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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TARZAN NO CENTRO DA TERRA / Edgar Rice Burroughs
TARZAN NO CENTRO DA TERRA / Edgar Rice Burroughs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TARZAN NO CENTRO DA TERRA

 

Pellucidar, como é do conhecimento de todos os estudantes, significa, antes de mais nada, um mundo dentro do outro, localizado, como de fato está, no interior da superfície externa da esfera oca que é o nosso planeta, a Terra.

E esse mundo foi descoberto ocasionalmente por David Innes e Abner Perry, quando empreenderam uma viagem experimental a bordo de uma aeronave, idealizada por Perry, com o objetivo de descobrir novas jazidas de antracito (tipo de carvão fóssil). Devido à inabilidade dos exploradores em desviar o bico da nave, depois de começarem a descida em direção à crosta terrestre, percorreram oitocentos quilômetros na vertical, até que, no terceiro dia de viagem, quando Perry já se encontrava inconsciente pela falta de oxigênio, devido ao consumo de toda a reserva que levava, e quando David Innes já começava, também, a perder a lucidez, chegaram à face interna da Terra e a cabina de comando foi imediatamente invadida pelo ar fresco que trouxe pronta recuperação aos tripulantes.

Nos anos que se seguiram, estranhas e inconcebíveis aventuras sobrevieram aos dois exploradores. Perry nunca retornou à crosta externa do nosso planeta, e David voltou apenas uma vez, utilizando-se da mesma aeronave, numa viagem difícil e perigosa, a fim de trazer ao império que fundara, no mundo interior, meios de progresso e desenvolvimento de seus primitivos súditos, criaturas humanas que ainda estavam em plena Idade da Pedra, em relação ao adiantamento do mundo civilizado do século XX.

No entanto, devido às constantes lutas contra as feras e os répteis pré-históricos, bem como contra certas tribos de homens ainda mais primitivos do que os acima mencionados, o avanço do império de Pellucidar, no sentido da civilização, foi muito pequeno. E considerando a vastidão da área que compreendia o mundo interno, mais os milhares de anos que separavam seus habitantes dos de nosso mundo civilizado, David Innes e Abner Perry, por mais que fizessem, no sentido de fazer o povo progredir e se adiantar, representavam uma gota d’água num oceano.

Se atentarmos para o fato de que as áreas de terra e as áreas de água, na superfície de Pellucidar, estão situadas em oposição às mesmas áreas do mundo exterior em que vivemos, poderemos ter uma vaga idéia da extensão desse mundo dentro do nosso.

A área de terra da crosta externa do nosso planeta compreende cinqüenta e três milhões de milhas quadradas...

(137.270.000 km2), ou seja, um quarto da área total da superfície da Terra. No entanto, em Pellucidar, três quartos de sua superfície são constituídos de terras, daí as florestas, as selvas, as montanhas e as planícies se estenderam interminavelmente por mais de 124.110.000 milhas quadradas.....

(321.444.900 km2), sendo que os oceanos ocupam apenas 41.370.000 milhas quadradas (107.148.300 km2).

Se considerarmos apenas as áreas de terra, encontraremos uma estranha anomalia de um mundo maior dentro de um mundo menor. Mas Pellucidar é um mundo à parte, um mundo de exceção, uma espécie de desvio do que nós, da face exterior da Terra, acabamos por aceitar como inalteráveis leis da Natureza.

Exatamente no centro daquele mundo interno, ergue-se o sol de Pellucidar, uma pequena esfera comparada com o nosso sol, mas o suficiente para iluminar Pellucidar e infiltrar seus raios através das frondosas e milenares árvores que povoam suas selvas e suas florestas. E aquele sol eternamente a pino não permite que haja noite em Pellucidar, e sim um meio-dia infindável.

Não havendo estrelas e nenhum movimento aparente do sol, Pellucidar não tem bússola. Não tem horizonte, uma vez que a sua superfície é em curva para cima, em todas as direções, esteja onde estiver o observador. Assim sendo, acima da linha dos olhos, as planícies, ou os mares, ou as cordilheiras de montanhas são em ascensão, desaparecendo na distância. E num mundo onde não existe movimento de sol, onde não existem estrelas nem lua, o tempo também não existe, dentro dos moldes do mundo civilizado da crosta externa. E num mundo onde o tempo não conta, não há estes constantes apelos e lembretes da face exterior do nosso planeta: “Tempo é dinheiro!” — “O Tempo é a alma do mundo!” — “O Tempo é a essência dos contratos!” — etc.

No passado, por três vezes, nós, do mundo civilizado, recebemos comunicações de Pellucidar. Sabemos que o primeiro presente de civilização foi dado aos pellucidarianos por Abner Perry, sob a forma da pólvora. Depois foram as espingardas de repetição, pequenos navios de guerra, sobre os quais eram montados canhões de pequeno calibre, e finalmente soubemos que ele chegara a montar um rádio.

Sendo Perry mais intuitivo do que propriamente um técnico, não nos surpreendeu o fato de que seu rádio não pudesse ser sintonizado em qualquer onda conhecida ou em ondas longas do mundo exterior, e ficou para Jason Gridley de Tarzana o privilégio de captar a primeira mensagem de Pellucidar, através da Onda Gridley, uma descoberta sua.

E as últimas palavras de Abner Perry, antes que suas mensagens deixassem de ser captadas, foram em relação a David Innes, primeiro Imperador de Pellucidar, que se encontrava preso numa masmorra, nas terras dos Korsars, muito distante, por mar ou por terra, de sua amada terra de Sari, situada sobre imenso platô, na região próxima ao oceano de Lural Az.

 

Tarzan permanecia imóvel, farejando o ar, atento a todos os ruídos.

Ninguém seria capaz de ouvir ou de interpretar esses ruídos das selvas como Tarzan. Eram quase imperceptíveis aos seus próprios ouvidos e pareciam vir de muito longe.

A princípio, não distinguia de onde vinham. Mas sabia que era um grupo de seres humanos que se aproximava. Fosse o rinoceronte Buto, o elefante Tantor ou o leão Numa, a reação de Tarzan não passaria de um simples olhar desinteressado. Mas quando se tratava da aproximação de um grupo de homens, o Rei das Selvas punha-se sempre de sobreaviso, pois, a seu ver, as criaturas humanas, dentre todos os animais, provocavam invariavelmente desavenças, problemas e desordens onde quer que se instalem.

Criado entre macacos, sem conviver com seres de sua espécie, desenvolvera-se em Tarzan uma espécie de sexto sentido, em relação ao gênero humano, sendo capaz de pressentir a sua aproximação a qualquer distância, como acontece aos animais irracionais. E sua atitude era sempre de procurar descobrir e averiguar os motivos que levavam o homem a invadir seus domínios, as selvas.

De repente, seus ouvidos atilados já podiam determinar de que direção partiam os sons de vozes e passos de gente e imediatamente o homem-macaco começou a andar, silencioso e cauteloso, indo ao encontro da expedição.

Já distinguia claramente o ruído de pés humanos descalços, andando sobre o mato e começava a ouvir as canções habitualmente entoadas pelos nativos, em geral contratados pelos homens brancos como carregadores. Apurando seu olfato, sentiu distintamente o cheiro de negros e de algum branco entre eles, muito antes de divisar ao longe a fila de seres humanos que se embrenhava pela floresta.

Escondido em meio à vegetação exuberante da selva, observava atentamente o chefe da expedição, que vinha à frente, e, fixando nele seu penetrante olhar, respirou, aliviado, pois sentiu tratar-se de uma pessoa de bom caráter e bem intencionada. Essa percepção extra-sensorial de conhecer o íntimo dos homens, antes mesmo de qualquer contato pessoal com eles, Tarzan a possuía em comum com os animais selvagens e os homens primitivos.

Sempre atento e cauteloso, o homem-macaco recomeçou a caminhar, até colocar-se exatamente no meio do caminho por onde deveria passar a expedição.

E quando o homem branco avistou Tarzan, parou subitamente, acontecendo o mesmo com os negros carregadores, que, por não terem sido recrutados naquela região, não conheciam o homem-macaco. Mostravam-se muito excitados, falando c gesticulando todos ao mesmo tempo.

— Eu sou Tarzan — disse o Rei das Selvas, dirigindo-se ao homem branco. — O que vocês vieram fazer aqui?

— Então você é Lord Greystoke? — perguntou-lhe o chefe da expedição, com um sorriso que mal disfarçava sua emoção.

— Nas selvas — respondeu Tarzan — sou apenas Tarzan.

— Estou de sorte — continuou o homem branco — pois vim da Califórnia do Sul até aqui especialmente para encontrá-lo.

— E você quem é? — perguntou o filho adotivo de Kala.

— E o que você quer de mim?

— Meu nome é Jason Gridley — respondeu-lhe o estranho — e tenho uma longa história para contar. Espero que você disponha de tempo e de paciência para ouvir-me, acompanhando-nos até à próxima parada.

— Nas selvas há tempo para tudo — respondeu Tarzan.

— Onde vocês pretendem acampar?

— Bem — disse o homem branco — contratei um guia, na última cidade por onde passamos, mas ele nos abandonou há uma hora atrás. Os negros não conhecem esta região e eu não tenho a menor idéia sobre um local apropriado para acamparmos.

— Conheço um lugar muito bom — informou o Rei das Selvas — se é que estão dispostos a caminhar mais uns 800 metros.

— De acordo — respondeu-lhe o homem branco.

E a expedição recomeçou a andar, ao som das canções entoadas pelos carregadores, todos muito contentes com uma parada tão próxima.

Depois de instalado o acampamento no local indicado por Tarzan, quando ele e Jason Gridley saboreavam um café, voltaram a conversar.

— Afinal, qual é o motivo dessa sua longa viagem da Califórnia do Sul ao coração da África? — quis saber o Rei das Selvas.

Gridley sorriu.

— Agora que me encontro na sua presença — disse ele — cara a cara com o grande Tarzan, sinto-me um pouco constrangido, receoso de que você me tome por maluco, ou coisa parecida. Mas o fato é que estou absolutamente convencido da veracidade do que vou contar e confesso que, apesar de já ter gasto uma soma considerável para empreender esta viagem até aqui, estaria disposto a gastar muito mais, em tempo e em dinheiro, para levar até o fim o que tenho em mente e obter a sua participação direta na execução de meus planos. E como não posso dispor apenas de meus recursos, numa aventura dessa importância, vim recorrer a você, Tarzan, como a única pessoa no mundo capaz de colaborar e orientar, em tudo, a expedição que desejo levar a cabo.

— Bem — disse Tarzan — se você empregou tantos esforços e tanto dinheiro para levar adiante os seus planos, imagino que o lucro deva ser fabuloso!

— Muito ao contrário — respondeu Gridley. — Pelo que posso deduzir, até o presente momento, não haverá o menor lucro material para quem quer que participe da expedição.

— Falando assim — sorriu Tarzan — você nem parece um americano.

— Nem todos os americanos são fanáticos por dinheiro — respondeu Gridley, sorrindo também.

— Então explique-se melhor — insistiu o homem-macaco.

— Quais os verdadeiros motivos que o levam a tentar uma aventura tão misteriosa?

Jason Gridley fez uma pequena pausa.

— Você, por acaso, já ouviu falar na teoria de ser a terra uma esfera ôca — continuou Gridley — contendo, em seu interior, um outro mundo habitável?

— Essa teoria já foi definitivamente abandonada pelos cientistas — respondeu Tarzan, com segurança.

— Mas — insistiu Gridley — terá sido comprovadamente negada?

— Pelos cientistas, sim — respondeu Tarzan.

— E por mim também — falou Jason Gridley — até o dia em que consegui captar uma mensagem transmitida diretamente desse mundo dentro da terra, coisa que se deu há muito pouco tempo.

— É incrível! — exclamou Tarzan.

— É incrível, mas é verdade — respondeu-lhe Gridley.

— Saiba que recebi uma comunicação pelo rádio, procedente de Pellucidar, o mundo localizado na face interna da terra, através de Abner Perry. E trouxe comigo uma cópia dessa mensagem, acompanhada de uma carta que comprova sua autenticidade, assinada por uma pessoa que estava a meu lado, quando captei o comunicado, cujo nome não lhe será estranho. Peço-lhe o favor de examiná-la — disse Gridley, passando-lhe o envelope.

Depois, retirando de uma pasta um volumoso manuscrito, protegido por uma capa de cartolina, recomeçou a falar:

— Não julgo necessário você perder tempo em ler tudo isso ou em ouvir-me ler todo este longo relato sobre Pellucidar. Há uma infinidade de detalhes perfeitamente dispensáveis.

— Como quiser — respondeu Tarzan. — De qualquer maneira, estou a seu inteiro dispor.

Jason Gridley folheou o manuscrito, lendo, em voz alta, alguns trechos de maior importância.

— Tudo isso — disse ele — me convenceu plenamente da existência de Pellucidar, um mundo dentro de outro mundo, mas foi a desesperadora situação em que se encontra David Innes que me fez procurá-lo para que me acompanhasse numa expedição às entranhas da terra, numa tentativa de libertar Innes do cativeiro que lhe foi imposto pelos Korsars.

— E de que maneira conseguiremos chegar até lá? — indagou Tarzan. — Acha realmente possível a existência de uma entrada para Pellucidar, em cada pólo da Terra, como descreveu David Innes em sua mensagem?

— De longe — respondeu o americano — não se pode ter certeza de coisa alguma. Depois de receber esta comunicação que tenho em mãos, comecei a pesquisar e a investigar minuciosamente o assunto e apurei que é muito antiga essa teoria de haver uma entrada para o centro da terra, em seus pólos, dando acesso a um mundo habitável como o nosso. Há diversas provas que vêm confirmá-la. Encontrei um livro, que data de 1830, que explica e defende esta teoria, com riqueza de detalhes, bem como outras publicações mais recentes. E só assim pude compreender uma série de fenômenos que até hoje a ciência não explica.

— Que fenômenos são esses? — quis saber Tarzan.

— A questão dos ventos e das correntes marítimas quentes — explicou Gridley — originárias do Pólo Norte, fenômenos esses registrados pela quase totalidade dos exploradores do Ártico. E isto para não mencionar o aparecimento freqüente de verdejantes galhos de árvores, flutuando no mar em direção ao sul, vindos do extremo norte da terra, muito acima da latitude onde qualquer dessas árvores pudesse existir, sobre a crosta externa do universo. Há também o fenômeno de uma certa luminosidade inexplicável, que, às vezes, surge no Pólo Norte, atribuída, por David Innes, a um outro sol central e interno. Essa luminosidade já foi vista inúmeras vezes, através da neblina e do acúmulo de nuvens que possivelmente fica localizada sobre a entrada para Pellucidar. Existe também uma espessa camada de pólen que freqüentemente recobre o gelo e a neve de certas regiões polares. Esse pólen também só poderia ser originário de um mundo interno. E para reforçar essa teoria de Innes, há ainda a categórica afirmação das mais longínquas tribos de esquimós, habitantes do Pólo Norte, de que seus antepassados são originários de um país extinto, que teria existido no ponto mais setentrional da terra.

— Mas os exploradores Amundson e Ellsworth — disse Tarzan — que chefiaram a famosa expedição Norge, negaram categoricamente a existência de uma abertura na calota polar. Além disso, já tem havido inúmeros vôos sobre os pólos, sem que os exploradores jamais acusassem a existência dessa abertura a que se refere David Innes.

— A abertura seria tão extensa — continuou Gridley — que é muito possível que os exploradores, por mar e pelo ar, já tenham transposto seus limites, sem se darem conta disto. Ou então, apenas já se tenham aproximado de suas bordas, devido à sua localização inacessível a qualquer tipo de nave, marítima ou aérea. Você deve saber que os aparelhos e instrumentos de navegação, colocados em navios e em aviões que se destinam a explorações polares, sofrem inexplicáveis alterações, quando os mesmos tentam alcançar o ponto mais central da terra e esse fenômeno jamais foi decifrado ou explicado pelos cientistas.

