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TARZAN E O HOMEM LEÃO / Edgar Rice Burrougs
TARZAN E O HOMEM LEÃO / Edgar Rice Burrougs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TARZAN E O HOMEM LEÃO

 

Qual é o caminho mais rápido para África? Pode a civilização satisfazer plenamente o homem? Há homens para quem estas duas questões fazem sentido. Para Tarzan, por exemplo. Para muitos dos outros, nem por isso. A civilização é o seu meio; e o encontrarem-se num ambiente diferente ou adverso pode constituir uma fonte de dificuldades. Ou então, surgindo essas dificuldades, que força não se pode encontrar em cada um para as ultrapassar!

Desta vez, a selva vai ser palco para um filme. Mas não é fácil filmar um leão, verdadeiro, na sua actividade. Daí que seja preciso um outro ser que faça o seu papel. O problema é que a selva possui perigos: sejam feras, sejam outros homens, sejam outros seres... e, quando Tarzan também habita por tais paragens, as coisas podem ser bem diferentes...

 

                   Em conferência

O sr. Milton Smith, Vice-Presidente Executivo encarregado da Produção, estava em conferência. Meia dúzia de homens estavam confortavelmente instalados em cadeirões macios e grandes divãs, no seu amplo escritório, luxuosamente mobilado, nos estúdios da B. O. O sr. Smith tinha uma cómoda cadeira, por detrás de uma vasta secretária, mas raras vezes a ocupava. Era uma criatura imaginativa, dinâmica, espectacular. Precisava espaço e liberdade para se exprimir, e a grande cadeira era demasiado pequena. Assim, caminhava de um lado para o outro, de preferência a estar sentado; as suas mãos, tão fluentemente como a língua, interpretavam os seus pensamentos.

— Vai ser um êxito..-. — afirmava ele aos seus ouvintes. — Nada de selvas sintéticas, nada de efeitos sonoros fabricados, nada de velhos leões sem dentes que cada espectador de cinema conhece pelo nome. Nada disso. Isto vai ser real!

Uma secretária entrou e fechou a porta atrás dela.

— O sr. Orman está aqui... — disse ela.

— Óptimo! Peça-lhe para entrar, por favor... — o sr. Smith esfregou as palmas das mãos e voltou-se para os outros. — Pensar em Orman foi uma autêntica inspiração... — exclamou. — É o homem exacto para fazer o filme.

— Mais uma das suas inspirações, chefe... — disse um dos ouvintes. — Temos de reconhecer isso.

Outro, sentado perto do que havia falado, inclinou-se para ele.

— Pareceu-me que foi você quem falou em Orman, há dias... — sussurrou.

— Sim, fui... — volveu o primeiro, falando pelo canto da boca.

A porta voltou a abrir-se e a secretária deu passagem a um homem forte, bronzeado, que foi cumprimentado familiarmente por todos. Smith apertou-lhe a mão.

— É um prazer vê-lo, Tom... — disse ele. — Não o tinha encontrado desde o seu regresso de Bornéu. Belo trabalho que você fez por lá. Mas tenho uma coisa ainda melhor para si. Sabe do êxito que a Superlative Pictures conseguiu, com o seu último filme da selva?

— Não pude deixar de saber, não se fala noutra coisa. Suponho que toda a gente vai fazer filmes da selva.

— Sim, mas há selva e selva. Todas as cenas desse filme foram feitas num raio de vinte e cinco milhas de Hollywood, excepto algumas de animais em África. E os efeitos sonoros são maus... — Smith fez uma careta desdenhosa.

— E você vai filmar a cinquenta milhas de Hollywood, não?... — riu Orman.

— Nada disso. Vamos mandar uma companhia para o coração de África, mesmo para a... o... como se chama a tal floresta, Joe?

— Ituri.

— Exacto. Para a floresta de Ituri, com equipamento de som e tudo o mais. Pense nisso, Tom. A coisa a sério, os indígenas, os animais e os sons. Você filma uma girafa e capta a voz dela.

— Para isso não precisa muito equipamento, Milt.

— Porquê ?

— As girafas não emitem sons. Supõe-se que não tenham cordas vocais.

— Que importa? Isto é apenas para ilustrar a ideia. Mas os outros animais, leões, elefantes, tigres... Joe está a escrever uma sequência sobre tigres .e vai dar que falar.

— Não há tigres em áfrica, Milt... — explicou o realizador.

— Quem diz que não há ?

— Eu... — volveu Orman, sorrindo.

— Que diz você, Joe?... — Smith voltou-se para o cenarista.

— Bem, chefe, disse-me que queria uma sequência com tigres...

— Que importa isso? Faz uma com crocodilos!

— E você quer que eu realize o filme?... — perguntou Orman.

— Sim, e ficará famoso!

— Não sei, mas aceito. Nunca estive em África. É possível levar camiões de som para a África Central?

— Estamos exactamente reunidos para discutir o assunto... — disse Smith. — Convidei o major White. .-. creio que vocês não se conhecem. O sr. Orman, o major White... — Os dois homens apertaram-se as mãos e Smith continuou: — O major é um grande caçador, conhece a África como as suas mãos. Vai ser conselheiro técnico e irá a África com você.

— Que pensa, Major, de levarmos camiões de som para a floresta de Ituri?... — perguntou Orman.

— Quanto pesa isso? Duvido que possam deslocar qualquer coisa que pese mais de uma tonelada e meia.

— Ui!... — exclamou Clarence Noice, o director de som. — Os nossos carros pesam sete toneladas, e pensamos levar dois.

— Não pode ser... — declarou o major.

— E o camião-gerador?... — perguntou Noice. — Pesa nove toneladas!

— Realmente senhores, isso não é possível!... — exclamou o major, erguendo as mãos.

— Você pode fazê-lo, Tom ?... — perguntou Smith; e acrescentou, sem esperar a resposta: — Temos de o fazer!

— Com certeza que posso fazer... — volveu Orman — ...se você pagar as despesas.

— Óptimo!... — exclamou Smith. — Arrumado esse pormenor, quero falar-lhes do filme. Joe escreveu uma grande história, vai ser um êxito. O herói nasceu em África e foi criado por uma leoa. Vive com os leões e não conhece outros amigos. O leão é o rei dos animais, e quando o herói cresce torna-se rei dos leões, de maneira que é ele o chefe da bicharada toda. Estão a ver? O rei da selva.

— Isso tem um ar conhecido... — comentou Orman.

— E então aparece a rapariga, e a coisa cresce de interesse. Ela não conhece ninguém por ali, e está a tomar banho num lago da selva quando aparece o homem leão, que por sua vez nunca tinha visto uma mulher. Está a ver as possibilidades, Tom? O público vai perder a cabeça... — e Smith andava pela casa, representando a cena. Ele era o homem-leão e era a rapariga a tomar banho. — Magnífico, não é? Joe tem grandes ideias!

— Joe sempre foi original... — disse Orman. — Uma coisa... Quem vai fazer o papel do homem-leão, para andar com as feras ? Espero que tenha coragem.

— O melhor de todos, uma descoberta! Tem um físico que vai fazer desmaiar as pequenas.

— Elas e as avós... — acrescentou outro dos presentes.

— Quem é ele ?

— O campeão mundial da maratona.

— Maratona de dança?

— Não, maratona de corrida.

— Se eu desempenhasse esse papel, antes queria ser um corredor de velocidade que de fundo. Como se chama ele?

— Stanley Obroski.

— Stanley Obroski? Nunca ouvi falar.

— É famoso, mesmo assim. Espere até que o vejo. Tem tudo o que é preciso, sem dúvidas.

— Sabe representar?... — perguntou Orman.

— Não precisa representar. É magnífico, todo nu. Eu mostro-lhe os testes que fizemos.

— Quem mais está no elenco?

— Madison, no papel da rapariga, e...

— Hum! Naomi é muito quente, a 34 graus de latitude norte. Deve derreter, no Equador.

— E Gordon Z, Marcus faz o papel de pai dela, um negociante branco...

— Parece-lhe que Marcus aguenta? Ele está a fazer-se velho.

— Oh! Está desejoso de ir. O major White faz o papel de um caçador branco.

— Receio bem... — disse o major — ...que como actor eu seja um bom caçador...

— Basta ser natural, mais nada. Não se preocupe.

— Deixe que o realizador se preocupe... — disse o cenarista. — Pagam-lhe para isso.

— E para escrever de novo a história... — retorquiu Orman. — Mas voltemos a Naomi, Milt. Ela serve para cenas de café-concerto e filmes de juventude excitante, mas para andar com leões e elefantes...

— Rhonda Terry vai também, para dupla de Naomi.

— Excelente. Rhonda é capaz de morder num leão, se o realizador mandar, E parece-se imenso, de facto, com Naomi Madison...

— O que é lisonjeiro para Madison, se mo perguntam... — disse o cenarista.

— Ninguém perguntou... — ripostou Smith.

— Por outro lado, se mo perguntarem... — continuou Joe — ...Rhonda representa cem vezes melhor que Naomi. Como esses canastrões chegam aonde chegam, é coisa que não entendo.

— E você trabalha em estúdios há dez anos, não?..-. — riu Orman. — Deve ser curto de entendimento.

— Não seria autor da história, se não o fosse... — comentou um terceiro.

— Bem... — continuou Orman — .. .quem mais vai comigo? Quem é o principal operador?

— Bill West.

— Excelente.

— Com o pessoal, actores e condutores, serão entre trinta e cinco e quarenta brancos. Além do camião-gerador e dos dois camiões de som, levarão vinte camiões de cinco toneladas e cinco carros de passageiros. Estamos a escolher técnicos e mecânicos que também saibam conduzir camiões, para reduzir o número de pessoas, na medida do possível. Tenho pena que você não estivesse aqui para escolher os seus colaboradores, mas havia pressa. Está tudo contratado, menos um assistente de realização. Pode levar quem quiser.

— Quando partimos?

— Dentro de dez dias.

— É uma grande vida... — suspirou Orman. — Seis meses em Bornéu, dez dias em Hollywood e mais seis meses em África. Vocês mal dão tempo para fazer a barba entre duas viagens.

— Entre duas bebidas?... — perguntou Joe.

— Não há intervalo entre bebidas, na vida do jovem Tom... — comentou outro.

 

                   Lama

O xeque Ab el-Ghrennem, e os seus robustos e morenos companheiros, estavam imóveis sobre os seus cavalos, observando os doidos Nascvra que suavam e praguejavam incitando duzentos negros no esforço de arrastar um camião-gerador de nove toneladas, através do fundo lamacento de uma torrente.

Perto dali, Jerrold Baine encostava-se à porta de um carro sujo de lama, a conversar com as duas raparigas que se sentavam no banco traseiro.

— Como se sente, Naomi?... — perguntou ele.

— Mal.

— Outra vez as febres?

— Não deixei de as ter desde que saímos de Jinja. Só queria estar em Hollywood. Vou morrer aqui.

— Bolas! Você tem é medo. Não lhe acontece nada.

— Ela teve um sonho, esta noite... — disse a outra rapariga. — Naomi acredita em sonhos.

— Cale-se... — resmungou Naomi.

— Você parece em forma, Rhonda... — comentou Blaine.

— Acho que tenho sorte... — volveu Rhonda.

— Pois toque em madeira... — disse Naomi Madison, acrescentando: — Rhonda é apenas físico e mais nada. Ninguém sabe o que as artistas sofrem, com as nossas tensões, os nossos complexos, os nossos nervos.

— Antes uma vaca satisfeita do que uma artista desgraçada... — disse Rhonda, a rir.

— Além disso... — gemeu Naomi — ...Rhonda tem todas as oportunidades. Ontem filmaram a primeira cena em que eu apareço, e onde estava eu? Deitada, com um ataque de febre, e Rhonda fez o papel, mesmo nos grandes planos.

— É excelente que vocês se pareçam tanto... — disse Blaine. — Conhecendo-as como as conheço, custa-me a distingui-las uma da outra.

— O mal é esse... — resmungou Naomi. — As pessoas vêem-na, a ela, e julgam que sou eu.

— Que mal faz ?... — perguntou Rhonda. — As honras são para você.

— As honras!... — exclamou Naomi. — É a ruína da minha reputação! Você é tão pequena e tudo o mais, Rhonda, mas lembre-se de que eu sou Naomi Madison. O meu público espera uma interpretação soberba. Ficarão desapontadas e censurar-me-ão.

Rhonda riu-se, de boa vontade, e disse:

—      Farei o melhor possível para não arruinar a sua reputação, Naomi.

— Oh, a culpa não é sua..-. — volveu a outra. — Não a censuro. As pessoas nascem com a chama divina, ou não. Você não tem mais culpa de não saber representar, do que aquele xeque de não ter nascido branco.

— Esse xeque foi uma grande desilusão... — exclamou Rhonda.

— Como?... — perguntou Baine.

— Quando eu era pequena vi Rudolph Valentino, numa fita... Nesses tempos é que os xeques eram xeques.

— Sim, esse pássaro não se parece com Rudy Valentino... — concordou Baine.

— Imagine só ser levada para o deserto por esse monte de barbas e de porcaria! Eu, eu, que estou à espera, há uma data de anos, de ser levada...

— Eu falo com Bill a esse respeito... — disse Baine.

— Bill é um grande operador de cinema, mas não é xeque... — disse a jovem. — É tão romântico como a sua máquina.

— É um excelente rapaz... — insistiu Baine.

— Claro que é e gosto muito dele. Daria um bom irmão.

— Quanto tempo vamos ter de esperar aqui?... — perguntou Naomi, irritada.

— Até que o camião-gerador, e mais vinte e dois outros camiões, saiam daquele buraco de lama.

— Não vejo razão para ficarmos à espera, a lutar contra os insectos.

— Mais vale lutarmos contra eles do que contra inimigos piores... — disse Rhonda.

— Orman receia dividir o «safari»... — explicou Baine. — A região é perigosa, avisaram-nos de que não convinha vir para aqui. Os indígenas nunca foram totalmente dominados, e alguns andam em acção.

Ficaram calados durante algum tempo, sacudindo os mosquitos e vendo um camião que saía vagarosamente da lama. Os cavalos dos árabes agitavam as caudas, para sacudir os insectos.

O xeque Ab el-Ghrennem falou para um cavaleiro que estava a seu lado, um tipo de pele escura e olhos ferozes:

— Qual das raparigas, Atewy, é a que tem o segredo do vale dos diamantes?...

— Por Alá!... — resmungou Atewy, cuspindo para o chão. — Elas são iguais, não sei bem qual é.

— Mas uma delas tinha o papel? Tens a certeza?

— Sim. o branco velho, que é pai de uma delas, é que o tinha, mas a filha tirou-lho. O homem que está encostado àquela invenção do diabo, a falar com elas... queria matar o velho para lhe roubar o papel. Mas a rapariga, a filha, soube disso e ficou ela com o papel, que o velho e o rapaz julgam estar perdido.

— Mas a rapariga está a falar com o que queria matar o pai dela... — disse o xeque. Parecem amigos... Não entendo esses cães cristãos...

— Nem eu... — reconheceu Atewy. — São todos malucos. Berram e lutam, e no mesmo instante sentam-se e ficam a conversar e a rir. Fazem coisas

Em grande segredo... quando toda a gente está a olhar para eles. Eu vi a rapariga tirar o papel na altura em que o rapaz estava a olhar para ela, e no entanto ele parece não ter visto nada. Foi depois disso que o rapaz procurou o velho e quis ver o papel, mas o velho procurou por toda a parte e não encontrou. Disse que devia estar perdido, e ficou muito desgostoso.

— Tudo isso é muito estranho... — murmurou o xeque. — Tens a certeza de que entendes a maldita linguagem deles, e sabes bem o que dizem?

— Não trabalhei durante mais de um ano com o velho nazareno maluco, que cavava nas areias de Kheybarl Esse, quando achava um tacho partido, ficava contente para o dia todo. Foi aí que eu aprendi o inglês.

— Por Alá... — suspirou o xeque. — Deve ser um grande tesouro, maior do que os de Howwara e Geryeh, juntos, senão não tinham trazido tantos carros para o levar... — e o xeque olhou para os camiões que ainda estavam na outra margem do ribeiro lamacento.

— Quando devemos agarrar a rapariga que tem o papel?... — perguntou Atewy, depois de um curto silêncio.

— Esperemos a altura boa... — volveu o xeque. — Não há pressa, visto que nos levam para onde está o tesouro e dão boa comida. Os nazarenos são tolos. Pensam enganar os beduínos com as suas fotografias, como enganaram os ingleses, mas nós somos mais inteligentes, sabemos que as fotografias são um disfarce para esconder o verdadeiro propósito deles.

Suado, coberto de lama, Thomas Orman estava perto da fila de nativos que puxavam um pesado camião. Numa das mãos empunhava um comprido chicote. Ao lado dele estava um carregador, mas em vez de rifles tinha nas mãos uma garrafa de «whisky».

Por natureza, Orman não era cruel, como chefe. Habitualmente, tanto as suas inclinações como o seu raciocínio o teriam impedido de usar o chicote. Mas o silêncio sombrio dos nativos, que devia incitá-lo a ser cauteloso, irritava-o ainda mais.

Tinha partido de Hollywood três meses antes, e estava atrasado quase dois meses em relação ao horário previsto, além do que, segundo todas as probabilidades, teria de perder ainda mais um mês antes de chegar ao local onde se passaria quase toda a acção do filme. A primeira actriz tinha um acesso de febre que facilmente poderia evoluir e impedi-la de desempenhar a sua parte. Ele próprio já tinha adoecido por duas vezes, com as febres, e os efeitos da doença reflectiam-se na sua disposição. Parecia-lhe que tudo corria mal, que tudo conspirava contra ele. E agora aqueles malditos selvagens, como ele os considerava, não andavam para diante.

— Para a frente, malditos lesmas!... — berrou, lançando uma chicotada que apanhou os ombros de um negro.

Um homem novo, de calções e camisa de caqui, fez uma careta de repugnância e afastou-se, dirigindo-se para o carro junto do qual Baine falava com as duas raparigas. Parou à sombra de uma árvore, tirou o chapéu, enxugou o suor da fita interior e logo o da própria testa, e depois encaminhou-se para o automóvel. Baine afastou-se para lhe dar lugar a seu lado, comentando:

— Você parece irritado, Bill.

— Orman está maluco... — disse o recém-chegado. — Se ele não pára de beber e não larga o chicote, temos complicações das grandes.

— Isso sente-se no ar... — disse Rhonda. — Os homens já não riem nem cantam, como ao princípio.

— Vi Kwamudi olhar para ele, há momentos... — continuou West. — Havia ódio nos olhos dele, e alguma coisa ainda pior.

— Ora... — volveu Baine. — Esses tipos precisam ser tratados com dureza, e quanto a Kwamudi, Tom pode mandá-lo para o diabo e nomear outro capataz.

— O tempo da escravatura já passou, Baine, e os indígenas sabem isso. Orman arranjará muitas complicações se os indígenas se queixarem, e não se engane a respeito de Kwamudi. Não é um capataz vulgar. É um grande chefe na sua região, e a maioria dos negros que temos pertence à tribo dele. Se ele lhes disser para nos largarem, eles largam-nos, não esqueça isso. E ficaríamos em boas condições, se o fizessem.

— Que podemos nós fazer? Tom não perguntou a nossa opinião, que eu desse por isso.

— Você pode fazer alguma coisa... — disse West, voltando-se para a rapariga.

— Eu ? Que posso eu fazer ?

— Tom gosta de você, escutá-la-ia.

— O funeral é dele. Eu tenho as minhas próprias complicações.

— Bah!... — disse a jovem. — Tudo quanto quero é sair daqui. Por quanto tempo vou ainda ficar a enxotar mosquitos? Onde está Stanley? Não o vi ainda, hoje.

— O Homem-Leão deve estar a dormir no automóvel... — sugeriu Baine. — Sabem como o velho Marcus lhe chama?

— Como ?... — perguntou Naomi.

— A Doença Adormecida.

— Vocês embirram com Stanley... — volveu Naomi — ... porque ele começa a sua carreira num papel principal, enquanto vocês andam nisto há anos e não passam de pequenos papéis. O sr. Obroski é um verdadeiro artista.

— Olhem, vamos seguir... — exclamou Rhonda. — Já deram o sinal.

Por fim, a longa caravana de carros ia continuar o caminho. Nos carros da frente iam os guardas negros armados, os askaris, e outro destacamento fechava a marcha. Alguns dos trabalhadores iam nos estribos dos camiões, mas na maioria caminhavam a pé, atrás do último carro. Pat O'Grady, assistente do realizador, tomava conta deles.

O'Grady não usava chicote. Assobiava uma quantidade de vezes, sempre no mesmo tom; incitava os homens sem piedade, ignorando o facto de que eles não entendiam nada do que ele dizia. Mas os homens reagiam às suas palavras e ao seu sorriso, e a tensão diminuía um tanto. O silêncio sombrio foi quebrado por conversas, mas no entanto não riam nem cantavam.

— Seria melhor... — comentou o major White, que seguia ao lado de O'Grady — ...que fosse você a dirigir esta gente, sempre. Orman não é capaz, por temperamento, de lidar com eles.

— Que se pode fazer?... — disse O'Grady, encolhendo os ombros.

— Ele não quer ouvir-me, ressente-se de qualquer observação que eu lhe faça. Era melhor que tivesse ficado em Hollywood.

— Não sei que bicho mordeu a Tom. É um excelente tipo, habitualmente, e nunca o tinha visto assim... — disse O'Grady, abanando a cabeça.

— Para começar, uma das coisas que ele tem é «whisky» a mais... — comentou o major.

— Creio que é a febre e também as preocupações... — respondeu O'Grady, que era leal para com o seu chefe.

— Seja o que for, estaremos em maus lençóis se ele não mudar... — pressagiou o inglês, com um ar sério e preocupado.

— Talvez você tenha... — começou a responder O'Grady, logo interrompido por um tiroteio que parecia vir da frente da coluna.

— Deus! Que é isto agora?... — exclamou White, correndo na direcção do som.

 

                   Flechas envenenadas

Os ouvidos do homem são pouco sensíveis. Mesmo em terreno aberto não registam o som de um tiro a grande distância. Mas os ouvidos das feras caçadoras não são como os dos homens, e por isso ouviram, a grande distância, os tiros que haviam sobressaltado O'Grady e White. Muitas dessas feras apressaram-se a afastar-se ainda mais.

Não aconteceu isso a duas que estavam à sombra de uma árvore. Uma era um grande leão de pêlo doirado e juba negra; a outra era um homem. Estava deitado de costas, junto do leão que, deitado também, poisava uma das grandes patas sobre o peito dele.

— Tarmangani... — murmurou o homem. O leão rosnou surdamente.

— Tenho de ver o que há... — disse ainda o homem. — Talvez amanhã, ou esta noite.

Voltou a fechar os olhos e retomou o sono que os tiros haviam interrompido. O leão bocejou, piscou os olhos amarelo-esverdeados, estendeu a cabeça e readormeceu também.

Perto deles estava a carcaça, parcialmente devorada, de uma zebra que tinham abatido de madrugada. Nem Ungo, o chacal, nem Dango, a hiena, tinham ainda farejado o festim; o silêncio só era quebrado pelo zumbir dos insectos ou pelo grito ocasional de uma ave.

Antes que o major White alcançasse a cabeça da coluna, o tiroteio cessou. Quando chegou, viu os «askaris» e os brancos abrigados com as árvores, sondando a floresta, as armas prontas. Dois soldados negros estavam estendidos no chão, os corpos atravessados por flechas. Agitavam-se ainda, nas últimas convulsões da morte. Naomi estava dobrada ao meio, escondida no fundo do carro. Rhonda estava de pé e empunhava uma pistola.

White correu para Orman, que de rifle em punho sondava a floresta.

— Que aconteceu, sr. Orman?

— Uma emboscada... — volveu Orman. — Os malditos dispararam uma chuva de flechas e fugiram. Mal os vimos.

— Os Bansutos... — disse White.

— Creio que sim... — respondeu Orman, com um aceno. — Julgam poder assustar-me com umas quantas flechas, mas eu ensinarei esses ratos.

— Foi só um aviso, Orman. Não nos querem aqui.

— Não me interessa o que eles querem. Vou continuar, não cedo a «bluffs».

— Não se esqueça, sr. Orman, de que tem consigo uma quantidade de gente por cujas vidas é responsável, incluindo duas mulheres brancas, e de que foi avisado para não entrar no território dos Bansutos.

— Hei-de fazer passar a minha gente. A responsabilidade é minha, não sua... — o tom de Orman era sombrio, a sua atitude era a de um homem que sabe não ter razão mas que por teimosia não quer ceder.

— Cabe-me uma parte da responsabilidade... — volveu White. — Como sabe, vim na qualidade de conselheiro.

— Pedir-lhe-ei conselhos quando precisar.

— Precisa agora. Não conhece nada desta gente, nem do que eles são capazes.

— O facto de nos terem encontrado prontos e de termos disparado logo que atacaram, serviu-lhes de lição. Não voltarão a incomodar-nos... Pode estar certo disso... — retorquiu Orman.

— Gostaria de estar certo disso, mas não posso. Voltaremos a encontrá-los. O que viu foi apenas uma amostra da sua táctica de guerra, habitual. Nunca atacam em força, nem em terreno aberto. Irão abatendo dois ou três dos nossos, sem se mostrarem, de cada uma das vezes.

— Se tem medo pode voltar para trás... — ripostou Orman. — Dar-lhe-ei carregadores e um guarda.

— Ficarei, evidentemente... — disse White, sorrindo... — encolheu os ombros e voltou-se para Rhonda Terry que, um tanto pálida, continuava de pé e empunhando a pistola. — É melhor ficar dentro do carro, «miss» Terry... — disse ele. — Estará protegida contra as flechas. Não devia ter-se exposto assim.

— Não pude deixar de ouvir o que disse a Orman... — respondeu a jovem. — Pensa realmente que continuarão a atacar-nos assim?

— Receio que assim seja, é a maneira como eles lutam. Não quero assustá-la, mas é preciso ter cuidado.

Rhonda olhou para os dois corpos que tinham ficado na grotesca e sinistra posição em que a morte os deixara. Murmurou, estremecendo:

— Nunca pensei que as flechas pudessem matar tão depressa...

— Flechas envenenadas.

— Envenenadas!... — exclamou a jovem, com uma expressão de terror.

— Creio que «miss» Naomi desmaiou... — disse White, olhando para dentro do carro.

— Era de esperar... — murmurou Rhonda. Juntos, içaram-na para o banco, e Rhonda aplicou-lhe o tratamento indicado. Entretanto Orman organizava uma guarda avançada mais forte, e dava ordens aos brancos reunidos à sua volta.

— Tenham os rifles ao alcance das mãos, a cada instante. Tentarei pôr mais um guarda armado em cada camião. Estejam atentos, e ao primeiro sinal suspeito, disparem. Bill, você e Baines vão com as raparigas. Irá um «askari» no estribo, de cada lado do carro.

Clarence, vá à retaguarda da coluna e informe Pat do que aconteceu, Diga-lhe para fortalecer a guarda do seu lado, e fique com ele para o

« — Major White, peço-lhe que avise o velho el-Ghrennem, a fim de mandar metade de sua gente para a retaguarda, e a outra metade para aqui. Podem servir para transmitir mensagens entre os dois extremos da coluna.

« — Sr. Marcus... — continuou Orman, dirigindo-se ao velho actor — ...você e Obroski seguirão a meio da coluna... — interrompeu-se e olhou em volta. — Onde está Obroski?... — perguntou.

Ninguém o tinha visto, desde o ataque. Marcus informou, com um ligeiro sorriso:

— Estava no carro, quando o deixei... Talvez tenha adormecido novamente.

Um rapaz novo, alto, de belas feições, cabelos negros, aproximava-se agora. Trazia um rifle, e um revólver de seis tiros, num cinturão. Quando viu que olhavam para ele, pôs-se a correr na direcção do grupo.

— Onde estão eles?... — perguntou. — Para onde foram?

— Onde esteve você?... — perguntou Orman.

— -Tenho andado em busca deles, pensei que tivessem voltado aqui...

Bill West olhou para Gordon Z. Marcus e piscou um olho. A coluna recomeçou a avançar. Orman ia com a guarda avançada, no posto mais perigoso; e White ia ao lado dele.

Como uma enorme serpente, o safari internava-se pela floresta; o ruído das molas e dos pneus, o barulho abafado dos tubos de escape, era tudo o que se ouvia. Havia um silêncio de tensa expectativa. Por várias vezes tiveram de parar, enquanto grupos de nativos, com facas e machados, abriam passagem para os camiões. O avanço era lento, monótono, cansativo, através das sombras da floresta primitiva. Por fim alcançaram um rio.

— Acampamos aqui... — disse Orman.

White concordou, com um aceno de cabeça. Era ele quem tinha o encargo de estabelecer e levantar os acampamentos. Em voz calma dirigiu o movimento dos carros que se alinharam lentamente na pequena clareira ao longo da margem.

Enquanto ele estava assim ocupado, os que tinham nos carros, como passageiros, apearam-se e puseram-se a caminhar para desentorpecer as pernas. Orman sentou-se no estribo de um carro e bebeu um gole de «whisky». Naomi sentou-se ao lado dele e acendeu um cigarro. Olhava com expressão de susto para a floresta e, através do rio, para o arvoredo da outra margem, que parecia ainda mais espesso e misterioso.

— Só queria estar fora daqui, Tom... — disse ela. — Vamo-nos embora, antes de morrermos todos.

— Não foi para isso que me mandaram cá. Vim para fazer um filme e hei de fazê-lo, aconteça o que acontecer.

Ela aproximou-se mais, encostando-se a ele.

— Oh, Tom! Se gostasses de mim levavas-me daqui para fora. Tenho medo, sei que vou morrer. Se não for a febre, serão essas flechas envenenadas.

— Vai dizer essas coisas ao teu Homem-Leão...

— resmungou Orman, voltando a beber «whisky».

— Não sejas mau, Tom. Sabes que não me interesso por ele. Não há ninguém senão tu.

— Sim, eu sei... a não ser quando julgas que eu não estou a ver. Julgas que sou cego?

— Talvez não sejas cego, mas és um idiota...

— respondeu ela, irritada. — Eu...

Um tiro, vindo da retaguarda da coluna, fê-la calar-se de repente. Depois soou outro tiro, e outro, e logo uma rajada.

Orman levantou-se de um salto. Alguns homens começaram a correr para o ponto de onde tinham vindo as detonações. Orman chamou-os.

— Para aqui... — gritou. — Podem atacar também deste lado, se são os mesmos. Major White! Diga ao xeque para mandar um dos seus cavaleiros, depressa, para saber o que se passa.

Naomi Madison desmaiou. Ninguém lhe prestou atenção e deixaram-na ficar onde tinha caído. Os «askaris» e os brancos, de rifles em punho, esperavam, tensos, sondando a floresta em volta.

O tiroteio cessou tão bruscamente como tinha principiado. O silêncio parecia palpável. Foi quebrado por um grito agudo, horrível, que vinha da margem oposta do rio.

— Deus!... — exclamou Baine. — Que foi isto ?

— Acho que os patifes estão apenas a querer assustar-nos... — disse White.

— Pelo que me diz respeito conseguiram-no sem a menor dúvida... — declarou Marcus. — Se alguém pudesse rejuvenescer sete anos com um susto, eu não tardaria a voltar à infância.

Bill West passou um braço protector pelos ombros de Rhonda.

— Estenda-se e meta-se debaixo do carro... — disse ele. — Aí não poderá ser atingida pelas flechas.

— Mas ficarei com os olhos cheios de óleo. Não, obrigada.

— Aí volta o homem do xeque... — disse Baine. — Vem alguém à garupa do cavalo dele. É um branco.

— É Clarence... — disse West.

Quando o árabe deteve a montada, Clarence Noice desmontou, diante de Orman.

— O que foi?... — perguntou o realizador.

— O mesmo que aconteceu há bocado aqui à frente... — respondeu Noice. — Uma chuva de flechas, sem qualquer aviso, e dois homens mortos. Disparámos, mas sem ver quem quer que fosse. É estranho. Os carregadores estão apavorados, tremem tanto que até batem com os dentes uns nos outros.

— Pat está a trazer o resto do «safari» para o acampamento?

— Não é preciso apressar ninguém... — volveu Noice. — Vêm tão depressa que são capazes de passar sem nos ver.

Ouviram outro grito, tão próximo que até o fleumático White deu um salto. Todos se voltaram, com os rifles prontos.

Naomi Madison tinha-se sentado. Tinha um olhar desvairado, os cabelos desgrenhados. Voltou a gritar e desmaiou outra vez.

— Cala-te!... — bradou Orman, furioso, mas ela não o ouviu.

— Se armassem a tenda dela eu ia deitá-la...

— sugeriu Rhonda.

O resto dos carros, cavaleiros e homens a pé aglomeravam-se na clareira. Ninguém queria ficar para trás, na floresta. A confusão era geral. O major White, ajudado por Bill West, tentavam restabelecer a ordem no caos. Pat O'Grady apareceu, para ajudar. Finalmente estabeleceram o acampamento. Brancos, negros e cavalos ficaram todos juntos, mas os negros de um lado e os brancos do outro.

— Se o vento muda... — comentou Rhonda Terry

— .. .estamos perdidos com o cheiro.

— Que sarilho... — resmungou Baine. — E eu a pensar que isto seria uma boa época de trabalho. Tive tanto receio de não ficar com o papel, que até ia adoecendo.

— E agora adoece porque o teve.

— Pode dizer que sim.

— Vai ficar ainda mais doente antes de sairmos das terras dos Bansutos... — lembrou Bill West.

— Também me parece.

— Como está Naomi, Rhonda?... — perguntou West.

— Se não estivesse tão assustada, não estaria mal...

— volveu Rhonda, com um encolher de ombros. — A febre quase passou... mas ela continua a tremer de medo.

— Você é maravilhosa, Rhonda. Parece não ter medo de nada.

— Bem, até depois..-. — disse Baine, encaminhan-do-se para a sua tenda.

— Medo!... — exclamou Rhonda. — Mas eu não sabia o que era medo antes de vir para aqui! Estou toda arrepiada por dentro.

— Corajosa pequena... — disse West, abanando a cabeça. — Ninguém diria que tem medo. Não o mostra.

— Talvez tenha bastantes miolos para saber que não ganharia nada com isso. Veja Naomi, nem sequer consegue simpatias...

— Essa é uma... — e West hesitou, como em busca da palavra adequada.

— Não diga... — atalhou a rapariga, pondo-lhe um dedo nos lábios e abanando a cabeça. — Ela não pode impedir-se de ser assim, Faz-me pena, realmente.

— Você continua a ser maravilhosa... e Naomi trata-a como lixo. Não entendo como pode ter pena dela. Com os seus ares protectores que me dão volta aos nervos! A grande artista! Você representa cem vezes melhor, e é cem vezes mais bonita!

— Por isso é ela a estrela e eu a dupla. Deixe-se de gracejos... — volveu Rhonda, rindo.

— Não estou a gracejar. Todos dizem o mesmo. Você dominou as cenas que foram filmadas enquanto Naomi esteve com as febres. Mesmo Orman sabe isso, e gosta dela.

— E você diz essas coisas porque não gosta dela.

— Naomi não significa nada para mim, nem de uma forma nem de outra. Mas eu gosto de você, Rhonda. Gosto muito. Oh! Bem sabe o que eu quero dizer.

— Que vem a ser isso, Bill? Uma declaração?

— É o que estou a tentar fazer.

— Como apaixonado, você é um grande operador de cinema... e mais vale ficar com a sua «câmara». Este não é o cenário ideal para uma cena de amor, e surpreende-me que um homem como você não note isso. Nunca filmou uma cena de amor num cenário destes.

— Mas filmo-a agora, Rhonda. Eu amo-a e...

— Corte!... — disse ela, rindo.

 

                   Dissenção

Kwamudi, o capataz negro, estava diante de Orman.

— A minha gente vai-se embora... — disse ele.

— Não fica no território dos Bansutos, para morrer.

— Não podem ir-se embora... — retorquiu Orman.

— Contrataram-se para toda a viagem. Diga-lhes para ficarem, ou, pelo inferno, eu...

— Não nos contratámos para vir para a região dos Bansutos, nem para morrer. Voltamos para trás, e nós vamos. Se ficar, nós deixamo-los. De manhã vamo-nos embora... — e Kwamudi deu meia volta e começou a afastar-se.

Orman voltou-se para apanhar o chicote, furioso, gritando:

— Eu te ensinarei, negro dos...

— Basta!... — disse White, agarrando-o e falando em voz baixa mas firme. — Não pode fazer isso!

Não interferi antes, mas agora tem de me escutar. Estão em jogo as vidas de todos nós!

— Não se meta nisto, velho idiota!... — berrou Orman. — Quem dá ordens sou eu e...

— É melhor ir molhar a cabeça, Tom... — interveio O'Grady. — Está cheio de «whisky». O major tem razão. Estamos metidos num sarilho, e não é com «whisky» que podemos sair dele... — voltou-se para White e acrescentou: — Tome conta disto, Major, e não dê importância a Tom. Ele está bêbedo. Amanhã lamentará o caso... se estiver sóbrio. Nós todos o apoiaremos, Major. Livre-nos desta situação, se puder. Quanto tempo levaremos para sair da região dos Bansutos, continuando para diante?

Orman parecia aturdido, com a atitude do seu assistente. Ficou sem fala.

— Se não formos muito demorados pelos carros, poderemos estar fora da região em dois dias... — disse White, depois de reflectir.

— E quanto tempo levaríamos para alcançar o nosso destino dando a volta à região dos Bansutos?... — perguntou O'Grady.

— Não menos de duas semanas... — volveu o major. — E com sorte. Teremos de voltar para trás e atravessar terreno difícil.

— O estúdio já pôs muito dinheiro nisto... — comentou O'Grady — .. .e pouco trabalho podemos mostrar. Gostaríamos de chegar o mais depressa possível. Parece-lhe que poderá convencer Kwamudi a continuar? Se voltarmos para trás, teremos essa gente a atormentar-nos durante mais um dia, pelo menos.

Se avançarmos, serão dois dias. Ofereça mais dinheiro a Kwamudi, será mais barato do que perder duas semanas.

— O sr. Orman autorizará o bónus?... — perguntou White.

— Ele fará o que eu disser, ou dou-lhe uma sova... — afirmou O'Grady.

Orman tinha-se deixado cair sobre a cadeira de campanha. Não falou.

— Muito bem... — volveu White. — Verei o que posso fazer. Falarei com Kwamudi na minha tenda, se quiser mandar alguém para o chamar.

White encaminhou-se para a sua tenda, e Pat mandou um negro chamar o capataz. Depois voltou-se para Tom Orman.

— Vá-se deitar, Tom... — ordenou — ... e coza essa bebedeira.

Sem uma palavra, Orman entrou na sua tenda.

— Você meteu-o na ordem, Pat... — comentou Noice, sorrindo. — Como vai sair da situação ?

O'Grady não respondeu. Olhava para o acampamento, e o seu sorriso habitual tinha desaparecido. Notava um ambiente de tensão, de constrangimento, como se todos estivessem à espera de qualquer coisa. Viu o seu mensageiro falar com Kwamudi, e este encaminhar-se para a tenda de White. Viu os indígenas acenderem as suas pequenas fogueiras, para cozinharem a ceia. Quando falavam, era em voz baixa.

Os árabes estavam sentados em frente da tenda do xeque. Sombrios. Embora o seu aspecto fosse quase sempre esse, O'Grady pressentia uma diferença.

Mesmo os brancos falavam em voz mais baixa do que habitualmente, e todos olhavam repetidas vezes para a floresta em redor.

Kwamudi saiu da tenda de White, para ir juntar-se aos seus companheiros. O'Grady dirigiu-se ao major, que tinha ficado sentado a fumar o seu velho cachimbo:

— Então?

— O bónus deu resultado... — volveu White. — Continuam, mas com uma condição.

— Qual?

— Os homens não voltarão a ser chicoteados.

— É justo... — disse O'Grady.

— Mas como vai você evitar isso?

— Para começar, deitarei fora o chicote. Depois direi a Orman que, se ele voltar à mesma, todos o largaremos. Não o entendo, nunca o vi assim, antes, e tenho trabalhado bastante com ele, durante os últimos cinco anos.

— Bebe demasiado... Isso dá cabo dele.

— Ficará bem quando chegarmos ao nosso destino e começarmos a trabalhar. Tem tido muitas preocupações. Quando sairmos desta região, tudo irá a direito.

— Ainda não saímos, Pat. Esses tipos hão-de matar mais gente amanhã, e outros no dia seguinte. Não sei se os nativos aguentarão. Isto está feio. Talvez fosse melhor perder duas semanas do que perder tudo... o que acontecerá se os negros nos deixarem. Bem sabe que, sem eles, não poderemos deslocar-nos nesta região.

— Havemos de chegar ao fim... — disse O'Grady. — Sempre chegamos. Bem, vou tentar dormir. Boa noite, Major.

O breve crepúsculo equatorial passara, e a noite tinha descido bruscamente. Todo o universo parecia uma grande sombra onde apenas viviam as pequenas fogueiras dos negros. Não havia luar, e apenas as estrelas brilhavam no céu, frias e distantes.

Obroski parou junto da tenda das duas raparigas, e raspou a lona, com as unhas. A voz de Naomi disse, de dentro:

— Quem é?

— Sou eu, Stanley.

Ela disse-lhe para entrar. Estava estendida na cama de campanha, sob uma rede, e tinha uma lanterna acesa, em cima de uma caixa.

— Bem... — disse, irritada — ...é milagre vir alguém. Podia morrer para aqui, sem se importarem.

— Eu teria vindo mais cedo, mas pensei que Orman aqui estivesse.

— Deve estar na tenda dele, a cozer o álcool.

— Sim, está. Quando vi isso, vim logo.

— Não pensei que você tivesse medo dele... ou fosse do que fosse... — disse Naomi, olhando o esplêndido físico do homem.

— Eu, medo desse tipo?... — retorquiu Stanley, com desprezo. — Não tenho medo de coisa nenhuma... mas foi você quem disse que não queria que Orman suspeitasse de alguma coisa entre nós.

— Sim, não convém... — concordou ela, pensativa.

— Ele tem mau génio, e um realizador pode fazer bastante mal quando se irrita.

— Num filme como este, pode-se matar um homem e dizer que foi acidente... — disse Obroski.

— Já vi fazer isso... — murmurou Naomi. — O realizador e o actor principal gostavam da mesma rapariga. O realizador mandou dar uma ordem errada a um elefante treinado.

— Parece-lhe que há alguma hipótese de Orman vir aqui?... — perguntou Obroski, inquieto.

— Não agora. Não dará acordo de si até amanhã.

— Onde está Rhonda?

— Não sei. Deve estar a jogar «bridge», com West, Baine e o velho Marcus. Foi jogar e deixou-me aqui, para morrer sozinha.

— Ela é segura ?

— Que quer dizer ?

— Não irá dizer a Orman... que eu estive aqui?

— Não, não é desse género. Obroski respirou fundo. Perguntou:

— Ela... sabe a nosso respeito?

— Não é muito inteligente, mas não é tola. O único mal de Rhonda é ter-se-lhe metido na cabeça que sabe representar, desde que me substituiu nas cenas feitas enquanto eu estava com as febres. Alguém lhe deu corda e ela julga que sabe andar. Teve o descaramento de me dizer que eu ficaria com as honras do trabalho dela. Não passará da mesa de montagem quando voltarmos a Hollywood, ou eu não conheça Milt Smith.

— Ninguém pode representar como você, Naomi...

— disse Obroski. — Eu nem pensava em entrar em filmes, e já ia ver todos aqueles em que você entrava. E agora, só de pensar que trabalho consigo... e você me ama... — disse ele em voz mais baixa. — Ama-me, não é verdade?

— Com certeza que sim...

— Não percebo para que tem de se mostrar tão meiga para Orman.

— É preciso diplomacia, tenho de pensar na minha carreira.

— Por vezes até parece que gosta dele... — volveu Obroski.

— Desse bêbedo? Se ele não fosse um grande realizador, não queria vê-lo nem com um óculo de grande alcance.

À distância, um grito agudo, gemente, ecoou na escuridão da noite. Um leão rugiu, em resposta, e pouco depois o riso de uma hiena juntou-se ao coro. Naomi estremeceu:

— Deus! Daria um milhão de dólares para estar em Hollywood.

— Parecem almas perdidas na noite... — sussurrou Obroski.

— E estão a chamar por nós... à nossa espera... sabem que nos apanharão...

A lona da entrada, moveu, e Obroski deu um pulo nervoso, sobressaltado. Naomi sentou-se, de olhos muito abertos. A lona foi afastada e Rhonda Terry surgiu no círculo de luz da lanterna.

— Olá aí... — disse ela, animada.

— Devia ter dado sinal antes de entrar... — disse Naomi. — Assustou-me.

— Se tivermos de coçar com as unhas em todos os acampamentos, não faltará que fazer. Além de que, com os negros tão perto, talvez tenhamos de coçar as costas, além das lonas... — voltou-se para Obroski e acrescentou: — Desande. São horas de os Homenzinhos-Leões fazerem ó-ó... Para mais, vi Tom Orman a fazer rumo para aqui...

— Vou... vou-me embora... — gaguejou Obroski, empalidecendo e saindo rapidamente.

— Você viu realmente Tom, aí fora?... — perguntou Naomi, assustada.

— Sim... Cambaleava como um iate no alto mar...

— Mas disseram que ele tinha ido deitar-se.

— Se foi, levou a garrafa para a cama. Ouviram a voz de Orman, lá fora:

— Eh! Venha cá, você!

— É... é o sr. Orman?... — a voz de Obroski tremia.

— Sim, sou eu. Que foi fazer à tenda das raparigas? Não dei ordens para ninguém entrar ali?

— Eu... eu ia pro... procurar Rhonda, para fa... fa... fazer uma pergunta.

— Mente. Rhonda não estava lá. Vi-a entrar agora. Você esteve com Naomi... Está-me a apetecer partir-lhe os dentes.

— Palavra, sr. Orman... Não me demorei um minuto... Quando vi que Rhonda não estava, saí logo.

— Você saiu depois de Rhonda entrar, repugnante imbecil...

E agora escute... Largue Naomi, é a minha pequena... Se volta a arrastar a asa, mato-o! Entendeu?

— Sim, sr. Orman.

Rhonda olhou para Naomi e piscou um olho, sorrindo:

— O papá ralha, o papá bate...

— Deus! Ele mata-me... — sussurrou Naomi.

A entrada da tenda foi violentamente afastada, e Orman entrou. Rhonda olhou-o de frente.

— Que vem a ser isso de entrar aqui?... — perguntou ela. — Saia!

Orman ficou boquiaberto. Não estava habituado a que lhe falassem naquele tom, e isso desequilibrou-o — como um touro que tivesse levado uma sapatada de um coelho. Ficou parado à entrada, a olhar para Rhonda como se tivesse descoberto um animal de espécie nova.

— Só queria falar a Naomi... não sabia que você estava aqui...

— Pode falar com Naomi pela manhã, e sabia que eu estava aqui. Ouvi-o dizer a Stanley.

Ao ouvir o nome de Stanley, a cólera de Orman ressurgiu:

— É disso que eu quero falar com Naomi... — deu um passo na direcção da cama de campanha, e continuou. — Escute lá, vagabunda! Você não faz pouco de mim! Se torno a apanhá-la com esse imbecil, rebento-lhe a cabeça!

Naomi encolheu-se, gemendo:

— Não me toque! Eu não fiz nada! Está enganado, Tom! Ele veio para falar a Rhonda! Não o deixe bater-me, Rhonda! Pelo amor de Deus, não deixe!

Orman hesitou e olhou para Rhonda:

— É verdade isto?

— Sim... — respondeu a jovem. — Stanley veio falar comigo, porque eu o chamei.

— Então por que razão saiu depois de você entrar?. .. — perguntou Orman.

