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Taras Bulba é um retrato histórico da Rússia na época em que esse país estava sob domínio polonês e sofria com invasões tártaras. É também uma grande e emocionante aventura e um romance comovente.
Esse livro, publicado em 1835, é de autoria de Nicolai Gógol, considerado por muitos o pai da literatura russa.
Na Rússia de então, os intelectuais se dividiam em dois grupos. Um deles defendia a aproximação com a cultura ocidental e o outro, composto pelos eslavófilos, estava preocupado com a preservação da cultura russa.
Gogol era um simpatizante do segundo grupo. No interesse de resgatar as tradições de sua terra, ele escreveu contos sobre a Ucrânia para revistas. Nessa época ele escrevia à mãe pedindo casos e histórias contadas pelos camponeses.
Seu primeiro livro de sucesso, Noites na fazenda perto de Ditanka, era uma seleção desses relatos. Um dia Gógol foi à gráfica e percebeu que os gráficos começavam a rir quando o viam. O chefe da oficina explicou-lhe que os trabalhadores haviam se divertido muito com os contos enquanto compunham o livro. "Deduzi daí que era um escritor perfeitamente ao gosto da plebe", escreveu ele.
O livro se tornou extremamente popular, até porque o humor era algo totalmente novo na literatura russa.
Foi nessa época que Gógol conheceu Punchin, o maior poeta russo do período. Punchin foi uma espécie de guru para o jovem Gógol e chegou a lhe propor o enredo de duas de suas principais obras: Almas Mortas e O Inspetor Geral.
A trama da peça O Inspetor Geral era simples: as autoridades de uma pequena aldeia tomam conhecimento de que um inspetor do governo chegará incógnito em breve para investigar certos abusos. Por acaso, um aventureiro passa por ali e os poderosos do local, achando que ele é o inspetor, fazem de tudo para suborná-lo. Essa história já foi adaptada para a TV, para o cinema, para os quadrinhos e até na série alemã de ficção-científica Perry Rhodan.
......
A obra mais genial de Gógol, no entanto, foi escrita em 1842. Trata-se de uma novela com o singelo título de O Capote. Era a história de um pobre funcionário público que, a grandes custos, consegue comprar um novo capote e é roubado no mesmo dia em que o inaugura.
Segue-se, então, uma via-crucis pela burocracia russa. A história é não só uma crítica à burocracia, mas um olhar atento e humano às pessoas marginalizadas pela sociedade, às quais ninguém dá atenção, mas que têm cada uma, uma história para contar.
Como se vê, suas histórias eram simples, bobas até, como contos infantis. Nada de pretensões filosóficas ou pedantismo. Nosso escritor queria apenas contar histórias de seu país natal, o jeito de ser de sua gente, e talvez nisso resida o seu maior encanto. Suas histórias misturavam humor e tragédia naquilo que os críticos chamaram de risos entre lágrimas. Personagens como o funcionário publico de O Capote são ridicularizados, mas ao mesmo tempo, redimidos por sua humanidade.
Em 1835, Gógol publicou Mirgorod, uma coletânea de histórias cômicas, que ficou famosa por causa de uma novela histórica, Taras Bulba, sobre um dos cossacos que haviam liderado o movimento que tiraria a Rússia do jugo dos poloneses.
Gógol se tornou imortal porque suas obras eram repletas de vida. Era a vida dos grandes heróis nacionais, como Taras Bulba, ou dos insignificantes funcionários públicos como Akaki Akakievitch.
Mas, apesar do sucesso, o escritor vivia entre anjos e demônios. Sempre ouvia mais as críticas do que os elogios. Quando a peça O Inspetor Geral estreou, os conservadores pediram a proibição da mesma, acusando o autor de ter caricaturado tanto o país quanto seus dirigentes. Gogol mergulhou em profunda depressão e viajou para a Europa.
Com o tempo, essas crises de depressão foram se tornando mais e mais freqüentes. No dia 11 de fevereiro de 1852, influenciado por um padre fanático, Gogol queimou todos os manuscritos da segunda parte de Almas Mortas e deitou para morrer. Não se alimentava, nem aceitava remédios. A 21 de fevereiro daquele ano, a Rússia perdeu um dos seus escritores mais queridos, o homem que abriu as portas para torná-la uma das capitais mundiais da literatura. "Sede almas vivas, não almas mortas!", escreveu ele, antes de morrer.
Na sua lápide tumular foram escritas as palavras do profeta Jeremias, aquelas que melhor representam a sua obra: "Rir-me-ei de minhas palavra amargas".
O livro que você lerá agora é uma adaptação de uma das melhores obras desse gênio da literatura russa.
Gian Danton
(ivancarlo.blogspot.com)
Capítulo 1
- É vestido como palhaços que todos vão à academia?
Foi com essas palavras que o velho Bulba recepcionou seus dois filhos, estudantes de um seminário em Kiev e que acabavam de chegar em casa.
Tratava-se de dois rapagões. A pequena penugem em seus rostos ainda não havia sido tocada pelo barbeiro. O mais velho chamava-se Ostap. O mais jovem, Andrei. Estavam felizes por voltar à casa paterna, mas confusos com essa recepção tosca. Assim, ficaram parados, os braços ao longo do corpo, o olhar no chão.
- Não se movam! Não se movam! Que belas figuras! Queria ver vocês correndo para ver se conseguem com essas saias ou dão com o focinho no chão. Que tal, hein?
- Mesmo sendo nosso pai, não deve zombar de nós. - respondeu o mais velho.
- O quê? Não posso rir?
- Mesmo sendo nosso pai, se continuar rindo, juro que lhe parto a cara!
Taras recuou, assombrado:
- Seu filho de uma... teria coragem de bater em seu próprio pai?
- Embora seja meu pai, não tolero ofensas de ninguém!
- E quer brigar como, com murros?
- Pouco importa.
Dito isso, pai e filho, que deveriam se encontrar com abraços, engataram numa briga tremenda, desferindo socos nos ombros, peitos e barrigas um do outro.
A mãe gritou da sacada da casa:
- Velho doido! Seus filhos voltam depois de um longo tempo de ausência e você os recebe assim, aos socos?
Ela estava morrendo de saudades e ansiosa para descer e abraçar suas duas crianças.
Taras sorriu:
- Precisa que ver como briga bem! Logo que se vê que é um Bulba! Será um ótimo cossaco! Faça sempre isso: não aceite desaforos e, ao ser desafiado, defenda-se, seja de quem for.
Dizendo isso, abraçou e beijou seu filho.
A mãe veio correndo e abraçou o filho mais jovem, ao mesmo tempo em que repreendia o pai:
- Velho doido? Como pode conceber que um filho bata em seu pai? E logo agora que estão cansados de viagem e com fome? Essas pobres crianças!
As crianças às quais a mãe se referia eram dois rapagões enormes, como mais de um metro e oitenta cada.
Taras não gostou:
- Meu filho, não ligue para sua mãe. É uma mulher e mulheres não sabem de nada. Nada de descanso! O único conforto de vocês será uma cela, um bom cavalo e um campo aberto... este sabre é que é a mãe de vocês. Esqueçam todo o resto: a academia, os livros, a filosofia... cuspo em tudo isso! O correto é mandar vocês para Zaporije, onde aprenderão a ser verdadeiros cossacos!
A mãe lamentou, derramando lágrimas:
- Não vão ficar em casa? Não poderão descansar, matar as saudades de casa ou receber meus carinhos?
- Chega de lamentar, velha! O cassaco não nasceu para ficar entre mulheres. Nasceu para guerrear! Vai, prepara a mesa, mas não coloca nela nada de delicado. É necessário que o estomago destes dois se acostume logo a carne de carneiro, cabra e hidromel velho. E traga muita vodka pura!
A pobre mãe entrou chorando e lamentando seu destino, enquanto o marido conduzia os filhos pela casa. Duas jovens criadas fugiram dos dois como costumam fazer as moças do interior ao ver jovens rapazes.
A sala em que fizeram a refeição era enfeitada como costumavam ser naquela época grosseira, sobretudo com armas penduradas nas paredes. Os dois jovens conheciam bem esse cenário, pois todos os anos passavam as férias em casa, vindo a pé do seminário, pois não lhes era permito usar cavalos. Desta vez, no entanto, o velho Bulba mandara-lhes dois belos alazões.
Bulba mandou chamar todos os chefes de regimento e apresentou-os a seus filhos:
- Vejam que belos rapazes! Vão ser ótimos cossacos! Vou mandá-los imediatamente a Zaporije!
Os convidados felicitaram Bulba por ter tido dois rapazes tão fortes e tão bons guerreiros e concordaram que a melhor providência era mesmo mandá-los para Zaporije, que seria uma escola para eles.
- Sejam bem vindos, senhores! - disse Bulba. Sente-se onde acharem melhor e brindem com vodka! Meus filhos, que sejam felizes na guerra. Que possam vencer os mulçumanos, os poloneses e tártaros. E então, gostaram da vodka? Como se diz vodka em latim? Eram burros os romanos, pois não tinham palavra para vodka! E então, é verdade que apanhavam muito no seminário? É verdade que apanhavam não só no sábado, mas também na quarta e na quinta?
- Pai, o que passou é passado! - respondeu Ostap.
- Sim, e que agora qualquer um se meta conosco e descobrirá o quanto vale um sabre cossaco! - completou Andrei.
Taras Bulba ficou feliz com o que ouvia:
- Gosto muito disso! Por Deus, são verdadeiros cossacos! Juro que isso que acaba de dizer é muito bom. Muito certo, meu filho. Não deixe que ninguém deboche de sua fé ou de sua origem cossaca. Isso me deixa tão empolgado que resolvi ir com vocês a Zaporije! Para que esperar mais? Vamos amanhã de manhã mesmo!
Bulba levantou-se, bateu os pés no chão e começou a derrubar garrafões e vasos de louça:
- Para que quero tudo isso? Só o que importa ao cossaco é a luta!
A pobre mulher estava acostumada aos arroubos do marido, mas não podia segurar as lágrimas. Os filhos mal chegavam e já eram tirados dela! Ela se casara jovem com Taras Bulba e seu rosto lindo foi envelhecendo e cobrindo-se de rugas sem que fossem beijados. A pouca atenção que o marido lhe dava parecia mais ser por piedade que por paixão. Assim, sem ter o amor do marido, a mulher voltara todo seu coração para os filhos. Mas agora até esse amor materno era retirado dela! Seus adorados filhos não iam ficar nem mesmo um semana com ela... a mãe não podia conter as lágrimas.
Mas de pouco adiantaria argumentar. Taras Bulba era obstinado. Uma daquelas figuras que floresciam na Rússia no século XV, os terríveis cossacos, descendentes eslavos. Em cada ribeira ou canto se instalaram os cossacos e eram tantos que, quando um sultão perguntou quantos eram, um deles dissera: "Quem poderá saber? São tantos que nem mesmo nós sabemos!".
Era gente rude, forjada pelas invasões dos povos não-cristãos e que, com sua vida agitada, salvaram a Europa das invasões mongóis. Mesmo os reis poloneses, que substituíram os senhores feudais russos, souberam o valor dos cossacos e toleravam a existência daquele bando de guerreiros, que nem mesmo se poderia chamar de exército. Quando surgia a guerra, os cossacos surgiam sabe-se lá de onde. Vinham a cavalo e já armados. Em tempos de paz, retornavam às suas atividades convencionais, de vinicultura, a fabricação de carroças, de pólvora, de ferro, e nisso tudo eram muito eficientes. Podiam se entregar também ao mais completo ócio e nisso eram ainda melhores, bebendo e brigando o dia inteiro, como só um russo pode fazer.
Quando havia necessidade, era muito fácil recrutar um exército. Bastava que os esauls passassem pelos mercados e gritassem, do alto de suas carruagens:
- Atenção todos! Toneleiros e cervejeiros! Chega de fabricar cerveja ou de cair no chão embriagados, servindo de comida para as moscas. Venham conquistar glória e honra na guerra. Pastores, lavradores e mulherengos! Chega de arar a terra ou de ficar correndo atrás de saias! Venham conquistar a glória cossaca!
E um enorme exército de homens dispostos à luta se apresentava.
Naquele tempo começava-se a sentir a influência polonesa sobre a nobreza russa. Acostumavam-se ao luxo, construíam palacetes suntuosos e davam grandes banquetes. Vivam em meio ao luxo e aos criados, que faziam tudo por eles.
Taras Bulba não era um desses. Era um autêntico cossaco, muito sincero, que vivia para a guerra. Rompia imediatamente com todos os amigos que adotavam os costumes estrangeiros e os chamava de senhores poloneses. Seguia a regra de que se deve recorrer à violência em três casos: quando os comissários poloneses faltavam com respeito aos seus superiores cossacos; quando estes zombavam do eslavismo e não respeitavam as leis dos antepassados e finalmente contra os turcos e mulçumanos, pois um cristão deve estar sempre preparados para pegar em armas contra os inimigos de sua fé.
Taras deu todas as ordens para a partida imediata no dia seguinte e depois resolveu que era hora de dormir. A mulher já ia preparando a cama dos filhos, mas ele repreendeu-a:
- Nada disso! Não é preciso arrumar a cama. Eles devem dormir ao relento para se acostumarem. Hoje dormirão no pátio.
Aos poucos, os homens foram se deitando e o silêncio dominou o lugar. Só uma pessoa não dormia: a pobre mãe cujos filhos seriam tirados dela tão cedo. Quem sabe se voltariam da guerra? A pobre mulher chorava e passava o pente pelos cabelos crespos de seus filhos. Ela os criara, amamentara-os em seu seio e agora só podia contemplá-los. "Filhos meus, filhos queridos!", exclamou ela. "O que os espera? Será que voltarei a vê-los?". No fundo, ela acalentava a esperança de que o marido mudasse de idéia e resolvesse partir só dali a uma semana.
Do céu, a lua iluminava todo o pátio, cheio de cossacos dormindo. A mãe permanecia firme ao lado de seus filhos, sem sequer pensar em dormir. Os cavalos, pressentindo o dia, pararam de comer e deitaram-se sobre o feno. A folhagem dos sabugueiros começou a sussurrar e esse sussurro desceu como murmúrio até o solo. A mulher permanecia na mesma posição e, ao invés de reclamar de cansaço, implorava para que a noite fosse ainda maior. Da planície chegou o relinche de um potro, anunciando o nascer do dia.
Taras levantou-se imediatamente. Mesmo estando sóbrio, permanecia firme em seu propósito de partir e lembrava-se de todas as ordens dadas no dia anterior.
- Rapazes, rápido com isso! Dêem de beber aos cavalos! Onde está a velha? Anda, velha, vai preparar comida que temos muito que viajar e precisamos estar preparados!
A pobre mulher foi, desconsolada, preparar a refeição.
Taras dava ordens aqui e ali. Seus filhos, aos poucos foram se transformando: os cafetãs, de um vermelho vivo, eram cingidos à cintura por uma faixa bordada. Os sobres chegavam até os pés. Tudo ia coroado por um alto e negro gorro de pele. Ao vê-los assim, Taras sentiu-se tão orgulhoso que teve vontade de chorar.
- Está tudo preparado? - gritou Taras. Então, segundo o costume cristão, devemos sentar à mesa e comer antes de empreendermos a viagem.
Todos se sentaram à mesa, inclusive os empregados, que antes permaneciam respeitosamente à beira da porta.
- Mãe, dê a benção aos seus filhos! - ordenou Bulba. E vocês, aproveitem, pois a benção de uma mãe vale muito na batalha. Velha, dê a benção e peça a Deus para que eles sejam fortes e valentes na guerra contra os infiéis, ou que desapareçam da face da terra. Filhos, aproximem-se: a benção de uma mãe salva na água e na terra.
A mãe chorava:
- Filhos, que a Virgem Maria os proteja... não se esqueçam de sua mãe... mandem notícias.
Não conseguiu dizer mais nada. Irrompeu em pranto.
- Vamos, vamos embora! - gritou Bulba.
O grupo já avançava em seus cavalos quando a velha mãe aproximou-se e agarrou a bota do filho mais jovem, Andrei. Dependurou-se nele e não quis soltar. Dois cossacos a agarraram e retiraram delicadamente. Ela, mal se viu livre, correu para o outro filho e agarrou-se a ele. Mais uma vez foi retirada delicadamente.
Os dois jovens cavalgaram com seus semblantes carregados, segurando as lágrimas por medo do pai. Os dois olhavam para trás e viam o doce mundo da infância se distanciando. Adeus afagos da mãe, adeus brincadeiras ingênuas. Adeus para sempre!
Capítulo 2
O grupo marchava silencioso. Taras Bulba ia pensando nos velhos amigos cossacos. Lembrou-se daqueles que tinham morrido nas guerras e sua cabeça grisalha tombou sobre os ombros, lágrimas silenciosas escorrendo por sua face.