— Então você está realmente convencido da existência de Pellucidar? — quis saber Tarzan. — Acredita que haja mesmo uma entrada para este mundo no interior do nosso mundo?

— Estou convencido da existência de Pellucidar — respondeu Gridley — mas não da entrada para este outro mundo. No entanto, acho que dispomos de provas suficientes que justifiquem a organização de uma expedição, justamente para verificar a existência dessa abertura a que se refere David Innes com tanta segurança.

— E do momento que exista uma entrada para Pellucidar — disse Tarzan — qual é o meio de transporte que você sugere para esse tipo de expedição?

— Bem — respondeu Jason Gridley — o meio de transporte ideal seria uma aeronave, no gênero dos modernos dirigíveis, movida a hélio, oferecendo, assim, muito maior segurança. Estudei demoradamente o assunto e cheguei à conclusão de que, se existir uma entrada para Pellucidar, no extremo norte da Terra, nossa nave não terá que enfrentar tantos obstáculos como os exploradores da expedição Norge, ao tentarem atravessar o Pólo Norte, em direção ao Alasca. A referida expedição deu uma volta completamente inútil, contornando a possível abertura para o centro da terra, percorrendo uma distância muito maior do que o necessário para atingirmos um ponto seguro para a nossa aterragem. Esse ponto deve estar situado um pouco mais abaixo do oceano gelado que David Innes descobriu, ao norte do país dos Korsars, antes de ter sido feito prisioneiro daquele povo. Nossa maior dificuldade será o retorno à crosta externa da terra, devido à grande quantidade de hélio, necessária às manobras da nave. Mas, o risco de vida seria praticamente o mesmo enfrentado pelos outros exploradores dos pólos. Se nos fosse possível construir uma aeronave de um material suficientemente resistente às pressões atmosféricas e suficientemente leve, poderíamos dispensar o hélio e o hidrogênio; o primeiro, por ser muito dispendioso e raro e o segundo pela sua extrema periculosidade. Se a nossa nave fosse sustentada por câmaras a vácuo, conseguiríamos uma segurança absoluta e uma capacidade máxima de flutuação.

— Mas — admitiu Tarzan — isto não me parece impossível.

Gridley sorriu, desesperançado.

— Infelizmente esse material ideal não existe — disse ele. — Nenhuma nave, de um material suficientemente resistente às pressões atmosféricas e sustentada por câmaras a' vácuo, teria o peso ideal para se elevar no ar.

— Tenho minhas dúvidas — arriscou Tarzan, enigmático.

— O que você quer dizer? — indagou Gridley.

— Estou-me lembrando de uma conversa muito interessante que tive há pouco tempo com um amigo, Erich von Harben — respondeu Tarzan. — Ele é cientista e explorador, e quando estivemos juntos pela última vez, ele estava chegando de uma segunda expedição às montanhas de Wiramwazi onde descobriu uma tribo, junto a um grande lago, que se utilizava de um material leve como a cortiça e resistente como aço na construção de suas embarcações. Ele até conseguiu trazer umas amostras desse material, com o qual começava a realizar certas experiências, no pequeno laboratório de que dispunha, na missão dirigida por seu pai.

— E onde fica esta missão? — indagou Gridley.

— Fica em Urambi — respondeu Tarzan — há umas quatro marchas daqui.

Jason Gridley e Tarzan passaram quase toda a noite em claro, planejando e discutindo cada detalhe da ousada expedição a Pellucidar, e no dia seguinte seguiram viagem para Urambi, a fim de procurar Von Harben.

E depois de quatro dias de caminhada, chegaram à missão onde foram recebidos pelo próprio Dr. Von Harben, por seu filho, Erich, e pela bela Favonia de Castrum Maré, esposa desse último.

Seria exaustiva e inútil uma descrição detalhada dos preparativos para a expedição a Pellucidar. A narrativa da procura e da descoberta da mina do metal utilizado pela tribo das montanhas de Wiramwasi, metal que tomou o nome de habernite, em homenagem a Von Harben, daria assunto para um outro livro.

Enquanto Tarzan e Erich von Harben localizavam e transportavam o material para a construção da nave, Jason Gridley partira para Friedrichshafen, a fim de contratar os serviços da firma que executaria a aeronave, discutindo e planejando com os engenheiros da mesma todos os detalhes da construção. Levara consigo algumas amostras do metal, leve como a cortiça e resistente como aço, assistindo, pessoalmente, aos inúmeros testes e experiências, orientando os projetos e as plantas.

E quando chegou o carregamento do material, tudo já estava pronto para o início imediato da construção da nave, dentro do mais rigoroso sigilo.

Seis meses depois estava pronta a chamada 0-220. E Gridley fazia constar que se tratava apenas de um novo tipo de aeroplano, para ser usado como qualquer outro meio de transporte, semelhante às naves utilizadas pelas companhias comerciais de aviação da Europa.

O gigantesco arcabouço metálico, em feitio de charuto, media 300 metros de comprimento, por 45 de diâmetro. Seu interior era dividido em seis grandes compartimentos estanques, três dos quais ocupavam todo o comprimento da 0-220, acima de sua linha média, e os outros três abaixo da mesma. Entre a parte superior e a parte inferior desses compartimentos estanques, isto é, câmaras a vácuo, havia longos corredores, indo de um extremo ao outro da nave, onde haviam sido instalados os motores, os aparelhos, as bombas, além de reservatórios de gasolina e de óleo.

O motor foi colocado no interior da aeronave, suprimindo, assim, qualquer risco de incêndio, no momento da decolagem, perigo que ameaça todas as naves movidas a hidrogênio. Aliás, a 0-220 fora construída inteiramente à prova de fogo, toda em habernite, à exceção dos acessórios e dos móveis de certas cabinas e também de alguns mancais de motores, geradores e hélices.

Havia dois corredores transversais, interligando os compartimentos onde estavam instalados os motores e os depósitos de combustível. E duas vigas cilíndricas dividiam os corredores transversais em duas partes, no sentido longitudinal.

A parte superior da viga da frente terminava numa pequena cabina de observação e de artilharia, situada bem no topo da nave, com uma comunicação para a pequena torre, colocada na cauda da nave, onde eventualmente poderia ser colocada uma metralhadora.

A cabina de comando era parte integrante do imenso arcabouço metálico. E devido à extrema resistência do material empregado na construção da nave, o trem de aterrissagem, composto de seis grandes e pesadas rodas, protegidas por grossos pneumáticos, havia sido colocado justamente sob a cabina de comando, eliminando compartimentos externos por baixo da 0-220.

No compartimento de trás, havia sido colocado um pequeno monoplano que poderia ser arriado e lançado ao mar em pleno vôo.

A nave contava com oito possantes motores, instalados aos pares, sendo que as hélices haviam sido colocadas de tal maneira que o deslocamento de ar, provocado pelas dianteiras, não viria a interferir na movimentação das traseiras.

E aqueles oito motores, de 5600 cavalos-vapor, poderiam imprimir à 0-220 uma velocidade de 170 quilômetros por hora.

O eixo atravessava a aeronave de ponta a ponta. Consistia numa viga tubular de habernite, de onde partiam vigas menores, como se fossem os raios de uma roda, tendo suas extremidades fixadas nas longarinas cilíndricas, que, por sua vez, haviam sido soldadas às chapas de metal que compunham a parte externa da nave.

Devido à extrema leveza do material empregado, o peso total da 0-220 era de setenta e cinco toneladas, enquanto que a capacidade de sustentação das câmaras a vácuo era de duzentos e vinte e cinco toneladas.

Para facilitar as manobras e a aterragem, cada uma das câmaras a vácuo era dotada de um equipamento composto de oito válvulas de ar, acionadas diretamente da cabina de comando, enquanto seis bombas, três a estibordo e três a bombordo, poderiam retirar o ar de dentro das câmaras em pouquíssimo tempo, caso fosse necessário refazer o vácuo.

Os lemes especiais e os elevadores poderiam, também, ser acionados diretamente da cabina de comando e de um outro compartimento auxiliar, situado na parte posterior da nave, na eventualidade de uma pane total na aparelhagem da cabina de comando.

Havia diversas divisões na parte central da 0-220, separando as cabinas dos oficiais das cabinas da tripulação, bem como dos compartimentos onde estavam os depósitos suplementares de gasolina e de óleo. Os depósitos suplementares de água, graças a um dispositivo especial, poderiam ser esvaziados instantaneamente, em caso de emergência, enquanto os depósitos de combustível poderiam deslizar para o fundo da nave e serem atirados fora, se houvesse uma necessidade urgente de diminuir o peso da carga de bordo.

Eis, portanto, a descrição geral da 0-220, a grande e resistente aeronave a bordo da qual Jason Gridley e Tarzan pretendiam descobrir uma entrada para Pellucidar, o mundo dentro de um outro mundo, a fim de libertar David Innes, feito Imperador de Pellucidar, do cativeiro das Korsars.

PELLUCIDAR

Foi na madrugada de um dia de junho que a 0-220 começou a se deslocar lentamente de seu hangar, movida por seus próprios motores. O teste de vôo seria feito sob idênticas condições da longa viagem a ser empreendida por Jason Gridley e Tarzan, com a mesma carga e o mesmo equipamento. As três câmaras inferiores ainda estavam cheias de ar e a nave tinha um lastro excedente de água para manter o equilíbrio. Estava-se movendo com segurança e com extrema facilidade de manobras.

Quando, finalmente, saiu de dentro do hangar para o ar livre, as bombas começaram a funcionar no sentido de expelir o ar das câmaras inferiores, ao mesmo tempo que o excesso de água era lentamente descarregado. A essa altura a aeronave já se erguia do chão.

Todo o pessoal de bordo era exatamente o mesmo que havia sido selecionado para a expedição ao mundo subterrâneo: Zuppner, o capitão de bordo, era o responsável pela construção da nave e havia tomado parte no projeto. Von Horst e Dorf eram os dois pilotos e tinham sido oficiais das Forças Aéreas Imperiais, assim como o tenente Hines, que era o navegador. Além deles, havia doze engenheiros, oito mecânicos, um cozinheiro negro e dois camareiros filipinos a bordo.

Tarzan era o comandante da expedição; Jason Gridley seu auxiliar imediato; Muviro e mais nove guerreiros waziris compunham a turma de ataque e artilharia.

Enquanto a nave sobrevoava a cidade, Zuppner, da cabina de comando, não conseguia conter seu entusiasmo:

— Não pode haver nada igual! — exclamava ele. — Tudo funciona às mil maravilhas!

— Isso, para mim, não é surpresa — disse-lhe Hines. — Com o dobro da tripulação necessária, não é vantagem.

— Lá vem você com essa piada outra vez — disse Tarzan, rindo. — Mas não pense que a minha insistência numa tripulação numerosa fosse falta de confiança na aeronave. Faremos uma viagem a um mundo totalmente desconhecido e não podemos prever quanto tempo levaremos nessa expedição. Se conseguirmos chegar ao nosso destino, por certo haverá lutas c combates. E como todos vocês, voluntários, já foram suficientemente informados, assim como temos o dobro de pessoal na viagem de ida, poderemos ter a metade, na viagem de volta.

— Você tem razão, Tarzan — respondeu Hines. — Mas com a tranqüilidade desse vôo e a linda paisagem diante de nossos olhos, perigos e mortes me parecem tão distantes...

— Tomara que estejam — disse Tarzan — e espero que possamos voltar com o mesmo número de homens com que partirmos. Mas é preciso prever tudo e por isso mesmo Gridley e eu já andamos estudando um pouco de navegação aérea e gostaríamos que você nos desse umas aulas práticas, antes de chegarmos ao nosso destino.

— Você já estava na mira deles, Hines — pilheriou Zuppner.

— Estou pronto a lhes ensinar tudo que sei — disse Hines, dirigindo-se a Tarzan e a Gridley. — Mas aposto um jantar no melhor restaurante de Berlim que estarei a bordo dessa nave, como navegador, na viagem de volta.

— Essa aposta só é boa para quem ganhar — disse Gridley.

— Mas voltando ao assunto de treinamentos — continuou Tarzan — gostaria de que os meus guerreiros waziris ficassem como ajudantes dos mecânicos e dos engenheiros. São homens altamente inteligentes, aprendem qualquer coisa com muita facilidade e, se acontecer alguma calamidade conosco, teremos muito pouca gente que entenda de motores e de outras máquinas.

— Você tem razão, Tarzan — respondeu Zuppner. — Vou tomar as providências que você sugeriu.

Finalmente a majestosa aeronave tomou o rumo do norte. A cidade de Ravensburg foi ficando para trás e, meia hora depois, a fita cinzenta do rio Danúbio se desenrolava diante deles.

Quanto mais tempo passava, maior o entusiasmo de Zuppner.

— Tinha plena confiança no êxito do teste de vôo — dizia ele. — Mas confesso que não contava com tamanha perfeição da aeronave. Isso representa um marco na história da aviação e estou certo de que, muito antes de completarmos as quatrocentas milhas até Hamburgo, estaremos todos convencidos do funcionamento sem falhas da 0-220.

— A rota do teste de vôo seria ir de Friedrichshafen a Hamburgo e voltar — disse Tarzan — mas por que voltarmos de Hamburgo?

Todos se viraram para o Rei das Selvas, entre surpresos e emocionados.

— Isso mesmo — ajuntou Gridley — por que voltar?

— Estamos perfeitamente equipados e abastecidos para prosseguir viagem — disse Zuppner.

— Então por que desperdiçar oitocentas milhas, voltando até Friedrichshafen? — indagou Hines.

— Se todos estiverem de acordo em continuar em direção ao norte, continuaremos — disse Tarzan.

E assim, o vôo experimental da 0-220 transformou-se no início da longa viagem ao centro da terra, com o sigilo necessário assegurado. O plano era seguir a este do meridiano de Greenwich, na direção norte, até o Pólo Norte. Mas, para não levantar suspeitas, houve um pequeno desvio na rota pré-estabelecida. A 0-220 passou a oeste de Hamburgo ao largo do Mar do Norte, desviando-se para o oeste de Spitsbergen, ao largo das infindáveis geleiras polares.

Conservando uma velocidade média de 120 quilômetros por hora, a 0-220 chegou às proximidades do Pólo Norte precisamente à meia-noite do segundo dia de viagem.

E quando Hines anunciou que, de acordo com seus cálculos, aproximavam-se do Pólo, houve grande emoção a bordo.

Por sugestão de Tarzan, a nave circundou lentamente a região, há uns 200 metros de altitude, sobrevoando a espessa camada de gelo, recoberta de neve.

— Seria muito fácil reconhecer a região — sorriu Zuppner

— se avistássemos as bandeiras italianas.

No entanto, se realmente ainda houvesse vestígios da expedição Norge, eles estariam certamente soterrados pelas constantes nevascas.

Depois de descrever um pequeno círculo, a 0-220 retomou sua rota, em direção ao meridiano 170, a este, na direção sul.

E do momento que a nave retomou o seu rumo, Jason Gridley não saiu mais de junto de Hines e de Zuppner, ora observando atentamente os instrumentos de bordo, ora se detendo na paisagem branca e gelada que parecia interminável.

Gridley acreditava que a abertura polar para o centro da terra estivesse localizada num ponto a 85 de latitude norte e 170 de longitude este. E de todos os aparelhos que tinha diante de si, isto é, velocímetros, aneróides, instrumentos que determinavam o grau de inclinação da nave, bem como suas oscilações, termômetros, relógio, o que mais lhe interessava era a bússola, pois Gridley sustentava a teoria de que o sucesso da expedição dependia dos movimentos daqueles ponteiros.

E durante cinco horas a nave se deslocava na direção sul, enquanto a bússola acusava um desvio para o oeste.

— Procure manter a 0-220 na rota — dizia ele a Zuppner.

