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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TANGO NEGRO / Régine Deforges
TANGO NEGRO / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Senhor, que sois santo e verdadeiro, até quando esperareis para nos fazer justiça, e vingar nosso sangue solre aqueles que na terra habitam?
O Apocalipse de João

 


 


Capítulo 1

Léa permaneceu imóvel de tanta felicidade ao ver François Tavernier caminhando em sua direção
de mãos dadas com o pequeno Charles. Sim, eram eles, aqui, em Montilac, Montillac que ela
considerara para sempre destruído e que ecoava agora ao som estridente da serra dos carpinteiros,
as marteladas, a canção de um operário:
Um carpinteiro cantava uma canção
Lxi em cima no telhado das casas
Sua casa renascia...
Com um aperto no coração transbordando de felicidade, Léa percebeu que era ele o verdadeiro
artesão. Olhava para o amante reencontrado; vivo! estava vivo, contemplando-a, incrédulo,
maravilhado, transtornado... Seu primeiro impulso foi em direção a Léa, porém Charles revelou-se
mais ágil. Com profunda emoção, Léa abraçou o menino, balbuciando palavras carinhosas e
incoerentes. Afastando-se um pouco, ela se ajoelhou para vê-lo melhor. Como crescera! Como se
parecia com a mãe! A lembrança de Camiile morta provocou-lhe um gemido.
- Você tá com dor? - perguntou preocupado o pequeno órfão.
- Não, querido, sinto-me tão feliz em te ver...
- Então, por que tá chorando?
Como explicar a um menino de cinco anos que as lágrimas podem expressar tanto alegria quanto
tristeza?
Quem era aquela criança loura agarrada à saia de seu uniforme, e a moça de vestido estampado que
lembrava a Léa o que sua mãe usava no verão anterior à guerra?
- Françoise?...
Antes de abraçá-la, sua irmã ajudou-a a se erguer. Em seguida, foi a vez de Laure, com uma roupa
na última moda, Lisa, com a face rosada e cachos brancos, Esteile, cujo ar bondoso não era
atenuado pelo austero coque, Ruth, a tão querida Ruth, guardiã das lembranças de sua infância,
idosa, encurvada, com as mãos trêmulas... Abraçada por todos, não inteiramente presente, como se
aqueles beijos, aquelas carícias, as palavras afetuosas não lhe fossem realmente dirigidas. Para Léa,
após as ruínas de Berlim, da Alemanha vencida, um certo toque de irrealidade cercava esse
encontro, num local aonde pensara nunca mais voltar.
Pouco a pouco, apagavam-se a felicidade do regresso a alegria experimentada ao rever François e
Charles vindo ao seu encontro. Nada daquilo era verdade; nada mais era do que uma farsa, uma
grande mentira... Não passavam de fantasmas... O que fazia essa mulher de cabeça raspada,
gesticulando com o vestido de sua mãe?... e essa jovem muito maquiada que lembrava as prostitutas
de luxo com quem se divertiam os oficiais alemães nos bares de Bordeaux?... essas crianças
barulhentas, com as mãos e a cara sujas de amora?... essas velhas de vestido preto parecidas com
as beatas de Saint-Macaire?... e esse homem de rosto marcado, com um sorriso irônico?... por que
sorria? O que havia de tão engraçado assim?... e seu jeito de encará-la! Uma profunda irritação
embaralhava seus pensamentos. Nunca!... nunca! ela não deveria ter voltado a Montillac, tudo
estava destruído, maculado, morto!... Da alameda arborizada, surgiriam a qualquer momento
Maurice Fiaux e seus milicianos... gritos, berros ecoavam em sua cabeça... não eram as marteladas
dos carpinteiros que ela ouvia, e sim as coronhadas arrombando as portas da casa... a fumaça que
subia de sob o terraço não provinha da grama queimada, mas do corpo martirizado de sua tia
Bernadette...
Léa empurrou com certa violência todas as mulheres e crianças que não a deixavam. Não iriam
conseguir... ninguém a prenderia...
Estarrecidas, suas tias e irmãs viram quando ela fugiu. Apenas François Tavernier percebeu o que
se passava com a moça.
Ela saiu correndo pelos vinhedos como um animal assustado, tropeçando nos montes de terra,
caindo, levantando-se, voltando a cair... Ele se encontrava bem perto quando Léa o viu, mas não o
reconheceu. Uma única frase repercutia em sua mente confusa:
"Não vão me apanhar!... Não vão me apanhar!..." O terror e o ódio davam-lhe asas e ela conseguiu
correr, ainda mais rápido, apesar dos joelhos machucados. Ao passar pela casa de Sidonie, pensou
ouvir a voz de Mathias... Seus pés levantavam a poeira branca do caminho que leva ao calvário de
Verdelais, abrigo de todas suas tristezas quando criança, das dúvidas melancólicas de sua
adolescência e de seus temores de adolescente ao enfrentar a guerra e a morte. Feriu as mãos nos
espinhos das moitas... agachada, subiu os degraus do calvário... Ele conseguiu alcançá-la e, ali
mesmo, lutaram em silêncio. François precisou de toda sua energia para impedir que Léa lacerasse
seu rosto. E, ao perceber que ela enfraquecia, murmurou palavras tranqüilizadoras:
- Pronto, menininha, pronto... não tenha medo... acabou... pronto, calma... Meu amor, ninguém vai
magoá-la, prometo...
Lentamente, o corpo tenso foi relaxando, o olhar perdeu a demência. Léa deixou que a ninasse, com
os olhos fechados... tinha oito anos, o pai tentava aliviar sua dor após uma queda... em seus braços,
o choro diminuía, o sofrimento serenava... Agora, ele a carregava até a cama... François deitou-a à sombra de um carvalho. Como uma criança, ela adormeceu bruscamente,
sem
largar sua mão. Acena lembrava- lhe as noites tão raras quando, após o amor, ela mergulhava no
sono interrompendo uma frase; aquele tipo de fuga no sono era uma de suas forças.
Com muita ternura, ele limpou o rosto de Léa, retirando com o lenço toda a poeira que aderira
devido às lágrimas. Mais uma vez, sentiu-se profundamente tocado por sua beleza, pelo vigor e a
vulnerabilidade que emanavam desse rosto maculado. Como em
cada encontro entre eles, era justamente tal contraste que o surpreendia e comovia. Pelo tremor das
pálpebras, ele podia perceber o quanto sofria. Jurou a si próprio fazer o impossível para que ela
esquecesse, proporcionar-lhe uma vida feliz e calma, cobri-la de presentes, jóias, ajudá-la a descobrir
o mundo, outras paisagens, locais preservados da mão do homem, de sua própria presença... Mais
uma vez, ela o faria sofrer com sua vaidade, mais uma vez ele ouviria sua risada, olharia para ela ao
tomar champanha, deslizariam juntos numa valsa que a deixaria estonteada. Ah! Expulsar por todos
os meios aquelas terríveis imagens que tanto pavor provocavam!...
- François!
- Sim, menininha, estou aqui.
- François, se você soubesse!
- Sei, querida, sei. Agora, você precisa esquecer...
Sentiu o corpo da amiga retesar-se, prestes a escapar.
- Vai ser duro, mas é preciso. Você tem uma casa para reconstruir, uma criança para educar, uma
família para...
- Cale-se! Cale-se!
Ela martelou seu peito com os punhos fechados. Ele riu.
Enfurecida com aquele riso, tentou arranhá-lo, esbofeteá-lo! Ele deitou-se sobre seu corpo,
mantendo-lhe os braços esticados atrás da cabeça.
- Você não acha que temos coisas melhores a fazer do que discutir? - disse ele, procurando sua
boca.
Ela se debateu e o mordeu com tanta violência que ele a soltou. Despenteada, transtornada pela
raiva, Léa levantou-se; durante algum tempo, permaneceram imóveis, enfrentando-se. Pouco a
pouco, ela se acalmou, a cólera cedeu lugar à tristeza. As lágrimas abundantes que corriam de seus
olhos lavavam-lhe o rosto. Tamanha mágoa, sem soluços, acabou aplacando sua dor. Quando
François lhe deu o lenço, agradeceu com um leve sorriso.
- Desculpe, estou sendo ridícula.
- Você pode ser tudo, menos ridícula; fique junto de mim.
Ela se aninhou em seus braços, atenta ao desejo que afastava a angústia. Ao desabotoar-lhe a
camisa, a mão tocou a pele do amante,
reencontrando toda sua suavidade, seu odor. Como sentira sua falta durante aqueles longos meses, a
ponto de quase se entregar a um jovem e belo oficial inglês! Ele, por sua vez, abriu os botões de sua
blusa tão séria, tirou a gravata de seu uniforme e deixou correr as alças da combinação... Os seios
surgiram, suntuosos! Abolidos guerra, sofrimentos, céu, terra, morte... Só havia um homem e uma
mulher cujos corpos uniam-se como na aurora dos tempos sem qualquer outra exigência que não o
prazer; um prazer brutal e rápido que os surpreendeu, deixando-os insatisfeitos.
François ajudou-a a pôr-se de pé. Abraçados, tomaram o caminho de Montillac. Em Beilevue, Léa
sentou-se no velho banco de pedra ao lado da casa de Sidonie. Seus olhos percorreram a paisagem
tão familiar. Nada mudara, nada nesses bosques, nessas aldeias, indicava a passagem de uma
guerra, com pessoas que haviam dado a vida para que os sinos das igrejas, os campos, os vinhedos
fossem preservados. Nada! Ela reviu em pensamento o pobre corpo desnudo de Sidonie. Fechou os
olhos e repeliu a abominável imagem, para guardar apenas a lembrança da bondosa cozinheira que
costumava dizer:
- Menina, não vai experimentar meu licor?
O outono aproximava-se e a claridade do fim de tarde oferecia todo seu esplendor àquela amada
paisagem.
- Olha, dá para ver os Pireneus!
Não era verdade, é claro, mas Sidonie tantas vezes repetira que, com céu claro, avistavam-se as
velhas montanhas.
Sacudindo a cabeça como um cavalo ao afastar uma mosca importuna, ela se levantou e encarou o
amante. Aquele olhar queria dizer: "Estou aqui, viva, quero gozar a vida, logo, agora! Você precisa
me ajudar, já que me ama. Você me ama, não é?" Trouxe a escada até a janelinha do sótão e subiu
os degraus oscilantes. Quantas vezes ali viera para se esconder dos adultos com Mathias e todos os
companheiros de suas brincadeiras infantis! O feno da recente colheita exalava um delicioso
perfume. Léa, com os pés mergulhados na palha, arrancou a roupa do corpo e deitou-se, nua,
indiferente ao pinicar da grama ressecada. Encostado numa viga,
François a fitava, sem esconder sua emoção. Por sua vez, tirou a roupa lentamente, sem afastar os
olhos da amiga.
Regressaram a Montillac bem tarde, esgotados e felizes.
Não houve comentário algum quando, a despeito dos bons costumes, Léa e François resolveram
dormir no mesmo quarto. As senhoritas de Montpleynet, Françoise, Laure, Ruth e as crianças
ajeitaram-se da melhor forma possível nos cômodos reservados aos empregados, até que as obras
da casa fossem concluídas. O arquiteto contratado por Tavemier prometeu que tudo estaria
terminado em meados de outubro. Esteile e Ruth duvidavam do prazo; Laure vivia atormentando os
operários, muito lentos segundo ela; Françoise não ousava abrir a boca depois de ouvir um velho
pedreiro resmungando: "Puta." Curvando os ombros, ela saíra de perto e nunca mais voltara para
ver as obras.
A chegada de Léa trouxe um novo estímulo; todos queriam mostrar um bom desempenho para
agradar. Ela ficou surpresa ao encontrar o escritório do pai praticamente intacto: apenas a fuligem
sujara os livros, as paredes e os tapetes. Sem perguntar a opinião das irmãs, instalou-se naquele
cômodo. De acordo com seu modo de pensar, as coisas podiam permanecer como estavam, mas
François conseguiu convencê-la a mandar pintar as paredes, limpar os tapetes e trocar as cortinas.
O único item em que ele teve de recuar foi o velho sofá: Léa de nada quis saber; o móvel era
intocável e ela sempre o conhecera velho e em mau estado; François não insistiu.
Léa acompanhava com paixão pelos jornais e pelo rádio o julgamento dos carrascos do campo de
Bergen-Belsen em Luneburgo. Lembrava-se do chefe do campo, Joseph Kramer, a quem a polícia
militar inglesa teve muita dificuldade para arrancar das mãos dos deportados ainda sãos e dos
soldados britânicos; e do Dr. Fritz Klein, que foi obrigado pelos aliados a posar para os fotógrafos,
hirsuto, de botas, com o rosto intumescido, de pé em meio a milhares de cadáveres nus. Lembrava-
se das lágrimas dos jovens soldados ingleses diante daqueles mortos-vivos estendendo braços tão
magros que tinham medo de tocá-los e quebrá-los; revia o
espanto e o horror dos médicos ao descobrirem que, em certos cadáveres, faces, braços,
nádegas e fígado haviam sido extirpados e comidos por presos que a fome enlouquecera.
Por quanto tempo perduraria tamanho furor? A guerra acabara, era preciso esquecer. Esquecer?
Não, era impossível, a lembrança tornava-se imperiosa. E essa contradição não parava de
martelar a mente de Léa. Para ela, tornava-se ainda mais difícil na medida em que se recusava a
tocar no assunto, mesmo quando despertada por seus pesadelos, em meio a gritos, em plena
noite. François tentara interrogá-la, mas teve de desistir diante de seu pranto ou de sua raiva. Ele
argumentava que o fato de revelar o que lhe ia na mente facilitava sua compreensão, mas Léa
recusava esse tipo de discurso racional. Esteile de Montpleynet, a quem contara o
comportamento de Léa, seus temores e suas angústias, aconselhou paciência: tudo ainda era
muito recente e seria preciso tempo, muito tempo, para que Léa alcançasse certo grau de
serenidade, senão o total esquecimento.
Mas como? A lembrança dos momentos de felicidade era constantemente apagada por
reminiscências de horror. Dentre elas, a da morte de Raoul Lefevre que ela mesma enterrara, com
a ajuda do irmão Jean e do Dr. Jouvenel, atrás dos arbustos e dos lilases. Certa vez, ao depositar
flores naquele túmulo improvisado, foi surpreendida por François. Ele conhecia as circunstâncias
do falecimento de Raoul, mas Léa jamais lhe contara onde o corpo se encontrava. Ele sugeriu que
avisassem a polícia. A nova provação foi suavizada pela alegria de rever Jean Lef'evre vivo,
durante momentos tão penosos.
Pela manhã, logo cedo, os policiais chegaram seguidos pelos prefeitos de Verdelais, Saint-
Macaire e Saint-Maixent, ex-membros da Resistência e companheiros do defunto. Na presença
da Sra. Lefèvre, amparada pelo filho sobrevivente, procedeu-se à exumação. O tempo e a
natureza haviam produzido sua obra: um esqueleto coberto de trapos, que a mãe reconheceu.
Nem um só grito, nem um só gemido, apenas um silêncio opressivo realçado pelo ruído das pás
afundando no solo móvel e o choque abafado da terra
amontoada. Acompanhando Jean Lefèvre, compareceu à cerimônia um jovem padre com o rosto
emaciado, vestindo uma batina desbotada pelo uso, que abençoou os despojos colocados num
caixão.
Incrédulos e felizes, Jean e Léa abraçaram-se chorando. A mãe de Raoul apertou nos braços a
amiga de seus dois filhos, murmurando um obrigado transbordante de emoção.
Após sua fuga de Montillac, Jean Lef'evre, apesar de ferido, conseguira chegar até Pauillac no
Médoc, onde encontrara companheiros do maqui de Grand-Pierre. Medicado numa fazenda perto
de Lesparre, juntou-se posteriormente ao grupo Charly e, em 23 de julho, com setenta camaradas,
participou do ataque à fábrica de pólvora de Sainte-Hélène, no qual dezenas de alemães, bem como
27 companheiros, foram mortos. Novamente ferido, acabou sendo preso e levado com outros sete
membros da Resistência para o forte do Hâ. Espancado, torturado, em 9 de agosto foi atirado num
trem para a Alemanha, com detentos franceses e estrangeiros, quase todos presos na região de
Toulouse e transferidos, no dia 2 de julho, das prisões da cidade para a sinagoga e mais tarde para o
forte do Hâ de Bordeaux. Amontoados como gado em vagões com setenta homens cada, sob um
calor insuportável, lutando por um pouco de ar, um filete de água ou um pedaço de pão, certos
prisioneiros entregaram-se ao desespero ou mergulharam na mais profunda loucura. Escapando dos
ataques dos aviões aliados, o trem passou por Toulouse, Carcassonne, Montpellier, Nimes, o vale do
Ródano... até chegar a Dachau, em 27 de agosto.
Jean estava vivo, porém em lamentável estado! Durante a viagem, dezoito companheiros faleceram.
A cada parada, quando os alemães abriam as portas, os cadáveres eram atirados na via férrea. No
destino, a pequena estação de Dachau, seis corpos exalando um mau cheiro insuportável foram
jogados na plataforma. Durante o interminável trajeto, Jean fora amparado e tratado por um jovem
monge, padre de um maqui de Corrèze, Michel Delfand, conhecido como padre Henri. Ardendo em
febre, ele ajudara os agonizantes, consolando e encorajando os outros. Tendo em vista sua frágil
constituição, ninguém entendia como aquele homem
doente conseguia agüentar. Agüentou até 29 de abril de 1945, dia da libertação do campo pelos
americanos. O tifo que se alastrara por todo o campo fez com que ele se deitasse. Levado para o
Revier', recebeu a extrema-unção de um padre polonês e sentiu-se pronto e feliz para ir ao
encontro de seu Deus. No entanto, sua hora ainda não chegara: a frágil carcaça resistiu à doença.
Após a quarentena imposta pelos libertadores, padre Henri e Jean foram repatriados para a França.
Extremamente enfraquecidos, passaram dois meses numa casa de repouso na Savóia antes de voltar
para casa. Durante aquela permanência, laços de uma profunda amizade nasceram entre os dois
homens. Como a saúde do padre não lhe permitia levar a vida difícil dos capuchinhos, conseguiu de
seus superiores a autorização de deixar o mosteiro. Mandaram-no a Bordeaux para prestar auxílio
ao padre de Saint-Michel. Logo após sua chegada, contactou o amigo que só encontrara a família
na véspera. Foi justamente durante sua primeira estada em La Verderais que os policiais vieram
avisar a Sra. Lef'evre que o corpo de seu filho Raoul seria exumado no dia seguinte. Naquela
ocasião, Jean contou à mãe e ao amigo as circunstâncias da morte de seu irmão.
Apesar dos pesadelos que a atormentavam quase todas as noites, deixando-a sem forças, durante o
dia Léa esforçava-se em afugentar todas aquelas tão lancinantes imagens. A presença de François
a seu lado, sua ternura, suas carícias, as horas de amor profundo, de gozo mútuo, ajudaram muito em
seu restabelecimento; apesar de não conseguir esquecer, e jamais conseguiria, a vontade de viver
era mais forte.
A licença de quinze dias concedida pela Sra. de Peyenmhoff chegavam ao fim. Léa precisava
retornar à sede da Cruz Vermelha em Paris. As uvas estavam maduras, suas irmãs fecharam um
acordo com um proprietário vizinho para que tivessem lugar as
primeiras vindimas da França libertada. Graças ao dinheiro de François Tavernier, foi possível
contratar cerca de trinta trabalhadores dentre os quais mais de dois terços eram prisioneiros
alemães. Profundamente deprimida, ela abandonou aquilo que voltara a amar. Aquelas duas
semanas em Montillac levavam a crer que tudo poderia recomeçar.
A volta para Paris na grande limusine de Tavemier parecia uma viagem de férias, com um tempo
quente e ensolarado, as hospedarias acolhedoras e um François apaixonado e alegre.
Logo após a sua chegada, Léa foi até a sede da Cruz Vermelha para falar com a Sra. de
Peyerimhoff. Ali, teve a alegria de encontrar Claire Mauriac e Jeanine Ivoy, recém-chegadas de
Berlim. As três moças abraçaram-se efusivamente, entre gritos e risadas, fazendo com que a Sra.
de Peyerimhoff saísse de sua sala.
- Muito bem, senhoritas, o que houve?... Calma, o que pensarão nossas amigas americanas a
respeito do comportamento das colegas francesas!
- Pode deixar, senhora, na idade delas é natural gostar de rir
- comentou com um forte sotaque americano uma linda e alta mulher, surgindo do escritório.
- Laureen, quero lhe apresentar três colegas. Parecem jovens desmioladas, mas trata-se de mulheres
de primeiríssima ordem, corajosas e eficientes; cabeça de vento e coração de ouro, vaidosas mas
capazes de suportar bravamente o frio e a sujeira, gulosas como verdadeiras crianças, porém
sempre dividindo sua parcas rações com os mais necessitados. Senhoritas, Laureen Kennedy!
- Elas falam alemão? - perguntou a americana.
- Acredito que Léa Delmas sim. Você não teve uma babá ou uma governanta que lhe ensinou
alemão? - comentou a Sra. de Peyerimhoff.
- Não ensinou, mas costumava contar histórias, cantar e ler poemas em alemão; quanto a ensinar...
Era da Alsácia, por isso...
- Por isso o quê? É possível nascer na Alsácia e ser também cidadão francês, o que não impede que
se fale a língua natal.
- Claro, principalmente se essa língua for o alemão - respondeu Léa com rispidez.
A Sra. de Peyerimhoff surpreendeu-se diante dessa atitude. Olhou séria para Léa.
- Você fala alemão? Sim ou não?
- Falo mal, mas entendo quase tudo.
- Pois então, se a Sra. de Peyerimhoff não se importar - disse Laureen Kennedy -, vai comigo para
Nuremberg.
- Nuremberg!
- Sim, lá terá lugar o julgamento dos criminosos de guerra.

Capítulo 2

Para Sarah, o pesadelo continuava.
Ter sido descoberta por Léa em meio aos cadáveres de Bergen-Belsen e sua "fuga" do campo
permaneciam irreais para ela, assim como sua presença naquele hospital militar nos arredores de
Londres. Todas as noites, o horror recomeçava: o bordel dos soldados onde, apesar das marcas
de queimaduras de cigarro infligidas por Massuy, ela continuava como uma das moças mais
requisitadas pelos oficiais SS. Seu corpo dolorido recusava-se em vão. E quando a penetração
revelava-se muito difícil, untavam seu sexo com os mais diversos produtos; afirmavam, em meio a
desprezíveis risadas, que o melhor de todos era gordura de judeu. Quando pela primeira vez
entendeu a que se referiam, caiu desmaiada. Foi despertada com um copo de água gelada no
rosto. A partir de então, quando os membros untados pelas mais incríveis pomadas deslizavam
em seu corpo, ela passara a murmurar o nome de todos os seus amigos judeus desaparecidos, e
jurou que viveria para se vingar, já que não tinha coragem suficiente para se matar e escapar
daquelas relações infames. Certo dia, Sarah deixou de agradar aos oficiais, passando a trabalhar
na manutenção de estradas. No campo de Ravensbrück, foi vítima dos sarcasmos das outras
prisioneiras, portadoras do triângulo verde destinado aos presos comuns, enciumadas do corpo
de Léa ainda sedutor e que insultava sua própria magreza.
- E aí, sua putinha dos alemães, foi bom?
- Te mandaram pra cá porque não era boa chupadora de pica?
- Foi a foda deles que te deixou retardada?
Sarah tornara-se violenta devido à vergonha e à cólera; lançou- se sobre duas mulheres cujos ossos
rompiam a pele sob o vestido listrado, e acabou com elas sem a menor dificuldade. Ameaçador, o
bando enfurecido de prisioneiras cercou-a. Foi salva graças à intervenção dos kapos, dos guardas e
seus cães. Duas mulheres morreram e ficaram atiradas na lama. Seis prisioneiras foram designadas
para arrastar os cadáveres até o forno crematório. Sarah, sem qualquer emoção aparente, foi levada
até a enfermaria onde uma jovem deportada, lindíssima, prestou-lhe os primeiros socorros, deitando-
a num catre com Iençóis encardidos, repugnantes. Sarah adormeceu.
Ao despertar, encontrava-se a seu lado uma mulher de uniforme, robusta e bonita apesar dos traços
duros.
- Sou a Dra. Schaeffer, assistente do Dr. Oberheuser, médico desta merda de campo. Estou vendo
em sua ficha que você é alemã, judia alemã; que exagero, não acha? Os judeus representam a
escória da humanidade e por isso devem ser eliminados. Nosso Führer entendeu perfeitamente o
problema e resolveu livrar o mundo de todos esses homens inferiores, esses quase macacos. Mas
apesar de tudo você é alemã, e vou tratá-la para que a judia possa chegar em boa forma até a
câmara de gás.
- A câmara de gás? - murmurou Sarah, erguendo-se.
- Sim, trata-se de um meio eficaz para eliminar centenas de parasitas. Ah-ah... se você os visse
debaterem-se, lutarem em suas celas... como piolhos... ah-ah... como piolhos... Nada como um bom
jato de gás zyklon para nos livrarmos da podridão judia...
Sarah agarrou-a pela garganta e, com uma força ampliada pelo ódio que consumia seu corpo, tentou
estrangular a mulher. Os gritos da jovem deportada alertaram os kapos. Foram precisos três para
obrigar Sarah a soltar sua presa. Tossindo, cuspindo, com o pescoço
vermelho e sangrando, a Dra. Schaeffer respirava com dificuldade. Sarah, novamente desmaiada,
com a sobrancelha aberta, os lábios rasgados, encontrava-se caída no chão.
Ao ver que recobrava a consciência, a médica atirou-se sobre aquele corpo inerte e começou a
chutá-lo. Teria matado Sarah se uma das kapos não comentasse:
- Deixe-a, doutora, poderá servir para suas experiências.
Foi quando teve início, para Sarah, uma longa descida no mais profundo dos infernos.
Jogada num velho colchão no fundo da enfermaria, ela permaneceu vários dias sem cuidados e sem
alimento, apenas um pouco de água suja era trazida por uma jovem deportada polonesa com uma
perna amputada. Na manhã do terceiro dia, arrancaram-lhe a roupa em frangalhos e arrastaram-na,
ardendo em febre, para uma espécie de recinto fechado onde se encontravam presas cerca de cem
mulheres, mias, de cabeça raspada, sem idade, reduzidas na grande maioria a verdadeiros
esqueletos, várias com um braço amputado, outras sem uma perna, todas elas com feridas abertas,
purulentas, já com vermes nos ombros, no ventre, nos seios, nas coxas; cobertas de crostas
sanguinolentas, lama, excrementos, deitadas ou agachadas no chão úmido repleto de imundícies,
palha apodrecida e trapos sórdidos. Atirada naquela fossa, ela foi empurrada com gritos de raiva e
dor pelas mulheres sobre as quais caíra e teve de lutar, acima e além de suas forças, para escapar
dos golpes e das dentadas. A febre provocava nela um estado de apreensão total juntamente com
um sentimento de irrealidade. É um pesadelo, pensava, já vou despertar.
Sarah só despertou no dia seguinte com uma sensação de sufoco. Estava escuro. Onde se
encontrava? Quem a prendia daquela maneira? Com extrema dificuldade, conseguiu soltar um dos
braços e, tateando, tentou perceber onde se encontrava. Segurou alguma coisa gelada e inerte, em
seguida outra dura e gelada, novamente mole, dura, mole, gelada, mole, e... com um berro, conseguiu
desembaraçar-se da massa de corpos sob os quais ficara enterrada. Mortas, todas as mulheres
aleijadas daquele recinto estavam mortas; mortas azuis, verdes, cinza, amarelas, cores que
transpareciam sob a sujeira. Os rostos fixos numa máscara de dor, e baba espessa escorrendo das
bocas abertas, membros retorcidos, corpos arqueados por um sofrimento intolerável!... Mortas!
como?... Por quê?... Quando?... E o que fazia, aparentemente sozinha e viva, rodopiando, tentando
fugir, pisando uma cabeça, afundando uma barriga, quebrando um ombro, pisoteando um líquido
marrom grosso e malcheiroso, cambaleando, tropeçando e voltando a se levantar, caindo novamente
em busca de uma saída... E aquelas risadas, aquelas palmas, a música alegre de uma gaita, e, de
repente, um cheiro de gasolina... Oh! que pesadelo! Ela pensara estar acordada, porém continuava
dormindo. Todos aqueles sonhos horrendos deviam ser causados pela fome... Então, parou de correr
- será possível fugir dos sonhos? - e esperou, de olhos fechados, em pé, com os braços pendentes ao
longo do corpo, para ver se despertava.
Um calor repentino obrigou-a a abrir os olhos: à sua frente, chamas azuis lambiam os cadáveres
com ruídos gulosos e o empireuma que exalavam trouxe-lhe à mente a imagem de um fabuloso
banquete oferecido a seu pai pelo rei do Marrocos, no fim de um concerto: dezenas de carneiros
assados na brasa, iluminando a noite. Sarah sentiu a saliva invadir sua boca. Quase ao mesmo
tempo, foi tomada por um sentimento de vergonha que a tirou da sua imobilidade fascinada. Por
aquela saliva em sua boca, por todos aqueles corpos desnudos, comestíveis durante um segundo
apenas, pela humilhação que experimentara ao agarrar o fuzil que um SS lhe entregara sorrindo, pelo
temor que contraía suas entranhas, em meio a uma breve vertigem ela jurou vingar-se até que o
esquecimento apagasse essas imagens e a lembrança daquele obsceno festim.
Após a ordem de uma kapo, quatro deportadas agarraram os membros de Sarah e carregaram-na
até um barracão quase limpo onde se encontravam alinhados quatro ou cinco leitos, atrás de uma
cortina vermelha. Ao fundo, havia uma banheira cheia onde as mulheres deixavam-se cair. Sarah
deu um grito, a água estava
gelada. Tentou levantar-se, mas uma das deportadas disse em francês:
- É melhor ficar quieta, assim vai acabar logo; precisamos te lavar...
- Me lavar?
- É, tem de agradar a Bertha...
- Bertha, a gorda?
- A doutora do campo. Não é seu nome, foi um apelido que a gente lhe deu. Gosta de mulheres.
Quando deseja alguma, manda ela tomar banho antes de usá-la e depois...
- Cale-se - ordenou uma deportada que já fora muito bonita.
- Na minha terra, costumam dizer que um homem prevenido vale mais que dois, uma mulher então!...
Enquanto conversavam, lavavam seu corpo e seu cabelo com um sabonete rosa de cheiro enjoativo.
A água, apesar de fria, trazia a Sarah um certo bem-estar.
- Você deve ter caído nas boas graças da Bertha, pois teve direito ao seu sabonete. Na semana
passada, a pequena iugoslava só pôde usar o sabão feito com a gordura de judeus.
- Cale-se, não tem provas!
- Provas? Que provas? Não acha que eles sejam capazes de tudo, em sua monstruosidade?... E
você, sua sonsa, com ares de moralista, bem que aceita fazer certas tarefas, em troca de uma tigela
suplementar de sopa com um pedaço de salsicha!
- Já sei, já sei!... Pelo amor de Deus, cale-se!
As lágrimas escorriam no rosto daquela infeliz enquanto enxaguava o cabelo de Sarah.
- Seus cabelos são lindos. Por que não teve a cabeça raspada como todas nós?
- Não sei.
- Esquece, ela esteve num bordel; você sabe que não gostam de putas carecas.
Deitada numa cama de lençóis brancos, com suas feridas tratadas,
alimentada com uma sopa grossa e quente, vestida com uma camisa
de pano grosseiro porém limpo, Sarah tentava compreender o que acontecia. Por que a brusca
reviravolta? Espancam-na, abandonam- na sem cuidados, matam umas cem mulheres mas ela
não, salvam- na das chamas, lavam-na, tratam dela, alimentam-na, sossegada, quietinha numa boa
cama aquecida. Por quê? Teria sido melhor para Sarah se jamais obtivesse resposta.
Não era para fazer dela sua amante que a Dra. Schaeffer mandara tratar de Sarah, e sim para que
estivesse completamente lúcida diante de tudo que iria acontecer.
Jovem médica ginecologista que alcançara grande renome antes da guerra, a Dra. Rosa Schaeffer
tornara-se assistente do professor Cari Clauberg, obstetra de fama internacional graças ao seu
teste sobre a ação da progesterona e artigos sobre os mais diversos tratamentos hormonais.
Depois de trabalhar no hospital de Kisnigshutte, Rosa Schaeffer passara a auxiliar o professor em
suas experiências na esterilização das mulheres de raças consideradas inferiores no campo de
Auschwitz, juntamente com o enfermeiro Bünning e o químico Gëbel, representantes dos
laboratórios Schering-Kahlbaum. Completamente insensível, assistira e participara da esterilização
de dezenas de mulheres, todas elas judias, de origem francesa, holandesa, belga, grega, polonesa,
russa... Cari Clauberg e Rosa Schaeffer, casal monstruoso e de um ridículo atroz, ele com 1,50m
de altura e ela 1,75m!... Enviada a Ravensbrück para dirigir a maternidade, associara-se ao Dr.
Herta Oberheuser, assistente do professor Carl Gebhardt, amigo e médico de Himmler, que
testava com certas prisioneiras a eficácia das sulfamidas. Várias cobaias, que ele chamava
carinhosamente de suas "coelhinhas", morreram e outras ficaram mutiladas para o resto da vida.
Em Ravensbrück, a Dra. Schaeffer sentiu-se atraída pelo que havia de mais desprezível dentre o
pessoal do campo e dentre os deportados de direito comum ou as prostitutas. Pobres das jovens
e das mulheres convidadas às suas festas: costumavam sair direto para a câmara de gás, ou
morrer de "ataque cardíaco" provocado por alguma injeção letal. O fato de ser escolhida pela
gorda Bertha significava a morte. Várias deportadas ainda muito bonitas sujavam o rosto com graxa ou terra para não serem notadas pela terrível
amazona que apreciava a carne fresca e curtia a humilhação de suas
conquistas. Há anos, acostumara-se ao temor que provocava em
seus colaboradores e nas prisioneiras; por isso, a revolta de Sarah
transtornara violentamente aquela diabólica mulher.

Capítulo 3

Todas as convicções corriqueiras e burguesas de Esteile e Lisa de Montpleynet haviam
desaparecido durante aqueles quatro anos de domínio alemão, os fatos que ocorreram após a
Libertação, o clima de ódio e desconfiança no qual se encontrava mergulhada a França, e a
penúria cujo fim ainda estava muito longe. O conflito acabara, mas nada era como antes; as
restrições alimentares, de tecido e carvão, continuavam idênticas ao período de ocupação nazista.
Elas não passavam de senhoras idosas, assustadas com as incertezas do futuro. Pensaram que,
com o fim dos combates, as privações também acabariam. Entretanto, com o passar do tempo,
não puderam deixar de perceber que sua vida agradável de antes da guerra deixara de existir. No
momento, o cotidiano apresentava-se tão difícil quanto os anos negros: restrições, penúria,
cartões de racionamento, filas intermináveis diante das lojas vazias. Sem o tráfico de Laure, não
conseguiriam subsistir, sem falar no dinheiro que começava a escassear. Moralmente, era pior
ainda: a desonra de Françoise recaía sobre elas. Pouco a pouco, os amigos deixaram de visitá-
las. Lisa não conseguia aceitar o fato de não ter mais com quem jogar bridge. Esteile revelava um
temperamento mais enérgico, embora sofresse mais profundamente; censurava-se por não ter
sabido proteger as filhas da sobrinha Isabeile, e por não ser bastante rigorosa diante dos atos de
Léa e do comércio duvidoso de Laure. A pobre mulher nem contava mais com o amparo das
preces:
perdera completamente a fé. Isso representava todo seu drama
íntimo. Freqüentemente, a lembrança do padre Adrien vinha à sua mente, Só o medo de magoar as
sobrinhas e principalmente Lisa, que sempre fora considerada como uma verdadeira filha, impedia
Esteile de pôr fim à vida, seguindo o exemplo do dominicano.
As senhoritas de Montpleynet tiveram de aceitar a realidade:
sua fortuna acabara. Só lhes restava o apartamento da rue de Université e uma casinha em
Langon, nas margens da Gironde, comprada graças aos conselhos de Pierre Delmas, com o objetivo
de, com a idade avançada, ficarem mais próximas de sua querida Isabelle. O velho tabelião fora
bastante claro: precisavam vender o apartamento e morar em Langon. Mas o que seria de Françoise
e do menino, de Laure e Lisa, responsáveis por Charles? A resposta foi dada por François
Tavernier, por ocasião de uma visita quando se encontrava em Paris.
- Senhoritas, estão cobertas de razão em querer sair da capital.
- Mas o que vai ser das crianças? Para onde vão?
- Podem ficar em Montillac.
- Montillac ! ... mas Montillac é uma ruína só, segundo fomos informadas.
- Ruínas podem ser reconstruídas. Olhem à sua volta: é o que está ocorrendo por toda parte.
- Mas as meninas não têm dinheiro, e nem nós, infelizmente!
Estelie não pôde conter uma lágrima que enxugou discretamente. No entanto, François percebeu
tudo, embora disfarçasse.
- Receberam notícias de Léa? Deixei-a em Berlim já faz um mês; depois disso, não soube mais
nada.
- Não escreve muito. Sua última carta levou quinze dias para chegar. Só a recebemos há cerca de
uma semana. Ela comenta sua saída de Berlim. Tome, quer ler?
Estelle tirou do bolso uma missiva escrita numa folha de papel azul. François comoveu-se ao
reconhecer a letra grande e desordenada.
Queridas tias, minha pequena Laure, querida Françoise e querida Ruth,
Uma palavrinha apenas, pois a portadora vai pegar o avião
daqui a pouco. Recebi ontem sua carta e as fotos, muitíssimo obrigada. Charles está uma gracinha, e como
parece com a mãe! Laure usa un chapéu que me agrada muito, vou pedir emprestado quando voltar; o novo
penteado de Françoise fica-lhe muito bem; o pequeno Pierre não saiu bem na foto - deve ter-se mexido - e
não dá para ver seu rosto. A vida em Paris parece bastante difícil e o abastecimento continua complicado.
Aqui acontece o mesmo, só comemos conservas americanas. Quanto a mim, está tudo bem apesar das
condições de trabalho muito penosas. Voltei ontem de uma missão de três dias ao Báltico, perto de Schwein.
Fez um tempo lindo. Eu trouxe de volta um prisioneiro francês e dois belgas. Os outros carros estavam
lotados. Tive de viajar à noite durante quatro horas, com os faróis em péssimo estado, e quando começou a
chover sem limpadores de pára-brisa, não enxergava quase nada e continuei rodando na mais completa
escuridão. Tinha toda a certeza de não conseguir voltar sã e salva e me sentia tão tensa que cheguei a
desejar um acidente para acabar logo com aquele pesadelo. Mas deve existir um Deus para as motoristas e
cheguei bem, mas de péssimo humor! Convivemos muito bem com os soviéticos, facilitam as coisas para nós,
não são como os anericanos que só trazem problemas. Viajei cento e cinqüenta quilômetros com um russo
que ajeitava meu casaco nos ombros sempre que escorregava. Quando estamos juntos em missão, dividimos
suas refeições. Aqui está o cardápio típico: café da manhã, sopa; almoço, purê de batata e rabanete; jantar
sopa; e no dia seguinte, exatamente a mesma coisa. Como podem ver nada de muito apetitoso para alguém
guloso como eu. Ainda bem que tem vodca. Podem ficar sossegadas, não bebo muito. Nossos amigos, porém,
podem ingerir quantidades inacreditáveis. Não sei como a conseguem, pois a venda de álcool sofre um
controle muito rígido.
Será que podem me mandar algum dinheiro? Não tenho mais nada. Vou devolver tudo, pois a CRF' me deve
muito. Comprei uma máquina fotográfica espetacular Claire Mauriac tirou várias fotos
de mim ao lado de minha ambulância; aproveito para mandá-las junto com a carta. Comprei
também 35 maços de cigarros. Estou dura.
François Tavernier deixou Berlim há uma semana. Sinto muito a sua falta.
Que idéia é essa de querer vender o apartamento da rue de l'Université e morar em Langon?
Quanto a mim, nem pensar em ficar naquela região, com tantas lembranças terríveis. Quando
eu voltar encontraremos uma solução. Pretendo trabalhar Por enquanto, Laure precisa se
virar A propósito, minha querida Laure, você pode conseguir sapatos para mim? Só tenho um
par e não sei quanto tempo mais vão agüentar! Obrigada, irmãzinha. Conto com você.
Tomem conta de Charles e dêem-lhe mil beijos por mim. Penso muito nele.
Preciso acabar essa carta porque já me avisaram que o avião está partindo. Cuidem-se bem,
e mando beijos e abraços para todos.
Sua Léa
François dobrou a carta.
- Coitada! Como consegue dirigir transportes tão pesados?
- comentou Lisa, mostrando as fotos que Léa enviara.
A linda motorista parecia tão melancólica, sentada, com as pernas balançantes, no degrau do
veículo, cercada por três colegas sorridentes! Em outra fotografia, via-se Léa com o uniforme
cinza da Cruz Vermelha, com o quepe regulamentar, de luvas nas mãos, o nó da gravata
impecável, em pé diante das ambulâncias bem alinhadas, durante a revista do comandante Rozen.
Ao devolver as fotos, François Tavemier lembrou-se de que não possuía nenhum retrato dela.
- Como ela parecia, na última vez que você a viu? - perguntou Esteile.
- Espetacular - comentou François, sorrindo.
- Como?
- Desculpe... eu quis dizer muito bem, parecia muito bem.
- Não muito cansada pelo trabalho?
- Um pouco, claro; mas Léa é muito forte, muito corajosa. Seus superiores não lhe poupam elogios.
Apesar de ser a mais bonita, é adorada por todas as colegas.
- Ficamos muito felizes. Eu me preocupo tanto com essa menina; tem a sensibilidade da mãe e a
teimosia do pai. É orgulhosa e obstinada, forte como você bem disse, mas tão frágil...
- Sei muito bem, é por isso mesmo que ela consegue ser tão atraente, tão encantadora.
- Receio que ela tenha uma certa dificuldade para adaptar-se à vida normal, casar-se, ter filhos. Não
acha?
Como aquelas senhoritas de Montpleynet eram encantadoras, tão ingênuas e puras, sobretudo Lisa,
com seus cachos louros onde o cabeleireiro colocara reflexos de uma tonalidade rosa bastante
acentuada.
François ignorou a pergunta.
- Vamos falar de seus projetos. O dinheiro da venda do apartamento será suficiente para seu
sustento? Peço desculpas se sou indiscreto...
- Por favor, estamos entre amigos e no ponto em que chegamos... segundo nosso tabelião, sim, sem
grandes extravagâncias, é claro. Mas isso não resolve o problema de nossas sobrinhas.
- Posso ajudar.
- Como assim?
- Emprestando o dinheiro para as obras de Montillac...
-Mas...
- Deixe-me continuar: esse dinheiro será devolvido quando suas sobrinhas receberem as
indenizações de guerra...
- Não será suficiente!
- Vocês se esqueceram do produto da vindima. O vinho de Montillac é de excelente qualidade.
- Mas não há mais ninguém para tomar conta da propriedade.
- Não se preocupem, vamos encontrar. O mais importante é que Françoise, Léa e Laure aceitem.
Vocês acreditam que elas concordem?
- François, penso que para ela nada disso importa. Lá ou aqui, tanto faz; ela se sente profundamente
infeliz e não sabemos o que fazer para atenuar sua tristeza. Laure ainda é menor e talvez possamos
convencê-la a vir conosco; seria uma boa maneira de separá-la das pessoas com quem anda saindo.
Quanto a Léa, pelo conteúdo de sua carta, ficou claro que ela nem pensa em voltar a Montilac.
- Não é bem assim. Léa nasceu lá, está muito ligada àquela região. O que ela mais receia é
encontrar a casa em ruínas; depois de reconstruída, tudo voltará ao normal.
- Acha mesmo?
- Claro, ela vai gostar de reerguer a propriedade em homenagem aos pais. Aliás, nem tem outra
opção! Vocês deveriam aceitar minha proposta.
Lisa suspirou, Estelie baixou a cabeça. As três permaneceram caladas.
- Posso lhe fazer uma pergunta indiscreta? - disse Esteile.
- Por favor.
- Bem... é difícil para mim, peço desculpas... mas preciso perguntar antes de aceitar sua generosa
oferta... Quais são seus sentimentos em relação a Léa?... Quais são suas intenções?
- O que pretende me dizer é: tem a intenção de se casar com ela? - disse François com uma ironia
que não conseguiu disfarçar.
- Isso mesmo.
- Para responder com toda a franqueza, o assunto exige reflexão...
- Como? - disseram ao mesmo tempo as duas irmãs.
- ... O que quero dizer é que não estou convicto de que Léa seja uma boa esposa e menos ainda de
que me aceite como marido.
- Nesse caso... - disse Esteile, levantando-se.
- Sente-se, senhorita, não tive a intenção de ofendê-la; só quis lhe dizer que não depende de mim, e
sim de Léa. Para responder mais simplesmente à sua pergunta, sim, eu me casaria com sua sobrinha
com o maior prazer.
As velhas senhoritas deixaram escapar um profundo suspiro de alívio.
- Que susto me deu! - exclamou Lisa com uma voz abafada, abanando-se com o lenço.
Esteile nada disse, apenas sorriu.
- Com sua permissão, senhoritas, vou conversar com o tabelião. Qual o nome dele?
- Sr. Loiseau, mora no bulevar de Courceiles.
- Muito bem, falarei com ele durante a semana.
François Tavernier encontrou-se com o tabelião e apresentou uma proposta de compra do
apartamento extremamente vantajosa para as velhas senhoritas, com a condição de que o nome do
comprador fosse mantido em segredo até nova ordem. Em companhia de Françoise, viajou para
Montillac para verificar o estado da propriedade. Os estragos eram menos sérios do que pensara.
Todo o telhado precisava de reparos, assim como parte da estrutura; quanto ao resto, após uma boa
limpeza, bastava pintar ou forrar os vários cômodos, e comprar novos móveis.
Françoise mal pôde esconder a emoção ao rever o local de sua infância.
- Não pensei que nossa casa querida tivesse sofrido tanto!
Mas você está certo, temos de morar aqui. Quanto a mim, já decidi
e virei para cá com meu filho. Aqui vou conseguir esquecer e educar
o menino da melhor maneira possível. Espero convencer Laure e
Léa a fazerem o mesmo.
- Tomou a decisão correta, e desejo que suas irmãs pensem da mesma forma.
- No caso de Léa, não sei. Parece-me que só você pode convencê-la. Laure me preocupa mais.
Acostumou-se a um tipo de vida fácil, agitada, tipicamente parisiense. Não consigo imaginá-la na
vida simples e calma da província.
- Penso da mesma forma. Mas será que pode deixá-la sozinha em Paris? Ela é muito nova.
- De qualquer maneira, Laure fará o que ela quiser. Sei perfeitamente que já pensava em sair do
apartamento da rue de l'Université e mudar para um quarto-e-sala, na rue Grégoire-deTours.
Conheço-a muito bem; se já resolveu morar em Paris, nada
fará com que mude de idéia. Ela consegue ser ainda mais teimosa que Léa.
Após ouvir a opinião de Françoise, Tavernier deixou as obras a cargo de um arquiteto de Bordeaux
que se comprometeu a fornecer um orçamento o mais rápido possível.
Graças aos cuidados de um vizinho, os vinhedos encontravam- se em bom estado. O Sr. Testard,
muito simpático, recomendou um parente seu como administrador. Prisioneiro durante quatro anos,
Alain Lebrun passara todo o cativeiro numa propriedade vitícola nas margens do Reno; na ausência
do dono e dos filhos, todos eles combatentes, obtivera excelentes resultados. De tal forma que a
dona da propriedade, sem notícias dos homens ao fim da guerra, chegou a lhe oferecer uma de suas
filhas em casamento. Alain recusou gentilmente a proposta e, logo após as vindimas, só pensava em
regressar.
- É um homem muito correto - comentou Testard, ele ama e respeita a terra; aceitou ficar até o fim
das vindimas. As senhoritas Delmas não encontrarão ninguém melhor do que ele, posso garantir. Já
mandei uma carta para sondá-lo quanto às suas intenções; respondeu que se as senhoritas o
contratassem, de sua parte não haveria o menor problema.
- Lembro-me dele - respondera Françoise. - Trata-se de um rapaz de minha idade, sem família e sem
dinheiro. Foi educado por um tio tanoeiro em Saint-Macaire. Quando jovem, era muito trabalhador e
calado. Se não mudou, é exatamente o tipo de pessoa de que precisamos em Montillac.
Françoise escreveu a Alain Lebrun e marcaram um encontro assim que ele voltasse.
Os dois meses seguintes passaram muito rápido e, no início do verão, as senhoritas de Montpleynet
deixaram Paris com Françoise, seu filho e o pequeno Charles. Laure aceitou vir passar as férias
mas recusou instalar-se definitivamente em Montillac; chegou a dizer que fugiria se as tias
obrigassem-na a ficar. Vencidas pelo cansaço, suas tutoras concordaram em alugar o quarto-e-sala
da rue
Grégoire-de-Tours. Em sinal de agradecimento, Laure prometeu retomar os estudos e ajudar nas
reformas de Montillac.
De acordo com François Tavemier, Léa não fora informada dessas grandes mudanças na vida da
família.
- Será uma surpresa - disse François.
As primeiras semanas foram marcadas por uma grande euforia e um terrível caos. A casa de
Langon era muito pequena para receber tanta gente. Acomodaram-se da melhor forma possível em
Montillac; o tempo estava lindo, aquele tipo de acampamento divertia crianças e adultos e as obras
progrediam rapidamente.
Françoise e Laure experimentaram uma profunda alegria ao rever Ruth, a velha governanta. Como
parecia diferente!... Guardavam a lembrança de uma mulher na força da idade e agora... suas mãos
trêmulas revelavam todos os sofrimentos por que passara. Ruth era muito querida e dizia que a vida
continua, que a infância não desaparecera por completo, pois quem costumava contar lindas
histórias, cantar suaves canções, continuava viva e contando como antes histórias de fadas e lobos,
monstros e belas princesas adormecidas para dois garotinhos que, instintivamente, chamavam-na de
vó Ruth.

Capítulo 4

Após dois meses de hospital, Sarah Muistein fora acolhida pela família do major George McClintock
em sua imensa propriedade no norte da Escócia. Ali, cercada de cuidados e afeto, sua saúde
melhorara com surpreendente rapidez, na opinião dos próprios médicos. Um deles, mais perspicaz,
preocupava-se com seu estado mental. Ela se recusava obstinadamente a falar do que acontecera
na Alemanha, dando a impressão de optar pelo esquecimento. No entanto, havia algo contraditório:
assim que seu cabelo voltou a crescer, ao se sentir bastante forte, raspou tudo. Diante das perguntas
de seus hospedeiros, limitou-se a responder, com profunda ironia, que se julgava mais bonita assim.
Lady Mary, mãe de George McClintock, mandou vir uma linda peruca de Londres; Sarah agradeceu
rispidamente e acrescentou que não poderia usá-la, pois lembrava-se de outras cabeleiras enviadas
aos milhares dos campos para fábricas de tecidos. Esta foi uma de suas raras alusões ao universo
dos campos de concentração nazistas no decorrer de sua estada. Embora chocados com sua atitude,
todos agiram com tato e compreensão.
No outono, ela comunicou sua intenção de voltar à Alemanha a fim de tentar saber o que
acontecera com o pai e os primos, assim como toda a família do marido.
George tentou dissuadi-la.
- Eu tinha família em Berlim e Munique; quero saber se ainda restam sobreviventes. Além do mais, o
processo dos criminosos
nazistas vai começar. Não posso perder este acontecimento e faço questão de prestar meu
testemunho.
- Só há ruínas em Berlim, e o mesmo deve ocorrer em Munique e em todas as grandes cidades da
Alemanha.
- Sei, mas quero ir mesmo assim. Não precisa viajar para Nuremberg? Então me leve.
- Você não está em condição de voltar para lá!
- Engano seu. Se não quiser me levar, irei sozinha.
McClintock acabou cedendo e tratou de todas as formalidades.
Acompanhou Sarah até Munique antes de viajar até Nuremberg. Na antiga capital da Baviera, ela
teve a grande alegria de encontrar um de seus primos, Samuel Zederman, jovem advogado antes da
guerra, que conseguira escapar da polícia por um milagre no dia em que sua família foi detida: pais,
avós, irmãos e irmãs. Todos deportados para Mauthausen.
Samuel sobreviveu escondido no porão de sua namorada não- judia; esta, durante dois anos, trouxe-
lhe comida e o protegeu sem que ninguém soubesse. Com a freqüência cada vez maior dos
bombardeios, acostumaram-se a passar todas as noites no porão. Lá nasceu uma menininha que
morreu durante o parto, e que foi enterrada pelos pais, desesperados, num canto qualquer. Certa
noite, sua amiga não apareceu; ele esperou em vão durante vários dias. Finalmente, quando tomou a
decisão de sair, louco de angústia e fome, não reconheceu mais nada. A sua volta, só restavam
ruínas onde vagavam criaturas cinzentas, procurando comida entre os destroços. Caminhou muito
até encontrar um prédio quase intacto, erguendo-se solitário em meio aos escombros; no térreo,
havia um bar com as vidraças substituídas por cartolina. Do lado de dentro, uma única lâmpada a
querosene ou a óleo mal iluminava a sala onde se encontravam seres humanos sentados em bancos
diante dos mais variados recipientes, dos quais saía um filete de vapor. Todos se empurraram para
que ele pudesse sentar-se também e, sem qualquer comentário, uma moça magra e pálida colocou à
sua frente uma tigela rachada cheia de um líquido fumegante. Agradecido, ele pegou a vasilha; o
paladar era indefinível, porém o líquido estava
quente. Sentiu uma violenta vertigem e desmaiou. Ao recobrar os sentidos, a sala encontrava-se
vazia, as sirenes rugiam. Logo em seguida, as primeiras bombas explodiram. Ao seu redor, o solo, as
paredes estremeciam, nas prateleiras os copos chocavam-se com sons cristalinos logo encobertos
pelo ruído das explosões, enquanto pedaços de reboco caíam sobre sua cabeça. Era preciso fugir,
mas antes tinha de encontrar algum alimento. Passou para trás do balcão e procurou em todos os
armários. No fundo de um deles, encontrou um pacote de biscoitos e três latas de leite condensado.
Com a ponta da faca, abriu uma e ingeriu o delicioso conteúdo. Teve a força de vontade necessária
para não tomar tudo e guardou a lata na mochila que se lembrara de encher com algumas roupas,
um copo de prata, um colar de pérolas que pertencera à sua mãe e uma foto dele em companhia da
namorada. Mal saíra do local, uma bomba pulverizou o prédio. O deslocamento de ar atirou-o à
distância. Levantou-se atordoado, tossindo, porém inteiro, em meio a uma espessa nuvem de poeira.
Só se ouvia o ruído dos aviões afastando-se no céu e o crepitar das chamas saindo do edifício
destruído. Apalpando tudo à sua frente, ele se afastou do fogo, tropeçando nos destroços. Pouco a
pouco, a nuvem de poeira tornou-se menos densa. Assim como espectros, erguiam-se criaturas com
aspecto vagamente humano, que pareciam surgir da sombra; nem um só grito, nem pranto, nem o
menor gemido, apenas gestos em câmera lenta. Em seguida, formou-se uma pequena multidão
silenciosa que se afastou lentamente. Samuel misturou-se àquela gente: havia principalmente
mulheres, cobertas de um pó que ocultava sua idade, homens já bastante idosos e encurvados e
crianças que caminhavam sempre para a frente, sem pressa e sem destino.
Quanto tempo durou seu périplo através da Alemanha devastada, fugindo dos bombardeios, dos
bandos de assaltantes, dos soldados desertores? Nunca soube exatamente. Certo dia, despertou à
beira de uma estrada, apoiado num imenso soldado negro americano que lhe dava água.
Quando Sarah e ele se encontraram, o jovem e brilhante advogado servia de intérprete às tropas
francesas e americanas, e procurava saber o que acontecera à sua família. Conseguiu convencer
o comando francês da região da necessidade de uma intérprete feminina para lidar especificamente
com as crianças. Certo dia, acompanharam um comboio da Cruz Vermelha Internacional
encarregado de repatriar inúmeros órfãos que viajavam na companhia de médicos e enfermeiros
alemães. Ao descer do trem, cada criança recebia um copo de leite quente e um tablete de
chocolate. As crianças, em sua maioria vestidas com roupas desbotadas, magras, os pés envoltos
em trapos, olhos imensos e esbugalhados e rostos macilentos e sujos, em estado de choque, fitavam
aquelas gulodices com certo receio antes de engolir tudo num segundo, com um brilho no olhar.
Samuel chamou um dos dois médicos identificáveis pela braçadeira e perguntou qual deles era
responsável pelo comboio.
- Das bin ich
- Sou eu.
- respondeu uma robusta e bonita mulher.
Ao ouvir aquela voz, Sarah deteve-se, aterrorizada. Com um esforço incrível, conseguiu virar-se,
mas os olhos turvos pelas lágrimas não distinguiam os traços do rosto: só pôde observar, em meio a
uma espécie de névoa, que a mulher usava o uniforme azul da Cruz Vermelha... Devia estar
sonhando, não era possível.
- Die Kinder sind blutarm, aber im aligemeinen ziemlich gesund, nicht Wahr Inge?
- Ja, Frau Doktor wie haben unser Bestes getan, um sie zu pflegen
- As crianças estão anêmicas, mas, no conjunto, seu estado de saúde é bom. Não é, Inge?
- Sim, doutora, fizemos o melhor possível.
- disse uma enfermeira
que se encontrava a seu lado.
Essa outra voz?...Não!... Não!...
Deve ter gritado, pois Samuel voltou correndo.
- O que houve? Você não está bem, o que foi que aconteceu?
Sarah tremia, incapaz de falar, sem ar, lívida. Ele lhe deu um tapa no rosto.
- Aquelas assistentes da Cruz Vermelha, conseguiu articular, apontando então para o médico e a
enfermeira.
- E daí? São pessoas competentes encarregadas pelos aliados de encontrar crianças perdidas por
toda a Alemanha.
- Mas não é possível, elas não!
- O que está dizendo, não entendo!
As duas auxiliares do comboio notaram o violento transtorno daquela mulher com seu traje
vagamente militar, e uma boina que escondia o cabelo. Havia algo de familiar nesse rosto. De
repente, a que se chamava Inge empalideceu e murmurou no ouvido da companheira: - Ich erkenne sie, sie war es, die euch in Ravensbrück - derstandleistete.'
- Sprich nicht so laut, du Idiotin ?... Du hast recht!
- Sei quem é, foi ela quem desafiou você em Ravensbrück.
- Fale mais baixo, sua idiota!...Você tem razão
Um trem chegou em outra plataforma; as enfermeiras juntaram as crianças para afastá-las da beira,
criando assim uma certa confusão que as duas alemãs aproveitaram: passaram por trás do grupo
bastante agitado e dirigiram-se para a saída. Os passageiros do novo trem saltaram, formando uma
multidão desordenada, o que fez com que as duas mulheres conseguissem escapar antes que Sarah
e Samuel pudessem reagir. Quando chegaram na saída da estação, ambas já haviam desaparecido.
Só lhes restava fazer um relatório às autoridades americanas.
- Você está certa de que se trata realmente da Dra. Rosa Schaeffer, médica no campo de
Ravensbrück, e da enfermeira Ingrid Sauter? - perguntou a Sarah o comandante que os recebeu.
- Absolutamente convicta. Na qualidade de médica, ela é a responsável pela morte de centenas de
deportadas. Praticou em ínumeras mulheres uma série de experiências que, se não as mataram,
deixaram-nas mutiladas para o resto da vida. Sou uma delas e estou pronta a testemunhar.
- Obrigado, senhora. Elas constam de nossa lista de pessoas procuradas por crimes. Vamos tomar
todas as medidas para detê-las.
- Mas como puderam infiltrar-se na Cruz Vermelha?
- Não faço a menor idéia, só sei que tivemos de recorrer a médicos e enfermeiras alemães
disponíveis; nossas próprias equipes não conseguem dar conta de tudo. Não é o primeiro caso de médicos nazistas tentando valer-se
da situação. Certas redes formaram-se para fabricar documentos falsos e encontrar esconderijos
seguros em meio à população. Existem outras especializadas em retirar do país os elementos mais
comprometidos. Grande parte dos serviços aliados vem procurando desmantelar tais redes. Não é
nada fácil, pois boa parte da população tornou-se cúmplice e os procurados ainda podem contar com
a ajuda externa. No caso que nos interessa, não deverá ser tão complicado encontrar aquelas duas
mulheres.
Durante os dois dias que se seguiram àquele sinistro encontro, Sarah permaneceu prostrada no
quarto, sem falar com ninguém. Samuel Zederman, consciente do choque que sua prima recebera,
deixou-a em paz até o momento em que não agüentou mais.
- Você não pretende ficar trancada aqui sem fazer nada, esperando simplesmente que as tragam de
volta. Aliás, quem disse que os americanos conseguirão encontrá-las? Existem milhares de casos
semelhantes, é como procurar uma agulha num palheiro. Cabe-nos sair em busca dos criminosos e
nos vingar. Mas, antes, precisamos saber se existe alguma chance de encontrar nossa família.
Muitos sobreviventes de Mauthausen acham-se perto de Linz, em campos especiais para pessoas
deslocadas. Vamos para lá, Linz fica a apenas três horas de Munique.
Levaram dois dias para fazer essa viagem num trem superlotado que parava, às vezes, durante
horas. Na chegada, após minuciosos controles de identidade, esfomeados, correram até uma
carrocinha onde eram vendidas bebidas quentes e salsichas. Saciados, perguntaram ao dono se
havia uma possibilidade de encontrar um quarto na cidade. Ergueu os braços para o céu mas disse
baixinho que sua irmã talvez pudesse dar um jeito e ajudá-los, por um preço razoável.
O preço razoável acabou sendo igual ao aluguel de uma suíte no melhor hotel parisiense. Mas o
quarto tinha duas camas, uma pia atrás de uma cortina e um fogão; o maior luxo naqueles dias tão
difíceis. Após um banho rápido, foram até o recém-organizado
comitê judaico de Linz. Uma multidão de homens e mulheres com o rosto emaciado e pálido, onde
sobressaía a marca azulada das olheiras, todos vestidos com roupas imensas ou muito apertadas,
enchia os dois cômodos e a entrada do comitê para consultar as listas de sobreviventes. Gritos, risos,
lágrimas, abraços, xingamentos, injúrias... Sarah saiu, empurrada, completamente atordoada pelo
barulho. Encostou-se na parede e fumou um cigarro. Imediatamente, braços e mãos estenderam-se
à procura do maço que ela entregou. Um turbante de lã escondia sua cabeça raspada, o casaco que
usava era de boa qualidade, os sapatos e a bolsa de couro verdadeiro. As pessoas que entravam
olhavam para ela, principalmente as mulheres. Perdida em seus devaneios, não reparou logo que um
homem, muito alto e macérrimo, encontrava-se à sua frente.
- Em que posso ajudá-la, senhora?
Ela ergueu a cabeça e sentiu-se imobilizada pelo olhar de seu interlocutor; um olhar intenso,
profundo, inquisidor, que parecia ler seus pensamentos, um olhar bom porém triste, imensamente
triste.
- Obrigada, mas acho que o senhor não pode. Meu primo está lá dentro.
- Procuram por parentes, amigos?
- Eu não procuro nada, meu pai e meu marido morreram. Toda minha família desapareceu, exceto
meu primo Samuel, que ainda pensa encontrar alguém.
- Ele está certo, a esperança ajuda a viver. Muita gente consegue encontrar familiares.
Sarah respondeu com uma risada sarcástica.
No mesmo instante, Samuel descia as escadas apressado, o rosto coberto de lágrimas, um sorriso
radiante nos lábios, arrastando um rapaz muito novo e assustadoramente magro.
Ficou louco, pensou Sarah.
- Daniel... encontrei Daniel, meu irmãozinho... Deus é bom, Sarah... meu irmãozinho!...
Deus é bom! ... Mas que idéia para um brilhante advogado ateu! Ela experimentava um sentimento de
raiva. Seu olhar cruzou-se com o do rapaz, repleto da mesma cólera.
- Está vendo como não se deve perder a esperança? - comentou o desconhecido.
- Claro - disse Sarah, bastante ríspida.
Samuel chegava sem largar o irmão.
- Daniel, você não a conhece, é nossa prima Sarah Muistein, abrace-a.
Abraçaram-se sob o olhar atento do estrangeiro.
Simon, ande logo, precisamos de você - disse uma mulher saindo da sala.
- Já vou. Até logo e boa sorte.
Sarah o deteve.
- Por favor, conhece o responsável pelo comitê?
- Sou eu.
- Gostaria de conversar, é muito importante. Quando podemos falar?
- Vá hoje à noite até minha casa, na Landstrasse; por volta das oito.
- Obrigada. Meu nome é Sarah Muistein.
- Eu sou Simon Wiesenthal.
Durante o almoço, Daniel contou rapidamente, friamente, sem detalhes, como fora preso com os
pais. Falou da chegada ao campo onde seus avós foram imediatamente assassinados na câmara de
gás. Certo dia, sua mãe e suas irmãs desapareceram; deviam ter sido mandadas para Ravensbrück.
Quanto ao pai, morrera de esgotamento em seus braços.
Ele tinha pouco mais de dezoito anos, falava num tom aparentemente calmo e sem qualquer
emoção. Sarah experimentou logo uma grande atração ao vê-lo, mas ele desconfiou daquela mulher
tão bonita apesar das cicatrizes em seu rosto, muito elegante na sua opinião. Mais tarde, quando ela
tirou o turbante e mostrou o número em seu braço, Daniel deixou de ficar sempre na defensiva e
atirouse em seus braços chorando. Durante alguns minutos, ele se sentiu em segurança como um
bebê no seio da mãe. Daquele dia em diante, nasceu entre eles um sentimento de fraternidade, uma
certa cumplicidade, uma compreensão total do temperamento do outro. Foi a única vez em que ele teve pena
de si próprio.
Sarah insistiu para ir sozinha à casa de Simon Wiesenthal.
O apartamento era composto de um só cômodo modestamente mobiliado e cujas janelas davam para
um jardinzinho. Era justamente por causa desse jardim que Wiesenthal fora atraído.
- O que posso fazer para ajudá-la?
- Pode ajudar a me vingar.
- Eu já sabia que se tratava disso. Li em seus olhos. Entendo seu sentimento, mas não o aprovo. O
que eu quero é justiça.
- Como pode falar de justiça, se viu como eu o horror nazista?
- exclamou Sarah, exasperada.
- Por isso mesmo. Devemos dar nosso testemunho ao mundo. Não acredito na culpa coletiva do
povo alemão. Pessoalmente, posso afirmar que soldados da SS revelaram um comportamento
humano para com os presos judeus...
- Não devem ser muitos - interrompeu Sarah com uma risada irônica.
- Basta um justo apenas, lembre-se de Sodoma e Gomorra...
- Ah, não! Não vim até aqui para ouvir suas citações da Bíblia. Se Deus existiu alguma vez, deve ter
morrido nos campos de concentração.
- Você conseguiu sair viva e eu também. Por quê? Por que fomos poupados enquanto centenas de
milhares morreram assassinados?... O que fizemos para termos o direito de sobreviver? Não nos
cabe justificar esse favor do destino? Eu também, num primeiro momento, pensei em vingança; toda
minha família foi exterminada, minha mãe levada na minha frente, minha esposa que eu considerava
morta... para quem viver, por que viver?, pensava eu. Quanto mais o tempo passa, mais aumenta a
lista dos desaparecidos... Mataram gente aos milhões...
- E todos esses milhões de mortos não exigem vingança?
- Não, só pedem justiça. Pedem que seus assassinos sejam denunciados abertamente e que o mundo
inteiro saiba o que fizeram; exigem que não se esqueçajamais, que nossos filhos e os filhos
de nossos filhos nunca deixem de se lembrar o que aconteceu para que não volte a acontecer nos
próximos vinte anos, cem anos...
O cômodo era muito pequeno para aquele homem magro e alto que andava de um lado para o outro,
fazendo grandes movimentos com os braços, ele que parecia tão calmo no início da conversa; agora,
ele deixava transparecer uma violenta emoção.
- ...Umjudeu que acredita em Deus e em seu povo não pode acreditar na culpa coletiva do povo
alemão. Claro, ele não desconhecia totalmente as atrocidades que estavam sendo cometidas atrás
dos arames farpados nos campos da morte; de medo, de vergonha, todos preferiam desviar o olhar
diante das lojas de judeus destruídas, diante dos vizinhos judeus presos, das crianças expulsas das
escolas, das cruzes gamadas sujando as vitrines de judeus...
- Tudo o que está dizendo mostra que os alemães sabiam, e no entanto continua afirmando que a
culpa deles não é coletiva?
- Nós, judeus, não sofremos durante milhares de anos, porque éramos acusados de ser
"coletivamente culpados", todos, inclusive as crianças ainda não nascidas, da morte de Cristo, das
epidemias da Idade Média, do comunismo, do capitalismo, das guerras desastrosas e dos tratados de
paz igualmente desastrosos? Todos os males da humanidade, desde a peste até a bomba atômica,
são "a culpa dos judeus". Somos os eternos bodes expiatórios. Nós sabemos perfeitamente que não
somos coletivamente culpados; então, como poderíamos acusar outro povo pelos crimes cometidos
por alguns de seus filhos? Entretanto, peço a Deus que me dê a força necessária para levar a cabo
minha tarefa: nenhum criminoso pode julgar-se em segurança; em qualquer parte do mundo e até o
fim de seus dias, nós iremos buscá-lo a fim de que responda diante dos tribunais por todos seus
crimes contra a humanidade.
Esgotado, Wiesenthal sentou-se numa cadeira. Sarah, transtornada, olhava para ele. Como aquele
homem tão ferido ainda conseguia falar de justiça? Ela experimentou uma admiração incrédula
diante dessa confiança na justiça, diante da coragem desse homem tranqüilo. Nada do que ele havia
visto e vivenciado pudera abalar ou fazer desaparecer sua crença no homem.
O clima do quartinho estava carregado de tamanha emoção que
ambos permaneceram durante longo tempo mergulhados em seus pensamentos. Sarah conseguiu
reagir primeiro.
- Eu o admiro muito mas não posso segui-lo. Sei que não poderei viver se não me vingar, não só do
mal que me fizeram, como também do que fizeram aos outros. Sei que existem listas de criminosos,
de testemunhos que foram enviados a Nuremberg para a preparação dos processos. A única coisa
que lhe peço são os nomes dos criminosos de Ravensbrück.
- Tais nomes encontram-se nas mãos das autoridades aliadas. Todos serão julgados e punidos em
função de seus crimes. Você não é a primeira e não será a última a me fazer esse pedido. Nós, as
vítimas, devemos aceitar o fato de delegar nossa vontade de vingança aos tribunais e respeitar seu
julgamento, seja qual for. Nós,judeus, não devemos ter o mesmo comportamento dos nazistas que
mataram homens porque pensavam ter tal direito. Matando-os sem julgamento, estaríamos agindo
como eles.
- Não! Nunca irei acreditar nisso! Nunca! Não posso esperar que desapareçam em meio à massa
"inocente". Alguns dias atrás, vi dois dos monstros de Ravensbrück vestindo o uniforme da Cruz
Vermelha. Juro que farei o impossível para encontrá-los e matá-los, pois só a morte pode impedir
esses vermes de espalhar a epidemia nazista.
- A única coisa que vai conseguir são novos sofrimentos.
- Não me importo. Perdi minha alma naqueles campos. Você continua com a sua... Essa é a grande
diferença.
Sarah saiu sem um palavra de despedida. Sentado na cadeira, Simon Wiesenthal chorava.