— Ele viu-o chegar e eu disse-lhe para se ir embora.

— É preciso acabar com isso... — rosnou Orman.

— Não quero homens aqui. Faça as suas visitas lá fora!

— Está bem, mas agora desande! Boas-noites!...

— volveu a jovem.

Quando Orman saiu, Naomi deixou-se cair na cama, trémula.

— Uf!... — murmurou, quando lhe pareceu que ele não podia ouvi-la. — Foi por uma unha negra...

Não agradeceu a Rhonda. O seu egotismo considerava qualquer serviço que lhe prestassem como o seu próprio direito. Rhonda disse-lhe:

— Escute, eu fui contratada para a dobrar no filme, não nas suas porcarias amorosas. Daqui por diante, veja onde põe os pés.

Orman viu luz na tenda ocupada por West e por outro operador. Entrou. West estava a despir-se. Exclamou:

— Olá, Tom! O que o traz aqui ? Alguma complicação ?

— Não agora, mas houve. Corri com esse polaco sujo, da tenda das raparigas. Tinha ido falar a Rhonda.

— Não acredito... — retorquiu West, empalidecendo.

— Está a chamar-me mentiroso?... — rosnou

Orman.

— Sim, a você e seja a quem for que diga isso!

— Bem... — volveu Orman, encolhendo os ombros. — Ela confirmou isso e disse-me que o tinha posto a andar quando me viu ir para lá. Não quero que isso continue e já a avisei. Avisei também o polaco imbecil... — saiu e dirigiu-se para a sua própria tenda.

Bill West ficou acordado quase até de manhã.

 

                   Morte

Enquanto o acampamento dormia, um gigante bronzeado, vestido apenas com uma tanga, observava, umas vezes do alto das árvores em volta, outras vezes no terreno, já no interior do círculo formado pelas sentinelas. Depois moveu-se entre as tendas dos brancos e os abrigos dos nativos, tão silencioso como uma sombra. Viu muita coisa, ouviu muita coisa. Com a madrugada, desapareceu na neblina que envolvia a floresta.

Muito antes do amanhecer, o acampamento começou a agitar-se. O major White tinha dormido algumas horas, depois da meia-noite. Foi dos primeiros a levantar-se, acordando os cozinheiros e os brancos para que as tendas pudessem ser desarmadas a fim de partirem cedo, e dirigindo os homens de Kwamudi, que começavam a preparar os fardos. Foi então que ele soube que vinte e cinco carregadores tinham desertado durante a noite.

Interrogou as sentinelas, mas nenhuma tinha visto alguém sair do acampamento, de noite. Ficou com a certeza de que alguns dos homens mentiam. Quando Orman saiu da tenda, o major avisou-o. O realizador encolheu os ombros.

— Ainda temos mais do que precisamos... — grunhiu Orman.

— Se hoje tivermos mais complicações com os Bansutos, logo à noite fugirão mais carregadores...

— avisou White. — Podem desertar todos, apesar das ordens de Kwamudi, e se ficarmos aqui sem carregadores, não dou uma moeda falsa pelas nossas possibilidades de escapar. Continuo a pensar, sr. Orman, que a única coisa sensata, a fazer, seria voltar para trás e dar a volta. A situação é grave.

— Volte para trás, se quiser, e leve esses ratos...

— rosnou Orman. — Eu sigo para diante, com a companhia e os carros... — deu meia volta e afastou-se.

Os brancos estavam reunidos na messe, uma comprida mesa onde cabiam todos. No crepúsculo, e na neblina que pouco a pouco se dissipava, os vultos pareciam espectrais, a curta distância, e essa sensação era acentuada pelo silêncio geral. Tinham frio e sono, todos. Tinham também receio do que o novo dia poderia trazer-lhes. A recordação dos «askaris», varados pelas flechas envenenadas, estava presente na mente de todos.

O café quente melhorou um tanto a situação. Foi Pat O'Grady o primeiro a tentar melhorar o ambiente.

— Bons-dias, sr. professor, bons-dias meninos...

— disse ele, tentando imitar uma voz infantil.

— Ninguém achou graça... — comentou Rhonda Terry, sorridente.

Olhou em volta e viu Bill West sentado ao fundo da mesa. Estranhou, porque ele costumava sentar-se ao lado dela. Tentou sorrir-lhe, mas viu que ele evitava olhar na sua direcção.

— Vamos comer, beber e estar alegres, porque amanhã morreremos... — disse Gordon Z. Mar cus, citando a despropósito uma frase famosa, mal decorada.

— Isso não tem graça... — comentou Baine.

— Pensando melhor, concordo com você... — retorquiu Marcus. — Apontei mal um gracejo e acertei na verdade...

— Entre os olhos... — comentou Clarence Noice.

— Para alguns de nós talvez seja hoje mesmo, não amanhã... — disse Obroski, em voz rouca.

— Acabem com isso!... — berrou Orman. — Se têm medo, fiquem calados.

— Eu não tenho medo... — afirmou Obroski.

— O Homem-Leão com medo? Não sejam tolos...

— disse Baine, piscando um olho para Marcus. — Eu lhe digo o que devemos fazer agora, Tom, já que estamos nesta terra de gente má. É curioso que ninguém se tenha lembrado...

— O que é?... — perguntou Orman.

— Devemos mandar o Homem-Leão adiante, para nos limpar o caminho. Se esses Bansutos continuassem a maçar-nos, ele lhes daria uma lição.

— Não é má ideia... — respondeu Orman, sombrio. — Que diz, Obroski ?

— Digo... — volveu Obroski, com um sorriso forçado — ...que gostaria de ter aqui o autor da história, para o mandar adiante...

— Alguns desses carregadores mostraram bom senso... — disse um condutor de camião, sentado ao fundo da mesa.

— Porquê?... — perguntou outro, ao lado dele.

— Não ouviu dizer que vinte e cinco, ou trinta, se puseram a andar durante a noite, e voltaram para casa?

— Esses tipos devem saber... — comentou algum. — É a terra deles.

— É o mesmo que nós devíamos fazer... desandar daqui.

— Calem-se!... — berrou Orman. — Quem escolheu esta turma devia estar bêbedo!

Naomi, sentada ao lado dele, fitou-o com medo. Perguntou:

— Fugiram alguns negros ,esta noite?

— Com mil diabos, não comece você também... — grunhiu Tom, levantando-se e afastando-se da mesa.

Ao fundo da mesa, alguém disse qualquer coisa, uma palavra que costuma ser acompanhada por um sorriso. Mas ninguém sorria.

Em grupos de dois e três, acabaram de comer e foram ocupar-se das suas tarefas. Não houve nenhum dos gracejos que eram habituais nos primeiros dias.

Rhonda e Naomi juntaram a bagagem de mão, que sempre levavam consigo no carro, e encaminharam-se para o veículo. Baine estava sentado ao volante, a aquecer o motor. O velho Marcus, metia qualquer coisa na frente do carro.

— Onde está Bill?... — perguntou Rhonda.

— Hoje segue no camião das «cameras»... — explicou Baine.

— É estranho... — comentou Baine.

Compreendeu que Bill a evitava e tentou lembrar-se de alguma coisa que ela tivesse feito ou dito para justificar isso. Não conseguiu e sentiu-se estranhamente triste.

Alguns dos camiões tinham começado a avançar na direcção do rio. Os árabes e um destacamento de «askaris» já tinham atravessado, para proteger a passagem dos carros.

— Vão passar primeiro o camião-gerador... — explicou Baine. — Se ele passar, o resto também passa. Se não passar, teremos de voltar para trás.

A travessia do rio, que o major White previra muito difícil, foi quase fácil; o leito era rochoso e os taludes das margens eram firmes. Não houve qualquer sinal dos Bansutos, e a coluna não foi atacada ao internar-se pela floresta.

Durante toda a manhã avançaram com relativa facilidade, demorando-se apenas quando a floresta era demasiado espessa e se tornava necessário abrir caminho para os carros. O mato derrubado formava tapete sob os carros mais leves.

As preocupações começaram a atenuar-se, na medida em que o dia se escoava sem que houvesse sinal dos Bansutos. A descontracção tornava-se sensível, ao ponto de, por vezes, se ouvirem risos. Mesmo os negros pareciam voltar ao seu normal, talvez por verem que Orman já não tinha o chicote e parecia afastado da orientação da coluna.

Orman e White iam à frente, ambos constantemente alerta para qualquer sinal de perigo. Havia ainda muito constrangimento nas suas atitudes, e só falavam um com o outro quando era necessário.

Depois da paragem para a refeição do meio-dia, a coluna retomou a sua marcha através da floresta. O bater dos machados, nos troncos que era preciso derrubar, adiante, era outra vez acompanhado por cantigas e risos. As mentes primitivas dos negros começavam a esquecer o terror da véspera.

De repente, sem aviso, uma dúzia de flechas emplumadas voou, vinda da floresta aparentemente deserta. Dois nativos caíram. O major White, ao lado de Orman, levou as mãos ao peito, onde se cravara uma flecha, e caiu aos pés do americano. Os «askaris» e os árabes dispararam às cegas, para a selva. A coluna deteve-se bruscamente.

— Outra vez!... — murmurou Rhonda Terry. Naomi gritou e estendeu-se no fundo do carro.

Rhonda abriu a porta e saltou para o chão.

— Para o carro, Rhonda!... — gritou Baine. — Abrigue-se!

Ela abanou a cabeça, como irritada pela sugestão.

— Onde está Bill?... — perguntou. — Vai à frente?

— Não à frente da coluna... — disse Baine. — Só alguns carros adiante de nós.

Os homens, ao longo da linha de carros, saltavam para o chão, empunhando os rifles e olhando para a direita e para a esquerda, em busca de inimigos. Mas um rastejou para debaixo de um camião.

— Que raio vai você fazer, Obroski?... — perguntou Noice.

— Vou... vou estender-me à sombra... até que isto avance outra vez...

Noice deu um estalo com a língua, numa expressão de desprezo. À retaguarda, Pat O'Grady tinha deixado de assobiar e juntara-se aos «askaris» que defendiam a coluna. Olhavam em volta, nervosamente, perscrutando a floresta. Um homem, do último camião, aproximou-se de O'Grady.

— Só queria poder avistar um deles... — comentou.

— É difícil tentar lutar com tipos que não se vêem... — disse O'Grady.

— Dá volta aos nervos... — concordou o outro. — Quem teria morrido desta vez, lá à frente ?

O'Grady abanou a cabeça.

— Não tarda que sejamos atacados... — disse o homem, com naturalidade, — Ontem foi assim.

O'Grady olhou para ele; o homem não estava com medo, afirmava apenas um facto que julgava verdadeiro. Respondeu:

— Nunca se sabe... Se é a altura de morrer, morre-se, e se não é... não se morre.

— Você acredita nisso? Eu gostava de acreditar.

— Por que não? É mais agradável. As preocupações não adiantam nada.

— Não sei... — disse o outro, duvidoso. — Não tenho superstições... — calou-se e acendeu um cigarro.

— Nem eu... — volveu O'Grady.

— Calcei uma peúga do avesso, esta manhã... — disse o homem, pensativo.

— Por que razão não a descalçou, para a pôr a direito?

— Não valia a pena.

— Tem razão, não valia a pena.

De boca em boca, chegou a notícia de que o mapor White e dois «askaris» tinham morrido. O'Grady praguejou:

— O major era um bom tipo, valia mais que todos os malditos selvagens. Só queria fazer-lhes pagar isto!

Os carregadores estavam outra vez sombrios, enervados, assustados. Kwamudi aproximou-se de O'Grady.

— Minha gente não continua... — disse ele. — Volta para trás, para casa.

— Mais lhes vale ficarem connosco. Se voltarem para trás não escapa nenhum... nem sequer têm rifles para se defender. Amanhã estaremos fora da região dos Bansutos. Vá falar com eles, Kwamudi.

O negro resmungou qualquer coisa e afastou-se.

— Era «bluff»... — disse O'Grady, em voz baixa, ao outro branco. — Não acredito que eles voltem para trás, sozinhos, através desta região.

A coluna pôs-se de novo a caminho. Kwamudi e os seus homens continuaram. Na frente, tinham estendido os corpos do major e dos dois «askaris», sobre a carga de um veículo, para lhes darem uma sepultura decente no próximo acampamento. Orman voltou a caminhar adiante, com uma expressão dura e cansada. Os «askaris» mostravam-se nervosos e caminhavam atrás. O grupo de negros, encarregado de abrir caminho, estava à beira de se revoltar. Os árabes deixavam-se atrasar. Tinham toda a confiança em White, e a morte dele desanimara-os. Lembravam-se da brutalidade e do chicote de Orman, e nenhum deles o segueria se não lhe reconhecessem uma evidente coragem, tão evidente que lhes impunha respeito.

Agora Orman já não praguejava. Falava com os homens, como devia tê-lo feito desde o princípio.

— Temos de ir para diante... — dizia ele. — Voltar para trás seria pior. Amanhã devemos estar fora disto.

Só usava a violência quando a persuasão falhava. Um dos negros da frente recusou-se a trabalhar e encaminhou-se para a retaguarda. Orman derrubou-o com um soco e, a pontapés, fê-lo ir manejar novamente o machado. Todos os outros podiam compreender isto. Estava certo, porque era justo. Orman sabia que cerca de duzentas vidas dependiam de cada homem cumprir a sua obrigação, e não cedia.

A retaguarda da coluna não foi atacada, nesse dia, mas pouco antes de acamparem houve outro ataque, à frente. Desta vez morreram três homens, e uma flecha arrancou o capacete de Orman.

Foi novamente um grupo silencioso e sombrio que acampou, tarde. A morte do major White parecia representar uma ameaça mais directa contra a vida dos outros brancos. Antes disso tinham tido uma estranha noção de imunidade, como se as flechas envenenadas, dos Bansutos, só pudessem atingir outros negros. Agora compreendiam melhor o horror da situação. Quem morreria a seguir? Quase todos faziam a si mesmos esta pergunta.

 

                   Remorso

Atewy, o árabe, aproveitando a vantagem do seu conhecimento do inglês, circulava por vezes entre os americanos, fazendo perguntas, espalhando comentários. Estavam tão habituados à sua presença que não a estranhavam; nem os seus canhestros esforços para parecer jovial lhes sugeriam que talvez ele estivesse a representar um papel para esconder outros motivos — embora fosse claro que a natureza não fadara Atewy para a jovialidade.

Atewy era astuto, no entanto, e sabia esconder o facto de que o seu maior interesse se concentrava nas duas raparigas. Nunca se aproximava deles, a não ser quando estavam com outros brancos.

Nessa tarde, Rhonda Terry estava a escrever, sentada diante de uma pequena mesa de acampamento, pois ainda não escurecera. Marcus parara para conversar com ela. O árabe notou isso e aproximou-se, com naturalidade.

— Vocação literária, Rhonda?... — perguntou Marcus.

— Estou a pôr em dia o meu diário... — volveu a jovem, sorrindo.

— Receio que venha a ser um documento lúgubre.

— Seja o que for... Oh, a propósito... — acrescentou ela, apanhando um papel dobrado. — Achei este mapa entre as minhas coisas. Na última cena que filmaram, fizeram grandes planos comigo a ler o mapa. Não sei se voltará a ser preciso, gostaria de o guardar como recordação.

Quando ela desdobrou o mapa, Atewy aproximou-se mais, com os olhos brilhantes.

— Guarde-o até que lho peçam... — sugeriu Marcus. — Talvez não volte a ser preciso. Parece autêntico, não é? Devem tê-lo feito no estúdio, suponho.

— Não. Bill diz que Joe o encontrou entre as páginas de um livro que comprou numa livraria de segunda mão. Quando lhe encomendaram a história, lembrou-se de urdir a intriga em volta do mapa. É estranho, não é? Quase nos faz acreditar que é fácil encontrar um vale de diamantes... — e a jovem voltou a dobrar o mapa, metendo-o na sua pasta. Com olhos de falcão, o escuro Atewy fitava-a.

Marcus olhou para a jovem, com simpatia.

— Falou agora de Bill... Que há de errado com vocês, pequenos? Costumavam andar juntos...

Com um gesto, Rhonda exprimiu a sua ignorância.

— Não tenho a mais remota ideia. Bill evita-me como se eu tivesse alguma especial variedade de pólen à qual ele fosse alérgico. Eu causo-lhe urticária, ou febre dos fenos?

— Posso imaginar que você provoque altas temperaturas nos animais masculinos... — volveu Marcus, rindo. — Mas sugerir comichão ou asma seria sacrilégio.

Naomi Madison saiu da tenda. Estava pálida, com as feições vincadas.

— Céus!... — exclamou ela. — Não entendo como podem gracejar numa altura destas. De um momento para o outro, qualquer de nós pode morrer.

— Temos de manter a coragem... — respondeu Marcus. — E não se pode fazer isso deixando-nos dominar pelos desgostos e remoendo as preocupações.

— Fazer uma cara triste não restitui a vida ao major White nem aos pobres negros... — disse Rhonda. — Todos sabem que temos muita pena, e não é preciso usar crepes para demonstrar isso.

— Ao menos podia-se mostrar uma atitude de respeito até ao funeral... — redarguiu Naomi.

— Não seja estúpida... — volveu Rhonda, irritada.

— Quando vão enterrá-los, sr. Marcus?... — perguntou Naomi.

— Não antes do escurecer. Não querem que os Bansutos vejam onde eles vão ficar.

— Que horrível terra... — gemeu Naomi, estremecendo. — Sinto que não sairei daqui, com vida...

— Se morrer, ainda menos sai... — disse Rhonda, mostrando, o que era raro nela, sinais de cólera.

— Nunca me enterrariam aqui... — exclamou Naomi, com desprezo. — O meu público não toleraria tal coisa. Serei enterrada com pompa, em Hollywood.

— Ora vamos, meninas... — atalhou Marcus. — Acabem lá com essa conversa mórbida e depressiva. Não devemos pensar em tais coisas. Que tal de uma partida de «bridge» antes da ceia? Temos tempo.

— Estou pronta... — declarou Rhonda.

— Com certeza... — fungou Naomi. — Você não tem nervos. Eu seria incapaz de jogar «bridge», numa altura destas. Sou demasiado temperamental, demasiado tensa. Creio que todos os verdadeiros artistas são assim, não é, sr. Marcus? Nervosos como cavalos de raça.

— Bem... — disse Rhonda, rindo e passando o braço sob o de Marcus. — Temos de procurar mais dois parceiros, se queremos «bridge». Talvez Bill e Jerrold. Nenhum deles seria premiado numa exposição cavalar.

Encontraram Bill West a cuidar das suas «cameras». Declinou o convite, sombrio, sugerindo:

— Vão procurar Obroski, se conseguirem acordá-lo.

Rhonda fitou-o, semicerrando as pálpebras.

— Mais um cavalo de raça... — disse, afastando-se. E acrescentou, falando consigo mesma: — É a segunda vez que fala em Obroski. Pois vai ver.

— E agora, Rhonda?.., — perguntou Marcus.

— Vá procurar Jerrold, que eu procuro Obroski. Ainda havemos de jogar.

Jogaram, e a mesa foi colocada de maneira que Bill West não podia deixar de a ver. Marcus teve a impressão de que Rhonda riu mais do que habitualmente, mais do que era necessário.

Nessa noite, os brancos e os negros levaram os seus mortos para além dos limites do acampamento, e enterraram-nos. A terra foi alisada, por cima das sepulturas, e juncada de folhas e ramos. A que sobrou foi transportada para o outro lado do acampamento, e fizeram montículos que sugeriam ser ali as sepulturas.

As verdadeiras covas ficavam no caminho que a caravana teria de seguir no outro dia. Os vinte e três camiões e os cinco carros de passageiros fariam desaparecer todos os vestígios.

Os homens que trabalhavam silenciosamente, na escuridão, esperavam não ser vistos. Mas, durante parte da noite, um vulto esteve escondido entre as ramadas de uma árvore, e daí observou o que se passava em baixo... Depois, quando os brancos voltaram para as suas tendas, o vulto desapareceu na escuridão da floresta.

Perto da manhã, Orman estava estendido na sua cama de lona, insone. Tinha tentado, em vão, ler um livro, para fugir aos pensamentos que o atormentavam. À luz da lanterna que colocara a seu lado, a sua cara parecia mais vincada, como uma máscara. Estendido no outro lado da tenda, Pat O'Grady olhou para ele e disse:

— Que raio, Tom! Tente dormir, ou dá em maluco!

— Não posso dormir... — volveu Orman, cansado.

— Continuo a ver White... Matei-o, e matei esses negros.

— Tolice!... — exclamou O'Grady. — Você não tem mais culpa que os estúdios. Mandaram-no aqui para fazer um filme, e você procedeu como lhe pareceu certo. Ninguém pode censurá-lo.

— A culpa foi minha. White avisou-me para não vir por aqui. Ele tinha razão, e eu sabia que ele tinha razão. Mas fui demasiado burro para reconhecer isso.

— Você precisa de beber um gole, Tom. Anima-o e fá-lo dormir.

— Deixe isso.

— Faz muito bem, mas não assim de repente.

— Não culpo o «whisky»... — disse Orman. — Não culpo nada e ninguém, senão eu próprio... mas se eu não bebesse demasiado isto não teria acontecido. White e esses pobres negros estariam vivos.

— Um gole não lhe faz mal, Tom, e você precisa dele.

Orman ficou imóvel e em silêncio, durante algum tempo. Depois levantou-se e estendeu a mão para um saco de cabedal que estava aos pés da cama, tirando de dentro uma garrafa e um copo.

— Talvez tenha razão, Pat... — murmurou.

As suas mãos tremiam, enquanto encheu o copo. O'Grady sorriu:

— Eu disse um gole, não quatro...

Devagar, Orman levou o copo aos lábios. Imobilizou-se, a olhar... como se estivesse a ver alguma coisa para além da lona da tenda... como se estivesse a ver os covais recentes. Com uma praga, atirou o copo ao chão, e logo a garrafa que se estilhaçou.

— Vai ser um inferno para pés descalços... — disse Pat.

— Desculpe... — volveu Orman, sentando-se à beira da cama e escondendo a cara entre as mãos.

O'Grady levantou-se, enfiou os pés nuns sapatos e foi sentar-se ao lado do amigo, passando-lhe um braço sobre os ombros.

— Vamos, Tom!

Foi tudo o que disse, mas o amplexo amigo dizia mais do que quaisquer palavras, reconfortava mais do que qualquer bebida. De qualquer ponto, na selva, veio o rugido de um leão, e um momento depois um brado espantoso que não parecia de homem nem de fera.

— Irra!... — exclamou O'Grady. — Que foi isto? Orman tinha levantado a cabeça e escutava. Murmurou:

— Mais alguma ameaça para nós, talvez. Ficaram calados, por longos momentos. Depois

O'Grady murmurou também:

— Não faço ideia do que pode significar este grito...

— Pat... você acredita em fantasmas?... — perguntou Orman, gravemente.

— Não sei... — disse O'Grady, hesitante. — Já assisti a coisas estranhas.

— Também eu... — volveu Orman.

Mas, por muito que imaginassem, nunca poderiam supor nada tão estranho como a realidade; não poderiam imaginar que tinham ouvido o brado de vitória de um «lord» inglês, e o rugido de um leão que, com ele, tinha abatido uma presa.

 

                     Desastre

O frio e a madrugada nevoenta pareciam reflectir o estado de espírito dos brancos que se arrastavam, vagarosos, para fora das suas mantas. Mas o primeiro que olhou para o acampamento, despertou bruscamente ante o espectáculo que se lhe deparou.

Foi Bill West, esse que viu e compreendeu num relance. Impulsivamente, correu para os abrigos dos negros. Chamou em voz alta por Kwamudi e por alguns outros cujos nomes conhecia, mas ninguém lhe respondeu. Olhou para os abrigos, com o mesmo resultado. Então correu para a tenda de Orman. Este vinha a sair, seguido por O'Grady.

— Que há de pequeno almoço?... — perguntou Pat. — Não vejo os cozinheiros.

— Nem os verá..-. — disse West. — Sumiram-se, desapareceram, desandaram! Se quiser o pequeno almoço terá de o fazer você.

— Que quer dizer, Bill?... — perguntou Orman.

— Quero dizer que os negros fugiram, todos juntos... Não há uma fogueira acesa. Até os «askaris» se foram embora. O campo esteve sem guardas, durante não sei quanto tempo.

— Foram-se?... — havia incredulidade na voz de Orman, — Mas não pode ser! Onde estão?

— Sei lá onde estão! E levaram uma boa parte das nossas provisões. Por aquilo que vi, serviram-se bem. Há uns quantos carros que foram pilhados.

Orman praguejou entre dentes, mas a sua expressão de cansaço desapareceu. O'Grady, que o observara com um ar preocupado, sorriu. O chefe voltava a ser quem era.

— Acorde toda a gente... — disse Orman. — Os motoristas que verifiquem as cargas dos seus camiões. Trate disso, Bill, enquanto Pat organiza a vigilância do acampamento. O velho xeque e a sua gente ainda estão connosco. Ponha-os de sentinela, Pat. Depois junte toda a gente na mesa da messe, para falarmos.

Enquanto Pat e Bill cumpriam as ordens, Orman deu uma rápida volta ao acampamento. Sentia a mente clara e lúcida. Já não estava a gastar energia em vãs lamentações, embora estivesse convencido de que era o culpado da situação. Nem a noite insone pesava sobre ele.

Quando, minutos depois, se aproximou da grande mesa da messe, todos estavam reunidos e falavam excitadamente da fuga dos negros, esboçando perspectivas de futuro, que nada tinham de alegres. Orman ouviu um dos comentários: « — Foi uma caixa de «whisky» que nos arranjou isto, e agora nenhum «whisky» nos pode valer!»

— Todos sabem o que aconteceu... — começou Orman — .. .e creio que todos sabem por que razão aconteceu, mas as recriminações não ajudam nada. A nossa situação não é assim tão desesperada. Temos homens, provisões, armas e transportes. Porque os carregadores nos deixaram, não quer dizer que vamos sentar-nos no chão e despedir-nos uns dos outros.

« — Também é inútil voltar para trás. O caminho mais curto, para sair da região dos Bansutos, é para a frente. Fora desta região talvez possamos recrutar outros negros, em tribos não hostis, e continuar com o filme.

« — Entretanto todos temos de trabalhar, e trabalhar duramente. Temos de fazer o trabalho que os negros faziam, armar e desarmar tendas, carregar e descarregar, abrir caminho para os carros, e fazer guardas no caminho e nos acampamentos. Estas duas tarefas são as mais perigosas, mas faremos turnos. Todos, menos os cozinheiros e as raparigas. Esses são os mais importantes membros do «safari»... — e o antigo sorriso de Orman apareceu por instantes.

« — Agora... — continuou — .. .a primeira necessidade é comer. Quem sabe cozinhar?

— Eu sei... — disse Rhonda Terry.

— Posso confirmar isso... — declarou Marcus. — Comi um maravilhoso jantar de frango, no apartamento de Rhonda.

— Eu também sei cozinhar... — disse uma voz de homem.

Todos olharam para o único homem que se oferecia para um trabalho sem risco.

— Quando aprendeu a cozinhar, Obroski?... — perguntou Noice. — Acampei uma vez consigo, e você nem sabia acender uma fogueira, quanto menos cozinhar.

— Bem... — disse Obroski, corando — .. .é preciso que alguém ajude Rhonda, e ninguém mais se ofereceu.

— Jimmy sabe cozinhar... — disse um electricista. — Foi ajudante do chefe de cozinha de um restaurante em Los Angeles.

— Não quero cozinhar... — declarou Jimmy. — Nada disso. Servi nos fuzileiros, na Nicarágua. Dêem-me uma espingarda e ficarei de sentinela.

— Quem mais sabe cozinhar?... — perguntou Or-man. — Precisamos três.

— Shorty sabe... — disse uma voz. — Teve uma venda de cachorros-quentes, em Ventura-Boulevard.

— Okay... — concluiu Orman. — «Miss» Rhonda é cozinheira-chefe, Jimmy e Shorty ajudam. Pat designará mais três, por turnos, em cada dia. Vamos a isto. Enquanto os cozinheiros trabalham, vamos desmanchar as tendas e carregá-las.

— Oh, Tom!... — disse Naomi, ao lado de Norman. — O meu criado negro fugiu com os outros. Indique um homem para o lugar dele.

Orman voltou-se e olhou-a, espantado:

— Tinha-me esquecido de você, Naomi. Fez bem em falar. Visto que com certeza não sabe cozinhar, pode descascar batatas, servir à mesa e ajudar a lavar pratos.

Por instantes, Naomi pareceu aturdida. Depois sorriu, friamente:

— Você deve julgar que isso tem graça... disse — ... mas a altura é mal escolhida.

— Não estou a brincar, Naomi... — disse ele, sem sorrir.

— Você espera então que eu, Naomi Madison, descasque batatas, sirva à mesa e lave pratos? Não seja ridículo! Não farei nada disso!

— Escute, Naomi. Antes de Milt a descobrir, você trabalhava numa baiuca em Main Street. E terá de voltar a trabalhar, se quiser comer... — Orman voltou-lhe as costas e afastou-se.

Durante o almoço, Naomi ficou altivamente sentada no automóvel. Não serviu à mesa, nem comeu.

Americanos e árabes formavam a guarda avançada e a retaguarda, quando o «safari» se pôs a caminho. Mas os encarregados de desbravar a passagem eram todos americanos. Os árabes estavam dispostos a lutar, mas não a trabalhar. O trabalho estava abaixo da sua dignidade.

Rhonda só voltou para o seu lugar no carro quando o último utensílio de cozinha ficou lavado e arrumado no transporte. Estava corada e um tanto cansada. Naomi olhou-a desdenhosamente.

— Você é tola... — declarou. — Não devia humilhar-se a fazer esses trabalhos. Não nos pagam para isso.

— Provavelmente... — respondeu Rhonda, indicando com o aceno a frente da coluna — .. .nenhum desses rapazes foi contratado para abater árvores e lutar contra canibais. Tome... — acrescentou, entregando um pequeno embrulho a Naomi. — Trouxe-lhe umas sanduíches, deve ter fome.

Naomi comeu, em silêncio, e por muito tempo pareceu ficar perdida nos seus pensamentos.

A coluna avançava lentamente. Os homens dos machados não tinham prática daquele trabalho, e no calor da floresta cansavam-se depressa. Parecia que a selva resistia teimosamente ao avanço dos homens.

Orman trabalhava como os outros, manejando o machado quando era preciso, marchando com a guarda avançada quando o caminho estava aberto.

— Dura tarefa... — comentou Bill West, encostando às pernas o cabo do machado, enquanto limpava o suor dos olhos.

— Não é a parte mais dura... — volveu Orman.

— Como?

— Desde que os guias fugiram, não sabemos ao certo para onde vamos.

— Não tinha pensado nisso — disse West, deixando escapar um ligeiro assobio.

Pouco depois do meio-dia chegaram a uma clareira extensa, quase completamente desprovida de árvores e coberta de capim alto, mais alto do que os homens.

— Excelente... — disse Orman. — Vamos caminhar depressa, durante uns minutos.

O camião da frente entrou na clareira, calcando as ervas com os largos pneus. Orman bradou, dirigindo-se à guarda avançada e aos homens dos machados:

— Saltem para os camiões! Esses tipos não nos atacarão aqui, sem árvores para se esconderem.

A longa coluna de carros avançou pela clareira. Os homens pareciam aliviados da sensação deprimente da floresta.

Mas foi então, quando o último carro apareceu em terreno descoberto, que uma chuva de flechas veio de entre as ervas altas, ao longo de toda a linha. Brados de guerra, selvagens, encheram o espaço. E, pela primeira vez, os Bansutos mostraram-se quando, de lanças erguidas, se precipitaram ao ataque.

O condutor de um dos carros da frente dobrou-se e caiu, com o coração atravessado por uma flecha. O camião guinou para a esquerda e avançou sobre os atacantes. Os rifles dispararam, os homens gritavam e praguejavam, os feridos gemiam. Naomi Madison encolheu-se no fundo do carro. Rhonda empunhou o revólver e fez fogo contra os negros. Uma dúzia de homens correram para defender o automóvel das duas raparigas. Alguém bradou:

— Cuidado! Eles atacam também pelo outro lado!

Alguns rifles voltaram-se para enfrentar a nova ameaça. O tiroteio era constante e mortífero. Os Bansutos, que quase haviam chegado junto dos carros, hesitaram e acabaram por recuar. As balas continuaram a cair sobre eles, e muitos rolaram no chão, entre as ervas altas.

A luta não tinha durado mais de dois minutos, mas os resultados tinham sido desastrosos para a caravana que parara logo aos primeiros assaltos. Uma dúzia de homens estavam mortos ou moribundos, um camião ficara destroçado, o moral dos sobreviventes era angustioso. Orman entregou o comando a West e correu ao longo da linha, para verificar as baixas. Pat O'Grady foi ao encontro dele.

— É melhor sairmos daqui, Tom! Esses malditos podem largar fogo à erva!

Orman empalideceu. Não tinha encarado essa hipótese. Bradou:

— Icem os mortos e os feridos, para os carros mais próximos, e vamos em frente. Depois se verá!

O alívio que todos haviam sentido ao entrar na clareira, foi igualado pelo que sentiram ao entrar novamente na sombria floresta, onde a ameaça de fogo, pelo menos, ficava reduzida ao mínimo. Então O'Grady percorreu a linha de carros, para contar as perdas. Encontrou os corpos de Noice, Baine e mais sete americanos, além de três árabes.

— Obroski!... — bradou Orman. — Alguém viu Obroski?

— Sim, agora me lembro... — respondeu o velho Marcus. — Quando esses patifes lançaram os primeiros ataques pela esquerda, ele saltou pelo lado oposto e desapareceu entre o capim...

Orman encaminhou-se para a retaguarda da coluna. West gritou:

— Aonde vai você, Tom?

— Procurar Obroski.

— Não pode ir sozinho, eu acompanho-o.

Meia dúzia de outros o acompanharam, mas embora procurassem durante quase uma hora, não encontraram qualquer sinal de Obroski, morto ou vivo.

Silenciosos, tristes e sombrios, acamparam ao fim da tarde. Falavam em voz baixa. Sombriamente foram sentar-se à mesa, quando a ceia ficou pronta, e poucos pareceram notar o facto de que a famosa Naomi Madison os servia.

 

                   O cobarde

Todos nós somos, de algum modo, vítimas ou beneficiários da hereditariedade e do ambiente. Stanley Oborski pertencia ao número das vítimas. A hereditariedade dera-lhe uma poderosa aparência física, um porte cheio de nobreza, uma bela face. O ambiente abrigara-o e protegera-o durante toda a sua vida. Todos aqueles, a quem tinha conhecido, haviam admirado a sua grande força, atribuindo-lhe coragem em proporções iguais.

Nunca, até aos últimos dias, Obroski fora obrigado a enfrentar uma emergência que pusesse à prova a sua coragem, e assim, durante toda a sua vida ele perguntara a si mesmo se a sua coragem estaria à altura da emergência que surgisse. Tinha pensado nisso muito mais frequentemente do que o faria um homem com um físico normal, pois sabia que dele se esperaria muito mais do que de um homem vulgar. E isso tornara-se uma obsessão, juntamente com o medo de não se mostrar à altura do que dele esperavam os seus admiradores. Assim, pouco a pouco, passara a sentir medo — o medo de ter medo.

É um ponto fraco de quase todos os homens de grande estatura, a noção do ridículo. Era mais o medo do ridículo do que o de qualquer sofrimento físico, o que torturava Obroski, embora talvez não compreendesse isto. Um complexo demasiadamente complicado para uma análise fácil.

Mas os resultados eram desastrosos. Incutiam-lhe uma tendência subconsciente para evitar o perigo, de preferência a mostrar medo e cair no ridículo. Assim, quando as primeiras flechas cairam sobre os carros, Obroski tinha saltado pelo lado oposto e desaparecera entre o capim, até se sentir abrigado por todos os lados. A sua reacção ante o perigo fora espontânea — independente da sua vontade.

Enquanto corria, às cegas, estava tão desprovido de raciocínio como um animal selvagem, aterrorizado, com a ideia única de fugir. Mas percorrera apenas alguns metros quando foi praticamente cair nos braços de um negro gigantesco.

Aquela era, em verdade, uma emergência. O negro ficou tão surpreendido como Obroski. Provavelmente, pensou que todos os brancos se iam lançar ao ataque, e ficou apavorado. Queria fugir, mas o branco estava demasiado perto. Então saltou sobre ele, chamando os seus companheiros.

Também era demasiado tarde para que Obroski pudesse escapar-se ao negro. Se não fizesse alguma coisa, o guerreiro matá-lo-ia... mas se pudesse lutar, talvez lhe fosse possível voltar para o safari. Tinha de se livrar do negro.

O guerreiro agarrara-o pela roupa, e Obroski viu que ele empunhava uma faca. Era a morte, cara a cara. Até então, os receios de Obroski haviam sido mais ou menos imaginários... mas agora enfrentava a realidade.

O terror galvanizou-lhe a mente e os poderosos músculos: agarrou o negro, levantou-o acima da cabeça e atirou-o ao chão, com tremenda força.

O guerreiro, receando pela vida, tentou levantar-se... e Obroski, movido por um medo igual, voltou a erguê-lo acima da cabeça e a projectá-lo a distância. Mas meia dúzia de outros negros surgiram de entre as altas ervas e cairam sobre ele.

Doido de terror, Obroski lutou como um rato encurralado. Os negros não eram adversários para os seus poderosos músculos. Agarrou-os, atirando-os de lado, e lançou-se em corrida. Mas o primeiro que ele derrubara estendeu a mão e agarrou-o por um tornozelo, fazendo-o cair. Os outros saltaram-lhe em cima, e vieram mais. Pela bruta superioridade numérica, dominaram-no e amarraram-lhe as mãos, nas costas.

Em toda a sua vida, Obroski nunca havia lutado. Uma disposição tolerante e o seu estranho complexo, tinham-no feito evitar complicações, e a sua estatura, e força, tinham evitado que os outros o provocassem. Na verdade nunca compreendera exactamente como era grande a sua força — e agora, as suas faculdades mentais parcialmente embotadas pelo terror, apenas a compreendia em parte. Tudo o que entendia era que lhe tinham amarrado as mãos, que estava sem defesa e iam matá-lo.

Por fim, obrigaram-no a levantar-se. Não compreendia por que razão não o matavam, nessa altura. Os negros pareciam pasmados diante da sua força e estatura. Falaram rapidamente uns com os outros, gesticulando, e arrastaram-no para a floresta.

Obroski ouvia os gritos de guerra dos que atacavam o «safari», e o tiroteio indicou-lhe que os seus companheiros se defendiam corajosamente. Algumas balas passaram perto, e um dos seus captores tombou, com o coração varado.

Levaram-no para a floresta, ao longo de uma trilha sinuosa, e pouco depois foram alcançados por outros grupos de negros. Muitos destes falavam excitadamente, rodeando o prisioneiro, apalpando os seus grandes músculos e comparando, com a dele, a sua própria estatura.

Olhos raiados de sangue, faces bárbaras, pintadas de horrível maneira, olhavam-no com um ódio que não precisava do conhecimento do dialecto para se tornar evidente. Alguns ameaçavam-no com lanças e facas, mas aqueles que o haviam capturado impediam que as ameaças fossem postas em execução.

Stanley Obroski estava tão apavorado que caminhava como alguém em transe, sem manifestar sinais exteriores de qualquer emoção; mas os negros consideravam isso como a indiferença consequente de uma grande coragem.

Por fim, um guerreiro de grande estatura juntou-se a eles. Resplandecia de pinturas, e penas, e colares, e braceletes, e argolas. Usava um escudo enfeitado, e a aljava das suas flechas era mais adornada do que as dos outros. Mas foi o seu ar dominador, autoritário, o que convenceu Obroski de que se tratava de um chefe. Enquanto escutava os guerreiros que haviam capturado o branco, olhava este com um ar de altivo desdém. Deu algumas ordens e afastou-se, logo seguido pelos outros, e depois disso mais ninguém ameaçou o prisioneiro. Caminharam durante toda a tarde, internando-se mais e mais na sombria floresta,. As cordas que prendiam os pulsos de Obroski rasgavam-lhe a pele, magoando-o; outra corda, que lhe envolvia o pescoço e pela qual o puxavam, estava demasiadamente apertada e, quando o negro a esticava, o que fazia frequentemente, Obroski quase sufocava.

Sentia-se profundamente desesperado, mas ao mesmo tempo tão aturdido que não se queixava. Talvez compreendesse que os queixumes seriam inúteis, e que mais valia não criar dificuldades nem chamar as atenções.

O resultado desta estratégia, se disso se tratava, não podia ser entendido por ele — pois não compreendia as palavras que os negros trocavam, referindo-se ao branco que parecia ignorar o medo.

Durante a longa marcha, os pensamentos de Obroski giravam com frequência em redor dos companheiros a quem abandonara. Conjecturava sobre a forma como decorrera a luta, e sobre se alguns deles teriam morrido. Sabia que muitos desses companheiros o desprezavam. Que pensariam agora? Marcus devia tê-lo visto fugir ao primeiro sinal de perigo. Obroski teve uma crispação, quando o velho medo do ridículo o invadiu mais uma vez; mas isso nada era comparado com o terror que o atormentou ao olhar de relance as faces selvagens, e ao recordar as histórias que ouvira, de tortura e morte às mãos de bárbaros como aqueles.

Ouviu brados, adiante, e um momento depois a trilha chegou a uma clareira, ao centro da qual se erguia uma aldeia de cubatas cónicas, cercada por uma sólida paliçada. Era ao fim da tarde, e Obroski calculou que devia ter percorrido uma distância considerável desde a sua captura. Pensou vagamente se, na hipótese de o libertarem ou de poder fugir, seria capaz de encontrar o «safari». Mas tinha muitas dúvidas.

Quando entraram na aldeia, bandos de mulheres e crianças adiantaram-se, para o ver. Pelas expressões das mulheres, concluiu que o insultavam e praguejavam contra ele. Algumas batiam-lhe, ou arranhavam-no. As crianças atiravam-lhe pedras e esterco.

Os guerreiros que o escoltavam obrigaram as mulheres e as crianças a afastar-se, e levaram-no ao longo da única rua da aldeia, até uma cubata ao fundo. Aí, ordenaram-lhe, por gestos, que entrasse; mas a entrada era tão baixa que Obroski só podia transpô-la gatinhando, o que não lhe era possível por ter as mãos amarradas nas costas.

Derrubaram-no e arrastaram-no. Então amarraram-lhe os tornozelos e foram-se embora.

O interior da cubata estava às escuras, mas quando os olhos de Obroski se habituaram à escuridão, pôde distinguir vagamente o que o rodeava. Só então compreendeu que não estava só. No seu curto campo de visão distinguia três vultos, evidentemente homens. Um deles estava estendido no chão de terra batida. Os outros dois, sentados, estavam curvados sobre os joelhos erguidos. Um destes fitava o branco. Seriam também prisioneiros? O negro falou:

— Como os Bansutos te agarrar, «Bwana Simba»?... — disse ele, dando a Obroski o nome que lhe davam os carregadores do «safari», por ele representar o papel do homem-leão.

— Quem raio é você?... — perguntou Obroski.

— Kwamudi...

— Kwamudi? Hum! Não ganhou nada em fugir... — e Obroski deteve-se no momento exacto em que ia acrescentar — ... também... Atacaram-nos pouco depois do meio-dia, e aprisionaram-me. Como o agarraram?

— Esta manhã, cedo, eu seguir minha gente para convencer a voltar para o «safari»... — Obroski pensou que Kwamudi devia estar a mentir. — Encontrámos um bando de guerreiros que vir de aldeia distante para juntar à tribo. Eles matar muitos dos meus, mas alguns fugir e outros apanhados, presos. Dos presos, eles matar todos menos Kwamudi e estes dois. Trazer nós aqui.

— E que vão fazer com vocês? Por que não os mataram como mataram os outros?

— Eles não matar a ti, nem a Kwamudi, nem a estes, por mesma razão... até agora. Matar pouco a pouco.

— Porquê? Para que querem matar-nos?

— Eles comer.

— Hem? Você quer dizer que são canibais?

— Eles não comer só homens, sempre, nem todos. Só chefes, homens valentes e homens fortes... Comer valentes para ter coragem, fortes para ter força, e chefes para ter sabedoria...

— É horrível... — murmurou Obroski. — Mas não podem comer-me... Não sou chefe e não sou valente, sou um cobarde... — acrescentou, em voz ainda mais baixa.

— Que dizer tu «Bwana»?

— Hem? Oh, nada... Quando pensa que farão isso? Agora?

— Talvez, mas talvez demorar muito... — disse Kwamudi, abanando a cabeça. — Feiticeiro fazer feitiço, falar com espíritos, falar com lua... Esses dizer-lhe quando. Talvez agora, talvez não.

— E vão manter-nos amarrados até nos matarem? É incómodo... Mas você não está amarrado, pois não?

— Sim, Kwamudi amarrado, mãos e pés. Por isso sentar assim.

— Sabe falar a linguagem deles, Kwamudi?

— Sim, alguma coisa.

— Então diga-lhes que nos soltem as mãos, talvez também os pés, se quiserem.

— Não bom. Perder palavras.

— Escute, Kwamudi... Eles querem-nos fortes quando nos comerem, não é?

— Sim, «Bwana».

— Então diga ao chefe que, se ficarmos assim, enfraqueceremos. Ele deve ser esperto bastante para compreender isto. Tem muitos guerreiros para nos guardar, e de qualquer maneira não poderíamos fugir daqui, com as mulheres e os malditos garotos que andam por toda a parte.

Kwamudi compreendeu a ideia, embora sem entender algumas palavras. Respondeu:

— Se eu puder, eu dizer.

Anoiteceu. O clarão das fogueiras era visível através da entrada baixa da cubata. As mulheres choravam e gritavam pelos guerreiros que nesse dia tinham morrido em combate. Muitas tinham os corpos cobertos de cinzas, o que as tornava ainda mais horríveis. Outras falavam e riam.

Obroski tinha fome e sede, mas não lhe levaram comida nem água. As horas arrastavam-se. Os tam-tans ressoavam, monótonos, na noite, quando os guerreiros começaram a dançar para festejar a vitória. Os gemidos das carpideiras e os brados de guerra dos dançarinos aumentavam a angústia dos presos.

— Isto não é maneira de tratar pessoas a quem querem comer... — resmungava Obroski. — Costumam engordar-se, não se matam à fome...

— Os Bansutos não querem saber de gordura... — explicou Kwamudi. — Eles comer corações, palmas das mãos e solas dos pés... Comer músculos, teus braços e pernas, comer meus miolos.

— Você não é animador, nem delicado... — disse Obroski, com um triste sorriso. — Mas não há muito que escolher entre os nossos miolos, porque nos deixámos apanhar no mesmo buraco.

 

                  Traição

Orman e Bill West entraram na tenda que servia de cozinha, depois da ceia.

— Vamos lavar os pratos... — disse o director. — Temos tão pouca gente que não é possível destacar homens para isso, sem enfraquecer a vigilância. Jimmy e Shorty ficam a cozinhar e a ajudar nos outros trabalhos.

Rhonda abanou a cabeça:

— Vocês tiveram um dia difícil, ao passo que nós ficámos sentadas no carro. Sentem-se aí, fumem e conversem connosco, precisamos de ânimo. Nós quatro tratamos dos pratos. Não é assim?... — perguntou, voltando-se para Jimmy, Shorty e Naomi.

— Com certeza... — responderam em coro Jimmy e Shorty.

Naomi concordou, com um aceno, acrescentando:

— Lavei pratos até depois da meia-noite, em tempos, para uns quantos tipos de Main Street.

Posso lavá-los para vocês... Mas façam o que Rhonda diz, sentem-se e contem coisas engraçadas... senão dou em maluca.