— Tudo me faz crer que nos estamos aproximando das bordas da grande abertura polar, apesar de a bússola acusar um desvio a oeste. E garanto que, quanto mais avançarmos em direção ao ponto mais setentrional da abertura, maior erro constataremos na bússola, cujo ponteiro poderá chegar a descrever um círculo completo. Mas, por outro lado, creio que nos será muito difícil atingir este ponto, devido à grande altitude que nos seria exigida. No momento, devemos estar na margem ocidental da entrada para o centro da terra e se nossa inclinação for sempre a estibordo, descreveremos lentamente uma espiral em direção a Pellucidar. Acho, também, que a bússola nos será totalmente inútil, nos próximos 600 a 700 quilômetros.

— Se as condições meteorológicas se conservassem como estão — falou Zuppner — poderíamos dispensar a bússola. Mas se começar a ventar, por exemplo, já não confio muito na minha própria habilidade para manter a 0-220 em sua rota certa, sem auxílio do aparelho.

— Faça o melhor que puder — disse Gridley — e quando estiver em dúvida da rota, desvie a nave a estibordo.

Era tão grande a tensão nervosa a bordo da 0-220 que, durante muitas horas, não se ouvia mais do que as palavras indispensáveis, entre a tripulação.

— Olhem! — exclamou Hines, em determinado momento. — Lá está uma fenda na crosta de gelo, deixando ver um pouco de água!

— Isso já era de se esperar — disse Zuppner. — Aliás, nunca escondi meu cepticismo e minhas dúvidas em relação à teoria de Gridley, desde que ele me falou nisso pela primeira vez.

Gridley sorriu.

— No fim de contas — disse ele — acho que sou a única pessoa a bordo da 0-220 a acreditar na teoria da existência de uma abertura polar!

Ninguém protestou e Gridley continuou a falar:

— Mas não digam que a teoria é minha. Talvez eu mesmo chegue à conclusão de que ela é falsa. No entanto, se vocês estiveram observando o sol, nessas últimas horas, terão que concordar comigo num ponto: mesmo que não exista a abertura polar para o centro da terra, deve haver ao menos uma grande depressão nessa parte da crosta terrestre e que já estamos voando sobre essa depressão há algum tempo, pois o sol da meia-noite está muito mais baixo do que deveria estar. E se continuarmos nessa mesma trajetória, quanto mais avançarmos, mais baixo estará o sol até que desapareça totalmente. Então poderemos constatar a claridade do eterno sol do meio-dia de Pellucidar.

Gridley foi interrompido pelo telefone interno. Hines pôs o fone no ouvido e ao fim de alguns segundos, respondia:

— Está muito bem. Obrigado.

Desligou o aparelho e, voltando-se para os companheiros, explicou:

— Era o Capitão Von Horst, diretamente da cabina de observação, para comunicar que acaba de avistar uma porção de terra firme.

— Terra! — exclamou Zuppner. — A única área de terra que consta de nosso mapa, na direção em que viajamos, é a Sibéria.

— A Sibéria está situada há uns 1600 quilômetros ao sul da latitude 85 — respondeu Gridley — e nós jamais poderíamos estar há mais de 500 quilômetros ao sul da latitude 85.

— Então só nos restam duas alternativas — disse Hines. — Ou descobrimos um novo continente polar, ou estamos realmente chegando perto dos limites de Pellucidar.

— Estamo-nos aproximando de Pellucidar — afirmou. Gridley. — Observe o termômetro.

— Com mil demônios! — exclamou Zuppner, transtornado. — O termômetro está marcando apenas vinte graus Fahrenheit abaixo de zero!

— Agora já podemos ver distintamente a terra — disse Tarzan. — Parece-me um lugar deserto e inóspito, com pequenos acúmulos de neve num ponto ou outro.

— Essa região corresponde exatamente à descrita por Innes, ao norte de Korsar — disse Gridley.

Em poucos minutos já corria a notícia, entre os oficiais e a tripulação, de que o continente avistado poderia ser Pellucidar. E tomados de grande emoção, sem prejuízo de suas tarefas, cada um procurava constatar com os próprios olhos, através das vigias, a existência de Pellucidar.

Sem perder sua estabilidade, a 0-220 continuou seu trajeto até que o sol da meia-noite desaparecesse por completo no horizonte que ia ficando para trás, surgindo a claridade do sol de Pellucidar.

Enquanto isso, a natureza da paisagem que sobrevoavam modificava-se a cada instante. O terreno árido e deserto foi substituído por uma região montanhosa totalmente arborizada, e agora já podiam divisar uma enorme floresta, abrangendo uma área tão grande que se perdia nas distâncias. Tratava-se, realmente, de Pellucidar, o mundo sonhado por Jason Gridley.

Além da floresta, desenrolava-se uma vasta planície, pontilhada de grupos de arbustos, cortada por riachos que desaguavam num grande rio, do lado oposto.

Grandes manadas de animais selvagens eram vistas pastando tranqüilamente nos verdejantes prados e, de vez em quando, viam-se sinais da passagem do elemento humano pela região.

.— Para mim, isto é um verdadeiro paraíso! — exclamou Tarzan. — Vamos aterrar aqui mesmo, capitão!

Lentamente, a 0-220 começou a perder altura, à medida ,que o ar se introduzia nas câmaras de vácuo.

Afinal, depois de uma aterragem perfeita, foi colocada uma pequena escada à saída da nave, já que a altura da porta da cabina principal, em relação ao solo, era de uns dois metros, e em poucos instantes toda a tripulação, exceto um oficial que ficara de vigia e mais dois homens, pisava o chão verdejante de Pellucidar.

—- Seria bom arranjarmos um pouco de carne fresca — disse Tarzan — mas a aterragem da 0-220 espantou os animais.

— Mas pela quantidade de animais que avistamos lá de cima — respondeu Dorf — não será preciso ir muito longe para caçar.

— Na realidade — tornou a falar Tarzan — precisamos, acima de tudo, descansar. Há várias semanas que estes homens vêm trabalhando sem parar, nos preparativos da expedição, e duvido que haja alguém que tenha conseguido dormir mais de duas horas seguidas, nestes últimos três dias de viagem. Sugiro que fiquemos por aqui, até que todos descansem convenientemente, para depois iniciarmos uma expedição bem planejada em busca da cidade de Korsar.

A sugestão de Tarzan foi imediatamente aceita por todos. E começaram logo os preparativos para a permanência de alguns dias naquele local.

— Acho que o capitão Zuppner deveria dar uma ordem geral — disse Gridley — no sentido de que não fosse permitido, a ninguém, deixar a nave ou suas imediações, sem sua licença. E ninguém teria permissão para explorar a região, a menos que se formassem grupos, chefiados por um dos oficiais, pois é muito provável que apareçam tribos selvagens e animais ainda mais selvagens, por toda a região de Pellucidar.

— Espero que você me exclua dessas ordens — disse Tarzan, com um sorriso, dirigindo-se a Zuppner.

— Tenho a certeza de que o homem-macaco sabe defender-se em qualquer lugar do mundo — respondeu o capitão.

— E sei caçar muito melhor sozinho do que com um grupo de homens — disse Tarzan.

— De qualquer maneira — tornou Zuppner — as ordens devem partir de você, que é nosso comandante, e estou certo de que ninguém vai se incomodar com o fato de você excluir-se dessas ordens, pois duvido que algum de nós esteja interessado em explorar, sozinho, essa misteriosa Pellucidar.

E durante as horas que se seguiram, oficiais e tripulação, exceto um vigia, que era substituído de quatro em quatro horas, dormiram pesadamente um sono relaxante e reparador.

Tarzan foi o primeiro a despertar. Já se tinha livrado das roupas que o incomodavam desde sua partida das selvas africanas, para colaborar nos preparativos da expedição de Gridley, e agora quem descia os degraus da 0-220 não era mais aquele inglês desajeitado e tolhido, de paletó e gravata, e sim a figura autêntica de um guerreiro primitivo, seminu, munido de um facão, arco e flecha, lança e uma longa corda, da qual nunca se separava. Tarzan preferia caçar com as armas que conhecera em sua juventude do que com as armas de fogo do mundo civilizado.

O tenente Dorf era o único oficial de serviço naquele momento, e pôde observar, com incontida admiração, a figura do homem-macaco, com seus cabelos escuros e seu porte majestoso, embrenhando-se na floresta, destemido e corajoso.

Havia muitas árvores que eram familiares a Tarzan e outras que jamais tinha visto. Mas, de qualquer maneira, tratava-se de uma floresta selvagem e isso era o suficiente para atrair o homem-macaco e fazer com que ele esquecesse aquelas últimas semanas que passara em pleno mundo civilizado. Sentia-se feliz por estar fora da nave e, embora gostasse de todos os seus companheiros de bordo, alegrava-se por estar sozinho.

E nos primeiros momentos daquela liberdade readquirida, Tarzan mais parecia um menino saído da escola. Aliviado das roupas que a civilização lhe impunha, longe de qualquer coisa que lhe fizesse recordar as atrocidades cometidas pelos homens contra a natureza, encheu os pulmões com aquele ar livre de Pellucidar, saltando para a árvore mais próxima, exultante de alegria e de vitalidade. E com que rapidez ele explorava as selvas daquele mundo desconhecido. Pássaros estranhos, assustados com sua passagem ao mesmo tempo silenciosa e veloz, saíam voando com grande alarido, enquanto estranhos animais selvagens procuravam seus esconderijos, amedrontados. Mas Tarzan nem tomava conhecimento deles. Não era uma caçada. Nem ao menos a exploração de um novo mundo. Naquele instante o homem-macaco gozava apenas a alegria de viver.

E dominado por todas essas sensações de liberdade e de vida, Tarzan não se deu conta da passagem do tempo, ainda mais que o sol de Pellucidar jamais se punha, pregando-nos uma peça, a nós da outra face da terra, que passamos a vida numa corrida desenfreada atrás do tempo, como se quiséssemos passar à frente do mundo, em suas rotações.

E tampouco passou pela mente de Tarzan preocupar-se com a direção que tomava ou com a distância percorrida, uma vez que atribuía a um poder interior sua habilidade e presença de espírito para enfrentar, e sair-se bem de situações imprevistas, sem lhe ocorrer que seus guias principais eram o sol, a lua e as estrelas, bem como sua extrema familiarização com os menores detalhes das selvas onde nascera e crescera.

E depois de satisfazer sua natureza selvagem com todas as belezas daquela floresta de Pellucidar, Tarzan começou a andar mais devagar, seguindo por uma picada muito bem delineada. Só então passou a observar atentamente aquele mundo novo que pisava pela primeira vez. Reparou, por exemplo, nas árvores seculares que o cercavam, com seus troncos colossais, suas galhadas entrelaçadas, onde se penduravam pesados cipós embranquecidos pelo tempo, tudo isso fazendo o homem-macaco lembrar-se de suas florestas e achá-las até modernas. Maravilhava-se com a profusão e a variedade das flores silvestres, quando, de repente, sentiu-se agarrado e seu corpo atirado para o alto.

Tarzan havia sido apanhado num momento de despreocupação total, fascinado que estava com as belezas de um mundo desconhecido. Até mesmo aquele seu sexto sentido em pressentir e distinguir a aproximação de um homem ou de um animal selvagem parecia tê-lo abandonado, por instantes, tal a paz e o relaxamento que lhe transmitiam os elementos daquela exuberante natureza.

Mas Tarzan logo se apercebeu do que lhe acontecera. Embora já imaginasse as conseqüências desastrosas do fato, o homem-macaco sorriu — um sorriso amargo — um tanto revoltado consigo mesmo, por ter sido apanhado por um laço traiçoeiro, como às vezes acontece a um animal selvagem.

Era um laço de couro cru, amarrado ao galho de uma árvore, com uma das voltas enterrada no chão, justamente na picada por onde ele andava. E foi só ele esbarrar na armadilha, para ser imobilizado e atirado para cima, ficando pendurado há uns dois metros de altura, preso pelos quadris, os braços imobilizados pela tira de couro que passava sobre eles, entre os pulsos e cotovelos.

Tentou livrar um dos braços, para apanhar o facão e tentar cortar o laço que o prendia, mas o peso de seu corpo apertava cada vez mais o nó da armadilha e cada tentativa que fazia para libertar-se, maior a pressão da tira de couro que já lhe cortava a pele.

O homem-macaco bem sabia que aquela armadilha significava a proximidade do homem e, segundo seus conhecimentos sobre caçadas, sabia também que os caçadores não tardariam em aparecer, antes que outros animais carnívoros ou aves de rapina dessem cabo da presa.

Perguntava-se a si mesmo que espécie de gente habitaria

O mundo desconhecido de Pellucidar, com que raça ou tribo se defrontaria, ao mesmo tempo que ansiava pela chegada de alguém, antes que as feras carnívoras o descobrissem. E de repente Tarzan começou a distinguir o ruído de largas passadas que de todo não lhe pareciam humanas. Apurou os ouvidos, mas o barulho vinha de tão longe que seu olfato ainda não conseguia confirmar a aproximação do que quer que fosse. As passadas eram lentas, e pouco a pouco ele se certificou de que se tratava de um animal com cascos. A menos que se tratasse de alguma estranha criatura de Pellucidar, com características completamente diferentes dos animais da outra face da terra, Tarzan chegou à conclusão de que não tinha motivos para temer sua aproximação.

Mas, enquanto esses pensamentos o tranqüilizavam, chegava às suas narinas aquele mesmo odor que lhe arrepiava os cabelos, quando pressentia algum inimigo hereditário do homem; não era uma sensação de medo e sim uma reação natural a um perigo iminente. Seu faro não determinava um animal totalmente desconhecido, mas bem diverso do rastro de Numa, o leão, ou de Sheeta, o leopardo. Parecia-lhe um gato selvagem que caminhasse cautelosamente em sua direção, ao mesmo tempo que algum outro animal carnívoro também se aproximava.

   Finalmente, surgiu ao longe, diante de seus olhos atentos, um estranho touro selvagem, com gigantescos chifres, em feitio de galhadas, o corpo recoberto por um pêlo grosso e áspero, avançando em sua direção. Tratava-se de um Bos Primigenus, mencionado pelos paleontologistas da crosta externa da terra como pertencente a uma raça de bovinos há muito tempo extinta e que dera origem aos bovinos de nossos dias.

Ao deparar com Tarzan, flutuando no ar, pendurado que estava a um galho de árvore, o estranho animal deteve-se por alguns instantes.

O homem-macaco permanecia calmo. Não queria assustar o touro selvagem, fazendo-o fugir, sabendo que tanto ele próprio-como o animal corriam o risco de serem devorados pelos carnívoros que se aproximassem.

Mas o homem-macaco percebeu logo que estava enganado, julgando que o touro se assustaria com ele, pois assim que o estranho bovino deu com a sua presença pôs-se a grunhir furiosamente, escavando a terra com uma das patas dianteiras, raivoso, preparando-se para um ataque. E abaixando os pesados chifres, a cauda levantada, desabalou num trote ameaçador na direção de Tarzan, mugindo e espumando de ódio.

Tarzan sabia que, se fosse atingido por aquela massa bruta de pontiagudos chifres presos a uma cabeça pesadíssima, teria o crânio esmigalhado em mil pedaços, como uma casca de ovo.

É preciso dizer que, depois daquele primeiro impacto do aperto do laço à volta de seus quadris e de sua elevação aos ares, o corpo de Tarzan agora girava lentamente, de um lado para outro, fazendo com que às vezes ficasse de frente para o animal que se aproximava e às vezes ficasse de costas, numa posição totalmente desprotegida. Sua morte poderia ser iminente e o homem-macaco tinha plena consciência disso.

No entanto, acostumado desde a infância a conviver com o perigo, enfrentando e observando a morte sob seus múltiplos aspectos, Tarzan aprendera a não entrar em pânico diante dela. Considerava-a como a última experiência de todos os seres vivos e embora amasse a vida e não desejasse morrer, sua aproximação não lhe causava pânico.

Mas, morrer sem poder lutar para sobreviver, não era propriamente a morte que o homem-macaco esperava para si mesmo. E agora que se encontrava de costas para o animal, girando no ar ao sabor do laço que o prendia a um galho de árvore, nem ao menos teria a satisfação de enfrentar a morte, frente à frente.