A cabeça dos filhos estava em outra parte. Ostap lembrava-se do seminário. Com doze anos haviam sido internados na academia de Kiev, pois na época todos os nobres e dignitários achavam isso importante, embora esses estudos fossem de pouca valia na vida desses rapazes. Ostap, criado na imensidão e liberdade da estepe, não suportava as limitações da escola. Todos aqueles ensinamentos sobre retórica e gramática pareciam não ter qualquer relação com a sua vida. O rapaz tentou fugir várias vezes. E teria fugido muito mais se o pai não tivesse o ameaçado de deixá-lo ali por mais vinte anos se ele não se apegasse aos estudos. Logo Taras Bulba, que tão pouca importância dava aos estudos! Desde então, Ostap se conformara em estudar e se revelara um estudante competente, embora não genial.
A má alimentação e os castigos severos forjavam o caráter dos que depois iriam se sobressair em Zaporije. Os esfaimados seminaristas corriam pelas ruas de Kiev colocando em alvoroço os vendedores de comida. As velhas senhoras colocavam as mãos sobre bolos, pastéis e empadas quando viam se aproximar esses rapazes. Estes seminaristas formavam um mundo à parte, pois não era permitido a eles se relacionarem com os estudantes poloneses ou nobres russos. A disciplina com os cossacos era tão severa que eles muitas vezes eles não conseguiam sentar por dias depois dos castigos. Havia aqueles que, não agüentando, fugiam para Zaporije. Se eram apanhados, recebiam bela sova.
Por outro lado, o mais jovem, Andrei, era afeito aos estudos. Entrava nos livros sem o esforço exigido pelo temperamento forte do irmão. Era também mais esperto e, quando apanhado, conseguia livrar-se da punição com alguma artimanha. Sua alma ardia em paixão. Via um lindo rosto feminino com grandes olhos negros a qualquer momento, mesmo durantes as lições de filosofia. Imaginava seios elásticos e túrgidos, braços nus e formosos, um corpo magnífico e virginal coberto por um lindo vestido que fazia incendiar sua imaginação. Escondia, no entanto, seus sentimentos, pois naquela era proibido ao cossaco pensar em mulheres antes de ter participado de sua primeira batalha.
Certa vez estava perambulando por um local afastado de Kiev quando passou por ele uma carruagem de um nobre polonês. Como estivesse na frente, o cocheiro aplicou-lhe como corretivo um golpe de seu chicote. O rapaz não se fez de rogado e agarrou com mãos firmes a roda do veículo, obrigando o cocheiro a flagelar fortemente o cavalo. Como resultado, a roda se soltou e o rapaz foi estatelar-se no chão, em plena poça de lama. Nisso ouviu uma risada sonora e brilhante. Levantou os olhos e viu pela janela do veículo uma linda jovem polonesa, com lindos olhos negros e pele branca como a neve rosada pelo sol do amanhecer. Seu riso a deixava ainda mais linda.
O rapaz perturbou-se. Sem saber o que fazer, passava a mão pelo rosto, mas só conseguia se sujar ainda mais. Quem era a moça? Foi perguntar a alguns cavalariços que andavam por ali, mas só conseguiu que eles rissem dele. Não desistiu, no entanto. Perguntando aqui e ali, conseguiu saber que se tratava de uma filha de um nobre polonês, de férias em Kiev.
A audácia dominou seu pensamento e ele traçou um plano perigoso: invadir a casa onde estava hospedada a moça. Encontrou-a em frente a um espelho, iluminada por uma vela, tirando suas valiosas jóias e preparando-se para dormir. Ela assustou-se ao vê-lo, mas quando reconheceu nele o rapaz que caíra na poça de lama, desatou a rir. Não que o achasse feio. Ao contrário, Andrei tinha feições belas, pouco comuns entre cossacos. Embora risse, ela fixava neles seus olhos grandes e sensuais. O moço não sabia o que fazer e, como forma de solucionar o dilema, simplesmente não fez nada. Ficou lá parado, enquanto a moça divertia-se com ele. Primeiro colocou seu diadema na testa do rapaz. Depois dançou ao redor dele, fazendo mil diabruras.
Nisso, uma batida na porta. A jovem assustou-se.
- Esconda-se. - ordenou ela.
Ele enfiou-se debaixo da cama. Passado o sobressalto, descobriu-se que se tratava da aia, uma escrava tártara. A moça mostrou-lhe o seminarista e pediu que a rapariga o acompanhasse até o jardim. Mas desta vez ele não teve tanta sorte. Estava escalando o muro quando foi visto por um vigia, que segurou-lhe a perna. Outros empregados se aproximaram e o espancaram até que ele fugisse de seus braços.
Depois disso, Andrei temeu voltar a invadir a casa, pois a criadagem era enorme, mas continuou observando a moça de longe. Uma vez ela passou por ele de carro e sorriu como se fossem velhos conhecidos.
Pensava nisso quando a estepe se abriu diante de seus olhos, com sua alta vegetação até que se visse apenas seus altos gorros de pele preta.
- Ei, vocês! Por que estão com essa cara de velório? - gritou Bulba, despertando de suas lembranças. Ao diabo com todas as meditações! Vamos cavalgar de tal modo que nem mesmo as aves nos alcancem!
Foi como acender um estopim. Os cossacos dispararam pela estepe. Já não se via nem mesmo seus gorros altos, mas uma faixa de vegetação pisoteada.
Quando mais se aprofundavam na estepe, mais maravilhosa ela lhes parecia. Naquela época essa área era totalmente virgem. O arado jamais havia arranhado aquela vegetação exuberante. Toda aquela faixa de terra era como que um mar, um oceano verde-oliva, salpicado por um milhão de flores multicoloridas.
Os viajantes pararam para comer e os cossacos tiraram de seus alforjes cantis cheios de vodka e cuias que serviam de copos. Comeram pão com toucinho e uma cuia de vodka cada um, pois Taras Bulba não permitia que ninguém se embriagasse em viagem.
Terminada a refeição, continuaram viajando até que anoitecesse.
As sombras foram tomando por completo a estepe, mudando-lhe a feição. As flores exalavam seu perfume, convertendo o ar em um aromático eflúvio. Pelo céu azul turquesa abriam-se faixas vermelhas que pareciam ter sido pintadas por um gigantesco pincel. Toda a sinfonia diurna cessou, sendo substituía por outros sons. As marmotas, sentadas próximas às tocas, emitiam seu assovio. Havia o chiado dos grilos, maior a cada instante.
Os viajantes desmontaram e escolheram o local para passar a noite. Acenderam uma fogueira e colocaram sobre ela uma panela na qual foi feita uma papa de trigo. Depois deitaram-se, cobrindo-se com seus cafetãs. Os barulhos da noite eram como uma canção de embalo para ouvidos castigados pelo cansaço. Se um dos cossacos se levantasse durante a noite, veria a estepe pontuada por milhares de pirilampos.
No dia seguinte, seguiram viagem. Estavam a meio caminho quando Taras parou-os, apontando um ponto negro no horizonte:
- Vejam, meus filhos, aquele é um tártaro!
De longe, a cabeça do tártaro, enfeitada por um longo bigode, fixou seus olhos neles. Depois cheiro o ar, como uma lebre e, vendo que eram treze os cossacos que se aproximavam, fugiu agalope.
Taras tentou interceptá-lo, mas desistiu:
- É inútil! Nunca poderemos alcançá-lo. Tem grande vantagem sobre nós e seu cavalo é veloz como o diabo!
No terceiro dia, encontravam-se já próximos ao seu destino. O ar ficou úmido, o que indicava a proximidade do Dniepr. Ao longe brilhava seu leito no horizonte.
Na chegada, preparam-se. Taras ajeitou a faixa e passou o dedo indicador pelo bigode vasto. Seus filhos examinaram-se dos pés à cabeça para ver se estavam de acordo com o que exigia a situação.
Entraram todos juntos, meio que marchando. Quase ficaram surdos com o som de cinqüenta martelos que batiam ferro em vinte e cinco ferrarias cobertas de palha e enterradas no solo. Curtidores sovavam peles de boi com suas mãos poderosas. Mercadores ofereciam perdeneiras, fuzis e pólvora. Um fabricante de rosquinhas dava volta com um garfo na sua última fritada. Um judeu de pescoço longo filtrava vodka de uma barrica.
O primeiro zaporojiano que encontraram, no entanto, foi um que dormia no meio da rua, com braços e pernas abertos.
- O amigo não gosta de chamar atenção, hein? - disse Bulba, mas não obteve resposta, pois o outro estava ferrado no sono.
Taras continuou seu caminho, percorrendo aquela feira que sustentava e vestia os cossacos, que só sabiam divertir-se e gastar pólvora.
Depois de cruzar a o arrabalde, viram algumas cabanas com telhados de palha. Não tinha muro ou cerca. A única proteção era uma pequena vala, o que revelava uma total despreocupação. Vários zaporojianos estavam jogados pelo caminho.
Taras passou cuidadosamente entre eles, dizendo:
- Bom dia, companheiros.
- O mesmo para você. - respondiam, sem tirar seus cachimbos da boca.
Por toda a parte se via esses homens de rostos rudes marcados pela guerra e pela adversidade. Essa era a Sieth, a cidade da qual os cossacos saiam como leões por toda a parte.
Dali a pouco foram interceptados por uma procissão curiosa e divertida. Um cossaco vinha dançando, o gorro caído de lado, os braços abertos, e gritava:
- Vamos, vamos, músicos! Foma, dá mais vodka para esses cristãos.
E Foma servia a todos que lhe estendiam os braços. Os cossacos dançavam batendo os pés e dando saltos tremendos.
- Se eu não estivesse montado em meu cavalo, juro que me punha a dançar. - disse Bulba.
Nisso foram chegando os cossacos mais velhos, guerreiros experientes de cabelos grisalhos, que haviam sido chefes em várias ocasiões. Muitos eram amigos de Taras. Beijaram-se e abraçaram-se. Depois Bulba perguntou pelos amigos que não se encontravam ali.
- Borodavka foi enforcado em Tolopan; Koloper foi enforcado próximo a Kizikermen; Pidsichkov foi decapitado e sua cabeça colocada em um barril de sal e enviada a Tsargrado.
Ao ouvir isso, Taras deixou cair a cabeça e resmungou:
- Foram bons cossacos!
Capítulo 3
Já fazia uma semana que Taras e seus filhos estavam vivendo na cidade guerreira. Ostap e Andrei não faziam exercícios militares. Sieth não gostava de perder tempo com tal coisa. Os soldados eram instruídos no calor da batalha.
No lugar do exercício, os cossacos encontravam uma festa contínua, muito ruidosa. Não se tratava de uma triste despedida de guerreiros afogando as mágoas, mas de um entusiasmo frenético. Quem ali chegava, cuspia em seu passado e esquecia tudo, mulheres, famílias, propriedades, para se embriagar naquela orgia repleta de felicidade e camaradagem.
Alguns deles tinham sentido o laço terrível da forca em seus pescoços e passavam a ver a vida com outros olhos, passando a vivê-la em toda a sua plenitude. Não guardavam uma única moeda se podiam gastá-la com bebida e com músicos.
Ali estavam todos os seminaristas que não haviam aprendido uma única palavra em latim, e que haviam fugido para Zaporojie, mas também estavam ali aqueles que se destacaram nas aulas de retórica e de lógica. A diferença é que não estavam mais na união forçada da academia, mas na união alegre da camaradagem.
Embora a cidade fosse uma festa constante, não se encontrava ali uma única mulher, pois nenhuma delas se atrevia a passar por seus arredores.
Ostap e Andrei achavam estranho que a cidade acolhesse todos os estranhos, sem nem mesmo perguntar de onde vinham. Chegavam como se estivessem voltando para casa, que acabaram de abandonar uma hora antes.
Quando chegavam, eram recepcionados pelo chefe militar, o Kochevoi, que lhes indagava:
- E então, acredita em Cristo?
- Acredito!
- E acreditas na santíssima trindade?
- Acredito!
- Vais à missa?
- Vou!
- Então prova: faz o sinal da cruz!
O novato fazia o sinal e era aprovado:
- Muito bem. Procura o atamã que mais lhe agradar e ingressa em sua tropa.
Só os judeus, armênios e tártaros, movidos pela avidez do dinheiro, ousavam viver e comerciar naquela cidade de festa eterna. Os Zaporojianos não gostavam de regatear e pagavam tudo à vista, esgotando até o último centavo em seus bolsos. Quando o dinheiro acabava, derrubavam as barracas e arrancavam o ouro dos judeus.
Em algumas ocasiões surgiam brigas entre os atamãs e os cossacos se massacravam com murros, só para depois comemorar juntos.
Entre os costumes de Sieth, o que mais impressionou Andrei foi o tratamento dado aos homicidas. Era cavada uma sepultura e colocado o assassino lá dentro. O caixão do morto era colocado por cima e os dois enterrados juntos.
Andrei e Ostap logo ganharam a simpatia e admiração dos colegas. Eram fortes e corajosos. Rápidos e certeiros no tiro, podiam nadar contra a correnteza do Dniepr, coisa suficiente para se aceitar um noviço em Zaporojie.
Taras Bulba, no entanto, estava preocupado com a inatividade dos seus filhos. Ele os tinha trazido para fortalecerem seu caráter na guerra, mas não havia guerra. Assim, ele foi procurar o Kochevoi, o chefe militar e lhe disse:
- Será que não está na hora dos cossacos se divertirem um pouco?
- Impossível. - respondeu o chefe.
- Como impossível? Podemos marchar contra os turcos ou os tártaros!
- Impossível. Não podemos marchar nem contra uns nem outros. - disse o Kochevoi, colocando o cachimbo na boca.
- Por que não se pode?
- Porque temos um tratado de paz com eles e juramos pelas sagradas escrituras manter esse acordo. Não podemos atacá-los sem desonrar nossa fé.
- Tenho dois filhos jovens e você me diz que eu não posso colocá-los para guerrear por causa de um acordo com os infiéis?
- Isso mesmo.
- Então me diga: para que vivemos? Qual a nossa função aqui?
O Kochevoi tirou o cachimbo da boca e deu uma longa baforada:
- Apesar de tudo, não haverá guerra.
- Então devo esquecer o assunto?
- É o melhor que faz.
Taras Bulba saiu dali batendo os pés e pensando consigo: "Ainda te pego, seu poltrão!".
Para vingar-se, ele pagou bebida aos cossacos, pois sabia que eles assim eles se tornavam muito mais influenciáveis e começou a bater os timbales que se usava para reunir os cossacos na praça central. O timbaleiro acordou e veio, morrendo de sono:
- Quem se atreveu a tocar os timbales?
- Cala-te! Agarra tua baquetas e toca! - gritou Bulba.
Os timbales ressoaram e de todos os cantos começaram a surgir cossacos, formando uma multidão compacta. Depois do terceiro toque, chegaram as autoridades, o Kochevoi, o escrivão e o juiz.
- Quem se atreveu a convocar esta reunião? - indagou o chefe militar.
- Cala-te agora mesmo! Depõe tua clava! Não queremos mais que um covarde ocupe o cargo de Kochevoi. - gritou a multidão, insuflada por Bulba.
Alguns cossacos mais racionais ainda tentaram intervir, o que instalou um clima de guerra, que já se podia prever em um ou outro que trocavam socos entre si.
O Kochevoi, sabendo o que acontecia nessas situações, resolveu depor a clava.
- Senhores, querem que também nós deponhamos nossas insígnias? - perguntaram o juiz, o escrivão e essaul.
- Não, vocês não. - respondeu a multidão. Só queremos depor o medroso do Kochevoi e colocar em seu lugar alguém que nos leve para a guerra! - berrou a multidão.
- E quem deve tomar seu lugar? - perguntaram os dignatários.
- Kukubenko! Eu voto em Kukubenko! - disse um.
- kukubenko ainda cheira ao leite da mamãe! - discordaram outros.
- Chilo, Chilo é o homem.
- Esse não queremos. Que diabo de cossaco é esse que rouba mais do que um tártaro? Esse não!
- Borodatov! Votemos em Borodatov!
- Não! Borodatov que vá para o inferno!
- Proponham Kirdiaga. - sussurrou Taras Bulba no ouvido de alguns.
- Kirdiaga! Kirdiaga! - berrou a multidão, enquanto alguns ainda insistiam no nome de Borodatov.
Como parecia haver um impasse, votaram, levantando seus punhos, e Kirdiaga foi eleito.
Esse velho amigo de Taras Bulba era manhoso. Embora estivesse na praça, voltara para casa e fez de conta que nem sabia da história.
- O que querem, senhores?
- Nós te elegemos Kochevoi!
