, junto com uma gravata que parecia estrangulá-lo.
-Está muito bonito, Ian -pinjente, me mordendo o lábio para não rir -.Vai a algum lugar especial?
-Bom, como vou declarar me pensei que devia estar decente.
-Já vejo -pinjente, e pensei “declarar-se?”-. E essa jovem é alguém que eu conheço?
esfregou-se o queixo.
-Sim, claro. É Brianna.
ruborizou-se sem me olhar.
-Como? -pinjente, incrédula, e o olhei-. Há dito Brianna?
Seguia olhando ao chão, mas sua mandíbula mostrava determinação.
-Brianna -repetiu-. vim a lhe propor matrimônio.
-Ian, não pode dizê-lo a sério.
-Sim. Crie que virá logo? -disse olhando pela janela.
-Ian? -pinjente, com uma mescla de fúria e ternura-. Faz-o pelo menino da Brianna?
-Sim, é obvio -disse, surpreso por minha pergunta.
-Então, não está apaixonado por ela?
Conhecia a resposta, mas era melhor falá-lo.
-Bom... não -disse com dificuldade-. Mas não estou comprometido com ninguém. Assim não passa nada.
-Não está bem -disse com firmeza-. Ian, é um ato muito honroso por sua parte, mas...
-Não é minha idéia -interrompeu-me surpreso- Tio Jamie o pensou.
-Ele... o que?
Uma voz forte e com tom de incredulidade ressonou a minhas costas. Voltei-me e descobri a Brianna que olhava fixamente ao Ian e que avançou lentamente enquanto Ian retrocedia.
-Prima -disse inclinando a cabeça; uma mecha lhe tampou a cara e tratou de pentear-se-. Eu... eu... -Ao ver a expressão da Brianna fechou os olhos-. Vim para expressar meu desejo de pedir sua mão em santo matrimônio-disse de um puxão-. Eu...
-te cale!
Bri nos olhou furiosa.
-Sabia algo disto? -perguntou-me.
-É obvio que não! Brianna... -antes de que pudesse terminar minha frase Brianna saiu-. Melhor vou buscar-a-dije.
-Eu também vou -ofereceu-se Ian e não o detive.
Poderia necessitar reforços.
-O que crie que fará? -perguntou Ian.
-Só Deus sabe -pinjente-, Mas tenho medo do que possamos encontrar.
Estava muito familiarizada com a expressão de fúria dos Fraser. Nem Jamie nem Bri perdiam facilmente o controle, mas quando o faziam era por completo.
-Me alegro de que não me golpeasse -disse Ian-. Por um momento pensei que o faria.
apressou-se com suas largas pernas. Já podíamos ouvir as vozes que saíam da quadra.
-Como diabos obrigou ao pobre Ian a fazer algo assims Nunca pensei que fosse tão arrogante e déspota...
-Pobre Ian? -disse Ian, evidentemente ofendido-., Mas o que se crie...?
-Como! Sou um déspota? -interrompeu a voz do Jamie.
Parecia impaciente e irritável, mas ainda não estava zangado-, E que melhor eleição podia fazer, me quer dizer isso Pensei em todos os solteiros em oitenta milhas à redonda antes de me decidir pelo Ian. Poderia ter pensado em te casar com um homem cruel ou bêbado, ou tão velho que poderia ser seu avô.
passou-se a mão pelo cabelo., como sinal de sua alteração e de seus desejos de acalmar-se, e baixou a voz tratando de tranqüilizá-la.
-me acredite, Brianna, fiz todo o possível para verte bem casada.
-E o que te faz pensar que quero me casar com alguém?
Jamie a olhou com a boca aberta.
-Como? -disse incrédulo-. E o que tem que ver o que quiser com isto?
-Tudo!
Deu uma patada no chão.
-Nisso está equivocada, moça -advertiu-lhe-. Tem uma criatura que necessita um nome. E já aconteceu muito tempo. Ian é um jovem de bom caráter e muito trabalhador, tem suas próprias terras e com o tempo terá as meu Y...
-não me vou casar com ninguém! -gritou Brianna.
-Bom, então escolhe você -disse Jamie cortante-. E te desejo sorte!
-Não... me... está... escutando! -disse Brianna, chiando os dentes-. Já escolhi. Pinjente que não vou casar me com ninguém!
E deu outra patada no chão.
-Ah, bom. Acredito recordar uma opinião similar expressa por sua mãe a noite antes de nossas bodas. Não lhe tornei a perguntar se lamentava haver-se visto forçada a casar-se comigo, mas me faço ilusões de que não fomos tão desgraçados os dois juntos. por que não fala com ela?
-Não é o mesmo! -gritou Brianna.
-Não, não o é -esteve de acordo Jamie, contendo-se com energia-. Sua mãe se casou comigo para salvar sua vida... e a minha. Foi algo muito valente o que fez, e muito generoso. Asseguro-te que isto não é assunto de vida ou morte, mas... tem idéia do que é viver marcada como uma prostituta ou como um bastardo sem pai?
Ao ver que a expressão de sua filha trocava um pouco, Jaime aproveitou a vantagem para lhe estreitar a mão em um gesto de bondade.
-Vamos, moça. Não o faria pelo bem da criatura?
Seu rosto se endureceu de novo e deu um passo atrás.
-Não -disse com voz estrangulada—. Não, não posso.
-Assim te educou Frank Randall? De maneira que não te importe o que está bem e o que está mau?
Brianna tremia como um cavalo que correu muito.
-Mim pai sempre fez o correto para mim! E nunca me tivesse impulsionado a fazer algo semelhante! -disse-. Nunca! Ele se preocupava comigo!
Ante essa frase Jamie perdeu o controle.
-E eu não? -gritou-. Eu não estou tratando de fazer o melhor para ti? em que pese a que está...
-Jamie. -Voltei-me para ele, para ver seus olhos escuros de fúria, e logo para minha filha Bri... eu sei que ele não quis... deve compreender...
-É a forma de comportar-se mais egoísta, desconsiderada e imprudente que vi! -disse Jamie.
-É um fariseu, um insensível bastardo!
-Bastardo! Você me chama bastardo e sua barriga cresce como uma cabaça, com uma criatura que está condenada a que a assinalem com o dedo e a insultem durante toda sua vida Y...!
-A qualquer que assinale a meu filho romperei todos os dedos e os farei tragar!
-É uma insensata! Tem a mais mínima idéia de como são as coisas? Será um escândalo e estará na boca de todos! Dirão-lhe na cara que é uma puta!
-Deixa que o tentem!
-Deixa que o tentem? E suponho que pretenderá que fique ouvindo-os!
-Não é sua obrigação me defender!
Estava tão furioso que seu rosto ficou branco como um lençol.
-Não é minha obrigação te defender? E quem o fará, mulher?
Ian me agarrou do braço e me fez retroceder.
-Agora há duas possibilidades, tia -murmurou a meu ouvido-. lhes atirar um balde de água fria aos dois ou ir. Eu vi a tio Jamie e mamãe brigando. me acredite, não terá que interpor-se entre dois Fraser que brigam. Meu pai diz que uma vez o tentou e ficaram cicatrizes para recordá-lo.
Fiz um balanço final da situação e me rendi. Ian tinha razão. Embora tivesse aceso fogo à quadra, nenhum dos dois o teria notado.
-Não se preocupe, tia -disse Ian para me consolar-. Terão fome cedo ou tarde e então voltarão.
Não foi necessário que morreram de fome. Jamie apareceu uns minutos mais tarde e, sem dizer uma palavra, agarrou seu cavalo, selou-o e partiu para a cabana do Fergus. Enquanto observava como se ia, Brianna saiu da quadra soprando e se aproximou da casa.
-O que quer dizer nighean não galladh'? -exigiu que lhe dissesse à lombriga na porta.
-Não sei -pinjente. Sabia, mas me pareceu mais prudente não dizer-lhe Mas estou seguro de que não o pensa -acrescentei-. Seja o que seja que queira dizer.
-Ja! -soprou e entrou na cabana, saindo um momento depois como uma exalação com a cesta para os ovos.
Sem dizer uma palavra desapareceu entre os arbustos fazendo tanto ruído como se fora um furacão.
Respirei várias vezes e entrei em preparar a comida, amaldiçoando ao Roger Wakefield.
Durante a comida a conversação se limitou a pedir o sal.
Depois, Brianna lavou os pratos e foi sentar se para fiar entre ruídos desnecessários. Jamie lhe lançou um olhar furioso, olhou-me e saiu. Esperava-me no atalho que ia à privada.
-O que tenho que fazer? -quis saber.
-te desculpar -respondi.
-me desculpar? -Pareceu que lhe arrepiava o cabelo, embora certamente era pelo vento-. Se eu não fiz nada!
-E qual é a diferença? -pinjente irritada-. Perguntou-me e eu te respondi.
Soprou com força, vacilou um momento e logo se voltou para a casa com ar de mártir ou de guerreiro.
-Desculpo-me -disse ante ela.
-OH! -Brianna se ruborizou.
-Estava equivocado -disse, com um rápido olhar para mi.
Assenti para lhe dar ânimos e se esclareceu garganta-. Não devi...
-Está bem -falou com rapidez, ansiosa por reconciliar-se-. Você não... quero dizer, só tratava de me ajudar. Também te peço desculpas, não devi me zangar contigo.
Jamie fechou os olhos e suspirou. Ao me abri-los olhou com a sobrancelha arqueada. Sorri-lhe e voltei para minhas tarefas.
-Sei que queriam o melhor -continuou Brianna-. Ian e você. Mas não te dá conta? Tenho que esperar ao Roger.
-Mas se lhe aconteceu algo a esse homem... se teve um acidente...
-Não está morto. Sei. -Falava com o ardor de quem quer fazer realidade seus desejos-. Virá. E o que passaria se chegar e me encontra casada com o Ian?
Jamie se passou os dedos pelo cabelo em um gesto de frustração.
-Enviei ao Ian a que perguntasse no Cross Creek e avisasse no River Run ao capitão Freeman, para que passasse a voz aos outros marinheiros. Também enviei ao Duncan para que perguntasse pelo vale de Cape Fear e pelo Edemon e New Bern, e nos navios que vão da Virginia ao Charleston.
Olhou-me pedindo compreensão.
-Que mais posso fazer? Esse homem não aparece por nenhum lado... -deteve-se mordendo o lábio.
-Já vejo. Obrigado, P.
ficou imóvel; seu aspecto era o da mais completa desolação.
Jamie a estudou com o rosto carrancudo e logo me olhou . Então, com ar decidido foi até a prateleira e tirou seus utensílios de escritura e os colocou sobre a mesa.
-Há outra possibilidade -disse com firmeza-. Fazer uma descrição que levarei ao Gilleite, no Wilmington. O pode imprimir e Ian e os jovens Lindsey poderão distribuir as cópias pela costa, desde o Charleston até o Jamestown. Talvez haja alguém que não saiba seu nome, mas o reconheça por seu aspecto. me diga, como é esse homem?
A sugestão devolveu um brilho de vida ao olhar da Brianna.
-Alto –disse-. Quase tão alto como você, P. A gente tem que havê-lo notado, sempre se fixam em ti. Tem o cabelo negro e olhos verdes muito brilhantes, é o primeiro que se vê nele. Não é verdade, mamãe?
Ian deixou escapar um estranho som.
-Sim -pinjente, me sentando no banco perto da Brianna- Mas pode desenhá-lo. Bri tem um talento natural para o desenho-expliqué ao Jamie-. Crie que pode desenhar ao Roger?
-Sim! -Procurou a pluma, ansiosa por tentá-lo-. Sim, claro que posso, já o tenho feito antes.
-pode-se imprimir um desenho em tinta? -perguntei.
-Bom, sim, espero que sim, não é difícil se as linhas forem claras.
Enquanto falava, Jamie tinha os olhos fixos no desenho da Brianna.
Ian empurrou a cabeça de Cilindro, que descansava em seus joelhos, e se aproximou para ver melhor, com uma exagerada curiosidade.
O desenho da Brianna era claro e preciso. Então, Ian deixou escapar um gemido.
-Passa-te algo, Ian?
Olhei-o, mas estava olhando ao Jamie com expressão angustiada. Dava-me a volta e encontrei a mesma expressão nos olhos do Jamie.
-O que acontece? -perguntei.
-Não... nada.
-Ao diabo! -Alarmada, aproximei-me para tomar o pulso-. Jamie, o que acontece? Dói-te o peito? Sente-se mau?
-Eu sim -disse Ian, como se fora a vomitar em qualquer momento-. Prima... quer-me dizer que de verdade... este... –e assinalou o desenho- é Roger Wakefield?
-Sim -disse, olhando-o intrigada—. Ian, passa-te algo? Comeu algo que te sentou mau?
Não respondeu e se deixou cair no banco com a cabeça entre as mãos. Jamie estava pálido.
-O senhor Wakefield -disse a Brianna- Por acaso... tem outro nome?
-Sim -dissemos as dois ao mesmo tempo.
Detive-me e a deixei explicar-se enquanto ia procurar o brandy. Tinha a horrível sensação de que íamos necessitá-lo.
-... foi adotado. MacKenzie é o sobrenome de sua família -explicava Brianna-. por que? Alguém ouviu falar do Roger MacKenzie?
Ian e Jamie intercambiaram olhadas e os dois pigarrearam.
-O que acontece? -Brianna os olhou ansiosa-. Viram-no? Onde?
-Sim -disse Jamie com muita cautela-. Vimo-lo na montanha.
-Como? Aqui? Nesta montanha? -ficou em pé, com alarme e excitação em seu rosto-- Onde está? O que aconteceu?,
-Bom -disse Ian à defensiva-, depois de tudo, ele disse que te tinha tirado a virgindade.
-O disse o que?
-Bom, seu pai o perguntou para estar seguro e ele o admitiu...
-Você fez isso?
Brianna se voltou para o Jamie com os punhos apertados.
-Sim, bom, foi um engano.
-Pode estar seguro! O que é o que fizeram?
Jamie aspirou e a olhou diretamente aos olhos.
-A moça- Lizzie. Ela me disse que estava grávida e que o que te tinha violado era um malvado chamado MacKenzie.
Brianna abriu e fechou a boca sem poder falar.
-Você me disse que lhe tinham violado, não?
Assentiu balançando-se como uma boneca de trapo.
-Bom, Ian e a moça estavam no moinho quando MacKenzie chegou perguntando por ti. Vieram a me avisar; então Ian e eu o esperamos no claro.
-O que lhe fizeram? -perguntou com voz rouca-, O que aconteceu?
-Foi uma briga limpa -disse Ian, ainda à defensiva-. Eu queria lhe disparar, mas tio Jamie disse que não, que queria lhe pôr as mãos em cima.
-Pegou-lhe?
-Sim, fiz-o! -disse Jamie recuperado-. Maldita seja, o que esperava que fizesse com o homem que te tratou dessa maneira? Você queria lhe matar, não?
-Além disso, também pegou a tio Jamie -interveio Ian-. Foi uma luta limpa, asseguro-lhe isso.
-Fica tranqüilo, Ian, é um bom moço -pinjente; servi brandy para o Jamie e o aproximei.
-Mas ele não foi...
Brianna parecia a ponto de estalar, até que golpeou a mesa com os punhos.
-O que fizeram com ele? -gritou.
Os dois se olharam indecisos.
Pus uma mão no braço do Jamie apertando-o com força. Não pude evitar o tremor em minha voz ao lhe fazer a pergunta.
-Jamie... matou-o?
Olhou-me e a tensão de seu rosto se relaxou.
-Ah... não -disse-. Entreguei-o aos Iroqueses.
-Mas, prima, podia ter sido pior. -Ian aplaudiu as costas da Brianna-. depois de tudo não o matamos.
Brianna deixou escapar um gemido e levantou a cara. Seu rosto estava branco.
-O íamos fazer -continuou Ian, algo nervoso-. Tinha a pistola lhe apontando à cabeça e então pensei que o que tinha direito a lhe voar os miolos era tio Jamie, então ele...
Brianna tossiu outra vez; coloquei-lhe um cubo se por acaso queria vomitar.
-Ian, acredito que não precisa ouvir todo isso agora -pinjente.
-Sim, quero. Tenho que ouvi-lo. -Voltou a cabeça para o Jamie-. por que? por que?
Olhou-a como se tivesse preferido algo antes que responder, mas o fez.
-Queria matá-lo. Detive o Ian porque me matá-lo parecia muito fácil, uma morte muito rápida para o que tinha feito. -Respirou profundamente-. Detive-me pensar, mas seguia ouvindo o que me havia dito uma e outra vez.
-O que é o que te disse?
Até seus lábios estavam brancos. Igual aos do Jaime.
-Disse... que você lhe tinha pedido que se deitasse contigo. Que você...
mordeu-se o lábio.
-Disse que o queria.- que lhe tinha pedido que te desvirginasse -disse Ian.
Falou com frieza, com os olhos fixos na Brianna.
-Fiz-o -disse, deixando escapar um gemido.
Lancei um involuntário olhar para o Jamie. Tinha os olhos fechados.
Ian deixou escapar um som de assombro e Brianna lhe deu um soco.
-Como pôde fazer uma coisa assim? -gritou zangado-. Eu disse a tio Jamie que você nunca tinha sido uma puta, alguma vez. Mas não foi asi, não?
-Quem te deu direito a me chamar puta, maldito fariseu?
Brianna estava em pé, furiosa.
-Direito? -Ian ficou sem palavras-. Eu... você... ele...
antes de que pudesse seguir, Brianna lhe deu um murro no estômago. Com um olhar de assombro ficou sentado no chão, ofegando.
Movi-me, mas Jamie foi mais rápido e a sujeitou.
-Fica aquieta -disse com voz muito fria, evitando que pegasse também a ele-. Não queria lhe acreditar, pensei que o dizia para salvar-se. Mas se era assim... não podia lhe tirar a vida a um homem, sem estar seguro. -Fez uma pausa e a observou.
O que procurava? Tinha remorsos, estava arrependido? Mas tudo o que encontrou foi fúria-. Quando retornei essa noite senti não havê-lo matado e senti vergonha por ter duvidado da virtude de minha filha. E agora descubro que não somente não foi pura, mas sim me mentiu.
-Que te menti? -Sua voz era um sussurro-. Te mentir?
-Sim, mentiu-me ! -com súbita violência se voltou para ela-. Deitou-te com um homem por luxúria e o acusou de violação quando descobriu que estava grávida! Não te dá conta de que só por acaso não tenho em minha alma o pecado do assassinato e que a culpa seria tua?
Estava muito furiosa para falar e eu tampouco podia fazê-lo. Procurei no bolso de meu vestido o anel e o deixei cair sobre a mesa. A aliança de ouro rodou, com a inscrição: «Do F. para o C. com amor. Sempre».
Jamie o contemplou com rosto inexpressivo.
-Esse é seu anel, tia -disse Ian. Parecia enjoado e se aproximou para vê-lo melhor-. Seu anel de ouro. que te tirou Bonnet no rio.
-Sim -pinjente, e me sentei sentindo os joelhos frouxos. Jamie me agarrou da boneca.
-Onde o conseguiu? -perguntou.
-Eu o traga. -As lágrimas da Brianna se evaporaram pela fúria. ficou detrás de mim-, não te atreva a olhar a dessa forma!
Olhou-a com a mesma dureza que a mim, mas Brianna não retrocedeu.
-Onde o conseguiu? -perguntou em um sussurro-. Quando?
-Consegui-o do Stephen Bonnet.-Sua voz tremia de fúria, não de medo—. Quando... me... violou...
O rosto do Jamie se derrubou como se algo tivesse estalado em seu interior.
Senti que Brianna se movia, que Ian repetia «Bonnet?». Ouvi o tictac do relógio; era consciente de todo isso, mas só tinha olhos para o Jamie. Teria que ter podido dizer ou fazer algo, me fazer carrego deles. Mas não pude fazer nada. Não podia fazer nada sem trai-los aos dois. Não havia dito nada procurando a segurança do Jamie e isso tinha cansado sobre o Roger, destruindo a felicidade do Bri.
Brianna se afastou, caminhou ao redor da mesa e se deteve frente a Jamie olhando-o à cara.
-Maldito seja! -disse em voz quase inaudível-, Maldito seja, maldito bastardo! Lamento te haver conhecido.
Outubro de 1769
Roger abriu os olhos e vomitou. O gosto a bílis que lhe vinha do nariz e os rastros de vômito em seu cabelo não eram nada comparados com a dor que sentia na cabeça e na virilha.
Uma voz ressonou perto e o pânico o invadiu de novo. Tinha sido apanhado pela tripulação do Gloriana. Estava pacote. Bonnet. Tinham-no apanhado e agora o foram matar. Vomitou outra vez, mas seu estômago estava vazio. Não estava em um navio, a não ser sobre um cavalo. Maço de pés e mãos sobre um maldito cavalo. O cavalo deu uns passos mais e se deteve. Murmúrio de vozes, mãos que o moviam e o punham bruscamente em pé para desabar-se imediatamente, pois era incapaz de sustentar-se.
ficou dobrado no chão, concentrando-se em sua respiração. Ninguém lhe incomodava; gradualmente começou a ser consciente do que lhe rodeava. Via o céu de uma profunda cor entre azul e púrpura, ouvia o som das folhas das árvores e de um arroio próximo. Tudo lhe dava voltas. Fechou tosse olhos e apertou as mãos sobre a terra.
«Mierda, onde estou?» As vozes soavam perto, mas não podia entender as palavras. Sentiu um momento de pânico quando nem sequer pôde identificar o idioma.
Tinha um golpe debaixo de uma orelha e outro na parte de atrás da cabeça, A dor lhe atravessava as têmporas. Tinham-no golpeado com força, mas quando? Abriu os olhos e com infinita precaução se deu a volta. Uma cara quadrada e escura o olhou sem nenhum interesse especial e logo olhou ao cavalo.
Índios. A impressão foi tão grande que esqueceu, por um momento, sua dor e se sentou de repente. Ofegando apoiou a cara sobre os joelhos sem abrir os olhos.
«Onde estou?» Lutou para recuperar a memória. Fragmentos de imagens retornavam a sua mente, mas se negavam a juntar-se para adquirir um sentido.
O rosto do Bonnet e as baleias e o pequeno menino chamado.,. chamado...
Mãos juntas na escuridão. «Faço-te minha esposa Y...»
Bri. Brianna. Um suor frio escorregou por suas bochechas e as imagens flutuaram em sua mente. O rosto da Brianna! Não tinha que perdê-lo, não podia deixá-lo ir!
Mas não era um rosto amável. Um nariz direita e uns frios olhos azuis... não, não eram frios..
Uma mão sobre suas costas o arrancou da lhe torturem busca de sua memória para levá-lo a presente. Era um índio com uma faca na mão. Aturdido pela confusão, Roger se limitou a olhá-lo.
O índio, um homem de média idade, agarrou ao Roger do cabelo e lhe moveu a cabeça de um lado ao outro com ar crítico. A confusão se evaporou e Roger pensou que lhe arrancaria ali mesmo o couro cabeludo. aferrou-se aos joelhos do índio e este caiu com um grito de surpresa. Roger ficou em pé e correu para salvar sua vida. O fazia como uma aranha bêbada, com as pernas atadas procurando o refúgio das árvores. Ouvia gritos e o som de passos quando algo lhe golpeou nos pés e caiu de bruces.
Não tinha sentido lutar. Eram quatro, incluído o que Roger tinha atirado. Este se aproximou, ainda empunhando a faca.
-Não te ferir! -dueto zangado.
Deu uma bofetada ao Roger e o agarrou por couro que lhe sujeitava as bonecas, deu-se a volta e se encaminharam para onde estavam os cavalos.
Roger pensou desconcertado: «Incrível. Não estou morto. Em que maldito inferno estou?». Não tinha resposta para isso. passou-se a mão pela cara e descobriu várias feridas mais. Olhou ao redor.
Estava em um pequeno claro rodeado por carvalhos e nogueiras. O ar frio e a cor do céu lhe diziam que estavam perto da queda do sol. Os índios, quatro em total, não lhe faziam o menor caso e se ocupavam do acampamento sem olhá-lo. Deu um cauteloso passo para o arroio. Seus lábios estavam secos e bebeu, embora a água fria o fazia machuco nos dentes. Então começou a recordem.
A Colina do Fraser. Brianna e Claire... e Jamie Fraser. de repente, apareceram as imagens; o rosto da Brianna, seus olhos azuis e seu nariz robusto. Mas o rosto da Brianna se fazia cada vez mais amadurecido, mais duro e masculino e os olhos se voltavam escuros pela fúria assassina: Jamie Fraser.
-Maldito desgraçado -disse Roger brandamente-. Maldito asqueroso desgraçado. Tratou de me matar,
O sentimento inicial foi de surpresa, mas a ira não estava longe. Agora recordava tudo: a reunião em e! claro, as folhas de outono como fogo e mel, o jovem de cabelo castanho, quem diabos seria? A briga (tocou-se as costelas, provocando uma careta de dor) e o final, atirado entre as folhas e convencido de que o foram matar.
Bom, não o tinham feito. Tinha uma ligeira lembrança de uma discussão entre o homem e o moço; a gente queria matá-lo e o outro não. Mas não sabia qual dos dois. Logo, golpearam-no e já não recordava mais. Olhou ao redor. Os índios tinham aceso o fogo e colocado uma panela. Não o olhavam mas estava seguro de que o vigiavam.
Talvez lhe tinham arrebatado de lhas mãos do Fraser e o moço, mas por que? O mais provável era que Fraser lhe tivesse entregue aos índios. O homem da faca disse que não queriam lhe fazer danifico. O que queriam fazer com ele? Os índios não o vigiavam porque sabiam que não tinha onde ir. Deixou a um lado a desagradável verdade desta observação e ficou em pé. Primeiro, o primeiro. Lutou para abri-los calções. A primeira sensação foi de alívio. Doía-lhe, mas não era tão mau. E a cor da urina lhe indicou que não havia danos internos.
Mas quando se voltou para o fogo, o alívio foi superado por um estalo de fúria tão forte que apagou a dor e o medo. Em sua boneca direita tinha um manchón negro em forma ovalada, o rastro de um polegar, clara e zombadora como uma assinatura.
-Pelas portas negras do inferno -disse brandamente. A fúria ardia em seu interior-. Espera, maldito desgraçado. Os dois, esperem a que retorne.
Embora não em seguida, os índios lhe permitiram compartilhar a comida, um guisado que comiam com as mãos, mas seguiam indiferentes. Tratou de lhes falar em inglês, francês, inclusive no pouco de alemão que sabia, mas não recebeu resposta alguma.
Quando chegou a hora de dormir, ataram-no à boneca de um de seus captores. Não acreditava que pudesse dormir, mas o fez esgotado pela dor. Foi um sonho muito agitado, com pesadelos violentos e a constante sensação de que o estrangulavam.
Pela manhã empreenderam o caminho. Esta vez não o ataram ao cavalo, fizeram-no caminhar o mais rápido possível, com um laço corrediço frouxo ao redor do pescoço e uma corda que lhe sujeitava as bonecas à cadeira de um dos cavalos. cambaleou-se várias vezes, mas as arrumou para continuar em que pese a seus músculos doloridos. Tinha a sensação de que se não o fazia o arrastariam sem compaixão.
dirigiam-se para o norte. Podia dar-se conta pelo sol. Não sabia aonde o levavam, mas não podia estar tão longe da Colina do Fraser. Tinha que procurar marcos para recordar o caminho, se é que alguma vez podia retornar.
A viagem durou dias, sempre para o norte. Seus captores não lhe falavam e ao quarto dia se deu concha de que estava perdendo a noção do tempo e entrando em um estado de transe pela fadiga e o silêncio das montanhas. Tirou um largo fio da prega de sua casaca e começou a marcar os dias com um nó para ter uma conexão com a realidade e poder calcular a distância da viagem.
ia retornar. Não importava como, mas retornaria à Colina do Fraser.
Ao oitavo dia encontrou sua oportunidade. No dia anterior tinham cruzado um desfiladeiro, onde os cavalos tinham que ir a passo lento. Os índios tinham desmontado e caminhavam conduzindo os cavalos. Roger não perdia de vista ao índio que levava o cavalo ao que estava pacote. Com uma mão se sujeitava à corda e com a outra tratava de desatá-la.
Pouco a pouco foi afrouxando a corda até que, finalmente, ficou sujeito a um fio. Esperou, suando pelo temor e o esforço, deixando passar oportunidades e temendo que depois fora muito tarde, já que se se detinham para acampar, o índio se daria conta de que a corda estava gasta.
Mas não se detiveram e o índio não se voltou. «Agora», pensou. Abaixo havia uma ladeira boscosa, ideal para ocultar-se. Atirou da corda e saltou. Correu colina abaixo perdendo os sapatos. Cruzou um arroio e ouviu vozes, logo se fez o silêncio, mas soube que o perseguiam.
Corria enquanto procurava um lugar para esconder-se. Escolheu um bosquecillo de abedules e logo cruzou um prado; ao olhar para trás divisou duas cabeças entre as folhas. Seguiu correndo entre a maleza e baixou por um ravina, aferrando-se às novelo. Chegou ofegante até o fundo.
Um dos índios baixava o ravina justo detrás dele. tirou-se a corda que tinha no pescoço e golpeou com força as mãos do índio, Este escorregou e então Roger lhe aconteceu a corda pelo pescoço, atirou com força e fugiu deixando o de joelhos, tossindo e lutando para afrouxá-la corda.
Árvores. Necessitava amparo. Tropeçou, levantou-se e seguiu correndo quase sem fôlego. meteu-se entre os abetos, passando entre milhões de agulhas com os olhos fechados, até que caiu e rodou enjoado e sangrando. ficou imóvel durante um momento, logo se voltou limpando-a sujeira e o sangue do rosto.
Levantou a cabeça com precaução, procurando. Havia dois índios no topo da ladeira, baixando com cuidado por onde ele tinha cansado.
arrastou-se sobre mãos e joelhos para salvar sua vida. "Inferno” foi seu primeiro pensamento coerente. Logo se deu conta de que era tanto uma descrição como uma maldição.
Estava em um inferno de rododentros. Ao dar-se conta, já muito tarde, diminuiu sua carreira, se podia chamar-se assim a arrastar-se três metros por hora.
meteu-se em uma espécie de túnel onde não podia dá-la volta, mas as engenhou para colocar a cabeça. Não havia nada, só terra e escuridão. Não se via outra coisa que ramos de rododendro.
Seus membros trementes não resistiram e se desabou. Por um momento, Roger ficou respirando terra e folhas podres.
-Queria um lugar para te esconder, companheiro -murmurou para si. Tudo lhe doía. Tinha feridas que sangravam em várias partes do corpo.
Fez um rápido inventário dos danos enquanto tratava de detectar a seus perseguidores. Não lhe surpreendeu que não estivessem. Tinha ouvido falar do inferno dos rododendros nos botequins do Cross Creek, historia sobre cães que perseguindo uma lebre se colocaram nesse labirinto e se perderam para sempre.
Roger esperava que fossem exageros, embora o que via não era muito tranqüilizador. Olhasse onde olhasse tudo parecia igual. Com uma sensação de pânico, deu-se conta de que não sabia por onde tinha chegado ali. Pôs a cabeça sobre os joelhos e respirou profundamente tratando de pensar. Muito bem, o primeiro era o primeiro. Seu pé direito sangrava e usou uma média para enfaixar-lhe Não parecia necessitar outra vendagem, salvo no profundo sulco de seu couro cabeludo que ainda lhe sangrava, úmido e pegajoso ao tato.
Tremiam-lhe as mãos e lhe resultava difícil atá-la média ao redor da cabeça. Entretanto, essa pequena ação lhe fez sentir-se melhor. Tinha escalado infinidade de munros em Escócia. Se um se perdia em um lugar assim, o habitual era esperar a que alguém o encontrasse. Mas isso não servia, pensou, já que as únicas pessoas que o buscavam eram as que não queria que o encontrassem.
Não havia forma de saber que tamanho tinha aquele Inferno. Sabia que estava perto de um dos limites, mas esse conhecimento era inútil, já que não tinha idéia de qual era a direção.
deu-se conta de que tema muito frio e as mãos lhe tremiam. O que se fazia nesses casos? Bebidas quentes, mantas. Brandy. Sim, claro. Levantar os pés, isso sim podia fazê-lo.
meteu-se em uma pequena depressão, tampou-se com folhas e fechou os olhos tremendo.
Não foram perseguir o. por que foram fazer o? Era muito melhor esperá-lo se não tinham pressa. Finalmente ele sairia, se podia.
Com as mãos juntas sobre o peito, ordenou-se descansar e pensar em algo diferente a sua situação atual. Brianna. Podia pensar nela. Sem fúria nem confusão, não havia tempo para isso. Tentaria pensar que tudo seguia entre eles como aquela noite, sua noite. Seu calor, suas mãos tão francas e curiosas, ansiosas por conhecer seu corpo. A generosidade de sua nudez, sua liberdade, e ele, com sua segurança, equivocada, de que tudo estava bem no mundo. Pouco a pouco deixou de tremer e dormiu.
despertou depois de que saísse a lua. Podia ver o brilho no céu. Estava dolorido e tinha frio, fome e sede.
Bom, se podia sair daquele matagal ao menos encontraria água. Nas montanhas havia arroios por todos lados. sentia-se como uma tartaruga sobre sua carapaça, deu-se a volta lentamente.
Uma direção era tão boa como outra. Uma vez mais, sobre mãos e joelhos, atravessou os ramos tratando de manter-se em linha reta. Seu principal temor não era encontrar-se com os índios, a não ser perder o rumo e ficar dando voltas, apanhado para sempre. A história dos cães já não lhe parecia exagerada.
Cada vez que se detinha para recuperar o fôlego, esperava para ver se ouvia algo, mas não ouvia nada, salvo ocasionais pássaros e o som das folhas. secava-se o suor e seguia arrastando-se.
Não sabia quanto tempo tinha passado quando encontrou a rocha. Mais que se encontrá-la chocou contra ela. Cego pela dor, tocou-a para sentir contra o que se golpeou. Era uma pedra Lisa e alta.
A provas a rodeou. Havia um grosso tronco perto e seus ombros se entupiram no estreito espaço, até que finalmente pôde passar, perdeu o equilíbrio e caiu de bruces.
De novo se incorporou apoiando-se nas mãos e se deu conta de que podia as ver. Olhou ao redor totalmente surpreso. ficou em pé e viu que estava em um lugar aberto frente a um penhasco que se levantava um lado do pequeno claro. Sim é que era um claro, porque nada crescia ali. Assombrado, deu-se a volta devagar respirando profundamente o ar puro e fresco.
-minha mãe -disse brandamente, em voz alta.
O claro tinha forma oval, estava rodeado por pedras e pelo penhasco. As pedras estavam separadas por espaços iguais, formando um círculo. Um par delas tinham cansado pela pressão das raízes do rododendro. Mas nenhuma outra planta crescia ali.
Caminhou lentamente, sentindo calafrios em todo seu corpo, para o centro do círculo. Não podia ser, mas era. E por que não? Se Geillis Duncan tinha razão... voltou-se para ver as marcas à luz da lua.
aproximou-se para olhar de perto. Havia vãos petroglifos, alguns do tamanho de sua mão e outros quase tão altos como ele, forma em espiral e o que podia ser um homem inclinado, dançando ou movendo-se. Um círculo quase fechado, como uma serpente que se remói a cauda. Sinais de aviso.
estremeceu-se outra vez e sua mão foi para o bolso do calção. As pedras preciosas estavam ali, por elas tinha arriscado a vida. Eram, ou isso esperava, o passaporte de segurança para ele e para a Brianna.
Não ouvia nada, nem zumbidos, nem murmúrios. Mas deviam estar perto da festa do Samhain.
Aquele círculo seguiria o mesmo ritmo de datas? Supunha que assim era, se as linhas de força da Terra se regiam pelo movimento ao redor do Sol, então tudas as passagens deviam abrir-se e fechar-se com essas mudanças. Deu um passo para aproximar-se do penhasco e viu a abertura. Talvez fora uma cova. Um frio sorvete o sobressaltou, e não era devido ao vento da noite. Seus dedos se fecharam sobre as pedras preciosas. Não ouvia nada. Estaria aberto? Se era assim...
«Escapar.» Seria isso. Mas escapar onde? E como? Tentá-lo seria abandonar a Brianna.. «E ela não te abandonou?»
-Não, que me amaldiçoem se o fez! -sussurrou.
Havia uma razão para o que ela tinha feito, sabia. Tinha encontrado a seus pais, estaria segura. “Por esta razão, uma mulher deixará a seus pais e se unirá a seu marido”. Não era a segurança o que importava, era o amor. Se lhe tivesse importado a segundad nunca teria tomado esse caminho.
Se não penetrava na rocha... então ficavam dois caminhos. Voltar para os rododendros ou escalar o penhasco. Moveu a cabeça e viu um rosto sem facções que o olhava na escuridão. Não teve tempo de mover-se, nem de pensar antes de que a corda passasse por sua cabeça e lhe apertasse os braços contra o corpo.
River Run, dezembro de 1769
Tinha estado chovendo e logo o faria de novo. Gotas de água penduravam baixo as pétalas de mármore das rosas jacobitas na tumba do Héctor Cameron. Semper Fidelis, dizia debaixo do nome e a data. Semper Fi. Brianna tinha saído com um cadete da Marinha que levava isso gravado no anel que tentou lhe dar de presente. Sempre fiel. A quem tinha sido fiel Héctor Cameron? A sua esposa? A seu príncipe?
Não tinha falado com o Jamie Fraser desde aquela noite. Nem ele com ela. Não até o momento final, quando ante a fúria pelo medo e o ultraje, tinha-lhe gritado: «Meu pai nunca houvesse dito uma coisa semelhante!».
Ainda podia lhe ver a cara depois de que lhe dissesse isso e desejava poder esquecê-lo. deu-se a volta para sair da cabana sem dizer uma palavra. Ian se tinha posto em pé e o tinha seguido; nenhum dos dois retornou aquela noite.
Claire ficou com ela consolando-a e mimando-a enquanto chorava e se enfurecia. Embora sua mãe a tinha abraçada e lhe secava a cara, Brianna podia sentir que uma parte dela sofria por não poder ir buscá-lo, sentia que desejava segui-lo e consolá-lo, e também o culpava por isso.
Doía-lhe a cabeça pelo esforço de permanecer com o rosto inexpressivo. Não queria relaxar os músculos da cara até estar segura de que se partiram, se o fazia era possível que se desmoronasse. Não o tinha feito, não desde essa noite. Uma vez recuperada, assegurou a sua mãe que já estava bem e insistiu em que Claire se fora à cama. ficou sentada até o entardecer, com os olhos brilhando pela fúria e com o desenho do Roger sobre a mesa.