E no momento exato em que esperava ser atingido pelo grande touro enfurecido, um horripilante rugido cortou o ar, estrondoso urro como jamais Tarzan escutara, misturando-se aos grunhidos, agora mais fortes, do touro selvagem.

Uma vez mais o corpo de Tarzan girou na direção do animal e seus olhos puderam então presenciar uma cena que jamais a nenhum outro homem da face externa da terra seria dado ver.

Sobre o pescoço do grande touro agarrava-se um tigre de tão gigantescas proporções que o homem-macaco mal podia acreditar no que seus olhos viam. Duas enormes presas, tal como duas espadas, enterravam-se no pescoço do touro, que, em vez de tentar fugir, procurava afastar a fera com os chifres, agitando-os para trás, contorcendo-se em desesperados movimentos, urrando de dor e de raiva.

Mas o enorme tigre apenas mudou ligeiramente a posição de seus pontiagudos dentes e de repente, com a rapidez de um raio, ergueu uma das enormes patas dianteiras para trás, desfechando um único e violento golpe sobre o lado da cabeça do touro, um murro tão certeiro, com tamanha força, que o pesado bovino caiu imediatamente morto, com o crânio estraçalhado. Em seguida, o terrível carnívoro acomodou-se para saborear sua presa.

Durante a luta, o grande tigre não notara a presença de Tarzan. E foi só quando já começava a devorar a carne do touro selvagem que seus olhos foram atraídos por aquele corpo que flutuava no ar, há alguns metros de distância. No mesmo instante a fera interrompeu seu festim; abaixou a cabeça, afastou-se para trás, o lábio superior arreganhado num rosnar aterrorizador que partia das profundezas daquela garganta cavernosa. Observou o homem-macaco por alguns segundos para, em seguida, erguer-se de cima de sua presa, agitando a cauda enraivecido e avançando ferozmente em direção de Tarzan.

 

OS GATOS GIGANTES

A maré vazante da I Guerra Mundial deixara muita gente encalhada nos mais diversos pontos da terra. Robert Jones, por exemplo, que ao tempo da maré cheia havia servido como soldado raso, num batalhão de serventes, fora dar com os costados num campo de concentração por trás da linha de frente do inimigo, onde seu bom gênio lhe granjeara amigos e favores, mas nunca a liberdade. E quando a prisão em que estava foi evacuada, Robert ficou esquecido, sem, no entanto, jamais se deixar abater por isso. Conseguira aprender o idioma de seus captores e fizera muitos amigos entre eles. De servente passara a cozinheiro de um rancho militar e foi exatamente pela sua profissão que Zuppner resolvera recrutá-lo para fazer parte da tripulação da 0-220, depois de muito observá-lo.

Agora, quando tudo dentro da nave era silêncio, Robert Jones despertou, espreguiçou-se e bocejou longamente, abriu os olhos e, saltando de seu estreito beliche para o chão, enfiou logo a cabeça através de uma escotilha aberta.

— Meu Deus! — exclamou ele. — Acho que todo mundo perdeu a hora!

Contemplou, por alguns instantes, aquele sol a pino, de meio-dia, apressando-se em vestir-se e dirigir-se à sua cozinha.

— Engraçado — resmungou ele com seus botões — não há o menor movimento a bordo. É, com certeza todo mundo perdeu a hora.

Olhou para o relógio pendurado à parede e viu que os ponteiros marcavam seis horas. Apurou os ouvidos, constatando que o mesmo funcionava perfeitamente e continuou a dialogar consigo mesmo:

— Ainda bem que o relógio não está parado.

Em seguida dirigiu-se até à porta da aeronave, abrindo-a para trás e tornou a contemplar o sol, sem entender coisa alguma.

— Há qualquer coisa errada — disse ele. — Não sei se devo preparar o café da manhã, o almoço ou o jantar.

Jason Gridley despertou pouco depois. Saiu de sua cabina e foi diretamente à cozinha.

— Bom dia, Bob! — exclamou ele, parando junto à porta. — Já se pode pedir o café?

— O senhor tem certeza de que está mesmo na hora do café da manhã? — indagou Robert Jones, desconfiado.

— Certeza absoluta — respondeu-lhe Gridley. — E para mim basta uma xícara de café, uma torrada e uns ovos; o que for mais fácil para você.

— Eu sabia — disse Robert. — Eu sabia que o nosso relógio estava certo. Quem não deve andar muito certo é o sol!

Gridley sorriu.

— Vou descer para dar uma volta aqui por perto — disse ele — mas estarei de volta em quinze minutos. Você hoje já esteve com Lord Greystoke?

— Não, senhor — respondeu Robert Jones. — Aliás, não vejo Tarzan desde ontem à noite.

— Não está na cabina — prosseguiu Gridley — e gostaria bem de saber por onde ele anda.

E durante quinze minutos Jason Gridley percorreu rapidamente as imediações da aeronave. Quando voltou ao seu interior, encontrou Zuppner e Dorf esperando pelo café e cumprimentou-os com um amável “bom dia”.

— Não sei se é bom dia ou boa tarde — respondeu-lhe Zuppner.

— Estamos aqui há doze horas — explicou Dorf — e o sol continua na mesma posição em que estava ontem, quando chegamos. Estive de vigia durante as últimas quatro horas e, se não fosse pelo cronômetro, poderia jurar que se passaram apenas uns quinze minutos.

— Essa impressão de irrealidade é muito natural, — disse Gridley, — embora muito difícil de ser explicada.

— Onde está Greystoke? — perguntou Zuppner. — Ele é sempre madrugador.

— Foi justamente o que perguntei a Bob, há alguns mistos — disse Gridley — mas ele me respondeu que ainda não o tinha visto hoje.

— Tarzan deixou a nave há umas três horas c meia — explicou Dorf — logo depois que assumi meu posto de vigia. Vi-o atravessar a clareira e embrenhar-se na floresta.

— Tomara que ele não tenha ido sozinho — disse Gridley.

— Tarzan sempre me pareceu extremamente independente — comentou Zuppner. — É dessas pessoas que sabem defender-se c sabem se haver sozinhas em qualquer lugar e em qualquer situação.

— Mas vi certas coisas, durante essas últimas quatro horas — disse Dorf — que me fazem duvidar se alguém seria capaz de se defender sem a ajuda de outras pessoas nesse estranho mundo cm que estamos, ainda mais dispondo apenas de algumas armas primitivas, como as que Greystoke levou consigo.

— Você quer dizer que ele não levou arma de fogo? — perguntou Zuppner, incrédulo.

— Tarzan levou apenas arco e flecha, um facão e uma lança — respondeu Dorf. — Acho que levou também um facão de caça. Mas tudo isso teria o efeito de um bodoque, caso ele tivesse que lutar contra o que vi, durante minhas horas de vigia. .

— Que é que você quer dizer? — indagou Zuppner. — Afinal, o que foi que você viu?

Dorf sorriu, um tanto constrangido.

— Para ser sincero, capitão, detesto ter que relatar o que vi — disse ele. — Eu mesmo mal posso acreditar no que meus olhos viram.

— Desembuche logo — exclamou Zuppner. — Saberemos dar o desconto pelos seus poucos anos de vida e pelo efeito do sol c do horizonte de Pellucidar sobre sua vista e sua honestidade.

— Bem — continuou Dorf — há uma hora atrás vi passar um urso há uns cem metros da nossa nave.

— Até aí, nada de extraordinário — disse Zuppner.

— Mas há muita coisa de extraordinário a respeito desse urso — tornou Dorf.

— Sob que aspecto? — quis saber Gridley.

— Era um animal do tamanho de um touro — continuou Dorf — e se tiver que lutar contra um urso daqueles, nesta região, vou querer levar comigo artilharia pesada!

— Afinal de contas, foi só esse urso que você viu? — perguntou Zuppner.

— Não — respondeu-lhe Dorf. — Vi também tigres, uma dúzia deles, muito maiores do que os nossos tigres de Bengala, assim como o urso era muito maior do que qualquer outro conhecido na crosta exterior da terra. Os tigres eram gigantescos e dotados de enormes presas, ligeiramente recurvadas, partindo do maxilar superior e medindo de 20 a 30 centímetros aproximadamente. Vieram até este pequeno riacho, para beber água, e depois se dispersaram, alguns em direção à floresta e outros em direção ao grande rio.

— Diante disso — falou Zuppner — Greystoke não poderia enfrentar esses animais mesmo que tivesse levado uma espingarda.

— Mas se estivesse na floresta — disse Gridley — estou certo de que conseguiria fugir deles.

Zuppner balançou a cabeça negativamente.

— Não estou gostando disso — falou. — Preferia que Tarzan não tivesse saído sozinho por aí.

— O urso e os tigres muito me impressionaram — disse Dorf — mas vi um outro animal que me pareceu infinitamente mais perigoso.

Robert Jones, que era um tipo geralmente desinteressado em assuntos alheios, tinha entrado, vindo da cozinha, e ouvia, de olhos arregalados, o relato de Dorf sobre os estranhos animais que vira, enquanto Victor, um dos camareiros filipinos de bordo, servia os oficiais.

— Na verdade — continuou Dorf — vi também um outro animal muito estranho. Passou voando exatamente sobre a nossa nave e pude observá-lo perfeitamente. A princípio julguei tratar-se de um pássaro; depois, quando passou mais perto, vi que era um réptil com asas. Tinha uma cabeça estreita e comprida e aproximou-se tanto da 0-220 que pude observar detalhadamente suas grandes mandíbulas, dotadas de uma infinidade de pequenos dentes finos e pontiagudos. A cabeça sai prolongava acima dos olhos, terminando em ponta. O animal era imenso, e sua asa, quando totalmente aberta, deveria medir uns seis metros. Enquanto eu o observava, o estranho réptil alado pousou no chão, há pouca distância da nossa nave; e quando levantou vôo, levava, preso às garras, um outro animal, mais ou menos do tamanho de um carneiro grande, continuando a voar sem o menor esforço. É evidente que se trata de um carnívoro, com força suficiente para agarrar e levar consigo um homem.

Robert Jones escondeu o riso com sua mão avermelhada e afastou-se, pé ante pé, até à cozinha, sacudindo os ombros de tanto rir. Fechou a porca atrás de si e estourou numa estrondosa gargalhada.

— Que é que há com você? — perguntou-lhe Victor.

— Já ouvi muitas lorotas de caçadores — respondeu Robert, rindo sem parar — mas, como essa história que o tenente Dorf está contando, sobre uma serpente voadora que rouba carneiros, nunca ouvi tamanha invenção!

No entanto, na sala de refeições a história de Dorf era levada bem mais a sério.

— Seria um pterodátilo? — perguntou Zuppner.

— Com certeza — continuou Dorf. — Classifiquei-o como Pteranodon.

— Vocês não acham conveniente enviarmos um destacamento de homens em busca de Tarzan? — indagou Gridley.

— Acho que Greystoke não gostaria disso — respondeu Zuppner.

— Iriam sob pretexto de uma caçada — sugeriu Dorf.

— Se ele não retornar dentro de uma hora — disse Zuppner — teremos que tomar alguma providência.

A essa altura, Hines e Von Horst entravam na sala de refeições e quando souberam da prolongada ausência de Tarzan, bem como a respeito dos estranhos animais avistados por Dorf, contra os quais o homem-macaco poderia ter que lutar, mostraram-se tão apreensivos como os demais.

— Poderíamos sobrevoar a região, a pouca altura — sugeriu Von Horst, dirigindo-se a Zuppner.

— Mas, suponhamos que ele regresse durante a nossa ausência? — indagou Gridley.

— Seria fácil aterrar neste exato ponto outra vez? — quis saber Zuppner.

— Duvido muito — respondeu o tenente. — Nossos instrumentos são totalmente inúteis, sob as condições atmosféricas de Pellucidar.

— Então é melhor permanecermos aqui — disse Gridley — até que Tarzan apareça.

— Se mandássemos uma patrulha à procura dele, por terra, qual a nossa garantia de que esses homens encontrariam o caminho de volta à nave, já que nossas bússolas não funcionam em Pellucidar? — perguntou Zuppner.

— Isso já não seria tão difícil — esclareceu Gridley. — Sempre podemos marcar as árvores para indicar o caminho de volta.

— Você tem razão — concordou Zuppner.

— Suponhamos — disse Gridley — que Von Horst e eu, acompanhados por Muviro e seus guerreiros waziris, homens experimentados e conhecedores das selvas, fossemos à procura de Tarzan. Não seria uma boa solução?

— Bem — respondeu Dorf — Muviro e seus waziris não conhecem o tipo de selva de Pellucidar.

— Mas, de qualquer modo, hão de conhecer qualquer floresta melhor do que nós — insistiu Gridley.

— Acho muito boa a sua idéia — disse Zuppner — e já que estamos agora sob seu comando, colocamo-nos às suas ordens.

— Aqui — falou Gridley — todas as circunstâncias são totalmente novas para todos nós. Nada do que possamos sugerir ou ordenar terá como base alguma experiência pessoal. Logo, minha opinião é que sempre tomemos uma decisão depois de debater o assunto em conjunto, em vez de nos atermos à prioridade de quem estiver no comando.

— Essa tem sido sempre a política de Greystoke — lembrou Zuppner — uma política prática e agradável para todos nós. Concordo com você, Gridley, e não encontraria um plano mais viável do que este que você acaba de sugerir.

— Muito bem — disse Gridley. — Você me acompanha, tenente Von Horst?

— Se eu o acompanho? — perguntou Von Horst, sorrindo. — Nunca o perdoaria se não me deixasse acompanhá-lo!

— Ótimo — respondeu Gridley. — Acho bom começarmos logo com os preparativos, para podermos partir o quanto antes. Veja se Muviro e os waziris já comeram, tenente Horst, e diga-lhes que se apresentem armados de espingardas. Eles sabem manejá-las perfeitamente, mas sempre desdenham de armas mais modernas do que suas lanças e suas flechas.

— Já tinha percebido isto — comentou Hines. — Ainda há poucos dias Muviro me contava que seu povo considera o uso de armas de fogo uma covardia. Disse-me também que só se utilizam delas para tiro ao alvo, mas quando saem para caçar leões ou rinocerontes, preferem as lanças e flechas de guerra, às espingardas.

— Depois que virem os animais que vi hoje — disse Dorf — passarão a ter mais respeito pelas armas de fogo.

— Providencie para que levem bastante munição, Von Horst, — disse Gridley — pois diante do que já vi em Pellucidar, não será necessário levarmos provisões.

— O homem que não conseguisse sobreviver numa terra como essa — comentou Zuppner — morreria de fome num mercado de carne.

Von Horst afastou-se para cumprir as ordens de Gridley, enquanto este último voltou à sua cabina, a fim de preparar-se para a viagem.

Os oficiais e toda a tripulação que permaneceria na 0-220 enfileiraram-se para desejar boa sorte e pronto regresso à expedição que partia em busca de Tarzan. Os dez guerreiros waziris seguiram atrás de Gridley e Von Horst. Robert Jones, observando-os da porta da cozinha, sentia-se orgulhoso.

— Vão dar cabo de todas as serpentes voadoras de Pellucidar! — exclamou.

E tanto Robert como os demais integrantes da tripulação não tiraram os olhos da patrulha que se afastava apressadamente, até que os últimos guerreiros desaparecessem floresta adentro. Depois, arriscando um olhar desconfiado na direção do sol, que continuava a pino, balançou a cabeça e ergueu as mãos postas, em sinal de resignação, retornando aos seus afazeres.

Assim que a expedição começou a entrar nas selvas, Gridley ordenou a Muviro que tomasse a dianteira para localizar o rastro de Tarzan, já que era especialista nisto. E o grande chefe dos waziris não teve a menor dificuldade em localizar as pegadas do homem-macaco, seguindo-as até um ponto em que estava repentinamente interrompida, justamente debaixo de uma árvore.