Houve um momento de silêncio. Todos sentiam que não ficariam muito mais surpreendidos se vissem a rainha Mary aos saltos em Trafalgar Square. Então Orman riu-se e deu uma palmada na anca de Naomi, exclamando:

— Valente rapariga!

Era uma nova Naomi, e todos sabiam que iam gostar incomparavelmente mais desta que da outra.

— Não me importo de me sentar e de falar... — declarou West — ...mas não consigo dizer nada engraçado... Não posso esquecer Clarence, e Jerrold, e os outros...

— Pobre Stanley... — murmurou Rhonda. — Nem sequer teve um enterro decente.

— Não o merecia... — disse Jimmy, o que tinha sido fuzileiro. — Desertou em combate.

— Não devemos ser demasiado duros para ele... — disse Rhonda. — Ninguém é cobarde por querer, é porque não pode evitá-lo. Devemos ter pena...

Jimmy resmungou entre dentes, e Bill West declarou:

— Talvez tivéssemos pena, se gostássemos dele.

— Tinha os seus defeitos.., — volveu Rhonda, olhando friamente para Bill — .. .mas ao menos nunca o ouvi dizer mal de ninguém.

— Nunca estava acordado durante tempo bastante. .. — comentou Jimmy, com desprezo.

— Não sei o que poderei fazer sem ele... — disse Orman.

— Não tenho quem possa fazer um duplo para o papel que ele tinha.

— Pensa em continuar o filme, depois do que aconteceu?... — perguntou Naomi.

— Foi para isso que viemos e é isso o que vamos fazer, custe o que custar... — respondeu Orman.

— Perdeu o principal actor, o director de som e o secundário mais importante, além de outros. Não tem guias e não tem carregadores. Se pensa que pode fazer um filme sem isso, é porque não tem o juízo todo, Tom.

— Nunca vi um bom realizador que tivesse juízo... — comentou West.

Pat O'Grady espreitou para o interior da tenda, perguntando:

— O chefe está aqui? Ah, vejo que está. Tom, esse Atewy diz que o velho Ghrennem fará a guarda, com a sua gente, da meia-noite às seis. Quer saber se você concorda. Atewy diz que os árabes vigiam melhor ficando juntos, do que em companhia de americanos a quem não entendem...

— «Okay»... — respondeu Orman. — É decente, da parte desses tipos. Assim os nossos rapazes podem descansar umas horas até nos pormos a caminho, pela manhã, e Deus sabe que precisam disso. Diga-lhes que os acordamos à meia-noite.

Exaustos pelo esforço físico e pela tensão nervosa do longo dia, os membros da companhia, que não estavam de guarda, adormeceram logo depois. Os outros sentiram arrastar-se o tempo até à meia-noite, numa vigilância tornada mais penosa pela monotonia do silêncio quase completo da selva. Só de muito longe lhes chegavam, ténus, os ruídos a que estavam já habituados. Era como se as próprias feras tivessem abandonado a região. Finalmente, chegou a meia-noite e O'Grady foi despertar os árabes. Cansados, os americanos estenderam-se entre os cobertores e mergulharam num sono pesado.

Nem mesmo as estranhas actividades dos árabes os despertaram. Mas, na verdade, os filhos do deserto moveram-se tão silenciosamente quanto a sua tarefa lho permitia, uma tarefa surpreendente para homens cuja única ocupação devia ser a vigilância do acampamento.

Gordon Z. Marcus foi o primeiro a levantar-se, pois os velhos precisam de menos sono que os novos. Mas era dia claro, muito mais tarde do que a hora habitual. Notando o silêncio do acampamento e a claridade do sol, Marcus vestiu-se apressadamente, saiu da tenda e no mesmo instante compreendeu que alguma coisa estava errada. Tudo parecia deserto, as fogueiras estavam apagadas e não havia sentinelas.

Marcus precipitou-se para a tenda ocupada por Orman e O'Grady, e entrou sem perder tempo, gritando:

— Sr. Orman! Sr. Orman!

Orman e O'Grady, arrancados ao sono pela voz excitada do velho actor, afastaram os mosquiteiros e ergueram-se, rápidos.

— O que há?... — perguntou Orman.

— Os árabes!... — exclamou Marcus. — Desapareceram! As tendas, os cavalos, tudo!

Nenhum dos dois homens falou, enquanto se vestiam rapidamente e corriam para o exterior. Orman olhou em volta, dizendo:

— Devem ter partido há horas... as fogueiras estão apagadas... — encolheu os ombros e acrescentou: — Passaremos sem eles, mas isso não significa deixarmos de comer. Onde estão os cozinheiros? Marcus, faça o favor de acordar as raparigas, e de sacudir Jimmy e Short.

— Achei que essa gente estava a ser demasiadamente atenciosa, de repente, quando se ofereceram para ficar de sentinela durante a noite... — comentou O'Grady.

— Eu devia ter desconfiado... — disse Orman. — Intrujaram-me. Sou um imbecil.

— Aí vem Marcus... — exclamou O'Grady. — Que haverá agora? Parece espantado...

Gordon Z. Marcus estava na realidade espantado. Bradou, ainda antes de se aproximar:

— As raparigas não estão na tenda, e está tudo em desordem!

Orman voltou-se e correu para a tenda-cozinha... mas Naomi e Rhonda também ali não estavam. Toda a gente despertara, agora, e fizeram uma busca completa, sem encontrar as duas raparigas. Bill West procurou várias vezes nos mesmos lugares, recusando-se a aceitar a realidade. Orman começou a preparar um pequeno volume com provisões, mantas e munições.

— Para onde e por que razão as teriam levado?...

— disse Marcus.

— Para onde não sei, mas a razão deve ser resgate... — volveu O'Grady.

— Gostaria de ter a certeza disso... — murmurou Orman — ...mas ainda há mercados de escravas em África e na Ásia...

— Por que motivo revolveram tudo, na tenda?...

— continuou Marcus. — Parece que passou por ali um ciclone.

— Não houve luta, senão alguém teria acordado...

— comentou Pat.

— Talvez os árabes procurassem coisas para roubar... — lembrou Jimmy.

Bill West, que tinha estado a observar Orman, começou também a preparar um volume. O realizador notou isso.

— Aonde julga você que vai?... — perguntou.

— Vou com você.

— Não... — disse Orman, abanando a cabeça. — O funeral é meu.

West continuou a fazer os seus preparativos, sem responder.

— Se vocês vão procurar as pequenas, eu também vou... — declarou Pat.

— E eu... — disse outro. Todos queriam ir.

— Eu vou sozinho... — afirmou Orman. — Um homem, a pé, pode deslocar-se mais depressa do que uma caravana de carros, e mais depressa do que tipos a cavalo, que terão de abrir caminho para passar.

— E que raio pode fazer um homem se apanhar esses ratos?... — perguntou O'Grady. — Pode fazer-me matar, mais nada. Ou quer lutar contra todos?

— Não vou lutar... — retorquiu Orman. — Meti as pequenas nisto por não me servir da cabeça, agora vou servir-me dela para as livrar. Esses árabes farão tudo por dinheiro, e eu posso oferecer-lhe mais do que seja quem for a quem queira vendê-las.

— Talvez tenha razão, Orman... — disse O'Grady, coçando a cabeça.

— Claro que tenho razão... — afirmou Orman. — Você fica a dirigir isto, na minha ausência. Sigam para Omwamwi Falis, e esperem lá por mim. Talvez aí possam contratar nativos. Mandem um mensageiro a Jinja, pelo caminho do sul, com uma nota para o estúdio, a contar o que se passou e a pedir ordens, se eu não voltar dentro de trinta dias.

— Você vai partir sem comer?... — perguntou Marcus.

— Não, vou comer... — disse Orman.

— Que há de almoço?... — gritou O'Grady.

— Vai já... — bradou Shorty, em resposta.

Orman comeu rapidamente, ao mesmo tempo que dava as últimas instruções a O'Grady. Quando acabou, levantou-se, pôs o volume às costas e pegou na espingarda.

— Adeus, rapazes.

Todos quiseram apertar-lhe a mão e desejar-lhe sorte.

Bill West estava a pôr às costas a mochila que preparara. Orman olhou para ele.

— Você não pode vir, Bill. O trabalho é meu.

— Vou com você... — volveu Bill.

— Não deixarei...

— Você e mais quem?... — perguntou Bill; e acrescentou, tentando dominar-se: — Eles levaram Rhonda.

A expressão de Orman, que endurecera, modificou-se.

— Está bem, Bill. Venha. Não tinha pensado no caso dessa maneira.

Os dois homens atravessaram o acampamento e seguiram a pista clara deixada pelos cavaleiros, a pista que se prolongava na direcção norte.

 

                   Tortura

Nunca Stanley Obroski vira romper o dia com uma tão grande satisfação. O novo dia podia trazer-lhe a morte, mas tudo seria preferível aos des-confortos da longa e dolorosa noite que desaparecia no passado.

As cordas feriam-no, as articulações doíam-lhe em consequência do frio e da inacção; tinha fome, mas era sobretudo a sede que o torturava. Não dormira nem um momento, atormentado pelos insectos e angustiado pelo bater dos tam-tans e pelos gritos e gemidos lá fora.

Tudo isto havia minado a sua força, tanto física como nervosa, deixando-o exausto. Sentia-se como uma criança assustada, e apetecia-lhe chorar. A necessidade de chorar era quase irresistível, aparecia-lhe como um alívio para a tensão intolerável.

Mas uma convicção vagamente formulada abria caminho no seu cérebro entorpecido — chorar significaria medo, e medo seria cobardia! Obroski não chorou, mas achou uma espécie de alívio em praguejar. Nunca tinha sido homem de palavrões, no entanto...

Acabou por acordar Kwamudi, que dormia tranquilamente naquele ambiente que lhe era familiar. Os dois homens trocaram algumas frases entrecortadas, quase só a respeito da fome e da sede.

— Grite para que tragam água e comida... — disse o branco — ...e não pare de gritar antes que tragam ambas as coisas...

Kwamudi pensou que talvez fosse boa ideia, e pô-la em execução. Ao cabo de cinco minutos, deu resultados. Um dos guardas, no exterior da cubata, foi acordado e entrou, a dizer coisas.

Entretanto os outros dois prisioneiros tinham acordado também e haviam-se sentado. Um deles estava mais perto da porta, e foi sobre esse que o guerreiro desabafou a sua cólera, batendo-lhe com a haste da lança.

— Se voltarem a fazer barulho, corto a língua a todos... — declarou o guarda, antes de sair para retomar o sono.

— A ideia não era grande coisa... — comentou Obroski.

— Como, «Bwana»?... — perguntou Kwamudi.

A manhã arrastou-se, e era quase meio-dia sem que houvesse movimento na aldeia. Os negros dormiam sob os efeitos da orgia da véspera. Por fim apareceu uma mulher, que começou a fazer preparativos para a primeira refeição.

Tinha passado mais de uma hora quando alguns guerreiros entraram na cubata. A pontapés, arrastando-os, puxaram os prisioneiros para o exterior e obrigaram-nos a ficar de pé, depois de lhes terem soltado as pernas. Então conduziram-nos para uma cubata maior, ao centro da aldeia. Era a cubata de Rungula, chefe dos Bansutos.

Rungula estava sentado num banco baixo, diante da entrada. Atrás dele alinhavam-se os subchefes mais importantes, e aos lados, formando um vasto semicírculo, estavam os outros guerreiros — cerca de um milhar de ferozes negros vindos de todas as aldeias dos Bansutos.

Da entrada da cubata do grande chefe, algumas das suas mulheres espreitavam, curiosas, enquanto um bando de crianças passavam entre as pernas delas e saíam para o sol. Rungula olhou, carrancudo, para o prisioneiro branco. Depois falou, dirigindo-se a ele.

— Que diz ele, Kwamudi?... — perguntou Obroski.

— Pergunta o que vieste fazer às suas terras...

— Diz-lhe que nós só queríamos passar, que somos amigos e deve soltar-nos...

Quando Kwamudi interpretou as palavras do branco, Rungula riu-se.

— Diz ao branco que só um chefe maior que Rungula pode dizer-lhe que deve fazer seja o que for... e nenhum chefe é maior que Rungula! O branco vai morrer, e os seus amigos também. Teria morrido ontem, se não fosse tão grande e forte...

— Não continuará a ser forte se não tiver comida e água... — respondeu Kwamudi. — Nenhum de nós lhes servirá para nada de bom, se nos fizerem ficar amarrados e morrer de fome.

Rungula meditou na resposta e discutiu o caso com os seus tenentes. Então levantou-se e, falando sem parar, aproximou-se de Obroski. Apalpou o tecido da camisa do branco. Parecia também impressionado pelos calções e pelas botas altas de Obroski.

— Ele diz para tirares as tuas roupas, «Bwana»... — disse Kwamudi. — Quere-as.

— Todas?

— Sim, todas.

Exausto pela noite de insónia, de desconforto e de terror, Obroski julgara que apenas a tortura e a morte poderiam aumentar a sua desgraça, mas a ideia da nudez despertou nele novos horrores. Para o homem civilizado, a roupa significa uma certa confiança em si próprio, que ele perde quando se despe em público. Mas Obroski não ousou recusar-se. — Diz-lhe que não posso despir as roupas tendo as mãos amarradas nas costas.

Quando Kwamudi interpretou a objecção, Rungula ordenou que soltassem as mãos do branco.

O prisioneiro despiu a camisa e atirou-a para Rungula. Então o chefe apontou para as botas dele. Devagar, Obroski desatacou as botas e descalçou-as, sentando-se no chão para esse efeito. Rungula ficou intrigado pelas meias, e ele próprio as puxou.

Obroski levantou-se e ficou à espera. Rungula apalpou-lhe os fortes músculos e voltou a falar com os seus tenentes. Então chamou o mais alto dos guerreiros e disse-lhe que se pusesse ao lado do preso; Obroski era bastante mais alto que o negro. Todos os guerreiros falavam agora, excitadamente. Rungula apontou para os calções do branco e disse qualquer coisa.

— Ele quer os teus calções... — explicou Kwamudi.

— Por Deus, diz-lhe que não me tire isto... — pediu Obroski. — Preciso ficar com alguma roupa.

Kwamudi e o chefe trocaram algumas palavras, gesticulando.

— Despe isso, «Bwana»... — disse o negro. — Não poder fazer outra coisa. Ele dizer que dar coisa para vestir.

Quando despiu os calções, Obroski sentiu-se envergonhado ao ouvir os risos das mulheres e das raparigas, lá atrás. Mas o pior estava para vir, pois Rungula ficou encantado com as cuecas de seda, que a ausência dos calções havia revelado. Quando também as cuecas passaram para a posse de Rungula, Obroski corou vivamente, sob o bronzeado que adquirira na praia de Malibu.

— Diz-lhe que me dê qualquer coisa para vestir... — pediu.

Quando Kwamudi repetiu o pedido, Rungula riu às gargalhadas, mas depois voltou-se e deu uma ordem, a uma das mulheres atrás dele. Um momento mais tarde, um garoto veio a correr, de dentro da cubata, trazendo uma tanga curta e suja que atirou para junto do branco.

Pouco depois os prisioneiros voltaram para a cubata onde tinham estado, mas não lhes amarraram os pés e também não amarraram os pulsos de Obroski. Enquanto este libertava as mãos dos seus companheiros de miséria, veio uma mulher trazendo água e comida — e a partir de então os prisioneiros foram alimentados com razoável regularidade.

Monotonamente, os dias arrastavam-se. Cada lenta e horrível noite parecia uma eternidade para o branco. Tremia de frio, na sua nudez, e buscava algum calor instalando-se entre dois dos negros. Todos eles estavam cobertos de bicheza.

Passou uma semana, e então, uma noite, alguns guerreiros vieram e levaram um dos negros. Obroski e os outros espreitaram, pela entrada da cubata. O homem desapareceu para além de uma cubata próxima da do chefe. Não voltaram a vê-lo.

Os tam-tans recomeçaram, monótonos e sinistros; as vozes dos negros subiam e desciam, numa toada selvagem, fantástica; por vezes, Obroski e os seus companheiros viam as sombras dos dançarinos, em redor da fogueira.

De súbito um horrível grito de agonia vibrou acima de todos os ruídos. Então, e durante quase meia hora, os gemidos e os gritos repetiram-se... até que cessaram.

— Morreu, «Bwana»... — sussurrou Kwamudi.

— Sim, mercê de Deus... Que agonia deve ter sido a dele... — murmurou o branco.

Na noite seguinte, vieram novamente os guerreiros e levaram o outro negro. Obroski esforçou-se por não ouvir. Nessa noite teve mais frio, porque na cubata apenas ficara Kwamudi para o aquecer de um lado.

— Amanhã à noite, «Bwana»... — disse Kwamudi — ...ficarás só.

— E na outra noite...

— Não haverá outra noite, «Bwana»... para ti...

Durante as horas gélidas e insones, os pensamentos de Obroski vaguearam pelo passado, sobretudo o passado mais próximo. Pensou em Naomi Madison, e conjecturou vagamente se ela teria sofrido com a sua desaparição. Concluiu que não.

A maior parte dos outros eram recordações imprecisas na sua memória; não os estimava, e não os odiava. Mas um deles recortava-se com nitidez ainda maior do que Naomi. Era Orman. O ódio que sentia por Orman era ainda maior do que o amor por Naomi, maior do que o medo da tortura e da morte. Agarrou-se a esse ódio como a alguma coisa que o ajudava a esquecer a sujeira, e o frio, e a angústia do que iria acontecer-lhe na noite seguinte, ou na outra.

As horas arrastaram-se. Veio o dia... veio outra vez a noite. Obroski e Kwamudi ouviram os passos dos guerreiros que se aproximavam.

— Eles vêm, «Bwana»... — disse simplesmente Kwamudi. — Adeus.

Mas, desta vez, levaram ambos. Levaram-nos para o espaço aberto em frente da cubata de Rungula, chefe dos Bansutos, e amarraram-nos aos cepos de duas árvores, voltados um para o outro.

Então Obroski viu o que eles faziam a Kwamudi, torturas tão horríveis, tão obscenas, que ele julgou estar a endoidecer e a imaginar o que via. Tentou desviar os olhos, mas o horror dominava-o, fascinava-o. E viu morrer Kwamudi.

Depois viu cenas ainda mais pavorosas, mais repugnantes. Esperava que fosse a sua vez, e rezou para que fosse depressa... e depressa acabasse. Tentou couraçar-se contra o medo, mas sabia que tinha medo. Com desesperados esforços de vontade tentou fixar na mente a decisão de não trair o seu sofrimento, para não dar aos carrascos essa alegria quando a sua vez chegasse. Vira-os rir-se da terrível agonia de Kwamudi.

Era quase manhã quando o desamarraram da árvore e o conduziram novamente para a cubata. Compreendeu que não o matariam nessa noite, que a angústia da espera ia ainda prolongar-se.

Ficou só, no frio e na imundície da cubata, a tremer, sem poder dormir. Um verme passou lentamente sobre ele, sem que Obroski se movesse. A miséria e o desespero tinham-no lançado numa apatia que lhe evitou a loucura.

Por fim, exausto, adormeceu e só acordou ao meio da tarde. Sentia calor, agora, e com o calor como que uma ressurreição de vida. Começou a fazer planos. Não morreria passivamente, como os outros. Quanto mais se absorvia nesses planos, mais desejava pô-los em execução; e começou a esperar, impaciente, que o levassem para a tortura.

Os seus planos não incluíam a fuga, porque não a considerava possível, mas sim uma certa medida de vingança e a morte sem tortura lenta. A razão de Obroski vacilava.

Quando, à noite, viu que os guerreiros se aproximavam mais uma vez, saiu e foi ao encontro deles, sorrindo.

E os guerreiros levaram-no.

 

                   A última vítima

Tarzan percorria uma região que era desconhecida para ele, e com a vigilância permanente que faz parte da vida dos animais selvagens, observava tudo o que podia parecer estranho ou raro. Dos seus conhecimentos dependia a possibilidade de enfrentar as emergências que surgissem num ambiente desconhecido. Nada lhe parecia tão insignificante que não merecesse observação; e de certa maneira, em alguns aspectos relativos à vida dos animais daqueles territórios, em breve ficou a saber mais do que outros que haviam nascido ali...

Durante três noites ouvira o quase constante ruído dos tam-tans, a distância, e no dia que se seguiu à terceira noite estava bastante perto do lugar de onde tinha vindo o som dos tambores dos negros.

Tinha visto alguma coisa dos nativos que habitavam a região, observara os seus processos de guerra contra os brancos que tinham invadido as suas terras. As suas simpatias não pendiam para qualquer dos lados. Vira Orman, bêbedo, chicotear os carregadores, e concluíra que, qualquer que fosse a má sorte que lhe coubesse, seria merecida.

Tarzan não conhecia aqueles Tarmangani, e assim, para ele, significavam menos do que as feras consideradas inferiores, mas que para o homem da selva eram, pelo contrário, superiores aos homens em muitos aspectos.

Algum pormenor, algum capricho de momento, podia tê-lo feito simpatizar com os brancos, tal como por vezes simpatizava com Numa, e Sabor, e Sheeta, que eram por natureza seus inimigos hereditários. Mas isso não aconteceu, e assim Tarzan deixara simplesmente de pensar nos Tarmangani, a partir da noite em que havia entrado no acampamento deles.

Tinha ouvido o tiroteio que se seguira ao ataque dos Bansutos contra o «safari»; mas nessa altura estava a grande distância e, porque já tinha assistido a outros ataques dos negros, nem mesmo a sua curiosidade o fez mover-se para ir investigar.

Interessavam-no mais os actos dos Bansutos. Os Tarmangani em breve desapareceriam dali, tendo morrido ou tendo seguido o seu caminho, mas os Gomangani ficariam. E Tarzan, para poder ficar algum tempo naquela região, tinha de saber mais a respeito deles.

Sem pressas, seguiu por entre as ramadas das árvores, na direcção da aldeia. Ia sozinho, agora, pois Jad-bal-ja, o leão doirado, fora caçar para outros lados, — fora complicar a existência, pensava Tarzan, com o esboço de um sorriso — seguindo uma jovem leoa através das profundidades da floresta.

Tinha anoitecido antes de o homem da selva alcançar a aldeia de Rungula. O ritmo dos tam-tans confundia-se com um cantar lento e gemente. Alguns guerreiros dançavam — mergulhando pouco a pouco na fúria que cresceria com o apressar dos tam-tans.

Tarzan observava-os, por entre a folhagem de uma árvore na orla da clareira ao centro da qual se erguia a aldeia. Não estava grandemente interessado; as orgias dos negros eram uma velha história para ele. Aparentemente, nada havia ali que pudesse prender a sua atenção, e ia afastar-se quando avistou o vulto de um homem que contrastava estranhamente com os selvagens guerreiros negros da aldeia.

O homem ia a entrar no espaço aberto onde se agitavam os dançarinos — e era um homem alto, bronzeado, quase nu, rodeado por um grupo de guerreiros. Era, evidentemente, um prisioneiro.

Agora a curiosidade de Tarzan estava desperta. Silenciosamente, saltou para o chão e, caminhando por entre as densas sombras da floresta, fora do espaço que o luar iluminava, deu a volta à aldeia. Ali não havia movimento, todos os negros se tinham concentrado junto da cubata do chefe.

Cauteloso mas rápido, Tarzan atravessou a faixa iluminada, entre a paliçada e a floresta. A paliçada, feita de troncos solidamente cravados na terra, encostados uns aos outros e atados com lianas, tinha cerca de três metros de altura.

Alguns passos em corrida, um salto, e as mãos de Tarzan firmaram-se no alto da barreira. Içando-se, olhou a aldeia, ao mesmo tempo que farejava o ar. Então, tranquilo, passou uma perna por cima da paliçada e, um momento depois, saltava para o terreno, no interior da aldeia de Rungula, o Bansuto.

Quando haviam desbravado a terra para instalar a aldeia, os negros tinham deixado algumas árvores para darem abrigo e sombra. Uma dessas árvores — Tarzan notara isso antes — debruçava-se sobre a cubata de Rungula, a maior da aldeia. E foi para essa árvore que Tarzan saltou, a fim de poder observar mais de perto o prisioneiro branco, depois de ter avançado por entre as sombras das cubatas.

Os movimentos do homem da selva eram silenciosos, embora qualquer ruído tivesse sido abafado pelos tam-tans. Junto da grande árvore havia outra, menor, cujos ramos se misturavam com os da primeira. Instantes depois, debruçado de uma sólida ramada, o homem da selva podia observar o que se passava em baixo. Agora o ritmo dos tambores era mais rápido. Guerreiros pintados saltavam em fúria, ao redor da fogueira e do pequeno grupo que cercava o prisioneiro. Ao ver este último, Tarzan sentiu uma espécie de choque... Era como se o seu espírito estivesse sobre a árvore — e olhasse para o seu próprio corpo, em baixo, tal era a espantosa semelhança entre aquele homem e Tarzan.

A estatura, o tom da pele, mesmo as feições, pareciam uma cópia fiel do homem da selva. E Tarzan compreendeu isso no mesmo instante.

Agora, mais do que nunca, o interesse de Tarzan acordara. Não imaginava quem poderia ser aquele homem, nem de onde teria vindo. Por um capricho do acaso não o vira quando tinha vigiado o acampamento do «safari», de maneira que não ligava a sua presença com a dos outros brancos. A nudez do homem afastava ainda mais qualquer ideia de ele pertencer ao grupo dos cineastas. Talvez fosse por isso que Tarzan ficou favoravelmente impressionado.

Obroski, inconsciente de que outros olhos, além dos dos negros, o observavam, olhava sombriamente a cena à sua volta. Era ali que Kwamudi e os outros dois tinham encontrado a morte; ali e às mãos daquela gente. Mas Obroski não os imitaria, não se submeteria à tortura. Tinha um plano.

Contava com a morte, não admitia qualquer outra possibilidade, mas não se deixaria torturar.

Sentado num pequeno banco, Rungula, o Bansuto, olhava, carrancudo, com os olhos raiados de sangue. A certa altura bradou ordens para os guerreiros que rodeavam o preso, e os negros empurraram este para a árvore cortada, preparando-se para o amarrar. Foi então que Obroski começou a pôr em acção o seu plano, o plano de um homem a quem o medo enlouquecia.

Agarrando o guerreiro que estava mais perto dele, ergueu-o no ar, como se ele não tivesse peso, e atirou-o sobre os outros, derrubando vários.

Deu um salto para a frente e apanhou um dos dançarinos, projectando-o ao chão, com tal força que o homem não se moveu mais. Tão súbito e inesperado fora o ataque, que os Bansutos ficaram por instantes petrificados. Mas Rungula levantou-se, de um salto, berrando:

— Agarrem-no! Agarrem-no, mas não lhe façam mal!

Mais do que nunca, Rungula queria que aquele poderoso branco morresse devagar, à sua maneira, e não da morte rápida que Obroski esperara ao enfrentar, sozinho e sem armas, um milhar de guerreiros. Quando os negros se lançaram sobre ele, o prisioneiro abateu-os com tremendos golpes, a que o desespero dava ainda mais força.

Os brados dos guerreiros, os gritos das mulheres, formavam um coro horrível que ainda mais enfurecia Obroski. Agarrava os braços que se estendiam para ele e partia-os como se fossem ramos frágeis de uma árvore seca.

Queria gritar e praguejar, mas lutava em silêncio. Nenhum som saía da sua garganta contraída. Apavorado, combatia contra um milhar de negros.

Mas tal luta não podia durar muito tempo. Lentamente, pela força do número, os guerreiros apertavam o cerco, agarravam-lhe as pernas, os pés. O preso continuava a bater em formidáveis golpes, mas por fim caiu.

E então...

 

                   O mapa

— Por Alá... — suspirou Eyad. — Penso que o xeque fez mal em trazer essas benat. Agora os Nasara vão seguir-nos, com muitas espingardas, e não desistirão enquanto não nos matarem para recuperar as benat. Eu conheço os brancos...

— Ullah yélbisak berneta... — disse Atewy, trocista.

— Tu encontraste o mapa. Isso não era bastante? Não nos seguiriam para nos matar por causa do mapa, mas todos os homens seguem e matam quando lhes tiram as mulheres, sejam quais forem os homens...

— Vou dizer-te, imbecil, por que razão trouxemos as benat... — disse Atewy. — Talvez não exista o vale dos diamantes, ou talvez não o encontremos. Teremos de voltar de mãos vazias para a nossa terra, depois de tantos esforços? Essas mulheres não são feias, podem render bom dinheiro em vários lugares que eu conheço, ou os Nasara podem pagar um bom resgate por elas. No fim tiraremos lucro delas, se não lhes fizermos mal. E isso lembra-me, Eyad, que te vi dirigir para elas olhares perigosos... Lembra-te de que o xeque matará alguém que lhes tocar, e se o xeque não o fizer, eu o farei.

— Essas mulheres não renderão nada, a não ser complicações... — insistiu Eyad. — Era melhor não as ter trazido.

— Ainda havia outra razão para as trazer... — retorquiu Atewy. — O mapa está escrito na linguagem dos ingleses, que eu sei falar mas não sei ler. As benat lerão o mapa. Convém levá-las.

Mas Eyad não estava ainda conforme. Era um beduíno sombrio, de lábios espessos e olhar sinistro. E não dizia o que pensava, a verdade não era aquela que as suas palavras exprimiam.

Desde manhã, muito cedo, que os cavaleiros seguiam para o norte, levando as duas raparigas. Tinham encontrado uma trilha aberta, e assim não haviam sido obrigados a demorar-se. Ao meio da pequena coluna iam as duas jovens, por vezes lado a lado porque, em muitos casos, a pista era larga. Tinha sido um dia longo e penoso, não só pela fadiga da cavalgada como pelo choque sofrido quando, pouco depois da meia-noite, Atewy e outros dois árabes haviam entrado na tenda, forçando-as a calar-se com ameaças de morte, e depois de revolverem tudo as haviam levado com eles.

Durante todo o dia elas tinham esperado algum sinal de que os companheiros viessem salvá-las, embora compreendendo que era esperar o impossível. Homens a pé não podiam alcançar os cavaleiros, e a trilha teria de ser alargada laboriosamente para que um carro pudesse passar, em muitos sítios.

— Não aguento muito mais... — disse Naomi. — Estou esgotada...

— Se sentir que vai a cair, agarre-se a mim... — disse Rhonda, aproximando a sua montada. — Isto não vai durar muito, hoje, não tardarão a acampar. Tem sido uma dura jornada... E os malditos parece que puseram tijolos na sela.

— Não entendo como você pode estar tão animada.

— Animada? Sinto-me como um «extra» que não arranja contratos.

— Acha que eles vão matar-nos, Rhonda?

— Não nos teriam trazido tão longe, se quisessem matar-nos. Devem querer um resgate.

— Espero que seja assim. Tom pagará seja o que for... Mas suponho que vão vender-nos. Dizem que os sultões negros compram raparigas brancas.

— O sultão negro que me comprar vai arrepender-se do negócio.

O sol ia mergulhar no horizonte quando os árabes acamparam. Ab el-Ghrennem tinha a certeza de que os brancos o perseguiriam, furiosos, mas contavam que não pudessem alcançá-los. A sua primeira ideia tinha sido afastar-se o mais possível dos Nasara a quem havia traído, mas agora ia poder examinar o mapa de que Atewy lhe falara, e que fora a causa principal da sua traição.

Terminada a refeição da noite, o velho xeque sentou-se perto da fogueira, onde o clarão do lume lhe permitia ver bem o precioso documento. Atewy olhava também, sobre o ombro dele.

— Não entendo isto... — resmungou o xeque. — Vai buscar a rapariga a quem o tiraste.

— Vou buscar as duas, porque não consigo diferençá-las... — disse Atewy.

Ab el-Ghrennem ficou a fumar o seu narguilé, enquanto esperava. Pensativo, imaginava um vale cheio de diamantes, e os cavalos e camelos que poderia comprar se tivesse esses diamantes. Estava quase bem disposto, quando Atewy voltou com as duas raparigas. Rhonda vinha de cabeça levantada, com um brilho belicoso no olhar, ao passo que Naomi, lívida, tremia de medo. O xeque olhou para esta última e disse, sorrindo:

— Ma áleyk...

— Ele diz... — interpretou Atewy — ...que nada temam, que ninguém lhes fará mal.

— Diga-lhe você... — respondeu Rhonda — ... que seria mau para ele se nos fizesse mal, e que se quer salvar a pele nos deve levar de volta, sem demora.

— Os beduínos não têm medo da tua gente... — volveu Atewy — .. .mas se fizeres o que o xeque te disser, nenhum mal te acontecerá.

— Que quer ele?... — perguntou Rhonda.

— Quer que nos ajudes a encontrar o vale dos diamantes.

— Qual vale dos diamantes?

— Está neste mapa, que nós não podemos entender porque não podemos ler inglês... — e Atewy apontava para o mapa que o xeque tinha na mão. Rhonda olhou para o papel e soltou uma gargalhada:

— Você quer diser que nos raptaram por julgarem que existe um vale dos diamantes? São tansos! lato é um acessório de cena!

— Tansos? Acessório? Não entendo.

— Estou a explicar-lhe que esse mapa não quer dizer coisa nenhuma. É uma coisa para usar no filme que estamos a fazer. Podem levar-nos de volta, não existe nenhum vale dos diamantes!

Atewy e o xeque falaram excitadamente um com o outro, e depois o primeiro voltou-se para as raparigas:

— Vocês não podem troçar dos beduínos, nós somos mais espertos. Já sabíamos que você ia dizer isso, porque quer os diamantes para o seu pai. Mas se entende o que lhe convém mais, ajude-nos a ler o mapa e a encontrar o vale. Senão... — e Atewy passou um dedo pelo pescoço, num gesto eloquente.

Naomi estremeceu, mas Rhonda não se impressionou. Sabia que, enquanto elas representassem um valor de resgate ou de venda, os árabes não as matariam, a não ser para se escaparem e como último recurso.

— Você não vai matar ninguém, Atewy... — disse ela — ...mesmo que eu não queira ler o mapa. Mas não há qualquer razão para que não o leia, estou às ordens. O que não há é vale dos diamantes.

— Vem, senta-te ao lado do xeque e lê o mapa... — disse Atewy.

Rhonda ajoelhou ao lado do xeque e, sobre o ombro dele, olhou para o papel amarelado e envelhecido. Com um dedo delgado, apontou para a parte superior do mapa:

— Isto é o norte... e aqui neste sítio fica o vale dos diamantes. Vê esta mancha irregular, a oeste do vale e perto dele? Tem uma seta a apontar, e uma legenda que diz: Coluna monolítica. Penedos de granito vermelho perto da única entrada do vale... E esta outra seta diz: Entrada do vale.

« — Aqui, na parte sul do vale, está a palavra «cataratas», e para além das cataratas há um rio que segue para o sul e depois para sudoeste.

— Pergunta-lhe o que é isto... — disse o xeque a Atewy, apontando umas letras à direita do mapa e a sueste das cataratas.

— Isso quer dizer «Aldeia dos canibais»... — explicou Rhonda — .. .e através do mapa está escrita a palavra Floresta. Este rio, que aparece a sueste do vale, segue para leste e sueste, e depois faz uma larga curva antes de entrar no «Rio grande», que é aqui. Dentro da curva está escrito Terreno aberto, e a oeste indica: Colina cónica, árida, vulcânica... Aqui há outro rio que começa a sueste do mapa e segue para noroeste, juntando-se ao segundo rio antes de este ir desaguar no Grande Rio.

O xeque Ab el-Ghrennem cofiava a barba com os dedos, olhando pensativamente o mapa. Por fim apontou as cataratas, com um dedo.

— Atewy... — disse ele — ...isto é Omwamwi Falis, as cataratas de Omwamwi... e ali é a aldeia dos Bansuto. Nós estamos aqui... — e apontava um lugar perto da junção do segundo rio, com o terceiro. — Amanhã atravessamos este rio e chegamos ao terreno aberto. Então devemos encontrar a colina árida.

— Por Alá!... — exclamou Atewy. — Fazendo isso não tardaremos a alcançar o vale dos diamantes, pois o resto do caminho é fácil.

— Que disse o xeque?... — perguntou Rhonda. Atewy explicou-lhe, e acrescentou:

— Todos nós vamos ficar muito ricos... Então eu compro-te ao xeque e levo-te para o meu ashirat...

— Caveat emptor... — avisou a jovem.

— Não entendo, bint...

— Entenderá, se algum dia me comprar... E não me chame bint, não gosto da palavra.

Atewy traduziu o que ela tinha dito, e o xeque riu-se, dizendo:

— A Narraivia ficará bem no beyt de Ab el-Ghrennem... — na verdade não entendera o que Atewy tinha dito a Rhonda — .. .e quando esta expedição chegar ao fim, acho que vou ficar com as duas, porque serei tão rico que não hei-de precisar de as vender. Esta é divertida...

Atewy não ficou contente. Queria Rhonda e estava decidido a tê-la, quer o xeque concordasse, quer não. Foi então que, na mente de Atewy, começaram a esboçar-se planos que teriam feito subir a tensão arterial do xeque, se pudesse adivinhá-los.

Os árabes estenderam mantas no chão, perto da fogueira, para as duas raparigas, e a sentinela ficou perto para que elas não tivessem qualquer possibilidade de fugir.

— Temos de nos safar destes tipos... — disse Rhonda a Naomi, quando ambas se estenderam sobre as mantas. — Quando virem que o vale dos diamantes não é ali à esquina, nem muito menos, vão ficar danados. Os idiotas julgam que o mapa é verdadeiro, esperam encontrar amanhã a tal colina vulcânica. Se não a encontrarem amanhã, nem nas semanas seguintes, naturalmente vendem-nos... e nessa altura estaremos demasiado longe dos nossos companheiros para que seja possível encontrá-los.

—:Você quer ir sozinha pela floresta, de noite?... — -murmurou Naomi, espantada. — E os leões?

— Penso nos leões, mas penso também nalgum sultão negro, gordo e mal lavado. Antes os leões.

— É horrível! Oh! Para que saí eu de Hollywood?

— É estranho, Naomi, que uma mulher tenha de ter mais medo das criaturas humanas do que das feras... Isto faz pensar que há algures alguma coisa errada, e quase explica por que razão os antigos adoravam cobras, e toiros, e pássaros. Talvez tivessem os seus motivos...

No limite do acampamento, Atewy estava sentado ao lado de Eyad, e dizia-lhe:

— Tu gostavas de ter uma das benat, Eyad... Li isso nos teus olhos.

— Quem não gostaria?... — volveu o outro, fitando-o. — Eu sou um homem.

- Mas não a terás, porque o xeque quer as duas.

Não a terás, a não ser que...

— Que o quê?

- Que aconteça um acidente a Ab el-Ghrennem...

O quinhão do xeque, nos diamantes, é uma quarta parte do total... Não havendo xeque, haverá mais diamantes para todos nós...

— Tu és hatw lil nar!... — exclamou Eyad.

— Talvez eu seja lenha para o fogo do inferno... — retorquiu Atewy — ...mas hei-de arder com força, enquanto arder.

— Quanto ganhas com isso?... — perguntou Eyad, ao cabo de um breve silêncio pensativo.

— O mesmo que tu... — volveu Atewy, com um suspiro de alívio ao ver a causa ganha. — A minha parte nos diamantes e mais uma das benat.

— Os acidentes acontecem aos xeques, como acontecem aos outros homens... — concluiu Eyad, enrolando-se na sua manta e dispondo-se a dormir.

O silêncio envolveu o acampamento dos árabes. Dormiam todos, e uma única sentinela, sentada junto da fogueira, dormitava também.

Mas Rhonda Terry não dormia. Estendida, escutou os ruídos que cessavam... e viu a sentinela de cabeça curvada, e de costas. Aproximou os lábios, da orelha de Naomi:

— Escute... — sussurrou. — Não diga nada e não se mexa ainda. Quando eu me levantar, siga-me. É só o que tem a fazer. Mas sem barulho.

— Que... que vai fazer?... — murmurou Naomi, em voz trémula.

— Cale-se e faça o que eu disse...

Rhonda tinha planeado os seus movimentos, ensaiando mentalmente o drama que ia pôr em acção. Não haveria uma só palavra, pelo menos assim o esperava. Estendeu a mão e agarrou um rijo pedaço de lenha que tinha sido preparado para a fogueira. Devagar, sem rumor, afastou a manta e levantou-se. Tremendo, Naomi imitou-a.

Rhonda aproximou-se felinamente da sentinela. Levantou o toro de lenha... recuou o braço e...

 

                   Um fantasma

Orman e Bill West caminhavam através da interminável floresta. Dia após dia seguiram a pista dos cavaleiros... até que um dia a perderam. Nenhum deles era um pisteiro experiente. A pista entrara num pequeno curso de água, mas não reaparecera na outra margem.

Calculando que os árabes deviam ter seguido, em qualquer das duas direcções, ao longo da água, antes de passarem para o lado oposto, tinham atravessado e procurado pacientemente, mas sem êxito. Nenhum deles pensou que os árabes podiam ter voltado para a margem de onde haviam saído, e não procuraram desse lado. Mas era natural pensarem que quem entrava num ribeiro era com a intenção de o atravessar.

As poucas provisões, que tinham trazido do acampamento, não tardaram a esgotar-se, e não tiveram sorte com a caça. Alguns roedores e pequenos macacos eram tudo o que haviam conseguido abater para não morrerem de fome. Mas o futuro não parecia brilhante. Tinham decorrido onze dias, sem resultados.

— O pior é que estamos perdidos... — disse Orman. — Afastámo-nos tanto ao longo do ribeiro que não sabemos voltar para trás.

— Eu não voltarei para trás enquanto não encontrar Rhonda... — respondeu Bill West.

— Receio que seja demasiado tarde para lhes valer...

— Quero abater alguns desses árabes.

— Sim, eu também, mas tenho de pensar no resto da companhia. Tenho de os levar para fora daqui. Pensei que num dia alcançaria el-Ghrennem, e no dia seguinte poderia voltar. Estraguei tudo, Bill. Essas duas caixas de «whisky» custarão quase um milhão de dólares e Deus sabe quantas vidas, antes que alguém da companhia possa voltar a Hollywood.

« — Pense nisso, Bill... O major White, Noice, Baine, Obroski e sete outros, todos mortos, sem falar nos árabes e nos negros... e as raparigas desaparecidas. Por vezes julgo que endoideço a pensar nisso.

Weste não respondeu. Tinha também pensado nisso, e no dia em que Orman tivesse de enfrentar as mulheres e as noivas daqueles homens, se voltasse a Hollywood. Fosse qual fosse a responsabilidade de Orman, West tinha pena dele.

Quando Orman voltou a falar, foi como se tivesse lido na mente do companheiro:

— Se não fosse uma cobardia, dava cabo de mim... Seria mais fácil do que aquilo que me espera.

Enquanto falavam, os dois homens tinham vindo a caminhar ao longo de uma trilha de caça, que levava de algures para algures, não sabiam de onde nem para onde. Estavam irremediavelmente perdidos.

— Não sei para que caminhamos..-. — comentou West — ...se não sabemos para que lados vamos.

— Menos saberemos se ficarmos parados. Continuando a andar havemos de ir ter a algum sítio... se aguentarmos...

West olhou bruscamente para trás e disse, em voz baixa:

— É o que eu pensava... Já me tinha parecido ouvi-lo...

— Pelo menos temos aquela razão para não parar nem voltar para trás... — volveu Orman, olhando na mesma direcção.

— Vem a seguir-nos há bastante tempo, acho eu... — disse Bill. — Para quê?

— Talvez se sinta só.

— Ou tenha fome.

— Talvez... — comentou Orman. — Parece ter fome, realmente.

— É um mau sítio para ele nos apanhar. A trilha é estreita, e o mato espesso de ambos os lados. Além de que as árvores são demasiado altas para podermos trepar.

— Podemos disparar, mas o major dizia que estes rifles são de demasiado pequeno calibre para caça grossa. Se não o detivermos, é o fim para um de nós.

— Eu sou mau atirador... — declarou Bill. — Provavelmente nem lhe acerto.

— Ele não se aproxima. Vamos andando e veremos o que acontece.

Continuaram ao longo da trilha, as armas prontas, olhando frequentes vezes para trás. Por vezes, as sinuosidades do caminho escondiam a fera.

— Aqui parecem diferentes... — disse West. — Parecem... inevitáveis, ferozes, como a morte e as contribuições.

— Especialmente como a morte! Sempre embirrei com os ares de superioridade destes bichos... e também não simpatizo com os domadores. Mas agora gostava de ver aparecer um desses tipos... que mandasse deitar o maldito leão.

— Também eu...

A trilha desembocava bruscamente numa pequena clareira, com poucas árvores e mato escasso. Tinham entrado na clareira quando o leão apareceu atrás deles, bastante perto. Por momentos a fera parou, agitando a cauda, fitando nos dois homens os olhos ameaçadores. Depois agachou-se e começou a avançar.

— Temos de disparar, Bill... — disse Orman. — Vai atacar-nos.

Orman foi o primeiro a fazer fogo, mas a bala apenas roçou a juba do leão. A fera rugiu e atacou. West disparou, errando o alvo, e o cartucho vazio ficou encravado. Orman voltou a disparar, quando o leão estava a curta distância, mas uma patada fez-lhe saltar o rifle das mãos, ao mesmo tempo que ele caía de lado. Paralisado, as mãos crispadas na arma, Bill viu a fera voltar-se para atacar Orman... mas ao mesmo tempo viu outra coisa que o deixou estupefacto... Viu um gigante branco, quase nu, saltar de uma árvore e cair sobre o dorso do leão.

Um forte braço rodeou o pescoço da fera, pernas de aço prenderam-se em volta dos flancos. Uma lâmina brilhou ao sol, e um punho cravou-se uma vez, e outra, e outra ainda, no peito do leão. Os rugidos do animal enfurecido atroavam o ar, enquanto ele se esforçava, em vão, por se libertar.

Orman levantara-se, ileso. Junto de Bill West, olhava, pasmado, aquela luta de titãs. Os rugidos do homem misturavam-se com os da fera.

Então o leão deu um último salto, e quando caiu foi para não se mover mais. O homem largara a presa e olhava-a. Logo, poisando um pé sobre a carcaça, levantou a cabeça e soltou um grito estranho, formidável, espantoso.

Quando os ecos do terrível brado se perderam na distância, o gigante, sem sequer olhar para os dois brancos a quem salvara, saltou para a ramada inferior de uma árvore, içou-se no mesmo impulso e desapareceu entre a folhagem. Pálido, Orman voltou-se para o companheiro.

— Você viu o que eu vi, Bill?

— Não sei o que você viu... mas sei o que me pareceu ver... e não posso ter visto...

— Acredita em fantasmas, Bill?

— Eu... não sei... E você?

— Sabe tão bem como eu que não pode ter sido ele... Portanto era o seu fantasma...

— Nunca tivemos a certeza da morte de Obroski, Tom.

— Temos agora.

 

                   Um doido

Quando Stanley Obroski foi derrubado, na aldeia de Rungula, o Bansuto, um homem branco, nu com a excepção de uma curta tanga, olhou para baixo e os seus olhos fitaram-se no vulto do corpulento chefe da tribo.

As voltas de uma corda comprida e maleável, tecida de longas fibras, apareceram nas mãos do homem, baloiçando enquanto um sorriso sombrio se esboçava nos lábios dele.

De súbito a corda desceu, e o nó corredio que a terminava envolveu o corpo de Rungula, prendendo-lhe os braços contra o tronco. Um brado de terror e surpresa saiu da boca de Rungula, ao sentir-se apanhado. E, quando os que estavam em volta olharam para o chefe, viram-no ser rapidamente içado para a árvore que se debruçava sobre a cubata, como puxado por uma força sobrenatural.

Rungula sentiu-se içado para um forte ramo, e então uma poderosa mão agarrou-o e endireitou-o. Estava aterrorizado, pois pensou que era o seu fim. Em baixo, um silêncio de pavor invadira a aldeia. O próprio prisioneiro foi esquecido, no espanto e na surpresa do súbito desaparecimento de Rungula.