Capítulo 5

Profundamente transtornada, Léa deixou a sala de audiência superaquecida do Palácio da Justiça
de Nuremberg. Não agüentava mais ouvir toda aquela enumeração de atrocidades, e os filmes
sobre os campos de concentração de Dachau e Buchenwald esgotaram sua resistência. Durante a
projeção, com os fones nos ouvidos para entender todas as intervenções em inglês,
completamente fascinada, ficara olhando, examinando os réus. Um silêncio incrível reinava na
sala. Como que agarrado ao assento, Hans Fritzsche, chefe da propaganda no rádio, observava
as imagens atrozes com uma expressão de grande sofrimento; Hjalmar Schacht, presidente do
Reichbank, o tempo todo de cabeça baixa, recusava-se a olhar para a tela; Hans Frank, ex-
advogado, governador geral da Polônia, chorava enquanto roía as unhas, ou tapava os olhos com
as mãos; Franz von Papen, chanceler do Reich, mantinha-se ereto, imóvel; Baldur von Schirach,
protetor da Boêmia e Morávia, chefe da Juventude Hitierista, com seu belo rosto pálido e sério,
olhava atentamente, ofegando em certos momentos; Rudolf Hess, com olhar demente,
embrulhado num cobertor, parecia não entender onde estava; Albert Speer, ministro do
Armamento, ia ficando cada vez mais triste; o almirante Doenitz agitava-se, com a cabeça baixa
praticamente o tempo todo; Hermann Goering, marechal do Reich, encostado no "corrimão",
lançava olhares desanimados à sua volta; Joachim von Ribbentrop, ministro das Relações
Exteriores, levava as mãos trêmulas à testa; Julius Streicher, diretor do jornal
Der Stürmer mantinha-se imóvel, sem qualquer sinal de emoção aparente; Alfred Rosenberg,
filósofo das doutrinas nazistas, saqueador dos objetos de arte europeus, agitava-se o tempo todo;
Ernest Kaltenbrunner, chefe da segurança de Himmler, parecia entediado; o general Alfred Jodi,
rígido, tinha um ar mais prussiano do que nunca; o marechal Wilhelm Keitel, igualmente rígido,
desviava o olhar; Arthur Seyss-Inquart, chanceler da Austria, limpava os óculos, impassível;
Constantin von Neurath, ministro das Relações Exteriores, olhava para baixo quase que o tempo
todo; Wilhelm Fnck, ministro do Interior, sacudia a cabeça como se quisesse afastar alguma mosca;
Walter Funk, ministro da Economia, soluçava; Fritz Sauckel, chefe de recrutamento do trabalho
obrigatório, de boca aberta como se estivesse com falta de ar, não parava de enxugar o rosto;
quanto ao almirante Erich Raeder, parecia grudado no assento.
Desde a abertura do processo, em 21 de novembro de 1945, pelo procurador geral americano
Robert H. Jackson que pronunciara as seguintes palavras, como preâmbulo, "Que quatro grandes
nações vitoriosas, embora lesadas, não exerçam vingança em relação aos seus inimigos prisioneiros:
este é um dos tributos mais importantes que uma potência já tenha pagado à razão", Léa acreditava
estar num universo de loucos ou num teatro onde era representada uma peça de terror da pior
qualidade. Tudo lhe parecia uma grande farsa, inclusive a descrição dos horrores, e ela achava
impossível que atores tão sem classe, tão despreparados, tivessem sido capazes de representar o
papel que um tal de Hitler lhes atribuíra. Apenas dois ou três dentre eles estavam à altura de seus
personagens: Goering era o melhor de todos, o mais fascinante; percebia-se o seu prazer em estar
ali representando. Na mente de Léa, uma pergunta voltava incessantemente: como pessoas tão
comuns podiam ter chegado tão longe a ponto de quase dominarem o mundo? Com a ajuda de testes
práticos, sabia-se que a maioria dos homens julgados era de uma inteligência acima da média, mas
nada explicava que eles pudessem ter levado o conjunto do povo alemão a partilhar de suas idéias.
Era o que parecia sugerir o juiz Jackson, ainda em sua declaração de abertura:
"Também gostaríamos de deixar claro que não pretendemos incriminar todo o povo alemão.
Sabemos que o partido nazista não chegou ao poder pelo voto da maioria dos alemães. Sabemos
que tomou o poder graças a uma aliança nefasta dos piores revolucionários nazistas, dos
reacionários alemães mais violentos e dos militaristas alemães mais agressivos. Se o povo alemão
tivesse aceitado de sua própria vontade o programa nazista, o partido não teria precisado, no
início, das tropas de assalto e nem, mais tarde, dos campos de concentração e da Gestapo. Essas
duas instituições foram criadas assim que os nazistas assumiram o controle do Estado alemão. Só
depois de provar que funcionavam na Alemanha, essas inovações criminosas passaram a ser
utilizadas em outros países. O povo alemão deve saber que, de agora em diante, o povo dos
Estados Unidos não sente nem medo e nem ódio dele. Convém lembrar que os alemães nos
ensinaram os horrores da guerra moderna."
Léa não concordava com esse discurso; assim como muitas outras pessoas, estava convicta de
que toda a Alemanha tinha a responsabilidade daqueles crimes pelos quais só uns poucos eram
julgados.
Sentada na cafeteria do Palácio da Justiça, ela tentava esquecer sua náusea com um copo de
conhaque. De fato, já era demais. A noite ela mandaria um telegrama para a Sra. de Peyerimhoff,
pedindo sua demissão. A música suave, tocada permanentemente, irritava seus nervos. Os
organizadores imaginavam que um pouco de música pudesse acalmar as ondas de ódio que todas
as pessoas presentes no processo dos principais criminosos de guerra nazistas, secretários,
advogados, intérpretes, polícia militar, experimentavam diante dos testemunhos dos carrascos e
das vítimas! Muitos nem entendiam o motivo desse processo: aqueles canalhas não mereciam
tanto! Culpados, todos eram, já se sabia: russos, americanos, ingleses e franceses estavam de
acordo quanto a isso. Então, por que essa necessidade de justificar se os criminosos seriam
enforcados ou fuzilados? Léa tinha a mesma opinião. Esse processo servia apenas para confortar
o ódio dos vencidos. Nada poderia fazer com que toda a Alemanha não fosse responsável pelo
massacre de milhões de judeus, ciganos, russos, comunistas, membros da Resistência, mulheres e crianças:
massacres deliberados, genocídio programado. Como acreditar que tais atrocidades pudessem
ocorrer sem a cumplicidade de todo o povo?
Um conhaque, por favor - disse em inglês uma voz feminina.
Perto dela, acabava de se sentar uma mulher alta e linda, morena, vestindo um tailleur cinza-claro
com um lenço de seda no pescoço. Léa lembrou-se dela no tribunal. Uma das raras mulheres
presentes no processo. Sentada, desarvorada, com as mãos triturando o lenço, muito pálida apesar
da maquiagem, ela murmurou em francês:
- Que horror!... que horror!
Engoliu de um só trago o copo de álcool que o garçom lhe trouxe.
- Mais um, por favor. Deseja tomar alguma coisa? - acrescentou, olhando para Léa.
- Queira me desculpar, não entendo inglês.
- Ah, é francesa! Que bom para mim, em meio a tanto horror, poder encontrar uma francesa aqui.
Mas é muito jovem para assistir a tantas monstruosidades. Quer tomar um copo? Vai lhe fazer bem.
Até eu, que detesto bebida alcoólica, preciso de algo bem forte para me refazer. Então?
- Por que não?
- Dois conhaques... É minha primeira viagem na Europa depois da guerra. Começo a me perguntar
se fiz bem em aceitar a proposta de vir para cá; na Argentina, nunca irão acreditar o que vou
contar. Oh, nem me apresentei: Victoria Ocampo, de Buenos Aires, trabalho para a revista Sur
Estou aqui graças a uns amigos ingleses. Antes da guerra, eu costumava vir à Europa, principalmente
à França. A França é minha segunda pátria e sua literatura a primeira do mundo... Sou incurável,
desculpe, acabo sempre falando de literatura. Será que ela ainda existe depois de tudo isso, depois
de Hiroxima?...
Calou-se e Léa permaneceu em silêncio.
Após um longo momento, Victoria continuou:
- Você não tem a sensação de estar assistindo aum espetáculo da pior qualidade? O general Jodl não
lembra Laurel, o Magro, como se ele dissesse a Hardy, o Gordo, colocando o capacete: "Me deixa
fazer como eu quiser, vou pôr esse capacete do meu jeito."Já percebeu que esse processo é um
assunto só de homens? Desde que saí de Londres com meu Dakota, você é a primeira mulher que
encontro. À primeira vista, as mulheres não parecem muito úteis nesse tipo de esporte... O complô
hitierista foi tramado por homens; não há mulher alguma entre os réus, será por isso que também
não há entre os juízes? Já que os veredictos finais terão conseqüências quanto ao destino da Europa,
não teria sido mais justo que algumas mulheres fizessem parte dos jurados? Será que elas se
revelaram tão indignas durante o conflito? (Another cognac, please.)
As duas mulheres permaneceram novamente em silêncio.
Em meio a seus pensamentos, nem perceberam um grupo de oficiais franceses entrando na
cafeteria. Um deles aproximou-se da mesa e disse a Léa:
- Você não é a Srta. Delmas?
- Sou.
- Sou o tenente Labarrère. Estou aqui com o comandante Tavemier.
- François aqui? - exclamou Léa, tão alto que ficou logo envergonhada.
- Sim, senhorita, ele faz parte da delegação francesa.
- Onde ele está?
- Estamos esperando. Pode nos dar o prazer de esperar cofosco?
Léa olhou para Victoria Ocampo, que lhe disse para aceitar. As duas mulheres apertaram as mãos e
Léa, feliz, acompanhou o tenente, que apresentou seus companheiros. Os rapazes sentaram- se e
começaram a conversar.
Embora nada tivessem combinado, falaram de tudo, do preço das críticas dirigidas a Romain Gary
por causa de a Educação
Européia, do prêmio Goncourt para Jean-Louis Bory por Minha Aldeia na Hora Alemã, do
prêmio Renaudot para O Casebre Théotime de Henri Bosco, do último filme de Danielie Darrieux,
dos quarenta gramas de fumo por mês aos quais as mulheres teriam direito, do assassinato de um
editor parisiense, da retomada da vida social, das boates de jazz abrindo em toda parte, de tudo,
exceto do processo. Léa sentiu-se aliviada.
- Hoje ànoite, fomos convidados por nossos colegas ingleses para o aniversário de um deles. Seria
bom se você também viesse.
A moça aceitou aquele convite com a maior alegria. Desde sua chegada a Nuremberg, o clima não
era nada festivo. Toda noite, os membros das delegações aliadas voltavam entre as ruínas para os
hotéis ou casas particulares completamente atordoados com tudo o que haviam visto e ouvido. Uma
atmosfera de ódio e morte reinava sobre a cidade repleta de policiais militares com capacetes
brancos, distantes e brutais quando desafiados.
- Pronto, o comandante Tavernier chegou.
Ela se ergueu, como se tivesse levado uma picada. Mais uma vez, a magia atuava: a mesma onda de
felicidade, uma vontade irresistível de se aninhar contra ele, de não pensar em mais nada. Ele vinha
em sua direção com passos largos e um sorriso conquistador e feliz nos lábios.
Sem ligar para os colegas que se levantavam, ele agarrou Léa e a manteve contra seu corpo.
- Finalmente, minha linda, te achei. Quanta falta você me fez. Eu nem podia imaginar que sentiria
tanta saudade. Deixe olhar para você.., apesar desse uniforme tão feio, está sensacional.
Léa nada dizia, deixando-se levar por um suave bem-estar;
sobretudo não se mexer, deixar o calor dele misturar-se ao dela,
sentir seus corpos colados. A mão em seus cabelos que descia até
a nuca, segurando-a como se segura um filhote, gato ou cão. Com
esse gesto, ela se sentia mais submissa do que com qualquer outro,
e ele sabia. Por que motivo ela lhe contara esse detalhe, num certo
dia de confidências amorosas? Uma tosse discreta trouxe-a de volta
à realidade.
- Comandante...
- Sim, Bernier, sente-se.
- Convidamos a Srta. Delmas para ir à festa dos ingleses.
- Fez muito bem. Onde você está alojada?
- Num prédio requisitado pela Cruz Vermelha, sinistro e frio, onde ficamos como pensionistas,
proibidas de sair depois das nove da noite.
- Vamos dar um jeito. Está sob as ordens de quem?
- De Laureen Kennedy.
- Laureen! É uma velha amiga. Não sabia que ela se encontrava aqui. Fico contente de poder revê-
la. É uma mulher encantadora, um pouco louca. Vocês se dão bem?
- Vamos indo. Ela me irrita um pouco, falando sempre dos americanos. Ela só sabe jurar em nome
dos Estados Unidos. Segundo ela, a Europa é um país de selvagens e a França, depois da Alemanha
pelo menos, é o mais degenerado de todos. Fico furiosa com isso.
- Não é de se estranhar, chauvinista como você é - comentou Tavernier, rindo às gargalhadas.
Como era gostoso ouvir uma boa risada! Léa tinha a impressão de que não ouvira ninguém rir desde
que se encontrava em Nuremberg. Outras pessoas devem ter sentido o mesmo, pois em volta deles
todo mundo olhava com um misto de reprovação e surpresa.
- Acho que não estamos agradando - sussurrou Léa no ouvido dele.
- Infelizmente, meu amor, você está certa. Temos de entendê-los. No entanto, a vida continua, é
preciso reaprender a viver, rir, divertir-se e amar - disse ele, segurando sua mão.
Era o que Léa mais desejava; deixar aqueles lugares mortíferos e partir em busca de céus mais
amenos, em países onde os habitantes não conheciam a guerra. Devia estar sonhando; que país
nunca passara por uma guerra? Nenhum, claro.
Ao ver François Tavernier, Laureen Kennedy precipitou-se em sua direção com uma pressa que
pareceu suspeita a Léa. Aqueles dois teriam sido amantes? Não! O abraço entre eles lembrava o
encontro de antigos colegas de colégio ou de quartel. Era do tipo: "Como
vai você, seu pilantra?" Mas aquela onda de ciúme deixou-a preocupada. Estaria mais apaixonada
do que imaginava? Léa sabia amar François, mas seu instinto lhe dizia para tomar cuidado. Desse
homem ela conseguiria o melhor e também o pior, e o pior Léa não queria - era o que justificava sua
atitude de abandono e reserva, quase de frieza, que surpreendia Tavemier cada vez que se
encontravam.
Nessa relação tão forte, ela pensava desconfiar dele; na verdade, era dela própria. Por que motivo
não conseguia se entregar totalmente? Ele só lhe trouxera boas coisas. Por que tanto receio?
Laureen Kennedy concedeu a permissão de voltar à meia-noite com a condição de que ele viesse
jantar no dia seguinte em sua companhia para "falar dos bons e velhos tempos". Tavemier aceitou e
disse que passaria para buscar Léa às seis horas; esperava que ela se enfeitasse bastante.
- Entrem, entrem, sejam todos bem-vindos - disse em francês uma voz com forte sotaque inglês.
O oficial britânico que abriu a porta ficou boquiaberto, como uma estátua, com uma garrafa de
champanha na mão levantada.
- George! - exclamou Léa.
Em meio à imensa alegria de encontrar George McClintock, ela se atirou em seu pescoço e levou
um banho de champanha.
- É sinal de felicidade, felicidade! - gritava ela, rindo muito.
O inglês, com o rosto pegando fogo, também ria, gaguejando:
- Desculpe... estou tão confuso... tão feliz... Léa... nem posso acreditar... não é possível.., você aqui!
- Sou eu, sim, George. Apresento-lhe o comandante Tavernier. François, este é meu namorado
inglês, major McClintock.
Os dois homens, que tinham ouvido falar um do outro graças a Léa, apertaram-se as mãos com
certa frieza.
- Foi George quem acolheu Sarah. Como vai ela?
- Na medida do possível, vai bem. Chega a ser um milagre, segundo os médicos. Encontra-se na
Alemanha já faz alguns dias.
- Como - exclamou Tavernier, interrompendo-o com certa irritação - deixou que ela fosse embora?
- Meu caro, acho que é um velho amigo da Sra. Muistein, e sabe perfeitamente que não se trata de
uma pessoa a quem se possa dizer o que deve fazer ou não. Queria voltar à Alemanha, não tive
como impedi-la, a não ser que mandasse interná-la...
- Pois é o que eu teria feito, em seu lugar!
- François, George, estou pedindo, por favor, o mais importante é que Sarah esteja bem. Não
estraguem minha noite. Hoje é dia de festa, só quero pensar em me divertir, rir, beber e dançar.
Encontrei vocês dois, por ora é o que importa.
Se cada um deles apreciou moderadamente essas palavras, tiveram a gentileza de nada demonstrar
e entraram sorridentes no salão, enquadrando a tão linda amiga.
Léa provocou a maior sensação. Estava sensacional em seu longo de veludo que trouxera escondido
na mala. Era a primeira vez que o usava. O vestido deixava suas costas e ombros nus e realçava a
sinuosidade do seu corpo. Ao vê-la, os homens tinham dificuldade para engolir e as poucas mulheres
presentes olhavam para ela com inveja.
Léa dançou com todos, foi de uma alegria contagiante. Durante algumas horas, com sua juventude e
seu riso, conseguiu fazer com que os convidados esquecessem que estavam em Nuremberg.
Passava e muito da meia-noite quando François deu o sinal da partida a uma Léa um pouco bêbada,
e que desejava dançar a noite inteira.
A cidade em ruínas estava deserta e sombria - apenas os arredores do Palácio da Justiça tinham
direito a uma iluminação mais generosa - e o silêncio só era quebrado pelas patrulhas da polícia
militar. Havia sentinelas nas ruas varridas por um vento gelado. François guiava devagar, tomando
cuidado para não incomodar a linda cabeça despenteada que repousava no seu ombro.
- Para onde está me levando?
- Esta noite, para lugar nenhum. Minha senhoria é muito severa: nada de mulheres em casa.
- Oh não! Eu gostaria tanto de ficar com você!
- Eu também, mas hoje não é possível. Amanhã vou encontrar um lugar.
Ele até gostava dessa espera que aguçava seu desejo. Para Léa, era insuportável: esperar, esperar
sempre!
- Amanhã é muito longe - disse no pescoço de François.
A rouquidão daquela voz venceu sua paciência. Estacionou perto de um prédio destruído, desligou o
motor e os faróis. De repente, sua pressa tornou-se muito intensa. Quando sua mão encontrou a
maciez das coxas de Léa, logo acima das meias, e depois seu sexo úmido completamente
descoberto, pensou que fosse explodir.
- Sua safadinha, pensou em tudo.
Ela riu baixinho e deitou-se no assento.
Se Laureen Kennedy soube a que horas Léa voltou, não fez a menor alusão no dia seguinte, para
alívio de François, que estava seriamente temeroso.
Durante um mês, encontraram-se quase todos os dias. A severidade da senhoria desaparecera
diante dos pacotes de manteiga, salsichas, chocolate e álcool trazidos pelo "maravilhoso comandante
francês". Agora, vivia sorrindo apesar da frieza de Léa, que a detestava:
achava seu olhar cruel, seus modos hipócritas e sua cumplicidade obscena.
- Tenho certeza de que ela fica escutando atrás da porta.
Passearam pelas ruas repletas de escombros, barricadas, controle a cada cruzamento,
aparentemente indiferentes aos olhares hostis da população, aos pedidos das inúmeras crianças
vestidas com trapos. Naquela cidade devastada onde setenta mil cadáveres ainda se encontravam
sob os prédios destruídos, sentia-se o ódio dos sobreviventes.
Passaram a noite de 31 de dezembro de 1945 trancados no quarto bem aquecido pela lareira.
François Tavernier insistiu junto a Laureen Kennedy no sentido de pedir à Sra. de Peyerimhoff para
chamar Léa de volta à França. A
resposta chegou no dia 5 de janeiro. A partida estava prevista para o dia 10. Laureen concedeu à
protegida de seu amigo uma licença para que ela pudesse se preparar. Em meio à alegria de deixar
Nuremberg, Léa não reparou na expressão preocupada de seu amante. Ele recebera más notícias
de Sarah Muistein. A moça, em termos sibilinos, anunciou que fazia parte de uma rede judaica cujo
dever era caçar criminosos de guerra nazistas. "Conto com você para participar dessa vingança.
Entre em contato comigo assim que chegar a Paris. "A vingança não incomodava Tavemier, mas
pensar em Sarah, que mal saíra do inferno, nos rastros dos nazistas fugitivos, isso sim o preocupava
muito. Pressentia que, em vez de acalmar a ex-deportada, essa aventura iria mergulhá-la numa
engrenagem de onde sairia mais machucada ainda. Ele lhe escreveu nesse sentido, tentando
encontrar as palavras mais convincentes. Mas o compromisso de Sarah junto a certos judeus da
Palestina já era um fato consumado que lhe dava forças para viver. Ele se lembrava da
determinação daqueles voluntários palestinos, soldados do exército britânico, que encontrara no norte
da Itália durante uma missão. Todos estavam envolvidos para vingar seus irmãos e esperavam com
impaciência o momento de ir à Alemanha com os exércitos de ocupação; aquele povo maldito veria,
então, de que eram capazes os filhos de Israel: matariam, estuprariam, incendiariam, destruiriam
cidades e aldeias para que os sobreviventes se lembrassem de que os judeus não eram um povo que
esquece seus mártires, e que o tempo da vingança impiedosa chegara. Na véspera de sua partida
para a Alemanha, diante das bandeiras com a estrela-de-davi, leram para os regimentos palestinos os
Mandamentos do soldado hebreu na terra da Alemanha:
Lembre-se de seus seis milhões de irmãos massacrados;
Odeie para sempre os carrascos de seu povo;
Lembre-se de que está encarregado de uma missão por um povo
combatente;
Lembre-se de que a Brigada Judaica Combatente representa na
Alemanha uma força de ocupação judaica;
Lembre-se de que nosso surgimento como brigada, com
nosso emblema e nossa bandeira, diante do povo alemão, já é em si uma vingança;
Lembre-se de que a vingança do sangue é a vingança da comunidade inteira, e que todo ato
irresponsável vai
contra a ação de nossa comunidade;
Comporte-se como um judeu orgulhoso de seu povo e de sua bandeira;
Não manche sua honra com eles e não se misture com eles; Não os ouça e não freqüente suas
casas;
Malditos sejam eles, junto com suas mulheres e seus filhos, e seus bens e tudo o que lhes
pertence; malditos para sempre;
Lembre-se de que sua missão é o resgate dos judeus, a imigração em Israel, a libertação da
pátria;
Seu dever é: devo ção,fidelidade e amor para com os sobreviventes da morte, os
sobreviventes dos campos.
Todos ouviam em posição de sentido, loucos de impaciência. Que se danem as palavras bonitas, eles
iriam ser os anjos exterminadores daquele povo de carrascos.
No entanto, a Brigada Judaica nunca pôs os pés na Alemanha: na última hora, o comando britânico
desistiu do projeto. Ficou acampada perto de Tarvisio. Ali, alguns membros da brigada vingaram-se
nos austríacos refugiados na cidadezinha, ou nos ex-SS escondidos nas montanhas. O exército
britânico não podia tolerar esse tipo de atitude. O comando tentou em vão encontrar os culpados.
No decorrer de sua missão, Tavernier encontrara Israel Karmir, um dos principais chefes da
Haganah - organização palestina secreta -, oficial responsável pela Brigada Judaica. Não era a
primeira vez que os dois homens se viam. Havia entre eles um sentimento mútuo de estima e até
mesmo de amizade. Claro, nada falaram a respeito de suas atividades, mas Tavernier percebeu logo
de onde vinham os inúmeros desaparecimentos de altos dignitários nazistas, oficiais da SS e chefes
da Gestapo, cujos cadáveres nem sempre eram encontrados. Ele aprovava tudo. Mas, em relação a
Sarah, era diferente: precisava encontrar, o quanto antes, o meio de afastá-la dos vingadores.
O dia da partida, tão esperado por Léa, finalmente chegou. Na véspera, Laureen Kennedy e suas
colegas organizaram uma festa para a qual convidaram François Tavemier e George McClintock.
A noite foi muito animada. Todos sentiam-se aliviados de vê-la sair daquela cidade e do clima de
tensão que reinava em toda parte. Julgavam que não era o lugar adequado para uma moça tão
bonita. François insistia para que ela voltasse a Montillac e tomasse conta da casa e de Charles.
Com certa reticência, ela prometeu pensar a respeito.
Os dois amantes despediram-se sem muita tristeza, pois sabiam que a separação seria breve; na
semana seguinte, Tavernier foi chamado a Paris, por ordem do general de Gaulle.

Capítulo 6

Havia uma surpresa para Léa quando voltou de Nuremberg: Sarah tinha um encontro com ela num
apartamento da Place des Vosges. Não perdeu tempo abrindo as malas ou tirando o uniforme, e foi
correndo até o endereço indicado. Um rapaz louro com rosto feminino abriu a porta.
- É Léa Delmas? Pode vir, a Sra. Muistein está esperando.
O rapaz a levou até um amplo salão com as paredes desbotadas e uma mobilia heteróclita,
enfumaçado e superaquecido, onde se encontravam cinco ou seis pessoas, sendo duas mulheres,
discutindo acaloradamente. Uma das mulheres, alta e magra, elegantemente vestida, tinha a cabeça
raspada. Embora estivesse de costas, Léa reconheceu Sarah Muistein. Quando se virou, ela ficou
impressionada com seu olhar duro e frio.
- Podem nos deixar a sós - disse ela aos companheiros.
Levantaram-se todos sem qualquer comentário e deixaram o salão, examinando detalhadamente a
recém-chegada.
Intimidada, Léa olhava aquela mulher estranha que ela havia conhecido tão alegre e despreocupada,
e que a observava, calada. Toda sua alegria antecipada a respeito desse reencontro desapareceu
instantaneamente. Surpresa com a aparência e o silêncio da amiga, não percebeu que a encarava e
que esse seu comportamento podia ser desagradável.
- Vejo que não perdeu seu costume de fitar as pessoas como se fossem objetos.
Léa sentiu o rosto em chamas e ficou irritada. Onde estava a alegria de rever a mulher que ela
salvara das garras de Massuy e da morte em Bergen-Belsen? Completamente desorientada, abaixou
a cabeça.
- Vamos, não fique com essa cara, me dê um abraço.
A entonação carinhosa daquela voz venceu o mal-estar de Léa. Atirou-se nos braços de Sarah com
uma pressa infantil e beijou o rosto marcado com leves cicatrizes brancas que não diminuíam sua
fria beleza, tornando-o ainda mais singular. Singularidade acentuada pela cabeça raspada e pelos
olhos verdes que pareciam maiores.
- Como você está bonita, menina, mais bonita ainda...
A voz rouca e ligeiramente rachada de Sarah comoveu Léa e foi com a maior sinceridade que
exclamou:
- Você é que é bonita, apesar...
Deteve-se, com o rosto em chamas mais uma vez. Sarah sorriu.
- Não, não sou bonita. Por que parou?
- Seus cabelos! Seus cabelos lindos!
- O que é que têm meus cabelos? Para que servem os cabelos? Apenas para fabricar tecidos...
-Oh!
- Você ficou chocada, e no entanto era o que faziam com nossos cabelos. Vai ter de se acostumar
com essa marca de infâmia; de fato, raspar a cabeça das mulheres é uma marca de infâmia. Pensei
que você soubesse.
- Exatamente.
- Sabe, ao olhar para mim, quero que todos pensem: é uma puta...
- Cale-se!
- Sim, uma puta, uma put.a dos boches, como as mulheres raspadas da Libertação...
- Cale-se! Por que falar comigo assim?
- Para que você saiba e não esqueça jamais. No campo, colocaram-me num bordel para soldados e
às dúzias, todos os dias, abusaram do meu corpo. Você também, bonita desse jeito, teria sido
mandada para um bordel. Vamos, não é o fim do mundo!... Isso,
sabe, talvez eu pudesse perdoar; mas houve o resto, todo o resto, e para esse tipo de coisa não existe
perdão, nunca existirá perdão.
Sarah virou-se e caminhou até a janela. Apoiou a testa na vidraça e permaneceu um longo tempo
calada. Léa aproximou-se e pôs a cabeça em seu ombro.
- Acabou, você voltou viva.
Num gesto brusco, Sarah empurrou-a com uma risada desagradável.
- Viva? Viva, você disse?... Mas que palavra é essa? Como pode me dizer tantas besteiras!... Viva!...
Olhe bem para mim... ESTOU MORTA!... Morta para sempre!... Cadáver entre os cadáveres!... Por
que você não passou um pouco mais adiante, em Bergen-Belsen! ... Teria sido melhor me deixar
apodrecer no meio de toda aquela carne! ... Meu lugar era lá, entre minhas companheiras mortas de
fome, esgotamento, torturas que você não imagina, ninguém pode imaginar, nós mesmos, os
sobreviventes, não conseguimos acreditar. Todos os dias, desde a nossa volta, pensamos:
"Sonhamos!... Tudo o que sofremos não passou de um sonho proveniente das nossas mentes
enlouquecidas!... Nenhum homem no mundo seria capaz de fazer o que fizeram a outros
homens!..." Pois é, eles foram capazes daquilo e de muitas outras coisas. E você queria que eu
perdoasse, que eu esquecesse?... Todo mundo diz que devemos esquecer, alguns dentre nós fazem o
possível para esquecer, mas é de vergonha, levados por um sentimento perverso de culpabilidade.
Mas eu digo: não se deve esquecer, jamais!... Nós, que permanecemos vivos, devemos ser as
testemunhas do horror, devemos vingança a todos aqueles que ficaram, que foram destruí- dos com
um prazer, um refinamento levado ao mais alto grau... e, se for preciso, devemos nos tornar tão
abjetos como eles! No Livro, está escrito: "Olho por olho, dente por dente."Seria preciso arrancar
mil olhos, mil dentes, de cada um deles para que a alma dos mortos descansasse em paz!... Como
você está pálida... Assustada comigo?... Tudo bem! Pois vamos assustá-los, caçá-los em todas as
partes do mundo, onde estiverem, mesmo se levar mil anos! Eles ainda não sabem, mas os
vingadores estão se erguendo, um por um, estão a caminho, serão inexoráveis. A raça impura vai
destruí-los,
todos eles e as gerações futuras. Estamos em guerra, Léa, em guerra durante mil anos até que a
besta imunda seja riscada da face da terra.
As cicatrizes brancas de suas faces ficaram vermelhas em meio ao rosto lívido e tenso; a cabeça
raspada brilhava de tanto suor, a boca retorcia-se de ódio, os olhos esbugalhados tornaram-se
foscos, as mãos lindas, de dedos compridos, crispavam-se espasmodicamente como se procurassem
estrangular uma vítima.
Profundamente abalada, Léa olhava para Sarah. Não havia palavras capazes de abrandar aquela dor.
Lembrou-se do seu tio Adrien, cujo suicídio desconhecia até sua chegada, e ficou imaginando o
pavor do dominicano diante das torturas, da traição. Como teria reagido diante dos horrores dos
campos? O que poderia dizer àquela mulher louca de ódio? As palavras de compaixão ficariam
presas em sua garganta, suas preces seriam transformadas em imprecações, suas mãos juntas e
erguidas, de punho fechado, para esse Deus que ele rejeitara e negara ao se suicidar. Se esse homem
corajoso, esse combatente das trevas, esse padre, não conseguira encontrar a vontade de viver num
mundo que deixara de entender, onde uma moça saindo do inferno poderia buscar a força de
renascer? Sarah encontrara a resposta, ou pelo menos ela acreditava que fosse: na vingança. Léa
sentia o que havia de negativo nessa escolha, mas entendia tal atitude. Por um segundo, pressentiu
que ela deveria fazer tudo para afastar Sarah de seu terrível projeto, mas percebeu logo que seria
impossível.
- Pare de olhar para mim com pena. Não quero sua pena nem a de ninguém. De você, espero outra
coisa.
- Peça o que quiser, sabe muito bem que farei por você tudo o que estiver ao meu alcance.
- Vamos ver.
Sarah permaneceu calada durante um certo tempo, andando de lá para cá, detendo-se para fitar Léa,
com a testa franzida devido a uma profunda reflexão, os lábios cerrados como alguém que tem um
segredo e está com medo de contá-lo.
- Você precisa jurar que não falará com ninguém a respeito do que vou lhe contar. Jure.
- Juro.
- Muito bem, agora ouça.
Sem parar de andar, Sarah falou:
- Ao sair do bordel, fui mandada para o campo de Ravensbrück. Eu estava grávida mas não sabia.
Tive o azar de levantar a mão para uma médica do campo. Fui espancada e em seguida tratada com
o objetivo de suportar melhor as torturas que aquela mulher reservava para mim como represália.
Quando fiquei boa, revelou-me que eu esperava um filho, mas que ela iria provocar um aborto.
Como aquela revelação fora terrível, de início fiquei aliviada com sua decisão. Ela percebeu minha
reação, e logo mudou de idéia.
"- O que você tem na barriga é a semente de um alemão. Quero ver com que se parece o fruto de
uma macaca judia com um homem de raça pura. Vai ser um excelente material para minhas
pesquisas.
"Para vergonha minha, supliquei para que ela provocasse o aborto. Teve então a audácia de
responder, profundamente indignada:
"- Você não tem vergonha de me pedir para cometer um crime desses, logo a mim, médica, cujo
dever é respeitar a vida, mesmo a de um feto judeu?
"Para ter certeza de que minha gravidez não seria interrompida antes do prazo, ela me dispensou
das tarefas mais pesadas e mandou que eu fosse trabalhar nas cozinhas do campo. Ali, recebi uma
alimentação um pouco mais substancial que a 'comida' distribuída às outras prisioneiras. Esse
regime de favor provocou o ódio das prisioneiras do meu bloco, apesar de todos os alimentos que eu
conseguia roubar para elas. Quando descobriram que eu estava grávida, foi pior ainda: passaram a
me cobrir dos insultos mais ignóbeis. Apenas uma mocinha demonstrou compaixão para comigo.
Tornei-me sua amiga e dei um jeito de lhe trazer sempre alguma coisa para saciar-lhe a fome. Ela
era meiga, linda e frágil. Polonesa, Ivenska vira os pais e o irmão mais novo serem massacrados.
Com o choque, ficara completamente perturbada; cantarolava e sorria sem parar, o que irritava
nossas companheiras. A noite, deitada sobre seu colchão, ela permanecia com os olhos abertos e as
lágrimas escorriam em seu rosto sorridente. Um dia, a Dra. Herta Oberheuser mandou buscá-la para
levá-la ao Revier. Fiz o possível para impedir que ela fosse, mas a Schwester' Erika me empurrou e
me chutou. Ivenska partiu sorrindo. Quando voltou, no dia seguinte, continuava sorrindo, com uma
expressão de imenso cansaço, o rosto lívido, os olhos enlouquecidos, rolando pelo chão, as mãos
crispadas sobre a barriga. A noite toda, ardendo em febre, ela se contorceu de dor, com uma careta e
um sorriso no rosto. Aquele sorriso em seu rosto atormentado provocava uma terrível sensação. Sob
o colchão, formava-se uma pequena poça de sangue. Nas cozinhas, eu já ouvira falar das
experiências praticadas nas detentas nos serviços da Dra. Oberheuser. Ali, sob as ordens do Dr.
Schumann, vindo de Auschwitz, mais de cem jovens ciganas foram operadas por uma equipe inteira
de médicos e enfermeiras da SS. Quando passávamos perto do Revier ouviam-se gritos e choro.
Inúmeras meninas tiveram os ovários irradiados com raios X, outras sofreram a ablação dos órgãos
genitais. Muitas dentre elas tinham chagas abertas na barriga que não paravam de supurar. Quase
todas morreram em meio a sofrimentos atrozes. Foi o que aconteceu com Ivenska. De manhã,
encontrei-a morta, com um sorriso em seu rosto finalmente distendido.
"A criança mexia-se em meu ventre. Pouco a pouco, comecei a amar esse pequeno ser que crescia
dentro de mim. No final de minha gravidez, a Dra. Rosa Schaeffer mandou que eu fosse
hospitalizada na maternidade do Revier, onde o parto foi induzido por ela.
Sarah se calou, com o olhar fixo. Com mãos trêmulas, pegou um cigarro num maço que tirou de um
bolso do vestido, acendeu-o na chama do isqueiro de Léa e deu algumas tragadas nervosas, O
tremor das mãos cessou.
- Foi um menino.
Com os ombros encurvados, Sarah apagou o cigarro num cinzeiro transbordando de pontas.
- Dei-lhe o nome de Yvan... era louro e... muito bonito.
"- Como é possível que uma macaca igual a você pudesse dar à luz um ariano tão lindo? - disse a
Dra. Schaeffer. - Pena que eu precise usá-lo para testar uma nova vacina contra o tifo.
"Implorei para que deixasse a criança e testasse a vacina comigo.
"- Nem pensar. Você foi reservada para uma outra experiência. Mas, se não quiser me dar seu filho,
mate-o.
Sarah acendeu outro cigarro; as cicatrizes vermelhas de suas faces iluminavam o rosto pálido.
- Fiquei acordada a noite inteira, apertando meu bebê nos braços. De madrugada, adormeci. Quando
despertei, a criança desaparecera. Parada na minha frente, Rosa Schaeffer me olhava sorrindo.
"- Passou uma boa noite? Acho que sim, pois já está de pé.
"- Onde está meu filho?
"- Seu filho? Ah sim, seu filho. Não se preocupe, ele vai muito bem.
"- Devolva-o para mim.
"- Vamos devolvê-lo com uma condição.
"- Qual?
"- Esta noite, uma cigana deu à luz uma menina. É completamente disforme, mas seu estado de
saúde é bom. Não podemos deixá-la viver, ela deve morrer. E você é quem vai matá-la.
"- Eu?!
"- Sim, em troca da vida de seu filho.
"Olhei para ela, incrédula: eu tinha de matar uma criança para salvar a minha. Dei uma risada.
"- Está com vontade de rir, melhor ainda.
"Ela saiu e me deixou profundamente transtornada, rindo como uma louca. Logo depois, Schwester
Ingrid entrou, trazendo um embrulho de onde saíam os gritos do recém-nascido. Era acompanhada
pela Dra. Schaeffer, que segurava meu filho pelos pés... Dei um urro e me precipitei em sua direção.
"- Não se mexa ou arrebento a cabeça dele contra a parede.
"Parei imediatamente.
"- Mate a menina e devolvo seu filho.
"Schwester Ingrid entregou-me a menina. Não percebi nenhuma anomalia aparente. Segurando-a
nos braços, experimentei uma profunda sensação de ternura. Os fartos cabelos pretos tinham a
suavidade da seda. Automaticamente, beijei aquela cabecinha. As duas mulheres me observavam
atentamente.
"- Mate-a - falou Rosa Schaeffer com certa ternura.
"Sacudindo a cabeça, entreguei-lhe a menina.
"- Mate-a, ou eu mato seu filho.
Sarah ofegava, as mãos crispadas no peito. Baixinho, trêmula, Léa falou:
- Pare com isso, não diga mais nada, isso lhe faz muito mal.
- Não éo mal que faço a mim mesma que assusta você, e sim aquele que lhe posso fazer - disse
Sarah com voz estridente.
De pé, encarando-se, as duas amigas observavam-se. Sarah afastou-se e continuou a falar.
- Meu filho, seguro pelos pés pela Dra. Schaeffer, sufocava, com todo o sangue na cabeça.
"- Mate-a.
"- Não posso.
"Ela balançava meu bebê, cujos gritos iam enfraquecendo, o rostinho cada vez mais vermelho.
Agarrei então o pescoço da menina entre os dedos e comecei a apertar...
Gelada, paralisada, Léa mal continha uma violenta náusea.
- Naquele momento, uma mulher seminua, ensangüentada, surgiu com tais urros que eu me detive.
Arrancou a criança de mim. Horrorizada, olhei minha mão... Acigana, apertando seu bebê nos
braços, olhava-nos com furor enquanto recuava até a porta. Jamais conseguiu alcançá-la. Uma
rajada de metralhadora ceifou seu corpo. Quanto ao bebê, aproximei-me do pequeno corpo e pensei:
"Ainda está quentinha..."
"Coloquei com todo o cuidado o pequeno cadáver sobre o da mãe. Inclinei-me e comecei a vomitar.
Rosa Schaeffer me olhava; seus olhos tinham um brilho infernal, havia um rizo em sua boca. Caí
de joelhos... arrastei-me até ela, estendendo os braços para meu filho.
"- Devolva-o para mim!
"Ela riu.
"- Não se preocupe, vou lhe dar o menino.
"Senti todo o meu corpo tremendo de alegria, uma alegria demente; levantei-me... ela começou a
fazer girar o bebê... cada vez mais rápido... gritei, tentei agarrá-lo... ela me empurrou com o pé e...
esmagou a cabecinha contra a parede.
Atordoada, encolhida sobre si mesma, Léa caiu no chão. Uma baba escorria do queixo de Sarah, sua
cabeça raspada estava molhada de suor, os olhos secos fitavam um canto do aposento. Ela
caminhou nessa direção como um autômato, abaixou-se, fingiu estar apanhando algo, fez um
espécie de ninho com os braços e foi até o sofá, acalentando o vazio e cantarolando uma canção de
ninar alemã. Sentou-se com todo o cuidado e, sem parar de ninar, falou com voz suave:
- Durma, meu neném, durma. Como você é lindo.., deve estar com fome... tome, querido.., beba.
Desabotoando a blusa, Sarah tirou o peito e ofereceu-o a uma boca fantasma.
Foi demais para Léa. Ela se levantou e, por duas vezes, esbofeteou Sarah com força. Calmamente, a
moça voltou a abotoar o vestido.
- Obrigada - disse ao se levantar.
As marcas dos dedos imprimiam-se em vermelho forte no seu rosto branco. Em voz baixa, Sarah
acrescentou:
- Desculpe, preciso continuar até o fim, você tem de saber...
O que me viu fazer foi exatamente o que fiz naquele inferno. Peguei
o corpo do meu filho e apertei-o em meus braços tentando aquecêlo, alimentá-lo.., empurrei o
mamilo do meu peito entre seus
pequenos lábios, ainda momos...
- Cale-se, pelo amor de Deus, cale-se!
- ...Cantarolei a canção de ninar que meu pai cantava para mim antes de adormecer. Eu esquecera o
cadáver da menina, o da cigana e a presença das duas mulheres. Nem percebi que estavam rindo; eu
me sentia feliz, segurava meu filho no colo. Com receio de que se resfriasse, embrulhei-o com o
lençol da cama. Em
seguida, descalça, com a camisola manchada de sangue, saí do Revier... nevara.., afundei na massa
branca, fofa. Nem sentia mais o frio, andava como num sonho, o coração transbordando de
felicidade pelo fato de poder apertar meu filhinho contra mim, voltar com ele para casa... Cheguei
no meu bloco. Umas dez prisioneiras encontravam-se perto da porta, tremendo de frio com seus
vestidos listrados em farrapos. Afastaram-se para me dar lugar. Uma delas pôs a mão no meu
ombro, levou-me até o fogão e me ajudou a sentar num banquinho. Outra colocou uma coberta
sobre meus ombros, outra ainda vestiu minhas pernas com meias de lã multicoloridas. Imaginei que
ela devia ter tricotado essas meias com infinita paciência, recolhendo pelos cantos pedacinhos de lã.
Agradeci a todas com gratidão; desde o dia em que chegara àquele campo, nunca recebera tanto
carinho e afeto. Deram-me uma bebida quente. Tomei tudo com imenso prazer.
"- Mostre seu bebê.
"Com todo o cuidado, afastei o lençol.
"- Cuidado para não acordá-lo.
"Inúmeras cabeças raspadas, ou cobertas de lenço, inclinaram- se. Mas por que pulavam logo para
trás, por que gritavam, choravam? Outras inclinaram-se igualmente, e mais outras. Todas tinham o
mesmo comportamento.
"- Psiu, não façam tanto barulho, vão acordá-lo.
"Elas nada disseram. O silêncio do bloco só era rompido pelo pranto... Eu não entendia por que
choravam assim ao invés de se alegrar comigo... Durante cinco dias, aquelas mulheres que eu
conhecera, duras, egoístas, capazes de tudo por um pedaço de pão, alimentaram-me, lavaram-me,
acariciaram-me, entenderam minha loucura. Deve ter sido graças aos seus cuidados que consegui
agüentar; por fim, compreendi que estava ninando um simples cadáver. Elas me ajudaram a
envolvê-lo num lençol e, em procissão, cantarolando a canção de meu pai, foram comigo até o
forno crematório. Ali, após um último beijo, coloquei o corpinho do meu filho sobre os cadáveres
esperando a cremação.

Capítulo 7

- Pare de beber assim, vai acabar ficando doente - disse Laure, tirando o copo de uísque que Léa
acabava de encher.
- Me deixa.
- Faz dois dias que você não pára de beber, não come nada e não dorme. O que aconteceu com
Sarah, o que foi que ela contou para deixar você nesse estado?
Léa não respondeu; tremia da cabeça aos pés, deitada e vestida na cama da irmã.
- Você está doente, vou chamar o médico.
- Médico nenhum vai conseguir me curar - comentou com uma risada irônica. - Me dê meu copo de
uísque.
- Não!
A campainha da porta tocou. Laure foi abrir.
- Franck, entre logo! Venha me ajudar.
- O que é que você tem? Que cara é essa?
- Também, pudera! Não durmo há dois dias.
- Arranjou um novo namorado?
- Que besteira, estou com Léa.
- Léa? Legal! Voltou da Alemanha? Quando?
- Faz dois dias. Ela acabara de chegar quando uma de suas amigas, uma ex-deportada, Sarah
Muistein... você sabe, aquela mulher de quem já falei, pediu para ir falar com ela. Léa nem teve
tempo de se trocar, saiu na mesma hora. Voltou muito mais tarde, à noite, completamente bêbada.
Vomitou por toda parte e recomeçou a beber. Ela me assusta, só fala de criança morta... de experiências... canção de ninar.., não
consigo entender nada. Eu fiquei tão feliz com a volta dela!
- Já chamou o médico?
- Ela não quer.
- Espere, vou falar com ela.
Franck entrou no quarto onde reinava uma desordem e um cheiro horríveis. Ao vê-lo, Léa ficou
toda encolhida na cama desarrumada.
- Léa, sou eu, Franck.
- Franck?...
- É sim, o amigo de Laure.
- Franck!
Ela tentou se levantar, mas caiu na cama, batendo com a cabeça. Começou a chorar de dor, como
uma criança.
- Vou ficar com ela. Ligue para a minha casa e fale com meu irmão Jean-Claude; peça-lhe que
venha imediatamente, trazendo a maleta.
- Acha que ele vai conseguir tratá-la?
- Está no último ano de medicina - disse Franck, arrastando Léa até o banheiro.
Quando o futuro médico chegou, Léa descansava numa poltrona, o cabelo molhado, vestida com
um robe, enquanto Franck e Laure trocavam os lençóis da cama.
Depois de examiná-la, Jean-Claude disse a Laure:
- Por enquanto, dê-lhe aspirina com café. Ela está de ressaca e teve um choque muito forte. Vou
chamar meu chefe, que saberá melhor do que eu o que deve ser feito.
Contradizendo todas as expectativas, Laure revelou-se uma excelente enfermeira.
Ao final do quinto dia, a forte constituição de Léa venceu; mas ela continuava fechada em si
mesma, calada, recusando-se a contar ao médico e a Laure o que havia acontecido. Ao cabo de uma
semana, ela quis contactar a Sra. de Peyerimhoff para acertar todos os itens de sua demissão.
- Vamos sentir sua falta - disse esta -, você era um ótimo
elemento... Sua aparência não é das melhores... Está doente, por acaso?
- Não, senhora, apenas um pouco cansada.
- Vai passar. Na sua idade, a gente não se cansa. Conhecendo sua situação familiar, entendo as
razões de sua partida e as responsabilidades que deve enfrentar.
Léa concordou, aliviada com o fato de não lhe fazerem outras perguntas a respeito de sua decisão.
Sem tristeza alguma, ela deixou a sede da Cruz Vermelha, virando assim uma página de sua vida.
Já instalada no conjugado de sua irmã, na rue Grégoire-de-Tours, Léa tentava avaliar os últimos
acontecimentos. O dinheiro, entregue pela Cruz Vermelha, sería suficiente apenas para vesti-la e
devolver às tias vários pequenos empréstimos. Sem trabalho, sem renda e sem moradia, ela não
tinha a menor condição de permanecer em Paris. Não queria, como fazia Laure, viver de
expedientes. Sentia falta de François Tavernier, que saberia aconselhá-la da melhor maneira
possível. Não entendia por que não recebera notícias dele. Com certeza, ficara retido em
Nuremberg. Ou será que Sarah tivera outras informações? Entretanto, rever Sarah agora
ultrapassava o limite das forças de Léa, pois as imagens tão terríveis multiplicavam-se em sua
mente. Experimentava tamanho pavor que chegara a se recusar a atender o telefone quando Sarah,
sabendo que Léa se encontrava adoentada, ligara inúmeras vezes. Por outro lado, Estelie pedia-lhe
para vir a Montillac onde sua presença era indispensável. Léa deixou Paris com grande alívio, sem
ter voltado a falar com Sarah.
O inverno fora extremamente rigoroso, a primavera mostrava-se chuvosa. Havia pouco dinheiro
para aquecer convenientemente o casarão e, além do mais, o carvão acabara. Françoise, Ruth e as
crianças permaneciam a maior parte do tempo na cozinha. Sentadas perto da lareira, ouviam rádio
ou executavam todas as tarefas domésticas enquanto vigiavam Charles e Pierre, que acrescentavam
um pouco de animação com seus gritos e risos. Charles saía de manhã para a escola de Verdelais e
só voltava à noite. Era um
menino muito sério para a idade: dividia o tempo entre a leitura e o desenho. O pequeno Pierre ia
fazer dois anos; tratava-se de um menino turbulento a quem a mãe deixava fazer tudo, apesar do
profundo descontentamento de Estelie, que reprovava aquela falta de limites. Mas Françoise era
incapaz de recusar qualquer coisa ao filho.
Imaginara que sua volta à casa natal as inúmeras ocupações relativas à propriedade fariam com que
se esquecesse de seus sofrimentos. Nada disso acontecera. A moça mergulhava a cada dia numa
solidão, numa tristeza que nada conseguia distrair. Pensava sem parar no homem que amara, na sua
morte, na humilhação de ter a cabeça raspada em frente àquela igreja de Paris, nos violentos
insultos que recebera, na atitude desprezível dos comerciantes de Langon, vários dos quais
conheciam-na desde criança, nas observações dos operários que trabalhavam na região e na recusa
das amigas e dos primos de Bordeaux em recebê-la em casa. Depois de sua volta, nenhum deles
tentara revê-la, compreendê-la, ou até manifestar-lhe certa compaixão. O afeto de suas tias e de
Ruth não era suficiente. Apenas Alain Lebrun, o novo mestre-de-obras, parecia não ligar para seu
passado. Françoise sentia-se profundamente agradecida por essa atitude e experimentava um certo
prazer em trabalhar com ele.
A volta de Léa representou para todos uma grande alegria, logo sombreada por sua expressão de
grande tristeza e seu mutismo. Agora, as obras da casa estavam terminadas, os móveis
encontravam-se em seu devido lugar, com as cortinas e os quadros pendurados. Ao longo dos
corredores, Léa tinha a sensação de que, de repente, surgiriam seu pai ou sua mãe. Ela passou a
primeira semana trancada em seu território, o escritório do pai, que reencontrara o conforto
tranqüilizador e o sossego que acalmavam outrora seus receios e suas cóleras de menina.
Estelie deixou passar aquela semana antes de agir, o que, aliás, nem foi necessário pois Charles
resolveu tudo. Conseguiu entrar no quarto e perguntou, chorando, por que Léa deixara de gostar
dele.
- Claro que gosto de você, querido - respondeu ela, beijando-o.
- Não, não é verdade, você nunca mais me contou histórias nem brinca mais comigo... não come
mais com a gente, não fala com ninguém. Sei que não gosta mais de mim.
O menino soluçava tanto que Léa receou que sufocasse.
- Me desculpe, meu bebezinho, me desculpe, eu te adoro... te amo mais do que tudo. Não fique de
mal comigo, eu só estava muito triste.., mas agora já passou.
- Por que está triste se eu te amo muito? - disse o menino pendurado no pescoço de Léa, cobrindo-a
de beijos úmidos.
- Pare, está fazendo cócegas!
Ele a largou, batendo as mãozinhas.
- Você está rindo, Léa, está rindo!...
Charles pulava de alegria em volta dela, que ria ainda mais ao ver os saltos do menino.
- O que há por aqui? Que barulho é esse? - disse Françoise ao entrar, seguida de Lisa, curiosa como
uma fuinha, e também de Esteile.
Diante da surpresa dos parentes, as risadas de Léa cessaram.
- Agradeço a paciência de todos vocês. Se não fosse Charles, nem sei se teria conseguido me libertar
das minhas angústias.
- Você podia ter falado conosco.
- Françoise, você é a última pessoa com quem eu poderia me abrir - respondeu Léa rispidamente,
censurando-se logo em seguida.
A moça de cabelo curto e olhos tristes teve um sobressalto e empalideceu. A própria irmã
continuava a odiá-la devido ao seu amor por um alemão! ... Esperara tanto sua volta, achando que
depois de presenciar tantos horrores Léa entenderia melhor que a vida não seguia necessariamente o
ritmo que se desejava! Contava com uma amiga, uma confidente, e encontrara um juiz, uma
inimiga. Françoise sentiu-se profundamente humilhada, trêmula e sem voz. Léa, envergonhada, não
sabia o que dizer; aquele silêncio realçava ainda mais o mal-estar. Lisa e Estelle assistiam
impotentes ao drama vivido pelas duas irmãs. Mais uma vez, foi Charles quem salvou a situação.
- Vou contar à vovó Ruth que Léa ficou boa e pedir para ela fazer um bolo bem gostoso.
Lisa achou graça e Estelie esboçou um sorriso. Léa aproximou- se da irmã e abraçou-a.
- Me perdoe, acho que magoei você, juro que não foi intencional. Assim como os milhares de
pessoas massacradas, você não passa de mais uma vítima...
- Otto não era igual a eles!
- Já sei, mas tão culpado quanto os outros...
- Não, era um homem correto, incapaz de fazer o mal!
- Ele era alemão!
- Parem com isso, meninas - exclamou Esteile, colocando- se no meio das duas. - Vocês devem fazer
todo o possível para esquecer o passado...
- Esquecer! ... - responderam as duas irmãs ao mesmo tempo.
- Sim, esquecer. É impossível continuar vivendo com a lembrança constante das desgraças
passadas. Françoise, o menino precisa de seus cuidados, e quanto a você, Léa, a responsabilidade de
Charles é sua. Por essas crianças inocentes, é preciso fazer tudo para esquecer. Trata-se de um dever
e também do único comportamento plausível.
Enquanto a tia falava, Léa lembrou-se de Sarah ninando um bebê fantasma. Fechou os olhos e
cerrou os punhos com toda sua força.
- Tia Estelie tem razão. Mergulhar em nossas tristes lembranças não leva a nada. Vamos fazer um
esforço. Vou ajudá-la, Françoise, e você vai fazer o mesmo.
Em meio às lágrimas e risadas nervosas, as duas irmãs se abraçaram.
O sol voltou a Montilac, nos corações assim como no céu. De comum acordo, ficou decidido que
Esteile e Lisa de Montpleynet viriam instalar-se no casarão, onde teriam no primeiro andar um
apartamento muito prático; assim, desde logo, a moradia de Langon foi posta à venda. Em menos de
uma semana, um comprador
apresentou-se; tratava-se de um jovem médico que desejava morar perto dos pais aposentados, em
Villandraut. Aquela venda trouxe a todos um certo alívio e fez com que adquirissem material para
melhorar o trabalho nos vinhedos: um novo furgão e um carro de segunda mão. No início do verão,
as senhoritas de Montpleynet estavam finalmente acomodadas e um pouco melancólicas. Lisa
afirmava preferir a cidade. Esse termo, aplicado a Langon, fez com que Léa desse boas risadas.
- Não se preocupe, tia querida, vou levá-la para fazer compras em Bordeaux.
Essa perspectiva tranqüilizou a vaidosa Lisa. Estelle não tomaria jamais essa decisão, temendo
aborrecer as sobrinhas, não fosse o fato de estar gravemente doente. O que mais a assustava era
deixar sua tão querida e ingênua Lisa entregue a si mesma após sua morte. Sem fazer comentário
algum, comprou uma concessão no cemitério de Verdelais, perto dos túmulos de Toulouse-Lautrec
e de Isabelle e Pierre Delmas. Aquela mulher reservada e discreta preparava sua última viagem,
preocupada em poupar os seres amados dos tristes afazeres que acompanham todo falecimento.
Tratava-se de seu último ato de elegância.
Todos os dias, Léa esperava o carteiro com ansiedade, mas o tempo passava sem trazer qualquer
notícia de François. Finalmente, certa manhã, entregaram-lhe um envelope todo amassado, coberto
de selos e carimbos. A carta, proveniente da Argentina, levara três meses para chegar ao destino.
Léa desceu correndo até o terraço, segurando a carta contra o peito. Ali, sentada no desconfortável
banquinho de ferro onde seu pai gostava tanto de descansar à noite, rasgou febrilmente o envelope.
Buenos Aires, 6 de março de 1946
Meu anjinho,
Parece até existir algo que não deixa a gente se encontrar e viver tranqüilamente nosso amor. Após
sua partida de Nuremberg, eu esperava encontrar você logo em Paris. Na véspera da minha
volta, o governo francês enviou-me a Moscou, de onde lhe escrevi
- mas estou certo de que não recebeu nenhuma das minhas cartas, pois nossos camaradas soviéticos
enxergam espiões em toda parte, e eu não quis utilizar a mala diplomática para minha correspondência
amorosa. Por quê? Pois deve ser nisso que você estará pensando, não é? Sempre tive escrúpulos em misturar
minha vida profissional e minha vida privada. De passagem em Paris por 24 horas, quando da minha volta
da URSS, fui correndo à casa de Laure, na rue Grégoire-de-Tours. Você acabara de partir para Montillac,
doente, pelo que ela me disse, e profundamente deprimida. Louco de preocupação, tentei ligar para você,
mas era impossível conseguir linha. Tive de partir mais uma vez para Berlim na manhã seguinte, sem ter
conseguido falar com você. Mais tarde, tive a explicação de seu estado ao rever Sarah: ela me contou o que
você já sabe. Fui muito duro com ela, censurei-a por ter feito você partilhar de sua desgraça. Na verdade,
tudo o que aquela mulher por quem tenho o maior afeto, vivenciou e sofreu é tão horrível que não consigo
ficarzangado. Percebi que foram suas revelações que provocaram sua doença e a levaram a fugir, pois você
nem quis atender a suas inúmeras ligações. Entendi sua reação, logo você, que é movida por uma força vital
que a obriga a encarar as piores situações efugir das que podem magoá-la. No entanto, no que se refere a
Sarah, você devia fazer um esforço. Assim como eu, ela entende sua primeira reação, mas nem ela e nem eu
gostaríamos que se mantivesse nesse tipo de comportamento. Pense com calma, sei que vai concordar
comigo. Depois de Berlim, houve Roma, Londres, Cairo, onde tive o prazer de acompanhar Leclerc a bordo
do Sénégalais, e agora Buenos Aires, de onde espero sair na semana que vem. Estou feliz com sua volta a
Montillac. As obras devem ter acabado, você ficou satisfeita? Pergunte o que quiser ao arquiteto.
Sinto muito sua falta, menininha. Eu gostaria de parar em algum lugar com você, amá-la, observá-la viver
Você sabe viver Léa, nunca se esqueça disso. Afaste-se dos maus e dos chatos.
Seu amante, François.
Lentamente, suas mãos, que seguravam a carta, pousaram nos
joelhos. Seu coração batia forte no peito. Todas aquelas palavras
ecoavam em sua cabeça. Por que François não se encontrava junto
dela para falar pessoalmente? De repente, sentiu-se extremamente
cansada. Onde estaria ele agora? O que significavam todas essas
viagens? Quando voltaria?