— Aqui o nosso grande Bwana passou para as árvores

— disse Muviro. — E não há ninguém no mundo capaz de descobrir um rastro pelos troncos, pelos galhos ou pelas copas das árvores.

— Então o que você sugere? — indagou Gridley.

— Se estivéssemos nas selvas de Tarzan — respondeu Muviro — era certo que ele teria tomado uma direção em linha reta ao local onde pretendesse ir. E se estivesse apenas caçando, sua direção seria influenciada por seu faro ou pelo rastro da caça.

— Acho que não há a menor dúvida de que Tarzan saiu para caçar — disse Von Horst.

— Se estava caçando — insistiu Muviro — deve ter seguido em linha reta até farejar alguma caça ou descobrir uma trilha.

— E depois — quis saber Gridley — que faria ele?

— Esperaria, do alto de alguma árvore, certamente sobre a trilha — disse Muviro. — Talvez seguisse pelo próprio caminho aberto pelos animais, pois duvido que Tarzan perdesse a oportunidade de explorar uma floresta totalmente desconhecida para ele, como esta floresta de Pellucidar.

— Então a solução é continuarmos a andar em linha reta — tornou a falar Gridley — até descobrirmos alguma trilha deixada pelos animais.

Muviro, juntamente com mais três de seus homens, iam à frente da expedição, cortando a folhagem e marcando as árvores para facilitar o retorno ao local onde estava a nave. Com a ajuda de uma bússola de bolso, Jason Gridley orientava a direção a seguir, sem o que teria sido bem mais difícil continuar, sob aquele eterno e desconcertante sol a pino, cujos raios mornos filtravam-se através das árvores seculares.

— Meu Deus, que selvas! — exclamou Von Horst, a certa altura. — Procurar um homem por aqui é, como diz o provérbio, procurar agulha em palheiro!

— Com uma diferença — pilheriou Gridley. — Quem procurasse a agulha teria muito mais chance do que nós.

— Talvez devêssemos disparar um tiro de espingarda, em intervalos regulares de tempo — lembrou Von Horst.

— Ótima idéia — disse Gridley. — E os tiros devem ser mesmo de espingarda, pois suas balas são muito mais pesadas do que as de nossos revólveres e assim já íamos aliviando a carga.

Depois de comunicar a todos esta decisão, Jason Gidley deu ordem a um dos negros waziris que disparasse três tiros, com intervalos de alguns segundos, pois tanto Von Horst como ele próprio levavam apenas um revólver Colt 45.

E à medida que a expedição avançava, Gridley mandou reduzir os tiros e aumentar o intervalo de tempo, até que apenas um único tiro era disparado de meia em meia hora.

Ninguém dizia coisa alguma, mas todos começavam a perceber que aquela busca poderia ser totalmente inútil.

O aspecto das selvas modificava-se a cada instante e agora as grandes árvores eram mais espaçadas e o mato bem menos denso.

De repente, depararam com uma trilha escavada e marcada por toda espécie de patas e de cascos, com uns sessenta centímetros de profundidade. E foi então que Jason Gridley cometeu um erro.

— Enquanto prosseguirmos por esta trilha — disse ele aos seus homens — não será necessário marcar as árvores, a menos que surja alguma bifurcação ou alguma encruzilhada.

Seu erro era compreensível, pois se havia uma trilha, esta seria de muito maior ajuda, na viagem de volta, do que as árvores marcadas ao longo da mesma.

A caminhada tornara-se mais fácil e portanto mais acelerada. Os quilômetros percorridos iam ficando rapidamente para trás c aquele sol eternamente a pino exercia grande influência sobre os homens. Já não tinham grande noção do tempo e a exuberância da natureza envolvia-os e fascinava-os.

Macacos de raças desconhecidas, alguns extremamente semelhantes ao homem, em tamanho e aparência, observavam, quietos, a caravana que passava. Pássaros de plumagens coloridas, ou de penas escuras, lúgubres, protestavam contra a invasão do homem aos seus domínios, com súbitas revoadas e grasnadas estridentes. E, de vez em quando, o vulto de um animal, escondido entre a folhagem rasteira, desaparecia atrás de moitas mais densas. De todos os lados chegavam ruídos de Datas correndo sobre o mato.

Muitas vezes atravessavam pequenos trechos mergulhados num silêncio sepulcral, para logo depois serem envolvidos pelo tumulto de horripilantes grunhidos, ora agudos, ora cavernosos, ora sibilantes.

— Gostaria muito de ver de perto alguns dos responsáveis por estes estranhos sons — disse Von Horst, depois de um rugido extremamente selvagem e desconhecido.

— Não sei como ainda não conseguimos vê-los — respondeu Gridley — mas devem estar com medo de nós, não apenas por formarmos um grupo numeroso, como também pelo nosso cheiro, para eles totalmente estranho e desconhecido. Nossos tiros também devem atemorizá-los.

— Você já reparou — tornou Von Horst — que a maioria dos ruídos que ouvimos parte sempre dos trechos que vão ficando para trás de nós? Refiro-me aos grunhidos mais selvagens, pois os urros característicos de elefantes, por exemplo, vêm sempre da direita ou da esquerda. Os mais estranhos, quando partem dessas direções, já são a grande distância.

— Como é que você explica esse fato? — quis saber Gridley.

— Não explico — disse Von Horst. — Tenho apenas a impressão de que caminhamos no meio de uma procissão de animais, sendo que os carnívoros mais selvagens vêm por trás de nós.

— Assim mesmo, esse constante sol a pino tem suas compensações — comentou Gridley — pois não teremos que passar a noite aqui.

Naquele momento, os dois homens foram interrompidos pelo grito de um dos waziris.

— Cuidado, chefe! — exclamou o negro. — Olhe o que vem lá! — E o guerreiro apontava para trás.

Realmente, na direção de seu dedo, Gridley e Von Horst divisaram uma enorme fera, caminhando vagarosamente ao longo da trilha que ia ficando para trás.

— Meu Deus! — exclamou Von Horst. — E pensei que Dorf estivesse exagerando!

— Parece incrível — disse Gridley — que na outra face da terra os automóveis cruzem as ruas cercadas de prédios altíssimos; e há telefone, telégrafo, rádio, coisas comuns que nem despertam mais comentários; e cada pessoa vive a sua vida sem, muitas vezes, nunca ter tido necessidade de usar uma arma,

em defesa própria. E nesse mesmo momento, nós, aqui do outro lado, tendo que enfrentar esses monstruosos tigres, com dentes que mais parecem espadas, de uma raça que já deve ter desaparecido da crosta externa da terra há alguns milhões de anos.

— Vejam! — exclamou Von Horst. — Atrás dele vêm uma porção de outros!

— Quer que atire, chefe? — perguntou um dos negros.

— Ainda não — respondeu-lhe Gridley. — Vamos esperar que se aproximem um pouco mais.

E lentamente a expedição retomou seu caminho, os negros guerreiros formando uma fila atrás dos demais homens, sempre observando os animais que também continuavam a andar.

Muviro aproximou-se de Gridley e pôs-se a caminhar a seu lado.

— Há rastro de elefantes nessa trilha — disse ele. — As marcas me parecem de patas de elefante, embora ligeiramente diferentes. E agora acabo de avistar, à nossa frente, verdadeira manada de animais enormes que, se não forem justamente elefantes, são animais das mesmas proporções.

— Estamos entre a cruz e a espada — observou Von Horst.

— Além disso — continuou Muviro — estou ouvindo passos sobre a folhagem, tanto à nossa direita como à nossa esquerda. Parecem-me também de elefantes ou de tigres gigantes.

Talvez Muviro quisesse insinuar que a melhor solução seria continuar a avançar pelas árvores, servindo-se dos frondosos galhos e dos longos cipós. Mas, se era este o seu pensamento e também dos demais participantes da expedição, nada disse a respeito. Continuavam a seguir pela trilha cavada no solo até que subitamente chegaram a uma enorme clareira, onde o matagal era bem mais rasteiro e as árvores bem mais espaçadas. Essa área devia medir uns quatro mil metros quadrados.

E para esta clareira, ao longo de inúmeras trilhas que convergiam para aquele ponto, aproximava-se uma exótica procissão, composta de animais estranhos e desconhecidos. Havia enormes touros, de pêlos duros e espessos e chifres colossais; veados vermelhos e preguiças de dimensões gigantescas; mastodontes (corpulentos animais de constituição análoga a dos elefantes), mamutes (espécie de elefante que existiu na crosta externa da terra na era quaternária, na Ásia e na Europa) e um outro tipo também elefantino, com uma cabeça de um metro de comprimento por uns noventa centímetros de largura, o corpo curto, em relação ao tamanho da cabeça e duas enormes presas que partiam do maxilar inferior, recurvadas em direção ao próprio corpo do animal. Deveria ter, no mínimo, uns três metros de altura, na parte dianteira, e uns seis metros de comprimento. Mas sua extrema semelhança com um elefante era atenuada pelo tamanho das orelhas: duas orelhas pequenas como orelhas de porco.

Von Horst e Gridley, esquecendo momentaneamente a manada de tigres que os seguia, pararam por alguns instantes, estarrecidos e ao mesmo tempo fascinados por aquele estranho agrupamento de animais tão exóticos.

— Você já tinha visto algo semelhante? — indagou Gridley.

— Não — respondeu-lhe Von Horst. — Certamente nem eu nem nenhum de nós!

— Poderia classificar alguns deles — continuou Gridley

— embora quase todos já extintos da face externa da terra. Aquele ali, por exemplo, me parece o mais interessante.

Referia-se ao elefantino de presas recurvadas.

— Parece um Dinotério do Mioceno — disse Von Horst. Muviro também havia parado de caminhar e não disfarçava o espanto que lhe causava a cena.

— Bem — falou Gridley — que é que devemos fazer agora, Muviro?

— Segundo minhas conclusões — respondeu-lhe o negro

— a nossa única chance de escapar desses animais é atravessarmos a clareira o mais rapidamente possível, pois os gatos gigantes devem estar à caça desses animais. Vai ser uma carnificina jamais vista e se continuarmos aqui, ou seremos atacados pelos tigres, ou seremos massacrados por esses animais em fuga, ao tentarem lutar ou fugir das feras.

— Você tem razão — concordou Gridley.

— Há uma entrada para as selvas do outro lado da clareira — advertiu Von Horst — bem à nossa frente.

Gridley reuniu os homens à sua volta, apontando para a floresta, do lado oposto, onde havia a referida entrada.

— Ao que tudo indica — disse ele — a única solução é atravessar depressa a clareira, antes que os tigres se aproximem desses animais que já nos cercam. Não adiantaria mais subir para as árvores, pois os gatos gigantes estão muito perto. Vamos andando todos juntos, e ninguém deve atirar antes de sermos atacados.

— Vejam! — exclamou Von Horst. — Os tigres estão entrando na clareira por todos os lados e agora estamos cercados!

— Vamos tentar alcançar a entrada para a floresta, à nossa frente — sugeriu Muviro.

Agruparam-se os homens e puseram-se a andar cautelosamente, embora sem correr, para não assustar os animais que, a esta altura, andavam nervosamente de um lado para outro, como que pressentindo o ataque das feras. A princípio, quando os grandes tigres ainda estavam longe, movimentavam-se vagarosamente, pastando aqui e ali, comendo algumas folhas mais novas dos arbustos da clareira. Mas, com o aparecimento do primeiro carnívoro, mudaram por completo de atitude. Um mastodonte de grandes dimensões dera o sinal de alarme: erguendo a pesada cabeça e levantando um pouco o tronco, soltou um tremendo urro que imediatamente alertou todos os outros herbívoros. E quando os olhos e as narinas localizaram os tigres, ou talvez apenas excitados pelo agudo e penetrando grunhido do mastodonte, o fato é que todos começaram a urrar e a mugir violentamente, num pandemônio ensurdecedor. E ao berreiro dos animais juntou-se o rosnar surdo dos tigres famintos.

— Vejam aqueles tigres! — exclamou Von Horst. — Há centenas deles invadindo a clareira!

Não era uma estimativa exagerada de Von Horst, pois de todos os pontos da floresta, à exceção de um único lugar, justamente na direção em que caminhava a expedição, emergiam os terríveis carnívoros, começando a estabelecer verdadeiro cerco aos animais que se juntavam no meio da clareira.

O fato de os tigres não se lançarem imediatamente ao ataque denunciava um certo respeito pelas gigantescas bestas que haviam encurralado, às quais não ousariam atacar se não estivessem em grande superioridade numérica.

Em determinado momento, um dos mamutes, qual um touro gigante, com a cauda e as orelhas erguidas, recuou o tronco e partiu em seguida para o ataque aos gatos gigantes. Mas bastou que um grupo de tigres investisse contra ele, urrando estrepitosamente, para que o mamute perdesse a coragem e dando meia volta retrocedesse para junto dos outros animais de sua espécie. Se tivesse conseguido romper aquela barreira de garras e de dentes pontiagudos, o que não teria sido impossível, dada a força, o peso e o tamanho de seu corpo, o touro selvagem teria aberto uma passagem para aquela massa de animais se colocar a salvo de seus atacantes.

Enquanto isso, Gridley e seus homens continuavam a caminhar e conseguiam não despertar a atenção dos herbívoros, agora centralizada completamente nos tigres que os rodeavam. Afinal, o que representavam aquelas frágeis criaturas humanas, diante das dimensões de uma fauna pré-histórica?!

Mas, de repente, os homens despertaram a atenção de um dos bovinos gigantes. Escavando o chão e grunhindo estrepitosamente, o animal avançou na direção deles, talvez aterrorizado pelo cheiro dos carnívoros que se aproximavam, talvez enfurecido e atiçado pelos urros nervosos dos companheiros, descarregando sua raiva naquele ataque totalmente intempestivo. Abaixando os chifres, arremessou-se contra a expedição num trote selvagem, ao mesmo tempo que um dos negros erguia sua arma e disparava um tiro certeiro contra ele. E um pré-histórico Bos Primigenus caiu por terra, morto por uma bala de uma arma do mundo moderno.

Quando o estampido da espingarda cortou o ar, sobrepujando os urros e os grunhidos das bestas, houve um silêncio momentâneo, enquanto herbívoros e carnívoros centralizavam suas atenções naquele insignificante bando de homens, verdadeiros pigmeus, ante os ferozes animais de outras eras. Um dinotério, com suas pequeninas orelhas hirtas e a cauda ereta no ar, começou a se deslocar lentamente na direção de Gridley e seus homens, seguido imediatamente por todos os outros companheiros, como se toda a manada convergisse para um só ponto.

A entrada para a floresta ainda estava longe, há uns cem metros de distância da expedição. Jason Gridley avaliou o perigo que ele e seus homens corriam e deu-lhes suas ordens.

— Temos que correr — disse ele — mas antes disparem todos ao mesmo tempo, para depois tentarmos alcançar a floresta, subindo para o alto das árvores. Se as bestas atacarem então salve-se quem puder!

No mesmo instante os negros se voltaram para os animais e, sob o comando de Gridley, dispararam suas armas. A estrondosa descarga produziu o efeito desejado. A manada hesitou, retrocedendo vagarosamente. Mas, atrás dela, vinham os tigres e novamente os animais se voltaram na direção da expedição que agora corria, em direção às árvores da floresta próxima.

— Lá vêm eles! — gritou Von Horst.

E um rápido olhar para trás confirmou que todos os herbívoros, aterrorizados pelos tigres em seu encalço, haviam desembestado numa corrida desenfreada, talvez não mais com a intenção de atacar o grupo de homens, mas, de qualquer maneira, numa fuga desabalada justamente na direção da expedição. E se os homens permanecessem em seu caminho, não conseguindo alcançar a floresta, seriam totalmente dizimados pelos gigantescos quadrúpedes em fuga.

— Atirem outra vez contra eles! — ordenou Gridley.