- Senhores, eu não mereço essa honra. Será que não havia ninguém mais qualificado?
Os cossacos não gostaram dessa manha e o agarraram pelos pés e pelas mãos, carregando-o até a praça, com muitas pragas, socos e pontapés no traseiro.
- Vai, cachorro! Aceita a honra que te fazem!
E foi assim que Kirdiaga chegou ao centro da praça lotada de cossacos.
- E então? - perguntaram os dignitários. Querem mesmo esse cossaco como Kochevoi?
- Queremos! - gritaram os cossacos, numa voz estrondosa.
Um dos dignitários pegou a clava e estendeu-a ao novo chefe, que, como manda a tradição, recusou. O gesto foi repetido e ele recusou mais uma vez. Na terceira, aceitou e foi aclamado pela turba. Quatro cossacos mais velhos pegaram um pouco de terra enlameada e jogaram sobre a cabeça do novo Kochevói, que agradecia a honra que lhe era oferecida.
A multidão logo se dispersou para comemorar a eleição.
Assim era Sieth, a estranha cidade dos cossacos, que resolviam tudo em meio a homéricas festas.
Capítulo 4
No dia seguinte, Taras Bulba procurou o novo Kochevoi para delinearem um plano para arrastar os zaporojianos para a guerra.
- Não se pode trair o juramento. - disse o astuto Kirdiaga. Mas não importa. Vamos arranjar uma maneira de fazer algo sem quebrar o juramento. Taras, você precisa reunir o pessoal, mas sem que pareça que é uma ordem minha. Eu, junto com os outros dignitários, me dirigirei à praça como quem não sabe de nada.
- De acordo. - concordou Taras.
E assim, os timbales ressoaram e os cossacos ébrios apareceram. Uma multidão de gorros negros indagava uns aos outros:
- O que foi?
- O que aconteceu?
- Quem convocou essa reunião?
Ninguém sabia responder a nenhuma dessas perguntas. Mas surgiu um murmúrio entre os cossacos:
- As forças cossacas estão se consumindo na ociosidade e na bebedeira. É para a guerra que fomos feitos. Os chefes se tornaram covardes. Estão com os olhos inchados de tanto dormir. Só sobrou falsidade nesse mundo de Deus!
Era Taras Bulba, que manipulava a turba como antes.
Com o tempo, os cossacos começaram a passar uns para os outros:
- Tem razão. Tudo nesse mundo é falsidade!
- Vamos virar velhas, parados aqui...
Os chefes chegaram e pareciam surpreendidos, embora não o estivessem. O Kochevoi adiantou-se e disse:
- Zaporojianos, permitam que eu fale...
Os cossacos assentiram com a cabeça. Alguns mais agitados gritaram pedindo que o chefe falasse.
- Muito bem, senhores, então falarei. Todos sabem que os zaporojianos se endividaram tantos nas tabernas de seus irmãos de raça quanto nas tabernas dos judeus que já não têm crédito nem mesmo com o diabo. Por outro lado, há entre vocês muitos jovens que ainda não sentiram o sabor de uma batalha. Todos sabem também que quando o homem é jovem não pode ficar sem guerrear. Que tipo de cossaco é esse que nem uma única vez testou forças contra os infiéis?
Taras Bulba balançava a cabeça, pensando: "Fala bem, o homem!".
- Não estou aqui sugerindo violar a paz que juramos por nossa fé! Deus me castigue se estou sugerindo isso! Mas por outro lado, olhem para nosso templo! Senhores, o templo é pobre, pois os cossacos gastaram tudo que tinham em bebidas e farras, um dinheiro totalmente desperdiçado. Vejam bem, não estou sugerindo que devamos declarar guerra aos mulçumanos. Nada disso, por Deus. Afinal, juramos por nossa lei e nossa fé...
Era um pensamento tortuoso e mesmo Bulba não conseguia pescar onde ele queria chegar.
- Senhores, seria portanto um crime declarar guerra. Mas creio que se poderia enviar alguns jovens para se divertirem limpando a costa da Anatólia. Assim arranjamos um pouco de exercício para eles e ainda conseguimos um saque que irá engrandecer nossa igreja!
- Queremos ir todos! - gritou a multidão. Queremos levantar armas pela nossa fé!
O Kuchevoi alarmou-se. Não era essa sua intenção. Um pequeno grupo de jovens saqueando em barcos poderia ser explicado, mas toda a comunidade levantando armas seria quebrar o tratado.
- Senhores, deixem-me falar!
- Já falaste tudo que tinha para falar e falaste muito bem!
- Sim, ele falou bem. - repetiram vários cossacos.
- Agora é hora de ir à guerra!
- Senhores, senhores, por favor! - insistiu o chefe. Devem se lembrar que o sultão punirá exemplarmente essa pequena aventura de nossos jovens. Se nossa cidade estiver desguarnecida, será inevitavelmente destruída. Assim, devemos estar preparados para isso. Além disso, não temos barcos e pólvora o bastante para todos!
O homem era astuto. Disse isso e calou-se, esperando o impacto de suas palavras. Os cossacos se reuniram em grupos, ao redor de seus atamãs. Por sorte, a maioria não estava bêbada.
Dessa forma, mandaram um grupo desenterrar a pólvora e os tesouros que haviam tomado do inimigo. Um outro grupo foi mandado para a margem do rio, que ficou coalhada de gente trabalhando nos barcos. Os mais velhos orientavam os jovens na preparação da frota.
Estavam nisso quando se aproximou uma embarcação, que atracou na margem. Era um barco de cossacos. Mas havia algo estranho. Vestiam apenas farrapos de roupas e muitos encontravam-se apenas com a camisa sobre o corpo e o cachimbo entre os dentes.
Vinham gritando e gesticulando.
- O que os traz aqui? - gritou o Kochevoi.
Os trabalhadores encostaram seus martelos e enxós e voltaram sua atenção para os recém-chegados.
- Aconteceu uma desgraça! - gritou um cossaco troncudo.
- Uma desgraça? - alarmou-se o Kochevoi.
- Será que não sabem o que está acontecendo na Ucrânia?
- O que está acontecendo?
- Por Deus! Os tártaros devem ter colocado cola no ouvido de vocês para que não ouçam o clamor da Ucrânia!
- Fala logo, homem!
- Eu digo: estão acontecendo coisa que até hoje nenhum cristão já viu!
- Fala logo, filho de um cão!
- Senhores, chegamos ao cúmulo da humilhação! Nem mesmo os nossos templos nos pertencem mais!
- Como é isso? - perguntaram os zaporijianos.
- Foram alugados aos judeus, que cobram dos cossacos que querem entrar na igreja.
- O que você está dizendo?
- E se o judeu não coloca sua mão sobre o pão da páscoa, é proibido mandar benzê-lo.
- É mentira, só pode ser! Como pode o judeu colocar sua marca sobre o pão da páscoa?
- Isso não é tudo, senhores! Ainda há mais humilhações para contar. Agora os padres católicos passeiam em carruagens por toda a Ucrânia. A desgraça é que tais carruagens são puxadas por cristão eslavos.
Um murmúrio se levantou na turba. Carroças puxadas por cristãos?
- Isso não é tudo, senhores. Dizem que as mulheres judias fazem suas saias com as roupas dos nossos padres.
Os cossacos colocaram a mão à boca, assombrados com tais relatos.
- Enquanto isso, vocês ficam aqui, na boa vida, engordando e festejando! Será que os tártaros fizeram com que os zaporojianos virassem covardes e não ouvissem o que se passa ao redor deles?
O Kochevoi ouvia a tudo em silêncio, pensando sobre o assunto e acumulando a raiva dentro de si.
- Um momento. Preciso fazer uma pergunta. - disse ele. E vocês, não fizeram nada? Suportaram em silêncio toda essa humilhação?
- Olhe o estado em que ficamos! O que podíamos contra cem mil poloneses? Além disso, é triste lembrar, mas alguns dos nossos se passaram para o lado deles...
- E os atamãs? Os coronéis?
- Deus me livre de recordar! O atamã está agora em Varsóvia, assando dentro do touro de bronze. As mãos e cabeças dos coronéis são mostradas como troféus nas feiras e praças.
Um murmúrio de horror se levantou na multidão. Então o murmúrio se transformou em discursos contra os judeus e os poloneses. Nisso lembraram dos judeus que comerciavam por ali:
- Vamos afogar todos no Dniepr!
Foi como se acendessem um rastilho de pólvora.
Os pobres hebreus se esconderam nos barris de vodka e até mesmo debaixo das saias das mulheres, mas os cossacos os descobriam onde quer que eles estivessem.
Foram todos carregados para a margem do rio e já iam ser jogados na água quando um deles, alto e magro, pediu para falar:
- Por favor, senhores! Altos dignitários! Deixem-me falar! Tenho algo muito importante para dizer. Algo nunca antes ouvido!
- Deixe que fale. - decidiu Taras Bulba, que sempre gostava de ouvir os acusados. Vamos, explique-se!
- Senhores dignitários! Altos senhores! Senhores corajosos e honrados! Juro que nunca os vi tão bons e justos! E, como justos, saberão compreender o que se passa... aqueles que cobram dos cossacos para entrar na igreja não são judeus. São diabos que se desgarraram do judaísmo. Se isso não for verdade, que me cuspam na cara meus amigos Schlema e Schmul!
- Isso é verdade. - disseram os dois.
- Nós não temos qualquer relação com esses malvados. Sempre consideramos os zaporojianos como nossos irmãos!
- O quê? Os zaporojianos irmãos de vocês! Que ofensa! Ao rio com eles!
Essas palavras foram o bastante para que pegassem os judeus e os afogassem um a um. Aquele que havia falado pelos outros agarrou-se a Taras Bulba:
- Grande senhor, lúcido dignitário! Por favor, interceda por mim! Conheci seu irmão, Dorocha! Foi o maior guerreiro que já conheci, verdadeiro orgulho para todos os cossacos. Quando ele foi aprisionado pelos turcos, fui eu que arranjei o dinheiro para libertá-lo.
- Você conheceu o meu irmão?
- Sim, um homem como nenhum outro!
Taras refletiu por um momento.
- Está bem. Cossacos, sempre haverá tempo para enforcar esse judeu. Por enquanto eu cuido dele!
Dizendo isso, escondeu-o nas carroças de mantimentos ao redor das quais estavam seus cossacos:
- Enfia-te aí e fica quieto! - ordenou. E, para os cossacos: quanto a vocês, não deixem este aqui fugir.
Depois de ter escondido o judeu, Taras Bulba voltou para a praça, onde se fazia os preparativos para a partida. Os zaporojianos tinham abandonado o conserto dos barcos e se dedicado a outras atividades. A urgência agora era de uma campanha terrestre, que exigia outros tipos de preparativos, com carros e cavalos no lugar das embarcações. Todos queriam partir para vingar as humilhações sofridas pelo povo eslavo.
A situação mudou radicalmente: o Kochevoi, antes de poderes limitados, tornou-se um tirano que podia mandar em todos. E aquela massa de homens indisciplinados eram agora uma fila de homens de cabeça baixa, esperando pelas ordens de seu chefe.
- Senhores, estamos partindo em campanha pela nossa fé. - discursou o Kochevoi. Testem suas armas e arranjem dois cavalos, mas não levem muita coisa. Sei que há entre vocês aqueles que se deixam seduzir pela seda e pelos brocados, mas digo que devem abandonar tudo e levar apenas uma muda de roupa. O essencial é o comportamento de vocês! Deixem as roupas, mas levem quantas armas, pólvora e objetos de metal puderem conseguir.
O Kochevoi passava pela sua tropa, observando-os com olhar severo:
- Aquele que se embriagar durante a viagem não deve esperar ser julgado. Será amarrado a um carro e fuzilado, seu corpo servindo de comida aos abutres, pois quem se embriaga durante uma campanha militar não merece melhor tratamento. Se forem feridos, não se incomodem: dissolvam um pouco de pólvora num copo de vodka, bebam e voltem a lutar. Mãos à obra!
Mal terminou o discurso, os cossacos se entregaram a trabalho febril. Quem chegasse ali naquele instante, diria que jamais um cossaco havia se embriagado, tal era a ordem das coisas. Uns consertavam rodas de carroças, outros conduziam bois e cavalos, outros providenciavam munição e outros se ocupavam dos mantimentos.
Não demorou muito para que a longa coluna de carros de boi e cavalos montados por cossacos se estendesse pelo campo afora. Os cossacos olhavam para trás, para Sieth e diziam consigo: "Adeus, nossa mãe! Que Deus a proteja de qualquer desgraça!".
Ao sair da cidade, Taras Bulba deu com o judeu em sua barraquinha, vendendo bolinhas para fuzil, pólvora e até biscoitos e pães.
- Que diabo, judeu! Quer ser jogado no rio?
- Senhor, senhor dignitário! - disse Yakel, fazendo um gesto com as mãos, como se pretendesse contar um segredo, e chegando perto falou:
- Meu senhor, não diga a ninguém, mas um dos carros dessa procissão é meu. Vou acompanhá-los durante a jornada e vender tudo que um cossaco precisa durante uma campanha por um preço que judeu algum jamais vendeu!
Bulba balançou a cabeça e foi embora, pensando em como os judeus eram astutos.
Capítulo 5
Em pouco tempo, toda a parte leste do território polonês se viu mergulhada no terror.
- Os cossacos! Os cossacos! - gritavam, pondo-se em fuga e salvando sua pele como podiam.
Naquela época todos faziam suas casas com telhado de palha e não ocorria a ninguém fazer casas maiores ou fortificações. "De que adianta?", pensavam. "Tudo será destruído na próxima incursão dos tártaros ou dos cossacos".
Alguns tentavam oferecer resistência, mas a maioria simplesmente fugia, sabendo que por trás da desordenada formação zaporojiana encontrava-se uma máquina de guerra sem igual.
Nem sempre os avisos sobre a chegada dos cossacos chegavam a tempo e nesse caso, os pobres poloneses podiam dar adeus à vida. Era uma verdadeira orgia de crueldades, tão característica daquela época selvagem. Os cossacos matavam crianças, velhos e violentavam mulheres. Em um palavra: devolviam com juros todas as humilhações de que haviam sido alvo.
Em um dos locais pelos quais passaram, o abade de um mosteiro católico mandou dois monges pedir misericórdia ao Kochevoi.
- Por mim não têm nada a temer. - disse o astuto chefe militar. Acontece que os cossacos acenderam seus cachimbos e estão a fumar...
Não demorou muito para que a abadia fosse invadida e as línguas de fogo surgissem através das enormes janelas góticas.
Uma multidão de fugitivos, composta de padres, mulheres e judeus encheu as cidades.
Alguns chefes militares poloneses resolviam esquecer o ócio e enfrentavam os cossacos. Era exatamente isso que queriam os zaporojianos. Especialmente os mais jovens, que estavam cansados de saques ou massacres, mas queriam um inimigo de verdade com o qual pudessem medir forças. E a experiência revelou-se providencial, pois em menos de um mês os frangotes já haviam se transformado em homens feitos, com muitos arreios e sabres tomados dos orgulhosos poloneses.
Taras Bulba ficava satisfeito em ver que seus filhos estavam sempre entre os melhores e mais bravos guerreiros.
Ostap parecia ter nascido para a guerra. Cada movimento seu tinha a determinação e a valentia de um chefe. Taras olhava-o e dizia consigo: "Este há de ser um grande coronel! Até melhor que o pai".
Andrei, embora fosse de natureza mais delicada, estava absolutamente apaixonado pela música dos sabres. Incendiado pelo calor da batalha, avançava distribuindo golpes à esquerda e à direita, sem se importar com os que recebia. Sua impetuosidade causava admiração ao pai, pois em vários momentos ele era o primeiro a avançar sobre o inimigo, mesmo em ocasiões em que a prudência ordenava o contrário.
E Taras Bulba pensava: "Este também é um ótimo guerreiro. Não tão bom quanto Ostap, mas um guerreiro excepcional!".
O exército foi avançando pelas terras polonesas e finalmente resolveu atacar a cidade de Dubno, onde se dizia haver grande tesouro público e muitos cidadãos ricos. Os habitantes daquela cidade resolveram resistir até o fim dentro das muralhas fortificadas.
Os zaporojianos atacaram, mas foram repelidos por uma descarga de tiros. Os habitantes demonstraram que não estavam dispostos a desistir facilmente. Até mesmo as mulheres participavam da batalha, jogando do alto das muralhas pedras, água fervente, excrementos e até uma areia muito fina, que cegava os oponentes.
Os cossacos não gostavam de perder, de modo que o Kochevoi ordenou a retirada.
- Vamos nos retirar, senhores, mas que eu seja um infiel se deixaremos sair uma única pessoa dessa cidade. Morrerão de fome!