Capítulo 8

Certos amigos de Laure pensavam que o desencanto da moça não passava de uma fachada,
outros estavam convictos do contrário, a maioria não questionava nada, muito ocupados
com o mercado negro, negócios ilegais e festas.
Pouco restava da ingênua provinciana, admiradora do marechal Pétain e supostamente
apaixonada por Maurice Fiaux, o jovem miliciano responsável pela morte de Caniille. Seu
encontro com os caras de Saint-Germain-des-Prés e um bando de jovens traficantes do
mercado negro transformaram-na rapidamente numa mulher capaz de se virar sozinha. Era
imbatível na arte das trocas interessantes: manteiga por fumo, livros por sapatos, discos de
jazz americano por sabão, ou a revenda desses produtos raros para quem tinha dinheiro.
Dinheiro.., ele passara a ser o principal objetivo de sua vida; com dinheiro, encontrava-se
alimento, roupa, divertimento, amigos... o medo desaparecia, a liberdade existia. No início,
as censuras de Estelle ainda produziam algum efeito, Laure imaginava que seus pais teriam
ficado profundamente magoados. Mas a velha senhorita, assim como suas irmãs, acabou
aceitando aqueles fornecimentos tão oportunos sem grandes problemas... Agora, uma
simples observação a respeito de suas atividades ilegais deixava-a irritada e ela erguia os
ombros em sinal de desprezo: todos aqueles que perderam a guerra, que se mantiveram
calados durante quatro anos, colaborando com o inimigo, denunciando vizinhos judeus ou
membros da Resistência, aclamando Pétain e em seguida o general
de Gaulie, raspando a cabeça das mulheres, atirando nos poços traidores, verdadeiros ou falsos,
abraçando agora os americanos, não, não cabia a eles, franceses covardes, hipócritas, vaidosos e
estúpidos, fazer sermões sobre a moral e o bom comportamento. Os jovens de vinte anos não
queriam identificar-se àqueles estrangeiros; rejeitavam esses adultos que refletiam uma imagem
vergonhosa; heróis existiram, sim, mas estavam mortos ou se encontravam num estado tão
deplorável que era melhor desviar o olhar e ignorá-los. Laure experimentava uma profunda
admiração para com Léa, embora a considerasse uma grande idiota pelo fato de ter arriscado a
própria vida por um país que nada merecia. Mais do que nunca, era preciso viver rápido, viver para
si. A libertação dos campos e seu desfile de fantasmas, as fotos amplamente divulgadas pela
imprensa de montes de cadáveres macérrimos, crianças queimadas, mulheres torturadas, aqueles
testemunhos de sobreviventes eram insuportáveis. Que choque para os parisienses, dentre os quais
Laure e seus amigos, que vieram receber os primeiros deportados no hotel Lutétia. O encontro com
aqueles seres provenientes de lugares estranhos, esqueletos sem peso cobertos de trapos listrados,
fitando tudo com olhos embaçados, vazios, tentando esboçar um sorriso com a boca desdentada,
movendo sua frágil carcaça com extremo cuidado... Ao vê-los, parecendo prestes a partir-se, diante
daquelas moças sorridentes com os braços cheios de flores, das mães incrédulas frente àqueles
velhos que chamavam "Mamãe!", homens maduros, combatentes de outra guerra, deixavam as
lágrimas correr pelo rosto enrugado... Era terrível ler todos os horrores infligidos àqueles
desgraçados - os jornalistas costumam exagerar... - mas era ainda pior ver esses fantasmas de um
outro mundo, onde, com uma lógica implacável, seus semelhantes, e era nisso que consistia todo o
pavor, aplicaram-se em destruir não apenas os corpos e as almas, mas a própria idéia de
humanidade.
A bomba atômica de Hiroxima não aniquilara apenas dezenas
de milhares de japoneses numa clara manhã do mês de agosto de
1945; destruíra igualmente toda esperança de um possível futuro.
O mundo enlouquecera por completo, o homem inventara fmalmente a arma capaz de destruí-lo e
de acabar com toda espécie de
vida no planeta. De que servia então a moral dos grandes sentimentos, tudo era falso, tudo não
passava de uma grande mentira! Para sobreviver, não era preciso ser igual a eles, mas pior do que
eles. Pior do que eles? Seria difícil...
Laure e os amigos passavam noites inteiras no café Flore, Montana, Bar Vert, Tabou ou sentados
numa calçada, discutindo suas dificuldades face à existência e fumando cigarros Lucky Strike ou
Camel. O grande negócio era como adquirir um carro, obviamente americano, se possível
conversível.
Uma jovem do bando, Claudine, uma daquelas mulheres que os G.I. chamavam sign k1nguage
giris', tinha como amante um sargento negro que roubava para ela, do centro de abastecimento de
Versalhes, vários galões de gasolina que a moça revendia com um enorme lucro. Por meio de
gestos, ela mostrara que desejava um carro. "No problem", respondera ele. Desde então, Claudine e
os outros sonhavam com aquele veículo, Chevrolet ou Cadillac, de cor forte, com os cromados
brilhantes... Imaginavam-se subindo os Champs-Elysées, dando voltas em torno do Arco do
Triunfo, parando na frente do Fouquet's ou estacionando diante dos Deux Magots sob os olhares
invejosos daqueles franceses palermas demais para enganar os babacas dos americanos!
Graças ao mercado negro, Laure andava mais bem vestida e alimentada do que a maioria das jovens
de sua idade; excessivamente maquiada, passando de uma aventura a outra, procurando em todos
aqueles breves e frustrantes encontros um prazer que lhe escapava; já bastante desiludida, ela se
auto-avaliava sem qualquer condescendência, embora sem uma excessiva severidade; vivendo cada
momento, incapaz de pensar no futuro, impiedosa nos negócios, ao mesmo tempo desesperada e
engraçada, líder do grupo e pobre coitada cercada de companheiros, seu único e verdadeiro amigo e
confidente era Franck. Assim que se encontraram, amaram-se... um amor fraterno. Nenhuma
atração sexual entre eles, apenas uma franca amizade feita de acessos de
Que não fala uma única palavra de inglês: moças seduzidas por um simples gesto.
riso, cumplicidades, brincadeiras. Nenhum segredo entre eles, sabiam absolutamente tudo a respeito
um do outro e não ignoravam também que, em qualquer situação, seriam solidários. Aquela
amizade era, sem que eles realmente se dessem conta, a principal razão de sua existência.
Estavam juntos e acabavam de acordar por volta das duas da tarde quando a campainha tocou várias
vezes no conjugado da rue Grégoire-de-ToUrs.
- Pronto, pronto, já estamos indo! - gritou Franck, vestindo a calça.
Uma mulher usando um turrbante verde que realçava a cor de seus olhos e um rapaz louro, ambos
altos e bonitos, encontravam-se parados na porta. Ao ver Franck, a moça sorriu ironicamente, o que
fez com que ele se sentisse envergonhado.
- Esta é a casa da Srta. Laure Delmas?
- É, sim, senhora.
- Você é Franck?
Despenteada, Laure surgiu vestindo um penhoar de seda amassado, cheio de rendas. Embora nunca
tivesse visto Sarah Muistein, reconheceu-a imediatamente e sentiu-se pouco à vontade.
- Sou amiga de Léa, fiquei sabendo que estava doente, liguei mas não consegui falar com ela. Posso
entrar?
- Claro. Não repare a bagunça, fomos dormir muito tarde. Você é Sarah?
- Sou. Este é meu primo, Daniel Zederman.
- Bom dia, este é Franck Baudelau, um amigo meu.
- Bom dia. Léa ainda se encontra em Paris?
- Não, voltou para o Bordelais.
- Já mandei duas cartas. Você as enviou para o endereço de
Léa?
- Claro.
- Não obtive resposta alguma. Estive ausente durante mais de um mês, será que ela tentou me
encontrar?
- Acho que não - disse Laure com certa rispidez involuntária.
- Por que pensa assim?
Laure emudeceu e foi Franck quem respondeu:
- Não sabemos o que houve entre Léa e você, mas, após o seu encontro, Léa adoeceu. Em meio a
crises de febre, ela implorava para que você se calasse e, em seguida, chorando muito, tentava
consolá-la. O que ela dizia era tão incoerente, tão terrível que Laure e eu pensamos que estava
ficando louca. Quando ela melhorou e você telefonou, Léa começou a chorar e tremer, recusando-se
a falar. Assim que se recuperou, pegou o primeiro trem para Bordeaux.
Franck calou-se; um silêncio pesado instalou-se entre eles. Daniel olhava para a prima, surpreso
com a emoção que lhe parecia excessiva naquela mulher tão dura e dona de seus sentimentos. Sarah
conseguiu se dominar rapidamente.
- E como vai ela agora?
- Muito bem, há muito trabalho em Montillac e assim não lhe resta tempo para pensar - comentou
Laure.
- Fico muito feliz. Se escrever para ela, diga que sinto sua falta. Até logo.
Após fecharem a porta, Laure e Franck permaneceram em silêncio durante alguns minutos. A
campainha do telefone despertou-os de seus pensamentos. A jovem atendeu.
- Alô, é da casa de Laure Delmas?
- Sim, sou eu mesma. Quem fala?
- Bom dia, minha querida Laure, é François Tavernier. Como
vai você?
François!... Fico feliz em ouvi-lo. Onde está?
Perto, no hotel Pont-Royal. Léa se encontra em Paris?
Não, está em Montillac. Uma de suas amigas acaba de sair...
- ... Sarah Mulstein.
- O que ela queria?
- Ver Léa. Eu disse que minha irmã não desejava encontrá-la. Fiz bem, não é? Aquela mulher me
assusta... alô, alô... está ouvindo?... Está ouvindo?... Alô...
- Sim, sim, estou ouvindo. Vou tentar encontrar Léa. Irei à sua casa, em breve. Até logo, menina.
- Mas eu... alô! Desligou.
Laure colocou o aparelho no gancho com um gesto irritado.
- Ele me aborrece, continua me tratando como uma garotinha!
- De fato, você já é tão velha! - disse Franck, segurando-a pela cintura e fazendo-a rodopiar até
dissipar por completo seu mau humor.
Sem fôlego e rindo muito, Laure deixou-se cair na cama.
- Que horas são?
- Quatro.
- Então, caia fora, preciso me arrumar.
- Para ir aonde?
- Vou me encontrar com François Tavernier e pedir que me acompanhe até Montillac; quero
encontrar uma desculpa para não passar láo verão inteiro. Prefiro ir com você àquela aldeia do Sul
onde seus pais moram. Como se chama mesmo o lugar?
- Saint-Tropez. Sabe, não oferece nada de especial. Exceto a pesca e os banhos de mar, nem sei o
que se pode fazer por lá.
- Não se preocupe, vamos encontrar. Enquanto isso, precisamos urgentemente de um carro. É uma
pena, a gente tem gasolina até não poder mais, mas não possui o veículo para usá-la! Você acha que
vai dar certo, entre Claudine e o seu americano?
- Estive pensando... Por que não toca no assunto com o tal Tavernier? Você não me disse que as
atividades dele durante a guerra não eram lá muito católicas?
- Pois é, mas foi só para disfarçar. Na Libertação ele se encontrava ao lado do general de GaulIe,
você se lembra?
- Sabe, nas atuais circunstâncias, estamos acostumados a coisas bem mais estranhas...
- É verdade, mas mesmo assim não me custa nada pedir a ele, e agora me deixe. Agente se encontra
mais tarde no Flore, como sempre?... Lá pelas oito?
- Tudo bem, estarei lá. Juízo!
Franck quase levou na cabeça o sapato atirado por sua amiga.
- Oh, desculpe, senhor!
Laure, no saguão do hotel Pont-Royal, acabava de esbarrar num homem muito bem trajado, e que
conduzia pelo braço uma jovem vestida com a mesma elegância.
- Não foi nada, senhorita.
- François! ... Não me reconhece?... Laure... a irmã de Léa!...
- Laure! A pequena Laure!... Querida, não a reconheci. Você se transformou numa parisiense de
verdade! Que elegância, não é?
- disse, olhando para a companheira.
- Exatamente - comentou esta com um sorriso irônico.
- Laure, não preciso apresentar a Sra. Muistein. Acho que já se conhecem, não é?
- Sim - murmurou Laure, com o rosto vermelho sob a pesada maquiagem.
- Marcou um encontro com alguém? - perguntou Tavernier.
- Não, vim falar com você.., mas não há pressa.
- Sarah, pode me desculpar um instante?
Ela acenou com a cabeça, concordando.
François segurou o braço de Laure e levou-a até o sofá.
- Vamos sentar, não disponho de muito tempo. Diga o que quer de mim.
- Oh, pouca coisa! Quase nada.
- Mas o quê, exatamente? Trata-se de Léa?
- De certa forma... é isso.., pensei que podíamos ir juntos a Montillac, Assim minhas tias não teriam
argumento se eu fosse embora com você.
- Então não pretende ficar morando por lá?
- Oh,essanão!
A convicção foi tanta que ele não pôde deixar de sorrir.
- No entanto, o lugar é lindo, a casa de sua infância...
- Não passa de um buraco! Foi ótimo durante a minha meninice! Só de pensar em ficar lá para
sempre, tenho vontade de morrer,
- Mas Léa gosta tanto.
- Léa não sou eu. Aliás, quem disse que ela vai tão bem assim?... Pois estou convicta de que não.
Léa não se sente bem em lugar algum.
Em Montillac pairam muitas lembranças ruins. Ela cumpre com suas obrigações, mas sinto que não
passa de fingimento.
- Tem certeza disso?
- Quase. Por que não vai buscá-la? Só você pode fazer com que ela esqueça...
- Esquecer!... Essa é a palavra da moda! Esquecer! Você não acha que eu também gostaria de
esquecer, e Sarah, a mulher que lhe dá medo, você não acha que ela também gostaria de esquecer?
Ponha isso em sua cabecinha: existem coisas que não se pode esquecer, que não se deve esquecer,
nem pagando com a própria vida, nem em nome do amor...
Laure mal conhecia François Tavernier e nunca o vira zangado. Com o rosto lívido, ele a segurava
pelo braço para que entendesse melhor as suas palavras, e apertava com tanta força que ela não
pôde evitar um gemido.
- Desculpe, acho que a machuquei. Não passo de um velho idiota. Queira me perdoar, é natural que
uma garota como você procure esquecer os horrores cometidos pelos adultos. Não temos o direito
de lhes dar uma lição de moral.
- É exatamente a minha opinião e de meus amigos. Não precisamos de lição nenhuma, e de
ninguém - disse Laure, esfregando o braço. - Hitler já morreu, não é?
- Ele talvez, mas não o nazismo.
Os clientes do hotel, que passavam por aquela linda jovem vestida na última moda e o homem tão
bem trajado apesar das restrições, não podiam de maneira nenhuma imaginar o teor de sua
conversa. Imaginavam ser uma briga de namorados.
- E daí? Isso não pode impedir que eu me divirta.
Que menina! Seu ar zangado lembrava muito Léa, porém uma Léa egoísta e fútil.
- Sua guerra - continuou Laure - nos ensinou que a vida era curta e frágil. Não aceito esse tipo de
existência maçante, como a das minhas irmãs.
- Acha que Léa está chateada? - perguntou François, preocupado.
- Não lhe parece normal que uma moça da idade de Léa se
aborreça naquele fim de mundo, tendo como única companhia minhas tias, que são uns amores mas
nada interessantes, Françoise, que vive chorando, e dois guris barulhentos e insuportáveis? Gostaria
de ver você por lá! Ainda bem que Jean Lefèvre voltou e costuma aparecer em Montillac quase
todos os dias.
Sem cair na armadilha, François Tavernier sorriu.
- Que bom para ela. Não imagino Léa sem a companhia dos homens...
- É essa a sua reação - comentou Laure, decepcionada como uma garotinha. - E, ainda por cima,
você se diverte!
- É de você que acho graça.
- Oh!...
- Preciso acertar algumas coisas em Paris, e na próxima quinta ou sexta-feira, vou a Montillac.
- Posso ir junto?
- Combinado. Avisarei assim que estiver pronto.
- Obrigada. Conto com você.

Capítulo 9

Esteile de Montpleynet via com tristeza Françoise mergulhar numa melancolia cada vez
mais profunda. Permanecia longos momentos prostrada, o olhar perdido, sem forças e sem
pensamentos. Quando não considerava o mundo à sua volta com indiferença, ela parecia
percebê-lo com a mais profunda aversão e nada lhe dava prazer; o próprio filho não
conseguia distraí-la. Apenas a presença do novo mestre-de-obras fazia com que saísse de
seu isolamento. Pouco a pouco, uma espécie de amizade acabou se estabelecendo entre os
dois jovens, a qual, para Lebrun, se transformou logo em amor, sentimento que ele não
ousava expressar diante do comportamento de Françoise, tão afastada de qualquer atração
da mesma natureza.
Alain Lebrun conhecia sua história. Com certeza a longa permanência na Alemanha, numa
casa dirigida exclusivamente por mulheres, fazia com que ele entendesse os laços que
podiam se criar entre inimigos. Por várias vezes levantara-se em sua defesa nos bares e nas
assembléias de que participava; chegara inclusive às vias de fato com um viticultor que não
media seus insultos contra aquelas putas que deveriam ter sido fuziladas depois de ter a
cabeça raspada. Assim como Estelle, ele também se preocupava com o humor sombrio de
Françoise e fazia de tudo para distraí-la, com resultados medíocres.
Entretanto, certo dia, achou que conseguira: levara Françoise à feira de Duras para comprar
gansos e patos, com os quais ele desejava iniciar uma pequena criação. Antes de partir,
almoçaram
num bom restaurante da cidade. Ali, pela primeira vez desde que se conheciam, ela se mostrara
sorridente e descontraída. Na volta, pararam para admirar a paisagem e caminhar um pouco pela
estrada. Penetraram num bosque com o chão coberto de musgo, sentaram-se para curtir a sombra
após tanto calor. Permaneceram calados, num silêncio sem tensão, amigável. Com a mão, Alain
tocara suavemente seu ombro. Animado com a atitude da moça que nada dissera, atraiu-a parajunto
de si e beijou-lhe a cabeça de cabelo curto. Naquele momento, Françoise teve um sobressalto e
levantou-se rapidamente, pálida, o olhar perdido.
- Vamos voltar - disse com rispidez.
Caminharam calados, ele magoado, ela com os lábios cerrados, rígida em seu sofrimento.
Ao chegarem a Montillac, nem se despediram.
Durante vários dias, não se dirigiram a palavra, exceto por necessidade profissional.
Esteile, que adivinhara os sentimentos do rapaz e notara que Françoise parecia apreciar sua
companhia, chegara a sonhar com uma possível união. Aquela brusca mudança de atitude
desorientou-a.
Certa noite, após o trabalho, Alain Lebrun bateu na porta de Léa e pediu para conversar com ela.
Surpresa com o tom sério, ela ofereceu-lhe um lugar numa poltrona de frente para a mesa de seu
pai.
- O que houve, Lebrun? Que cara é essa?
- Srta. Léa, vim pedir minha demissão.
- Sua demissão!... Por quê? Não está satisfeito com o trabalho?
- Não é isso, senhorita... Na verdade, não depende de mim.
- Não entendo, explique-se melhor. Já falou com Françoise?
- Justamente...
- Como, justamente?
- Françoise... quero dizer, a Sra. Françoise... É por causa dela... Eu queria pedir sua opinião.
Alain calou-se e permaneceu em silêncio.
- Ora, fale! Que opinião você quer?
- É difícil dizer... Acha... que... a Sra. Françoise...
- A Sra. Françoise o quê?
- ...aceitaria casar-se comigo?
Léa olhou para ele espantada e em seguida deu uma boa risada.
Alain Lebrun ficou lívido e se levantou.
- Senhorita, não vou permitir ser humilhado.
- Mas está redondamente enganado, Lebrun. Não estou rindo de você, achei graça porque acaba de
fazer sua declaração de amor a mim e não a Françoise. Como posso responder por ela? Minha irmã
não costuma me tomar por confidente.
- Claro, mas, na sua opinião, tenho alguma chance?
Como ele parecia comovente, de pé, desajeitado, sem saber onde pôr as mãos. Léa o fez sentar-se
novamente.
- Eu ficaria muito feliz, Alain, se passasse a ser meu cunhado, e acho que para Frçoise seria
maravilhoso ter um marido como você. Sabe o essencial a respeito de sua vida e isso não representa
mais nenhum obstáculo; mas para ela talvez seja diferente. Já conversaram a esse respeito?
- Não, era o que eu contava fazer, mas, desde a feira de Duras, ela se afastou de mim. Será que
poderia me aceitar?...
- Claro que não. Conheço Françoise. Qualquer intervenção de minha parte seria muito mal
interpretada. Tudo que posso fazer é provocar um encontro entre vocês dois.
- Faria isso?
- Não é nada - disse Léa, erguendo os ombros. - Farei o possível para devolver a Françoise o gosto
de viver.
- Obrigado, senhorita. Quanto a mim, darei tudo para que sejam felizes, ela e o menino.
- Guarde os agradecimentos para mais tarde. Deixe-me pensar. Assim que me ocorrer alguma idéia,
falarei com você.
- Não demore muito - acrescentou Lebrun ao se despedir. Léa, pensativa, encostou-se na janela,
deixando o olhar percorrer o prado que descia suavemente até os velhos álamos erguendo- se acima
da estrada de Saint-Macaire. Uma brisa amena encurvava a copa das árvores e ondulava a grama.
Tudo estava tão calmo, tão arrumado, de certa forma imutável. Léa sabia como tudo aquilo era
enganador, ilusório: aquela brisa podia transformar-se em tempestade, aquela bonança no maior
fragor. Sabia também que precisava
preservar essas aparências. Uma espécie de instinto de sobrevivência mandava que ela
fizesse tudo para favorecer os desejos de Lebrun, não só para a felicidade da irmã, mas para
a sua própria, para sua tranqüilidade, sua liberdade. Todos, em Montillac, tinham certa
tendência em lhe confiar as dificuldades, desde a administração da propriedade até a
escolha do tecido para um vestido, das árvores a serem plantadas ao cardápio do jantar. Ela
sentia a necessidade de entregar suas obrigações a outra pessoa; Alain Lebrun parecia o
mais indicado. Evidentemente, a família de Bordeaux não veria com bons olhos esse
modesto partido, mas, no ponto em que haviam chegado suas relações, não fazia a menor
diferença. Léa imaginava as primas ironizando, comentando que, na situação de Françoise,
qualquer casamento era uma surpresa e, além disso, homem algum pertencendo a seu meio
aceitaria uma mulher com um passado como o dela, trazendo ainda por cima um bastardo
nas costas. O mais difícil seria convencer a própria irmã. Ela conservava a lembrança de
Otto no coração; mas o pequeno Pierre estava crescendo e sentia falta de um pai. Mais uma
vez, Léa irritou-se com a ausência de François Tavernier. Ele saberia como agir.
Jean Lefèvre retomara seus hábitos de antes da guerra; a cada entardecer, vinha a Montillac.
Sua presença agradava a todos. Geralmente, era convidado para jantar e ficava até altas
horas com seus amigos. As vezes, a mãe o acompanhava e as senhoritas de Montpleynet
faziam o possível para distraí-la. Mas a pobre mulher jamais deixava de se deter no local
onde Raoul fora enterrado.
Sem perceber o que acontecia, Léa voltara a se comportar como uma jovem vaidosa com o
amigo, esquecendo-se de que o tempo passara e ele deixara de ser um rapaz inexperiente.
Nunca falavam daquela noite em Morizès, quando os dois irmãos a possuíram. Entretanto,
em suas lembranças, nada fora apagado; uma verdadeira festa dos sentidos, ao mesmo
tempo afetuosa e louca de paixão, sem conseqüências para Léa; para Jean, ainda era uma
violenta vertigem acompanhada por remorsos e um sentimento de culpabilidade. Ele
perdera um pouco daquela alegria e desenvoltura que faziam todo seu charme e
costumavam seduzir Léa. Suas novas
responsabilidades, a tristeza da mãe, os sofrimentos, a perda do irmão, davam-lhe uma expressão de
seriedade que não faziam parte de seu temperamento. Mais do que nunca, amava Léa e sonhava em
se casar com ela. Sabia de sua ligação com François Tavemier, o que o impedia de se declarar
abertamente; temia ouvir uma recusa e o argumento de que ela amava outro homem. Léa lhe falara
dos sentimentos de Alain Lebrun em relação a Françoise e pedira que organizasse um passeio a
Pyla, onde os Lef'evre possuíam uma casa à beira-mar. Era o mês de junho: nada mais natural de
que se banhar nas águas do Oceano! Como Léa não conseguia encontrar um bom motivo para
deixar os dois meninos em casa, partiram todos os seis, num sábado de madrugada, no Citroën novo
de Jean. Ao ver o imenso carro preto na frente da casa, Léa ficou momentaneamente assustada,
como se, do veículo, fossem surgir Maurice Fiaux e seus milicianos.
O porta-malas do carro estava repleto de mantimentos colocados por Ruth e Esteile; as mulheres
sentaram-se atrás com as crianças, os homens na frente. Em Villandraut, era dia de feira. Apesar da
hora, a cidade já se encontrava entupida de carroças, caminhonetes, rebanhos de carneiros e cabras;
das gaiolas, saíam os pios das aves e os grunhidos dos porcos. Na suave claridade da manhã, as
pessoas dirigiam-se com toda a calma para seus afazeres. Fora da cidade, a estrada seguia em linha
reta pela floresta das Landes. Léa sentiu um aperto no coração ao pensar nos dias passados nesses
bosques, escondida, com Camilie e Charles. Embora ainda muito criança naquela época, será que
Charles se lembrava de alguma coisa? Não falava nada, olhando muito sério e atento para as árvores
que desfilavam de cada lado da estrada.
- O pombal do pai Léon não ficava por aqui? - perguntou de repente.
Léa estremeceu e Jean Lefèvre freou bruscamente. Transmissão de pensamentos?... Os três
pensavam exatamente na mesma coisa.
- Você se lembra do pombal do pai Léon? - perguntou Léa.
- Não muito bem, tinha você e mamãe. Ficava por aqui, não é?
- É sim, querido, acho que não é longe daqui.
Charles desviou a cabeça e, encostado na porta do carro, concentrou-se na contemplação da
paisagem. Pierre adormecera no colo da mãe. A viagem prosseguiu em meio a um profundo
silêncio.
Finalmente, aquela estrada reta que parecia não levar a lugar algum fez uma curva logo após o
vilarejo de Lamothe; Léa suspirou aliviada; desde a infância, a travessia das Landes sempre
representara, para ela, em oposição aos pais e irmãos, um trajeto opressivo. Diante daquelas
florestas de pinheiros todos iguais, ela costumava experimentar uma angústia profunda e
inexplicável.
Na saída de Arcachon, detiveram-se na casa da Sra. Roussel, que tinha as chaves do sítio.
- Sr. Jean, que bom revê-lo após todos esses anos! Coitado do Sr. Raoul! Que tragédià! E a Sra.
Lefèvre, coitadinha, que tristeza!
Com muita dificuldade, Jean conseguiu livrar-se daquela conversa carinhosa.
A casa, ocupada durante a guerra pelos alemães, não sofrera demais, simplesmente se apagara. Foi
essa palavra que veio à mente de Léa, a qual, sem se dar conta, expressou seus pensamentos em voz
alta. Seu amigo fitou-a, surpreso.
- É exatamente a impressão que tenho... Você se lembra da última vez em que viemos, pouco antes
do noivado de Camiile e Laurent.
- Parece até que se passaram séculos!
- Cuidado! Não nos deixemos levar pela saudade: o tempo está lindo e você tão bonita!
- Não estou? - respondeu Léa, rodopiando.
- Léa, Léa, venha logo, venha ver o mar - gritou Charles, empurrando-a.
- Pierre também quer ver o mar.
Jean ergueu-o do chão e o colocou nos ombros. O garotinho gritava de alegria. Léa, segurando a
mão de Charles, saiu correndo.
- Françoise, Alain, vocês não vêm?
- Irei mais tarde. Tomem conta de Pierre.
- Eu também vou ficar - disse Alain Lebrun.
- Tudo bem. Segure-se firme, seu cavaleiro, sou Luz de Fogo, o cavalo mais rápido do mundo...
Tagadá, tagadá, tagadá...
Apertando com força as pernas do menino que gritava de felicidade, Jean saiu galopando.
- Ele vai cair - exclamou Françoise, entre preocupada e sorridente.
- Fique tranqüila, é um bom cavalo - disse Lebrun.
Da casa, construída no topo de uma colina, descortinava-se a praia além das dunas, deserta, ainda
coberta com os escombros da guerra sobre os quais pareciam vigiar as casamatas da Muralha do
Atlântico.
- Será que ainda existem minas? - murmurou a moça, levantando-se para ir ao encontro do filho.
Alain deteve-a.
- Não se preocupe, todas foram retiradas e o acesso à praia já foi autorizado.
- Quem sabe ainda tem alguma, perdida por lá... Não ria, ainda existem obuses da primeira guerra
que continuam explodindo.
- É verdade, mas a limpeza foi minuciosamente realizada. Aliás, prisioneiros alemães pagaram com
a própria vida.
- Sei - comentou Françoise num tom melancólico.
Imediatamente, ele se censurou por ter mencionado os alemães, pois tratava-se de uma triste
lembrança para Françoise. Mas ela já se encontrava perto do carro, retirando os mantimentos do
porta- malas.
- Venha me ajudar... Não sei o que Rutb pôs nesta cesta, mas pesa uma tonelada.
Calados, colocaram toda a comida sobre uma mesa de jardim enferrujada.
Cada vez que via o mar, Léa voltava a se sentir como uma criança: era sempre o mesmo encanto, o
mesmo desejo de ir além do horizonte para verificar se o mar continuava ou caía no vazio. Durante
muito tempo, imaginara que, no fim, havia imensas quedas ainda mais altas que as do Niágara, que
ela pudera conhecer aos
seis ou sete anos num documentário, no cinema de Langon, e com as quais ficara profundamente
impressionada. Sem parar de correr, tirou o vestido e as sapatilhas, largando tudo na areia.
Jean recuara no tempo, seis anos atrás, na mesma praia, olhando para a mesma jovem, com o
mesmo maiô azul-marinho... A mesma?... Claro que não... mais esbelta, mais mulher, ainda mais
bonita! Sentiu um aperto no coração. Há seis anos, ele e o irmão Raoul fitavam-na, comovidos e
apaixonados... Como há seis anos, ela parecia inacessível.
- Quer descer!
Entregue aos seus pensamentos, esquecera-se por completo do pequeno Pierre gesticulando em seus
ombros. Ele levantou o menino e colocou-o no chão com todo o cuidado. A criança saiu correndo
na direção de Charles, urrando de felicidade. Os dois meninos chocaram-se e rolaram na areia entre
gritos de alegria. Com a ajuda de Jean, tiraram a roupa. Ele também, por sua vez, ficou desnudo; em
seguida, segurando a mão das crianças, arrastou-as para a água e chamou Léa que nadava
rapidamente em direção ao mar aberto.
Sentada sob um pinheiro, apoiada no tronco rugoso, Françoise olhava para o horizonte com
expressão descontraída. Pela primeira vez em anos experimentava uma espécie de bem-estar ao
mesmo tempo físico e moral e pensava em Otto sem aquele sofrimento que costumava deixá-la
inerte, desamparada. Seriam as risadas, os gritos alegres de seu filho que chegavam até ela, trazidos
pelo vento, ou a suavidade desse início de verão, ou ainda a presença daquele homem simples e
calado, cujo amor era mais do que evidente? A vida ainda podia ser boa?... Desde o dia fatídico em
que sentira no crânio o frio da máquina de raspar, Françoise não derramara uma única lágrima; a
notícia da morte de seu amante deixara seus olhos completamente secos. Estou chorando por dentro,
pensava. Mas essa dor árida tornava-se ainda mais insuportável. E agora ela sentia escorrer pelo
rosto um calor úmido que deslizava lentamente, inexoravelmente, como água muito tempo contida
que por fim se libertava.
De pé, a seu lado, Alain Lebrun contemplava aquelas lágrimas
que pareciam lavar o rosto da mulher que amava, devolvendo-lhe
todo o frescor da infância. Conseguiu conter o desejo que o impelia,
percebendo, com a delicadeza natural dos amantes, que ela precisava
descer sozinha até o fundo de sua mágoa.

Capítulo 10

Ao regressar da América do Sul, François Tavernier reviu Sarah Mulstein. Após ouvir,
transtornado, a terrível narrativa de todo seu sofrimento durante a deportação,
piedade e raiva tomaram conta dele. Sentia-se atordoado por um sentimento de
profunda vergonha diante das desgraças que seres humanos haviam causado a seus
semelhantes. Ele assistira aos revoltantes massacres da guerra da Espanha, crianças e
mulheres metralhadas nas estradas, cidades bombardeadas, mães enlouquecidas pela
dor ao lado do cadáver dos seus filhos, órfãs vagando entre as ruínas, e tudo aquilo
reforçara nele o desejo de paz, fazendo com que sentisse a necessidade de uma maior
aproximação entre os povos; mas agora, diante daquela mulher para sempre destruída,
experimentara um ódio como jamais sentira durante toda a guerra. Logo ele que tentara
se opor ao desejo de vingança de Sarah, hoje estava pronto a ajudá-la em sua luta.
Como ela, Tavernier concluíra que aqueles crimes inauditos, e os criminosos arrogantes
que fizeram muito mais do que simplesmente assassinar, não podiam permanecer
impunes: as vítimas haviam sido destroçadas, maculadas, desprezadas, desonradas.
Matar, ele mesmo o fizera, podia até compreender; humilhar, jamais. Ele que era
considerado tão esperto, até mesmo cínico, que apreciava os prazeres da vida,
afirmava não acreditar em mais nada, mas sonhava freqüentemente com uma felicidade
calma e tranqüila com Léa como sua companheira, ele mesmo adotou, embora
consciente da estupidez de se atirar numa vingança que não lhe pertencia, logo um homem como ele, a causa de Sarah; e com a mesma energia despendida em prol dos
republicanos espanhóis, e da resistência francesa, procurava agora oficialmente todas as pessoas
deslocadas de seu país de origem.
Aceitou encontrar-se, na casa de Sarah, com Samuel e Daniel Zederman, e dois amigos, igualmente
judeus, Amos Dayan de Lublin, na Polônia, ex-membro do grupo Nakam, e Uri Ben Zohar, da
Palestina, ex-combatente na Brigada Judaica.
- Apresento-lhes François Tavernier, de quem já falei tantas vezes. Ele aceitou juntar-se a nós, com
a condição de que nenhum de vocês se oponha à sua participação.
Ben Zohar adiantou-se, a mão estendida.
- Bom dia, tenho o maior prazer em revê-lo aqui - disse em inglês.
Diante do espanto de Tavernier, que apertava sua mão, ele acrescentou:
Eu estava em Tarvisio com Ismaêl Karmir quando você chegou.
- É verdade, agora me lembro. Mas não usava bigode naquela época.
- Exato - comentou Uri, acariciando um lindo bigode ruivo que lhe dava um ar de oficial britânico.
- Mas como? Vocês se conhecem!... O mundo é mesmo muito pequeno - disse Sarah ao acender um
cigarro.
Amos Dayan aproximou-se, estendeu a mão a Tavemier e falou, num inglês hesitante:
- Bem-vindo entre nós.
Samuel e Daniel Zederman também se aproximaram.
- Estou a par do importante papel que desempenhou na resistência francesa e junto ao general de
Gaulie e dos laços que existem entre você e minha prima. No cargo que ocupa atualmente, pode ser
muito útil na descoberta dos criminosos nazistas. Obrigado por se juntar a nós - disse Samuel.
Daniel saudou-o sem uma palavra. Sarah fez um sinal para que todos se sentassem e disse a
Tavemier:
- Todos aqui sabem quem você é e o que fez. Exceto a mim,
100
você não conhece mais ninguém. Se vai lutar conosco, é natural que saiba quem são seus
futuros companheiros... De forma geral, somos relativamente discretos quanto aos nossos
atos, mas, em se tratando de você e levando em conta o que representa, vou relatar
rapidamente quem são e o que fizeram até hoje nossos quatro amigos. Começo pelo meu
primo Samuel, advogado de renome antes da guerra. As medidas antijudaicas obrigaram-no
a parar de exercer a profissão. Com alguns amigos, fundou um jornal clandestino em
hebraico, destinado a informar a comunidade a respeito dos perigos do nazismo. Após a
publicação de cerca de dez números, ele foi denunciado. Quando a Gestapo veio prendê-lo,
ele não se achava em casa. Depois de espancá-los, os policiais levaram seu pai, sua mãe,
suas irmãs e Daniel, o irmão mais novo. Todos, com exceção de Daniel, morreram no
campo de concentração. Samuel viveu dois anos escondido num porão graças à esposa, que
não era judia. Tiveram um filho que morreu ao nascer. Um dia, sua esposa não voltou, pois
deve ter sido morta durante um bombardeio; as buscas para encontrá-la não deram em nada.
Voltamos a nos ver em Munique. Em Linz, encontramos Daniel, que conseguiu escapar dos
campos da morte. Resolvemos ambos vingar-nos dos horrores cometidos, apesar de
sabermos que a vingança é a arma dos fracos. Não foi difícil fazer com que Samuel
compartilhasse do nosso ponto de vista. Aqui, em Paris, encontramos Amos. Ele fez parte
do comando que, no mês de abril, envenenou o pão destinado aos trinta e seis mil SS
prisioneiros num campo perto de Nuremberg. Em quatorze mil pedaços de pão previstos,
dois mil foram envenenados com arsênico; apenas mil SS morreram. A censura militar
aliada fez tudo para abafar o caso. Antes de ser interrogado pela polícia americana, Amos
conseguiu atravessar a fronteira e refugiar-se na França. Uri Ben Zohar é um judeu da
Palestina que, como você sabe, combateu na Brigada Judaica. Com alguns companheiros,
participou da execução de nazistas na Itália e na Alemanha. No entanto, a Haganah logo se
opôs aos projetos destinados a matar o maior número de alemães, assim como o
envenenamento dos reservatórios de água de grandes cidades como Nuremberg, Hamburgo
ou Frankfurt, ou o incêndio de Munique ou Stuttgart. Foi
lo'
ordenado que cessassem todas as represálias contra os alemães e voltassem à Palestina. Conta a sua
vontade, os vingadores obedeceram. Uri foi autorizado a viajar para a França depois de passar
alguns dias numa prisão clandestina da Haganah.
- Por que não foi para a Palestina? Não falta trabalho naquela região - comentou Tavernier.
- Pensei nessa hipótese - respondeu Uri -, mas formamos um grupo que deseja a vingança antes da
existência de um hipotético Estado de Israel, o que se choca com o pensamento dos chefes da
comunidade judaica de Jerusalém. Embora alguns estejam prontos a nos ajudar, a maioria tem um
único objetivo: a criação do Estado judeu. Achamos que Israel não poderá existir se seus seis
milhões de filhos, mortos sem sepultura, não forem vingados. Por isso formamos um grupo que
pretende caçar os nazistas onde estiverem, no mundo inteiro, e acabar com eles.
Durante um momento, pairou um silêncio povoado de dolorosas recordações para cada um dos
presentes. Foi Sarah quem voltou a falar:
- François, quer fazer alguma pergunta?
- Sim... vão precisar de muito dinheiro para executar todas essas operações. Vocês têm?
- Dinheiro não é problema, temos bastante - respondeu Samuel.
- De onde provém?
- De organizações judaicas e não-judaicas encarregadas de levantar fundos em todo o mundo para
nossa causa. No início, alguns dentre nós não hesitaram em cometer assaltos, mas agora não é mais
necessário.
- Já participaram de execuções?
- Ainda não - respondeu Samuel.
- Eu já-disse Uri.
- Eu também - acrescentou Amos. -De várias.
François Tavernier olhou para Daniel.
- Estou esperando minha vez com impaciência.
Ele nada perguntou a Sarah; já sabia qual seria a resposta.
- Você acaba de chegar da Argentina; qual é a situação por lá? - perguntou ela.
- Em Buenos Aires, nos meios peronistas, eu soube da chegada de um certo número de famílias
alemãs que foram acolhidas por compatriotas radicados na Argentina antes da guerra, a maioria
com passaportes argentinos, americanos ou da Cruz Vermelha Internacional, outros com
passaportes diplomáticos entregues pelos cavaleiros da Ordem de Malta, e pouquíssimas carteiras
de identidade francesas. As colônias alemãs da América do Sul são poderosas e numerosas, tanto no
Chile quanto no Brasil e na Argentina, passando pelo Equador, Uruguai, Bolívia e Paraguai.
Inúmeros políticos desses países são de origem alemã. As rotas de fuga foram facilmente instaladas.
Convém saber que, desde o início da guerra, importantes relações passaram a existir entre altos
dignitários nazistas e seus homólogos argentinos.
Apesar da ruptura das relações diplomáticas entre Alemanha e Argentina, em janeiro de 1944, a
operação Aktion Feuerland1, lançada por Bormann em fins de 1943, continuou sem graves
problemas. Assim, milhares de obras de arte, toneladas de ouro e demais valores atravessaram o
Atlântico a bordo de submarinos partindo da Espanha graças à ajuda do general Paupel, em Madrid.
O embaixador da Alemanha von Thermann e a esposa, em companhia do capitão Dietrich Niebuhr,
organizavam bailes ou partidas de pôquer - os argentinos tinham uma sorte incrível - onde se
encontravam a nata da colônia alemã, o príncipe e a princesa de Schaumburg-Lippe, o conde de
Luxburg, Ludwig Freude, Godofredo Sanstede - agente da Gestapo -, von Simon e argentinos tais
como o atual presidente Juan Perón, os almirantes Scasso e Teissaire, os generais Ramírez e Farrel,
os coronéis Mittelba, Heblin, Gonzalez, Gilbert. Muito espertos, os alemães agradavam ao máximo
seus amigos argentinos: matérias pagas sistematicamente na imprensa, importantes doações do
príncipe de Schaumburg-Lippe a diversas personalidades argentinas, festas regadas ao
melhor vinho. A declaração da guerra em 27 de março de 1945, sob a pressão dos Estados Unidos,
não atrapalhou muito as relações entre os dois campos. Por medida de prudência, os fundos e os
bens dos nazistas foram transferidos para contas de cidadãos argentinos. Quando o governo de
Buenos Aires apresentou-se para seqüestrar os bens nazistas e japoneses, nada mais restava. Em
abril de 1945, submarinos provenientes da Espanha chegaram à Argentina, trazendo um verdadeiro
tesouro de guerra: oitocentos milhões de dólares, fruto dos mais diversos saques. Em julho e agosto,
dois submarinos vieram à tona no porto de Mar dei Plata e foram entregues às autoridades
americanas. Na Patagônia, sempre no mês de julho, outros dois submarinos atracaram. Oitenta
pessoas embarcaram em barcos pneumáticos e foram deixadas numa praia deserta, onde as
esperavam imensos carros e caminhões. Foram igualmente retiradas dezenas de pesados caixotes,
imediatamente levados de caminhão até uma hacienda pertencente a uma sociedade alemã. Vocês
talvez saibam que a Organisation der ehemalingen SS-Angehõrigen' possui várias redes que
permitem aos seus membros fugir para o Egito, Síria ou América Latina. A rota, Alemanha,
Áustria, Tirol do Sul, Gênova via Tanger é a mais utilizada para alcançar os hospitaleiros países da
América do Sul. Só na região de Gênova, existem uns dez mosteiros ou presbitérios que servem de
esconderijo para os candidatos à imigração sul-americana, sob o comando de um alto dignitário
eclesiástico croata, Krunoslav Draganovic, grande amigo do Poglavnik Ante Pavelitch.
Graças às suas relações diplomáticas junto ao Vaticano, ele obteve, de diversos países e sem a
menor dificuldade, autorizações de imigração para seus protegidos. Apesar da ação policial dos
aliados, o porto de Gênova representa um ponto de partida seguro para os criminosos nazistas.
- Sabíamos da existência dessa organização, mas não podíamos imaginar sua importância - disse
Sarah. - Você falou de
cumplicidades difíceis de se admitir... a Cruz Vermelha Internacional, o Vaticano, a Ordem de
Malta e outras mais...
- Você acredita que com o suícidio de Hitler, que para muita gente não é tão certo assim, a queda do
Terceiro Reich e a morte de milhões de seres humanos pudessem aniquilar todos os neofascistas e
neonazistas da face da terra?... Que nada. Pequenos grupos como o nosso podem prejudicar bastante
a rede ODESSA mas, não podemos nos iludir, a maioria daqueles canalhas conseguirá escapar.
- Já sabemos - disse Samuel. - Não somos os únicos a perseguir os nazistas fugitivos. Graças a
nossos informantes americanos, temos um grupo na pista de Adolf Eichmann. Ex-membros da
Nakam descobriram o endereço de sua família na Áustria, em Bad-Ausse; fazem um revezamento
constante para vigiar a esposa e o irmão de Eichmann. Esse pequeno grupo de vingadores recorrerá
a nós se for preciso. Quanto ao nosso grupo, por enquanto, Amos localizou aquelas duas mulheres
do campo de Ravensbrtick, Rosa Schaeffer e Ingnd Sauter, que conseguiram se infiltrar na Cruz
Vermelha e que vimos, Sarah e eu, na plataforma de uma estação ferroviária acompanhando
pequenos órfãos. Encontram-se agora em Lyon, num convento de freiras. Daniel e Amos partem
amanhã para observar seu modo de vida e encontrar um meio de detê-las.
- E vocês pensam em entregá-las às autoridades francesas?
- perguntou Tavernier.
- Não - disse Sarah rispidamente. - Vamos executá-las.
- Depois disso - prosseguiu Samuel -, embarcaremos para continuar nossa caçada na Argentina; lá,
duas pessoas de nosso grupo se farão passar por nazistas fugitivos. Amos e Daniel, que falam
perfeitamente o alemão e parecem arianos puros, desempenharão esse papel. Quando você volta à
Argentina?
- No outono. Fui encarregado de uma missão junto ao governo argentino pelas autoridades
francesas.
- Perfeito; essa viagem pode ser antecipada?
- Não sei, vou perguntar ao Quai d'Orsay.
- Seria melhor se, antes de partir, você estivesse casado...
- Casado?!...
- Sim, com Sarah. Facilitará muito nossa tarefa...
- Talvez, mas não pretendo casar de maneira nenhuma.
- Não sou do seu agrado? - perguntou a moça em tom irônico.
- Não é isso, Sarah, você sabe muito bem.
- Sei que ama outra mulher. Não se preocupe, não estou com siume.
- Não se trata disso...
- Claro que não - interrompeu Samuel. - Trata-se de mera formalidade...
- Mera formalidade, essa é boa! Isso porque não é você que precisa se casar!
- François, estou a par de seus sentimentos, mais até do que imagina. Acredite, se pudéssemos agir
de outra forma, eu não lhe pediria para tomar parte nessa farsa - disse Sarah, seriamente.
-Mas...
- Sei o que vai dizer, deixe que eu trate de tudo.
- Você nada tem a ver com isso, cabe a mim...
- Vou acompanhá-lo até lá.
- Ela não quer falar com você.
- Sei, e é bom sinal. Ela não quer falar comigo porque tudo que lhe contei deixou-a transtornada.
Conto justamente com isso para obter sua ajuda.
- Você não pretende pedir a Léa...
- Por que não? Não foi ela quem me ajudou, quem salvou a minha vida, arriscando-se corajosamente
na Resistência?
- Exatamente, ela precisa esquecer tudo aquilo!
- Você a conhece muito mal, Léa não conseguirá esquecer, embora seja a sua maior vontade. Trata-
se de uma jovem sincera e simples que acredita no castigo para os maus.
- Sei de tudo isso, mas por que lhe confiar a tarefa de castigá-los? Por favor, deixe Léa fora de tudo
isso.
- Por quê, se precisamos tanto dela?
- Podemos perfeitamente passar sem sua ajuda. Acho inútil trabalharmos com uma moça tão
desmiolada...
- Não era esse o julgamento do seu tio, o padre Adrien, que utilizou seus serviços em diversas
circunstâncias.
- Ela lutava para expulsar o inimigo do seu país...
- E agora vai lutar para que ele não volte.
- Tudo isso me parece muito complicado e bastante arriscado
- comentou Samuel. - Se, como pude perceber, François Tavernier está apaixonado por essa tal de
Léa, teremos problemas. Não há nada pior do que as histórias de amor na clandestinidade.
- Seu primo está certo, é muito arriscado, não só para Léa como para todos nós. Comprometi-me a
ajudar, a participar de sua luta, mas não se for preciso pôr em risco a segurança e a própria vida de
Léa.
- Por hoje basta - disse Sarah. - Voltaremos a falar numa próxima oportunidade.
O tom daquela voz fez com que todos se levantassem e saíssem.
Algumas crianças brincavam na areia do parque da Place des Vosges sob o olhar das mães sentadas
à sombra, tricotando ou costurando. O céu estava branco devido ao calor escaldante, não havia
ninguém sob as arcadas. François Tavernier deixou os companheiros e, com o paletó no ombro,
caminhou até o carro estacionado na rue de Turenne. Todos aqueles encontros e conversas
deixavam-no pouco à vontade. Na sua posição, seria conveniente envolver-se nesse tipo de aventura
com amadores, dentre os quais uma mulher sem o menor bom senso? Claro que não, tratava-se da
mais completa loucura. Entretanto, desde a guerra da Espanha, o mundo perdera a razão.
Herdeiro de uma rica família de fabricantes de tecidos de Lyon, brigara com os parentes após seu
envolvimento com os republicanos espanhóis. Apenas um de seus tios, que administrava sua
fortuna, mantivera relações distantes porém necessárias, devido aos negócios existentes entre eles.
De uma honestidade ímpar, Albert Tavernier fizera com que o dinheiro do sobrinho triplicasse, sem
participar dos lucros, o que era muito incomum entre os demais membros da família. Sem a
intervenção da ovelha negra, muitos deles teriam sido presos quando da Libertação.
Perdido em seus devaneios, Tavernier registrava automaticamente tudo o que acontecia à sua volta;
quando chegou junto ao
carro, uma vaga silhueta masculina escondeu-se por trás de uma coluna das arcadas. Acostumado
aos combates de guerrilha, François levou a mão imediatamente à cintura à procura da arma.
Aquele gesto involuntário provocou um sorriso: a guerra acabara, a pistola Walther, bem como o
resto de seu arsenal, fora guardada. Atento, continuou andando. Ao abrir o carro, olhou mais uma
vez à sua volta... devia ter sonhado; exceto por uns poucos transeuntes dirigindo-se à rue de Rivoli,
não havia ninguém.
No interior do veículo, reinava um calor sufocante. Tavemier soltou o nó da gravata e desabotoou a
gola da camisa. Guiou devagar até a rue de l'Université, certo de que não o seguiam. Os trabalhos
encomendados estavam sendo executados normalmente; se tudo corresse dentro do previsto,
estariam terminados no outono. Veria então se Léa aceitava casar-se com ele.
Enfurecido ao se lembrar da proposta completamente absurda de Sarah, rilhou os dentes. Se
precisasse casar, seria com Léa e com mais ninguém... No entanto, Sarah tinha razão ao pensar que
teria mais facilidade de penetrar na sociedade argentina, na qualidade de esposa de diplomata;
tratava-se de um posto de observação ideal para saber o que acontecia com os nazistas fugitivos
acolhidos no país. Ele imaginava perfeitamente Sarah tornando-se amiga daquela atriz de 26 anos,
Eva Duarte, que o novo presidente argentino acabara de desposar. O fato de Juan Domingo Perón
sentir-se fascinado por Benito Mussolini e freqüentar os círculos nazistas não era segredo para
ninguém, e fora eleito graças aos cabezitas negras'... Apoiado por uma parte da classe operária e
do exército, o "chefe", eleito presidente da república com 56% dos votos, iria fazer de seu país uma
grande potência mundial; apesar da oposição dos comunistas e da aristocracia, seu poder parecia
estabelecido por um longo tempo. Na qualidade de representante do governo francês, François
Tavernier fora apresentado ao casal presidencial. Ele mal conseguira disfarçar um sorriso irônico ao
beijar a mão da esposa do presidente, uma loura oxigenada com o rosto muito
maquiado e usando um vestido juvenil que não combinava com aquela mulher de 26 anos. Fazendo
charme, Eva Perón levara-o a visitar o parque da residência presidencial, extasiando-se com as
flores pelas quais se dizia profundamente apaixonada. Quanto ao esposo, o general Perón, afirmara
a Tavemier que ele seria sempre bem-vindo. Naquela mesma noite, durante um jantar na casa de
Victoria Ocampo, diretora da revista literária Sur o assunto principal da conversa fora a bela Eva
Perón e o modo pelo qual conseguira atrair o tão grosseiro Juan Perón, embora certas senhoras
presentes na ocasião considerassem-no muy macho. Victoria Ocampo, linda e alta mulher de uns
cinqüenta anos, centro das atenções nos meios literários argentinos, renomada "devoradora de
homens", amiga ou amante dos maiores escritores da época, francófila inveterada, experimentara
logo uma profunda simpatia por aquele francês que se encontrava sempre em seu caminho, tal como
um perfume misterioso que despertava sensações de aventura. Quando de seu regresso a Paris,
entregara-lhe papel, fitas para máquinas de escrever, café, açúcar e todo o dinheiro obtido graças a
Gisèle Freund para o comitê de Solidaridad con los escrivatores franceses, destinados a Adrienne
Monnier - que aceitara servir de intermediária entre os escritores franceses e o comitê. A grande
editora de Ulisses, de James Joyce, recebera François Tavemier com toda sua gratidão na livraria
da rue de l'Odéon.
- Graças aos amigos argentinos, vamos poder abastecer nossos escritores que afirmam nada
conseguir escrever sem sua dose diária de café. - Diante da surpresa de seu interlocutor, acrescentou
sorrindo: - Pois é, a livraria transformou-se em armazém. O que é que posso fazer? Os alimentos da
alma não bastam aos nossos literatos. Costumamos distribuir os alimentos diariamente, das quatorze
às dezoito horas, exceto aos domingos.
- O que é preciso fazer para conseguir esse auxilio alimentar?
- Ser escritor e freqüentar, ou não, a livraria. Mandamos aos interessados prospectos redigidos por
Gisèle, que informam nossos intelectuais da chegada dos pacotes. Veja só as assinaturas dos
destinatários.
François Tavemier leu: "Jean-Paul Sartre: um quilo de café,
um salaminho, uma lata de óleo, um quilo de frutas secas; Jean Cocteau: três quilos de café, um pão
doce, um quilo de frutas secas; Henri Michaux: um quilo de café, meio quilo de chá, dez tabletes de
chocolate, três latas de leite condensado, três latas suplementares de carne, um presunto, três pães
doces; André Breton: um quilo de café, dois salaminhos, uma lata de óleo, um quilo de frutas secas,
um pão doce; Albert Camus: dois quilos de café, duas bandolas, uma lata de óleo, um pão doce."
Sem conseguir disfarçar sua emoção, François colocou no balcão repleto de papéis os pedidos
assinados, onde se via impressos um barrete frígio e duas mãos se apertando.
Adrienne Monnier notou sua emoção e disse com um sorriso amigável:
- Pois é, senhor, não passamos de simples criaturas humanas. Quando quiser voltar, será sempre
bem-vindo.
Depois de penetrar nos meios peronistas e da inteligênsia argentina, Tavernier ocupava um posto
ideal para ajudar Sarah e os amigos em sua missão. Mas seria necessário casar-se com sua linda
amiga judia? Suas dúvidas aumentavam e no entanto... Para saciar aquela sede de vingança, seria
preciso sacrificar seu amor por Léa?
A fim de se distrair, aceitou o convite de Laure para uma apresentação de jazz no Lorientais, onde
tocavam Claude Lutter, um clarinetista de cabelo cortado à escovinha e uma expressão de lavrador
canadense com sua camisa xadrez, e um trompetista alto e magro, Boris Vian.

Capítulo 11

20 de julho de 1946
Querida,
Estou em Paris já faz alguns dias. O telefone continua falhando neste país e as operadoras não têm
a menor pena dos amantes. Só me resta a caneta para lhe dizer que estou morrendo de saudade e
chegarei no decorrer da próxima semana com Laure, que encontrei anteontem. Sua irmã pretende
usar-me para evitar uma permanência muito demorada em Montilakc... Só o cabelo dela se parece
com o seu, o que é uma pena!
Revi Sarah. Entendi sua reação quando ela me contou o seu suplício; mesmo assim, nem me contou
tudo. Você não deve ficar assim; já sofreu bastante para conseguir entendê-la. Vocês duas se
parecem muito em vários aspectos. A diferença é que você não chegou ao fluido do inferno...
Precisa saber que Sarah jamais voltará a ser uma mulher normal. O que quer que façamos, jamais
conseguiremos apagar o que foi feito; mas podemos ajudá-la. Peço-lhe a permissão de ir a
Montillac junto com ela, é o que ela mais deseja. Se recusar vou entender Mas conheço você muito
bem: é generosa e gosta de Sarah. Daqui a pouco, embarco para Londres, onde ficarei dois dias.
Telefone a Laure ou mande um telegrama com sua resposta. Não vejo a hora de encontrá-la,
abraçá-la, com seus olhos fechando-se de prazer
Minha menina querida eu gostaria que você tivesse uma única
certeza: eu a amo. Nunca se esqueça disso. O futuro pode nos trazer surpresas, não corresponder a
tudo com que sonhamos. Entretanto, sei que você é a única, ouviu bem? A UNICA, junto de quem
desejo viver, cercado, e por que não, de filhos que se pareçam com você.
François.
O coração de Léa batera mais forte ao reconhecer a letra do amante. Deixando com Françoise e
Ruth a tarefa de tomar conta da geléia que cozinhava desde cedo, ela correu e se trancou no
escritório do pai para ler sua carta sossegada.
A única! ... era a única com quem ele desejava viver, ter filhos!... Também gostaria de viver com ele,
pensou Léa. Um sentimento de felicidade, de paz, a dominou: era a primeira vez que admitia tal
sensação. Riu às gargalhadas. Por que esperara tanto tempo para confessá-lo?... A resposta chegou
de imediato: "Tenho medo de sofrer por sua causa!" A este pensamento, seu corpo se encharcou de
suor. "Devo estar completamente louca, ficando transtornada dessa maneira só porque o homem
que amo - oh, sim, como ela o amava, como era gostoso aceitar o fato - me declara o seu amor! Riu
novamente, mas continuava tensa e preocupada. Léa releu a carta. Já que François lhe pedia,
receberia Sarah, seria afetuosa e carinhosa. Os dois juntos ajudariam-na a superar sua dor, fariam
com que desistisse de suas idéias de vingança. Ligar o quanto antes para Laure e avisar que
Montillac esperava pelos três. Mas por que ele escrevia "O futuro pode nos trazer surpresas, não
corresponder a tudo com o que sonhamos..."? Havia uma espécie de ameaça naquelas palavras. Já
que eles se amavam, o futuro só podia ser maravilhoso... "O futuro pode nos trazer surpresas..."
Que surpresas?.., O que significava aquela afirmação?... Léa levou as mãos às têmporas para tentar
deter a pressão em sua cabeça... fechou os olhos... abriu-os em seguida... Por trás das pálpebras,
durante um segundo, vira Sarah entregando-lhe o filho morto... Sarah, que ria e a fitava com uma
expressão terrível...
Léa refugiou-se no velho sofá do pai e, toda encolhida, come-
çou a tremer. O cheiro do suor frio que emanava do seu corpo fremente causava-lhe uma violenta
náusea. "Preciso me acalmar... preciso... Mamãe... Camilie... estou com medo, se soubessem como
estou com medo..." A lembrança suave das mãos da mãe e de Caniille em sua testa, quando os
pesadelos atormentavam-lhe as noites, acabou por tranqüilizá-la. Levantou-se com dificuldade, a
boca amarga. No espelho do banheiro, viu seu rosto transtornado e lívido como o de um afogado.
Enfurecida, tirou toda a roupa e tomou uma chuveirada. Ah, limpar-se de todas aquelas lembranças,
todas as imagens, pensar apenas na alegria de estar viva, possuir um corpo feito só para o prazer!...
Prazer esse que François sabia lhe proporcionar. Encontrar finalmente a felicidade de se sentirem
unidos em uma única pessoa... O futuro com ele só traria boas surpresas, era isso que François
quisera expressar. Juntos, devolveriam a Sarah a vontade de viver; saberiam cercá-la com sua
imensa ternura; o amor entre eles só poderia beneficiar a todos. Todos os seres amados, Léa
desejava que fossem felizes próximos dela. A guerra terminara, o tempo de paz e felicidade voltara.
Saiu do chuveiro cantando, enxugou-se, olhou-se jovialmente no grande espelho do banheiro,
perfumou-se e vestiu uma roupa leve de algodão.
Risos e gritos alegres vindos do terraço fizeram-na descer a alameda correndo; ainda não era a hora
do aperitivo da noite, e sim o que precedia o almoço. A sombra das glicínias, Alain Lebrun abria
uma garrafa de champanha em companhia de Estelle, Lisa, Françoise e Ruth, ainda com seus
aventais de cozinheira.
- O que aconteceu? O que estão festejando sem mim?
- Charles e Pierre foram chamá-la - disse Françoise com um sorriso irônico.
- Não encontrei ninguém. Mas será que podem me contar o que está acontecendo?
- Françoise... - começou Lisa, abafando o riso com a mão.
- Françoise o quê?
- ...acaba de nos anunciar - continuou Estelle, detendo-se para enxugar as lágrimas que molhavam
seu rosto.
- Está chorando! Aconteceu alguma coisa?
- Não... isto é, sim, Srta. Léa - disse Alain, tirando a rolha da garrafa.
- Vocês poderiam me contar... Oh, acho que entendi!... você
e Françoise?... É isso mesmo?... Oh, irmãzinha, como estou feliz!
- exclamou Léa ao abraçar Françoise. - Meus parabéns, Alain
- acrescentou, abraçando o rapaz.
- Obrigado, senhorita.
- Chega de senhorita. Agora não sou sua cunhada?
- Obrigado, Léa.
Sorridente, Léa pegou a taça de champanha que ele lhe entregou.
- A gente não encontrou... Ah, você está aí!... Eu e Pierre procuramos por toda parte - disse Charles
sem fôlego.
- Venham meninos, vamos brindar todos juntos.
- Alain, só uma gotinha, eles ainda são muito pequenos - disse Françoise.
Após servir a todos, Alain Lebrun ergueu sua taça.
- Faço um brinde ao mais belo dia de toda minha vida. À mulher que amo, a Montillac e a todos
aqueles que aqui moram. À saúde de todos vocês.
- Como seus pais ficariam felizes! - disse Ruth, chorando.
- Vamos, minha querida Ruth, hoje não é um dia de tristeza
- disse Estelie assoando-se ruidosamente.
- Não, não é - soluçou Lisa.
Aquelas três eram tão cômicas, com o lenço na mão, que Françoise e Alain riram às gargalhadas.
- Isso mesmo, podem zombar da gente - resmungou Ruth.
Ao anoitecer, todos brindaram em homenagem aos noivos, em companhia de Jean Lefèvre e do
padre Henri.
- E quando será sua vez? - perguntou sutilmente Jean a Léa.
- Mais cedo do que imagina - respondeu ela, despreocupada.
Ao perceber sua gafe, Léa arrependeu-se do tom de sua resposta
Como reparar aquele erro? Felizmente, Françoise mudou de assunto.
- Padre, Alain e eu ficaríamos muito contentes se aceitasse celebrar nosso casamento.
- Com o maior prazer.
- Vocês vão esperar o fim da vindima para as núpcias? - perguntou Jean.
- Não - respondeu Françoise. - Alain e eu fazemos questão de casar o quanto antes, assim que os
papéis ficarem prontos.
- Não teremos tempo de preparar tudo, mandar fazer o vestido de noiva, entregar os convites,
organizar a festa...
- Não haverá festa, Léa - comentou Françoise. - Quero me casar na mais estrita intimidade.
-Mas...
- Será que não entende por quê?
Claro, entendia perfeitamente. Ela não passava de uma grande tola!
- François me avisou de sua chegada com Laure e uma amiga. Quem sabe possam ficar até o
casamento? - disse Léa.
- Que boa notícia - comentou Lisa. - Gosto muito do Sr. Tavernier.
Mas a notícia não agradou a Jean Lefèvre, que olhou de relance para Léa.
- Se aceitarem, você e Jean serão meus padrinhos. Alain escolheu um tio e um amigo.
Durante o resto da semana, até a chegada de Laure e dos convidados de Léa, uma agitação que
desaparecera há muito tempo voltou a reinar em Montillac: idas e vindas pela casa, troca de móveis,
compras diversas devido à instalação do novo casal. Resolveram ocupar o antigo quarto do Sr. e da
Sra. Delmas, o mais bonito da casa, pois formava uma verdadeira suíte com saleta e banheiro. As
obras recentes tornaram aqueles aposentos ainda mais agradáveis O quarto de Pierre ficaria ao lado
da mãe.
Com a notícia desse casamento, Lisa e Ruth rejuvenesceram; conversavam a respeito de enxoval,
prataria, roupa, louça. A costureira de Langon veio tirar as medidas das senhoras de Montillac para
preparar os vestidos. As várias escolhas provocaram animadas discussões. Françoise optou por um
simples tailleur amarelo-claro, Léa por um vestido vermelho-escuro, Lisa por uma roupa de voile
estampado com um casaquinho, Estelle por um conjunto cinza-pérola; Ruth disse não precisar de
nada. Tendo em vista o reduzido prazo, todos concordaram com a costureira em fazer apenas uma
prova. Léa precisou de toda sua persuasão e de muito afeto para fazer com que a Sra. Larcher
aceitasse essa decisão, pois ela queria experimentar seu traje umas três vezes. Ficou decidido que as
senhoras iriam a Langon para ganhar tempo. Agora, tinham de escolher chapéus, sapatos, bolsas e
luvas. Com uma amostra do tecido de cada vestido, partiram para Bordeaux na véspera da chegada
de Laure.
Esgotadas com as compras, sentaram-se num salão de chá em frente ao teatro, cercadas de
embrulhos. Numa mesa vizinha, avistaram sua prima Corine Delmas, que acabara de se casar com
um rico proprietário de Pauillac, juntamente com duas amigas. As três jovens começaram a falar
baixinho ao reconhecer Léa e Françoise. Esta enrubesceu e baixou a cabeça, enquanto Léa olhava
para elas descaradamente.
- Que ousadia! - exclamou uma das amigas de Corinne em voz alta.
- Como ousam sair à rua assim? - disse a outra.
- Vamos embora - disse Françoise, extremamente pálida.
- Nada disso - respondeu Léa, o olhar enfurecido.
- Meninas, nada de escândalo - sussurrou Esteile.
Léa levantou-se e dirigiu-se à mesa das três jovens.
- Bom dia, Corinne. Parece que o casamento lhe fez muito bem, você parece ótima. A última vez em
que nos encontramos, estava bem mais magra. Bom dia, senhoras.
- Bom dia.
- Françoise se casa daqui a três semanas. É claro que você e seu marido são nossos convidados.
- Parabéns - balbuciou Corinne. - Não sei se poderemos comparecer.
- Tente, querida, ficaríamos muito contentes com sua presença. Até logo, ainda temos muito o que
fazer. Até breve, vamos mandar um convite.
- Até logo.
Satisfeita com sua atuação, Léa retornou ao seu lugar.
- Convidei Corinne para o casamento.
- Por que fez isso?
- Fique tranqüila, ela não irá; mas estou contente por ter criado uma situação pouco agradável para
aquela bestinha.
- Foi para mim que você criou uma situação pouco agradável
- disse Françoise com tristeza.
- Perdão, irmãzinha, não foi essa minha intenção.
- Garçom, a conta, por favor - pediu Estelle.
Após uma chegada tão alegre e animada, retornaram caladas, cada uma delas perdida em seus
pensamentos.
Ao anoitecer do dia seguinte, François Tavernier e Laure chegaram em companhia de Sarah
Mulstein e Daniel Zederman. Desde o início da tarde, Léa esperava por eles, na entrada de
Montillac, à beira da estrada... Quando o carro entrou, apressada como estava, quase foi atropelada.
O chofer conseguiu evitar o acidente e saiu furioso do veículo:
- Senhorita, que loucura é essa? Por pouco não se acidentou.
O rosto de Léa não disfarçou sua decepção.
- Mas nãoé...
- Estou aqui.
- Oh, François! Achei que não tivesse vindo!... O que foi? Está machucado?
- Por causa da sua corrida e da brusca freada de Daniel, bati com a cabeça no pára-brisa.
- Oh, sinto muito - disse Léa, rindo às gargalhadas.
François olhou furioso para ela.
- Então é essa sua reação?
Léa riu ainda mais, no que foi imitada por Laure e Daniel, e em seguida por Sarah, que acabavam
de saltar do carro. Tavernier assumiu uma expressão ameaçadora que só fez aumentar a comicidade da cena. Ele também acabou contagiado por aquele acesso de riso.
Apertou Léa em seus
braços.
- Sua chatinha, sempre no meu caminho.
Sarah aproximou-se do casal, sorridente sob o turbante preto.
- Léa, muito obrigada, é a primeira vez que sou tão descontraída depois da guerra. Quero te dar um
beijo.
As duas amigas se abraçaram sem tentarem dissimular a emoção.
- Entendo agora sua preferência - murmurou Daniel para François. - Sua amiga é lindíssima.
- Cuidado, não se apaixone por ela, ou vai ter que se entender comigo.
- Por uma mulher como essa, eu seria capaz de enfrentar todo um exército.
O tom dessas palavras, os olhares enlevados que Daniel lançava a Léa foram profundamente
desagradáveis para François. "Só me faltava agora sentir ciúmes", pensou.
- Querida, meu primo Daniel Zederman também veio. Espero que você não fique aborrecida comigo.
- Claro que não, a casa é muito grande.
Laure saiu correndo em direção à propriedade. Radiante, de braço dado com Sarah e François, Léa
caminhava até a casa.
- Estou feliz por conhecer finalmente esse famoso Montillac, a respeito do qual você falava tanto.
Entendo por que ama tanto o lugar, tudo é tão harmonioso, tão evidente e natural, apesar de uma
certa reserva. Trata-se de uma moradia que não deve se entregar a qualquer pessoa - comentou
Sarah.
Léa fitou-a atentamente: como uma estranha pudera apreender de forma tão correta o espírito
daquele local?
Passaram frente à fachada posterior, ao longo dos galpões de madeira que abrigavam as carroças,
enquanto o sol declinava em meio a chamas vermelhas apocalípticas, dando um aspecto irreal
às construções de Beilevue que pareciam fundir-se na fornalha. Para Léa, o pôr-do-sol sempre
representara um momento de profunda intensidade. Quando menina, mal sabendo andar, costumava
fugir para o lado oeste da casa para ver o astro brilhante "ir para a cama". Cada vez que ele
desaparecia atrás da colina de Verdelais, Léa experimentava um aperto no coração e sentia-se
vagamente inquieta. Aquela sensação persistia até hoje. Agora, entre o homem que ela tanto amava
e a amiga reencontrada, diante de um céu atormentado de púrpura e negro e de um sol brilhante
como uma bola de fogo, a angústia manifestava-se ainda mais intensa. Seus companheiros
detiveram-se, calados diante daquele instante de beleza que absolvia, por um breve instante, toda a
fealdade da face da terra. Por que essa repentina ansiedade?... Oh, tomara que o sol não se ponha,
que a noite com seus pesadelos sombrios nunca chegue!... Apoiada no amante, Léa estremeceu
longamente. Sentir um corpo amado vibrando contra o seu, compartilhar com ele a emoção do
momento, só isso era verdade, pensou Tavernier estreitando seu abraço. Léa ergueu os olhos,
resplandecente, irreal, aureolada pelos raios do sol poente. Suas sombras enlaçadas projetavam-se,
quase palpáveis, sobre o muro onde floresciam perfumadas rosas brancas. Seu desejo crescia em
meio ao odor das rosas, tão violento que experimentaram um brusco gozo que os deixou trêmulos,
transtornados por aquele reconhecimento de seus corpos. Sarah e Daniel olhavam para eles,
entregues aos mais variados sentimentos; aqueles dois haviam sido feitos um para completar o outro.
"Será que tenho esse direito?", pensava Sarah. "Desejo que um dia essa mulher me ame tanto
quanto ela o ama", pensava Daniel.
Sempre abraçados, Léa e François caminharam lentamente até a entrada da frente do casarão. Ali,
chegaram ao salão onde os esperavam as senhoritas de Montpleynet, Françoise e Laure,
conversando animadamente, padre Henri, Jean Lefèvre e Alain Lebrun, que fumava pensativo.
Charles atirou-se nos braços de seu amigo François.
- Oi, rapazinho, você agora é um homem de verdade - disse Tavernier, colocando o menino no chão.
Quanto a Pierre, pouco acostumado com tanta gente, escondeu- se atrás da mãe.
Léa fez as apresentações. Após tomarem um copo de um dos melhores vinhos de Montillac,
instalaram-se à mesa.
A refeição foi alegre e animada. Ruth cozinhara os melhores pratos e recebeu os parabéns de
Tavernier. Sarah, sentada entre padre Henri e Jean Lef'evre, parecia sorridente e descontraída,
ouvindo atentamente todos os seus vizinhos; Alain Lebrun não tirava os olhos de Françoise, Daniel e
Laure conversavam com entusiasmo, Estelie e Lisa vigiavam as crianças. Após o jantar, foram
todos para o terraço.
Agora, a noite chegara, quente e estrelada. Enquanto fumavam, encostados no parapeito,
contemplavam a sombria paisagem iluminada por raras luzes na direção de Langon. Um trem
passou pela ponte metálica tal qual uma serpente luminosa. Léa avistou uma estrela cadente e fez
um desejo.
Cansada da viagem, Sarah pediu licença para se recolher. Subiram de volta para o casarão. Jean e
padre Henri despediram-se.
- Laure, você fica em seu quarto, não é? Deixei o dos fundos para Sarah e o menor, ao lado do seu,
para Daniel - disse Léa.
- Boa noite, querida - disse Sarah abraçando a amiga.
- Boa noite, senhorita.
- Boa noite, Daniel, meu nome é Léa. Até amanhã.
Enfim sós!
- Vem, a noite está linda demais para dormir. Quero caminhar a seu lado.
Enlaçados, seguiram pelo caminho que ladeava os vinhedos, cuja terra era muito suave sob seus
passos. Viraram à esquerda, em direção aos salgueiros.
- Reconheço este lugar.
- É a Gerbette, estivemos aqui na noite em que meu pai foi enterrado.
- Agora me lembro - disse François, atraindo-a para junto de si.
- Venha - disse Léa, afastando-se.
Como na primeira vez, ele precisou empurrar a porta com o ombro. Como na primeira vez, ela disse:
- Não é muito bonito. Em minhas lembranças, parecia muito mais lindo.
E, como na primeira vez, ele cobriu o chão de feno com o paletó.
Amanhecia quando regressaram a Montillac, exaustos e felizes. Assim que se deitaram na estreita
cama onde Léa costumava dormir, mergulharam ambos num sono profundo.