O tinha retornado ao amanhecer; sem olhar a Brianna tinha chamado a sua mãe. Tinham murmurado na porta e logo a enviou, com os olhos cheios de preocupação, a que empacotasse suas coisas.
havia a trazido aqui, baixando pela montanha até o River Run. Brianna tinha querido ir com eles, sair imediatamente a procurar o Roger sem esperar um minuto. Mas ele tinha sido inflexível, igual a sua mãe.
Estavam no fim de dezembro e a neve do inverno se amontoava na ladeira da montanha. Estava de mais de quatro meses e a curva de sua barriga aparecia bem arredondada. Não se podia saber quanto duraria a viagem e teve que aceitar, a contra gosto, que não queria dar a luz em meio da montanha. Aceitava a opinião de sua mãe, mas não a teima dele.
Não podia deixar de ouvi-lo nem de vê-lo. Seu rosto, deformado pela ira como uma máscara diabólica. Sua voz, cheia de fúria e desprezo, lhe reprovando, a ela, a perda de sua maldita honra.
-Sua honra? -havia-lhe dito incrédula-, Sua honra? Seu maldito sentido da honra é o que causou todos os problemas!
-Não deve usar essa classe de linguagem comigo!
-Direi o que me dê a maldita vontade! -tinha gritado, dando um murro na mesa.
Sua mãe tentou detê-los, mas nenhum dos dois fez conta, muito ofuscados pela sensação de mútua traição.
Sua mãe lhe havia dito, em uma oportunidade, que tinha temperamento escocês. Agora sabia de onde provinha, mas o saber o não a ajudava.
Dobrou os braços sobre seu abdômen, apoiou a cara neles e aspirou o aroma de lã. Isso lhe fez recordar os jerséis tecidos à mão que a seu pai, seu verdadeiro pai, pensou com uma rajada de desolação, gostava de usar.
-por que teve que morrer? -sussurrou-. Mas por que?
Se Frank Randall não tivesse morrido nada disso teria acontecido. Claire e ele estarian ali, na casa de Boston, e sua família e sua vida estariam intactas.
Mas seu pai se foi e tinha sido substituído por um violento desconhecido; um homem que tinha seu mesmo rosto, mas não compreendia seu coração; um homem que lhe tinha roubado a família e o lar e, não contente com isso, também lhe tinha tirado o amor e a segurança, deixando-a sem nada, em uma terra dura e estranha.
ajustou-se o lenço sobre os ombros, estremecendo-se pelo vento. Teria que haver ficado uma capa. Tinha beijado a sua mãe para despedir-se e logo se voltou e correu pelo jardim sem olhá-lo. Esperou até estar segura de que se foram, sem lhe importar o frio.
Ouviu passos mas não se voltou. Talvez era algum servente ou Yocasta, para persuadir a de que retornasse. Mas eram passos muito compridos e fortes. Não queria dá-la volta, não devia fazê-lo.
-Brianna -disse uma voz detrás dela.
Bri não respondeu, nem sequer se moveu.
Jamie soprou: fúria, impaciência?
-Tenho algo que te dizer.
-Diga-o -disse e as palavras machucaram sua garganta.
Tinha começado a chover outra vez.
-vou trazer o para casa, contigo -disse Jamie Fraser com voz tranqüila-, ou não retornarei jamais.
Não pôde dá-la volta. Ouviu o som dos passos que se afastavam. Ante seus olhos nublados pelas lágrimas o atalho ficou vazio. A seus pés havia um papel dobrado, molhado pela chuva e sujeito por uma pedra. Levantou-o e o sustentou na mão com medo de abri-lo.
Fevereiro de 1770
Face à preocupação e a fúria, adaptou-se facilmente à vida diária no River Run. Sua tia avó, encantada com sua companhia, animava-a a procurar distrações. Ao saber que tinha facilidade para o desenho, Yocasta lhe deu sua própria equipe de pintura, insistindo em que Brianna o utilizasse.
Em comparação com a cabana, a vida no River Run era tão luxuosa que quase parecia decadente. Entretanto, por hábito, Brianna seguia despertando ao amanhecer. estirava-se com frouxidão, desfrutando de do prazer do colchão de plumas.
Sempre havia um fogo ardendo no lar e água quente para lavar-se. Teria que haver-se sentido culpado por deixar-se atender por escravos, pensou. Mais tarde o recordaria. Havia um montão de coisas nas que não queria pensar agora, uma mais não lhe faria mal.
Estava abrigada e podia ouvir os ruídos da casa, uma confortável sensação caseira. Tema um ritual cada manhã, reconhecer seu corpo e aceitar as pequenas mudanças que ocorriam durante a noite para não sentir uma estranha em seu próprio corpo.
«Um estranho em meu corpo já é suficiente», pensou. Percorreu o abdômen com as mãos.
-Olá -disse brandamente.
Sentiu um ligeiro movimento em seu interior, logo o ocupante voltou para seus misteriosos sonhos.
Aquela manhã sua pele parecia diferente, tenra e reluzente. Mais tarde, quando se levantasse, pareceria mais forte e resistente. ficou apoiada sobre o travesseiro, observando a luz que entrava na habitação. A casa despertava além de onde estava ela. Podia ouvir todos os ruídos e rumores da gente que trabalhava. Quando era pequena despertava nas manhãs do verão para ouvir seu pai conversando com os vizinhos baixo sua janela. sentou-se segura e protegida sabendo que ele estava ali.
Mais recentemente se despertou ao amanhecer para ouvir a voz do Jamie Fraser falando brandamente em gaélico com seus cavalos e havia sentido que retornavam esses mesmos sentimentos. Mas não passaria nunca mais. O que sua mãe havia dito era verdade. Estava trocada e alterada, sem que soubesse ou aceitasse. Apartou as mantas e se levantou. Não podia ficar na cama lamentando-se pelo perdido, já não era tarefa de outros o protegê-la. Agora era ela a protetora.
O bebê era uma presença constante e, embora lhe resultasse estranho, uma constante segurança. Pela primeira vez se sentia benta e reconciliada. Seu corpo o tinha sabido antes que sua mente, tal como sua mãe lhe havia dito freqüentemente: «Escuta a seu corpo».
apoiou-se no marco da janela olhando a neve do jardim. Uma pulseira, com capa e lenço, estava ajoelhada no atalho arrancando cenouras.
Permaneceu imóvel escutando a seu corpo. O intruso se estirou um pouco e sentiu as quebras de onda de seus movimentos seguindo o pulso de seu sangue, o sangue dos dois. Nos batimentos do coração de seu coração, Brianna pensou que podia ouvir o eco do outro, desse coração mais pequeno, e nesse som encontrou finalmente o valor para pensar com claridade, com a segurança de que se acontecia o pior não estaria totalmente sozinha.
Jamie quase não disse nada desde nossa partida da Colina do Fraser até que chegamos à aldeia tuscarora do Tennago. Tinha falado pouco com o Ian, a Yocasta havia dito o indispensável no Cross Creek e não me dizia nada. Cavalgava atrás dele me sentindo bastante desgraçada e rasgada entre a culpa por ter deixado sozinha a Brianna, o temor pelo Roger e a dor ante o silêncio do Jamie. Culpava-me amargamente por não lhe haver contado imediatamente o do Stephen Bonnet e por tudo o que tinha acontecido depois.
guardou-se o anel de ouro que atirei sobre a mesa e não tinha nem idéia do que tinha feito com ele.
Vários índios que nos conheciam da Anna Ooka nos receberam ao chegar ao Tennago. Os homens olhavam os barris de uísque quando descarregávamos as mulas, mas ninguém interveio. Levávamos duas mulas carregadas de uísque, em total uma dúzia de barris pequenos, todos eles da parte que correspondia aos Fraser na partilha anual. Um resgate digno de um rei, que confiava que fora suficiente para o de um jovem escocês.
Era o melhor e quão único tínhamos para negociar, mas também era perigoso. Jamie entregou um barril ao sachem da aldeia e desapareceu com o Ian para parlamentar na casa comunal. Ian tinha entregue ao Roger a seus amigos tuscarora, mas não sabia onde o tinham levado. Eu esperava, contra toda esperança, que tivesse sido ao Tennago. Se era assim poderíamos estar de retorno no River Run em um mês. Era uma débil esperança, já que em meio da terrível briga com a Brianna.
Jamie admitiu que havia dito ao Ian que se assegurasse de que Roger não voltasse nunca. Tennago estava a dez dias de viagem da Colina, muito perto para um pai enfurecido.
Eu levava o amuleto do Nayawenne e a opala que encontrasse baixo o cedro vermelho com intenções de devolvê-lo, embora não sabia a quem. Se era necessário, estes objetos aumentariam o poder de persuasão do uísque. Pela mesma razão Jamie trazia seus pertences mais valiosas, que não eram muitas, só faltava o anel de rubi que tinha sido de seu pai e Brianna havia lhe trazido de Escócia. O tínhamos deixado a esta se por acaso não retornávamos, uma possibilidade que terei que ter em conta, Não havia forma de saber se Geillis Duncan tinha ou não razão sobre o uso das pedras preciosas, mas ao menos Brianna teria uma.
Quando deixamos River Run me abraçou e beijou com força. Não queria ir, mas tampouco ficar. Uma vez mais me encontrei apanhada entre dois sentimentos: o desejo de ficar para cuidar da Brianna e a urgente necessidade de ir com o Jamie.
-Tem que ir -disse Brianna com firmeza-. Estarei bem, você o há dito: sou forte como um cavalo, e crostas de volta muito antes de que te necessite.
Tinha olhado de esguelha a seu pai, que fiscalizava os cavalos e as mulas.
-Tem que ir, mamãe. Confio em ti para encontrar ao Roger.
E pôs uma incômoda ênfase em sua confiança em mim, que esperei que Jamie não tivesse notado.
-Não pensará que Jamie poderia...
-Não sei -interrompeu-me-. Não sei o que pode chegar a fazer.
Endureceu a mandíbula em um gesto que já conhecia. Discutir era inútil, mas tinha que tentá-lo.
-Bom, eu sim sei. Fará algo por ti, Brianna. Algo. E embora não fora por ti, faria todo o possível por trazer para o Roger. Seu sentido da honra...
Seu rosto me demonstrou o engano cometido.
-Sua honra -disse-. Isso é o que lhe importa. Suponho que está bem se isso fizer que encontre ao Roger.
E me deu as costas.
-Brianna!
Mas não me respondeu.
-Tia Claire? Já estamos preparados.
Ian apareceu com rosto preocupado.
-Bri?—repeti.
Então se voltou para me abraçar.
-Volta! -suplicou-. Mamãe, volta!
-Não posso te deixar, Bri, não posso!
-Tem que ir -sussurrou-. Traz-o, você é quão única pode trazê-lo.
depois de me beijar rapidamente saiu correndo. Jamie, com rosto inexpressivo, viu como se ia.
-Não pode deixá-la assim -pinjente me secando as lágrimas-. Jamie, por favor, vê e te despeça.
ficou imóvel, como se não me ouvisse, e logo se deu a volta e se afastou pelo atalho.
-Tia?
Ian me ajudou a montar. Pouco mais tarde, Jamie tinha retornado e subido ao cavalo sem dizer uma palavra; nem sequer olhou para trás. Eu sim que o fiz, mas já não havia sinais da Brianna.
Tinha anoitecido e Jamie seguia com o Nacognaweto e o sachem da aldeia. Finalmente, Ian saiu acompanhado de uma figura baixa e gordinha.
-Tenho uma surpresa para ti, tia -disse sonriendo e, apartando-se, deixou-me ver a cara redonda e sorridente da pulseira Poliyanne.
Em realidade a ex-pulseira, porque ali era livre. sentou-se a meu lado sonriendo e me ensinou o menino que levava em braços, cujo rosto era idêntico ao dele.
Com o Ian como intérprete, os poucos conhecimentos que tinha de inglês e gaélico e a linguagem dos gestos, conseguimos manter uma interessante conversação. Tinham-na aceito na tribo dos mascarora e valoravam sua capacidade para curar. casou-se com um homem que ficou viúvo depois da epidemia de sarampo, e fazia uns meses que havia trazido um novo membro à família.
Então me lembrei e tirei o amuleto do Nayawenne
-Ian... quer lhe perguntar se souber a quem devo lhe devolver isto?
Enquanto Ian falava, toqueteó o amuleto com curiosidade, logo sacudiu a cabeça e respondeu com sua voz profunda.
-Diz que ninguém o quererá, tia -traduziu Ian-. É perigoso. Teriam que havê-lo enterrado com seu dono; ninguém o tocará por temor a atrair ao fantasma do chamán.
-lhe pergunte, o que acontece não se enterra ao chamán? Se não se encontrar o cadáver?
-Nesse caso o fantasma caminha contigo, tia- Diz que não o ensine a ninguém daqui, pois se assustariam.
-Mas ela não tem medo, não?
Poliyanne sacudiu a cabeça e se tocou o peito.
-Agora a Índia -disse-. Mas não sempre.
voltou-se para o Ian e lhe explicou que em seu povo veneravam aos espíritos da morte.
O que me disse não me turvou. De fato, encontrei consoladora a possibilidade de que Nayawenne caminhasse comigo, dadas as circunstâncias. Voltei a me colocar o amuleto baixo a camisa; seu tato era como sentir a proximidade de um amigo. Poliyanne duvidava se me dizer algo. Olhou de esguelha ao Jamie e se decidiu. aproximou-se do Ian e lhe murmurou algo ao ouvido, logo me abraçou e se foi. Ian a contemplou assombrado.
-Disse que deveria lhe dizer a tio Jamie que a noite em que morreu a mulher na serraria ela viu um homem.
-Que homem?
-Não o conhecia. Só disse que era um homem branco, corpulento e não tão alto como tio Jamie ou eu. Diz que saiu e caminhou rapidamente para o bosque. Ela estava sentada na choça e o viu passar; acredita que ele não a viu. Tinha marcas de varíola e cara de porco.
-Murchison?
Meu coração se sobressaltou.
-O homem tinha uniforme? -perguntou Jamie com o cenho franzido.
-Não. Mas sentiu curiosidade por saber que fazia ali. Quando foi olhar soube que algo horrível tinha acontecido, cheirou o sangue e ouviu vozes, por isso não entrou.
Tinha sido um assassinato que não pudemos evitar por muito pouco tempo. Jamie apoiou uma mão em meu ombro e, sem pensá-lo, aferrei a ela. Então me dava conta de que fazia um mês que não nos tocávamos.
-A moça morta era lavadeira do exército -disse Jamie-. Murchison tem a sua esposa na Inglaterra; suponho que uma amante grávida lhe resultaria um inconveniente.
-Não é estranho que tenha provocado tanto alvoroço para apanhar ao responsável e culpar a essa pobre mulher, que nem sequer podia falar para defender-se. -Ian estava vermelho de indignação--. Se tivesse podido fazer que a pendurassem se haveria sentido a salvo.
-Quando voltarmos, talvez tenha uma conversação privada com o sargento -comentou Jaime.
-Não crie que já tem muitos vinganças pendentes para te manter ocupado?
Falei com mais dureza da que tivesse querido e Jaime me soltou a mão.
-Isso espero -disse, sem expressão na voz nem em e! rosto, e se voltou para o Ian-. Wakefield, MacKenzie ou qualquer que seja seu nome, está no norte. Venderam-no aos mohawk de uma pequena aldeia na parte baixa do rio. Seu amigo Onakara aceitou nos levar; sairemos ao amanhecer.
depois de dizer isto ficou em pé e se afastou. Quis segui-lo mas Ian me deteve.
-Tia -disse vacilante-. Não lhe perdoaste?
-lhe perdoar? -Contemplei-o assombrada-. por que? Pelo Roger?
Fez uma careta.
-Não, isso foi um lamentável engano, que se voltará a repetir se seguimos vendo as coisas desta forma. Não... pelo Bonnet.
-Pelo Stephen Bonnet? Como pode acreditar Jamie que lhe culpo por isso? Nunca lhe disse nada semelhante! Estava muito ocupada acreditando que me culpava , para pensar algo assim.
-Bom... não te dá conta, tia? Ele se culpa por isso, faz-o desde que nos roubou no rio, e agora, depois do que lhe tem feito à prima... —encolheu-se de ombros algo molesto-, E ao ver que está zangada com ele...
-Mas não estou zangada com ele! Eu acreditava que estava zangado comigo por não lhe dizer em seu momento que tinha sido Bonnet.
-Não! -Ian não sabia se rir ou chorar—. Bom, suponho que se o tivesse feito nos teríamos economizado alguns problemas, mas estou seguro de que não está zangado por isso, tia. depois de tudo, quando a prima Brianna o disse, já nos tínhamos encontrado com o MacKenzie.
Respirei profundamente.
-Crie que pensa que estou zangada?
-Bom, isso o pode ver qualquer, tia —assegurou com sinceridade-. Não o olha e só lhe fala quando não tem mais remédio...e-- -esclareceu-se garganta- e não te vi ir a sua cama há mais de um mês.
-Bom, ele tampouco o tem feito! -pinjente acalorada, antes de me dar conta de que não era uma conversação adequada para ter com um moço de dezessete anos.
-Ele tem seu orgulho, não?
-Deus sabe que o tem. Eu... olhe, Ian, obrigado por me dizer isso
Dirigiu-me um de seus estranhos e doces sorrisos que transformavam sua cara alargada.
-Bom, detesto vê-lo sofrer. Eu quero muito ao tio Jamie.
-Eu também -pinjente, tragando para passar o nó que tinha na garganta-. boa noite, Ian.
Por que não tinha sido capaz de ver o que Ian me dizia? Era fácil responder; não era a fúria a não ser sua própria culpa o que me tinha cegado. Tinha calado o que sabia do Bonnet, tanto pelo anel de ouro, como porque Brianna me tinha pedido isso, mas pude tratar de convencê-la, até sabendo que ela tinha razão: cedo ou tarde tivesse ido detrás o Bonnet. Embora eu tinha mais confiança que Brianna no triunfo do Jamie, não tinha sido o anel o que me tinha feito guardar silêncio.
por que me sentia culpado? Não havia uma razão lógica. Tinha escondido o anel por instinto, porque não queria acostumar-lhe ao Jamie nem voltar a me pôr isso no dedo. E entretanto, queria, precisava guardá-lo.
Vi-o deitado, imóvel mas sem dormir. Entrei na loja e me tirei a roupa. Meus olhos se acostumaram à escuridão e senti seu olhar fixo em mim. Deslizei-me baixo a manta e, sem pensá-lo, apertei meu corpo nu contra o seu, ocultando a cara em seu ombro.
-Jamie -sussurrei-. Tenho frio- Te aproxime e me esquente, por favor.
voltou-se em silêncio, com uma ferocidade que podia ter sido desejo contido, mas eu sabia que era desespero. Não desejava prazer, quão único queria era lhe dar consolo. Mas ao me abrir a ele senti uma súbita necessidade, tão cega e se desesperada como a sua.
Permanecemos abraçados, tremendo, incapazes de nos olhar, mas sem poder nos separar.
-Jamie, sinto muito -pinjente finalmente-. Não foi tua culpa.
-E de quem, se não? -disse com tom sombrio.
-De todos. De ninguém. Do Stephen Bonnet, principalmente. Mas não tua.
-Bonnet?-perguntou surpreso-. O que tem que ver?
-Bom... tudo -pinjente confundida.
separou-se e apartou o cabelo de sua cara.
-Stephen Bonnet é uma criatura perversa e o matarei à primeira oportunidade que tenha. Mas não acredito que possa culpá-lo por minhas faltas como homem.
-Do que está falando? Que faltas?
-Não acreditei que pudesse sentir tanto ciúmes de um morto -sussurrou-. Não acreditei que fora possível.
-De um morto? -Minha voz subiu de tom pelo assombro-. Do Frank?
-Perseguiu-me estes dias de viagem e posso ver seu rosto em minha mente. Disse que se parecia com o Jack Randall, não?
Abracei-o com força e aproximei minha boca a seu ouvido. Graças a Deus que não lhe tinha mencionado o anel, mas me teria traído a expressão?
-Como? -sussurrei-- Como pôde pensar isso?
liberou-se apoiando-se em um cotovelo e deixando cair o arbusto de cabelo avermelhado sobre sua cara.
-E como não pensá-lo? Ouviu-a, Claire, sabia o que me dizia!
-Brianna?
-Disse que gostaria de lombriga no inferno e que venderia sua alma por recuperar a seu pai, seu verdadeiro pai. -Ouvi o ruído de sua garganta ao tragar para continuar-. Estive pensando que ele nunca tivesse cometido esse engano, teria crédulo nela, teria sabido que ela... Pensei que Frank Randall era melhor homem que eu. Ela o pensa. E pensei que... talvez você acreditava o mesmo, Sassenach.
-Tolo -sussurrei-. Tolo, vêem aqui -pinjente acariciando suas costas.
-Sim, sou tolo. Mas não te importa muito, não?
-Não -pinjente. Seu cabelo cheirava a fumaça e a pinheiro-. Ela não quis dizer isso.
-Sim, disse-o. Ouvi-a.
-E eu lhes ouvi os dois. -Esfreguei-lhe as costas sentindo todas suas cicatrizes-. Brianna é igual a você, diz coisas que não sente quando está zangada. Ou você queria lhe dizer tudo o que disse?
-Não. -Seu corpo ficou rígido-. Não, não quis dizê-lo. Não tudo o que pinjente.
-lhe aconteceu o mesmo, me acredite –sussurrei-. Quero-lhes aos dois.
Suspirou profundamente e ficou quieto um momento.
-Se posso encontrar ao homem e levar-lhe crie que me perdoará algum dia?
-Sim. Sei que o fará.
Brianna me havia dito: «Tem que ir. É a única que o pode trazer de volta».
Pela primeira vez me ocorreu que possivelmente Brianna não se referiu ao Roger.
Era um comprido trajeto através das montanhas que se complicava ainda mais no inverno. Uma vez que chegamos às montanhas, a viagem se fez mas fácil, embora as temperaturas baixavam à medida que nos dirigíamos ao norte. Tinham passado seis semanas e Brianna já estaria de seis meses. Se encontrávamos logo ao Roger (e se era capaz de viajar, pensei com ironia) possivelmente poderíamos retornar antes de que nascesse a criatura. Mas se Roger não estava ali, se os mohawk o tinham vendido a outros... ou se estava morto, dizia uma fria vocecita em minha cabeça, então poderíamos retornar sem atrasos.
Onakara não aceitou nos acompanhar até a aldeia, o que não ajudou a aumentar minha confiança. Jamie o despediu lhe entregando um dos cavalos, uma boa faca e uma garrafa de uísque como pagamento por seus serviços.
Enterramos o resto do uísque a certa distância da aldeia.
-Entenderão-nos? —perguntei enquanto voltávamos a montar—. O tuscarora é como o mohawk.
-Não é o mesmo mas se parece, tia -disse Ian. Nevava brandamente e os flocos se derretiam em suas pestanas-. Como o espanhol e o italiano. Mas Onakara disse que o sachem e alguns índios sabem algo de inglês, embora não o usam. Lutaram com os ingleses contra os franceses, assim que alguns têm que saber inglês.
-Vamos e provemos sorte -disse Jamie; sorriu e cruzou o rifle sobre a cadeira de montar.
Fevereiro de 1770
Tinha estado na aldeia mohawk uns três meses, conforme podia comprovar nos nós do fio. Ao princípio não sabia quem eram, só que eram índios diferentes a seus captores e que estes lhes temiam. Tinha permanecido aturdido pelo cansaço. Os índios novos eram diferentes; foram vestidos com peles e couros para o frio e a maioria dos homens levavam o rosto tatuado.
Um deles lhe ameaçou com a ponta da faca e o fez despir-se. Obrigaram-lhe a permanecer nu em meio de uma cabana de madeira, onde vários homens e mulheres o golpearam e se burlaram dele. Seu pé direito estava inflamado por um profundo corte infectado. Ainda podia caminhar, mas cada passo que dava lhe produzia fortes dores e a febre o fazia tremer.
Empurraram-no até a porta da cabana. Fora se escutava o ruído provocado por duas filas de selvagens formando um corredor e que gritavam armados com paus. Alguém lhe cravou a nádega com uma faca e sentiu como corria o sangue por sua perna. “Cours.”, disseram-lhe. Corre. Não havia forma de evitar tosse golpes. Tudo o que podia fazer era correr o mais rápido possível entre as duas filas de índios.
Perto do final, um pau lhe golpeou no estômago; dobrou-se e sentiu outro golpe detrás da orelha que lhe fez rodar sobre a neve, quase sem sentir o frio. Sentiu uma chicotada nas pernas e outro debaixo dos testículo; seguiu rodando até que pôde apoiar-se sobre mãos e joelhos. O sangue que emanava de seu nariz e de sua boca se mesclava com o barro gelado.
Chegou até o final da fila. Com os últimos golpes ainda ardendo em suas costas, ficou em pé e se voltou apoiando-se nas varas para olhá-los. Isso gostaram e riram com gargalhadas que pareciam latidos. Roger fez uma inclinação de cabeça e se ergueu. Riram com mais força. Sempre tinha sabido agradar à multidão.
Então o levaram dentro e lhe deram água para lavar-se e comida. Devolveram-lhe sua camisa esfarrapada e seus calções imundos, mas não a casaca e os sapatos. Fazia calor dentro da cabana já que tinham vários fogos acesos. arrastou-se até um rincão e ficou dormido.
Depois do recebimento, os mohawk o trataram com indiferença mas sem crueldade. Era o escravo daquela moradia comunitária e o podiam usar rodos os habitantes. Se não entendia uma ordem a repetiam uma vez; se se negava ou pretendia não entender lhe golpeavam. Davam-lhe comida suficiente e um lugar decente para dormir em um rincão da cabana.
Com grande precaução, preocupou-se com aprender algumas palavras, para o qual escolheu uma menina, que lhe pareceu menos perigoso. Esta o contemplava assombrada, como se ouvisse falar com um sapo, e ria. Mas com o passo dos dias, a menina acabou chamando a seus amigas e entre todas lhe faziam repetir palavras. Assim soube que eram mohawks. Guardiães da Porta do Leste da liga Iroquesa. O, em troca, era algo assim como um «cara de cão».
—Obrigado -disse-lhes, tocando sua barba enchente e lhes ensinando os dentes entre grunhidos.
As meninas riram muito.
Uma das mães das meninas se interessou por ele e lhe curou o pé infectado. As mulheres começaram a lhe falar quando lhes levava lenhos ou água.
Quando apareceu o jesuíta, a borda do rio ainda estava geada. Roger estava fora e ouviu ladrar a tosse cães. A gente se juntou e ele se aproximou com curiosidade.
Os recém chegados eram um grupo de homens e mulheres mohawk que foram a pé, carregados com os habituais vultos de viagem. Roger se aproximava, ansioso por inteirar-se, até que um dos índios da aldeia lhe empurrou para trás. Alcançou a ver que o homem era um sacerdote. Não atuava como um prisioneiro, mas teve a impressão de que não ia por própria vontade.
O sacerdote, com gesto de preocupação em sua jovem cara, entrou com vários índios na casa do Conselho. Roger nunca tinha entrado ali, mas conhecia sua existência por suas conversações com as mulheres.
Algo acontecia na aldeia, podia senti-lo mas não o compreendia. Os homens falavam ao redor do fogo e as mulheres murmuravam entre elas enquanto trabalhavam, mas a discussão ultrapassava os rudimentares conhecimentos do idioma mohawk que tinha Roger. Perguntou a uma das pequenas e só pôde lhe dizer que os visitantes provinham de uma aldeia do norte, que desconhecia o motivo e que só sabia que tinha algo que ver com o Roupa Negra, como chamavam o jesuíta.
Uma semana depois, Roger saiu com uma partida de caça; carregaram-no com toda a carne para levá-la à aldeia. A sua chegada surpreendeu encontrar a vários índios lhe esperando. Liberaram-no de sua carga e o empurraram para uma pequena choça.
Não sabia suficiente mohawk para fazer perguntas e, de todos os modos, não lhe tivessem respondido. Havia um pequeno fogo que não lhe permitia ver nada em contraste com a luz do dia.
-Quem é você? -disse uma voz assombrada em francês.
Roger piscou várias vezes, até poder divisar a figura sentada frente ao fogo. Era o sacerdote.
-Roger MacKenzie. Et vous?
E experimentou uma inesperada alegria pelo simples feito de dizer seu nome.
-Alexandre. -O sacerdote se aproximou agradado e incrédulo-, Pai Alexandre Ferigault. Vous étes anglis?
-Escocês -disse Roger; teve que sentar-se porque a perna ferida não lhe sustentava.
-Um escocês? Como chegou você até aqui? É um soldado?
-Um prisioneiro.
-Quer comer comigo?
Era um homem jovem. O poder falar o mesmo idioma foi um alívio para ambos.
-por que me trouxeram aqui com você? -perguntou Roger depois de comer.
Não acreditava que fora para lhe proporcionar companhia ao sacerdote, pois a consideração não estava entre as qualidades daqueles índios.
-Não sei. Em realidade, surpreendeu-me ver outro homem branco.
Roger olhou de esguelha para a porta. Havia alguém fora.
-Você é um prisioneiro? -perguntou assombrado.
O sacerdote vacilou e logo se encolheu de ombros com um ligeiro sorriso.
-Não saberia dizer. Com os mohawk, a linha que divide à hóspede do prisioneiro é muito tênue e pode trocar em qualquer momento. Vivi vários anos com eles, mas sigo sendo “o outro”-, não um deles. E você, como caiu prisioneiro?
Roger vacilou, sem saber como explicar-lhe
-Traíram-me -disse ao fim-. Venderam-me.
O sacerdote assentiu pormenorizado.
-Há alguém que possa pagar um resgate por você? Manterão-o com vida se tiverem esperanças de cobrar algum resgate.
Roger negou desesperado com a cabeça.
-Não, não há ninguém.
A conversação cessou; foram ficando às escuras e já não havia mais lenha.
-Leva muito tempo nesta choça? -perguntou finalmente Roger para romper o silêncio.
Quase não podia ver o sacerdote.
-Não. Trouxeram-me hoje, pouco antes de que você chegasse.
O sacerdote tossiu.
Roger pensou que era melhor não dizer nada. Era evidente para ambos que a linha entre hóspede e prisioneiro já tinha sido cruzada. O que teria feito aquele homem?
-Você é cristão? -perguntou bruscamente Alexandre.
-Sim. Meu pai era ministro.
-Ah. Se me levarem, posso lhe pedir que reze por mim?
Roger sentiu um frio que não tinha nada que ver com a temperatura lhe reinem.
-Sim -disse com estupidez-. É obvio. Se assim o desejar.
O sacerdote ficou em pé e começou a caminhar inquieto.
-Talvez tudo saia bem -disse, como se queria convencer-se-. Ainda estão decidindo.
-Decidindo o que?
-Se viverei -disse, encolhendo-se de ombros.
Não havia resposta para isso e outra vez reinou o silêncio. Roger dormitava quando despertou um ruído na porta. incorporou-se e viu quatro guerreiros mohawk; um deles atirou lenhos no fogo quase apagado enquanto os outros três, sem emprestar atenção ao Roger, levantaram o pai Ferigault e lhe arrancaram a roupa.
Roger se moveu instintivamente mas o atiraram ao chão de um golpe. O sacerdote o olhou, implorando que não interviesse.
Um dos guerreiros aproximou da cara do sacerdote um tição aceso e disse algo que pareceu uma pergunta. Logo o passou por seu corpo, tão perto de quão genitais o rosto do Alexandre se cobriu de suor. A choça se encheu de aroma de cabelo queimado e os índios riram. Dois dos guerreiros o arrastaram pelos braços fora da choça.
«Sim me levam, reze por mim.»
As roupas do sacerdote estavam atiradas no chão; Roger as recolheu e as dobrou com mãos trementes. Tratou de rezar, mas lhe resultava difícil concentrar-se. Seguia ouvindo a voz do sacerdote lhe pedindo que rezasse por ele.
Tinham-lhe deixado o fogo aceso. Até que dormiu, tratou de convencer-se de que isso significava que não o matariam.
O ruído de várias vozes despertou de um sonho intranqüilo. abriu-se a porta e o corpo nu do sacerdote caiu ao chão. O ruído de passos se afastou enquanto Alexandre se estirava e gemia. Roger se aproximou de joelhos. Podia cheirar o sangue fresca.
-Está ferido? O que lhe têm feito?
Encontrou a resposta ao dar a volta ao corpo semiconsciente do sacerdote e ver o sangue na cara e o pescoço. Tratou de limpar a ferida e descobriu que lhe tinham talhado uma orelha e parte do couro cabeludo.
O homem se queixava. Roger lhe molhou a cara e lhe deu de beber.
-Tudo irá bem -murmurava Roger uma e outra vez, sem saber se te ouvia-. Tudo vai bem, não lhe mataram.
perguntou-se a si mesmo se isto terminaria aqui ou seria uma antecipação de majores tortura.
O fogo se consumou e a luz avermelhada dava uma cor escura ao sangue.
O pai Alexandre se retorcia constantemente entre gemidos. Não podia dormir e Roger tampouco. Pela primeira vez compreendeu os motivos do Claire Randall para curar feridos. Acalmar a dor e o medo à morte servia para atenuar os próprios temores. Para acalmar seu medo teria feito algo.
Ao final, incapaz de suportar os gemidos e as rezas, deitou-se ao lado do sacerdote e o agarrou entre os braços.
-Tranqüilo -sussurrou-. Descanse.
O corpo do sacerdote se agitou com os músculos duros pela dor e o frio.
-ficará bem -disse Roger, dando-se conta de que não importava o que dissesse, sempre que seguisse lhe falando-. Poderia ser um cão e te cuidaria igual, não, chamaria um veterinário. -Acariciou-lhe a cabeça com cuidado de não lhe fazer danifico-. Ninguém trata assim a um cão, selvagens de mierda. Queixarei-me à polícia e publicarão sua foto no Teme.
uma espécie de risada espantosa saiu de seus lábios. aferrou-se ao corpo do sacerdote e o embalou na escuridão.
-Reposez-vous, mon ami. C'est bem, a, c'est bem.
River Run, março de 1770
Brianna passou o pincel úmido pelo bordo da paleta para tirar o excesso de pintura e acrescentou uma fina sombra no bordo do rio.
ouviram-se passos pelo atalho que vinha da casa. Reconheceu o duplo passo sem ritmo e ficou tensa, lutando com a necessidade de esconder-se atrás do mausoléu do Héctor Cameron. Não lhe importava que fora Yocasta, quem freqüentemente a visitava pelas manhãs para falar de técnicas de pintura e mesclas de cores. De fato, gostava da companhia de sua tia avó e valorava as histórias da mulher sobre sua infância em Escócia, junto à avó da Brianna e aos outros MacKenzie do Leoch. Mas o assunto era diferente quando Yocasta aparecia com o Cão que Via por Ela.
-bom dia, sobrinha! Não faz muito frio para ti?
Yocasta, envolta em sua capa, deteve-se e sorriu a Brianna. Se não a tivesse conhecido não se teria dado conta de que era cega.
-Estou bem; a... a tumba me protege do vento. Mas por hoje já é o bastante.
Não era certo, mas colocou os pincéis no frasco de terebintina e começou a limpar a paleta. Não pensava pintar com o Ulises descrevendo cada pincelada a Yocasta.
-Sim? Bom, deixa suas coisas; Ulises lhe levará isso. Deixou-as a contra gosto, não sem antes ficar o caderno de desenho baixo o braço e lhe oferecer o outro a sua tia avó. Não ia deixar lhe isso ao senhor Todo o Vê e Todo o Conta.
-Temos companhia hoje -disse Yocasta, dirigindo-se para a casa-. O juiz Alderdyce, do Cross-Creek, e sua mãe. Pensei que talvez quereria ter tempo para te trocar antes do almoço.
Brianna se mordeu as bochechas para não dizer nada. Mais visitantes.
A vida social da Yocasta era assombrosa. Mas Brianna tinha notado que ultimamente os visitantes eram homens. Homens solteiros.
Fedra, enquanto lhe buscava um vestido limpo para trocar-se, confirmou as suspeitas da Brianna.
-Não há muitas mulheres solteiras na colônia –observou Fedra quando Brianna mencionou a peculiar coincidência de que a maioria dos visitantes fossem homens solteiros. Fedra observou o ventre volumoso da Brianna-. Em especial jovens. E menos ainda que vão ser proprietárias do River Run.
-Proprietária do que...?
Fedra se tampou a boca e a olhou com os olhos muito abertos.
-Não lhe há dito nada a senhorita Eu? Estava segura de que sabia; se não, tivesse-me calado.
-Bom, agora que começaste termina de me contar isso O que quer dizer com isso?
Fedra, fofoqueira por natureza, deixou-se convencer com facilidade.
-Assim que seu pai e outros se foram, a senhorita Eu mandou chamar o advogado Forbes e trocou seu testamento. Quando a senhorita Eu mora, deixará um pouco de dinheiro a seu pai e alguns objetos pessoais ao senhor Farquard e outros amigos, mas todo o resto será para você. A plantação, a serraria...
-Mas eu não quero nada!
As sobrancelhas arqueadas da Fedra expressaram profunda dúvida.
-Bom, não se trata do que queira. Com a senhorita Eu está acostumado a ser o que ela quer.
-E exatamente, o que é o que quer? Esse também sabe?
-Não é nenhum secreto- Quer que River Run dure mais que ela e que pertença a alguém de seu sangue. Para mim, tem sentido pois ela não tem filhos, nem netos. Quem fica então?
-Bom... está meu pai.
Fedra deixou o vestido sobre a cama e franziu o sobrecenho lhe olhando a cintura.
-Do modo em que cresce sua barriga, este vestido só lhe valerá durante um par de semanas. OH, sim, está seu pai. Ela tratou de lhe nomear seu herdeiro, mas pelo que ouvi ele se negou. -Franziu os lábios divertida-. Esse sim que é um homem cabeçudo. foi às montanhas para viver como os índios, só para evitar que a senhorita Eu lhe deixasse tudo. O senhor Ulises acredita que seu pai tem feito bem, porque se se tivesse ficado a senhorita Eu não o teria deixado tranqüilo.
Brianna tratou de arrumar o cabelo, mas lhe caiu a forquilha.
-Venha, deixe me fazer isso .
Fedra se colocou a suas costas e começou a penteá-la.
-E todos esses visitantes, esses homens...