As tropas se retiraram, mas dedicaram a matar seu tempo devastando a região. Colocavam fogo nas colheitas, matavam o gado e envenenavam os poços. Do alto das muralhas, os habitantes da região observavam tudo que era seu sendo destruído impiedosamente pelos cossacos e lágrimas rolavam de seus olhos.
Assim era aquele tempo rude e violento.
Quando não estavam devastando, os zaporojianos fumavam seu inevitável cachimbo, jogavam entre si ou trocavam uns com os outros as armas tomadas dos inimigos. À noite acendiam uma grande fogueira e cozinhavam sobre ela uma papa de trigo.
Mas começavam a se inquietar. Andrei era dos que mais reclamavam.
- Tem paciência, ou nunca será um atamã! O bom cossaco permanece firme mesmo na inatividade e a tudo suporta para conseguir seu objetivo.
Em todo caso, o Kochevoi resolveu dobrar a ração de vinho.
Nisso chegou uma nova guarnição que trazia consigo uma lembrança da esposa de Bulba. Tratava-se da benção materna e de dois ícones talhados em um mosteiro. Os dois rapazes colocaram os ícones no pescoço e ficaram pensando e lembrando sua carinhosa mãe. O que representava aquela benção em momento tão importante? Pensou Taras. Seria o sucesso na batalha? O feliz regresso ao lar com o espólio de guerra? Ou então... não, melhor não pensar nisso.
Ostap voltara aos seus assuntos e já fazia tempo que devia estar dormindo, mas Andrei não conseguia conciliar o sono. Ficou observando o céu coalhado de estrelas. Um terrível pormenor parecia perturbar a paz daquela noite sem igual: era o trepidar do fogo consumindo as aldeias vizinhas. Ao longe o mosteiro ardia em chamas, inclinando-se sobre si mesmo, como um monge persignando-se. Alguns pássaros noturnos voavam por sobre o incêndio, dando a impressão de pequenas cruzes no céu da noite.
Andrei percorreu o acampamento. Viu que as sentinelas dormiam, embriagados com o vinho e a muita comida que haviam comido e pensou que felizmente não haviam encontrado um adversário à altura. Finalmente, encontrou um carro e subiu sobre ele, deitando de costas para poder observar o céu estrelado.
Então o sono tomou conta dele, mas foi como um véu que passasse diante de seus olhos, pois logo em seguida acordou e divisou uma forma humana. Pensou que fosse uma forma criada pelo sono e abriu bem os olhos, mas então percebeu um rosto magro fitando-o intensamente. Tinha cabelos longos, negros e desgrenhados escapando por debaixo do véu. A fixidez daquele olhar e a brancura do rosto lembravam mais um cadáver do que uma pessoa e o rapaz levou a mão ao sabre, assustado.
- Quem está aí? Se é um morto, desaparece de minha vista, mas se é vivo, vai pagar caro pela brincadeira.
A visão colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio.
Andrei baixou o sabre e observou aquela forma estranha. Pelos cabelos compridos e pelo peito semi-nu reconheceu uma mulher. Por mais que olhasse, mais parecia reconhecer aquela figura.
- Quem é você? Parece que te conheço de algum lugar!
- Sim, há dois anos, em Kiev...
Andrei refletiu, repassando todos os fatos que ocorreram na época em que era um seminarista. Finalmente lembrou-se:
- Você é a aia tártara da filha do vovoida!
- Silêncio! - fez a criada, colocando a mão no peito e olhando ao redor para ver se alguém acordara. Tremia de medo.
- O que faz aqui? - indagou Andrei, trêmulo de emoção. A sua senhora, onde está?
- Está aqui, na cidade sitiada.
Andrei sentiu o coração apertar-lhe.
- O que faz ela aqui? Está casada? Vamos, fala!
- O pai da jovem foi nomeado vovoida de Dubno. Há dois dias que ela não come.
- Como?
- A comida acabou e há dois dias que as pessoas da cidade se alimentam apenas de terra.
Andrei sentiu um calafrio ao pensar em sua amada morrendo de fome.
- A minha senhora viu você entre os zaporojianos e me disse: vá até ele e pede algo para dar de comer à minha mãe, ou ela morrerá de fome na minha frente. Quero morrer primeiro. Vá até ele e pede de joelhos. Ele deve ter uma mãe idosa, implora em nome dela.
O coração do jovem cossaco era assaltado por uma multidão de sentimentos.
- Como você chegou até aqui?
- Vim por uma passagem subterrânea.
- Onde fica essa passagem?
- Eu não direi.
- Sossega. Não vou trair você. Mostre-me a passagem e eu mesmo levarei o pão para sua senhora.
A aia pensou por alguns instantes. Por fim, resolveu-se:
- É necessário acompanhar a margem do ribeirão que se aprofunda no bosque. Ali onde está o canavial.
- Onde isso leva?
- Ao centro do mosteiro.
- Então vamos juntos.
- Mas antes, por amor de tudo que é mais sagrada, dê-me um pouco de comida. Já não agüento mais de fome.
- Está bem. Fique aqui deitada no carro. Estão todos dormindo. Mas não faça barulho.
Andrei percorreu as carroças de mantimentos. Primeiro procurou o panelão, apenas para descobrir que os cossacos haviam raspado até a última gota do mingau de trigo. Enquanto fazia isso, passava por seus olhos a imagem daquela mulher orgulhosa e linda. Passaram por sua imaginação as mãos pequenas e muito brancas, os olhos, os lábios sorridentes, os cabelos escuros e encaracolados que se espalhavam em cascata sobre seus ombros. Era toda ela bela.
Quando chegou a um carro, esqueceu o que tinha ido fazer lá. Teve de esfregar a testa, num esforço de memória. Por fim, lembrou-se e começou a procurar comida. Pegou um saco de pão, mas desistiu. A massa grosseira, que caia muito bem para um zaporojiano não seria apropriada para uma jovem delicada como a polonesa.
Lembrou-se então de um saco de pão branco que haviam saqueado do mosteiro. Procurou-o e o encontrou servindo de travesseiro para seu irmão Ostap, que roncava a plenos pulmões. Andrei puxou o saco por uma ponta, fazendo com que a cabeça do irmão batesse no chão. Este, ainda de olhos fechados, começou a gritar:
- Peguem este polonês maldito! Não deixem que o cavalo fuja! Segurem o cavalo!
- Cala a boca agora, ou eu te mato! - ameaçou Andrei.
Mas não foi preciso. Ostap logo estava roncando novamente.
Andrei esperou um pouco, a respiração em suspenso. Depois, quando se certificou de que seu irmão de fato dormia, colocou o fardo no ombro e foi até a carroça onde estava a tártara. No caminho, pegou um saco de milho.
- Vamos! - disse ele, chamando a mulher.
Foram andando a passos leves pelo acampamento. De repente foram parados por uma voz potente:
- Andrei!
O rapaz olhou para trás e pode vislumbrar, entre as sombras da noite, o vulto de seu pai, meio adormecido. Seu coração gelou.
- O que é? - perguntou ele, trêmulo.
- Andrei, você está acompanhado de uma mulher! Juro que me levanto daqui e lhe dou uma surra. Mulheres não trazem nada de bom. - e dizendo isso, voltou a colocar a cabeça apoiada no braço.
O rapaz segurou a respiração, sem se atrever a olhar o pai de frente, mas por fim percebeu que ele dormia e se colocaram a caminho.
A tártara estava paralisada de medo e Andrei teve que puxá-la pela manga, para despertá-la.
Foram andando cuidadosamente, olhando sempre para trás para ver se não estavam sendo seguidos.
Desceram o barranco que terminava num riacho e seguiram o leito. A brisa anunciava a manhã, mas nenhum galo cantava, pois em nenhum lugar havia sobrado uma dessas aves. Cruzaram o riacho por um tronco de árvore e foram dar no local que parecia o ponto mais sólido do sistema de defesa. Andando um pouco mais deram com uma moita. A tártara descalçou os calçados e foi andando pela lama por entre as folhagens. Então deteve-se diante de um monte de ramos secos e paus cruzados. Arredando estes, surgiu uma abertura.
A mulher entrou primeiro, curvando-se. Andrei teve de curvar-se mais ainda, por causa não só de sua altura, mas também dos sacos que levava às costas.
Entraram por um corredor estreito e escuro.
Capítulo 6
Andrei avançou penosamente, atrapalhado pelos sacos e pelo pequeno espaço.
- Já vamos chegar ao lugar em que deixei o candeeiro. - anunciou a tártara.
Com o tempo, as paredes escuras começaram a iluminar-se. Enfim, chegaram a um lugar onde havia um altar com uma imagem da virgem, já bem apagada pelo tempo. Sobre a imagem pendia uma lamparina acesa. A tártara pegou um candelabro e acendeu-o na chama.
Os dois avançaram, ora iluminados, ora envoltos pelo breu. O rosto saudável e cheio de juventude do guerreiro contrastava com a face pálida e demarcada pela fome da criada.
Andrei olhava para as paredes e via nichos com caixões. Percebeu que aquele era um local em que se refugiavam religiosos fugindo das turbulências, amarguras e seduções do mundo.
Andrei tinha de parar diversas vezes para esperar a aia. O pequeno pedaço de pão que ele lhe dera quando iniciara a jornada provocara forte dor de estômago, e ela tinha de ficar imóvel por alguns minutos antes de continuar.
Por fim chegaram a uma porta de ferro.
Andrei deu algumas pancadas, que pareceram ressoar num ambiente aberto. Alguém desceu escadas e abriu a porta com uma chave. A porta abriu e apareceu um monge.
Andrei recuou ao ver um monge católico, que os cossacos tratavam de forma ainda mais cruel que aos judeus, e o religioso fez o mesmo. Mas a uma palavra dita pela tártara, este se tranqüilizou.
O monge fechou a porta e seguiu na frente deles, iluminando o caminho. Deram com um grande altar no qual orava um sacerdote. Nos dois lados encontravam-se sacristãos. Ele rezava para que a cidade fosse salva e para que fosse ouvido o pranto dos sitiados. Algumas mulheres estavam ajoelhadas, rezando. Pareciam fantasmas esqueléticos.
A luz da manhã começava a entrar pelos vitrais, colorindo o altar-mor.
Andrei contemplava estupefato o efeito de luzes quando foi puxado pela manga.
- Vamos! - disse a tártara.
Atravessaram a igreja sem despertar a atenção dos fiéis e chegaram à praça. Era em formato retangular e tinha em seu centro uma mesa, sinal de que existira antes ali um mercado. O chão de terra tornara-se um lamaçal.
Próximo à igreja elevava-se uma construção maior que as outras, onde, evidentemente, morava o magistrado. Eram dois andares e uma torre, onde ficava uma sentinela. Andrei ouviu um gemido.
Olhou à volta e viu três pessoas gemendo, caídas no chão. Quando ia se aproximando, seu pé bateu em alguma coisa. Olhou para baixo e viu o corpo de uma mulher judia, com o filho nos braços, ainda vivo, arranhando os seios da mãe com as mãozinhas esqueléticas num esforço inútil de implorar por alimento.
Entraram por uma rua e toparam com um homem que pulou sobre eles, gritando:
- Pão!
Andrei empurrou e ele se estatelou no chão. Andrei olhou-o horrorizado e jogou-lhe um pedaço de pão. O homem pulou sobre a iguaria e devorou-a de uma só mordida. Então foi tomado de convulsões e morreu, não podendo suportar o alimento depois de tão prolongado jejum.
A cada passo encontravam novos indícios do desastre que se abatera sobre a cidade. Parecia que as pessoas, não podendo suportar a fome dentro de suas casas, saiam para morrer na rua. Um homem pendia de uma corda amarrada no telhado de uma casa. Havia preferido a morte à fome.
- Será que não encontraram nada com que matar a fome? - perguntou Andrei.
- Comemos tudo. - respondeu a tártara. Não sobrou na cidade um único cavalo, um único cachorro ou gato. Comemos até os ratos e baratas!
- E por que não se entregam? Preferem morrer de fome?
- O vovoida já teria se rendido se não houvesse a promessa de reforços vindos de Varsóvia. Devem chegar a qualquer momento. Aqui, chegamos!
Andrei percebeu que a casa em que entravam era diferente e maior que as outras, tendo sido construída por um arquiteto italiano. Na entrada plantavam-se duas sentinelas tão imóveis que dir-se-ia serem estátuas. Os dois nem mesmo se mexeram ao ver os dois que entravam.
No final de uma escadaria deram com um homem ricamente vestido e armado dos pés à cabeça, com um livro nas mãos, que lançou sobre eles um olhar cansado. A tártara murmurou-lhe alguma coisa e ele voltou para o livro.
Entraram por uma sala ampla, que devia ser usada como vestíbulo. A tártara levou-a para um corredor. Ao final dele, entraram em um quarto.
Andrei ouviu o murmúrio de uma voz suave, que o fez estremecer. A porta abriu-se totalmente de deixou ver uma bela figura feminina, em cujo braço estendido repousava uma comprida trança. O rapaz não se deu conta de entrar ou de fechar a porta atrás de si. Seus olhos pareciam hipnotizados por aquela maravilhosa visão. Aquela não era a jovem fútil que conhecera. Ao contrário, era uma obra-prima à qual o artista deu os últimos retoques. O sofrimento, ao invés de enfeiá-la, tornara-a ainda mais bonita. Era como se sua beleza tivesse se transformado. O rosto lívido parecia tomado por uma beleza sobrenatural. Andrei ficou em silêncio, parado, como que tomado por um sentimento religioso.
A moça também se deslumbrava com a beleza rude do cossaco. Os olhos brilhavam com força sobre as sombrancelhas. Os membros do rapaz, embora imóveis, permitiam adivinhar agilidade e força.
- Nunca poderei te agradecer, honroso cavaleiro. - disse ela, com lágrimas nos olhos. Só Deus pode te recompensar.
E então baixou os olhos, como pétalas orvalhadas ornadas por longas pestanas. O rapaz não conseguia falar. Queria exprimir tudo que sentia, mas era impossível.
A tártara entrou no recinto. Trazia numa bandeja de ouro um pão fatiado.
- Já levou pão à minha mãe? - indagou a jovem.
- Já, mas ela está dormindo.
- E ao meu pai?
- Sim. Ele disse que virá pessoalmente agradecer ao nosso salvador.
Só então a moça pegou um pedaço de pão e levou-o à boca. Andrei observou-a, emocionado, enquanto ela partia o pão e levava um pedaço à boca. Então a lembrança do homem estrebuchando na praça lhe veio à mente e ele exclamou:
- Basta! Um só pedaço é suficiente. No estando que está, o pão é veneno se comido em grandes quantidades.
Ela, obediente, abaixou a mão e depositou o resto do pão na bandeja.
Andrei caiu aos seus pés e segurou suas mãos:
- Minha senhora! Minha princesa! O que deseja? Ordena e eu obedecerei! Exige de mim os atos mais temerários e ficarei feliz em realizá-los. Toda minha vida serve apenas par te servir! Tenho três fazendas e só pelo cabo de meu sabre já me ofereceram três mil ovelhas. Peça e será tudo seu. Renunciarei a tudo a um só sinal dos seus olhos negros. Sou um bruto e não sei falar como se deve a uma dama, mas quero dizer o quanto te amo. Não sirvo nem como seu escravo. Sinto que és uma pessoa diferente não só de nós, mas de todas as moças da aristocracia. És um anjo que desceu à Terra.
A moça não perdia uma única palavra. O discurso nascia do fundo do coração e refletia uma paixão imensa. Quis responder, mas lembrou-se que ele era um cossaco e que por causa de sua raça, seu pai, sua mãe e todos os seus conhecidos estavam naquela condição de miséria condenados a morrerem de fome... e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela pegou então um lenço de seda e cobriu com ele o rosto, deixando-o molhado com seu pranto. Permaneceu com o lenço sobre o rosto, tentando esconder sua dor.
- Responde. Responde ao menos com uma palavra. - pedia Andrei. Por que estás tão triste? Qual a causa dessa dor?
A moça descobriu o rosto, retirou uma mecha de cabelo que insistia em cair sobre seus olhos e começou a falar numa voz doce e suave como a aragem que se levanta num entardecer maravilhoso e corre entre os canaviais:
- Será que mereço uma pena tão dura? Amaldiçoada será a hora em que eu nasci. O destino é o meu mais cruel carrasco. Ele colocou aos meus pés o que há de melhor em toda a Polônia, os maiores nobres, os senhores mais ricos, condes e barões... bastaria que eu levantasse e o mais nobre, o mais bonito deles se transformaria em meu esposo. No entanto, eu fui me apaixonar justamente um zaraporojiano que persegue e oprime o meu povo. Mas isso ainda não era o fim. Foi necessário que, para máximo desespero, eu, antes de morrer, ouvisse essas palavras que antes nunca tinha ouvido, e justamente daquele a quem amo com todo o meu coração... O que eu fiz de errado, que pecado cometi para merecer tal tortura?