Capítulo 12

Léa tinha tantas coisas e tantos lugares a mostrar aos amigos que a semana transcorreu como num
sonho. Laure não saía de perto de Daniel, devorando-o com seus olhares; ele a julgava encantadora,
apesar de estar sempre em sua companhia, completamente diferente da irmã que atraía toda sua
atenção e na frente de quem qualquer outra mulher perdia brilho - exceto Sarah, mas com Sarah era
diferente. Sarah representava seu duplo feminino. Haviam passado pelos mesmos tormentos, as
mesmas angústias, e o mesmo ódio os mantivera vivos; do fundo do inferno, prestaram o juramento
de continuar para testemunhar, para se vingar. Sentiam uma certa vergonha do que haviam feito
para sobreviver, mas até essa vergonha gritava por vingança. Sabiam tudo um do outro e se
reconheceram de imediato como almas gêmeas. Ele tinha dezoito anos, ela quase trinta, porém
sentiam-se mais velhos do que alguém com noventa anos. Françoise pensava que conseguiria amar
Alain, Léa e François mostravam-se tão apaixonados que aquele sentimento tornava-se incômodo.
Incômodo e doloroso para Jean. Ele entendia a escolha da amiga: Tavernier representava a
aventura, Paris; com ele, era a vida calma e burguesa, a província, e, no entanto, estava convicto de
que uma grande parte de Léa era feita exatamente para uma vida sossegada nesta região que ela
tanto amava.
No terraço, andando de um lado para o outro, padre Henri e Sarah mantinham uma discussão das
mais animadas.
- ...Os verdadeiros combatentes têm medo de se tornar carrascos
Desprezam com a mesma aversão aquele que se deixa levar pelo furor guerreiro até tornar-se um
matador...
- Tem razão, padre, não somos verdadeiros combatentes, e por que seríamos, diante dos que foram,
eles sim, os carrascos? Não estamos sendo levados por nenhum furor guerreiro, e sim por vingança.
E o senhor ainda fala de bondade, amor, justiça, perdão!... Como é possível, para nós, entender
essas palavras?
- Mas é o que devem fazer. Cabe a todos vocês uma imensa responsabilidade: testemunhar. Revelar
ao mundo inteiro todas as loucuras das quais o ser humano é capaz; assim, ao tomar conhecimento
de tanto horror, ele poderá rejeitá-las...
- Depois de assistir, assim como eu, a tudo que foi cometido, como é possível que o senhor ainda os
considere seres humanos? Continua acreditando em seu Deus?...
- Sim, mais do que nunca acredito Nele. Sei com toda certeza que o Eterno é Amor, que Ele está
presente, ativo, e não-culpado de toda essa dor e de tanto mal. Pode parecer que os gritos de dor
que ainda ecoam neguem Sua existência. No entanto, para continuar acreditando em Deus, não
basta ser simplesmente um crente, e sim um crente apesar de tudo, ou seja, de olhos abertos diante
das realidades que dizem respeito a todos os homens, ferindo-os e deixando-os sem resposta; mas
certos de que o Eterno é Amor apesar de tudo. Perdoar é um dever...
- Continue falando para si mesmo, cristão, mas eu sou judia! Mesmo que eu quisesse perdoar, não
poderia, não teria esse direito, com tantas mortes, tantos sofrimentos que clamam por justiça...
- Você mesma usou a palavra certa. Deixe agir a justiça, ela tem seus direitos: mais do que direitos,
deveres categóricos. Ela precisa castigar, mas a justiça nada tem a ver com ódio e vingança. Nem o
ódio nem a vingança podem produzir; são estéreis e destruidores. É necessário que a justiça cumpra
seu papel, mas nosso coração não tem o direito de se perverter. Afaste-se do contágio que faz com
que, em certas ocasiões, após o seu triunfo, aquele que combateu o mal acabe contaminado por esse
mesmo mal que ele quis destruir.
- Tarde demais, já estou contaminada.
- Não posso acreditar. Pelo menos, não leve junto seu jovem primo, não passa de uma criança...
- Uma criança! Quer que esta criança lhe conte tudo o que viu, naquele inferno, ou melhor, o que ele
mesmo fez? A criança a quem se referiu não existe mais, morreu em Mauthausen, Buchenwald,
Auschwitz, Birkenau, Dachau, a escolha é sua. Essa criança tem ódio em seu coração e não foi eu
quem a contagiou.
- No inferno dos campos, rezei por nossos carrascos. De fato, nosso orgulho, na qualidade de
franceses, consiste em pertencer a um povo que não tolera, não admite, ao preço da própria vida,
que certos homens sejam tratados como nós fomos; mas é pela justiça, exclusivamente pela justiça,
que temos o direito de nos vingar, pois apesar de tudo trata-se de irmãos nossos, pertencem a nós
pelo fato de serem humanos.
- Pare, por favor, não tem o direito de comparar vítimas e carrascos. Assim, só faz acrescentar uma
dor insuportável aos meus sofrimentos.
- Perdoe-me, mas como padre não posso me furtar ao dever de lhe dizer que se encontra no
caminho errado. Ao se tornarem vencedores, de que maneira as vítimas de ontem não se
transformarão em poderosos carrascos, se a lei não lhes for repetida? "Ajude primeiramente quem
mais sofre", o que corresponde exatamente a "Ama teu próximo como a ti mesmo"?
- Guarde suas boas palavras. Errei em confiarno senhor. Mas o que poderia esperar de um padre
dessa religião que tanto mal nos tem causado?
Padre Henri baixou a cabeça, com uma expressão de dor profunda.
- Sei... A intolerância da Igreja Católica para com os judeus tem muito a ver com o extermínio do
seu povo. Mas há muitos de nós, no seio da Igreja, pedindo perdão pelo mal que lhes causamos.
- Perdão... perdão... sempre a mesma palavra! Isso diz respeito a vocês, mas conosco é diferente.
- Pobre filha!...
- Não sou sua filha!... Oh, me desculpe!
Sarah, com um grande gesto de revolta, empurrou Léa, que deixou cair a bandeja e os copos.
- Será que não pode tomar cuidado? - comentou Léa, aborrecida.
- Sinto muito, mas o padre...
- Ah, entendi, foi mais uma de suas discussões. Não compreendo, padre, por que teima em lhe
mostrar o caminho correto. Eu já desisti há muito tempo.
Padre Henri nada respondeu, ocupado em ajudar Sarah, que juntava os cacos de vidro.
Léa experimentava o maior afeto pelo padre Henri. Ele não possuía a estatura nem a eloqüência de
seu tio Adrien, mas havia entre os dois religiosos um sincero amor pelos homens e uma imensa
compreensão de seus sofrimentos. Entretanto, o capuchinho revelava uma ingenuidade que não
existia no dominicano, algo que subsistira da infância. O amigo de Jean Lefèvre tinha uma confiança
ilimitada em seu Deus e em seu amor por todas as criaturas. Das noites passadas em Montillac,
passeando pelos vinhedos ou no terraço, ou sentada no escritório do pai, Léa guardava a lembrança
de longas conversas sobre os mistérios do amor divino e o papel do homem na terra.
"A única e verdadeira glória para Cristo é a de ser reconhecido pelo que ele é, ou seja, Amor
infinito. Cabe a nós corresponder ou não! O inferno não são os outros, somos nós mesmos, que nos
recusamos a amar. Olhar-se no espelho da eternidade e enxergar-se sem falsidade! E a salvação,
ao se rejeitar o ilusório, consiste nesse encontro com o essencial. Não devemos ter medo de viver
com os olhos abertos, sem esconder absolutamente nada: nem os horrores do mal nem os
encantamentos do belo; não devemos ter medo de ir para onde nos levem nossos passos e nossos
dias. O mal, aos meus olhos, consiste em grande parte no fato de acreditarmos orgulhosamente que
somos auto-suficientes. É o sentimento de nossa autosuficiênciae o desprezo de outrem levados ao
extremo. O escândalo da vida desregrada, esbanjada, da indiferença para com os anciões e os
pobres, famintos, oprimidos, desempregados, carentes de toda espécie... Tudo isso é
responsabilidade nossa, problema nosso, não
de Deus. O caminho da vida e o da paz passam para os indivíduos e para os povos, pelo
enriquecimento do diálogo e a aceitação da partilha, seja qual for o seu nome. As loucuras
sangrentas às quais temos presenciado não representam a exacerbação do desespero diante de
qualquer recusa e rejeição? Minha angústia consiste na convicção, na intuição de que a
humanidade caminha inevitavelmente para sua perda se não voltar a se questionar, se não
encontrar com a maior urgência o sentido do Eterno e seu corolário: a exigência do Amor com A
maiúsculo. A única opção viável é o nascimento de um novo homem ou o risco de ver
desaparecer da história universal a humanidade enlouquecida. O novo homem será aquele que
perceber que é impossível ser completamente feliz sem os outros, e menos ainda contra os outros.
Aquele que estiver convicto de que, se for preciso continuar a luta para que reine a liberdade nos
lugares e nos corações onde ela ainda não existe, é preciso igualmente lembrar-se do objetivo
fundamental dessa liberdade, seu sentido verdadeiro que ultrapassa a liberdade pela liberdade.
Caso contrário, ao invés de nos libertarmos, cairemos novamente sob a opressão (da ideologia,
da intolerância, do ódio) ou na escravidão (do poder, do dinheiro, do egoísmo exacerbado). Os
caminhos da vida, da paz, passam, para todos os indivíduos e para todos os povos, pelo
enriquecimento do diálogo e a aceitação da partilha, seja qual for o seu nome."
Como ela desejava compartilhar de sua fé, acreditar no homem novo, livre e generoso, acreditar
em seu desejo de paz, de amor pelo próximo. Não havia nada à sua volta que o anunciasse e as
palavras de Sarah e Daniel rebatiam as do homem de Deus. Com um aperto no coração,
lembrou-se do seu tio Adrien. Mais do que nunca, naquele instante, sentia sua falta. Embora ele
tivesse perdido a fé, Léa estava certa de que ele saberia encontrar os termos de esperança para
acalmar suas angústias, suas indagações a respeito da vingança e da justiça. Em sua mente
conturbada, chocavam-se as palavras de amor do padre Henri e os gritos de ódio de Sarah.
Quem estava com a razão? Ao deixar padre Henri, Léa sentia o desejo de ajudar na edificação
de um mundo novo; mas, após uma discussão com Sarah, seu coração transbordava de violentos
rancores e da vontade
de eliminar todos aqueles que causaram tantos sofrimentos à sua amiga.
A chegada de Françoise e Laure tirou Léa de seus pensamentos tão confusos.
- Mais copos quebrados! Se continuar assim, não teremos mais nenhum em pouquíssimo tempo -
comentou Françoise num tom de censura.
- Foi culpa minha - disse Sarah. - Empurrei Léa com a bandeja. Vou buscar mais copos.
- Vou com você - disse padre Henri.
Pela primeira vez depois do reencontro, as três irmãs ficaram a sós. Laure segurou as outras duas
pelo braço.
- François precisa regressar a Paris daqui a dois dias; não sei como fazer para avisar nossas tias de
que vou junto. Podem me ajudar?
- Por que não fica até meu casamento? Faltam só três semanas.
- Voltarei. Prometi aos meus amigos viajar com eles para o Sul.
- Algo me diz que se Daniel ficasse você também ficaria - disse Françoise com um sorriso malicioso.
Laure enrubesceu e largou o braço da irmã.
- Por que diz isso?
- Todo mundo percebeu. Você não tira os olhos do rapaz e não o larga um segundo; estou surpresa
por não estarem juntos agora. Assim que ele se afasta, você sai correndo atrás, concorda com tudo
o que diz, ri às gargalhadas quando conta uma piada, você...
- Oh, chega!... por que não se preocupa com seu casamento em vez de tomar conta de Daniel e de
mim?
- Estou esperando pelo seu.
Laure corou mais uma vez e saiu correndo até a casa. Françoise e Léa riram ao vê-la saindo às
pressas.
- Coitada de nossa irmãzinha, eu não devia provocá-la assim
- disse Françoise, encostada no parapeito.
- Deixe, não faz mal. Ela se apaixona pelo primeiro homem de olhos bonitos que encontra. Lembra-
se de Maurice Fiaux?
- Você não pode comparar aquele criminoso com o primo de Sarah!
- É claro que não comparei. Só disse que ela imagina amar Daniel, assim como imaginou amar
Fiaux.
- Acho que você está enganada, parece-me que desta vez é sério. O problema é ele, que não gosta
dela.
- Mas Daniel é muito jovem.
- Você devia saber que o amor não tem idade. Ele não a ama, ama outra mulher.
- Quem?
- Não se faça de santinha, sabe muito bem de quem estou falando; você, é claro.
- E você acha que olhei para a cara dele... Esqueceu-se da existência de François.
- Eu não falei que você o amava, mas que ele estava apaixonado.
- Vai passar.
- Duvido muito.
Essa discussão foi interrompida pelo regresso de Sarah e do padre Henri, trazendo copos e garrafas.
Daniel estava com eles, segurando com todo o cuidado uma cesta de pêssegos.
- O que houve com Laure? Está com uma cara!
- Muito bem, Sr. Tavernier, em breve vamos celebrar o casamento de Françoise; e o seu com Léa,
quando vai ser? - perguntou Estelie sentando-se perto de François, que fumava um charuto no pátio,
à espera do cafezinho.
- Logo após minha viagem à Argentina.
- Podiam casar-se antes e partir juntos.
- Impossível. A missão confiada pelo governo exige inúmeras viagens por todo o país, inclusive a
certos locais bastante desconfortáveis.
- Espero que não fale assim para assustar minha sobrinha.
- Claro que não, mas quero evitar que ela corra qualquer tipo de risco. A Argentina não é um país
estável. A demagogia do
governo não tem escrúpulos em se apoiar nos sindicatos, apesar de revelar a maior tolerância em
relação aos nazistas fugitivos, o que gera um clima de desconfiança muito desagradável. Confie em
mim, é melhor aguardarmos um pouco.
- Mas o bom nome da minha sobrinha!...
- Por favor, senhorita... Acredite em mim, isso também me preocupa.
Ele falou com tanta convicção que Estelie baixou a cabeça em sinal de aprovação. Tavemier
prosseguiu.
- Meu maior desejo é tornar Léa feliz, peço-lhes que acreditem nas minhas palavras. Nesse
momento, não se trata de subterfúgios da minha parte, e sim da obrigação de permanecer livre por
mais algum tempo.
- Acredito no que diz, Sr. Tavemier, mas não posso deixar de me preocupar com o futuro dessa
menina. Os anos difíceis que acabamos de atravessar marcaram-na profundamente. Receio que ela
não consiga se encontrar em nosso mundo.
- Por que diz isso?
- Essa melancolia que, subitamente, faz com que Léa se afaste de todos, a tristeza alternada com
uma excessiva exuberância.
- Muitas moças da idade dela costumam ter esse tipo de comportamento.
- Sei, mas Léa perdeu aquela alegria de viver que fazia dela uma jovem tão atraente.
- Será que isto não se deve às preocupações ligadas à administração da propriedade?
- Não é só isso. Percebo nela uma profunda angústia, principalmente após o seu regresso.
François, conhecendo perfeitamente a causa daquela angústia, censurou-se por não poder atenuá-la.
Quanto mais se aproximava a data de sua partida, mais ele temia a obrigação de relatar a Léa o
delirante projeto de casamento com Sarah. Como entenderia ela essa necessidade? François exigira
o silêncio de Sarah; agora, porém, chegava a lamentar o seu pedido.
Léa e Sarah haviam reencontrado a antiga amizade. As duas passavam horas conversando. Léa
estava convicta de que, graças a ela, Sarah deixara crescer o cabelo. Na verdade, ela só agira
assim devido aos argumentos de seu primo Samuel; uma fina penugem castanha cobria seu crânio.
De brincadeira, Léa costumava passar a mão, comentando que jamais tocara em nada tão suave.
Jamais, em todas as suas conversas, elas voltaram a falar dos sofrimentos de Sarah durante a
deportação; entretanto, a idéia de vingança avançava um pouco mais a cada dia.
Na véspera da partida, Laure anunciou às tias que regressava a Paris. Diante de sua
determinação, Estelie de Montpleynet resignou-se. Laure prometeu voltar em três semanas para o
casamento da irmã.
A refeição que reuniu a todos foi bastante curiosa. Cada um parecia se esforçar para revelar a
alegria daquele encontro. Apenas Léa não tentava dissimular sua tristeza e nada notava dos
olhares apaixonados de Daniel, nem do ciúme de Laure; também não se preocupava com Jean, o
qual agora sabia que ela nunca o amaria e que, mesmo ausente, não poderia esquecer o amante.
No entanto, Jean percebeu em seu rival uma espécie de incerteza, um certo contido mal-estar.
Rechaçou a vaga esperança que renascia em seu coração. Se a felicidade de Léa dependia de
seu sacrifício, ele estava prestes a se afastar e deixar essa região de que tanto gostava. François e
Sarah não tinham feito comentário algum a respeito de seu projeto. Com o coração fechado,
exceto em se tratando de sua vingança, Sarah lamentava não ter falado antes: tratava-se de
ganhar tempo. Quanto a François, censurava-se por sua covardia. Estelie sentia-se
profundamente abalada, pois parecia adivinhar que esta seria uma de suas últimas refeições com
as três sobrinhas reunidas. A senhora Lefèvre lembrava-se de que o filho Raoul passara as últimas
horas de sua vida nessa casa. Padre Henri, que conversara demoradamente com cada um dos
presentes, rezava baixinho para que Deus lhes desse a força necessária para sobrepujar todos os
obstáculos. O religioso
sentia-se impotente para conseguir animar os amigos, e essa sensação causava-lhe profunda mágoa.
Léa e François não dormiram a noite inteira. Amaram-se, mas não puderam acalmar sua angústia
no gozo da relação. Ao amanhecer, François encontrou a coragem necessária para anunciar seu
casamento com Sarah. Léa ouviu tudo calada. Surpreso com sua reação, ele perguntou:
- Por que não diz nada?... Você entendeu mesmo que nada vai mudar entre nós, e depois tudo
voltará a ser como antes?... Fale, diga alguma coisa.
Nua, Léa levantou-se, acendeu um cigarro e foi até ajanela. Lá fora, uma espessa neblina não
deixava o sol aparecer. O ar estava pesado, anunciando uma tempestade. Por sua vez, François
acendeu um cigarro e aproximou-se de Léa. Os dois corpos juntaram-se. Ele nunca se sentira tão
desamparado como agora, diante daquela mulher calada cujo corpo rígido expressava toda a tristeza.
- Meu amor, quando tudo acabar, voltarei e tudo será como antes...
- Não!
- Sim, prometo...
- Cale-se, não diga nada, não minta para si próprio... Nada será como antes, não por causa desse
casamento, mas por causa do que vão fazer... Posso entender Sarah, mas você?...
- Ela precisa de mim.
- Você já me disse. Mas não justifica nada. Cabia a você demovê-la da idéia...
- Tentei.
- E você, por que se envolver nessa aventura que considera inútil, pelo que já me explicou?
- Meu amor, como posso explicar?... Sinto-me na obrigação de ajudar Sarah. O marido dela era meu
melhor amigo, eu gostava do seu pai como jamais gostei do meu. Apesar de ser completamente
louca, percebo uma verdade nessa causa. Você a considera inútil, mas é necessária para muita
gente. Particularmente, não concordo com todos os aspectos dessa vingança, entretanto
compreendo suas motivações.
- Eu também compreendo. Mas quando tudo isso vai parar? Não podemos confiar na justiça para
castigar aqueles criminosos?
- Você tem toda a razão, mas sabe perfeitamente que ela só é aplicada a um número muito reduzido
de pessoas. Sarah e seus companheiros não suportam a idéia de que grandes criminosos de guerra
possam escapar de um castigo mais do que justo.
- E cabe a eles decidir?
- Tm esse direito, mais do que quaisquer outros.
Léa virou-se e o fitou atentamente. Sentia-se mais forte pelo fato de ter conseguido falar, expressar
suas dúvidas e perceber que pensavam ambos da mesma maneira. Ela o entendia e sabia que, em
seu lugar, adotaria exatamente o mesmo comportamento. Experimentou então uma sensação de
profunda suavidade e cansaço, que tomava conta de seu corpo. Como gostaria de passar seus dias e
suas noites em companhia de François, abraçados, olhando para ele! Quanta ternura havia no sorriso
que ela lhe dirigiu!
Oh, aquele sorriso! ... Ele não se enganara, Léa correspondia exatamente às suas expectativas,
generosa e forte. Profundamente comovido, François a fitava com uma intensidade quase dolorosa.
Os olhares dos dois amantes atrelavam-se um ao outro, confiantes, tranqüilos. Nada do que pudesse
acontecer conseguiria destruir a certeza daquele amor. Tinham ambos a impressão de que seus
corpos enlaçados não tocavam mais o solo, pareciam levados por uma imensa onda que os atirava
num universo de paz e serenidade. Sem que eles deixassem de se olhar, encontraram-se deitados no
chão. Sem se moverem, seus sexos uniram-se; e então, da ponta dos cabelos à planta dos pés,
aqueles dois corpos experimentaram o mais profundo gozo. Um gozo intenso, imaterial, absoluto.
Sem outros movimentos exceto a vibração de toda a carne... Uma onda incessante levava-os, num
prazer interminável... Mergulharam numa deliciosa sonolência.
Essa sensação de intenso bem-estar não os deixou até a hora da despedida. A emoção de Sarah foi
tão violenta que ela quase
entregou os pontos, ao ouvir Léa falando baixinho em seu ouvido enquanto as duas amigas se
abraçavam:
- François me contou tudo. Tentarei não sentir ciúmes. Gosto muito de você, concordo com o plano.
Durante um longo tempo, Sarah acenou pela janela do carro.

Capítulo 13

A casa pareceu muito vazia após a partida de todos os convidados. Mas as tarefas diárias e os
preparativos do casamento preencheram o tempo e os pensamentos dos que permaneceram em
Montillac. Uma grande preocupação veio perturbar o dia-a-dia do casarão: o estado de saúde de
Esteile piorou muito após um demorado desmaio e provocou a visita do médico, que informou
Françoise e Léa da gravidade do problema. Devidamente prevenido pela velha senhorita, ele só
revelou uma parte da verdade quanto ao estado da paciente. Mas o pouco que contou já bastava
para assustá-las, embora não se mostrassem realmente alarmadas. Lisa não parecia se dar conta
da seriedade da doença que afligia a irmã; em meio a risadas, chamou-a de preguiçosa quando
soube que Esteile precisava ficar de cama por ordem médica.
Estelie pediu para conversar com padre Henri: sabia estar desenganada e pedia a Deus que a
mantivesse viva até o casamento. A partir desse dia, o monge, que se encontrava de repouso em
La Verderais na casa do amigo Jean Lef'evre, veio visitá-la todas as manhãs, após a missa. A
carinhosa presença do padre, sua elevada espiritualidade, seu profundo amor para com os
homens deram a Estelie uma nova força e a levaram de volta para Deus. Graças ao reencontro de
sua fé, ela sentia a aproximação da morte sem medo algum. Seus temores em relação à irmã
desapareceram após conversar com o tabelião e tomar as providências necessárias.
Na véspera do casamento, Laure chegou de Bordeaux de táxi, com as malas repletas de presentes
para as irmãs e as tias. Apalidez e a magreza de Esteile deixaram-na profundamente impressionada.
Como mudara em tão pouco tempo!
No dia seguinte, assim que Françoise despertou, desceu até o jardim. O tempo estava lindo. A moça,
melancólica, caminhou lentamente na direção de Believue. Dentro de algumas horas, tornar-se-ia
esposa de Alain Lebrun e todas as suas lembranças falavam de Otto. Otto, a quem tinha a sensação
de estar traindo ao se casar com outro homem. Era tarde demais para voltar atrás. Para que magoar
uma pessoa tão correta como Alain, suas tias e o pequeno Pierre, que tinha pelo futuro padrasto o
maior afeto? O campanário de Verdelais tocou: sete horas. Ela voltou para casa.
Na cozinha, em meio a gritos, Charles e Pierre tomavam o café da manhã preparado por Ruth, que
colocara um avental branco para não sujar seu traje mais bonito.
- Onde você estava? Alain procurou você por toda parte.
- Fui da uma volta. Ainda tem café?
- O bule está cheio. Vamos, meninos, as cozinheiras vão chegar logo.
- Ruth...
- O que foi?
- Você acha que estou certa?
- A velha governanta, que derramava um pouco de café na xícara, deteve-se e, franzindo as
sobrancelhas, olhou para a jovem de cujas doenças infantis havia tratado, consolando a menina
quando se sentia triste.
- É um pouco tarde para pensar nisso.
Françoise suspirou.
- Você fez a escolha certa - prosseguiu Ruth. - Pierre precisa de um pai e você, de um homem.
Lebrun é uma pessoa forte, com um coração de ouro. Vai ser muito feliz com ele, não tenho a
menor dúvida.
- Obrigada, Ruth, suas palavras me fizeram bem. Charles e Pierre já acabaram?... Vamos tomar
banho.
Mal saíram da cozinha quando Laure e Léa chegaram, despemteadas, com os olhos inchados de sono. Abraçaram Ruth, que lhes ofereceu um prato repleto de
fatias de pão com manteiga.
- Eu preferia croissants - disse Laure, bocejando.
- Pois vai ter de se contentar com pão, gracinha - respondeu Léa, esticando-se como uma gata.
- Croissants! E por que não brioches? - resmungou a governanta.
De que aquelas duas jovens achavam tanta graça?... Quanta audácia. A expressão zangada de Ruth
fazia com que aumentassem as gargalhadas.
- Vejam só quanta animação por aqui - comentou Alain ao entrar.
Devia ter encharcado a cabeça com uma garrafa de água-de- colônia; seu cabelo, ondulado por
natureza, estava cuidadosamente penteado, a camisa branca com o colarinho muito apertado
ameaçava sufocá-lo, e quanto ao terno azul-marinho, o corte apresentava vários defeitos. Ele
parecia tão desajeitado, tão arrumado, que, após uns segundos de surpresa durante os quais as
moças olharam-no espantadas, com as fatias de pão paradas no ar, as risadas recomeçaram com
maior vigor. Lisa também apareceu, com um penhoar de cetim roxo e a cabeça cheia de rolmhos.
Foi a gota d'água; as duas irmãs davam verdadeiros gritos e Ruth andava pela cozinha feito tonta.
- Calma, vocês vão acabar passando mal.
- Mas de que vocês acham tanta graça? - perguntou Lisa.
Léa levantou-se e, toda encurvada, saiu para a rua, seguida de Laure, com soluços, o rosto vermelho
e coberto de lágrimas, as mãos na barriga.
- Acho que vou fazer xixi nas calças - conseguiu dizer.
- Pare... estou com dor de tanto rir!
Sentadas no chão coberto de pedras da alameda que separava os celeiros das cocheiras, chamada
de rua quando eram pequenas, as duas irmãs se contorciam de tantas risadas. Na entrada da
cozinha, Lisa, Alain e Ruth olhavam-nas atônitos. Finalmente, quando conseguiram se acalmar,
estavam com o rosto em chamas e encharcadas de suor.
A cerimônia na basílica de Verdelais foi simples e comovente. A noiva, de tailleur amarelo-claro,
com um chapéu de palha natural enfeitado por uma grande rosa amarela, estava linda apesar de
seu ar amedrontado e sua palidez. Olhava preocupada, como se esperasse uma multidão
assustadora surgindo à sua volta. Alain, ao perceber a tensão de Françoise, segurou sua mão. Ela
sorriu em sinal de agradecimento.
Exceto os amigos mais próximos, não havia mais ninguém:
nenhum membro da família de Bordeaux, nem mesmo aquelas velhas que por nada nesse mundo
faltavam a um casamento ou a um enrro. Essas ausências significavam que o passado não fora
esquecido. Françoise já esperava por isso, já passara por inúmeras situações bastante
desagradáveis, com insultos e ofensas, após o seu regresso à propriedade do pai, e ela se
mostrou praticamente indiferente. Mas com a Sra. Lefèvre, Lisa e Ruth, a reação foi bem
diferente; as três mulheres sentiam-se humilhadas com aquele desprezo. Precisamos entender os
motivos deles, pensava o tio de Alain, Jules Testard. Laure, em seu lindo vestido de seda azul,
mostrava-se aborrecida. A seu lado, Léa sentia-se pouco à vontade com seu traje provinciano.
Não podia deixar de comparar esse casamento com o de Camilie e Laurent d'Argilat, às
vésperas da guerra. A igreja de Saint-Macaire encontrava-se lotada, a noiva de branco, as damas
de honra com vestidos coloridos. Léa, emocionada, lembrou-se de si mesma naquele dia. O
sofrimento que experimentara então ficara para trás, mas a simples recordação daquela mágoa,
vivenciada como um verdadeiro abandono, como uma traição, continuava muito sensível.
Após a refeição, as mesas e as cadeiras foram colocadas no fundo para que todos pudessem
dançar. Léa tivera essa idéia, pois fazia questão de se divertir. Trouxera de Paris uma grande
quantidade de discos e começaram a dançar. Alain e Françoise abriram o baile, Laure bailou com
o padrinho do noivo, que mal conseguia acompanhar os novos passos, e Léa com Jean Lefèvre.
Ambos dançavam calados e melancólicos. A noite quente chegara. Léa sugeriu que fossem dar
uma volta pelo terraço. Sentados num banco de ferro, fitavam o céu estrelado.
- Oh, uma estrela cadente! - exclamou Léa. - É preciso fazer um pedido. Vamos, faça um.
- Para quê? Só tenho um e sei perfeitamente que ele jamais se realizará.
Léa olhou para Jean; sabia no que pensava, mas nada podia fazer. Suavemente, pôs a mão sobre a
dele.
- Logo vai encontrar uma mulher feita para você, que te amará, amará os vinhedos e te dará uma
porção de pequenos Lefèvre.
Ele retirou a mão, irritado.
- Já encontrei essa mulher.
- Que bom! - disse Léa toda contente. - Por que não me contou?
- Não seja irônica, sabe muito bem que me refiro a você.
- Pensei...
- Que nada! Sabe perfeitamente que sempre fui apaixonado por você. Raoul também te amava; isso
era inclusive um dos seus assuntos preferidos para zombar de nós dois. Fez gato e sapato da gente,
metida como você era, e nós, como dois idiotas, obedecíamos a todos os seus pedidos...
- Éramos apenas crianças!
- Você talvez, mas conosco era diferente. Ambos desejávamos casar com você.
- Mas então um dos dois teria ficado muito infeliz!
- Claro, não era possível desposar os dois ao mesmo tempo.
A lembrança da noite que os três passaram juntos voltou à sua mente. Comovidos e embaraçados,
mantiveram-se calados. Felizmente, apareceram Laure e seu cavalheiro.
- Tinha certeza de que encontraria vocês aqui - disse ela ao se sentar perto de Jean. - Que linda noite,
uma verdadeira noite de núpcias!
Laure também se calou, contemplando o céu coalhado de estrelas antes de prosseguir.
- Você vem comigo para Paris, não vem? - perguntou aLéa.
- Vou, se tia Estelle estiver passando bem.
- Como você parte para Paris sem me contar nada?
- Ainda não tinha decidido.
- Não consegue ficar longe de Tavernier, não é?
- Você não tem nada com isso, vou aonde bem quiser.
- Parem de discutir - disse Laure. - Foi eu quem pediu a Léa para passar uns dias em Paris antes da
vindima. Ela tem todo o direito de tirar férias.
Jean levantou-se com dificuldade.
- Mas é claro que ela tem esse direito - disse ao se afastar.
- Coitado de Jean, você é muito dura com ele - comentou Laure.
- Não faço de propósito. Gosto muito dele, não tenho culpa se está apaixonado por mim.
- Você nunca lhe contou a verdade a respeito de François?
- Não, mas é do conhecimento de todos, e ele também deve estar a par da situação.
- Teria sido melhor você mesma contar.
- Que coisa irritante! Até você me vem com lição de moral! Eu não costumo me intrometer em sua
vida, não é?
- Tudo bem. Vamos mudar de assunto. Quando é que você e François vão se casar?
- Mas que mania! Tia Esteile, Françoise, Ruth e agora você só sabem falar de casamento. Eu ainda
não sei de nada, um dia desses, talvez; não estamos com pressa.
- E se você ficar grávida?
- Se isso acontecer, pensaremos no que fazer. Até você pode engravidar.
- Pare com isso, que desgraça! Eu não possuo Tavernier algum à minha disposição.
- Confio em você. Despachada como é, vai acabar encontrando um bom partido.
Laure ergueu os ombros e mudou de assunto.
- Que tal viajarmos daqui a dois dias? Já falou com tia Esteile?
- Já. Ainda há pouco e muito vagamente. - Sorriu de modo estranho e disse: - Divirta-se bastante,
minha filha. Você acha que ela está melhor?
- Parece, apesar de sua magreza; ela ficou conversando um
tempão com a Sra. Lefèvre e Lisa.
- Pois é... Mas não consigo deixar de me preocupar. Tenho a
impressão de que ela nos esconde alguma coisa.
- Se fosse tão grave assim, o médico avisaria.
- Você deve ter razão. Está bem, vamos embora dentro de
dois dias. Sinto-me aliviada em deixar Montillac por alguns dias:
nem sei por quê, mas me sinto de certa forma trancada.
- Você vai ver, vamos nos divertir muito e dançar todas as
noites.

Capítulo 14

François Tavernier aguardava as duas irmãs na estação de Austerlitz. Assim que o viu, Léa
precipitou-se em seus braços, deixando Laure tomar conta da bagagem. Quando o casal se afastou
um do outro, a cena de Laure, furiosa, arrastando as pesadas malas, provocou uma gargalhada
geral.
- Em vez de rir como dois bobos, deveriam me ajudar. Mais tarde, terão todo o tempo que quiserem
para se beijar.
François acenou para um carregador, que colocou as malas nos
ombros e os acompanhou até o carro.
- Sinto-me feliz por estar aqui - disse Léa ao passar em frente à catedral de Notre-Dame.
- Para esta noite, reservei uma mesa no Ami Louis, um velho bistrô onde se costuma comer um dos
melhores foies-gras de Paris. Durante a guerra, estive lá algumas vezes. Era um dos restaurantes
do mercado negro. Com a Libertação, o dono teve problemas, mas a comida continua excelente.
Laure, você vem conosco... convidei Daniel também.
- Com todo prazer - balbuciou Laure, corada.
Léa e François entreolharam-se, com ar de cumplicidade.
Havia uma multidão perambulando lentamente pelos cais, parecendo entorpecida pela suavidade
daquele fim de verão. Vez por outra, apareciam as primeiras folhas amareladas. Chegaram à rue
Grégoire-de-Tours.
- Não vai ficar aborrecida se eu roubar Léa a partir do primeiro dia?
- Claro que sim. Estou muito zangada, mas entendo os namorados. Quando pretende trazê-la de
volta?
- Veremos daqui a pouco. Esteja pronta às nove horas, passarei para apanhá-la. Pode deixar, vou
subir com as malas.
No carro, Léa acendeu um cigarro. Por que seu coração batia tão forte? Devia ser pelo fato de se
encontrar sozinha com ele. Fechou os olhos, sentindo um frisson por todo o corpo. Um perfume
delicioso a despertou. François colocara-lhe um buquê de rosas no colo, sob os olhares coniventes
do florista, de pé atrás da sua barraca.
- Obrigada. Para onde pretende me levar?
- Surpresa.
Entraram na rue Jacob.
- Vamos passar bem na frente da casa das minhas tias. Mas por que parou?
- Porque chegamos.
- Mas...
- Fui eu que comprei o apartamento.
- Oh, François! - disse Léa comovida, enlaçando-o.
- Está feliz?
- Que pergunta! Sinto-me louca de alegria!
Léa corria por todos os aposentos, encantada com tudo.
- Que beleza! Trata-se do mesmo lugar, e no entanto não reconheço mais nada; está tudo tão claro,
parece até maior.
- É natural, ainda não foi totalmente mobiliado. Conto com você para concluir a arrumação.
- Com todo o prazer, será muito divertido.
- Já viu seu quarto?
- Não sei qual é.
- Venha comigo.
Ele abriu uma porta.
- Oh!...
Os últimos raios de sol iluminavam o quarto dourado e branco, com uma mobilia lindíssima estilo
Charles X, de macieira clara. Um tapete com rosas imensas cobria quase todo o assoalho. A cama
de casal tinha uma brancura imaculada.
- Como você conseguiu? Sempre desejei um quarto assim!
- disse Léa, atirando-se na cama.
- Foi muito fácil, conheço bem o seu gosto.
Foi se juntar a Léa e, sem sequer se despir, deitou-se sobre ela.
Quando chegaram ao Ami Louis, Daniel Zederman já se encontrava à espera. Laure, elegantemente
vestida para um lugar tão simples, aproximou-se com um imenso sorriso nos lábios. Daniel levantou-
se educadamente.
- Estou muito feliz em revê-lo.
- Eu também - respondeu ele, procurando por Léa.
Sentaram-se. Léa olhava à sua volta, amuada.
- O que foi? Não é do seu agrado?
- Não muito. Você disse que o lugar está na moda? É tão feio, com uma iluminação horrível. Tem
certeza de que é bom?
- Excelente. Garçom!
Um rapaz de avental branco aproximou-se.
- Pois não?
- Vocês ainda servem aquele meursault?
- Sim, senhor.
- Traga logo uma garrafa.
- Claro, senhor.
- Vocês vão ver, nunca tomei um vinho tão gostoso. Pegue o cardápio para escolher.
Na mesa vizinha, quatro pessoas conversavam em voz baixa, olhando para eles. Uma elegante
mulher morena levantou-se e se aproximou.
- Sr. Tavernier!
- Sra. Ocampo!
François empurrou a cadeira e também se ergueu.
- Que bom encontrá-la em Paris!
- Vou ficar mais alguns dias, depois parto para Londres.
- Eu soube que a senhora foi agraciada com a Legião de Honra. Meus parabéns.
- Obrigada... Mas você não é aquela jovem de Nuremberg? Fico feliz por encontrá-la. É amiga do
Sr. Tavernier?
- Sou. Boa noite, senhora, quero lhe apresentar minha irmã Laure e um amigo, o Sr. Zederman.
- Boa noite para todos. Estou no Hotel Ritz, venham me visitar. Terei o maior prazer em bater um
papo com vocês antes de partir.
Victoria Ocampo retornou ao seu lugar.
- Onde você a conheceu? - quis saber Léa.
- Em Buenos Aires. Trata-se de uma mulher muito importante por lá e que pode ser de grande
utilidade para nós - acrescentou Tavernier, olhando para Daniel.
O meursault chegou e foi servido com todo o cuidado pelo próprio dono do restaurante.
- Depois, me contem como foi; peguei uma garrafa da safra mais antiga.
- Hó... está tão gostoso quanto o que tomei em 43.
O dono fechou a cara e retornou à cozinha.
- Parece que ele não gostou muito - disse Laure.
- Às vezes convém refrescar a memória de certas pessoas.
- De novo? Será que não consegue pensar em outra coisa! Deve ser o único que continua lembrando
o passado. Ninguém mais liga para os colaboracionistas ou para os membros da Resistência. Aquilo
tudo já acabou, as pessoas estão fartas, só querem esquecer, encontrar comida, roupa, viver! A
guerra acabou, eu desejo me divertir, não pretendo ouvir falar de vingança, execuções, nem...
- Tem toda a razão, minha querida Laure. Vamos esquecer tudo isso... só esta noite.
Tomaram o vinho lentamente; um silêncio embaraçoso pairava entre eles. "Ela está certa", pensava
Léa. "Para que voltar ao passado? Não há nada que consiga apagar o que aconteceu." A grande
maioria tentava esquecer, apenas um punhado de homens queria manter acesa a lembrança do
inferno nazista. Léa sentia-se dividida.
Na hora do cafezinho, Tavernier anunciou:
- Agora, vamos nos encontrar com Sarah e Samuel numa boate russa. Gostam de música cigana?
Sarah, de olhos semicerrados, ouvia o lamento dos violinos. De camisas coloridas, os músicos do
Shéhérazade cercavam a mesa. Léa, um tanto ou quanto bêbada, entregava-se ao bem-estar que a
dominava. Laure devorava Daniel com os olhos. O rapaz, bastante nervoso, fumava um cigarro
atrás do outro. Samuel e François pareciam pensativos.
- Aqui é muito bonito - disse Laure. - E se fôssemos agora a uma cave de Saint-Germain-des-Prés?
- Oh! Sim - disse Léa. - Nunca estive num lugar assim!
Deixaram a boate por volta das duas da madrugada. A noite estava suave.
Um carro, de faróis apagados, vinha na direção deles. Vários tiros ecoaram... gritos... Sarah caiu. O
carro acelerou e virou perto da place de l'Europe... Tudo parecia irreal... Samuel inclinou-se sobre a
moça... a parte superior do seu vestido branco estava coberto de sangue... ela abriu os olhos...
François inclinou-se também e chamou o porteiro que permanecia de pé, com os braços balançando,
atônito.
- Rápido, chame um médico.
Em seguida, ouviram-se as sirenes da polícia. Um homem sem paletó, com uma maleta na mão,
chegou empurrando todos os curiosos que olhavam a cena. Ajoelhou-se e examinou a mulher ferida.
- Uma bala atravessou-lhe o ombro - disse a um policial à paisana. - Preciso de exames mais
minuciosos, mas aparentemente não é grave. Esta senhora teve muita sorte.
- Acredito no senhor, doutor - disse Sarah antes de desmaiar.
Léa e Laure choravam abraçadas.
- Como estão vendo, ainda não acabou em definitivo - comentou Daniel rispidamente, dirigindo-se a
Laure.
O pranto da jovem aumentara ainda mais.
Sarah foi levada de maca pelo furgão da polícia. Samuel e Daniel acompanharam-na.
Após relatarem ao comissário o ocorrido, François, Laure e Léa entraram no carro. Fizeram o
trajeto calados até a rue Grégoire-deTours.
- Convém passarem a noite juntas. Vou até o hospital e voltarei assim que possível. Enquanto isso,
não abram a porta para ninguém.
François Tavernier só voltou no fim da manhã, exausto e barbado.
- Sarah está fora de perigo. Só tem uma ferida no ombro. Em dois ou três dias, poderá sair do
hospital.
- O que foi que a polícia disse?
- Não tem pista alguma. Não se esqueça de comparecer ao Qual des Orfèvres hoje à tarde.
- Claro - disse Laure. - Mas quem estaria com tanta raiva assim de Sarah, a ponto de querer matá-la?
Tem alguma idéia?
- Nenhuma. Deve ser um engano.
- Mas, François...
- Sim, Léa, um engano.
- Por que pediu que não abríssemos a porta para ninguém?
- Por uma questão de prudência. Não posso me demorar, preciso ir ao Qual d'Orsay. Até breve.
Não, ela não conhecia inimigo algum em relação a Sarah, não, não vira os agressores nem anotara o
número da placa do carro, não, não observara ninguém suspeito, não... Léa ficou irritada com aquele
interrogatório. O atentado deixara Laure profundamente perturbada, pois a jovem percebia que seu
pequeno universo fora abalado. Sentia-se tão assustada que o inspetor de polícia que a interrogava
teve pena dela e encurtou suas perguntas. Ao sair do Palácio da Justiça, Laure deixou a irmã,
pretextando um encontro muito importante.
Léa atravessou o Sena e caminhou pelo bulevar Saint-Michel. Vários rapazes olhavam para ela com
assobios de admiração aos
quais respondia com sorrisos. Sentia-se elegante com o tailleur azul-marinho que Laure lhe
emprestara. Reinava por todo o bulevar a agitação típica da volta às aulas; rapazes e moças
perambulavam, com os braços carregados de livros. Diante da estação ferroviária do Luxembourg,
um pequeno grupo de curiosos cercava um casal de cantores populares, e juntos entoavam o refrão
de uma música de Edith Piaf. Ao final da canção, recolhia-se o dinheiro do público.
- Cinqüenta centavos, com a letra e a música, quem quer comprar o grande sucesso da jovem Piaf?
Obrigada, senhorita.
Nas ruas Gay-Lussac e Saint-Jacques, Léa acelerou o passo. Homens uniformizados saindo do Val
de Grâce dirigiram-lhe observações desagradáveis. Na estreita calçada, ela se escondeu no vão de
uma porta para deixar passar uma jovem mãe com um carrinho de bebê. Percebeu quando foi
empurrada por uma pesada mão, encostando-a na parede enquanto lhe tapavam a boca. A pesada
porta de ferro fechou-se. Léa sentiu um hálito desagradável em seu rosto.
- Não se mexa, não grite... não quero machucá-la, só preciso te passar um recado... Você vai ao
hospital visitar sua amigajudia?... Diga-lhe para ficar bem quietinha... Ontem, ela escapou por pouco,
mas amanhã tudo vai dar certo... Estamos por toda parte... mataremos todos aqueles que nos
atrapalharem...
- Não estou entendendo - foi o que Léa conseguiu articular.
- Melhor para você. Se entendesse, já estaria morta... Aquela judia não é uma boa companhia para
uma linda jovem como você... Entendeu bem o recado?... Agora vou lhe soltar... procure não gritar,
ou serei obrigado a acabar com você, o que será uma pena. Pronto, pode ir visitar aquela puta.
O homem soltou Léa brutalmente, saiu do vão e abriu a porta sem a mínima pressa. Assustada e
muito nervosa, com as pernas trêmulas, ela começou a chorar. Um ruído de passos na escada
trouxe-a de volta à realidade.
- Está procurando alguma coisa? - perguntou um garoto da idade de Charles.
- Não, obrigada.
- Mas você está chorando! Se machucou?
Ela conseguiu sorrir:
- Tudo bem, você é um amor.
Após a entrada sombria do prédio, o sol ainda luminoso do fim de tarde fez com que seus olhos
piscassem. Ela correu, empurrando as pessoas na rua. Correndo sem parar, atravessou o bulevar de
Port-Royal em meio a uma sinfonia de buzinas e insultos. Completamente sem fôlego, chegou ao
hospital; indicaram-lhe então o prédio onde Sarah se encontrava. Uma freira a levou até o quarto, na
porta do qual havia um policial que lhe pediu os documentos.
- Ela não pode se cansar, a visita deve ser breve - disse a freira, abrindo a porta.
O aposento encontrava-se mergulhado numa suave penumbra. Pela janela aberta, protegida por uma
grade, entrava um pouco de ar, fazendo ondular lentamente a cortina de tecido branco. No alto leito
de ferro, com o ombro engessado, Sarah parecia dormir. Emocionada, Léa inclinou-se. Sarah abriu
os olhos, fitando atentamente a amiga, enquanto um leve sorriso aflorava em seus lábios,
embelezando-lhe o rosto. Sorriso que se apagou ao perceber os vestígios de lágrimas nas faces de
Léa.
- É por minha causa que você chorou?... Estou ótima... em dois ou três dias vão me dar alta. Sente-
se mais tranqüila agora?... Mas o que aconteceu?... Por que continua chorando?... O que foi?...
Dominando a emoção e o nervosismo, Léa conseguiu contar o que acabara de ocorrer e transmitiu-
lhe o recado do seu agressor.
Sarah ergueu-se, mas sem evitar um gemido de dor.
- A culpa é minha, devia aguardar até você se recuperar completamente.
- Não se preocupe comigo. Resolveram então partir para a agressão. Pensei que não tivessem
coragem de atuar na França. Isso nos leva à conclusão de que eles têm alguns cúmplices que
ignorávamos, ou então perceberam que chegou a nossa hora de reagir. Samuel obteve a
confirmação de que as duas mulheres que venho procurando se encontram em Paris, prontas a
embarcar para a Argentina com outros criminosos de guerra. Você precisa me ajudar...
- Mas, Sarah,você não entendeu. Se continuar, vão matá-la!
- Já me mataram, perdi todo o medo deles. E, quanto a você, querendo ou não, já faz parte do nosso
grupo; não tem escolha:
agora, já sabem tudo a seu respeito e sobre sua família também. Se deseja ter a mesma vida
sossegada de antes, precisa nos ajudar a eliminá-los.
- Você está completamente louca! O tempo da clandestinidade já passou...
- Pelo contrário, atingiu seu apogeu. Para eles, assim como para nós mesmos, a guerrilha continua.
- Quanto a isso, já entendi perfeitamente. Por que não contar à polícia tudo o que você sabe sobre a
atuação deles na França?
- Porque ninguém vai querer me ouvir. Dizer aos franceses, ao mundo inteiro, que os nazistas
continuam vivendo entre nós, que a besta imunda ainda não morreu e se encontra prestes a atacar
como sempre, que em cada país eles possuem amigos poderosos prontos a ajudá-los, que alguns
dentre eles fazem parte do governo, da imprensa, indústria, literatura, contar tudo isso significa, na
melhor das hipóteses, provocar um grande deboche irônico e incrédulo, e, na pior das hipóteses,
atrair novos simpatizantes para a causa deles. Não, nada posso contar à polícia.
- E ao serviço secreto?
- Aí sim, iriam me ouvir; mas apenas para ordenar que silenciasse.
- Não entendi.
- Porque já estão a par de tudo e ajudam certos nazistas a fugir em troca de informações...
- Não posso acreditar.
- No que se refere à França, não tenho provas; mas os americanos, dentre outros, utilizam-se dos
serviços de vários criminosos. É óbvio que os franceses devem fazer o mesmo.
- Os franceses!...
Sarah, cujo rosto tornara-se mais duro no decorrer da discussão, deu uma gargalhada sarcástica.
- Pensei que depois de passar por tudo o que passou, depois de ver a traição, a colaboração com o
inimigo, na sua própria família inclusive, você não fosse mais tão ingênua.
Vencida, Léa baixou a cabeça. Sim, os próprios franceses...
Uma freira entrou no quarto.
- Sra. Tavernier, sua amiga vai ter de se retirar. Precisa descansar.
- Obrigada, irmã, ela já vai sair.
Um frio intenso penetrou o corpo de Léa. Incrédula, olhando para a porta que se fechara atrás
daquela mulher de branco, gelada, de cabeça baixa, sem coragem de enfrentar o olhar de Sarah.
Uma vaga esperança... Na recepção, perguntara pela Sra. Muistein...
- Percebi que François não lhe contou nada. Nós nos casamos logo após o nosso regresso de
Montillac. Mas não significa absolutamente nada, não passa de mera formalidade, porém muito
necessária. Enk'e você e ele nada irá mudar. Não estou com ciúmes.
"Mas eu sim", pensou Léa, quase chorando.
- Você precisa encontrar François o quanto antes - prosseguiu Sarah, fingindo não perceber a palidez
da amiga. - Se não conseguir, ligue para Danton 26-27. Não vai esquecer?... Mas não escreva
absolutamente nada. Quando atenderem, diga que a Sra. Hugo está esperando o Sr. Sainte-Beuve
na hora prevista. Hoje à noite, às nove, você precisa ir ao beco Saint-André-des-Arts. Sabe onde
fica?
Léa balançou a cabeça afirmativamente.
- Preste bem atenção para que ninguém a siga. Vista uma roupa escura, esse tailleur azul dá muito
na vista. Nesse encontro, haverá alguém dos nossos. Você me disse que seu agressor tinha um
sotaque da Europa Central, não foi?... E também que sentiu o bigode dele no seu pescoço?... Pode
ser um indício. A pessoa vai se aproximar de você e perguntar se encontrou-se com Victor. Sua
resposta será a seguinte: "Pretendo encontrá-lo hoje à noite." Entendeu bem? Repita.
Com voz monocórdia, Léa obedeceu.
- Tudo bem. Volte amanhã para me manter a par de tudo.
No corredor, cruzou com Daniel.
- Como vai Sarah?... Por que você não diz nada?... Sente-se mal? Está tão pálida!
Apoiando-se no rapaz, Léa sentou-se numa cadeira, as pernas trêmulas, à beira de um desmaio.
- Tudo bem, já me sinto bem.., não suporto o cheiro de éter.
- Você me assustou... Como vai Sarah?
- Melhor, muito melhor.
- Quer que a acompanhe?
- Não é preciso, muito obrigada.
A única vontade de Léa era fugir daquele hospital e ficar sozinha para refletir. Despediu-se
rapidamente de Daniel.
No Observatório, pegou um ônibus andando. O trocador segurou-a pelo braço e fechou a porta.
- Moça, pegar ônibus andando é muito perigoso.
- Vai para a place Saint-Michel?
- Vai sim, são dois tíquetes.
Léa pagou e se encostou na janela. Seu cabelo esvoaçava ao vento.
O pequeno e estreito beco Saint-André-des-Arts estava lotado. Ao chegar à rue Grégoire-de-Tours,
abriu a porta com a chave que sua irmã lhe entregara. Não havia ninguém em casa. Por três vezes,
Léa ligou para a rue de Le Université. Ninguém: François também não se encontrava em casa. Em
compensação, no número que Sarah lhe dera, uma voz de homem respondeu.

Capítulo 15

- Encontrou-se com Victor?
Apesar de preparada, Léa assustou-se. Um desconhecido, com magnífico bigode ruivo, esperava
sua resposta.
- Pretendo encontrá-lo hoje à noite.
- Tudo bem, venha comigo.
Alcançaram o bulevar Saint-Germain e entraram num café imenso. Ele a empurrou para o fundo,
onde havia pouca gente.
- O que deseja tomar?
- Não sei, o mesmo que você.
- Garçom, dois copos de vodca bem gelada.
Permaneceram calados até o garçom voltar.
- Beba, parece estar precisando.
Léa bebeu de olhos fechados... Lembrou-se imediatamente das noites, dos dias passados na
Alemanha com os soldados soviéticos, em busca de pessoas deslocadas, de órfãos; recordou-se
daqueles fantásticos pileques, das lindas e melancólicas canções. Eram esses soldados provenientes
do Leste que lhe proporcionaram tantos momentos de alegria enlouquecida e de profunda tristeza.
Ela podia rever aqueles olhares perdidos, pensando na terra natal, na mulher amada: quanta ternura
e delicadeza ocultas sob uma aparência rústica! E os esforços daqueles homens no sentido de
tornarem suas noites menos desconfortáveis, privando-se de cobertor, partilhando chá, pão preto...
Como sentia falta deles, de sua camaradagem, de todos os mínimos detalhes que tornavam menos
difícil e mais
calorosa a vida em meio às ruínas! Léa sentiu saudades daquele período e suspirou.
- Senhorita, será que podia voltar à realidade? - disse o homem de bigode.
- Só estava pensando nos soldados russos, nos meus amigos...
Ele a fitou com uma expressão divertida: "Outra louca!", pensou.
- Não podemos ficar juntos muito tempo. Se Sarah lhe deu este número, devia ter algo importante a
comunicar.
Ela não pôde deixar de perguntar, com ar irônico:
- Como foi que adivinhou?
Ele não devia ter um profundo senso de humor, a menos que as sutilezas do francês não lhe fossem
muito familiares, pois franziu as sobrancelhas em sinal de irritação. Sem perder a pose, Léa
prosseguiu e falou de sua aventura na rue Saint-Jacques.
- Não tem outros indícios?
- Não, exceto o bigode e o sotaque, ele não parecia muito mais alto que eu. Ah! sim, usava uma
jaqueta ou um casaco de couro...
- Com esse tempo?
- Pois é, cheguei a pensar o mesmo enquanto ele me segurava.
- Acha que se tratava de um homem jovem?
- É difícil afirmar.., sim, acho que sim.
- Muito bem, trabalharemos com o que temos. Vai visitar Sarah amanhã?
- Sim - respondeu baixinho.
- Avise que localizamos a fera e que a caça poderá começar antes da data prevista. Ela entenderá.
- Eu também entendi... Parece um jogo de escoteiros ou um romance da coleção Sinais de Pista, não
conhece?,.. Que pena, tem muita aventura.,.
- Senhorita, não se trata de nenhum romance de aventuras,
- Sei perfeitamente e lamento muito.
Como aquela jovem era irritante! ... Por que agradava tanto a Tavernier?... De fato, ela não era nada
feia, mas perto de Sarah...
- Mesmo assim, seja prudente, as pessoas que enfrentamos
não são heróis de novela... já viu o que aconteceu ontem. Agora saia, antes de mim... Até logo.
Ao se encontrar na calçada, Léa pensou para onde ir. Não tinha a menor vontade de voltar à rue
Grégoire-de-Tours, nem à rue de l'Université. Automaticamente, caminhou na direção do
ThéâtreFrançais. Na rua de l'Odéon, deteve-se diante da vitrine iluminada de uma livraria. No
interior, várias pessoas conversavam animadamente. Uma bela mulher morena, com o cabelo
penteado para o alto e um lindo rosto distante, mantinha-se afastada do grupo, ouvindo um homem
despentado, com uma ponta de cigarro entre os lábios, que discutia com grandes gestos: André
Mafraux. Léa lembrou-se que Raphaël Mahl recomendara que lesse A Condição Humana.
De cachimbo na boca e óculos, um homem feiíssimo também ouvia atentamente; uma mulher baixa
e ligeiramente rechonchuda, com um coque cuidadosamente puxado para trás, de vestido cinza
extremamente simples, tentava pôr um pouco de ordem numa pilha de livros. E aquele homem calvo
de lenço vermelho no pescoço:
André Gide!... Seu tio Adrien, contrário às opiniões de toda a burguesia de Bordeaux, apreciava
muito seus textos. Os dois se haviam encontrado em Paris e trocaram algumas cartas, motivo de
maior orgulho para o dominicano. Uma mulher de cabelo curto, trajada como um homem, e outra de
costas... Victoria Ocampo conversando com François Tavernier. Ah, essa não, ele não! Naquele
instante, o olhar de Léa cruzou com o da jovem argentina, que mostrou a vitrine ao seu interlocutor.
Antes que Léa pudesse reagir, ele já se encontrava à sua frente, segurando-a pelo braço.
- Aonde você se meteu? Fiquei louco de preocupação!
- Deixe-me!
- Sarah me contou tudo, é melhor regressar a Montillac.
- Regressarei se eu quiser! Quem é você para me dar ordens?...
- Não se trata de uma ordem, é apenas um conselho urgente.
- Guarde seus conselhos...
- Srta. Delmas, acabamos nos encontrando mais cedo do que imaginávamos.
- Boa noite, senhora.
- Venha, vou apresentá-la aos meus amigos.
Sem coragem para recusar, Léa entrou na livraria.
- Adrienne, apresento-lhe minha jovem amiga, Léa Delmas. Léa, estes são Adrienne Monnier e
Sylvia Beach, ambas donas de livraria, a Sra. Simone de Beauvoir e o Sr. Jean-Paul Sartre, os
senhores André Gide e André Malraux... Gisèle Freund, que esteve comigo na Argentina durante a
guerra e se encontra de passagem em Paris - disse Victoria Ocampo.
Após cumprimentar Léa, Sartre e Mairaux prosseguiram sua conversa; Gide despediu-se às
pressas.
- Vamos embora - falou Tavemier em voz baixa.
Saíram depois de prometer a Victoria Ocampo que passariam pela sua casa no dia seguinte para um
chá.
- Você já jantou?
Léa balançou negativamente a cabeça.
- Precisa comer, vamos - acrescentou François, segurando- a pelo braço.
Caminharam sem trocar uma única palavra até Saint-Germaindes-Prés. Entraram na cervejaria
Lipp.
O filho do dono, Roger Cazes, veio recebê-los.
- Boa noite, Sr. Tavernier. A mesma mesa de ontem?
Instalaram-se perto da caixa. O mattre trouxe o cardápio.
- Aceitam um aperitivo?
Sem consultar o cardápio, François respondeu:
- Duas taças de champanha, por favor.
Em outra mesa, Jean Cocteau jantava com Marie Beli. Mais afastados, Léa reconheceu Georges
Bidault e Maurice Schumann. Ambos acenaram com a cabeça.
- Agora, conte tudo.
Léa tomou um gole de champanha.
- Não tenho nada para contar. Sua esposa já lhe disse tudo.
- Pare, por favor, não use esse tom entre nós. Você já conhecia esse projeto de casamento.
Aconteceu e pronto.
- Pronto! - exclamou Léa, tão alto que os olhares de todos os presentes dirigiram-se para a mesa
deles. - Essa é demais -
prosseguiu ela, baixando a voz. - Imaginei que você desistiria desse plano insensato. Não pensou em
mim?
- Minha querida, não faço outra coisa. Mais tarde, vou me divorciar e casar com você...
- E acha que vou ficar esperando, quietinha, até que resolva pedir o divórcio? Você não é o único
homem na face da terra...
- É verdade, mas sou o único que você ama.
Quanta audácia!... Entretanto, era a pura verdade; ela amava aquele cafajeste, e a simples idéia de
que pudesse interessar-se por outra mulher provocava nela um terrível sofrimento...
- Não existe nada entre mim e Sarah, e jamais existirá. Mas preciso cuidar dela e ajudá-la...
- E a mim, você protegeu hoje à tarde?
De repente, ele pareceu profundamente preocupado!
- Eu daria tudo para evitar que você estivesse metida nessa história...
- Tarde demais. Como não conseguia falar com você, encontrei um amigo de Sarah...
- Um homem de bigode ruivo?
- O próprio. E ele me disse que a caçada podia começar antes da data prevista...
- Ah, foi isso - comentou François, pensativo.
- Significa que encontraram aquelas mulheres horríveis de quem Sarah jáme falou?
- Não sei, talvez.
- Se conseguirem prendê-las, o que farão com elas?
- É fácil adivinhar.
Todos aqueles acontecimentos pareciam fazer parte de um romance de má qualidade; o diálogo
naquela cervejaria parisiense excessivamente iluminada, lotada de políticos, estrelas de cinema,
escritores, lindas mulheres conversando sob as cerâmicas de Fargue... Léa tinha a impressão de
viver um sonho absurdo; a seu lado,
o homem que ela amava e que a amava casara-se com outra, a mesma que só pensava em sua
vingança, com companheiros misteriosos, que era ferida no meio da rua, e que lhe entregava
mensagens codificadas enquanto ela própria fora agredida à luz do dia por
um homem bigodudo que proferia ameaças... A loucura era tanta que Léa teve um acesso de riso.
Na verdade, aquela jovem nunca deixaria de surpreendê-la; ela podia mostrar-se abatida, calada,
agressiva, mordaz, maldosa, e agora risonha! Que mulher imprevisível! Em sua companhia, não
havia tempo para o tédio. No entanto, por trás daquela risada de Léa, ele reconhecia o medo, a
angústia, o sofrimento, e sentia-se profundamente culpado. "Eu deveria protegê-la, torná-la feliz. Em
vez disso, eu a estou arrastando para uma perigosa aventura e colocando-a em risco de vida; não
passo de um canalha." François experimentava um imenso cansaço e sentia-se velho! ... Um violento
desejo de fugir com ela para qualquer outro país, abandonar Sarah e seus planos assassinos, seu
cargo junto ao governo francês, seus bens... partir só com ela, para longe dos perigos que pairavam
à sua volta, poder viver e amar essa mulher, ter filhos com ela...
- Tavernier, até que enfim consegui encontrá-lo!
Samuel Zederman estava de pé, junto à mesa.
- Percorri todos os cafés do bairro atrás de você. Vá rápido até a Place des Vosges para um
encontro... É melhor não levar a senhorita.
Acabaram de jantar no mais profundo silêncio.
François acompanhou-a até a rue Grégoire-de-Tours. Laure ainda não havia chegado.