Obroski olhava em volta, sem compreender. Rodeado pelos guerreiros, não tinha visto desaparecer Rungula... mas via agora que todos fitavam a árvore sobre a cubata do chefe, e não compreendia porquê. Apenas recordava vagamente o grito soltado pelo negro.

Rungula ouviu uma voz que lhe falava, no seu próprio dialecto, ordenando-lhe:

— Olha para mim!

Olhou, e à luz da fogueira, que se coava através da folhagem, viu a cara de um branco. Encolheu-se, apavorado, murmurando:

— Walumbe!

— Não sou Walumbe, o deus da morte... — disse Tarzan. — Mas sou maior que Walumbe, porque sou Tarzan dos Macacos.

— Que... que queres?... — gaguejou Rungula, — Que vais fazer de mim?

— Quis pôr-te à prova, para saber se eras um bom chefe, de um bom povo. Transformei-me em dois homens, e mandei um deles para onde os teus guerreiros pudessem prendê-lo. Quis saber o que farias a um desconhecido que não te fez mal. Agora sei, e pelo que fizeste devias morrer. Que respondes?

— Vejo que estás aqui e estás também ali... — disse Rungula, olhando para Obroski entre os guerreiros silenciosos.

— Deves ser um demónio... e que posso eu dizer a um demónio? Posso dar-te de comer, e de beber, e armas, e raparigas que trabalhem para ti, e vão buscar água e lenha... raparigas de costas fortes e ancas largas... Tudo isso te darei se não me matares... se te fores embora...

— Não quero a tua comida, nem as armas, nem as raparigas. Quero apenas uma coisa pelo preço da tua vida.

— O que é, meu amo?

— A tua promessa de não mais fazer guerra aos brancos, e de, quando eles passarem pelas tuas terras, os ajudares em vez de os atacar.

— Prometo, meu amo!

— Então dá ordens aos teus guerreiros para abrirem os portões e deixarem sair o prisioneiro.

Rungula bradou as ordens, e todos se afastaram de Obroski. Alguns guerreiros correram a abrir os portões da paliçada.

Obroski ouviu a voz de Rungula, vinda do alto da árvore, e ficou mais espantado. Viu a atitude dos negros, e suspeitou de algum ardil. Por que razão o soltavam agora, quando momentos antes tinham querido matá-lo? Por que razão abriam as portas? Esperou, hesitante.

Então outra voz se fez ouvir, vinda da árvore e falando em inglês:

— Saia da aldeia e vá para a floresta. Não lhe farão mal. Eu irei ter com você!

Obroski continuava sem entender, mas a voz calma, que lhe falava em inglês, tranquilizou-o. Encaminhou-se para a saída da aldeia.

Tarzan soltou a corda que prendia Rungula, correu pela árvore e saltou para o chão, atrás da cubata grande. Rápido, na sombra das outras cubatas, atravessou a aldeia, transpôs a paliçada e saltou para a clareira. Um momento depois estava na floresta e corria para o ponto onde Obroski alcançara as árvores.

Obroski não ouviu qualquer ruído, porque não houve ruído. Num momento estava só, e no momento seguinte uma voz dizia, junto dele:

— Siga-me.

Obroski voltou-se. Na obscuridade, viu apenas o vulto de um homem aproximadamente da sua altura.

— Quem é?... — perguntou.

— Sou Tarzan dos Macacos.

Obroski ficou calado, espantado. Tinha ouvido falar em Tarzan dos Macacos, mas sempre pensara que fosse um personagem de lenda... uma ficção africana. Perguntou a si mesmo se não se trataria de algum demente que imaginava ser Tarzan dos Macacos. Teria querido ver a cara do homem, o que talvez lhe permitisse julgar da sua sanidade mental. Não compreendia quais podiam ser as intenções daquele estranho.

Tarzan caminhava através da floresta. Voltou-se e repetiu:

— Siga-me!

— Ainda não lhe agradeci ter-me salvado daquele sarilho.., — disse Obroski, caminhando atrás do vulto.

— Foi decente da sua parte, sem a sua intervenção estaria morto...

O homem da selva continuou a caminhar, e Obroski seguiu-o... mas o silêncio desequilibrava-lhe os nervos. Parecia-lhe que na verdade aquele homem não era normal, não era como os outros homens. Um homem normal estaria a fazer uma infinidade de perguntas, tendo encontrado alguém em tais condições.

E as deduções de Obroski não eram completamente infundadas, pois Tarzan não é de facto um homem como os outros. A vida e os instintos das feras deram-lhe normas de procedimento e de ética peculiares e próprias. Para Tarzan há ocasiões de falar e ocasiões de estar calado. A escuridão da noite, quando as feras andam à caça, não é uma ocasião para tagarelar através da selva. E não gostava de falar com desconhecidos sem poder ver-lhes os olhos e as expressões, muitas vezes mais claros do que o sentido das palavras.

Assim os dois homens caminhavam pela floresta, Obroski seguindo de muito perto Tarzan com receio de o perder de vista na escuridão. Adiante deles, um leão rugiu; o americano pensou que o seu companheiro iria desviar-se ou trepar a uma árvore, mas nada disso aconteceu.

Por várias vezes ouviram a grande voz do leão, sempre mais perto. Obroski, desarmado e quase nu, sentia-se completamente indefeso, e não sem razão assustado. E o seu nervosismo não diminuiu quando um brado, meio grito e meio rugido, saiu dos lábios do seu estranho companheiro.

Pouco depois ouviram um rosnar próximo... O leão! Obroski dominou a muito custo um violento impulso para se refugiar numa árvore. Chegaram então a uma clareira, junto de um rio. A lua subira mais, espalhando uma claridade suave onde as sombras se recortavam. A água reflectia o luar, chispando em mil reflexos de prata.

Mas a beleza da cena apenas por um instante prendeu a atenção de Obroski, pois logo toda essa atenção se concentrou no vulto majestoso de um enorme leão que a claridade iluminava. Obroski via a grande juba negra que o vento da noite agitava, e o pêlo que tinha tons doirados. Junto do leão, uma leoa ergueu-se, rosnando.

O desconhecido voltou-se para Obroski.

— Fique onde está. Não conheço esta Sabor, pode ser perigosa.

Obroski parou, contente por ter ficado junto de uma árvore. Desejou ter uma arma, para poder por sua vez salvar a vida daquele homem, decerto doido, que caminhava para a morte. Mas então ouviu a voz daquele que dizia ser Tarzan dos Macacos... embora não compreendesse o que ele dizia.

— Tarmangani yo. Jad-bal-ja tand bundolo, Sabor tand bundolo...

O doido falava com o leão, e Obroski tremia vendo-o aproximar-se da fera.

- Kreeg-ah Sabor!... — disse o homem, quando a leoa esboçou um movimento.

O leão voltou-se e correu sobre a fêmea, rosnando. Ela saltou de lado e agachou-se, ficando imóvel. Então o grande leão encaminhou-se para o homem — e Obroski sentiu que o seu coração parava, de medo.

Viu o homem poisar uma das mãos sobre a cabeça do grande felino, e voltar-se para ele, dizendo:

— Pode agora aproximar-se, para Jad-bal-ja reconhecer o seu cheiro e saber que é um amigo. Depois nunca lhe fará mal, a não ser por minha ordem.

Obroski estava aterrorizado. Queria correr, trepar à árvore junto da qual se encontrava, fazer qualquer coisa que o afastasse do leão e da leoa; mas receava ainda mais deixar o homem que o salvara. Dominado pelo medo, avançou, e Tarzan, supondo-o valente, ficou satisfeito.

Jad-bal-ja rosnava, mas o homem da selva falou-lhe e ele calou-se. Obroski aproximou-se, e o leão cheirou-lhe as pernas e o corpo. Obroski sentiu na cara o hálito quente da fera.

— Poise uma das mãos na cabeça dele... — disse Tarzan. — Mesmo que tenha medo, não o mostre.

O americano fez o que lhe diziam, e Jad-bal-ja roçou a cabeça pelo corpo dele, como um gato. Então Tarzan voltou a falar, e o leão foi deitar-se junto da fêmea.

Agora, pela primeira vez, Obroski podia ver claramente o seu estranho companheiro, à luz do luar.

Soltou uma exclamação de espanto — com a impressão de estar a ver o seu reflexo num espelho. Tarzan teve um dos seus raros sorrisos:

— Notável, não é?

— É espantoso!

— Creio que foi por isso que o salvei dos Bansutos... era um tanto como se fosse a mim que quisessem matar.

— Tenho a certeza de que me salvaria, fosse como fosse.

— Porquê? Não o conhecia... — volveu o homem da selva, com um encolher de ombros; estendeu-se sobre a erva macia e acrescentou: — Vamos passar aqui a noite.

Obroski lançou um rápido olhar para as duas feras, e Tarzan compreendeu o que ele pensava.

— Não se preocupe com eles... — disse. — Jad-bal-ja não deixará que lhe aconteça qualquer mal, mas tenha cuidado com a leoa, quando ele não estiver perto. Ele acolheu-a há dias. Não me demonstra amizade, e provavelmente nunca o fará. E agora, se quiser, conte-me o que faz nesta região.

Obroski contou tudo o que acontecera, resumidamente, e Tarzan escutou-o sem o interromper. Depois disse:

— Se eu tivesse sabido que pertencia ao «safari», talvez tivesse deixado que os Bansutos o matassem.

— Porquê? Que tem contra nós?

— Vi o vosso chefe chicotear os negros. Obroski ficou calado. Compreendera finalmente que aquele homem, que dizia ser Tarzan dos Macacos, era uma criatura excepcional, e que o seu poder, para o bem ou para o mal, naquela terra selvagem, devia ser muito grande. Seria um amigo que convinha ter, e a sua hostilidade podia ser terrível. Podia arruinar qualquer hipótese de filmar ali — podia arruinar Orman.

Obroski não gostava de Orman, e tinha boas razões para isso. Naomi era uma dessas razões, mas havia outras coisas a ter em conta. Havia o dinheiro investido pelo estúdio, as carreiras dos seus colegas, e até mesmo a de Orman — e Orman era um grande realizador. Explicou tudo isto a Tarzan, menos o seu ódio por Orman.

— Orman estava embriagado quando bateu nos negros. Tinha estado doente, e as suas preocupações eram muitas e graves. Os que o conheciam bem, disseram que ele não é habitualmente assim.

Tarzan não fez comentários, e Obroski não falou mais. Estendido de costas, ficou a olhar para a lua, e a pensar. Pensou em Naomi e pôs-se a fazer conjecturas. Que havia nela, para que a amasse? Era bonita, egoísta, leviana, mimada. O carácter dela não podia comparar-se com o de Rhonda Terry, por exemplo, e Rhonda era tão bela como Naomi.

Por fim, concluiu que era a fama do nome de Naomi Madison o que o atraíra. Sem isso não ficava nela que despertasse amor — a não ser esse género de paixão inconsistente que pode ser inspirado por uma face bonita e um corpo perfeito.

Pensou nos seus companheiros, perguntando a si mesmo o que eles diriam se pudessem vê-lo a dormir ao lado de um homem da selva, junto de um casal de leões. Sorrindo, adormeceu. Não viu a leoa levantar-se e, acompanhada por Jad-bal-ja, partir para a sua caçada nocturna.

 

                   Terror

Quando Rhonda ergueu o rijo pedaço de lenha sobre a cabeça da sentinela, o homem olhou para trás e, compreendendo imediatamente o perigo, quis levantar-se ao mesmo tempo que ela baixava o braço; isso deu à pancada bastante maior violência, e o beduíno caiu sem soltar um grito.

A jovem olhou rapidamente em volta. Ninguém se movera. Fez sinal à trémula Naomi, para que a seguisse, e encaminhou-se apressadamente, sem rumor, para onde estavam as selas dos cavalos. Entregou uma a Naomi e levou a outra.

Transportando as selas, dirigiram-se para onde estavam os cavalos presos. Aí, Naomi mostrou-se completamente ineficiente, e Rhonda teve de selar ambas as montadas — dando graças a Deus por ter prestado atenção à maneira como os árabes ajustavam as selas e os arreios dos seus cavalos.

Naomi montou, e Rhonda entregou-lhe as rédeas do seu cavalo.

— Segure-o bem... — sussurrou. Aproximou-se dos outros animais e soltou-os, um

após outro. Olhava a cada instante na direcção dos homens que dormiam. Se um deles acordasse voltariam a ser apanhadas, mas se pudesse executar o seu plano ficariam livres dos árabes. Valia a pena correr o risco.

O último «pony» ficou livre, e já os outros começavam a mover-se. Esse era um dos riscos maiores que as duas raparigas tinham de enfrentar, pois o movimento dos cavalos só por milagre não despertaria cavaleiros como os beduínos. Correu rapidamente para a sua montada e saltou para a sela.

— Vamos levá-los na nossa frente, durante uma parte do caminho... — disse. — Se o conseguirmos, ficaremos salvas, pelo menos no que se refere aos árabes...

Tão silenciosamente quanto podiam, as duas jovens foram impelindo na frente das suas montadas o resto dos animais, afastando-se do acampamento. Rhonda espantava-se de que o barulho não acordasse os árabes.

Os cavalos tinham estado presos no lado norte do acampamento, e assim foi para o norte que os impeliram. Não era a direcção em que estava o «safari», mas Rhonda pensava dar a volta, se conseguisse realmente deixar os beduínos sem as montadas.

Devagar, a custo, os «ponies» moveram-se na direcção da floresta, para além da pequena clareira onde fora instalado o acampamento. Trinta metros... sessenta... cem. Iam alcançar a floresta quando ouviram um brado e logo depois as vozes dos árabes enfurecidos.

A noite era clara, sob um céu rebrilhante de estrelas. Rhonda compreendeu que os árabes as viam. Olhou para trás e distinguiu os vultos que se lançavam em corrida. Com um grito de «cowboy» e um bater de calcanhares, fez avançar o seu cavalo sobre os da frente. Assustados, os animais começaram a trotar.

— Grite, Naomi!... — exclamou Rhonda. — Faça tudo o que puder para os obrigar a correr.

Naomi fez o melhor que pôde, e os brados dos próprios árabes aumentaram o nervosismo dos animais. Então um dos beduínos disparou o seu mosquete — e quando a bala silvou por cima deles, os cavalos galoparam. Seguidos pelas duas raparigas, desapareceram na floresta.

O cavalo que ia à frente viu, ou encontrou por acaso, uma trilha; todo o grupo galopou por aí. Cada metro de terreno representava um perigo para as fugitivas. Um ramo baixo, um cavalo que caísse, significariam desastre, mas nenhuma das raparigas pensou em afrouxar a velocidade. Ambas sentiam, talvez, que qualquer coisa seria preferível a voltar a cair em poder de Ab el-Ghrennem.

Só quando as vozes dos árabes se perderam na distância, Rhonda reduziu o andamento da sua montada. A jovem exclamou, exultante:

— Conseguimos! Aposto que o velho xeque está a morder as barbas. Como se sente, Naomi? Cansada?

Naomi não respondeu, e Rhonda ouviu-a soluçar.

— O que tem?... — perguntou, realmente preocupada. — Não está ferida, pois não?

— Eu... eu... tenho tanto medo! Nunca tive... tanto medo... em toda a minha vida... — soluçou Naomi.

— Oh, vamos, anime-se! Eu também tenho medo, mas chorar e gemer não ajuda nada. Livrámo-nos deles, e há algumas horas isso parecia-nos impossível. Agora só temos de encontrar o «safari», e há todas as probabilidades de encontrarmos, antes disso, os nossos companheiros que decerto nos procuram.

— Nunca mais os verei... Eu sabia que havia de morrer nesta horrível terra... — e Naomi continuou a soluçar histericamente.

Rhonda aproximou a sua montada da de Naomi, e passou um braço pelos ombros da companheira, murmurando:

— Eu sei que é terrível, querida, mas havemos de nos salvar. Hei-de livrá-la disto, e virá um dia em que havemos de rir, ambas, das nossas recordações, estendidas na areia da praia de Malibu.

Durante algum tempo nenhuma delas voltou a falar. Os cavalos avançavam a passo, na escuridão da floresta. Adiante, os outros «ponies» seguiam a trilha que olhos humanos não teriam podido distinguir. Por vezes, um dos animais parava, relinchando, pressentindo alguma coisa que as duas jovens não podiam ver nem ouvir; Rhonda incitava o animal e a marcha continuava. As horas foram-se arrastando. Por fim, Naomi disse:

— Rhonda... não compreendo como pode ser tão boa para mim... Tratei-a mal, procedi como um mau bicho... mas nos últimos dias... não sei... creio que você me abriu os olhos. Não me responda... eu só queria dizer-lhe isto.

— Compreendo... — murmurou Rhonda. — É Hollywood... Todos tentamos ser qualquer coisa que não somos... e na maior parte dos casos acabamos por ser o que não devíamos ser.

Em frente delas a trilha alargava bruscamente, e os cavalos que iam adiante detiveram-se. Rhonda tentou incitá-los a continuar, sem resultado. Os animais davam voltas mas não avançavam. Só então as raparigas viram o rio.

— Que vamos fazer?... — perguntou Naomi.

— Não podemos ficar aqui, temos de continuar para diante. Se voltássemos para trás, encontraríamos os beduínos.

— Mas não podemos atravessar o rio...

— Talvez. Deve existir um vau, aqui, e o rio não é muito largo. Vou tentar.

— Afogamo-nos, Rhonda!

— Dizem que é uma boa maneira de morrer. Vamos! Não me agrada deixar os outros cavalos, mas se eles não querem avançar, nada mais podemos fazer.

Impeliu a montada, que hesitou ao meter as patas na água mas avançou, relinchando.

— Mantenha-se perto de mim, Naomi. Creio que dois cavalos juntos poderão aguentar-se melhor do que um só. Se a água for funda, tente dirigir o seu cavalo para a outra margem.

Os dois animais entraram na corrente. A água não corria com força, e era pouco funda. Atrás, os outros cavalos agitavam-se, relinchando; quando as fugitivas estavam perto da outra margem, ouviram um forte chapinhar no rio, atrás delas. Rhonda voltou-se na sela e viu que os «ponies» soltos seguiam as montadas delas. Riu-se:

— Aprendi alguma coisa... Viemos a impeli-los para diante, e no entanto ter-nos-iam seguido sem esse trabalho.

Amanheceu pouco depois de terem atravessado o rio, e a luz do novo dia mostrou-lhes uma extensão de terreno descoberto, com poucas árvores e apenas algumas moitas dispersas. A noroeste erguia-se uma serrania. Era uma região muito diferente daquelas que haviam percorrido até então.

— Que beleza!... — exclamou Rhonda.

— Qualquer paisagem pareceria linda, depois da odiosa floresta... — murmurou Naomi.

— Você vê o mesmo que eu vejo?... — disse de súbito Rhonda, estendendo um braço e detendo a montada.

— A colina?

— Não compreende? Saímos de uma floresta, atravessámos um rio... e eis «uma colina árida, vulcânica de forma cónica».

— Quer dizer...?

— O mapa, sim! E além, a noroeste, estão as montanhas.

Se é simples coincidência, é espantosa.

Naomi ia responder quando os dois cavalos começaram a tremer, de repente. Com as ventas dilatadas e as orelhas em riste, ambos os animais fitavam umas moitas um pouco adiante, à direita. As jovens olharam na mesma direcção.

No mesmo instante um vulto fulvo surgiu de entre as moitas, rugindo. Rhonda ia à direita de Naomi e um pouco adiante. O leão vinha do lado de Rhonda. Não havia possibilidade de dominar as montadas, e os outros cavalos saltavam como antílopes.

Naomi, fascinada, fitava o leão, vendo-o mover-se com incrível rapidez. Viu-o saltar e agarrar, com os dentes e as garras, a garupa do cavalo de Rhonda, enquanto as patas traseiras rasgavam a barriga do animal. Doido de pavor, o pobre cavalo tentou sacudir a fera... e atirou Rhonda para o chão. Então o leão derrubou-o, sob o olhar aterrorizado de Naomi...

A montada de Naomi lançou-se a galope, afastando-a da horrível cena, mas a jovem viu ainda a fera, com as patas dianteiras sobre a carcaça da sua vítima... e a alguns passos de distância Rhonda caída e imóvel.

O apavorado bando de cavalos galopou pela trilha, em sentido contrário ao que havia percorrido antes. Naomi nada podia fazer para dirigir ou deter o animal que montava e que galopava no encalço dos outros. A distância que tinham levado uma hora a transpor, foi agora transposta em minutos, e o rio não deteve os animais em pânico, que o atravessaram chapinhando ruidosamente na água.

Angustiada, tomada pelo terror, a jovem agarrava-se ao cavalo que a levava; mas, pela primeira vez na sua vida, Naomi Madison não se angustiava por si mesma. Dominando o seu próprio medo, estava gravada na sua mente a imagem do vulto imóvel, caído tão perto do leão — o vulto de Rhonda Terry.

 

                   Eyad

Longos dias se juntaram a longos dias, enquanto Orman e West procuravam em vão, através da floresta, a pista que haviam perdido. Cerca de duas semanas tinham decorrido desde a sua partida do acampamento em busca das duas raparigas, quando lhes acontecera o encontro com o leão e com o «fantasma» de Obroski.

Esse encontro deixara-os desorientados, pois ambos estavam enfraquecidos por falta de alimento, e com os nervos em farrapos pela angústia quanto ao que podia ter acontecido a Naomi e a Rhonda. Durante algum tempo ficaram parados junto da carcaça do leão, à escuta, esperando que a aparição voltasse. Bill West murmurou:

— Você supõe que a fome e a preocupação possam ter-nos influenciado ao ponto de termos imaginado o que pensamos ter visto?

— Nós não imaginámos isso... — volveu Orman, apontando para o leão morto. — Crê que ambos possamos ter tido a mesma alucinação, ao mesmo tempo? Não! Nós vimos o que vimos. Eu não acredito em fantasmas... ou não acreditava. Mas se o que vimos não era o fantasma de Obroski, então era Obroski. E você sabe, tão bem como eu, que Obroski nunca teria coragem para matar um leão, mesmo que pudesse.

— Lembrei-me de outra explicação... — disse West, coçando o queixo. — Obroski era um cobarde... Talvez tenha escapado aos Bansutos e se perdesse na selva ...vivendo dias e noites em permanente pavor. Pode ter endoidecido, e como você sabe diz-se que os doidos têm dez vezes mais força do que qualquer homem normal.

— Não sei que isso seja verdade. Sei que é uma teoria popular, e possivelmente errada como quase todas... Mas sabe-se que um doido pode fazer coisas que nunca faria em seu juízo, e assim talvez você tenha razão. Só um maluco atacaria um leão, e Obroski não me salvaria se estivesse mentalmente sadio. Não tem qualquer razão para ser meu amigo.

— Seja como for... — volveu West — ... fez-nos um bom serviço, e sob mais de um aspecto... — e o operador apontava para o leão morto.

— Espero que possamos comer e não vomitar... — comentou Orman. — Não é apetitoso.

— Eu também não sou amador de gatos... — concordou West — ...mas nesta altura seria capaz de comer um cãozinho de estimação.

Depois de comerem, cortaram algumas fatias de carne para levarem, enquanto continuavam as suas buscas estéreis. A comida restituíra-lhes as forças, mas não a animação; e a jornada continuou, depressiva e desencorajada.

Ao fim da tarde, West, que ia adiante, deteve-se bruscamente e recuou, fazendo sinal a Orman para não falar. Este último aproximou-se do companheiro e, olhando na direcção que ele indicava, viu um vulto agachado junto de uma pequena fogueira, perto de um curso de água.

— É um dos homens de el-Ghrennem... — disse West.

— É Eyad... — volveu Orman. — Viu mais alguém?

— Não. Que estará ele a fazer ali, sozinho?

— Vamos saber. Prepare-se para disparar se ele tentar algum golpe, ou se aparecerem outros.

Orman avançou para o árabe, empunhando o rifle. Tinham apenas dado alguns passos quando Eyad olhou e os viu. No mesmo instante pôs-se de pé e agarrou o mosquete, mas Orman apontava-lhe já o rifle.

— Largue a arma!... — ordenou o americano.

Eyad não entendia inglês, mas compreendeu o sentido das palavras, pelo tom imperioso em que tinham sido ditas. Baixou o cano do mosquete.

— Onde está el-Ghrennem? Onde estão «miss» Madison e «miss» Terry?... — perguntou Orman, junto do beduíno.

Eyad reconheceu os nomes e o tom interrogativo. Apontando para o norte, falou rapidamente, em árabe. Nem West, nem Orman, perceberam uma só palavra, mas compreenderam que o homem estava consideravelmente excitado. Viram também que estava com um ar de fome, a roupa em farrapos, a cara e o corpo cobertos de feridas. Era evidente que tinha passado por uma dura experiência.

Quando Eyad percebeu que os americanos não o compreendiam, recorreu aos gestos, embora continuasse a falar na sua língua.

— Entende alguma coisa do que ele diz, Tom?... — perguntou West.

— Aprendi algumas palavras com Atewy, mas poucas... Parece que lhes aconteceu qualquer coisa terrível, e este tipo está apavorado. Compreendi as palavras sheykh, el-Bedauwy e benat... A primeira quer dizer xeque, a outra significa beduínos, e benat é o plural de bint, que corresponde a rapariga. Uma das raparigas foi morta por uma fera, pelo que ele dá a entender, um leão. E aconteceu não sei o quê ao resto do grupo, mas deve ter sido terrível.

— Ele sabe qual das raparigas morreu?... — perguntou West, lívido.

— Não consegui entender... Talvez morressem ambas.

— Temos de saber, temos de ir para diante! Onde aconteceu isso?

— Farei com que ele nos guie, mas hoje é inútil. É quase noite. Partiremos pela manhã.

Improvisaram um pobre acampamento, e comeram carne do leão. Eyad devorou a sua parte; era evidente que tinha uma tremenda fome.

Depois estenderam-se no chão, mas a angústia impediu os dois americanos de dormir, quase até de manhã.

Para o sul, a algumas milhas, Stanley Obroski estava encolhido na forquilha de uma árvore, tremendo de frio e de medo. Em baixo, um leão e uma leoa devoravam a carcaça de um gamo. Havia um círculo de hienas, a distância. Uma delas, a quem a fome incutia a coragem do desespero, aproximou-se para arrancar um pedaço de carne. O leão rugiu e saltou, e a hiena quis fugir; mas não teve tempo. Uma formidável pata rasgou-lhe o dorso e atirou-a, quase morta, para junto das outras. Obroski agarrou-se ao tronco, apavorado, O luar iluminava a cena selvagem.

Pouco depois o vulto de um homem surgiu silenciosamente na clareira. O leão levantou a cabeça e rosnou, e o homem rosnou em resposta. Então uma hiena atacou o recém-chegado, e Obroski abriu a boca, apavorado. Que seria dele, se aquele homem morresse? Temia-o, mas menos do que às outras horríveis criaturas da selva.

Viu o homem dar um passo de lado, curvar-se, agarrar a hiena pelo pescoço e atirá-la para junto do gamo que os leões devoravam. A leoa cravou-lhe as presas na coluna vertebral, sacudiu-a e lançou-a de lado, morta. As outras hienas riam sinistramente.

— Obroski... — chamou Tarzan, olhando em volta.

— Aqui em cima...

Tarzan saltou agilmente para a árvore e instalou-se ao lado do americano.

— Vi hoje dois dos seus companheiros, Orman e West.

— Onde estão? Que disseram?

— Não lhes falei. Estão a poucas milhas ao norte daqui, e devem ter-se perdido.

- — Quem estava com eles?

— Ninguém. Procurei o «safari», mas não o vi. Mais ao norte vi um dos árabes que vieram com vocês. Perdido e esfomeado...

— O «safari» deve-se ter dispersado... — disse Obroski. — Que teria acontecido? Que sucederia às duas raparigas?

— Amanhã iremos procurar Orman... — disse Tarzan. — Talvez ele possa responder a algumas dessas perguntas.

 

                   Sozinha

Por algum tempo, Rhonda Terry ficou imóvel no lugar onde tinha caído, atirada pelo cavalo apavorado. O leão, com as patas sobre o animal que abatera, rosnava olhando para a montada que levava Naomi Madison na direcção da floresta.

Quando recuperou os sentidos, a primeira coisa que viu foi o vulto do leão, de costas para ela, e no mesmo instante recordou tudo o que lhe acontecera. Tentou avistar Naomi, sem voltar a cabeça para não atrair a atenção da fera, mas nada conseguiu ver.

O leão farejou a presa, depois voltou-se e olhou em redor. Avistou a jovem, e rosnou surdamente. Rhonda ficou paralisada de terror. Queria fechar os olhos, para não ver o focinho horrível, mas receava que mesmo esse movimento enfurecesse o felino. Lembrava-se de ter ouvido dizer que as feras não tocam nas pessoas que julgam mortas, mas pensava que isso talvez não dissesse respeito aos carnívoros.

Estava de tal maneira apavorada que só com grande custo conseguia dominar um doido impulso para se levantar e fugir, embora sabendo que tal gesto seria fatal. O felino alcançá-la-ia num único salto.

Então o leão aproximou-se dela, lentamente, continuando a rosnar. Farejou-a, de tão perto que Rhonda sentiu na pele o hálito quente, com um cheiro repugnante.

A fera parecia nervosa e hesitante. De repente baixou a cabeça e rosnou mais alto, fitando nos dela os olhos ferozes. Rhonda pensou que era o fim. O leão levantou uma das patas, agarrou-a por um ombro e voltou-a de bruços. A jovem ouvia-o farejar e rosnar; depois compreendeu que ele se afastava.

Pelo canto de um dos olhos, Rhonda voltou a vê-lo, depois de um instante em que esteve prestes a perder os sentidos. O leão voltou para junto da carcaça do cavalo, e logo começou a arrastá-la na direcção das moitas de onde saltara para atacar. Parecia não fazer qualquer esforço, para arrastar a presa. Rhonda notou isso, vagamente, e pôs-se a pensar se teria sido milagrosamente poupada, ou se a fera voltaria para a levar.

Levantou ligeiramente a cabeça e olhou em volta. A cerca de seis metros havia uma pequena árvore, entre ela e as moitas para onde o leão levara a presa. Cautelosamente, começou a arrastar-se para a árvore, olhando a cada instante para as moitas de onde vinha, a espaços, o rosnar do leão. Polegada a polegada foi-se deslocando... Um metro... dois... quatro... Viu a cabeça do leão emergir de entre os arbustos.

Já não havia possibilidade de astúcia... Erguendo-se de um salto, Rhonda transpôs a distância que a separava do tronco. Ouviu, atrás dela, o rugido do leão que se precipitava ao ataque.

Saltou para uma ramada baixa e içou-se no mesmo impulso, com uma agilidade e uma força que excediam em muito a sua capacidade normal. Enquanto continuava a subir, desesperadamente, de ramada em ramada, sentiu o tronco oscilar sob o choque da fera, e as grandes garras de uma das patas quase lhe roçaram um pé.

Rhonda não parou de trepar, até alcançar um ponto para além do qual não podia atrever-se. Agarrada aos ramos, delgados naquele ponto, olhou para baixo.

O leão fitava-a. Durante alguns minutos caminhou em volta da árvore, rosnando; depois, sacudindo a juba, voltou para as moitas.

Só então a jovem desceu para uma posição mais segura; sentou-se sobre uma sólida ramada, trémula, e passou bastante tempo antes que conseguisse dominar -se.

Tinha escapado ao leão, quando menos temporariamente; mas que perspectivas lhe apareciam? Sozinha, sem armas, perdida na imensidão da selva, a que fio de esperança poderia ainda agarrar-se?

Pôs-se a pensar no que teria acontecido a Naomi. Sentia-se à beira de lamentar ter fugido aos árabes. Se os seus companheiros a procuravam, talvez tivesse tido uma probabilidade de se salvar, se tivesse ficado com os beduínos. Mas agora como poderia alguém descobri-la, ou a Naomi?

Embora a árvore não fosse muito alta, Rhonda podia, de onde estava, observar a paisagem até bastante longe, em todas as direcções. A planície, onde aqui e além cresciam outras árvores, alongava-se na direcção de uma cadeia de montanhas.. A nordeste erguia-se a colina de forma cónica, vulcânica e árida, que ela havia indicado a Naomi momentos antes do ataque do leão.

Todas aquelas referências, seguindo tão exactamente as indicações do mapa, a intrigava e a faziam pensar na possível existência real do vale dos diamantes. De súbito, lembrou-se de uma coisa que Atewy dissera — que as quedas de água, junto do vale dos diamantes, deviam ser Omwamvvi Falis, o ponto para o qual se dirigia o «safari».

Se assim fosse, ela teria mais probabilidades de reencontrar os companheiros seguindo nessa direcção, do que voltando à floresta onde sem dúvida se perderia. Era estranho que estivesse a concentrar as suas esperanças num mapa que julgara ser apenas um acessório de filmagens — mas na sua situação tinha de se agarrar a tudo.

As montanhas não pareciam muito distantes, mas ela sabia que a noção de distância é muitas vezes enganadora. No entanto considerava a possibilidade de as alcançar num dia de jornada, e esperava poder aguentar-se sem comida e sem água até chegar ao rio que — rezava por isso — devia passar ali.

Cada minuto era precioso, agora, mas não podia sair de onde estava até que o leão se afastasse. Ouvia a fera rosnar, devorando a carcaça do cavalo que abatera.

Decorreu uma hora, e então viu o leão emergir novamente. A fera não olhou sequer na direcção da árvore, e encaminhou-se para o sul, na direcção do rio que Rhonda e Naomi haviam atravessado ao amanhecer. A jovem seguiu o andamento do animal, até que o viu desaparecer entre os arbustos na margem do rio; então desceu da árvore e pôs-se a caminhar para noroeste e para as montanhas.

O dia estava ainda nas primeiras horas, o terreno não era demasiadamente difícil, e Rhonda sentia-se relativamente descansada e forte, apesar da cavalgada nocturna e das duas provações das últimas horas. Encaminhou-se de maneira a não estar nunca muito longe de uma das árvores que se erguiam aqui e além pela planície. Por vezes isso obrigava-a a avançar em ziguezague, o que alongava a distância, mas a sua terrível experiência não lhe permitia esquecer essa precaução. Voltava-se com frequência para trás, com receio de que o leão pudesse avistá-la e surpreendê-la.

Mas as horas passavam, e o sol tornava-se cada vez mais quente. Rhonda começou a sofrer os efeitos da fome e da sede. Os seus passos arrastavam-se mais, como se tivesse chumbo nos pés. Parava agora repetidas vezes, para descansar por momentos na sombra das árvores. As montanhas pareciam tão distántes como quando ela começara a caminhar. Teve dúvidas de poder alcançá-las.

Uma sombra deslizou pelo chão, diante dela. Olhou para cima e viu um abutre que descrevia voltas no espaço. Estremeceu, pensando que talvez a ave de rapina apenas esperasse... mas que era também possível que soubesse...

Continuou a caminhar, teimosamente. Não desistiria senão quando não tivesse forças para se levantar. Quanto tempo aguentaria, até que isso acontecesse?

A certa altura, quando se aproximava do que lhe pareceu uma pedra grande, cinzenta... viu a pedra mover-se e compreendeu que era um rinoceronte. O grande bicho agitou-se tolamente, com a sua visão reduzida, mas de súbito farejou o ar e atacou. No mesmo instante Rhonda trepou para uma árvore, e o rinoceronte passou adiante e seguiu, pesado, a cauda ridícula espetada no dorso enorme. Então Rhonda sorriu, pensando em como o seu esgotamento desaparecera de repente na emergência — tal como alguns inválidos se esquecem da sua invalidez quando arde a casa.

A breve aventura renovou a sua confiança em alcançar o rio, e continuou a caminhar. Mas o calor e a poeira, e a sede, pesavam sobre ela com cada vez maior violência, e a coragem recomeçou a abandoná-la.

Durante bastante tempo tinha vindo a caminhar por uma longa depressão de terreno, as perspectivas da paisagem escondidas pelas alturas em redor. O dia aproximava-se do fim e Rhonda via a sua sombra alongar-se, atrás dela. O sol, baixo no horizonte, batia-lhe nos olhos. Apetecia-lhe sentar-se e descansar, mas tinha medo de não poder voltar a levantar-se. Sobretudo, porém, estava ansiosa por ver o que havia para além da próxima elevação de terreno. É sempre a próxima elevação de terreno que faz caminhar o viajante, embora a experiência lhe diga que avistará apenas outra elevação mais distante.

O declive era mais íngreme do que Rhonda supusera; foi precisa toda a sua coragem para chegar acima, mas o que viu recompensou-a do esforço. Na sua frente, em baixo, havia uma fila de árvores junto das quais corria um largo rio, e à sua direita as montanhas pareciam agora muito próximas. Esquecendo o receio das feras ou dos selvagens, a jovem torturada pela sede quase correu para o rio. Ao aproximar-se da margem viu uma dúzia de grandes vultos que flutuavam. Uma pesada cabeça ergueu-se, e uma boca enorme abriu-se como a entrada de uma caverna, mas Rhonda não parou. Bebeu longamente, sob o olhar indiferente dos hipopótamos.

Passou a noite numa árvore, dormindo por períodos curtos e despertando ao menor ruído. Da planície vinham os rugidos dos leões que caçavam. Em baixo, um numeroso grupo de hipopótamos saiu da água. A distância distinguiam — os gritos dos chacais e das hienas. Não foi uma noite agradável.

A manhã encontrou-a enfraquecida pela falta de sono e pela fome. Sabia que tinha de encontrar comida, mas não imaginava como. Pensou que talvez o «safari» tivesse entretanto alcançado as cataratas, e decidiu subir ao longo da margem, na esperança de encontrar os companheiros uma esperança em que não acreditava.

Descobriu uma trilha de caça relativamente fácil, paralela ao rio, e seguiu por ela. Pouco a pouco foi começando a ouvir uma espécie de grande rugido distante, que parecia aproximar-se. Calculou que já não devia estar muito longe das cataratas.

Alcançou-as cerca do meio-dia — um espectáculo imponente, cuja grandeza escapou à sua sensibilidade entorpecida. O grande rio caía do alto de uma escarpa, e a água branca de espuma enchia o desfiladeiro. O rugido das cataratas era ensurdecedor.

Pouco a pouco, a majestade e a solidão da paisagem foram empolgando Rhonda. Sentia-se como se fosse a única criatura viva no mundo, olhando um cenário eterno que mais ninguém vira antes dela.

Mas não estava só. No alto da escarpa, sobre uma estreita plataforma, uma criatura peluda observava-a. Chamou a atenção de outra igual, e apontou para a jovem.

Por momentos, os dois estranhos seres ficaram a olhar, mas logo começaram a descer a escarpa. Agarravam-se como moscas, na face rugosa da penedia, e quando terminou a plataforma saltaram para as árvores pequenas e robustas que cresciam entre as rochas. Desciam sempre; eram dois grandes homens primitivos, que saltavam de penedo em penedo, mantendo-se sempre fora do campo de visão da jovem.

O grande rugido das cataratas, a água espumante, tudo contribuía para que aumentasse o torpor de Rhonda. Não via qualquer sinal dos seus companheiros, e se por acaso estavam acampados na outra margem do rio... era como se estivessem num mundo distante e diferente, tão intransponível lhe parecia o obstáculo.

Sentia-se infinitamente pequena, e sozinha, e cansada. Com um suspiro, sentou-se sobre uma pedra encostou-se a outras que estavam atrás dessa. Todas as forças que lhe restavam se haviam esvaído. Fechou os olhos, exausta, e duas lágrimas lhe rolaram pelas faces. Talvez tivesse adormecido, mas acordou em sobressalto ao ouvir uma voz junto dela.. No primeiro instante julgou que estava a sonhar e não abriu os olhos.

— Ela está só... — disse a voz. — Vamos levá-la ao Deus, ele ficará contente.

A voz falava inglês, com pronúncia inglesa, mas o tom era estranho e gutural. Rhonda abriu os olhos e encolheu-se, com um grito de terror. Na sua frente estavam dois gorilas, ou quando menos foi isso o que lhe pareceu até que uma das criaturas voltou a falar.

— Vem connosco... — disse. — Vamos levar-te ao Deus...

E, estendendo uma enorme mão peluda, agarrou-a.

 

                   O rei dos gorilas

Rhonda tentou libertar-se do animal poderoso que a agarrava, mas não o conseguiu. A criatura levantou-a facilmente e apertou-a debaixo de um braço.

— Quieta, ou torço-te o pescoço... — disse.

— Não faças isso... — avisou o outro. — O Deus ficaria zangado se não lhe levasses a mulher viva e ilesa. Há muito que deseja uma mulher assim.

— Para que a quer ele? É tão velho que mal pode comer.

— Talvez a dê a Henrique VIII.

— Esse já tem seis mulheres. Penso que vou escondê-la e guardá-la para mim.

— Veremos isso... — volveu o que segurava Rhonda.

Deixou cair a jovem e saltou, rosnando, sobre o companheiro. Enquanto ambos lutavam, tentando morder-se, Rhonda levantou-se e quis fugir.

Tudo aquilo lhe parecia um horrível e grotesco pesadelo, mas tão aparentemente real que ela não podia ter a certeza. Quando quis correr, os dois estranhos seres cessaram a luta e perseguiram-na. Foi-lhes fácil agarrá-la,

— Vês o que pode acontecer... — disse o que queria levá-la ao Deus — .. .se perdermos tempo a discutir? Não a terás, a não ser que o Deus queira dar-ta.

— Está bem... — volveu o outro — ...mas Henrique VIII não a terá. Estou farto dele, julga-se maior do que o Deus.

Com a agilidade de verdadeiros gorilas, escalaram a penedia por onde haviam descido, enquanto Rhonda fechava os olhos com força para escapar à vertigem do abismo, e tentar convencer-se de que estava de facto a sonhar.

Mas a realidade era demasiadamente angustiosa. Nem mesmo o espantoso absurdo da situação a invalidava. Sabia que não estava a sonhar, e que se encontrava em poder de dois gorilas que falavam inglês. Era inadmissível, mas era verdade.

Que sorte a esperava? Pelas frases que ouvira, Rhonda tinha uma ideia antecipada do que poderia encontrar. Mas quem era Henrique VIII? E quem era Deus?

Os dois gorilas continuaram a escalada, até alcançarem o alto da penedia. Adiante, para o sul, o rio precipitava-se sobre a crista, formando as cataratas de Omwamwi; para o norte alongava-se um vale, entre montanhas — o vale dos diamantes, talvez.

A surpresa repugnada, que sentira ao ouvir os dois animais falarem uma linguagem humana, tinha tido sobre ela um efeito devastador... e embora compreendendo o que eles diziam não lhe ocorreu sequer a ideia de que poderia fazer-se entender — a aventura era de tal modo absurda e improvável que Rhonda ainda duvidava dos seus sentidos.

O primeiro choque, da captura, fora neutralizado pela angústia da subida e pelo alívio de ter chegado acima. Agora podia pensar, e só então compreendeu a possibilidade de comunicar com os seus

captores.

— Quem são vocês?... — perguntou. — E por que

me prenderam?

Os dois olharam para ela, parecendo surpreendidos.

— Fala inglês!... — exclamou um.

— Claro que falo inglês, mas quero que me respondam! Não têm o direito de me levar, não lhes fiz mal. Estava à espera dos meus companheiros... Larguem-me!

— Isto vai agradar ao Deus... — disse um dos monstros. — Ele sempre afirmou que, se pudesse apanhar uma mulher inglesa, poderia fazer muito pela raça.

— Que coisa é essa a que chamam o Deus?... — perguntou a jovem.

— Não é uma coisa, é um homem... — respondeu aquele que a havia transportado. — É muito velho, é o homem mais velho do mundo, e o mais sabedor. Foi ele que nos criou, e quando morrer ficaremos sem deus.

— Henrique VIII gostaria de ser o Deus... — disse o outro.

— Nunca o será enquanto Wolsey viver. Wolsey será um deus melhor do que ele.

Rhonda fechou os olhos. Estava a dormir, sem dúvida... Henrique VIII... Thomas Wolsey... Aqueles nomes do século dezasseis, citados por gorilas...

Os dois monstros não tinham parado no alto da escarpa, e imediatamente haviam começado a descer para o vale. Nenhum deles, nem mesmo o que a transportava, dava qualquer sinal de fadiga, sequer pela aceleração da respiração. Agora Rhonda caminhava também, embora agarrada por um braço e violentamente puxada quando se atrasava.

— Não posso caminhar tão depressa... — disse ela, por fim. — Há muito tempo que não como, e estou sem forças.

Sem uma palavra, um dos gorilas voltou a segurá-la debaixo do braço e continuou a descer para o vale. A posição era desconfortável, Rhonda sentia-se fraca e assustada. Desmaiou mais de uma vez.

Não fazia ideia de quanto tempo durara a descida. Quando estava consciente, tentava em vão adivinhar o que a esperava. Esforçava-se por imaginar como seria o Deus daquelas criaturas. Que poderia esperar de tal coisa... que piedade... se de facto o deus existia fora da imaginação dos monstros?

Depois do que lhe pareceu muito tempo, ouviu vozes a distância, vozes que aumentavam de volume na medida em que avançavam; pouco depois o gorila que a transportava pô-la no chão.

Olhando em volta, Rhonda viu que estava na base de uma penedia, diante de uma cidade parcialmente construída fora da face da pedra, e parcialmente cavada na própria pedra.

Os arredores da cidade estavam ocupados por campos e pomares, onde muitos gorilas trabalhavam com utensílios toscos, de fabricação manual.

Ao verem a cativa, todos esses gorilas largaram o seu trabalho e acorreram, cercando o pequeno grupo, examinando a jovem e fazendo perguntas; mas não esboçaram o menor gesto de violência; a atitude deles parecia muito mais amistosa do que seria a de criaturas humanas que pudesse encontrar ali.

A parte da cidade construída fora da base da penedia, junto desta, consistia em cubatas circulares, feitas de bambus, com coberturas cónicas, de colmo, e em construções rectangulares, de pedra ou de barro seco ao sol.

Muito perto da penedia erguia-se um edifício de três andares, com torres e muralhas, que sugeria grosseiramente uma construção da Inglaterra medieval; mais acima, numa ampla plataforma, havia um edifício ainda maior e de arquitectura semelhante.

Os captores de Rhonda conduziram-na directamente para o primeiro desses dois edifícios, diante de cuja porta estavam dois enormes gorilas que empunhavam o que parecia uma espécie de toscos machados de guerra. Os dois guardas observaram Rhonda e interrogaram os captores.

Mais uma vez Rhonda tentou convencer-se de que estava a sonhar. Toda a sua experiência anterior, tudo o que estudara e aprendera, lhe diziam do espantoso absurdo do que estava a acontecer-lhe. Não era possível existirem gorilas que falassem inglês, cultivassem campos, vivessem em casas de pedra. E, no entanto, todas essas impossibilidades estavam diante dela, como realidades tangíveis. Como num sonho, ouvia os seus captores pedirem autorização para a levar à presença do rei... e ouvia os guardas responderem que o rei não podia ser incomodado pois estava reunido com o seu Conselho Privado.

— Então vamos levá-la ao Deus... — disse um dos captores, em tom de ameaça — ...e quando o rei souber, vocês irão trabalhar para as pedreiras em vez de estarem aqui na sombra.

Por fim, um jovem gorila foi mandado levar uma mensagem. Voltou com a ordem de que o rei queria ver imediatamente a prisioneira.

Rhonda foi conduzida a um amplo compartimento, cujo chão estava coberto com ervas secas. Num estrado, ao fundo, um grande gorila caminhava de um lado para o outro, enquanto cerca de meia dúzia de animais quase tão corpulentos como ele se sentavam no chão. Todos eram enormes, peludos, decerto dotados de tremenda força... Não havia cadeiras ou bancos, mas sobre o estrado erguia-se um tronco cortado, com os ramos nus de folhagem.

Quando Rhonda entrou, o animal que estava sobre o estrado imobilizou-se para a observar.