Ela se calou e abaixou os olhos, refletindo neles um intenso desespero.
- É impossível - exclamou Andrei - que a mulher mais bela e mais angelical seja tão desgraçada. Uma mulher que nasceu para receber todo o bem da terra e as mais delicadas honrarias. Juro que não morrerás! E se o destino assim quiser, morrerei eu junto contigo!
- Cavaleiro! Não te enganes nem procures me enganar! Sei que tens deveres para com teus pais, teus companheiros e tua pátria. Somos inimigos!
- Pouco me importa meu pai, minha pátria ou meus camaradas! - gritou o rapaz. Não tenho mais ninguém além de ti, minha amada. Só a ti devo satisfações. Tu és a minha pátria! Esta aqui é minha pátria! E que um cossaco ouse tentar me afastar daqui!
A jovem permaneceu fitando-o nos olhos por um momento. Depois, em soluços, jogou-se nos braços do rapaz. Andrei não dava atenção às lágrimas. Sentia apenas os belos lábios derramando em seu rosto o perfume do seu hálito juvenil.
Nisso entrou a tártara, radiante de alegria:
- Estamos salvos! Os nossos acabam de entrar na cidade com pão, milho, farinha e prisioneiros zaporojianos!
Mas os dois não queriam saber quem eram os nossos que haviam chegado, ou que comida traziam ou quem eram os prisioneiros. Estavam enlevados num beijo, experimentando os dois o que o ser humano só pode experimentar uma vez na vida.
E assim a Ucrânia perdeu um de seus mais valorosos cossacos... e o velho Taras Bulba viria a arrancar os cabelos, amaldiçoando o momento em que lhe nascera aquele filho.
Capítulo 7
O tumulto se instalou no acampamento zaporojiano. Ninguém conseguia explicar como o inimigo fora capaz de adentrar os muros da cidade. Depois ficou claro que todo o destacamento de Pieraialavski, instalado diante da porta da cidade, estava embriagado. E nesse estado foram surpreendidos pelos soldados poloneses, de modo que metade deles morrera e a outra metade fora tomada como prisioneiros. Apenas alguns poucos puderam escapar. Quando as outras guarnições acordaram e se puseram a lutar, a tropa já estava quase toda dentro da cidade e sua retaguarda defendia-se disparando contra os zaporojianos embriagados e semi-adormecidos.
O Kochevoi mandou tocar o toque de reunir.
- Todos já sabem, meus amigos, o que aconteceu esta madrugada. Vejam o que nos aconteceu por causa da bebida! Vejam a humilhação que nos foi imposta pelo inimigo! E tudo por causa da bebida! É uma vergonha! Quando recebem ração dupla de bebida, tratam logo de se embriagar, de modo que o inimigo passa por nós e não só tira a roupa do cossaco, como ainda lhe espirra no nariz!
Os zaporojianos ouviam a tudo isso de cabeça baixa, humilhados e esmagados pelo peso da culpa. Apenas um deles, Kukubenko, atamã do Kurien de Niezamaikovski ousou falar:
- Meu pai, peço um momento! Embora não seja permitido replicar quando o Kuchevoi fala com a tropa, tenho a dizer as coisas não se passaram exatamente assim! Os cossacos seriam culpados se tivessem bebido em campanha, durante uma marcha ou em qualquer ação militar. No entanto, estávamos aqui sem fazer nada, entregues ao ócio. Não se avizinhava nenhum perigo e não havia razão nenhuma para não bebermos. Como querer que um homem inativo não se embriague!? Eu digo que ninguém teve culpa. O melhor a fazer agora é ensinar-lhes o que significa atacar homens desarmados. Até agora fomos bons com os poloneses, mas agora vão saber com quem estão lidando!
Os cossacos gostaram do discurso e balançavam a cabeça, dizendo:
- Kukubenko falou muito bem!
Até mesmo Taras Bulba, que se encontrava perto do Kuchevoi, falou-lhe:
- Parece que Kukubenko tem razão. O que acha?
- O que acho? Feliz do pai que gerou um filho assim! É fácil lançar censuras, mas difícil é dizer palavras que, embora não ofendam ninguém, restitua a coragem a todos, como uma espora que restitui vigor ao cavalo cansado pela jornada.
- O Kochevoi falou muito bem. - disseram os cossacos.
Os mais idosos torceram seus bigodes e repetiram:
- O Kochevoi falou muito bem.
O comandante gostou do resultado. Tinham transformado a situação.
- Agora escutem muito bem, meus cossacos! Escalar muralhas não faz parte do jeito cossaco de lutar. O inimigo entrou na cidade com poucas carroças e deve ter pouca comida. Até mesmo os cavalos precisam de feno. Em algum momento terão de sair da cidade. Precisamos nos dividir em três grupos e ocupar as três portas que levam a cidade. Reúnam os jovens de língua afiada e os coloquem diante dos portões. O polonês é vaidoso e não aceita ofensas. Assim, vamos trazê-los para fora. Agora, irmãos, cada um a seu posto!
Os cossacos saudaram seu chefe retirando o gorro e curvando-se até embaixo. Só voltaram a colocar seus gorros quando já estavam longe do local da reunião.
O acampamento viu surgir uma agitação febril. Os cossacos preparavam armas de fogo, afiavam os sabres, muniam-se de pólvora e colocavam selas sobre os cavalos.
Enquanto dirigia-se ao seu acampamento, Bulba pensava no seu filho Andrei. Onde estava ele? Será que tinha sido feito prisioneiro pelos poloneses? Não se encontrava entre os mortos, mas também não estava com os colegas de regimento. Então percebeu que alguém o chamava com insistência.
- Senhor Taras Bulba!
- Quem me chama? - indagou ele, parecendo despertar de um sono profundo.
- Sou eu, Yankel! Estive na cidade, senhor coronel!
- Na cidade? O inimigo te aprisionou?
- Acordei hoje de manhã com os tiros e fui ver porque os cossacos atiravam tão cedo. Cheguei quando já entravam os últimos poloneses e reconheci entre eles o porta-estandarte Galiandovitch, que me deve cem chervoniets há três anos. Mal o vi, corri atrás dele para cobrar a dívida.
Bulba assombrou-se:
- Teve coragem de entrar na cidade e ainda por cima para cobrar uma dívida? Não quiseram enforcá-lo?
- Oh, sim, juro que quiseram. Já iam colocando a corda em meu pescoço quando eu disse que não só perdoava toda a dívida do porta-estandarte, como ainda lhe emprestava mais dinheiro, desde que ele obrigasse seus subordinados a me pagarem o que me devem. Esse Galiandrovitch, embora seja dono de terras e plantações, não tem uma única moeda no bolso e está sempre precisando dos judeus para se armar para a guerra.
- E o que você fez na cidade? Viu algum dos nossos?
- Claro que sim! Lá estão muitos dos nosso: Itska, Rahum, Samuilo...
- Eu quero é que esses judeus morram! Perguntei se viu algum zaporojiano...
- Não, senhor, não vi nenhum, só o senhor Andrei...
- Como ele estava? Amarrado? Torturado?
- Quem ousaria amarrar o senhor Andrei? Agora ele é um cavaleiro muito importante... quase que não o reconheci com aquela roupa enfeitada de ouro. Parecia um sol brilhando num dia de primavera. O melhor cavalo é sua montaria. Só os arreios do animal já valem uma fortuna!
Bulba não podia acreditar no que ouvia.
- Judeu, você mente! Por que ele usaria essa roupa estrangeira?
- Por que ela é melhor é mais bonita que a roupa dos cossacos. Além disso, ele é um grande cavaleiro polonês agora...
- E quem o obrigou a isso?
- Ninguém o obrigou. Não sabe que ele passou para o lado dos poloneses por livre e espontânea vontade? Tudo por causa do amor de uma mulher...
Os olhos de Bulba chisparam:
- Não minta para mim, seu porco!
- E por que eu mentiria? Por acaso não sei que o judeu mentiroso é enforcado como um cão?
- Está me dizendo que ele traiu sua pátria, seu pai e seus companheiros?
- Não sei se ele traiu alguma coisa. Só sei que ele é um polonês agora...
- Mas por que ele faria isso?
- Por causa da filha do vovoida... a jovem mais linda que já tive oportunidade de ver. Um homem apaixonado é como couro curtido. Pode-se dobrar à vontade.
Bulba não podia acreditar no que ouvia. No entanto, parecia fazer sentido.
- Judeu ingrato! Você não matou na mesma hora esse traidor?
- Matar por quê? Ele passou para o outro lado por livre e espontânea vontade. Não se precisa matar ninguém!
- Diga, judeu: você o viu, cara a cara?
- Sim, é o cavaleiro mais garboso de todos. Que Deus o conserve com saúde. Ele me reconheceu e me chamou. Disse: "Yankel, quando sair diga a meu pai que agora eu sou um oficial polonês e irei defender esta cidade contra ele e seus cossacos".
- Mentiras! Mentiras, judeu maldito! Vou te matar! Vou te matar com minhas próprias mãos! - gritou Bulba, puxando o sabre.
Ao ver a arma, o judeu passou a correr com toda a velocidade com que podia com suas magras canelas. Correu e correu sem olhar para trás até chegar em campo aberto, mas se tivesse olhado para trás, teria visto que Bulba não fora atrás dele. Ficara lá parado, estarrecido com as palavras que ouvira. Seria possível que seu filho se passara para o lado dos poloneses?
Por fim foi ocupar-se dos preparativos para guerra.
Na cidade, o movimento dos cossacos foi notado e em breve as muralhas estavam cheias de gente. Os capacetes de bronze dos poloneses, ornados com plumas brancas como espuma, luziam ao sol.
Na primeira fileira encontrava-se, cheio de pompa e orgulho, o gordo Coronel Budjaki, usando um gorro vermelho e com enfeites dourados. Do outro lado via-se um coronel baixo e magro, olhos vivos escondidos sob sobrancelhas cerradas que dava ordens com gestos expressivos. Um pouco mais adiante estava o porta-estandarte, alto de rosto vermelho de dono de um imenso bigode. Atrás deles, uma multidão de poloneses dos mais variados tipos e formatos. Embora a maioria não tivesse nem mesmo o que comer, conseguia se armar para a guerra, fosse por conta do tesouro real ou por causa dos empréstimos dos judeus.
As fileiras dos zaporojianos permaneciam em silêncio, imóveis em frente as muralhas. Não havia ouro ali, exceto pelo punhal de um outro sabre. Os cossacos não gostavam de se enfeitar para a guerra, preferindo a rudeza de uma cota de malha e de um gorro negro.
Dois cossacos se aproximaram da muralha. Um jovem, outro já quase velho, tinham em comum o fato de serem desbocados:
- Ei, vocês aí! Que belas roupas! Andam bem-vestidos, mas não sabem lutar! - gritou um deles. Venham combater, ou vão ficar aí escondidos como mulherzinhas?
- Vou amarrar a todos vocês e enforcá-los! Entreguem os cavalos e armas, cambada de servos imprestáveis! Já tiveram oportunidade de ver o que faço com os cossacos... - disse o coronel polonês.
Alguns poloneses trouxeram prisioneiros zaporojianos. O primeiro deles era o atamã Hlib, nu e com o corpo cheio de hematomas. Vinha de cabeça baixa, envergonhado por ter sido apanhado bêbado. A vergonha havia transformado seus cabelos, fazendo com que ficassem totalmente grisalhos.
- Não se preocupe, Hlib! Vamos te libertar!
- Não se preocupe, amigo! - berrou um atamã. Não se envergonhe de ter sido aprisionado nu e embriagado. Isso pode acontecer com qualquer um. Quem deveria se envergonhar é eles!
- Esperem já, que vamos cortar as tranças de todos vocês, bando de cachorros! - gritou o coronel polonês.
O atamã Popovitch deu algumas piruetas com o cavalo irrequieto e voltou-se para os companheiros:
- Talvez os poloneses digam a verdade. Talvez sejam realmente perigosos!
- Por que diz isso, Popovitch? - perguntaram os zaporojianos, já antecipando sua saída inteligente.
- Se são comandados por um coronel tão gordo, é capaz de colocarem toda a tropa atrás dele e nunca vamos conseguir atingir um polonês que seja!
A tropa de cossacos explodiu numa estrondosa gargalhada. Eles balançavam a cabeça e diziam entre si: "Esse Popovitch tem cada uma. Quando começa a falar..." mas não tiveram tempo de completar a frase.
- Afastem-se da muralha. - gritou o Kochevoi. Parece que os poloneses ficaram realmente irritados com a brincadeira e um coronel fez um sinal para o ataque. Preparem-se!
Os cossacos afastaram-se a tempo de escaparem de uma descarga de metralha. As portas se abriram e o exército polonês apareceu, avançando pela planície. Na vanguarda vinham os cavaleiros de armaduras. Atrás deles, a pé, soldados com cota de malha, depois os lanceiros. Na retaguarda, a tropa de elite. Esses orgulhosos cavaleiros da tropa de elite não queriam se misturar com os demais. Depois, o porta-estandarte com as forças regulares e o coronel barrigudo. Por último, o coronel magro.
- Não esperem que eles tomem formação de combate! - gritou o Kochevoi. Todos os regimentos devem atacar ao mesmo tempo!
A tática caótica dos cossacos deu resultado e romperam a barreira dos poloneses, confundindo-se com eles. Não havia espaço para fazer uso das armas de fogo e o combate se dava com sabres e lanças. No meio da confusão geral, cada um fazia o melhor para mostrar seu valor.
Demid Popovitch, o cossaco de língua solta, matou três soldados da cavalaria e derrubou três cavaleiros.
- Que ótimos cavalos! Companheiros, amarrem esses cavalos! - gritou ele, direcionando os cavalos para a planície.
Mal assegurou-se de que os cavalos estavam devidamente presos, voltou-se como um demônio contra os soldados desmontados. Degolou um e atravessou sua lança no peito de outro. Arrastou um cavaleiro preso a seu cavalo pela campina e, quando viu que estava morto, pegou para si o sabre com cabo de ouro e uma bolsa cheia de moedas valiosas.
Kobita, um jovem cossaco avançou contra um dos mais valorosos cavaleiros russos e lutaram bravamente até chegarem ao corpo a corpo, quando o cossaco transpassou o corpo do polonês com um punhal, mas não teve tempo de comemorar, pois logo caia morte, transpassado na cabeça por um tiro disparado por um oficial inimigo.
Esse oficial já tinha mostrado ser um verdadeiro leão, matando diversos cossacos.
- É contra esse que eu quero mostrar o meu valor! - exclamou Kukubenko, esporeando seu cavalo, avançando a galope e soltando um grito terrível.
O oficial quis girar o cavalo para colocar-se na defensiva, mas o seu animal assustou-se com o grito e empinou-se, derrubando o cavaleiro no mesmo momento em que ele recebia um tiro. Mas era tão valoroso que, mesmo caído e ferido, tentou atingir o inimigo com o sabre antes que Kukubenko atravessasse a espada por sua boca. A lâmina entrou pelos lábios, quebrou os dentes muito brancos, cortou a língua e foi sair pela nuca, cravando-se no chão. O cossaco, certificando-se de que o oficial estava morto, correu para ajudar os companheiros.
- Como é possível abandonar um equipamento tão rico? - disse Borodati, separando-se dos seus e correndo para junto do oficial morto. Já matei sete, mas nenhum com tão valioso equipamento!
O zaporojiano curvou-se sobre o corpo ainda estrebuchando para pegar o seu botim e não viu aproximar-se o porta-estandarte, que, com um golpe tremendo, fez pular longe a cabeça do oponente. O atamã pagara com a própria vida a cobiça desmedida.
Como uma águia, que, depois de descrever vários círculos no céu, cai repentinamente sobre sua presa, assim Ostap arremeteu contra o porta-estandarte, laçando-o pelo pescoço. O rosto do polonês escureceu e ele ainda tentou usar sua pistola, mas a mão afrouxou e perdeu as forças. Ostap amarrou-o pelos braços e pernas, prendendo-o ao seu cavalo. Então saiu arrastando o corpo pelos campos, enquanto gritava aos seus companheiros:
- Recolham o corpo do atamã!
Enquanto recolhiam o corpo, os cossacos decidiram que Ostap seriam o substituto do chefe morto.
O filho de Taras Bulba agradeceu a honraria tirando o gorro, mas não fez mais que isso, pois o momento não era para discursos ou cerimônias. Assim empossado, reuniu o grupo e conduziu-os ao ponto mais renhido da batalha, indo ele na vanguarda e mostrando que os cossacos não haviam errado ao elegê-lo seu líder.