Capítulo 16

Léa não conseguia dormir. Um dos campanários da redondeza tocou: meia-noite. Levantou-se e
vasculhou o armário da irmã. Logo em seguida, saiu da rue Grégoire-de-Tours vestindo uma saia
longa preta e um pulôver apertado da mesma cor, com o cabelo preso num rabo-de-cavalo.
Caminhando por trechos mal iluminados, dirigiu-se até a rue Dauphine, procurando a cave de que
Laure lhe havia falado: Le Tabou.
Na esquina entre as ruas Christine e Dauphine, um bando de rapazes fumava e conversava,
apoiados num estranho carro conversível amarelo e preto. Ela se aproximou e perguntou a um deles:
- Conhece Le Tabou?
- Deve ser a freqüentadora mais engraçadinha do lugar. O que é que você acha, Toutoune?
Uma jovem, com os seios apertados num agasalho de lã, as nádegas moldadas por uma calça de
veludo cotelê, um nariz comprido e longos cabelos pretos, olhou para Léa de cima a baixo.
- Pois é, nada mal. E você, Anne-Marie, qual a sua opinião?
- Legal - respondeu uma jovem ruiva e esbelta.
Léa estava ficando irritada com aquela investigação.
- Procuro Le Tabou.
- Está bem na sua frente, senhorita.
Então era aquela a cave da moda, a respeito da qual Laure enchera-lhe os ouvidos em Montillac!
Ergueu a cabeça: ali estava o nome da boate, não havia a menor dúvida.
- Parece surpresa - disse um rapaz todo desengonçado, com um boné cheio de galões na cabeça. -
Ficou assustada como aspecto deplorável do lugar? Pois é, minha cara, é como a nossa época, suja
e podre, o ponto de encontro dos viciados, pobres e ricos, todos juntos, o verdadeiro ideal comunista,
dos existencialistas...
- De quem?
- Ei, tá fazendo hora comigo?... Tá querendo me enganar, é isso... Vestida desse jeito... Oh,
desculpe, não me apresentei: François de la Rochefoucault, porteiro, às suas ordens. Frédéric, vem
cá... Olha só que beleza, tá procurando Le Tabou... Não acha que ela possui absolutamente tudo
para ser aceita nesse templo freqüentado pelos mais espetaculares espíritos da época?...
Um belo rapaz, com bigode claro de oficial de cavalaria, aproximou-se.
- Bom dia, senhorita, meu nome é Frédéric Chauvelot. De certa forma sou o animador do local.
Permita que lhe ofereça um trago de boas-vindas... Tarzan, não vai se esquecer do lindo rostinho da
senhorita?
- Pode confiar - comentou um brutamonte tatuado.
- Ele consegue esmagar uma cabeça entre o polegar e o indicador - cochichou Frédéric no ouvido de
Léa ao empurrar a porta.
Um bafo quente emanava da escada de pedra. Enquanto descia, Léa teve a impressão de penetrar
num caldeirão infernal, em plena ebulição e enfumaçado: os gemidos do trompete e do clarinete, em
direção às abóbadas do século XVIII, tornaram ainda maior sua primeira sensação. A fumaça era
tanta que não se enxergava o fundo da cave, cujas dimensões não ultrapassavam doze metros por
oito. Alguns casais se revezavam numa dança frenética, muito aplaudidos pelos fregueses que
lotavam a casa, sentados ou de pé.
- Oque deseja tomar?
- Um licor de menta com água - respondeu Léa depois de olhar à sua volta.
Um rapaz de camisa xadrez, encharcado de suor, aproximou-se.
- Quer dançar?
- Não, obrigada.
Ele se afastou, erguendo os ombros.
Lugar estranho. Música estranha, diferente de tudo o que conhecia.
- Laure!
Acabara de avistar a irmã, com o tailleur azul que ela própria vestia na véspera. Com muita
dificuldade, conseguiu chegar à mesa onde se encontrava Laure em companhia de cinco ou seis
rapazes da sua idade: dentre eles, Franck, que a viu primeiro.
- Léa, que boa idéia ter vindo se encontrar com a gente.
- Não consegui dormir, preocupada com Laure.
- Ela me contou tudo a respeito de ontem... como vai sua amiga?
- Bem, não foi tão grave assim.
- Que bom. Laure, olhe quem está aqui.
- Pouco me importa, não quero ver - mal conseguiu responder.
- Ela está bêbada, quase igual a você da última vez.
Sim, mas por outras razões, pensou Léa.
- É amiga de Franck? - quis saber Frédéric Chauvelot. - Agora preciso circular por aí, está em boas
mãos.
Inicialmente, Léa surpreendeu-se com os movimentos complicados e acrobáticos dos dançarinos e
chegou a esquecer por alguns segundos o que considerava uma traição da parte de François, assim
como a tentativa de assassinato de Sarah. Instintivamente, marcava com os pés o ritmo da música.
- Seu judeu nojento, são os judeus que sempre causam todos os problemas.
Apesar do barulho, Léa ouvira perfeitamente as palavras de Laure, proferidas aos berros com sua
voz embriagada; permaneceu imóvel, incrédula. Franck, cuja mãe era judia, olhava a amiga sem
conseguir acreditar no que acabara de ouvir.
- Seu nojento...
A bofetada de Léa em seu rosto cortou-lhe a palavra. Laure começou a choramingar como uma
criança.
- Viu só, ela me bateu!
- Ajude-me a levá-la para casa.
- O que houve? Por que ela está chorando? - perguntou a moça ruiva da entrada.
- Deixa pra lá, não tá vendo que ela bebeu demais? - comentou Toutoune.
Tiveram dificuldade para conseguir retirá-la.
- Corbassière, será que pode levar a menina pra casa? - perguntou Frédéric.
- Tudo bem - respondeu o rapaz sentado ao volante daquele estranho carro bicolor.
- Não é preciso - disse Léa. - Moramos perto. Franck vai
me ajudar.
- Como quiser.
Na rua mal iluminada, Franck e Léa seguravam Laure, que mal conseguia ficar de pé, seguidos por
três amigos do rapaz que cantavam a plenos pulmões.
- Calem a boca! ... A gente quer dormir!
Saindo de uma janela, essas palavras foram acompanhadas de um jato d'água que encharcou o
grupo.
- Não se passa uma noite sem que um de nós tome um banho
- comentou Franck. - O povo desse bairro só pensa em dormir. A ducha não acalmou os cantores,
que recomeçaram com mais
força ainda, O cruzamento das ruas Saint-André-des-Arts e Buci estava sem luz. Laure ia ficando
cada vez mais pesada. O mau humor de Léa aumentara devido a um princípio de enxaqueca. A
entrada da rue Grégoire-de-Tours parecia negra como um túmulo. Um dos rapazes acendeu uma
lanterna de bolso e sua luz fraca iluminou o meio-fio. De faróis apagados, um carro se aproximou. O
tailleur azul de Laure chamava atenção. Bruscamente, acenderam-se os faróis. Léa ergueu o braço
para proteger os olhos.
- Oba, que bom, assim dá pra enxergar onde a gente pisa.
A chave de Léa caiu no chão e ela se abaixou para apanhá-la... Uma rajada de metralhadora
crepitou, ricocheteando na calçada... O corpo de Laure se contorceu... Ela se tornara tão pesada de
repente... tão pesada... deslizou apesar dos esforços de Léa para segurá-la... o ruído de uma
mudança de marcha... o cantar dos pneus... uma porta batendo... os faróis iluminaram por um
segundo
as fachadas dos velhos prédios e se apagaram em seguida... o carro desapareceu em direção ao
bulevar Saint-Germain... Algumas luzes foram acesas... janelas se abriram...
- O que houve?...
- Vocês ouviram?...
- Não lhe falei que era uma metralhadora? Eu conheço!
- Venha deitar, deve ser mais um bando daqueles bandidos do Tabou!...
- Socorro! Chamem a polícia!...
Agachada perto da calçada, Léa segurava a cabeça de Laure, que gemia de dor.
- Não foi nada, irmãzinha, não foi nada.
O azul do tailleur sumia lentamente sob as manchas escuras que aumentavam a cada instante.
Atordoado, com a testa suja de sangue, os olhos fixos naquele corpo estendido, Franck segurava a
lanterna com mãos trêmulas.
- ilumine aqui - gritou Léa.
Bem devagar, ela colocou a cabeça da irmã no colo, com os mesmos gestos suaves de sua mãe.
Laure tentou falar.
- Não diga nada.
Finalmente, ouviu-se a sirene do carro da polícia. A rua, antes completamente deserta, enchia-se
agora de gente de pijama ou camisola, com um casaco ou um xale nos ombros. Alguns policiais
apareceram, trazendo uma maca.
- Afastem-se... precisamos passar...
A pequena multidão abriu caminho.
- Voltem para casa... não há nada para ver...
Ninguém se moveu.
Um policial à paisana inclinou-se sobre as duas irmãs...
- O que aconteceu? - perguntou. - Quero mais luz. Puta que pariu, coitadinha! Mas.. .já conheço
você, foi comigo que falou sobre o caso do Shéhérazade hoje à tarde e... essa é sua irmã... que
estava tão assustada... Coitada da menina...
- Rápido, senhor, leve-nos para o hospital.
Com todo o cuidado, os policiais transportaram Laure, que desmaiara. Léa e Franck sentaram-se a
seu lado.
No corredor do Hôtel-Dieu, Léa andava para lá e para cá, fumando um cigarro afrás do outro. Seu
maço de Lucky Strike acabou rapidamente.
- Já faz duas horas que estão operando... e você fica aí, esperando calmamente, sem se mexer!
- O que mais posso fazer? - disse Franck, que suava abundantemente.
- Sei lá... mexa-se, fale comigo!
- Para dizer o quê?... Você acha que tudo isso tem a ver com Sarah?
- Não sei, espero que não... Será que não se trata de seus negócios ilegais no mercado negro?
- Impossível, Laure só fazia pequenas barganhas e nunca estivemos metidos em grandes
transações... Talvez seja um simples acidente...
- Um simples acidente!... uma rajada de metralhadora em Paris!... um simples acidente! Você diz
cada uma!... Doutor! Doutor, como ela está?
- É da família?
- Sou irmã dela.
- Foi um milagre ela não morrer na hora. Retiramos sete balas, perdeu muito sangue e o risco de
hemorragia interna ainda não foi totalmente afastado. Mas ela está viva. Por enquanto, continua
dormindo.
- Posso vê-la?
- Não, volte para casa...
- Nem pensar, quero ficar a seu lado. Preciso estar perto quando despertar, se não, ela vai ficar
apavorada.
O médico sorriu, apesar do imenso cansaço.
- Vou pedir que lhe tragam um pouco de café quente... Aliás, nem sei se posso chamar aquilo de
café...
- Obrigada, doutor.
- Ele tem razão, você devia voltar para casa e dormir um pouco. Não tem sentido ficarmos os dois
esperando aqui.
- Vá você, se quiser. Eu fico.
- Tudo bem, eu também fico.
Após tomarem a bebida que lhes trouxe uma freira, ambos cochilaram encostados um no outro, até
a chegada do inspetor do turno da noite.
- Será que tem alguma idéia a respeito do que houve? Ontem atiraram na sua irmã, anteontem na
sua amiga, é demais para uma simples coincidência.
- Claro, mas não faço a menor idéia.
- Tem certeza?
Léa pediu a Deus para não corar!
- Absolutamente!
O policial suspirou, desanimado.
- Quando poderei vê-la?
- Não depende de mim. Eu também gostaria de vê-la e fazer algumas perguntas. Onde esteve ontem
à noite?
- Mas eu já contei, no Tabou.
- Não notou nada suspeito?
- Não, a iluminação da rua estava péssima, só pude ver o carro no final.
- Era o mesmo da véspera?
- Não sei... um Citroën preto...
- Esse tipo de carro é o mais usado, tanto pelos bandidos como pelos políticos.
- Não é a mesma coisa? - perguntou Franck com ar ingênuo.
O inspetor ergueu os ombros.
No final da tarde, autorizaram Léa a ver Laure.
- Minha querida...
- Ela não pode ouvir, está em coma.
- Quanto tempo vai durar?
- Uma hora, meses, ninguém sabe.
- Posso ficar com ela?
- Pode, se quiser. Vamos colocar um catre.
- Obrigada, irmã.
Deitada na estreita cama, Léa, tal como no dia anterior, não conseguia dormir. Levantou-se e saiu
para fumar no corredor. O policial adormecera sentado na cadeira. Ao vê-lo, Léa se lembrou do
policial de
plantão na porta do quarto de Sarah. Sarah, com quem precisava falar naquela mesma tarde... e
François devia estar louco de preocupação...
- Já lhe disse, senhor, a hora das visitas já passou há muito tempo... Os doentes estão dormindo...
Por favor, senhor...
Uma freira minúscula saltitava atrás de Tavernier.
- Léa!
Ela conseguiu deter o impulso instintivo de se atirar em seus braços. O policial, despertado, pôs a
mão no revólver.
- Senhor, o que faz aqui? É proibido.
- ASrta. Delmas é minha amiga, quero saber como ela vai indo.
- Volte amanhã.
- Não, preciso falar com ela - respondeu apontando para
Léa.
- Conhece este homem?
- Sim.
- Vão conversar no saguão.
Léa queria recusar, mas a perspectiva de um escândalo entre o representante da lei e seu amante
fez com que obedecesse.
François segurou-lhe o braço.
- Como vai Laure?
- Continua inconsciente, mas os médicos esperam salvá-la.
- Você deve partir imediatamente.
- Nem pense nisso, não posso deixá-la.
- Mas será que não percebe que era você que queriam matar? Foram enganados pelo tailleur que
Laure estava usando.
- Que tailleur?
- O azul, que você vestiu naquela noite.
- Ah!...
- Já entendeu?
- Mas por que razão querem me matar?
- Por que você é uma amiga íntima de Sarah.
- Sou, mas nada tenho a ver com o que ela planeja.
- Isso eles não sabem. Encontramos a pista do carro, falta pouco para interceptarmos um dos
assassinos. Espero que ele revele os nomes dos chefes da rede. Mas por enquanto você precisa
sumir. Não vão precisar de muito tempo para perceber que erraram de alvo.
- Se sabem de tudo, como você afirma, não estarei segura em parte alguma.
- Não é bem assim. Amanhã de manhã, Sarah sairá do hospital e vamos escondê-la num lugar
seguro. Conversei com o ministro do Interior, teremos a proteção de uma escolta. O que você
contou à polícia?
- Disse que não compreendia o que se passava.
- Perfeito. Acreditaram em você?
- Acho que sim.
- O ministro colocou o chefe de polícia a par da situação, e este deu as ordens necessárias. Agora, o
caso encontra-se nas mãos do serviço secreto. Se a interrogarem, você não sabe de nada.
- E quanto a você, o que pretende?
- No momento, pouca coisa; fazer com que me esqueçam... Você parece cansada... não se
preocupe com Laure, vai sair dessa.
- Espero que sim, mas sinto tanto medo! Parece que voltei no tempo e que Camille está em perigo.
Tenho exatamente a mesma sensação. Oh, François, diga que Laure não vai morrer...
Tavernier nada respondeu, acariciou suavemente a face pálida da amiga. Ela o abraçou e colou seu
corpo contra o de François.
- Minha garotinha, logo eu, que queria tanto te poupar...
- Não foi bem isso o que conseguiu.
- Meu amor, me perdoe. Eu te amo, gostaria tanto de fazê-la feliz...
- Nisso também você falhou.
- Prometo que um dia será possível.
- Um dia!... é muito distante.
Permaneceram unidos e calados. Com a boca em seus cabelos, François murmurou:
- Você me perdoa?
Sentiu o corpo de Léa retesado.
- Nunca- sussurrou ajovem, aninhando-se entre seus braços.
- Entendo... mas lembre-se de que a amo.
- Senhorita, senhorita, sua irmã acordou! O médico plantonista está junto dela - disse o policial
ofegante.
- Obrigada, já vou.
Ela correu até o quarto, seguida por François Tavernier. Um homem de branco inclinava-se sobre a
cama.
- Acalme-se, senhorita, está tudo bem. Você é Léa?
- Sim.
- Ela não pára de chamá-la, temendo que tivesse morrido.
- Laure... minha queridinha...
- Léa... É você?...
- Não fale, senhorita, vai se cansar.
- Estou aqui, não precisa ficar com medo.
- Franck?... e os outros?
- Franck está no corredor.
Tavernier foi chamá-lo. Laure estendeu a mão para ele.
- Não chore, ou vou chorar também...
- Senhorita, não se agite tanto, precisa de muita calma.
- EFrançois?... eSarah?...
- Sarah vai bem... François está aqui.
- Oi, Laure.
- Fico feliz em saber que está aqui... Estou com dor!...
- Pronto, não diga mais nada... vou ficar com você.
- Sonhei que tia Estelle me chamava.., tenho medo... tanto medo... não vou morrer, vou?...
- Claro que não, minha querida. Está tudo bem... Sinto tanta dor...
- Agora cale-se, senhorita, ou pedirei a todos que saiam do quarto. Vou aplicar-lhe uma injeção.., e
depois a dor vai passar, poderá dormir.
- Não quero dormir...
Enquanto o médico aplicava a injeção, Léa e Franck não largaram as mãos de Laure. Sem
maquiagem alguma, ela parecia uma menina. Adormeceu logo em seguida.

Capítulo 17

Mais tranqüila quanto ao estado de saúde da irmã, Léa aceitou a idéia de ir para casa e descansar
um pouco. Na rue de l'Université, François preparou-lhe um bom banho. Após despi-la lentamente,
ele a carregou até a banheira e, com gestos carinhosos, lavou-a. A suavidade das mãos do seu
amante trouxe-lhe uma paz profunda. François colocou Léa na cama, vestida com um penhoar e
cobriu-a com uma manta de pele.
- Agora durma, querida.
- Não me deixe sozinha - disse ela com voz sonolenta.
- Fique tranqüila, não saio de perto de você.
Ela adormeceu segurando-lhe a mão.
Ao despertar, já era noite e ela se encontrava só.
- François! - gritou Léa, erguendo-se na cama.
A porta se abriu, deixando passar um raio de luz que iluminou ligeiramente o aposento.
- Estou aqui.
- Fiquei com tanto medo que tivesse ido embora...
- Passei o dia inteiro aqui. Agora, preciso sair e Daniel vem ficar com você.
- Tem notícias de Laure?
- Franck ligou, ela está passando bem. Você poderá vê-la amanhã. Até logo, meu amor, não pense
em mais nada.
- É fácil falar. E Sarah?
- No momento, encontra-se longe de qualquer perigo. Não se preocupe, voltarei à noite.
Léa adormeceu novamente. Algumas horas mais tarde, acordou sobressaltada.
- François, é você? - disse em meio à escuridão.
- Não, é Daniel.
- Tive um pesadelo horrível.
- Foi por isso que entrei no quarto. Você gritou e temi que estivesse acontecendo alguma coisa.
- François não regressou?
- Não, deve chegar a qualquer momento. Quer um pouco de café? Tem um de boa qualidade na
cozinha.
- Aceito, obrigada.
Léa levantou-se, lavou o rosto e escovou o cabelo no toalete.
Os dois jovens encontraram-se na cozinha. Tomaram o café calados. Léa acendeu um cigarro.
- Sabe onde se encontra François?
- Tenho uma vaga idéia.
Era a primeira vez que ficavam a sós, cara a cara. Não sabiam do que falar.
- Que horas são? - perguntou Léa.
- Quatro da manhã.
Ouviram a chave girando na fechadura da porta de entrada. Surgiram François Tavemier e Samuel
Zederman. François parecia exausto, com o rosto barbado, e Samuel estava lívido.
- Como foi? - quis saber Daniel.
- Bem - respondeu François. - Estávamos certos. Foram realmente aquelas duas mulheres que
tentaram assassinar Sarah e feriram Laure. Conseguiram escapar, mas prendemos dois cumplices.
Encontram-se nas mãos do serviço secreto, sob cerrado interrogatório. Outro foi morto. A polícia já
o conhecia, tratava-se de um assassino do bando da rue Lauriston, procurado desde a Libertação.
- Mas, se elas continuam em liberdade, Sarah ainda corre perigo - disse Daniel.
- Não. Desmantelamos a rede e elas ficaram completamente
sós. Vai ser muito difícil que passem despercebidas. Nenhuma das duas fala francês e sua
descrição foi amplamente divulgada. Esta noite, você vai dormir aqui. Bem, Léa, vamos nos deitar.
Léa notou a expressão de profunda tristeza no rosto de Daniel.
Françoise tinha toda a razão, pensou, ele está apaixonado por mim.
No quarto, François despiu-se e atirou-se na cama.
- Venha - disse a Léa.
Léa deitou-se sobre o corpo dele. Como parecia cansado! Ela notou em seus cabelos alguns fios
brancos que a comoveram. Beijou suas pálpebras cerradas, acariciou-lhe o rosto suavemente.
Pouco a pouco, os traços de seu rosto se descontraíram. Ele suspirou. Fez amor com ela,
lentamente, com um fundo de tristeza, O prazer da relação demorou a se revelar.
Despertaram com o ruído de batidas na porta. Ouviram a voz de Samuel:
- Levantem-se! Já são quase onze horas.
- Onze horas! - exclamou François, pulando da cama.
Durante a tarde, Léa foi ao hospital. O estado da irmã estacionara, na opinião do médico. Franck,
que não saíra de perto de Laure, não se agüentava em pé. Léa mandou que fosse descansar e só
voltasse no dia seguinte. Esgotado, ele concordou. Durante a noite, Laure começou a delirar,
chamando pela mãe, por Léa, Franck e Daniel. Apavorada, Léa mandou vir a enfermeira de
plantão. Esta afirmou que não era nada demais, mas aplicou uma injeção na paciente. O resto da
noite foi tranqüilo. De manhã, Léa despertou com o choro de Laure.
- Tia Esteile... Sinto tanta dor... não quero...
Léa pulou da cama e se aproximou da irmã.
- Estou aqui, minha queridinha, estou aqui.
Ardendo em febre, Laure não parecia reconhecê-la.
- Estou com dor... frio... oh!...
Um jato de sangue jorrou de sua boca lívida. Léa gritou.
- O que houve? Por que gritou? - disse o policial, entrando bruscamente no quarto. - Oh! meu
Deus!...
Ele se precipitou para o corredor.
- Socorro, por favor! Venha logo, irmã.
A freira entrou, acompanhada por uma assistente.
- Rápido, chame o doutor e a irmã Joseph.
- Irmã, ela vai morrer?
- Reze, minha filha.
Toda aquela gente da Igreja só sabia dizer isso: "Reze." Como se as preces pudessem deter o
sangue escorrendo da boca de Laure.
- Estou com medo... Léa, estou com medo...
- Não, não... não fale... Estou aqui... o médico já vem...
- Mamãe... mamãe...
Levada com urgência à sala de operações, Laure faleceu às seis horas da tarde.
A noite estava sombria, as ruas mal iluminadas. Léa caminhava só. Perto do Jardin des Plantes,
assustou-se com os uivos de um lobo. Com o coração batendo aceleradamente, passou a andar mais
rápido. Não pensar... principalmente não pensar... Não era verdade, não podia ser verdade... Laure
não, justo ela, a mais nova.., era injusto demais... Tudo por causa de um tailleur azul... Léa
detestava aquele tailleur azul... Era o sangue dela que devia ter jorrado, não o de Laure... Como
dar a notícia a Françoise, a Estelie?... e Franck?... qual seria a sua reação?... minha querida
irmãzinha, me perdoe... Estou começando a entender Sarah e os outros... Por que matam
inocentes?... não dá para aceitar uma coisa dessas... Hoje Laure, e amanhã?... Pensou em Charles
e sentiu uma ameaça pairando sobre o menino. Rápido, ligar para Montillac, certificar-se de que
tudo estava em ordem.., começou a correr.
Na place Saint-Michel deserta, ouvia-se o eco dos seus passos. A rue des Saints-Pères estava
vazia, abandonada... Léa experimentou uma certa vertigem. Dobrou a rue de l'Université, um carro
passou, a toda velocidade.
Não havia ninguém no apartamento, xícaras sujas na pia da cozinha, um cheiro de fumo. Léa pediu
uma ligação para Montilac. Após o oitavo toque, a telefonista respondeu:
- O número não responde.
- Insista - suplicou Léa.
O telefone voltou a tocar.
- Alô!
- Alô, é Léa, quem fala?
- Alain Lebrun... Ah, é a Srta. Léa...
- Não me chame de senhorita... Como vai Charles?
- Bem, muito bem.
- Minha tia Esteile melhorou?
- Alô, Alain, está ouvindo?...
- Sim.
- Como vai minha tia?
- Senho... vou passar-lhe Françoise.
- Alô, Léa?...
- O que foi?... Está chorando?...
- Tia Estelie...
Léa deixou-se cair numa cadeira, dominada por violenta angústia.
- Tia Esteile o quê?
- Faleceu...
Não, gritou Léa internamente.
- Faleceu hoje à tarde.
Como Laure!... meu Deus, por que as duas no mesmo dia... como contar a Françoise?...
- Léa... Léa... está ouvindo?... Responda... Fale, pelo amor de Deus... Compreendo o que você
sente... Ela não sofreu... Foi tudo muito rápido... Estava gravemente doente... foi melhor assim...
Foi melhor assim... Será que aquela mulher de cabeça raspada se dava conta do que dizia?... E
Laure, era melhor assim?... Tomada por um sentimento de raiva, ela berrou:
- Laure morreu também...
- O quê?...
- Isso mesmo: Laure morreu também.
- Se for algum tipo de brincadeira, não tem graça nenhuma... Você ficou louca?...
Um imenso cansaço tomou conta de Léa.
- Não se trata de nenhuma brincadeira.
- Não é verdade! ... Diga que não é verdade...
- Sim, é verdade.
- Mas como?... Por quê?...
Por quê?... como se fosse possível responder... Hoje uma moça e uma anciã, amanhã...
- Um acidente... explico-lhe depois... estou cansada, Françoise, tão cansada...
- Eu também estou cansada! Quero saber o que aconteceu.
- Amanhã... contarei tudo amanhã...
Léa desligou; não queria ouvir mais nada. Levantou-se com dificuldade e foi procurar um sonífero
no armário do banheiro. Não encontrou remédio algum, nem mesmo aspirina; François não gostava
de abusar de produtos farmacêuticos. Uma obsessão, dormir... apagar qualquer pensamento...
Beber, ela precisava beber assim como em Nuremberg, quando de sua chegada à noite após vagar
pelas estradas da Alemanha, beber... Na sala, sobre uma mesinha baixa, várias garrafas: uísque...
conhaque... Marie-Brizard... gim... Encheu um copo de gim e bebeu de um só gole. Como era
forte!... um copo, outro mais... Titubeando, com a garrafa na mão, ela caiu na cama... A garrafa
escapuliu e rolou pelo tapete... Léa mergulhou numa espécie de coma.
Por que batiam assim na sua cabeça?... Ai! ... Aquela luz ofuscante!... Parem!... e essa vertigem...
- Daniel, chamou o médico?
- Não, ela só está bêbada. Não precisa de médico, mas de uma boa chuveirada.
- Vá fazer mais café.
Daniel fechou a porta bruscamente. François começou a despir Léa. Não era nada fácil. Ele tinha a
impressão de lidar com uma boneca de pano. Ela se encontrava finalmente nua quando Daniel
voltou com uma xícara de café. Permaneceu na porta, imóvel, contemplando aquele corpo
abandonado.
- Como ela é linda! - murmurou.
Com um gesto irritado, Tavemier cobriu-a.
- Deixe-nos a sós.
Ajeitou Léa na cama e tentou fazer com que ela bebesse; um pouco de café escorreu pelo queixo e pelo
pescoço; ela gemeu. François deitou-a novamente, foi buscar uma toalha úmida e limpou-lhe o rosto e o peito;
os olhos de Léa abriram-se em meio a uma névoa rodopiante:
- Laure...
As lágrimas brotaram, escorrendo pelo rosto.
- Já sei, meu amor, pode chorar.
Durante alguns instantes, ele a manteve em seus braços, soluçando.
Impotente, ele se sentia totalmente impotente para consolar a mulher amada.
- Tia Esteile...
- Meu amor, tome o café, vai lhe fazer bem.
Léa empurrou violentamente a xícara de café, que caiu na cama.
- Ela morreu, tia Estelle morreu!... Ouviu? Morreu! ... como Laure!
Um profundo desânimo tomou conta daquele homem tão vigoroso. Por que tantos sofrimentos, tantas mortes,
à sua volta? Ele nada podia fazer e deixou que Léa chorasse. Mais tarde, ela se levantou e, completamente nua,
dirigiu-se ao toalete; ele a ouviu vomitar e, em seguida, abrir a torneira do chuveiro, onde demorou bastante.
Ao sair do banheiro, com o cabelo encharcado, François se assustou com a palidez e a expressão de seu rosto;
Léa havia parado de chorar. Mas agora era pior, percebia-se todo o seu desespero.
Três dias mais tarde, partiram para acompanhar o corpo de Laure. No salão de Montillac, o caixão de Estelle
esperava. Françoise e Léa abraçaram-se, caladas, sem uma lágrima. A pé, acompanharam o carro fúnebre até a
igreja. A basílica estava lotada de amigos, vizinhos, gente da região, todos transtornados com tanta desgraça.
Padre Henri proferiu palavras de amor e paz. Françoise sensibilizou-se, mas o coração de Léa permaneceu
impenetrável em sua dor.

Capítulo 18

Minha querida,
A viagem para Buenos Aires está marcada para 10 de outubro. Eu contava poder vir me
despedir mas, depois de Londres, já estou sendo enviado à Alemanha, de onde só retornarei
na véspera do dia 10. Sarah, Samuel e Daniel também partem; Daniel viajará em outra data.
Encontrei Victoria Ocampo em Londres e ela me disse que ficaria muito contente se pudesse
recebê-la em sua propriedade nos arredores de Buenos Aires, em San Isidro. Vai escrever
diretamente para confirmar o convite. Eu não gostaria que você aceitasse, pois este país é
muito instável, politicamente falando; existem riscos e é melhor manter-se afastada de tudo
isso. Tente retomar suasforças naquela região que lhe é tão cara. Mais do que nunca, todos
precisam de você em Montillac, e é no trabalho que conseguirá encontrar a paz. No entanto,
se você preferir vir a Paris, o apartamento da rue de l'Université é seu. Depositei em seu
nome, no meu banco, uma certa soma. Use o que for necessário sem escrúpulo algum, e
lembre-se de que tudo o que me pertence também é seu. É você a mulher que amo e que
considero minha esposa. Sei que chegará o dia em que poderemos viver juntos, sem receio e
sem pressões.
Admirei sua coragem naqueles dias tão difíceis; você se saiu muito bem, minha querida e
valente garotinha/ Minha admiração por você é tão grande quanto o meu amor
Escreva-me para a embaixada da França em Buenos Aires, o embaixador é meu amigo.
Sinto saudades, minha querida, e a cada dia sofro mais com sua ausência. Pense no homem
que a adora,
François.
Estou pouco ligando, se ele me admira e me acha valente, e me ama!... Nada disso fez com que
deixasse de viajar com outra mulher que usa seu nome... ele está rindo da minha cara... Será que
pensa que vou ficar esperando feito uma boba? Eu devia fazer exatamente o que ele diz: gastar todo
o seu dinheiro... Como ele consegue falar em paz se, dentro de mim, reina um caos total?... Ele não
entendeu nada! Ninguém precisa de mim em Montillac, Alain e Françoise arranjam-se muito bem e
Charles, com eles, encontrou uma verdadeira família... Todos se mostram muito gentis com a pobre
Lisa, que não pára de chorar, e com Ruth... eu me sinto como um peixe fora d'água naquele
contexto... Montillac... os vinhedos.., na verdade, sou muito ligada a todos eles e, ao mesmo tempo,
quase que indiferente, como se nada mais me dissesse respeito... eu gostaria de saber qual é
realmente o meu lugar... não me sinto bem em parte alguma...
Léa não respondeu àquela carta. No dia seguinte, recebeu o convite de Victoria Ocampo e escreveu
de volta na mesma hora.
Cara Senhora,
Seu amável convite deixou-me muito comovida. Minha vontade de aceitar é imensa, mas está
a par das desgraças que se abateram sobre a minha família; se eu me ausentasse agora,
receio que meus parentes ficariam magoados. Esteja certa de que me lembrarei do seu
convite assim que essa viagem for viável.
Aqui a vida continua difícil, pois falta-nos praticamente tudo:
carvão, pão, carne, tecido. Repetimos no dia-a-dia os hábitos que nasceram durante a
guerra e a ocupação: criação de gado de pequeno porte, horta, trocas. E assim que
conseguimos sobreviver
Assim como a senhora, acompanhei o processo de Nuremberg.
Fiquei surpresa com a relativa demência do veredicto: doze condenações à morte para vinte
e dois réus. Por que os outros dez foram considerados menos culpados? Li na revista
L'Illustration que Fritsche e Schacht chegaram ao cúmulo de dar autógrafos!... Parece até um
pesadelo!
François Tavernier viaja em breve para Buenos Aires; terão certamente a oportunidade de se
encontrar
Mais uma vez meu muito obrigada cara senhora, por sua carta tão gentil. Receba a
expressão de meus melhores sentimentos.
Léa.
Sob um determinado aspecto, Léa seguiu os conselhos de François; mergulhou de cabeça no
trabalho. Participou da vindima junto com prisioneiros alemães e operários agrícolas, carregou
pesadas cestas, auxiliou Ruth na cozinha, Alain Lebrun nas contas, ajudou Charles com os deveres
de casa, percorreu o campo com sua velha bicicleta azul em busca de mantimentos e cogumelos.
Fumava e bebia muito: não existia mais nenhuma tia Estelie para censurá-la carinhosamente. Sua
expressão tristonha, aliás, desanimava quem pretendesse conversar abertamente com ela.
Certa noite em que o humor de Léa mostrava-se ainda pior do que de hábito, Jean Lef'evre, que
viera jantar, disse-lhe:
- Você deveria sair com mais freqüência. Por que não vem comigo a Bordeaux? A gente podia ir ao
teatro, ao cinema...
- Não estou com vontade.
- O que está acontecendo com você? Não a reconheço mais. Entendo que as mortes de Laure e da
Srta. de Montpleynet a transtornaram, mas precisa reagir; a vida continua.
- E para sua mãe, a vida continua?... Deixe-me em paz, estou bem assim.
- Não, não está nada bem. Basta olhar para você. Perdeu a alegria de viver, toda sua vitalidade,
mata-se de tanto trabalhar, deixou de ler, nem liga mais para si própria, não é mais aquela de quem
todos nós gostávamos... Oh, desculpe!... Eu não queria magoá-la.
Jean faria qualquer coisa para parar aquelas lágrimas que ele mesmo provocara; ela chorava em
silêncio, de boca aberta, como se sentisse falta de ar.
- Não é verdade, gostamos muito de você, eu a amo, é por isso que sou tão desastrado. Léa, pelo
amor de Deus, pare de chorar!
Desajeitado, Jean apertou-a nos braços; seu rosto úmido, o perfume dos seus cabelos perturbaram-
no profundamente. Reviu-a completamente nua na fazenda Canelos, lembrou-se do corpo que se
entregava, que ele próprio e o irmão amaram por uma noite. Tentou apagar essas imagens...
impossível, faziam parte dele, para sempre arraigadas. Beijou o cabelo, os olhos, o pescoço, a boca,
suas mãos deslizaram pelas costas de Léa, pelos quadris, levantaram a saia... Ela cessara de chorar,
atenta. Encontravam-se no escritório de seu pai; afastou-se de Jean e fechou a porta a chave.
Febrilmente, Léa desabotoou a blusa, deixou cair a saia e a calcinha e revelou-se então, esbelta e
bronzeada. Com um gemido de prazer, Jean levou-a até o sofá. Tal qual aquela noite memorável, ela
o ajudou a se despir; Jean, atordoado, deixou que ela agisse.
- Não está aborrecida comigo?
- Claro que não - respondeu Léa, acendendo um cigarro.
- Foi ótimo.
- Estou tão feliz... se você soubesse como estou feliz!
- Que bom.
- Quando vamos casar?
Lá vinha ele com a mesma mania! Léa nem pensara nisso. Para Jean, o que acontecera significava
uma aprovação quanto ao casamento. Como fazê-lo entender que não se tratava disso, e que ela só
se entregara devido a um profundo sentimento de carência e solidão? Se revelasse a verdade, ele
ficaria magoado para sempre. Como sair dessa situação sem grandes estragos?
- Mas eu já disse, não pretendo me casar.
- Mas todas as mulheres têm vontade de casar!
- Talvez, mas eu não.
- Como, depois do que houve entre nós...
- E daí? O que aconteceu é muito natural entre um homem e uma mulher, nada de tão extraordinário
assim!
Jean, com o rosto em chamas, baixou a cabeça.
- Vamos, olhe para mim, qualquer mulher gostaria de se casar com você. Vai encontrar uma moça
legal...
- Cale-se! Eu a amo, e é só. Amo-a desde criança, desde então só penso em desposá-la...
- Tudo não passa de sonho infantil. Raoul também, aos dez anos, sonhava em se casar comigo.
- Como já disse, se você escolhesse Raoul, eu aceitaria, embora me sentisse muito infeliz; com ele,
você teria sido feliz.
- Com toda a certeza, mas eu também não o amava... Pronto, já falei, eu não o amo... gosto muito de
você, como se fosse meu irmão, muito mesmo, mas não para casar.
- Continua apaixonada por aquele Tavernier?
- Pois é, estou apaixonada por aquele Tavernier, como você disse...
- Mesmo depois do casamento dele?
- Isso é problema meu. Se quer manter a nossa amizade, não toque mais no nome dele... Agora, me
deixe, já é tarde e estou com sono.
Profundamente magoado, Jean Lefèvre saiu do aposento.
A vida continuou, mais triste e monótona do que antes. Certa ocasião, em que Léa se sentia
particularmente deprimida, enviou um telegrama a Victoria Ocampo. Esta respondeu simplesmente:
"Venha." Léa pediu a uma agência de viagens de Bordeaux que lhe reservasse um lugar a bordo de
um navio para a Argentina. Foi bastante difícil, os transatlânticos franceses encontravam-se super-
lotados; restavam as linhas estrangeiras. Encontraram um lugar na primeira classe no Cabo de
Buena Esperanza, saindo de Gênova em 11 de novembro. Mal sobrava tempo para as formalidades.
Agora, ela precisava anunciar sua viagem a Charles e a Françoise.
- Se acha que é melhor para você - foi o único comentário de Françoise.
Com Charles, não foi tão fácil. O menino chorou, expressou
toda sua tristeza numa linguagem infantil comovente. A promessa de um traje de gaúcho e de um
rápido regresso acalmaram um pouco sua aflição.
Na véspera de sua partida para Paris, Léa foi até o túmulo dos pais, de Esteile e Laure. Com todos
eles, deixava para trás sua infância e sua mocidade. Com 24 anos apenas, já se sentia velha e,
aparentemente, perdera todo seu entusiasmo. Profundamente carente e solitária, permaneceu
sentada na laje tumular, dominada por intensa sensação de desamparo. Nem mesmo percebeu que
padre Henri a observava.
- Vim para me despedir; sua irmã me disse onde você estava.
- Obrigada, padre. Deixo aqui tudo o que mais amo.
- Não, eles se encontrarão com você para sempre, como o Amor eterno. "Aonde você for, não se
esqueça das coisas simples, seja receptiva às outras, abandone todo egoísmo, é amando que se é
amado. Não tenha medo de viver de olhos abertos, sabendo da existência de todos os horrores do
mal e das maravilhas do belo; não tenha medo de ir ao encontro do novo. O absurdo absoluto para
um ser humano é de saber que está vivo sem nenhum objetivo..."
- Sem nenhum objetivo? É exatamente o meu caso.
- Não tem o direito de falar assim. Pense em todos os desgraçados. "Quando perdemos tudo... (ou
demos tudo), ou então quando enfrentamos enormes dificuldades, existem apenas dois tipos de
comportamento: podemos nos isolar em nossa própria dor, alheios a tudo e a todos, prostrados,
amargos e desesperados; ou então, ao contrário, com a mesma intensidade da nossa dor, podemos
pôr em prática uma abertura, uma espécie de permeabilidade, uma compreensão intuitiva e
apaixonada do desamparo de outrem. Tal atitude, é claro, se faz acompanhar de um violento
combate íntimo. Cada um de nós conserva seu temperamento, suas deficiências, seus defeitos...
Basta enfrentá-los. Ninguém consegue realizar essa tarefa sozinho. Essa abertura é sempre o
resultado de inúmeros encontros. Ora o encontro de vários indivíduos que se entendem de imediato,
que se ajudam uns aos outros e possuem o mesmo desejo de servir. Ora o encontro inicialmente
invisível, surgindo no âmago do ser humano, com o absoluto. A sua maneira, este se manifesta
e, como um amigo íntimo, pergunta "Você quer?', e respondemos 'sim'. Algumas pessoas chamam-
no de Eterno que é Amor. Outras não lhe dão nome algum. Entretanto, essas também o amam e
consentem."
- Consentem com quê?
- "Com o Amor. O amor? Isto é essa violenta paixão, a paixão da comunhão, a qual exige o ato de
servir a quem sofre mais, antes de servir a si próprio. Quem deseja viver em plenitude, seja qual for
sua condição, deve um dia passar por esse caminho. Tal tipo de enriquecimento, de plenitude, que os
únicos limites humanos de número, tempo, espaço e ilusão conseguem romper, só pode ser
alcançado através de uma extrema privação. O mundo só continua viável porque a cada dia, em
toda parte, seres humanos, através de suas desgraças, conseguem se abrir e recusam o isolamento.
Abrem e iluminam um caminho por onde a multidão pode caminhar, aos tropeços, mas sem
desalento. Existem poucos seres humanos que, por não terem sofrido o bastante, ignoram o que
significa sofrer, sofrer sem escapatória. Seriam inocentes devido a tal desconhecimento? Claro que
não. Pois foram concedidos aos seres humanos dois caminhos para penetrar nesse conhecimento:
sofrer inadivertidamente, de alguma maneira, ou então amar. E será que existe alguém capaz de ser
absolvido por ter vivido sem nunca amar?"
- Sofrer dentro de si mesmo!... Como explica então os milhões de homens, mulheres e crianças que
sofreram dentro de si mesmos? Não eram ignorantes nem maus, e o que aconteceu com eles?
- Eu poderia lhe afirmar que dormem na paz do Senhor, no que acredito profundamente; mas você
não aceitaria minha resposta, pois seu coração está repleto de ódio e ressentimento. No entanto,
existe em você uma grande disponibilidade para o amor. Há de chegar o dia em que sua confiança
no homem, na humanidade, voltará a se manifestar... Não ria, conheço as qualidades do seu
coração e sua generosidade. Sob uma capa fútil, talvez, esconde-se uma imensa sensibilidade para
com seus semelhantes, para com seus sofrimentos. "É difícil fazer aceitar que, apesar de tudo, o
Eterno é Amor. Sim, como explicar que é possível ser 'crente apesar de tudo', quando os meios de
comunicação nos mostram simultaneamente todos os horrores e todas as maravilhas do mundo?
Para mim, só foi possível no dia em que compreendi o quanto nos enganamos a respeito do Eterno.
Nós o caricaturamos segundo a nossa imagem humana. Porque, quando o homem é poderoso,
também é dominador; e assim fomos levados a imaginar que o Eterno, pelo fato de ser Todo-
Poderoso, também é dominador..."
- Mas não foi Deus quem nos criou à sua imagem?...
- "É no amor que nos parecemos com Deus. Deus nos criou livres para sermos capazes de amar;
esta liberdade é a verdadeira grandeza do homem. Deus, por ser Amor, é o "Todo-Poderoso-cativo'.
Se Deus fosse dominador, deveria ser condenado. Foi Camus quem afirmou: "Jamais aceitarei
entregar a minha fé a um Eterno criador de um mundo no qual choram e sofrem crianças inocentes.
Convém vingar Deus do insulto que lhe fizeram ao apresentá-lo como Todo-Poderoso-dominador.'
Convém vingá-lo mostrando-o "Todo-Poderoso-cativo-por-amor'. Assim como convém vingar o
homem, pois foi terrivelmente enganado."
- Vingar o homem? Isso sim, mas como?
- "Amando. Vingar o homem, vingar Deus amando."
Àluz do sol poente, o rosto do monge irradiavabondade a amor. Aquele amor em seu Deus, nos
homens, que ele tentava transmitir a Léa. Ela não permaneceu insensível ao seu discurso exaltado
que, em certos momentos, lembrava os de seu tio Adrien. Mas aonde fora parar esse tio, com sua fé
em Deus, no homem?... No inferno, se é que o inferno existia...
- Vou pensar em suas palavras, padre, e tentarei não esquecer que a vingança passa pelo amor.
Vingar-se amando, pensou Léa. Preciso falar com Sarah a respeito.
Regressaram calados a Montillac, passando pelo calvário que domina o campo, enquanto o sol
desaparecia num último fulgor.

Capítulo 19

Reclinada numa espreguiçadeira do Cabo de Buena Esperanza, coberta com uma manta, Léa
rememorava seus últimos dias na França: o jantar em Montillac, na véspera da viagem, com toda a
família, Jean Lefèvre, a mãe dele e o padre Henri. De comum acordo, só falaram de coisas banais.
Léa mostrara-se alegre e carinhosa com todos. Agora que chegara a hora de deixá-los, ela percebia
quanto os amava e quantas saudades iria sentir. Quando todos saíram ou foram dormir, Léa deu
uma volta pelo velho casarão e desceu até o terraço para um último adeus. Em cada momento
importante de sua vida, em cada partida como em cada regresso, ela costumava buscar força e
determinação naquele terraço, frente à aprazível paisagem de vinhedos, bosques e prados. Mais uma
vez, experimentava uma sensação de ruptura, de ida sem volta. Qual o seu destino? Ela não sabia
responder, apenas pressentia novos sofrimentos.
De sua permanência em Paris, ela guardava uma confusa lembrança. A presença diária de Franck,
que não aceitava a morte de Laure, seus passeios, os filmes que viram juntos, as lojas onde fizeram
compras com o dinheiro de François, tudo aquilo formava um emaranhado, assim como seu trajeto
até Gênova para embarcar em companhia de Daniel Zederman e Amos Dayan. No navio,
separaram-se; os dois rapazes viajavam na segunda classe e Léa sentiu-se aliviada, pois desejava
ficar sozinha. Durante a escala em Barcelona, ela pôde admirar os jardins de Gaudí, passear pelas vielas da cidade e assistir com Daniel a um
espetáculo de flamenco numa boate do porto. Em Lisboa, permaneceu no navio, com enxaqueca e
febril. Uma noite, convidada à mesa do capitão, conheceu um holandês de Amsterdam viajando a
negócios: tratava-se de Rik Vanderveen, um homem de cerca de trinta anos, simpático apesar de
uma certa frieza. Falava um excelente francês com ligeiro sotaque, afirmava ser um colecionador de
obras de arte, grande amador da pintura surrealista, correspondendo-se regularmente com André
Breton, Marcel Duchamp e Salvador Dali, que ele conhecera na casa de Lise Deharme, mulher
lindíssima e culta cuja residência situava-se perto dos Invalides. Todas essas conversas sobre arte e
literatura recordavam a Léa as que mantivera com o querido Raphaël Mahl. Inicialmente,
encontravam-se no bar todas as noites na hora do aperitivo, em seguida após o jantar, e por fim
acabaram sentados lado a lado na mesma mesa, em companhia de dois senhores cinqüentões que só
falavam inglês com um terrível sotaque.
Certo dia, ao chegar atrasada para o almoço, não foi notada e pôde ouvir os três homens falando
alemão em voz baixa; por um instante, Léa experimentou um certo mal-estar. O sedutor holandês
tornou-se em pouco tempo o maior admirador de Léa. Cortejava-a discretamente, e ela se mostrava
bastante receptiva. No entanto, sentia-se irritada com a curiosidade do homem a seu respeito: de
onde ela vinha? Qual a ocupação de seus pais? Tinha irmãos? Estava noiva? Por que viajava para a
Argentina? Na casa de quem pretendia hospedar-se? Quanto tempo pensava ficar na América do
Sul? Possuía amigos em Buenos Aires? De brincadeira, mais do que por desconfiança, Léa
inventara uma família, uma vida de jovem despreocupada e sem problemas. A única coisa sobre a
qual falou a verdade foi o convite de Victoria Ocampo, sem fornecer porém maiores detalhes.
Rik Vanderveen dançava muito bem, talvez um pouco duro, o oposto do tão desenvolto François
Tavernier; mas seu desempenho era muito agradável, principalmente no tango. Todas as noites, Léa
bailava até as duas da manhã. Sua juventude e beleza animavam
aquelas noites um tanto ou quanto formais; ela não recusava ninguém que a convidasse, mas dava
preferência a Vanderveen. Certa noite, ao levá-la até a porta da sua cabine, ele a puxou para si e a
beijou. Léa não resistiu e demonstrou inclusive um certo prazer; em seguida, com ar provocante,
fechou a porta na cara dele. Após entrar na cabine, acendeu a luz e deu um berro.
- Léa, o que aconteceu? - gritou Vanderveen por trás da porta. Com um dedo nos lábios, Amos fez
sinal para que ela respondesse.
- Nada. Esbarrei na escrivaninha. Boa noite, até amanhã.
- Tem certeza de que não precisa de nada?
- Claro, muito obrigada. Boa noite.
- Boa noite.
Sem tirar o dedo dos lábios, Amos afastou Léa da porta.
- O que faz aqui? - disse ela em voz baixa.
- Estava esperando por você. Faz muito tempo que conhece esse homem?
- Quem?
- Rik Vanderveen.
- Desde o dia em que embarquei. Simpatizamos logo.
- Não observou nada de estranho?
- Não. O quê, por exemplo?
- Quais são suas relações com as outras pessoas da mesa?
- Com o Sr. Barthelemy e o Sr. Jones? São apenas companheiros de mesa. Costumam se
cumprimentar, mas conversam pouco... Ah, sim! Uma vez.., os três estavam falando alemão.
- O que diziam?
- Não entendi muito bem, falavam em voz baixa e se calaram quando cheguei... Acho que ouvi as
palavras "submarino" e "Córdoba"... Está imaginando que sejam fugitivos nazistas?
- Não sei. Tentamos obter informações pelo rádio. Por enquanto, seja pmdente e veja se consegue
maiores detalhes a respeito deles.
O ar fresco fez Léa estremecer; dobrou a manta e retornou à cabine.
Um buquê de rosas com um cartão enfeitava a penteadeira: "Espero
por você hoje à noite no bar, Rik." E se fosse um nazista?, pensou. Parecia difícil. Ele já não
lhe relatara sua aversão à guerra e às atrocidades cometidas pelos alemães? O fato de falar alemão
não era surpreendente, muitos holandeses dominavam essa língua. Amos e Daniel estavam
enganados, viam nazistas por toda parte. No entanto, Léa continuava preocupada; tomou a firme
decisão de se mostrar mais prudente e tentar saber mais a respeito de Rik Vanderveen.
Para o jantar, pôs um vestido longo de crepe marfim com a blusa drapeada e penteou para cima o
cabelo ondulado. Sorriu de satisfação ao ver-se no espelho.
Reinava uma grande animação no bar. Jocelito, o pianista, tocava uma valsa lenta e Ricardo, o
barman, especialista em deliciosos coquetéis, sacudia energicamente seu shaker. Sorriu quando Léa
entrou.
- Buenas tardes, senora.
- Boa noite, Ricardo.
- Preparei um coquetel em sua homenagem, senhorita, em homenagem à França; quer experimentar?
- Com muito prazer. Como se chama essa bebida?
- Segunda DB, senhorita.
O fantasma de Laurent d'Argilat com seu tanque passou. Léa pegou o copo e bebeu em lembrança
ao rapaz desaparecido.
- É muito bom, mas fortíssimo.
- Cuidado com as misturas de Ricardo, são terríveis - comentou Rik Vanderveen, aproximando-se do
bar.
- Obrigada pelas rosas, Rik, são magníficas.
- Vamos sentar. O que deseja tomar?
- Outro segunda DB.
- Conheceu alguém naquela divisão?
- Sim, um amigo muito querido que foi morto na Alemanha.
Vanderveen suspirou.
- Todos perdemos inúmeros amigos nessa guerra.
- Onde esteve exatamente naquele período, Rik?
- Em 40, fui feito prisioneiro. Passei os quatro anos num campo de oficiais.
- Foi muito duro?
- Bastante; mas nada demais comparado aos sofrimentos dos judeus nos campos de concentração.
- Tem amigos judeus?
- Alguns. E você?
- Tive um que morreu; e uma grande amiga, que foi deportada.
- Ela voltou?
- Não sei - mentiu Léa.
Durante alguns minutos, beberam calados.
- Conhece os senhores Barthelemy e Jones?
- Tanto quanto você. Sei que estão indo à Argentina para tratar da exportação de carne e que ambos
são irlandeses. Qual a razão da pergunta?
- Nada não. Vamos jantar, estou com fome.
Após a refeição, Léa queixou-se de enxaqueca e voltou para sua cabine, onde encontrou uma
mensagem lacônica de Daniel:
"Esteja amanhã domingo na capela para a missa." Pensativa, ela se deitou mas não conseguiu
adormecer; levantou-se, vestiu uma calça comprida e um pulôver e foi até o convés. Ouviu música
no salão onde havia gente dançando. Encostada na popa, com os cabelos esvoaçantes, ficou olhando
o mar iluminado pela lua. Um céu espetacular mostrava-se coalhado de estrelas. François estaria
olhando para o mesmo céu, pensando nela, ou já se esquecera de tudo?... Léa não o avisara de sua
chegada. No caso de Tavernier não ter encontrado Victoria Ocampo, ficaria profundamente
surpreso, zangado talvez. Em compensação, Sarah experimentaria o maior prazer em revê-la. Quem
sabe eu possa ser útil?, pensou. Um ruído de vozes despertou-a de seus pensamentos; uma dentre
elas pareceu-lhe familiar. Intuitivamente, escondeu-se atrás de um rolo de cordas. Só conseguiu
ouvir fragmentos de frases em alemão:
"Ajudar colegas... autoridades aliadas.., internacional sionista... felizmente Perón... numa estancia
na Patagônia... nosso tesouro de guerra... seremos os mais fortes... Cuidado... tem alguém
chegando... Ah, é você.., não, não sabemos de nada... nos encontraremos em Buenos Aires... É
melhor nos separarmos, não devemos ser vistos juntos..."
Logo em seguida, aqueles homens se afastaram. Léa saiu do esconderijo: reconhecera perfeitamente
a voz do Sr. Barthelemy. Amos e Daniel tinham toda razão!... Amanhã cedo, iria avisá-los. Após
olhar à sua volta, retornou rapidamente à sua cabine.
Quando Léa chegou, a pequena capela do navio já se encontrava superlotada. Os fiéis que não
conseguiram lugar assistiam de pé ao ofício. Perto da porta, encontravam-se seus dois amigos, meio
acanhados. Léa se aproximou. Disfarçadamente, Daniel pôs um pedaço de papel em sua mão; por
sua vez, ela também lhe entregou um no qual relatava o que ouvira na noite anterior.
Após a missa, os passageiros da segunda classe regressaram ao seu convés. Rik aproximou-se de
Léa.
- Dormiu bem? E sua enxaqueca, já passou?
- Sinto-me ótima, e o tempo está lindo. Amanhã, fazemos escala no Rio. Conhece o Brasil?
- Já estive lá antes da guerra. É um país muito bonito, mas há muitos negros. Quer me dar o prazer
de passear comigo pela cidade?
- Talvez.
- Como assim, talvez? Não sou seu fiel escudeiro? Você não conhece ninguém a bordo para
acompanhá-la, e caminhar sozinha pelas ruas pode ser perigoso.
- O que poderia me acontecer?
- Na melhor das hipóteses, corre o risco de ser importunada. O homem sul-americano costuma ser
muito mais insinuante que o europeu. Então, aceita o meu convite?
- Veremos, amanhã é outro dia. Queira me desculpar, tenho hora marcada no salão de beleza.
- Muito bem, até já.
"Esteja em sua cabine às duas horas da manhã, tenho coisas importantíssimas para contar. Tome
muito cuidado. Assinado: Daniel." Parece um verdadeiro romance de espionagem, pensou Léa, que
rasgou a mensagem em mil pedacinhos, enquanto vigiava o cabeleireiro pelo espelho. Para disf
arçar, deu uma rápida olhada nas
revistas francesas, espanholas e americanas. Uma longa reportagem sobre de Gaulie chamou sua
atenção. Falavam de sua carreira militar, mas nenhuma palavra sobre suas atividades desde aquele
mês de janeiro, quando resolvera retirar-se da política. Ela se lembrou de sua decepção e profunda
tristeza. Como, ele também, o grande homem abandonava o navio e por quê? "A honra, o bom
senso, o interesse da pátria proibiam-me de continuar desempenhando uma função cujo objetivo
final seria deixar o Estado mais desprezado, o governo mais impotente, o país mais dividido e o
povo mais pobre. Por isso, eu deixei um cargo que me parecia ter sido entregue apenas para me
impedir de exercê-lo." Desde então, a França chafurdava em meio a desavenças partidárias; o belo
ideal da Resistência não sobrevivera muito tempo ao fim da guerra. Dentro de um mês, o Natal
chegaria, um Natal ao sol. Será que conseguiria experimentar a mesma alegria dos Natais de
outrora? Uma profunda nostalgia apossou-se dela. Sentada no secador, sentiu-se desconfortável, O
cabeleireiro, um efeminado que não falava uma só palavra de francês, aproximou-se para atendê-la.
Pela primeira vez durante a viagem, Léa sentiu-se irritada. Temia encontrar-se com Rik Vanderveen
na hora do jantar e receava ainda mais seu encontro tardio com Daniel.
Contrariando todas as expectativas, o jantar foi alegre e divertido. Convidada juntamente com Rik à
mesa do capitão, conheceu umajovem argentina que trabalhava na rádio de Buenos Aires. Num
francês razoável, a encantadora Carmen Ortega narrou com muito humor suas discussões com Eva
Duarte, esposa do presidente. Durante algum tempo, moraram juntas no mesmo apartamento da
calle Posadas, uma linda rua arborizada; no entanto, acabaram por se separar após várias altercações
a respeito dos seus respectivos amantes. Eva era resentida' , como já revelara em diversas ocasiões.
Vaidosa, invejosa, para ela toda mulher representava uma rival. Fingia-se freqüentemente de
menina ingênua para atrair as atenções. Carmen falou do encontro entre Eva e Perón no Luna-Park,
e como a bela atriz Libertad Lamarque fora afastada. Morena e com um corpo perfeito, Carmen
Ortega possuía o dom inato de representar. Ao final da refeição, tornara-se amiga de Léa.
Já eram quase duas horas da madrugada quando Léa voltou à sua cabine. Acabara de entrar quando
bateram à porta.
- É Daniel. Pode abrir.
O rapaz entrou precipitadamente.
- Amos e eu tínhamos razão, Barthelemy e Jones são realmente fugitivos nazistas, e dos piores: um
foi médico no campo de Buchenwald, o outro auxiliar do comandante do campo de Dachau.
Chamam-se Adolf Reichman e Maurice Duval.
- Esse nome é francês.
- É, família de origem francesa. O antepassado chegou à Áustria no século XVII.
- E Rik Vanderveen?
- Não encontramos nada a seu respeito. Parece realmente ser holandês, todos seus documentos estão
em ordem. Obteremos maiores detalhes em Buenos Aires. E do seu lado, quais são as novidades?
- Nenhuma. Amanhã, vou desembarcar com ele e observá-lo atentamente.
- Seja muito prudente, Barhelemy e Jones andam desconfiados. Querem saber mais a seu respeito.
- E quanto a vocês dois, algum problema?
- De certa forma, sim, mas é exatamente o que queríamos. Dois passageiros da segunda classe
acreditam que somos alemães foragidos da Europa. É claro que fazemos tudo para que pensem o
contrário, sem deixarmos de cometer pequenas imprudências. Relacionam-se com os seus dois
companheiros de mesa. Na chegada em Buenos Aires, teremos de evitar ao máximo que nos vejam
juntos, seria muito perigoso para todos nós. Por enquanto, felizmente, ninguém notou que nos
conhecemos e nossa saída em Lisboa passou despercebida. Convém ficarmos separados até a
chegada, exceto em caso de extrema urgência. Sabemos onde encontrá-la, aguarde notícias nossas.
Rik Vanderveen não experimentou o menor prazer em servir de cicerone às duas novas amigas que
descobriram encantadas as imensas praias do Rio, suas ruas animadas, suas luxuosas butiques. Para
Léa, tanto luxo e tanto exagero após a penúria da Europa pareciam surgir de um sonho. Mal
percebeu toda a miséria das favelas, avistadas de longe durante um passeio de táxi, dominada pela
alegria contagiante dos brasileiros. Embarcaram carregadas de embrulhos.
Durante os últimos dias da viagem, Léa e a amiga permaneceram juntas o tempo todo, o que deixou
Vanderveen profundamente irritado; prometeram encontrar-se em Buenos Aires.
O navio acostou segunda-feira, 16 de dezembro, às sete horas da manhã. O tempo apresentava-se
nublado e fresco. Havia um carro à espera de Léa. O chofer, enviado por Victoria Ocampo, explicou
que esta precisara viajar para Mar del Plata por alguns dias e pedia que Léa a desculpasse.
Reservara-lhe um quarto no Plaza Hotel, cujo gerente era seu amigo. Assim que regressasse, viria
buscar Léa para levá-la a San Isidro. Enquanto isso, o gerente colocava-se à sua disposição para
mostrar-lhe a cidade.
- Que sorte a sua! O Plaza é excelente, adoro o lugar. Vamos nos encontrar no bar, às nove da noite?
Depois, poderíamos jantar juntos.
- Com o maior prazer, até logo mais.
No Plaza, o gerente, que já estava à espera, levou-a pessoalmente até o seu aposento.
- Se precisar de alguma coisa, pode mandar me chamar. Vou lhe enviar a camareira. Concede-me a
honra de almoçar comigo?
- Mas é claro.
- Então até breve, vou esperá-la no restaurante.