— Onde a encontraste, Buckingham?... — perguntou ele.

— Junto das cataratas, «Sire»... — respondeu o que havia capturado a jovem.

— Que fazia ela aí?

— Disse que estava à espera dos companheiros que deviam encontrá-la nas cataratas.

— Ela disse? Queres dizer que fala inglês?... — exclamou o rei.

— Sim, falo inglês... — disse Rhonda. — E se não estou a sonhar, e você é o rei, ordene que me levem às cataratas para poder encontrar os meus amigos.

— Sonhar? Por que pensas que estás a sonhar? Estás a dormir?

— Não sei... — respondeu Rhonda. — Por vezes julgo que sim.

— Pois não estás... — disse o rei. — E quem te meteu na cabeça a dúvida de que eu seja o rei. Deve ter sido Buckingham.

— Vossa Majestade ofende-me... — retorquiu Buckingham, sombrio, — Fui eu que insisti em a trazer ao rei.

— Fizeste bem. Ela agrada-nos, guardá-la-emos.

— Mas, Majestade... — exclamou o outro dos captores — ...o nosso dever é levá-la ao Deus. Trouxemo-la aqui, primeiro, para que Vossa Majestade pudesse vê-la, mas devemos levá-la ao Deus, que há anos deseja uma mulher assim.

— Como, Cranmer? Também estás contra mim?

— Cranmer tem razão... — disse um dos gorilas sentados no chão. — Esta mulher deve ser levada ao Deus. Foi ele quem nos criou e nos fez o que somos. Ele pode destruir-nos.

O rei voltara a caminhar de um lado para o outro, sobre o estrado. Disse:

— Essa é uma das tuas ideias, Wolsey. Tomas sempre o partido do Deus!

— Todos nós temos de nos lembrar do que lhe devemos, e tu já tens seis mulheres.

Os olhos do rei chamejavam, os seus lábios crispavam-se numa expressão feroz. De repente parou junto do tronco de árvore e sacudiu-o, como se quisesse arrancá-lo. Depois saltou para uma das ramadas e olhou para baixo, onde estavam os outros. Mas apenas por um instante. Com a agilidade de um pequeno macaco, pulou novamente para o estrado. Com os grandes punhos, bateu sobre o corpo peludo, e do seu peito cavernoso saiu um rugido que fez tremer o edifício.

— Eu sou o rei!... — bradou. — A minha palavra é lei! Levem essa mulher para os aposentos das mulheres!

O gorila a quem o rei tratara por Wolsey, levantou-se de um salto e pôs-se também a bater no peito e a rugir:

— Isso é sacrilégio! Quem desafia o Deus tem de morrer, é essa a lei. Arrepende-te e manda a mulher ao Deus!

— Nunca!... — berrou o rei. — Ela é minha!

Agora ambos os monstros batiam no peito e grunhiam, de tal maneira que mal se distinguiam as palavras; e os outros gorilas agitavam-se, com os pêlos eriçados, as presas à mostra. Então Wolsey jogou o seu trunfo:

— Manda a mulher ao Deus, ou serás excomungado!

O rei, porém, estava de tal maneira furioso que não ouvia. Berrava:

— A guarda! A guarda! Suffolk, chama a guarda e que levem o cardeal Wolsey para a torre! Buckingham, leva essa mulher para os aposentos das mulheres, ou mando cortar a tua cabeça!

Os dois gorilas continuavam a grunhir e a bater no peito quando Rhonda foi levada para fora, pelo peludo Buckingham.

O monstro fê-la subir uma escada de pedra, circular, e empurrou-a ao longo de um corredor, até a um quarto ao fundo do andar de cima. Era um quarto grande, numa esquina do edifício, e no chão coberto de ervas sentavam-se ou estendiam-se umas quantas fêmeas adultas, enquanto as crias brincavam em volta ou mamavam.

Muitas das fêmeas mastigavam hastes de plantas, pontas tenras de bambus, ou frutos. Mas todas as actividades cessaram quando Buckingham empurrou Rhonda para o interior do compartimento.

— Que trazes aí, Buckingham?... — perguntou uma velha fêmea.

— Uma mulher que apanhámos nas cataratas.

O rei deu ordem para a trazer aqui... — voltou-se para a prisioneira e disse: — Esta é a rainha Catarina... Catarina de Aragão.

— Que quer ele da mulher?... — perguntou a rainha Catarina.

Buckingham encolheu os largos ombros e olhou para as seis fêmeas adultas, respondendo:

— Vossas Majestades devem poder calcular...

— Estará ele a pensar em tomar como mulher essa criatura pequena e sem pêlos?... — perguntou outra fêmea, sentada adiante.

— Isso é o que o rei pensa... — volveu Catarina de Aragão. — Senão não a teria mandado para aqui, Ana Bolena.

— Ele ainda não tem bastantes mulheres?

— Só o rei pode responder... — disse Buckingham, afastando-se.

As grandes fêmeas gorilas aproximaram-se de Rhonda, cheiraram-na, apalparam-lhe a roupa. As crias puxavam-lhe a saia. Uma, maior do que as outras, empurrou-a pelas pernas, fê-la cair e pôs-se a dançar em volta, gritando e fazendo caretas. Quando Rhonda tentou levantar-se, o monstro pequeno saltou sobre ela e a jovem bateu-lhe, julgando-se atacada. A cria correu para os braços de Catarina de Aragão, a gritar, e uma das outras fêmeas agarrou Rhonda e atirou-a violentamente contra a parede, berrando:

— Como te atreves a tocar no príncipe de Gales? O príncipe de Gales, Ana Bolena, Catarina de Aragão...

Rhonda começava a convencer-se de que tinha endoidecido. Que outra explicação podia haver para aquela cena em que os gorilas representavam papéis históricos e falavam como criaturas humanas? O sono ou a loucura...

Agachou-se junto da parede e escondeu a cara entre as mãos.

 

                   Desespero

O cavalo apavorado levava Naomi, a galope, seguindo os outros, A jovem nada mais podia fazer do que agarrar-se à sela, receando a cada instante ser atirada ao chão. Na altura em que a trilha alargava, numa clareira natural, os cavalos da frente pararam bruscamente... e a montada de Naomi deteve-se também.

A jovem viu a razão da brusca paragem — o xeque Ab el-Ghrennem e os seus homens. Tentou puxar as rédeas do cavalo e fugir, mas os outros animais cercavam-na, e um momento depois estava novamente prisioneira.

O xeque estava tão satisfeito por ter recuperado os cavalos, que quase esqueceu a sua cólera por haver sido temporariamente privado deles. Alegrava-o também a recaptura de uma das prisioneiras. Aquela podia igualmente ler o mapa, e seria útil de outras maneiras se ele decidisse não a vender.

— Onde está a outra?... — perguntou Atewy.

— Um leão... matou-a... — murmurou Naomi.

— Bem, tu ainda aqui estás... — volveu o árabe, encolhendo os ombros. — E temos o mapa. Não é mau.

Naomi recordou-se da colina em forma de cone e das montanhas a distância. Disse:

— Se eu os levar ao vale dos diamantes, Levar-me-ão à minha gente?

Atewy traduziu para el-Ghrennem, e o velho xeque fez um aceno afirmativo:

— Diz-lhe que faremos isso se ela nos levar ao vale dos diamantes... Sim, diz-lhe isso... Mas quando encontrarmos o vale talvez nos esqueçamos da promessa. Isto não lhe digas...

— Leva-nos ao vale dos diamantes e terás o que queres... — disse Atewy, disfarçando um sorriso.

Não habituados ao esforço de caminhar a pé através da selva, a que a perseguição das raparigas e dos cavalos os tinha obrigado, os árabes acamparam assim que chegaram ao rio.

No dia seguinte atravessaram a planície, e quando Naomi chamou a atenção deles para a colina vulcânica e para as montanhas a noroeste, comparando isso com as indicações do mapa, os árabes ficaram exultantes. Mas quando chegaram ao rio, abaixo das cataratas, e viram a sua largura e a força da corrente, concluiram que o obstáculo era intransponível, e as penedias não podiam ser escaladas.

Acamparam nessa noite na margem leste do rio, e até bastante tarde discutiram planos para a travessia.

O mapa indicava claramente uma única entrada para o vale, várias milhas a noroeste.

Pela manhã desceram o rio em busca de um vau, mas só dois dias depois encontraram um lugar onde se atreveram a tentar a passagem. Mesmo aí tiveram grandes dificuldades e gastaram a maior parte do dia em tentativas baldadas. Por fim conseguiram transpor o curso de água — com a perda de dois homens e das respectivas montadas.

Naomi viveu horas de pavor, não só pelas angústias da passagem como pela constante ameaça dos crocodilos que povoavam o rio. Encharcada até aos ossos encolheu-se junto da fogueira, nessa noite, até que, esfomeada e sem ânimo, mergulhou num sono pesado, de esgotamento.

As provisões trazidas pelos árabes tinham sido perdidas no rio, ou estragadas pela água, e não haviam podido caçar antes da noite. Mas eram homens habituados a privações, e animava-os a ideia de que dentro de horas estariam a apanhar mancheias de diamantes, no vale que ficava apenas a algumas milhas para o norte. Descer a margem leste do rio tinha sido difícil e demorado, pelas sucessivas tentativas para atravessarem a corrente e pela ausência de uma trilha. Mas na margem oeste a trilha era larga e fácil, e podiam avançar rapidamente.

A meio da tarde, no segundo dia depois de atravessarem o rio, Naomi chamou Atewy, que cavalgava perto dela.

— Olhe!... — disse. — Ali está a coluna de granito vermelho indicada no mapa. Directamente a leste é a entrada do vale.

Excitado, Atewy transmitiu a informação a el-Ghrennem e aos outros. Largos sorrisos se abriram nas faces sombrias.

— E agora, que os conduzi ao vale... — acrescentou Naomi — ...cumpram a promessa de me levar para a minha gente.

— Mais devagar... — disse Atewy. — Ainda não estamos no vale. Tens de nos acompanhar até termos a certeza de que é realmente o vale dos diamantes.

— Não foi isso o combinado... — protestou a jovem. — Eu devia guiá-los ao vale, e já o fiz. Vou procurar os meus companheiros, ainda que tenha de ir só.

Fez voltar o cavalo, para seguir em sentido contrário ao longo da trilha. Não sabia onde poderiam estar os seus amigos, mas ouvira os árabes dizer que aquelas cataratas eram Omwamwi Falis, e sabia que o «safari» devia vir nessa direcção. Já deviam ter chegado e...

Mas não pôde pôr em prática qualquer espécie de ideia de fuga, pois no mesmo instante Atewy agarrou as rédeas do cavalo dela, e praguejando bateu-lhe na cara com a outra mão.

— Se tentar isto outra vez, será pior... — rosnou o beduíno, ameaçador.

Magoada, indefesa, desesperançada, a jovem começou a soluçar. Pensou que tinha alcançado o ponto mais fundo da angústia, mas não sabia o que a esperava ainda.

Nessa noite os árabes acamparam a leste da coluna de granito vermelho que se erguia à entrada de um estreito desfiladeiro, o qual devia ser o caminho para o vale dos diamantes. Cedo, na manhã seguinte, entraram na passagem que, pensavam eles, os conduziria à fortuna.

Mas, no alto dos penhascos, olhos selvagens observavam-nos.

 

                   «Vem comigo!»

Na luz da manhã, Tarzan dos Macacos olhava para o homem tão espantosamente parecido com ele que lhe dava a impressão de ter saído de si mesmo e estar a olhar-se — pelo lado de fora.

Era no princípio do dia em que deviam partir em busca de Orman e de West, mas Tarzan compreendia que teria de passar algum tempo antes que Obroski pudesse caminhar por seu pé. Com a rapidez que é de certa maneira frequente... a febre atacara o americano. O seu delírio acordara o homem da selva, mas agora o delírio passara e Obroski mergulhara num torpor comatoso.

Tarzan considerou o assunto. Não queria deixar o homem sozinho, à mercê da selva, nem desejava ficar ali com ele... As suas conversas com Obroski tinham-no convencido de que, qualquer que fosse a sua antipatia pelos homens do «safari», tinha o dever de humanidade de socorrer os companheiros de Orman. A situação das duas raparigas despertava em especial o seu sentido de protecção, e foi com a habitual rapidez que tomou uma decisão.

Erguendo nos braços o inconsciente Obroski, pô-lo sobre um dos seus largos ombros e partiu através da selva, na direcção do sul. Seguiu caminho durante todo o dia, detendo-se apenas para beber água, sem comer. Por espaços, o americano permanecia inconsciente, mas de outras vezes debatia-se no delírio da febre; outras vezes ainda, acordado e consciente, suplicava a Tarzan que parasse e o deixasse descansar... Mas Tarzan ignorou os pedidos e continuou para o sul. Ao anoitecer alcançaram uma aldeia indígena, para além do território dos Bansutos. Mpugu, o chefe da aldeia, não era hostil aos brancos e era amigo de Tarzan que certa vez lhe salvara a vida.

Obroski estava inconsciente quando chegaram à aldeia, e Tarzan foi deitá-lo numa cubata que Mpugu pôs à sua disposição.

— Quando ele estiver bem leva-o a Jinja... — disse Tarzan — ...e pede ao comissário que o envie para a costa.

O homem da selva ficou na aldeia apenas o tempo necessário para comer; logo depois retomou o caminho das árvores e, na escuridão da noite que descia, voltou para o norte...

Entretanto Rhonda Terry, encolhida sobre a palha que cobria o chão do aposento das mulheres do rei, pensava na fatalidade que a esperava. Tinha passado uma semana desde que fora empurrada para ali. Soubera muita coisa sobre as fêmeas gorilas com nomes de rainhas do passado, mas nada sobre o segredo da sua origem. Na maioria, as fêmeas eram-lhe hostis, embora não a maltratassem. Apenas uma lhe demonstrava interesse, e era através dela, e das conversas entre as outras, que Rhonda apanhara algumas informações.

As seis fêmeas adultas eram as mulheres do rei, e tinham os nomes históricos das que foram de facto casadas com Henrique VIII de Inglaterra. Eram Catarina de Aragão, Ana Bolena, Joana Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr.

Esta última, a mais nova, era a que se mostrava menos hostil, talvez porque tivesse sofrido às mãos das outras, e as odiasse. Rhonda explicou-lhe que, num país distante e quatrocentos anos antes, tinha realmente havido um rei a quem chamavam Henrique VIII, e que esse rei tivera seis mulheres com nomes iguais aos delas. Tal coisa parecia exceder todas as possibilidades — que naquele vale ignorado o rei tivesse encontrado seis mulheres para casar, e com tais nomes.

— Estes não eram os nossos nomes antes de sermos mulheres do rei... — explicou Catarina Parr. — Foi quando casámos com ele que passámos a chamar-nos assim.

— Por ordem do rei?

— Não. Por ordem do Deus.

— Como é ele?

— Muito velho, ninguém sabe quanto... Esteve sempre aqui, em Inglaterra, é o deus de Inglaterra. Sabe tudo e é muito poderoso.

— Já o viste?

— Não. Há muitos anos que não sai do seu castelo. Agora ele e o rei estão de mal, e por isso o rei não veio aqui desde que tu chegaste. O Deus disse que o matava se ele tomasse outra mulher... Diz que Henrique VIII só pode ter seis mulheres, porque não há nomes para mais.

— Tudo isso é estranho... — murmurou Rhonda.

— Não podemos discutir as decisões de Deus. Ele criou-nos e sabe tudo. Se não tivermos fé, pode destruir-nos.

— Onde vive o Deus?

— No grande castelo, na plataforma acima da cidade. Chama-se os Portões de Oiro. É por aí que entramos no céu, quando morremos, se acreditarmos no Deus e o servirmos bem.

— E como é, por dentro, o castelo do Deus?

— Nunca lá estive. Só o rei, alguns dos nobres, o cardeal, o arcebispo e os padres podem entrar nos Portões de Oiro e voltar a sair. Os espíritos dos mortos entram mas não saem. Por vezes, o Deus manda buscar uma rapariga ou um rapaz, muito novos. Também não voltam e ninguém sabe o que lhes acontece. É muito estranho, mas diz-se... — hesitou.

— O que se diz?... — perguntou Rhonda, intrigada mau grado seu.

— Terríveis coisas... mas não me atrevo a sussurrá-las. Não as devo pensar, porque o Deus lê os nossos pensamentos. Não me faças mais perguntas. Foste mandada pelo diabo, para causar a minha perda...

E Rhonda nada mais pôde ouvir a Catarina Parr.

Cedo, na manhã seguinte, a jovem americana foi acordada por horríveis gritos e rugidos, que pareciam vir de fora do palácio, e também de dentro. As fêmeas agitaram-se, rosnando e correndo para as janelas a olhar o pátio e as ruas em volta. Rhonda foi olhar entre os ombros delas, e viu os monstros peludos que lutavam, no pátio e diante da porta. Combatiam com unhas e dentes, com clavas e machados.

— Libertaram Wolsey, da torre... — disse Joana Seymour — e é ele quem comanda o partido do Deus, contra o rei.

Catarina de Aragão, sentada sobre a palha, pôs-se a descascar uma banana. Comentou, aborrecida:

— Henrique e o Deus estão sempre em luta, e nada muda. Lutam de cada vez que Henrique quer outra mulher.

— Mas Henrique sempre consegue a mulher... — disse Catarina Howard.

— Das outras vezes Wolsey estava do lado dele, mas agora pode ser diferente. Ouvi dizer que o Deus quer a mulher sem pêlos. Se assim for não voltaremos a vê-la, o que é boa ideia...

E Catarina de Aragão, mostrando os dentes a Rhonda, voltou a concentrar-se na banana.

O rumor da luta subia, e não tardaram a ouvi-lo no corredor, fora da porta fechada. De repente, a porta abriu-se e vários dos monstros entraram.

— Onde está a que não tem pêlos?... — disse o chefe. — Ah! Ei-la aqui!

Atravessou o compartimento e agarrou Rhonda por um pulso, rudemente.

— Vem comigo!... — ordenou. — O Deus mandou-me levar-te.

 

                   Raptada

Os árabes subiam o estreito caminho que levava ao vale dos diamantes. De cima, olhos ferozes espreitavam. Ab el-Ghrennem exultava, com visões de tesouros que excediam em muito os mais delirantes sonhos da sua cobiça. Atewy cavalgava ao lado de Naomi, para a impedir de fugir.

Por fim chegaram junto de uma muralha que nenhum cavalo poderia escalar. As paredes perpendiculares do desfiladeiro quase se uniam.

— Os cavalos não podem ir para diante... — disse Ab el-Ghrennem. — Ficas com eles, Eyad. Nós continuamos, a pé.

— E a rapariga?... — perguntou Atewy.

— Levamo-la connosco, não vá ela fugir a Eyad enquanto ele se ocupa dos cavalos... — respondeu o xeque. — Eu não a deixarei escapar-se.

Avançaram ao longo das rochas escarpadas, arrastando Naomi, e encontraram terreno plano em cima.

A barreira de rochas não era demasiado alta, embora o fosse bastante para impedir o avanço dos cavalos.

Sobre a sela, Eyad podia avistar os seus companheiros que continuavam a caminhar; em cima, o desfiladeiro alargava novamente e as muralhas formavam declives cobertos de arvoredo, como no alto.

Os beduínos haviam percorrido uma distância curta quando Eyad distinguiu um vulto semelhante ao de um homem, mas negro e coberto de pêlo, que surgia de entre os bambus, acima e atrás dos seus companheiros. Logo outro, e outro ainda, apareceram junto do primeiro. Empunhavam clavas, ou machados de cabos compridos.

Eyad soltou um brado de aviso. Ouvindo-o, os beduínos pararam... mas no mesmo instante um numeroso bando das estranhas criaturas peludas caiu sobre eles, descendo de ambas as encostas do desfiladeiro.

Rosnando e grunhindo, os monstros atacaram. As armas dos beduínos abriram fogo, e as detonações encheram de ruído a estreita passagem. Alguns dos gorilas foram feridos, alguns caíram. Mas os outros, enraivecidos, lançaram-se na luta corpo a corpo. Arrancaram as armas das mãos dos beduínos e atiraram-nas à distância, quebradas. Logo, agarrando os homens nas suas mãos poderosas, cravavam-lhes no pescoço os grandes dentes, ou lhes esmigalhavam as cabeças com os machados de combate.

Gritando e praguejando, os árabes pensavam apenas em fugir, agora. Eyad, aterrorizado ao ver a chacina, não se movia. Viu um dos grandes gorilas agarrar a rapariga branca e precipitar-se para a encosta, galgando-a rapidamente em direcção à crista arborizada. Avistou dois dos monstros que desciam a barreira de rochas e corriam para ele. Então fez o cavalo dar meia volta e esporeou-o, em pânico. Galopando ao longo do desfiladeiro, ouvia o tumulto do combate esmorecer na distância, mas a certa altura deixou de o ouvir.

Enquanto Eyad desaparecia na parte inferior da garganta, Buckingham levava Naomi através da floresta que dominava a estranha cidade do rei gorila.

Buckingham estava espantado. Pensava que aquela mulher sem pêlos era a mesma que ele capturara muitos dias antes, junto das cataratas que conhecia como Victoria Falis. Ainda naquela manhã a vira ser levada, por Wolsey, ao castelo do Deus.

Parou num ponto da crista, de onde podia avistar a cidade dos gorilas, em baixo. Hesitava. Queria aquela mulher para ele, mas tanto o Deus como o rei a queriam também. Parado, coçava a cabeça, buscando urdir um plano que lhe permitisse ficar com a mulher sem atrair o ódio dos dois poderosos personagens.

Naomi, suspensa da curva do braço enorme, estava petrificada de pavor. Os árabes tinham-lhe parecido horríveis, mas aquele monstro! Pensava em quando e como ele iria matá-la. A certa altura, o monstro pô-la de pé e fitou-a.

— Como escapaste ao Deus?... — perguntou.

Naomi olhou-o, com os olhos muito abertos. Um grande medo a invadiu, um medo ainda maior do que o terror físico que lhe causava a presença do monstro. Receava estar a perder a razão. De súbito, soltou uma gargalhada selvagem.

— De que estás a rir?... — rosnou Buckingham.

— De ti!... — gritou ela. — Pensas que podes enganar-me, mas não podes. Sei que estou a sonhar. Daqui a instantes acordo e vejo o sol na janela do meu quarto, a laranjeira que está no pátio, os telhados vermelhos e as árvores de Hollywood.

— Não sei de que estás a falar... — disse Buckingham. — Mas não estás a dormir. Se olhares para baixo, verás Londres e o Tamisa.

Naomi olhou para onde o monstro indicava, e viu uma estranha cidade, na margem de um pequeno rio. Beliscou-se com força e sentiu a dor... mas não acordou. Lentamente, compreendeu que não estava a sonhar e que as terríveis irrealidades que a cercavam eram bem reais.

— Quem é você? O que é você?... — perguntou ela.

— Responde à minha pergunta... — ordenou Buckingham. — Como fugiste ao Deus?

— Não sei o que quer dizer. Os árabes prenderam-me, eu consegui fugir mas eles apanharam-me outra vez.

— Isso foi antes de eu te encontrar, há alguns dias?

— Nunca o vi antes.

Buckingham voltou a coçar a cabeça, perguntando:

— Há outra como tu? Eu apanhei-te, ou a outra igual a ti, há vários dias, perto das cataratas.

— Apanhou uma rapariga como eu?... — perguntou Naomi, compreendendo.

— Sim.

— Ela trazia um lenço vermelho ao pescoço?

— Sim.

— Onde está ela?

— Se não és tu, então a outra está com o Deus, no castelo, além... — inclinou-se e apontou para um edifício de pedra, construído sobre uma plataforma muito em baixo; depois, com uma ideia súbita, olhou para a jovem: — Se não és a outra, então é porque o Deus a tem, e eu posso ficar contigo.

— Não, não!... — gritou Naomi. — Largue-me, quero voltar para os meus companheiros!

Buckingham agarrou-a debaixo de um dos enormes braços, rosnando:

— Nem o Deus, nem Henrique VIII, te verão... Vou levar-te para onde não possam encontrar-te, nunca, para um lugar que eu sei e onde há comida e água. Vou fazer uma cubata entre as árvores, e aí estaremos livres do Deus e do rei.

Naomi bateu-lhe, debateu-se, mas o monstro não se importou com isso e partiu para o sul, na direcção da parte inferior do vale.

 

                   O impostor

Tarzan acordou e esticou os músculos. Um novo dia despontava. Tinha percorrido uma longa distância durante parte da noite, desde que partira da aldeia de Mpugu, antes de descansar. Precisava agora apanhar uma presa que comeria no caminho, ou teria de continuar sem comer — isso dependia dos acasos da trilha. O homem da selva podia aguentar bastante tempo sem comer, e sem grandes inconvenientes. Não era uma criatura de hábitos, como os escravos da civilização.

Seguiu para diante, mas não tardou a captar o cheiro de homens brancos — os tarmangani. E, ainda antes de os ver, reconheceu-os pelo cheiro. Deteve-se numa árvore acima deles e olhou. Eram três, dois brancos e um árabe. Tinham feito um pobre acampamento para passar a noite, e Tarzan não viu vestígios de comida. A curta distância deles estava um gamo, mas os homens, esgotados, não o sabiam.

Tarzan sabia-o porque Usha, o vento, lhe trazia o cheiro do gamo.

Vendo o estado em que se encontravam os três homens, e receando que assustassem o animal antes de ele poder abatê-lo, Tarzan seguiu na direcção da caça, sem se mostrar.

Wappi, o pequeno antílope, pastava a erva tenra de uma clareira. Frequentes vezes levantava a cabeça e olhava, as orelhas em riste, alerta. Mas não suficientemente alerta para captar sinais da presença silenciosa do homem da selva.

De súbito o animal sobressaltou-se e correu. Ouvira um leve rumor, mas tarde de mais. O caçador voava sobre ele, vindo das ramadas das árvores.

A um quarto de milha dali, Orman tinha-se levantado.

— É melhor andarmos, Bill... — disse ele.

— Não podemos conseguir que este tipo compreenda a necessidade de nos guiar até ao ponto onde viu pela última vez uma das raparigas?

— Já o tentei. Você ouviu-me ameaçá-lo de o matar se não nos guiasse, mas ele não pode ou não quer entender.

— Se não encontrarmos comida dentro de pouco tempo, não poderemos ir seja aonde for. Se... — um estranho grito veio da selva, forte e apavorante, interrompendo Bill; os três homens estremeceram.

— O fantasma.., — sussurrou Orman.

— Você sabe que isso não existe, Tom... — volveu Bill, também em voz baixa, sentindo a pele arrepiar-se.

— Sim, eu sei, mas...

— Provavelmente não era Obroski... Talvez algum animal... — disse West.

— Olhe!... — exclamou Orman, apontando para além de Bill.

Bill voltou-se e viu um homem branco, quase nu, que caminhava para eles trazendo sobre os largos ombros a carcaça de um antílope.

— Obroski!... — exclamou West.

Tarzan viu que os dois homens o olhavam, espantados, ouviu a exclamação de West e recordou-se da espantosa semelhança entre ele próprio e Obroski. A sombra de um sorriso passou pelos seus olhos cinzentos, mas desapareceu antes de ele se aproximar dos dois homens e atirar para o chão a carcaça do antílope.

— Pensei que vocês tivessem fome... — disse. — Têm cara disso.

— Obroski... — murmurou Orman. — É realmente você?... — deu um passo em frente e tocou de leve num ombro de Tarzan.

— Que pensam que eu seja?... — perguntou o homem da selva. — Um fantasma?

Orman teve um pequeno riso embaraçado, a desculpar-se:

— Eu... bem... nós pensávamos que você estivesse morto... Foi uma tal surpresa vê-lo... e a maneira como você matou o leão, há dias... Você matou o leão, não foi?

— Parecia morto, pelo menos... — respondeu Tarzan.

— Sim, sim... claro... Mas não parecia exactamente... uma acção sua... isto é... não sabíamos que você fosse capaz de tal coisa.

— Provavelmente há uma porção de coisas, a meu respeito, que vocês não sabem. Mas não importa isso, agora. Vim para que me digam o que aconteceu às raparigas. Estão em segurança? E o resto do «safari»?

— As raparigas foram raptadas pelos árabes há quase duas semanas. Bill e eu temos andado em busca delas, e não sabemos dos outros. Eu disse a Pat para tentar levar o «safari» a Omwamwi Falis, e esperar por mim aí, se eu não aparecesse antes. Capturámos este árabe. É Eyad... talvez você se lembre dele. Mas não entendemos o que ele diz... Pelo que pudemos adivinhar, uma das raparigas foi morta por uma fera, e qualquer coisa terrível aconteceu à outra e ao bando de beduínos.

Tarzan voltou-se para Eyad e, com grande surpresa deste, interrogou-o na língua dele, enquanto West e Orman o olhavam com espanto. Os dois falaram rapidamente durante alguns momentos; depois Tarzan entregou uma flecha a Eyad, e o árabe, acocorando-se, alisou um pequeno espaço de terreno, com a palma da mão, e com a ponta da flecha começou a desenhar qualquer coisa.

— Que está ele a fazer?... — perguntou West. — E que disse?

— Está a fazer um mapa para mostrar o ponto onde se travou o combate entre os árabes e os gorilas.

— Gorilas?E que disse ele das raparigas?

— Uma delas foi morta por um leão, há uma semana, e quando viu a outra pela última vez estava a ser levada por um grande gorila.

— Qual foi a que morreu?... — perguntou West. — Ele disse?

Tarzan interrogou o árabe e voltou-se de novo para West:

— Não sabe. Diz que nunca conseguiu distinguir uma da outra.

Eyad tinha acabado de desenhar o mapa e indicava ao homem da selva os pontos de referência. Orman e West observavam agora o tosco desenho, e o realizador teve um riso áspero:

— Ele está a enganá-lo, Obroski. Isso é a cópia de um mapa de fantasia, que nós tínhamos para utilizar no filme.

Tarzan falou rapidamente com Eyad, em árabe, e disse, dirigindo-se a Orman:

— Creio que ele diz a verdade, mas não tardarei a saber. Vou alcançar esse vale, e ver. Você e West sigam até às cataratas, Eyad pode guiá-los. A carne do antílope chegará até lá, com certeza... — e, sem acrescentar qualquer outra palavra, Tarzan saltou para as árvores.

Os três homens ficaram a olhar, espantados, o ponto onde ele desaparecera. Por fim, Orman abanou a cabeça:

— Nunca me enganei tão completamente a respeito de alguém... — disse ele. — Todos nos enganámos, afinal. Mas na verdade nunca assisti a uma tão grande transformação num homem.

— Até a voz dele mudou... — disse West.

— Estranho tipo... — volveu Orman. — Não fazia a menor ideia de que ele soubesse falar árabe.

— Ele disse que nós não sabemos muitas coisas a seu respeito.

— Se não conhecesse tão bem as nobres feições e o físico de semideus, iria jurar que não era Obroski.

— Impossível... — disse West. — Reconhecê-lo-ia entre um milhão.

 

                   Homem e fera

O grande gorila levou Naomi para o sul, na direcção da extremidade do vale, por entre a crista arborizada da penedia. Quando atravessava espaços descobertos corria apressadamente, olhando frequentes vezes para trás como se receasse ser perseguido.

O terror da jovem atenuara-se, substituído por uma estranha apatia que ela própria não conseguia compreender. Era como se o seu sistema nervoso estivesse sob a acção de um anestésico que embotasse a sua sensibilidade ao medo, deixando intactas todas as outras capacidades. Talvez tivesse sofrido tanto que deixasse de se importar com o que poderia ainda acontecer-lhe.

O facto de poder falar inglês com aquele monstro dava um tom de irrealidade à aventura — e talvez isso influísse no estado mental em que ela se encontrava. Depois daquilo, qualquer coisa era possível, qualquer coisa podia acontecer.

A posição incómoda em que o monstro a transportava, e a fome, tornavam-se agora preocupações da maior importância, sobrepondo-se ao medo.

— Deixe-me caminhar... — pediu ela.

— Não tentes fugir... — resmungou Buckingham, pondo-a no chão.

Continuaram através do arvoredo, na direcção do sul. O gorila parava por vezes, para olhar para trás e escutar. Avançava contra o vento, de maneira que o faro era inútil para detectar qualquer perigo que viesse da retaguarda. Numa dessas paragens, Naomi viu frutos pendentes de uma árvore.

— Tenho fome... — disse. — Esses frutos podem-se comer?

— Podem.

Deixou-a apanhar alguns frutos e recomeçaram imediatamente a caminhar. Tinham alcançado quase a extremidade do vale, e atravessavam um espaço onde as árvores eram raras e as montanhas se cavavam em penedias verticais, até ao fundo do vale. O gorila voltou a parar e a olhar para trás.

Naomi, pensando que ele temesse a perseguição dos árabes, olhava também. Mesmo a carranca insolente de Atewy lhe pareceria agradável naquelas circunstâncias. Até então não houvera qualquer indício de perseguição, mas desta vez um vulto surgiu de entre as árvores pelas quais haviam passado pouco antes — o vulto enorme de outro gorila.

Com um rosnido, Buckingham agarrou a jovem e lançou-se em corrida. Pouco depois de alcançarem outra zona de arvoredo, e para além de uma pequena clareira, o monstro voltou-se bruscamente para uma das penedias; à beira do precipício pôs Naomi sobre o dorso e disse-lhe para se agarrar ao pescoço dele.

A jovem olhou para o abismo, em baixo, e rezando para que não lhe faltassem as forças, agarrou-se ao pescoço do estranho gorila. Não pôde fazer qualquer ideia de como o monstro conseguiu descer a penedia, pois não abriu os olhos senão quando, brutalmente, ele a obrigou a largá-lo e a pôs no chão.

— Virei buscar-te quando tiver afastado Suf-folk... — disse o gorila, antes de desaparecer.

Naomi viu que estava numa pequena caverna natural, na face da muralha de rocha. Um delgado fio de água corria pelo chão e caía para o vale, formando uma poça à entrada da caverna, antes de se despenhar. O resto da gruta era seco, mas nada havia sobre as rochas que formavam o chão.

A jovem aproximou-se da beira da entrada e olhou para baixo, recuando no mesmo instante. Estava a grande altura sobre o vale, e a penedia era quase lisa. Ganhando coragem, voltou a olhar, mas desta vez para cima. Aí também não parecia haver qualquer ponto onde firmar pés ou mãos. Não compreendia de que maneira o pesado monstro, transportando-a às costas, conseguira descer.

Entretanto Buckingham tinha voltado a escalar a muralha, e continuara a caminhar ao longo da crista, para o sul. Avançava devagar, e não tardou que o seu perseguidor o alcançasse, chamando-o e perguntando:

— Onde está a mulher sem pêlos?

— Não sei... — respondeu Buckingham. — Escapou-se, ando em busca dela.

— Por que fugiste de mim, Buckingham?

— Não sabia que eras tu, Suffolk. Pensei que fosse um dos partidários de Wolsey, tentando tirar-me a mulher sem pêlos e impedir-me de a levar ao rei.

— Mais te vale que a encontres... — rosnou Suffolk. — O rei não está de bom humor. Como pôde ela fugir ao Deus?

— Esta não fugiu ao Deus. É outra, embora parecida com a primeira...

Os dois gorilas internaram-se pela floresta.

Durante duas noites e dois dias Naomi ficou sozinha na sua caverna. Não tinha qualquer possibilidade de subir ou de descer a penedia vertical. Se o monstro não voltasse, morreria de fome. Sabia isso, e no entanto esperava que ele realmente não voltasse.

Quando desceu a noite do terceiro dia, Naomi sofria os efeitos da fome, e só graças ao fio de água lhe eram poupadas as torturas da sede. Ouvia o rumor da vida selvagem, na noite, mas não sentia medo. Essa era a vantagem da caverna. Se tivesse comida, podia viver ali durante muito tempo, em segurança; mas não havia que comer.

No entanto, as dores mais fortes, causadas pela fome, tinham-se atenuado. O sofrimento tornara-se suportável, deixando-lhe apenas a sensação do progressivo enfraquecimento. Parecia-lhe espantoso que ela, Naomi Madison, estivesse ali a morrer de fome, sozinha. Em todo o mundo, a única criatura que podia levar-lhe de comer, a única criatura que sabia onde ela estava, era um enorme e estranho gorila... E, todavia, os seus admiradores contavam-se por milhões, os seus gestos eram narrados por centenas de revistas e jornais... Sentia-se na verdade muito pequena e muito insignificante, agora. Não havia lugar para o seu egotismo de outro tempo.

Durante as longas horas de solidão tinha podido analisar-se mais profundamente do que nunca — e o que descobrira nada tinha de lisonjeiro. Compreendia que já havia aprendido muito durante as duas últimas semanas — aprendera alguma coisa através da atitude dos seus companheiros, mas muito mais pelo exemplo de Rhonda Terry. Se isso lhe fosse ainda possível, voltaria para a vida completamente transformada. Mas não acreditava nessa possibilidade. Não desejava a vida pelo preço que teria de pagar por ela, e rezava para morrer antes que o gorila voltasse.

Dormiu profundamente nessa terceira noite, embora o chão de rocha fosse uma tortura para o seu corpo. O sol da manhã, inundando a caverna, restituiu-lhe paradoxalmente uma esperança que ela sabia não ter razão de ser.

Bebeu água, lavou as mãos e a cara; depois sentou-se, a olhar para o vale dos diamantes. Devia odiar aquilo, porque aquilo era demasiado belo.

De repente, a sua atenção foi atraída por um som raspante, que vinha do exterior. Que poderia ser? Um instante depois uma perna negra e peluda surgiu na parte superior da entrada da caverna, e logo o grande gorila saltou para a plataforma. O monstro olhou para o interior.

— Vem aqui... — ordenou. — Eu vejo-te... Depressa, não temos tempo a perder. Talvez me tenham seguido. Suffolk tem mandado outros vigiar-me, nestes dois dias. Não acreditou que tu tivesses fugido, pensou que eu te havia escondido. Vamos! Depressa!

— Vá-se embora e deixe-me... — suplicou Naomi. — Prefiro morrer aqui!

O monstro não respondeu imediatamente, mas aproximou-se dela e curvou-se, agarrando-a por um braço e forçando-a a levantar-se. Levou-a para a beira do precipício, e então disse:

— Não sou bastante bom para ti, hem? Sabes que sou o duque de Buckingham? Agarra-te ao meu pescoço!

Pô-la às costas, e Naomi agarrou-se. Desejava precipitar-se para baixo, mas não tinha coragem para tanto. Mau grado seu agarrou-se ao pescoço do monstro, fechando os olhos enquanto ele escalava a penedia. Em cima, o gorila pô-la no chão e encaminhou-se para a extremidade sul do vale, arrastando-a.

A jovem estava demasiado fraca e cambaleava, tropeçando a cada passo. Então o gorila puxava-a rudemente, soltando estranhas pragas medievais.

— Não posso caminhar... — gemeu Naomi. — Estou fraca, não como há dois dias.

— Queres demorar-me, para que Suffolk nos alcance. Preferes pertencer ao rei, mas tal não será.

Não verás o rei. Ele só espera um pretexto para mandar que me cortem a cabeça, mas não será assim. Não voltaremos para Londres, tu e eu. Vamos sair do vale e descobrir um lugar para ficar, abaixo das cataratas.

Naomi voltou a tropeçar e a cair. O animal enraiveceu-se e deu-lhe pontapés, até que a agarrou pelos cabelos e se dispôs a arrastá-la.

Mas não tinha ainda dado três passos quando parou bruscamente. Rosnando e mostrando os grandes dentes, fitava uma criatura que saltara das árvores, diante dele. Naomi viu quem era e abriu muito os olhos, num espanto, gritando:

— Stanley! Oh, Stanley! Salve-me!

Era o grito instintivo e desesperado de uma ansiedade de sobrevivência, mas no mesmo instante Naomi compreendeu que não poderia esperar qualquer ajuda de Stanley Obroski, o cobarde. E o terror da sua situação tornou-se maior depois da esperança ilusória.

O gorila largou-lhe os cabelos e deixou-a cair no chão, onde ela ficou caída sem forças para se levantar, olhando o monstro a seu lado e o bronzeado gigante branco que o enfrentava.

— Afasta-te!... — ordenou Tarzan, na linguagem dos grandes macacos. — Essa mulher é minha! Afasta-te, ou morres!

Buckingham não compreendeu a linguagem daquele desconhecido, mas não podia deixar de entender o tom de ameaça. Volveu, em inglês:

— Afasta-te! Afasta-te, ou mato-te!

Tarzan dos Macacos não se surpreendia facilmente, mas ao ouvir o gorila falar-lhe em inglês teve um fugitivo instante de espanto. No entanto, o que importava agora era que o espantoso animal avançava para ele, batendo no peito e gritando ameaças.

Naomi olhava, horrorizada e fascinada. Viu o homem, que ela julgava ser Stanley Obroski, curvar-se ligeiramente, como à espera do ataque. Perguntava a si mesma por que razão Obroski não fugia — seria o que todos, incluindo ela própria, podiam esperar que ele fizesse.

Bruscamente o gorila atacou, e todavia o homem ficou onde estava. Quando os grandes braços peludos se estenderam para o agarrar, Tarzan esquivou-se com movimentos felinos, passou sob eles e saltou; antes que o monstro pudesse compreender, o homem da selva estava agarrado às costas dele, e um braço bronzeado rodeava-lhe o pescoço. Doido de raiva, Buckingham esbracejava, tentando alcançar, com as garras, o seu adversário.

Mas agora o gorila sentia que músculos de aço lhe apertavam o pescoço. Quis atirar-se ao chão, para esmagar Tarzan sob o seu peso, mas o homem da selva atenuou a queda, com os pés, e desviou o corpo sem largar o monstro.

Então Buckingham sentiu outra coisa — sentiu que maxilares poderosos se fechavam sobre o seu pescoço, procurando a jugular. Ouvia rosnidos semelhantes aos seus. Naomi ouvia-os também e o terror invadiu-a. Compreendia agora por que razão Stanley não fugira... Stanley estava doido! O medo e o sofrimento tinham-no endoidecido.

A jovem estremeceu e encolheu-se, ao ver os fortes dentes brancos do homem cravar-se no pescoço do gorila ,e ao ouvir os roncos ferozes. Os dois combatentes rolavam pelo chão...

Naomi sabia que não havia senão um desenlace possível, embora o homem tivesse uma pequena vantagem inicial; a força espantosa do monstro acabaria por vencer. Mas então viu brilhar a lâmina de uma faca, reflectindo os raios do sol da manhã. Viu a faca cravar-se no flanco do gorila, uma vez, dez vezes. O monstro uivava, redobrando de esforços para se libertar do homem agarrado às costas dele. Mas a faca não cessava de golpear, e os movimentos convulsivos do gorila terminaram bruscamente; o grande corpo peludo ficou inerte.

O homem levantou-se. Não olhou para Naomi, e na sua bela face havia agora o esgar de um animal selvagem. Poisou um pé sobre a carcaça do monstro, levantou a cabeça e lançou para o ar o mais horrível brado de vitória que Naomi alguma vez ouvira.

Quase no mesmo instante, a expressão selvagem desapareceu, o olhar tornou-se calmo, a voz natural. Olhou para a jovem e perguntou:

— Está ferida?

— Não... — disse Naomi, tentando em vão levantar-se.

Ele aproximou-se e ergueu-a. Era tão forte! Uma sensação de segurança invadiu subitamente Naomi, tirando-lhe as poucas forças que lhe restavam. Agarrada a ele, soluçava .murmurando:

— Oh, Stanley... Stanley...

Obroski contara a Tarzan muita coisa, sobre os vários membros do «safari». O homem da selva conhecia os nomes de todos eles, e podia identificá-los quase todos por tê-los visto quando, semanas antes, vigiara o «safari». Sabia do caso amoroso entre Naomi e Obroski, e calculava, pela atitude da jovem, que ela devia ser Naomi. Convinha-lhe que o julgassem Stanley Obroski — pois por vezes a vida perigosa e dura que ele vivia precisava de um leve toque de ocasional humor. Ergueu a jovem nos braços, perguntando:

— Por que está tão fraca? É fome?

Naomi respondeu com um «Sim» que mal se podia ouvir entre os soluços, e escondeu a cara no ombro dele. Ainda estava assustada. Sem dúvida que ele não agia como um doido... mas que outra explicação podia haver para a espantosa mudança, em força e coragem, que se operara em Stanley desde que o vira pela última vez?

Sabia-o forte, sem dúvida, mas nunca lhe supusera uma tão espantosa força como a que ele demonstrara na sua luta com o gorila, e sempre o conhecera como cobarde. Mas aquele homem não era um cobarde...

Tarzan transportou-a nos braços durante alguns momentos, e depois estendeu-a sobre uma macia cama de ervas, dizendo:

— Vou buscar-lhe alguma coisa para comer...

Naomi viu-o saltar agilmente para as árvores e desaparecer — e voltou a sentir medo. Franziu o sobrolho, intrigada... Por que razão tinha uma tão grande sensação de segurança junto de Stanley? Nunca o considerara capaz de a proteger... e no entanto ,agora, só não tinha medo quando ele estava a seu lado.

Tarzan voltou escassos minutos depois, trazendo alguns frutos. Curvou-se junto dela, recomendando:

— Coma devagar, pouco de cada vez... Depois arranjar-lhe-ei carne, e isso restituir-lhe-á forças.

— Você mudou muito, Stanley... — disse ela, que estivera a observá-lo enquanto comia.

— Sim?

— Muito, e gosto mais de você... Pensar que matou essa horrível criatura, sozinho... É maravilhoso!

— Que espécie de criatura era? Falava inglês...

— É um mistério, para mim. Dizia ser inglês... dizia-se duque de Buckingham... Um outro, que o perseguiu, chamava-se Suffolk... Um grande número deles atacaram os árabes, e este apanhou-me... Vivem numa cidade a quem chamam Londres... ele mostrou-ma, à distância. Rhonda está lá, prisioneira num pequeno castelo construído sobre uma plataforma acima da cidade, na face da penedia... e essa criatura disse-me que ela estava ali com o Deus.

— Pensei que Rhonda tivesse sido morta por um leão... — disse Tarzan.

— Também eu, até que essa criatura me contou isto... Oh, a pobre querida! Talvez fosse melhor se o leão a matasse... Estar em poder desses terríveis semi-homens...

— Onde fica essa cidade?

— Mais para trás, na base da penedia... Pode ver-se de cima.

O homem endireitou-se e levantou Naomi nos braços, novamente.

— Aonde vai?... — perguntou ela.

— Vou levá-la a Orman e a West. Devem chegar antes da noite às cataratas.

— Oh, estão vivos!

— Andavam a procurá-la e perderam-se. Passaram fome, mas fora disso estão bem. Ficarão contentes quando a virem.

— E depois poderemos partir desta horrível região?

— Antes disso temos de saber o que aconteceu aos outros ,e salvar Rhonda.

— Não é possível salvar Rhonda!... — exclamou Naomi. — Devia ter visto lutar esses diabos... mesmo os árabes, com as suas armas, nada puderam contra eles. Não há qualquer possibilidade de salvar Rhonda, mesmo que ela esteja viva, o que eu duvido...

— Temos de tentar... Além disso quero ver essa Londres dos gorilas.

— Quer lá ir?

— Só assim poderei vê-la, creio.

— Oh, Stanley! Não vá!

— Vim aqui por sua causa.

— Deixe que Bill West vá procurar Rhonda.

— Pensa que ele poderá?

— Ninguém poderá.

— Talvez não, mas pelo menos verei a cidade e saberei alguma coisa desses gorilas que falam inglês. Merece a pena.

Tinham chegado à parte sul do vale, onde as colinas desciam quase ao nível do rio. Ali, acima das cataratas, a corrente não era muito rápida. Tar-zan entrou na água, levando Naomi nos braços.

— Aonde vai?... — perguntou ela, assustada.