A sorte começava a mudar de lado e os poloneses recuaram para a extremidade do campo numa tentativa de recuperar forças e reorganizar-se. Para ganharem tempo, o coronel magro ordenou que as forças que haviam ficando próximas ao portão principal descarregassem suas armas. Ocorre que poucas atingiram os cossacos, indo a maioria de encontro aos bois que olhavam assustados o combate. A boiada estourou avançando pelo acampamento cossaco, mas Taras Bulba percebeu nisso uma oportunidade e avançou com seu regimento, dando grandes gritos e atirando para o alto. A boiada assustou-se com isso e mudou de direção, indo exatamente para onde estavam os poloneses, pondo em debandada a cavalaria e espalhando o terror entre os guerreiros.
Os zaporojianos gritaram de alegria:
- Obrigado bois! Vocês nos ajudaram muito no caminho e agora nos ajudam na batalha!
Com o entusiasmo dessa completa reviravolta, lançaram-se sobre o inimigo, provocando muitas baixas.
Os poloneses sentiram que a situação era crítica e gritaram para que abrissem os portões, entrando em seguida como carneirinhos humilhados. Alguns zaporojianos pensaram em perseguidos, mas foram dissuadidos por Ostap:
- Irmãos, não se aproximem das muralhas! O lugar é perigoso!
Estava coberto de razão, tanto que todos os cossacos que ousaram se aproximar foram alvejados pelos tiros dos que se encontravam no alto da muralha.
O Kochevoi aproximou-se e lançou um elogio ao filho de Taras Bulba:
- Eis aqui um bom atamã. É valente como um jovem e prudente como um velho!
Taras Bulba era só sorrisos de orgulho, tanto que foi pessoalmente agradecer os cossacos que haviam elegido Ostap.
Alguns zaporojianos voltaram para o acampamento e outros foram atazanar a vida dos poloneses:
- Então é assim que nos estrangularam? - e caíram na risada.
O coronel polonês tremia de raiva e ostentava uma corda à frente da farta barriga, gritando:
- Estão vendo esta corda? Essa é para vocês! Vamos enforcar todos!
Ficaram nessa batalha verbal um bom tempo, até se cansarem. Então voltaram para o acampamento. Alguns foram restaurar-se com um sono tranqüilo, outros foram encher de terra os ferimentos, fazendo ataduras com as roupas tomadas dos inimigos mortos. Os que estavam menos cansados cavavam covas para seus amigos mortos para que as aves de rapina não lhes comesse os olhos. Os poloneses mortos eram amarrados a cavalos selvagens, que depois eram enxotados e saiam galopando e esfacelando os corpos dos pobres diabos, espalhando sangue pelos campos.
Ao cair da noite, todos se sentaram em volta da fogueira para comer, beber um pouco de vodka e contar as peripécias daquela batalha que viria a entrar para a história.
Bulba estava feliz por seu filho Ostap, um guerreiro como nenhum outro, mas também pensava muito em Andrei. Seu filho não fora visto entre os poloneses. Ou o judeu mentira, ou então fora enganado por Andrei, que, feito prisioneiro, não queria contar a verdade.
Afastou, no entanto, esse fio de esperança ao lembrar-se que o filho era fraco ante os encantos femininos. A dor se apossou de seu coração e ele jurou vingar-se expondo aos maiores vexames a polonesa. Fantasiou um pouco pensando no que faria nela: ele a arrastaria pelo acampamento, espalhando sangue pela terra e cobrindo de pó seu corpo pescoço e seu seio brancos como o leite. Esquartejaria seu corpo perfeito. Faria isso à mulher que lhe tirara um filho.
Mas Taras Bulba não sabia o que o destino reserva a um homem e dormiu sono pesado.
Capítulo 8
No dia seguinte os cossacos se reuniram em assembléia para ouvir uma notícia terrível. Na ausência dos zaporojianos, os tártaros haviam invadido a cidade de Sieth e saqueado o templo, levando consigo o tesouro subterrâneo. Todos que ali se encontravam foram massacrados. Um único sobrevivente, Maksim Golodha, conseguira fugir apunhalando um guarda e disfarçando-se de tártaro. Pegara o cavalo do morto e fugira, sendo perseguido por três dias. O animal, extenuado, morrera, obrigando o fugitivo a pegar outro e depois outro. Havia corrido por dias e dias sem descanso e quase sem paradas para comer. Estava tão extenuado que, mal contou esses fatos gravíssimos, cai por terra desmaiado.
A notícia deixou em polvorosa o acampamento cossaco. O que fazer agora? Continuar sitiando a cidade ou correr atrás dos tártaros para vingar a ofensa?
Em casos assim, os zaporojianos punham-se em imediata perseguição aos tártaros, pois sabiam que os prisioneiros seriam vendidos como escravos para infiéis nos portos da Ásia Menor.
Mas por outro lado seria desonroso abandonar o cerco, ainda mais agora, que a vitória parecia iminente.
Os zaporojianos reuniam-se não para ouvir o Kochevoi, mas para deliberar em igualdade de condições com ele.
- Falem os velhos primeiro! - gritaram alguns.
- Não, primeiro fala o Kochevoi. - disseram outros.
O chefe dos cossacos se aproximou, mas sem o gorro, para mostrar que naquela situação era um como qualquer outro.
- Meus amigos, entre nós há outros mais velhos e mais sábios que eu. No entanto, pediram minha opinião e a hora é grave. Irmãos, minha convicção é de que não devemos perder tempo. Temos de sair imediatamente em perseguição aos tártaros. Devemos pensar nos nossos companheiros que estão sendo levados agora e provavelmente serão vendidos como escravos. Além disso, se não formos rápidos não encontraremos nem sombra do nosso tesouro. Quanto aos poloneses, eles já descobriram o que é tratar com um cossaco e por minha parte já sinto vingadas todas as ofensas à nossa fé. De resto, de uma cidade faminta, pouco ou nada podemos tirar. Partamos imediatamente!
- Partamos! - repetiram os guerreiros.
No entanto, Taras Bulba não gostou daquelas palavras e pediu para falar. Sua face tinha um ar grave, as sobrancelhas cerradas:
- Não, não concordo com teu conselho, Kochevoi! Pelo visto, esquecestes que, da mesma forma que temos prisioneiros entre os tártaros, também há entre os poloneses e da mesma forma não podemos abandonar nossos companheiros. Vamos deixá-los para que sejam esfolados vivos e esquartejados como já fizeram com diversos atamãs? Será que não protegemos mais a nossa fé? Será que perdemos toda a dignidade a ponto de abandonarmos nossos irmãos? Se for assim, vão, mas eu fico!
As palavras de Bulba causaram rebuliço entre os zaporojianos.
- Acho que você se esquece, Taras Bulba - respondeu o kochevoi - que irmãos nossos estão nas mãos dos tártaros e que serão vendidos como escravos para os infiéis e que esse é um destino pior do que a morte! E o nosso tesouro cristão, conquistado a duras penas?
Os cossacos não sabiam o que pensar. Tanto um como outro parecia ter razão. Foi quando um antigo cossaco, Kasian Bovdiug, o homem mais velho entre eles, coisa rara entre homens que viviam de guerrear, foi quando esse homem se apresentou e pediu para falar algumas palavras.
- Fala, ancião! Queremos ouvir suas palavras! - gritaram os companheiros.
O velhinho balançou a cabeça:
- Eu não sirvo mais para a batalha, mas insisti em vir com vocês porque achava que podia ser de alguma utilidade. Escutem o que digo. O Kochevoi falou bem. Temos a obrigação de ajudar nossos irmãos que serão transformados em escravos e temos o dever de recuperar o tesouro cristão.
Os cossacos concordaram:
- O Kochevoi falou bem! De fato!
- Mas ouçam. Taras Bulba também falou uma grande verdade. Que o senhor Deus o conserve vivo por muitos e muitos anos. Estou vivo há muitos anos e sei que todos são nossos camaradas, de um jeito ou de outro... e os que estão presos atrás das muralhas também são nossos camaradas. Assim, eu digo que quem quiser libertar os cossacos dos tártaros deve ir e quem quiser ficar e sitiar a cidade, será abençoado por Deus.
Os cossacos falaram entre si, felicitando as sábias palavras do velho:
- Obrigado, paizinho. O senhor ficou muito tempo em silêncio, mas quando abriu a boca, falou muito bem. O senhor nos prestou um grande serviço!
- Então estamos de acordo com Bovdiug? - gritou o Kochevoi.
- Plenamente de acordo!
- Então que cada um escolha seu caminho. Os que quiserem brigar com os tártaros vão para a direita. Os que quiserem ficar, posicionem-se à esquerda.
Os cossacos começaram a se movimentar, indo de um lado para outro. O resultado parecia que uma faca os tivesse dividido ao meio. Ambos os lados contavam com valentes guerreiros.
Entre os cossacos que tinham preferido ficar, a maioria tinha escondido seus tesouros entre os juncos de qualquer ilhota isolada de Dniepr, de modo que os tártaros teriam grande dificuldade de encontrá-los, uma vez que até mesmo seus donos não se lembravam ao certo onde estavam. O velho Bodiung também decidiu ficar, dizendo:
- Já não tenho idade para ir perseguir tártaros, mas aqui poderei encontrar uma morte digna de um cossaco.
Quando terminaram os preparativos, o Kochevoi passou entre eles perguntando:
- E então, companheiros, estão satisfeitos uns com os outros?
- Satisfeitos, senhor!
- Ótimos, então abracem e beijem uns aos outros, pois só Deus sabe se um dia voltaremos a nos ver. Assim é a vida de um cossaco.
Os primeiros a se despedirem-se foram os atamãs, afastando os bigodes grisalhos com as mãos e beijando-se ao mesmo tempo em que apertavam fortemente as mãos. Queriam dizer: "Será que vamos nos encontrar, companheiros?", mas não ousavam.
Depois disso, todos foram comer e se deitaram para recompor as forças, preparando-se uns para a jornada contra os tártaros e outros para a batalha contra os poloneses.
Dormiram até o anoitecer, pois havia sido decidido que a partida aconteceria de noite, para que os poloneses não pudessem vê-la e saber que as forças zaporojianas estavam reduzidas à metade.
De fato, as forças partiram sem nenhum ruído que não fosse o ranger de alguma roda mal lubrificada.
Os que ficaram continuaram agitando seus gorros por algum tempo, despedindo-se dos amigos que partiam, embora a escuridão fosse completa.
Quando retornaram ao acampamento, sentiram o vazio deixado pela partida dos companheiros e o coração apertou.
Os cossacos ficaram em volta da fogueira, o olhar pensativo, a cabeça baixa.
Taras Bulba percebeu isso e mandou distribuir um excelente vinho que ele mesmo trouxera e que era o melhor de sua safra.
- Bebam tudo! Não deixem uma única gosta! Estendam o que tiverem à mão: uma cuia, um gorro, luvas ou até mesmo a concha das mãos.
E cada cossaco estendeu o que tinha à mão, enquanto os servos de taras distribuíam vinho à solta. Mas Taras ordenou que esperassem seu sinal para beberem. Ele bem sabia que de nada adiantaria o vinho para levantar o moral da tropa se não fosse acompanhado das palavras certas.
- Eu os convido a beber, meus irmãos. Não em agradecimento pela honra de terem feito o meu filho atamã, nem tampouco em honra dos camaradas que partiram. Ambos os casos seriam suficientes em outras ocasiões, mas não agora. Devemos beber pela nossa vitória e pela fé. Que chegue o tempo em que nossa religião se espalhe por todos os pontos do planeta e que até mesmo os mulçumanos se convertam a ela. Bebamos, senhores, e que nossos filhos ou netos jamais digam que um cossaco desonrou a sua fé!
- Pela fé! - gritaram alguns cossacos.
- Pela fé! - responderam outros.
- Pela fé. - gritaram todos.
Taras ergueu a taça acima da cabeça:
- Pela Sieth!
- Pela Sieth! - repetiram os cossacos mais velhos.
- Pela Sieth! - gritaram os jovens.
Foi um grito tão forte que se espalhou pela planície.
- Agora, senhores, bebamos até o último gole, pela nossa glória e por todos os cristãos da terra!
E todos os cossacos beberam enquanto repetiam:
- Por todos os cristãos da terra!
E beberam até a última gota, felicitando-os uns aos outros, pois já não pensavam no espólio da guerra, nas ricas armas ou nos bons cavalos. Pensavam, sim, na gloriosa morte que teriam como bons cossacos. Uma morte em batalha.
Capítulo 9
Na cidade sitiada, os poloneses não souberam que metade dos zaporojianos tinha partido. Viram apenas a movimentação de alguns carros e acharam que era algum estratagema para despistar a atenção. O engenheiro francês que se encontrava entre eles foi da mesma opinião.
Como previram os cossacos, a cidade não teve condições de se abastecer por muitos dias, uma vez que foram poucos os carros de comida trazidos naquela trágica noite. Os poloneses tentaram incursões para conseguir comida, mas o que iam ou morriam ou voltava de mãos vazias. Os judeus aproveitavam essas incursões para entrar no acampamento inimigo e conseguir informações. Assim, logo na cidade já se sabia que metade dos cossacos haviam partido e até mesmo o número de homens que havia ficado.
Diante dessa informação, os coronéis retomaram a coragem e decidiram se preparar para o ataque. Pelo barulho que chegava da cidade, Bulba se deu conta disso e mandou preparar tudo. Grande parte da planície foi juncada de pontas de lanças, de sabres e estacas pontudas, com o objetivo de se atrair a cavalaria para aquele lado. Quando tudo ficou pronto, chamou seus homens, não para dizer palavras de apoio, pois sabia que o moral estava ótimo, mas para dizer o que ia em seu coração.
- Senhores, muitos de vocês já devem ter ouvido de seus avós o que era a nossa mãe Rússia. Nós cobrávamos pesados impostos de Bizâncio, nossas cidades eram suntuosas, os seus templos e príncipes eram russos e não hereges. Mas vieram os mulçumanos e se apoderaram de tudo. Agora só nos resta a terra. Foi assim que nos demos as mãos e assim nasceu nossa comunidade fraterna. Não existem laços mais sagrados que os do companheirismo. O pai ama o filho e a mãe ama-o também, mas isso não é nada. Também o animal ama seus filhos. Mas só nós podemos nos unir em laços de companheirismo. Alguns de vocês já visitaram os países estrangeiros e sabem que lá também existe gente... e podem até ser inteligentes, mas não são tão expansivos quanto nós. Não companheiros, nenhum povo tem tanta capacidade de amar quanto o russo. Isso se deve não à inteligência, mas ao coração que Deus colocou dentro de nós. Sei que muitos se esqueceram disso e agora beijam as botas dos senhores poloneses, mas esses são os que se esqueceram do prazer da amizade e do companheirismo. Chegará a hora em que, tomados pelo desespero, eles arrancarão os cabelos e implorarão por pagar por sua conduta vergonhosa. Hoje o mundo inteiro saberá o que pode a fraternidade russa!
Taras terminou e balançou ameaçadoramente a cabeça. O discurso falara diretamente ao coração dos cossacos. Os mais velhos permaneciam quietos, olhos no chão, enxugando as lágrimas com as mangas. Logo estavam todos juntos em um gesto de entusiasmo. O atamã despertara neles o que há de mais nobre num ser humano temperado pela angústia e pelas adversidades.
Então o exército polonês começou a sair da cidade ao som dos tambores e clarins. Os cavaleiros iam altivos e orgulhosos, rodeados por numerosos escudeiros.
O coronel gorducho deu ordem de ataque e os poloneses caíram sobre o acampamento cossaco disparando suas armas. Os cossacos responderam com uma descarga tão tremenda e interminável que ressoou pelos campos. Uma grande fumaceira se elevou, impedindo que se visse o campo ou quem eram os feridos.
Os poloneses se assustaram com a chuva de balas que caía sobre eles e, temendo o pior, retrocederam. Só então perceberam que havia muitos mortos em suas fileiras. Entre os cossacos, quase nenhuma baixa. Mas mesmo assim os zaporojianos continuavam atirando sem parar. Isso provocou a admiração do engenheiro francês:
- Estão vendo aqueles zaporojianos? É assim que vocês devem lutar, poloneses!
A seguir, aconselhou que se apontassem os canhões para o campo inimigo. As bocas dos canhões rugiram ameaçadoramente e cuspiram grandes bolas de fogo, provocando um véu de fumaça sobre os campos. Mas os artilheiros haviam apontado alto demais e as balas passaram por cima das cabeças dos cossacos, indo provocar grandes buracos no campo atrás deles.
O engenheiro francês arrancou os cabelos e começou ele mesmo a calibrar os canhões.
Taras percebeu o perigo e avisou os companheiros para que corressem para os cavalos. Mas não teriam tido tempo de nada, não fosse a coragem de Ostap, que avançou na direção dos canhões, tirando a mecha de vários artilheiros antes de ser repelido.