-A senhorita Eu escolherá o melhor -assegurou Fedra-. Você não poderia levar River Run sozinha, nem sequer ela pode. O senhor Duncan é alguém cansado do céu; não sei o que faria ela sem ele.
O assombro ia deixando passo ao ultraje.
-Ela está tratando de me buscar um marido? Está-me oferecendo como uma noiva com dote?
-Estraga.
Fedra não parecia encontrar nada mau nisso.
-Mas ela sabe o do Roger... o senhor Wakefield! Como pode tratar de me casar, se.,.?
Fedra suspirou com simpatia.
-Para falar a verdade, não acredito que a senhorita Eu pense que vão encontrar ao homem... Ela conhece bem aos índios; todos ouvimos o senhor Myers falando dos iroqueses.
Fazia bastante frio na habitação, mas Brianna começou a suar.
-Além disso -continuou Fedra-, a senhorita Eu não conhece esse Wakefield. Poderia não ser um bom administrador. Ela acredita que seria melhor que se casasse com um homem que pudesse cuidar bem da propriedade e fazê-la prosperar.
-Eu não quero este lugar!
Agora o ultraje dava passo ao pânico. Fedra lhe atou a cinta ao redor de um pequeno coque.
-Bom, como já disse, não importa o que você queira, a não ser o que queira a senhorita Eu. Agora, vamos provar lhe o vestido.
Brianna ouviu uns passos no corredor e girou a página de seu desenho do rio e as árvores. Passaram de comprimento e se tranqüilizou, voltando de novo para a página. Estava olhando seus desenhos anteriores: tinha esboços do Jamie Fraser, de sua mãe e do Ian. Tinha-os começado a desenhar porque sentia nostalgia e agora os contemplava com medo, confiando contra toda esperança que aqueles pedaços de papel não fossem os únicos restos da família que conheceu durante tão pouco tempo.
“Para falar a verdade, não acredito que a senhorita Eu pense que vão encontrar ao homem... Ela conhece os índios.”
Lhe umedeceram as mãos. Uns suaves passos chegaram até a porta e fechou o caderno.
Entrou Ulises e começou a acender o grande candelabro.
-Não faz falta que o acenda por mim. Não me importa estar às escuras.
O mordomo sorriu amavelmente e continuou com sua tarefa.
-A senhorita Eu virá logo -disse-. Ela pode ver as luzes e o fogo, assim sabe onde está.
Brianna o observou enquanto colocava o recipiente com uísque e os copos. Toda uma vida dedicada às necessidades de outra pessoa. Ulises sabia ler e escrever em inglês e francês, sabia aritmética, cantava e tocava o clavicordio. Tudo o que tinha aprendido era utilizado só para entreter a uma anciã autocrática que dava ordens que ele obedecia. Era a forma de ser da Yocasta.
E se Yocasta conseguia o que queria... era porque aquele homem era de sua propriedade.
O pensamento era ridículo.
-Ulises -disse de repente-, quer ser livre? -No momento em que falou, mordeu-se a língua e se ruborizou-. Sinto muito -acrescentou imediatamente-. foi uma pergunta muito grosseira. Por favor, me perdoe.
O alto criado a olhou intrigado.
-Nasci livre -disse finalmente em voz muito baixa-. Meu pai tinha uma pequena granja, não muito longe daqui. Quando eu tinha seis anos morreu pela picada de uma serpente. Minha mãe não podia encarregar-se de tudo, não tinha força suficiente para trabalhar na granja, assim que se vendeu a si mesmo e entregou o dinheiro a um carpinteiro para que me tirasse de aprendiz à idade adequada.
Pôs a caixa de marfim na mesita de jogo.
-Mas ela morreu -continuou com tom prático-, E o carpinteiro, em lugar de me ensinar, declarou que eu era filho de uma pulseira e que por lei também era um escravo. Assim que me vendeu.
-Mas não era verdade!
Olhou-a com paciente diversão e seus olhos pareciam lhe dizer: E o que tem que ver a verdade com tudo isto?
-Tive sorte -contínuo-. Venderam-me barato, porque era pequeno e fraco, a um professor que ensinava aos filhos dos donos das plantações de Cape Fear. Íamos de uma casa a outra e eu me ocupava do cavalo e de outras tarefas. Como as viagens eram largas, falava-me e me ensinava a cantar. Tinha uma voz preciosa.
A Brianna a surpreendia o ar nostálgico daquele homem, mas se repôs rapidamente.
-O foi quem me deu o nome do Ulises. Sabia grego e latim e, para entreter-se, ensinou-me a ler e a escrever. Quando morreu eu era um jovem de vinte anos; então me comprou Héctor Cameron e descobriu minhas habilidades. Não todos os senhores valorariam esses conhecimentos em um escravo, mas o senhor Cameron não era um homem comum. -Ulises sorriu fracamente-. Ensinou-me a jogar xadrez e me fazia jogar contra seus amigos. Também me ensinou a tocar o clavicordio e a cantar para entreter a seus convidados. Quando a senhorita Eu começou a perder a vista, entregou a ela para que fora seus olhos.
-Qual era seu nome? Seu verdadeiro nome?
Fez uma pausa pensativo e logo sorriu, mas só com os lábios.
-Não estou seguro de recordá-lo -disse amavelmente, enquanto se retirava.
Despertou pouco antes do amanhecer. Alexandre não estava.
-Alexandre? -sussurrou com voz rouca-. Pai Ferigault?
-Estou aqui.
A voz do jovem sacerdote era suave e longínqua, embora estava a um metro de distância.
Roger se apoiou em um cotovelo; já mais acordado começou a ver. Alexandre estava sentado com as pernas cruzadas, as costas reta e a cabeça erguida.
-Está bem?
Um lado do pescoço do sacerdote estava manchado de sangue, embora seu rosto parecia sereno.
-Me vão matar logo. Talvez hoje.
-Não -disse Roger levantando-se-. Não, não o farão.
-Quer ouvir minha confissão?
-Não sou sacerdote. -Roger se aproximou com a pele de veado com a que se cobria-. Tenha, está gelado.
-Não tem importância.
Roger não sabia se se referia ao frio ou a que Roger não era sacerdote. Mas o homem estava gelado.
-Seu pai... -disse Alexandre-. Disse-me que era sacerdote.
-Ministro. Sim, mas eu não.
-Em momentos de necessidade qualquer homem pode oficiar como sacerdote -disse Alexandre, e lhe tocou com seus dedos frios-, Quer ouvir minha confissão?
-Se for o que quer.
sentia-se torpe, mas se isso lhe ajudava... esclareceu-se garganta. Como se esse som tivesse sido o sinal, o francês baixou a cabeça.
-me benza, irmão, porque pequei -disse Alexandre em voz baixa.
E com a cabeça inclinada e as mãos juntas se confessou. Tinham-no enviado de Detroit com uma escolta de furões. aventurou-se rio abaixo, até o assentamento da Santa Berta do Ronvalle para substituir ao ancião sacerdote encarregado da missão, que estava muito doente.
-Fui feliz ali -disse Alexandre com voz sonhadora—. Era um lugar selvagem, mas eu era muito jovem e minha fé ardente.
Jovem? O sacerdote não podia ser maior que Roger.
-Passei dois anos com os furões e converti a muitos. Então fui com um grupo ao Fort Stanwix, onde havia uma grande reunião de tribos da região. Ali conheci um chefe guerreiro dos mohawk. Ouviu-me pregar e, por inspiração do Espírito Santo, convidou-me a ir com o a sua aldeia. Esse foi meu primeiro pecado -disse com calma-. O orgulho. Mas Deus ainda estava comigo. -Tinha aprendido o idioma dos mohawk para que não desconfiassem.
Teve êxito e converteu a muitos índios da aldeia, em especial ao Chefe guerreiro que o protegia. Mas desgraçadamente, o sachem se opunha a sua influência e havia contínuos problemas entre cristãos e não cristãos
-E então -disse com um grande suspiro- cometi meu segundo pecado.
apaixonou-se por uma de suas conversas.
-Tinha tido alguma mulher... antes?
-Não, nunca -deixou escapar uma risada amarga e zombadora—. Acreditei que era imune a essa tentação. Mas o homem é frágil ante as tentações da carne.
Tinha vivido em casa da moça durante vários meses. Até que uma manhã que se levantou cedo e foi ao arroio a banhar-se, viu seu próprio reflexo na água e sentiu que era um sinal de Deus para que cuidasse sua alma.
foi se viver sozinho a uma choça, mas já tinha deixado grávida a seu amante.
-E por isso o trouxeram aqui? -perguntou Roger.
-Não, eles não vêem as coisas do matrimônio e a moralidade como nós -explicou Alexandre—, As mulheres vão aos homens quando querem, casam-se por acordo e o matrimônio dura enquanto se levam bem. A mulher pode jogar ao homem ou ele pode ir-se. Os filhos, se os houver, ficam com a mãe.
-Mas então...
-A dificuldade foi que, como sacerdote, sempre me neguei a batizar a meninos cujos pais não fossem cristãos e estivessem em estado de graça, e é obvio não pude batizar a essa criatura. Isso ofendeu ao chefe, por isso ordenou que me torturassem. A moça intercedeu por mim com o apoio de sua mãe e de vões pessoas influentes. Então me trouxeram aqui para que tivesse um julgamento imparcial.
-Temo-me que não compreendo -disse Roger com cuidado—. Você se negou a batizar a seu próprio filho porque a mãe não era uma boa cristã?
Alexandre pareceu surpreso.
-Ah, non! Ela não perdeu a fé, embora tinha todos os motivos para fazê-lo. —Suspirou-- Não, não podia batizar à criatura porque eu, seu pai, não estava em estado de graça.
-Ah. Por isso quer que lhe ouça em confissão? Então recuperará o estado de graça e poderá...
O sacerdote o deteve com um gesto.
-Perdão. Não devi pedir-lhe Estava tão contente de poder falar em meu próprio idioma que não pude resistir a tentação de aliviar minha alma. Mas não está bem, não há absolvição possível para mim.
O desespero do homem era tão evidente que Roger lhe apoiou a mão no braço para tranqüilizá-lo.
-Está seguro? Disse-me que em tempos de necessidade...
-Não é assim. Embora me confessasse, não tenho perdão. Faz falta arrependimento para obter a absolvição, devo rechaçar meu pecado, e isso não posso fazê-lo.
ficou em silêncio. Roger não sabia o que dizer. Um sacerdote houvesse dito algo como «Sim, meu filho?», mas ele não podia fazê-lo. Em troca, agarrou a mão do Alexandre e a apertou com força.
-Meu pecado foi amá-la -disse com muita suavidade- e isso não posso evitá-lo.
-«Duas Lanças» está conforme. O assunto terá que falá-lo ante o Conselho e tem que ser aceito, mas não acredito que haja problemas.
Jamie se apoiou no pinheiro com gesto de esgotamento. Fazia uma semana que estávamos na aldeia; ele tinha estado com o sachem da aldeia os últimos três dias. Quase não o tinha visto e tampouco ao Ian. Tinha estado com as mulheres; estas eram amáveis mas distantes. Eu mantinha meu amuleto cuidadosamente escondido.
-Então, têm-no? -perguntei, e senti o nó de ansiedade que não conseguia afrouxar-. Roger está aqui?
Até o momento, os mohawks não tinham querido admitir se tinham ao Roger ali ou não.
-Bom, o velho descarado não quer admiti-lo por medo de que o libere. Mas o têm aqui ou não muito longe da aldeia. Se o Conselho aprovar o trato, intercambiaremos o uísque pelo homem em três dias e iremos. —Lançou um olhar às nuvens que cobriam as distantes montanhas-. Espero que isso que vem seja chuva e não neve.
—Crie que há alguma possibilidade de que o Conselho não aceite?
Suspirou profundamente e se passou uma mão pelo cabelo. Tinha-o solto sobre os ombros; era evidente que a negociação tinha sido difícil.
-Se, há-a. Querem o uísque, mas são cautelosos. Alguns dos anciões estão em contra do negócio, por medo ao dano que o licor pode causar na tribo. Em troca os jovens estão todos de acordo. Há outros partidários de ficar o uísque e, embora não o bebam por seus efeitos nocivos, utilizá-lo para negociar.
-Todo isso lhe disse isso Wakatihsnore?
Estava surpreendida. O sachem Atos Rápidos parecia muito frio e matreiro para tanta franqueza.
-Não, foi Ian. -Jamie sorriu ligeiramente—. O moço tem grandes condicione como espião. conquistou todos os corações da aldeia e encontrado uma jovem a que gosta de muito. Lhe explicou o que opina o Conselho das Mães.
Abriguei-me com minha capa. Nossa posição entre as rochas nos isolava de toda interrupção, mas fazia frio.
-E o que é o que diz o Conselho das Mães?.
Uma semana com elas me tinha dado uma idéia da importância da opinião das mulheres na vida da aldeia. Embora não tomavam decisões diretas em assuntos gerais, muito poucas coisas se faziam sem sua aprovação.
-Querem que ofereça algum resgate distinto ao uísque e não estão seguras de querer ceder ao homem; mais de uma está encamada com ele. Não lhes importaria adotá-lo.
Jamie torceu a boca e eu, em que pese a minha preocupação, não pude evitar uma gargalhada.
-Roger é um moço muito arrumado -pinjente.
-Já o vi -disse cortante-. A maioria dos homens pensa que é um horrível bastardo peludo. É obvio, pensam o mesmo sobre mim. -Como conhecia o desgosto dos índios pelas barbas, barbeava-se todas as manhãs.-E sendo assim, isso pode ser o que marcar a diferença.
-O que, o aspecto do Roger? Ou o teu?
-O fato de que mais de uma dama queira ao sujeito. A amiga do Ian lhe há dito que sua tia acredita que podia ser perigoso ficar com o Roger, e que seria melhor devolvê-lo antes de que haja problemas entre as mulheres.
Esfreguei-me os lábios tratando de evitar a risada.
-E os homens do Conselho sabem que há mulheres interessadas nele?.
-Não acredito. por que?
-Porque se se inteirem-se o darão grátis.
Jamie soprou, mas me olhou dúbio.
-Sim, talvez. Farei que Ian o mencione entre os jovens.
-Disse-me que as mulheres querem que ofereçamos outra coisa em lugar de uísque. Mencionou-lhe a opala a Atos Rápidos?
Jamie se mostrou interessado.
-Sim, fiz-o. Não se teria surpreso mais se tivesse tirado uma serpente do focinha!. ficaram muito nervosos, tanto pelo aborrecimento como pelo medo. Acredito que me teriam atacado se não fora porque já tinha mencionado o uísque.
Procurou em sua casaca e tirou a opala deixando-o cair em minha mão.
-Melhor que o você tenha, Sassenach, e que não o ensine a ninguém.
-Que estranho -pinjente, olhando a pedra com seu petroglifo em forma de espiral- Então para eles tem algum significado.
-OH, sim -afirmou-. Não posso te dizer qual, mas sim que não gostam de nada. O chefe guerreiro ordenou que lhe dissesse de onde a tinha tirado e lhe disse que lhe tinha encontrado isso. Isso os acalmou um pouco, mas estavam agitados.
-por que quer que a eu tenha?
A pedra estava quente.
-Como te disse, quando a viram se turvaram e se zangaram. Um par deles fizeram um gesto para me golpear mas retrocederam. Observei-os com a pedra na mão e me dava conta de que tinham medo, de que não me tocariam enquanto a tivesse comigo.
Fechou meu punho sobre a pedra.
-Guarda-a. Se houvesse algum perigo a sacas.
-Você enfrentará a mais perigos que eu -protestei, tratando de lhe devolver a pedra.
-Não, agora que sabem que há uísque não me farão mal sem saber onde está.
-Mas por que vou estar eu em perigo?
A idéia me turvava. As mulheres tinham sido cautelosas mas não hostis e os homens da aldeia me desdenhavam totalmente.
Jamie franziu o sobrecenho e olhou para a aldeia. De onde estávamos se via muito pouco.
-Não lhe posso dizer isso Sassenach. Só que fui caçador e também caçado. Sabe o que se sente quando há algo estranho perto? Os pássaros deixam de cantar e o ar fica imóvel. Há algo semelhante aqui. Acontece algo que não posso ver. Não acredito que esteja relacionado conosco... e entretanto-.- sinto-me incômodo -disse bruscamente-. E vivi muito para deixar a um lado essa sensação.
Ian se reuniu conosco e reforçou a opinião do Jamie.
-Sim, é como sustentar o bordo de uma rede que está inundada na água. A gente pode sentir os movimentos sem ver o pescado, mas sabe que está ali, embora não onde. -O vento despenteou seu cabelo castanho e as mechas lhe tamparam a cara. O apartou com ar distraído-. Algo acontece entre a gente, algum desacordo. E algo aconteceu ontem à noite na Casa do Conselho; Emily não me quis responder quando lhe perguntei, só olhou para outro lado e me disse que não tinha nada que ver conosco. Mas eu acredito que, de algum modo, está relacionado conosco.
-Emily?
Jamie arqueou uma sobrancelha e Ian sorriu.
-Chamo-a assim porque é mais curto -disse-. Seu nome é Wakyo'teyensnonhsa, que significa «A que trabalha com as mãos". A pequena Emily tem habilidade para esculpir. Olhem o que fez para mi.
Com orgulho, tirou de! bolso uma pequena lontra esculpida em talco branco. O animal estava alerta, com a cabeça levantada; deu-me risada.
-Muito bonito. -Jamie o examinou com aprovação—. Deve lhe gostar de muito a essa moça, Ian.
-Sim, bom, também eu gosto dela, tio -disse Ian com tom despreocupado, mas suas bochechas se ruborizaram. Tossiu e trocou de lema-. Diz que acredita que o Conselho poderia inclinar-se um pouco a nosso favor se lhes dermos a provar o uísque. Se estiver de acordo, procurarei um barril e esta noite faremos um pequeno ceilidh. Emily se encarregará de tudo.
Jamie arqueou as sobrancelhas e depois de um momento assentiu,
-vou confiar em seu julgamento, Ian -disse-- Na Casa do Conselho?
Ian sacudiu a cabeça.
-Não. Emily diz que será melhor fazê-lo na casa comunitária de sua tia, a anciã Tewaktenyonh, a Mulher Bonita.
-Ao que...? -perguntei surpreendida.
-A Mulher Bonita -explicou, limpando-a nariz com a manga- é uma mulher com influencia sobre a aldeia que tem poder para decidir o que se faz com os cativos, e a chamam assim tenha o aspecto que tenha. Poderemos tratar de convencer a de que aceite nosso trato.
-Suponho que o cativo liberado a deve ver formosa -disse Jamie com ironia-. Bom, adiante então. Pode ir você sozinho a procurar o uísque?
Ian assentiu e se voltou para partir.
-Espera um minuto, Ian -pinjente, e lhe mostrei a opala-. Pode lhe perguntar ao Emily se souber algo sobre esta pedra?
-Sim, tia Claire, o perguntarei. Vamos, Cilindro!.
Assobiou e Cilindro, que tinha estado farejando entre as rochas, saiu detrás de seu amo. Jamie os observou com certa preocupação.
-Sabe onde passa as noites Ian, Sassenach?
-Se te referir à casa, sim. Se quer saber na cama de quem, não. Mas posso imaginar o
-Mmm. -endireitou-se e sacudiu a cabeça-. Vamos, Sassenach, quero que retorne à aldeia.
O ceilidh do Ian começou pouco depois do anoitecer. Os convidados eram os membros mais proeminentes do Conselho, quem foi chegando de um em um para oferecer seus respeitos ao sachem Duas Lanças, que estava sentado na fogueira principal com o Ian e Jaime. Uma jovem bonita e magra, que supus era a Emily do Ian, estava detrás com o barril de uísque.
Com a exceção do Emily, as mulheres não intervinham na prova do uísque. Não obstante, aproximei-me de observar e me sentei ante uma das pequenas fogueiras para ajudar a duas mulheres com as cebolas, enquanto intercambiava ocasionais frases amáveis em uma mescla de tuscarora, inglês e francês.
A mulher ante cujo fogo me sentei me ofereceu cerveja e um preparado com farinha de milho que aceitei com amabilidade, embora meu estômago estava fechado pelos nervos.
Jogávamo-nos muito naquela festa improvisada. Roger estava ali, em algum lugar da aldeia. Isso sabia. Estava vivo e esperava que estivesse bem, ao menos o suficiente para viajar.
depois de que Duas Lanças dissesse algumas palavras, deu começo a festa. A moça media as porções de uísque, não servindo-o em taças, a não ser tomando um gole e cuspindo-o em cada jarra antes das entregar aos homens.
Olhei de esguelha ao Jamie, quem por um momento pareceu surpreso, mas logo aceitou e bebeu sem vacilar.
Algo distraiu minha atenção, a chegada de um menino que se sentou ao lado de sua mãe. A mulher o observou com preocupação. Pude ver que o menino tinha o ombro esquerdo deslocado e por isso se sentava torcido, fazendo gestos de dor.
Fiz-lhe um gesto à mãe, quem vacilou com o rosto carrancudo. O menino deixou escapar um gemido e ela o abraçou. Por uma inspiração repentina tirei o amuleto do Nayawenne.
A mulher não podia saber de quem era, mas sim o que era. E o fez, porque seus olhos se abriram ao ver a bolsita de couro.
-Je sais une sorciere. C'est medique, a -pinjente docemente.
«Confia em mim —pensei—. Não tenha medo».
O menino me olhou com os olhos muito abertos pelo assombro. As mulheres intercambiaram olhadas para fixar-se finalmente na anciã.
Enquanto seguia olhando ao menino, sorria-lhe e lhe apertava a mão com a pedra, esperando a permissão da mãe. Uma vez que foi autorizada pela anciã, a mãe me entregou o menino.
Foi muito fácil colocar de novo a articulação. Era pequeno e o dano não era grave; era uma operação muito satisfatória pois a dor se aliviava imediatamente. Moveu o ombro, sorriu-me timidamente e me devolveu a pedra que lhe tinha colocado na mão.
Enquanto isso a festa avançava. Ian cantava em gaélico, desafinando enquanto um par de índios lhe faziam coro.
Senti um olhar nas costas e me dava a volta para ver que Tewaktenyonh me observava desde seu site. Assenti e ela se inclinou para falar com uma de quão jovens a rodeavam.
A moça se levantou e se aproximou.
-Minha avó pergunta se quer ir até onde está ela.
Surpreendi-me para ouvi-la falar em inglês, embora Onakara nos havia dito que alguns dos mohawk conheciam esta língua, mas que só o utilizavam por necessidade.
Pu-me em pé e a acompanhei, me perguntando o que necessitaria a Mulher Bonita. Eu já tinha minhas próprias necessidades, pensar no Roger e Brianna.
A anciã me saudou, fez um gesto para que me sentasse e, sem me tirar os olhos de cima, falou com sua neta.
-Minha avó pergunta se pode ver sua medicina.
-É obvio.
-É a esposa de Arbusto Ursos?.
-Sim. Os tuscarora me chamam Corvo Branco -pinjente.
A moça se sobressaltou e traduziu rapidamente à anciã.
A mulher me devolveu a pedra rapidamente. Logo falou com sua neta sem deixar de me olhar.
-Minha avó tinha ouvido que seu homem também tem uma pedra brilhante. Quer saber mais sobre isso, como é e de onde a tirou.
-Pode vê-la -pinjente e, ante os olhos surpreendidos da moça, tirei a opala e o tendi à anciã que o observou sem tocá-lo.
«Ela o viu antes. Ou ao menos, sabe o que é», pensei. Não necessitei que a moça fizesse de intérprete pois os olhos da anciã me fizeram claramente a pergunta.
-Como chegou a suas mãos? -era a pergunta que a jovem repetiu.
-Chegou-me em um sonho -pinjente, sem saber como explicá-lo melhor.
A anciã suspirou. O medo não abandonava seu olhar, mas havia algo mais: curiosidade, talvez? Disse algo e outra das mulheres se levantou e foi procurar um canasto que deixou ante ela. Esta começou a cantar com voz quebrada pela idade, mas ainda forte. esfregou-se as mãos ante o fogo e delas caíram umas partículas de cor castanha que se converteram em fumaça que cheirava a tabaco.
Tewaktenyonh falou com os olhos cravados em mim e a moça me traduziu.
-me conte esse sonho.
Era verdadeiramente um sonho o que lhe ia contar, ou uma lembrança que revivia com a fumaça de um tronco ardendo? Não importava; tudas minhas lembranças eram sonhos. Disse-lhe o que pude. A tormenta, meu refúgio no cedro avermelhado, a caveira enterrada com a pedra e o sonho, a luz na montanha e o homem com o rosto pintado de negro.
A anciã a Índia se inclinou com ar tão assombrado como sua neta.
-Viu ao Portador do Fogo? -deixou escapar a moça—. Viu seu rosto?
Olhou-me como se eu pudesse ser perigosa.
A anciã disse algo imperativo, com gesto de interesse.
-Minha avó diz: pode dizer como era ele, que roupa levava?
-Nada. Um tanga. E ia pintado.
-Pintado. Como? -perguntou a moça em resposta ao que disse sua avó.
Descrevi o corpo pintado do homem com todo o cuidado que pude. Não foi difícil; se fechava os olhos ainda podia vê-lo.
-E seu rosto era negro, da frente até a mandíbula -terminei, abrindo os olhos.
Enquanto descrevia ao homem, meu intérprete se mostrou visivelmente turvada e olhava com medo a sua avó. Quando terminei, a anciã permaneceu em silêncio, com os olhos cravados em mim. Finalmente assentiu e agarrou o colar de contas que lhe pendurava das costas, que era sua árvore de família, o símbolo de sua função. Myers me tinha falado disso.
-Na festa do Milho Verde, faz muitos anos, um homem chegou do norte. Podíamos entendê-lo, mas falava de forma estranha e só nos disse que seu clã era o da Tartaruga. Era um homem selvagem mas valente. Um bom caçador e um guerreiro. A todas as mulheres gostava, mas não se atreviam a aproximar-se muito. Os homens não eram tão cuidadosos, os homens nunca o são. Falavam, bebiam e fumavam com ele. Falava-lhes desde meio-dia até a noite e logo, ante as fogueiras, falava da guerra e seu rosto era sempre feroz. Sempre a guerra. Não contra os da aldeia do lado, não. Terei que matar a todos os ou'seroni antes de que fora muito tarde, dizia. Muito tarde para que?, perguntavam os homens. E para que a guerra, se não necessitarmos nada? Isso era antes dos franceses, sabe? É a última oportunidade, dizia-lhes. Eles seduzirão com o metal, com suas facas e rifles, e nos destruirão. Matem agora ou eles lhes comerão. Meu irmão, que era o sachem, e meu outro irmão, que era Chefe guerreiro, disseram que eram loucuras. Os brancos não comiam os corações de seus inimigos, nem sequer na batalha.
"Os jovens lhe escutavam. Eles escutam a qualquer que fale forte, mas os anciões o olhavam com desconfiança e não diziam nada. Ele sabia -continuou a jovem e a anciã assentiu com firmeza-, sabia o que aconteceria, que os ingleses e os franceses foram lutar entre eles e pedir nossa ajuda. Tawineonawira, Dente de Nutria, era seu nome, disse-me: você vive no momento. Conhece o passado, mas não olha ao futuro. Seus homens dizem: não necessitamos nada e não querem mover-se. Não se dão conta de nada pela cobiça e a ociosidade.
-Não é verdade, disse-lhe. Não somos ociosos, trabalhamos. E riu de mim, mas seus olhos eram tristes. Não pode ver o bastante longe, disse-me. Perguntei-lhe até onde podia ver e não me respondeu.
Eu conhecia a resposta e me pôs a pele de galinha. Sabia muito bem até onde podia ter visto e quão perigoso isso era.
-Mas nada do que eu dizia servia. Dente de Nutria se zangava cada vez mais. Um dia veio tudo pintado e dançou a dança da guerra e muitos Jovens o seguiram. Meu irmão se reuniu na loja com o Conselho e decidiu que Dentes de Lontra devia deixar a aldeia. Que fizesse o que tivesse que fazer, mas que não íamos deixar que nos trouxesse a destruição. Causava problemas entre a gente e devia partir. zangou-se mais que nunca e gritou coisas terríveis. Depois ficou muito quieto e nos assustamos. Sem comer e sem dormir seguiu falando durante dois dias, logo se foi. Mas retornou outra vez. escondia-se no bosque e retornava de noite, magro e faminto, com os olhos brilhantes como uma raposa e não nos deixava dormir. Começamos a acreditar que tema em seu interior um espírito maligno, até que meu irmão, o Chefe guerreiro, disse-lhe que devia ir-se ou o matariam.
A anciã fez uma pausa em sua história.
-Era um estrangeiro, mas nunca soube. Acredito que nunca o entendeu.
Um calafrio percorreu minhas costas. Um estrangeiro. Um índio por seu rosto, por sua linguagem. Um índio com empastelamentos nos dentes. Não, ele não tinha entendido, ele tinha acreditado que eles eram seu povo. Sabendo o que trazia o futuro, tinha tratado de salvá-los. Como ia pensar que lhe fariam mal? Mas o fizeram. Ataram-no a um poste no centro da aldeia e pintaram sua cara com carvão.
-O negro é para a morte; aos prisioneiros que vão matar sempre tosse pintam assim. Sabia isso quando te encontrou com o homem na montanha?
Neguei com a cabeça, muda.
Torturaram-lhe com paus afiados e com tições acesos. Suportou-o sem gritar e o deixaram pacote ao poste.
-Pela manhã se foi.
O rosto da anciã era indecifrável. Se lhe tinha gostado que aquele homem escapasse ou não, era seu segredo.
-Pinjente que não o seguissem, mas meu irmão disse que não era bom e que retornaria. Uma partida de guerreiros saiu para buscá-lo; não foi difícil seguir o rastro de sangue. Perseguiram-no para o sul. Mas era forte e escapava. Durante quatro dias o seguiram e, finalmente, apanharam-no.
Viu a pergunta em meus olhos e assentiu.
-Meu irmão, o chefe guerreiro, esteve ali e me contou isso.
Estava sozinho e desarmado, não tinha possibilidades e sabia. Um homem lhe golpeou a boca com uma lança mas seguiu falando, sangrando e com os dentes quebrados. Dizia que seríamos esquecidos, que não existiria a nação dos iroqueses e que ninguém contaria nossas histórias. Que tudo o que tínhamos sido se perderia. Retornaram à aldeia, mas sua voz os seguia. De noite não podiam dormir e pelo dia ouviam gritos e gemidos. Até que, finalmente, meu irmão disse que o homem era um bruxo.
A anciã me olhou: eu havia dito que era uma bruxa. Traguei saliva e apertei o amuleto que levava no pescoço.
-Meu irmão disse que terei que lhe cortar a cabeça para que não falasse mais. Um homem valente o faria e o enterraria longe. -Sorriu ligeiramente-. Esse homem era meu marido.
Enterrou a cabeça baixo as raízes do cedro vermelho e já não se ouviu a voz. Meu marido retornou à aldeia e ninguém mais nomeou a Dentes de Lontra até o dia de hoje.
Traguei saliva e tratei de respirar profundamente. O círculo de bebedores se tranqüilizou. Dois homens já estavam médio dormidos e outro se levantou cambaleando-se.
-E isto? -pinjente, mostrando a opala-. Tinha-o visto? Era dele?.
A anciã se inclinou para tocar a pedra mas não o fez.
-Há uma lenda -disse a moça sem deixar de olhar a pedra—. As serpentes mágicas levam pedras em suas cabeças. Se um arbusto uma e agarra a pedra, terá grande poder.
A anciã falou súbitamente assinalando a pedra. A moça repetiu.
-Era dela, chamava-a billé-bueltá.
Olhei a intérprete e sacudiu a cabeça.
-Billé-bueltd -disse com claridade-. Não é uma palavra inglesa?
Neguei com a cabeça.
A anciã me olhou com ar pensativo.
-por que te falou? por que te deu isso?
-Não sei -respondi, mas não pude dissimular minha expressão. Soube que mentia, mas como lhe podia dizer a verdade? Podia lhe dizer acaso quem tinha sido Dentes de Lontra? Que suas profecias eram verdadeiras?
-Acredito que talvez era parte de mi... família -pinjente finalmente, pensando no que Poliyanne me havia dito sobre os fantasmas dos antepassados de cada um. Não sabia se era antepassado ou descendente. Se não o era meu, era-o de alguém como eu.
-Ele te enviou para mim para ouvir isto. Estava equivocado –declarou com confiança- Meu irmão diz que não devemos falar dele, devemos esquecê-lo. Mas um homem não é esquecido enquanto fiquem outros dois baixo o céu. Um para contar a história e outro para ouvi-la.
Tocou minha mão, guardando-se de tocar a pedra.
-Eu sou uma. Você é a outra. Ele não foi esquecido.
Fez um gesto à moça para que fora a procurar comida e bebida.
Quando me levantei para retornar à moradia onde nos alojávamos, olhei para a festa. O terreno estava talher de corpos que roncavam. Jamie, Ian e a moça já não estavam ali.
Jamie me esperava fora. Seu fôlego cheirava fortemente a uísque e a tabaco.
-Parece que te divertiu -pinjente, agarrando seu braço-. houve algum progresso ?
-Isso acredito. Saiu bem, Ian tinha razão; Deus lhe benza-disse, enquanto caminhávamos-. Acredito que estarão dispostos a fazer o trato. E você, Sassenach? Esteve falando com a anciã. Sabia algo sobre a pedra?
-Sim, vamos dentro e lhe contarei isso.
Entramos. Eu tinha a opala bem apertada em minha mão. Eles não sabiam por que o chamava billé-bueha, mas eu sim. O homem com empastelamentos nos dentes, chamado Dentes de Lontra, tinha vindo a levá-los a guerra para salvar a nação. Eu sabia o que queria dizer billé-bueha. Era seu bilhete de volta sem usar. Minha herança.
River Run, março de 1770
Fedra me trouxe um vestido de seda amarela, com a saia muito ampla, que tinha sido da Yocasta.
-Esta noite a companhia é melhor que a do velho senhor Cooper ou a do advogado Forbes -disse a pulseira com satisfação-. Vem um lorde de verdade. Que lhe parece?
-Que lorde? Não necessito que me ponha todo isso para ocultar minha barriga.
Fedra se endireitou para contemplar a Brianna entre as dobras de seda amarela.
-Não o necessita, né? -disse com tom reprobador-. Com uma barriga de seis meses? No que está pensando? Acredita que vou deixar que se presente assim?
-E que mais dá? Todo o condado sabe que vou ter um filho. Não me surpreenderia que esse tal senhor Urmstone dissesse um sermão contra mía.
Fedra deixou escapar uma breve gargalhada.
-Já o fez -disse-. Faz dois domingos. Mickey e Drusus estavam ali v lhes pareceu divertido, mas sua tia não pensou o mesmo e enviou ao advogado Forbes para acusar o de calúnia; mas o ancião reverendo Urmstone lhe disse que não podia ser calunia o que era verdade.
Brianna contemplou à criada.
-O que é o que disse sobre mim?
-Não queira sabê-lo -disse sombria-. Que todos saibam não é o mesmo a que ande exibindo a barriga, assim me deixe arrumá-la.
Brianna permitiu que a mulher a enfaixasse, prometendo-se a si mesmo que se tiraria todo aquilo assim que partirá. Ao diabo com aquele lorde, quem quer que fosse.
—Quem é esse lorde que deve jantar? -perguntou pela terceira vez.
-É lorde John William Grei, da plantação do Mount Josiah, na Virginia. É um amigo de seu pai, ou ao menos, isso é o que diz a senhorita Eu. Bom, já está. Por sorte tem um bonito peito; este vestido é especial para realçá-lo.
Brianna confiou em que isso não significasse que o vestido não lhe cobriria os seios que a vendagem lhe tinha levantado e pareciam apontar ao teto. Mas não foi essa preocupação o que lhe distraiu do bate-papo da Fedra, a não ser a frase casual: «É um amigo de seu pai».
Yocasta nunca convidava a muita gente, mas aquela noite havia mais convidados que de costume: o advogado Forbes com sua irmã solteira; o senhor MacNeil e seu filho; o Juiz Alderdyce, sua mãe e um par de filhos solteiros do Farquard Campbell- Nenhum era o lorde do que Fedra tinha falado.
Brianna sorriu para si com amargura. «Deixa-os que olhem», pensou, endireitando as costas.
Sua aparição foi recebida com tanta cordialidade que se envergonhou de seu cinismo. Eram homens e mulheres bondosos, incluída Yocasta, e a situação, depois de tudo, não era culpa dela.
Não obstante, desfrutou da expressão que o juiz tratou de ocultar ao ver seu ventre. Yocasta poderia propor mas a mãe do juiz disporia, disso não cabia dúvida. Brianna saudou a senhora Alderdyce com um doce sorriso.
O senhor MacNeill ocultou uma careta de diversão e a saudou com uma inclinação, perguntando por sua saúde sem amostras de desconforto. Quanto ao advogado Forbes, recebeu-a com sua acostumada suavidade e discreta profesionalidad.
-Ah, senhorita Fraser! -disse- Estávamo-la esperando. A senhora Alderdyce e eu discutíamos amigavelmente sobre um tema de estética. Você, com seu instinto para a beleza, poderá me dar sua valiosa opinião.
Agarrou-a do braço, afastando a do MacNeill, que arqueou uma sobrancelha, para conduzi-la até a chaminé. Em uma mesa havia quatro caixas de madeira, cada uma com uma pedra preciosa colocada sobre veludo azul.
-Estou pensando em comprar uma destas pedras –explicou Forbes- para engastá-la em um anel. Enviaram-nas de Boston. -Sorriu a Brianna com evidente satisfação por ter tirado um ponto na competência com o MacNeill-. Me diga, querida, qual delas prefere? A safira, a esmeralda, o topázio ou o diamante?
Pela primeira vez desde seu embaraço, Brianna sentiu náuseas. Sua cabeça parecia flutuar e lhe adormeciam os dedos. Safira, esmeralda, topázio, diamante. O anel de seu pai tinha um rubi. Cinco pedras de poder, os pontos do pentagrama do viajante, a garantia de uma passagem segura. Para quantos? Sem pensá-lo pôs uma mão protetora sobre seu ventre.
deu-se conta da armadilha do Forbes. Deixava-a escolher e dava de presente a pedra em público, forçando-a, acreditava ele, a aceitá-lo ou a rechaçá-lo protagonizando uma desagradável cena. Geraid Forbes não sabia nada sobre mulheres, pensou Brianna.
-Ah... não queria aventurar uma opinião sem ouvir antes a da senhora Alderdyce -disse, obrigando-se a sorrir cordialmente à mãe do juiz, quem a olhava entre surpreendida e agradecida pela deferência.