— Temos de atravessar o rio, e é mais fácil aqui do que abaixo das cataratas. Aí a corrente é muito mais forte, e há os hipopótamos e os crocodilos. Segure-se bem aos meus ombros.

Mergulhou e fez rumo à margem oposta, enquanto Naomi se agarrava, apavorada. Ouvia à distância o rugir das quedas de água, e o rio parecia imensamente largo, e parecia que a corrente os arrastava.

Mas as fortes e calmas braçadas do nadador tranquilizaram-na. Ele não parecia excitado, nem apressado, e pouco a pouco Naomi tornou-se confiante. Mas suspirou fundo quando chegaram a terra.

No entanto, o terror da travessia não podia comparar-se ao que a jovem sentiu ao descer a escarpa. O homem movia-se com a agilidade de um macaco. Onde aprendera Stanley a fazer tal coisa? A meio da descida, ele chamou a atenção de Naomi para três vultos perto da base da penedia:

— Ali estão Orman, West e o árabe... Naomi não se atreveu a olhar — e em baixo os três homens fitavam-nos com espanto; tinham reconhecido Obroski e uma das raparigas, mas não podiam saber se era Naomi ou Rhonda. Orman e West correram para eles, quando chegaram a baixo. Orman tinha lágrimas nos olhos ao abraçar Naomi; West mostrou-se satisfeito por vê-la, mau grado o golpe sofrido ao compreender que não era Rhonda.

— Pobre Rhonda... — murmurou ele, quando se dirigiam para o pequeno acampamento. — Que horrível morte!

— Mas ela não está morta!... — disse Naomi.

— Não está?... Como sabe?

— Está pior do que morta, Bill... — e Naomi contou o que sabia a respeito do destino de Rhonda.

Quando ela acabou, Tarzan levantou-se:

— Têm ainda bastante carne do antílope, que chegue até poderem caçar?

— Sim... — volveu Orman.

— Então vou... — disse Tarzan.

— Aonde?

— Procurar Rhonda.

— Vou com você, Stanley... — disse Bill, pondo-se de pé.

— Por Deus, homem! Não pode fazer nada por ela, agora. Depois do que Eyad disse, e do que Naomi viu, deve compreender que não tem qualquer possibilidade... — disse Orman, gravemente.

— De qualquer maneira, sou eu quem tem o dever de ir, não Stanley... — declarou West. — E vou.

— É melhor ficar aqui... — aconselhou Tarzan. — Não poderá fazer nada.

— Porque razão não poderei fazer o mesmo que você?... — perguntou Bill.

— Talvez possa, mas far-me-ia perder tempo... - respondeu Tarzan, voltando-se e dirigindo-se para a base da penedia.

Naomi observava-o, de olhos semicerrados.

— Adeus, Stanley... — disse ela.

— Oh! Adeus... — respondeu o homem da selva, sem se voltar.

Viram-no agarrar uma liana pendente e apanhar logo outra.. A noite equatorial envolveu-o antes que ele chegasse ao alto da penedia. West, atordoado de angústia, ficara a olhá-lo. Por fim disse, encaminhando-se para a muralha:

— Vou com ele:

— Você não poderia escalar isso de dia, menos ainda de noite... — avisou Orman.

— Não faça tolices, Bill... — disse Naomi. — Compreendemos o que sente, mas não há senso comum em sacrificar mais uma vida, inutilmente. Mesmo Stanley não voltará... — e a jovem começou a soluçar.

— Então também eu não voltarei... — volveu West. — Mas vou.

 

                   O deus

Para além do alto da escarpa, o homem da selva moveu-se silenciosamente na noite. Ouvia ruídos familiares, e as suas narinas captavam sons que ele conhecia e lhe diziam que os grandes felinos rondavam o vale dos estranhos gorilas.

Atravessou o rio, bastante acima do ponto onde o atravessara com Naomi, e seguiu pelo fundo do vale em busca da misteriosa cidade. Não tinha qualquer plano, pois não sabia o que o esperava — os seus planos teriam de ser condicionados pelas circunstâncias.

Avançava rapidamente, por vezes em passo de corrida, e a certa altura avistou luzes na sua frente. Devia ser a cidade! Afastou-se do rio e caminhou em linha recta na direcção das luzes, transpondo uma curva do curso de água, que se desviava antes da cidade para logo retomar o seu leito normal.

A cidade era rodeada de muralhas, talvez como defesa contra os leões, mas isso não preocupava Tarzan, que muitas vezes escalara muralhas maiores. Aquelas não teriam mais de três metros, mas na parte superior estavam guarnecidas, a curtos intervalos, de paus aguçados e voltados para baixo, o que dava uma boa defesa contra os felinos.

Tarzan seguiu ao longo da muralha, na direcção da penedia, onde ela se juntava à rocha. Escutou, farejando o ar, procurando adquirir a certeza de que não havia fosse quem fosse nas imediações, do lado de dentro. Tendo-se convencido disso, saltou para as estacas, agarrando duas delas e içando-se a pulso, até que as suas ancas ficaram ao nível das mãos, com os braços esticados de ambos os lados. Então, inclinando o corpo para a frente, apoiou-se no alto da muralha, acima das estacas.

Agora podia observar a estreita passagem, do lado de dentro. Não havia qualquer sinal de vida, tanto quanto ele podia ver em qualquer direcção — apenas uma passagem estreita, escura e deserta. No instante seguinte deixou-se cair silenciosamente para o chão, dentro da cidade dos gorilas.

De cima da muralha tinha avistado luzes acima do nível das casas, e parecera-lhe distinguir os contornos de um edifício relativamente grande. Pensou que devia ser aquele o castelo do Deus, de que Naomi falara. Sendo assim, era aquela a sua meta — pois era ali que a outra rapariga devia estar prisioneira. Seguiu ao longo da penedia, por uma passagem estreita que acompanhava mais ou menos a face das rochas, salvo nos pontos onde haviam sido construídas casas.

Esperava não encontrar qualquer dos habitantes da cidade, pois o caminho era tão apertado que não poderia sequer desviar-se, e tão sinuoso que em qualquer das curvas poderia surgir um inimigo antes que ele pudesse meter-se num portal ou pular para as coberturas das casas baixas. Esta última possibilidade era a melhor das duas.

Ouviu vozes e distinguiu outras luzes num ponto diferente; a certa altura ressoaram, vindos desse ponto, ecos de tambores.

Pouco depois Tarzan chegou a um lanço de escadas cujos degraus haviam sido cortados na rocha. A escada subia, desaparecendo na escuridão em cima, mas parecia dirigir-se para o edifício que ele procurava alcançar. Parando apenas por um instante, à escuta, Tarzan começou a escalar os degraus.

Tinha percorrido apenas uma curta distância, quando parou e se voltou para ver a cidade que se estendia em baixo, A curta distância da base da penedia, erguiam-se as torres e ameias do que lembrava vagamente um castelo medieval. Era das muralhas exteriores desse castelo que vinham as luzes que ele avistara antes, e daí também subiam sons de tambores. Tudo aquilo lhe lembrava outro momento da sua vida, outro cenário. Recordou-se...

Via os vultos peludos dos grandes macacos da tribo de Kerchak, o tambor de terra batida e o grande círculo formado pelos machos da tribo. As fêmeas e as crias sentavam-se noutro círculo maior, para além do primeiro. Diante do tambor de terra estavam três fêmeas velhas, cada uma delas empunhando um nodoso ramo de árvore. Lentamente, brandamente, as três fêmeas faziam ressoar o tambor, enquanto a lua subia, acima do horizonte; depois, à medida em que o luar iluminava o anfiteatro, o ritmo apressava-se e aumentava a força das pancadas, até que o som penetrava toda a selva em redor.

Quando o ruído se tornava quase ininterrom-pido e ensurdecedor, Kerchak saltava para o espaço entre os machos e o tambor. Direito, fitava a lua e batia no peito poderoso, soltando grandes brados assustadores. Então, curvando-se, Kerchak percorria o círculo, afastando-se de um corpo morto e caído junto do tambor de terra — mas ao passar fitava os olhos ferozes no corpo tombado.

Outro macho pulava, repetindo os gestos e os brados do rei, seguindo depois atrás dele. Outro e outro, e mais outro, e outro ainda, repetiam a cena, até que todos a representassem e a noite se enchesse do clamor dos brados. Era o desafio e a caçada.

Tudo isto revivia, nítido, na memória do homem da selva, ao ouvir ressoar o tambor na estranha cidade perdida.

Subindo mais alguns degraus da escada, pôde ver por cima da muralha do castelo, e distinguir o que se passava no pátio interior. Os gorilas dançavam, ao ritmo dos tambores. A cena era iluminada por archotes, uma grande fogueira ardia junto dos dançarinos. O combustível lançou bruscamente uma chama alta, iluminando agora a face da penedia, e os degraus da escada, e o vulto de Tarzan; logo depois o clarão diminuiu, tão de repente como crescera.

Tarzan apressou-se ao longo da escada que subia em ziguezague pela face das rochas, esperando que nenhuns olhos o tivessem avistado durante os breves instantes em que ardera tão forte a chama da fogueira. Não houve qualquer indicação de que tivesse sido visto ao aproximar-se do sombrio edifício sobre a plataforma — porque a estranha figura que o observava, de cima, não deu qualquer sinal da sua presença. Com um riso frouxo e silencioso, voltou-se e desapareceu por detrás da entrada de uma torre. No alto da escada, Tarzan encontrou-se num amplo terraço — a parte exterior da grande plataforma sobre a qual estava construído o castelo. Diante dele, sem fosso ou muralha, erguia-se a rude construção de pedra. A única abertura, do lado da plataforma, era uma alta porta dupla, um dos batentes da qual estava mal fechado. Talvez que o homem da selva devesse ter desconfiado de uma tal facilidade de entrada. Talvez mesmo isso lhe tivesse despertado suspeitas, as suspeitas naturais dos animais selvagens, por todas as armadilhas. Mas tinha ido ali para entrar naquela casa, e não podia desprezar a oportunidade que lhe aparecia.

Cautelosamente, aproximou-se da porta entreaberta. Do outro lado a escuridão era total; empurrou o batente, que cedeu sem ruído. Tarzan parou por momentos no limiar, à escuta. De dentro vinha o cheiro dos gorilas, e um estranho cheiro de homem que intrigou Tarzan, mas não viu nem ouviu qualquer sinal de vida no interior.

Quando os seus olhos se habituaram à escuridão, viu que estava numa espécie de átrio semicircular, ao fundo do qual havia várias portas. Aproximando-se da última porta do lado esquerdo, experimentou-a e viu que estava fechada; o mesmo acontecia à segunda, mas a terceira cedeu, revelando uma escada que descia, O homem da selva escutou, sem distinguir qualquer ruído.

Experimentou as outras portas, no total de sete, e viu que todas estavam fechadas com excepção da terceira. Voltou para essa e começou a descer a escada, tacteando na escuridão.

O silêncio persistia. Não ouvira qualquer ruído, desde que entrara no edifício, que pudesse sugerir a presença de alguém além de ele próprio, ali dentro; no entanto sabia que havia gente ali. O seu faro, e o estranho instinto dos animais selvagens, diziam-lhe isso.

Ao fundo da escada tacteou novamente a escuridão, e os seus dedos encontraram outra porta; buscou o ferrolho e correu-o; a porta abriu-se. Então as suas narinas sensíveis captaram nitidamente o cheiro de uma mulher — uma mulher branca! Teria encontrado Rhonda Terry?

O compartimento estava mergulhado numa escuridão total, espessa... e quando ele largou a porta ouviu o leve estalido que o batente fazia ao fechar-se. Com a intuição pronta das feras, compreendeu que estava apanhado numa armadilha. Saltou, de mãos estendidas, mas os seus dedos encontraram apenas uma superfície lisa.

Ficou em silêncio, à escuta e à espera. Ouvia agora uma respiração apressada, a curta distância. O cheiro da mulher envolvia-o. Pensou que a respiração devia ser a dela; o ritmo traía medo. Cauteloso, aproximou-se do som.

Estava bastante perto quando outro ruído, adiante dele, o fez parar. Parecia um ranger de gonzos ferrugentos. Então surgiu uma luz.

Diante dele, sobre um monte de palha, estava sentada uma mulher branca. Para além dela havia uma porta de grades, e através destas podia ver outro compartimento. Na extremidade oposta desse compartimento havia uma entrada, em cujo limiar estava uma estranha criatura que erguia na mão um archote aceso. Tarzan não pôde compreender se era um homem ou um gorila.

A criatura aproximou-se das grades, rindo em tom baixo, como para si mesma. A mulher olhava-a, com uma atitude de pavor. Depois voltou-se para fitar Tarzan, e este viu que ela se parecia muito com Naomi, e era linda.

Quando a mulher o viu, à luz vacilante do archote, soltou uma exclamação de surpresa:

— Stanley Obroski! Está também preso?

— Creio que sim... — volveu Tarzan.

— Que faz aqui? Como o apanharam? Julgava-o morto.

— Vim procurá-la.

— Você?... — havia um tom de profunda incredulidade na voz dela.

A criatura, no outro compartimento, aproximara-se das grades e continuava a rir. Tarzan observou-a. Tinha a cara de um homem, mas a pele era negra como a de um gorila. Os lábios entreabertos mostravam os fortes dentes dos antropóides. Pêlos negros, ralos, cobriam as partes do corpo que uma camisa aberta e uma tanga de tecido mostravam. A pele do corpo, dos braços e das pernas, era preta, com largas manchas brancas. Os pés, nus, eram os de um homem; as mãos, negras, peludas e encarquilhadas, tinham compridas garras recurvas. Os olhos encovados eram os de um homem velho — muito velho.

— Então conhecem-se?... — disse ele. — Que interessante! E você veio para a libertar, não foi? Pensei que tivesse vindo visitar-me. Não é muito correcto, para um estranho ,vir de noite e sem convite, furtivamente.

« — Foi apenas por acaso que soube da sua chegada. Tenho de agradecer isso a Henrique. Se ele não tivesse organizado uma dança, eu nada saberia e ficaria privado de o receber como recebi.

« — Estava a olhar, do meu castelo, para o pátio do palácio de Henrique, quando a fogueira dele lançou um grande clarão que iluminou as Sagradas Escadas — e você estava lá.

A voz da criatura era bem modulada, a dicção era a de um inglês culto. O contraste entre as palavras e a aparência da criatura, tornavam ainda mais repulsiva a sua presença.

— Sim, vim buscar esta jovem... — disse Tarzan.

— E agora também ficou preso... — a criatura riu-se.

— Que quer de nós?... — perguntou Tarzan. — Não somos seus inimigos, não lhe fizemos mal.

— O que eu quero de vocês... É uma longa história, mas talvez que vocês a compreendam e apreciem. Os animais, que me rodeiam, ouvem mas não entendem. Antes que vocês sirvam para os meus objectivos finais, vou mantê-los durante algum tempo para conversar com criaturas humanas, racionais.

« — Não vejo criaturas humanas desde há muito, muito tempo. Não as odeio menos por isso, claro, mas por um breve período podem dar-me prazer com a sua companhia, reconheço-o. Vocês são ambos belos, também, o que aumenta o meu prazer e o vosso valor para o que eu tenciono fazer — o objectivo final, entenda-se. Agrada-me especialmente que a rapariga seja tão bela. Sempre tive uma predilecção pelas loiras. Se eu não tivesse enveredado por uma outra linha de pesquisas, e se fosse possível, gostaria de proceder a investigações científicas para encontrar a explicação biológica, ou psicológica, da profunda atracção que a fêmea loira exerce sobre os machos de todas as raças.

Tirou do bolso da camisa dois charutos toscamente feitos, e ofereceu um deles a Tarzan.

— Não quer fumar, senhor... Ah! .. .Obroski, creio que ela lhe chamou assim. Stanley Obroski! Parece um nome polaco, creio, mas você não parece polaco. Parece inglês — tão inglês como eu.

— Não fumo... — volveu Tarzan, acrescentando:

— ... como você.

— Não sabe o que perde. O tabaco é um bálsamo para os nervos cansados.

— Os meus nervos nunca estão cansados.

— Feliz homem! E feliz eu, também. Não poderia desejar melhor do que uma combinação de juventude com um corpo saudável, um calmo sistema nervoso

— para não falar da sua inegável beleza masculina. Ficarei totalmente regenerado.

— Não compreendo o que está a dizer... — disse Tarzan.

— Decerto que não. Como poderia você compreender o que, em todo o mundo, apenas eu sei. Mas noutra ocasião terei prazer em lhes explicar. Agora tenho de ir observar o pátio do palácio do rei. Preciso de vigiar Henrique VIII. Têm-se portado bastante mal, ultimamente — ele, Suffolk e Howard. Vou deixar aqui este archote, tornará a situação mais agradável para ambos... e eu desejo que estejam bem até que... num!... bem... au revoir! Estejam à vossa vontade...

Voltou-se e encaminhou-se para a porta por onde viera, continuando a rir. Tarzan aproximou-se rapidamente das grades, exclamando:

— Espere! Ou nos deixa sair deste buraco, ou tem de nos dizer por que razão nos prende e o que pensa fazer-nos!

A criatura voltou-se bruscamente, com uma expressão feroz:

— Atreve-se a dar-me ordens?... — gritou.

— E por que não?... — volveu Tarzan. — Quem é você?

— Sou o deus!... — berrou o outro, batendo no peito com a mão ossuda.

 

                   «Antes que eu os devore!»

Quando a criatura que dizia ser deus se afastou, fechando a porta, Tarzan voltou-se para a rapariga sentada sobre a palha.

— Vi muitas coisas estranhas, na minha vida...

— disse ele — ...mas esta é de longe a mais estranha. Por vezes julgo que estou a sonhar.

— Comecei por julgar isso mesmo... — volveu a jovem. — Mas trata-se de uma espantosa e horrível realidade.

— Incluindo o deus?

— Sim, mesmo o Deus é uma realidade. Essa coisa é o deus dos gorilas ...Todos o temem, e a maioria adora-o. Dizem que foi ele que os criou. Não compreendo, é de um absurdo horrível.

— Que lhe parece que ele quer fazer connosco?

— Oh, não sei... mas é qualquer coisa terrível...

— respondeu Rhonda. — Na cidade imaginam coisas hediondas, mas nem eles sabem. Essa coisa manda trazer para aqui jovens gorilas... que nunca mais são vistos.

— Há quanto tempo está aqui?

— Estou desde ontem no castelo do deus, mas estive mais de uma semana no palácio de Henrique VIII. Não lhe parecem espantosos estes nomes, aplicados a animais?

— Não me surpreende, porque encontrei esta manhã o duque de Buckingham, e o ouvi falar inglês

— um gorila.

— Encontrou Buckingham? Foi ele quem me apanhou e me trouxe para aqui, Capturou-o também a si?

— Não... Tinha apanhado Naomi Madison.

— Naomi? Que lhe aconteceu?

— Está com Orman, West e um dos árabes, perto das cataratas. Eu vim procurá-la, a você, a fim de a levar para junto deles... mas creio que compliquei as coisas... deixando-me apanhar.

— Como pôde Naomi escapar a Buckingham?...

— perguntou Rhonda.

— Eu matei-o.

— Você matou Buckingham?... — exclamou ela, incrédula.

Pelas reacções dos outros ante as suas proezas, Tarzan já havia compreendido que os amigos de Obroski não tinham grande opinião sobre a coragem dele — e mais se divertia ainda por o confundirem com um evidente cobarde.

A jovem fitou-o em silêncio, como se tentasse ler nele e avaliar a extensão da sua impostura. Por fim disse, abanando a cabeça:

- Você não é mau rapaz, Stanley, mas não deve

contar histórias dessas à tia Rhonda.

Um dos raros sorrisos de Tarzan descobriu os seus dentes brancos e fortes. Disse, em tom admirativo:

— Ninguém a engana, pois não?

— Bom, acho que não me deixo iludir com facilidade. Mas o que não entendo é esse seu aspecto... o guarda-roupa... Onde arranjou isso, e porquê? Deve gelar, não?

— Terá de perguntar a Rungula, o chefe dos Bansutos...

— Que tem ele a ver com isso?

— Apropriou-se do guarda-roupa de Obroski.

— Começo a compreender. Mas, se você foi capturado pelos Bansutos, como se escapou?

— Se eu lhe dissesse, você não acreditava... como não acreditou que eu tivesse matado Buckingham.

— Como poderia acreditar? A não ser que o tivesse apanhado a dormir. É simplesmente impossível que qualquer homem matasse esse gorila, a não ser com um tiro. É isso? Você deu-lhe um tiro.

— E depois deitei fora a espingarda, não foi?

— Não parece razoável, realmente... Nada, penso apenas que está a mentir, Stanley.

— Obrigado.

— Não se ofenda. Sempre simpatizei com você, mas conheço demasiado a vida para acreditar em milagres... e a ideia de você matar Buckingham, assim sem ajuda, é de milagre.

Tarzan desviou-se dela e começou a examinar a cela.

A luz do archote, para além da porta de grades, iluminava-a vagamente. Tratava-se de um compartimento quadrado, com paredes de pedra, O tecto era de madeira, apoiado em grandes vigas. A extremidade da cela, ao fundo, era tão escura que ele não podia distinguir o tecto nesse ponto, onde uma das vigas projectava uma sombra mais densa, Parecia-lhe que havia uma corrente de ar, entre a porta do outro compartimento e aquele ângulo, o que sugeria a ideia de uma abertura. No entanto, não distinguia qualquer abertura e abandonou a ideia. Tendo acabado a sua inspecção, foi sentar-se sobre a palha, junto de Rhonda.

— Você disse que está aqui há uma semana?.. — perguntou.

— Na cidade, não aqui. Porquê?

— Suponho que lhe tenham dado que comer...

— Sim... Frutas, nozes, pontas de bambu... Um tanto monótono.

— Não estava a pensar no que lhe davam, mas como lhe davam. Quem lhe traz a comida, e quando? Desde que está aqui, quero dizer...

— Quando me trouxeram, ontem, deram-me comida para todo o dia; esta manhã trouxeram-me outra ração diária. Trazem as coisas pelo outro compartimento e empurram-nos por debaixo das grades... Não há pratos, nem nada disso, apenas empurram com as mãos, ou as patas. Só a água é que trazem nessa bilha, ali ao canto.

— Não abrem a porta, nem entram...

— Não.

— É pena.

— Porquê?

— Se abrissem a porta teríamos uma possibilidade de escapar...

— Nenhuma. A comida é trazida por um gorila enorme... Oh!... — acrescentou Rhonda, rindo-se. — Esqueci-me! Provalvelmente você partia o gorila ao meio e atirava-o para o cesto dos papéis, como fez a Buckingham.

— Esqueço-me sempre de que sou um cobarde...

— respondeu Tarzan, rindo também. — Não deixe de mo lembrar, se houver algum perigo.

— Creio que não será preciso lembrar-lho, Stanley... — volveu ela, olhando-o atentamente, outra vez.

— Mas você mudou, realmente. Não sei explicar... vejo-o mais seguro de si. E não há dúvida de que fez face ao deus... Escute! O que sofreu nas últimas semanas... não lhe terá afectado a mente?

Não puderam continuar a falar, porque o Deus reapareceu. Pôs uma cadeira diante da porta de grades, e sentou-se.

— Henrique é um idiota... — disse ele. — Está a tentar enfurecer os seus seguidores, para os convencer a atacar os céus e matar o deus. Henrique quer ser o deus. Mas deu-lhes de beber em demasia, e agora muitos estão a dormir no pátio, incluindo Henrique. Não me incomodarão esta noite, de maneira que pensei em vir visitá-los. Não haverá muitas outras oportunidades para conversar, visto que terei de os utilizar para os meus fins antes que alguma coisa se complique. Não quero correr riscos.

— E para que fins podemos ser utilizados?... — perguntou Rhonda.

— Puramente científicos... — disse o deus. — Mas é uma longa história e tenho de começar pelo princípio.

« — O princípio... — repetiu ele, num tom sonhador. — Há tantos anos! Eu não tinha ainda concluído a minha formatura em Oxford, quando as primeiras luzes finalmente brilharam... Deve ter sido em 1855... Não, foi antes disso. Eu formei-me em 1855... Exacto. Nasci em 1833 e formei-me em 55, com vinte e dois anos.

« — Tinha-me sempre sentido intrigado pelas investigações de Lamarck, e depois pelas de Darwin. Esses estavam no bom caminho, mas não foram muito longe. Então, pouco tempo depois de me ter formado, estava de viagem pela Áustria quando encontrei um padre, em Brunn, que estava a trabalhar no mesmo sentido em que eu trabalhava. Chamava-se Mendel. Trocámos ideias. Era o único homem, no mundo, que podia apreciar-me, mas não lhe era possível acompanhar-me até ao fim.

Ajudou-me um tanto, mas decerto eu o ajudei muito mais. Não voltei a ouvir falar dele, até sair de Inglaterra. I

« — Em 1875 senti que tinha praticamente resolvido o mistério da hereditariedade, e nesse ano publi- ] quei uma monografia sobre o assunto. Explicarei a essência das minhas descobertas numa linguagem tão simples quanto possível, para que possam compreender a finalidade para a qual vão servir.

« — Em resumo, há dois tipos de células que nós

herdamos dos nossos pais — as células do corpo e as dos germes. Essas células são compostas de cromossomas contendo genes, um gene separado para cada característica mental e física. As células do corpo, dividindo-se, multiplicando-se, mudando, crescendo, determinam o género de indivíduos que seremos; as células dos germes, que ficam praticamente imutáveis desde que somos concebidos, determinam as características que terão os nossos filhos, isto é, as que eles herdarão de nós e, por nosso intermédio, dos nossos pais.

« — Verifiquei que a hereditariedade pode ser dirigida, pela transferência de genes de um indivíduo para outro. Verifiquei que os genes nunca morrem; são absolutamente indestrutíveis — a base de toda a vida terrestre, a promessa da imortalidade por toda a eternidade.

« — Eu tinha a certeza de tudo isto, mas não podia efectuar qualquer experiência. Os cientistas troçaram de mim, o público riu-se, as autoridades ameaçaram-me de me internar num asilo de alienados. A igreja queria crucificar-me.

« — Escondi-me e continuei em segredo as minhas pesquisas. Obtive genes de criaturas vivas — rapazes e raparigas a quem eu atraía ao meu laboratório sob pretextos vários. Dava-lhes drogas e extraía-lhes células de germes. Nesse tempo eu ainda não descobrira, ou antes, não aperfeiçoara a técnica da recuperação das células do corpo.

« — Em 1858 consegui, por suborno, acesso a uns quantos túmulos na Abadia de Westminster... e, dos cadáveres de antigos reis e rainhas de Inglaterra, e de muitos nobres, damas e senhores, extraí os genes imortais.

« — Foi o caso de Henrique VIII que me denunciou. Fui surpreendido por um guarda a quem não havia subornado. Ele não me entregou às autoridades, mas começou a extorquir-me dinheiro. Por causa desse homem, eu tinha de encarar a ruína ou uma longa sentença de prisão.

« — Os meus camaradas cientistas tinham-me repelido ; o governo punir-me-ia. Vi que a única recompensa, para o meu trabalho pela humanidade, era a ingratidão e a perseguição. Odiei os homens, pela sua hipocrisia e pela sua ignorância. Ainda os odeio.

«— Fugi de Inglaterra. Os meus planos estavam feitos. Vim para África e utilizei os serviços de um guia branco, para me conduzir à região dos gorilas. Ele trouxe-me aqui... e eu matei-o para que ninguém pudesse encontrar-me.

«— Existiam aqui centenas de gorilas, milhares. Envenenei a comida deles, abati-os com flechas envenenadas, mas usava um veneno que apenas os anestesiava. Então removia as suas células de germes e substituía-as por células humanas que trouxera de Inglaterra, num caldo de cultura que propiciava a sua multiplicação...»

A estranha criatura parecia animada de um fogo interior, misterioso, enquanto ia discorrendo sobre o que era, evidentemente, o seu assunto favorito. Tarzan e Rhonda escutavam atentamente, quase esquecidos do espantoso contraste entre as suas palavras e o seu aspecto ainda mais repulsivo que o dos gorilas — pois não parecia fera nem homem, mas sim um estranho híbrido de alguma pavorosa maldição. E, no entanto, a inteligência do homem fascinava.

— Durante anos observei-os... — continuou ele — ...com crescente desapontamento. De geração para geração, não verificava qualquer sinal exterior de que as células de germes humanos exercessem qualquer influência sobre os antropóides. Mas depois comecei a notar manifestações de maior inteligência entre eles. Lutavam mais, tornavam-se mais avarentos e vingativos — revelavam progressivamente características humanas. Senti que estava a aproximar-me da meta.

« — Capturei alguns dos mais novos e comecei a treiná-los. Muito pouco tempo depois ouvi-os repetir palavras inglesas que eu dizia. Não sabiam a significação das palavras, mas isso não importava pois me haviam revelado a verdade. Os meus gorilas haviam herdado a mente e os órgãos vocais dos seus progenitores humanos, sintéticos.

« — A razão exacta pela qual eles herdaram esses atributos humanos, e não outros, é um mistério que eu ainda não decifrei. Mas provei a verdade da minha teoria. Então dediquei-me à tarefa de educar os meus pupilos, uns quantos que mandei depois como missionários e professores.

« — Quando os gorilas aprenderam e vieram ter comigo para mais instruções, ensinei-lhes arquitectura, a arte de construir e a de cultivar os campos — entre outras coisas. Dirigidos por mim, construíram esta cidade a que dei o nome de Londres, tendo passado a chamar Tamisa ao rio. Nós, os ingleses, levamos a Inglaterra para onde quer que vamos. « — Dei-lhes leis. Tornei-me o deus deles, dei-lhes uma família real e nobreza. Devem-me tudo, e agora alguns querem voltar-se contra mim e destruir-me ...sim, tornaram-se muito humanos. Ambiciosos, traiçoeiros, cruéis, são quase homens.

— Mas você?... — perguntou Rhonda. — Você é parcialmente gorila... Como pode ter sido um inglês, um homem?

— E todavia sou ambas as coisas... — respondeu a criatura. — Em tempos tive mesmo uma certa beleza física, mas a idade começou a pesar sobre mim, comecei a sentir que os meus poderes diminuíam. Vi a sepultura acenar-me. Não queria morrer, porque sentia que apenas começara a aprender os segredos da vida.

«— Procurei maneira de prolongar a vida e de recuperar a mocidade. Por fim tive êxito. Descobri a forma de segregar as células do corpo e de as transferir de um indivíduo para outro. Utilizei jovens gorilas de ambos os sexos, e implantei as suas células no meu próprio corpo.

« — Tive êxito sob o aspecto de deter os estragos da idade e restituir mocidade a mim mesmo, mas quando as células dos gorilas começaram a multiplicar-se no meu corpo, comecei a adquirir as características físicas dos gorilas. A minha pele enegreceu, cresceram pêlos por vários lados, as minhas mãos e os dentes transformaram-se. Algum dia serei, sob todos os aspectos, um gorila. Ou antes, seria, se não se tivesse dado a feliz circunstância de vocês terem aparecido.

— Não compreendo... — murmurou Rhonda.

— Vai compreender. Com as suas células e as deste jovem, não só manterei a minha mocidade como recuperarei a aparência humana... — os olhos dele tinham um brilho de loucura.

— É horrível!... — exclamou a rapariga, estremecendo.

— Servirão para um nobre propósito... — riu a criatura — ...muito mais nobre do que se apenas cumprissem o prosaico destino biológico para o qual nasceram.

- — Mas não terá de nos matar!... — exclamou Rhonda. — Você tirou as células dos gorilas sem os matar. Quando tiver tirado algumas das nossas... poderemos partir?

A criatura levantou-se e aproximou-se um pouco mais das grades, mostrando os grandes dentes amarelos, num riso horrível.

— Não lhes disse tudo... — declarou. — Não lhes falei em pormenores do que aprendi sobre rejuvenes-cimento. As novas células são potentes, mas a sua acção é lenta. Descobri que, comendo a carne e as glândulas de criaturas jovens, a velocidade da metamorfose se acentua! Deixo-os agora a meditar sobre o grande serviço que vão prestar à ciência...

— a criatura recuou para a porta do compartimento. — Mas voltarei. Mais tarde hei-de devorá-los, a ambos... Primeiro ao homem... e depois a você, bela rapariga... Mas antes que eu os devore... Ah!... Antes que eu os devore...

Rindo, passou pela porta e fechou-a, desaparecendo.

 

                     Na armadilha

— Parece que corre o pano... — murmurou Rhonda.

— O pano?

— Sim, é o fim do espectáculo.

— Suponho que quer dizer que estamos perdidos... — comentou Tarzan, sorrindo.

— Assim parece, e tenho medo. Você não tem medo?

— Creio que era de esperar que tivesse, hem? Rhonda observou-o, franzindo as sobrancelhas.

Por fim disse:

— Não o compreendo, Stanley. Você parecia ter medo de tudo, mas agora dá a impressão de não estar assustado. Está a representar, como actor?

— Talvez eu pense que o que tem de acontecer acontecerá, e que ter medo não adianta nada. O medo não poderá tirar-nos daqui com vida, e eu não estou disposto a ficar e a morrer, se puder evitá-lo.

— Não vejo como poderemos sair disto...

— Estamos, agora, com nove probabilidades em dez.

— Que quer dizer?

— Que ainda estamos vivos... — riu Tarzan — ...o que representa pelo menos nove décimos de possibilidades. Se estivéssemos mortos estaríamos cem por cento perdidos; estando vivos, podemos considerar-nos noventa por cento salvos.

— Não o sabia tão optimista... — volveu Rhonda, com uma risada.

— Talvez tenha alguma razão para isso. Não sente uma corrente de ar, aí?

Ela fitou-o, com uma expressão perturbada. Murmurou:

— Talvez seja melhor estender-se aqui e tentar dormir. Está extenuado.

Foi a vez de ele a olhar, com certa surpresa, perguntando:

— Que quer dizer? Pareço exausto?

— Não... mas... talvez a tensão fosse demasiada para você...

— Qual tensão!... — exclamou ela. — Stanley Obroski, venha estender-se aqui e deixe-me passar-lhe a mão pela cabeça... talvez isso o adormeça.

— Não tenho sono. Você não quer sair daqui?

— Claro que sim, mas não é possível.

— Talvez não, mas vamos tentar. Perguntei-lhe se, aí sentada, sentia a corrente de ar.

— Sinto, com certeza. Mas que tem isso? Não tenho frio.

— Talvez não tenha nada, mas sugere possibilidades.

— Quais possibilidades?

— Uma saída. O ar vem desse outro compartimento, através das grades, e vai para algum lado. A corrente é forte bastante para sugerir uma abertura larga. Vê alguma abertura, aqui, através da qual o ar possa sair?

Ela levantou-se, começando a compreender. Murmurou:

— Não... não vejo qualquer abertura.

— Nem eu, mas deve haver uma e sei que estará em qualquer ponto que não possamos ver... — Tarzan falava em voz baixa.

— Sim, tem razão.

— O único lugar que não podemos ver bem é o que está mergulhado nas sombras desse recanto do tecto. E a corrente de ar move-se nessa direcção.

Tarzan aproximou-se do ângulo da cela e olhou para a escuridão em cima. Rhonda parou junto dele, olhando.

— Vê alguma coisa?... — sussurrou ela.

— Está muito escuro... — disse Tarzan — ...mas creio que vejo uma sombra ainda mais escura do que o resto, como se houvesse um buraco.

— Os seus olhos são melhores do que os meus. Eu não vejo nada.

De qualquer ponto que parecia directamente acima deles, mas a distância, veio uma espécie de risada surda, estranha, fantástica.

Rhonda tocou no braço de Tarzan, murmurando:

— Tem razão, há uma abertura em cima... O som veio daí...

— Deve ter muito cuidado com o que disser sem ser em voz muito baixa... — avisou Tarzan.

A abertura no tecto, se existia, devia ficar exactamente no ângulo. Tarzan examinou cautelosamente a parede, tacteando-a polegada a polegada, até onde podia chegar, mas não encontrou nenhum ponto que pudesse servir para se agarrar. Então saltou, com o braço estendido, e os seus dedos tocaram na beira da abertura.

— É ali... — sussurrou.

— Mas para que nos serve, se não podemos alcançá-la?

— Podemos sempre tentar... — volveu ele; curvou-se junto da parede, no ângulo, e acrescentou: — Suba para os meus ombros, ponha os pés sobre eles e apoie-se à parede.

Rhonda subiu para os largos ombros do companheiro. Ele agarrou-lhe os tornozelos, para a amparar, e endireitou-se lentamente até ficar de pé.

— Tem de tactear com cuidado em todas as direcções... — murmurou. — Calcule o tamanho da abertura e procure algum ponto onde se agarrar.

Durante alguns momentos a jovem nada disse. Tarzan sentia a deslocação do peso dela, ora para um lado, ora para o outro. Por fim, Rhonda disse:

— Deixe-me descer...

— Que encontrou?... — perguntou ele, poisando-a no chão.

— A abertura tem cerca de um metro por sessenta centímetros. Parece prolongar-se sobre o alto da parede, para um lado... Senti distintamente uma espécie de plataforma. Se pudesse lá chegar, procuraria mais acima.

— Tentaremos outra vez... — disse Tarzan. — Ponha as mãos nos meus ombros... Isso..-. Agora ponha o pé esquerdo na minha mão direita... Muito bem... Agora o pé direito, na outra mão... Mantenha as pernas rígidas, e o corpo, e com as mãos apoie-se à parede. Vou levantá-la, e alcançará um ponto talvez meio metro acima do que alcançou antes.

— Está bem... — murmurou ela. — Ice-me...

Tarzan ergueu-a devagar, sem esforço, até esticar os braços. Por momentos segurou-a assim, até que os pés dela deixaram de pesar nas suas mãos. Esperou, à escuta. De cima veio uma brusca exclamação, abafada: « — Uf!»

Tarzan esperou, sem fazer perguntas. Ouvia a respiração dela e podia calcular que nada de grave lhe acontecera. Então ouviu-a sussurrar:

— Atire-me a sua corda...

Tarzan atirou a corda para cima, na direcção da voz. Rhonda apanhou-a à segunda tentativa, e ele ouviu-a mover-se na escuridão, em cima.

— Tente subir...

Tarzan agarrou a corda, acima da sua cabeça, e suspendeu-se, para se assegurar de que ela suportava o seu peso. Depois, a pulso, subiu. Sentiu que a mão de Rhonda se estendia e lhe tocava. Essa mão guiou um dos pés dele para a plataforma onde a jovem estava, e um momento depois encontravam-se ambos lado a lado.

— Que encontrou?... — perguntou ele, sondando a escuridão.

— Uma viga de madeira, e bati com a cabeça... Era a explicação da exclamação abafada de pouco antes. Tarzan estendeu a mão e encontrou uma forte viga à altura dos seus ombros. Era aí que Rhonda havia amarrado a corda. A plataforma onde estavam era, evidentemente, o alto da parede. A abertura que se prolongava para cima tinha de facto, como a jovem dissera, cerca de um metro por sessenta centímetros. A viga atravessava-a, deixando de cada lado espaço bastante para que o corpo de um homem pudesse passar.

Tarzan passou e içou-se para a parte superior da viga. Acima dele, a espécie de estreito poço continuava, mas as paredes não ofereciam qualquer ponto de apoio. Tarzan curvou-se para baixo, dizendo a Rhonda para estender os braços, e içou-se para junto dele.

— Temos de fazer outra exploração... — murmurou. — Vou levantá-la, como há pouco.

— Espero que possa manter o equilíbrio sobre a viga... — disse ela, subindo sem hesitar para as mãos dele.

— Também o espero... — foi a lacónica resposta. Por momentos, a jovem explorou a parte superior do poço; depois sussurrou:

— Ponha-me em baixo.

Ele desceu-a, amparando-a para que Rhonda não se desequilibrasse.

— Então?

— Encontrei outra viga, mas a parte superior está fora do meu alcance. Pude tactear a parte de baixo e os lados, mas não cheguei acima. Que fazemos? É como um pesadelo, nesta escuridão... com alguma horrível ameaça a espreitar-nos e sem poder alcançar a única maneira de escapar...

Tarzan curvou-se e desamarrou a corda que estava ainda presa na viga sobre a qual se encontravam.

— Os tarmangani têm umas frases meio tolas... — disse ele. — Uma delas diz que há várias maneiras de matar pulgas...

— Quem são os tarmangani?...

Tarzan sorriu, na escuridão; por instantes esquecera-se de que estava a representar um papel. Respondeu:

— Oh! Uma tribo idiota, apenas.

— É uma frase americana, o meu avô costumava dizê-la. É estranho que uma tribo africana tenha um provérbio igual.

Tarzan não lhe explicou que, na linguagem dos grandes macacos, a primeira que ele aprendera, tarmangani significava homem branco, ou homens brancos.

Enrolou a corda e, na escuridão, atirou-a para cima. A corda caiu, mas ele voltou a enrolá-la e a atirá-la; falhou de novo, e mais duas tentativas voltaram a falhar, a corda caía sempre. Mas à quinta vez a corda passou sobre qualquer coisa e apenas a extremidade pendeu para baixo. Com as duas pontas, Tarzan fez um nó e puxou até fixar a corda na viga superior sobre a qual havia passado.

— Julga que poderá subir?... — perguntou ele à jovem.

— Não sei, mas posso tentar...

— É melhor não, arrisca-se a cair. Eu levo-a. Agarre-se bem às minhas costas...

Rhonda obedeceu, e um instante depois Tarzan trepava pela corda, com a agilidade de um macaco. Em cima, agarrou a viga e içou-se para cima dela, levando a jovem. Aí, repetiram o que tinham feito antes, procurando e encontrando outra viga acima da segunda. Nessa terceira viga, o homem da selva viu uma abertura diante dele, e através da abertura uma estrela que brilhava. Agora a escuridão era menos espessa. A escassa luz de uma noite parcialmente enevoada mostrou-lhe um pequeno terraço limitado por um parapeito, e Tarzan compreendeu que tinham subido para o interior de uma das pequenas torres que encimavam o castelo.

Ia passar da torre para o terraço, quando ouviu o estranho riso do homem que dizia ser o deus. Recuou, detendo Rhonda, e ambos ficaram escondidos na escuridão da torre, silenciosos e imóveis; à espreita e à escuta.

O riso repetiu-se, agora mais próximo, e os ouvidos de Tarzan distinguiram os passos de pés nus, de duas criaturas. Não tardou a avistá-las, caminhando devagar. Uma delas, como ele havia calculado, era o deus; a outra era um grande gorila.

A curta distância dos fugitivos, ambos pararam e se encostaram ao parapeito, olhando a cidade.

— Henrique não devia ter-se embriagado esta noite, Cranmer... — disse o deus... — pois vai ter um dia difícil, amanhã.

— Como, senhor deus?

— Esqueces-te de que é o aniversário da conclusão da sagrada escada para os céus?

— Oh! Assim é, senhor! E Henrique tem de a subir sobre as mãos, para vir adorar o seu deus.

— E Henrique está a envelhecer e a engordar. O sol estará quente... Mas convém humilhar os reis e ensinar assim a humildade ao povo.

— Que ninguém esqueça que tu és o senhor nosso deus... — disse Cranmer, com beatitude.

— E terei uma surpresa para Henrique, quando ele chegar ao alto das escadas. Estarei aí com a jovem inglesa que lhe tirei, e ela estará ajoelhada aos meus pés. Já mandaste que a trouxessem, Cranmer?

— Sim, meu Senhor. Mandei um dos padres menores para a ir buscar. Devem demorar-se pouco. Mas, senhor, pensas que será bom enfurecer mais o rei? Bem sabes que alguns dos nobres estão do lado dele e conspiram contra ti.

O homem-gorila soltou uma das suas horríveis gargalhadas:

— Esqueces que eu sou o deus! Não deves esquecer isso, nunca, Cranmer. Henrique está a esquecê-lo, e a sua falta de memória vai ser-lhe fatal... — a criatura endireitou o corpo, e uma espécie de grunhido tomou o lugar do riso anterior; gritou:

— Todos se e    squecem de que fui eu quem os criou, de que sou eu quem os pode destruir! Farei com que Henrique se enfureça, e então destruí-lo-ei! É assim que os homens gostam de um deus... é a única espécie que podem entender. Porque são invejosos, cruéis e vingativos, precisam de ter deuses que sejam vingativos, invejosos e cruéis. Eu dei-lhes mentes humanas, portanto tenho de ser o deus que as vossas mentes entendem. E amanhã Henrique entenderá!

— Que queres dizer, senhor?

O homem-gorila voltou a rir-se:

— Quando ele chegar ao alto das escadas, fá-lo-ei explodir, destruí-lo-ei!

— Vais matar o rei, senhor! Mas o príncipe de Gales é demasiado novo para reinar.

— Esse não será rei... estou farto de reis. Passaremos por cima de Eduardo VI e de Maria. É uma das vantagens de terem um deus ao vosso lado, Crammer. Saltaremos por cima de onze anos de história, e salvar-te-emos de morrer queimado. O próximo soberano de Inglaterra vai ser a rainha Isabel.

— Henrique tem muitas filhas para escolheres, senhor... — disse Cranmer.

— De onde veio, meu Senhor Deus?

— De mim mesmo, evidentemente, idiota! É perfeita! É ideal... — voltou a rir-se. — Vou fazer dessa rapariga inglesa a rainha de Inglaterra, a rainha Isabel. Essa fará o que eu lhe mandar, e servirá para os meus outros fins, igualmente. Ou quase igualmente. Não poderei comê-la, Cranmer. Ninguém pode comer a sua rainha e ficar com ela.

— Aí vem o padre menor, senhor... — disse Cranmer.

— Mas vem só, não traz a rapariga... — exclamou

o deus.

Um velho gorila aproximou-se deles; parecia excitado.

— Onde está a rapariga?..-. — perguntou o deus.

— Não estava lá, senhor. Desapareceu, e o homem também.

— É impossível!

— A cela está vazia.

— E as portas? Alguma delas foi aberta?

— Não, meu senhor! Estavam ambas fechadas... — respondeu o padre menor.

O deus-gorila ficou calado, por momentos, a pensar. Depois falou em voz muito baixa, aos seus dois companheiros.

Tarzan e Rhonda, escondidos na torre, observavam-nos. O homem da selva estava impaciente. Só queria que os outros se afastassem, para poder procurar a maneira de sair do castelo. Sozinho, tê-los-ia enfrentado, confiando na sua força e na sua agilidade para se libertar; mas não podia esperar levar a jovem, ignorando a maneira de sair e tendo seguramente de abrir caminho por entre os numerosos gorilas que o deus chamaria em seu socorro.

Viu o padre menor dar meia volta e afastar-se apressadamente. Os outros dois afastaram-se também da torre, mas um pouco adiante pararam, voltando-se para ela, e apoiaram-se ao parapeito, continuando a conversar — embora Tarzan já não pudesse ouvir o que diziam. Tinham-se colocado de maneira que Tarzan e Rhonda não podiam sair da torre sem serem vistos por eles.

O homem da selva ficou apreensivo. A intuição do animal selvagem dizia-lhe que o perigo se aproximava — mas não sabia de onde viria, nem sob que aspecto.

A certa altura viu surgir um grande gorila no seu campo de visão. A fera empunhava uma espécie de pau comprido, em forma de lança. Logo atrás desse apareceu outro, e outros, até que uns vinte gorilas, todos eles armados com os compridos paus, se reuniram no terraço.

Rodearam Cranmer e o deus-gorila, durante um minuto ou dois. O deus-gorila dava-lhes instruções, mas Tarzan não podia distinguir as palavras. Então os vinte animais aproximaram-se da torre e postaram-se em semicírculo diante da abertura baixa e estreita que lhe dava acesso.

Rhonda e Tarzan compreenderam que o deus-gorila adivinhara, por cálculo, a presença deles — mas não podiam ter a certeza disso. A única coisa que podiam fazer era esperar, tanto mais que a torre era de fácil defesa. Esperariam ali, até que alguma circunstância feliz lhes oferecesse a possibilidade de fuga que pareciam agora não ter.