E novamente os waziris fizeram fogo, conseguindo abater um dinotério, um touro selvagem e um mamute. Mas os outros animais não se intimidaram e nem interromperam sua cavalgada louca. Saltando por cima dos companheiros abatidos, continuavam a correr em direção ao grupo de homens.

Chegara, finalmente, o momento do “salve-se quem puder” e do “cada um por si, Deus por todos”. O perigo era tão iminente que até os bravos guerreiros waziris se despojaram de suas armas para poderem correr mais livremente.

Alguns veados, sendo mais velozes que o restante da manada, haviam tomado a dianteira e atravessaram a expedição, espalhando os homens para a direita e para a esquerda.

Gridley e Von Horst tentavam cobrir a retirada dos negros, atirando com seus revólveres contra os animais desembestados. Conseguiram fazer com que alguns dos veados retrocedessem, mas de repente um deles, um dos maiores, passou furiosamente entre os dois homens brancos, fazendo-os saltar para os lados, numa tentativa de escapar das pontiagudas galhadas de chifres.

E atrás do gigantesco veado, vinha a horda de quadrúpedes enfurecidos e perseguidos pelos tigres, enquanto Gridley

e Von Horst se distanciavam ainda mais um do outro, tentando escapar para os lados.

A pouca distância de Gridley, erguia-se uma grande árvore, completamente isolada, bem próxima da borda da clareira. Estando sozinho e sem outro recurso, o americano correu em direção à referida árvore, enquanto Von Horst era forçado a desgarrar-se para o interior da floresta, já quase ao seu alcance.

Atirado para a frente por um pesado animal, Gridley conseguiu levantar-se e, desviando-se velozmente de um mastodonte, alcançou a árvore, justamente no momento em que o grosso da manada se aproximava dele. Refugiou-se por alguns instantes atrás do grande tronco e logo depois conseguia subir por um dos galhos mais baixos.

Seu primeiro pensamento foi para seus companheiros. Mas o local onde haviam estado, minutos antes, era agora um mar de animais que corriam, saltavam e urravam em pânico. Não havia o menor sinal de seres humanos, e Gridley tinha a certeza de que nenhuma criatura poderia ter sobrevivido ao peso daquelas toneladas de carne, sobre patas e cascos em louca disparada.

Certamente alguns dos homens teriam conseguido chegar até à floresta, mas duvidava que todos estivessem sãos e salvos. Preocupava-se especialmente com Von Horst, que vinha na retaguarda dos negros waziris.

Mas o olhar de Gridley voltou-se naquele instante para a clareira e o que seus olhos viram a nenhum outro homem da face externa da terra teria sido dado ver, em toda a história do universo. Enquanto centenas de herbívoros, grandes e pequenos, galopavam desabaladamente seguindo os que iam à frente, centenas de gigantescos tigres, com suas enormes presas à mostra, atacavam pela retaguarda e pelos lados, abatendo os mais fracos, lutando contra os mais fortes, deixando os mutilados e os coxos para trás, para que atraíssem outros para a manada.

Quando os que lideravam a corrida se embrenharam na floresta, os outros que vinham atrás foram forçados a diminuir a velocidade. Mas, movidos pelo terror que os dominava, atiravam-se contra os animais da frente. Os veados, por serem mais leves e mais ágeis, saltavam por sobre os enormes mastodontes, ou mesmo escalavam aquelas massas de carne como os cabritos selvagens pulam de um pico ao outro, nas montanhas.

Os mamutes se arremessavam contra os animais menores, atirando-os ao solo e passando por cima deles com suas pesadas patas. Chifres e dentes vermelhos de sangue, enquanto os animais lutavam desvairadamente para sobreviver. Era uma cena horripilante, em toda a sua crueza, ao mesmo tempo que fascinante, em seu primitivismo e selvageria. E por toda a parte, por todos os lados, os ferozes gatos gigantes.

Agora, tentavam fechar o cerco sobre suas presas e finalmente encurralaram-nas, embora dentro do círculo ficassem muito poucos animais que não estivessem mutilados ou mancos. E os enormes tigres atiraram-se contra estes, dilacerando-os com toda fúria e toda selvageria.

Aos pares ou em grupos de três e quatro, os grandes felinos saltavam sobre suas vítimas que ainda estavam de pé e arrastavam-nas furiosamente, subjugando-as. Até que o último animal vivo, dentro do cerco, era um gigantesco mamute, com o lombo ensangüentado e os dentes também vermelhos de sangue. Grunhindo aterradoramente, continuava sobre suas quatro patas, perfeita imagem de poder primitivo, de sagacidade e de coragem.

E Jason Gridley sentiu grande emoção diante daquele último guerreiro, protestando e lançando seu desafio contra a desigualdade da luta.

Mas as centenas de tigres rondavam ameaçadoramente a enorme presa, aproximando-se cada vez mais. E apesar de sua esmagadora superioridade numérica, os grandes tigres demonstravam um certo respeito por aquele bovino pré-histórico. Rosnando e arreganhando os dentes, os mais ousados começaram a fechar o cerco, diminuindo cada vez mais os círculos que descreviam em volta do mamute. E quando este último quis acompanhar o movimento de seus atacantes, numa última tentativa de defesa, foi agredido por três tigres, pela retaguarda. Com a agilidade de qualquer felino, o gigantesco touro virou-se a tempo de agarrar dois deles, com suas enormes presas, atirando-os para o alto como se fossem dois simples gatos. Mas, naquele instante, outros tigres lançaram-se ao ataque pelos lados e pela retaguarda, imobilizando-o e ferindo-o mortalmente com garras e dentes. E o majestoso paquiderme amoleceu; primeiro agachou-se sobre as ancas, para depois rolar para trás, esmagando com o peso de seu corpo alguns felinos que não tiveram tempo de se esquivar.

E Gridley mal pôde conter um grito de aplauso, quando, para seu espanto, o gigantesco quadrúpede conseguiu erguer-se do chão, arremessando-se violentamente contra o outro lado, acompanhado de urros e grunhidos dos tigres que havia massacrado, com sua queda. Mas, o grande bovino sangrava por toda parte do corpo e agora outros felinos voltavam a atacá-lo. E embora tivesse proporcionado uma luta magnífica, com sua coragem e sua força bruta, sua morte era inevitável. Acabou por ser atirado novamente ao chão, pelos gatos gigantes que despedaçavam seu corpo, lutando até seus últimos instantes de vida para pôr-se de pé e enfrentar seus atacantes.

Começou, então, a segunda parte: a selvagem disputa dos tigres pela possessão da presa abatida. Embora houvesse carne suficiente para satisfazer o apetite de todos eles e de muitos mais, a voracidade, o ciúme e a ferocidade dos felinos os levavam a uma sangrenta luta entre si.

Haviam pago caro pela refeição e a prova estava nas carcaças dos felinos mortos, espalhadas pela clareira. E quando finalmente os sobreviventes se acalmaram, na degustação daquele monturo de carne, aproximaram-se os chacais, as hienas e os lobos, para dar cabo dos restos abandonados.

OS SAGOTHS

No momento em que o gigantesco gato selvagem disparava em sua direção, Tarzan compreendeu que finalmente havia chegado a sua hora. A morte lhe parecia inevitável. Mas naqueles seus supostos últimos instantes de vida, dominava-lhe um sentimento de profundo respeito e admiração pela majestade da fera que avançava contra ele.

Está claro que Tarzan haveria de preferir morrer lutando, se é que tivesse chegado mesmo a sua hora. No entanto, sentia uma grande emoção ao contemplar aquele enorme felino que o destino havia escolhido para liquidar com sua vida. Não experimentava nenhum sentimento de medo, mas antecipadamente preocupava-se com o que pudesse vir a lhe acontecer, depois da morte. O homem-macaco não se tinha filiado a nenhum credo religioso e jamais fora um homem beato. Mas, como acontece aos homens que vivem em permanente e íntimo contato com a natureza, Tarzan era dotado de uma profunda religiosidade, embora à sua maneira. E seus profundos conhecimentos a respeito das maravilhas, das forças e dos milagres dessa natureza que representava seu habitat, levavam-no a acreditar que a origem de tudo isso estava muito além da compreensão humana e das limitações da ciência. Quando pensava em Deus, imaginava-o um ser primitivo, parecido com ele próprio, um Deus, portanto, muito pessoal. E ao mesmo tempo que admitia não entender coisa alguma sobre o assunto, sentia-se bem ao pensar na existência de uma outra vida, depois da morte.

Enquanto seus pensamentos se sucediam velozmente, o tigre continuava avançando em sua direção. E no exato momento em que o grande felino estava prestes e alcançá-lo, a atenção de Tarzan foi subitamente desviada por estranhos ruídos que partiam do alto das árvores à sua volta. O tigre selvagem deveria tê-los ouvido também, pois estancara abruptamente em sua corrida desabalada, erguendo a cabeça para cima.

E olhando para o frondoso galho de árvore de onde pendia a correia que o sustinha no ar, o homem-macaco deparou com uma estranha criatura, metade gorila, metade homem, com o olhar fixo sobre ele. Pouco a pouco percebeu que havia outros animais da mesma espécie, trepados nos galhos das outras árvores, munidos de grossas clavas que agitavam ameaçadora-mente no ar.

A princípio, o homem-macaco julgara tratar-se de uma espécie de gorilas, mas suas características não eram bem determinadas, havendo, neles, muito de homem e muito de macaco.

O tigre selvagem permaneceu imóvel por alguns instantes, rosnando e deixando à mostra seus afiados dentes, sempre com a cabeça levantada para os frondosos galhos onde estavam os homens-gorila.

De repente, retomando sua desabalada corrida, a fera voltou ao ataque, em direção a Tarzan, e justamente quando estava prestes a alcançá-lo, o gorila que se encontrava no topo da árvore de onde pendia Tarzan agarrou subitamente a correia que mantinha o homem-macaco pendurado pelos quadris, puxando-a com toda a força para cima. Aconteceu, a seguir, uma série de coisas ao mesmo tempo: o grande felino, numa tentativa de agarrar no ar a sua presa, projetou-se no espaço, com um formidável salto, ao mesmo tempo que os gigantescos macacos punham-se a agredi-lo violentamente com suas clavas, sem mesmo abandonar seus galhos. A fera caiu pesadamente no solo, arrancando, enfurecida, as folhagens ao seu alcance, com aqueles mesmos dentes que, naquela altura, eram para estar enterrados na carne musculosa de Tarzan. Em seguida, a correia que sustentava o homem-macaco foi puxada com violência por mais dois homens-gorila, até que ele se viu frente à frente com os brutamontes, no topo da árvore. E diante daquelas horripilantes criaturas ao seu redor, Tarzan se perguntava se não teria sido melhor cair nas garras do grande tigre.

Dois gorilas, um de cada lado, imobilizavam-lhe os braços e um terceiro agarrava-o pelo pescoço, com a clava erguida sobre sua cabeça. E de repente, da boca do que estava à sua frente, partiu um som tão estarrecedor aos ouvidos de Tarzan quanto aquele primeiro urro do gigantesco gato selvagem, embora causando-lhe uma reação totalmente diferente.

— Ka-goda — dizia-lhe o estranho brutamontes.

Na linguagem dos grandes macacos de suas selvas, Tarzan sabia que o significado daquela palavra queria dizer “renda-se” ou “você quer-se render?”, dependendo da inflexão com que era dita.

Mas, partindo de um daqueles repulsivos homens-gorila de Pellucidar, poderia ter outra explicação. O homem-macaco sempre considerara o linguajar dos grandes macacos como a origem de todos.os idiomas humanos. Chipanzés, orangotangos e mesmo os macacos menores usavam todos aquele meio de comunicação e muitas de suas expressões eram compreendidas pelos demais habitantes das florestas, até mesmo por certas aves. E apesar de alguns animais domesticados passarem a entender algumas palavras do vocabulário humano, a língua dos macacos era sempre a mesma, através dos tempos.

O fato de um homem-gorila de Pellucidar usar o mesmo linguajar dos grandes macacos da crosta externa da terra sugeria a Tarzan duas hipóteses: ou teriam a mesma origem das criaturas de seu universo, ou a escala de evolução do homem era a mesma, por dentro e por fora do mundo, isto é, aquela forma primitiva de linguagem era a única, para todos os seres inferiores, em fase de transição de animal para homem. E o homem-macaco ficara impressionado com a naturalidade com que aquela estranha criatura, que o segurava pelo pescoço, havia pronunciado uma palavra daquele linguajar que lhe era familiar desde a sua mais tenra infância.

— Ka-goda? — repetiu o homem-gorila.

— Ka-goda — respondeu-lhe Tarzan. E ao ouvir Tarzan o brutamontes não conseguia esconder a surpresa que lhe causava o fato de o mesmo entender sua língua, chegando até a abaixar um pouco a clava que erguera ameaçadoramente sobre o prisioneiro.

— Quem é você? — perguntou-lhe.

— Sou Tarzan — respondeu o homem-macaco — grande caçador e grande lutador.

— Que é que você veio fazer aqui, nos domínios de M'wa-lot? — indagou o exótico gorila.

— Venho como amigo — respondeu Tarzan. — Nada tenho contra vocês.

O homem-gorila abaixou totalmente a clava, ao mesmo tempo que os outros brutamontes se aproximavam, fazendo vergar a galhada onde estava Tarzan, ao peso de seus volumosos corpanzis.

— E como você aprendeu a nossa língua, a língua dos sagothes? — continuou o grande gorila. — Já capturamos outros gilaks iguais a você, no passado, mas nenhum deles falava ou entendia a nossa língua.

— A língua que vocês falam — disse-lhe Tarzan — é a mesma que os meus companheiros das selvas falam. E aprendi este linguajar com Kala, quando ainda era um pequeno balu, e com outros macacos da raça dos Kerchaks.

— Nunca ouvi falar nessa raça Kerchak — falou o homem-gorila.

— Com certeza ele está mentindo — disse um outro. — É melhor matá-lo de uma vez. Não passa de um outro gilak.

— Não — disse um terceiro. — Vamos levá-lo até à presença de M'wa-lot e assim toda a nossa tribo participará da matança.

— Boa idéia — disse um outro. — Assim festejaremos sua morte com danças e festa!

O linguajar dos grandes macacos era muito diferente dos idiomas dos homens; soava aos ouvidos humanos como grunhidos, latidos e mugidos, intercalados de sons estridentes, intraduzíveis para qualquer língua, embora tivessem, para Tarzan e para os sagoths, o mesmo sentido das palavras que usamos. Era uma espécie de comunicação através do pensamento, no que diferia totalmente do linguajar humano.

Decidida a sorte de Tarzan, a atenção dos Sagoths voltou-se para o grande felino, deitado sobre o mato e observando o movimento de seus atacantes sobre as árvores.

Enquanto um dos homens-gorila amarrava as mãos de Tarzan atrás de suas costas, com uma tira de couro, outros três ou quatro voltaram a açoitar a fera, desfechando-lhe ritmados golpes sobre a cabeça. O tigre tentava desviar-se das violentas pancadas, que já o tonteavam, ao mesmo tempo que outros sagoths pulavam para o chão, manejando suas pesadas clavas em sucessivas pancadas sobre o corpo do felino com a mesma agilidade de qualquer macaco pequeno. O perigo a que se expunham denotava extrema confiança em si e espantosa coragem, uma vez que, em certos momentos, eram obrigados a arrancar as clavas das garras pontiagudas do tigre.

Surrado e ferido, o grande felino começou a recuar, incapaz de continuar a suportar aquela saraivada de golpes, até dar meia-volta, com o rabo entre as pernas, embrenhando-se pela floresta, completamente derrotado. E o rumor de suas patas sobre a vegetação marcava sua retirada definitiva.

Com a debandada do grande tigre, quase todos os outros gorilas saltaram para o solo, onde ainda havia a carcaça do touro selvagem, abatido pouco tempo antes pela fera que fugira. E com suas presas afiadas dilaceravam a carne do bovino gigante, disputando as melhores partes, como verdadeiros animais selvagens. Mas, diferentemente do comportamento de outras raças inferiores ao homem, em semelhantes circunstâncias, os homens-gorila não se destruíam uns aos outros pela posse da caça. E depois de satisfazerem seu apetite, abandonaram os restos aos chacais e aos lobos que já se aproximavam.