A senhora Alderdyce estendeu seu dedo artrítico para a esmeralda e explicou os motivos de sua eleição, mas Brianna não emprestava atenção. Um súbito impulso selvagem se apoderou dela.
Se dizia sim, agora, essa noite, enquanto ele ainda tênia as quatro pedras... poderia enganá-lo, beijá-lo e roubar-lhe Sim, podia... E logo, o que? Escapar às montanhas com as pedras? Deixar a Yocasta com a desonra e fugir como uma benjamima? E como ia chegar às Antilhas antes de que nascesse o menino? Contou os meses mentalmente sabendo que era uma loucura, mas... podia fazê-lo.
As pedras brilhavam: tentação e salvação. Todos as olhavam entre murmúrios de admiração.
Embora não o quisesse, o plano se desenvolvia ante seus olhos. Podia roubar um cavalo e dirigir-se ao vale Yadkin. face à proximidade do fogo sentiu um calafrio. Podia esconder-se nas montanhas e esperar a que retornassem com o Roger. Estaria sacrificando sua única possibilidade de retornar, esperando a um homem que podia estar morto e que, se não o estava, podia rechaçar a seu filho?.
-Senhorita Fraser?
Forbes esperava ansioso.
-São todas muito formosas -disse, surpreendida por sua própria frieza-, Mas não posso escolher nenhuma porque não sinto uma preferência especial pelas pedras preciosas. Temo-me que meus gostos são muito simples.
Captou um brilho de sorriso no rosto do MacNeill e o rubor no do Forbes.
-Acredito que não devemos esperar mais para o jantar -murmurou Yocasta em seu ouvido-. Se se atrasou lorde...
Ulises apareceu naquele instante na porta, com. seu elegante librea. Com voz melíflua disse:
-Lorde John Grei, senhora.
E se retirou a um lado.
Yocasta suspirou com satisfação e empurrou a Brianna para a figura esbelta que aguardava.
-Será sua companheira para o jantar, querida.
Brianna olhou para a mesa, mas as pedras preciosas já tinham desaparecido.
Lorde John Grei a surpreendeu. Tinha ouvido sua mãe falar dele: soldado, diplomático e nobre; assim esperava um homem alto e imponente. Em lugar disso se encontrou com um homem bastante mais baixo que ela, de compleição magra, com olhos grandes e belos e um rosto e uma pele que como únicos rasgos masculinos tinham a firmeza da boca e a mandíbula.
Pareceu assombrado ao vê-la; muita gente se surpreendia ante sua altura; mas logo desdobrou seu encanto e falou sobre viagens, admirou os quadros que Yocasta tinha no comilão e lhes transmitiu as notícias que tinha sobre a situação política da Virginia. Mas não mencionou a seu pai e Brianna se sentiu agradecida por isso.
Brianna os ouvia falar e pensava que eram todos escoceses, bons mas práticos. Yocasta a queria, mas era evidente que pensava que seguir esperando era uma loucura. por que sacrificar a possibilidade de um bom matrimônio sólido e respeitável pela esperança do amor?
O mais terrível era que ela também sabia que era uma loucura. Se seus pais voltavam Y... e Roger não vinha com eles... Possivelmente não encontrassem aos índios que o tinham levado. Ou o faziam e resultava que Roger tinha morrido pelas torturas infligidas ou por alguma enfermidade. Ou se negava a retornar porque não desejava voltar a vê-la. Ou retornava pelo absurdo sentido da honra escocesa, decidido a aceitá-la, mas odiando-a durante o resto de sua vida. Ou retornava, via o menino Y... Ou não retornava nenhum deles e ela viveria ali, para sempre, só com sua culpa, atada por um cordão umbilical podre pelo peso morto daquele menino.
-Senhorita Fraser? Senhorita Fraser, encontra-se bem?
-Não muito -respondeu-. Acredito que me vou deprimir.
E o fez, arrastando porcelana e toalhas em sua queda.
Tudo tinha trocado outra vez, pensou, rodeada do afeto e a preocupação da gente. Quando finalmente a deixaram sozinha, a verdade apareceu em sua mente. Era o momento de chorar por todas suas perdas: por seu pai e seu apaixonado, por sua família e sua mãe, pela perda do tempo, do lugar e de tudo o que deveu ser e nunca seria.
Mas não podia chorar. Tentava-o sem consegui-lo. Bom, ela também era meio escocesa, murmurou para se. E também era teimosa. Eles retornariam, todos, sua mãe, seu pai e Roger.
A porta se abriu e apareceu a silhueta da Yocasta.
-Brianna?
-Estou aqui, tia.
Yocasta entrou na habitação, seguida por lorde John e Ulises, com uma bandeja com o chá.
-Como está, criatura? Faço chamar o doutor Fentiman?
Passou uma mão pela frente da Brianna.
-Não! -Conhecia-o e não gostava-. Né... não, obrigado. Já estou bem. Foi só um enjôo
-Ah, bom. -Yocasta se voltou para lorde John-. Lorde John parte amanhã ao Wilmington e queria despedir-se, se se sentir bem.
-Sim, é obvio.
sentou-se e apoiou os pés no chão. Sua tia devia estar desiludida, mas podia ser amável.
Ulises deixou a bandeja e saiu detrás de seu Yocasta deixando-os sozinhos.
Sem esperar convite, agarrou uma banqueta e se sentou.
-Está bem, senhorita Fraser? Não queria vê-la desabar-se entre as taças de chá.
Sorriu e Brianna se ruborizou.
-Estou bem -disse cortante-. Tinha algo que me dizer?
Não lhe surpreendeu sua brutalidade.
-Sim, mas pensei que talvez preferiria que não o fizesse diante de todos. Tenho entendido que está interessada no paradeiro de um homem chamado Roger Wakefield.
-Se. Como sabe-.? Sabe onde está?
-Não. -Viu que o rosto da jovem trocava e lhe agarrou uma mão-. Não, sinto muito. Seu pai me escreveu faz uns três meses me pedindo ajuda para encontrar a esse homem. Lhe ocorreu que podia haver-se embarcado e me ocupei de averiguá-lo.
Sentiu uma onda de remorso ao dar-se conta de tudo o que tinha feito seu pai para encontrar ao Roger.
-Não está em nenhum navio.
surpreendeu-se ante a segurança da Brianna.
-Não encontrei provas de que estivesse entre o Jamestown e Charleston. Mas amanhã viajo ao Wilmington; cabe a possibilidade de que tenha subido a bordo sem que o registrassem até chegar a porto.
-Não é necessário que vá- Sei onde está.
Em poucas palavras lhe narrou os fatos.
-Jamie, seu pai, quer dizer, seus pais foram resgatar a esse homem dos iroqueses?
Sem perguntar serve duas taças de chá e lhe entregou uma
-Sim, eu queria ir com eles, mas...
-Sim, já vejo -disse com delicadeza. Olhou de esguelha seu ventre e tossiu-. Suponho que há certa urgência em encontrar ao senhor Wakefield.
Brianna riu sem nenhuma alegria.
-Posso esperar. Pode me dizer algo, lorde John? ouviu falar alguma vez de um matrimônio de palavra?
-Sim -disse lentamente-. Um costume escocês: um matrimônio temporário, não é assim?
-Sim. O que quero saber é se aqui é legal.
Lorde John se esfregou o queixo com gesto pensativo.
-Não sei -disse finalmente-. Nunca o considerei do ponto de vista da lei. Mas a qualquer casal que convive como marido e mulher lhes pode considerar um matrimônio, segundo o direito consuetudinário. Acredito que o matrimônio de palavra pode ser um caso similar.
-Poderia ser, salvo que nós, obviamente, não vivemos juntos -disse suspirando-. Eu acredito que estou casada, mas minha tia não. Segue insistindo em que Roger não retornará, ou que embora o faça, não estou legalmente unida a ele. Inclusive para o costume escocês, não estou ligada a ele mais que por um ano e um dia. Quer me escolher um marido e a fé que o está tentando. Quando me anunciaram sua chegada, pensei que se tratava de outro candidato.
Lorde John pareceu divertir-se ante a idéia.
-Ah, isso explica os convidados ao jantar. Esse Juiz, Alderdyce, parecia muito interessado em você.
-Não lhe servirá de muito -disse Brianna com desprezo—. Teria que ter visto as olhadas que me lançava a senhora Alderdyce. Ela não permitirá que seu corderito, que deve ter como quarenta anos, perca-se com a rameira local. Acredito que não lhe deixará voltar.
Grei sorriu zombador e se levantou para servir uma taça de xerez.
-Ah! Bom, embora admire sua estratégia, senhorita Fraser, lamento lhe informar de que suas táticas não servem para o terreno que escolheu.
-O que quer dizer com isso?
-A senhora Alderdyce- Eu também me fixei em como a observava durante a velada. Mas me temo que você entendeu mal suas intenções. Não a olhava com ultrajada respeitabilidade, a não ser com cobiça.
Brianna se endireitou em seu assento.
-Como?
-Cobiça de abuelita. Já sabe, o desejo de uma mulher maior de ter um neto em suas saias. -levou-se a taça até o nariz e cheirou-. Que delícia. Faz dois anos que não provo um xerez decente.
-Então, a senhora Alderdyce pensa que... que como posso ter filhos poderei lhe dar netos? Mas isso é ridículo! O juiz pode escolher qualquer moça sã e de bom caráter —acrescentou com ironia- e estar seguro de que terá filhos.
-Bom, não. Acredito que ela sabe que seu filho não pode, ou não quer, que para o caso é o mesmo. -Olhou-a com seus olhos celestes sem pestanejar-. Você mesma o disse, tem quarenta anos e é solteiro.
-Quer dizer...? Mas é um juiz!
deu-se conta da tolice de sua exclamação e Grei riu.
-É o mais provável. Você tem razão, poderia escolher a qualquer moça. Mas não o fez... Acredito que a senhora Alderdyce se deu conta de que casar a seu filho com você é a melhor e talvez a única possibilidade de ter o neto que tanto deseja.
-Maldição! Estou condenada. Casarão-me com qualquer, faça o que faça!
-me permita duvidar disso -disse com um sorriso-. Por isso vi, você tem a brutalidade de sua mãe e o sentido da honra de seu pai. E todo isso será suficiente para preservá-la.
-Não me fale do sentido da honra de meu pai -disse cortante—. O me meteu nesta confusão!
-Impressiona-me -disse com amabilidade e muita calma.
-Sabe perfeitamente que não é isso o que queria dizer!
-Minhas desculpas, senhorita Fraser -disse, escondendo um sorriso-. Então, o que queria dizer?
-Referia a este problema em especial, que me ofereçam como se fora um gatinho para que alguém me recolha. E a que me tenha deixado sozinha aqui —terminou, com voz inesperadamente tremente.
-por que está sozinha aqui? Pensei que sua mãe poderia haver...
-Ela queria, mas não a deixei. Porque ela,.. o que passa é que ele... Isto é uma confusão!
Deixou cair a cabeça entre as mãos, a ponto de chorar.
-Já vejo. É muito tarde e, se me perdoar a observação, precisa descansar.
levantou-se e lhe pôs uma mão nas costas. Foi um gesto amistoso e não condescendente, como o tivesse sido de outro homem.
-Como parece que minha viagem ao Wilmington é desnecessário, acredito que vou aceitar o amável convite de sua tia e ficarei aqui uns dias. Voltaremos a falar e talvez encontremos algum paliativo a sua situação.
A poltrona-privada era um magnífico móvel de mogno, muito adequado para uma fria noite de chuva como aquela. Brianna se levantou meio dormida e se sentou aliviando sua bexiga com prazer.
antes de voltar-se para deitar, deteve-se ante a cama enrugada para olhar a beleza das colinas. Os cristais da janela estavam gelados; não nevava, mas era uma noite terrível. O que fariam nas montanhas? Teriam encontrado ao Roger? estremeceu-se e sentiu o irresistível desejo de voltar para a cama quente, mas se dirigiu para a porta e agarrou sua capa.
As urgências do embaraço faziam necessário que usasse a poltrona em sua habitação, mas tinha decidido que enquanto ela pudesse caminhar nenhuma criada tiraria seu bacinilla. abrigou-se com a capa, tirou o recipiente da poltrona e saiu ao corredor. A chuva geada castigou seu rosto e a fez ofegar. Uma vez passado o primeiro impacto do frio começou a desfrutar; o vento era lhe vivifique e a fez sentir liviana pela primeira vez desde fazia meses. Esvaziou a bacinilla no privada e deixou que se limpasse com a chuva. sacudiu-se o cabelo molhado como se fora um cão, até que um brilho de luz a fez deter-se.
Uma porta da quadra dos escravos se abriu um momento e logo se fechou. Vinha alguém? Pôde ouvir passos sobre o cascalho e se escondeu entre as sombras. Quão último queria era ter que explicar sua presença ali.
A luz o iluminou ao passar. Era lorde John Grei, em mangas de camisa e sem chapéu, com o cabelo revolto pelo vento, sem preocupar-se com o frio passou sem vê-la e desapareceu pela entrada da cozinha. Ao dar-se conta de que corria perigo de ficar fora, correu atrás dele. Estava fechando a porta quando ela a empurrou e entrou precipitadamente na cozinha. Lorde John a contemplou com incredulidade.
-Bonita noite para passear -disse Brianna sem fôlego. E com uma cordial saudação, passou por diante de Grei e subiu a escada, deixando os rastros de seus pés descalços no chão de madeira lustrada.
Já em seu dormitório se secou o cabelo e a cara e se deitou nua na cama. Repassou todo o ocorrido, até que os pensamentos que flutuavam em sua mente durante aqueles dias adquiriram uma forma racional. Tinha que haver-se dado conta antes, pensou. Já se tinha encontrado com essa indiferença em uma oportunidade, em um companheiro de quarto de um noivo ocasional. Mas lorde John sabia ocultá-lo muito bem. Nunca o tivesse adivinhado de não havê-lo visto aquela noite saindo tão entusiasmado das dependências dos serventes.
perguntou-se se seu pai saberia, mas rechaçou tal possibilidade. depois de sua experiência na prisão do Wentworth, não era possível que fora amigo de lorde John sabendo a verdade.
Caminhou nua pela habitação e se deteve ante a janela acariciando seu volumoso ventre. Logo seria muito tarde. Quando eles se foram, sabia que já era muito tarde, e sua mãe também. Não tinham querido admiti-lo e fingiram que Roger chegaria a tempo para viajar juntos até A Espanhola e encontrar o passo através das pedras. Estavam a princípios de março. Talvez lhe faltavam três meses, possivelmente menos. A viagem até a costa lhes levaria uma ou duas semanas. E quanto demorariam até as Antilhas? Duas semanas, três? Estariam no fim de abril e ainda teriam que encontrar a cova, o que supunha uma viagem lenta e perigosa através da selva, grávida de mais de oito meses. Isso se estivesse Roger. Mas não estava. Estava convencida de que se não pensava nas diferentes forma em que teria podido morrer Roger, este não estaria morto. Esse era um artigo de sua teimosa fé; os outros eram que Roger não morreria e sua mãe chegaria a tempo, antes de que nascesse o menino. Quanto a seu pai, a ira a invadia cada vez que pensava nele; nele ou no Bonnet; assim tentava pensar o menos possível neles.
É obvio que rezava, mas seu caráter não era apropriado para rezar e esperar, estava feita para a ação. Se tivesse podido ir com eles em busca do Roger... mas não a tinham deixado escolher. Só tinha tomado uma decisão, tinha eleito ficar com seu filho e agora deveria viver com as conseqüências. estremeceu-se pelo frio e se aproximou da chaminé. O calor a acariciou como uma mão, e centrou sua mente na lembrança do Roger e a ternura de suas carícias. (“Desejaria ver seu rosto para saber o que sente e se o fizer bem. Você gosta assim? me diga, Bri, me fale...”) Ela também o tinha acariciado, explorando seu corpo, e havia sentido toda a força do poder do Roger e o temor à penetração se transformou em aceitação e recebimento para romper a última membrana que os separava, unindo-os para sempre em uma corrente de suor, sangue e sêmen.
levantou-se e se dirigiu à cama. deixou-se cair como um animal ferido, tampou-se e ficou com as mãos sobre o ventre, protegendo ao menino. Sim, era muito tarde. Devia deixar a um lado sensações e desejos, amor e fúria. Tema que tomar decisões.
Demorou três dias em convencer-se das virtudes de seu plano, sobrepor-se a seus próprios escrúpulos e encontrar o momento e o lugar para lhe falar a sós.
Quando chegou sua oportunidade, levava um vestido azul que fazia jogo com seus olhos. Com o coração palpitante se dirigiu para sua vítima. Encontrou-o na biblioteca, lendo as Meditações de Marco Aurelio. Levantou a vista ao vê-la entrar e se aproximou para saudá-la. «Um hipopótamo o faria com mais graça», pensou Brianna recolhendo-a saia para não se chocar contra uma mesita.
-Não, obrigado, não quero me sentar- Perguntava-me se não quereria me acompanhar a dar um passeio.
Fazia muito frio, mas lorde John era um cavalheiro.
-Nada eu gostaria mais -assegurou com galanteria e abandonou a Marco Aurelio sem vacilação.
Era um dia radiante mas muito frio. Bem abrigados com as capas se dirigiram à horta, onde a perto os protegia do vento.
-Tenho uma proposição que lhe fazer -disse finalmente Brianna.
-Estou seguro de que, provindo de você, será algo encantado.
-Bom, não sei. Mas lá vai. Quero que se case comigo.
Lorde John seguiu sonriendo. Era evidente que acreditava que se tratava de uma brincadeira.
-Digo-o a sério -disse Brianna.
O sorriso se alterou. Brianna suspeitou que tratava de reprimir uma gargalhada.
-Não quero seu dinheiro –lhe assegurou-. Estou disposta a assiná-lo e não é necessário que vivamos juntos, embora acredite que seria uma boa idéia que vá a Virginia com você, ao menos durante um tempo. Quanto ao que posso fazer por você... -Vacilou, porque sabia que essa era a parte mais fraco do trato-. Sou forte, mas isso não significa nada para você, porque tem suficientes serventes. Sou uma boa administradora, posso levar as contas e acredito que posso me fazer carrego da propriedade que tem na Virginia enquanto você está na Inglaterra. Y... você tem um filho, não? Eu lhe cuidaria e seria uma boa mãe para ele.
Lorde John se ficou imóvel durante o discurso.
-Deus dos céus. O que terá que ouvir! -Olhou-a diretamente aos olhos-. Está você louca ou é o embaraço?
-Não -respondeu, tentando conservar a compostura- Me escute, lorde John. Não estou louca, não sou uma frívola e não quero lhe causar nenhum inconveniente, mas falo muito a sério.
sentia-se mau, mas tinha que fazê-lo. Tivesse desejado evitá-lo, mas era impossível.
-Se não aceitar casar-se comigo, verei-me obrigada a lhe delatar.
-Que fará o que?.
Sua máscara de urbanidade tinha desaparecido e a olhou intrigado.
-Sei o que fazia a outra noite nas dependências dos escravos. O contarei a todos: a minha tia, ao senhor Campbell e ao delegado. Escreverei cartas ao governador, e ao da Virginia também. Aqui levam aos p... pederastas à armadilha, o senhor Campbell me contou isso.
As sobrancelhas de Grei se juntaram em uma só linha muito magra.
-Deixe de me ameaçar, por favor.
Agarrou-a do cotovelo com firmeza e a obrigou a afastar-se da casa.
Não falou até que estiveram em um rincão protegido.
-Estou um pouco tentado de aceitar sua ultrajante proposição-disse finalmente, com uma careta-. Com segurança agradaria a sua tia. Mas ultrajaria a sua mãe. E ensinaria a você a não jogar com fogo, isso o asseguro.
O brilho dos olhos de lorde John a fez duvidar de suas conclusões sobre suas preferências. apartou-se um pouco dele.
-Pois não tinha pensado que,.. que você podia... homens e mulheres, quero dizer.
-Estive casado -assinalou com certo sarcasmo.
-Sim, mas pensei que tinha sido um matrimônio como o que lhe estou propondo. Um acerto formal. Isso é o que pensei quando me dava conta de que você... -interrompeu-se com um gesto de impaciência-. Está-me dizendo que gosta de deitar-se com mulheres?
Lorde John arqueou uma sobrancelha.
-Isso trocaria seus planos?
-Bom... -disse insegura-. Sim, trocaria-os. De havê-lo sabido, não o tivesse sugerido.
-Diz sugerido -murmuro-. Denúncias públicas? A armadilha? Sugerido?
-Sinto muito, não o teria feito. Quando riu, não sei, mas nunca lhe houvesse dito uma palavra a ninguém. Se queria deitar-se comigo não poderia me casar com você, não estaria bem.
Grei fechou os olhos e esperou um instante. Logo a olhou.
-Porquê não?
-Pelo Roger. -E lhe quebrou a voz— Maldição! Nem sequer queria pensar nele! -secou-se uma lágrima com fúria—. Além disso, agora choro por algo.
-Eu não diria que isto é algo -disse secamente.
Respirou profundamente. Ficava uma última carta que jogar.
-Se lhe gostarem das mulheres-, eu não posso, não quero me deitar com você. E não me importaria que o fizesse com outros homens ou mulheres.
-O agradeço -murmurou, mas Brianna fez caso omisso e seguiu falando,
-Mas pode querer ter um filho próprio, não estaria bem privar o desse direito. Eu poderia lhe dar um filho, todos dizem que estou feita para a maternidade. Poderíamos pôr isso no contrato, o senhor Campbell pode fazê-lo.
Lorde John se esfregou a nuca como se lhe doesse a cabeça. Logo a agarrou do braço.
-Venha a sentar-se, criatura -disse com calma-. É melhor que me diga o que é o que quer.
-Não sou uma criatura -disse.
-Não, não o é. Deus ajude a ambos. Mas antes de que faça que Campbell tenha um ataque de apoplexia com sua idéia do contrato matrimonial, rogo-lhe que se sente comigo e pensemos juntos.
sentaram-se, mas Brianna não podia ficar quieta, assim começaram a caminhar de novo, um ao lado do outro, sem tocar-se.
-Estive pensando e pensando e não me ocorria nada. dá-se conta? Minha mãe e P estão longe. Pode-lhes ocorrer algo e ao Roger pôde ocorrer de tudo. E eu estou aqui, engordando cada dia mais. E não há nada que possa fazer!
Olhou-o e se secou o nariz.
-Não estou chorando -assegurou, embora o estava.
-É obvio que não. -Agarrou-lhe a mão e a apoiou em seu braço-O cria ou não, esperar é tudo o que pode fazer em seu estado. por que não pode esperar até ver se a busca de seu pai tem êxito? É seu sentido da honra o que lhe impede de ter um filho sem pai?
-Não é minha honra. É o seu, o do Roger. O me seguiu; deixando-o tudo, quando devi buscar a meu pai. Mas quando souber isto -tocou-se o vientre,se- quererá casar comigo e não posso deixar que o faça.
-por que não?
-Porque lhe amo- Não quero que se case comigo por obrigação. Tenho-o decidido.
-Já vejo. Bom, estou de acordo com sua tia quanto a que necessita um marido. Mas por que eu? É por meu título, ou por minha riqueza?
-Por nenhuma das duas coisas. Era porque estava segura de que não gostava das mulheres -disse, olhando-o com ingenuidade.
-Eu gosto das mulheres -disse irritado-. Admiro-as e as respeito, e por várias tenho um considerável afeto, entre elas, sua mãe, embora duvide que seja um sentimento recíproco. Entretanto, não encontro prazer na cama com elas. fui bastante claro?
-Se. É o que pensei. dá-se conta de que não seria correto me casar com o MacNeill ou com qualquer desses homens? Teria que prometer algo que não posso dar. Mas você não o quer, assim não vejo razão para que não possa me casar com você.
-Entretanto a há, e muitos.
-Quais?
-Por nomear alguma, seu pai me romperia o pescoço.
-por que? -quis saber com rosto carrancudo-. Diz que você é um de seus melhores amigos.
-Sinto-me honrado por sua estima. Entretanto, essa estima desapareceria assim que Jamie Fraser descobrisse que sua filha serve de algema a um degenerado sodomita.
-E como ia descobrir o? Eu não o diria. -encontrou-se com o olhar ofendido de Grei e de repente começou a rir. O não pôde menos que imitá-la-. Bom, sinto muito, mas você o disse.
-Se, claro, eu o disse. -Tratou de secá-la nariz, mas não tinha lenço-. Maldição, onde está meu lenço? Disse-o porque é verdade. E quanto a seu pai, sabe muito bem.
-Sabe? -Pareceu muito surpreendida-. Mas eu pensei que ele nunca...
Uma das criadas da cozinha apareceu no pomar. Lorde John ficou em pé e lhe deu a mão. Seguiram caminhando até um banco de pedra mais afastado.
-O que era isso de me ensinar a não jogar com fogo? O que queria dizer com isso?
-Nada.
Agora lhe tocou ruborizar-se a ele.
-Nada, né? Se alguma vez ouvi uma ameaça, foi essa. Suspirou e se secou com o lenço que Brianna lhe tinha dado.
-Foi sincera comigo, muito franco, assim que lhe responderei. Sim, suponho que era uma ameaça. Você é igual a seu pai, não se dá conta?
Olhou-o com as sobrancelhas franzidas, sem entender. Até que o contemplou assombrada.
-Você não... P não! Ele não!
-Não -disse, com secura lorde John-. Ele não. E não posso me aproveitar de seu parecido com ele, a ameaça foi semelhante a que você me fez ao dizer que o contaria a todos.
-Onde conheceu meu pai? -perguntou com curiosidade.
-Na prisão. Sabia que esteve na prisão depois do levantamento?
Brianna assentiu.
-Bom, digamos que senti um afeto especial pelo Jaime Fraser durante vários anos. -Suspirou-. E você vem com seu inocente corpo, um reflexo de sua carne, e me oferece um filho que mesclaria meu sangue com a do Jamie. E tudo porque sua honra não a deixa casar-se com o homem que ama nem amar ao homem com o que se case. -agarrou-se a cabeça com as mãos e continuou-. Criatura, você faria chorar a um anjo e Deus sabe que eu não sou um anjo.
-Minha mãe pensa que sim.
Contemplou-a assombrado.
-Que pensa o que?
-Bom, talvez exagere, mas diz que você é um homem bom. Acredito que a seu pesar você gosta, agora a entendo. Ela deve conhecer seus... sentimentos sobre...
ruborizou-se e tossiu.
-Diabos -murmurou-. Maldição. Sim, ela sabe. Embora não estou seguro de por que me olhe com suspicacia. Ciúmes não podem ser.
-Acredito que é porque tem medo de que você lhe faça mal -disse Brianna-. Tem medo por ele.
Observou-a atônito.
-lhe fazer danifico? Como? Acredita que o vou submeter e lhe fazer cometer depravações indignas?
-Alguma vez viu meu pai sem camisa?
-refere-se às cicatrizes das costas?
Brianna assentiu.
-Sim, vi-as. As fiz eu.
ficou pálida e o olhou com os olhos muito abertos.
-Não todas. Tinham-no açoitado antes, o que fazia que tudo fora pior, porque ele sabia o que fazia.
-Fez... o que?
-Eu era o comandante da prisão do Ardsmuir. O disse? Não, suponho que não. Ele era um oficial, um cavalheiro. O único oficial que havia ali. Comíamos juntos em meu escritório. Jogávamos xadrez, falávamos de livros, tínhamos interesses comuns e nos fizemos amigos. E logo... deixamos de sê-lo.
ficou em silêncio.
-Quer dizer... que o fez açoitar porque não quis...
-Não, maldição, não! Como se atreve a pensar algo assim?
-Mas você disse que o tinha feito!
-Ele o fez.
-Mas a gente não pode açoitar-se a si mesmo.
-Ao diabo com que não se pode. Por isso me contou, você o vem fazendo há meses.
-Não estamos falando de mim.
-É obvio que sim.
-Não, não é assim! Que diabos quer dizer com que ele o fez?
-O que estou fazendo aqui? Devo estar louco para falar com você disto.
-Não me importa se estiver louco ou não. me diga o que aconteceu!
Apertou os lábios e, por um momento, Brianna acreditou que não ia falar.
-Fomos amigos. Então... descobriu o que sentia por ele e por sua eleição deixamos de sê-lo. Mas isso não foi suficiente para ele e deliberadamente procurou um final drástico. Mentiu durante uma requisição na quadra dos prisioneiros: declarou que uma parte de tartán era dele. Ia contra a lei, ainda está proibido em Escócia.
Suspirou profundamente e seguiu falando sem olhá-la.
-Eu era o comandante, o encarregado de fazer cumprir a lei. Estava obrigado a açoitá-lo e ele o sábia. Podia perdoar que não me quisesse -disse com amargura-, Mas não podia lhe perdoar por me obrigar a lhe fazer isso. Não só me forçou a machucá-lo, mas também também a humilhá-lo. Não se limitou a não aceitar meus sentimentos, mas sim os destruiu. Era muito para mim.
-Havia uma razão. Não era por você, mas deve contar-lhe ele. Entretanto, você o perdoou. por que?
-Tive que fazê-lo. Odiei-lhe todo o tempo que pude. Mas então me dava conta de que querê-lo formava parte de mim e era uma de meus melhores parte. Não importava que ele não pudesse me amar, isso não tinha nada que ver. Mas se não o perdoava não poderia amá-lo, e isso me fazia falta. -Sorriu fracamente-. Assim já vê, foi por egoísmo.
Oprimiu-lhe a mão, ficou em pé e a ajudou a levantar-se.
-Vamos, querida Nos congelaremos se ficamos mais tempo aqui.
Caminharam muito juntos e em silencio para a casa. Quando chegaram à horta Grei começou bruscamente a falar.
-Acredito que tem razão. Viver com alguém ao que se ama, sabendo que tolera a relação por obrigação..., não, eu tampouco o faria. Mas se for um assunto de conveniência e respeito por ambas as partes, então sim, um matrimônio assim é honorável. Sempre e quando ambas as partes sejam sinceras e não haja motivo de vergonha.
-Então, aceita minha proposta?
Não sentiu o alívio esperado.
-Não. Pude perdoar ao Jamie Fraser no passado, mas ele nunca me perdoará se me caso com você. -Sorriu e lhe apertou a mão-. Mas acredito que posso lhe dar uma pausa com seus pretendentes e com sua tia.
Olhou para a casa e continuou:
-Acredita que alguém nos está observando?
-Eu apostaria a que fui-dijo Brianna.
-Bem. -tirou-se o anel de safira que levava e lhe agarrou a mão. Logo o colocou ceremoniosamente no dedo mindinho da jovem, o único no que lhe entrava, ergueu-se e a beijou nos lábios. Sem lhe dar tempo a recuperar-se da surpresa, agarrou-a da mão e se voltou para a casa-. Vamos, querida -disse-. Anunciemos a todos nosso compromisso.
Julgamento pelo fogo
Deixaram-nos sotos durante todo o dia. O fogo se apagou e não ficava comida. Não importava, nenhum dos dois tinha fome e nenhum fogo poderia esquentar a alma geada do Roger.
Os índios retornaram ao entardecer. Vários guerreiros escoltavam a um ancião com o rosto pintado de vermelho e vestido com uma capa; o sachem levava um recipiente com líquido negro.
Alexandre estava vestido e ficou em pé, sem falar. O sachen começou a cantar enquanto pintava de negro a cara do sacerdote. Os índios se retiraram e o sacerdote se sentou com os olhos fechados. Roger tratou de lhe falar, de lhe oferecer água ou companhia, mas Alexandre não respondeu. Até que, finalmente, falou.
-Não fica muito tempo -disse brandamente-. Antes lhe pedi que rezasse por mim, não sabia se por minha alma ou por meu corpo. Agora sei que nada disso é possível. Só há uma coisa que quero lhe pedir. Reze por mim, irmão, para que possa morrer em silêncio. Não quero envergonhá-la a ela gritando.
Pouco depois de obscurecer, os tambores começaram a soar. Roger não os tinha ouvido antes na aldeia. Era impossível dizer quantos eram; o som parecia vir de todas partes. Os mohawk retornaram. Quando entraram, o sacerdote ficou em pé imediatamente. despiu-se ele mesmo e saiu, nu e sem olhar atrás.
Roger ficou rezando e escutando. Sabia o que podia fazer um tambor, ele mesmo o tinha feito: evocar o temor reverente e a fúria com os golpes, chegando aos mais profundos e ocultos instintos dos que escutavam. Entretanto, o saber o que acontecia não o fazia menos terrorífico.
de repente os tambores se detiveram. Logo começaram outra vez; uns poucos golpes e cessaram. Houve gritos e uivos. Roger tentou espiar através da porta, mas o guarda que estava ali levantou a lona e lhe fez gestos ameaçadores com a lança.
Então pareceu como se todos os demônios do inferno estivessem soltos. O que acontecia? Uma luta terrível, isso era evidente. Mas entre os quais e por que? Depois da primeira gritaria baixou o nível dos uivos; ouviam-se chiados individuais e toda classe de ruídos e gemidos que indicavam um combate violento. Algo golpeou a choça, abrindo uma fissura. Roger olhou para a porta. O guarda não o observava, assim alargou o buraco com os dedos para poder olhar.
O único visível era um estreito espaço no claro central, onde destacava a enorme fogueira. Umas sombras avermelhadas e amareladas lutavam contra outras negras como se fossem demônios ferozes. Alguns dos demônios eram reais; duas figuras escuras passaram lutando abraçadas. Mais figura cruzaram sua linha de visão correndo para o fogo. ficou rígido em meio dos incompreensíveis uivos; podia jurar que alguém tinha gritado em gaélico. "Caisteal DhunU”, gritou alguém nas imediações, e depois ouviu um guincho. Escoceses, homens brancos! Tinha que chegar até eles! Roger golpeou a parede de madeira tentando abrir-se passo com os punhos.
Outra voz em gaélico. E outra. E logo a primeira, que lhe respondia: "Dou meu! Dou meu!». A mim! A mim! Logo ouviu uma série de gritos dos índios e vozes de mulheres, pois eram mulheres quem gritava agora. Suas vozes eram mais force que as dos homens.
Roger tentou várias vezes romper a parede sem resultado. Não havia nada ali que pudesse usar como arma, nada. Em seu desespero, atirou de uma das madeiras da cama, até conseguir um madeiro de quase dois metros com a ponta afiada. lançou-se para a porta e saiu à escuridão e às chamas, ao ar frio e à fumaça. Viu uma figura e carregou contra ela. O homem se fez a um lado e levantou seu pau. Roger não podia deter-se nem voltar-se atrás, esmagou-se contra o chão e o pau se estrelou a poucos centímetros de sua cabeça.
Rodou e agitou seu madeiro, golpeando na cabeça do índio, que caiu sobre o Roger.
Uísque. O homem cheirava a uísque. Sem deter-se fazer averiguações, conseguiu ficar em pé sustentando o madeiro na mão.
Um grito lhe chegou desde atrás e se voltou. O homem ao que tinha golpeado tratava de lhe tirar o pau. Conseguiu liberar-se e o homem voltou a cair.
Roger se cambaleou e se voltou para o fogo. Era uma imensa fogueira cujas chamas se elevavam contra a escuridão da noite. Entre as cabeças dos observadores divisou a figura negra, atada a um poste no centro da pira, com os braços abertos em sinal de bênção. Então algo golpeou sua cabeça e o fez cair.
Não perdeu do todo o conhecimento. Não podia ver nem mover-se, mas ainda podia ouvir. Havia vozes próximas e os gritos soavam como o rugido do oceano. Sentiu que o levantavam no ar e o som do fogo se fez mais próximo. Mierda, foram atirar o à fogueira! Estirou a cabeça, mas seu corpo não se podia mover. O ruído do fogo diminuiu, mas, paradoxalmente, sentiu o ar quente em seu rosto. Depois de um golpe tocou a terra com os dedos. Respirou mecânica e lentamente enquanto a sensação de enjôo ia desaparecendo.
Abriu os olhos e se deu conta de que estava outra vez na choça. Tratou de conter a respiração e não pôde. Ouvia uma respiração pesada e ofegante que não era a sua. Soava debaixo dele. Com grande esforço, ficou a quatro patas, com os olhos fechados pela imensa dor na cabeça.
-minha mãe –murmurou, passou-se a mão pela cara e piscou, mas o homem seguia ali, a menos de dois metros de distância.
Jamie Fraser. Estava atirado a seu lado com a metade da cara obscurecida pelo sangue, mas era inconfundível. Roger o olhou sem alterar-se. Durante meses se imaginou um encontro com aquele homem. Agora tinha acontecido e parecia simplesmente impossível. Não podia sentir outra coisa que assombro.
voltou-se a esfregar a cara. O que... o que estava fazendo Fraser ali? Quando seus pensamentos e sentimentos se conectaram outra vez, o primeiro que sentiu não foi fúria nem temor, a não ser um absurdo alívio.
-Ela não o fez -murmurou, e sua voz soou estranha a seus ouvidos-. Não foi ela!
Jamie Fraser estava ali por uma única razão: resgatá-lo. E se era assim, era porque Brianna lhe tinha obrigado. Todos os mal-entendidos ou a malevolência que lhe tinha feito acontecer aquele inferno, não eram obra dela. Acreditava que ia viver para sempre com esse vazio, mas agora havia algo sólido em seu coração. Brianna. Tinha-a de novo.
Morrer sabendo que Brianna o amava ainda era melhor que morrer sem sabê-lo, mas não desejava morrer. Recordou o que tinha visto fora e vomitou.
Com mão tremente começou a fazer o sinal da cruz-se. arrastou-se até o corpo do Fraser, confiando em que o homem estivesse vivo. E assim era. Saía-lhe sangue de uma ferida na nuca, mas quando lhe buscou o pulso no pescoço, pôde senti-lo. Encontrou um recipiente com água. Molhou o bordo da capa e começou a lhe lavar a cara. Ao pouco momento, Jamie começou a piscar. Logo tossiu, moveu a cabeça a um lado e vomitou. Então abriu os olhos e, antes de que Roger pudesse falar ou mover-se, apoiou-se sobre um joelho, com a mão na faca que tinha na média.
Os olhos azuis o olharam furiosos e Roger levantou um braço para defender-se. Então Fraser piscou, sacudiu a cabeça, grunhiu e se sentou pesadamente no chão.
-Ah, é você -disse.
Fechou os olhos e voltou a gemer. Depois levantou a cabeça e abriu os olhos, mas esta vez com um olhar de alarme.
-Claire! -exclamou-. Minha esposa, onde está?
Roger o olhou boquiaberto.