Capítulo 20

- Já tinham me avisado, mas não acreditei que fosse verdade, O que faz aqui?
- Não está vendo? Passando férias.
Léa reprimiu o violento impulso de se atirar nos braços dele. Mas o principal era não demonstrar
sua alegria por revê-lo, não deixar que percebesse quanto ela o queria.
Santo Deus, como ela era linda, ainda mais desejável que antes, como se isso fosse possível! Por
mais que François tentasse se mostrar zangado, sentia-se feliz, profundamente feliz com a presença
de Léa, apesar de todos os problemas que, fatalmente, iriam ocorrer.
- Victoria Ocampo me disse que a convidou e que você aceitou, mas não imaginei que viesse.
- Você se enganou; cheguei.
- Quanto tempo pretende ficar?
- Não sei. Oh! François... tudo ficou tão difícil, tão triste!... Eu tinha a impressão de mergulhar num
tédio cada vez mais profundo... Não parava de pensar em Laure... naquela morte absurda... que era
eu que deveria ter morrido... E toda aquela monotonia, o imenso desencanto que tomou conta da
França... É pior do que durante a guerra, cada pessoa só pensa em si, em seu dinheiro, seu sustento.
O mercado negro nunca foi tão divulgado, o comércio dos tíquetes de abastecimento tão amplo... A
presença dos americanos chega a ser quase tão desagradável quanto a dos
alemães; trocamos as tropas de ocupação por outras... Todos têm a impressão de que não há saída...
Aqui, tudo parece mais fácil, as mulheres são elegantes, os homens bem-trajados, as feiras estão
repletas de alimentos e as lojas, de mercadorias. Encontra-se chocolate da melhor qualidade. Os
argentinos só pensam em se distrair e namorar.
- Trata-se de uma especialidade do país. O macho argentino, em qualquer lugar, sempre dá um jeito
de tocar no braço ou na perna de uma mulher, isso na melhor das hipóteses.
- Pensei que todos os homens agissem dessa maneira.
- Com você, não resta a menor dúvida-disse, ele abraçando-a.
- Largue-me!
- Nada disso, faz não sei quantas semanas que só penso em você e que não tenho...
- Não tem o quê? - disse ela, debatendo-se.
- Sabe perfeitamente a que me refiro. Mas talvez com você seja diferente. Ouvi dizer que a viagem
foi divertida, você não teve tempo de se aborrecer com tantos admiradores.
- Pois é, e daí?... Sou livre, não sou?
- Não é não! Você é minha.
Com que determinação ele pronunciara aquela frase! Atirou-a na cama. Léa, porém, apesar de seu
imenso desejo, estava resolvida a não ceder. Era fácil demais: bastava ele aparecer e pronto! Já caía
nos braços dele, apaixonada e meiga como uma gata. Convinha mudar de comportamento!
Entretanto, foi ele quem a soltou, levantou-se e acendeu um cigarro.
- Fui convidado para uma recepção após o casamento da filha do chefe de polícia, o general
Velazco. Toda a alta sociedade peronista deve comparecer, pode ser divertido para você.
- Sarah também vai?
- Claro, ela se tornou amicíssima de Eva Perón. É muito útil para nós. Trouxe algum vestido bem
sofisticado? Você tem de ser a mais linda.
- Acho que sim. A que horas vai ser?
- Às oito da noite.
Já passavam das nove horas quando François Tavemier, Sarah e Léa chegaram à recepção. A noiva,
com um vestido de babados e uma cauda imensa, um laço azul-escuro na parte superior do peito,
recebia os cumprimentos em companhia do marido, Léo Max Lichtschein, e do pai uniformizado.
Sentada, cercada por uma corte de rapazes, Eva Perón, coberta de jóias cintilantes, um lindo chapéu
cobrindo o coque muito bem elaborado, conversava animadamente. Acenou para Sarah.
- Cara Sra. Tavernier, como estou contente com sua presença. Boa noite, Sr. Tavernier, como vai? -
disse ela em espanhol.
- Muito bem, como sempre quando a vejo - respondeu, inclinando-se e beijando a mão que ela lhe
estendeu.
Eva Perón sorriu de satisfação ao ouvir aquele galanteio tão banal. Em seguida, olhou para Léa com
uma expressão de curiosidade e frieza ao mesmo tempo.
- Quem é esta jovem?
- É a Srta. Léa Delmas, uma amiga que acaba de chegar da França...
Eva cumprimentou com a cabeça e Léa fez o mesmo. Ambas não conseguiram esconder um
sentimento de mútua antipatia. Sarah contornou a situação.
- Léa é uma grande amiga, profundamente impressionada por estar em sua presença. Além do mais,
não fala espanhol.
Com um gesto, Eva revelou que não ficara aborrecida e voltou a conversar com os rapazes que a
rodeavam.
Sarah pegou o braço de Léa e atravessaram o salão, em meio a cumprimentos, apertos de mãos,
risos e trejeitos, até o terraço onde havia apenas três ou quatro pessoas.
Ao longe, sobre o rio da Prata, viam-se navios passando.
- Você se sente muito à vontade aqui, conhece muita gente. Faz tempo que não a vejo tão alegre e
satisfeita.
- Pois odeio todos eles. Só represento essa farsa para melhor me infiltrar nos meios peronistas e
descobrir quem ajuda os nazistas.
- Já tem alguns indícios?
- Já, o chefe de polícia, Juan Fiomeno Velazco, mantém relações com vários deles.
- Tem certeza?
- Absoluta, assim como o Dr. Rodriguez Arasja, que vive espalhando acusações sobre Velazco
quanto às suas relações amigáveis com membros de redes nazistas. Você sabia que Daniel e Amos
conseguiram identificar dois deles a bordo do Cabo de Buena Esperanza?
- Sim.
Antes de partir para Córdoba, foram recebidos na chefatura de polícia. Seu amigo holandês também
viajou para Córdoba. Ele não tentou te encomodar?
- Não, mandou flores com um cartão: "Até breve." Tem informações a respeito dele?
- Ainda não. Mas Daniel e Amos, que se encontram igualmente em Córdoba, estão atentos...
- Eles vão acabar sendo presos, pois, assim como eu, não falam uma palavra de espanhol!...
- No caso deles, é melhor assim. Lembre-se que se fazem passar por alemães e, na realidade, só
podem falar esta língua.
- Mas como se arranjam?
- Em Córdoba, a situação é muito simples. Os nazistas se instalaram na cidade sem enfrentar
problema algum. Temos no local amigos argentinos que receberam nossos dois rapazes com a
maior discrição. Por enquanto, Amos e Daniel estão num hotel que pertence exclusivamente a
alemães, desde o zelador até a camareira, passando por todos os empregados, com um cozinheiro
alemão que prepara comida alemã, num ambiente tipicamente tirolês.
- E o governo argentino tolera essa situação?
- A imprensa peronista é pró-alemã. Lembre-se de que a Argentina só entrou na guerra contra a
Alemanha um mês antes da capitulação. Samuel e Uri encontram-se em Buenos Aires. Graças a
comunistas argentinos, estão na pista de uma rede que organiza fugas de nazistas a partir da
Espanha. Vamos começar a agir dentro em breve. E você, o que pretende fazer na Argentina? Ainda
não sei por que veio.
- Nem eu sei.., para vingar Laure, talvez. Você encontrou a pista daquelas duas mulheres?
O rosto de Sarah contraiu-se.
- Ainda não, mas não vai demorar.
Os cachos do seu cabelo curto produziam uma espécie de auréola no rosto levemente maquiado de
Sarah, dando-lhe uma aparência ainda mais jovem. Ela estava extremamente elegante em seu
vestido de seda vermelha de bolinhas brancas.
- Léa, como é bom encontrá-la aqui!
As duas amigas viraram-se.
- Rik! Eu...
- Você parece surpresa. Não avisei que viria vê-la? Apresente-me a esta senhora.
- Sarah, apresento o Sr. Rik Vanderveen. Rik, apresento a Sra. Mui... Sra. Tavemier.
Rik bateu os calcanhares e inclinou-se.
- Encantado, senhora, tenho amigos que já me falaram a seu respeito.
- É mesmo?... Como assim?
- Como sendo amiga íntima da linda primeira-dama.
- As notícias se espalham rápido na Argentina. Está gostando do país?
- Muito. Os argentinos são extremamente hospitaleiros. E a senhora, sente-se bem aqui, tão longe de
Paris?
- Encontra-se em Buenos Aires tudo o que se costumava encontrar em Paris antes da guerra, trata-se
de uma cidade francófila, sinto-me muito à vontade.
- E quanto a você, Léa? Aprecia a terra do tango?
- Muito.
- Já se encontrou com aquela moça que conheceu no navio?
- Veja só... quando se fala do diabo... Carmen!...
- Che, Léa!... Querida, estou tão contente... Que coincidência!
- Vim com uns amigos. Lembra-se do Sr. Vanderveen?
- Como poderia esquecer nosso protetor das ruas do Rio? Que estranho encontrá-lo aqui. É amigo
do noivo?
- Não, do general Velazco.
Léa e Sarah entreolharam-se, e Carmen percebeu tudo.
- E você, é amiga de quem? Da noiva?
- Não, da seíiora Perón.
- Pensei que estivessem brigadas.
- Oh, não, é difícil brigar comigo. Léa, amanhã, vou apresentar um programa na Radio Beigrano,
com a presença do grande cantor de tango Hugo dei Carril. Está convidada, vai ser muito
divertido... Oh, que homem lindo!
- É meu marido - disse Sarah.
- Oh, perdão!
- Não tem importância. Querido, esta jovem acha você muito sedutor. Senhorita?...
- Carmen Ortega - respondeu com o rosto em brasa.
Léa afastou-se, com um aperto no coração. O que viera fazer nesse país desconhecido, com todos
esses estrangeiros?... Olhava para o homem que ela amava tanto, atrás de quem viera, apesar de não
aceitar esta hipótese, justificando-se atrás de falsos argumentos; François flertava com aquela jovem
atriz argentina só porque ela afirmara que era um homem lindo!... E Sarah representando o papel de
alcoviteira! ... E Rik Vanderveen, por que olhava assim para ela?... E se perceber algo estranho?...
Léa sorriu para ele.
- Parecia tão distante, ainda há pouco. Está aborrecida?
- Um pouco. Que tal a gente sair?
- Não seria muito educado para com seus amigos...
- Azar, estou com vontade de ir embora. Você vem?
François, que Carmen Ortega não largava, viu sair o casal e experimentou uma profunda raiva. Ah,
que menina danada! Em outra ocasião, ele daria o troco.
No restaurante La Cabana, na mesa vizinha à de Rik Vanderveen e Léa, seis homens falavam alto
em alemão, com a maior naturalidade, como se estivessem numa cervejaria de Munique. Pouco à
vontade, Léa mal conseguia permanecer sentada nem comer a carne de excelente qualidade que lhe
serviram.
- Não gosta? - perguntou Vanderveen.
- Não estou com muita fome.
- O lugar não é do seu agrado?
- Claro que sim, é divertido. Mas nossos vizinhos fazem muito barulho.
- Entende o que estão dizendo?
- Nada. E você?
- Um pouco. São alemães. Há muitos nesse país. Não reparou?
- Não, não prestei atenção. Vai permanecer muito tempo na Argentina?
- Depende de você.
- Como assim?
- É muito agradável para mim poder encontrá-la, e gostaria de aprofundar nosso relacionamento.
Léa não respondeu.
- Nada tem a dizer? Qual a sua opinião?
Responder o quê? Por que aceitara jantar com ele? Que tolice:
só para enciumar François.
- Seria ótimo - comentou com desenvoltura. - Mas preciso de tempo, agora tenho muitos
compromissos.
- Sou extremamente paciente, minha cara amiga.
Havia um tom de ameaça em suas palavras. Léa sentiu-se aliviada com o término da refeição. Ele a
levou de volta ao Plaza. No hall, Vanderveen agradeceu pela noite tão agradável e acrescentou:
- Vou deixar Buenos Aires por alguns dias. Assim que regressar, ligarei para você. Até breve.
Desejo-lhe uma noite excelente.
- Boa noite.
Junto com a chave do quarto, o funcionário da recepção entregou-lhe um recado.
No elevador, Léa leu a seguinte mensagem:
"Vou passar amanhã para almoçarmos juntas. Beijos, Sarah."
Sentada numa confortável poltrona no bar do Plaza, à espera de
Léa, Sarah tomava um naranja bilz. Viu quando ela entrou e acenou
com a mão. As duas amigas se abraçaram.
- Parece cansada - disse Sarah. - Não dormiu bem?
- Não. Não preguei o olho a noite inteira. Estou preocupada.
- Porquê?
- Não sei, sinto algo estranho... a sensação de alguém me observando, me vigiando.
- É natural, deve ser verdade. Qualquer estrangeiro, neste país, passa por um rígido controle da
polícia. Pode esperar por um interrogatório.
- Você também passou por isso?
- Com certa discrição. Sou casada com um diplomata e fazem questão de parecer simpáticos, mas a
polícia é muito atuante. Você precisa transmitir a imagem de uma jovem despreocupada, sem
problema algum, que só pensa em roupas caras, jóias, passeios. O desprezo dos argentinos em
relação às mulheres é tão forte que não conseguem imaginá-las de outra maneira; não seja uma
exceção à regra, é o melhor que tem a fazer para que a deixem em paz. Quanto mais fútil e vaidosa,
melhor será para você.
- Vou seguir seu conselho. Onde está François?
- Viajou para Montevidéu.
- Por quanto tempo?
- Até o fim da semana. Pediu-me para cuidar de você.
- Muito gentil da parte dele.
- Não fique assim. Vamos, vou levá-la para almoçar num lugar muito freqüentado, o Odeon: é lá
que se encontram atores, jornalistas, escritores, e também pessoas menos recomendáveis. Depois,
iremos às lojas Harrods e Gath y Chaves, para ver as modas.
No Odeon, Sarah foi recebida como uma habituée.
- Aqui está a sua mesa, Sra. Tavernier.
- Obrigada, Mano.
No decorrer do almoço, Léa observou a farsa representada por Sarah; rindo e falando muito alto:
uma perfeita idiota, pensou Léa, que mal conseguia se manter séria. Entrando no jogo da sua amiga,
ela passou a imitá-la:
- Você viu o vestido da se flora Perón?... que elegância!... e o vestido da noiva?.., um certo exagero
nos babados, talvez.., e aquele laço!... ridículo, não acha?... em Paris, ninguém se veste assim... Seu
chapéu está uma graça... e o meu? é uma criação de Gilbert Orcei... lindo, não é?...
- Não está passando das medidas? - cochichou Sarah.
- Não mesmo. Veja só como os homens olham para nós, encantados. E as mulheres, todas elas
irritadas por nossa causa... Quem você está cumprimentando?
- Um casal de atores: Fanny Navarro e Narciso Ibanez Menta.
- Como consegue conhecer tanta gente?... Não olhe para trás.
- O que foi?
- Você não me disse que Amos e Daniel se encontravam em Córdoba?
- Sim.
- Pois acabam de sentar numa mesa perto da porta.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Continue se comportando como antes. Ninguém pode saber que os conhecemos. Se estão aqui,
algo deve ter acontecido. O que estão fazendo?
- Olhando o cardápio... Acenaram para o garçom... parece que estão fazendo o pedido... Daniel se
levantou... perguntou alguma coisa a um garçom... agora está indo ao toalete.
- Acha que nos viram?
- Penso que sim... Amos fez um sinal com a cabeça em direção a Daniel...
- Fique aqui, eu vou.
O tempo custou a passar. Finalmente, Daniel voltou. E Sarah, onde estava?
- Até que enfim! Como você demorou. O que aconteceu? Que cara é essa?
Pálida, o rosto transtornado, Sarah fez um esforço para sorrir.
- Encontraram a pista dos dois.
- De...
- Sim. Preciso avisar Samuel e Uri.
- Posso ajudar?
- Agora não. Volte ao hotel, as compras ficam para uma outra ocasião.
- Prometi a Carmen Ortega assistir a seu programa na Radio Beigrano.
- Mantenha a mesma programação. Pode ir, ligarei para você no fim do dia.
Ao redor de Léa, o público entusiasmado batia palmas para Hugo dei Carril, que acabara de cantar
Adiós pampa mia, como anunciara Carmen, que usava um vestido longo de cetim verde; o
apresentador fez um comercial dos cigarros Arizona e Carmen prosseguiu com El Casino Ruso;
em seguida a orquestra finalizou com uma rumba. Os aplausos foram demorados. Carmen veio
buscar Léa.
- Che, vou levar você ao meu camarote; espere por mim enquanto troco de roupa. O que achou?
- Foi ótimo. Gosto muito da voz de Hugo dei Carril.
- Depois de amanhã, meu convidado é Alberto Castillo, mais um grande do tango. Sente-se, não
demoro. Ajude-me a tirar o vestido.
O vestido de Carmen ficou no chão e ela apareceu com uma combinação de seda rosa e renda preta.
Estava linda.
- Ontem à noite, depois que você saiu, o general Velazco me fez um monte de perguntas a seu
respeito; há quanto tempo eu a conhecia, sobre o que falávamos etc. Eu nem sabia o que responder.
Só espero que seus documentos estejam em ordem e que você não seja amiga de nenhum comunista
ou estudante.
- Estudante?
- Sim, muitos são antiperonistas. Em Córdoba, houve várias manifestações contra Perón, a polícia
prendeu muita gente.
- Não conheço ninguém aqui, exceto você e Victoria Ocampo.
- Quanto a mim, não faz mal, eles me consideram uma atriz sem a menor importância. Em relação a
Victoria Ocampo, é mais complicado: ela e seus amigos são muito vigiados.
- Porquê?
- Victoria pertence à aristocracia argentina. Assim como inúmeros porteíios, ela também é
antiperonista. Entende, che?
- Acho que sim. E você, qual o seu partido?
Carmen olhou para a nova amiga e respondeu num tom hesitante:
- Che... a política não é meu forte, sabe. Como todas as
mulheres, não entendo nada, deixo o problema para os homens, que parecem achar tudo isso muito
divertido. Na França também não é assim?
- É sim, de certa forma... mas agora na França temos o direito de votar.
- Na Argentina ainda não, mas a bela Eva assumiu a missão de salvar as mulheres, mostrar-lhes o
caminho, logo ela que não passa de uma simples mulher do povo.
- Você está dizendo que Eva Perón é feminista?
- Che! Claro que não. Para Eva todas as mulheres são possíveis rivais; mas ela percebeu, a menos
que seja o próprio Perón, que se trata de uma força poderosa e está tentando atraí-las para o partido
de Perón. Segundo suas próprias palavras, Eva não é nenhuma solteirona feia para representar o
papel criado por inglesas, da mulher que só concebe o feminismo como uma espécie de revanche e
cuja vocação básica parece geralmente ser reservada aos homens. Ela julga que a imensa maioria de
feministas do mundo inteiro constitui uma espécie curiosa. Concordo com essa opinião. E você, o
que acha?
- Nem sei, nunca me debrucei sobre o assunto. Parece-me que, pelo fato de ser mulher, a gente
acaba se tornando feminista. Nunca me senti em oposição aos homens, e me considero capaz de
fazer as mesmas coisas que eles, nem melhor nem pior. Durante a guerra, as mulheres tiveram de
tomar decisões difíceis, muitas lutaram como homens, arriscando a própria vida para salvar crianças
judias ou aviadores ingleses. Naquele período, ninguém se questionava, a gente fazia o que
precisava ser feito.
- Aqui é bem mais complicado; com os homens e sua mentalidade de machos, não temos direito a
quase nada, ficamos sob a tutela dos pais, irmãos e maridos. Eva percebeu o problema. Ela anima as
mulheres a se tornarem economicamente independentes, sem renunciar à sua feminilidade. As
argentinas confiam nela. Quando ela afirma que a dona-de-casa encontra-se à margem de qualquer
tipo de seguro, que é o único ser humano no mundo que trabalha sem ganhar salário algum, sem
garantia de respeito, sem horário, sem domingos, sem férias ou lazer, sem indenização em
caso de demissão e sem possibilidade de greve, todas as mulheres aclamam-na calorosamente. Ela
chegou a sugerir que a nação pagasse um salário às mães, salário este proveniente das rendas de
todos os trabalhadores, mulheres inclusive...
- Não é má idéia.
- Também acho. No partido único da revolução, nem tudo é lixo.
- Qual é o lixo?
- Vou lhe explicar tudo mais tarde. Agora vamos ao Plaza. Você me oferece um drinque?
- Claro, é um prazer.

Capítulo 21

- Queira me perdoar, querida amiga, por não estar presente quando chegou. Mas assuntos
importantes me prenderam em Mar dei Plata. Você vem comigo a San Isidro, é claro.
- Só por alguns dias. Se não for muito indelicado, prefiro permanecer no Plaza.
- Como quiser. Após as festas de Natal, regresso a Mar dei Plata e você virá comigo - disse Victoria
Ocampo, ajeitando os óculos de armação branca.
- Vai passar as festas em Buenos Aires?
- Sim, vou reunir alguns amigos dentre os quais seu embaixador, Viadimir d'Ormesson. Já o
conhece?
- Ainda não.
- Você vai ver, é um homem encantador, cultíssimo, fiel em suas amizades, prestou um grande
auxilio ao meu amigo Roger Caillois. Virão também minha irmã Angelica, minha irmã Silvina com
o marido, o escritor Adolfo Bioy Casares, meu querido Jorge Luis Borges, Jose Bianco e Ernesto
Sabato. Talvez umas pessoas mais, poucas, como o Sr. e a Sra. Tavemier. Mandarei buscar sua
bagagem à noite. Vamos almoçar juntas no London Grili. Ali, eu me sinto um pouco em casa!
Depois, partiremos para San Isidro.
No London Gnul, havia uma multidão de homens no bar à espera de uma mesa. O matre
aproximou-se, muito atencioso.
- Senora Ocampo, que alegria de verla otra vez, nos echó de "nenos."
- Gracias, Hector
O almoço foi muito agradável, apesar das inúmeras interrupções provocadas por conhecidos de
Victoria Ocampo que vinham cumprimentá-la.
Todo sábado e todo domingo à tarde, Victoria Ocampo recebia para o chá amigos, escritores,
colaboradores da revista Su, intelectuais estrangeiros de passagem. Léa, instalada há dois dias no
casarão de San Isidro, ajudava a dona da casa e Angelica a receber os convidados. Ficou surpresa ao
ver Jorge Luis Borges comer tanto dulce de leche, uma espécie de geléia feita de leite e açúcar que
ela achava extremamente enjoativa e que todos os argentinos adoravam. Nora, irmã do poeta, falava
a respeito de sua pintura enquanto Adolfo Bioy Casares o fotografava; Sarah e Silvina Ocampo
conversavam animadamente, enquanto Viadimir d'Ormesson e François Tavernier discutiam em
voz baixa num canto do salão; todos falavam francês.
Léa sentiu-se um pouco à margem de todas aquelas brilhantes personalidades, que discutiam com a
maior desenvoltura a respeito de surrealismo, política, poesia, esoterismo, peronismo e
sindicalismo. Desceu os degraus da varanda e dirigiu-se para o terraço que dominava o rio. Fazia
muito calor, ela levantou a saia do seu vestido branco para sentar-se à sombra num banco de pedra
coberto de musgo verde, e olhou para os veleiros oscilando sobre as ondas. Um dentre eles
permanecia imóvel bem diante do casarão Ocampo. Aquela imobilidade chamou a atenção de Léa.
Havia três homens na embarcação; um deles olhava em sua direção com um binóculo.
Instintivamente, Léa recuou para a sombra, com medo de se mover, O tempo custava a passar
quando um ruído de passos, atrás dela, assustou-a. Ela se virou bruscamente.
- Oh, François, que susto você me deu!... Tome cuidado para não ser visto do rio.., olhe só aquele
veleiro,já faz uns vinte minutos que um homem de binóculo está observando a casa.
- Você tem razão, é muito estranho.
- Estou com medo. Não recebi notícias de Sarah, só pude vê-la hoje. Pelo que entendi, encontrou a
pista daquelas duas mulheres.
- É sim, foi por isso que regressei de Montevidéu antes da data prevista. Estão sendo vigiadas. Acho
que as duas nada perceberam. Em compensação, os amigos delas mostraram-se interessadíssimos
por nós...
- Por mim também?
- Sim, graças àqueles homens do Cabo de Buena Esperanza. Felizmente, não parecem ter
localizado Samuel e Uri, nem Daniel e Amos, que estão instalados no mesmo hotel que as duas
mulheres, o Jousten, em Corriente, e cujos clientes são quase todos alemães...
- Mas que idéia foi essa de se atirar na boca do leão?
- Encontram-se mais seguros no próprio terreno dos nazistas do que nós do lado de fora. Estou
preocupado com você, minha querida, e gostaria que estivesse longe de tudo isso; nada aqui lhe diz
respeito.
- Como assim? Não me diz respeito?... Não foram eles que assassinaram Laure?
- Vamos vingá-la, mas isso não vai trazê-la de volta.
- Sei, mas não posso viver com a idéia de que seus assassinos continuem em liberdade.
- Não será por muito tempo.
- O que vocês pretendem fazer?
- Por favor, já lhe falei, não se preocupe com essa história. Quanto menos você souber, melhor.
François abraçou-a carinhosamente. Ela se entregou sem resistência, experimentando uma deliciosa
sensação de bem-estar. Por que tudo era tão complicado? Seria tão mais fácil levar a vida sem
pensar no dia de amanhã! Ergueu a cabeça e eles se beijaram avidamente. Um ruído de vozes e risos
fez com que se afastassem.
Sarah e Victoria aproximavam-se, acompanhadas por Borges e Bioy Casares. Léa e François
levantaram-se.
- Léa, fiquei preocupada - disse Victoria em tom de censura.
- Esse parque é tão lindo e o rio tão imponente! Vim admirá-los.
- Pois é, esse lugar é muito bonito. Por quanto tempo? Depois de mim, o que será da casa?
Sarah aproximou-se e, em sinal de afeto, pôs o braço no ombro da amiga.
- Cara senhora, não é hora de pensar nisso.
Ao longe, no rio da Prata, o veleiro afastou-se. Léa foi a única que notou o fato e experimentou um
certo desconforto.
Voltaram lentamente para o casarão. François segurou o braço de Léa.
- Eu a quero. Por que não vai amanhã para Buenos Aires? O quarto do Plaza continua reservado em
seu nome?
- Sim.
- Vou pedir a Sarah para convidar você, parecerá mais natural.
- É, você pensa mesmo em tudo - disse ela rispidamente.
- Tudo bem, partirei amanhã.
Quase todos os convidados se despediram. Permaneceram apenas Silvina Ocampo, Bioy Casares e
Borges.
Durante a refeição, na imensa sala de jantar com pesadas cadeiras, Léa precisou esforçar-se para
estar atenta à conversa de Borges, que mudava de assunto com virtuosismo, sem ligar para sua
interlocutora.
- Gosta de pontes?...Vou levá-la à ponte Alsina, trata-se de um dos meus locais preferidos em
Buenos Aires.
- Jorge, não pretende mostrar a essa menina aquele bairro horrível, imundo e lúgubre - comentou
Victoria.
- Sua irmã não pensa assim. Freqüentemente, Silvina e eu caminhamos à toa pelas ruas da nossa
cidade, com o objetivo de nos perder. Infelizmente, nunca acontece! Gosto da feiúra de minha
cidade natal, tanto quanto de sua beleza. É fundamental caminhar numa cidade, nos subúrbios,
ouvindo a noite. Recordo-me de um longo passeio nos arredores de Buenos Aires antes da guerra, com Drieu la Rochelie;
já era tarde, andamos bastante e chegamos bem perto do campo. Percebíamos a planície que
aumentava, as casas iam se tornando cada vez mais raras, cada vez mais baixas. Foi quando Drieu
descobriu a maneira mais exata de expressar aquela sensação. O que nós, poetas argentinos,
procurávamos há anos, ele encontrou de estalo. Era uma hora da manhã. Ele me disse: "Vertigem
horizontal." Era exatamente isso. Tinha de ser francês para expressar com tanta clareza o que nós,
argentinos, sentimos. A França é por excelência um país literário. Suponho que é o único país onde
as pessoas se interessam por problemas literários. Não se trata de cenáculos ou de divergência entre
diferentes escolas. Deve fazer parte do espírito histórico dos franceses, essa maneira de ver todas as
coisas em função da história, o que não acontece em nenhum outro lugar, não é verdade?
Léa sentiu-se totalmente incapaz de responder ao escritor. Em seguida, Borges começou a falar de
Flaubert, Schopenhauer, Stevenson, Kipling, Oscar Wilde... De Flaubert, ela só lera Madame
Bovary e de Kipling, O Livro da Selva!... muito pouco para manter uma conversa com aquelas
pessoas que pareciam brincar com o francês, o espanhol, o inglês e o italiano. Léa sentiu-se tola e
ignorante... e não ficou satisfeita. Pouco a pouco, passou a manter-se alheia àquela reunião,
recordando-se dos jantares de Montillac, quando seu pai e seu tio Adrien falavam de seus livros
preferidos. A menina de então ouvia tudo com prazer, feliz quando o nome de algum escritor era-
lhe familiar - às vezes, não passava do lugar ocupado por um livro qualquer na biblioteca de seu pai.
Quando criança, só ela ajudava o pai na arrumação dos livros. Mais tarde, começou a ler, iniciando
suas leituras pela primeira letra do alfabeto. Foi assim que leu vários romances de Edmond About:
Matre Pierre, a respeito da drenagem das Landes, Le Roi des montagnes, L'Homme à l'oreille
cassée... Os dezoito volumes das Mémoires da duquesa de Abrantês, Les Poésies
philosophiques de Louise Ackermann, Irène et les eunuques de Paul Adam. Na letra B, depois de devorar Les Epoux malheureux e Les Amants
malheureux de Baculard d'Arnaud, atirou-se com muita gula sobre La Comédie humaine de
Balzac. De Constant, apreciou bastante Adolphe e de Farrère, Fumée d'opium; passando por
Corneilie e Delly. Na letra F, deixou de ler por ordem alfabética na biblioteca do pai e foi buscar, ao
acaso de sua inspiração, na letra M: encontrou Mauriac e Montaigne; na letra R, Rimbaud e Paul
Reboux... Quando as pessoas se surpreendiam com seus saltos de Bourget a Voltaire, ela costumava
responder com certa irritação: "São apenas livros." Para ela, naquela época, a
leitura representava
antes de mais nada uma fuga, uma evasão. O estilo, o assunto, a época não tinham importância; a
única coisa que existia era o prazer da leitura, da descoberta. Muitos anos mais tarde, Léa conseguiu
estabelecer a diferença entre a boa literatura e a de segunda categoria - sem nunca renegá-la.
- ...Para escrever realmente alguma coisa, exige-se o desempenho do corpo e da alma, e não se sabe
qual será o resultado...
Quem estava falando? Léa teve um sobressalto, como se despertasse de um sonho.
- Ei, Léa, por onde andou? Perdida em seus pensamentos?
- Estava pensando no meu pai e nos livros que amei.
Pronunciou essas palavras em voz baixa. Durante aqueles minutos de ausência, ela fugira da
Argentina, das ruas sombrias evocadas pelo poeta, daquele suntuoso casarão com seus convidados
tão falantes e cultos, das ameaças pairando no ar e envolvendo seus amigos, da lembrança de Laure
morta... Ela estava de volta, saudosa porém mais calma.
- Se não ficar aborrecida, Victoria, vou para meu quarto. Estou caindo de sono. Algum problema?
- Claro que não. Você deve nos considerar uns chatos, com todos os nossos discursos literários.
- Nada disso, mas percebi o quanto sou ignorante.
Ela não reparou no rápido lampejo que iluminou os olhos míopes de Borges.
No dia seguinte, Victoria Ocampo deixou-a na calie Florida, diante do Jockey Club. Sem pressa,
olhando as vitrines, Léa caminhou até o Plaza. Fazia calor, as mulheres usavam vestidos curtos estampados, os homens olhavam
para elas, com ar de superioridade, bebericando mate ou fumando pequenos charutos pretos. Léa
atraía olhares insistentes, piadas de mau gosto, toques indiscretos. A sensação não era desagradável,
parecia uma homenagem à sua beleza. Os desejos que ela adivinhava excitavam os seus próprios;
dentro de poucos instantes, estaria nos braços do homem que amava, o resto não importava. Deteve-
se demoradamente na frente de uma loja que apresentava modelos de Paris; aquele conjunto verde
com bordados brancos era encantador; quanto àquele vestido de verão listrado e colorido, uma
graça, mas... e o rosto refletido no vidro ao lado do vestido?... Por que tanta angústia?... havia ódio
no olhar do homem fixo em sua imagem... ela virou para trás... O homem ficou surpreso e recuou;
em seguida, sem deixar de olhar para ela, deu meia-volta e foi embora. Passou pela sede do jornal
La Nación e empurrou uma pessoa que lia folhas impressas expostas do lado de fora. Tudo
aconteceu muito rápido, mas Léa teve tempo de reconhecer o Sr. Barthelemy. Os dois homens
sumiram na multidão.
Agora o tempo ficara mais triste, as lojas menos atraentes, a rua menos alegre, repleta de perigos
ocultos. Léa precisou esforçar-se para não sair correndo. Pela primeira vez, desde que chegara a
Buenos Aires, não parou para admirar os buquês da magnífica loja de flores, na esquina do Plaza.
- Tem um recado, senhorita - disse o funcionário da recepção ao lhe dar a chave do quarto.
O táxi deixou Léa na esquina de Suarez y Necochea, no bairro de la Boca. Que idéia, marcar um
encontro num lugar desses! Ela olhou à sua volta, tentando orientar-se. Não era fácil, nessa cidade
onde as ruas se cruzavam em ângulo reto. Assim como Léa se sentia à vontade nas ruas tortuosas de
Paris ou Bordeaux, em Buenos Aires tinha a impressão de se encontrar sempre no mesmo lugar.
Agora, o ambiente era um pouco diferente: nada de lojas, um bairro paupérrimo com casas baixas,
calçadas esburacadas, cobertas de lixo, os poucos bares ou cafés fechados. Naquela hora, no início
da tarde, tudo parecia dormir
sob o calor do verão. Um cão faminto veio farejar os pés de Léa e fugiu diante de seu gesto
ameaçador. Ela tropeçou nas raízes de uma árvore imensa no meio da rua e soltou um
palavrão. Apesar do seu chapéu de palha, a claridade incomodava-lhe os olhos; sentia o
suor escorrendo pelas costas e entre os seios. Ninguém morava nesse maldito bairro? De
uma janela baixa protegidapor uma grade, saía uma canção de Carlos Gardel. Léa inclinou-
se. Apesar da penumbra do lugar, avistou mesas e cadeiras. Sobre as mesas, copos e pratos
sujos, no fundo um balcão e uma fileira de garrafas. Perto da janela, uma escada estreita e
íngreme com cinco degraus. Ela desceu, segurando-se nas paredes imundas. Durante alguns
minutos, não conseguiu enxergar absolutamente nada. Após o forte calor da rua, o ar do
salão arejado por um grande ventilador pareceu-lhe delicioso. Exceto a voz de Carlos
Gardel e o rangido do ventilador, não se ouvia o menor ruído no bar. Pouco a pouco, seus
olhos habituaram-se à penumbra. O aposento estava vazio, sem fregueses e sem dono.
Como se dizia mesmo em espanhol: "Tem gente?..." Para expressar sua presença, ela
tossiu, empurrou as cadeiras.., no rádio, a voz do cantor calou-se, substituída pelos
guinchos de uma locutora. A imagem de Carmen Ortega de pé diante do microfone surgiu
em sua mente... Nas paredes sujas, retratos de estrelas de cinema em molduras desbotadas:
Léa reconheceu alguém... claro, tratava-se de Eva Perón... morena e com o rosto mais
redondo na foto, umas palavras manuscritas com uma letra bem grande, assinadas "Eva".
Léa subiu a escada; a rua continuava deserta e branca de calor; voltou para o bar e deixou
cair o corpo numa cadeira. Naquela altura, sentia-se melhor aqui do que lá fora; talvez
alguém acabasse chegando. Ela estava com fome. Levantou-se e, atrás do balcão, reparou
uma cortina vermelha que mal dissimulava uma abertura, com certeza a cozinha. Afastou a
cortina; percebeu logo um cheiro desagradável de gordura. A única luz provinha de um
respiradouro imundo; a sala era sombria. Bem devagar para não cair, Léa caminhou,
oprimida por aquele silêncio. Bateu como pé numa coisa mole e reprimiu um grito,
completamente aterrorizada. Trêmula, ela se abaixou. Sua mão encontrou um corpo
estendido no chão;
sentiu o coração batendo forte. Agarrando o corpo pelos ombros, arrastou-o para o meio da sala.
- François!
Os olhos estavam fechados, havia sangue coagulado no cabelo. Léa apanhou uma jarra no balcão e
despejou lentamente a água em sua testa... gemendo, ele moveu a cabeça para a direita e para a
esquerda e abriu os olhos.
- François!
Com imensa dificuldade, ele se ergueu.
- Dê-me alguma coisa para beber.
Todas aquelas garrafas! Qual delas escolher?... Ao acaso, pegou uma, cheirou o conteúdo: servia.
Ele bebeu pelo gargalo, engasgou-se, tossiu, cuspiu, xingou.
- Mas isso não é bebida, é ácido! - exclamou antes de tomar outro gole.
Sem largar a garrafa, conseguiu ficar de pé, com a camisa suja de sangue e álcool.
- Faz muito tempo que você chegou?
- Não sei, uns vinte minutos. O que aconteceu?
- Marquei o nosso encontro neste bairro, porque considerava o lugar mais discreto que o Plaza.
Fiquei com sede, entrei neste bar; havia marinheiros, gente do porto, almoçando...
- Não vi ninguém!
- Fugiram todos. Eu acabara de chegar quando senti que me seguravam por trás. Devem ter pensado
que eu estava morto, por isso se mandaram. Você me encontrou aqui?
- Não, foi na cozinha.
- Não entendo... É melhor sairmos daqui, podem voltar, a menos que tenham ido chamar a polícia, o
que seria pior ainda.
- Você não pode sair assim, precisa de um médico.
- Pensaremos nisso mais tarde. Vamos.
Na calie Necochea, exceto alguns cães, não encontraram ninguém. O bairro parecia completamente
deserto.
- Vamos andando em direção à avenida Don Pedro de Mendoza, ao longo do rio Riachuelo,
acabaremos encontrando um meio de transporte.
Na avenida, um ônibus aos trancos e barrancos tentava evitar os buracos da rua. Tavemier acenou
para que parasse. O veículo diminuiu a velocidade em meio a um rangido de ferro velho.
- Suba- disse, empurrando Léa.
No pára-brisa, via-se todo tipo de enfeites: penduricalhos, retratos de santos, da Virgem, de ídolos
do futebol, fotos de crianças, mulheres nuas...balançando ao ritmo dos solavancos.
- Che! Senhor, foi sua esposa quem fez isso?
- Ela é muito ciumenta.
- Já percebi.
- disse o chofer com pena, sem parar de vender os bilhetes enquanto continuava dirigindo.
Foram sentar no fundo do ônibus, entre duas matronas cheias de embrulhos. Durante todo o trajeto,
não trocaram uma só palavra. Aninhada contra ele, Léa deixou de se sentir tão apavorada.
O chofer parou na frente de um prédio imenso e gritou, apontando com o dedo:
- Seiior tendría que ir a curarse ai hospital.
- Gracias. Es una buena idea.
- Senhor, devia ir ao hospital fazer um curativo.
- uma boa idéia, obrigado.
François e Léa saltaram do ônibus.
- Ei, táxi!
- E o hospital? - perguntou Léa.
- Fica para outra ocasião, suba... Para a embaixada da França
- Tavernier, tem certeza de que não está escondendo nada?
- Sr. Embaixador!...
- Tudo bem, fique com seus segredos, mas não conte comigo se tiver problemas com a polícia
peronista. O general Velazco não brinca em serviço. Se você e seus amigos caírem nas mãos dele,
nada poderei fazer. As instruções que recebemos de Paris são formais: nada de incidentes com os
argentinos.
- Pode ficar tranqüilo, Sr. Embaixador, nada temos contra o governo argentino...
- Não me interessa contra quem...
- Ora, contra ninguém.
- Tavernier, não pense que sou algum idiota. Eu também tenho meus informantes. E essa jovem que
ficou na casa da minha esposa?
- A Srta. Delmas?... É uma amiga de Sarah, de uma conhecida família de Bordeaux...
- Bordeaux?... Bem... Mas o que faziam juntos naquele bairro tão estranho?
- A essa hora do dia, la Boca é bastante sossegado. Eu só queria lhe mostrar um bairro pitoresco de
Buenos Aires.
- Pitoresco, pitoresco... o lugar desta moça é nas lojas da calie Florida e não em la Boca, mesmo
nessa hora do dia... O que ela veio fazer na Argentina, sozinha?...
- Está fora da realidade, Vladimir, hoje em dia as moças viajam sozinhas - comentou Tavernier em
meio a uma gargalhada.
- Mas está errado. Seja como for, convém que ela seja prudente. Está hospedada na casa da Sra.
Ocampo, pelo que me contaram?
- Está, ambas se conheceram em Nuremberg.
- Em Nuremberg?... Mas o que é que uma jovem como a Srta. Delmas foi fazer em Nuremberg?
- Assistir ao processo dos criminosos nazistas.
- Dos criminosos! ... Essa não!... Não me diga que ela foi deportada?... Pobre menina.
- Não, trabalhava para a Cruz Vermelha. Se quiser, pode perguntar-lhe pessoalmente.
- Eu não gostaria de trazer à tona recordações tão desagradáveis. São momentos terríveis que nem
quero lembrar.
- Acho difícil conseguir esquecer.
O tom ríspido de François Tavernier ao pronunciar essas palavras fez com que Vladimir
d'Ormesson, surpreso, franzisse as sobrancelhas.
- Não foi o que eu quis dizer. Está se referindo à sua esposa, não é?... Admiro muito a coragem da
Sra. Tavernier e fico profundamente sensibilizado com a confiança que vocês dois depositaram em
minha pessoa, contando-me esse triste passado... A Srta. Delmas está a par de tudo?
- Sim, mas é a única dentre nossos conhecidos.
- Não se preocupe. Agora vamos nos juntar às senhoras.

Capítulo 22

Léa encontrava-se em Mar dei Plata, na casa de Victoria Ocampo, há uma semana e já não sabia
como responder aos inúmeros convites da juventude dourada do iocai. Só se falava de passeios no
mar, piqueniques nas estancias da redondeza, excursões de bicicleta, partidas de tênis ou golfe,
noites dançantes ou chás. Todos disputavam a presença da jovem francesa, hospedada na casa de
uma das personalidades mais visadas de Mar dei Plata.
Em Buenos Aires, Natal e Ano-Novo foram comemorados com festas e bailes. Léa e Sarah foram as
rainhas da colônia francesa e embelezaram os jantares da embaixada da França. A agressão que
vitimara François Tavemier não teve continuidade, não se falava mais de nazistas, Samuel e Daniel
Zederman, assim como Uriben Zohar e Amos Dayan encontravam-se em Buenos Aires e
comportavam-se como turistas comuns. Carmen Ortega convenceu Sarah e Léa a terem aulas de
tango. Os complicados movimentos da dança, ia sentada, ei ocho, la corrida, já não apresentavam
mais dificuldade alguma para Carmen. Sarah revelou-se uma excelente aluna; quanto a Léa, trocava
todos os passos.
- Mais leve, seja mais leve!... Deixe-se levar - aconselhava o professor Arturo Sabatino, ex-
dançarino famoso, com o cabelo cheio de gomalina e uma calça muito apertada na barriga apesar da
cinta.
Assim como todos os aposentos da casa Victoria, as paredes do quarto dela eram revestidas de um
papel estampado com grandes
pássaros, cortinas na janela, e uma mobília de madeira laqueada. Durante o período da sesta, quente
e úmido, todos aqueles temas vegetais davam ao aposento um ar de estufa ou de selva, acentuado
por um tapete com rosas imensas. A belíssima casa de madeira, cujas varandas davam para um
parque arborizado, lembrava muito Montillac. As próprias Angelica e Victoria Ocampo se pareciam
com as tias Estelle e Lisa de Montpleynet. A dona da casa passava as manhãs trabalhando em seu
escritório hexagonal, deixando para a irmã e a fiel Fanny o encargo das tarefas diárias. A noite, após
o jantar, ela passeava pelojardim com Léa e alguns amigos; às vezes, sentava-se num banco e
recitava poemas. Léa gostava desses momentos calmos e melancólicos. Apesar de tudo, o tédio foi
chegando. Ela sentia falta de François e a saudade era tanta que não a deixava dormir. As carícias
solitárias só faziam aumentar seu desejo. Léa lembrava-se de sua ardente relação com François no
quarto do Plaza, após a cena da embaixada da França, e tinha a impressão de que tudo acontecera há
milênios. As danças da moda, como o merengue ou o samba, os banhos de mar seminua, o sol, os
homens sedutores transtornavam-na a tal ponto que ela mesma sentia-se envergonhada, apelidando-
se de cadela no cio. Já que François queria que ela se comportasse, era melhor vir buscá-la o quanto
antes.
De shorts e sandálias brancas, um lenço na cabeça, Léa pedalava pela avenida ladeando o mar. Ia ao
clube de golfe encontrar-se com Jaime Ortiz e a irmã Guillermina. Os dois, um pouco mais novos
que Léa, eram os líderes de um bando de moças e rapazes que só pensavam em se distrair.
Pertenciam todos às melhores famílias da Argentina e gastavam alegremente o dinheiro dos pais.
Guiliermina e a amiga Mercedes Ramos vieram correndo ao encontro de Léa.
- Andou fazendo segredinhos com a gente, querida, tem um homem muito sedutor à sua espera...
Não fique tão surpresa, ele é francês como você.
François... só podia ser ele, para perturbar a tal ponto essas meninas...
Foi até o terraço, onde bebia e conversava uma elegante multidão; numa mesa, encontrava-se
François Tavernier cercado por três jovens que pareciam completamente dominadas pelo charme do
rapaz.
- Aqui está ele - disse Guillermina.
Ele se virou com uma certa indolência. O clima argentino fazia-lhe um bem enorme; a pele
bronzeada realçava ainda mais seus olhos claros e acentuava seu ar sensual. Pelo modo como se
olharam, ficou claro para todas: os dois estavam apaixonados. Quanta volúpia naqueles olhares!
Tavernier percebeu que não conseguira esconder seus sentimentos, o que podia ser perigoso; mas
por que Léa era tão desejável? A cada encontro, parecia mais linda que antes! Quase morreu de rir
ao ver as caras decepcionadas das jovens quando Léa e ele apertaram as mãos como bons amigos
Decepção que aumentou com a pergunta de Léa:
- Como vai sua esposa?
- Muito bem, mandou-lhe um forte abraço.
- Devem ter muitas coisas para conversar, vamos deixá-los a sós - disse Mercedes.
François e Léa esperaram que se afastassem e riram às gargalhadas. Um garçom aproximou-se.
- O que você quer tomar?
- Um naranja bilz.
- /Dos, por favor!
- Muy bien, senor.
- Estou tão contente com sua presença. O que faz aqui? Onde está Sarah?
- Eu também estou muito contente. Tinha um encontro com uns chilenos em Mar dei Plata. Quando
partiram, ouvi aquelas moças dizendo que a esperavam e resolvi fazer o mesmo. Sarah regressou a
Buenos Aires.
- Por que você não veio para o sítio de Victoria?
- Era o que eu pretendia fazer se não encontrasse você. Volto imediatamente a Buenos Aires. Daniel
desapareceu.
- Daniel?...
- Sim, há três dias. A última vez que o viram, foi na ABC, uma cervejaria freqüentada por nazistas.
Amos e Uri estão seguindo uma pista por intermédio de um jornalista do La Plata Zeitung.
- ESamuel?
- Está feito louco. Quanto a Sarah, recebeu a confirmação da presença de Rosa Schaeffer e da sua
assistente Ingrid Sauter em Buenos Aires. Encontram-se hospedadas no Hotel Jousten e só saem à
noite com três ou quatro seguranças.
- Daniel não ficou neste mesmo hotel?
- Sim. Na véspera do seu desaparecimento, ele me comunicou sua intenção de mudar de hotel; não
se sentia em segurança.
- A polícia foi avisada?
- Mais ou menos. Ontem, falei com o general Velazco na embaixada da França. Como quem não
quer nada, perguntou-me se eu estava a par das redes sionistas encarregadas de caçar os nazistas.
Não estou certo de que ficou convencido com minha resposta.
- Vou voltar a Buenos Aires.
- Nem pense nisso. A situação pode piorar e muito rapidamente. Em Mar dei Plata, você corre
menos riscos. Em Buenos Aires, o clima de desconfiança tornaria sua permanência perigosa. A
polícia peronista anda prendendo muita gente: estudantes, comunistas, estrangeiros...
- Mais uma razão para ficar a seu lado.
- Por favor, Léa, não torne as coisas mais difíceis do que já estão. Se quisesse realmente me ajudar,
tomaria o primeiro avião para Paris...
- Você não me ama, se não...
Ele segurou o braço de Léa com certa violência.
- Cale-se, sua tola. Se eu não a amasse nem ligaria para você, aqui ou em outro lugar. Eu a quero
muito. Ainda tenho a esperança de poder, um dia, encontrar um lugar para vivermos juntos, longe
de tudo isso. Fique em Mar del Plata com Victoria Ocampo.
Havia uma súplica em sua voz. Léa sentiu-se comovida.
- Como você quiser.
- Oh, obrigado, minha querida! Se soubesse o peso que acaba de tirar dos meus ombros... Agora,
preciso partir.
- Já?...
- Tenho de percorrer quatrocentos quilômetros pelas piores estradas, e me esperam à noite.
- Quando nos veremos novamente?
Ele não respondeu, mas seu olhar transmitia um amor tão intenso que Léa quase se atirou em seus
braços. Seu corpo inteiro rebelava-se contra o esforço de resistir àquele desejo. Entregou-lhe então
sua mão trêmula e macia.
- Por favor.., não chore!
Com os olhos cheios de lágrimas, acenou com a cabeça.
À medida que ele se afastava, Léa experimentou a mais profunda angústia.
- Seu amigo foi embora?... Que pena um homem tão lindo ser casado - comentou Guillermina.
- Todos os franceses são iguais a ele? - perguntou Mercedes.
Léa fez um esforço para responder rindo:
- Todos. Deveriam pedir a seus pais que as mandem à França.
- Por que estão tão contentes, meninas? - perguntou Jaime Ortiz, chegando com outros dois rapazes.
- Falávamos dos franceses.
- Minha querida Guillermina, não existem só os franceses, os argentinos são os melhores do mundo,
você já devia saber - comentou Francisco Martineili, abraçando-a.
- Você ficou louco, na frente do meu irmão! - disse ajovem, afastando-se dele. - Cuidado, minha mãe
está chegando.
Uma senhora com roupa de praia, o rosto bronzeado e maquiado protegido por um chapéu de aba,
aproximou-se do grupo de jovens. Os rapazes levantaram-se e se inclinaram.
- Bom dia para todos. Meu marido organiza uma grande festa amanhã na estancia, com uma
orquestra brasileira...
- Oba! ... Que bom! ... Excelente idéia!
- Léa, é claro que contamos com você. Meu marido já sabe tanto a seu respeito pelas crianças que
deseja muito conhecê-la... Nem pense em recusar, já fui ao sítio de Victoria Ocampo e ela
concordou.
Por que não?, pensou Léa. Será uma boa distração.
- Você vai ver, não ficará decepcionada; a estancia é uma das mais belas da região - comentou
Jaime. - Quando vamos, mãe?
- Amanhã cedo. Ficaremos lá três dias. Meu marido já foi com uns amigos. Até breve, Léa, Jaime
vai passar por volta das seis horas da manhã.
- Obrigada, senhora, até amanhã.
O carro trepidava na estrada em meio a uma nuvem de poeira. A perder de vista, só havia campos
com raras árvores anunciando a presença de uma estancia. Vez por outra, rebanhos de bovinos
animavam a monótona paisagem. A estrada de terra corria em linha reta em direção ao horizonte;
encontraram um grupo de cavaleiros.
- Estamos chegando - disse Jaime, são os gaúchos do meu pai que vêm nos receber.
Léa ficou surpresa com as botas e o traje daqueles homens:
largos cintos cobertos de moedas, uma calça bufante e, por cima, uma espécie de saiote.
- Chama-se chi ripa. Na frente deles, sobre o cavalo, a manta dobrada é o poncho.
- E essas bolas penduradas?
- São boleadeiras. Servem para deter um animal fugitivo, cavalo ou vaca. O chicote achatado com
cabo de prata chama-se rebenque e a faca,facon. Eles vestiram a roupa de festa em nossa
homenagem. São homens muito orgulhosos e esplêndidos cavaleiros.
A frente do carro, os gaúchos penetraram numa alameda ladeada por gigantescas árvores. Após a
poeira e o calor da estrada, aquela sombra refrescante foi muito bem-vinda. Rodaram por mais de
um quilômetro. No fim da alameda, erguia-se um casarão de madeira, com varandas trabalhadas,
dominando um amplo gramado. No sobrado, um grupo de homens conversava. O dono da casa aproximou-se para receber os
recém-chegados.
- É a Srta. Delmas?... Bem-vinda à estancia Ortiz. Você é ainda mais encantadora do que o meu
filho contou. Tenho uma surpresa: um amigo seu que, por acaso, também faz parte do meu círculo
de amizades, veio nos visitar.
- Um amigo?...
- Sim: o Sr. Vanderveen.
Léa mal conseguiu disfarçar seu descontentamento.
- Bom dia, Léa... O mundo é mesmo muito pequeno. Quando soube que você viria, aceitei com
alegria o convite do meu amigo Ortiz. Fiz bem, não acha?
- Claro - respondeu Léa, apesar de pensar: Vá para o inferno!
- Vejo que sua permanência na Argentina está sendo proveitosa. Já conhece toda a alta sociedade: as
famílias Ocampo e Ortiz representam o que há de melhor.
- Conhece-os também, ao que parece.
- Negócios, minha cara, negócios. Como vão seus amigos tão simpáticos, os Tavernier?
- Creio que estão bem.
- Não me diga que não tem notícias deles, vocês parecem tão íntimos...
Guillermina contornou aquela situação embaraçosa:
- Venha, Léa, vou lhe mostrar seu quarto. Fica perto do meu, assim poderemos conversar bastante.
No interior da casa, reinavam conforto e riqueza: belíssimos móveis da época vitoriana, sombrios
retratos de antepassados, elegantes estátuas de bronze e suntuosos tapetes. No alto da escada que
conduzia ao andar de cima, uma tapeçaria do século XVIII com tonalidades veladas, representando
o julgamento de Salomão, chamou a atenção de Léa.
- Gostou? - perguntou Guillermina. - Pois eu detesto. Quando era pequena, sentia o maior medo de
ser apanhada pelo rei e de ser cortada ao meio. Cada vez que eu passava por aqui, gritava
tanto que tiveram de mudar meu quarto com minha governanta para o térreo.
- Um dia - disse Jaime -, eu me fantasiei de rei Salomão, se você a visse!... Por pouco, precisaram
laçá-la!
- E você, no dia em que apareci debaixo de um lençol, fingindo que era um fantasma, não se
mostrou dos mais corajosos.
- É verdade, masjá faz muito tempo. Quanto a você, confesse que sempre teve medo do rei
Salomão.
- Não é verdade - comentou Guillermina, vermelha de raiva.
- Claro que sim.
- Meninos!.., parem de brigar, O que vai pensar sua nova amiga?... Parecem crianças - disse a Sra.
Ortiz, em pé no alto da escada.
Embaraçados, os dois irmãos ergueram os ombros, olhando-se com rancor.
Era a mesma coisa com Laure e Françoise, recordou-se Léa, sorrindo com indulgência. Mas a
lembrança de Laure apagou seu sorriso. Sentiu um aperto no coração. Aflita, acompanhou
Guillermina até o seu quarto.
O aposento era lindo, o verdadeiro quarto de uma jovem, a cama enfeitada com um cortinado de
renda branca, exatamente como nos filmes americanos. Pairava um cheiro de cera e lavanda. Assim
como em Montillac. Mais uma vez, Léa mergulhou em suas tristes recordações. Sentia saudades de
casa. O que estava fazendo aqui, tão distante de sua realidade? O que procurava? Um profundo
desconforto a invadiu; em sua mente, tudo se debatia como um pássaro apanhado na armadilha; a
confusão de seus pensamentos fazia com que ela caminhasse pelo aposento, tal qual uma fera
enjaulada!
Léa acordou sobressaltada, com uma terrível enxaqueca. Que horas seriam?.., estava muito escuro.
A festa fora até tarde da noite. Após o assado, os gaúchos mostraram toda sua habilidade a cavalo,
um cantor apresentou melodias melancólicas e em seguida Jaime e a irmã quiseram
dançar: samba, merengue, boogie-woogie, um ritmo atrás do outro. Léa dançou até perder o fôlego.
O dono da casa, Manuel Ortiz e Rik Vanderveen chegaram a interromper a conversa para vê-la
rodopiando. Ela também bebeu muito. Com Jaime, deu uma demonstração de tango que arrancou
aplausos da platéia. Rik a convidou para acompanhá-lo numa música lenta; Léa gostou de sentir o
corpo bem apertado entre os braços de Vanderveen, e ficou irritada com sua própria sensação. Uma
dança, ainda vai.., mas por que aceitou ir com ele para o jardim, e não o repeliu quando Rik a
beijou?... Seria o álcool, a falta de homem?... Léa levantou-se no escuro e tomou lentamente um
copo de água enquanto abria a cortina de sua janela. Tudo parecia tão calmo... nem um ruído, nem
uma luz. Entretanto, lá fora... um círculo luminoso.., alguém com uma lanterna.., a claridade
aproximava-se da casa... Três ou quatro silhuetas de homens que pareciam carregar um pesado
fardo... Léa conseguiu ouvir murmúrios.., em espanhol... A lanterna iluminou um rosto... Sr. Ortiz...
o que fazia ele, em sua própria casa, com aqueles estranhos personagens?... Outro rosto surgiu
rapidamente da sombra... Rik Vanderveen!... Um dos homens xingou em alemão... Léa recuou,
apavorada... não era possível, devia estar sonhando.., pensou ter reconhecido a voz do homem que
dizia chamar-se Barthelemy... então, o outro era... O que fazia Ortiz com notórios nazistas?... E
aquele volume?.., era um corpo!... os quatro homens afastavam-se.., um ruído de motor... alguns
segundos mais tarde, acenderam-se os faróis... e desapareceram sob as árvores. No escuro, Léa
abriu a porta do quarto; lamparinas iluminavam fracamente o corredor deserto. O imenso casarão
parecia dormir. Ela hesitou em frente à porta de Guillermina... e dirigiu-se para a escada. Na
verdade, o rei Salomão tinha mesmo um ar terrível; Léa teve a sensação de que ele a seguia com um
olhar de censura. O térreo encontrava-se mergulhado na escuridão.., não completamente; sob uma
porta, na outra ponta do imenso salão, uma luzinha fraca... Léa aproximou-se tentando evitar os
móveis.., de repente, a porta abriu-se, ela só teve tempo de recuar e se esconder atrás de um sofá...
Jaime saiu, deixando a porta entreaberta... Daquele aposento, vinha um forte cheiro de charuto... De
pé, alguns homens
falavam com voz abafada. Não!... só podia ser um pesadelo!.., ali, na parede... um retrato e duas
bandeiras!... aquele retrato! aquelas bandeiras!... aqui!... Sarah e Samuel tinham razão!... Em toda
parte!... eles estavam em toda parte!... não morreram!.., um ruído de copos e garrafas... Jaime
voltava, empurrando um carrinho repleto de bebidas... Léa ainda ouviu as discretas exclamações de
alegria e a porta se fechou... uma rolha de champanha... o silêncio... Em seguida, como uma
chicotada, vigoroso, sepulcral, maldito naquela tranqüila noite argentina, um só grito... Heil
Hitler!...

Capítulo 23

- Rápido, Léa, estamos esperando, vamos dar um passeio pelos pampas - gritava Guiliermina atrás
da porta.
- Já vou...
- Por que está trancada?... Vou pedir chá para você... Não demore, os homens já saíram há muito
tempo.
Léa levantou-se precipitadamente e abriu a cortina. Fechou os olhos, ofuscada. Tomou uma ducha
bem fria... Pouco a pouco, sentiu o corpo e a mente novamente despertos... e precisou segurar-se
nas paredes do chuveiro. Aquela noite?... Um pesadelo?... deslizou e ficou agachada; em seguida,
sentiu uma violenta náusea subindo... Léa vomitou... Violentas batidas na porta despertaram-na
daquele marasmo. Com dificuldade, conseguiu sair do chuveiro, vestiu o penhoar e, com os cabelos
escorrendo, abriu o trinco.
- Oh! ... O que aconteceu?... você nos assustou!... Já íamos chamar alguém para arrombar a porta...
Que cara é essa?... está doente?... Mamãe, mamãe, Léa não está passando bem!...
- Pode deixar, Guillermina, não é nada. Não dormi muito bem, só isso. E estou com uma terrível
enxaqueca.
- Se você visse sua cara! Está pálida como um cadáver! Deve ter bebido demais ontem à noite.
- O que aconteceu? Eu soube que você não se sente bem - disse a Sra. Ortiz, em traje de montaria, de
chicote na mão.
- Pois é, senhora, mas não será nada demais. Se me der licença, vou ficar no quarto...
- E nosso passeio? - perguntou Guiflermina, decepcionada.
- Não mudem sua programação por minha causa. Vão indo. Eu vou descansar para estar em forma à
noite.
- Tem certeza de que não irá se aborrecer, sozinha?
- Não, Guiliermina, obrigada mesmo. Aproveitem bastante e divirtam-se. Desculpe-me, senhora.
- Claro, vou pedir que lhe preparem uma refeição leve. Enquanto isso, tome bastante chá.
- Muito obrigada.
Após duas xícaras de chá, Léa começou a se sentir melhor e a pensar na situação com mais clareza:
em primeiro lugar, secar o cabelo, vestir-se, saber se era realmente um corpo que ela havia visto
durante a noite e encontrar-se com François ou com Victoria Ocampo. Empurrou a porta do
aposento na outra ponta do salão onde, na véspera, ocorrera aquela terrível cerimônia. Uma
biblioteca com todas as prateleiras de madeira escura, iluminadas por belos livros encadernados;
não havia mais retratos, nem bandeiras, apenas um local confortável e sossegado. Numa mesinha,
um telefone... Léa tirou o aparelho do gancho: não!... esquecera-se que a telefonista só falava
espanhol!... Desligou irritada. Vagando pela casa, falou com os empregados para pedir a ligação:
sacudiram a cabeça com ar desolado.
O sol brilhava forte; havia um chapéu de palha jogado numa poltrona de vime da varanda. Léa
colocou-o na cabeça, atravessou o gramado e chegou a uma alameda que corria entre as árvores.
Caminhava há algum tempo, perdida em seus pensamentos, quando ouviu um ruído de motor.
Instintivamente, recuou no bosque e escondeu-se atrás de uma árvore: exatamente como durante a
guerra, pensou. Uma caminhonete suja de poeira passou lentamente. Do lado de dentro, homens
armados olhavam atentamente para cada lado do caminho. Na mais completa imobilidade, Léa
lembrou-se que vestira roupas escuras, o que era ótimo naquelas circunstâncias. O veículo afastou-
se. O ruído do motor desaparecera há muito tempo quando ela resolveu sair do seu esconderijo e
retomar a caminhada. Através das árvores, avistou uma casa baixa.
Após uma breve hesitação, Léa dirigiu-se até a construção. Rodeou a casa... o lugar parecia
abandonado. As entradas davam todas para um pátio interno coberto de capim, carroças
quebradas, material enferrujado. Silêncio total. Por uma porta aberta, ela avistou um
aposento sórdido, cheio de todo tipo de detritos. No meio, uma velha mesa de madeira com
os pés corroídos entulhada de pratos, copos sujos e cinzeiros transbordando de restos de
cigarros e charutos; pairava um cheiro de mofo e tabaco frio. Num canto do aposento, uma
lareira repleta de restos de papéis queimados. Léa tocou as cinzas mornas; nas folhas
poupadas pelo fogo, viam-se listas de números. Do lado oposto à lareira, havia um colchão
de palha. E se o embrulho da noite passada estivesse escondido aqui?... A palha parecia
fresca e limpa, o que contrastava com a sujeira do lugar. Em meio a espirros, Léa afastou a
palha. Surgiu então um alçapão... fechado com cadeado, mas... o cadeado encontrava-se
aberto! Léa abriu o alçapão sem grandes dificuldades. Uma escada descia e se perdia numa
espécie de poço negro. Não havia nada que pudesse trazer um pouco de luz?... Sobre a
mesa, uma velha lamparina. Meio assustada, ela desceu, segurando a lâmpada com uma das
mãos e a escada com a outra. Seus pés tocaram o chão coberto de areia fina. Encontrava-se
num poço de terra de onde partia um subterrâneo. Parece a masmorra do velho castelo de
Saint-Macaire, pensou. A lembrança de suas aventuras quando criança redobrou sua
coragem. Curvada, penetrou no túnel. Logo em seguida, uma grade impediu-a de continuar;
no entanto, ela conseguiu empurrá-la. Pôde então aprumar-se. No chão, sobre a areia, havia
palha, farrapos e correntes. Uma verdadeira prisão de romance de aventuras!... Com a ajuda
da lamparina, examinou os trapos velhos. Na realidade, tratava-se de um casaco de pano
rasgado e todo manchado. Constatou sem surpresa alguma que eram manchas de sangue.
Enojada, Léajogou fora a vestimenta mas mudou de idéia; abaixou-se e examinou os
bolsos... vazios. No chão, perto do lugar onde deixara cair a roupa, uma claridade... ela
afastou a areia e conseguiu abrir uma brecha por onde enfiou a cabeça: respirou com
volúpia o perfume da terra arborizada. Apagou a lamparina e, com opé, aumentou a
abertura. Alguém passara
por ali recentemente, o que explicava a relativa facilidade de sua tarefa. Por fim, encontrou-se ao
ar livre, entre as raízes de uma árvore altíssima, cujos múltiplos troncos formavam, por si só, um
pequeno bosque. Ao redor, plantas pisoteadas, marcas profundas revelavam que várias pessoas
haviam examinado o solo em volta da árvore. Sacudindo o cabelo e a roupa cobertos de terra, Léa
seguiu as pegadas e veio dar na estrada. Voltou, sentou-se e recostou-se num dos troncos; ela não
podia ficar mofando naquele lugar. Adormeceu, exausta.
O ruído de uma queda e um gemido abafado despertaram-na daquele torpor. Abriu os olhos e sentiu
a mão que lhe tapava a boca, impedindo-a de gritar.
- Cale-se, não diga nada!... Acalme-se... Não, não está sonhando. Posso soltá-la?
Ela fez que sim com a cabeça.
Era Daniel!... Daniel, sujo, barbado, os olhos inchados e vermelhos, o peito nu coberto por uma
atadura imunda, descalço, a calça em frangalhos.
- Era você que eles carregavam na noite passada?
- Era, eu desmaiei depois de me torturarem muito... queriam saber se eu a conhecia e quais eram
meus cúmplices. Não contei nada, exceto que era alemão como eles e fugira da Alemanha com
documentos falsos.
- Acreditaram em você?
- Em Buenos Aires, a polícia argentina que me prendeu, falsa ou verdadeira, ficou desconfiada, mas
por pouco tempo. Fui atirado num carro e trazido para cá, onde me espancaram, de olhos vendados. Despertei numa espécie de porão. Ao me verem tão machucado, julgaram
inútil me amarrar.
Durante a noite, senti um filete de ar, cavei a terra e acabei desembocando aos pés dessa árvore.
- Segui o mesmo caminho, mas não podia imaginar quem iria encontrar!
- Estamos longe de Buenos Aires?
- Não sei exatamente. Uns seiscentos, oitocentos quilômetros. Aqui a estancia Ortiz, a duzentos
quilômetros de Mar dei Plata.
- O que você faz aqui? Não está presa?
- Não... ainda não. Encontro-me hospedada na casa de Victoria Ocampo, mas vim passar uns dias na
estancia com os filhos dos Ortiz. Essa noite, surpreendi juntos os dois nazistas do navio em
companhia de Ortiz. Rik Vanderveen também se encontra na estancia.
- Rik Vanderveen?... Qual é a dele nessa história? As informações de Tel Aviv a seu respeito são
incontestáveis: trata-se realmente de um industrial holandês.
- Talvez.., é muito estranho...
-Mas...
- Espere, não acabei: na estancia, pude presenciar um encontro do qual participava Jaime, o filho do
dono da casa, diante de um retrato de Hitier e bandeiras com a suástica.
- Eram alemães?
- Havia alguns, não pude ver quantos. Além do mais, falavam espanhol.
- Entendeu o que diziam?
- Você sabe que não compreendo uma palavra dessa língua.
- Comecei a aprender, já consigo me virar. Preciso regressar a Buenos Aires. Pode me conseguir
dinheiro e roupas?
- Vou tentar. Mas você não pode ficar aqui. Ainda há pouco, cruzei com um caminhão cheio de
homens armados.
- Estão procurando por mim.
- Como conseguiu escapar?
- Tive muita sorte; procuraram debaixo das árvores, nas moitas, mas não para cima. Trepei na árvore
e me escondi entre os galhos. Quando vi você, cheguei a pensar que se tratava de uma alucinação.
- O que vamos fazer?
- Volte para a casa. Vou segui-la de longe, pelo bosque, e à noite você vai me trazer tudo o que
preciso.
- Acha que vai ser tão fácil assim? Entre a casa e as árvores, há um imenso gramado, do tamanho da
Place de l'Etoile, e à noite creio que os vigias ficam de guarda. É melhor agir à luz do dia.
- Àluzdo dia?...
- Sim, todos saíram a cavalo e vão passar o dia fora, só ficaram os empregados. Vou pedir um
lanche e colocá-lo numa cesta junto com a roupa.
- E a roupa?
- Jaime é mais ou menos do seu tamanho, vou procurar no quarto dele.
- Tudo bem, então vamos indo.
Daniel levantou-se com dificuldade e fez uma careta de dor.
- Consegue caminhar?
- Não se preocupe, vai dar certo.
Ao chegarem perto da casa, Daniel, exausto, não agüentava mais; seu curativo imundo exalava um
cheiro fétido.
- Você precisa de um médico.
- Veremos mais tarde, ande logo.
Léa correu em direção a casa.
- Isso deve dar - disse ela em voz alta, tirando do cabide um terno de linho marrom.
Nas gavetas da cômoda, apanhou roupa de baixo e uma camisa; no armário, encontrou sapatos de
lona confortáveis, e no banheiro achou tudo o que precisava para fazer um novo curativo.
Ao sair do quarto, ouviu o telefone tocando. Alguém atendeu. Segundos mais tarde, uma voz
chamou embaixo da escada:
- Sefiorita... seuiorita, una ilamada para usted.
Léa desceu como uma louca.
- Cómo?
- El teléfono está en la oficina - disse a empregada, apontando para a biblioteca.
- Alô!...
- Alô!... É você, Léa?...
- François!...
- Está sozinha?...
- Sim.
- Bem, não me interrompa... Está em perigo... Vou te buscar... Encontro-me em Mar dei Plata...
Victoria Ocampo virá comigo...
-Mas...
- Esteja pronta na parte da tarde.
- Deixe-me falar... Encontrei Daniel.
- Daniel?
- Sim, estava preso... fugiu...
- Como vai ele?
- Não muito bem, com uma ferida no peito.
- Grave?
- Não sei.
- Tome muito cuidado até eu chegar...
- Alô!... alô!...
A ligação fora cortada. Léa desligou.
Na copa, ela pediu com gestos que lhe preparassem um lanche e que o colocassem numa cesta com
uma garrafa de água.
O cozinheiro, acostumado com as extravagâncias dos donos da casa, não se surpreendeu. Léa levou
a cesta para seu quarto.
Tirou a comida, escondeu no fundo a roupa e os sapatos, e repôs tudo por cima.
Com ar descontraído, Léa atravessou o gramado e penetrou no bosque. Não encontrou ninguém.
- Daniel, chamou em voz baixa.
Onde ele estava? Desamparada, Léa olhou à sua volta... ali... a grama pisada... ele se encontrava
deitado de bruços numa vala rasa. Ela se aproximou.
- Daniel...
Ele não se moveu. Apavorada, ela o sacudiu. Daniel estava desmaiado. Ela conseguiu virá-lo com
muita dificuldade. Sob o peito, do lado direito, havia uma enorme ferida purulenta onde o sangue se
misturara a terra e folhas. Cerrando a boca e o nariz, Léa despejou água sobre a chaga. Depois de
limpa, a horrível lesão
parecia ainda pior. Quando colocou álcool em cima, Daniel teve um sobressalto e abriu os olhos.
Apesar da dor, conseguiu sorrir.
- Estou com sede.
Léa despejou lentamente um pouco de água entre os seus lábios quentes e lavou o rosto do rapaz.
Ele conseguiu erguer-se e olhou sua ferida.
- Que coisa mais feia.
- Segure a compressa.
Após fazer o curativo, Léa o ajudou a tirar a calça rasgada e a vestir as roupas que trouxera. Os
sapatos eram um pouco grandes para ele.
- Agora sim, você está mais apresentável. Precisamos comer.
- Não tenho fome.
- Eu tenho, e você tem de fazer um esforço... Pronto, muito bem... Agora, escute: François
Tavernier me telefonou.., contei que você estava aqui... ele vem nos buscar...
- Até que enfim uma boa notícia! Quando ele chega?
- A tarde.., você acha que conseguirá agüentar até lá?
- Não se preocupe. Não trouxe nenhuma bebida alcoólica?
- Claro, roubei uma garrafa de Armagnac.
- Armagnac? Assim meu moral vai melhorar logo. Léa...
- Sim?
- Obrigado por tudo.
- Que besteira... Espere a gente sair daqui... Agora preciso voltar. Por favor, fique onde está.
- Abrace-me.
Léa inclinou-se sobre a testa molhada de suor e a beijou.
- Melhor do que isso - disse Daniel, puxando-a para perto.
Seus lábios encontraram-se. Léa reprimiu um movimento de repulsa: ele ardia em febre.
Completamente transtornado, ele ficou observando Léa se afastar.