Como espectador silencioso daquela cena de pura selvageria, Tarzan pudera observar atentamente seus captores. Percebeu que eram de constituição bem mais leve do que os gorilas de suas selvas; no entanto, embora menos pesados do que Bolgani, por exemplo, pareciam-lhe tão fortes quanto o referido gorila da face externa da terra. Seus braços e suas pernas assemelhavam-se mais aos dos homens, mas o pêlo castanho e hirsuto que recobria-lhes o corpo acentuava-lhes a aparência animalesca. As feições de suas caras eram mais abrutalhadas do que as de Bolgani, enquanto que o desenvolvimento do crânio denotava a existência de um cérebro tão grande quanto o cérebro humano.

Não usavam coisa alguma sobre o corpo, nem mesmo qualquer enfeite, sendo que suas únicas armas eram as clavas. Pareciam talhadas por algum instrumento cortante, no intuito de obterem algo de fácil manejo e de proporções bem equilibradas.

E terminada a selvagem refeição, os sagoths, e com eles ° homem-macaco, puseram-se a caminhar, tomando a mesma trilha e a mesma direção que Tarzan tomara, antes de cair na armadilha. Mas, antes de partir, alguns deles ocuparam-se em tornar a armar o laço, camuflando uma das voltas sob a folhagem e a terra, a fim de que ficasse em condições de capturar o primeiro animal que passasse. Seus movimentos eram tão precisos e seus dedos tão habilidosos, que Tarzan compreendeu tratar-se de uma raça de gorilas muito próxima ao homem, apesar de sua aparência animalesca. Talvez ainda ocupassem uma posição muito atrasada, na escala da evolução dos macacos, mas não tinha dúvidas quanto a parecerem homens, com raciocínio de homens e aparência de gorilas.

Enquanto caminhavam pela trilha da floresta, os sagoths andavam eretos, sobre seus dois pés, exatamente como os homens andam. Mas, sob outros aspectos, assemelhavam-se aos grandes macacos das selvas de Tarzan, pois não riam, não cantavam e aquela aparência taciturna lembrava a mudez dos alalus. Demonstravam possuir certos sentidos bem mais desenvolvidos do que os dos homens, pois dependiam muito mais dos ouvidos e do nariz, do que dos olhos, em sua posição de alerta ao ataque imprevisto de um inimigo.

Embora pudessem ser considerados como criaturas horrendas e repugnantes, segundo os padrões humanos, não causavam esta impressão em Tarzan, que distinguia neles certa imponência primitiva, no procedimento e nos semblantes, que, aliás, era de se esperar, numa raça de macacos que atingia o limiar da raça humana.

Tornou-se um hábito, entre os teóricos do assunto, pintar nossos ancestrais como criaturas tímidas, medrosas, que passavam a vida aterrorizadas pelos seres selvagens à sua volta. No entanto, assim como não nos pareceria razoável que essas criaturas, tão despreparadas para o ataque e a defesa, tivessem tido condições de sobrevivência sem grande dose de coragem, torna-se muito mais lógico admitir que, ao despontar do uso da razão, desenvolveu-se paralelamente um certo complexo de superioridade — grande e inicialmente estúpido egoísmo — que lhes inspirava talvez um excesso de precaução, em vez de temor. Seria o mesmo que admitir uma criatura com a força de um leão e o temperamento de um coelho, dando origem a um homem que caçava bisões, mamutes e ursos das cavernas, com lanças talhadas em pedra.

Os sagoths de Pellucidar deveriam ocupar uma posição equivalente, senão logo abaixo, à do homem de Neanderthal, na escala de evolução do gênero humano, na crosta externa da terra. E Tarzan nada notara, no procedimento daqueles homens-gorila, que demonstrasse terem alcançado aquele ponto de evolução, de um dia para o outro. À medida que atravessava a floresta ao lado deles, observando-os atentamente, percebia que eram seguros de si, dotados de grande fortaleza física, bravos e destemidos como se fossem os próprios senhores do mundo. E o homem-macaco, melhor do que ninguém, tinha condições para entender aquele modo de ser, pois era muito parecido com seu próprio procedimento nas selvas: coragem, aliada a uma certa dose de precaução inteligente.

E ainda estavam a pouca distância do local da captura de Tarzan, quando, subitamente, os sagoths pararam diante de um tronco de árvore, inteiramente oco, que havia caído bem junto à trilha que seguiam. Um dos homens-gorila começou a bater no tronco, com sua clava, obedecendo a um certo ritmo — um, dois; um, dois; um dois, três. Depois de uma pequena pausa, repetiu as mesmas batidas e por três vezes o sinal ecoou pela floresta. Em seguida, ficou parado, ouvindo atentamente se obtinha resposta, enquanto os outros se abaixavam, colando a orelha no chão.

Em poucos segundos chegava a resposta, embora quase imperceptível, como se viesse pelo solo: um, dois; um, dois; um, dois, três.

Os gorilas deram-se por satisfeitos e começaram a subir nas árvores mais próximas, acomodando-se confortavelmente como se fossem ficar à espera de alguma coisa. Dois deles ajudaram Tarzan a subir também, pois, com suas mãos amarradas atrás das costas, não poderia fazê-lo sem auxílio de alguém.

Desde que haviam começado a caminhar, o homem-macaco nada mais falara. Mas agora, dirigindo-se a um dos sagoths junto a ele, disse-lhe:

— Desamarre minhas mãos. Não sou inimigo de vocês.

— Tar-gash, — falou o sagoth a quem Tarzan havia-se dirigido — o gilak quer que suas mãos sejam desamarradas.

Tar-gash, um dos grandes gorilas, com duas longas presas à mostra, virou seus olhos selvagens na direção de Tarzan e ficou a observá-lo durante algum tempo, como se estivesse em dúvida sobre a resolução a tomar.

— Desamarre-o — disse ele, ao fim de alguns segundos, dirigindo-se ao sagoth que lhe transmitira o pedido do homem-macaco.

— Por quê? — perguntou um outro, agressivamente.

— Porque eu, Tar-gash, estou mandando que o desamarrem — respondeu o grande gorila.

— Você não é M’wa-lot. Ele é que é o rei. Se M'wa-lot mandar desamarrá-lo, nós obedeceremos.

— Sei que não sou M'wa-lot, To-yad — disse o grande sagoth. — Sou Tar-gash e Tar-gash está mandando desamarrar as mãos dele.

To-yad pulou para perto de Tarzan.

— M'wa-lot não deve tardar — disse ele. — E se M’wa-lot mandar, obedeceremos. Não recebemos ordens de Tar-gash!

No mesmo instante, como se fosse uma pantera, Tar-gash agarrou To-yad pelo pescoço, num gesto preciso e rápido. Não houve ameaça nem hesitação. Diante deste incidente, Tarzan compreendeu que os sagoths eram completamente diferentes dos grandes macacos de suas selvas, na crosta externa da terra, pois, entre estes últimos, o ataque era sempre precedido por demonstração de raiva. Balançavam-se ameaçadoramente sobre as pernas, soltavam grunhidos antes de se lançar numa luta corpo a corpo. Mas o cérebro dos sagoths funcionava com a mesma rapidez do cérebro humano, fazendo-os decidir e agir quase que simultaneamente.

O impacto do corpanzil de Tar-gash sobre To-yad fê-los cair do galho em que estavam; no entanto, os sagoths eram animais tão acostumados a viver sobre as árvores que os dois gorilas não chegaram a rolar por terra, segurando-se com uma das mãos no próprio galho. E a luta prosseguiu praticamente no ar, um atacando o outro com a mão que ficara livre e com seus afiados dentes, até que finalmente perderam o equilíbrio e tombaram no solo. Lutavam quase em silêncio, à exceção de alguns surdos grunhidos. Tar-gash procurava a jugular de To-yad, com suas pontiagudas e afiadas presas, que lhe valiam o nome que tinha, enquanto To-yad, lutava na defensiva, esquivando-se das mandíbulas do outro até que, de repente, numa reviravolta inesperada, conseguiu libertar-se das garras do seu atacante, armando um salto para a árvore mais próxima. No mesmo instante, com a agilidade de um jogador de futebol, Tar-gash projetou-se no ar e, com seu longos braços, agarrou To-yad pelas pernas, fazendo-o voltar ao chão. Segundos depois, o agressor encontrava-se sobre as costas de seu oponente e a jugular de To-yad ao alcance de seus dentes.

Mas, Tar-gash não fechou suas colossais mandíbulas sobre ela.

— Ka-goda? — perguntou.

— Ka-goda — respondeu-lhe To-yad. Imediatamente Tar-gash saiu de cima do outro homem-gorila. E com a agilidade de um mico saltou para o galho de árvore onde estava Tarzan.

— Desamarre as mãos do gilak — disse ele, dirigindo-se a um dos sagoths, ao mesmo tempo que olhava à sua volta para ver se havia algum outro rebelde como To-yad.

Ninguém dizia palavra, ninguém mais protestou, enquanto um dos homens-gorila desatava o nó da correia que imobilizava os pulsos do homem-macaco.

— Se ele tentar fugir — disse Tar-gash — matem-no! Quando Tarzan se viu com as mãos livres, julgou que seus captores fossem tirar-lhe o facão, que trazia preso à cintura. Já tinha perdido a lança, o arco e algumas flechas, no momento em que fora atirado para o ar, pela armadilha em que pisara. Mas embora aquelas armas tivessem ficado bem à vista, espalhadas pelo chão, no local onde havia sido laçado, os sagoths não lhes tinham dado maior atenção, assim como agora não se interessavam por sua faca, o que deixava Tarzan perplexo, sem entender por que não se preocupavam em desarmá-lo. Ou os gorilas desconheciam sua finalidade, ou tinham tanta confiança nas próprias forças que o trabalho de desarmar o homem-macaco não pagava a pena.

To-yad voltava a instalar-se em outro galho, mantendo-se um pouco afastado dos demais, ruminando sozinho a sua raiva.

Em dado momento, Tarzan começou a ouvir ruído de passos, embora muito longe.

— São eles! — anunciou Tar-gash.

— M'wa-lot vai chegar! — disse um outro, olhando para To-yad.

E só então Tarzan entendeu o motivo de haverem feito soar aquele tambor primitivo, com batidas ritmadas. Mas continuava sem entender o motivo do chamado e daquela reunião no meio da floresta.

Quando, finalmente, o grupo dos grandes gorilas apontou numa curva da trilha, o homem-macaco reconheceu logo M'wa-lot, o chefe da tribo, que vinha andando na frente de todos, com os pêlos do rosto completamente cinzentos, o que lhe dava um tom azulado à fisionomia, daí o seu nome.

Assim que os sagoths se certificaram da identidade dos que se aproximavam, saltaram, rapidamente, das árvores, e quando M'wa-lot já se encontrava a pouca distância de seus súditos, gritou-lhes:

— Sou M'wa-lot e minha tribo vem comigo!

— Sou Tar-gash — respondeu-lhe o grande sagoth — e a outra parte da tribo de M'wa-lot está comigo!

Depois dessa solene apresentação, M'wa-lot aproximou-se, seguido pelas mulheres e pelos pequenos balus de sua tribo.

— O que é isso? — perguntou M'wa-lot, ao dar com os olhos em Tarzan.

— É um gilak que encontramos preso em nossa armadilha — explicou Tar-gash.

— E foi para saborear isto que vocês nos chamaram? — tornou M'wa-lot, visivelmente aborrecido. — Poderiam tê-lo levado até nós. Afinal de contas, ele pode andar.

— Não foi por causa dele que fizemos soar o tambor — disse Tar-gash. — Foi porque encontramos aqui perto, exatamente no local onde o gilak caiu no laço, a carcaça de um touro selvagem, abatido por um tarag.

— Bem — resmungou M'wa-lot — então deixaremos o gilak para mais tarde.

— Poderíamos comemorar tudo isso com danças — sugeriu um dos captores de Tarzan. — Já comemos e dormimos muitas vezes, depois de nossa última dança.

Em seguida, partiram todos em direção ao local onde jazia o corpanzil do touro abatido pelo grande tigre, guiados por Tar-gash. As fêmeas e seus filhotes, os pequenos balus, emitiam confusos grunhidos entre si, até que um dos balus, desgarrando-se da mãe, foi para junto de Tarzan. Os sagoths olharam, desconfiados, e todos pareciam constrangidos pela presença do homem-macaco entre eles. Quanto a essa desconfiança e esse constrangimento, em face de um estranho à tribo, os homens-gorila assemelhavam-se muito aos kerchaks, da face externa da terra. E tanto aquelas duas raças de grandes macacos eram extremamente parecidas que Tarzan, apesar de prisioneiro, sentia-se perfeitamente à vontade, em companhia deles.

M'wa-lot, o chefe da tribo, ia a pouca distância de Tarzan, tendo a seu lado o agressivo To-yad. Os dois conversavam à meia-voz e diante dos freqüentes olhares em direção a Tar-gash, que ia à frente de todos, tornava-se óbvio que falavam sobre ele, daí toda a irritação que M'wa-lot demonstrava.

E To-yad certamente tentava incitá-lo contra Tar-gash, fato que toda a tribo já percebia, à exceção do próprio Tar-gash, que continuava à frente do grupo. A cada passo e a cada palavra de To-yad, mais o chefe se enfurecia, causando uma certa inquietude entre os demais sagoths que agora não tiravam os olhos de seu rei.

Mas, foi só quando já se avistava a carcaça do touro selvagem que se desencadeou a tempestade. Sem que ninguém esperasse, M'wa-lot ergueu no ar a pesada clava e saltou em direção a Tar-gash, com evidente intenção de atacá-lo pelas costas.

Se a vida havia ensinado a Tarzan, em suas constantes lutas para sobreviver, a agir com rapidez, ensinara-lhe também a pensar com rapidez. O homem-macaco sabia perfeitamente que não poderia contar com aliado algum, entre os sagoths. Mas se houvesse algum, seria Tar-gash, pois tinha agido em seu favor, embora mais por teimosia e ódio a To-yad. E naquele instante, talvez o próprio Tar-gash precisasse de um amigo, desde que nenhum dos sagoths ousaria defendê-lo contra o chefe da tribo.

Assim sendo, levado pelo seu espírito de lealdade e talvez um pouco por interesse próprio, o homem-macaco pulou em defesa de Tar-gash, com aquela velocidade de ação e de pensamento que ninguém conseguiria deter.

— Kreeg-ah, Tar-gash! — gritou ele, ao mesmo tempo que saltava para a frente, afastando To-yad com um de seus vigorosos braços, fazendo-o rolar pelo mato adentro.

Ao ouvir aquele grito de alarme, pois “kreeg-ah”, na linguagem dos grandes macacos, significava “cuidado”, Tar-gash virou-se abruptamente e defrontou-se com M'wa-lot que tinha a clava erguida sobre sua cabeça. E o que seus olhos viram deixou-o completamente estarrecido, pois viu o gilak, que ele Próprio havia capturado, agarrar M'wa-lot pelo pescoço, apertando-o fortemente. Em seguida, virando-se rapidamente, atirou o grande gorila por sobre sua cabeça, com toda a violência, fazendo-o rolar por terra, diante de sua tribo boquiaberta. E enquanto Tarzan saltava para junto de Tar-gash, viu os sagoths erguerem suas clavas sobre eles.

— Devemos permanecer aqui e enfrentar a luta? — perguntou o homem-macaco.

— Seremos estraçalhados por eles — respondeu-lhe Tar-gash. — Se você não fosse um gilak, poderíamos fugir pelas árvores. Mas, como isso não lhe seria possível, teremos de lutar.

— Vá na minha frente — disse Tarzan — e o seguirei, pois não há dificuldade para mim, em fugir pelas árvores e não há trilha de sagoths que eu não consiga seguir.