-Claire? Trouxe-a aqui? trouxe para uma mulher a isto?.
Fraser o olhou com profundo desgosto, mas não gastou palavras. Tocando a faca olhou fazia a porta. A lona estava baixada e não se via ninguém. Os ruídos se acalmaram, embora chegava o murmúrio de vozes.
-Há um guarda -disse Roger.
Fraser o olhou de esguelha e ficou em pé. O sangue ainda corria por sua cara mas parecia não lhe importar. Em silêncio se aproximou da porta e levantou uma esquina para olhar. Fez uma careta ante o que via, retornou, sentou-se e guardou a faca em seu lugar.
-Há uma dúzia fora. Isso é água?
Estendeu a mão e Roger a alcançou. Bebeu e logo se atirou água na cara e a cabeça, secou-se e olhou ao Roger.
-Wakefield, não?
-Agora uso meu próprio sobrenome. MacKenzie.
Fraser deixou escapar um bufo zombador.
-Isso me hão dito. -Tinha uma boca larga e expressiva, como a do Bri-, Equivoquei-me contigo, MacKenzie, como já deve saber. Vim para arrumar as coisas, mas talvez não tenha a possibilidade. -Fez um gesto para a porta-. por agora, tem minhas desculpas. Para qualquer outra satisfação que queira, e suponho que será assim, devo te pedir que esperemos até sair daqui.
Roger o contemplou durante um momento e assentiu.
-Feito-disse.
Permaneceram sentados em silencio durante um momento.
-O que acontece aí fora? -perguntou Roger, assinalando para a porta.
Fraser respirou profundamente e suspirou. Pela primeira vez, Roger se deu conta de que se sustentava o cotovelo direito com a mão esquerda e se sujeitava o braço contra o corpo.
-Maldita seja se sei.
-queimaram ao sacerdote? Está morto?
Não tinha dúvidas depois do que tinha visto, mas Roger sentiu a necessidade de perguntar.
-Era um sacerdote? -Arqueou as sobrancelhas com surpresa-. Sim, está morto. E não só ele.
estremeceu-se involuntariamente.
Fraser não sabia o que foram fazer quando começaram a tocar os tambores e se reuniram ao redor da grande fogueira. Falavam muito, mas seu conhecimento da língua era insuficiente para compreendê-los e seu sobrinho, que falava mohawk, não aparecia por nenhum lado.
Os brancos não estavam convidados mas ninguém os apartou. Assim foi como Claire e ele ficaram no bordo da multidão quando chegou o sachem e os membros do Conselho. O ancião começou a falar e também o fez outro homem, muito zangado.
-Então levaram a homem nu e o ataram a uma estaca. -Fez uma pausa e olhou de esguelha ao Roger-, Vi aos verdugos franceses manter com vida a um homem que tivesse preferido estar morto. Isto não foi pior, mas tampouco melhor.
Fraser, sedento, bebeu outra vez.
-Tratei de afastar ao Claire, porque não sabia o que fariam depois.
Mas a gente não os deixava mover-se e não ficou mais remedeio que seguir olhando.
Roger sentiu que lhe secava a boca. Não queria perguntar, mas tinha a perversa necessidade de saber, tanto pelo Alexandre como por ele mesmo.
-Ele... ele gritou?
Fraser o contemplou surpreso, logo pareceu compreender.
-Não -disse muito lentamente-. Morreu bem. Conhecia-o?.
Roger assentiu sem palavras. Era difícil acreditar que Alexandre se foi. Onde se tinha ido? «Não serei perdoado.» Certamente não.
-Quantos homens trouxe com você?
Os olhos azuis resplandeceram de assombro.
-A meu sobrinho Ian.
-Isso é tudo?
Roger não pôde evitar que se notasse sua incredulidade.
-Esperava aos 78 Regimento Highland? -perguntou Fraser com sarcasmo. ficou em pé com cuidado sustentando o braço-. Traje uísque.
-Uísque? Teve que ver com a briga?.
-Pode ser.
Fraser se aproximou do buraco da choça, apoiou um olho e ficou olhando durante um momento. Fora as coisas se acalmaram. O enorme escocês tinha muito mau aspecto. A cara branca e suarenta estava cheia de marcas de sangue seca. Roger serve mais água e a deu. Mas sabia que as feridas não eram sua preocupação.
-Quando a viu por última vez?
-Quando começou a briga. -Incapaz de ficar sentado, Fraser ficou em pé e começou a passear-se como um urso inquieto-. Tem idéia do que acontecia?
-Posso supô-lo. -Informou ao Fraser sobre a história do sacerdote e sentiu certo alívio ao fazê-lo-. Não têm por que lhe fazer danifico. Não tem nada que ver com isto.
Fraser deixou escapar um grunhido de desgosto.
-Sim. Maldita mulher!
E pegou um murro no chão.
-Estará bem —repetiu com teima Roger— Ouvi seu sobrinho durante a briga. Ouvi-o quando lhe chamava e parecia estar bem.
Roger sabia que essa informação não era suficiente para tranqüilizar ao Fraser.
-É um bom moço -murmurou Fraser com a cabeça inclinada sobre os joelhos-. E tem amigos entre os mohawk. Deus queira que o tenham protegido.
Roger voltou a sentir curiosidade.
-Sua esposa -disse-. O que é o que fez? Como pôde envolver-se nisto?
Fraser suspirou.
-Não devi dizer isso. Em realidade, não foi culpa dela. Mas se a ferem...
-Não o farão-disse Roger com firmeza- O que aconteceu?
Fraser se encolheu de ombros e fechou os olhos.
-Não vi a moça em meio de toda essa gente. Nem sequer sei que aspecto tênia, até o final não a vi. Claire estava a seu lado. Quando os índios quase tinham terminado com o sacerdote, desataram-no do poste, ataram-lhe as mãos a um comprido pau pendurado sobre sua cabeça e o suspenderam sobre as chamas.
Fraser o olhou e se secou os lábios com a mão.
-Em uma ocasião vi como lhe arrancavam o coração a um homem -disse-. Mas não que o comessem ante seus olhos. Falava quase com acanhamento, como sim se desculpasse por ser afetado. Impressionado, tinha cuidadoso ao Claire. Foi então quando viu a jovem a Índia a seu lado, com o berço entre os braços. Com muita calma, a moça a entregou ao Claire e se deslizou entre a multidão.
-Não olhou nem a direita nem a esquerda, caminhou diretamente para o fogo.
-Como?
Roger sentiu que lhe fechava a garganta.
-As chamas a envolveram; quando chegou até ele era como uma tocha e se converteram em uma única figura negra entre as chamas que subiam. Então foi quando todos enlouqueceram. Tudo o que sei é que uma mulher uivou e se desatou o inferno, e todos começaram a brigar.
Tratou de proteger ao Claire e abrir-se passo. Incapaz de escapar, empurrou ao Claire contra uma choça e agarrou um madeiro para defender-se, gritando e chamando o Ian.
-Alguém me golpeou, dava-me a volta para brigar e outros três me jogaram em cima. -Algo lhe golpeou na nuca e não soube nada mais até que despertou na choça com o Roger.-Após não sei nada do Claire, nem tampouco do Ian.
O fogo se consumia e fazia frio na choça. Jamie se cobriu com a capa como pôde e se apoiou em um lado. Seu braço direito devia estar quebrado pela forma em que lhe doía, mas nada disso tinha importância comparado com sua preocupação pelo Claire e Ian.
Era muito tarde. Se Claire não tinha sido ferida estaria a salvo, disse-se. A anciã não deixaria que lhe fizessem mal. E quanto ao Ian, sentiu uma onda de orgulho em que pese a seu medo; era uma boa lutadora e uma honra para ele, Jamie, que lhe tinha ensinado a defender-se.
Roger estava sentado frente ao fogo com os braços sobre os joelhos e a cabeça inclinada, sem notar que Jamie o observava.
Não teve mais remedeio que admitir que o homem tinha um bom corpo. Pernas largas e costas largas. Era alto como todos os MacKenzie do Leoch e descendente do Dougal, pensou súbitamente, embora umas quantas gerações mais adiante. Dougal tinha sido seu padrasto e, para ser sinceros, tinha que reconhecer que uma parte dele tinha amado a aquele homem. Se teve que matá-lo foi porque não ficava eleição: era matar ou que lhe matassem.
Sim, dava-lhe certo consolo o saber que ficava uma parte do Dougal. A outra parte da herança MacKenzie era um pouco mais preocupem-se. O primeiro que viu o recuperar o conhecimento foram os olhos daquele homem, de um verde brilhante e intenso que, por um momento, fizeram-lhe pensar no Geillis Duncan. Queria que sua filha se unisse com o feto de uma bruxa? Olhou-o disimuladamente. Talvez fora melhor que a criatura da Brianna não fora do sangue daquele homem.
-Brianna -disse MacKenzie, levantando súbitamente a cabeça-. Onde está?.
Jamie fez um movimento brusco e sentiu uma dor no braço, como se lhe dessem uma navalhada.
-Onde? -repetiu Fraser-. No River Run, com sua tia. Está a salvo.
O coração lhe palpitava. Podia ler seus pensamentos? Tinha poderes?
-por que trouxe para o Claire e não a Brianna? por que não veio com você?
Jamie lhe devolveu um olhar frio. Se não podia ler sua mente, quão último queria era dizer a verdade ao MacKenzie, já teriam tempo quando estivessem a salvo.
-Também tivesse deixado ao Claire de ter podido. Mas ela é muito teimosa e nem atando a de pés e mãos o teria conseguido.
Algo escuro cruzou os olhos do MacKenzie. Dúvida ou pena?
-Não acreditava que Brianna fora a classe de moça que obedecesse tanto a seu pai -disse.
Jamie se relaxou ao ver que não podia ler sua mente.
-Não crie? Bom, então talvez não a conhece tão bem -respondeu com um tom que tivesse feito enfurecer a qualquer outro homem.
Mas não ao MacKenzie, quem se endireitou e deixou escapar um profundo suspiro.
-Conheço-a bem. É minha esposa.
-Ao inferno com isso -disse, endireitando-se a sua vez e apertando os dentes pela dor.
-Casamo-nos de palavra. Não o disse?
Não o tinha feito, mas invadido pela fúria não lhe tinha dado tempo de nada. Enfurecido ao saber que tinha querido deitar-se com um homem, que não era perfeita, a não ser tão humana como ele, não a tinha deixado explicar-se.
-Quando? -perguntou.
-A princípios de setembro, no Wilmington. Quando eu... justo antes de deixá-la.
Admitiu-o a contra gosto e com uma culpa que era o reflexo da que sentia Jamie. Mas pensou que o covarde o merecia. Se não tivesse abandonado a Brianna..
-Não me disse isso.
Viu a dúvida e a dor nos olhos do MacKenzie. O homem se preocupava porque ela não o houvesse dito, de havê-lo feito estaria ali. Sabia bem que não existia poder na terra para reter o Claire se pensasse que ele estava em perigo. Então sentiu uma pontada de medo. Onde estava Claire?
-Suponho que ela pensou que você não considerava que casar-se de palavra era uma forma legal de matrimônio –disse MacKenzie.
-Ou talvez era ela a que não o considerava assim -sugeriu com crueldade Jamie.
Poderia ter aliviado ao Roger lhe dizendo parte da verdade: que Brianna não tinha vindo porque estava grávida, mas não se sentia caridoso. Fechou os olhos e não disse nada mais.
O aroma de queimado invadia o ar- Passamos perto da fogueira e não pude evitar olhar com a extremidade do olho, não me atrevia a fazê-lo diretamente.
Tropecei na terra geada e minha escolta me agarrou por braço. Conduziu-me para uma choça em que dois homens faziam guarda.
Não tinha dormido nem provado a comida que me tinham devotado. Tinha os pés e as mãos geladas. De longe se ouvia o canto pela morte. Cantavam pela moça ou talvez por alguém mais? Estremeci-me. Os guardas me olharam de esguelha e se fizeram a um lado. Levantei o tecido e entrei.
Estava escuro e o fogo se apagou. A mancha vermelha que vi naquela capa me fez sentir um súbito alívio.
-Jamie!
Jamie levantou a cabeça, a seu lado havia outra figura, a de um homem que me resultava curiosamente familiar. Então se moveu e captei o brilho de seus olhos verdes.
-Roger! -exclamei.
levantou-se sem dizer uma palavra e me abraçou. Apertou-me com tanta força que não me deixava respirar.
-Roger, está bem?
Soltou-me e o olhei de cima abaixo, procurando feridas.
-Sim -disse com voz rouca-. E Brí? Está bem?
-Está bem -assegurei-lhe-. O que te passou no pé?
-Nada, é só um corte. Onde está Brianna?
Apertou-me o braço com ansiedade.
-Em um lugar chamado River Run, com sua tia avó. Não lhe há isso dito Jamie? Ela...
Jamie me interrompeu me agarrando do outro braço.
-Está bem, Sassenach?
-Sim, é obvio. Eu... O que te passou?
Minha atenção se separou do Roger para centrar-se no Jamie. Chamou-me a atenção, mais que a ferida da nuca, a forma em que se sustentava o braço.
-Acredito que me tenho quebrado o braço -disse—. Me dói muito. Quer vir a me curar?
Sem esperar resposta se voltou e se dirigiu para a cama rota. Dava- uma palmada ao Roger e segui a um Jamie incapaz de admitir sua dor ante o Roger.
-O que te acontece? -murmurei enquanto lhe tocava o braço.
Não havia fratura.
-Não lhe hei dito nada sobre a Brianna -disse muito devagar-. E acredito que é melhor não fazê-lo.
Olhei-lhe fixamente.
-Não podemos fazer isso! Tem que sabê-lo.
-Baixa a voz. Sim, possivelmente devamos lhe dizer algo sobre a criatura, mas não sobre o outro, sobre o Bonnet.
Mordi-me o lábio e toquei seu braço. Tinham-lhe dado um terrível golpe, embora estava segura de que não havia fratura. Mas não estava tão segura sobre sua sugestão.
Pôde ver a dúvida em meus olhos porque me apertou a mão.
-Agora não, ao menos não aqui. Espera até que estejamos a salvo.
Refleti enquanto rasgava a manga de sua camisa para fazer um tipóia. O inteirar do embaraço da Brianna lhe ia impressionar. Talvez Jamie tivesse razão, não podíamos saber como ia reagir Roger ao conhecer a violação e faltava bastante tempo para poder voltar livres a casa. Assenti a contra gosto.
-Muito bem -disse em voz alta-. Não acredito que esteja quebrado; de todas formas o levá-lo em tipóia te ajudará.
Deixei ao Jamie e me aproximei do Roger, me sentindo como uma bola do PING-pong.
-Como está seu pé?
Ajoelhei-me para lhe tirar os trapos que faziam de atadura, mas me deteve me agarrando do ombro.
-Brianna. Sei que algo não está bem. Ela está .......?
-Está grávida.
Essa possibilidade não tinha passado por sua mente. Sua surpresa foi inconfundível. Piscou como se lhe tivessem golpeado a cabeça com uma tocha.
-Está segura?.
-Está de sete meses, lhe nota.
Jamie se tinha aproximado tão rápido que não o notamos. Falou com frieza mas Roger não estava para sutilezas. A excitação iluminava seus olhos.
-Grávida. Mas como pode ser?
Jamie deixou escapar um bufido de brincadeira e desprezo. Roger o olhou.
-Quero dizer, que nunca pensei...
-Como? Deixou a minha filha para que pagasse o preço de seu prazer!
Roger levantou a cabeça e olhou com fúria ao Jaime
-Não a deixei! Disse-lhe que é minha esposa!
-É assim? -perguntei.
-casaram-se de palavra —disse Jamie muito zangado- por que não nos disse isso?
Pensei que podia lhe responder de mais de uma maneira. Mas a segunda resposta não podia dizê-la diante do Roger: não nos disse isso porque acreditava que era do Bonnet. Assim, deixava ao Roger a possibilidade de escapar, se é que desejava fazê-lo.
-Certamente porque pensou que não o consideraria como um verdadeiro matrimônio -pinjente-. Tinha-lhe falado sobre nossas bodas e como tinha insistido em te casar em uma igreja, com um sacerdote. Não queria te dizer nada que pensasse que não foste passar. Desejava tanto te agradar...
Jamie teve a graça de parecer envergonhado, mas Roger passou por cima o argumento.
-Está bem? -perguntou.
-Sim, está muito bem -assegurei, esperando que fora verdade-. Queria vir conosco, mas não podíamos deixar que o fizesse.
-Queria vir? -O alívio e a felicidade Invadiu sua cara. Então ela não... —deteve-se bruscamente e nos olhou-. Quando conheci senhor Fraser na ladeira da montanha parecia pensar que... disse-me...
-Um terrível mal-entendido -apressei-me a esclarecer-. Não nos havia dito nada sobre o matrimônio de palavra... e quando nos demos conta de que estava grávida, supusemos ....
Jamie olhava ao Roger com chateio, mas se conteve ante meu olhar severo.
-Sim -disse-. Um mal-entendido. Já me desculpei e lhe disse que faria todo o possível por reparar o engano. Mas agora temos outras coisas em que pensar. Viu ao Ian, Sassenach?
-Não.
Não me tinha dado conta de que Ian não estava com eles e senti medo.
-Onde estiveste toda a noite?
-Estive com... Ai, Meu deus!
Esqueci-me de sua pergunta ao ver o pé do Roger. Estava inflamado e infectado, tinha uma úlcera na planta do pé e ao apertar senti o pus baixo a pele.
-O que te passou?
-Cortei-me quando tratava de escapar. Enfaixaram-me isso mas se infectou. Ao princípio melhorou, mas logo... encolheu-se de ombros; sua mente não estava no pé. Olhou ao Jamie. Era evidente que tinha chegado a uma conclusão.
-Então, Brianna não lhe enviou para me buscar? Não lhe pediu que... que se livrasse de mim?
-Não -disse Jamie surpreso. Sorriu com um repentino encanto. Essa decisão foi minha.
Roger deixou escapar um suspiro e fechou os olhos.
-Graças a Deus -disse e os abriu-. Pensei que ela, talvez-tivemos uma terrível briga justo antes de que me fora e pensei que possivelmente por isso não lhe havia dito nada sobre o matrimônio. -Suava-lhe a frente, mas sorria fracamente-. Mas fazer que me dessem uma surra e me vender como escravo me parecia uma medida excessiva, inclusive para uma mulher de seu temperamento.
-Mmm -disse Jamie, um pouco acalorado-. Já te disse que o sentia.
-Sei.
Roger o olhou e decidiu algo. Suspirou e apartou gentilmente minha mão de seu pé. endireitou-se e olhou ao Jamie à cara.
-Tenho algo que lhe dizer. O motivo da briga. Ela lhes disse por que veio até aqui?
-A notícia de nossa morte? Sim, disse-nos isso. Crie que, de não sabê-lo, tivesse permitido que Claire me acompanhasse?
-O que?
Roger o olhou intrigado.
-Se formos morrer na Colina do Fraser dentro de seis anos, não podemos morrer agora, à mãos dos índios, não crie?
Contemplei-o. Eu não tinha chegado a essa conclusão: uma imortalidade temporária. Mas isso significava assumir que...
-Isso significa supor que não se pode trocar o passado. Crie isso?
Roger se inclinou com intensidade.
-Que me condenem se sei. Você o crie?
-Sim -disse Roger-. Acredito que o passado não pode trocar-se. Por isso o fiz.
-Fez o que?
umedeceu-se os lábios mas não se deteve.
-Encontrei a notícia muito antes que Brianna e pensei que era inútil tentar trocar as coisas, assim que o ocultei.-Olhou-nos-. Não queria que ela viesse; fiz tudo o que pude para evitá-lo. Pensava que era muito perigoso. Y... tinha medo de perdê-la -terminou com simplicidade.
Surpreendida vi como Jamie o olhava com súbita aprovação.
-Então, tratou de mantê-la a salvo? Para protegê-la?
Roger assentiu com certo alívio.
-Entende-me?
-Sim. É a primeira coisa que ouço que me faz ter uma boa opinião de tí, senhor.
Eu não compartilhava essa opinião.
-Encontrou a notícia e não o disse?
Roger viu meu olhar e arrumou a vista.
-Não. E me temo que ela pensa como você. Acredita que a traí Y...
-E o fez! A ela e a nós! Roger, como pôde fazer algo semelhante?.
-Fez bem -afirmou Jamie-. depois de tudo...
-Não! -interrompi com ferocidade-. Deliberadamente o ocultou. Não te dá conta de que, se tivesse tido êxito, alguma vez a teria conhecido?
-Sim, dou-me conta. E também de que o que lhe aconteceu, não lhe teria acontecido.
Olhava-me fixamente com seus olhos azuis. Traguei saliva para acalmar minha fúria e minha dor.
-Não acredito que ela pense assim. Além disso, é ela quem deve dizê-lo.
Roger interveio antes de que Jamie pudesse falar.
-Há dito que o que lhe aconteceu não lhe teria acontecido? refere-se ao embaraço?
Não esperou a resposta. Sua mente o levou a mesma desagradável conclusão a que Brianna tinha chegado fazia meses. Olhou-me com os olhos muito abertos.
-Disse que está de sete meses! Maldição! Não pode retornar!
-Agora não -disse com amargura-. Tivesse podido fazê-lo quando nos encontrou. Tratei de que retornasse a Escócia, ou ao menos às Antilhas, onde há outra... porta. Mas não quis fazê-lo. Não queria ir-se saber o que te tinha acontecido.
-O que me tinha acontecido -repetiu e olhou de esguelha ao Jamie.
-Sim -disse Jamie, com gesto tenso-. É por minha culpa e não posso remediá-lo. Está apanhada aqui e não posso fazer nada, salvo te levar com ela.
Dava-me conta então de que por isso não queria dizer nada ao Roger, por medo de que se negasse a retornar conosco. Uma coisa era havê-la seguido através do passado e outra ficar ali para sempre.
Roger o observou sem encontrar as palavras. Então se ouviram uns passos e entraram vários índios. Olhamo-los surpreendidos. Eram quinze mohawk, homens, mulheres e meninos preparados para uma viagem. Uma das anciãs levava o berço. Sem vacilar se aproximou do Roger e disse umas palavras em mohawk.
Roger franziu o cenho sem compreender. Jamie, súbitamente alerta, aproximou-se da mulher. Esta, impaciente, repetiu-lhe as palavras fazendo um gesto para um jovem.
-Você é... sacerdote -disse, assinalando ao Roger e mostrando o berço-. Água.
-Não sou sacerdote.
Roger tratou de lhe devolver o berço, mas a mulher se negou a agarrá-la.
-Sacerdote -disse decidida-. Batismo.
Assinalou a uma das jovens, que se adiantou com um recipiente cheio de água.
-Pai Alexandre disse você sacerdote, filho de sacerdote -disse o homem jovem.
Vi que Roger empalidecia.
Jamie se tinha afastado murmurando em francês a um homem que tinha reconhecido no grupo.
-São os que ficam da congregação do sacerdote-disse Jamie brandamente-. O Conselho lhes disse que se fossem. Querem ir à missão da Santa Berta, mas antes desejam ter batizado ao menino, se por acaso morre na travessia. -Olhou ao Roger—. Acreditam que é sacerdote?
-Evidentemente.
Roger olhou ao menino que tinha em braços.
Jamie vacilou, olhando a quão índios aguardavam com expressão tranqüila. Podia tratar de adivinhar o que ocultavam atrás dela: fogo, morte, desterro, que mais? Havia rastros de dor na da anciã. O menino devia ser seu neto.
-Em caso de necessidade -disse Jamie ao Roger-, qualquer homem pode exercer de sacerdote.
Não tivesse acreditado que Roger pudesse empalidecer mais, mas o fez. cambaleou-se e a anciã, alarmada, estirou uma mão para sujeitar o berço.
Roger se repôs e fez um gesto a quão jovem tinha a água.
-Parlez-vous françáis? -perguntou e as cabeças assentiram.
-C'est bem -disse. Levantou o menino e o ensinou à congregação-. Ouçam as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo –disse em francês-. Obedecendo essas palavras e seguros de sua presença entre nós, vamos batizar ao que chamou para ser parte de sua igreja.
Deixou que passassem o menino de mão em mão e logo fez as perguntas do ritual em voz alta. Finalmente, estendeu a criatura para o Jamie.
-Quem é seu Senhor e Salvador?
-Jesucristo -respondeu sem vacilar e me entregaram ao menino.
-Confia nele?
-Faço-o -respondi pela criatura.
Roger agarrou água e lhe molhou a cabeça.
-Eu te batizo -começou e se deteve, me olhando de reojo.
-É uma menina -murmurei e Roger assentiu.
-Eu te batizo, Alexandra, no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.
depois de que o pequeno grupo de cristãos partisse não tivemos mais visitantes. Um guerreiro nos trouxe lenha para o fogo e comida, mas fez caso omisso às perguntas do Jamie.
-Criem que nos matarão? -perguntou súbitamente Roger depois de um momento de silêncio. Sua boca se curvou em um intento de sorriso-. Em realidade, suponho que me matarão . Vós dois estão presumivelmente a salvo.
Não parecia preocupado, a não ser muito cansado para ter medo.
-Não vão matar nos -disse mesándome o cabelo. Dava-me conta de que eu também estava exausta. Fazia mais de trinta e seis horas que não dormia.
-lhe ia dizer isso disse ao Jamie-- Passei a noite em casa do Tewaktenyonh. O Conselho de Mães se reúne ali.
Não me tinham contado isso tudo, nunca o faziam. Mas detrás largas horas de cerimônias e discussões, quão jovem falava inglês me havia dito tudo o que queriam que soubesse antes de me enviar com o Jamie.
-Alguns jovens encontraram o esconderijo do uísque-continuei-O trouxeram para a aldeia e começaram a beber. As mulheres acreditaram que não faziam nada desonesto, porque o trato já parecia. Mas logo começaram a discutir entre eles, justo antes de que acendessem o fogo para executar ao sacerdote. E começaram a brigar e uma coisa levou a outra.
-Esfreguei-me a cara, tratando de manter as idéias claras-. Morreu um homem na briga -pinjente olhando ao Roger-, Acreditam que o fez você, foi assim?
Sacudiu a cabeça.
-Não sei. Eu.,, é provável. O que pensam fazer a respeito?
-Bom, estiveram muito tempo discutindo e ainda não se decidiram. Mandaram uma mensagem ao Conselho, mas ainda não tinham a resposta do sachem. Não vão matar te porque agarraram o uísque e isso era o preço de sua vida. E como decidiram não nos matar, em revanche pela morte desse homem, o que habitualmente fazem em troca é adotar a um inimigo na tribo e substituir assim ao morto.
Isso alterou ao Roger.
-me adotar a mim? Querem ficar comigo?
-Um de nós. Não acredito que eu sirva porque sou uma mulher.
Tratei de sorrir sem consegui-lo.
-Então tenho que ser eu -disse Jamie com calma. Roger moveu a cabeça, assombrado-. Você o disse: se o passado não pode trocar-se, nada poderá me acontecer. me deixem, conseguirei escapar e retornarei a casa.
Agarrou-me o braço antes de que pudesse protestar.-Ian e você levarão ao MacKenzie jumo a Brianna. depois de tudo, é a vós dois aos que necessita.
Roger quis discutir, mas o impedi.
-Deus me libere da teima dos escoceses! -Olhei-os zangada-. Ainda não o decidiram; só lhes hei dito a opinião do Conselho das Mães. Assim não tem sentido discutir até que não estejamos seguros. E a tudo isto -pinjente, tratando de distrai-los-, onde está Ian?
Jamie me olhou.
-Não sei -disse e vi que tragava saliva antes de falar-.Mas confio em que esteja a salvo na cama dessa moça.
Não chegou ninguém. A noite transcorreu tranqüila, embora nenhum pudemos dormir bem. Ao meio dia ouvimos o som de vozes que se aproximavam. Meu coração deu um tombo ao reconhecer uma das vozes. Jamie se tinha levantado antes de que abrissem a porta.
-Ian? É você?
-Sim, tio. Sou eu.
Sua voz soava estranha, sem fôlego e insegura. Entrou e se aproximou da luz. Quando o vi tive a sensação de que me golpeavam o estômago. Tinham-lhe talhado o cabelo dos lados lhe deixando uma crista e uma larga cauda sobre as costas; além disso lhe tinham perfurado uma orelha da que agora pendurava um aro de prata.
Seu rosto estava tatuado.
-Eu... não posso ficar muito momento, tio -disse Ian. Estava pálido, mas se mantinha erguido-. Disse-lhes que deviam deixar que me despedisse.
Jamie também estava pálido.
-Ian -sussurrou.
-A cerimônia do nome é esta noite -disse Ian, tratando de não nos olhar-. Dizem que depois serei índio e não poderei falar nem em inglês nem em gaélico. -Sorriu com pesar-. E vós não sabem muito mohawk.
-Ian, não pode fazê-lo!
-Já o tenho feito, tio Jamie -disse brandamente. Então me olhou-. Tia, dirá a minha mãe que alguma vez a esquecerei?
-OH, Ian! -pinjente, abraçando-o com força.
-Poderão ir pela manhã -disse ao Jamie.
Quando o soltei se aproximou do Roger, quem o olhava assombrado. Ian lhe ofereceu a mão.
-Lamento o que lhe fizemos -disse com calma-. Encarregará-te de minha prima e da criatura?
Roger lhe estreitou a mão e se esclareceu garganta.
-Farei-o -disse-. Prometo-o.
Então Ian se voltou fazia Jamie.
-Não, Ian -disse-. Deixa que eu seja!
Ian sorriu, embora seus olhos estavam cheios de lagrimas.
-Uma vez me disse que minha vida não era para esbanjá-la. Não o será. Eu tampouco vou esquecer te, tio Jamie.
Levaram ao Ian à borda do rio pouco antes do pôr-do-sol. meteu-se na água geada acompanhado por três mulheres que riam enquanto o esfregavam com areia. Cilindro corria e ladrava enlouquecido, somando-se ao que acreditava um jogo divertido.
Todos os espectadores o encontraram gracioso, salvo as três pessoas brancas.
Uma vez acabada a cerimônia de lavar o corpo para tirar seu sangue de homem branco, as mulheres o secaram e o vestiram com roupa limpa para levá-lo ante o Conselho, onde teria lugar a cerimônia do nome.
Toda a aldeia estava ali. Jamie, Roger e eu permanecemos silenciosamente em um rincão, observando ao sachem que cantava e falava enquanto os tambores soavam e a pipa passava de emano em mão. A moça que Ian chamava Emily permanecia a seu lado e seus olhos brilhavam ao olhá-lo. O ver como a olhava Ian dissipou algo minha amargura. Chamaram-no Irmão do Lobo. Seu irmão lobo estava aos pés do Jamie, observando a cerimônia com interesse. Ao finalizar a cerimônia, Jamie saiu do rincão. Todas as cabeças se voltaram enquanto ia para o Ian e vi que mais de um guerreiro desaprovava sua atitude. desabotoou-se o tratam escocês e o colocou sobre os ombros de seu sobrinho.
-Cmmhnich -disse brandamente, e deu um passo atrás. «Recorda.»
À manhã seguinte guardávamos silêncio quando enfiamos o estreito atalho que nos afastava da aldeia. Ian nos tinha despedido formalmente com sua nova família. Ao ver minhas lágrimas se mordeu o lábio ocultando sua emoção. Jamie o abraçou, beijou-o na boca e se foi dizer uma palavra.
De noite, Jamie se ocupou de montar o acampamento com sua habitual eficácia, mas me dava conta de que sua mente estava em outro lugar. Não era estranho; também eu dividia minhas preocupações entre o Ian e Brianna, deixando pouco tempo para as atuais circunstâncias. Roger deixou a lenha ante o fogo e se sentou a meu lado.
-estive pensando -disse-. Na Brianna.
-Eu também.
Estava tão cansada que tinha medo de dormir antes de que a água fervesse.
-Disse que há outro círculo..., abertura, ou o que seja, nas Antilhas ?
-Sim. -Pensei em lhe falar do Geillis Duncan e a cova do Abandawe, mas desprezei a idéia. Não tinha força. Em outro momento possivelmente; então me dava conta do que me estava dizendo-. Outro círculo? Aqui?
-Não aqui -disse Roger-. Em algum lugar entre a aldeia e a Colina do Fraser.
-Sim, sei que existe, mas... -Então entendi e o agarrei do braço-- Quer dizer que sabe onde está?
-Você sabia?
Contemplou-me assombrado.
-Sim, eu... olhe...
E saque a opala. Agarrou-o antes de que pudesse lhe explicar nada.
-É o mesmo símbolo! Está gravado em uma rocha do círculo. De onde diabos o tirou?
-É uma larga história -pinjente-. Contarei-lhe isso mais tarde. Mas sabe onde está esse círculo? Viu-o?
Jamie, atraído por nossas exclamações, aproximou-se.
-Um círculo?
-Um círculo do tempo, uma abertura, uma...
-Eu estive ali -interrompeu Roger-. Encontrei-o por acaso quando tratava de escapar.
-Poderia encontrá-lo de novo? A que distância está do River Run?
Minha mente fazia cálculos frenéticos. Poderíamos levar a Brianna a tempo? E se o fazíamos, o que seria mais perigoso, passar através do túnel do tempo a ponto de dar a luz ou ficar no passado para sempre?
Roger tirou o fio com os nós.
-Aqui -disse-. Tinham passado oito dias desde que me capturaram. Oito dias da Colina do Fraser.
-E uma semana mais desde o River Run até a Colina -calculei-. Não o conseguiríamos.
-Mas o tempo está trocando -disse Jamie-. A viagem será mais fácil se podemos fazê-lo com melhor tempo.
-Ou não. -Sacudi a cabeça a contra gosto-. Sabe tão bem como eu que a primavera significa barro. E o barro é pior que a neve para viajar. Não, é muito tarde, muito arriscado. Ela terá que ficar.
Jamie observava ao Roger.
-Ele não o fará.
Roger o olhou assombrado.
-Eu... -começou, logo afirmou sua mandíbula -e começou de novo-. Farei-o. Não pensará que a vou deixar? A ela e a meu filho?
Abri a boca e senti que Jamie ficava rígido, tentando me advertir.
-Não -pinjente lhe cortando-. Não. Devemos dizer-lhe Brianna assim o quereria. É melhor que saiba agora; se isso trocar as coisas para ele é melhor que saiba antes de vê-la.
Jamie franziu os lábios mas assentiu.
-Está bem -disse-, Diga-lhe então.
-me dizer o que?
Roger parecia mais alarmado e excitado que nunca.
-Poderia não ser seu filho -pinjente.
Por um momento sua expressão não trocou, logo me agarrou dos braços tão súbitamente que me fez gritar.
-O que quer dizer? O que aconteceu?
Jamie se moveu como uma serpente e golpeou ao Roger para que me soltasse.
-Quer dizer que quando deixou sozinha a minha filha a violaram-dijo bruscamente-. Dois dias depois de que estivesse com ela- Assim que talvez a criatura seja tua ou talvez não. Olhou furioso ao Roger.
-Então, ficará ou não?
Roger sacudiu a cabeça tratando de esclarecer suas idéias e se levantou.
-Violada. Quem? Onde?
-No Wilmington. Um homem chamado Stephen Bonnet.
O...
-Bonnet? -Pela expressão do Roger era evidente que o nome lhe era familiar-. Stephen Bonnet violou a Brianna?
-É o que hei dito.
Súbitamente toda a fúria do Jamie se liberou. Agarrou ao Roger do pescoço e o atirou contra um tronco.
-E onde estava você quando isso acontecia, covarde? Ela estava zangada contigo e a deixa sozinha? Se tinha que ir, por que não a deixou a salvo comigo?
Agarrei ao Jamie do braço.
-Solta-o!
Fez-o e se apartou ofegando. Roger, tão furioso como Jamie, sacudiu-se.
-Não a deixei porque discutíssemos! Deixei-a para ir em busca disto! -Procurou no bolso de seu calção e tirou algo que brilhou na palma de sua mão-. Arrisquei minha vida para as conseguir, para que pudesse passar segura através das pedras! Sabe onde fui e a quem as tirei? Ao Stephen Bonnet! Por isso demorei tanto em chegar à Colina do Fraser. Bonnet não estava onde eu acreditava e tive que percorrer toda a costa para encontrá-lo.
Jamie ficou gelado ante as pedras preciosas. O mesmo me aconteceu .
-Viajei com o Bonnet desde Escócia. -Roger ia recuperando a calma-. O é... é...
-Já sei o que é. -Jamie saiu de seu transe-. E também pode ser o pai da criatura que leva minha filha. -Olhou ao Roger com frieza-. Assim que lhe pergunto isso de novo, MacKenzie: retornará e viverá com eles sabendo que talvez seja o filho do Bonnet? Se não for fazer diga-o agora. Porque te juro que se o tráficos mau... matarei-te sem me pensar isso duas vezes.
-Por todos tosse Santos! –estalei-, Lhe dê um minuto para pensar, Jamie! Não te dá conta de que ainda não o assimilou?
Roger fechou e abriu os punhos deixando cair a pedra.
-Não sei-disse-. Não sei!
Jamie se aproximou, recolheu a pedra e a atirou aos pés.
-Então vete! -disse-. Agarra sua pedra e busca esse maldito círculo. Vete, porque minha filha não necessita a um covarde!
Não havia desensillado os cavalos, assim dessalgou os nossos e montou de um salto.
-Vêem-me disse.
Olhei ao Roger com desconsolo, este olhava ao Jamie com os olhos brilhantes como esmeraldas.
-Vê -disse brandamente Roger sem deixar de olhar ao Jamie-. Se puder... irei.
Minhas mãos e meus pés pareciam mover-se por sua conta, levaram-me até o cavalo e montei.
Quando olhei atrás tinha desaparecido até a luz do rogo. Só havia escuridão.
River Run, abril de 1770
-capturaram ao Stephen Bonnet.
Brianna deixou cair a caixa do xadrez e as peças de marfim se pulverizaram pelo chão. Sem dizer uma palavra ficou olhando a lorde John; este deixou sua taça de brandy e se aproximou rapidamente a ela.
-Está bem? Quer te sentar? Sinto-o de todo coração. Não devi...
-Sim, deveu. Não, no sofá não ou nunca poderei me levantar.
Rechaçou sua mão e se dirigiu até uma cadeira de couro, perto da janela. Uma vez sentada o olhou airadamente.
-Quando?-disse-. Como?
Lorde John fué até a porta e olhou o escuro corredor, como era de esperar, uma das criadas aguardava na escada se por acaso necessitavam algo.
-Vete à cama -disse-. Não vamos necessitar nada mais esta noite.