Mas os gorilas, no terraço, também pareciam dispostos a esperar. Nada indicava que estivessem a preparar-se para entrar na torre. Talvez — pensou Tarzan — estivessem ali por uma razão diferente da que ele imaginara. Era possível que se tratasse de alguma preparação para a morte do rei, pela manhã.

O deus-gorila continuava encostado ao parapeito, com aquele a quem ele chamava Cranmer. O único ruído que se ouvia, no silêncio, era o estranho riso da criatura. Tarzan não podia supor qual a razão daqueles risos.

Foi então que de baixo, do poço que comunicava com a torre, veio uma onda de calor, com um jorro de fumo acre. Tarzan sentiu que Rhonda se agarrava ao seu braço. Agora compreendia o motivo por que os gorilas esperavam diante da torre — e o motivo dos risos da estranha criatura.

 

                   Holocausto

Tarzan considerou o problema. Era evidente que não podiam suportar por muito tempo o fumo que os envolvia. Atacar bruscamente os gorilas seria sacrificar a vida da sua companheira, sem lhe oferecer qualquer possibilidade de fuga. Se estivesse só, seria diferente, mas assim parecia não haver qualquer outra alternativa senão a de sairem dali e renderem-se.

Por outro lado, sabia que o deus-gorila se propunha matá-lo e reservava para Rhonda Terry um destino igual ou ainda pior. Qualquer que fosse a decisão a tomar, seria desastrosa. O homem da selva, que raras vezes hesitava sobre uma resolução, sentia-se angustiado.

Expôs rapidamente as suas dúvidas a Rhonda, concluindo:

— Penso que vou atacá-los. Ao menos terei alguma satisfação nisso.

— Eles matam-no, Stanley!... — exclamou Rhon-da. — Oh! Antes queria que não tivesse vindo! Foi um gesto de grande coragem, mas sacrificou-se. Eu nunca... — um tremendo ataque de tosse, provocado pelo fumo, fê-la calar-se.

— Não podemos ficar aqui mais tempo... — volveu Tarzan. — Vou sair... Siga-me e busque alguma oportunidade de fuga!

Curvando-se, Tarzan saltou para fora da torre, ao mesmo tempo que soltava um rugido selvagem. Rhonda ouviu-o e ficou horrorizada... Para ela, o seu companheiro continuava a ser Stanley Obroski, o cobarde, e cada vez se convencia mais de que o medo e o desespero o tinham endoidecido.

Os gorilas precipitaram-se sobre Tarzan. O homem-gorila berrava:

— Apanhem-no, mas não o matem! Não o matem! Tarzan atacou o adversário mais próximo, e a

lâmina da faca brilhou à luz dos archotes que alguns dos animais empunhavam. A faca cravou-se profundamente no peito do monstro, que tentou ainda agarrar-se a Tarzan mas logo caiu inerte. Outros, porém, se lançavam sobre o gigante bronzeado; mais dois cairam sob os golpes da faca. O deus-gorila estava desvairado pela raiva e pela excitação. Gritava:

— Agarrem-no! Vamos, agarrem-no! Mas não o matem! Pertence-me!

Rhonda, obedecendo ao que lhe dissera o seu companheiro, procurava um caminho de fuga; passou por detrás do confuso grupo de combatentes, em busca de uma escada que descesse do terraço.

Todos os olhos se fixavam na luta, ninguém pensava nela. Aproximou-se da entrada de outra torre e viu uma escada que descia, iluminada por archotes. Correu.

Em baixo, as nuvens de fumo acastelavam-se, impedindo-o de ver. Era evidente — pensou — que o fumo que subia do fogo aceso para fazer com que ela e Obroski saíssem da outra torre, se havia espalhado por outros pontos do castelo.

Numa volta da escada... caiu directamente nos braços de um gorila que subia a toda a pressa. Atrás desse vinham mais dois. O primeiro agarrou-a e entregou-a aos outros, dizendo:

— Ela queria fugir! Tragam-na ao Deus!... E o gorila continuou a galgar os degraus.

Em cima, três monstros tinham tombado sob os golpes da faca de Tarzan; um quarto adversário agarrou-lhe um braço e bateu-lhe com a haste da lança. Tarzan voltou-se para ele e mordeu-o no pescoço, buscando a jugular; então um quinto inimigo interveio e desferiu uma tremenda pancada na cabeça do homem da selva, com o cabo do seu machado de combate.

Tarzan tombou sem sentidos, por entre os brados de vitória dos gorilas. O deus-gorila adiantou-se:

— Não o matem!

— Já está morto, senhor...

A espantosa criatura tremia de desapontamento e de raiva, e ia falar quando o gorila que recapturara Rhonda abriu caminho, empurrando os outros.

— O castelo está a arder, senhor! O fogo que acenderam na cela, para fazer sair os fugitivos, pegou-se à palha seca, e agora as vigas e o tecto estão em chamas! O andar de baixo é uma fornalha, senhor! Tem de sair daqui, se não quer morrer!

Os que o ouviram olharam prontamente em redor. Uma densa coluna de fumo saía da torre por onde Tarzan e Rhonda tinham subido; das outras torres também saía mais fumo, e outras nuvens de fumo, vindas do andar inferior, envolviam o parapeito.

A inquietação foi imediata, os gorilas começaram a correr de um lado para o outro. Todos os animais temem o fogo, e os instintos dos animais prevaleciam naquelas estranhas criaturas. Receando não ter por onde fugir, foram tomados de pânico.

Gritando e rugindo, pularam para se salvar, sem querer saber do deus ou dos prisioneiros. Alguns precipitavam-se para as escadas, correndo para a morte, outros galgavam o parapeito a caminho de um fim talvez menos horrível mas igualmente certo. Os gritos penetrantes, os rugidos de pavor, dominavam o sinistro ruído das chamas e as ordens berradas pelo deus-gorila que, abandonado pelos seus, tinha perdido a cabeça e corria em busca de salvação.

Afortunadamente para Rhonda, os dois gorilas que a guardavam tinham ignorado a ordem do outro, para a levarem ao deus; em vez disso, haviam descido rapidamente as escadas, antes que a retirada lhes fosse cortada pelas chamas.

Abrindo caminho por entre o fumo espesso, os monstros endoidecidos esqueceram a prisioneira, esqueceram tudo o que não fosse o seu pavor do fogo. Não pararam sequer quando alcançaram a relativa segurança de um pátio, e continuaram a correr até que, aberta uma pesada porta, puderam afastar-se das vizinhanças do castelo.

Rhonda, quase tão apavorada como eles mas mantendo o espírito alerta, não desperdiçou aquela oportunidade de fugir. Seguindo os dois gorilas, alcançou a grande plataforma sobre a qual estava construído o castelo. As chamas subiam a grande altura, iluminando a cena, e Rhonda avistou acima dela a penedia que não poderia escalar; em baixo estendia-se a cidade, mergulhada na escuridão, onde apenas alguns archotes ardiam.

À direita da jovem ficava a escada que ligava a plataforma à cidade, e era o único caminho de fuga que ela podia distinguir. Se alcançasse a cidade, ao longo das ruelas estreitas e sinuosas talvez pudesse aproximar-se da muralha, transpô-la e fugir para o vale.

O rio servir-lhe-ia de guia até à escarpa sob a qual Orman, West e Naomi estavam acampados. Estremeceu ante a ideia de descer a escarpa, mas sabia que arriscaria isso e mais, para escapar aos horrores do vale dos diamantes.

Correndo pela beira da plataforma, alcançou a escada e começou a descê-la em direcção à cidade escura. Corria depressa, arriscando-se a cair a cada passo, na sua ansiedade. Atrás dela ouvia o rugir das chamas que envolviam o castelo, e as sombras grotestas projectavam-se à sua volta. A sua própria sombra precedia-a, agitando-se ao sabor das labaredas altas.

Foi então que, horrorizada, viu um bando de gorilas que corriam para o castelo a arder. Parou, mas não podia recuar. Não havia qualquer fuga, para a direita ou para a esquerda, A única possibilidade de salvação estava em que, excitados, os gorilas não a vissem. Mas viram-na.

— A rapariga!... — gritaram os da frente. — A rapariga sem pêlos! Apanhem-na, levem-na ao rei!

Mãos peludas agarraram Rhonda, que foi empurrada, quase atirada de mão em mão. E assim, empurrada, puxada, arrastada, Rhonda foi levada para a cidade e para o palácio do rei.

Encontrou-se mais uma vez entre as fêmeas de Henrique VIII. Rosnaram, mostrando-lhe os dentes, empurrando-a também, pois não a desejavam de volta. Catarina de Aragão era a mais furiosa, e teria atacado abertamente se Catarina Parr não interviesse.

— Deixem-na!... — gritou. — Deixem-na, ou Henrique castiga-nos, a todas, e talvez algumas sejam degoladas. Ele só espera um pretexto para mandar que te cortem a cabeça, Catarina de Aragão!

Por fim deixaram-na em paz, e Rhonda, encolhida num canto, teve pela primeira vez a possibilidade de pensar, desde que saíra da torre, atrás de Tarzan. Pensou no homem que arriscara a sua vida para salvar a dela. Parecia-lhe espantoso que todos se houvessem enganado tão completamente a respeito de Obroski. Força e coragem pareciam fazer parte dele próprio, e era inacreditável que ninguém se tivesse apercebido disso. Via-o agora com novos olhos, numa visão reveladora das qualidades que as mulheres mais admiram num homem... uma visão tão cheia de ternura que um soluço lhe subiu à garganta.

Onde estaria ele agora? Teria fugido? Tê-lo-iam apanhado? Teria sido devorado pelas chamas? Morrera por ela?

E de súbito Rhonda endireitou o corpo, cerrando os punhos. Uma nova verdade a invadia. Aquele homem, que uns dias antes ela considerava apenas com desdém, despertara nela uma emoção que nunca havia sentido por qualquer outro. Seria amor? Estaria apaixonada por Stanley Obroski?

Sacudiu a cabeça, como para se libertar de uma obsessão. Não... não devia ser... O que sentia era apenas pena e gratidão, mais nada... E no entanto a ideia persistia. Nenhuma recordação, de qualquer outro homem, surgia nesse momento, na sua ansiedade, na sua angústia. Exausta e excitada, mergulhou num sono agitado.

Enquanto ela dormia, o castelo da plataforma acabava de arder, magnífica pira fúnebre dos que tinham ficado lá dentro.

 

                   Entre fumo e chamas

Enquanto a horda apavorada lutava para se salvar, ou se lançava para a morte do alto do castelo do deus, o próprio homem-gorila correu para uma escada secreta que levava ao pátio do castelo.

Cranmer e alguns dos padres menores também conheciam a existência da escada, e correram para lá. Alguns dos gorilas que faziam parte da guarda do castelo, doidos de terror, seguiram-nos... e quando viram a entrada das escadas lutaram furiosamente uns com os outros, cada qual querendo ser o primeiro a passar.

Através do bando enfurecido e gritante, o deus-gorila tentou abrir caminho. Era mais fraco do que as suas criaturas, e os animais empurraram-no. Gritando ordens e pragas que ninguém ouvia, bateu e arranhou, numa vã tentativa para alcançar a entrada — mas repeliram-no sempre.

Subitamente, o terror e a raiva desvairaram-no.

Espumando, saltando como um doido, lançou-se sobre o dorso de um grande macho que lhe tapava o caminho. Bateu na criatura, desferindo golpes sobre a cabeça e os ombros, mas o apavorado bruto não se importou com isso, até que o deus-gorila lhe cravou os dentes no pescoço. Então, com um rugido, o monstro voltou-se, sacudiu-o, ergueu-o nos braços e atirou-o a distância. O deus-gorila caiu pesadamente e ficou imóvel.

Na escada, os enormes animais continuavam a atacar-se uns aos outros, aglomerando-se diante da entrada até que a obstruíram. Os que tinham ficado no terreno procuraram outras saídas, mas era demasiado tarde, agora; fumo e chamas surgiram de todas as torres. Estavam apanhados.

Com guinchos agudos, precipitaram-se para baixo, uns após outros, deixando no terraço os corpos inertes do deus-gorila e do prisioneiro.

As labaredas rugiam pelos estreitos poços das torres, transformando estas em gigantescos archotes, iluminando a face da penedia, acima, espalhando sombras e clarões sinistros sobre a cidade e o vale. Na parte norte do castelo, as chamas devoravam os madeiramentos, e os gazes libertados subiam a grande altura no espaço. Destruídas pelo fogo, algumas das grandes vigas de suporte cairam, provocando a derrocada de uma parte do terraço e espalhando faúlhas sobre a cidade em baixo. Pouco a pouco, o incêndio aproximava-se do homem da selva e do deus-gorila.

Diante do castelo, as sagradas escadas estavam cobertas de animais que tinham vindo para presenciar o holocausto. Os grandes gorilas olhavam em silêncio, pasmados. Ali, nalgum ponto da enorme pira, estava o seu deus. Nada sabiam de imortalidade, pois ele não lhes ensinara isso. Pensavam que o deus tinha morrido, e estavam assustados. Eram a classe inferior. As criaturas do rei, pelo contrário, alegravam-se, pois imaginavam que o poder do deus passaria para o rei — dando maior força a eles próprios. Eram gorilas contaminados pela ambição e pela cobiça dos homens.

No terraço, um dos corpos moveu-se, abriu os olhos. Passou um momento apenas, antes que recuperasse a consciência. Tarzan sentou-se, e no instante seguinte estava de pé. À sua volta rugiam as chamas, o calor era quase insuportável.

Viu, a curta distância, o corpo do deus-gorila, que começava também a agitar-se. A criatura sentou-se bruscamente e olhou. Viu Tarzan — e viu também as chamas que em redor executavam a sinistra dança da morte, da sua morte.

Tarzan lançou-lhe apenas um olhar e afastou-se. A parte do terraço que ficava mais perto da penedia era a que estava mais livre das chamas, e o homem da selva encaminhou-se para aí. O deus-gorila seguiu-o, lamentando-se:

— Estamos perdidos... Estão cortados todos os caminhos...

Tarzan encolheu os ombros e olhou por cima do parapeito. Em baixo havia o telhado de uma dependência do castelo, mas era um salto de pelo menos seis metros — demasiado grande. As chamas também saíam pelas janelas desse lado, com grandes rolos de fumo, mas menos violentas do que as que surgiam do lado oposto.

Tarzan experimentou a resistência de uma das ameias do parapeito. Era forte, fixada com sólida argamassa. Desenrolou a sua corda e amarrou-a ali.

O deus-gorila tinha-o seguido e olhava-o. Exclamou:

— Você vai escapar-se! Oh! Salve-me também!

— Não! Para que você possa matar-me e comer-me, depois?

— Não, não! Não lhe farei mal! Pelo amor de Deus, salve-me!

— Você não diz que é o deus? Salve-se!

— Não pode abandonar-me... Eu sou um inglês... e você não deixará morrer um inglês, podendo salvá-lo.

— Eu também sou inglês... — respondeu Tarzan — ...mas você estava disposto a matar-me e a comer-me.

— Perdoe-me isso... Eu estava doido por recuperar a forma humana... e você era a única possibilidade... Salve-me, e eu torná-lo-ei rico para além dos mais delirantes sonhos de um avarento.

— Tenho tudo aquilo de que preciso.

— Você não está a compreender-me! Posso levá-lo aos diamantes! Diamantes... muitos... Poderá apanhar mancheias de diamantes!

— Não me interessam os diamantes, mas salvá-lo-ei com uma condição.

— Qual?

— Ajudar-me a salvar a rapariga, se ela ainda viver, e a levá-la para fora do vale.

— Prometo! Mas apresse-se, em breve será tarde.

Tarzan não havia atado a corda; passara-a simplesmente em volta da ameia, deixando pender as duas pontas que alcançavam uma altura a cerca de um metro do telhado inferior. Verificou que a corda não corria o risco de arder, pois a suspendera sobre o intervalo entre duas janelas.

— Eu vou primeiro... — disse o homem da selva — ...para que você não fuja esquecendo a sua promessa...

— Não confia em mim...

— Decerto que não. No fim de contas, você não passa de um homem.

Passou sobre o parapeito, apoiando-se numa das mãos, e com a outra mão agarrou ambas as pontas da corda. O deus-gorila estremeceu.

— Nunca poderei fazer isso... — gritou. — Cairei... É horrível...

— Suba ao parapeito e agarre-se às minhas costas, então... — volveu Tarzan. — Eu ajudo-o...

— A corda pode com ambos?

— Não sei. Apresse-se, ou deixo-o. O calor aumenta.

Tremendo, o deus-gorila içou-se para o parapeito e, com a ajuda de Tarzan, agarrou-se às costas deste, com os braços em volta do pescoço bronzeado.

Lenta e cautelosamente, Tarzan começou a descer. Não duvidava da resistência da corda, mas admitia a hipótese de as arestas da ameia, em cima, a poderem cortar. O calor era pavoroso. As chamas saíam pelas janelas, de ambos os lados. A fuga por ali apresentava-se cheia de perigos, como se o demónio do fogo tivesse visto a tentativa e juntasse todas as suas forças para impedir que alguma das suas vítimas se escapasse.

Resistindo estoicamente, Tarzan continuou a descer. A criatura agarrada a ele tossia com desespero, ou gritava de pavor. O homem da selva mantinha os olhos fechados e sustinha a respiração, para escapar ao fumo que os envolvia.

Sentia os pulmões como se estivessem prestes a rebentar, quando tocou com os pés no terraço inferior. No mesmo instante deitou-se de bruços e respirou avidamente. O fumo que subia, com o calor das chamas, fazia correr ar fresco ao nível do telhado. Ambos puderam respirar.

Tarzan demorou-se apenas um momento naquela posição. Logo, de costas, puxou a corda por uma das extremidades, soltando-a da ameia. O terraço, onde estavam agora, ficava apenas a uns três metros acima do terreno. Voltando a utilizar a corda, em poucos segundos estavam em relativa segurança, entre o castelo e a penedia.

— Vamos... — disse Tarzan. — Damos a volta ao castelo, e vamos ver se a rapariga se salvou.

— É preciso cuidado... — disse o deus-gorila. — O incêndio deve ter atraído a multidão vinda da cidade... Tenho muitos inimigos no palácio do rei, que ficariam contentes por nos apanhar. Matar-nos-iam e a rapariga ficaria perdida... se não tiver morrido ainda.

— Que sugere, então?... — perguntou Tarzan que nem de muito longe confiava na estranha criatura.

— O fogo ainda não alcançou esta ala mais baixa... — disse o outro. — Aqui fica a entrada de um poço que leva aonde vive um padre menor, fiel, numa caverna da base da penedia, ao nível da cidade. Se lá pudermos chegar estaremos salvos. Ele dar-nos-á abrigo e cumprirá as minhas ordens.

Tarzan franziu o sobrolho. Tinha a aversão natural das feras pelos espaços fechados e desconhecidos, mas ouvira bastante, da conversa entre aquela criatura e Cranmer, para saber que nas palavras dela havia uma parte de verdade... os inimigos do deus-gorila aproveitariam alegremente uma oportunidade para o capturar ou destruir.

— Está bem... — disse — .. .mas vou prender-lhe esta corda ao pescoço, para que não fuja, e lembre-se de que tenho ainda a faca que serviu para matar alguns dos seus gorilas.

O outro não respondeu mas sujeitou-se a ser preso pelo pescoço, e depois entrou na casa. Aí havia um alçapão habilmente escondido, que era a entrada de um poço escuro.

Uma escada permitia a descida, e Tarzan deixou ir adiante o deus-gorila. Desceram até um corredor horizontal, onde se abria outro poço; corredores e poços verticais alternaram-se, até que o deus-gorila disse que tinham alcançado a base da penedia.

Avançaram ao longo de mais um corredor, e alcançaram uma pesada porta de madeira. O deus-gorila escutou atentamente, a cabeça encostada à porta, e por fim correu um ferrolho e empurrou o batente. Pela abertura, Tarzan viu uma caverna apenas iluminada por um archote fumarento.

— Não está aqui... — disse a criatura, entrando. — Deve ter ido ver o incêndio, também.

Tarzan olhou em volta. O chão estava coberto com palha suja. Em frente da porta por onde haviam entrado, outra porta conduzia provavelmente ao exterior. Ao lado via-se uma única janela, estreita. Sacos feitos com peles de animais pendiam de pregos cravados na parede. A um canto estava uma bilha com água.

— Temos de esperar que ele volte... — disse o deus-gorila. — Entretanto, podemos comer.

Dirigiu-se aos sacos e tirou de dentro frutos, pontas tenras de bambu e nozes. Depois sentou-se no chão, dizendo a Tarzan, com um gesto na direcção dos sacos:

— Sirva-se.

— Já comi... — volveu Tarzan ,colocando-se de maneira a poder observar simultaneamente o estranho homem e as portas.

O deus-gorila comeu em silêncio durante alguns minutos; depois olhou para o homem da selva.

— Disse que não se interessava por diamantes... Por que veio aqui, então?

— Não pelos diamantes. O homem riu-se.

— A minha gente matou alguns do seu grupo, quando pretendiam entrar no vale. Um deles tinha um mapa do vale... o vale dos diamantes. Surpreende-o que eu pense que você tenha vindo pelos diamantes?

— Nada sabia do mapa. Como poderia alguém ter um mapa de uma região completamente desconhecida dos brancos?

— Eles tinham-no.

— Mas quem o pode ter feito?

— Eu fiz esse mapa.

— Você? E como podiam ter um mapa que você fizesse? Voltou a Inglaterra, depois de ter vindo para aqui?

— Não, mas fiz o mapa.

— Você veio para aqui porque odiava os homens e queria fugir-lhes. Não é razoável que tivesse feito um mapa para os atrair aqui; e se o fez, de que maneira esse mapa chegou à América, ou a Inglaterra, ou aonde quer que foi que essa gente... a minha gente o encontrou?

— Eu lhe digo... — volveu o deus-gorila. — Eu amava uma rapariga, mas ela não estava interessada num pobre cientista sem perspectivas de fortuna. Queria luxo e riqueza... um marido rico.

« — Quando vim para este vale e descobri os diamantes, pensei nela. Não posso dizer que ainda a amasse, mas desejava-a... para me vingar dos sofrimentos que ela me causara. Pensei que seria uma bela vingança, atraí-la aqui e forçá-la a ficar enquanto vivesse. Dar-lhe-ia riquezas, maiores riquezas do que alguém poderia sonhar... mas nada poderia comprar com elas... — e o homem-gorila voltou a rir.

« — Assim, fiz o mapa e escrevi-lhe uma carta. Disse-lhe o que devia fazer, como formar um «safari». E esperei. Espero há setenta e cinco anos, mas ela não veio.

« — Tinha feito grandes esforços para que a carta lhe chegasse às mãos. Tive de me afastar muito do vale, até encontrar uma tribo amiga e poder mandar um dos indígenas como mensageiro, até à costa. Não sei se ele lá chegou, sequer. O mensageiro pode ter sido atacado e morto. Muitas coisas podem ter acontecido. Muitas vezes perguntei a mim mesmo qual teria sido o destino do mapa... e ei-lo que voltou, ao cabo de setenta e cinco anos... Voltou e trouxe outra rapariga, muito mais bonita... A minha devia ter, agora... noventa e quatro anos, seria uma velha sem dentes... — suspirou. — Mas não terei nenhuma delas.

Ouviram ruído na porta exterior, e Tarzan levantou-se de um salto. A porta abriu-se e um velho gorila apareceu; ao ver Tarzan, parou, mostrando os dentes.

— Está tudo bem, padre Tobin... — disse o deus-gorila. — Entra e fecha a porta.

— Senhor meu Deus!... — exclamou o velho gorila, fechando a porta e caindo de joelhos. — Julgávamos que tinhas morrido nas chamas. Graças aos céus que foste poupado para nós!

— Eu te abençoo, meu filho... — volveu o deus-gorila. — Agora diz-me o que aconteceu na cidade.

— O castelo está destruído.

— Sim, eu sei. Mas o rei? Julga que eu morri?

— Todos julgam isso, e que a maldição caia sobre o rei. Henrique está contente. Dizem que vai proclamar-se deus.

— Que sabes da rapariga que Wolsey tirou ao rei e levou para o meu castelo? Morreu no incêndio?

— Escapou, meu Senhor. Eu vi-a.

— Onde está ela?... — perguntou Tarzan.

— Os servidores do rei apanharam-na e levaram-na ao palácio.

— Será o fim dela... — declarou o deus-gorila.

— Se Henrique insistir em a tomar por mulher, e decerto o fará, Catarina de Aragão mata-a.

— É preciso tirá-la do palácio, sem demora...

— disse Tarzan.

— Duvido de que isso possa ser feito... — volveu o deus-gorila, com um encolher de ombros.

— Você disse que um tal Wolsey o tinha feito antes.

— Mas Wolsey tinha um forte incentivo.

— Não mais forte do que aquele que você tem...

— retorquiu Tarzan, em voz calma, tocando na faca e puxando levemente a corda em volta do pescoço do homem.

— Mas como posso eu fazê-lo?... — exclamou o outro. — Henrique tem muitos soldados, O povo julga que eu morri, e agora, mais do que nunca, teme o rei.

— Você tem muitos adeptos fiéis, não?... — perguntou Tarzan.

— Sim.

— Então mande o seu padre Tobin reuni-los. Que lhes diga para se juntarem fora desta caverna, trazendo todas as armas que arranjarem.

O padre Tobin olhava com espanto para o seu deus e para aquele estranho que o segurava com uma corda e lhe falava sem qualquer reverência. Vira mesmo, horrorizado, o desconhecido dar um puxão à corda.

— Vai, padre Tobin... — disse o deus-gorila — .. .e reúne os fiéis.

— E cuidado com alguma traição... — acrescentou Tarzan. — Tenho a promessa do vosso deus, de salvar a rapariga. Vê esta corda e esta faca?

O velho gorila fez um aceno afirmativo.

— Se ambos não fizerem tudo para me ajudar, o deus morre... — afirmou Tarzan, com iniludível decisão.

— Vai, padre Tobin... — disse o deus-gorila.

— E depressa!... — ordenou Tarzan.

— Eu vou, meu senhor... — exclamou o padre Tobin. — Mas custa-me deixá-lo em poder desta criatura.

— Não correrá perigo se você fizer o que deve... — declarou Tarzan.

Padre Tobin voltou a ajoelhar, persignou-se e saiu. Quando a porta se fechou, Tarzan voltou-se para o seu companheiro:

— Como é possível que tivesse dado a estes brutos o poder de falar, e talvez de raciocinar, e não tenham qualquer das características físicas dos homens?

— Não é por culpa minha... — respondeu o outro — ...mas por um instinto natural e selvagem que é mais forte do que as novas faculdades de raciocínio. Transmitindo células humanas de geração em geração, como eles agora fazem, não é estranho que por vezes nasçam filhos com características físicas humanas. Mas, mau grado os meus esforços, esses filhos são invariavelmente destruídos à nascença.

« — Nos poucos casos em que foram poupados, tornaram-se monstros que não pareciam homens nem gorilas... e tinham as piores características dos homens e das feras. Alguns foram expulsos da cidade, ou fugiram, e julga-sse que formaram uma tribo e vivem em cavernas, no outro extremo do vale.

« — Conheço dois exemplos em que os resultados eram perfeitos em forma e feições humanas, mas com mentes de gorilas; no entanto, a maioria era de grotestos híbridos.

« — Desses dois exemplos, um tornou-se uma linda rapariga; quando a vi pela última vez, tinha a ferocidade de uma leoa. O outro era um jovem com a aparência e o porte de um aristocrata... e com a disposição mental de um Jack, o Estripador.

« — Agora, meu caro jovem... — concluiu o deus-gorila, mudando de assunto — .. .diga-me o que pretende fazer quando os meus fiéis estiverem reunidos aqui. Qual é a sua ideia?

— Comandados por nós... — volveu Tarzan — ...atacarão o palácio do rei e libertarão a rapariga branca.

 

                   Morte ao amanhecer

Rhonda Terry acordou em sobressalto. Ouvia gritos, e rosnidos, e rugidos que pareciam muito próximos. Viu as fêmeas do harém de Henrique, que se agitavam, inquietas. Algumas rosnavam como animais assustados e nervosos; mas não tinha sido isso que acordara Rhonda — o ruído que ouvira vinha de fora, forte e ameaçador.

Levantou-se e aproximou-se da janela. Catarina de Aragão viu-a e mostrou os dentes, num esgar de raiva.

— É a ela que eles querem... — rosnou a velha rainha.

Da janela, Rhonda viu, à luz dos archotes, uma turba de corpos peludos que travavam uma luta de morte. Levou as mãos ao coração, pois entre eles distinguiu Stanley Obroski, que combatia abrindo caminho para a entrada do palácio.

A primeira impressão da jovem foi de que ele estava a lutar sozinho contra a horda, mas logo compreendeu que muitos dos animais eram seus aliados. Viu o deus-gorila perto de Obroski, distinguiu mesmo a corda em volta do pescoço da criatura. Agora todos os seus pensamentos se concentravam na segurança de Obroski.

Vagamente, ouviu vozes coléricas em volta dela, e a certa altura compreendeu o que dizia a velha rainha.

— Foi ela que causou tudo isto... — exclamava Catarina de Aragão. — Se ela morresse, ficaríamos em paz!

— Mata-a!... — bradou Ana Bolena.

— Mata-a!... — gritou Ana de Cleves.

Rhonda voltou-se e viu as fêmeas selvagens que avançavam para ela — grandes monstros peludos que a fariam em pedaços. O absurdo contraste entre a fala humana e a aparência bestial pareceu bruscamente mais chocante do que nunca.

Uma das fêmeas, porém, separou-se do grupo e colocou-se diante de Rhonda, enfrentando as outras. Era Catarina Parr.

— Deixem-na em paz!... — rosnou. — Ela não tem culpa de estar aqui.

— Matem ambas! Matem Catarina Parr, também !... — berrou Catarina Howard.

— Matem ambas!... — repetiram as outras.

A Howard saltou sobre a Parr, e com ferozes rosnidos as duas fêmeas tentaram morder-se, com as grandes presas amareladas. Então as outras Lançaram-se contra Rhonda Terry.

Não havia por onde fugir, pois as gorilas se encontravam entre a jovem e a porta; as janelas tinham grades. Rhonda olhou em volta, procurando alguma arma com que se defendesse, mas nada havia. Recuou, sabendo que não tinha qualquer possibilidade de escapar.

Foi então que abriram a porta, violentamente, e três grandes machos entraram de roldão.

— Sua Majestade, o Rei!... — bradou um deles. As fêmeas calaram-se e afastaram-se de Rhonda;

apenas as duas que combatiam no chão não puderam ouvir. O enorme gorila que era Henrique VIII entrou no compartimento. Com tremendas pancadas dos grandes punhos e dos pés, atacou as combatentes até que elas desistiram, ao mesmo tempo que berrava:

— Silêncio! Onde está a mulher sem pêlos? Vem cá!... — ordenou, avistando Rhonda entre os vultos das outras. — O deus vem buscar-te, mas não te levará! Pertences-me!

— Deixa-o levá-la... — ganiu Catarina de Aragão. — Só causa complicações!

— Silêncio, criatura!... — bradou o rei. — Mando-te para a Torre e para o cepo!

Deu um passo em frente e agarrou Rhonda, atirando-a para cima de um dos poderosos ombros, como se ela não tivesse peso; depois dirigiu-se rapidamente para a porta e ordenou:

— Fiquem no corredor, Suffolk e Howard, e se a gente do deus chegar aqui, detenham-nos até que eu possa afastar-me em segurança.

— Deixa-nos acompanhar-te, «Sire»... — pediu um deles.

— Não! Ficarão aqui até receberem notícias minhas. Depois seguirão para o norte do vale, até ao desfiladeiro onde passa um braço do Tamisa...

Voltou-se e correu ao longo do corredor; ao fundo, entrou num pequeno compartimento, abriu uma espécie de armário e levantou um alçapão, dizendo:

— Nunca nos encontrarão, beleza. Isto é ideia do deus, mas ele não sabe que eu a conheço.

Com a agilidade de um macaco, desceu pelo poste vertical que mergulhava na escuridão, e quando chegaram ao fundo Rhonda compreendeu que seguiam por um corredor subterrâneo, muito comprido e escuro. O rei-gorila avançava devagar, tacteando; por fim, chegaram a uma abertura.

O animal poisou Rhonda no chão, e a jovem compreendeu, pelo ruído, que ele estava a remover qualquer coisa pesada. Logo depois sentiu o ar brando da noite, e viu estrelas no céu. Estavam na margem de um rio, perto da base de uma penedia baixa. Henrique VIII voltou a colocar uma pedra lisa e pesada, sobre a abertura por onde tinham saído.

Então começou um período de terror para Rhonda. Seguindo o rio, caminharam apressadamente através da noite, na direcção da parte superior do vale. O gorila já não transportava Rhonda, agarrava-a por um pulso e arrastava-a. Parecia nervoso e assustado, parando por vezes para farejar o ar, ou à escuta.

Movia-se em silêncio, e por gestos recomendava silêncio à jovem.

Ao cabo de algum tempo atravessaram o rio, para leste, num ponto onde a corrente, embora rápida, mal lhes chegava aos joelhos; então continuaram para nordeste. Não havia quaisquer sinais de perseguição, e no entanto o nervosismo do gorila aumentava. Rhonda compreendeu porquê, quando do norte veio o rugido de um leão.

O rei-gorila apressou o passo, rosnando surdamente. Uma sugestão de alvorada iluminava em tons de rosa o horizonte, a leste. Uma neblina fria envolvia o vale. Rhonda estava exausta, todos os músculos lhe doíam e todo o seu corpo reclamava descanso, mas o monstro arrastava-a sempre para diante.

O rugido do leão ouviu-se de novo, mais perto, rasgando a noite e fazendo estremecer o chão. Parecia realmente muito perto. O gorila começou a correr. A manhã rompia, tornando visíveis as coisas mais próximas.

Rhonda viu o leão na frente deles, um pouco para a esquerda. O gorila também o viu e mudou de direcção, encaminhando-se para leste onde havia um grupo de árvores, agora visíveis a uma centena de metros.

O leão aproximava-se, num passo fácil e baloiçado. Também ele mudou de direcção, trotando, com a intenção evidente de lhes cortar o caminho para as árvores. Rhonda notou que a barriga do leão oscilava, vazia. É estranho como certos pormenores fixam a atenção, em momentos críticos e de grande perigo.

A fera parecia magra e esfomeada. Rugia quase continuamente, como para se excitar. Começou a galopar.

Tornou-se evidente que não poderiam alcançar as árvores antes que o leão os alcançasse. O gorila parou, rosnando, e no mesmo instante o leão avançou directamente para ele. O monstro hesitou; depois, erguendo a jovem nos braços, atirou-a para diante da fera, ao mesmo tempo que se voltava e corria a toda a velocidade pelo caminho por onde viera. A mulher que cobiçava era o preço que oferecia para salvar a vida.

Mas não conhecia bem a maneira de ser dos leões; Rhonda caíra de bruços. Sabia que a fera estava a curta distância dela, e não havia qualquer possibilidade de lhe fugir; mas lembrou-se da sua anterior experiência com um leão, e ficou imóvel logo que caiu.

É o movimento que atrai o animal de presa. Qualquer pode verificar isto pelo procedimento do seu cão, que é o descendente de um animal de presa. O animal segue qualquer coisa que corra, é um instinto inevitável. Desde que alguém fuja, ele persegue — pois age como consequência de uma lei de milhões de anos mais velha do que o primeiro cão...

Se Henrique VIII alguma vez soubera isto, decerto o esquecera; se assim não fosse, teria feito correr Rhonda e ele próprio ficaria imóvel. Mas não o fez, e aconteceu o que tinha de acontecer. O leão ignorou o vulto caído e perseguiu o animal que fugia.

Rhonda sentiu o leão passar rapidamente perto dela; então levantou a cabeça e olhou, O gorila corria muito mais depressa do que ela teria julgado possível, mas não bastante depressa. Em breves instantes seria alcançado. Nessa altura as duas feras estariam longe de Rhonda, e o leão demorar-se-ia a abater a presa. Parecia inacreditável que o grande gorila, armado de fortes dentes e poderosas garras, não lutasse ferozmente para se defender.

A jovem levantou-se de um salto e, sem um olhar para trás, correu na direcção das árvores. Tinha percorrido apenas alguns metros quando ouviu o grande rumor da batalha entre as duas feras. Enquanto isso durasse, poderia fugir sem que o leão sequer a visse.

Quando, quase sem fôlego, alcançou as árvores, parou e olhou para trás. O leão estava a derrubar o gorila, e as grandes presas fecharam-se sobre a cabeça dele, sacudindo-a. O gorila ficou inerte — e assim morreu Henrique VIII.

O felino não olhou para a jovem e agachou-se sobre a carcaça da sua vítima, começando a devorá-la. Tinha muita fome.

Rhonda deslizou silenciosamente por entre os troncos. Mais alguns passos levaram-na à margem do rio. Era o braço leste do Tamisa, e o arvoredo alongava-se de ambos os lados. Pensando que tinha de fazer com que o leão perdesse a sua pista, se decidisse segui-la, a jovem resolveu alcançar a margem fronteira. Entrou na água e nadou.

Agora, pela primeira vez ao cabo de muitos dias, sentia renascer a esperança. Estava livre, e sabia onde se encontravam os seus amigos — sabia que, seguindo o rio até às escarpas que formavam o Omwamwi, os encontraria. Ignorava quais os perigos que poderia ainda encontrar no caminho, mas nada poderiam ser em comparação com aqueles de que escapara. As árvores dar-lhe-iam abrigo e protecção, e antes do fim do dia teria alcançado a escarpa. Na altura própria resolveria o duro problema da descida.

Estava cansada, mas não parou para descansar — não poderia descansar antes de estar em segurança. Seguiu o rio, caminhando para o sul. O sol surgira acima das montanhas que limitavam o vale, a leste. O calor era agradável, depois da fria neblina da madrugada.

Na sua frente, o rio descrevia uma grande curva para leste, e embora sabendo que, seguindo as sinuosidades da água, aumentaria muito a distância a percorrer, não tinha outra alternativa — não se atrevia a deixar a relativa segurança das árvores, nem a abandonar o que a conduziria infalivelmente ao seu destino.

Continuou a avançar, num estado de fadiga quase letárgica, arrastando os pés. As suas reacções reflectiam o esgotamento físico, eram lentas e vagas. Os seus sentidos pareciam embotados. E foi isso o que propiciou o desastre.

Quando deu pelo perigo, era demasiado tarde. Uma horrível criatura, meio homem e meio gorila, saltou de uma árvore, directamente em frente dela. Tinha a cara de um homem, as orelhas e o corpo de um macaco.

Rhonda voltou-se, tentando correr para o rio... mas então outro horrível monstro saltou de outra árvore. Rosnando, ambos saltaram para ela, e a agarraram, cada um por um braço, puxando-a em direcções opostas.

A jovem sentiu que lhe iam arrancar os braços, e julgou-se perdida; mas nesse momento um homem nu, branco, apareceu bruscamente. Empunhava uma clava, e atacou um após outro os dois monstros, até que eles largaram a presa. Mas, horrorizada, Rhonda compreendeu que o homem rugia e rosnava como os monstros.

Agora o homem agarrava-a por sua vez e mantinha-se, rosnando, ao lado dela — enquanto uma vintena de outros monstros, surgindo igualmente das árvores, os cercavam. O homem que agarrava Rhonda tinha belas feições e era bem constituído, com a pele bronzeada pelo sol, cabelos loiros que lhe caíam sobre os ombros e lembravam a juba de um leão.

Os monstros eram híbridos, em vários graus de repelente aparência — e no entanto o homem parecia fazer parte do bando, pois emitia os mesmos roncos. Era evidente que tinha estado também nas árvores, como os outros, mas estes manifestavam um certo espanto, medo dele ou da clava que empunhava; embora fosse flagrante o desejo de agarrarem a jovem, não ousavam avançar e ficar ao alcance da clava.

O homem começou a afastar-se com a sua prisioneira, mas então um brado selvagem ressoou entre as ramadas.

Todos olharam nervosamente para cima, e Rhonda, por instinto, olhou também, deixando escapar um involuntário grito de espanto. Voando entre os ramos, com a rapidez e a agilidade de um macaco, vinha uma rapariga branca, nua, os loiros cabelos ondeando ao vento. De entre os lábios perfeitos escapavam-se os gritos de um animal feroz.

Ao saltar para o terreno, correu na direcção deles. A face, embora reflectindo uma furiosa raiva, era de grande beleza; o corpo jovem tinha uma irrepreensível perfeição — mas a sua disposição era sem dúvida menos harmoniosa.

À aproximação dela, os monstros que rodeavam Rhonda e o homem afastaram-se para lhe dar caminho, embora rosnassem e mostrassem os dentes. A estranha rapariga ignorou-os e avançou para Rhonda.

O homem recuou, rosnando; de repente, atirando Rhonda para um ombro, voltou-se e correu. O peso da jovem não diminuía a sua velocidade... mas a bela e furiosa rapariga não deixou de o perseguir.

 

                  A rapariga selvagem

A guarda do palácio cedia terreno ante a multidão dos fiéis que atacavam as portas do palácio real, ao serviço do seu deus. O deus estava contente. Sempre desejara castigar Henrique, mas nunca antes se tinha atrevido a assaltar o palácio. Agora estava vitorioso, e na vitória a generosidade torna-se fácil, sobretudo para quem a obteve.

Anteriormente, o deus tinha estado resolvido a ignorar a sua promessa e vingar-se da afronta feita à sua divindade, mas agora decidira libertar o homem e a rapariga.

Tarzan não se interessava pelos aspectos políticos da aventura nocturna. Pensava apenas em Rhonda.

— -Onde pode estar a rapariga?... — perguntou ele ao deus-gorila, no momento em que entraram no palácio. — Preciso encontrá-la!

— Provavelmente está com as outras mulheres. Venha comigo, é em cima!

No alto das escadas estavam Suffolk e Howard, em obediência às ordem do rei; mas quando viram o Deus subir ao encontro deles... e atrás do Deus a multidão dos fiéis, lembraram-se de que o rei tinha fugido e sentiram uma brusca mudança de convicções. Receberam o Deus, de joelho em terra e afirmando que haviam expulsado o rei do palácio e iam justamente descer para atacar os inimigos do Senhor; e o Senhor sabia que mentiam, pois fora ele próprio quem implantara miolos humanos nos seus crânios de gorilas.

— Onde está a fêmea sem pêlos?... — perguntou o deus-gorila.

— Henrique levou-a com ele... — respondeu Suffolk.

— Para onde?

— Não sei. Correu para o fundo do corredor e desapareceu.

— Alguém deve saber... — disse Tarzan.

— Talvez Catarina de Aragão saiba... — sugeriu Howard.

— Onde está ela?

Encaminharam-se para a porta do harém, que Suffolk abriu anunciando:

— O Senhor Deus!

As fêmeas, nervosas e assustadas, receavam ser mortas pela multidão; ao verem o deus-gorila prostraram-se diante dele.

— Piedade, meu Senhor Deus!... — guinchou Catarina de Aragão. — Sou a tua serva fiel!

— Diz onde está Henrique, então.

— Fugiu com a criatura sem pêlos.

— Para onde?

A fúria da fêmea ciumenta mostrou a Catarina de Aragão a maneira de se vingar.

— Vem comigo... — disse.

Seguiram-na até ao quarto ao fundo do corredor, e ela levantou o alçapão.

— Este caminho leva a um túnel que passa debaixo da cidade e vai até à margem do rio, fora das muralhas... Henrique e a criatura sem pêlos foram por aqui.

O faro sensível do homem da selva captou o cheiro da rapariga branca. Compreendeu que o rei-gorila a levara por ali. Talvez o rei estivesse escondido em baixo, ou talvez de facto houvesse um túnel pelo qual Henrique VIII levara Rhonda para qualquer ponto nas montanhas em redor do vale.

Mas, de qualquer maneira, Tarzan continuaria sozinho, agora. Não confiava naqueles estranhos animais para o ajudarem a perseguir e capturar o que fora o seu rei. Retirou a corda do pescoço do deus-gorila, e suspendeu-a do ombro. Do cinto pendia a sua faca de caça. Estava pronto. Sem uma palavra, desceu pelo poste que mergulhava na escuridão. O deus-gorila deixou escapar um suspiro de alívio, ao vê-lo desaparecer.

Guiado pelo faro infalível, Tarzan atravessou o túnel que levava à margem do rio. Afastou a grande pedra e ficou por instantes imóvel na noite, escutando e farejando o ar. Um vento muito leve corria para a saída do vale, sem lhe trazer qualquer indicação do cheiro que ele seguira até ali. Isso indicava que o rei-gorila não tinha ido para o sul; a leste corria o rio, rápido e fundo. Ficavam apenas o oeste e o norte, como caminhos possíveis.

Tarzan curvou-se para o terreno. Em parte pelo faro, e em parte pelo tacto, encontrou a pista que seguia para o norte, ou antes, para nordeste, entre o rio e as penedias. Tarzan avançou, mas a necessidade de verificar de quando em quando a pista impedia-o de se deslocar tão depressa como o gorila a quem perseguia.

Demorou-se de novo no cruzamento do rio, pois passou adiante do ponto em que a pista voltava bruscamente na direcção da água. Teve de voltar atrás e procurar com cuidado até a encontrar novamente. Se o vento soprasse na boa direcção, e o gorila tivesse caminhado a direito, Tarzan podia ter seguido a pista em corrida.

As forçadas demoras não causaram qualquer irritação ou nervosismo em Tarzan, pois a paciência da fera que caça é infinita. Sabia que acabaria por alcançar a sua presa, e que, enquanto o gorila continuasse a caminhar, a rapariga estaria relativamente segura.

As primeiras claridades do dia surgiram quando Tarzan atravessava o rio. Ouviu à distância, para a frente, os rugidos de um leão, e pouco depois os roncos e gritos de outro animal, um gorila.

Tarzan compreendeu que Numa havia atacado um dos grandes antropóides, e calculou que fosse o rei. Mas que acontecera à rapariga? Não distinguia gritos humanos de mistura com o rosnar das feras. Lançou-se em corrida.

A certa altura, de uma elevação de terreno, avistou o leão agachado sobre a presa. Já havia claridade bastante para Tarzan distinguir que a presa era um gorila. A jovem desaparecera.

Tarzan fez um rodeio para evitar a fera. Passou à distância, do lado oposto ao do vento. Para além do leão, na orla do arvoredo, Tarzan encontrou de novo a pista de Rhonda, Seguiu-a, atravessando o segundo rio. Aí, porque o vento soprava de frente, a pista era fácil, para o homem da selva. Continuou a avançar, em corrida.

Agora outros cheiros se misturavam com o da jovem. Estranhos cheiros — mistura de mangani e tarmangani, de gorilas e de brancos, de homem e de mulher. Apressou o passo.

O inexplicável instinto, que ele partilhava com os animais da selva, avisou-o de que o perigo espreitava, adiante — perigo para a jovem americana e talvez para ele próprio. Avançou rapidamente, pela orla do arvoredo, em silêncio.

Os estranhos cheiros tornaram-se mais fortes. Ouvia agora um clamor confuso de vozes irritadas, das quais se aproximava. Saltou para o seu elemento, as árvores. Era ali que, mais do que em qualquer outro ponto, Tarzan se sentia senhor da selva.

Distinguiu a voz enraivecida de uma mulher, ou uma fêmea; era uma voz quase humana, mas onde o tom da fera predominava .. .e reconheceu palavras pronunciadas na linguagem dos grandes macacos. Sentiu-se intrigado.

Um momento depois observava, de cima, uma estranha cena. Viu uma vintena de criaturas — parcialmente humanas, parcialmente gorilas. E viu um homem branco, bronzeado, nu, que desaparecia entre as árvores levando sobre um ombro a jovem a quem ele procurava. Perseguindo-os, corria uma rapariga branca, cujos cabelos fulvos ondeavam ao vento... e que estava tão nua como os animais que, atrás dela, guinchavam e rosnavam, mas que pararam pouco depois.