O engenheiro preparava um canhão de calibre tão grosso que os cossacos nunca haviam visto algo igual. Ele vomitou tal projétil que mais de uma mulher ficaria viúva em Glukhov, Niemirov e tchernigov e, cheias de lágrimas correriam ao mercado, interrogando os viajantes com a esperança vã de encontrar entre eles seu amado.
Metade uma kurien foi ceifada e o campo foi adubado com o sangue e pedaços de corpos dos zaporojianos.
O atamã do kurien dizimado ficou como louco, avançando contra os inimigos e cortando como repolhos os poloneses que encontrava, até que tomou um canhão. Então olhou para o lado e viu que outro atamã tomara um segundo canhão. Os outros sobreviventes precipitavam-se sobre o inimigo como se a morte ou a vida não lhes importasse mais.
No meio da contenda, um colosso polonês, que, cercado de cinqüenta escudeiros, gritava a plenos pulmões:
- Então? Não há nenhum cão cossaco que possa bater-se comigo? Onde estão, cães?
- Estou aqui! - gritou Mosi Chilo.
Mosi Chilo era um homem forte que havia sido atamã em uma expedição marítima e passara por muitos sofrimentos.
Em uma das expedições, ele e seus companheiros foram aprisionados pelos turcos, que os puseram a ferros numa galera. A comida era pouca, restos do que sobrava da tripulação e para beber só havia água suja. Mesmo assim, todos sofreram resignados, sem renegar sua fé, exceto Mosi Chilo, que pisou a santa lei, colocou em volta da sua cabeça um turbante e tornou-se homem de confiança do paxá, sendo responsável pelos prisioneiros.
Esse era o maior temor de seus companheiros, que sabiam o quanto era doloroso sofrer nas mãos de um companheiro traidor, e seus receios se mostraram justificados, pois Mosi Chilo foi mais cruel com eles do que seria um mulçumano. Este prendia-os com cordas e correntes e os chicoteava por qualquer razão.
Mas não sabiam que o cossaco apenas fingia. Numa noite em que os turcos, felizes com o novato, se embebedaram, ele distribuiu as chaves e os sabres para os amigos e juntos esquartejaram os turcos. Voltaram para casa com o navio aprisionado cheio de ouro e prata e essa façanha foi cantada durante muitos anos pelos cantadores de pandora.
Alguns pensaram em elegê-lo Kochevoi, mas logo viram que não seria uma boa idéia. Chilo era capaz dos conselhos mais sábios, mas também dos mais impressionantes desatinos. Uma vez cometeu a ação mais terrível entre os zaporojianos: roubou os arreios de um kurien vizinho e foi trocá-los por bebida. Descoberto, ele foi colocado num tronco com um cassete do lado para que todo aquele que desejasse pudesse espancá-lo, mas ninguém se apresentou. Esse era Mosi Chilo, o homem que avançava na direção do orgulhoso polonês.
- Aqui estou eu! E vou mostrar que ainda há quem possa vencer vocês, seus cachorros!
Começou então um combate terrível. Os golpes eram tão fortes que iam destruindo as couraças. O polonês aproveitou um ponto fraco para enfiar o sabre na carne do inimigo, mas Chilo nem pareceu dar pela coisa. Levantou a mão e desferiu golpe tão poderoso que a cabeça do polonês voou pelo campo de batalha. Então se voltou para o corpo, fazendo-o em pedacinhos.
- Cossaco! Não mate muitas vezes o inimigo e olhe para trás antes que seja tarde! - gritou alguém.
Mas Chilo não ouviu e o escudeiro do polonês cravou-lhe um punhal no pescoço. Ainda tentou virar-se para atacar, mas o agressor havia sumido na fumaceira da batalha. Ele levou a mão ao pescoço, cambaleando. Quando percebeu a gravidade do ferimento, inclinou-se para a frente, dizendo:
- Adeus meus bons camaradas! Que a nossa fé permaneça eterna!
Foram suas últimas palavras.
Taras Bulba dirigiu-se à tropa:
- E então, cossacos? Ainda têm pólvora? Os cossacos estão cedendo?
- Ainda temos pólvora em nossas cancelas, nosso pai! A energia cossaca continua inteira e não estamos cedendo!
E os cossacos atacavam com ainda mais violência.
O velho Bodving caiu do carro onde estava, o coração ferido por uma bala. Ainda teve tempo de dizer:
- Não lamento morrer. Vivi muito e morro da maneira que sempre desejei. Que a todo cossaco possa ter uma morte dessas. - e sua alma se elevou aos céus para contar aos antepassados como os russos lutaram bem naquela batalha.
Em seguida morreu Baladan, golpeado por um sabre, uma lança e uma bala. Era um dos zaporojianos mais valentes, tendo sido atamã em diversas expedições marítimas. Uma delas particularmente famosa. Haviam se apoderado de um rico espólio e voltavam para casa quando deram com a marinha turca, que destruiu metade dos navios. Os que sobreviveram, só não afundaram por causa dos juncos presos às amuradas dos barcos. Finalmente, conseguiram colocar-se longe dos olhos dos turcos, mas o navio estava completamente furado e sem velas. Eles calafetaram os rombos e fizeram novas velas usando suas próprias roupas. Regressaram sãos e salvos e esse feito foi cantado por muitos e muitos anos.
Enquanto agonizava, Baladan exclamava:
- Estou de alma leve. Derrubei sete inimigos com meu sabre, atravessei nove com minha lança e já não tenho mais conta de quantos caíram sob minha balas. Que Deus proteja os russos!
E morreu.
Kukubenko estava encurralado com poucos homens, as roupas encharcadas de sangue. Taras Bulba tentou ir em seu auxílio, mas era tarde demais e uma lança transpassou seu coração, fazendo com que o sangue jorrasse aos borbotões.
- Agradeço a Deus por poder morrer pela fé cristã! Que nossos descendentes tenha vida melhor que a nossa!
E sua alma se elevou aos céus, onde foi recebida pelos anjos que o levaram até Jesus Cristo.
- Senta aqui ao meu lado, meu bom cossaco. Você nunca fez nada proibido e não traiu seus amigos.
Essa morte foi sentida por todos. Só sobraram três atamãs. Apesar disso, as fileiras cossacas continuavam firmes e avançaram com ímpeto contra os poloneses. A terra estava empapada de sangue e por toda a parte viam-se pedaços de corpos humanos. Taras levantou os olhos para o céu e viu montes de abutres sobrevoando o campo, esperando para fazer sua colheita.
- Agora! - gritou Bulba, e seu filho Ostap compreendeu o sinal e avançou com sua cavalaria, colocando em polvorosa os regimentos poloneses. Naquele momento, os arcabuzeiros que estavam escondidos atrás dos carros abriram fogo contra os poloneses, que fugiram em debandada.
- Vencemos! - gritaram os zaporojianos.
- Ainda não! - disse Bulba, olhando para as portas da cidade, que se abriam para que saíssem os hussardos, os mais valentes cavaleiros poloneses.
À frente vinha o palidino, avançando imponente com sua cabeleira negra saindo de seu capacete brilhante. No braço, trazia um lenço que lhe fora dado pela mulher amada. O paladino lutava com ardor, disposto a mostrar seu valor à mulher que lhe dera o lenço. Taras Bulba ficou abismado ao reconhecer nele seu filho Andrei, e mais ainda ao vê-lo massacrando os seus, espalhando o terror entre os cossacos.
- Mas luta contra os seus! Maldito dia em que nasceu!
Mas Andrei não distinguia aquele que trespassava com sua lança ou cortava com seu sabre. Diante de seus olhos só via a mulher amada, com seus cabelos sedosos e os ombros de alabastro, feitos para serem beijados eternamente.
- Companheiros, atraiam esse soldado até o bosque! - gritou Taras.
Foi o que fizeram os cossacos montados em cavalos: irromperam entre os hussardos, separando-os. Um deles chegou a dar um forte golpe com o lado de seu sabre nas costas de Andrei e fugiu, fazendo com que o outro viesse em sua perseguição.
Andrei já estava para alcançar o atrevido quando uma mão poderosa agarrou a rédea de seu cavalo.
Era Taras Bulba.
O rapaz ficou petrificado. Como um colegial que é pego em falta, abaixou a cabeça, humilde.
- E então, traidor? - disse Taras. Estás sendo bem tratado pelos poloneses?
O rapaz não respondeu.
- Tu traiste teu país, tua fé e teu pai! Desce do cavalo!
Como um garoto obediente, ele obedeceu.
- Fui eu que te coloquei no mundo e agora sou eu que vou tirá-lo.
E, tirando do ombro o arcabuz, Bulba disparou contra o próprio filho, que caiu à terra murmurando um nome. Não era o de sua fé, de sua mãe ou de sua pátria, era de sua bela polonesa.
O pai assassino ficou algum tempo olhando o filho, que apesar de morto, continuava muito bonito.
Nisso chegou Ostap a cavalo:
- Pai, o senhor o matou?
Bulba fez que sim com a cabeça.
- Vamos enterrá-lo. É necessário dar-lhe uma sepultura para que os abutres não comam seus olhos...
O atamã ficou indeciso. Afinal, ainda tratava-se de seu filho. Por fim, decidiu-se:
- Vamos deixá-lo aí. Não faltará quem venha enterrá-lo.
Nisso chegou um cossaco a pé.
- Paizinho, onde estavas? Os cossacos te procuram! Os poloneses receberam reforços e muitos dos nossos morreram! Mas estamos resistindo bravamente, pois nenhum cossaco quer morrer sem ver seu atamã.
- Vamos, Ostap, a cavalo! - gritou Bulba.
Mas não tiveram chance de sair do bosque. O inimigo caiu sobre eles, cercando-os por todos os lados.
- Meu filho, Ostap, não ceda! - gritou Bulba e sorriu ao ver que o filho se defendia como um leão. Um polonês que se aproximou dele teve a cabeça arrancada, outro caiu ferido de morte e outro conseguiu escapar de um tiro, mas seu cavalo caiu na relva, mortalmente ferido.
- Muito bem, meu filho, resiste que vou em teu auxílio!
Taras estava cercado por todos os lados, mas defendia-se e tentava a todo custo aproximar-se de Ostap. Foi com tristeza que ele viu que os poloneses em grande número já o dominavam, amarrando-o. Foi quando sentiu um forte golpe na cabeça e desmaiou.
Capítulo 10
"Quanto tempo fiquei desacordado?". Esse foi o primeiro pensamento que Taras Bulba teve ao acordar. Ao seu lado, o cossaco Tovkatch balançava a cabeça: "Pensei que não fosse mais acordar!".
- Onde estou? Cadê meu filho Ostap?
- Cale-se, paizinho. O senhor está desacordado há duas semanas e deve recuperar suas forças. Há duas semanas que cavalgamos, fugindo dos poloneses. Cale-se, portanto, se não quiser morrer!
Taras no entanto, balançava a cabeça, tentando lembrar o que acontecera.
- Mas os poloneses não tinham me aprisionado?
- Cale-se homem de Deus! De que adianta saber que te salvamos da mão do inimigo? Agora é bom que se cale. Ainda teremos que cavalgar muito para escapar à sanha vingativa dos polacos. Ofereceram dois mil chervoniets pela sua cabeça!
- E meu filho, e meu filho Ostap?
O outro silenciou e uma imensa amargura se apossou do coração do velho Bulba. Ele rasgou as ataduras e tentou se levantar, dizendo que iria salvar seu filho querido. A febre tomou conta novamente dele e o companheiro foi obrigado e amarrá-lo na cama.
Cavalgaram noite e dia, a febre fazendo com que Bulba semi-inconsciente delirasse que estava resgatando Ostap. Finalmente chegaram à Sieth. Os sábios zaporojianos se puseram a curá-lo com ervas e cataplasmas. Uma curandeira judia cuidou dele, ministrando diversas porções.
Felizmente o homem era um touro e dentro de um mês estava de pé, apenas as cicatrizes revelando a violência dos golpes que recebera.
Mas estava mudado. Não havia mais nem sombra do homem alegre e decidido de antes. Olhava à volta e não via nenhum dos velhos amigos, pois todos haviam perecido. Os que tinham indo em perseguição aos tártaros também pereceram, seja de fome, sede ou das torturas do cativeiro.
Os zaporojianos faziam o que podiam para reanimar o velho cossaco. Mandavam até ele tocadores de pandeiros para cantar suas façanhas, mas nada lhe tirava o olhar cansado e perdido.
- Meu Ostap! Meu querido Ostap! - era tudo que ele conseguia dizer.
Os cossacos estavam organizando uma nova expedição naval e colocaram duzentos barcos no Dniepr, indo assombrar a região da Ásia Menor. Por muito tempo ainda foram encontrados cachimbos cossacos nos lugares por passavam.
Mas Taras Bulba não participava dessas incursões. Ele apenas vagueava pelos bosques com a desculpa de que iria caçar, mas os amigos sabiam que ele passava os dias suspirando pela glória passada e de saudades de seu filho querido.
Um dia ele se decidiu a partir.
- Aonde vai, paizinho? - perguntaram os zaporojianos.
- Vou atrás de meu filho. Tenho que descobrir se ele está morto e enterrado, se os abutres furaram seus olhos ou se ele é prisioneiro dos poloneses.
Uma semana depois ele chegava a um pequeno casebre cujas janelas estavam enegrecidas pela fumaça. Uma velha judia colocou a cabeça à janela.
- Seu marido está? - indagou Bulba.
- Sim. - respondeu a velha, oferecendo um punhado de aveia ao cavalo e uma caneca de cerveja ao cavaleiro. Está orando no quarto.
- Fique aqui e dê de comer e beber ao cavalo enquanto falo com ele.
O judeu era Yankel, que havia sido salvo por Taras Bulba. Todos os poloneses da região haviam caído em sua garras e lhe deviam dinheiro.
Taras encontrou o homem orando com uma toalha na cabeça.
- Yankel. - disse Bulba, e o judeu se virou para ele. Salvei sua vida uma vez. Sem a minha intervenção, os cossacos teriam jogado você no rio. Chegou a vez de me prestar um serviço.
- Um serviço? Que tipo de serviço?
- Quero que me leve a Varsóvia.
- Para Varsóvia? Como? - e o judeu ergueu as sobrancelhas e os ombros, em sinal de espanto.
- Sim, a Varsóvia. Aconteça o que acontecer, quero vê-lo mais uma vez e dizer-lhe uma palavra.
- A quem quer dizer uma palavra, senhor?
- Ao meu filho Ostap.
O judeu estremeceu.
- Então não sabe que...
- Sim, sei que minha cabeça foi posta a prêmio. Mas saberei recompensar bem quem me ajudar. Aqui estão dois mil chervoniets. Se me ajudar, consigo mais três mil.
O judeu estendeu imediatamente a toalha por sobre as moedas de ouro.
- Que lindas moedas! Terá minha ajuda senhor, terá minha ajuda!
Então uma nuvem escura pareceu encobrir-lhe o rosto.
- Senhor, como vou levá-lo a Varsóvia?
- Coloque-me dentro de um barril de vodka.
- Impossível! Os polonês são mais ávidos por vodka que os russos. Se me virem com um barril, vão querer confiscar... não, não daria certo. E se digo que o barril está vazio, eles me enforcam. Dizem entre si: Um judeu nunca carregaria um barril vazio. Há algo aí, e me enforcariam, pois tudo que acontece é sempre culpa do judeu.
- Então me esconde num carro de peixe!
- Impossível, senhor. Uma grande fome assola a Polônia. Os famintos cairiam sobre o carro de peixe... mas tenho uma outra solução. Posso preparar um carro de tijolos e escondê-lo ali. Varsóvia é um verdadeiro campo de construção. Ninguém suspeitará vendo-me com um carro de tijolos.
- Faça como quiser. Só quero que me leve a Varsóvia!
E assim foi feito.
Taras foi colocado sob uma fileira de tijolos. Qualquer teria se importado com o peso terrível e o desconforto, mas não ele. Em sua cabeça havia uma única preocupação e uma único pensamento: rever seu filho.
Capítulo 11
Nessa época não havia alfândega ou guarda de fronteira e os viajantes podiam transportar tudo que quisessem. De vez em quando um funcionário público pedia para ver a carga, mas era por pura curiosidade ou por ganância, mas tijolos não interessavam a ninguém de modo que a carroça chegou a Varsóvia sem ser importunada.
Yankel seguia por uma via estreita e suja chamada Rua dos Judeus, pois era ali que residiam quase todos os judeus de Varsóvia. A paisagem era dominada por casas de madeira enegrecidas, com varais que iam de uma janela a outra, tampando ainda mais o sol. A rua era um caos, com restos de comida e tigelas espalhados pelas ruas. É que naquela época todo mundo jogava pela janela o que não queria mais, muitas vezes expondo os passantes a um banho de sujeira. Um judeu ruivo, com o rosto coberto de sardas saiu de uma das casas e entrou em conversa com Yankel. Outro que passava por ali interessou-se e passou a fazer parte da conversa.