A pulseira assentiu aliviada; estava acordada do amanhecer e era perto de meia-noite. O também estava esgotado depois da larga cavalgada desde o Edenton, mas as notícias não podiam esperar. Tinha chegado ao anoitecer e ainda não tinha tido oportunidade de estar a sotas com a Brianna.
Fechou as portas para evitar interrupções.
-Capturaram-no aqui, no Cross Creek -disse sem preâmbulos, sentando-se a seu lado-. Quanto a como, não sei. A acusação era de contrabando, mas uma vez que descobriram sua identidade se somaram outros delitos.
-Contrabando do que?
-Chá e brandy. Ao menos, esta vez. Inteirei-me no Edentoo, é evidente que é um homem muito conhecido, sua reputação se estende desde o Charleston ao Jamestown.
Observou-a de perto; estava pálida mas não gasta.
-Condenaram-no -continuou-. Pendurarão-o a semana próxima no Wilmington. Pensei que quereria sabê-lo.
Brianna respirou profundamente e deixou sair o ar sem dizer nada. Olhou-a assombrado; Brianna estava enorme. Só fazia dois meses desde seu compromisso e tinha engordado notavelmente.
-Muito obrigado -disse olhando-o com desconcertante firmeza-. Quando o pendurarão?
-na sexta-feira que vem.
-Está no Wilmington?.
Já mais tranqüilo foi procurar sua taça e bebeu um gole.
-Não. Ainda está aqui, não faz falta julgamento porque já tinha sido condenado anteriormente.
-Então, levarão-o ao Wilmington para a execução? Quando?
-Não tenho nem idéia.
O olhar da Brianna tinha um brilho que reconheceu: não era abstração, era cálculo.
-Quero vê-lo.
Com determinação bebeu o resto do brandy.
-Não, disse cortante, enquanto deixava a taça.- Embora seu estado te permitisse viajar ao Witmington, que com toda segurança não é assim -acrescentou, olhando o volumoso ventre-, assistir a uma execução não seria bom para seu filho. Agora bem, eu simpatizo totalmente com seus sentimentos, querida, mas...
-Não, não me entende, não tem nem idéia de quais são meus sentimentos -disse com total convicção.
Contemplou-a, ficou em pé e foi procurar o botellón. Brianna observou a líquida cor âmbar e esperou a que lhe servisse antes de seguir falando.
-Não quero vê-lo morrer.
-Graças a Deus —murmurou Grei, bebendo de sua taça.
-Quero falar com ele.
engasgou-se e tossiu cuspindo o brandy.
-Talvez deveria te sentar -disse Brianna-. Não tem bom aspecto.
-Não o entendo.
sentou-se e se secou a cara.
-Sei o que me vais dizer -disse Brianna com firmeza-, assim não te incomode. Pode conseguir que o veja antes de que o levem ao Wilmington? E antes de dizer «não, claro que não», te pergunte o que é o que farei se me responde isso.
Tinha a boca aberta para dizer "não", mas a fechou contemplando-a em silêncio.
-Suponho que não tentará me ameaçar outra vez, não? Porque se o faz...
-É obvio que não.
Teve a delicadeza de ruborizar-se.
-Bom, então, confesso que não sei o que pensa...
-Direi a minha tia que Stephen Bonnet é o pai de meu filho. E também ao Farquard Campbell, ao Geraid Forbes, ao juiz Alderdyce; e logo irei à guarnição e o direi ao sargento Murchison e se não me deixa entrar lhe pedirei ao senhor Campbell uma ordem para vê-lo- Tenho direito.
Observou-a e se deu conta de que não era uma ameaça ociosa. Estava ali, firme e sólida como uma estátua, impossível de convencer.
-Não te importa provocar um escândalo?
-Não -respondeu com calma—. O que tenho que perder? Suponho que teremos que romper nosso compromisso. Mas se todo o condado sabe quem é o pai do menino terá o mesmo efeito que o compromisso: evitar que outros homens queiram casar-se comigo.
-Sua reputação... -começou, sabendo que era inútil.
-Será pior que saibam que estou grávida porque me violou um pirata, que por ter sido uma licenciosa, como assinalou encantadoramente meu pai?
Havia uma nota de amargura que impediu a lorde John dizer nada.
-De todos os modos, a tia Yocasta não me jogará pelo escândalo. Não morrerei de fome e o menino tampouco.
Lorde John voltou a beber; sentia curiosidade pelo que tinha ocorrido entre a jovem e seu pai, mas não queria falar agora. Em troca lhe perguntou.
-por que? por que quer falar com o Bonnet? Disse que não conhecia seus sentimentos, o qual é verdade. Mas devem ser exigentes para fazer que queira empreender tão drástica expedição.
Um sorriso iluminou sua cara.
-Realmente eu gosto de sua forma de falar.
-Sinto-me muito adulado. Entretanto, se queria responder a minha pergunta..
Brianna suspirou, ficou em pé e tirou um papel dobrado de um bolso de seu vestido.
-Lê isto -disse entregando-lhe
Logo se voltou e foi até a outra ponta da habitação, onde tinha suas pinturas. A letra lhe resultou conhecida. Tinha visto a letra do Jaime Fraser em outra ocasião e isso era suficiente, era inconfundível.
Filha:
Não sei se voltarei a verte. Meu fervente esperança é poder fazê-lo e que todo se arrume entre nós, mas isso está em mãos de Deus. Escrevo-te agora se por acaso Ele dispõe de outra maneira.
Uma vez me perguntou se estava bem matar como vingança pelo grande mal que lhe fizeram. Disse-te que não devia fazê-lo.
Pela bem de minha alma, pelo bem de minha própria vida deve encontrar a graça do perdão. A liberdade é difícil de conseguir, mas nunca é fruto do assassinato.
Não tenha medo de que ele escape à vingança. Um homem assim leva a semente de sua própria destruição. Se não morrer por minha mão será pela de outro. Mas não deve ser seu emano a que o castigue.
me escute, pelo amor que te tenho.
Abaixo tinha escrito: «Seu mais afetuoso e amante pai, Jamie Fraser». E logo, simplesmente, P.
-Não me despedi dele.
Lorde John levantou a vista surpreso. Brianna estava de costas a ele, contemplando o tecido de uma paisagem ao meio pintar como se estivesse olhando pela janela. aproximou-se dela e se voltou para olhá-lo à cara.
-Quero ser livre -disse com calma-. Tanto se retornar Roger como se não. Não importa o que aconteça.
A criatura estava inquieta. Podia ver os movimentos em seu ventre como se fora um gato dentro de uma bolsa.
-Está segura de que tem que ver o Bonnet?
-P diz que tenho que encontrar uma maneira de perdoá-lo. Tento-o desde que eles se foram, mas não posso fazê-lo. Talvez se o vejo possa consegui-lo. Tenho que tentá-lo.
-Muito bem.
Baixou os ombros em sinal de rendição.
Uma luz iluminou os olhos da Brianna. Alívio? Grei tratou de sorrir.
-Fará-o?
-Sim. Deus saberá como, mas o farei.
Apagou todas as velas, salvo uma para iluminar o caminho. Ofereceu-lhe o braço e caminharam pelo vazio salão. Ao pé da escada se deteve para deixar que fora diante.
-Brianna.
voltou-se intrigada. Grei vacilou, não sabia como lhe pedir o que súbitamente desejava tanto. Levantou a mão.
-Posso...?
Sem falar, Brianna lhe agarrou a mão e a apoiou em seu ventre. Então sentiu um empurrão que o estremeceu de emoção.
-minha mãe -disse encantado-. É de verdade.
Contemplou-o risonha.
-Sim -disse-. Já sei.
Fazia muito que tinha escurecido quando se detiveram ante a guarnição. Era um edifício pequeno que o depósito de atrás diminuía ainda mais.
- Têm-no aí?
-Não.
Lorde John olhou ao redor enquanto atava os cavalos. Uma luz brilhava na janela, mas a rua estava silenciosa e vazia. Ajudou-a a baixar do carro sustentando-a com as duas mãos.
-Está no porão, debaixo do depósito -respondeu em voz baixa-. Subornei ao soldado de guarda para que nos deixasse entrar.
-Deixará-nos, não -disse, também em voz baixa mas com firmeza—. A mim. Quero vê-lo a sós.
Apertou os lábios por um momento e logo assentiu.
-Asseguraram-me que está encadeado. De outra forma não tivesse aceito.
abriu-se a porta iluminando a entrada
-É você, senhor? —O soldado se surpreendeu ao ver a Brianna-. Não me tinha dado conta...
-Não é necessário. -A voz de lorde John era iria-. Nos mostre o caminho, por favor.
Depois de olhar com preocupação o ventre volumoso da Brianna, fez-os passar por uma pequena porta que dava ao depósito.
As noites de abril eram fritem, mas ali o ar era pesado e cheirava a terebintina. Brianna se sentia sufocada. O depósito estava quase cheio de caixas de madeira e barris de brandy e rum, preparados para rodar pelas rampas que levavam até o mole onde aguardavam as barcadas.
-Devem tomar cuidado com o fogo do abajur -indicou o guarda-. Embora não há perigo aqui embaixo...
O depósito estava construído frente ao rio para facilitar a carga. O chão da parte dianteira era de madeira. Entretanto, na parte de atrás tinha sido substituída por tijolo. Brianna sentiu a mudança do eco dos passos ao cruzar o limite.
-Não demorarão muito, verdade, senhor?
-Só o necessário -respondeu lorde John.
Agarrou o abajur e esperou a que o soldado levantasse a trampilla. Ante eles apareceu uma escada de tijolo.
-É uma sorte que as tenham feito o bastante largas para que passem os barris -murmurou Brianna, apoiando-se no braço de lorde John para baixar.
deu-se conta de por que o guarda não se preocupava com o fogo naquela parte. O ar era tão úmido que não lhe tivesse sentido saudades ver cogumelos pelas paredes. Podia ouvir o som da água gotejando e ver as baratas fugindo da luz.
Enquanto o guarda lutava com a chave, Brianna sentiu uma quebra de onda de pânico. Não tinha nem idéia do que dizer ou fazer. .O que estava fazendo ali?, perguntava-se.
Quando finalmente a porta se abriu, lorde John lhe apertou o braço para lhe dar valor. Respirou profundamente, inclinou a cabeça e entrou. Estava sentado em um banco, com os olhos fixos na porta. Era evidente que esperava a alguém, mas não a ela. agitou-se surpreso e o verde de seus olhos brilhou ante a luz. Ouviu um ruído metálico e recordou que estava encadeado, o que lhe deu um pouco de confiança. Brianna agarrou o farol que lhe dava o soldado e fechou atrás dela. apoiou-se na porta de madeira, examinando-o em silêncio. Parecia menos corpulento. Talvez fora porque agora ela estava enorme.
-Sabe quem sou?
Sacudiu a cabeça e a percorreu com o olhar.
-Não acredito que saiba embora me diga seu nome, carinho.
-Não me chame assim!
A rajada de fúria que sentiu a agarrou por surpresa. Tinha ido com a intenção de perdoá-lo e esse não era um bom começo.
-Como quer -disse, com frieza mas sem aborrecimento-. não, não sei quem é. Conheço seu rosto... e outras coisas –seus dentes brilharam sobre sua loira barba—, mas não seu nome. Suponho que me dirá isso, não?
-Reconhece-me?
-Claro que se.
Parecia divertido e teve vontades de cruzar a cela para esbofeteá-lo. Em lugar disso respirou profundamente. Foi um engano, porque aspirar o aroma do homem lhe provocou uma arcada súbita e violenta. Não se tinha chateado antes, mas o aroma do Bonnet lhe trouxe para a memória tudas as lembranças. deu-se a volta e vomitou bílis e comida sem digerir. Apoiou a frente na parede, secou-se a boca e se voltou. Seguia sentado, observando-a como um animal encadeado em sua jaula. Seus olhos, de um verde pálido, só mostravam cautela.
-Meu nome é Brianna Fraser.
Assentiu repetindo.
-Brianna Fraser. Um bonito nome. E?.
-Meus pais são James e Claire Fraser. Salvaram-lhe a vida e você lhes roubou.
-Sim.
Disse-o com total naturalidade. Sentiu uma imperiosa necessidade de rir, tão inesperada como as náuseas. O que esperava? Remorsos? Desculpas de um homem que tomava as coisas porque as desejava?
-Se vier com a esperança de recuperar as jóias me temo que chega tarde -disse com amabilidade-. Vendi uma para comprar um navio e as outras dois me roubaram isso. Talvez cria que foi justo.
-Roubadas? Quando?
Roger lhe havia dito: «Não se preocupe pelo homem que as tem, seguro que as roubou a outro».
Bonnet se encolheu de ombros.
-Faz uns quatro meses. por que?
-Por nada.
Se tinha sido Roger, eram as pedras que lhes tivessem permitido cruzar a salvo. Um pobre consolo.
-Também havia um anel, não? Mas esse lhe levou isso você.
Sorriu mostrando os dentes.
-Paguei por esse anel.
-Que negócios há entre nós então, carinho?
Olhou-a com curiosidade.
Esta vez respirou profundamente pela boca.
-Hão-me dito que lhe vão pendurar.
-me hão dito o mesmo. Não terá vindo por lástima. Não, não acredito.
-Não -disse, olhando-o pensativa-. Para ser sincera te direi que vou descansar muito mais tranqüila uma vez esteja morto.
Contemplou-a por um instante e começou a rir a gargalhadas enquanto caíam as lágrimas pelas bochechas.
-O que quer de mim então?
Abriu a boca para responder e, de repente, a união entre eles desapareceu. Era como se tivesse dado um passo mas cruzado um abismo. Agora estava a salvo e sozinha, em uma bendita solidão. Já não podia chegar até ela.
-Nada -disse-. Não queira nada teu, vim para te dar algo.
abriu-se a capa e se passou as mãos pelo ventre.
-É teu.
Bonnet passou a vista pelo ventre e logo a olhou a ela.
-Já houve outras prostitutas que trataram de que carregasse com seus filhos -disse sem maldade, mas seu olhar era distinto.
-Crie que sou uma prostituta? -Não lhe importava se acreditava ou não, embora duvidava que acreditasse-. Não tenho motivos para mentir. Já lhe disse isso, não quero nada teu.
Fechou a capa em um gesto de amparo. Já o tinha feito. Podia ir-se.
-vais morrer. -Surpreendeu-lhe descobrir que sentia certa piedade por aquele homem-. Se o saber que deixar a alguém na terra lhe faz isso mais fácil, você gostará de havê-lo sabido. Mas eu já terminei contigo.
Ao voltar-se para agarrar o farol lhe surpreendeu ver a porta entreabierta. Não teve tempo de zangar-se com lorde John por espiá-la, porque a porta se abriu de tudo.
-Bom, foi um bonito discurso -disse o sargento Murchison levantando a culatra do mosquete-. Mas eu não posso dizer que tenha terminado contigo.
Brianna deu um passo atrás e agitou o farol ante a cabeça do homem, em um gesto defensivo. O sargento agachou a cabeça com um grito de alarme e a agarrou pela boneca.
-Diabos, esteve perto! É rápida, moça, embora não tanto como um bom sargento.
Bonnet agarrou o abajur e lhe soltou a boneca.
-Não estava encadeado -disse estupidamente Brianna enquanto se dava a volta para tratar de chegar até a porta.
Murchison a ameaçou com o mosquete lhe fechando o caminho, mas não antes de que pudesse ver o corredor, no que havia uma figura atirada de barriga para baixo.
-Matou-o -sussurrou-. Mierda, matou-o.
-A quem mataram? -Bonnet levantou o abajur para poder ver uma cabeça loira manchada de sangue-, Quem diabos é esse?
-Um intrometido -respondeu Murchison bruscamente-, Vamos! Não há tempo que perder. Já me encarreguei do guarda e as mechas estão acesas.
-Espera! -Bonnet olhava ao sargento e a Brianna com o rosto pensativo.
-Não há tempo. -O sargento levantou sua arma- Não se preocupe, ninguém os encontrará.
Brianna podia cheirar a pólvora. O sargento se voltou para ela mas não havia espaço para apontar a arma. Grunhiu irritado e levantou o mosquete para lhe pegar com a culatra. Brianna aferrou o canhão sem dar-se conta do que fazia. Tudo pareceu mover-se com lentidão. Murchison e Bonnet permaneceram petrificados e ela sentiu como se visse a cena desde fora. Arrebatou- o mosquete ao Murchison como se fora um pau de vassoura, levantou-o e o deixou cair. Ante seus olhos viu trocar o rosto daquele homem, passando de uma expressão de assombro a outra de horror e finalmente a de inconsciência, tão lentamente que pôde ver as mudanças e as manchas de sangue que foram aparecendo em sua nuca.
Estava totalmente tranqüila. olhou-se as mãos e sentiu o poder que percorria seu corpo. O homem ainda não tinha chegado ao chão quando o golpeou outra vez.
Uma voz repetia incesantemente seu nome.
-Detenha! Mulher... Brianna... detenha!
Umas mãos a agarraram pelos ombros sacudindo-a. liberou-se delas ainda com a arma na mão.
-Não me toque! -disse.
O homem retrocedeu olhando-a com surpresa, e talvez com medo. Medo dela? por que ia ter medo dela? Estava-lhe falando, podia ver como movia os lábios, mas não ouvia as palavras, estava enjoada. Então o tempo começou a correr de novo; Apoiou o canhão para sujeitar-se.
-O que há dito?
-Pinjente que não podemos perder o tempo! Não lhe ouviste dizer que as mechas estavam acesas? —perguntou com impaciência.
-Que mechas?
Viu seu olhar e se colocou ante a porta lhe impedindo o passo. O homem deu um passo atrás e se chocou com o banco.
-Não pensará me matar?
Bonnet tratou de sorrir, mas o pânico apareceu em seus olhos. Ela havia dito que descansaria mais tranqüila depois de sua morte.
«A liberdade é difícil de conseguir, mas não é fruto do assassinato.» Agora tinha a liberdade em suas mãos e não ia perdê-la por ele.
-Não -disse, sujeitando a arma firmemente-, Mas te dispararei nos joelhos e te deixarei aqui se não me disser agora mesmo que diabos passa.
Bonnet observou a arma. Se apertava o gatilho não faltaria. encolheu-se de ombros.
-O depósito de acima está cheio de pólvora -disse, falando rapidamente-. Não sei quando, mas estalará. Saiamos daqui!
-por que? -Suavam-lhe as mãos, mas sujeitava a arma com força. O menino se movia para lhe recordar que ela tampouco tinha muito tempo. Mas podia arriscar um minuto para saber a verdade, pela memória do John Grei, que estava atirado no corredor-. Matou a um bom homem e quero saber por que!
-Contrabando! O sargento e eu fomos sócios. Eu lhe trazia produtos de contrabando muito mais baratos e ele lhes punha o selo da Coroa. Quase dançava de impaciência.
-Segue falando.
-Um soldado, o guarda, estava fazendo muitas perguntas. Murchison não sabia se o tinha contado a alguém, mas não era prudente esperar, menos ainda depois de que me capturassem. O sargento tirou os barris de licor e os substituiu por lhes ouvir de terebintina. Ao incendiar-se, ninguém poderá dizer que não era brandy. Isso é tudo. Agora, me deixe sair!
-Muito bem. -Baixou a arma sem deixar de lhe apontar-. E o que passa com ele?
Fez um gesto para o sargento Murchison que começava a despertar.
-O que acontece ele?
Olhou-a inexpressivo.
-Não o vais levar contigo?
-Não. Mulher, deixe ir e você vete também. vai estalar tudo!
-Mas está vivo! Não podemos deixá-lo aqui!
Bonnet a olhou com exasperação; cruzou a habitação com grande rapidez, inclinou-se, tirou a adaga do cinturão do sargento e lhe cortou a garganta.
-Já está -disse, endireitando-se-. Já está morto. Deixa-o.
Brianna começou a tremer. Ouvia afastá-los passos do Bonnet enquanto contemplava o corpo do John Grei. Seu ventre se contraiu e ficou sem respiração.
«Não. -Pensou no menino que tinha em seu interior-. Não posso dar a luz. Não são contrações. Agora não tenho tempo.» Deu uns passos pelo corredor e se deteve. Não, devia estar segura. voltou-se e se ajoelhou ante o corpo de Grei. Estava imóvel e parecia morto. Tratou de lhe dar a volta mas era muito pesado. Procurou o pulso na garganta. Onde diabos estava? Tinha visto sua mãe fazê-lo em urgências; era mais fácil de encontrar que na boneca, dizia, mas não podia encontrá-lo. Quanto tempo faltaria para que todo aquilo estalasse?
Tentou-o uma vez mais e encontrou um fraco pulsado. Podia estar morrendo, mas ainda vivia. Estava muito assustada para sentir alívio. Agora tinha que tirá-lo também a ele. Então recordou o que tinha visto. Sim, podia ter razão. O teto era de tijolo. Bonnet havia dito que estalaria... mas seria assim? A terebintina ardia e, se estava baixo pressão, podia estalar, mas não como uma bomba. Havia pólvora, mas não explosivos de grande potencializa. Esta podia estalar em vários lugares e incendiar os barris próximos que arderiam devagar. Tinha visto o Sinclair fazer barris como aqueles.
Os barris se queimariam mas sem explorar e, se o faziam, não seria ao mesmo tempo. Sua respiração se tranqüilizou e ficou as mãos sobre o ventre- Logo se sentou no chão.
-Acredito que toda irá bem -sussurrou, não muito segura de se lhe falava com o John, ao menino ou a ela mesma.
Então se dedicou a atender a Grei. Ouviu passos, mas não vinham da escada, mas sim do outro lado. Depois dela apareceu Stephen Bonnet na escuridão.
-Corre! -gritou-. por que não sai?
-Aqui é mais seguro. -Levantou o mosquete que tinha deixado no chão-. Vete.
Contemplou-a boquiaberto.
-Seguro? Mulher, está louca! Não ouviste o que há dito...?
-Sim, mas estava equivocado. Não explorará e, se acontecer, aqui estaremos mais seguros.
-Ao diabo! Embora não caia o porão, o que passará quando o fogo incendeie o teto?
-Não pode, é de tijolo.
Olhou-o com o queixo erguido.
-Aqui sim, mas na parte dianteira é de madeira. Queimará-se e logo se desabará. E o que passará quando entre a fumaça?
-Não está aberto? O porão não está fechado? A outra porta do corredor não está aberta?
Já sabia a resposta. Tinha deslocado para aquele lado, não fazia as escadas.
-Sim!Agora vêem!
Tratou de agarrá-la do braço, mas se apartou apontando-o com a arma.
-Não vou sem ele.
-Esse homem está morto!
-Não! Levanta-o!
A fúria e o assombro cruzaram pelo rosto do Bonnet.
-Levanta-o! -repetiu com fúria.
Muito lentamente, Bonnet levantou o John Grei e o carregou sobre os ombros.
-Vamos, então.
E sem dizer nada avançou pela escuridão levando a Brianna atrás dele.
Bonnet se movia bastante mais rápido que ela; quase não podia lhe seguir.
-Mulher! Brianna!
-Já vou! -respondeu, e se apressou cambaleante.
Podia cheirar a fumaça.
Estavam debaixo do mole, pensou Brianna ao ver a água brilhando sobre suas cabeças. Bonnet não se deteve nem a soltou, empurrou-a para a erva e o barro da borda até que se deteve baixo umas árvores. Se, inclinou, deslizou o corpo de Grei na terra e ficou naquela posição até recuperar o fôlego.
Brianna se deu conta de que podia ver claramente aos dois homens. deu-se a volta e viu o depósito ardendo e as chamas subindo pelas paredes. Sentiu uma mão no ombro; ao dá-la volta se encontrou com a cara do Bonnet.
-Tenho um navio me esperando rio acima. Quer vir comigo?
Brianna negou com a cabeça. Ainda tênia a arma, mas já não a necessitava. Ele já não era uma ameaça para ela.
-É verdade? -perguntou bruscamente Bonnet.
Sem pedir permissão pôs as mãos sobre seu ventre. Brianna se fez a um lado e se cobriu com a capa. Assentiu sem poder falar.
Levantou-lhe o queixo e a olhou à cara. Possivelmente para assegurar-se de sua sinceridade. Então a soltou e se meteu um dedo na boca para procurar algo.
Agarrou-lhe a mão e lhe deixou algo úmido e duro sobre a palma.
-Para que o mantenha -disse, e sorriu zombador-, Cuida-o, carinho!
E desapareceu como um demônio no meio do fogo. Levantou o mosquete com o dedo no gatilho. Não estava a mais de vinte metros, um branco perfeito. «Não por sua mão.»
Baixou a arma e o deixou partir.
O depósito estava em chamas e o calor lhe coloria as bochechas e lhe frisava o cabelo. Ainda tinha o punho fechado com o objeto que lhe tinha dado. Abriu a mão e olhou o úmido diamante negro que o fogo iluminava, fazendo brilhar suas caras com tons avermelhados.
River Run, maio de 1770
-É a mulher mais teimosa que conheci em minha vida!.
Brianna entrou na habitação como um navio a toda vela e se deixou cair no sofá, ao lado da cama.
Lorde John Grei abriu um olho baixo o turbante de vendagens.
-Sua tia?
-Quem, se não?
-Tem um espelho em seu dormitório, não?.
Sua boca se curvou formando um sorriso e ela acabou imitando-o.
-É por seu maldito testamento. Disse-lhe que não queria River Run, que não vou ser a proprietária de nenhum escravo, mas ela não quer trocá-lo. Simplesmente sorri como se eu fora uma menina de seis anos que tivesse um manha de criança, e logo me diz que com o tempo me alegrarei. me alegrar! -Soprou e se acomodou na poltrona—. O que posso fazer?
-Nada.
-Nada? -Derrubou seu desgosto sobre ele- Como não vou fazer nada?
-Para começar, surpreenderia-me muito que sua tia não fora imortal. Muitos membros dessa particular raça de escoceses parecem sê-lo. Entretanto -agitou a mão para descartar a idéia—, sim não o é e ela persiste em sua idéia de que pode ser uma boa proprietária do River Run...
-O que te faz pensar que não posso sê-lo? -disse com seu orgulho ferido.
-Não pode dirigir uma plantação deste tamanho sem escravos e não quer os ter por questões de consciência. Voltando para tema, se for a proprietária dos escravos sempre poderá fazer algum tipo de acerto para liberá-los.
-Não na Carolina do Norte. A Assembléia...
-Não, não na Carolina do Norte -disse e continuou pacientemente-. Mas se surgir a ocasião e te encontra em posse dos escravos, me pode vender isso a mi.
-Mas isso...
-Eu os levaria a Virginia, onde a emancipação está muito menos controlada. Quando forem livres, devolve-me o dinheiro. Por então não ficará nada, o que parece ser seu principal desejo, além de te acautelar contra toda possibilidade de ser feliz, te esforçando por não te casar com o homem que amas, por exemplo.
-Prometi que primeiro o escutaria. -Olhou a lorde John-. Embora siga dizendo que é uma chantagem sentimental.
-Muito mais efetivo que outros. Quase vale a pena rompê-la cabeça para poder dominar a uma Fraser.
Brianna passou por cima o comentário.
-Só disse que escutaria ao Roger. Ainda penso que quando o souber tudo não quererá..., não poderá. —Pôs uma mão sobre seu enorme ventre-. Você não poderia, não? Refiro-me a te fazer carrego de um filho que não é teu.
Lorde John fez uma careta e se acomodou na cama.
-Pelo bem de seus pais? Suponho que sim. -Abriu os olhos e a olhou sonriendo-. Em realidade, é o que estive fazendo.
-Refere-te para mim? Bom, se, mas... quero dizer... eu não sou uma menina e não tem que me reclamar como própria; e espero que não o faça, sobre tudo por meu pai.
ficou quieto um instante e lhe apertou a mão.
-Não, não é isso. -E deixou escapar um grunhido.
-Encontra-te mau? -perguntou ansiosa-. Quer que te traga algo? Chá? Um cataplasma?
-Não, é a maldita dor de cabeça -disse-. A luz me incomoda.
Fechou os olhos de novo.
-me diga -disse, com os olhos fechados-, por que está tão convencida de que um homem não pode querer a um menino, salvo que seja de seu sangue? Quando disse que o tinha feito, não referia a tí. Meu filho, meu enteado, é o filho da irmã de meu difunta algema. Por um trágico acidente, seus pais morreram com um dia de diferença. Minha esposa Isobel e seus pais o criaram desde recém-nascido. Eu me casei com o Isobel quando Willie tinha seis anos. Como vê, não há laços de sangue entre nós, entretanto, ninguém pode duvidar de meu afeto para ele, nem dizer que não é meu filho, porque lhe pediria contas por isso.
-Já vejo -disse—. Não sabia. —Pensativa, jogava com seu anel-. Acredito... acredito que não estou tão preocupada com o Roger e o menino. Para ser sincera...
-Não poderia ser de outra maneira -murmurou.
-Para ser sincera -continuou- acredito que me preocupa mais o que acontecer nós, entre o Roger e eu. -Vacilou e seguiu falando-. Eu não sabia que Jamie Fraser era meu pai, não soube até que fui maior. Depois do levantamento, meus pais se separaram, cada um pensou que o outro tinha morrido e por isso minha mãe se casou de novo. Acreditava que Frank Randall era meu pai e não descobri a verdade até depois de sua morte.
-Ah! -Observou-a com crescente interesse—, E esse Randall foi cruel contigo?.
-Não! O foi... maravilhoso. —Lhe quebrou a voz e tossiu—, Não, foi o melhor pai que pude ter tido. Pensava que meus pais eram um matrimônio feliz. preocupavam-se o um pelo outro e se respeitavam; bom eu acreditava que tudo ia bem.
Lorde John se arranhou as vendagens. O médico lhe tinha barbeado a cabeça, o qual, além de ferir sua vaidade, produzia-lhe picores.
-Não vejo a diferença com sua situação atual.
Brianna suspirou.
-Então meu pai morreu Y... descobrimos que Jamie Fraser ainda vivia. Minha mãe veio a reunir-se com ele e atrás dela cheguei eu. Y... era diferente, notei-o quando vi como se olhavam o um ao outro. Nunca tinha visto um olhar assim entre o Frank Randall e ela.
-Ah, sim.
Ele tinha visto aquele olhar um par de vezes. A primeira vez desejou desesperadamente cravar uma faca no coração do Claire.
-Sabe o estranho que é? -perguntou Grei-, Essa paixão mútua?
-Sim. O que passa é que... acredito que a senti. Por muito pouco tempo, muito pouco. -Voltou a cabeça e o olhou, deixando que visse através de seus olhos-. Se a perdi, quer dizer que a tive. Poderei viver com ela ou sem ela. Mas não vou viver com uma imitação. Não o poderia suportar.
Brianna lhe colocou a bandeja do café da manhã e se desabou na poltrona.
-Drusus chegou correndo à cozinha avisando da chegada de dois cavaleiros. Diz que alguém é meu pai: um homem grande com o cabelo avermelhado. Deus sabe que não há muitos como ele.
-Não, não muitos. -Grei sorriu-. Assim dois cavaleiros?
-Têm que ser P e minha mãe. Não encontrariam ao Roger. Ou o fizeram e não quis vir -disse jogando com o anel-,Que sorte que tenho este refúgio!
Lorde John piscou e tratou de tragar o bocado de torrada.
-Sim com essa extraordinária metáfora quer dizer que tenta te casar comigo, asseguro-te que.,.
-Não. -Dirigiu-lhe um sorriso indiferente—. Era uma brincadeira.
-Ah, bom. -Tomou um sorvo de chá, fechando os olhos para desfrutar de melhor o aroma-. Dois cavaleiros. Não foi com eles sua primo?.
-Sim. Espero que não lhe tenha acontecido nada ao Ian.
-Podem ter ocorrido muitas coisas que obrigassem a sua mãe e a sua primo a empreender a viagem depois que seu pai e MacKenzie. Ou para que sua primo e MacKenzie venham detrás de seus pais.
-Suponho que tem razão.
Grei apartou a bandeja.
-me diga..., até onde chegam seus remorsos por ter provocado o incidente que quase me custa a vida?
-O que quer dizer?
ruborizou-se incômoda.
-Se te pedir que faça algo que não deseja fazer... Seu sentido de culpa e obrigação te empurrará a fazê-lo?
-Uma chantagem. Do que se trata? -perguntou cautelosa.
-Perdoa a seu pai. Não importa o que tenha acontecido. O embaraço a tinha feito mais sensível e as emoções lhe notavam na pele. Grei lhe acariciou a bochecha. -Por seu bem, tanto como pelo dele.
-Já o tenho feito.
Baixou o olhar, com as mãos quietas sobre o regaço. O som dos cascos dos cavalos chegou do exterior.
-Então, acredito que será melhor que vá e o diga, querida.
mordeu-se os lábios e assentiu. Sem dizer uma palavra mais ficou em pé e desapareceu como uma nuvem de tormenta no horizonte.
-Quando ouvimos que vinham dois cavaleiros e um deles era Jamie, tememos que lhe tivesse passado algo a seu sobrinho ou ao MacKenzie. Seja como for, a nenhum nos ocorreu que te pudesse ter acontecido algo a ti.
-Sou imortal -murmurou, olhando alternativamente a seus olhos— Não sabia? —Afrouxou a pressão de seus polegares sobre as pálpebras de Grei e este piscou-- Tem um ligeiro alongamento de uma pupila, mas é muito pequeno. Oprime meus dedos o mais forte que possa.
Obedeceu, assombrado de sua pouca força.
-Encontraram ao MacKenzie?
Incomodava-lhe não poder controlar sua curiosidade.
Claire lhe lançou um olhar rápido e voltou a fixar sua atenção nas mãos de lorde John.
-Sim. Já virá. um pouco mais tarde.
-Fará-o?
Captou o tom da pergunta e vacilou, logo o olhou diretamente.
-O que é o que sabe?
-Tudo -disse, e teve a momentânea satisfação de vê-la assombrada.
-Tudo?
-O suficiente -corrigiu com sarcasmo-. O suficiente para perguntar se a afirmação de que MacKenzie retornará é algo que sabe ou só seu desejo de que ocorra.
-Chama-o fé.
Abriu-lhe a camisa de dormir lhe deixando o peito ao descoberto. Apoiou uma ponta do tubo sobre o peito e colocou o ouvido no outro extremo.
-Por favor, senhora!
-Cala, não posso ouvir -disse fazendo gestos com uma mão..
Foi colocando o tubo em diferentes parte e lhe apalpou o fígado.
-Fez de ventre hoje? -perguntou, lhe tocando com familiaridade o abdômen.
-Nego-me a responder -disse, fechando-a camisa com dignidade.
Parecia mais extravagante do habitual. A mulher devia ter mais de quarenta anos, mas não mostrava signos de envelhecimento salvo umas pequenas linhas junto aos olhos e mechas chapeadas nesse ridículo arbusto de cabelo. Estava mais magra do que recordava, embora era difícil julgar sua figura vestida com a camisa e os calções de couro. notava-se que tinha estado exposta ao sol, pois tanto seu rosto como suas mãos estavam bronzeados. Isso fazia que seus grandes olhos dourados parecessem mais assombrosos quando olhavam do modo em que o fazia nesse momento.
-Brianna me disse que o doutor Fentiman lhe trepanó o crânio.
-Isso me hão dito. Então não me dava conta.
-Melhor. Importaria-te que o olhasse? É por curiosidade-disse com uma delicadeza desacostumada-. Nunca vi uma trepanação.
Lorde John fechou os olhos em sinal de rendição.
-Deixando a um lado o estado de minhas tripas, não tenho secretos para você, senhora.
Torceu a cabeça indicando a localização do orifício baixo as ataduras.
-Brianna está com seu pai? -perguntou, ainda com os olhos fechados.
-Sim. -Sua voz se suavizou-. Disse-me... disse-nos— algo do que fez por ela. Muito obrigado.
-Foi um prazer estar a seu serviço. Inclusive com o crânio perfurado.
Sorriu fracamente.
-Jamie virá a verte depois. Agora está falando com a Brianna no jardim.
-Estão.,, de acordo? -perguntou com um toque de ansiedade.
-Você mesmo o pode ver. -Passou-lhe um braço pelas costas e com uma força surpreendente para uma mulher de seu tamanho, endireitou-o. Viu as duas figuras ao fundo do jardim, com as cabeças juntas, rendo e abraçando-se.
-Acredito que chegamos bem a tempo -murmurou Claire, observando a sua filha-. Não lhe falta muito.
-Confesso que me alegro de sua chegada -disse, deixando que o voltasse a deitar sobre o travesseiro- Logo que sobrevivi à experiência de ser a babá de sua filha, e me temo que ter que fazer de parteira tivesse terminado comigo.
-Quase me esquecimento. -Claire procurou na bolsita de couro que lhe pendurava do pescoço-. Brianna me disse que lhe devolvesse isso... já não o necessitará.
Levantou a mão e o brilhante azul caiu sobre sua palma.
-Cabaças! -disse com um sorriso zombador.
-É como no beisebol -assegurei-lhe-. Largos períodos de aborrecimento, seguidos de tempos curtos de intensa atividade. Brianna riu e logo se deteve bruscamente.
-Ah. Intensos. Sim, ah... Ao menos nos partidos de beisebol pode beber cerveja e comer perritos quentes quando te aborrece.
Jamie, fazendo caso só à parte da conversação que podia entender, interveio.
-Há cerveja fresca na despensa. Quer que te traga? - E olhou ansioso a Brianna.
-Não -pinjente-, o álcool não é bom para o menino.
-Ah. E o cão quente?
Parecia preparado para caçar um.
-É uma espécie de salsicha metida em pão -pinjente, fazendo esforços para não rir -.Não acredito que queira comer agora.
-Não -disse Brianna fracamente.
Jamie lhe limpou o suor da cara e do pescoço.
—Ponha sua cabeça entre os joelhos.
Brianna o olhou indignada.
-Não posso pôr... a cabeça... entre os joelhos -disse com os dentes apertados.
O espasmo passou e a cor voltou para suas bochechas.
Jamie franzia o cenho com preocupação. Deu um passo fazia a porta.
-Acredito que será melhor que vá, assim...
-Não me deixe!
-Mas é que... quero dizer, tem a sua mãe Y...
-Não me deixe! -repetiu e o agarrou por braço,-sacudindo-o com desespero-. Não pode fazê-lo! Disse que não morreria. Se fica estarei bem e não morrerei.
Era forte e saudável, Eu tinha perdido um filho e quase morro por culpa da febre. Senti medo. Eu podia proteger a da febre mas ante uma hemorragia não tinha defesas, salvo tratar de salvar à criatura com uma cesárea. Como medida de prevenção tinha esterilizado meu bisturi.