Movendo-se entre os ramos, Tarzan foi-se aproximando pouco a pouco do estranho par, o qual, empenhado na fuga e na perseguição, não deu pela sua presença. Pouco adiante, o homem da selva alcançou a rapariga e passou-lhe à frente. O primeiro ímpeto de velocidade cansara-a, e corria ainda mas bastante mais devagar. O homem, com a sua prisioneira, afastava-se dela, e agora uma distância considerável os separava.

Por entre as árvores, adiante, Tarzan avistou uma extensão de terreno descoberto, para além do qual se erguiam penedias rochosas. Aí terminava o arvoredo. Saltando para o chão, Tarzan correu. Perdera algum terreno, no entanto, e embora recomeçasse a aproximar-se do homem que fugia, compreendeu que não o alcançaria antes dos rochedos. Podia ouvir o arfar da rapariga que vinha atrás.

Desde que avistara a rapariga loira e nua, e os grotescos monstros que se haviam detido lá para trás, entre as árvores, Tarzan recordara o que o deus-gorila lhe havia contado sobre os híbridos mais acentuadamente humanos de aspecto, que haviam escapado à destruição formando uma tribo naquele lado do vale. Eram os terríveis resultados das execráveis experiências do velho biólogo, consequências da intervenção da ciência na obra da natureza.

Foi apenas um relance da memória, para um facto sobre o qual o homem da selva não tinha tempo para fazer conjecturas. Todas as suas faculdades se concentravam na tarefa de momento — alcançar o homem que levava Rhonda Terry. E Tarzan espantava-se da rapidez com que o homem corria apesar de carregar com a sua prisioneira.

As penedias estavam agora a curta distância, e ao longo da base acumulavam-se penhascos que deviam ter caído no decorrer de muitos anos. A face das penedias apresentava uma série de plataformas irregulares, partidas, e nela se abriam numerosas cavernas.

Ao alcançar os penhascos, o homem continuou a avançar, saltando de rocha em rocha como um cabrito; atrás dele, mais devagar porque não estava habituado àquele tipo de terreno, corria o homem da selva — e atrás deste avançava a rapariga selvagem.

Trepando de plataforma para plataforma, o homem levava Rhonda sempre para cima... até que, a certa altura, empurrou a jovem para dentro de uma das cavernas e se voltou para enfrentar o seu perseguidor.

Tarzan desviou-se bruscamente para a direita e correu ao longo de uma plataforma que subia, com a intenção de alcançar outra, acima do seu adversário. O homem adivinhou essa intenção e moveu-se para tentar impedir Tarzan de a pôr em prática; abaixo de ambos, a rapariga selvagem começara a escalada.

— Para trás!... — bradou o homem loiro, na linguagem dos grandes macacos. — Para trás! Eu mato!

— Rhonda!... — chamou Tarzan.

A jovem apareceu na plataforma e gritou, espantada:

— Stanley!

— Suba a penedia... — disse Tarzan. — Pode seguir pelas plataformas. Eu deterei esse até você chegar acima. Depois vá para sul, para a parte inferior do vale.

— Tentarei... — respondeu Rhonda, começando a subir de uma plataforma para a outra.

A rapariga, em baixo, viu-a e gritou para o homem:

— Kreeg-ah! Ela foge! Desinteressando-se de Tarzan, o homem correu

em perseguição de Rhonda; em vez de seguir directamente atrás dele, Tarzan içou-se para uma plataforma mais alta, encaminhando-se em diagonal para a jovem americana.

Rhonda, acicatada pelo terror, subia muito mais depressa do que ela própria teria julgado possível; ignorando o perigo, que noutras circunstâncias a teria feito hesitar, pensava apenas em alcançar o alto da penedia antes que o estranho homem a alcançasse.

Assim, pela combinação da rapidez de Rhonda e da estratégia de Tarzan, este pôde cortar o caminho ao perseguidor. Quando compreendeu que tinha sido interceptado, o homem voltou-se para Tarzan, com um rugido.

A plataforma era estreita, e Tarzan viu que não era possível lutar ali sem cair; em baixo havia outra plataforma ainda mais estreita, que mal poderia deter a queda, e era evidente o risco de tombar de plataforma em plataforma até se despenhar na base da penedia, onde um deles, ou ambos, corriam o risco de se ferir gravemente ou morrer.

Um relance de olhos mostrou-lhe que a rapariga selvagem subia também, e para além dela vinham alguns dos híbridos que haviam retomado a perseguição. Mesmo que Tarzan sobrevivesse à luta, seria seguramente alcançado pelos outros.

A razão dizia-lhe que devia evitar um combate inútil, no qual, vencedor ou vencido, provavelmente morreria. Mas não lhe coube decidir — porque o homem-fera atacou.

A rapariga selvagem bradava encorajamentos ao seu companheiro; em baixo, os híbridos guinchavam. No alto da penedia, Rhonda olhava, horrorizada. Curvado, Tarzan enfrentou o homem-fera. Este lutava sem qualquer espécie de ciência, mas com tremenda força, e ferocidade, e por sua vez Tarzan esqueceu no momento qualquer verniz de civilização. Eram duas feras em luta.

Lançaram-se um contra o outro, e como panteras cada qual procurava cravar os dentes na garganta do adversário. Agarrados, oscilaram por momentos à beira da plataforma — e caíram.

Nesse momento, Rhonda Terry perdeu o que lhe restava ainda de esperança. Tinha subido quase até à crista da penedia, mas aí não via qualquer possibilidade de continuar, por falta de pontos de apoio. O homem que ela julgava ser Stanley Obroski, e cuja espantosa coragem — recentemente descoberta, pensava ainda Rhonda — era a sua única possibilidade de salvação, estava condenado irremediavelmente. Mais do que nunca, Rhonda sentia que o antigo desdém por aquele homem se transformara numa emoção que ela não se atrevia a analisar... mas que era decerto mais do que amizade. Não queria vê-lo morrer, mas a cena, em baixo, fascinava-a e não podia desviar os olhos.

Tarzan, por seu lado, não pensava em morrer. Em força e ferocidade não era inferior ao seu antagonista, e em inteligência e coragem era-lhe infinitamente superior. Tinha sido deliberadamente que precipitara a queda, e tal como a dirigira... dirigia também o choque na plataforma inferior. O homem-fera estava sob ele, Tarzan em cima.

O homem-fera bateu com a cabeça na pedra, e um dos joelhos de Tarzan apoiava-se ao estômago dele; assim, não só ficou inconsciente como sem fôlego.

Não estaria em condições de voltar a lutar durante bastante tempo.

Tarzan levantou-se quase no mesmo instante em que ambos caíram. Viu os monstros que se aproximavam, viu a rapariga selvagem que tentava agarrá-lo por uma perna, e formou imediatamente um plano. Curvando-se, agarrou a rapariga pelos cabelos e lançou-a para um ombro, enquanto ela se debatia ferozmente. Um momento depois estavam noutra plataforma, acima; Tarzan derrubou a rapariga e prendeu-lhe os braços com a sua corda, embora ela resistisse furiosamente. Era forte, a rapariga selvagem, mas nada podia contra a força de Tarzan. Quando acabou de prender a corda, os monstros estavam quase a alcançá-lo. Rápido, correu para cima, saltando entre as plataformas e puxando a criatura, que era forçada a saltar também.

A plataforma mais alta, de onde Rhonda observara as várias fases daquela luta em constante mutação, era a mais larga de todas. Aí abria-se uma das cavernas da penedia que se prolongava para cima, impossível de escalar. A rapariga subiu voluntariamente os últimos passos, e quando parou já não parecia disposta a lutar. Sorria, e era na verdade muito bonita; mas Tarzan vigiava agora a horda que continuava a aproximar-se, gritando. Não havia saída, dali. Tarzan bradou:

— Para trás, ou mato a vossa fêmea! Era esse o plano que formara, ao levar a rapariga como refém. Mas o plano falhou, como tantos planos falham.

— Eles não se importam que eu morra... — disse a rapariga. — Tu apoderaste-te de mim e eu pertenço-te. Querem matar-nos e comer-nos, se puderem. Atira-lhes pedras... e eu mostro-te como sair daqui.

Tarzan desamarrou-a e, pondo em prática o seu próprio conselho, a rapariga agarrou uma pedra e atirou-a. Atingindo na cabeça, um dos monstros caiu em baixo. Ela riu-se e bradou insultos. Compreendendo a eficácia daquele modo de defesa, Tarzan apanhou pedras e atirou-as; Rhonda imitou-o, e a barragem obrigou os monstros a refugiar-se nas cavernas em baixo.

— Não nos comerão ainda... — disse a rapariga, rindo.

— Vocês comem carne humana?

— Não Malb'yat, nem eu... Os outros sim, comem tudo.

— Quem é Malb'yat?

— O meu homem... Tu lutaste com ele e venceste-o. Agora pertenço-te e lutarei por ti. Ninguém mais te verá!... — voltou-se para Rhonda, grunhiu e tê-la-ia atacado se Tarzan a não agarrasse.

— Deixa-a... — ordenou o homem da selva.

— Não terás outra senão eu... — disse a rapariga selvagem.

— Ela não é minha, não quero que lhe faças mal. A rapariga olhou para Rhonda, de cenho franzido, mas não tentou tocar-lhe mais. Disse:

— Eu verei. Como é o nome dela?

— Rhonda.

— E o teu?

— Podes chamar-me Stanley... — disse Tarzan, divertido.

Estava surpreendido, mas não desconcertado pelo caminho que os acontecimentos tomavam. Compreendia que talvez a salvação pudesse depender daquela estranha rapariga, bela e selvagem.

— Stanley... — repetiu ela. — Eu chamo-me Balza.

Tarzan pensou que o nome era certo, pois na linguagem dos grandes macacos significava «rapariga de oiro», tal como Malb'yat queria dizer «cabeça amarela».

Balza curvou-se e apanhou uma pedra que atirou, com força e pontaria, na direcção de uma cabeça que espreitava em baixo. Acertou e riu-se.

— Vamos tê-los à distância até à noite, e depois vamo-nos embora. De noite não nos seguirão, têm medo do escuro. Agora seguir-nos-iam e acabariam por nos apanhar, porque são muitos.

A rapariga interessava Tarzan. Recordando o que lhe dissera o deus-gorila, tinha pensado que o corpo dela, humano e perfeito, devia ter um cérebro de macaco. Mas notara que Balza havia repetido o nome de Stanley, coisa que nenhum gorila poderia fazer.

— Falas inglês?... — perguntou-lhe, em inglês.

— Sim... — respondeu ela, surpreendida. — Mas pensei que não falasses.

— Onde aprendeste?

— Em Londres, antes de me expulsarem.

— Expulsaram-te?

— Sim, por eu não ser como eles. Minha mãe escondeu-me durante anos, mas descobriram-me. Se eu ficasse, matavam-me.

— E Malb'yat é como tu?

— Não. É como os outros. Não pode aprender nada, nem uma palavra. Gosto muito mais de ti. Espero que matasses Malb'yat.

— Mas não o matei. Estou a vê-lo a mover-se, lá em baixo, na plataforma onde ficou caído.

A rapariga olhou, apanhou uma pedra e atirou-a para o desafortunado Malb'yat. Não lhe acertou, mas ele arrastou-se para uma caverna.

— Se ele me apanhar, bate-me... — disse ela.

— Ou mata-te... — volveu Tarzan.

— Não, porque não há mais nenhuma como eu. As outras são feias, eu sou bela. Ele não me mata, mas as outras gostariam de me matar... Talvez esta gostasse de me matar... — acrescentou, olhando para Rhonda.

A jovem americana tinha escutado com crescente interesse a parte da conversa em inglês, mas sem falar.

— Não quero matar-te... — disse. — Não há razão para não sermos amigas.

Balza olhou-a atentamente, com surpresa. Depois olhou para Tarzan:

— Ela fala verdade?

— Decerto.

— Então somos amigas... — declarou Balza.

As suas decisões em amor, amizade, ou morte, eram prontas e impulsivas.

Durante horas ficaram atentos, em cima, mas só raras vezes foi preciso lembrar aos monstros que deviam manter-se à distância.

 

                   Diamantes

Começou a escurecer, finalmente. Tinham fome e sede, estavam ansiosos por sair da plataforma rochosa onde o sol batera durante todo o dia.

Tarzan e Rhonda tinham estado entretidos e divertidos com a rapariga selvagem. Não tinha complicações nem inibições, fossem quais fossem. Dizia ou fazia exactamente o que lhe apetecia dizer ou fazer, com uma tão completa falta de noção das conveniências que por vezes se tornava embaraçosa. Quando o sol desapareceu para além das colinas a oeste, do outro lado do vale, Balza levantou-se.

— Venham... — disse. — Agora podemos ir. Não nos seguirão, porque não tarda a anoitecer...

Entrou na caverna, que era estreita e quase em linha recta. Balza levou-os até ao fundo, onde havia uma espécie de chaminé natural formada por uma fenda na rocha. Podiam ver o céu, em cima, e havia claridade bastante para distinguirem as asperezas das paredes que subiam apenas por alguns metros. Tarzan viu imediatamente que, apoiando as costas num dos lados, e os pés no outro, poderiam subir. Mas as duas raparigas ficariam com as costas bastante feridas.

— Eu vou adiante... — disse — ...e atiro-lhes a corda, de cima. É estranho, Balza, que a tua gente não nos tenha atacado por aqui.

— São demasiado estúpidos... — volveu a rapariga. — Não sabem pensar.

— Uma feliz circunstância, para nós e para alguns deles... — disse Tarzan, começando a subir.

Chegando acima, desceu a corda e içou facilmente as duas raparigas. Encontraram-se numa depressão de terreno, a descoberto e de pequenas dimensões, cujo chão estava coberto de pequenas pedras irregulares, cristalizadas, que reflectiam as últimas claridades do dia, transformando a depressão numa taça de irradiações de pura beleza. Ao ver aquilo, Rhonda soltou uma exclamação de incrédulo espanto:

— Diamantes! O vale dos diamantes! Curvou-se e apanhou algumas das preciosas

pedras. Balza olhava-a, surpreendida, pois os diamantes nada significavam para ela. Tarzan recolheu alguns dos maiores.

— Posso levar alguns comigo?... — perguntou Rhonda.

— Com certeza... — volveu o homem da selva. — Todos os que puder transportar confortavelmente.

— Seremos todos ricos!... — exclamou a jovem americana.

— Podemos trazer aqui toda a companhia e carregar os camiões! Há toneladas deles!

— E sabe o que acontecerá?... — perguntou Tarzan.

— Sei... Terei uma vivenda na Riviera, uma casa em Beverly Hills, uma vila de cento e cinquenta mil dólares em Malibu, outra em Palm Beach, um andar em Nova Iorque, uma...

— Não terá mais do que sempre teve... — interrompeu Tarzan — ... porque se levar todos estes diamantes o mercado ficará saturado e os diamantes valerão menos que o vidro. Sensatamente, leve alguns para si e para os seus amigos... e nunca diga a ninguém como chegar aqui.

Ela olhou-o, por momentos, e depois disse:

— Tem razão... A partir deste momento, e no que me diz respeito, o vale dos diamantes não existe.

No breve crepúsculo, Balza levou-os ao longo de uma trilha que descia ao vale, para além do ponto onde viviam os híbridos, e durante toda a noite caminharam para o sul, na direcção da escarpa e de Omwamwi Falis.

O caminho era novo para todos eles, visto que a própria Balza nunca fora tão longe. A ignorância do caminho, e a escuridão, demoraram-nos. Era de madrugada quando chegaram à escarpa. Durante grande parte da jornada Tarzan transportou Rhonda, exausta. Mas Balza era incansável e seguia passo a passo o seu homem, como ela considerava agora Tarzan. Não falavam, porque a experiência e o instinto lhes diziam que não se pode falar durante a noite, na selva, e ficar vivo. Mas que estranhos pensamentos atravessariam a mente da rapariga selvagem, ao seguir assim o seu novo senhor, a caminho de um mundo novo?

Na primeira luz da madrugada, a paisagem, do alto da escarpa, parecia estranha aos olhos de Rhonda Terry. A base estava encoberta pela neblina, e apenas a grande voz rugidora da catarata se ouvia como um coro de titãs. Era como olhar um planeta diferente, tão distante que nunca poderia alcançá-lo.

Nítida na sua memória estava a experiência vivida quando o enorme gorila a levara até ali. Agora sabia que nunca conseguiria descer sozinha — e que Stanley Obroski não a poderia levar. Vira-o fazer coisas de que nunca o teria julgado capaz, mas aquilo ficava para além das possibilidades humanas.

Estava ainda absorvida nestes pensamentos quando Tarzan a pôs sobre um ombro e começou a descer. Rhonda fechou os olhos, mas não disse uma palavra. Com uma força igual à do gorila, mas com muito maior agilidade, Tarzan descia passo a passo para o abismo, agarrando-se a incríveis pontos de apoio. Balza seguia-o, com a agilidade de um macaco.

E assim o impossível foi feito, chegaram os três à base da escarpa. O sol subira no horizonte, e a neblina desaparecera. Rhonda sentiu que as forças lhe voltavam.

— Ponha-me no chão, Stanley... — disse ela. — Estou bem, posso caminhar.

— A distância até ao acampamento é curta...

— respondeu Tarzan, poisando-a no chão. Rhonda olhou para Balza e pigarreou, antes de

dizer:

— Claro que nós somos de Hollywood... mas não lhe parece que seria bom improvisar ao menos uma saia para Balza, antes de seguirmos?

Tarzan riu-se:

— Pobre Balza... Terá de complicar muito a sua vida, agora que vai entrar em contacto com homens civilizados. Deixe-a ser natural e ter o espírito limpo enquanto puder.

— Mas era nela que eu estava a pensar... — disse Rhonda.

— Ela não se sentirá embaraçada... pelo menos não tanto como se lhe vestissem uma saia.

— «Okay»... — volveu a jovem, encolhendo os ombros. — Tom e Bill não coram, com certeza.

A curta distância das quedas de água, Tarzan parou, apontando:

— Foi ali que deixei Orman e West... mas não estão lá.

— Que lhes teria acontecido? Não deviam esperar por você?

— Estão mais abaixo, perto do rio... — disse o homem da selva, depois de escutar e farejar o ar.

— E não estão sós, há muitos outros com eles.

Percorreram cerca de uma milha e avistaram um vasto acampamento, com muitas tendas de campanha, e camiões.

— O «safari»!... — exclamou Rhonda. — Pat conseguiu passar!

Quando se aproximaram, alguém os viu e se pôs a gritar; instantes depois todos corriam ao encontro deles. Todos beijaram Rhonda, e Naomi beijou Tarzan; rosnando, Balza lançou-se para ela e tê-la-ia feito passar um mau bocado se Tarzan a não agarrasse, enquanto Naomi se encolhia, apavorada.

— Não toca em Stanley... — disse Rhonda, a rir. — A jovem anexou-o!

Tarzan agarrou Balza pelos ombros, olhou-a fixamente e disse:

— Esta é a minha gente. As maneiras deles são diferentes das tuas. Se te voltares contra eles, mando-te embora. Estas mulheres são tuas amigas.

Todos olhavam Balza, com franca admiração. Orman como o realizador que descobre um tipo... e O'Grady como um assistente de realizador... e alguma coisa mais.

— Balza... — continuou o homem da selva. — Vai com elas. Cobrirão o teu belo corpo com roupas desconfortáveis, mas terás de as usar. Dentro de um mês estarás a fumar e a beber «cocktails»... e então serás civilizada. Agora és apenas selvagem. Vai e sê infeliz.

Todos riram, excepto Balza que não entendia; mas o seu deus falara, e ela obedecia. Acompanhou Rhonda e Naomi.

Tarzan falou com Orman, Bill West e O'Grady. Todos o tomavam por Stanley Obroski, e ele nada fez para os desiludir. Disseram-lhe que West tinha, na noite anterior, tentado escalar a escarpa. Não o conseguira, mas alcançara altura suficiente para avistar as luzes do «safari», e assim se haviam reunido.

Orman estava agora entusiasmado para continuar as filmagens. Tinha de novo quase todos os componentes do seu elenco. Ele faria o papel do vilão, e O'Grady o do major White. Estava a pensar num papel para Balza, e tinha a certeza de que seria um êxito clamoroso.

 

                   Adeus, África

Durante duas semanas, Orman filmou cena após cena, no cenário magnífico do rio e das esplendorosas cataratas. Tarzan ausentou-se por dois dias e voltou trazendo consigo uma tribo de indígenas amigos, para substituir os que haviam desertado. Foi ele também que conduziu os operadores para filmarem leões e elefantes, e todas as formas de vida selvagem que era possível encontrar na região. E todos se maravilhavam ante o saber, o poder e a coragem de Stanley Obroski.

Então veio uma triste surpresa. Chegou um mensageiro trazendo um telegrama para Orman, do Estúdio, ordenando-lhe o imediato regresso a Hollywood, levando a companhia e o equipamento. Todos, com excepção de Orman, ficaram encantados.

— Hollywood!... — exclamou Naomi Madison. — Oh, Stanley! Não está doido por voltar?

— Talvez a palavra exacta seja essa... — murmurou ele.

Os elementos da companhia cantaram e dançaram, como crianças a verem arder a escola, e Tar-zan, observando-os, pensava no que teria Hollywood para exercer uma tal atracção sobre aqueles homens e aquelas mulheres. Decidiu que algum dia iria ver pessoalmente.

Ao longo de trilhas abertas, a viagem de regresso foi feita com facilidade e rapidez. Tarzan acompanhou o «safari» através da região dos Bansutos, tranquilizando os outros:

— Não haverá complicações, desta vez. Combinei isso com Rungula...

Depois deixou-os, dizendo que ia adiante, para Jinja. Encaminhou-se velozmente para a aldeia de Mpugu, onde deixara Obroski. Mpugu recebeu-o com uma atitude desolada.

— Bwana branco morrer há sete dias... — disse o chefe, — Eu levar corpo dele a Jinja, para que brancos ver que nós não o matar.

Tarzan teve um vago encolher de ombros. Era pena, mas nada podia fazer. Já tinha feito o melhor que podia, por Obroski.

Dois dias depois, o homem da selva e Jad-bal-ja, o leão doirado, pararam numa elevação de terreno para ver a longa coluna dos carros do «safari», que seguia à distância na direcção de Jinja.

A comandar a retaguarda ia Pat O'Grady, e a seu lado ia Balza. Caminhavam enlaçados, e Balza ia a fumar um cigarro.

 

                   Olá, Hollywood

Passou um ano.

Um homem alto e bronzeado apeou-se do comboio, na estação de caminho de ferro de Los Angeles. A harmonia, ao mesmo tempo majestosa e fácil, dos seus movimentos; o andar firme e silencioso, a formidável aparência de força, a nobreza das feições — tudo sugeria alguma coisa de leonino, como se ele fosse uma personificação de Numa, o leão.

Uma vasta multidão se juntara à chegada do comboio; polícias sorridentes formavam um cordão, detendo os basbaques e mantendo um caminho aberto para os passageiros que desciam e para a grande celebridade que era tão avidamente esperada. As máquinas fotográficas registavam imagens que logo eram levadas para os grandes jornais e para a TV. Repórteres ansiosos, correspondentes especiais e caçadores de autógrafos empurravam a polícia.

Por fim a multidão avistou a celebridade, e um grande clamor de aplausos ressoou nos microfones estrategicamente colocados por Freeman Lang.

Uma rapariga de cabelos verdes descera do comboio; o seu agente de publicidade precedera-a, e era seguida por três secretárias e por uma criada que conduzia à trela um gorila.

No mesmo instante os repórteres estavam em volta dela. Freeman abriu caminho, à força.

— Não quer dizer umas palavras para os nossos amigos telespectadores?... — disse ele, agarrando a rapariga por um braço. — Por aqui, minha querida!

A rapariga aproximou-se da aparelhagem:

— Olá, amigos! Gostava que estivessem todos aqui! É simplesmente maravilhoso. Sinto-me tão feliz por voltar a Hollywood!

Freeman pegou no microfone:

— Senhores e senhoras, ouviram a voz da mais bela e mais popular estrela de cinema da hora actual. Deviam ver a multidão aqui reunida para lhe dar as boas-vindas. Estive presente em muitas ocasiões assim, mas dou-lhes a minha palavra, amigos, de que nunca vi nada como isto... Toda a população de Los Angeles veio receber a estrela da B.O., a gloriosa Balza!

A sombra de um sorriso passou pelos olhos do passageiro bronzeado, que conseguira finalmente alcançar a rua e chamava agora um táxi para que o conduzisse a um hotel de Hollywood.

Quando estava a inscrever-se no Hotel Roosevelt, um homem novo, que se encostara ao balcão da recepção, leu disfarçadamente o nome: John Clayton, Londres; e, enquanto Clayton seguia o paquete na direcção do ascensor, o homem notou-lhe o vulto alto, os largos ombros, o caminhar seguro e fácil.

Da janela do seu quarto, Clayton olhou para Hollywood Boulevard, onde passavam intermináveis filas de carros silenciosos, em ambas as direcções. Distinguiu pequenas árvores e minúsculos rectângulos de relva, onde as entradas das lojas não os haviam feito ainda desaparecer — e suspirou.

Viu muita gente que seguia nos carros ou caminhava pelos passeios de cimento, e teve a sugestão das inumeráveis criaturas nas lojas cheias, nas residências; e sentiu-se mais só do que em qualquer outro momento da sua vida.

As paredes do quarto do hotel sufocavam-no. Desceu no elevador, para o vestíbulo, pensando dirigir-se às colinas que pareciam muito próximas, ao norte. No vestíbulo, o homem novo aproximou-se dele:

— Não é o sr, Clayton?... — perguntou. Clayton olhou-o atentamente antes de responder.

— Sou, mas não o conheço.

— Deve ter-se esquecido, mas encontrámo-nos em Londres...

— Eu nunca me esqueço.

O homem novo encolheu ligeiramente os ombros, sorrindo.

— Desculpe, mas eu reconheci-o. Veio a negócios?... — Não parecia embaraçado nem contrariado.

— Venho apenas para ver Hollywood.

— Suponho que tenha aqui muitos amigos...

— Ninguém me conhece.

— Talvez eu possa ser-lhe útil, então... — sugeriu o homem novo. — Estou aqui há dois anos, conheço isto e posso mostrar-lhe o que há para ver. Não tenho nada que fazer, agora. Chamo-me Reece.

Clayton pensou por momentos. Tinha vindo para ver Hollywood, e um guia podia ser-lhe útil; por que não aquele?

— É amabilidade sua... — respondeu.

— Que diz de almoçarmos, então? Suponho que queira ver de perto algumas das celebridades... Todos querem.

— Naturalmente... — volveu Clayton. — São os mais interessantes habitantes de Hollywood, creio.

— Muito bem. Vamos ao Brown Derby, encontraremos muitas dessas celebridades, aí.

Quando se apearam de um táxi, diante do Brown Derby, Clayton viu uma pequena multidão alinhada de ambos os lados da entrada. Pensou nos que vira na estação, para receberem a famosa Balza.

— Devem esperar alguma personagem importante. .. — comentou.

— Oh, esses basbaques estão aqui todos os dias... — volveu Reece.

O Brown Derby estava cheio — homens bem vestidos, mulheres elegantes. Havia qualquer coisa de estranho nos toucados das mulheres, como se cada uma tentasse dar mais nas vistas do que todas as outras. Conversava-se de mesa para mesa, com muitas exclamações:

— Como 'tá você? 'tá lindíssima! Vejo-a logo no Chinese? Como 'tá você?

Reece indicava as celebridades, a Clayton. Um ou dois nomes eram familiares, mas todos pareciam semelhantes, falavam de modo semelhante e não diziam nada quando falavam. Clayton começou a achá-los estúpidos e aborrecidos. Ficou contente quando acabaram de almoçar. Pagou a conta e saíram.

— Tem que fazer, esta noite?... — perguntou

Reece.

— Não tenho planos.

— Que diz de irmos ver a estreia do último filme de Balza, «Ombros Macios», ao Chinese? Tenho um bilhete, e conheço um tipo que pode arranjar outro, mas vai custar uns vinte e cinco dólares... — e Reece fitava Clayton, interrogativo. Este perguntou:

— É alguma coisa que deva ver, estando em Hollywood?

— Absolutamente!

Jorros de luz iluminavam a fachada do Frauman's Chinese Theater, e o céu nocturno — e vinte mil pessoas se aglomeravam em Hollywood Boulevard, uma sólida massa de humanidade que enchia a rua de lado a lado, impedindo o trânsito. Os polícias empurravam e suavam. Filas de automóveis e autocarros esperavam, paradas. Clayton e Reece foram a pé do hotel para o teatro, abrindo caminho.

Quando se aproximaram, Clayton ouviu os altifalantes que anunciavam a chegada de celebridades — as quais haviam deixado os seus automóveis a vários quarteirões de distância. O vasto átrio do teatro estava cheio de espectadores e caçadores de autógrafos; alguns tinham trazido cadeiras e estavam ali desde manhã, para ver os astros e as estrelas da capital do cinema.

Quando Clayton entrou, a voz de Freeman Lang ressoava no «boulevard», através dos microfones.

— As celebridades começam a chegar agora, em quantidades, Naomi Madison traz o seu novo marido, o príncipe Mudini. E aí vem Balza, a maravilhosa! Tentarei conseguir que ela lhes diga alguma coisa, caros ouvintes! Querida, chegue aqui! Oh, que beleza maravilhosa a sua ! Quer dizer umas palavras aos amigos ouvintes? Por aqui, querida!

Uma dúzia de caçadores de autógrafos estendiam lápis e cadernos para Balza, mas ela acalmou-os com um sorriso e aproximou-se do micro.

— Olá, todos! Gostaria de os ver aqui! É simplesmente maravilhoso! Estou muito contente por voltar a Hollywood!

Clayton sorriu, a multidão rugiu aplausos, e Freeman voltou-se para outra celebridade, dizendo ao microfone:

— Aí vem agora... Oh, não consegue abrir caminho entre a multidão! Esta multidão é simplesmente tremenda, amigos! Estivemos em muitas estreias, mas nunca vimos nada como isto! A polícia não consegue deter os admiradores dos grandes artistas.

Ah, aí vem ele! Olá, Jimmie! Por aqui! Os ouvintes querem escutá-lo! É Jimmie Stone, assistente do director de produção dos Estúdios B.O., cujo grande filme, «Ombros Macios», é estreado hoje no Grau-man's Chinese Theater! Jimmie vai falar...

— Olá, toda xente! Xó queria que estibessem todos aqui! É maravilhoxo! Olá, Mamãe!

— Entremos... — sugeriu Clayton.

— Gostou do filme, Clayton?... — perguntou Reece.

— Os acrobatas, do prólogo, eram bastante bons...

— volveu Clayton.

Reece pareceu um tanto desanimado, mas logo se alegrou.

— Eu lhe digo o que vamos fazer... — exclamou.

— Arranjam-se mais dois companheiros e vamos a uma festa.

— A esta hora da noite?

— Oh, é cedo. Ali está Billy Brouke! Eh, Brouke! Apresento-te o sr. Clayton, um velho amigo meu, de Londres. Sr, Clayton, este é Billy Brouke. Que dizes de irmos a uma festa, Brouke?

— Por mim está «okay». Vamos no meu carro, deixei-o à esquina.

Numa rua lateral, subiram para um carro reluzente de cromados. Brouke levou o automóvel pela rua Franklin, e depois seguiram por um caminho estreito e sinuoso, na direcção das colinas. Clayton comentou:

— Talvez os seus amigos não gostem de que vocês levem um desconhecido.

— Não se preocupe... — declarou Reece, rindo. — Ficarão tão contentes por o verem... como por nos verem, a nós.

— Disso não há dúvidas... — confirmou Brouke, rindo também.

Chegaram ao fim da rua e Brouke fez dar a volta ao carro, com uma praga. Meteu por outra rua, percorreu-a ao longo de alguns quarteirões e voltou para a rua Franklin.

— Esqueceu-se de onde vivem os seus amigos?... — perguntou Clayton.

Numa rua lateral, sossegada, viram uma casa brilhantemente iluminada, diante da qual estavam parados vários automóveis; pelas janelas abertas ouviam-se risos e som de música de rádio.

— Parece ser este o lugar... — disse Reece.

— É mesmo... — volveu Brouke, sorrindo e encostando o carro ao passeio.

Um criado filipino abriu a porta. Reece passou por ele, afastando-o, e os outros seguiram-no. Um homem e uma rapariga estavam sentados nos degraus da escada que levava ao andar superior. Tentavam beijar-se ardentemente, sem entornar os copos de «cocktail» que tinham nas mãos. Conseguiram-no, sem prestar qualquer atenção aos recém-chegados.

À direita do vestíbulo de entrada havia uma ampla sala onde vários pares dançavam; outros estavam sentados em cadeirões ou divãs, a beber. Todos

riam.

— A festa está animada... — disse Brouke, entrando na sala. — Ora vivam todos! Onde estão as bebidas?... — e encaminhou-se para as traseiras da casa, esboçando, no caminho, um passo de dança.

Um homem de meia idade, cabelos grisalhos, levantou-se de um divã e dirigiu-se a Reece. Tinha uma expressão intrigada.

— Não creio... — começou a dizer. Mas Bourke interrompeu-o:

— Está tudo certo, meu velho! Lamento vir tarde. Apresento-lhe o sr. Reece e o sr. Clayton, de Londres. Que tal umas bebidas?

Sem esperar resposta encaminhou-se para a cozinha. Reece e o outro seguiram-no, mas Clayton ficou. Não notara qualquer espécie de entusiasmo na atitude do homem grisalho, que calculou ser o dono da casa... Uma loira alta, aproximou-se dele, cambaleando um tanto.

— Não o conheço de algum lado, sr.... ah!...

— Clayton...

— E se dançássemos? O meu companheiro... — confidenciou ela — ...apagou-se e tiveram de o deitar numa cama...

Falava incessantemente, mas Clayton conseguiu perguntar-lhe se conhecia Rhonda Terry.

— Rhonda... Claro que conheço... Está em Samoa, a trabalhar como estrela no novo filme do marido.

— Ah! Ela casou?

— Sim, casou com Tom Orman, o realizador. Conhece-a?

— Encontrei-a uma vez.

— Ficou acabrunhada pela morte de Stanley Obroski, mas lá se recompôs e casou com Orman. Obroski fez grande nome em África. Ainda falam da maneira como ele matava leões e gorilas, com um braço amarrado.

Clayton sorriu delicadamente. Depois de dançarem, a loira conduziu-o para um sofá onde estavam sentados dois homens.

— Abe... — disse ela para um dos homens — ...aqui tens uma descoberta para ti. Este é Abe Pot-kin, sr. Clayton. E este outro é Dan Puant, o famoso cenarista.

— Já estive a observar o sr. Clayton... — respondeu Potkin.

— Não é exactamente o tipo, mas talvez dê... Tenho estado a observá-lo... Que diz você, Dan?

— Não é bem a minha ideia de Tarzan, mas pode servir...

— Claro que a cara não é a de Tarzan, mas tem a estatura, e é isso o que eu quero... — declarou Potkin.

— Não tem nome, ninguém o conhece... E você disse que queria um grande nome... — objectou Puant.

— Utilizaremos essa loira platinada, Era Dessent, para contracenar com ele... Tem montes de sexo e é famosa.

— Tenho uma ideia!... — exclamou Puant.

— Vou escrever uma história a respeito da Dessent e de algum jovem bonito, mete-se outra mulher com sexo e um vilão com um nome famoso... Podemos utilizar Clayton nos longos planos, com macacos para dar ambiente.

— Boa ideia, Dan... Mete-lhe uma data de sexo, o triângulo clássico e uma cena de «cabaret», com uma grande orquestra de jazz. Precisamos de uma coisa diferente.

— Isso arranja a coisa para podermos utilizar este amigo... — disse Puant — ...pois não importa muito quem faça o papel de Tarzan.

— Que diz, sr. Clayton?... — perguntou Potkin, com um sorriso insinuante.

Nesse momento Reece e Brouke vieram da cozinha, cada qual com uma garrafa e seguidos pelo homem grisalho, que falava com muitos gestos.

— Bebam todos, amigos!... — exclamou Brouke. — A festa está a desanimar!

Passaram pela sala, enchendo copos com «bourbon» ou «gin» sem mistura. De quando em quando paravam para beber também. Por fim desapareceram no corredor, em busca de outros copos vazios.

— Então que diz?... — repetiu Potkin, afastada

a interrupção.

— De quê?... — perguntou Clayton, olhando-o interrogativamente.

— Vou fazer um filme sobre a selva... — explicou Potkin. — Tenho um contrato para uma história de Tarzan, e quero um Tarzan. Faremos um «teste» consigo, amanhã de manhã.

— Parece-lhe que eu posso interpretar o papel de Tarzan dos Macacos?... — perguntou Clayton, com a sombra de um sorriso.

— Não é exactamente o que eu queria, mas pode servir. Bem vê, o sr. Puant pode escrever uma boa história de Tarzan, mesmo que não tenhamos Tarzan. E escute, isso lançá-lo-á! Quase devia pagar-me por esta oportunidade. Mas eu lhe digo o que vamos fazer. Simpatizo consigo, sr. Clayton; pago-lhe cinquenta dólares por semana e faço toda a publicidade, que não lhe custará nem um cêntimo. Esteja no estúdio pela manhã e faremos um teste. «Okay»?

— Hei-de pensar nisso... — volveu Clayton, levantando-se e atravessando a sala. Uma mulher bonita veio a correr do vestíbulo, perseguida por Brouke.

— Deixe-me em paz, patife!... — gritava ela.

O homem de cabelos grisalhos vinha atrás de Brouke, gritando:

— Deixe em paz a minha mulher e ponha-se na rua!

Brouke deu-lhe um empurrão que o fez cair sobre uma cadeira e daí para o chão, onde ficou enovelado junto da parede; depois agarrou na mulher e ergueu-a nos braços, levando-a para o vestíbulo. Clayton olhava, espantado. Voltou-se e viu Maya, a rapariga loira, ao lado dele.

— O seu amigo está a ser um tanto bruto... — disse ela.

— Não é meu amigo... — volveu Clayton. — Encontrei-o esta noite e convidou-me para vir a uma festa em casa de uns amigos dele.

— Amigos dele!... — repetiu a rapariga, rindo e olhando Clayton. — Quer dizer que não sabia estar em casa de desconhecidos. Joe nunca viu qualquer de vocês, antes.

— Não os conhecia? Mas então por que razão não nos mandaram sair? Por que não chamaram a polícia?

— Para a polícia encontrar a cozinha cheia de álcool de contrabando? Você está a brincar, rapaz!

Do andar de cima veio um grito de mulher, O homem dos cabelos grisalhos levantou-se, cambaleando.

— Deus! A minha mulher... — balbuciou.

Clayton correu para o vestíbulo e galgou as escadas. Ouviu gritos, atrás de uma porta fechada; meteu um ombro à porta e arrombou-a.

No quarto, uma mulher debatia-se nas garras de Brouke que estava embriagado. Clayton agarrou-o pelo pescoço e fê-lo largar a mulher. Brouke soltou um brado de dor e de raiva. Quis reagir, mas nada podia contra os músculos de Clayton. Uma sereia de um carro da polícia fez-se ouvir à distância. Rosnou, subitamente sóbrio:

— Largue-me, maldito idiota! Vem aí a polícia... Clayton levou-o até ao alto da escada e atirou-o

para baixo. Depois voltou-se para a mulher e ajudou-a a levantar-se.

— Está ferida?... — perguntou.

— Não... só assustada... Ele queria obrigar-me a dizer onde tenho as jóias.

A sereia da polícia fez-se ouvir de novo, muito mais perto. A mulher disse:

— É melhor sair. Joe está furioso e vai mandá-los prender, aos três!

Clayton olhou para uma janela aberta, perto da qual se viam, à luz dos candeeiros da rua, as ramadas de um grande carvalho. Poisou um pé sobre o parapeito e mergulhou na escuridão. A mulher gritou.

De manhã, Clayton encontrou Reece à espera dele no vestíbulo do hotel.

— Foi uma festazita animada, nem?... — perguntou Reece.

— Julguei que você estivesse na cadeia... — respondeu Clayton.

— Nenhuma hipótese. Brouke tem um cartão de um dos grandes da cidade. Escute, dizem-me que você vai trabalhar para Abe Potkin, a fazer o papel de Tarzan.

— Que lhe disse isso?

— Vem na coluna de Louella Parsons, no Examiner.

— Não vou.

— Faz bem. Mas vou dar-lhe uma ideia boa, se está a pensar em trabalhar nos filmes. Prominent Pictures está a contratar para um novo filme de Tarzan e...

— Telefonema para o sr. Clayton... — disse um paquete, aproximando-se.

Clayton entrou na cabina e pegou nos auscultadores.

— Fala Clayton.

— Daqui é a secção de elencos da Prominent Pictures. Pode vir aqui, para uma entrevista?

— Pensarei nisso... — volveu Clayton, antes de desligar.

Quando voltou para junto de Reece, explicou:

— Era a Prominent Pictures. Querem que eu vá lá, para uma entrevista.

— Não perca a oportunidade. Se trabalhar para eles fica lançado.

— Talvez tenha interesse.

— Acha que pode fazer o papel de Tarzan?

— Penso que sim.

— Um papel perigoso. Eu não gostaria de o fazer.

— Acho que vou lá... — disse Clayton, dirigindo-se para a rua.

— Escute, meu velho... — chamou Reece. — Pode emprestar-me dez dólares até sábado?

O director de elencos observou Tarzan.

— Parece-me perfeito... — disse ele. — Vou levá-lo ao sr. Goldeen, que é o director de produção. Tem alguma experiência?

— Como Tarzan?

— Não, refiro-me a experiência de cinema... — volveu o outro, rindo.

— Nenhuma.

— Não faz diferença. Não é preciso ser Barry-more para o papel de Tarzan. Vamos ao escritório do sr. Goldeen.

Ao cabo de uns minutos de espera, uma secretária introduziu-os.

— Olá, Ben... — disse o director, dirigindo-se a Goldeen. — Creio que tenho o homem que procurávamos. Este é o sr. Clayton... O sr. Goldeen...

— Para quê?

— Para Tarzan.

— Hum!

Goldeen observou Clayton, por momentos, e depois fez um gesto com a mão, abanando a cabeça.

— Não é o tipo... — disse.. — Não é nada o tipo... Quando Clayton seguiu o director de elencos, para

a porta, a sombra de um sorriso encurvava-lhe os lábios.

— Eu lhe digo... — disse o director. — Talvez haja outro papel menor, para si; não me esquecerei. Se aparecer alguma coisa, telefono-lhe. Adeus!

Mais tarde, nesse dia, Clayton viu um título a toda a largura da página teatral de um jornal da tarde:

 

         CYRIL WAYNE NO PAPEL DE TARZAN

         O FAMOSO DANÇARINO CONTRATADO

         PELA PROMINENT PICTURES PARA

         O PAPEL PRINCIPAL DA NOVA PRODUÇÃO.

 

Passou uma semana. Clayton preparava-se para deixar a Califórnia e voltar a casa. O telefone tocou, no seu quarto. Era o director de elencos da Promi-nent Pictures.

— Tenho um papel para você, no filme de Tarzan. .. — disse o director. — Esteja no estúdio às sete e meia, amanhã de manhã.

— Está bem... — respondeu Clayton, depois de pensar um momento. — Sete e meia.

Seria uma experiência interessante, para culminar a sua estadia em Hollywood.

— Olá, você!... — berrou o assistente do director. — Como se chama?

— Clayton.

— Ah, é o tipo que faz o papel do caçador branco que Tarzan salva do leão.

Cyril Wayne, vestido com uma tanga curta, o corpo caracterizado de castanho-bronzeado, olhava para Clayton e murmurava ao ouvido do director que também o observava.

— Eh!... — exclamou o director. — Esse tipo vai abafar a cena. Quem foi o idiota que o contratou?

— Você não pode dar-lhe um jeito?

— Com certeza, faz-se apenas um plano e ele nem mostra a cara. Vamos ensaiar a cena. Olá, você, venha cá. Como se chama?

— Clayton.

— Escute, Clayton. Na primeira cena você vem na direcção da «camera», através da selva. Está apavorado e olha constantemente para trás. Está exausto, também, cambaleia como se estivesse quase a cair. Perdeu-se na selva e é seguido por um leão. Metem-se cenas do leão. Na última cena, o leão vem mesmo atrás de você... e está realmente atrás, na cena, mas não tenha medo que ele não lhe faz mal. É domesticado e tranquilo. Você grita e empunha a sua faca. Os joelhos tremem-lhe. Tarzan ouve-o e vem a voar entre as árvores. Eh! Está aí o duplo para saltar entre as árvores no lugar de Cyril?... — tendo verificado que o duplo estava a postos, o realizador continuou: — O leão ataca, e Tarzan salta da árvore, entre você e o bicho. Aí fazemos um grande plano, mas você está de costas para a «camera». Então Tarzan salta sobre o leão e mata-o. Eddie! O domador que faz o duplo de Cyril, nesta cena, tem a caracterização feita? Ontem, nas experiências, o tipo estava que metia medo.

— Tudo «okay», chefe... — respondeu o assistente.

— Todos a postos, então... — bradou o realizador. — Vamos, Clayton. Lembre-se de que vem um leão atrás, e você está apavorado.

Os ensaios correram bem, e as primeiras cenas agradaram ao realizador; então veio a grande cena em que apareciam Wayne, Clayton e o leão. O felino era grande e de perfeita beleza. Clayton admirou-o. O domador avisou todos de que, se alguma coisa corresse mal, deviam ficar completamente imóveis, e em nenhuma circunstância deviam tocar Leo.

As «cameras» rodavam; Clayton cambaleou, quase caiu. Olhou para trás, assustado, e soltou um brado de pavor. Cyril Wayne saltou da ramada de uma árvore baixa, no momento em que o leão surgia da selva, atrás de Clayton. E então alguma coisa falhou.

O leão soltou um rugido e agachou-se. Wayne, pressentindo o perigo, perdeu a cabeça e correu, ultrapassando Clayton. O leão atacou e teria passado por Clayton que se mantivera imóvel, lançando-se em perseguição do fugitivo Wayne. Mas alguma coisa aconteceu.

Clayton, compreendendo muito mais claramente do que os outros o perigo que ameaçava o actor, saltou sobre o dorso da fera. Um poderoso braço rodeou o pescoço do leão. O felino voltou-se, tentando ferir o homem agarrado a ele, mas as garras rasgaram apenas o ar. Clayton passou as pernas sob o ventre da fera que logo se atirou para o chão, num frenesi de raiva.

Aos rugidos do leão juntavam-se rugidos não menos ferozes, do homem. A fera ergueu-se sobre as patas traseiras. A faca, que haviam dado a Clayton, refulgiu. Duas, três vezes, cravou-se no peito do leão... e o animal caiu, estremeceu convulsivamente e ficou imóvel.

Clayton levantou-se; poisou um pé sobre a carcaça do inimigo abatido e, erguendo a cabeça, abriu a boca. Mas conteve o brado de vitória e sorriu.

Um homem excitado correu para o «plateau». Era Benny Goldeen, o director de produção.

— Deus!... — exclamou. — Você matou o nosso melhor leão! Valia dez mil dólares... pelo menos! Está despedido!

 

O recepcionista do Roosevelt olhou para o hóspede, perguntando delicadamente:

— Vai já deixar-nos, sr. Clayton? Espero que tenha gostado da sua estadia em Hollywood.

— Gostei muito... — respondeu Clayton — ... mas estou a pensar se poderá dar-me uma informação...

— Decerto, sr. Clayton. Qual é?

- Qual é o caminho mais rápido para África?

 

                                                                                Edgar Rice Burroughs  

 

                      

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