Capítulo 24

Léa acabava de entrar no quarto quando um ruído de cavalgada atraiu-a à janela. Os cavaleiros
estavam de volta. Logo em seguida, o casarão foi invadido por gritos, risos, pisadas, corridas pelas
escadas. A porta de seu quarto foi aberta por Jaime e Guillermina que se empurravam. Era
impossível de acreditar que se tratava do mesmo rapaz da noite anterior. O oposto de um cafajeste.
- Como vai?... Melhor, pelo que estou vendo. Sentimos sua falta. O que andou fazendo?
- Um piquenique sob as árvores.
- O que ela fez não é da sua conta - disse Guiliermina - Coitadinha, será que se aborreceu, sozinha?...
Logo mais, à noite, vai recuperar o tempo perdido. Vou trocar de roupa, até já... Você não vem,
Jaime?
- Já vou.
- Cuidado, ele se julga um dom-juan.
- Vá logo, que droga! - disse ele, batendo a porta com força.
- É sempre assim, entre vocês dois?
- Desde criança, a gente não se suporta, mas não consegue ficar longe um do outro.
- Assim como eu, com minhas irmãs.
- Ligaram para você, hoje à tarde. Quem foi?
Quanta rispidez em sua voz! Completamente diferente do tom que usara antes.
- Mas isso não é da sua conta!
- Tudo o que acontece aqui é da nossa conta, minha e do meu pai. Vou repetir: quem foi?
- A Sra. Ocampo.
- A querida Victoria, e por que não falou logo?
- Não achei que fosse importante.
- O que ela queria?
- Saber como vão as coisas, se estou gostando daqui.
- O que respondeu?
- Que o lugar era horrível e as pessoas, muito antipáticas.
Jaime riu às gargalhadas.
- Já vi que você gosta de brincar, eu também. Não viu ninguém?
- Tirando os empregados, ninguém.
- Agora vou deixá-la, arrume-se bem bonita para o jantar.
Sozinha no quarto, Léa tomou banho, lavou o cabelo e vestiu-se elegante e confortavelmente; não
podia usar nada que atrapalhasse seus movimentos. Guardou algumas coisas íntimas numa sacola
que deixou atrás da porta e desceu.
Umas dez pessoas tomavam aperitivos, sentadas na varanda. Dentre elas, Rik Vanderveen.
Aproximou-se, um copo na mão.
- Sente-se melhor? Eu soube que não passou muito bem.
- Bem melhor, obrigada. Como foi seu dia?
- Agradabilíssimo. E o seu?
- Calmo e sossegado.
- Passeou pelo bosque?
- Não, fiquei sob as árvores, perto do gramado.
Jaime aproximou-se com o pai.
- Você está linda, folgo em saber que já ficou boa.
- Obrigada, senhor.
- Meu filho me contou que a Sra. Ocampo lhe telefonou. Como vai nossa querida amiga?
- Bem. Pelo que entendi, ela deve vir para cá.
Léa percebeu os olhares de Manuel Ortiz e Rilc Vanderveen.
- Que boa idéia - comentou este último. - Deseja tomar alguma coisa?
- Obrigada, mais tarde.
A noite chegou rapidamente, o gramado e os arredores do casarão iluminaram-se. Léa respondia
distraidamente às perguntas dos convidados, sempre atenta a um ruído de motor. Um pouco
afastados, Manuel e Jaime Ortiz conversavam com Rik Vanderveen. O jantar estava servido
quando todos ouviram um ruído cada vez mais forte; levantaram a cabeça: havia luzes piscando no
céu, aproximando-se da estancia.
- Um avião - exclamou Guiflermina.
- Deve ser José que quer nos fazer uma surpresa - disse a Sra. Ortiz.
O pequeno avião aterrissou no gramado, foi até o final, deu meia-volta e parou em frente à varanda.
Todo mundo correu até lá. Com o coração a mil, Léa reconheceu François na cabine. Eu não sabia
que pilotava, pensou. Sei tão pouco a seu respeito. Manuel Ortiz ajudou Victoria Ocampo a descer
do aparelho.
- Que prazer - disse ao beijar-lhe a mão.
- Fiz questão de acompanhar meu amigo, o Sr. Tavernier. Sua esposa está doente e pede a presença
de Léa. Viemos buscá-la.
- Meu Deus! Sarah está doente?
- Sim, gravemente. E insiste para que você fique junto dela
- disse François aflito.
- Então, vamos logo; só vou arrumar minhas coisas.
- É uma pena - disse o dono da casa-, mas não permitirei que partam sem jantar conosco.
-Mas...
- Minha querida Léa, suba. Faça suas malas e depois junte-se a nós na sala de jantar. Guillermina vai
ajudá-la.
Não havia como argumentar diante daquele tom de voz; era preciso ceder. Como avisar Daniel? Ela
se aproximou de Tavemier, segurou-lhe o braço e falou bem alto para que todos ouvissem:
- Não se preocupem, François vai me ajudar; enquanto isso, poderá me dar maiores detalhes a
respeito de Sarah.
Encontravam-se na escada, e ninguém os seguira. No quarto, abraçaram-se impetuosamente.
- Onde está Daniel?
Léa o levou até a janela.
- Vê aquela alameda? Ele se encontra numa vala. Mas como ir buscá-lo com toda essa iluminação?
- Teremos de cortar a luz. Você não reparou onde ficam os fusíveis?
- Não... sei lá... Perto da copa, tem um quadro cheio de interruptores.
- Precisamos tentar. Você pensa levar essa mala?... Não tem lugar, pegue só uma bolsa.
- Já está pronta.
- Tudo bem. Agora, mostre-me onde fica a copa. Se eu conseguir apagar toda essa droga de luzes,
nada de pânico, fique onde estiver para que ninguém desconfie de nada. No escuro, vou trazer
Daniel para cá.
Todos já se encontravam à mesa quando eles entraram. A dona da casa acenou para François
Tavemier, pedindo que se sentasse a seu lado. Léa ficou entre Jaime e o pai, que tinha Victoria à
sua direita.
- Oh, François, você poderia ir até o avião, esqueci meu xale. Desculpe-me, caro amigo - disse ela a
Ortiz -, estou um pouco gripada.
Tavernier saiu, correu até o avião, pegou o xale e, sem parar de correr, dirigiu-se ao lugar indicado
por Léa. Abriu uma espécie de cortina. Era realmente a caixa dos fusíveis responsáveis pela
iluminação da casa e dojardim. Não havia muito tempo. Tirou o isqueiro do bolso, esvaziou o
conteúdo com o que encharcou a caixa e a cortina e riscou um fósforo. Uma chama azulada
apareceu, a cortina e a caixa dos fusíveis arderam como uma tocha.
- Exploda logo, droga!
Seu desejo realizou-se; múltiplas faíscas jorraram, as luzes se apagaram no jardim e na casa.
François precipitou-se para fora.
Na sala de jantar, todos gritavam:
- Estamos sem luz outra vez!
- Igual a ontem!
- Não se preocupem, meus amigos, vamos acender as lamparinas... Maria, José... pronto... É
muito romântico, não é?
- Costuma ser freqüente? - perguntou Victoria Ocampo.
- Infelizmente sim, não estamos tão bem equipados quanto em Buenos Aires, ou na França, não é,
Srta. Delmas?
Responder... falar para não provocar sua desconfiança.
- O senhor sabe, na região de Bordeaux acontece muito, principalmente durante as tempestades, que
costumam ser violentas por lá.
- Não conheço Bordeaux, mas seu vinho sim. É excelente! Sua família cultiva a vinha?
- Sim, o vinho da região é muito bom, mas não produzimos uma grande quantidade. Quando da sua
próxima viagem à França, espero que possa vir nos visitar para degustá-lo; será um grande prazer
para nós.
- Obrigado, senhorita, vou me lembrar do seu convite. Jaime, veja onde está o Sr. Tavemier, deve ter
se perdido no escuro.
O rapaz saiu, Léa cerrou os punhos sob a mesa.
- Papá, papá, hay un incendio!'
Levantaram-se todos e correram para a porta.
Imensas chamas corriam pelas paredes, o acesso à copa e à cozinha encontrava-se interditado. Um
vigia entrou com um balde de água.
- Patrão, vi o fogo, a gente está organizando uma corrente, era bom as senhoras saírem.
- Daniel... Daniel... sou eu, Tavernier!
- Estou aqui.
- Tudo bem?... Consegue caminhar até o avião?
- Vou conseguir.
Encontravam-Se perto do aparelho quando as chamas surgiram da casa.
- Foi você quem fez isso?
- Não tinha outra escolha, suba...
- Ai!...
- Sinto muito, amigão... Cubra-se com essa lona.., e não se mexa, pode demorar.
Tavernier tirou um balde das mãos de um empregado.
- Ah, que bom que está aqui. Obrigado por nos ajudar - disse Jaime.
- Como o incêndio começou?
- Não sei, veremos mais tarde. Agora, precisamos apagá-lo.
Isso foi feito com menos dificuldade que se pensava. A copa estava totalmente destruída, assim
como uma parte da cozinha. Manuel Ortiz examinou os estragos.
- Tivemos sorte, poderia ter sido muito pior. Com certeza um curto-circuito. Só me resta fazer uma
instalação mais moderna. Senhoras, podem voltar à sala de jantar, meus amigos e eu vamos nos
limpar. Senhores, obrigado por sua ajuda. Sr. Tavernier, sua eficácia foi espantosa; mais uma vez,
muito obrigado - disse Manuel Ortiz ao lhe estender a mão.
O jantar, à luz das lamparinas, chegara ao fim. Os homens foram até a varanda fumar . Estava muito
escuro.
Victoria Ocampo aproximou-se de Manuel Ortiz.
- Caro amigo, vamos nos despedir, estou exausta.
- Tem certeza de que não prefere passar a noite aqui?
- Sim, o Sr. Tavernier precisa voltar a Buenos Aires o quanto antes. O estado da sua esposa é
gravíssimo. Léa, está pronta?
- Estou. Só vou levar uma sacola, Guillermina me entregará o resto em Mar del Plata.
François pegou a bolsa e, acompanhado por Victoria e Léa, dirigiu-se até o avião depois de
cumprimentar Manuel Ortiz, a esposa, os filhos e todos os convidados.
Victoria Ocampo foi a primeira a subir. Os faróis de um veículo apareceram então em meio às
trevas. Tavernier ajudou Léa e subiu por último. Uma caminhonete parou diante da casa, em meio a
um rangido de freios. Dois homens saltaram, com revólveres no cinto. François ligou o motor. A
hélice começou a girar. Um dos homens, muito agitado, disse alguma coisa no ouvido de Manuel
Ortiz. Este
fez um gesto de profunda irritação. O avião deslizou lentamente pelo gramado... Ortiz correu em
direção ao aparelho, seguido do filho e dos homens da caminhonete, empunhando as armas... O
avião aumentou a velocidade... ouviu-se um tiro... O bosque tornava-se cada vez mais próximo... só
conseguiram decolar bem em cima das árvores...
No interior do avião, reinava um silêncio profundo e tenso, cada um dos passageiros pensando no
pior. Ao alcançarem uma certa altitude, todos se descontraíram.
- Tivemos muita sorte - disse Victoria Ocampo, com voz calma.
- Sim, não imaginei que tudo corresse tão bem - comentou François. - Como vai Daniel?
- Desmaiou - respondeu Léa.
- Há um médico à nossa espera em Buenos Aires.
- Como, não vamos a Mar del Plata? - perguntou Victoria.
- Não, é muito perto do bando de Ortiz. Os nazistas têm inúmeros cúmplices em toda a região. Em
Buenos Aires, a segurança será maior. Sinto muito, senhora, por toda esse transtorno.
- Não tem importância. Odeio os nazistas e seus parceiros, principalmente quando se trata de
compatriotas. Fico feliz por ter ajudado a salvar esse rapaz.
O avião aterrissou no clube aeronáutico do rio da Prata. Samuel e Sarah encontravam-se à espera
dos amigos.
- Daniel está com vocês?
- Sim.
- Foi gravemente ferido?
- Com certeza. Permaneceu desmaiado a viagem inteira.
- Tem um médico no carro à nossa espera.
Daniel, ainda inconsciente, foi cuidadosamente retirado do aparelho. Colocaram-no no carro, que
partiu, levando ainda Sarah e Samuel.
- Não falei com ninguém a respeito da minha chegada - comentou Victoria com ironia. - Vou para o
Plaza.
- Vou acompanhá-la - disse François, abrindo a porta do táxi que os esperava.
A porta do elevador se fechou sobre Victoria Ocampo.
- Enfim sós - sussurrou François. - Todas aquelas emoções me deram sede. O que você acha de uma
taça de champanha?
- Aceito com todo o prazer, mas viu a hora?... O bar já fechou há muito tempo.
- Vou dar um jeito.
Ele falou com o recepcionista enquanto lhe passava algumas notas.
- Você espera um pouco? Prefiro tratar disso sozinho. Morrendo de sono, encolhida numa poltrona,
Léa nem respondeu. Encostado no balcão da recepção, François observava-a com emoção. Que
mocinha danada! Revelou a maior firmeza durante toda aquela aventura. Ele sabia perfeitamente
que se o bando de Ortiz conseguisse deter o avião e prender Daniel, nenhum deles escaparia.
Conhecia muito bem os métodos radicais dos nazistas da América do Sul. A presença de Victoria
Ocampo fora providencial, mas até que ponto? Aqueles homens poderiam facilmente sumir com o
avião, como se fosse um mero acidente no qual a Sra. Ocampo teria desaparecido. Sem
testemunhas...
- Aqui tiene su Champagne. Está seguro que no quiere que se lo subamos?
- No, gracias. Buenas noches.
- Buenas noches, senor, buenas noches seuiorita.
Pronto, senhor, seu champanha. Não prefere que o levemos até o quarto?
Não muito obrigado, boa noite.
Boa noite, senhor, boa noite, senhorita.
Uma intensa atração física não deixou que os dois jovens tomassem o champanha gelado.

Capítulo 25

Léa e Carmen Ortega terminavam de almoçar no restaurante do Plaza.
- Não entendo por que Daniel está na sua casa. Não sabia que se conheciam.
- Che, eu não o conhecia! Uns amigos me pediram para escondê-lo enquanto está se
restabelecendo.
- Amigos?...
- Che, camaradas das juventudes comunistas.
- Porque você é comunista?...
- Sim - respondeu Carmen, orgulhosa.
- Mas pensei...
Léa, perplexa, olhava para sua nova amiga. Nunca desconfiara de nada, quanto à linda e excêntrica
apresentadora da Radio Belgrano. Léa encontrara muitos comunistas na Resistência, mas quase
todos homens...
- Qual a relação entre Daniel e os comunistas?
- Lutamos com os mesmos inimigos e trocamos informações.
- Eva Perón sabe que você é comunista?
- Este é um dos motivos das nossas discussões, mas são tantos!
- Não é perigoso para você esconder Daniel?
- Somos muito cautelosos. O apartamento está sendo vigiado dia e noite por camaradas. Tem
sempre alguém junto dele, che.
- Quando posso vê-lo?
- Agora não, ele precisa de muito repouso. Você não se esqueceu da aula de tango, hoje à noite?
- Não, irei com Sarah.
- Che, vou deixá-la, tenho um programa daqui a uma hora e antes preciso passar pelo jornal La Nación.
- Vou escrever a minha irmã Françoise e depois irei às compras.
- Dê uma olhada na loja Gath y Chaves. Chegaram uns vestidos dos Estados Unidos bem em conta.
- Obrigada pela informação.
- Mais leveza, senhorita, mais leveza! ... Ombros erguidos... Assim, está melhor - dizia Arturo Sabatini com um
sotaque que encantava Sarah e Léa. As duas jovens dançavam juntas. Léa conseguia acompanhar melhor os
movimentos de Sarah que os do professor.
- Você dança muito bem, sabe?
- E você fez muitos progressos.
- Não me venha com gozação!
- Mas não estou zombando, juro... A propósito, Daniel quer vê-la.
- Mas... Carmen me disse que ele precisava de repouso.
- Claro, mas, para o moral dele, você precisa vir.
- Tudo bem...
- Srta. Léa, nada de conversa quando se dança tango.
- Desculpe-me, professor - disse ela, morrendo de rir.
Após a aula, Carmen, Sarah e Léa encontraram-se na calçada da avenida de Mayo.
- Que tal tomarmos um chocolate no café Tortoni? É perto daqui.
Léa.
- Chocolate, com esse calor!... Você ficou louca - disse
- O chocolate é muito... como se diz?... reanimador?.., não...
restador?,,,
- Restaurador.
- Che, isso mesmo, restaurador.
- Restaurador ou não, prefiro uma bebida gelada.
- Você pode tomar o que bem quiser.
Após uma longa discussão com Sarah, Carmen aceitou levá-las a sua casa para ver Daniel. Tomaram um táxi,
que as deixou perto do cemitério da Recoleta...
- Fica pertinho, vamos a pé, é melhor.
Na frente da entrada do prédio tipicamente burguês, Carmen falou com um rapaz. Depois de examinar
atentamente Léa e Sarah, permitiu que entrassem.
No terceiro andar, Carmen tocou a campainha três vezes seguidas.
- Abrí, soyyo.
Abra, sou eu.
A porta se abriu.
- Quién es?
- Amigas de Daniel, las cOnozco.
Quem está aí?
Amigas de Daniel, conheço as duas.
O homem que abrira a porta deixou-as entrar.
- Como sigue ?
- Mejor, Ernesto está a su lado.
- Sabés Ernesto, me alegra mucho volver a verte.
Como ele está?
Melhor, Ernesto se encontra com ele.
Ernesto, que bom revê-lo.
Ela abriu outra porta. O quarto era bastante arejado graças a um ventilador e se encontrava mergulhado na
penumbra.
- Che, Ernesto, como andás ?
Ernesto, como vai?
Um rapaz moreno de cabelo bem curto, com umbelo rosto onde brilhavam lindos olhos negros, levantou-se da
cama onde estava sentado.
- Muy bien, Carmen, me dijeron que Daniel estaba en tu casa y que quería verme. Muito bem, Carmen. Fiquei sabendo que Daniel estava na sua casa e queria me ver.
- Bom dia, Daniel, parece ótimo. Trago visitas para você...
- Léa!... Sarah... que bom revê-las. Samuel passou aqui de manhã, depois Ernesto, agora vocês
duas, quanta felicidade. Se soubesse que tão lindas moças viriam me visitar, teria feito a barba.
- Você vai ficar muito bem de barba quando ela crescer mais um pouco - comentou Sarah. - Acho
você é ótimo assim. E você, Léa?
- Eu não, não gosto de homem de barba.
- Então, amanhã vou tirar.
- Só vai fazer a barba quando estiver melhor, che - disse Carmen.
- Nunca me senti tão bem.
Em seguida, num tom mais sério, perguntou a Sarah:
- Você tem notícias?
O rosto da sua prima contraiu-se.
- Tenho - respondeu com voz abafada.
- Não vejo a hora de me levantar desta cama... Ernesto, apresento minha prima Sarah, de quem já
lhe falei, e nossa amiga Léa Delmas. Quanto a ele, é Ernesto, encontrei-o em Córdoba numa
conferência sobre arqueologia pré-colombiana. Simpatizamos logo. Ele foi meu guia em Córdoba.
- E intérprete também, apesar do meu francês horrível.
- Que história é essa? Seu francês não é pior que o meu - disse Carmen... - Mas por que estão rindo?
Ah! entendi, é o meu sotaque...
- Um pouco, mas seu sotaque é um charme, e mesmo assim a gente se entende perfeitamente, é o
principal - disse Léa, abraçando a amiga.
- Preciso ir, meu irmão Roberto está me esperando - disse Ernesto. - Voltarei amanhã. Até logo,
senhorita; até logo, senhora.
O rapaz acabara de sair quando a campainha tocou três vezes.
- Deve ser Samuel, ele avisou que voltaria.
Léa, sentada na cama, parecia pensativa e preocupada.
- O que foi? - perguntou Sarah.
- Acho que tem muita gente entrando e saindo, neste bairro e neste prédio tão sossegados. Durante a
guerra, vários membros da Resistência acabaram presos dessa maneira.
- Você tem razão - disse Sarah. - Por isso, amanhã ou depois, o mais tardar, Daniel irá para outro
esconderijo. François encontrou um lugar perto do porto.
Samuel entrou e aproximou-se logo do irmão.
- Parece bem melhor, que bom!
- Tudo bem... Como estão Amos e Un?
- Bem. Mandaram lembranças.
- Léa e Carmen, vocês se incomodam de nos deixar a sós?
- Claro que não, mas não o cansem demais, che! Vamos, Léa?
A sós, Daniel perguntou:
- Para quando é?
- Esqueça isso, você precisa ficar completamente curado.
- Mas eu me sinto muito bem. Sei que estava previsto para esta semana... Nem pensem em agir sem
mim.
- Calma, Daniel, não se trata disso - disse Sarah. - Estamos aguardando o momento oportuno. Em
princípio, elas devem deixar o Hotel Jousten na sexta-feira. Assim, você tem mais três dias para
descansar e ficar em forma.
- É mais do que suficiente. Claro, Léa não tem nada a ver com isso.
- Claro - comentou Sarah com certa hesitação.
- Ela já se arriscou muito por mim, não quero que nada lhe aconteça. Promete, Sarah?
- Que é isso? Você está apaixonado?
O rapaz ficou corado.
- Sim, por mais que eu saiba que é bobagem minha, e que ela gosta de outro, não consigo deixar de
amá-la. Ela possui um certo quê de independente e orgulhosa, ao mesmo tempo em que se mostra
meiga e frágil; quero abraçá-la e protegê-la... Entende, Sarah?
- Claro, mas é melhor esquecê-la. Ela ama François e ele a ama. Não se esqueça que os dois se
sacrificaram por nossa causa. Nossos motivos de vingança não são os deles.
- Sei, mas sinto-me capaz de abandonar tudo para ficar com ela.
- Jamais repita isso. Lembre-se do nosso juramento após o encontro com Simon Wiesenthal:
mataremos o maior número pos-
sível de criminosos e não há nada nem ninguém que possa nos afastar desse objetivo... Você jurou
sobre a memória de seus pais, de suas irmãs. Jurou resgatar os atos que cometeu...
- Pelo amor de Deus, não fale mais nisso - disse Daniel, escondendo o rosto entre as mãos.
Samuel olhava aquela cena, lívido e profundamente infeliz.
- Voltarei a falar se você não mudar de idéia. Nós temos muita coisa a ser perdoada.
Daniel começou a soluçar.
- Não terá pena?...
- Desconheço o sentido dessa palavra.
- Pare, Sarah, está sendo muito cruel! Ele é jovem, pode esquecer.
- Esquecer!... você ainda fala em esquecer!... Oh! Samuel, como é possível?
- Para mim, é impossível, mas e para ele?...
- É tão impossível para ele quanto para cada um de nós. Você não percebe que eles estão contando
justamente com isso, com nossa preguiça, nossa covardia?... Já não começaram a afirmar que as
câmaras de gás jamais existiram, que os documentos fotográficos foram forjados...
- Mas todo mundo sabe perfeitamente que é mentira, existem dezenas de milhares de testemunhas!
- Sim, mas daqui a dez, vinte anos, onde estarão todas essas testemunhas? Mortas ou terão
esquecido, como você disse. Pois eu afirmo que temos o dever de fazer com que todos se lembrem
do horror nazista, e os castigos aplicados aos sobreviventes devem mergulhar os assassinos ocultos
pelo mundo afora numa angústia diária e na impossibilidade de conhecer um só dia de descanso,
uma única noite de sono reparador... Só posso continuar vivendo se fizer tudo para que assim seja.
Sarah calou-se, ofegando. Sua ira vingadora transformava-a por completo: o rosto vermelho onde se
destacavam, lívidas, as cicatrizes de suas faces, seus traços crispados, sua boca retorcida, os
cabelos curtos arrepiados... uma verdadeira górgone...
O silêncio que se seguiu tinha algo de brutal.
Bateram na porta; ouviu-se a voz de Carmen:
- Já acabaram?... Podemos entrar?
Assim que Carmen e Léa penetraram no quarto, perceberam a atmosfera tensa e permaneceram na
soleira, perplexas. Samuel resolveu então descontrair o ambiente.
- Vamos deixar Daniel descansar. Você vem, Sarah?... E Léa? Até amanhã, irmãozinho.
- Até amanhã... até logo, Léa - disse Daniel em voz baixa.
Léa inclinou-se e o beijou com carinho.
- Obrigado - murmurou ele.
- Vou tomar conta dele. Até amanhã - disse Carmen.
- Léa, posso levá-la?
- Não, obrigada Sarah, prefiro caminhar.
- Como quiser.
Léa ficou olhando o táxi que conduzia Sarah. Andou sempre em frente e chegou a uma praça
animada onde crianças brincavam e corriam sob imensas árvores. Em frente, um muro altíssimo
atrás do qual avistavam-se cruzes e telhados de capelas: o cemitério da Recoleta. Ela entrou por um
portão monumental. Não deve ser o cemitério dos pobres, pensou ao percorrer largas alamedas,
ladeadas de monumentos funerários atestando a riqueza das famílias dos defuntos. O oposto do
humilde cemitério de Verdelais onde repousavam seus pais e sua irmã. No entanto, como de hábito,
a presença dos mortos lhe fez bem! Num cemitério, ela se sentia de certa forma protegida... isso
mesmo, protegida. Não saberia explicar por quê, e no entanto... Os mortos não podiam lhe fazer mal
algum.
Ela achou graça naquele tipo de raciocínio infantil.
- Não é muito comum encontrar alguém sorrindo num cemitério...
Mergulhada em seus pensamentos metafísicos, Léa não notara a presença de um rapaz olhando
para ela. Ele não tinha nada a ver com isso!...
- Não se lembra de mim?... Eu estava na casa de Carmen ainda há pouco.
Sim, claro, o lindo rapaz com olhos femininos.
- Desculpe-me, estava sonhando.
- Che!... que surpresa, encontrar una chica linda' passeando no cemitério. Não tem medo de
fantasma?
- Não,e você?
Ele deu uma gargalhada que acabou em violento acesso de tosse. Quando conseguiu respirar
normalmente, sua testa estava molhada de suor.
- Sinto muito... é minha asma.
- Uma das minhas irmãs sofria de asma quando pequena:
todos os anos costumávamos ir a Bourboule por causa dela. Eu sentia raiva e sempre dava um jeito
de irritá-la para provocar uma crise. Já sei, não era legal, mas... eu detestava Bourboule.
- De fato, não era muito legal. E agora, como vai ela?
- Morreu.
- Oh! Perdão...
- Não se preocupe, não morreu por causa da doença.
- Então de que...?
- Foi assassinada.., vamos mudar de assunto, está bem? Faz muito tempo que conhece Daniel?
- Não, um mês apenas. Como ele mesmo contou, encontramo-nos durante uma conferência sobre a
arqueologia pré-colombiana...
- Eu não sabia que ele se interessava por arqueologia...
- Também fiquei surpreso, pois ele não entendia absolutamente nada do que o conferencista dizia.
Comecei então a traduzir...
- Como soube que ele falava francês?
- Não sabia, foi por intuição. Ele pareceu espantado e me encarou, bastante tenso. Achei-o
simpático, sorri e... ele também. Ao final da conferência, tornamo-nos amigos. Fomos tomar um
trago juntos e falamos de poesia, principalmente de Rimbaud.
Como Daniel, sempre tão desconfiado, se aproximara tão rápido de um desconhecido? Que eestranho, pensou Léa. Apesar de
tudo... esse rapaz tinha uma maneira de ser tão direta, um jeito tão franco e sedutor de encarar seu
interlocutor que dava vontade de confiar nele desde o início. E aquele sorriso, cheio de ternura e
ironia...
- E Carmen?
- Seus pais são amigos da minha tia Beatriz, com quem estou hospedado. Ela é engraçada e alegre,
gosto muito dela.
- E você?
Ernesto corou.
- Eu também... E você deve ser a linda jovem de quem Daniel tanto me falou, che?
Léa não respondeu. Penetrou numa alameda lateral e sentou-se nos degraus de uma capela. Ele se
aproximou.
- Você fazoquê?
- Sou estudante de medicina.., no primeiro ano.
- É comunista?
- Não, não sou. A política não me interessa. Entretanto, sou contra a injustiça, todas as injustiças e
contra o dinheiro que macula tudo o que toca. E você, o que está fazendo?
- Não sei exatamente. Vim à Argentina convidada por Victoria Ocampo.
- Victoria Ocampo?... A diretora da revista Sur?
- Sim, conhecemo-nos na Alemanha.
- Na Alemanha... - comentou o rapaz, pensativo. - Durante a guerra, meu pai me levou a reuniões
antinazistas. Eu era muito jovem, mas fiquei impressionado. Entendi logo que era necessário fazer
tudo para que os alemães perdessem a guerra. Agora precisamos sair daqui, as portas do cemitério
vão fechar. Para onde vai? Vou acompanhá-la.
- Ao Plaza.
- Che, que bom, moro em Arenales, fica perto do Plaza. Vamos, tem um bonde que passa por lá...

Capítulo 26

Ao chegar ao hotel, Léa encontrou uma mensagem de François. "Esteja às 21 horas no teatro
Colón, pegue um táxi, passe pela entrada lateral. Diga que a esperam no camarote especial número
25. Estarei lá." O que significava esse misterioso encontro? Ele não conseguia agir de maneira mais
simples? Quem sabe se não vou encontrá-lo mais uma vez espancado e ferido naquele camarote...
Foi até o quarto e tomou um banho.
- Senorita, la entrada es acá.'
- Ya lo sé
Senhorita, a entrada é por aqui.
Já sei.
- disse Léa adivinhando o sentido da frase. - Palco especial veinticinco - conseguiu
pronunciar, sentindo-se ridícula.
O homem olhou para ela e, com um sorriso malicioso, mandou que o seguisse, Desceu alguns
degraus, entrou num corredor, depois em outro mais estreito e mal iluminado, passou diante de duas
portas numeradas e se deteve junto à terceira. Ouvia-se a música do Lago dos Cisnes.
- Es acá senorita
aqui, senhorita
- disse ele em voz baixa, batendo na porta devagar.
- Quiénes?'
- Es ei portero, estoy con una senorita que dice tener cita en ei palco número veiticinco.
- Quem é?
- É o porteiro, estou com uma jovem que afirma ter um encontro no camarote especial vinte e cinco.
A porta se entreabriu. Tavernier lançou uma olhada rápida ao corredor e deixou Léa entrar.
- Bueno, gracias
- Tudo bem, obrigado.
- disse ao homem, entregando-lhe uma gorjeta.
- Que no me molesten.
- Quedese tranquilo Senor Luigi vi gila.
- Não quero ser incomodado.
- Não se preocupe, senhor. Luigi vai tomar conta de tudo.
Léa juntou as pregas de sua saia de seda vermelho-escura e sentou-se num dos banquinhos forrados
de veludo da mesma cor, colocados de ambos os lados da entrada. Uma cortina de tecido idêntico
abafava o local, onde reinava um calor sufocante. François trancou a porta.
- Parece que estamos numa boate.
- Espere, ainda não viu nada- disse ele, afastando a cortina.
Duas cadeiras forradas, outra cortina.
- Venha ver.
Ela se aproximou, François entreabriu a cortina; uma grade de ferro cercava o camarote.
- Cada vez melhor, agora é uma prisão.
- Psiu, veja só.
Encontravam-se na platéia, ao nível do chão, com uma vista geral sobre os pés dos espectadores.
Quanto ao palco, não se enxergava absolutamente nada. François fechou a cortina e acendeu a luz.
Uma espécie de lamparina revelou o contorno do seu rosto. Naquela penumbra, Léa o achou lindo e
preocupado.
- Abrace-me... pare... O que está fazendo?... aqui não, você enlouqueceu!
- Por quê? Tudo bem, este tipo de lugar foi concebido para
os encontros de casais adúlteros ou para aqueles que não desejam ser vistos.
- François!...
Aquela relação foi breve, violenta e... deliciosa.
Léa, deitada na estreita banqueta, parecia completamente indiferente à posição indecente em que se
encontrava, com as pernas abertas, o coração disparado, os olhos cerrados, despenteada. François
sentiu o desejo de possuí-la novamente e teve de fazer um imenso esforço para não abraçá-la.
Transtornado, com uma sensação de grande frustração, ajeitou seu vestido. Léa era feita para o
amor e não para essas perigosas aventuras. Diante de tamanho despudor da parte dela, Tavemier
chegou a sentir ódio de si próprio.
- Você viu Daniel?
- Sim - respondeu ela com voz sensual.
- Não volte para lá, é muito perigoso.
Ela abriu os olhos e se levantou.
- E para Carmen e os outros, não é perigoso?
- Sim, mas todos sabem o que estão fazendo.
- Isso significa que não sei?
- Não quero vê-la metida nessa história.
- Isso você já disse. Acontece que já estou encrencada. Não adianta tapar o sol com a peneira.
Ele teve um gesto de desânimo.
- Ainda há tempo de desistir, para você.
- Não vou desistir, quero ajudá-los.
Ouviram-se aplausos na sala. Bateram à porta.
- Quiénes?
- Un mensage para usted, Senor.
- Páselo por debajo de la puerta.
- Quem é?
- Uma mensagem para o senhor.
- Passe-a por baixo da porta.
Fransois apanhou a folha de papel, abriu-a e leu.
- É de Sarah.
- Como sabe que estamos aqui?
- Costumamos usar este camarote como caixa de correspondência.
- O que há nesse recado?
Ele hesitou.
- Será hoje à noite.
- Já? Vamos.
- Meu amor, eu suplico...
Havia tanto desespero em sua VOZ! Ela ficou comovida.
- Quero permanecer a seu lado, dá para você entender? Eu o amo, não posso suportar a idéia de
ficar sozinha enquanto você e Sarah correm perigo.
François abraçou-a com muita ternura e beijou seus cabelos:
- Está bem.
Seu carro encontrava-se estacionado perto do Palácio de Justiça
- Aonde vamos?
- Ao parque Palermo, Amos espera por mim.
O tráfego era intenso na avenida Libertador; atravessaram o roseiral, contornaram o lago e pararam
na avenida Infanta Isabel. François piscou o farol três vezes e depois mais duas. Mais adiante, um
carro respondeu.
- É ele - disse Tavernier, dando lentamente a partida.
Ao alcançar o veículo, parou.
- O que ela faz aqui? - perguntou Amos.
- Substitui Daniel.
- Não foi o que combinamos.
- Sei, mas precisamos de alguém para vigiar.
- Como quiser, deve saber o que está fazendo. As duas mulheres vão sair do hotel a pé, escoltadas
por um policial argentino. Os três irão em direção à Plaza de Mayo. Haverá um carro esperando por
eles naquele local. Carmen encontra-se no hall do hotel com Uri, vão segui-los até a praça. Vocês
virão de carro para o caso de alguma eventualidade.
- Aque horas?
- Vinte e três e trinta. Estacionem na avenida Corrientes, a cerca de vinte metros do hotel. Estão
armados?
- Claro.
- Tudo bem, até já.
À luz de um poste, Carmen e Uri se abraçavam enquanto Rosa Schaeffer e Ingrid Sauter subiam
no táxi estacionado na frente da catedral. Com as portas do carro fechadas, o policial continuou
caminhando em direção à Casa Rosada. Passou assobiando, completamente indiferente ao
automóvel onde se encontrava um casal abraçado.
- Agora, vá ao encontro de Carmen, ela sabe o que fazer. Uri nos segue de moto.
- Estão indo para onde?
- Elas devem tentar embarcar no meio da noite para Montevidéu. Nos encontraremos em breve no
porto. Seja prudente, eu a amo muito, meu amor.
Léa saltou do carro e dirigiu-se até Carmen e Uri. Este não manifestou sua surpresa ao ver Léa;
subiu na moto e foi embora com um aceno de adeus.
A jovem argentina segurou o braço da amiga.
- Não pude avisar os outros, exceto Uri: Daniel desapareceu...
- Seqüestrado?
- Não, foi ao encontro de Sarah.
- Quem lhe contou?
- Por volta das onze horas da noite, saí para fazer compras. Quando voltei, encontrei o camarada de
plantão na porta caído no chão e o outro trancado no apartamento. Na mesa, havia um recado de
Daniel, avisando que ia se encontrar com Sarah.
- Só isso?
- Che! Ele não escreveu um romance inteiro!
- Com aquela ferida!.., e Sarah, onde está?
- Não sei.
- Tenho a impressão de que chafurdamos na maior confusão... Cuidado, o táxi está saindo.
Elas acompanharam o carro com os olhos: contornou a praça e passou bem na frente das duas
jovens que recuaram na sombra.
- Carmen...
- Sim?
- O homem ao lado do chofer...
- Què?
- É Jones, um dos torturadores de Daniel.
- Tem certeza?
- Tenho, viajamos no mesmo navio. E agora, o que é que a gente faz?
- Vamos tomar um táxi para a avenida de Los Inmigrantes.
Os portuários e os marinheiros ficaram boquiabertos quando as duas jovens entraram sozinhas.
- Què churrasca!
- Què taquerea!
- Què hembraje!
Com as mãos nos quadris, Carmen encarou aqueles homens:
- HUos de puta impotentes, caliense la boca bastardos, soio tienen huevos para insultar a las
mujeres...
- Dejá, Carmen, no son mala gente. Senõres, esta chica es mi sobrina y su amiga es... mi
sobrina también.
- Disculpanos Juan, no te podiamos adivinar.
- Tenès suerte de tener sobrinas tan bien rellenas.
Seus filhos da puta impotentes, calem a boca, seus bastardos, vocês só têm colhões para xingar as mulheres...
Deixa, Carmen, não são tão maus assim. Escutem, essa moça é sobrinha e sua amiga é... minha sobrinha
também.
A gente não sabia, desculpe, Juan.
Sorte sua ter sobrinhas tão boas!
Os fregueses voltaram a beber. Juan mandou que suas sobrinhas passassem por trás do balcão.
- Yèsta, quién es?
- No te preocupes, es una amiga.
Quem é essa?
Uma amiga, não se preocupe.
Entraram na sala dos fundos repleta de caixas. O homem apontou para uma janelinha.
- Da a la caile que es perpendicular a la avenida de Los Inmigrantes. De all(pueden vigilar
todo.
- Gracias.
Dá para a rua perpendicular à avenida de los Inmigrantes; daí, podem vigiar tudo.
Obrigada.
O homem saiu, fechando a porta atrás de si.
- Eles não vão demorar. No fim da avenida, fica o cais de embarque. Chegaram.
Um táxi acabara de parar. O chofer e Jones saltaram e olharam à sua volta; em seguida, dirigiram-
se para a esquina. As portas traseiras do carro permaneceram fechadas.
- O que elas estão fazendo? - perguntou Léa. - Por que não descem?
- Quieta, deixe-me ouvir... O chofer está conversando com alguém, não é com o dono... Tem um
cúmplice no bar...
- Então ele nos viu?
Uma moto parou... uma silhueta atravessou a rua.., um carro freou, seguido de outro... um ruído de
cadeiras viradas, copos quebrados... gritos... uma mulher saiu do táxi... um tiro... ela caiu... a voz de
François Tavemier...
- Cuidado, eles estão fugindo...
O chofer e Jones correram para o táxi, o revólver na mão... na luz de um poste, Sarah com uma
metralhadora... uma rajada... Jones caiu... o chofer deu a partida... Briga na esquina... Tavernier
atirou na direção do táxi... Jones levantou-se... Daniel...
- Daniel! - gritou Léa.
Jones atirou... uma bala o atingiu... Daniel no chão... François inclinado sobre ele... empurrando
Carmen, Léa abriu a porta... um homem tentou detê-la, ela conseguiu soltar-se... Uri subiu na moto
e saiu atrás do táxi... Samuel caiu de joelhos... alguns homens deixavam a esquina apressados...
com a metralhadora, Sarah aproximou-se do corpo da mulher deitada de bruços... com o pé, virou o
corpo...
- Não, Sarah!
Ela não ouviu Léa... não ouvia mais nada... atirava em rajadas... o corpo se contorcia... uma espécie de dança monstruosa... Sarah ria... petrificada, Léa
olhava.., esquecendo-Se do perigo... fascinada pelo horrendo balé executado ao vivo na sua frente...
sirenes...
- Rápido, a polícia!...
Léa despertou daquela mórbida contemplação... François puxava Sarah pelo braço... Sarah, que ria
por que Samuel carregava Daniel?...
- Carmen, and con èl
- Carmem vá com ele.
No banco de trás do carro de Tavemier, Sarah continuava rindo...
- Por favor, mande ela parar com isso! - suplicou Léa.
Ele não respondeu, dirigindo a toda velocidade ao longo do cais. Não se ouviam mais as sirenes.
Tavemier parou, virou-se para trás e deu várias bofetadas no rosto de Sarah... finalmente, aquele
riso demente cessou.
O carro voltou a andar... Sarah tentava se acalmar e retomar o fôlego.
- Cuidado!...
Por um triz o carro não bateu numa carroça puxada por um burro. Ouviram os insultos do dono.
O automóvel corria; atravessaram um bairro paupérrimo.
- "O local é um reflexo da fadiga do viajante" - murmurou Léa.
- O que é isso? - perguntou François.
- É um verso de Borges do qual acabo de me lembrar.
Surpreso, ele olhou para Léa.
- Você lê Borges?
- Não, mas em Mar del Plata, Victoria Ocampo recitou esse poema, achei sua cadência muito bonita
e pedi para ela traduzi-lo.
Pararam numa rua sombria ladeada de muros altos, cobertos de cartazes rasgados onde estava
rabiscada em enormes letras negras
a frase: VIVA PERÓN. François abriu uma porta de ferro trancada a chave, oculta sob os farrapos
de papel. Entraram. Um gato fugiu com um miado raivoso. Uma luz se acendeu no prédio em frente,
iluminando um pátio repleto dos mais variados despejos; havia um caminho no meio, o lugar exalava
um cheiro de abandono e desolação.
- Onde estamos?
- Entre amigos, os outros devem encontrar-nos aqui.
Na claridade, apareceu a silhueta de Uri.
- Daniel foi gravemente ferido, ele não para de chamar por Léa.
- Estou aqui.
- Vou levá-la até ele.
Daniel encontrava-se deitado num canto, sobre alguns sacos, com Samuel e Carmen a seu lado.
Samuel soluçava.
- Não chore, irmão... sinto frio... Léa, onde está Léa?...
- Aqui, Daniel... vamos tratar de você.., oh!...
Léa recuou, tapando a boca com as mãos: o ventre do rapaz estava dilacerado.
- Léa...
Reprimindo o medo e a náusea, ela se sentou a seu lado e acariciou-lhe os cabelos. O rosto banhado
em suor expressou tamanha felicidade que Léa quase caiu em prantos.
- Estou tão feliz.., você está aqui... abaixe-se... não consigo falar... seja legal com Samuel... ele só
tinha a mim... não estou com medo de morrer... mas é muito cedo... nunca conheci mulher alguma...
quando a vi... percebi que era você... Sarah?...
- Sim, estou aqui.
- ... Não sinto mais ódio... estou em paz... vou encontrar meus pais... Léa?... eu a amo... Sarah... Léa
não... Léa não... Léa...
Sua cabeça pendeu contra o ombro.
Léa soltou um grito, arrancou sua mão da mão de Daniel e se atirou nos braços de François.
- NãoL. Oh! não... não!
Samuel inclinou-se sobre o corpo do irmão, beijou-lhe a testa e fechou seus olhos. Lentamente, com
muita dificuldade, ergueu-se,
contemplou o cadáver... tirou o lenço do bolso, abriu-o cuidadosamente, colocou-o sobre a
cabeça e, com voz firme, pronunciou o Kadih.
- Yzgadal veyitcadash Sheme raba bealmâ de verâ chirute veiamlich maichute bechaiechon
uveiomechon uvechaiê dechol bet Yisrael baagalâ ubizman kariv veimru Amên... Ossé shalom
bimromav hu iassé shalom aleinu veal col Yisrael veimru Amên.
Exaltado e santificado seja o Seu grande nome no mundo que Ele criou segundo Sua vontade. Queira Ele estabelecer o Seu
reino no decurso de vossa vida, nos vossos dias e no decurso da vida de toda casa de Israel prontamente e em tempo
próximo; e dizei Amém; Aquele que firma a paz nas alturas, com Sua misericórdia, conceda a paz sobre nós e sobre todo
Israel; e dizei Amém.

Capítulo 27

Após levar Léa até o Plaza e conversar com o gerente do hotel que ele mandara acordar, François
Tavernier partiu com Sarah Muistein e Carmen Ortega. Não foram para o apartamento da jovem
argentina, pois temiam que estivesse sendo vigiado por nazistas; foram à calie San Martín de Tours,
na casa de Ricardo López, judeu de origem portuguesa e médico antiperonista. Ali, no luxuoso
gabinete, esperaram por 5 amuei Zederman, Amos Dayan e Uri Zohar.
Estes chegaram às três horas da manhã. O Dr. López tirou a pressão de Samuel, lívido e sacudido
por constantes tremores; miniistrou-lhe um sedativo e, logo em seguida, o irmão de Daniel mergulhou
num sono agitado.
Nas primeiras horas da manhã seguinte, López pediu a amigos que fossem buscar o corpo de Daniel
e o transportassem para o setor que dirigia no hospital de Rivadavia. Só então Sarah e seus amigos
conseguiram descansar um pouco.
Dois dias mais tarde, os jornais publicaram uma pequena notícia a respeito de uma briga em Los
Inmigrantes, que provocara a morte de uma mulher com passaporte argentino em nome de María
Escalada. Havia uma foto ilustrando o artigo de La Prensa.
- Não é Rosa Schaeffer - disse Samuel.
- É Ingrid Sauter. Bertha, a gorda, continua solta - acrescentou Sarah.
- Não é a única. Um dos meus colegas, o Dr. Pino Frezza, que durante a guerra fez parte da
entourage de Mussolini, declarou
à sua embaixada ter encontrado Martin Bormann perto da cervejaria alemã ABC, na calie Lavaile.
As organizações judaicas argentinas foram avisadas e efetuaram buscas, sem o menor sucesso até
o dia de hoje. Bormann continua solto. Sob a cobertura da Capri, dirigida pelo alemão Karl Fuldner,
os comitês de recepção, o comércio de falsos passaportes, principalmente em San Isidro, funcionam
a todo vapor. No jornal Der Weg, cujos primeiros números saíram no ano passado, o professor
Johannes von Leers, chefe da propaganda anti-semita de Goebbels, famoso por ter publicado Die
Juden sehen dich an1, recomeçou seus ataques aos judeus e sua propaganda a favor do nazismo,
ora sob o pseudônimo de Dr. Euler, ora usando seu verdadeiro nome. Sabemos que ele mantém
contato com os chefes nazistas fugitivos e se corresponde constantemente com a Áustria e a
Alemanha. Seu apartamento, n° 863 da calle MartfnHaedo y Vicente López, está sendo vigiado. Ele
é íntimo de algumas personalidades peronistas do mais alto escalão. Sentem-se aqui como em sua
própria casa. Mas não devemos julgar que todos os argentinos são pró-nazistas. Convém lembrar a
alegria dos habitantes de Buenos Aires com a notícia da libertação de Paris. Vários deputados da
oposição costumam intervir no parlamento para denunciar os serviços oficiais que empregam ex-
nazistas; um amigo meu, por exemplo, o Dr. Agustín Rodriguez Araya, e também Sylvano
Santander...
- Sabem onde se encontra Rosa Schaeffer? - perguntou Sarah, interrompendo Ricardo López.
- Encontramos o táxi, vazio é claro; havia sido roubado. O proprietário do veículo apresentou queixa
à polícia, que o interrogou com certa brutalidade. O pobre coitado nem sabia o que dizer:
Me robaran a mi... Me robaran a mi..
Eu fui roubado... eu fui roubado...
ele se encontra agora na UTI do Hospital Espanhol.
- Acha possível que ele seja cúmplice? -perguntou Tavemier.
- Acho. Ele pode ter alugado o táxi e declarado que foi roubado. Um colega meu deve me ligar
assim que o chofer melhorar. Quanto a Rosa Schaeffer, após os tiros, não conseguiu embarcar: temos quase toda a certeza
de que não saiu de Buenos Aires. Nossos melhores agentes encontram-se de vigiia nos locais
freqüentados pelos nazistas e seus cúmplices. Inevitavelmente, vai chegar uma hora em que Rosa
Schaeffer contactará algum deles. A casa de von Leers e os escritórios da Capri estão
particularmente vigiados. Sr. Tavernier, já falou com a embaixada da França?
- Já. Parece que ninguém tem nos procurado e podemos voltar ao nosso apartamento de Viamonte.
- Muito bem. O Sr. Zederman vai precisar fazer o reconhecimento do corpo do irmão e tomar todas
as providências para o enterro.
- Coragem, Samuel, irei com você - disse François.
- Eu também - disse Sarah.
- É mesmo necessário?
- Isso é problema meu. Gostava dele como um irmão, como um filho, desejo prestar-lhe minha última
homenagem.
- Como quiser.
A morte de Daniel, ainda tão novo, foi lamentada por todos como uma terrível injustiça.
Léa sentia-se arrasada. Durante os dias que se seguiram à tragédia, permaneceu praticamente
trancada no quarto do Plaza, deitada com os olhos arregalados. Após o drama, ela não se encontrara
com François, nem com Sarah ou Samuel. Carmen vinha visitá-la todos os dias, tentando em vão
tirá-la da depressão. Victoria Ocampo quis trazê-la de volta a San Isidro. Léa recusou. Foi Ernesto,
o amigo argentino de Daniel, quem a arrancou do seu marasmo. Muito abalado pela morte de
Daniel, ele veio buscarjunto a Léa um reconforto que, obviamente, não encontrou. O mesmo
desamparo e a mesma aflição aproximaram a ambos.
Ele subiu ao quarto de Léa com um buquê de flores. Encontrou a porta aberta e Léa deitada na
cama, cochilando, vestindo apenas uma combinação de seda azul-clara, a cortina do aposento
semicerrada devido ao intenso calor. Embora um pouco mais velha que ele, ela teve um
comportamento infantil: encolheu-se como um animal ferido e assustado.
- Che, sou eu, Ernesto, não tenha medo... Você não deveria deixar a porta aberta.
- Já sei - respondeu baixinho.
Ernesto a via agora, completamente diferente da jovem arrojada e despachada do seu primeiro
encontro; Léa parecia uma menina apavorada e desamparada. Quanto a ele, sentia-se desastrado,
tímido, apesar de querer muito confortá-la. Sentou-se na cama, acariciou-lhe suavemente os cabelos
dizendo palavras que ela não entendia, mas cuja melodia transmitia paz e suavidade. Ela se virou e
encarou o rapaz, os olhos cheios de lágrimas mas com um sorriso nos lábios.
- Obrigada, Ernesto, pelo bem que me faz... Deite-se a meu lado, segure a minha mão... fale comigo
em sua língua... gosto de sua voz...
Quanto tempo permaneceram assim, como duas crianças bem- comportadas? Com a maior
naturalidade, seus lábios encontraram- se... eles mal tinham consciência do desejo que excitava seus
corpos. Léa aninhou-se contra ele, suas mãos deslizaram...
Como de costume, cada vez que Léa fazia amor, sentia-se renascer. Inclinou-se sobre o jovem
amante: como era lindo, com seus lábios macios e suas mãos desajeitadas, meigas! Não sentiu o
menor remorso em relação a François Tavernier. Houve tanta espontaneidade, carinho, confiança,
naquela relação! O ato sexual representara para ambos um enorme consolo.
- Estou com fome - disse Léa. - Vamos almoçar?
No restaurante do hotel, todos ficaram felizes ao rever la linda francesa; Léa e Ernesto foram
tratados como hóspedes de primeira classe, apesar do traje meio descomposto do rapaz. Léa queria
fazer-lhe confidências, mas não sabia até que ponto ele conhecia as atividades de Daniel. Carmen
dissera: "É um amigo, mas não se interessa por política, é antiperonista, nada mais." Léa falou com
ele a respeito de Montillac, contou que começava a sentir saudades de casa e que a natureza era
muito monótona na Argentina.
- Monótona para quem não souber olhar. O que diria então se estivesse no deserto lunar da
Patagônia!
- Não é na Patagônia que há muitas baleias?
- Sim, na península Valdés.
- Meu pai ficou louco por baleias depois de vê-las no México. Eu gostaria muito de poder conhecê-
las também.
- Precisa ir a Puertos Piramides, onde todos os anos elas se reúnem, entre os meses de julho e
dezembro.
- Você terá de me levar.
Léa experimentava um grande alívio com aquele bate-papo banal: o medo, a tristeza e a morte
estavam tão distantes... Despediram-se com um "até amanhã".
Aquele intermédio amoroso funcionara como um bálsamo para Léa. Mais calma, pensava em Daniel
com uma suave tristeza e se lembrou das últimas palavras do rapaz em relação ao irmão Samuel.
Ela sabia que sua presença não iria confortar Samuel, mas podia trazer-lhe um certo consolo. No
modesto hotel, perto do Plaza, onde os dois irmãos ficaram alojados, disseram-lhe que não
apareciam há quatro dias. Quatro dias! Já! Ela resolveu ligar para François. Foi Sarah quem
atendeu.
- Ainda bem que você voltou à realidade!
Léa ficou surpresa e magoada com aquele tom de voz.
- Por que fala assim comigo?... Fiquei completamente arrasada, será que não dá para entender?...
- Desculpe, entendo sim... Eu já me encontro além da dor. Apesar de tudo, a morte de Daniel me
abateu profundamente, eu não me achava mais capaz de padecer com tanta intensidade. Pensava
ter esgotado minha capacidade de sofrimento, mas não foi bem assim... Eles conseguiram me atingir
mais uma vez... ainda não tinham acabado comigo como pensava... Daniel era minha outra
metade... agora encontro-me mais solitária do que nunca... Vingarei sua morte como teria vingado
sua vida... Matarei...
- Sempre a vingança... sempre a matança...
- Sempre, foi o juramento que fiz hoje à tarde sobre seu túmulo.
- Hoje à tarde?... ele foi enterrado sem mim?...
- Foi Samuel quem pediu, argumentando ser esta a vontade de Daniel.
Houve um longo silêncio.
- Alô, está ouvindo?...
- Sim... eu gostaria de falar com François.
- Partiu para Mendoza logo após o funeral.
- Não deixou nada para mim?
- Sim, uma carta que entrego logo mais.
- Não, eu mesma vou buscar.
Léa achou Sarah mais magra e envelhecida; o cabelo preto curto deixara de transmitir um ar de
juventude ao seu rosto. Vestia um conjunto branco que acentuava a palidez de suas faces. No
entanto, ela manifestou uma grande alegria ao rever a amiga.
- Você está linda. O retiro no Plaza lhe fez muito bem.
Léa corou.
- Obrigada, estou melhor. O que François foi fazer em Mendoza?
- Ele se encontra naquela cidade em caráter oficial. Convém tornar verossímil a nossa presença na
Argentina.
- Volta quando?
- Dentro de três ou quatro dias. Amanhã, fui convidada por Eva Perón para um chá em companhia
das senhoras da Fundação Eva Perón. Trata-se de uma sociedade beneficente criada pela primeira-
dama para se vingar da sociedade das Damas de Caridade. Esta, da qual fazem parte todas as
mulheres da riquíssima aristocraciaporteíia, afastou a bela Eva da presidência honorária, embora, por
tradição, tal título sempre coubesse à esposa do presidente. As seioras porte flas nunca aceitaram
recebê-la. Venha comigo, assim o tempo custará menos a passar.
- Vou fazer o quê, neste lugar?
- Ficar comigo e, principalmente, tentar convencer a todos que somos íntimos de Perón. Poderá ser
útil algum dia.
- Como quiser.
No táxi que a trazia de volta, Léa leu a carta do seu amante:
Minha querida,
Esses últimos dias passados longe de você foram como uma eternidade. Desde que você
chegou, minha paz acabou. Sinto um medo constante de que algo possa lhe acontecer. Jamais
experimentei tal sentimento por ninguém; estou completamente paralisado. Fico fora de mim.
Meu amor; suplico mais uma vez, deixe a Argentina, volte à França e espere por mim em
Montillac. Ali é o seu lugar; e não nesse clima de violência e ódio. Você foi feita para a vida,
para o amor; você é a própria luz. Não se deixe levar por sentimentos que não lhe pertencem.
Você é dona de um extremo bom senso efoi feita para as coisas prazerosas e delicadas, e
aqui só posso lhe oferecer insegurança; quem sabe, a própria morte. Para arrancá-la deste
país, estou pronto a abandonar tudo, e deixar nossos amigos se perderem na lama... Sei que
você vaificar chocada mas, meu amor; vá embora... e se não quiser partir sozinha, irei com
você. Eu a amo.
François.
Ele devia amá-la muito para escrever uma carta desse teor, logo ele, um homem de honra,
combatente intransigente. Léa não podia aceitar tal proposta, seu compromisso junto a Sarah
tinha um quê de irremediável, sagrado. Ela nunca o perdoaria por traí-la, mesmo por amor.
Ernesto marcara um encontro com Léa no cemitério de Chacaritas, diante do túmulo de Carlos
Gardel.
- Como vou achá-lo? - perguntara a jovem.
- Qualquer vigia sabe onde fica - respondera Ernesto.
De fato, Léa encontrou facilmente o local. Sobre o túmulo, erguia-se uma grande estátua de
bronze do famoso cantor de tango, com uma mão no bolso da calça e a outra segurando... um
cigarro aceso, cuja fumaça azulada subia pelo ar quente da tarde. Aquilo surpreendeu Léa.
- É costume aqui oferecer um cigarro ao grande Gardel. Você também quer lhe dar um?
Com a ajuda do amigo, Léa colocou entre os dedos de bronze outro cigarro aceso.
Naquela hora, havia pouquíssima gente no cemitério; por isso mesmo, uma mulher de luto escoltada
por dois homens chamou a atenção de Léa. Não havia dúvida, um deles era Barthelemy. E então?...
aquela mulher?... só podia ser Rosa Schaeffer. Ela não podia escapar. Léa segurou o braço de
Ernesto.
- Está vendo aquelas três pessoas mais adiante?
- Sim.
- Faça isso por mim. Vá atrás delas, não se afaste por um segundo.
- Mas por quê?
- Não posso explicar agora. Também não posso segui-las pessoalmente, uma me conhece. Tá bem?
- Tá. Onde a gente se encontra?
- Vou voltar ao Piara. Assim que você souber onde estão, encontre-me no hotel.
Já era noite quando Ernesto bateu na porta do seu quarto.
- Então?
- Não foi nada fácil; andaram de metrô, bonde, táxi e novamente metrô. Tive muita sorte de não
perdê-los.
- Para onde foram?
- Imagine só, logo ali, a Paraguay.
- Você tem certeza?
- Che, fiquei escondido no vão de uma porta durante cerca de uma hora; ninguém saiu. Agora, será
que pode me explicar?...
- Essas pessoas são responsáveis pela morte de Daniel, são nazistas.
Ele ficou atônito.
- Quem pergunta agora sou eu: você tem certeza?
- Tenho. Desculpe-me, não posso contar mais nada. Talvez já tenha falado demais.
- Não confia em mim?
- Não é isso, mas essa gente é muito perigosa.
Léa telefonou para Sarah; ninguém atendeu.
Soltou o cabelo preso num coque e sacudiu a cabeça, como se quisesse livrar-se de um peso.
- Como você é linda!
- Venha deitar-se a meu lado. Estou cansada e gostaria de dormir um pouco.
- Dormir?...
Só adormeceram muito mais tarde.
Foram despertados pelo toque do telefone.
- Alô - disse Léa, bocejando.
- Desculpe, meu amor, eu a acordei?... Só queria saber como você estava... Sarah lhe entregou a
minha carta?... Eu a amo... sinto sua falta... Alô?... está ouvindo?
- Sim.
- Tem mais alguém com você?
- Não, não é isso.
- Peço desculpas por perturbá-la.
Em Mendoza, François desligou irado. Léa fez o mesmo lentamente, com certa aflição. Ernesto
olhava para ela sem entender. Discreto, não fez perguntas.
- Já é tarde, preciso voltar para casa. Minha tia e meu irmão vão ficar preocupados.
Ela se aninhou em seus braços.
- Sinto-me bem com você.
Ele a contemplou como se lesse seus sentimentos. Depois de se vestir, falou:
- Até amanhã?
Léa respondeu com um simples gesto.

Capítulo 28

Na manhã seguinte, Léa despertou ao ouvir o som do telefone;
Samuel precisava vê-la. Ela respondeu que já estava descendo.
Quinze minutos mais tarde, encontrava-se no hall do hotel.
Samuel esperava, sentado numa poltrona, alheio ao vaivém dos clientes, com o olhar perdido, as
mãos largadas. Quanta mudança para ele também! Léa permaneceu imóvel durante alguns minutos,
profundamente comovida. Foi exatamente nesse momento que Rik Vanderveen se aproximou. Léa
não tivera mais notícias dele depois da fuga da estancia Ortiz. Ao vê-lo, uma sensação de pavor
deixou- a paralisada.
- Bom dia, minha cara, não parece feliz em me rever!... Nossos amigos ficaram um pouco surpresos
com sua partida tão repentina. Como vai a Sra. Tavernier?... Melhor, pelo que me contaram... E o
nosso famoso Sr. Tavernier? Excelente piloto.
Durante esse monólogo, Samuel levantara-se e mantinha-se afastado, lendo os folhetos do hotel.
Léa entendeu: Vanderveen não podia estabelecer a relação entre o irmão de Daniel e ela.
Conseguiu sorrir com dificuldade.
- Bom dia, Rik... Que surpresa, não esperava encontrá-lo. Como vai?
- Como pode ver, sinto-me em plena forma; o clima argentino me faz muito bem. A você também,
não é?... Cada vez que a vejo está mais linda.
- Obrigada.
- Tudo bem; então podemos marcar umjantar para depois de amanhã? Às nove horas?... Tudo bem
para você?
- Sim. Em que hotel você está?
- Aqui, é claro. Dormimos sob o mesmo teto. Agora preciso ir, tenho um importante encontro. Não
se esqueça... depois de amanhã? Conto com você.
Rik Vanderveen deixou a chave do seu quarto na recepção e saiu acenando para Léa.
Por mais que Léa tentasse se convencer de que nada, nas informações a respeito de Vanderveen,
fazia dele um cúmplice de Jones e Barthelemy, sua presença na estancia Ortiz era muito suspeita.
Naquele hall, ela se sentiu vulnerável, exposta a todos os olhares: ninguém podia desconfiar de sua
relação com Samuel.
- Siga-me - sussurrou ao passar perto dele.
Léa caminhou lentamente até a estação de metrô San Martin, certificando-se de que Samuel vinha
atrás dela. Foram os únicos que subiram no vagão quase vazio. Ninguém os seguira.
Léa colocou a mão no braço de Samuel. Permaneceram calados durante alguns instantes.
- Vim lhe pedir para voltar à França...
- Você também? Mas por que todos vocês cismaram com minha presença na Argentina?
- Seu lugar não é aqui. Sempre fui contra o seu envolvimento em nossos problemas, apesar da
opinião de Sarah.
- Sarah não tem nada a ver com a minha vinda à Argentina!
- Tanto faz, mas precisa partir.
- Não.
- Ora essa, não consigo entender, nossa luta não é a sua!...
- Será que se esqueceu do assassinato da minha irmã?... Por que me recusar o direito à vingança?
A composição diminuiu a velocidade e parou.
- Vamos descer - disse Samuel.
- Vou ficar em Buenos Aires durante alguns dias; aceita almoçar ou jantar comigo?
- Com muito prazer, mas já tenho compromisso para hoje e
Encontravam-se na Plaza de Ia Republica, face ao obelisco.
- Vamos até Corrientes, lá tem muita gente.
Caminharam em meio à multidão.
- Falaremos da minha viagem em outra oportunidade; tenho uma coisa importante para lhe contar. Tentei falar
com Sarah, mas ninguém atende na casa dela. Sei onde Rosa Schaeffer se esconde.
- O quê?! O que foi que você disse?
- Sei onde se esconde Rosa Schaeffer, em Paraguay-Esmeralda.
- Mas fica...
- Pois é, logo ali.
- Então vamos agora.
- Não quer mais que eu parta?
Samuel não respondeu; acelerou o passo e entrou na caile Esmeralda. Léa corria atrás dele.
- É aqui.
Um prédio antigo, com uma mercearia no térreo.
- Cuidado!
Léa entrou apressadamente na loja, seguida por Samuel. Uma vendedora aproximou-se.
- Buenos días seuiorita, buenos días sen'ior qué desean ?
Bom dia, senhorita, bom dia, senhor, o que desejam?
O que responder? Léa fez o gesto de costurar.
- Quieren hilo? Qué color?
- Azul.
Querem linha? De que cor?
Azul.
- Pode me dizer o que está havendo?
Léa olhava pela vitrine.
- Vi Barthelemy caminhando em nossa direção.
- Acha que ele nos viu?
- Espero que não.
- Aquí tiene senorita. Es ei color que me pidió?
- Sí, gracias.
Pronto, senhorita; a cor está certa?
Sim, obrigada.
Ao sair, Léa colocou o carretel no bolso.
- Precisamos voltar com alguém que fale espanhol para tentar saber em que andar se encontram. Vamos
procurar Amos e Uri.
- Então posso ficar?
Samuel ergueu os ombros. Um táxi os levou à casa do Dr. Ricardo López. Ao saber de tudo, ele enviou os dois
melhores agentes de sua organização. Enquanto esperavam pela volta dos dois homens, mandou servir um
lanche. Acabavam de tomar o café quando a campainha soou. Era Sarah.
- Ah! Você está aí - disse, vendo Léa. - Não se esqueceu de que vamos à Casa Rosada? O que ela faz aqui? -
perguntou a Samuel.
Ele nem precisou responder: a campainha tocava novamente. Desta vez, atava-se dos argentinos regressando
da calie Esmeralda. Ao terminarem o relato de sua missão, Sarah parecia outra pessoa.
- Agora, ela não me escapa - comentou com sorriso perverso.
- Precisamos forçá-la a sair da toca, mas antes convém localizar seus seguranças.
- Son tres - disse um dos argentinos -, un policia criolio vestido de civil vigila ei inmuebie desde ei
café de enfrente, un mestizo y un aiemán.
- Conoces ai mestizo ?
- Sí, es un bandido muy peiigroso, ia policia lo utiliza a menudo para maias negocios.
São três: um policial nativo à paisana vigia o prédio do café situado bem em frente, um mestiço e um alemão.
Conhece o mestiço?
Sim, é um bandido muito perigoso, muito utilizado pela polícia para trabalhos sujos.
O médico parecia preocupado.
- O pior de tudo - disse ele, dirigindo-se a Samuel e Sarah
- é que a polícia está a par de tudo. Precisamos do maior cuidado.
- O que pensa fazer? - perguntou Sarah.
- Manter a vigilância e tentar conquistar a confiança de um dos seguranças.
- Devem estar desconfiados.
- Nenhum argentino resiste a uma linda mulher.
- Em que está pensando?
- Vamos enviar Carmen àquele café.
- Oh! não, Carmen não! - disse Léa.
- Carmen é um dos nossos melhores agentes; além do mais, é lindíssima.
Por isso mesmo, pensou Léa.
Sarah aproximou-se.
- Minha querida, você fez um ótimo trabalho. Não se esqueceu do nosso chá?... Mal temos tempo de
nos arrumar. A gente precisa aparecer e causar a melhor das impressões.
Eva Perón encontrava-se sentada numa poltrona com encosto alto, de madeira dourada e veludo
vermelho, num dos salões da Casa Rosada. Usava um lindo vestido branco drapeado e estava
cercada por mulheres com chapéus, todas elas muito elegantes. Sarah e Léa, embora de maneira
menos ostensiva, não ficavam para trás.
- Que bom revê-la, Sra. Tavemier, a senhorita também.
Léa não entendeu, mas cumprimentou sorrindo.
- Estas senhoras e eu falávamos justamente do papel da mulher em nossa sociedade. Pensei muito a
respeito. O general ajudou-me nessa reflexão. Com sua paciência e seu afeto, ele me fez entender
os diferentes aspectos dos inúmeros problemas que dizem respeito à mulher em meu país e no
mundo inteiro. Essas conversas fizeram com que eu percebesse, mais uma vez, sua genial
personalidade. Milhões de homens, semelhantes a ele, devem ter enfrentado o problema a cada dia
mais grave, nesse século tão angustiado, da mulher no seio da sociedade. Entretanto, acredito que
poucos dentre eles se detiveram, como o general, para examiná-lo a fundo. Os defensores da mulher
nos outros países dirão que começar dessa maneira um movimento feminista é pouco feminino...
Vão afirmar, com toda certeza, que aceitamos de certa forma a superioridade dos homens! Tais
críticas não me interessam.
Considero-me profundamente engajada e devo aceitar a missão de guia espiritual das mulheres do
meu país.
- Não se pode negar que ela tem uma certa classe - sussurrou Sarah no ouvido de Léa.
- Conte-me depois, não entendi nada.
O chá foi servido.
- Muchachos, aproximem-se - disse Eva Duarte, interpelando os poucos homens presentes.
Todos obedeceram.
O coronel Mercante; Freude, chefe do serviço presidencial de pesquisas, personagem temido; padre
Benitez, seu confessor jesuíta; e Alberto Dodero, importante armador, amigo dos Duarte. Em voz
alta, para que todos ouvissem, a bela Eva falou:
- Aceitei o convite do general Franco para uma visita oficial à Espanha; em seguida, irei a Roma
pedir ao papa para que reze por Perón e pelo povo argentino. Terminarei minha viagem à Europa
em Paris.
- Não pode existir embaixatriz mais linda - disse Alberto Dodero, beijando-lhe a mão.
A primeira-dama deu uma risada gutural.
Léa olhava aquela sociedade tão diferente da que pertencia Victoria Ocampo. Aqui, tudo era
pomposo, quase vulgar, e não havia ninguém que falasse francês com ela; Victoria e seus amigos
expressavam-se perfeitamente em sua língua materna. Apesar de tudo, Léa não achava Eva Perón
antipática; chegava a sentir uma certa admiração pela atriz medíocre, tão criticada nos meios
aristocráticos de Buenos Aires, que conseguira muito cedo - tinha mais ou menos a mesma idade que
Léa - ser a primeira-dama do país. Mas por nada nesse mundo Léa desejava ocupar esse lugar!
Finalmente, Sarah avisou que podiam sair.
Atravessaram a plaza de Mayo. Na frente da catedral, havia vários táxis estacionados. Léa dirigiu-
se para um deles.
- Que tal voltarmos a pé? Sinto vontade de caminhar - disse
Sarah.
- Como você quiser; vamos passar pela caile Florida e olhar as vitrines.
Só falaram de trivialidades até chegarem à sede do diário La Nación. Um grupo de homens, com o
jornal na mão, comentava as últimas notícias. Na primeira página, um cabeçalho.
- Preso em Montevidéu um criminoso nazista - traduziu Sarah.
- Acha que François está metido nisso?
- Sabe-se lá - respondeu Sarah, lacônica.
Chegaram ao Plaza.
- O que vai fazer esta noite? - perguntou Sarah.
- Vou ao cinema com Victoria Ocampo. No Ambassador está passando um filme com Humphrey
Bogart e Ingrid Bergman; depois, vamos jantar com a irmã dela, Silvina, e o marido. E você?
- Vou ficar em casa, espero notícias de François; Samuel deve passar para falar comigo. Se precisar
de alguma coisa... não vou sair.
Abraçaram-se; de repente, Léa perguntou:
- Como se sente?
Era tão inesperado que Sarah ficou desnorteada.
- O que quer dizer com isso?
- Nada.
- O quê, exatamente?
- Nem parece que Daniel morreu... Ai! Está me machucando!
Sarah apertava o braço da amiga com punho de ferro.
- O que significa isso?
- Largue-me! Ficou louca!
- Mais do que imagina- disse Sarah, soltando-a. - Quanto a Daniel, você está redondamente
enganada. Tudo parece como antes ,você acha, mas fique sabendo que nós dois estivemos naquele
inferno, e mesmo se parecemos vivos, se ainda temos emoções, não passam de um vestígio de
lembranças do que existiu... antes. Somos mortos-vivos. Então, morto ou não, qual a diferença?...
Pode me responder, logo você que se considera tão esperta?
Alguns homens passaram, olhando as duas lindas jovens que travavam uma áspera discussão,
provavelmente por motivos fúteis.
De fato, todos sabem que só as futilidades são consideradas assuntos sérios pelas mulheres.
Léa pediu a chave do seu quarto, que lhe foi entregue com uma mensagem lida imediatamente. Era
de Ernesto.
"Minha querida Léa, não vou poder vê-la hoje, meus pais chegaram de Córdoba. Beijos carinhosos."
Que pena, gosto desse rapaz, pensou Léa ao entrar no elevador. No quarto, encontrou dois buquês:
um extremamente requintado, o outro simples e elegante. Ambos comprados no florista ao lado do
hotel. O primeiro era de Rik Vanderveen, o segundo de Ernesto.
A noite passada em companhia de Victoria Ocampo terminara muito tarde. Léa dormiu mal; as
flores do buquê de Vanderveen causaram-lhe uma violenta enxaqueca. François não telefonou,
Carmen também não. Sentia-se preocupada em relação à nova amiga: Temo que algo lhe aconteça,
pensava Léa. Despertou de mau humor, ainda com dor de cabeça, e resolveu ir no fim do dia à casa
do médico Ricardo López. Ao chegar à calle San-Martin de Tours, experimentou uma sensação
inquietante; muita gente entrava e saía do prédio. Lembrou-se de ter tido essa mesma impressão na
avenue Henri-Martin, em Paris, na porta do apartamento do carrasco Massuy, de cujas garras ela
conseguira arrancar Sarah. Naquele momento, Uri chegou ao hali e viu Léa, pronta a subir.
- Não fique aqui, vamos logo.
Reinava grande agitação no apartamento do médico: dentre os presentes, Samuel, com os cabelos
desgrenhados, e Amos.
- Tem notícias de Tavernier? - perguntou.
- Não. Aconteceu alguma coisa?
- Carmen desapareceu.
- Desapareceu?
- Sim, ontem à noite, por volta de meia-noite. Ela travou conhecimento com o policial à paisana no
café. Ligou para cá, relatando tudo. Depois disso, mais nada.
- Talvez tenha dormido na casa de uma amiga?
- Não, ela nos avisaria, até porque precisava voltar ao café hoje à tarde. Ninguém a viu por lá.
- Eopolicial?
- Permanecia lá e parecia bastante nervoso.
- Já ligaram para a rádio?
- Já, não apareceu.
- O que posso fazer para ajudar?
- No momento, nada; nossos amigos argentinos estão agindo.
- Sarah foi avisada?
- Sim, tinha um almoço na embaixada da França que não podia ser adiado. Não deve demorar,
estamos à sua espera. Quanto a você, é inútil ficar aqui. Vou pedir que a levem ao Plaza. Evite sair
até nova ordem.
Profundamente desanimada, Léa deixou-se levar. Experimentava a mesma impressão de
insegurança que durante a guerra, mas ali, naquele país cuja língua ela não falava, não sabia como
agir. Onde estaria Carmen? Talvez encontrasse uma mensagem no hotel? Dirigiu-se à recepção
com uma vaga esperança.
- Não, senhorita, não há nada.
- Obrigada.