-Não morrerá, Bri -pinjente; com calma pus uma mão sobre seu ombro, mas deveu sentir meu temor detrás de meu aspecto de profissional.
-P, não me deixe.
Apoiou-se no Jamie.
-Não tenha medo, não te deixarei. Fico aqui.
Sustentou-a com um braço e me olhou desesperado.
-Caminha com ela -disse-lhe-. Como se fora um cavalo com um cólica -acrescentei.
Isso fez rir a Brianna.
-Está bem? -perguntou ansioso, depois de dar várias voltas.
-Já lhe direi isso quando não o estiver —assegurou.
depois de quase uma hora de caminhar, Brianna se deteve em meio da habitação respirando como um cavalo depois de uma carreira.
-Quero me deitar -disse.
Fedra e eu lhe tiramos o vestido e a deitamos. Pus as mãos sobre seu ventre e senti, depois de uma contração, os movimentos da criatura.
-Pai!
Jamie a agarrou da mão.
-Estou aqui, a bheanachd, estou aqui.
Respirou pesadamente, relaxou-se e tragou.
-Quanto falta? -perguntou.
-Não sei. Mas acredito que não muito.
As contrações eram a cada cinco minutos mais ou menos, isso podia durar ou terminar bruscamente.
-Está-o fazendo bem, carinho -murmurei-. Muito bem.
—Olhei ao Jamie e sorri-. Você também.
Tentou me devolver o sorriso.
-me fale, P -disse súbitamente Briannna.
-Né? -Me. olhou desesperado-, O que devo dizer?
-Não importa. o conte histórias, algo que distraia sua mente.
-Bom. ouviste falar do Habetrot a solteirona?.
Brianna respondeu com um grunhido.
-Pois resulta que em uma antiga granja, perto do rio, vivia uma mulher chamada Maisie, com cabelo avermelhado e olhos azuis. Não tinha marido... -deteve-se e o olhei lhe avisando.
Brianna deixou escapar um gemido terrível. Jamie lhe sujeitou as mãos e seguiu falando. de repente, Brianna se incorporou soltando ao Jamie e agarrando-as joelhos com o rosto congestionado pelo esforço.
-Agora, vamos -pinjente.
Pu-lhe travesseiros detrás, fiz-a apoiar-se na cabeceira e chamei a Fedra para que me iluminasse com o candelabro. Lubrifiquei-me os dedos com azeite e toquei aquela carne que não tocava desde que Brianna era uma menina. Senti força, relaxação, logo outra contração e o líquido amniótico que se derramava pela cama e gotejava no chão. Rezei para que não chegasse muito rápido e não a machucasse. O anel de carne se abriu súbitamente e meus dedos tocaram algo úmido e duro. Brianna empurrava, até que de repente apareceu uma cabecita manchada com sangue e líquido amniótico. Encontrei-me frente a frente com uma cabeça branca e uma cara enrugada como um punho que fazia caretas de fúria.
-O que é? Um menino? -perguntou Jamie com voz rouca.
-Isso espero. É a coisa mais horrível que vi. Que Deus a ajude se for uma menina.
Brianna deixou escapar um ruído que podia ser uma risada. Quase não tive tempo de recolher a larga forma molhada. Envolvi-o em uma toalha de linho: era um menino, com o escroto redondo e púrpura entre suas gordas coxas; controlei os signos do Apgar: respiração, cor, atividade... tudo bem. Fazia ruiditos de aborrecimento e golpeava o ar com seus punhos. Apoiei-o na cama enquanto me ocupava da Brianna. Não havia sinais de hemorragia e o cordão pulsava; era a conexão entre eles.
Brianna ofegava na cama, com o cabelo pego pelo suor e um enorme sorriso de alívio e triunfo em seu rosto. Toquei a placenta.
-Uma vez mais, querida -pinjente brandamente.
A última contração expulsou a placenta e então cortei o cordão e depositei o menino em seus braços.
-É precioso –sussurrei.
Deixei-o com ela e dediquei ao que ficava por fazer. Apertei-lhe o abdômen com o punho, com o fim de que o útero se contraíra e deixasse de sangrar. Podia ouvir a rajada de excitação que invadia a casa depois dos passos da Fedra, que corria dando a notícia.
Jamie sorria com as bochechas molhadas pelas lágrimas. Disse algo a Brianna em gaélico e a beijou detrás da orelha.
-Terá fome? -A voz da Brianna era rouca-. Devo lhe dar de mamar?.
-Prova. Algumas vezes estão dormidos, mas outras querem comer.
abriu-se a camisola deixando ao descoberto seu volumoso peito. A criatura fez uns ruídos e sua boca se prendeu do mamilo com ferocidade.
-É forte, né? -pinjente, e me dava conta de que estava chorando.
Mais tarde, depois de deixar a Brianna e ao menino acomodados e lhes fazer um último controle para me assegurar de que tudo seguia bem, saí à galeria.
Jamie tinha ido contar se o ao John e me esperava ao pé da escada. Agarrou-me entre seus braços e me beijou.
-Você também o fez muito bem -sussurrou. Logo seus olhos brilharam de alegria e sorriu-. Abuelita!
-É branco ou moreno? -perguntou súbitamente Jamie, apoiando um cotovelo na cama-. Contei seus dedos, mas não emprestei atenção a nada mais.
-Não se pode saber ainda. -Eu tinha contado seus dedos e também o pensei-. por agora é avermelhado e está talher por esse líquido branco. É provável que passe um dia ou dois antes de que sua pele tenha a cor natural. Tem um pouco de cabelo escuro, mas lhe cairá. Além disso a cor de sua pele não provará nada, já que Brianna é branca de pele.
-Sim... mas se fosse moreno teríamos a segurança.
-Talvez não. Seu pai tinha a pele escura, como o meu. Podem ser gens recessivos Y...
-Podem ser o que?
Tratei, sem êxito, de explicar-lhe mas estava muito cansada para tanto esforço.
-Pode ser de qualquer cor e nunca teremos a segurança -pinjente bocejando-. Não saberemos até que seja o bastante major para lhe encontrar algum parecido. Mas importa quem seja seu pai? A fim de contas, não vai ter nenhum.
Jamie me abraçou. Dormia nu e senti o pêlo de seu corpo contra minha pele. Beijou-me brandamente no pescoço e suspirou.
-Ah, bom -disse pouco depois com tom desafiante-. Embora não conheça seu pai, ao menos estou seguro de quem é seu avô.
-Agora, durma, avô. Já tivemos suficiente por um dia.
Ao momento estava dormido. Fiquei com os olhos bem abertos olhando as estrelas através da janela. Havia dito a frase favorita do Frank, a que utilizava quando Brianna ou eu nos preocupávamos com algo: «Foi suficiente por um dia». O ar da habitação tinha vida, movia as cortinas e acariciava minhas bochechas.
-Sabe? -sussurrei-- Sabe que já tem um filho?
Não houve resposta, mas a paz se apoderou gradualmente de mim na quietude da noite, até que finalmente o sonho chegou.
Yocasta se mostrava pouco disposto a separar-se de seu novo parente, mas a semeia da primavera já ia com atraso e tínhamos nosso lar abandonado; precisávamos retornar à Colina quanto antes e Brianna não queria nem ouvir falar de ficar. O que nos facilitou as coisas, porque tivéssemos necessitado dinamite para separar ao Jamie de seu neto.
Lorde John já estava em condições de viajar e veio conosco até a rota do Great Bufa-o, onde beijou a Brianna e ao menino, abraçou ao Jamie e, para minha surpresa, a mim também; e se dirigiu para o norte, fazia Virginia e haciaWillie.
-Confio em que te ocupará deles -disse-me brandamente, assinalando o carro onde duas cabeças avermelhadas se inclinavam sobre o menino.
-Farei-o -respondi apertando sua mão-. Eu também confio em ti.
Levou minha mão brevemente até seus lábios e me sorriu. afastou-se sem olhar para trás.
Uma semana mais tarde chegamos ao caminho onde cresciam os morangos silvestres: verde, branco e vermelho juntos, perseverança e valor, doçura e amargura mescladas à sombra das árvores.
A cabana estava suja, o jardim descuidado e a estrutura da nova casa era como um esqueleto negro. Pareciam umas ruínas. Nunca senti tanta alegria ao chegar a casa. Nunca.
«Nome», escrevi e me detive. Seu sobrenome estava aberto a discussão e seu nome de pilha ainda não tinha sido decidido. Eu o chamava «tesouro» ou «querido». Lizzie o chamava «querido moço» e Jamie lhe falava em gaélico, lhe dizendo «neto» ou ao Rnaidh, «o Vermelho», já que seu penugem negro e sua pele escura se converteram em uma espécie de incendeio sobre sua pele branca, o que deixava bem claro quem era seu avô, à margem de quem fora seu pai.
Brianna não precisava chamá-lo de maneira nenhuma. Sempre o tinha com ela. Não queria lhe dar um nome ainda.
-Quando? -tinha perguntado Lizzie, mas Brianna não respondeu.
Eu sabia quando, quando retornasse Roger.
-E se não vir? -disse-me Jamie em privado-. A pobre criatura não pode viver sem nome. Essa moça é muito teimosa!.
-Ela confia no Roger -disse com imparcialidade-. Você deveria tentar fazer o mesmo.
Olhou-me de forma cortante.
-Há uma diferença entre confiança e esperança, Sassenach, e você sabe tão bem como eu.
-Então, por que não tem esperança?.
Dava-lhe as costas.
Jamie me rodeou e se sentou frente a mim.
-Farei-o -disse com uma faísca de humor em seus olhos—. Se posso decidir entre se tiver esperança de que venha ou de que não venha.
Sorri.
-O que está fazendo, Sassenach?
-Faço um certidão de nascimento para nosso pequeno Gizmo, o melhor que posso -acrescentei.
-Gizmo? -disse duvidando-. É o nome de um santo?
-Não acredito, mas nunca se sabe com gente chamada Pantaleón e Onuphrius. Ou Ferreolus.
-Ferreolus? Acredito que não o conheço.
-É um de meus favoritos -pinjente, anotando com cuidado a data e a hora do nascimento, embora isso era estimativo. Só havia duas informações exatas em meu certificado, a data e o nome do médico.
Jamie se deu a volta no banco, olhando através da porta aberta. Brianna e Lizzie estavam sentadas no prado, observando ao menino nu, de barriga para baixo sobre um xale e com as nádegas tintas como um macaco.
«Brianna Ellen», escrevi e me detive.
-Brianna Ellen Randall, parece-te bem? -perguntei-. Ou Fraser? Ou ambos?.
Jamie não se voltou, mas se encolheu de ombros.
-Importa isso?
-Pode. Se Roger retornar, fique ou não, se escolhe reconhecer ao pequeno Anônimo, suponho que seu sobrenome será MacKenzie. Se não o fizer ou não quer, então imagino que o menino terá o sobrenome da mãe.
Permaneceu em silêncio, olhando às duas moças.
-Ela se chama a si mesmo Fraser. Ou assim o fazia.
Estendi a mão para lhe tocar o braço.
-Perdoou-te -pinjente-. Sabe que o fez.
-por agora. Mas e se esse homem não vier?.
Vacilei. Tinha razão; Brianna o tinha perdoado pelo equívoco anterior. Mas se Roger não aparecia logo culparia ao Jamie, e não sem razão, devia admiti-lo.
-Ponha os dois -disse bruscamente-. Deixa que ela escolha.
-Ele voltará -disse com firmeza- e tudo irá bem. E acrescentei em um murmúrio-: Confio em que assim seja.
deteve-se para beber. Era um dia caloroso da primavera. Sua lembrança de uma navalha de barbear era muito longínquo; sua barba era espessa e seus cabelos caíam por debaixo dos ombros. A noite anterior se banhou em um arroio e tinha lavado sua roupa, mas não se fazia iluda sobre seu aspecto. Tampouco lhe importava, disse-se. Seu aspecto não tinha importância.
Foi coxeando até onde tinha deixado seu cavalo. Doía-lhe o pé, mas isso tampouco lhe importava. Montou e percorreu lentamente o claro onde encontrasse pela primeira vez ao Jamie Fraser. Agora as folhas eram novas e verdes. Conduziu seu cavalo para o topo da Colina, apurando-o com seu pé são. Não tinha nem idéia de como o receberiam, mas isso era o de menos. Nada importava, salvo o fato de que estava ali.
Os coelhos tinham estado de novo no pomar. Havia trazido brotos e sementes desde o River Run e, apesar de ter estado tanto tempo sem cuidados, a maioria tinham sobrevivido.
Fiquei pensando a forma de afugentar aos coelhos. Nayawenne me havia dito que o aroma da urina dos carnívoros os espantava. Decidi que Jamie seria o melhor repelente. Então captei um movimento no limite do claro. Acreditando que era ele, voltei-me para lhe informar de sua nova tarefa, mas me detive quando vi de quem se tratava.
Estava pior que a última vez que o tinha visto. Não tinha chapéu, e o cabelo e a barba se uniam formando um arbusto escuro. Sua roupa se converteu em farrapos. Ia descalço, com um pé envolto em trapos, e coxeava.
Viu-me imediatamente e se deteve enquanto eu me aproximava.
-Me alegro de que você seja -disse-. Perguntava a quem veria primeiro.
-Seu pé, Roger.
-Não importa. -Agarrou-me do braço-, Estão bem? O menino e Brianna?
-Estão muito bem. Todos na casa estão bem. -Sua cabeça se voltou para a cabana-. Tem um filho.
Olhou-me assombrado.
-É meu? Tenho um filho?
-Suponho que assim é. Está aqui, verdade?
A esperança e o assombro se atenuaram, mas sorriu.
-Estou aqui-disse e se voltou para a cabana.
Jamie estava sentado frente à mesa junto à Brianna, fazendo desenhos de planos da casa enquanto o menino dormia plácidamente em seu berço e Brianna o balançava com um pé. Lizzie fiava junto à janela, cantarolando brandamente uma canção.
-Uma cena muito caseira -disse Roger-. Parece-me uma vergonha turvá-los.
-Pode escolher?
-Sim, já o fiz.
E entrou decidido pela porta aberta.
Jamie reagiu ante o desconhecido apartando a Brianna e agarrando a pistola da parede. Já estava apontando-o quando se deu conta de quem era e baixou a arma com uma exclamação de desgosto.
-É você -disse.
O menino, sobressaltado pelos ruídos, despertou gritando. Brianna o tirou do berço e o apertou contra seu peito, olhando com os olhos muito abertos o que para ela era uma aparição.
Tinha-me esquecido de que não o via desde o Wilmington. Roger deu um passo para ela; instintivamente, Brianna retrocedeu. Roger permaneceu imóvel, olhando ao menino, e Brianna se sentou para lhe dar de mamar, mas se tampou os peitos com o xale.
Vi os olhos do Roger ir do menino para o Jamie, quem permanecia ao lado da Brianna com essa rigidez que tanto me assustava. Nunca tinha encontrado parecido entre eles. Agora eram como o dia e a noite, imagens de fogo e escuridão.
«MacKenzie», pensei súbitamente: animais, vikingos, grandes e sanguinários. E vi o terceiro eco dessa herança brilhando nos olhos da Brianna. Queria dizer ou fazer algo para romper a tensão, mas era inútil.
Roger estendeu sua mão para o Jamie com a palma para cima. O gesto não era de súplica.
-Não acredito que eu você goste mais do que você eu gosto -disse com sua voz rouca-, mas é meu parente mais próximo: me faça um corte. vim para fazer um juramento com nosso sangue compartilhado.
Não sei se Jamie vacilou ou não. O tempo se deteve e o ar se cristalizou quando a faca do Jamie cortou a magra boneca do Roger e o sangue brotou. Para minha surpresa, Roger não olhava a Brianna, nem tão sequer agarrou sua mão. passou-se o polegar pelo corte e deu um passo para o menino. Brianna o apartou instintivamente, mas Jamie lhe pôs uma mão no ombro.
Roger se ajoelhou, apartou o xale e riscou uma cruz com o polegar manchado de sangre na frente da criatura.
-Você é sangue de meu sangue -disse brandamente- e carne de minha carne. Proclamo-te meu filho ante todos os homens, desde hoje e para sempre.
Olhou desafiante ao Jamie, o qual, depois de um comprido momento, fez um ligeiro gesto de assentimento e retrocedeu.
Roger olhou a Brianna.
-Que nome lhe pusestes?.
-Ainda... nenhum.
Olhou-o. Era evidente que o homem que tinha retornado não era o mesmo que a tinha deixado. Tinha os olhos cravados nos dela. Quando ficou em pé o sangue lhe jorrava pela boneca. Com certa impressão, dava-me conta de que ela estava tão trocada para ele como ele para ela-
-É meu filho -disse Roger, assinalando ao menino-, E você é minha esposa?.
Brianna empalideceu.
-Não sei.
-Este homem diz que lhes casaram de palavra. -Jamie deu um passo adiante-, É certo?
-Nós... fizemo-lo.
-Ainda estamos casados.
-Roger respirou profundamente e me dava conta de que ia desabar se. Agarrei-o do braço e o ajudei a sentar-se; depois mandei ao Lizzie a procurar leite enquanto lhe curava a boneca.
Servi brandy ao Jamie e o mesclei com o leite ao Roger. A tensão pareceu relaxar-se um pouco.
-Muito bem -disse Jaime-. Se está casada de palavra, Brianna, é seu marido.
Brianna se ruborizou, mas olhava ao Roger, não ao Jamie.
-Disse que o matrimônio de palavra durava um ano e um dia.
-E você disse que não queria nada temporal.
Brianna vacilou, mas logo juntou os lábios com firmeza.
-E não o quero, mas não sei o que acontecerá. -Olhou a todos-. Disseram-lhe... que o menino não é teu?.
Roger arqueou as sobrancelhas.
-Mas é meu, não?
Levantou a boneca enfaixada para prová-lo.
-Sabe o que quero dizer.
Olhou-a aos olhos.
-Sei o que quer dizer. E o sinto.
-Não foi tua culpa.
Roger olhou de esguelha ao Jamie.
-Sim, foi. Devi ficar contigo, me assegurar de que estava a salvo.
-Disse-te que fosse e era a sério. -Brianna moveu os ombros com impaciência-. Mas isso não importa agora. Quero saber uma coisa -disse com voz tremente-. Quero saber por que tornaste.
Deixou sua jarra sobre a mesa.
-Não queria que voltasse?
-Não importa o que eu queria. O que agora quero saber é se veio porque queria ou porque pensou que devia fazê-lo.
Olhou-a durante um momento.
-Talvez por ambas as coisas. Talvez por nenhuma. Não sei. Tal é a verdade ante Deus: que não sei.
-Foi ao círculo de pedras? -perguntou.
Assentiu sem olhá-la e tirou a grande opala de seu bolso.
-Estive ali. Por isso demorei para voltar. Levou-me tempo encontrar o círculo de novo.
—Não foi. Mas pôde fazê-lo. Talvez deveu fazê-lo. -Olhou-o com firmeza-. Não quero viver contigo se o fizer por obrigação. Vi um matrimônio por obrigação e um por amor. Se não houvesse visto ambos teria podido viver com o primeiro. Mas os vi e não quero.
Senti como se me golpeassem: estava falando de meu matrimônio. Olhei ao Jamie e vi em seu rosto a mesma expressão que devia ter o meu.
Jamie tossiu e se dirigiu ao Roger.
-Quando lhes casaram?
-Em 2 de setembro -respondeu Roger.
-E agora estamos em meados de junho. -Olhou-os aos dois com o cenho franzido-. Bom, se está casada de palavra com este homem, então está unida a ele, não há discussão.
-voltou-se para o Roger-. Viverá aqui como seu mando. E em 3 de setembro ela escolherá se vos casa um sacerdote ou se deve deixá-la e não incomodá-la nunca mais. Tem esse tempo para averiguar por que está aqui e convencê-la a ela.
Roger e Brianna foram protestar, mas Jamie os deteve.
-Pinjente que viverá aqui como seu marido. Mas se a toucas sem que ela queira te arrancarei o coração e o darei aos porcos. Entende-me?
Roger lhe olhou fixamente.
-Acredita que me aproveitaria de uma mulher que não me quisesse?
Uma pergunta inconveniente, tendo em conta que Jamie quase o mata por supor que o tinha feito.
Roger saiu bruscamente e Jamie foi atrás dele. Brianna me olhou.
-O que crie que...?
Interromperam-na uma série de ruídos e grunhidos.
-Trata-a mau e te arrancarei as Pelotas e lhe farei tragar isso. Jamie falava em gaélico. Brianna o entendeu e ficou com a boca aberta, sem poder falar.
-Volta a me pôr as mãos em cima -disse Roger— e te colocarei a cabeça no culo, que é de onde provém.
Houve um momento de silêncio e logo um ruído de passos que se afastavam.
-Excesso de testosterona -disse a Brianna.
-Não pode fazer algo?.
Não sei se queria rir ou estava histérica.
-Bom -pinjente finalmente-, só há duas coisas que podem fazer, alguém é matar o um ao outro.
Brianna se esfregou o nariz.
-Ah! E a outra...
Nossos olhos se encontraram com perfeito entendimento.
-Eu me ocupo de seu pai. Mas Roger é teu problema.
A vida na montanha transcorria cheia de tensão pela conduta da Brianna e do Roger, que Jamie olhava com desaprovação; pela do Lizzie, que tratava de fazer-se perdoar por tudo e o menino, que tinha decidido ter cólicas noturnos.
Talvez os cólicas impulsionaram ao Jamie a terminar a nova casa. Fergus e outros vizinhos tinham semeado nossas terras e, embora não teríamos trigo para vender, ao menos poderíamos comer.
Roger fazia o que podia para ajudar nas tarefas da granja, mas seu pé lhe incomodava. Rechaçava meus intentos de curá-lo, mas não quis esperar mais, assim fiz meus preparativos e lhe informei que o curaria ao dia seguinte.
Tirei-lhe as ataduras e lhe limpei a ferida infectada.
-Tem abscessos muito profundos. -Apertei tas bolsas de pus; Roger empalideceu e se agarrou aos barrotes da cama, mas não disse nada-. Tem sorte, os abscessos se abriram e drenaram bem sem chegar a te infectar o osso.
-Bom -disse fracamente.
-Bri, necessito sua ajuda -pinjente, me dirigindo para onde as duas moças estavam com o menino.
-Já vou eu, me deixe fazê-lo -disse Lizzie, ansiosa por ajudar.
Seus remorsos por sua parte de culpa nas desgraças do Roger a impulsionavam a lhe oferecer sua ajuda, a lhe levar comida e a ocupar-se de sua roupa.
Sorri-lhe.
-Sim pode ajudar. Agarra ao menino, asi Brianna poderá vir aqui. por que não o leva fora, para que tome o ar.?.
Com gesto de dúvida, Lizzie obedeceu e Brianna se colocou a meu lado evitando olhar ao Roger.
-vou abrir isto, limpá-lo e drená-lo o melhor que possa -expliquei-lhes-. Logo tenho que retirar a malha morta. Não se preocupe, acredito que por sorte o osso não está infectado. O arrancar a malha morta não dói.
-Não? .
-Não. O que dói é a drenagem e a desinfecção. -Olhei a Brianna-. Por favor, sujeita o pelas mãos.
Vacilou um instante, foi até a cabeceira e lhe agarrou as mãos. Ele as apertou sem lhe tirar os olhos de cima. Era a primeira vez que se tocavam em quase um ano.
-lhes agarre com força -indiquei-lhes-. Esta é a pior parte. Trabalhei rápido e sem levantar a vista.
-Quer algo para morder, Roger? -perguntei, tirando meu botellita de álcool diluído-. Queimará-te um pouco.
Brianna respondeu por ele.
-Está bem. Continua.
Quando levantei a vista, Brianna estava sentada na cama com seus braços ao redor das costas do Roger, que tinha a cara na saia da Brianna e se aferrava a suas bonecas.
-terminaste?
Brianna tinha o rosto pálido, mas me sorriu.
-A pior parte. Só fica um pouco -assegurei. Fazia meus preparativos dois dias antes. Saí, agarrei a pequena fonte que estava fora e a meti em casa.
-Puf! -Brianna franziu o nariz-, O que é isso? Cheira a carne podre.
-É o que é.
Brianna ainda te sustentava as mãos. Sorri para meus adentros.
-Mamãe! O que está fazendo?
-Não lhe doerá -pinjente.
Tirei um verme branco da carne podre e o coloquei em uma das incisões que tinha feito.
Roger tinha os olhos fechados e a frente cheia de suor.
-O que? -Levantou a cabeça em um esforço por ver o que acontecia-. O que está fazendo?
-te pondo uns vermes na ferida. Aprendi-o de uma anciã a Índia que conheci. Chegaram-me os sons de asco e náuseas, mas segui trabalhando.
-Funciona -pinjente enquanto abria outra incisão e depositava três larvas brancas-. Nossos pequenos amigos vão se comer a malha morta e chegarão a lugares que eu não posso chegar.
-Nossos amigos os vermes -murmurou Brianna-. Mas, mamãe!
-O que os deterá para que não se comam toda minha perna?-perguntou Roger, tratando de mostrar indiferença-. Eles... vão avançando, não?
-Não! -assegurei alegremente-. São larvas e não comem tecido são, só o morto. Se houver muito alimento, convertem-se em pequenas moscas e voam; do contrário, quando se acaba a comida, vão em busca de mais.
Suas caras se haviam posto verdes. Terminei meu trabalho, enfaixei o pé e dava uma palmada ao Roger.
-Já está. Não se preocupe, já o vi antes. Um guerreiro índio me disse que não doía, só picava.
Ao sair me encontrei com o Jaime, que vinha da nova casa com o menino em braços.
-Esta é a abuelita -informou à criatura-. Não é uma mulher muito bonita?
-GA -disse o menino e tratou de chupar o botão da camisa de seu avô.
-Não lhe deixe chupar isto -pinjente, beijando primeiro ao Jamie e logo ao menino-. Onde está Lizzie?
-Encontrei-a sentada chorando. Por isso me traga para o menino e lhe disse que se fora a passear um pouco.
-Estava chorando? O que lhe passa?
Uma sombra cruzou a cara do Jamie.
-Deve sentido pelo Ian, não crie? -Agarrou-me do braço-. Vêem comigo, Sassenach, verá o que tenho feito hoje. terminei o chão de seu gabinete; tudo o que se necessita agora é um teto provisório e já se poderá dormir ali. Estava pensando que, por agora, poderia ir Mackenzie.
-Boa idéia.
Até com o pequeno quarto adicional que tinha construído na cabana para a Brianna e Lizzie, estávamos muito apertados. E se Roger ia ter que ficar em cama vários dias era melhor não o ter ali no meio.
-Como andam? -perguntou, pretendendo demonstrar certa despreocupação.
-Quais? Refere a Brianna e Roger?.
-A que outros, se não? -disse, deixando a um lado suas pretensões-. Vai tudo bem entre eles?.
-Acredito que sim. estão-se acostumando de novo o um ao outro.
- Fazem-no?.
-Sim -pinjente, olhando de esguelha à cabana-- Roger acaba de vomitar na saia da Brianna.
Roger se deu a volta e se sentou. Ainda não havia cristais nas janelas, mas não eram necessários enquanto o tempo veraniego se mantivera. O gabinete se encontrava na parte frontal da casa. Se torcia a cabeça podia ver a Brianna no caminho de volta à cabana, antes de que a nogueira a ocultasse.
Essa noite tinha ido sem o menino, mas não sábia se interpretá-lo como um avanço ou não. Tinham podido falar sem as interrupções ocasionadas pelas mudanças de fraldas, a alimentação, os choros e os arrotos, o que tinha sido um luxo inesperado.
Mas Brianna não se ficou tanto tempo como de costume. O menino a reclamava como se fora uma cinta de borracha que atirasse dela. Não é que não gostasse daquele pequeno patife, mas se sentia relegado.
Ainda não tinha comido; não tinha querido esbanjar esses momentos em que podia estar a sós com ela. Desentupiu a cesta e aspirou o delicioso aroma do guisado e do pão com manteiga, aos que seguiria o bolo de maçã.
O pé ainda lhe doía e tinha que fazer esforços para não pensar nos vermes, mas tinha recuperado o apetite. Fraser sabia o que fazia quando escolheu o lugar para a casa. Era um dos espaços mais solitários, magníficos e românticos que tinha visto. E Brianna se dedicava a alimentar a um pequeno parasita descascado enquanto ele estava ali, sozinho.
por que diabos lhe havia dito que não sabia o motivo, quando lhe perguntou por que havia tornado? Bom, porque então não sabia. Depois de vários meses de fome, solidão e dor, sentou-se durante três dias, sem comer nem beber, no círculo de pedras. Finalmente se levantou e começou a andar, sabendo que era sua única eleição possível. Obrigação? Amor? Como diabos se podia amar sem obrigações?
O problema de recuperar a saúde era que certas partes de seu corpo estavam muito saudáveis. Não podia nem sugerir-lhe a Brianna. Em primeiro lugar ia acreditar que tinha vindo só por isso. E em segundo, aquele maldito gigante escocês não brincava com o do porco.
Agora já sabia a resposta; havia tornado porque não poderia viver no outro lado. Sabia tudo o que deixava e nada disso lhe importava; tinha que estar ali, isso era tudo. Como poderia dizer-lhe para que lhe acreditasse? Se quase não deixava que a tocasse... Salvo o dia em que o sustentou enquanto Claire torturava seu pé. Então esteve realmente com ele, com toda sua força. Ainda podia sentir seus braços. Isso lhe fez pensar que Claire o tinha feito a propósito. Tinha-lhe dado ao Bri a possibilidade de tocá-lo sem sentir pressões. E a ele, a possibilidade de recordar quão forte era a união entre eles.
sentia-se disposto a deixar-se cortar o outro pé se Brianna ia estar a seu lado.
Claire o via uma ou duas vezes ao dia, mas esperou ao fim de semana, quando foi tirar lhe as vendagens.
-Precioso. Quase não há inflamação e a cicatrização é perfeita.
-Estupendo. Já se foram?
-Os vermes? Sim. Fizeram um bom trabalho.
-Aceito sua palavra. Já posso começar a andar?
-Sim. Não ponha o sapato durante uns dias.
Claire começou a reunir suas coisas. Estava contente, mas cansada.
-O menino ainda chora de noite? -perguntou.
-Sim, pobrecito. Pode ouvi-lo daqui?
-Não. É que parece cansada.
-Não me surpreende. Ninguém dormiu bem em toda a semana, em especial a pobre Bri. É a única que pode alimentá-lo. -Bocejou e sacudiu a cabeça-. Jamie quer que nos translademos aqui logo que esteja preparado o chão. Bri e o menino terão mais espaço e nós um pouco de paz e tranqüilidade.
-Boa idéia. Ah... falando do Bri...
-Mmm?
-Olhe -era melhor dizê-lo diretamente-, estou tentando-o tudo. A amo e quero demonstrar-lhe mas me escapa. Vem e conversamos e então tudo é estupendo, mas quando vou passar lhe o braço pelos ombros ou a beijá-la, ela, de repente, vai à outra ponta. Há algo que não vai bem, algo que eu deva saber?
Dirigiu-lhe um de seus olhares desconcertantes, direta como a de um falcão.
-Você foi o primeiro, não? O primeiro em deitar-se com ela.
Roger sentiu que o sangue enchia suas bochechas.
-Eu... ah... sim.
-Bom, então sua experiência do que podemos chamar as delícias do sexo consiste em ser desflorada. E por muito considerado que tenha sido, está acostumado a doer. Dois dias mais tarde a violaram e logo deu a luz ao menino. Crie que todo isso a fará cair em seus braços quando pretender reclamar seus direitos matrimoniais?
-Nunca o interpretei assim—murmurou.
-Naturalmente -disse com um tom que mesclava a exasperação e a risada-. É um homem. Por isso lhe estou dizendo isso.
Roger respirou profundamente e a contra gosto a olhou aos olhos.
-Exatamente, o que é o que me está dizendo?
-Que ela tem medo -disse-. Embora não é de ti de quem tem medo.
-Não?
-Não -disse bruscamente-. Pode haver-se convencido a si mesmo de que tem que saber o motivo de sua volta, mas não é isso; um regimento de cegos poderia vê-lo. Seu temor é o de não ser capaz de... mmm.
Arqueou uma sobrancelha para marcar a pouco delicada sugestão.
-Já vejo -disse com um suspiro-. E o que me sugere que faça?
Claire levantou a cesta e a colocou no braço.
-Não sei -disse lhe olhando intensamente com seus olhos dourados-. Mas acredito que deve ser muito cuidadoso.
Tinha terminado de recuperar a equanimidade depois de seu inquietante consulta, quando chegou outro inesperado visitante. Jamie Fraser, que lhe trazia alguns pressente.
-Trouxe-te uma navalha -disse Fraser, olhando-o com olho crítico-, E um pouco de água quente.
Claire lhe tinha recortado a barba com suas tesouras de cirurgião poucos dias antes, mas se havia sentido muito fraco para tentar barbear-se com isso que chamavam navalha cortagargantas», por razões óbvias.
-Obrigado.
Fraser havia trazido um pequeno espelho e um recipiente com sabão para barbear-se. Teria preferido que partisse em lugar de ficar apoiado na porta, observando-o com frieza, mas naquelas circunstâncias Roger não podia lhe pedir que o deixasse sozinho. A pesar do indeseado espectador, a sensação de alívio que sentiu ao tirá-la barba foi maravilhosa. Picava-lhe e não tinha visto seu próprio rosto desde fazia meses.
-O trabalho vai bem? -Tratou de lhe dar conversação enquanto se barbeava-. Esta manhã te ouvi trabalhar.
-Sim. -Fraser seguia seus movimentos com interesse-. Já tenho o estou acostumado a acabado e uma parte do teto. Acredito que Claire e eu já poderemos dormir aí esta noite.
-Ah! -Roger torceu a cabeça-, Claire me disse que já posso começar a andar, assim me diga do que me posso encarregar.
Jamie assentiu com os braços cruzados sobre o peito.
-Sabe utilizar ferramentas?
-Não tenho muita experiência na construção -admitiu.
«Uma casa para pássaros feita no colégio não deve contar», suspeitou.
-Suponho que não saberá o que fazer com um arado ou com uma piara de porcos.
Havia um evidente brilho de diversão nos olhos do Fraser. Roger levantou o queixo para tirá-los restos de sabão do pescoço. Nos últimos dias tinha estado pensando nisso. Em uma granja do século XVIII, seus dotes de historiador ou cantante folclórico não lhe seriam muito úteis.
-Não -disse com tranqüilidade, deixando a navalha- Nem tampouco sei ordenhar uma vaca, nem construir uma chaminé, nem matar ursos, nem esquartejar cervos ou atravessar a alguém com uma espada.
-Não?
A diversão foi evidente.
Roger se tornou água na cara, a secou e logo se voltou fazia Fraser.
-Não. Só tenho as costas forte. Isso serve?
-Sim! Não poderia pedir mais. É capaz de distinguir em uma pá uma ponta da outra, não?
-Isso sim.
-Então o fará bem. O pomar do Claire necessita que lhe revolvam a terra; há muito abono na quadra. Depois te ensinarei a ordenhar uma vaca.
-Obrigado.
Limpou a navalha, guardou-a na caixa e a entregou.
-Claire e eu vamos esta noite a casa do Fergus –disse Fraser com indiferença enquanto agarrava a caixa-. Lizzy virá conosco para ajudar ao Marsali.
-Ah? Bom..., que o passem bem.
-Espero que seja assim. -Fraser se deteve na porta- Brianna decidiu ficar; a criatura está um pouco melhor e não quer incomodá-lo com a caminhada.
Roger olhou fixamente ao outro homem. podia-se ler tudo, ou nada, em seus olhos azuis.
-Sim? Então, está-me avisando de que ficarão sozinhos? Cuidarei deles.
Arqueou uma sobrancelha. -Estou seguro de que o fará. -Fraser abriu a mão sobre o recipiente vazio. Houve um ruído metálico e uma faísca vermelha que brilhou contra o estanho-. Já lhe disse isso, MacKenzie, minha filha não necessita um covarde.
antes de que pudesse responder, Fraser baixou a sobrancelha e o olhou com calma.
-Por ti perdi um sobrinho ao que quero muito e não estou muito predisposto a que eu goste. -Olhou o pé do Roger e levantou a vista-. Mas talvez você perdeu mais que isso. Considerarei que estamos em paz, ou não, segundo o que diga.
Atônito, Roger assentiu antes de poder falar.
-De acordo.
Fraser também assentiu e se foi tão rápido como tinha chegado, deixando ao Roger olhando a porta vazia.
Tentou abrir a porta da cabana, mas tênia o ferrolho jogado. depois de desprezar a idéia de despertar com um beijo à Bela Adormecido, levantou o punho para golpear e se deteve. A autêntica Bela Adormecido não tinha a um anão irascível em sua cama, preparado para uivar ante qualquer moléstia.
Deu a volta à pequena cabana, controlando as janelas enquanto os nomes dos sete enanitos apareciam em sua mente. Como chamaria a este? Ruidoso? Cheiroso?.
A casa estava fechada por toda parte. Com lentidão, voltou a dar a volta. O mais razoável seria retornar a sua habitação e esperar à manhã seguinte. Então poderia falar com ela. Era melhor isso que despertar a de um sonho profundo, e com ela ao pequeno.
Sim, isso era o que tinha que fazer. Claire se faria cargo do pequeno bs... do menino, se o pedia. Poderiam falar com calma, sem medo a interrupções, caminhar pelo bosque e esclarecer coisas entre eles. Bem, isso é o que faria.
Dez minutos mais tarde, depois de sua décima volta à casa, ficou olhando um débil brilho que saía de uma janela.
-Quem diabos te crie que é? -murmurou para si mesmo-, Uma maldita traça?
Um ruído o fez voltar-se e viu uma figura branca, como um fantasma, que ia para o privada.
-Brianna?
A figura soltou um pequeno grito pelo susto.
-Sou eu -disse, e viu que se levava uma mão ao peito.
-O que faz me espiando assim? -perguntou furiosa.
-Quero falar contigo.
Não respondeu e seguiu seu caminho.
-Hei dito que quero falar contigo.
-E eu quero ir ao banho. Vete.
Fechou a porta do privada com gesto decidido.
retirou-se a certa distância e esperou. Quando Brianna saiu se deteve o vê-lo.
-Não deveria caminhar com esse pé -disse.
-O pé já está bem.
-Deveria ir à cama.
-Muito bem -disse, colocando-se frente a ela no meio do atalho-. A qual?