Nisso Bulba já tinha saído debaixo dos tijolos.
- Está tudo bem, meu senhor. Seu filho está na prisão, mas acho que posso subornar os guardas.
Depois o levou para uma casa, onde os três judeus continuaram conversando em seu incompreensível dialeto. Um rasgo de esperança tomou conta de seu coração.
- Escutem, judeus. - disse ele. Vocês são as únicas pessoas nesse mundo que podem conseguir qualquer coisa. São capazes de ir buscar coisas no inferno e voltarem de lá vivos e em minha terra se diz que quando um judeu quer roubar, rouba até de si mesmo. Por favor, libertem meu filho. Façam o que for necessário. Eu lhes pagarei uma fortuna, toda minha fortuna.
Mas a conversa parecia ter tomado outro rumo:
- Mas não se pode, amável senhor, não se pode...
- Sim, não se pode. - concordou o judeu ruivo.
- Mas e se tentássemos? Talvez com a ajuda de Deus...
E voltaram a conversar. Bulba distinguia apenas uma palavra, repetida diversas vezes: Mardoqueu.
- Só um homem poderá nos ajudar nesse momento. - disse Yankel. É um judeu muito velho e sábio como Salomão. Se ele não puder nos ajudar, ninguém poderá. Vamos consultá-lo. Fique aqui e não abra a porta para ninguém.
Bulba fechou a porta e os acompanhou pelo vão da janela.
Os três pararam no meio da rua e recomeçaram a discutir. Um quarto e um quinto judeu se juntaram a eles. Dali a pouco saiu de uma porta um judeu muito velho, calçando pantufas, o rosto coberto de rugas. Os judeus começaram a falar todos juntos, contando algo e Mardoqueu olhava repetidamente para a janela na qual estava taras Bulba.
Começaram a falar tão alto que aquele que estava de vigília pediu para que abaixassem o tom. O cossaco temeu por sua segurança, mas tranqüilizou-se ao lembrar que era comum os hebreus discutirem no meio da rua e ninguém era capaz de entender o que discutiam.
Então voltaram para a casa. Mardoqueu bateu no ombro de Taras e disse-lhe:
- Vamos dar um jeito. Quando nós e Deus queremos alguma coisa, nada pode impedir.
Taras olhou para aquele Salomão, e sentiu esperança. Tinha o rosto marcado pela vida de quem já passou por muitas dificuldades, mas soube como vencê-las.
Então saíram, o Salomão e os admiradores de sua sabedoria. Voltaram apenas à noite, com olhar cansado e sem a esperança de antes.
- Oh, amável senhor. Grande dignitário! - disse Yankel. É impossível. São todos maus, muito maus. Nada se pode fazer. Há trinta mil soldados na cidade e a execução está marcada para amanhã.
Bulba estremeceu:
- A execução? Vão matar o meu filho!
Yankel e Mardoqueu balançaram a cabeça, tristes.
- Tudo que podemos fazer é conseguir um encontro do senhor com seu filho, mas mesmo assim com grande dificuldade. Tive de dispor de uma verdadeira fortuna para subornar o carcereiro...vamos disfarçá-lo de conde alemão recém chegado e curioso para ver um cossaco.
A noite caiu. O judeu de rosto ruivo, dono da casa, trouxe um colchão para que Taras Bulba descansasse. Yankel deitou em outro igual. O dono da casa deitou-se com a mulher no que parecia um armário. Dois rapazinhos deitaram no chão, em frente ao armário.
Taras permaneceu deitado no colchão, soltando baforadas com seu cachimbo e pensando em tudo que lhe acontecera e na terrível perspectiva de ver seu filho ser morto.
Quando o dia raiou, taras acordou o judeu com um chute:
- Vamos, levanta, judeu, e me arranja logo essa roupa de conde. Vamos!
Yankel trouxe a roupa e pintou de preto as sobrancelhas e o bigode de Bulba. A maquiagem era tão boa e roupa tão elegante que nem mesmo os amigos de Bulba o reconheceriam se o vissem.
Puseram-se em marcha. Era tão cedo que os vendedores ainda não haviam armado suas barracas. Aproximaram-se de um ediício que parecia uma cegonha. Era o quartel-general e prisão.
No pátio dormiam quase mil homens. Apenas duas sentinelas guardavam o portão e estavam entretidas em um jogo que consistia em tentar bater nas costas das mãos um do outro.
- Somos nós, senhores, somos nós.
A sentinela nem mesmo olhou para eles, mas fez um sinal com a cabeça:
- Entrem.
Entraram por um corredor escuro e estreito.
- Quem se aproxima? - disseram várias vozes ao mesmo tempo. Havia vários homens armados por ali.
O judeu se adiantou:
- Somos nós, senhores, somos nós! O judeu Yankel!
Um homem gordo se aproximou.
- Está bem, entrem, mas não tirem o sabre da cintura e não se deitem no chão, ouviram?
Não puderam ouvir o final da ordem. Já estavam a caminho, percorrendo o corredor. Ao final dele, deram com uma sentinela.
- Somos nós, senhor. Somos nós! O conde alemão saberá recompensá-lo. Será possível passar agora?
- Passar aqui pode. - respondeu a sentinela. Mas não sei se conseguirão entrar na cadeia. Ian já entregou o seu posto.
O judeu puxou os cabelos:
- Meu grande Deus! Isso é mau, isso é muito mau!
Taras Bulba puxou-o pelo braço:
- Acompanhe-me!
O judeu obedeceu.
Percorreram outro corredor ao final do qual encontraram uma sentinela com um longo bigode dividido em três partes.
O judeu aproximou-se, cheio de mesuras:
- Grande senhor! Alto dignitário!
- É a mim que te diriges, judeu?
- Sim, lúcido senhor! Alto dignitário!
- Não passo de um simples soldado. - disse o bigodudo, mas revelando pela expressão que estava satisfeito com a forma como era tratado.
- Sério? Um simples soldado? Juro que pensei estar falando com o próprio vovoida! Alto dignitário, estou aqui com um conde alemão que veio visitar a gloriosa Varsóvia e tem a curiosidade de conhecer um cossaco.
Não era incomum chegarem a Varsóvia nobres estrangeiros decididos a conhecer aquela região que, embora fosse parte da Europa já tinha característica asiáticas. O soldado fez uma profunda reverência diante do suposto conde:
- Seja bem-vindo, nobre dignitário. Mas não sei porque se interessa por esses cossacos. São animais e professam uma religião sem nenhum valor.
- O que está dizendo, cão? Como ousa dizer que nossa fé não tem nenhum valor?
- Ah, já sei quem é você! É um desses cães, como os que temos encarcerados aqui dentro. Vou chamar reforços!
Yankel balançava a cabeça, fazendo mil reverências:
- Ai, ai, meu senhor. Lúcido dignitário. Não ofenda o conde alemão chamando-o de cossaco!
- Vou chamar reforços!
- Por favor, senhor, não grite! Será bem recompensado! Tome duas moedas de ouro.
- Só duas moedas? Isso não é nada! Passe para cá cem moedas antes que eu chame a guarda!
O judeu chorou um pouco, tentando baixar o valor, mas como o outro ameaçasse chamar reforços, ele cedeu e encheu as mãos do polonês de ouro.
- Muito bom. Agora sumam daqui antes que eu os prenda junto com os outros...
No caminho de volta, ele ia recriminando Taras Bulba:
- Se o senhor tivesse se contido... devia ter deixando que o insultasse. Esse tipo de pessoa não vive sem insultar os outros. Cem moedas de ouro! Que destino triste o do judeu... de meus irmãos arrancam os cabelos e batem na cara até desfigurar... e ainda somos obrigados a pagar para todos esses soldados! Que destino triste!
O próprio Taras não se perdoava pela sua impulsividade. Poderia ao menos ter trocado uma palavra com seu filho antes que ele morresse...
Mas uma idéia lhe veio à cabeça e ele foi à praça onde aconteceria a execução.
Não foi difícil encontrar o local, pois já se acumulava nela uma verdadeira multidão. É que naquela época de costumes bárbaros tais espetáculos eram a atração predileta não só do populacho, mas também dos nobres, inclusive das damas, que gritavam de horror e viravam o rosto, mas nem por um momento pensavam em abandonar o local. Havia ali açougueiros que assistiam a tudo com ar de entendidos. Alguns faziam comentários apaixonados elogiando a perícia do carrasco e outros até apostavam quanto tempo duraria o supliciado. Mas a grande maioria era composta de gente que enfiava o dedo no nariz e assistia indiferente a tudo que acontecia à sua volta.
Na primeira fila, misturado aos guardas, um garboso guerreiro com sua noiva, de quem não deixava que nenhuma alma se aproximasse por medo de lhe sujarem o vestido. Ele ia explicando tudo detalhadamente à jovem, que ouvia, embriagada de medo de admiração: "Está vendo, minha querida? Aquele é o carrasco e aqueles são os condenados. Se forem submetidos ao suplício da roda, ainda viverão um tempo, mas se o carrasco cortar suas cabeças com aquele machado que ele está mostrado, então eles não irão mais viver, pois não poderão comer ou beber ou mesmo soltar os gritos e gemidos que agora soltam".
Havia gente por todos os cantos: trepados nas árvores, nos telhados. Os senhores, bem instalados em seus camarotes, comentavam a execução enquanto servos lhes serviam sucos e guloseimas. Constantemente esses senhores se divertiam jogando bolos para a multidão faminta.
Então ouviu-se uma gritaria:
- Os cossacos! Estão trazendo os cossacos!
Eles caminhavam de cabeça coberta, as longas tranças caídas para o lado e a barba por fazer. Suas roupas estavam em farrapos. Apesar da situação, marchavam com altivez, tendo Ostap à frente. Este virou-se para o amigos e disse:
- Irmãos, que esses hereges não ouçam uma única reclamação de nós!
- Muito bem, meu filho. - pensou Bulba e seu coração se apertou de dor.
Ostap seria primeiro supliciado e foi levado até o carrasco, que a o atou à roda. Pequenos pedaços de madeira foram colocados em suas articulações e o carrasco levantou a marreta. O cossaco não emitiu um único gemido, nem mesmo quando começaram a ser quebrados os ossos dos braços e das pernas e as senhoras presentes tiveram que virar o rosto e tapar os ouvidos para não ouvir o som dos ossos sendo esmagados.
Quando chegou a hora do suplício final, ele perdeu as forças e olhou em volta. Nenhum rosto conhecido. Não que desejasse ver a face da mãe ou de uma esposa em desespero. Queria ouvir a voz de um guerreiro valente que lhe desse forças.
- Pai, o senhor está aí? Está me ouvindo?
- Estou ouvindo. - ressoou a resposta, fazendo tremer de medo a multidão.
Uma guarda dirigiu-se imediatamente para o local de onde saíra o grito, mas Bulba já tinha desaparecido.
Capítulo 12
Logo um exército de cem mil cossacos surgiu na fronteira da Polônia. Não era um simples expedição de saque, mas toda uma nação que se levantava contra aqueles que a tinham oprimido e pisado em seus direitos. Eram comandados pelo jovem e enérgico atamã Ostranitza.
Entre todos os regimentos, o melhor e mais valente era o comandado por Taras Bulba, que devotava um ódio mortal a todos os poloneses. Para eles, Bulba reservava apenas a forca e o fogo.
Até mesmo para seus companheiros cossacos, a selvagem de Bulba era desproporcional.
E assim os cossacos avançavam pela terra polonesa, espalhando terror e chamas por onde passavam. Por fim até mesmo o general Nikolai Potoski caiu diante da fúria cossaca e teria sido morto, não fosse a intervenção dos padres ortodoxos. Quando os padres, tendo seu bispo à frente e carregando consigo os ícones e as cruzes nas mãos, aproximaram-se do exército vencedor, aconteceu algo que nenhum exército ou rei poderia conseguir: os zaporojianos tiraram seus gorros e se inclinaram.
Os religiosos intermediaram um acordo e, assim, o atamã deixou que Pototski partisse sob a promessa de as igrejas ortodoxas seriam respeitadas e os exércitos cossacos retomariam seus antigos direitos. Um único coronel não concordou: Taras Bulba. Pegando sua faca ele rasgou o acordo ao meio e gritou:
- Atamãs! Coronéis! Não façam esse acordo de mulheres!
Vendo que era voto vencido, Bulba pegou um sabre e o quebrou, dizendo:
- Adeus, mas saibam que da mesma forma que os pedaços deste sabre jamais voltarão a ser uma só arma, também nós não voltaremos a lutar juntos. Mas ouçam: vocês ainda recordarão de mim na hora de sua morte, na hora em que serão traídos pelos polacos! A cabeça de cada um de vocês logo será exibida nas feiras. Ouçam minhas palavras. Os que não forem decapitados, serão assados vivos como carneiros... ou emparedados.
As palavras de Bulba seriam proféticas, pois logo depois o tratado seria quebrado e os líderes cossacos traídos.
Antes de ir embora, Bulba gritou para os zaporojianos:
- Quanto a vocês, aqueles que quiserem ser transformados em escravos, puxando as carroças dos padres poloneses que fiquem. Quem ainda for um verdadeiro cossaco, que venha comigo!
E muitos se juntaram a ele, dizendo:
- Iremos contigo, paizinho!
De fato, pouco depois do acordo, os poloneses exibiram as cabeças dos líderes rebeldes em espetos nas praças. Mas não havia entre elas uma: a de Taras Bulba.
Este assolava o interior da Polônia, espalhando morte e destruição por onde passava. Ele espetava as crianças polonesas, jogando-as no fogo junto com as mães, enquanto gritava:
- Isso é para que se lembrem de Ostap!
Mais de uma linda polonesa ardeu em chamas nos altares nas quais haviam se refugiado.
Finalmente, o governo de Varsóvia percebeu que não se tratava de simples banditismo e mandou o general Pototski, que dessa vez estava mais acostumado a guerrear contra os cossacos e acossou-os numa fortaleza na margem do Dniestr.
Os homens de Bulba resistiram com tiros, pedras e tijolos, mas finalmente acabou a munição e Taras decidiu abrir caminho entre as linhas inimigas numa ação arrojada.
Os poloneses não esperavam por isso e a aventura poderia até triunfar, não fosse a teimosia de Taras. No meio da corrida, ele voltou seu cavalo:
- Meu cachimbo caiu!
- Não, deixe o cachimbo! - gritaram os companheiros.
- Não vou deixar que ele caia na mão dos polacos!
E o velho atamã apeou de seu cavalo para pegar o cachimbo, no que foi derrubado por uma dezena de inimigos. Tentou se livrar deles agitando seus músculos poderosos, mas percebeu logo que já não tinha a força da juventude.
- Por fim pegamos o corvo! - gritaram os poloneses, dançando de alegria.
O que fazer agora? Que tipo de morte lenta e cruel ceifaria a vida do valoroso coronel? Os soldados consultaram Pototski e ficou combinado que ele seria queimado vivo.
Ali mesmo o amarraram a uma árvore morta no lugar mais alto, para que pudesse ser visto à distância.
Mas naquele momento, Bulba não pensava em si, mas nos seus fiéis homens, que ainda não estavam livres.
- Vão para a colina atrás do bosque! Estarão seguros lá!
Mas o vento levava suas palavras para longe.
- Estão perdidos! - gritou ele, e começou a chorar. Então seus olhos desceram para o rio e ele divisou quatro barcos na margem.
- Para o rio! Para o rio! - gritou. Fujam nos barcos!
Dessa vez as palavras chegaram a seu destino e os cossacos esporearam os cavalos para saltar no penhasco. Assim, lançaram-se no espaço com seus cavalos. Apenas dois deles não sobreviveram, tendo batido nos rochedos.
Os poloneses não tiveram coragem de segui-los e apenas observaram do alto enquanto os cossacos nadavam até a margem e se apoderavam dos barcos, sumindo em seguida pelo rio.
- Adeus, meus camaradas! - gritou Bulba, enquanto as chamas lambiam suas pernas. Voltem para fazer uma caminhada na primavera! Quanto a vocês, polacos, saibam que a fé russa é inquebrantável e que logo surgirá um czar nosso, que será invencível.
Enquanto isso, os cossacos navegavam rapidamente, mas pensando em todo momento em seu líder, cujo espírito viveria entre eles por muitos e muitos anos.
GIAN DANTON é professor da Universidade Federal do Amapá, jornalista, escritor e roteirista de quadrinhos. Visite seu blog: ivancarlo.blogspot.com
Nicolai Gógol
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