Capítulo 29

Léa jantou no quarto, experimentou ler enquanto permanecia atenta ao telefone. Por volta das onze,
agitadíssima, ela se vestiu e desceu até o bar, onde pediu uma taça de champanha, seguida de outra.
- Deve ser muito triste beber sozinha.
Era Rik Vanderveen, diante da sua mesa. Finalmente alguém com quem falar! Léa deixou de lado
suas prevenções.
- Tem toda razão, sente-se, Rik. Peça mais champanha, resolvi beber muito esta noite.
- Camarero, una boteila de su mejor champagne)
- Si, seuior.
Garçom, uma garrafa do seu melhor champanha.
Claro senhor.
- Tentando afogar suas mágoas?... Nesse caso, era só chamar tioRik!
Tio Rik! Que ridículo! Tudo bem, esta noite ela se contentaria com sua presença. O garçom trouxe
a garrafa, abriu e serviu a bebida. Léa ergueu a taça antes de beber.
- Ho! É muito melhor que o outro.
- À sua saúde, minha linda amiga... Não foi ontem que a primeira-dama a recebeu?
- Foi, como você soube?
- As notícias circulam rápido em Buenos Aires; a estranha
Sra. Tavernier estava com você. Uma linda mulher, apesar das cicatrizes no rosto... Parecem
queimaduras de cigarro.
Se já não tivesse ingerido três taças de champanha, certamente Léa se mostraria mais atenta. Mas
naquelas circunstâncias... ela pediu mais, e Vanderveen obedeceu sem pestanejar.
- Tem visto a encantadora Carmen?
- Por que essa pergunta?
- Oh, simples curiosidade! Durante a viagem, pareceu-me que vocês haviam se tornado grandes
amigas. Apesar do seu comportamento relativamente excêntrico, trata-se de uma jovem muito
agradável.
- Encontramo-nos algumas vezes. Quero mais bebida.
- Senorita, una Ilamada para usted' - disse um garçom
- Gracias.
Senhorita, telefone para você.
obrigada.
Léa foi até a cabine e fechou a porta.
- Alô!...
- Léa?... Sou eu... Fiquei sabendo a respeito de Carmen... Pelo amor de Deus, seja muito prudente...
não saia sozinha... Embarco amanhã para Buenos Aires... passarei no seu hotel assim que chegar.
Está bem?
- Como você quiser.
- Ainda zangada por causa daquela noite?... Perdoe-me, sinto muito ciúme... eu a amo...
Também a amo, pensou Léa, sinto tanto a sua falta.
- Alô?... Está ouvindo?... Fale comigo, diga alguma coisa...
- Estou com saudades...
- Não consigo ouvir... Alô, alô... o que você disse?...
Cortaram a ligação.
Léa desligou lentamente, dominada por um louco desejo de se encontrar nos braços do amante.
Amanhã! Estariam juntos amanhã... O que ele dissera?... Que ela fosse muito cautelosa. Qual era o
problema? Léa retornou à mesa, pensativa. Aquelas recomendações de prudência tinham a ver com
Rik Vanderveen? Esse mesmo
Rik Vanderveen a respeito de quem sabia tão pouco. Entretanto, em várias ocasiões, suspeitara que
fosse nazista.
- Parece preocupada, em que está pensando?
- Gostaria de saber se você é nazista.
Por que eu disse aquilo?, pensou. Devo estar louca. Sentiu as faces em chamas.
O rosto de Vanderveen permaneceu impassível. Com um sorriso irônico, perguntou:
- Qual o motivo da sua pergunta?
Responder o quê?... precisava encontrar um argumento plausível.
- Não sei, foi uma idéia que me passou pela cabeça.
- Tem a ver com o telefonema que recebeu?
- Claro que não! Mas os senhores Jones e Barthelemy não são nazistas?
- Nada sei a respeito, e mesmo que fossem, em que isso me toca?
Léa esvaziou sua taça de champanha, que ele tornou a encher.
- Há muitos nazistas na América do Sul.
- O que não prova que sou um deles.
- Correto. Digamos que se trata de uma simples suposição.
- Suposições muito perigosas. Já falou a esse respeito com seus amigos Tavernier?
Léa bebeu antes de responder.
- Já.
- E o que disseram?
- Que você é realmente um cidadão holandês acima de qualquer suspeita.
- Você não ficou satisfeita?
- Claro, agora eu me sinto bem mais tranqüila.
- Estou feliz com isso. Uma linda mulher como você não deve ter esse tipo de pensamentos.
- Por quê?
- Porque pode não ser muito saudável.
Que jogo era aquele? A própria Léa não conseguia entender. Devia ser por causa do champanha.
Rik não era nazista, apesar de suas relações pouco recomendáveis.
- Faz muito tempo que conhece o Sr. Ortiz?
- Sim, costumávamos negociar antes da guerra.
- E ele, não é nazista?
Vanderveen olhou atentamente para Léa antes de responder.
- Você vê nazistas por toda parte, parece uma obsessão. Vamos sair daqui e nos distrair; levo-a a
um show de tango.
- Mas já é muito tarde!
- Não na Argentina, e não para o tango. Vamos logo, é perto daqui, entre a Corrientes e Sarmiento.
Apesar da hora tardia, havia muita gente na calle Florida, principalmente homens. Fazia muito calor.
Pararam na frente de um cartaz luminoso: Marabú Maipú. Mesas com toalhas vermelhas cercavam
a pista de dança, a orquestra tocava uma rumba. Cortinas de pérolas coloridas moviam-se ao redor
do salão. O jogo de luzes provocava um fulgor ofuscante. Mal acabaram de sentar e o maítre trouxe
um balde prateado com uma garrafa de champanha, que foi imediatamente aberta.
- Mas... não pedimos nada!
- Adivinharam sua preferência.
Léa bebeu. Um casal de dançarimos de tango entrou, a mulher de vestido curto de cetim com
aberturas laterais, longas pernas voluptuosas cobertas de meias rendadas, o homem de terno claro,
com um chapéu que lhe dava uma falsa semelhança com Carlos Gardel. Com ar sério, ele guiava
sua ágil parceira de olhar distante, sensual e ao mesmo tempo arrogante. A música, triste, profunda,
nostálgica, mexia com a sensibilidade de Léa. "Esse pensamento triste que se dança" costumava
comovê-la. Ela gostava da melancolia, da tristeza emanada daquela melodia, espelho da dificuldade
de viver com um mórbido romantismo. Por um breve instante, ela se viu rodopiando nos braços de
François. O que ela fazia nesse lugar?... A música parou, o público aplaudiu manifestando
ruidosamente seu agrado.
- Estou cansada, gostaria de voltar ao hotel.
- Não antes de dançarmos juntos.
Exausta, estonteada pelo excesso de bebida, Léa deixou-se
levar, distante. Seu corpo acompanhava o ritmo, dócil, indiferente ao desejo que seu parceiro não
conseguia disfarçar.
- Quero você - sussurrou no ouvido de Léa.
Ela deu uma risada rouca que o enganou, e estremeceu quando ele a beijou no pescoço.
- Léa, você também quer?
- O quê? - perguntou ela com voz lânguida.
- Fazer amor.
- Não.
Foi um "não" ríspido e cortante. Ele a apertou com violência.
- Porquê?
- Não tenho vontade.
- Pois estou certo do contrário.
- Pense o que quiser. Leve-me ao hotel, quero ir embora.
- Sua putinha nojenta, acha que pode rir da minha cara assim, sem mais nem menos?
Léa soltou-se e retornou à mesa. De um só gole, esvaziou a sua taça. Ao colocá-la sobre a mesa,
seu olhar cruzou com o de um homem apoiado no balcão; ela já conhecia aquele olhar... na vitrine...
Jones... Encontrava-se em perigo. Levantou-se, deu alguns passos titubeantes. O homem deixou o
balcão e veio em sua direção. Léa parou e procurou Rik Vanderveen: ele desaparecera; um
sentimento de pânico apossou-se dela.
Do lado de fora, o calor era menos intenso; agora, havia menos gente na rua. Nenhum táxi
estacionado. "Não saia sozinha", não fora essa a recomendação de François?...
Na calle Florida, ela tentou andar normalmente.
Os rapazes olhavam para aquela linda chi desacompanhada e de pernas bambas.
- Adonde va?
- Podemos ayudaia?
Para onde vai?
Podemos ajudá-la?
- Puedo acompaíiarla?
Posso aconpanhá-la?
A calie Florida não tinha fim. Léa olhou para trás, pensou ter visto o homem do bar e começou a correr. Na
Viamonte, alguém segurou seu braço. Ela gritou. A ponta de uma faca em sua garganta fez com que se calasse.
Um carro parou. Sem soltá-la, o agressor abriu a porta e empurrou a jovem para dentro de uma imensa limusine;
um cheiro de couro, tabaco, e nada mais.
Em primeiro lugar, permanecer de olhos fechados, aguardar que a enxaqueca diminua; ela não podia continuar
bebendo daquela maneira: desejava um bom banho para limpar aquela sensação de sujeira e náusea. Com
muito cuidado, Léa abriu os olhos, voltou a cerrá-los. Pareceu-lhe ouvir um gemido... Era mais um pesadelo!...
Precisava despertar, levantar-se, chamar Sarah e Samuel. Ela abriu os olhos... não se tratava de pesadelo.
Quanto tempo fazia que ela se encontrava ali, amarrada, naquele lugar repugnante e sombrio? Agora, o gemido
era real. Apesar das cordas que lhe prendiam os braços e os pés, Léa conseguiu erguer-se. A poucos passos,
havia um corpo encolhido, sacudido por constantes tremores, de onde partiam os gemidos. Ela permaneceu em
pé com muito esforço e se aproximou saltitando... caiu perto do corpo estendido no chão. Aquela roupa
amarela, rasgada... manchada... uma impressão de déjà vu... a sensação de completa impotência, de dor
profunda!... o mal, sempre o mal... Carmen...
- Carmen!
Por um segundo, o tremor parou. Com as mãos amarradas, Léa conseguiu virá-la. Oh, não! ... um olho
intumescido, o rosto coberto de equimoses, a boca ensangüentada...
- Carmen... fale comigo... minha querida, por favor...
Os lábios feridos esboçaram um sorriso que se transformou num ricto de dor. Faltavam dois dentes...
- Che... Léa, vas también ?
Léa... você também?
Encostada na amiga, Léa começou a soluçar.
- Não chore... tenho sede... pronto, calma...
Quantas vezes já lhe disseram calma?... Sentiu vergonha das suas lágrimas, ergueu a cabeça... Não era apenas
o rosto de Carmen que fora torturado, suas mãos... seus seios... as mesmas queimaduras de Sarah... Não! A
guerra tinha acabado... as torturas também... a Argentina não era a Alemanha... e no entanto... ali.., aquela
linda chica irreconhecível.., os dedos triturados... os seios queimados... a saia ensopada entre as coxas...
todo aquele sangue! ... o sangue...
O grito de Léa assustou Carmen.
- Fique quieta... eles vão voltar.., não contei nada... Não sei por quê, mas não contei nada... Estão atrás de
Sarah e dos outros... você também... não conta nada...
- Mas não quero que me machuquem!
Apesar de todo seu sofrimento, essa observação provocou um sorriso nos lábios feridos de Carmen, que se
transformou em grito.
- Perdoe-me, nem sei o que estou dizendo. Quem torturou você dessa maneira?
- Una mujer
- Uma mulher!... mas como é possível?... Oh, não!...
A cena de Sarah carregando o filho morto... o crânio do bebê afundado... aquela doutora rindo... Rosa
Schaeffer! ... Rosa Schaeffer... atordoada, Léa sentiu-se desfalecer.
Ela precisava reagir, não podia deixar que a ferissem como Carmen! ... Em primeiro lugar, livrar-se das amarras.
Com os dedos dormentes, conseguiu, após várias tentativas, desfazer o nó da corda que prendia seus pés.
Com os dentes, tentou fazer o mesmo em relação à corda que lhe prendia os punhos, mas o resultado dos seus
esforços foi péssimo: o nó tornou-se ainda mais apertado. O suor lhe escorria pelo rosto e costas; o vestido
estampado ficou colado à pele. Na espécie de porão onde se encontravam, só havia caixotes,
tonéis, nenhum instrumento cortante... pareceu-lhe que os gemidos de Carmen iam se tornando cada vez mais
fracos... aproximou-se... a jovem argentina desmaiara. É melhor assim, pensou, não sente tanta dor... De
repente, um ruído de vozes... palavras em alemão... Léa se encolheu perto da amiga.
- Wo ist das Müdchen ?... Ich sehe es nicht
- Hier Doktor sie hat es geschafft, ihre Beinefreizumachen.
Onde está a moça?... Não a vejo.
Aqui, doutora, ela conseguiu soltar as pernas.
Rosa Schaeffer e Barthelemy; atrás deles, o homem do bar.
- Das ist also die berühmte kieine Franzõsin... Hübsches Mãdchen... Schade! Ich hoffe, sie ist
weniger hartnitckig ais die kleine Argentinierin... lst sie tot?
- Noch nicht
Essa é a famosa francesinha... Bonita moça... que pena! Espero que ela seja mais fraca que a jovem argentina... Já morreu?
Ainda não.
- disse Barthelemy, dando um pontapé em Carmen. Ela gemeu, obrigando Léa a levantar.
- Na, dann bringt sie um.
Então, matem-na.
- Não! - gritou Léa.
Rosa Schaffer gargalhou.
- Wir waren nicht sicher ob du deutsch verstehst... Das ist gut, auf die Art gewinnen wir Zeit.
Ich wiii die Namen undAdressen der Mitgiieder des Netzes deiner jüdischen Freundin... Du
wiiist nicht antworten? Wenn du dich darauf versteifst, dann hast du deinen ietzten Liebhaber
gehaht... wie du willst. Woraufwarten wir um die andere umzubringen ?
- Ich flehe sie an, lassen sie sie ieben!
Não sabíamos com certeza se você entendia alemão... Isso é ótimo, assim vamos ganhar tempo. Quero os nomes e endereços dos membros da rede da sua
amiga judia... não quer responder?... Se não mudar de comportamento, nunca mais terá namorado... como quiser. Mas o que estão esperando para matar a
outra?
Eu imploro, deixe-a viver!
- Não! - respondeu Rosa Schaeffer.
Com um gesto tão rápido que Léa não percebeu logo o que acontecera, Barthelemy cortou a garganta de
Carmen.
Aquela faca suja de sangue... o ruído do líquido escorrendo... o corpo agitado por tremores.., e aquela cabeça
que parecia completamente solta... Léa caiu no chão e ficou olhando sem entender o que via.
- Carmen - murmurou ela suavemente.
Ela foi despertada por várias bofetadas.
- Raus mit der Sprache, du Hure!
- Das führtjetztzu nichts. Sie ist nicht hei Sinnen und versteht kein Wort. Sou sie sich erstmaj
von dem Schock erholen...
- Wir haben nicht viel Zeit, morgen müsst ihr schonfort.
- Ich weiss, warten wir etwas. Bindet sie gutfest.
- Was machen wir mit der Leiche?
- Tut sie in den Sack, wir sehen spãtter weiter.
Você vai falar, sua filha da
puta.
Agora, será inútil. Ela está completamente apagada e não entende uma palavra do que perguntamos. Vamos
deixá-la se refazer.
Não temos muito tempo, é amanhã que você deve partir.
Sei, vamos esperar um pouco. Amarre-a bem forte.
que vamos fazer com o corpo?
Coloque-o num saco, veremos mais tarde.
O homem do bar e Barthelemy puseram o cadáver num saco de juta, que deixaram num canto.
Sozinha, sentada no chão imundo, Léa oscilava o corpo com um estranho sorriso.
Gritos, ruídos de luta chegaram até ela... a porta do porão abriu-se bruscamente.., um homem... com um fuzil...
Léa parou de se balançar e ergueu os olhos... Vou morrer, pensou. Por que aquele homem a soltava?... Sentiu
um líquido quente escorrendo pelas pernas.., nada conseguia detê-lo.., que imundície!.., aquele terror...
- Não tenha medo, vim salvá-la.
Salvá-la?.., ele dissera mesmo: salvá-la?... Teve vontade de rir... Ele a ajudou a levantar; sua saia, encharcada,
colava-se à pele... sentiu-se envergonhada.., apoiou-se no homem para subir os degraus... uma grande loja de produtos alimentícios... ninguém.., que
horas eram?... Qual a data? Havia uma claridade de fim de tarde...
uma limusine com cheiro de couro e tabaco...
- Você não se esqueceu que vamos jantar juntos esta noite -
disse Rik Vanderveen, dando a partida.

Capítulo 30

Alguns instantes após a saída de Léa, dois automóveis pararam na frente da loja. Os transeuntes
surpresos viram quatro homens passarem pela porta, com armas ocultas sob os casacos.
- Como se explica que não haja ninguém?
- Trata-se de uma empresa fictícia, que serve de cobertura aos traficantes nazistas. Os poucos
empregados são todos de origem alemã. Mas há sempre alguém para vigiar o local; é bom sermos
prudentes. Amos fica perto da entrada, vigiando a rua. François e Uri me acompanham.
Aparentemente, o lugar estava vazio.
- Vamos até o porão - disse Narciso Colomer, o guia.
- Não entendo - comentou François Tavernier - por que as portas estavam abertas. Parece uma
cilada.
Mal tenuinara sua frase quando se ouviu um tiro e uma bala penetrou na madeira de uma prateleira
a poucos centímetros da sua cabeça. Ele se jogou no chão. Amos e Uri atiraram. Um grito. Um
homem caiu em meio às caixas. Acima deles, de uma larga viga metálica, outro homem atirou na
direção de Narciso, mas este foi mais rápido e abateu o atirador que desabou. Em seguida, o
silêncio.
Deixando o andar térreo aos cuidados de Amos e Uri, Tavemier
e Colomer desceram ao porão. Tavernier voltou logo em seguida.
Transtornado, deixou-se cair num caixote.
- Eaí?
Mostrou que não conseguia falar. Os dois rapazes desceram.
Uri voltou chorando. Narciso e Amos regressaram, pálidos, o olhar repleto de ira... Durante alguns
instantes, ouviu-se apenas a respiração ofegante dos quatro homens.
- Nós a vingaremos - disse Uri, enxugando os olhos.
No carro que a levava, Léa começou a voltar a si.
- Cheguei na hora, ao que parece - disse Rik Vanderveen, colocando a mão no joelho da jovem.
- Obrigada - balbuciou.
A limusine corria pelos arredores de Buenos Aires. Pouco a pouco, as casas tornaram-se mais
raras, a terra substituiu o asfalto:
à frente, a perder de vista, a imensa planície.
- Aonde vamos?
- Estou levando você para um lugar seguro.
- Como me encontrou?
- Eu a segui, mas não consegui agir antes.
- Viu o que fizeram com Carmen? Precisamos avisar a polícia.
- Seus amigos vão se encarregar de fazê-lo.
O que significavam essas palavras? Tudo estava muito confuso em sua mente. Ela precisava
despertar e tomar uma decisão, o mais rápido possível.
- Não entendo.
- Mas tão simples: os senhores Tavernier, Ben Zohar, Zederman e Dayan não são seus amigos?
Como ele sabia os nomes de Amos, Samuel e Uri? Seu coração disparou, o suor umedeceu-lhe as
mãos.
- Você não faz parte de uma rede de vingadores?... Por pouco não a encontraram.
- Mas então por que...
- ...tirá-la das mãos de Rosa Schaeffer?...
A cabeça de Léa girava... Ele conhecia Rosa Schaeffer... Então?... Ela tentou abrir a porta do
carro.
- Não faça isso, seria fatal.
Um revólver surgiu em sua mão.
- Se quiser fugir, atiro em seu joelho.
Apesar de todos os seus esforços, Léa não conseguiu reprimir as lágrimas.
- Não chore, minha linda jovem. Vai estragar seu bonito rosto. Escute, prometo que, se me contar
direitinho tudo o que sabe a respeito da organização dos seus amigos judeus, sua vida será salva,
palavra de oficial SS.
SS! Ele dissera mesmo SS? Essa sigla representava todos os horrores da guerra. Ela recordou os
amigos assassinados, os montes de cadáveres no campo de Bergen-Belsen, o corpo mutilado de
Carmen... Seus dedos soltaram a maçaneta da porta... Léa deixou-se cair no banco, ao lado de Rik
Vanderveen.
François Tavemier comunicou à embaixada da França o desaparecimento de Léa. O embaixador e
ele foram recebidos pelo chefe de polícia, o general Velazco.
- Lembro-me perfeitamente da Srta. Delmas, uma jovem encantadora. Deve ter sumido com o
namorado, não deve se preocupar, Sr. Embaixador. Atualmente, as jovens européias...
- General Velazco, temos certeza de que não se trata disso...
- Seus informantes sabem de coisas que os meus desconhecem?
- Não se trata de informantes, mas de testemunhas que viram a Srta. Delmas ser levada à força num
carro. Uma delas anotou o número da placa.
- Por que essa pessoa não avisou à polícia do seu país?
- Deve ter tido um certo receio.
- Sr. Tavernier, um homem honesto nada tem a temer da polícia.
- Claro...
- Como se chama?
- Não guardei o nome.
- Está zombando de mim, Sr. Tavernier... disse que tem uma testemunha do desaparecimento da
Srta. Delmas e não se lembra do nome?
- Esta é a pura verdade - respondeu ele friamente.
O general Velazco se levantou.
- Sua Excelência, senhor... fizeram muito bem em vir falar comigo. Apesar das
informações tão
escassas, vou determinar a abertura de um inquérito... vocês serão informados de tudo o que for
descoberto.
- Seu hipócrita cafajeste!
- Acalme-se, meu caro, esse tipo de reação não leva a nada
- disse Vladimir d'Ormesson. Nossos serviços vão atuar separadamente.
- Mas Léa já terá morrido. Já soube o que fizeram com Carmen Ortega?
O embaixador suspirou desanimado.
- Por favor, Tavernier, seja prudente...
- Estou pouco ligando para todos os seus conselhos de prudência. Foi exatamente o que eu disse a
Léa dois dias atrás.
- Posso deixá-lo em algum lugar?
- Não, obrigado, prefiro caminhar.
O carro do diplomata afastou-se.
- Meu nome é Albert Van Severen, sou flamengo. Fui um dos primeiros voluntários da Legião
flamenga, com meu amigo, o deputado Reimond Tollenaere. Nós nos sentíamos muito próximos da
Alemanha. Desde o início da guerra, Tollenaere escrevia no jornal do nosso partido, o Volk en
Staat: "Nesse mundo de passividade, cheio de anglófilos e burgueses covardes, não podemos
esconder nossa simpatia em relação ao combate liderado pela Alemanha. Estamos no mesmo
campo e, mais do que nunca, esse combate é o nosso!" Saímos de Radom com a patente de
Untersturmführer SS. Lutamos às portas de Leningrado. Ali, Tollenaere, meu camarada, meu
irmão, foi morto em 21 de janeiro de 1942. Essa morte reforçou minha fé em Hitler. A Legião
flamenga atuou heroicamente, a ponto de o Reichsflhrer Himmler comentar a nosso respeito: "Os
flamengos lutam como verdadeiros leões!" Ferido às
margens do Volkhov, cercado com meus homens pelos russos, consegui escapar. Foi quando me
outorgaram a Cruz de Ferro. Após alguns meses de hospital, retornei à frente de batalha com a
brigada de assalto Langemark. Fui feito prisioneiro sobre o Oder, consegui fugir e encontrei-me, em
Hanover, com dois arianos, Jef Van de Wiele e August Borms. Encontrei também o chefe dos
valões, Léon Degrelle, digno de pertencer ao povo flamengo. Com o fim da guerra, com um grupo
de ex-membros da Viking, resolvemos expatriar-nos para preparar a revanche. Formamos um
grande número de combatentes em prol deste ideal. A cada dia, novos amigos juntam-se a nós e não
deixaremos que falsos combatentes judeus atravessem nosso caminho. Todos eles serão
exterminados, terminaremos o trabalho iniciado...
- Cale-se! - exclamou Léa.
Sem levar em conta essa interrupção, Albert Van Severen, aliás Rik Vanderveen, prosseguiu:
- ...pelo povo alemão. O que não posso entender é que uma mulher como você se associe àquela
gentalha. Quanto a Tavernier, seu amante, o envolvimento dele parece-me ainda mais estranho.
- A idéia de que lutamos pela liberdade, a dignidade do homem, nunca lhe passou pela cabeça?
- Nada de frases feitas, por favor. A liberdade é o privilégio de muito poucos, a massa é feita para
obedecer. Vamos, seja boazinha, conte-me tudo o que conhece a nosso respeito. Como soube que o
judeu Zederman se encontrava preso na estancia Ortiz e como conseguiu avisar Tavernier e a Sra.
Ocampo? Sabe que chegou a me enganar? Durante algum tempo, pensei que não passasse de uma
perfeita e encantadora idiota. Mesmo na casa de Ortiz, continuei em dúvida...
- E em relação a Carmen, também teve dúvida?
- Não, soubemos logo que ela era comunista... O que aconteceu com Carmen deveria alertar você;
eu ficaria muito aborrecido se tivesse que entregá-la aos meus amigos...
- Então, você não suja suas mãos?
- É mais ou menos isso. Existem os que dão as ordens e os que obedecem. Relate tudo desde o
início.
Antes de mais nada, era preciso ganhar tempo.
- A essa altura, o embaixador da França já deve ter sido informado do meu seqüestro...
- É possível, e daí?
- A polícia vai intervir.
- Duvido muito. O chefe de polícia, o general Velazco, não tem se mostrado hostil quanto à nossa
organização. Além do mais, estamos longe de Buenos Aires. Na Argentina, cada um manda no seu
pedaço. Os gaúchos do amigo que nos empresta aquela estancia são extremamente fiéis ao
proprietário. Você não tem a menor chance de fugir. Abandone qualquer esperança, está
inteiramente em nossas mãos. Conte-me tudo que sabe, a menos que prefira esperar a visita da Dra.
Schaeffer. Ela ficou furiosa com a morte da companheira. Na falta de Sarah Mulstein, a vingança
dela recairá sobre você.
Léa não ouvia mais nada, deslizava lentamente para um profundo desespero, sem perguntas, sem
revolta, evidente, tranqüilo. A consciência desse desalento a deixava... de certa maneira, serena, isso
mesmo: serena. Não era incompatível. Ela se sentia irresistivelmente presa, submersa, atolada,
afogada numa onda sombria, constante, poderosa, veemente, forte e vigorosa; ela corria para um
universo de luto onde reinava o mal. Para suportar essa dor, resistir era inviável, era necessário se
deixar levar, para bem longe até tornar-se inacessível. Sim, inacessível, flutuando em direção a
margens inabordáveis...
- Essa não! ... Você nem está ouvindo!
Léa olhava para ele sem vê-lo, como quem diz: "No lugar onde me encontro, você nunca me
alcançará." O SS flamengo parecia frustrado com todo o sofrimento mudo que transparecia naquela
linda mulher. Pressentia que bastava estender a mão para agarrá-la, apertá-la nos braços e
submetê-la a seu desejo, sem encontrar resistência alguma exceto a do seu olhar perdido num
mundo cuja chave ele não possuía. Não era o que ele desejava. O que importava se era uma
inimiga? Tratava-se de uma mulher que o atraíra desde o primeiro encontro. Em sua vida de
soldado, ele só conhecera prostitutas e algumas infelizes estupradas após a batalha. Esse tipo
de relação só provocara uma profunda repulsa em relação a si próprio, e quase que um sentimento
de ódio para com aquelas criaturas sórdidas ou amedrontadas. A presença de Léa no navio fizera
com que ele sentisse algo mais do que um breve encontro entre dois corpos. Falou em voz baixa,
num tom de súplica:
- Fale, eu imploro, fale.
Léa sacudiu lentamente a cabeça.
Pela primeira vez na vida, ele sentia medo... medo por ela. Sabia que Léa falaria, por bem ou por
mal. Odiava a tortura, julgava-a indigna de um soldado, mas e os outros?... E Rosa Schaeffer?...
- Dê-me um cigarro.
Ele lhe entregou um maço de Carrington.
- Não tem outra marca? - disse Léa, tragando.
- Graças ao número da placa anotado por uma testemunha, encontramos o nome do dono do veículo:
pertence a um rico negociante de vinhos chileno, Remondo Navarro, cliente assíduo da ABC que,
durante suas estadas em Buenos Aires, costuma passar as noites tomando cerveja com ex-membros
da Gestapo. Amigo íntimo de Heinrich Doerge, que, durante a guerra, foi conselheiro do Banco
Central da Argentina, assim como de Ludwig Freude, embaixador oficioso do Reich em Buenos
Aires. Sabemos que Freude foi encarregado de ocultar o tesouro nazista. Alguns dos nossos
informantes afirmam que uma parte desse tesouro deve se encontrar no Chile, nas mãos dos
dirigentes de uma seita secreta nazista.
François Tavernier andava para cima e para baixo, ouvindo atentamente as palavras do médico.
Num canto, Amos Dayan e Uri ben Zohar poliam as armas.
- Remondo Navarro está escondido por enquanto. Sabemos que costuma freqüentar uma estancia
situada a uns cem quilômetros da capital, na direção norte. Dois agentes nossos partiram para lá. Se
encontrarem a estancia, seremos informaclos pelo rádio. Enquanto isso, precisamos nos separar.
Léa conhece esse endereço... Possuo uma casinha perto do rio em San Isidro, pertence aos pais da
minha esposa. Tenho certeza de que nem a polícia nem
nossos inimigos sabem onde fica. Encontra-se à minha disposição um barco a motor, que podemos
usar para fugir se formos descobertos. Perto da igreja de San Isidro, há uma esquina dirigida por
amigos; trata-se de um dos nossos pontos de encontro. Hoje à noite, as instruções serão enviadas
para lá. A senha é: "Onde fica o presbitério?" E a resposta: "O padre não se encontra." A tarde,
haverá uma manifestação dos ferroviários na plaza de Mayo. Achamos que Rosa Schaeffer sairá do
seu esconderijo, aproveitando a multidão. Muitos dos nossos já se encontram no local, perto da casa
dela e nos arredores. Sarah foi junto com eles.
- Sarah?... Mas que loucura! Rosa Schaeffer vai reconhecê-la
disse Tavemier.
- Foi o que dissemos, mas não houve argumento que a demovesse dessa tarefa. Samuel está com
ela.

Capítulo 31

Uma jovem loura, os olhos ocultos por óculos escuros, olhava os grupos de homens em mangas de
camisa dirigindo-se à plaza de Mayo. O som abafado e obsessivo dos bumbos chegava a seus
ouvidos.
Rosa Schaeffer deixou a rua Esmeralda e entrou na igreja de Maipú. A mulher loura seguiu-a, mas
saiu logo após. Acenou para um homem que por sua vez entrou na igreja. Pouco depois, duas freiras
e um padre saíram. Apesar do disfarce, Sarah reconheceu Rosa Schaeffer, que nem olhou para a
mulher loura ao passar a seu lado. Um dos dois homens devia ser Barthelemy.
A avenida de Mayo estava repleta de gente agitando bandeirinhas e gritando slogans pró-peronistas.
Os bumbos davam uma dimensão dramática àquela aglomeração. O homem de Mayo; os
vingadores estavam atrás deles. Os gritos aumentaram; Juan Perón e Eva apareceram na varanda
da Casa Rosada. Os nomes do presidente e da esposa eram pronunciados ao ritmo dos bumbos:
- Perón!... Evita!...
O calor tornara-se insuportável. Sarah transpirava sob a pesada peruca.
No parque Colón, a multidão era a mesma. Perto do Luna Park, Sarah avistou Samuel. Alguém a
empurrou, murmurando:
- Cuidado, os carros deles chegaram. Nossos informantes realizaram um bom trabalho.
- Doutor! O que faz aqui?
- Eu quis me certificar de que tudo estava em ordem. Viu a caminhonete branca? Pertence a gente
nossa. Aproxime-se sem pressa, bata duas vezes, mais uma na parte traseira, e vão deixá-la subir.
- Não poderíamos tentar prendê-los agora?
- Não, há delatores por toda parte, é melhor segui-los.
Sarah entrou precipitadamente pela traseira da caminhonete. No interior, um homem com fones nos
ouvidos manipulava os botões de um transmissor.
Amos encontrava-se ao volante de um carro atrás da caminhonete; perto dele, Uri. Ambos usavam
um chapéu que escondia a parte superior do rosto. Samuel e o Dr. López pegaram outro veículo. O
automóvel de Rosa Schaeffer deu a partida. O Dr. López veio atrás, seguido da caminhonete e
finalmente de Amos.
O tráfego era intenso, os pedestres numerosos; dirigiam lenta- mente. Na avenida Corrientes e além
da plaza de la República, era praticamente impossível avançar.
Sarah tirou a peruca e sacudiu o cabelo. No interior da caminhonete, reinava um calor infernal. O
chofer, um jovem argentino muito irritado, fumava um cigarilio que exalava um cheiro inbagável.
Rumaram para o norte.
- Foram em direção à estancia Colomer- disse o Dr. López, a mesma que Remondo Navarro
costuma freqüentar.
- Tem certeza? - perguntou Samuel.
- Temos cinqüenta por cento de chance: se continuarem em frente, estão indo para lá; se dobrarem à
esquerda, vamos enfrentar o desconhecido.
- Mas não podemos continuar atrás deles por muito mais tempo, acabarão desconfiando.
- Calma, no próximo cruzamento mudaremos de tática. Vamos ser trocados. O nosso carro e a
caminhonete irão na mesma direção. Só Amos e Uri continuarão a segui-los.
O carro de Rosa Schaeffer prosseguiu. Agora a estrada era de terra batida e uma espessa nuvem
de poeira erguia-se. Logo depois, Amos precisou deixar um caminho ladeado de árvores e se deteve
assim que ficou fora de alcance, não sem antes verificar que os
substitutos estavam no caminho certo. Atrás daquele carro, vinha uma grande limusine.
- Eles também tomaram suas precauções - disse Uri.
A caminhonete chegou logo depois, e finalmente o Dr. López com Samuel.
- Eles só têm um carro de proteção. Até aqui, tudo correu como previsto - disse o médico. - Vamos prosseguir
dentro de quinze minutos.
- Consegui comunicarme con el senor Tavernier confirmo que se dirigen a ia estancia
Casteili. Según ias informaciones, es una verdadera guarida. Ei seuíor Tavernier va ai aero-
club y liega en avión.
- Gracias, Carlos.
Consegui falar com o Sr. Tavernier, estão indo para a estancia Casteili. Segundo as informações que tivemos,
trata-se de uma fortaleza, O Sr. Tavernier vai ao aeroclube para pegar um avião.
Obrigado, Carlos.
Já era noite quando Rosa Schaeffer e seus cúmplices chegaram à estancia Casteili. Esta, não muito grande,
era cercada por um bosque; depois, os pampas. Era praticamente impossível chegar despercebido. Rik
Vanderveen os recebeu:
- Dieser Anzung sitzt sehr gut!
Esse traje lhe fica muito bem!
- disse ele, rindo às gargalhadas.
- Mir ist nicht zum iachen
Não acho a menor graça.
- respondeu a Dra. Schaeffer, arrancando a touca de freira.
Sua beleza abrutalhada havia desaparecido. O rosto tornara-se mais pesado e o olhar acuado. Os cabelos
brancos e despenteados davam-lhe um ar de anciã.
Caminharam em direção a casa.
Rosa Schaeffer deixou-se cair num velho sofá.
- Geben sie mir zu trinken, und danach nehme ich eine gutes Bad.
Dêem-me algo para beber, depois vou tomar um bom banho.
- Zu trinken ist kein Probiem, aber was das Bad angeht... es
LI
gibt lediglich eine Klapprige Dusche, aus der nur verrostetes Wasser kommt. Damit werden
sie sich abfinden müssen.
Para beber, não tem problema, quanto ao banho... só tem um chuveiro muito velho de onde sai uma água
enferrujada. Vai ter de se contentar com isso.
Onde posso tirar essa roupa ridícula?
Siga-me.
Ela fez um gesto de resignação.
- Wo kann ich diese groteske Verkleidung ausziehen?
- Folgen sie mir.
Ela falou?
Acho que ela não sabe de nada.
Duvido muito.
Ao regressar, seus cabelos estavam penteados num coque preso na nuca, e ela trocara seu traje de freira por
uma calça e uma camisa de homem, o que destacava seu caráter violento... Pegou o copo que Vanderveen lhe
ofereceu.
- Hat sie Gesprochen?
Onde ela está?
Desde sua chegada, ele temia essa pergunta.
- Ich glaube, sie weiss nichts.
- Das würde mich wundern. Wo ist sie ?
- In einem der Zimmer.
- Begleiten Sie mich.
- Spre wir haben etwas zu besprechen.
Num dos quartos.
Leve-me até lá.
Mais tarde, precisamos conversar.
O soldado que não sentira medo em Leningrado teve um calafrio sob o olhar que lhe lançou Rosa Schaeffer.
- Wie sie wollen.
Como quiser.
Durante o jantar, acertaram os detalhes a respeito da viagem que devia levá-los ao Brasil. Já era tarde quando
ela disse:
- Gehen wirjetzt zu der Kleinen.
"Agora, vamos ver aquela moça.
- Só pude ver três sentinelas do lado de fora; uma delas está no telhado, uma na frente da casa, a outra nos
fundos - disse Uri.
- E no interior, quantos são? - perguntou o Dr. López.
- Não menos de cinco, talvez mais.
- Tavernierjá chegou?
- Já, seu avião pousou a uns três quilômetros daqui, não deve demorar.
- Tudo parece calmo.
- Calmo demais. Até aqui, foi fácil, muito fácil.
- Amos conseguiu penetrar no galpão. Vou tentar encontrá-lo.
- Também vou - disse Sarah.
- Seria bom que um de nós acabasse com a sentinela que se encontra atrás da casa.
- Doutor, deixe comigo, estou acostumado a esse tipo de trabalho - disse Uri.
A sentinela do telhado acendeu um cigarro e provocou um breve clarão nas sombras.
- São muito imprudentes - disse Samuel em voz baixa.
Un rastejou até a casa, confundindo-se com o solo. Alcançou a parte iluminada, que contornou até
chegar aos fundos da habitação. Seus companheiros perderam-no de vista.
- Há quanto tempo estão na casa? - perguntou François Tavernier ao se aproximar.
- Há cerca de duas horas.
- Algum detalhe suspeito?
- Nenhum ruído, pelo menos. Uri está cuidando de um dos sentinelas. Olhe só, lá vem ele.
A sombra do palestino apareceu na claridade e se misturou ao capim escuro. Na estancia, não se
ouvia o menor movimento.
- Pronto - disse simplesmente Uri ao regressar.
- Não viu nada?
- Léa encontra-se num aposento dos fundos, reconheci sua silhueta...
- Sozinha?
- Acho que sim. Há uma grade na janela. Onde está Sarah?
- No galpão.
- Tavernier, você pode acabar com a sentinela que se encontra na frente da porta? - perguntou
Samuel.
- Não vai ser fácil, precisamos encontrar uma forma de atrair sua atenção...
- Pedro, todo está bién ?
Pedro, tudo bem?
- gritou o homem do telhado.
- Muy bién, Marcello.
- Tendrás que ir a ver Henrique, vigilo por vós.
- De acuerdo.
Tudo, Marcelo.
Vá ver como está Henrique, posso ficar em seu lugar.
Está bem.
Pedro deixou seu posto, fuzil na mão e poncho no ombro.
- Agora é a nossa chance - disse François, rastejando na direção de Pedro.
Instantes mais tarde, viram Pedro voltando, envolto no poncho, e retomar seu posto.
- Marcello?
- Sí.
- Todo está en orden.
- Bién.
Sim,
Tudo em ordem
Está bem.
Pedro acendeu um cigarro.
- O que aconteceu com Tavernier? - perguntou o Dr. López.
- Nada, é ele quem está de sentinela - respondeu simplesmente Samuel.
- Excelente.
Ao entrar no aposento onde Léa se encontrava, Rosa Schaeffer perguntou por que ela não estava amarrada.
- Die estancia ist gut bewacht, die kannt nicht fliehen
A estância está bem vigiada, ela não pode fugir.
- respondeu Rik Vanderveen.
Não percebeu que Rosa trazia uma chibata na mão. Ela chicoteou brutalmente Léa, que gritou, protegendo o
rosto com os braços. Ela foi atingida três vezes pelas correias de couro; só então Rik reagiu e segurou o braço
da nazista.
- Was ist denn in sie gefahren, lassen sie mich los!
- Lasst sie los, ich sage euch, sie nichts.
O que deu em você? Largue-me!
Deixe-a, eu já disse que ela não sabe de nada.
Um revólver surgiu na mão de Rosa Schaeffer.
- Raus, sie Schkippschwanz. Ich bin mir sicher dass dieses Mãdchen etwas weiss, und sie wird
es mir sagen... Raus oder ich schi esse.
Fora, seu veado. Estou certa de que essa moça sabe de alguma coisa e ela vai me contar... fora ou atiro.
- Rik, não me abandone. Cuidado!
As boleadeiras, lançadas pelo falso padre, enrolaram-se nas pernas de Vanderveen, que caiu.
- Hauptsturmführer Van Severen, ich Misstraue ihnen schon seit einiger Zeit. Bringen sie ihn
weg und lassen sie ihn gut bewachen.
Tenente Van Severen, eu já desconfiava de você há algum tempo. Prendam-no.
O falso padre e a falsa freira arrastaram Rik Vanderveen para fora após amarrar-lhe braços e pernas.
Petrificada, Léa olhava para aquela que matara o filho de Sarah e tantas mulheres inocentes. Sabia que não lhe
restava a menor chance.
François Tavernier atemorizara-se ao ouvir os gritos de Léa.
- Marcello, oiste? Creo que nos necesiten.
- Te parece? Nos düeron de no mover de aqui.
- Ven te digo, aca dentro hay pelea.
Marcelo desceu do telhado com agilidade e se aproximou de Tavernier.
- Pero no
- No
- disse François, cravando-lhe um punhal no coração.
O homem tombou silenciosamente.
Samuel Zederman e o Dr. López chegaram correndo. Um outro grito fez com que Tavemier se
precipitasse para a porta.
- Devagar - disse Ricardo López. - Se fizermos barulho, acabam logo com ela...
François transpirava abundantemente; secou as mãos úmidas na calça sem largar sua KalachnikoV.
Bem devagar, ele girou a maçaneta. A ampla sala mal iluminada parecia vazia... Ouviram risos,
seguidos de gemidos...
- Vejam - exclamou Samuel em voz baixa.
Um homem amarrado e amordaçado encontrava-se num canto.
- É nosso amigo Van Severen! - exclamou Uri, que se juntara ao grupo.
Retirou-lhe a mordaça, levando o dedo aos lábios para pedir silêncio. Van Severen entendeu.
- Léa está aqui, rápido - disse ele a Tavernier.
- Seu canalha! Foi você quem a trouxe - disse François, atingindo-o no nariz com a coronha da sua
arma.
- Não importa, rápido - gaguejou ele, o rosto ensangüentado. Léa gritou novamente. Enlouquecido,
François atirou-se sobre
a porta que Rik indicara.
O torso nu, suspenso pelos punhos atados a uma viga, os pés amarrados, o corpo de Léa balançava-
se. François emitiu um rugido de fera ferida e atirou na mulher que se abaixava para apanhar uma
arma no chão. Rosa Schaeffer soltou o cigarilio aceso e se escondeu atrás de uma poltrona cujo
encosto voou em mil pedaços. O Dr. López caiu, atingido por Barthelemy; este correu para ajanela,
mas uma rajada de metralhadora interrompeu sua fuga, deixando-o atravessado no meio do cômodo,
morto. Pela grade arrebentada, surgiu Amos, seguido de Sarah.
- Onde está Bertha, a gorda?... Não a matem! ... Essa é minha!
Ouviram-se tiros na sala, interrompendo a ação dos vingadores. Amos apareceu, passando por cima
do cadáver de Barthelemy. Um desconhecido encontrava-se estendido perto da porta, o rosto
esmagado. Perto dele, ferido no ombro, Samuel tentava erguer-se.
- Quantos são? - gritou Amos, dando um pontapé no nariz quebrado de Rik Vanderveen.
- Oito, mas esperamos reforços. Soltem-me, vou ajudá-los...
- Você está de sacanagem com a gente, seu bosta!
Sob as pancadas, o flamengo perdeu os sentidos.
Deixando de lado Rosa Schaeffer e Sarah, François soltou Léa. Rogou pragas ao notar as
queimaduras de cigarro e as feridas em seus seios. Com mil cuidados, deitou-a num sofá semi-
escondido numa saleta.
- Meu amor, perdoe-me - murmurou, cobrindo-a.
Encontrar água o quanto antes, cuidar dela. Saiu sem olhar para Sarah e Rosa.
- Soltem-me, quero ajudá-los, conseguiu dizer Rik Vanderveen apesar dos lábios feridos.
- Onde posso encontrar água e ataduras? - perguntou Tavemier.
- Como está ela?
Por um instante, os dois homens encararam-se. François inclinou-se e, com o punhal, cortou as
cordas que prendiam Rik. Disparos em sua direção obrigaram-nos a se jogar no chão.
- Os reforços chegaram - murmurou Vanderveen, pegando o revólver que Samuel lhe passou.
Rastejando, aproximaram-se da entrada; um homem tombou perto da porta. De bruços, Tavemier
protegeu-se com aquele corpo; atirou várias vezes, atingindo dois homens. Pulando por cima do
corpo, recarregou a arma sem parar de correr.
- Aqui! - gritou uma voz saindo do galpão. Ele obedeceu, seguido de Samuel.
Uma granada lançada por Uri explodiu em cima de um carro que se incendiou de imediato. Do
veículo saíram três silhuetas em chamas, que começaram a correr para o bosque: uma após outra,
foram caindo. Em meio aos clarões, viram Amos aproximar-se ziguezagueando. Já se encontrava
perto do galpão quando uma granada explodiu perto dele.
- No baú perto da porta... solte-me, vou buscar água... como
- Amos! - gritou Uri, precipitando-se em sua direção.
Samuel tapou os olhos com a mão válida. François, impotente, olhava para Uri abraçando o corpo
estraçalhado do amigo. Vanderveen atirou em direção ao telhado; alguém caiu na fogueira em meio
a gritos de dor.
Ouvia-se apenas o crepitar das chamas e os soluços de Uri. François Tavernier e Rik Vanderveen
aproximaram-se. Uri ergueu- se, o rosto imundo, encharcado de lágrimas. Pegou a metralhadora e
caminhou até o flamengo, que, lentamente, ergueu as mãos. Uma rajada interrompeu seu gesto.
Tombou, morto, aos pés de François.
Tal qual duas feras, as duas mulheres giravam caladas sem tirar os olhos uma da outra; eram presas
do mesmo ódio que apagava qualquer vestígio de medo. Pareciam assustadoras, os cabelos
desgrenhados, o rosto desfeito, a boca espumando. Sarah possuía uma arma, a outra não. Ouvia-se
apenas a respiração ofegante das duas mulheres.
Na saleta, Léa voltou a si. Ainda há pouco, pensara ter visto François... Devia ser um sonho, estava
só. Só?... Não!... Sarah sorria e o espetáculo era aterrorizante. Rosa sorria também de maneira
horrível... loucas, ambas estavam loucas... Sarah deu uma rajada de metralhadora, que pulverizou a
perna direita da sua inimiga... o sorriso sinistro desapareceu... Sarah ria enquanto atirava na outra
perna... a alemã não gritava.., de costas, lembrava um inseto mutilado...
- Jetzt gehõrst Du mir'
Agora você é minha.
- gritou Sarah.
- Scher dich zum Teufel, du Hure!
- We in Ravensbrüclç, das wird la.nge dauem. Erinnere dick..
vá tomar no cu, sua puta!
Assim como em Ravensbrück, vai demorar muito. Lembre-se...
Uma rajada arrancou a mão esquerda, em seguida a direita... Sarah ria, com um ar de felicidade em
seu rosto, que recobrara a beleza anterior... Quanta loucura, pensava Léa, fascinada... havia sangue
por toda parte... Sarah estava imunda... ria sem parar... atirou
a metralhadora, que perdera sua utilidade... no bolso do vestido, pegou uma faca cuja lâmina reluziu;
Sarah mudou de idéia e guardou-a... Léa conseguira ajoelhar-se no sofá, com as mãos no peito...
Sarah inclinou-se sobre o inseto mutilado... sentou-se escarranchada sobre sua vítima... aquela
carcaça ensangüentada soltou um grito horrível. Léa berrava... Sarah continuava rindo.., como ria..,
arrancou um olho da nazista... Léa não suportou a cena dantesca... ouviu-se um tiro...
- Não... ela me pertence!
Com uma bala no meio da testa, Tavernier acabara de matar Rosa Schaeffer.
A voz de Samuel:
- Meu Deus!...

Capítulo 32

As semanas que se seguiram à morte de Amos Dayan e Rosa Schaeffer foram para todos um
verdadeiro pesadelo. Léa revia constantemente Sarah brandindo o olho do carrasco transformado
em vítima. A presença de François, que se mudara para o Plaza, acalmou um pouco suas angústias.
Encontrou-se com Ernesto e faziam longos passeios juntos pela cidade de Buenos Aires. O pai
havia-lhe contado o que sucedera na estancia Castelli. Ele fazia tudo para distrair a jovem, e
ajudava-a a apagar suas sombrias recordações. Victoria Ocampo fazia o mesmo, levando-a todas as
tardes ao cinema.
Em 25 de maio, festa nacional da Argentina, Léa encontrou-se com Eva Perón, lindíssima com um
vestido de seda amarela, no teatro Colón em companhia de Vladimir d' Ormesson e dos
embaixadores da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos.
Em junho, Victoria Ocampo levou-a ao recital de Charles Trenet nos estúdios da Radio El Mundo.
Léa mal conseguiu conter as lágrimas: aquelas canções tinham um perfume parisiense. Durante o
mesmo mês, Jo Bouillon apresentou Joséphine Baker no Politeomo. Naquela ocasião, Léa chorou ao
ouvir a música: Tenho Dois Amores, Meu País é Paris.
- Acho que chegou a hora de regressar - murmurou François carinhosamente.
Ela encostou a cabeça em seu ombro.
- Só vou com você.
Samuel Zederman restabeleceu-se por completo e voltou a Munique. Uri ben Zohar, desesperado
com a morte do amigo, vagava pelas ruas quentes de la Boca em busca de um suposto
esquecimento no álcool e com as mulheres. Temendo represálias, assim que se recuperou, o Dr.
Ricardo López refugiou-se naBolívia com a esposa e os filhos. Quanto a Sarah, parecia que algo se
rompera dentro dela. Cedendo aos insistentes pedidos de François, ela visitava Léa de vez em
quando. As duas mulheres recomeçaram as aulas de tango, mas o fantasma de Carmen perturbava
Léa.
O inverno se aproximava; um grande baile estava sendo programado no Plaza, para toda a elite
argentina. François ofereceu a Léa um lindo vestido de tafetá azul furta-cor.
Às vésperas do baile, uma boa notícia chegou de Montilac.
Querida irmã,
Pierre ganhou uma irmãzinha, a quem demos o nome da nossa mãe: Isabeile. Alain e eu
gostaríamos que você fosse a madrinha; Charles será o padrinho.
Minha filhinha é linda. Ruth afirma que ela tem a sua cara. Sentimos todos a sua falta.
Quando vai voltar? Sem você, Montillac deixou de ser como antes. A vindima vai ser ótima e
parece que este ano obteremos excelentes resultados.
Preciso terminar; o bebê está chorando de fome.
Todos mandam um abraço para François. Beijos carinhosos para você.
PS. Esqueci de lhe dizer que sou muito feliz!
Françoise.
Até que enfim! Françoise voltara a encontrar a felicidade! Léa também a encontraria junto ao
amante? Ela duvidava muito. Embora François não vivesse mais com Sarah, aquela forte amizade
deixava-a enciumada. No entanto, François nunca se mostrara tão presente, tão apaixonado.
Passavam todas as noites juntos, dormindo enlaçados num suave cansaço.
As luzes dos amplos salões do Plaza resplandeciam, uma elegante multidão perambulava pelos corredores, a
orquestra tocava as melodias da moda. Léa dançava, esquecendo, como de hábito, todas as suas
preocupações e angústias. François conduziu-a até a mesa, perto da pista. Sarah, que subira até o quarto da
amiga para deixar seu casaco, demorava a retornar. As luzes apagaram-se; apenas a pista permaneceu
iluminada. Um casal de dançarinos de tango apresentou um espetáculo muito aplaudido. As luzes voltaram. A
orquestra entoou Adios muchachos. Alguém colocou a mão no ombro descoberto de Léa.
- Venha - disse Sarah.
Surpresa, ela se deixou conduzir. Oh, não! ... O olhar fixo no rosto da parceira, ela sentiu seu corpo obedecer à
pressão da mão de Sarah... Adios muchachos, compafieros de mi vida.., as lágrimas escorrem pelo seu
rosto... Sarah... perdão... não percebi... Me toca a mí, voy enfrentaria retirada... a orquestra hesita por
um instante... uma nota falsa... como você dança bem, Sarah... Ya me voy, y me resigno contra ei
destino.., nunca seu próprio corpo ficou tão unido com outro daquela maneira... Por que Sarah... por quê?...
aquela suástica infame sobre sua cabeça raspada... Nadie ia ataja se tenninaron... não, você não é puta...
gosto de você, Sarah... não se parece com eles... Mi cuerpo enfermo no resiste más... sinto que vai me
deixar... você não os vê... Recuerdos de otros tiempos... Olhe, todos nos cercam... buenos momentos...
leve-me, Sarah... leve-me para longe deles... sinta a minha mão na sua... nunca dancei tango dessa maneira...
Adios muchachos... está sorrindo!.., entendeu o que estou dizendo calada... minha querida... está
sorrindo!.., encontrei seu sorriso... Es dios ei juez supremo... Por entre as lágrimas, Léa também sorri... Vou
levá-la, Sarah... Pues mi vida me hizo... Essa música cheia de angústia foi feita para você... Dos lágrimas
sinceras derrama a mi partida... como você dança bem... você verá.., ei día postrero... dentro de
você.., o mal... sinto que o mal está morto... morto... Le doy toda mi alma... Sarah... não!...
François Tavernier separou as duas mulheres. Com toda força, por três vezes, esbofeteou Sarah... A música
parou. A multidão permaneceu imóvel, silenciosa. Sarah o encarou, admirável, anjo
da morte, o corpo insolente moldado por um vestido justo vermelho, aberto dos lados... rosto de uma beleza
fatal... a cabeça raspada marcada por uma suástica desenhada com batom...
- Cigarro, por favor.
Cinco ou seis cigarreiras foram-lhe oferecidas... tantas chamas... Voluptuosamente, Sarah deu uma tragada.
Léa deixara de ter ciúmes de Sarah, experimentava agora um profundo sentimento de piedade. Aquele tango
escandaloso revelou que ela não tinha mais nada a ver com essa sociedade elegante e comedida, que rompia
com ela e se mantinha afastada. Pegou um lenço no bolso do smoking de François e se aproximou para limpar
o símbolo amaldiçoado. Suavemente, Sarah afastou-a
- Deixe, só vai conseguir apagar o visível.
Com certa rudeza, François Tavernier segurou o braço de Sarah.
- Vou levá-la para casa.
- Deixe-me, vou subir para o quarto de Léa e me refrescar um pouco... Não, fique aqui, minha querida. Quero
ficar sozinha.
- Mas eu não quero deixá-la, vou com você.
A orquestra recomeçou a tocar; por um instante, os olhos de Sarah brilharam de maneira estranha.
- Não insista, a gente se vê amanhã.
Ela se virou para todos os presentes e gritou:
- SAdios, amigos!
Sem levar em conta o pedido da amiga, Léa a seguiu, mas foi detida por François na porta do salão.
- Não vá.
Ela tentou se livrar.
- Não podemos deixá-la sozinha. Ela me assusta.
- Amim também.
Enquanto falavam, chegaram até os elevadores. Sarah apertou o botão. Léa tentou se soltar para acompanhá-
la, mas a mão de François impediu. Um jovem ascensorista abriu a porta. Sarah entrou e acenou para eles,
ironicamente. A porta se fechou. Léa sentiu um aperto no coração.
Os dois amantes não tinham a menor vontade de retornar ao
salão de baile. Foram buscar os casacos no vestiário e saíram do hotel. Atravessaram a plaza San
Martin e caminharam a esmo. A noite estava linda e a temperatura agradável; pouca gente nas
ruas. Ele colocou o braço nos ombros de Léa, tensa e hostil.
- Sarah estava linda hoje - disse ela -, como se falase sozinha.
- Linda?... Sim, de certa forma... uma espécie de divindade pagã e venenosa... Você lembrava um
inseto prisioneiro na teia de uma aranha negra... Em meio às suas lágrimas, parecia fascinada...
aquele casal formado por vocês duas foi muito estranho, embaraçoso. Apesar do escândalo, fico
satisfeito por ter presenciado a reação de toda aquela gente.
- Então por que interrompeu a nossa dança?
- Porque era obscena.
Irritada, Léa se afastou.
Continuaram andando e não perceberam que se encontravam perto da embaixada da França. Um
carro freou violentamente perto deles. Imediatamente, François ficou na defensiva. Que estupidez a
sua ter saído sem arma! Um homem saltou do carro. Aliviado, ele reconheceu Vladimir
d'Ormesson.
- Ora, meu caro, fiquei sabendo de tudo o que andou aprontando!... Boa noite, Srta. Delmas... Bravo,
só se fala nisso!... já se deu conta do escândalo?... A Sra. Tavernier precisa sair de Buenos Aires o
quanto antes. Quanto a você, Srta. Léa, meu conselho é que regresse à França. Amanhã a cidade
inteira só falará desse tango. Acho que vou ser convocado pelo ministro do Interior ou pelo próprio
presidente...
- O senhor não está exagerando um pouco?
- Tavernier, você sabe tão bem quanto eu que a oposição não pára de censurar o governo deste país
por sua simpatia fascista. O caso da estancia Castelli preocupa muito os peronistas. A esposa de
um diplomata francês dançando com uma suástica desenhada na cabeça, você não considera isso
escandaloso? Venha falar comigo na embaixada antes do almoço.
O embaixador acenou para Léa em sinal de despedida e subiu no carro.
Calados, François e Léa continuaram o passeio.
Entraram num café amplo, ruidoso e muito iluminado; a chegada do casal provocou sussurros e
olhares indiscretos por parte dos homens. Léa cobriu os ombros nus com o elegante bolero do
mesmo tom azul que o vestido. O garçom se aproximou.
- Buenas noches, que quieren tomar?
- Dos copos de cognac, por favoi
O que lhes trouxeram só era conhaque no nome. Beberam em silêncio, afastados pela primeira vez,
cada um relembrando os acontecimentos da noite. Léa pensava no dramático rosto de Sarah
iluminado por uma chama interna, o sorriso tenso e sarcástico, a pressão de suas mãos, o corpo
excitado e ágil ao qual o seu próprio obedecia, e principalmente aquela suástica traçada com
determinação. Não havia a menor dúvida: a loucura dominava sua amiga... No decorrer das últimas
semanas, Sarah fizera tudo para que Léa entendesse! Mas ela nada percebera, nada quisera
perceber: apesar de todo o horror que Sarah lhe inspirava, deveria tentar entendê-la, ajudá-la. Em
vez disso, só conseguira expressar, com seu comportamento, temor e repugnância; ela a rejeitara,
deixando-a sozinha frente a seu ato monstruoso.
Os pensamentos de François eram semelhantes aos dela. Tal como Léa, ele achava que deveria
estar mais atento à angústia de Sarah. Sentia-se culpado por deixar a amiga entregue aos seus
fantasmas, por não saber demovê-la de suas idéias de vingança.
Conhecendo-a tão bem, devia protegê-la contra ela mesma, apoiar-se na memória do pai que Sarah
adorava. O que François diria se ele voltasse para lhe perguntar: "O que você fez com Sarah?"
Ao mesmo tempo, por cima da mesa, deram-se as mãos. Reencontravam-se finalmente.
- Vamos buscar Sarah - disse ele.
O baile atingia o auge quando entraram no Plaza. Subiram até o quarto de Léa; a porta estava
aberta, Sarah não se encontrava...
Sobre o travesseiro, em evidência, um envelope trazendo o nome de Léa. No papel de carta com
o timbre do hotel, ela leu:
Minha querida,
Logo mais, irei encontrá-la no salão.
Ainda não sei se estarei viva quando você ler esta carta. Mas preciso escrevê-la, para tentar
lhe explicar mais uma vez o que me transformou num verdadeiro monstro. Não pretendo me
justficar eu me odeio. No decorrer destas últimas semanas, entendi que a vingança não trazia
a paz, mas uma aversão a si mesmo; apesar de tudo, considero-a necessária. Perdi a vontade
de agir Não me sinto satisfeita, mas vingança alguma poderá apagar o mal que já foi feito.
Mataram meu pai, meu filho, mutilaram-me para sempre com experiências em meu corpo, mas
tornaram-me cúmplice de suas infâmias. Era isso que Daniel e eu não podíamos perdoar.
Fomos cúmplices sim, ele ao denunciar um prisioneiro deportado por roubar um pedaço de
pão; eu, ao tirar o cobertor de uma mulher quase morta;fomos cúmplices com nossa
incapacidade em nos rebelar Além disso, mais do que tudo, como aceitar o fato de continuar
vivendo? Sinto a loucura apossar-se de mim, sinto a demência me abandonar Percebi que era
igual a eles, capaz de perseguir um ser indefeso; por mais que eu tente encontrar uma
desculpa, pensando que eles agiram assim, procuro em vão um resto de orgulho que me
detenha nesse tão sinistro caminho. Lembre-se, eu costumava dizer: "Serei pior do que eles.
"De certa forma, acabei sendo, e foi o mal mais profundo que conseguiram me causar
Lembro-me das palavras de Simon Wiesenthal e do padre Henri; o judeu e o padre falavam
ambos de justiça, de fé no ser humano. Não acredito na justiça, deixei de acreditar no ser
humano. Meu pai era um justo, eles o mataram. Daniel era uma criança ferida, eles o
mataram. Amos era um inocente, eles o mataram. Mil mortes não conseguirão vingá-los.
Ainda existe você, que eu amava tanto e a quem causei tanto mal. Revelei o que havia de mais
desprezível em mim, sacrifiquei
você, colocando sua vida em perigo para saciar minha sede de vingança.
É a única cujo perdão eu imploro, pois você pertence a um
pequeno grupo de pessoas que acreditam na viabilidade da vida e
do amor. Diga a François que gostei dele como um irmão e que
lamento ter sido um obstáculo entre vocês. Não o perca, ele a ama
e vocês dois foram feitos um para o outro, não há a menor dúvida
quanto a isso. Retornem à França, esse país que tanto amei e onde
é tão bom viver Volte a Montillac, ao menos por algum tempo; esse
é o lugar que a criou.
Não guarde de mim a imagem grotesca daquele tango, mas da mulher profundamente
angustiada que passeava com você entre os vinhedos ou perto do calvário de Verdelais. Sua
amiga que a ama,
Sarah.
Seguiam-se algumas linhas com a letra alterada:
A hora chegou, perdoe-me por esta última prova. Sei que a loucura tomou conta de mim.
Adeus.
Com o rosto transtornado, Léa entregou a carta a François. Durante a leitura, ela caminhou pelo
quarto sob violenta tensão. Ao chegar ao fim, François estava lívido. Exausto, deitou-se, as mãos
sob a cabeça.
- Ora!... Não vai fazer nada?
- Não há nada a fazer.
Léa atirou-se na cama e o sacudiu.
- Seu cafajeste! Não é verdade, não é verdade!
- É verdade sim, e você sabe tão bem quanto eu. Não restava outra saída para Sarah.
- Cale-se, vou procurá-la.
- Tarde demais.
- Por que tanta certeza?
- Conheço Sarah, e em seu lugar eu faria o mesmo.
- Como quiser, mas eu vou procurá-la.
Léa não esperou o elevador e desceu a escada correndo. Na recepção, empurrou os clientes à
espera da chave.
- Viu a Sra. Tavernier?
- Não, senhorita - respondeu o funcionário -, não depois que ela subiu.
- Já faz muito tempo.
- Oh, sim! Vocês estavam aqui quando ela tomou o elevador.
Então Sarah não saíra do Plaza.
No quarto, François continuava na mesma posição.
- Venha me ajudar - suplicou Léa. - Sarah encontra-se no hotel.
Subiram até o terraço que dominava a cidade; ao longe, via-se
o porto. Apenas algumas luzes brilhavam no escuro. Ouviram a
sirene de um navio. Um vento frio fez com que Léa estremecesse.
- Venha, não tem ninguém, você vai se resfriar.
A contragosto, Léa aproximou-se de François.
- Ali!...
Havia alguém recostado numa espreguiçadeira. Chegaram mais perto. Sarah parecia dormir. O
rosto estava descontraído, com um sorriso feliz nos lábios. No chão, ao alcance da mão pendente,
um revólver.
O suicídio de Sarah após o escandaloso baile ocupou a primeira página de todos os jornais
argentinos. Cinco ou seis pessoas apenas assistiram ao enterro, no cemitério de la Recoleta. Dentre
elas, Ernesto Guevara.
Uma semana mais tarde, François e Léa partiram para Bordeaux a bordo do Kerguelen. Ernesto e
Uri vieram se despedir. Antes de embarcar, Léa virou-se para trás. O jovem argentino acenou pela última vez.

 

 

                                                   Régine Deforges         

 

 

 

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