-A qual?
ficou imóvel, mas não fingiu não entender.
-Vamos? -Assinalou para a colina-. Ou aqui?
-Eu... ah...
«Deve ser cuidadoso», havia dito sua mãe; «minha filha não necessita um covarde», tinha-lhe recordado o pai. Podia atirar uma moeda ao ar, mas por agora aceitaria o conselho do Jamie Fraser.
-Disse que conheceu um matrimônio por obrigação e outro por amor. Crie que alguém elimina ao outro? Olhe, passei três dias nesse círculo, pensando. Pensei em ficar, pensei em ir. E fiquei.
-Mas nunca saberá o que deixa se fica para sempre.
-Sim sei! E embora não soubesse saberia muito bem o que perco se vou. -Agarrou-a do ombro sentindo sua pele quente-. Não posso ir e viver pensando que deixei um menino que poderia ser meu, que é meu. -Lhe quebrou a voz-. Nem posso ir e viver sem ti.
Brianna vacilou tentando soltar-se.
-Meu pai... meus pais...
-Olhe, eu não sou nenhum de seus malditos pais! Ao menos me julgue por meus próprios pecados!
-Você não cometeste nenhum pecado!
-Não, nem você tampouco.
Olhou-o e captou o brilho de seus olhos.
-Se eu não houvesse... -começou.
-E se eu não houvesse- interrompeu-a com brutalidade-. Deixa-o já, quer? Não importa o que fez ou o que fiz. Pinjente que não sou nenhum de seus pais e é assim- Mas conheceste bem aos dois, muito melhor que eu. Frank Randall não te amou como se fosse sua filha? Tomou como a filha de seu coração, sabendo que foi do sangue de outro homem, de um que tinha boas razões para odiar.
Agarrou-a do outro ombro e a sacudiu ligeiramente.
-E esse bastardo ruivo não quer a sua mãe mais que a sua vida? E não te quis tanto como para sacrificar esse amor por te salvar?
Brianna deixou escapar um gemido e Roger sentiu sua dor, mas não a soltou.
-Se crie neles -disse, quase em um sussurro-, então deve acreditar em mim. Porque eu sou um homem como eles. Juro-te pelo mais sagrado que te quero!
Brianna levantou a cabeça com lentidão e Roger sentiu seu fôlego quente no rosto.
-Temos tempo -disse brandamente e, nesse momento, soube por que tinha sido tão importante falar agora, ali, na escuridão. Agarrou sua mão e a apoiou sobre seu peito-. Sente-o? Pode sentir os batimentos do coração de meu coração?
-Sim -sussurrou Brianna, e com suavidade lhe agarrou as mãos e as apoiou sobre seu peito.
-Este é nosso tempo. Até que deixem de pulsar é nosso tempo. Agora. vais desperdiçar o, Brianna, porque tem medo?
-Não —respondeu com voz clara—. Não o farei.
Um suave pranto lhes chegou da cabana.
-Tenho que ir -disse, apartando-se. Deu dois passos e se voltou-. Vêem -disse correndo pelo atalho, veloz e branca como o fantasma de um cervo.
Quando chegou à porta, Brianna tinha pego ao menino e lhe estava dando de mamar.
-De noite lhe dou de mamar na cama -explicou-, Dorme mais se o tiver ao lado.
Roger murmurou uma espécie de aceitação. Fazia muito calor na habitação e cheirava a fraldas usados, comida e a Brianna. Embora aqueles dias tema um novo matiz, um aroma doce que devia vir do leite. Tinha a cabeça inclinada, o cabelo avermelhado solto em uma cascata brilhante e a camisola aberta, com a cabeça do menino apoiado em seu peito arredondado. Como se sentisse seu olhar, Brianna levantou a cabeça.
-Sinto muito -disse brandamente Roger para não lhes incomodar-. Não posso pretender dizer que não estava olhando.
-Segue -disse-. Não há muito para olhar.
Sem uma palavra, Roger começou a despir-se.
-O que está fazendo?
Sua voz era baixa, mas estava assombrada.
-Não é justo que fique sentado, te olhando, não? Tampouco há muito que valha a pena olhar, mas... -Lutou com o nó do laço dos calções-. Mas ao menos, não acreditará que te está exibindo.
-Ah!
Não a olhou, mas lhe pareceu que a tinha feito sorrir. endireitou-se e deixou cair os calções antes de tirar-lhe de tudo.
-É um espetáculo de desentupa?.
Brianna se conteve para não deixar escapar uma gargalhada.
-Não me dito a ficar de frente ou de costas. Tem alguma preferência?
-Fica de costas -disse brandamente-. por agora. Fez-o.
-Fique assim um minuto -disse Brianna-. Por favor. Eu gosto de te olhar.
Permaneceu erguido, olhando o fogo. O calor lhe fez recordar ao pai Alexandre e deu um passo atrás. por que recordava isso agora?.
-Tem marcas nas costas, Roger -disse com voz muito suave-. Quem lhe fez isso?
-Os índios- Não tem importância. Já não.
Não se tinha talhado o cabelo e lhe caía sobre os ombros. Podia sentir o olhar da Brianna percorrendo seu corpo.
-Vou me dar a volta. Vale?
-Não me vou impressionar -assegurou-lhe. Vi fotos.
Tinha a mesma qualidade que seu pai; podiam manter a mesma expressão quando o desejavam. Estava assustada, impressionada ou divertida? E por que tinha que ser assim? Havia meio doido e acariciado tudo o que agora via a luz. Mas tinha passado toda uma vida após. Agora estava nu e ela tinha um menino nos braços. Qual dos dois tinha trocado mais desde sua noite de bodas? Não podia ficar assim muito tempo e se sentou, observando-a.
-O que se sente? —perguntou, em parte por curiosidade e em parte por romper o silêncio.
-É agradável. Quando começa a chupar acontece algo, como se todo fora de mim para ele.
-Não é como se lhe esvaziassem? Como se lhe tirassem algo teu?
-Não, nada disso. Olhe. -Pôs um dedo na boca do menino e o apartou.
Roger viu o mamilo e o leite que saía com uma força incrível. Brianna colocou de novo ao menino, antes de que começasse a chorar.
-meu deus -disse, assombrado-, Não sabia que fora assim!
-Eu tampouco. -Sorriu-. Há um montão de coisas que não tivesse imaginado.
E seu sorriso se apagou.
-Bri. -inclinou-se para ela, esquecendo sua nudez ante a necessidade de tocá-la-. Bri, sei que está assustada. Eu também, e não quero que tenha medo de mim mas... Bri, desejo-te. Deixou as mãos apoiadas sobre os joelhos da Brianna e ela, ao pouco momento, apoiou sua mão livre sobre as suas.
-Eu também te desejo -sussurrou.
Permaneceram assim durante o que lhes pareceu muito tempo. Roger não sabia o que faria depois, mas sim que não se apressaria, que não a assustaria.
-Está dormido —sussurrou Brianna-
ficou em pé com o cuidado de quem leva uma carga de nitroglicerina.
ia pôr ao menino no berço, mas Roger levantou os braços instintivamente. Ela vacilou um segundo e o entregou. O menino era surpreendentemente pesado e estava muito quente. Roger o aproximou com cuidado. Suas pequenas nádegas cabiam na palma de sua mão. depois de tudo, não estava totalmente calvo. Tinha um penugem avermelhado por toda a cabeça. As orelhas eram pequenas, quase transparentes.
-Não pode sabê-lo só olhando-o. Eu o tentei.
A voz da Brianna o arrancou de sua contemplação.
-Não é isso o que estava procurando. É que... é a primeira vez que posso olhar a gosto a meu filho.
-Ah, bom.
Havia uma pequena nota de orgulho que lhe chegou ao coração. Agarrou-lhe o punho e o abriu brandamente com o polegar até poder colocar seu dedo indicador. O puñito se fechou outra vez, com uma força assombrosa. Pôde ouvir um rítmico som e se deu conta de que ela se estava escovando o cabelo. Tivesse-lhe gostado de olhá-la, mas estava muito fascinado com seu filho.
«Meu filho», pensou, e não soube bem o que sentia. Teria que passar um tempo até acostumar-se. "Mas pode sê-lo”, foi o seguinte pensamento. Não só o filho da Brianna, mas também também o fruto de sua própria carne. Esse pensamento era inclusive mais remoto. Tratou de apartar o de sua mente, mas voltava. Aquela união na escuridão, aquela mescla de dor e gozo, teria sido o começo disto? Não queria fazê-lo, mas esperava sobre todas as coisas que fora assim.
Com curiosidade, abriu-lhe o fralda para olhar.
-Disse-te que o tem tudo.
Brianna estava a seu lado.
-Bom, sim -disse-. Mas não é... um pouco pequeno?
-Crescerá -assegurou rendo-. por agora, parece não necessitar mais.
Seu próprio pênis caía fláccido entre suas coxas.
-me quer dar isso Sacudiu a cabeça.
-Ainda não. Cheira a leite e a um pouco docemente podre, não?
-Mamãe o chama colônia de bebê. Díce que é um aroma protetor que os recém-nascidos usam para impedir que seus pais os matem.
-Matá-lo? Mas sim é uma criatura preciosa -protestou Roger.
-Não estiveste vivendo com ele este último mês. É a primeira noite em três semanas que não tem cólicas. Sim não fora meu, o teria deixado na ladeira da montanha.
«Se não fora meu.» Essa segurança, supunha, era o prêmio das mães. Sempre o tinha sabido, sempre saberia. Durante um instante a invejou. O menino se agitou e emitiu um débil som. antes de que pudesse mover-se, Brianna o agarrou e aplaudiu as costas da criatura. Um suave arroto e ficou dormido de novo; colocou-o no berço com muito cuidado. Quando se voltou, Roger estava preparado.
-Pôde retornar quando se inteirou. Teve tempo. –Sustentou-lhe o olhar, sem deixá-la olhar para outro lado-. Assim agora toca a meu perguntar. O que te fez me esperar? Amor ou obrigação?
-Ambos -disse com os olhos obscurecidos-. Nenhum dos dois. Eu... não me podia ir sem ti.
Respirou, sentindo que o abandonava a última dúvida.
-Então sabe.
-Sim.
Levantou os ombros e deixou que sua camisola caísse, ficando tão nua como ele.
Deus bendito, era vermelho, e mais que vermelho, ouro e âmbar. Desejava-a com um anseia que ia além da carne.
-Disse que me amava por tudo o que considera sagrado -sussurrou-. O que é sagrado para ti, Roger?
Abraçou-a com cuidado e a manteve contra seu coração, recordando aquela jovem magra do Gloriana que cheirava a leite. Também recordava o fogo, os tambores, o sangue e a uma órfã batizada com o nome do pai, que se tinha sacrificado a si mesmo por temor ao poder do amor.
-Você -disse-. Ele. Nós. Não há nada mais, verdade?
Agosto de 1770
Era uma manhã tranqüila. O menino tinha dormido toda a noite, por isso merecia a aprovação geral; duas galinhas tinham deixado seus ovos no galinheiro, sem me obrigar para buscá-los entre os arbustos; o pão se cozeu bem e o presunto e o peru deixavam escapar deliciosos aromas.
Todas essas coisas ajudavam, mas a atmosfera geral de bem-estar se devia mais de noite anterior que aos acontecimentos da manhã. Foi uma noite perfeita. Jamie tinha apagado a vela e me tinha chamado para que fora a olhar da porta.
-O que acontece? -perguntei.
-Nada. Vêem e olhe.
Tudo parecia flutuar em uma luz misteriosa. Na lonjura, quebrada-las pareciam congeladas, como suspensas no ar de não ser pelo vento que nos trazia o som da água que caía. O ar da noite tinha aroma de erva, de água v de pinheiro.
Jamie estava nu a meu lado e estendeu a mão. Deixei cair minha camisola e o segui me agarrando de sua mão. Despertamos na escuridão depois de que se ocultou a lua. Não nos dissemos uma palavra, mas nos rimos e retornamos cambaleantes até chegar a nossa cama para dormir uma hora antes de que amanhecesse.
Para tomar o café da manhã lhe pus um recipiente com cereais e lhe limpei um rastro de aveia da orelha. Voltou a cabeça. Com um sorriso brilhando em seus olhos me agarrou a mão e a beijou. Toquei-lhe a nuca e o vi sorrir.
Levantei a vista e me encontrei com o olhar da Brianna. Seus olhos eram quentes e pormenorizados. Logo vi que estava olhando ao Roger, quem comia com o olhar cravado nela.
A cena de felicidade doméstica foi rota pelos escandalosos avisos do Clarence anunciando visita. Sentia saudades a Cilindro, pensei enquanto ia para a porta para olhar. Enfim, ao menos Clarence não saltava sobre os visitantes nem os atirava ao chão.
O visitante era Duncan Innes. Devia trazer um convite.
-Sua tia pergunta se forem assistir à reunião do Mount Helicón, em outono. Diz que lhe deu sua palavra faz dois anos.
Jaime pôs um prato com ovos ante o Duncan.
-Ainda não 1o pensei -disse-. Há muito que fazer e tenho que terminar o teto antes de que comece a nevar.
-Virá um sacerdote de Baltimore -disse Duncan, evitando olhar ao Roger e Brianna-. A senhorita Eu pensa que talvez queiram batizar à criatura.
-Aaah! -Jamie se tornou para trás pensativo-. Sim, talvez deveríamos ir, Duncan.
-Isso está bem, sua tia estará muito contente.
Algo passou na garganta do Duncan que lhe fez ficar vermelho. Jamie lhe aconteceu a jarra de cidra.
-Tem algo na garganta?
-Ah... não.
Todos deixaram de comer, olhando com certa fascinação as mudanças na cara do Duncan.
-Eu... né... desejo pedir seu consentimento, an fhearr MAC Dubh, para o matrimônio da senhora Yocasta Cameron com... com...
-Com quem? -perguntou Jamie-. Com o governador da colônia?
-Comigo!
Duncan levantou a jarra e enterrou a cara nela, com o alívio do homem que se está afogando e vê chegar um navio.
Jamie lançou uma gargalhada, o que não pareceu acalmar o desconforto do Duncan.
-Meu consentimento? Não lhe parece que minha tia já tem idade para decidir? Ou você?
Duncan respirava melhor, embora ainda tinha as bochechas rosadas.
-Pareceu-me o adequado --disse com certa cerimônia- Considerando que é seu parente mais próximo -tragou antes de seguir falando-. Y... e não me parece correto, MAC Dubh, que eu agarre o que deveria ser teu.
Jamie sorriu e sacudiu a cabeça.
-Eu não vou reclamar nenhuma das propriedades de minha tia, Duncan, não as agarrei quando me ofereceu isso. Casarão-lhes durante o encontro? Então, lhe diga que iremos e dançaremos nas bodas.
Outubro de 1770
Roger cavalgava com o Claire e Fergus perto do carro. Jamie não confiava na Brianna como condutora de um veículo se ia seu neto nele e tinha insistido em levá-lo ele, com o Lizzie e Marsali detrás e Brianna a seu lado. Da arreios, Roger ouvia parte da discussão que tinham começado desde sua chegada.
-John, seguro -dizia Brianna, olhando carrancuda a seu filho envolto no xale-. Mas não sei se deveria ser seu primeiro nome. Não deveria ser Ian? É John em gaélico e eu gostaria de chamá-lo assim. Mas não será uma fonte de confusões entre tio Ian e nosso Ian?
-Como nenhum dos dois está aqui, não acredito que haja problemas -assinalou Marsali, olhando a seu padrasto-, Não disse que queria lhe pôr um dos nomes de P?
-Sim, mas qual? —Brianna deu meia volta para falar com o Marsali-. James não, isso sim que daria lugar a confusões. E Malcoml eu não gosto de muito. Já tem o MacKenzie, é obvio, assim que talvez...
Viu o olhar do Roger e lhe sorrio.
-O que te parece Jeremiah?
-John Jeremiah Alexander Fraser MacKenzie.
Marsali pronunciou os nomes para prová-los.
-eu gosto de Jeremiah -interveio Claire-. Jeremías. É do Antigo Testamento. É um de seus nomes, verdade, Roger?
Sorriu-lhe e se inclinou para falar com a Brianna.
-Por outra parte, se Jeremiah te parecer muito formal pode chamá-lo Jemmy -disse-. Embora se parece muito ao Jamie, não?
Roger sentiu um calafrio ao recordar súbitamente a outro menino ao que sua mãe chamava Jemmy, um menino cujo pai tinha o cabelo loiro e os olhos tão verdes como os do Roger. Esperou a que Brianna estivesse ocupada trocando fraldas e se aproximou da égua que montava Claire.
-Recorda a primeira vez que foi ao Inverness com a Brianna? Você conhecia de antemão minha árvore genealógica.
-Sim?
-Faz tempo e talvez não o tenha notado... -Vacilou, mas tinha que sabê-lo, se é que se podia-. Assinalou o lugar da árvore onde se fez a substituição, quando o filho do Geillis Duncan e Dougal foi adotado em lugar de um que tinha morrido e lhe deram seu nome.
-William Bucdeigh MacKenzie -pinjente rapidamente, e sorri ante sua surpresa-. Tenho lido muitas vezes sua árvore genealógica; é provável que pudesse te dizer todos os nomes.
Respirou profundamente, com insegurança.
-Poderá? O que queria saber... sabe o nome da esposa da criatura suplantada, minhas seis vezes bisavó? Seu nome não figura em minha árvore familiar; só figura William Bucdeigh.
Fiz memória franzindo os lábios.
-Sim -pinjente finalmente-. Morag. Seu nome era Morag Gunn. Porquê?
Sacudiu a cabeça, muito impressionado para responder. Olhou fazia Brianna. Tinha ao menino semidesnudo nos joelhos e o fralda sujo a um lado. Então recordou a roupa empapada do menino chamado Jemmy.
-O nome de seu filho era Jeremiah -disse ao fim,, tão devagar que Claire teve que inclinar-se para ouvi-lo.
-Sim. . . .
Observei com curiosidade, olhando o caminho que se perdia entre os escuros pinheiros.
-Perguntei ao Geiilis -disse súbitamente-. Perguntei-lhe o porquê. por que podíamos fazê-lo?
-E tinha uma resposta?
-Ela disse: "Para trocar coisas”. -Sorri com uma careta de ironia-. Não sei se for uma resposta ou não.
Tinham passado quase trinta anos do último encontro que tinha visto. Tinha sido no Leoch, quando o Clã MacKenzie fez seu juramento. Colum MacKenzie e seu irmão Dougal tinham morrido, e com eles o resto dos Clãs. Leoch estava em ruínas e não haveria mais encontros em Escócia.
Mas aqui estavam as capas e as gaitas de fole, levadas pelos que ficavam daqueles highlanders, reclamando com orgulho essas novas montanhas. MacNeill e Campbell, Buchanan e Lindsey, MacLeod e MacDonald; famílias, escravos e serventes, homens contratados e latifundiários.
Tratava de encontrar ao Jamie entre o tumulto quando descobri uma figura familiar.
-Myers!
John Quincy Myers me viu e se aproximou de nosso acampamento sonriendo.
-Senhora Claire! -exclamou, inclinando-se para me saudar-. Me alegro muito de voltar a vê-la.
-O sentimento é mútuo -assegurei sonriendo-. Não esperava vê-lo aqui.
-Bom, trato de vir sempre, se posso baixar das montanhas a tempo. É um bom lugar para minhas vendas, para me liberar das coisas que trago. Falando disso...
Começou a rebuscar em sua bolsa.
-Esteve no norte, senhor Myers?
-Sim, no rio Mohawk, em um lugar que chamam Upper Castle.
-O Mohawk?
Meu coração pulsou com força.
-Mmm. -Seguiu procurando em sua bolsa-. Imagine minha surpresa, senhora Claire, quando me detive na aldeia mohawk e vi um rosto conhecido.
Ian! Viu ao Ian? Está bem?.
Estava tão excitada que o agarrei do braço.
-Sim! -assegurou-. É um menino muito simpático, embora me custou reconhecê-lo convertido em todo um guerreiro de rosto escuro, mas quando me chamou por meu nome...
Ao fim encontrou o que procurava. Entregou um pequeno pacote envolto em couro, pacote com uma tira e com uma pluma de pássaro carpinteiro no nó.
-Confiou-me isto para que o entregasse a você e a seu marido. -Sorriu com bondade-. Estou seguro de que quer ler agora a carta, assim que me retiro; já a verei depois.
Fez uma solene reverencia e se afastou.
Não ia ler a sem o Jamie. Felizmente, apareceu em seguida.
A nota começava: «Ian salutat avunculus Jacobus”. Jamie sorriu.
Ave! Com isto terminam minhas lembranças da língua latina, por isso continúo na língua inglesa, de lembrança mais fresca. Estou bem, tio, e contente, me acredite. Case-me segundo os costumes dos mohawk e vivo na casa tic minha esposa. Recordará ao Emily, a que fazia aquelas rala de madeira tão bonitas. Cilindro é pai de muitos cachorrinhos e a aldeia está cheia de pequenas réplicas do lobo. Não posso dizer que minha descendência tenha prosperado da mesma forma, mas espero que escreva a minha mãe para lhe dizer que poderá acrescentar um neto a sua lista. Nascerá na primavera, avisarei-lhes cão logo como posso. Enquanto isso, me recordem no Lallybroch, no River Run e na Colina do Fraser. Eu lhes recordo a todos com afeto e o farei enquanto viva. Meu carinho para tia Claire, para a prima Brianna e para ti. Seu mais afetuoso sobrinho, Ian Murray. Vale, avunculus.
Jamie piscou um par de vezes, dobrou com cuidado a carta e a guardou em seu embornal.
-É avúnculo, pequeno idiota -disse brandamente-. Com a saudação se usa o vocativo.
O segundo dia, enquanto Lizzie, Brianna e eu comparávamos meninos com duas das filhas do Farquard Campbell, Jamie se abriu passo, com um amplo sorriso no rosto, entre a massa de mulheres e meninos.
-Lizzie -disse-. Tenho uma pequena surpresa para ti- Fergus!
Fergus, igual de contente, apareceu acompanhado de um homem de cabelo loiro.
-Papai! -gritou Lizzie, correndo a seus braços.
Jamie se meteu um dedo no ouvido com ar zombador.
-Acreditei que nunca a ouviria gritar assim -disse.
Sorriu-me e me deu duas partes de uma folha que originalmente tinha sido um documento.
-É o contrato de trabalho do senhor Wemyss -explicou-. Guarda-o, queimaremo-lo esta noite na fogueira.
E voltou a perder-se entre a multidão, onde todos lhe saudavam gritando MAC Dubh.
O terceiro dia estive a par de notícias, intrigas e diversas conversações em gaélico. Os que não falavam, cantavam; Roger estava em seu elemento, ronco já por tudo o que tinha cantado.
-Faz-o bem? -tinha-me perguntado Jamie, olhando com dúvidas a seu genro suposto.
-Melhor -assegurei.
Arqueou uma sobrancelha encolhendo-se de ombros e logo me pediu ao menino.
-Bom, aceito sua palavra. Acredito que o pequeno Ruaidh e eu vamos jogar aos jogo de dados.
-vais levar te a menino a jogar aos jogo de dados?
-É obvio -disse, sonriéndome zombador-. Nunca se é muito jovem para aprender uma ocupação honrada. Irá bem em caso de que não possa ganhá-la comida cantando como seu pai.
Tinha improvisado uma clínica e atendia a uma mulher com dois meninos talheres de ampolas, causadas pela hera venenosa, quando me dava conta de que passava algo entre a gente e saí a ver. Os reflexos do sol sobre o metal se viam o bordo do claro. Jamie não foi o único que procurou sua faca.
Apareceram partindo, mas seus tambores não soavam. Fui contando. Eram quarenta, com os mosquetes apontando para o céu como manchas escarlates e com as saias verdes ondulando sobre seus joelhos. Todos os grupos vigiavam aos intrusos e olhavam a seus chefes esperando indicações.
Procurei a Brianna e me surpreendeu encontrá-la detrás de mim com o menino em braços, observando por cima de meu ombro.
-Quais são?-perguntou em voz baixa.
-Um regimento highland -pinjente.
-Isso já o vejo -disse asperamente-, Amigo ou inimigo?
Era toda uma pergunta. Estavam ali como escoceses ou como soldados? Mas, a julgar pelos murmúrios, nem eu nem ninguém tínhamos resposta. Estávamos em uma reunião pacífica, sem propósitos políticos, mas a simples presencia de muitos escoceses juntos tinha sido sempre uma declaração política. Muitos dos pressente recordavam aqueles tempos. Os murmúrios se fizeram mais fortes.
Eram quarenta soldados com mosquetes e espadas, e ali haveria uns duzentos escoceses, a maioria armados e muitos com escravos e serventes. Mas também com suas mulheres e filhos.
-Se algo passar -disse a Brianna— leva a menino para as rochas.
Roger apareceu súbitamente frente a mim com a atenção posta nos soldados. Não olhou ao Jamie, mas se pegou a ele formando uma parede protetora frente a nós. O mesmo acontecia por todo o claro.
Então o oficial deu uma ordem e os soldados passaram à posição de descanso. Este dirigiu o cavalo para nós. Seus olhos estavam fixos no Jamie, que ressaltava sobre outros por sua altura e seu cabelo. O homem se tirou o casco com plumas, baixou do cavalo, deu dois passos para ele e o saudou com uma inclinação de cabeça. Ao ver o de perto distingui um broche de metal aceso de seu casaco vermelho.
-Meu nome é Archie Hayes -disse com os olhos fixos no Jamie e cheios de esperança—. Dizem que você conhecia meu pai.
-Tenho algo que dizer -disse Roger.
Tinha estado esperando a oportunidade de encontrar-se a sós com o Jamie Fraser. Todos queriam falar com ele, mas naquele momento estava sozinho, sentado sobre um tronco.
Roger se sentou com o menino em braços, Brianna e Lizzie estavam preparando a comida e Claire tinha ido visitar os Cameron do Isle Fleur, cuja fogueira estava perto. Jamie levantou os braços ao ver o Jemmy e, com uma pequena vacilação, Roger lhe entregou ao menino dormido. Murmurou-lhe algo em gaélico e logo olhou ao Roger.
-Disse que tinha algo que me dizer.
Roger assentiu.
-Sim, é uma mensagem que devo transmitir. Quando Brianna se foi pelas pedras do Craigh na Dun me vi obrigado a esperar umas semanas anees de poder segui-la.
-Sim?
Jamie o olhou com cautela, como cada vez que mencionava as pedras.
-Fui ao Inverness -continuou Roger sem deixar de lhe olhar-, Fiquei na casa onde tinha vivido com meu pai e estive revisando seus papéis. Guardava muitas cartas.
Jamie assentiu, sem saber onde queria chegar, mas sua educação lhe impedia de interrompê-lo.
-Encontrei uma carta e me aprendi isso de cor pensando no momento em que encontrasse ao Claire. Mas agora não estou seguro de se devo dizer-lhe a ela ou a Brianna.
-E me pergunta sim deve dizer-lhe
Olhou-o intrigado.
-Talvez. Embora, pensando-o bem, acredito que a carta se refere mais a ti que a elas.
Nesse momento, Roger sentiu simpatia pelo Fraser.
-Sabia que meu pai era ministro? A carta era para ele. Suponho que foi escrita a modo de confissão, mas imagino que a morte anula esse segredo.
Roger respirou profundamente e fechou os olhos. Estava seguro de cada palavra.
A carta dizia:
Querido Reg:
Algo acontece a meu coração, além da presença do Claire (dito com ironia). O médico diz que posso viver durante anos com cuidados, mas que pode acontecer algo. As monjas do colégio do Bri assustavam aos meninos com o terrível destino que esperava aos que morriam com pecados sem confessar e sem perdoar. Que me condenem (perdoa a expressão) se tiver medo do que me passará depois, se é que passa algo. Tudo pode ser,não?
Nada de tudo isto lhe posso contar ao padre de minha paróquia por óbvias razões. Não acredito que veja pecado nisto, mas certamente chamaria para pedir ajuda a um psiquiatra.
Você é um sacerdote, Reg, embora não seja católico e, o mas importante, é meu amigo. Não precisa me responder nem acredito que te seja possível fazê-lo. Mas pode me escutar. Um de seus grandes dons é saber escutar. Havia-lhe isso dito antes? Estou-me entretendo, não sei por que. Melhor começo. Recorda o favor que te pedi faz uns anos, sobre as lápides no St. Kilda? Como bom amigo que é, nunca me perguntou nada, mas é o momento de lhe explicar isso
Deus saberá por que o velho Jack Randall foi enterrado em uma colina de Escócia e não no Sussex. Talvez a ninguém importava o bastante para levá-lo a casa. Algo triste, espero que não fora assim. Se alguma vez Bri se interessar por sua história (por minha história) procurará e o encontrará ali. A localização de sua tumba está mencionada nos documentos da família. Por isso te pedi que fizesse pôr perto a outra lápide, a do James Fraser. Claire a levará a Escócia algum dia. Estou seguro. Se for ao St. Kilda a verá, ninguém vai a um velho cemitério sem dar uma volta entre as tumbas. Se o fizer, se a encontrar e pergunta ao Claire... eu não posso fazer mais, o que aconteça o deixo para quando eu não esteja.
Seu conhece todas as loucuras que Claire contava a sua volta. Fiz tudo o que pude para que o esquecesse, mas não quis. Que mulher mais teimosa! Talvez não cria isto, mas quando fui visitar te aluguei um carro e fui a essa maldita colina, ao Craigh na Dun. Contei-te o das bruxas que dançavam no círculo pouco antes de que Claire desaparecesse. Quando estive ali quase acreditei. Toque uma pedra e, é obvio, não aconteceu nada.
E entretanto, investiguei. Procurei o homem, ao Fraser, E talvez o encontrei. Ao menos, encontrei uma pessoa com esse nome e o que pude averiguar coincidia com o que Claire me tinha contado. Já seja porque haja dito a verdade, ou porque convertesse uma ilusão em uma experiência real... bom, havia um homem. Disso estou seguro!
Não poderá acreditá-lo, mas estive ali e pus a mão sobre a maldita lápide, desejando que se abrisse para ver cara a cara a esse James Fraser. Seja quem for e esteja onde esteja, não desejo na vida mais que o ter diante para matá-lo.
Nunca o vi e não sei se existir, entretanto, odeio a esse homem como nunca odiei a ninguém. Se o que Claire disser e o que eu descobri é lama, então a tirei e a tive comigo graças a uma mentira. Talvez uma mentira por omissão. Suponho que posso chamá-lo vingança. Os sacerdotes e os poetas dizem que a vingança é uma espada de dobro fio, e o outro fio é que alguma vez saberei o que tivesse feito se tivesse podido escolher, teria ficado comigo se lhe houvesse dito que Jamie tinha sobrevivido ao Culloden ou teria saído para Escócia como uma flecha?
Não posso pensar que Claire deixaria a sua filha. Confio em que não me deixe tampouco... mas... se tivesse a segundad, juro que o houvesse dito, mas não o fiz e essa é a verdade. Fraser. Devo amaldiçoá-lo por me roubar a mim esposa, ou benzê-lo por me dar a minha filha? Penso essas coisas e logo me detenho, assustado por acreditar nessa teoria absurda. E entretanto- tenho uma estranha sensação sobre o James Fraser, quase uma lembrança, como se o tivesse visto em alguma parte. Embora isso é o produto do ciúmes e a imaginação. Eu sei muito bem como é esse bastardo, vejo seu rosto em minha filha todos os dias.
Esta é a parte estranha, um sentido da obrigação. Não só para o Bri, embora acredite que tem direito ou seja o. Algumas vezes, quase posso sentir ao bastardo olhando por cima de meu ombro.
Não o tinha pensado antes- Crie que me encontrarei com ele alguma vez? Encontraremo-nos como amigos, pergunto-me, com os pecados da carne detrás de nós? Ou terminaremos encerrados para sempre em algum inferno celta, com as mãos obstinadas à garganta do outro?
Eu tratei mal ao Claire; bem, dependendo de como se olhe. Não vou entrar em detalhes sórdidos, digamos que o sinto. De modo que é assim, Reg. Ódio, ciúmes, mentiras, roubos, infidelidade, tudo completo. Salvo o amor, não há muito para equilibrar. Amei-a. Talvez não é a forma correta de amor, ou não é suficiente. Mas é tudo o que tive.
Não quero morrer sem confessar e confio em ti para uma absolvição condicional. Eduquei ao Bri como católica, crie que haverá alguma esperança de que ela reze por mim?
-Estava assinada «Frank», é obvio -disse Roger.
-É obvio -repetiu Jamie.
Permaneceu imóvel, com o rosto inescrutável. Roger não precisava ler seu rosto; conhecia bem os pensamentos que passavam pela memore do outro homem. Os mesmos pensamentos que tinha tido nas semanas transcorridas entre o Beltane e a véspera do solstício do verão, durante a busca da Brianna pelo oceano, durante seu cautividad, e ao final no círculo de pedras e no inferno de rododendros, ouvindo a canção que saía das pedras.
Se Frank Randall tivesse eleito manter em segredo o que tinha descoberto e nunca tivesse feito colocar essa lápide no St. Kilda... Claire teria sabido a verdade? Talvez sim, talvez não. Mas tinha sido essa lápide a que fez que Claire contasse a sua filha a história do James Fraser e a que pôs ao Roger no caminho do descobrimento que os levou até esse lugar, até esse tempo.
Foi a lápide a que enviou ao Claire de volta aos braços de seu amante escocês e lhe deu a possibilidade de poder morrer neles. A que lhe tinha dado à filha do Frank Randall a possibilidade de voltar com seu outro pai e, ao mesmo tempo, condenava-a a viver em um tempo que não era o seu, como resultado; o nascimento de um menino ruivo, que representava a continuação do sangue do Jamie Fraser. «Os interesses pela dívida?», pensou Roger.
E logo estavam os pensamentos privados do Roger, outro menino que pôde não ser, salvo pela críptica lápide deixada pelo Frank Randall para obter o perdão. Morag e William MacKenzie não estavam na reunião; Roger não sabia se estava desiludido ou aliviado.
Jamie Fraser se moveu ao fim, embora seguia olhando ao fogo.
-Inglês -disse brandamente, como um conjuro.
Roger sentiu que lhe arrepiava o pêlo da nuca e acreditou ver algo movendo-se entre as chamas.
Jamie estendeu suas grandes mãos embalando a seu neto.
-Inglês -repetiu, falando com o que fora que via entre as chamas-. Poderia desejar que nos encontrássemos algum dia, mas espero que não o façamos.
Roger esperou com as mãos sobre seus joelhos. Os olhos do Fraser estavam sombrios. Ao fim, algo sacudiu o fogo; Fraser moveu a cabeça e pareceu que se dava conta então de que Roger estava ali.
-O digo a ela? Ao Claire? -perguntou Roger.
-O disse a Brianna?
-Ainda não, mas o farei -disse olhando fixamente ao Fraser-. Ela é minha esposa.
-por agora.
-para sempre..., se assim o quiser.
Fraser olhou para a fogueira dos Cameron. A pequena silhueta do Claire se recortava escura contra o fogo.
-Eu lhe prometi sinceridade -disse por fim muito devagar-. Sim, diga-lhe
Ao quarto dia, as ladeiras das montanhas estavam cheias de escoceses que tinham chegado. Cada família tinha sua fogueira, mas estava o grande fogo ao redor do qual se reuniam todas as noites para ver quem tinha chegado durante o dia.
Tive a visão da insígnia do clã dos MacKenzie, “uma montanha ardendo", e de repente me dava conta do que significava. Não se referia a um vulcão, como tinha pensado.
Não, era uma imagem como a de agora: os fogos familiares brilhando na escuridão, um sinal de que cada clã estava presente e unido. Pela primeira vez, entendi o lema que acompanhava à imagem: Lnceo non uro; «.Brilho, não queimo».
Muito em breve as ladeiras pareciam vivas por causa das fogueiras. Uma dúzia de famílias se apresentou antes de que Jamie terminasse sua conversação com o Geraid Forbes e se levantasse. Entregou-me ao menino e acendeu um tição com nosso fogo. Os gritos chegavam de longe.
-Os MacNeill de Barra estão aqui!
-Os Lachlan do Glen Linnhe estão aqui!
E ao cabo de um momento, a voz do Jamie, forte e clara.
-Os Fraser da Colina estão aqui!
Houve um breve aplauso a nossos redor e gritos e vivas de outros.
Permaneci quieta, desfrutando de do pequeno corpo dormido em meus braços.
Jamie retornou cheirando a fumaça e a uísque e se sentou no tronco, detrás de mim. Agarrou-me dos ombros e me apóio contra ele. Ao outro lado do fogo, Brianna e Roger falavam com as cabeças juntas. Seus rostos brilhavam pelo fogo, cada um refletindo-se no outro.
-Não pensará que vão trocar seu nome de novo, não? -disse Jamie, olhando-os com o cenho franzido.
-Não acredito -respondi-. Os ministros fazem outras coisas além de batizar, você sabe.
-Ah, se?
-Já passou em 3 de setembro. Você te disse que então devia escolher.
-Isso pinjente.
inclinou-se e me beijou na frente.
Logo pôs minha mão na sua.
-E você, quer escolher? -perguntou brandamente. Abriu-me a mão e vi o brilho do ouro-. Quê-lo de novo?
Observei-o, procurando dúvidas em seu olhar mas não as encontrei; havia algo mais: curiosidade pelo que eu ia dizer.
-Foi faz muito tempo -pinjente.
-Um comprido tempo. Sou um homem ciumento, mas não vingativo. Separei-te de seu lado, mas não vou apartar o de ti.
Fez uma pausa com o anel brilhando em sua mão.
-Foi sua vida, não?
E perguntou outra vez.
-Quê-lo de novo?
Em resposta estendi a mão e me deslizou o anel no dedo.
«Do F. para o C. com amor. Sempre.»
-O que há dito? -perguntei.
Tinha murmurado algo em gaélico, muito baixo, como para que o entendesse.
-Pinjente: «Vê em paz» -respondeu-. Mas não estava falando contigo, Sassenach.
Ao outro lado do fogo algo vermelho cintilou. Olhei a tempo para ver que Roger se levava a mão da Brianna aos lábios, o rubi do Jamie brilhava em seu dedo, apanhando a luz do fogo e da lua.
-Acredito que ela já escolheu -disse brandamente Jamie.
Brianna sorriu com os olhos posados no rosto do Roger e se inclinou para beijá-lo. Então ficou em pé, limpou-se a saia e foi acender um tição. O entregou falando em voz alta para que a ouvíssemos.
-Vê -disse- e lhes diga que os MacKenzie estão aqui.
Diana Gabaldon
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