— Então, venha — respondeu-lhe Tar-gash, ao mesmo tempo que agitava sua clava sobre os gorilas que já se aproximavam .

Virou-se, rapidamente, saltando para o galho mais próximo, no que foi prontamente seguido por Tarzan.

Os combativos sagoths de M'wa-lot saíram atrás dos dois fugitivos até uma certa distância, mas logo desistiram de persegui-los, como Tarzan esperava, pois entre os grandes macacos de suas selvas, quando algum deles perturbava a ordem, perseguiam-no somente até um certo ponto e, a menos que o revoltoso insistisse para voltar, nenhum dos outros lhe obrigava a isto ou lhe fazia algum mal.

E assim que Tarzan e Tar-gash perceberam que não estavam mais sendo seguidos, pararam para descansar, no topo de um frondosa árvore.

— Eu sou Tar-gash — disse-lhe o grande gorila.

— Eu sou Tarzan — respondeu o homem-macaco.

— Por que motivo você me preveniu contra o perigo que corria? — quis saber Tar-gash.

— Eu já lhe tinha dito que não estava aqui como inimigo — explicou Tarzan. — Quando compreendi que To-yad havia conseguido induzir M'wa-lot a atacá-lo, tratei de alertá-lo, pois foi você que impediu seus companheiros de matarem-me quando fui capturado.

— E o que você estava fazendo nos domínios dos sagoths? — perguntou Tar-gash.

— Estava caçando — respondeu-lhe Tarzan.

— Para onde você quer ir agora? — indagou o grande sagoth.

— Quero voltar para junto dos meus companheiros — disse Tarzan.

— Onde estão eles?

Tarzan hesitou. Olhou para o sol, cujos raios atravessavam a densa ramagem das árvores, olhou à sua volta, onde tudo era folhagem e compreendeu que não havia a menor indicação que lhe permitisse voltar para o local onde ficara a nave. Tarzan estava completamente perdido.

SEM ESPERANÇA

Jason Gridley, do alto da árvore onde se havia refugiado, contemplava, com um misto de fascínio e horror, a carnificina entre os grandes tigres e suas presas

Aquela cena que presenciava — terrível espetáculo de selvageria — levava-o a imaginar como deveria ter sido a vida, na crosta externa da terra, no limiar do aparecimento da humanidade no mundo.

E surgiu-lhe a idéia de que talvez aquela cena ilustrasse uma das causas mais importantes da extinção daqueles animais da face exterior do universo.

A astúcia dos gatos gigantes de Pellucidar, cercando os outros animais e levando-os àquela clareira para dizimá-los, evidenciava um grau de inteligência muito superior ao dos carnívoros de hoje, na crosta externa da terra; tratava-se, em última análise, de uma ação conjunta, executada por um grande número, em favor do bem comum, um modo de agir completamente desconhecido para as feras de nosso mundo.

Gridley observava o número incontável de animais abatidos desnecessariamente, pois havia uma quantidade de carne superior ao apetite dos tigres sobreviventes, antes de sua deterioração. E esse fato deixava-o convicto de que os grandes carnívoros procuravam exterminá-los definitivamente, uma vez que, em sua fúria selvagem e na ganância de satisfazerem seus apetites, atacavam indiscriminadamente machos e fêmeas, filhotes e animais velhos, sem, no entanto, se darem conta disso, pois chegariam a um ponto em que não encontrariam mais o que comer e levados pela fome e pela inanição, terminariam por se devorarem uns aos outros, exterminando a própria raça.

O último estágio da predominância dos grandes tigres, na face exterior da terra, deveria ter sido um período curto e terrível, diante do que se passava em Pellucidar.

E assim como os grandes tigres chegavam àquele ponto de causarem a extinção da própria espécie, assim também deveria ter acontecido aos gigantescos e carnívoros dinossauros do período jurássico, uma era anterior àquela, causando a extinção dos animais seus contemporâneos e a sua própria extinção.

Esse raciocínio levava Jason Gridley a aplicar a mesma lei de evolução ao homem da face externa da terra, num futuro bem próximo. Lembrava-se das estatísticas que se referiam ao extermínio da raça humana dentro de duzentos anos, uma vez que a população sempre crescente acabaria por esgotar os recursos naturais existentes no mundo, até que a última geração de homens morreria de fome ou voltaria ao canibalismo a fim de prolongar a existência por mais algum tempo.

Gridley achava que talvez cada raça dominante, em sua era, representasse uma experiência, nos laboratórios da natureza, em busca da perfeição. Os invertebrados haviam dado origem aos peixes, que por sua vez deram origem aos répteis, os répteis aos pássaros e aos mamíferos e esses últimos forçados a se curvar diante da inteligência do homem.

Mas, o que viria depois? Jason Gridley acreditava firmemente que apareceria um outro tipo de criatura, depois do homem, o que representava uma falha do Criador, conservando, como vinha acontecendo na evolução dos animais, todos os defeitos dos tipos anteriores, desde os invertebrados até os mamíferos, e por outro lado anulando grande parte de suas qualidades.

E enquanto esta seqüência de pensamentos passava por sua mente, provocada pela cena de repugnante selvageria que se desenrolava sob seus olhos, sua inteligência induzia-o a outros pensamentos de importância mais imediata, como fosse o destino de seus companheiros de expedição.

Gridley não distinguia o menor vestígio de um ser humano, morto ou vivo, por toda a extensão daquela clareira que tinha diante de si. Já havia gritado por eles várias vezes, apesar de compreender que sua voz não poderia alcançar grandes distâncias, não poderia sobrepujar aqueles urros estrepitosos e aqueles grunhidos de todas as espécies que acompanhavam a feroz luta travada entre os animais. Tinha esperança de que todos tivessem conseguido escapar com vida, mas continuava extremamente preocupado com a sorte de von Horst.

Em segundo lugar, vinha a preocupação com a sua própria fuga e seu próprio retorno à 0-220. Esperava inconscientemente pelo cair da noite, quando as feras se afastariam e, pensando assim, olhou para o sol, a fim de orientar-se sobre a passagem do tempo. E só então caiu em si, lembrando-se de que não havia noite em Pellucidar, e aquele sol brilharia indefinidamente por toda a eternidade. Procurou calcular quanto tempo teria levado da nave até aquele local, mas quando olhou para seu relógio compreendeu que nada significava, pois os ponteiros poderiam ter dado uma volta completa sem que Gridley, em suas peripécias de viagem, pudesse se dar conta do tempo decorrido. E sem a ajuda do sol, sem a ajuda do relógio, como poderia a mente humana calcular as horas?

Sabia que as feras abandonariam a clareira assim que se saciassem. No entanto, depois viriam as hienas, os chacais e os lobos selvagens que já se aproximavam lentamente, mantendo uma certa distância, à espera de que os grandes gatos se fartassem. E Gridley não sabia quando poderia descer de onde estava, até que todos os animais se dessem por satisfeitos e lhe deixassem livre o caminho.

As hienas selvagens, por exemplo, tinham um aspecto repugnante. Com o corpo recoberto por um pêlo escuro e espesso, clareando na altura da barriga, onde era quase branco, tinham pernas curtas e fortes, mandíbulas largas e maciças, e o tamanho de um mastim adulto.

Jason Gridley já sentia doer-lhe o estômago, de tanta fome, e suas pálpebras estavam pesadas de sono, o que lhe dava a entender que já deveria estar há muitas horas longe da 0-220. Mas as feras continuavam devorando suas presas com uma voracidade insaciável.

Um touro selvagem jazia morto, aos pés da árvore onde se refugiara Gridley, sem ter sido ainda devorado pelos carnívoros. O tigre mais próximo deveria estar a uns cinqüenta metros de distância, mas Gridley estava tão faminto que sua vontade era descer da árvore e apanhar um pedaço daquela carne para comer. Mediu com os olhos a distância entre sua árvore e o tigre mais próximo e tentou calcular mentalmente o tempo que levaria para descer, apanhar o pedaço de carne e subir novamente para a árvore. Tinha observado os tigres durante longo tempo e sabia que eram muito ágeis e rápidos em seus movimentos. Poderiam atacá-lo de um relance e eram capazes de saltar mais alto do que o galho em que estava escondido .

Mas, embora tivesse pouca chance de escapar, a menos que o tigre mais próximo não o visse, Gridley deixou-se vencer pela fome que o dominava. Tirou a faca da cintura e escorregando silenciosamente pelo tronco da árvore desceu ao chão, sempre olhando para a fera que estava mais perto, e começou a cortar vários pedaços de carne do quarto traseiro do touro.

De repente, o tigre que estava mais próximo, levantou os olhos. Jason ainda conseguiu tirar mais uma fatia de carne e, recolocando a faca na cintura, subiu rapidamente para o alto da árvore. E por incrível que pareça, o carnívoro baixou os olhos novamente para a sua presa, continuando a devorá-la, sem dar atenção ao que vira.

Gridley conseguiu, então, fazer uma pequena fogueira sobre a bifurcação de dois galhos da árvore, juntando, para isso, alguns galhos secos e folhas secas que conseguiu apanhar da própria árvore em que estava.

O churrasco não ficou dos mais bem feitos, com a parte de fora quase queimada e a parte de dentro muito crua. Mas Jason Gridley poderia jurar que nunca comera uma carne tão saborosa.

E quanto tempo teriam durado suas atividades culinárias, seria impossível calcular. O fato é que, quando se deu por satisfeito e olhou para a clareira, os grandes tigres já se afastavam vagarosamente, com suas barrigas volumosas atestando a quantidade de carne que haviam devorado. Os chacais, as hienas e os lobos devoraram os restos, sendo que as hienas se aproximaram em primeiro lugar, mantendo os outros afastados e só deixando que se alimentassem quando elas próprias já estavam fartas.

Naquele meio tempo Gridley já tinha improvisado uma pequena plataforma, com galhos superpostos sobre os galhos mais resistentes, e, deitando-se sobre aquela cama de folhas, dormiu pesadamente.

Acordou descansado e refeito, mas agora uma sede insuportável deixava-o desesperado. Os lobos e demais animais selvagens já se afastavam da clareira, embrenhando-se floresta adentro, e Gridley resolveu não esperar mais, embora o cheiro da carne ainda pudesse atrair novamente os tigres.

Desceu da árvore e começou a procurar a trilha que o levara até aquele local. Os lobos ainda se viraram em sua direção, uivando e arreganhando os dentes, mas compreendendo que já estavam muito bem alimentados, Gridley não se atemorizou.

No entanto, sentia-se completamente desnorteado ao verificar que havia inúmeras trilhas que vinham terminar na clareira em que se encontrava. Não havia o menor sinal, a menor marca, que distinguisse a trilha por onde viera sua expedição das demais. E quaisquer pegadas que ele e seus companheiros pudessem ter deixado no chão teriam sido destruídas pelas patas de todos aqueles animais que por ali haviam transitado.

Tentou reconstituir o caminho que seguira até à árvore onde se refugiara, seguindo por uma trilha que lhe parecia a mesma pela qual viera, sem, no entanto, ter muita certeza. O sol continuava no mesmo lugar e parecia desafiá-lo com seus raios implacáveis, com sua total inutilidade.

E à medida que Gridley prosseguia em sua caminhada, sabendo que a qualquer momento poderia defrontar-se com alguma besta feroz, imaginava como o homem primitivo teria conseguido sobreviver e procriar para dar origem à raça humana de nossos dias. Se tinha quase certeza de não chegar são e salvo à 0-220, a idéia de arranjar uma companheira e constituir família lhe parecia totalmente absurda.

Embora o aspecto geral da floresta lhe fosse familiar, isso não significava que estivesse na trilha certa. E naquele momento recriminava-se a si mesmo por não ter feito seus companheiros marcarem as árvores que ladeavam a trilha por onde tinham vindo. Lamentava-se muito mais pelos outros do que por si mesmo, visto sua responsabilidade, como chefe da expedição, em salvaguardar-lhes a vida.

Jason Gridley nunca se sentira tão desamparado e tão inútil, em toda a sua vida, como naquele momento. Caminhava sob forte tensão, alerta aos perigos prováveis c iminentes, percorrendo aquele caminho interminável sem ter a menor idéia se estava indo na direção da 0-220 ou em direção oposta. Isso já era o bastante para deprimi-lo, para quase enlouquecê-lo. E por outro lado, não havia outra coisa a fazer. Enquanto isso, aquele sol eternamente a pino sobre sua cabeça, aquele sol que podia ver onde estava a 0-220 mas não podia conduzi-lo até ela.

A sede que o dominava já chegava até o auge quando finalmente Jason Gridley encontrou um pequeno riacho que cortava a trilha. Bebeu água, descansou por alguns instantes, fez uma pequena fogueira, onde assou o resto da carne de touro que ainda tinha, tornou a beber água e prosseguiu cm sua penosa caminhada, porém bem mais animado.

A bordo da 0-220 as horas passavam rápidas e a esperança diminuía, pois os oficiais que tinham ficado e os demais tripulantes da nave sentiam-se deprimidos e apreensivos pela sorte dos companheiros que haviam partido na expedição à procura de Tarzan. E essa angústia, esse desânimo que os dominava foi aumentando, à medida que o tempo passava, até que finalmente todos estavam convencidos de ter acontecido o pior com todos eles, inclusive com o homem-macaco.

— Faz setenta e duas horas que a expedição partiu — disse Zuppner que, em companhia de Dorf e de Hines, não abandonava o posto de observação, situado na parte superior da nave. Às vezes ficava andando de um lado para outro, no corredor estreito dos fundos da 0-220, sem conseguir disfarçar sua ansiedade.

— Nunca me havia sentido tão desamparado, tão desnorteado, em toda a minha vida — continuou ele, como se falasse consigo mesmo. — Mas, confesso que de todo não sei o que fazer e como agir, num momento desses.

— Isso prova — disse Hines — a que ponto dependemos de hábitos, costumes e precedentes para orientarem-nos em nossas ações, mesmo em face de uma situação que poderíamos chamar, com certo otimismo, de emergência. Aqui não há costumes, hábitos ou precedentes para nos servirem de guias.

— Dispomos apenas de nossos próprios recursos — comentou Dorf — baseados em suposições. E torna-se humilhante chegarmos à conclusão de que, afinal, estamos de braços cruzados, sem recursos.

— Se estivéssemos sob outras circunstâncias — disse Zuppner — isto é, se estivéssemos na crosta externa da terra, não teríamos dúvidas em sobrevoar o local que nos rodeia, à Procura de nossos companheiros. Poderíamos organizar uma nova expedição por terra, que percorreria pequenos trechos, retornando sempre à nave para dar notícias. Mas, aqui em Pellucidar, se perdêssemos de vista esse lugar de aterragem, não poderíamos retornar. E nunca teríamos o direito de correr este risco, uma vez que a única esperança de nossos homens deva ser reencontrar a 0-220 e saber que estará no mesmo lugar onde a deixaram.

A poucos metros abaixo da torre de observação estava Robert Jones, o cozinheiro de bordo, um pouco adiante da porta de sua cozinha, observando o brilho do sol a pino sobre a nave. Sua fisionomia alegre e simpática tinha agora uma expressão diferente; parecia confuso e ao mesmo tempo apreensivo e, ao voltar à cozinha, retirou um pé de coelho do bolso traseiro da calça. Contemplou-o por alguns segundos e começou a esfregá-lo com força no alto da cabeça, enquanto pronunciava palavras ininteligíveis.

Da torre de observação, situada no alto da nave, Hines podia esmiuçar com os olhos toda a paisagem à sua volta, em todas as direções, auxiliado por possantes binóculos. Tinha a impressão de já saber de cor a posição e a qualidade de cada árvore, de cada vegetação, de cada espécie de plantas que o cercavam. Os animais selvagens que transitavam pelos arredores já não causavam mais espanto àqueles três homens que não abandonavam seu posto havia muitas horas. Cada vez que emergia algum ser vivente das bordas da floresta, imediatamente levantavam os binóculos, na esperança de que fosse um dos integrantes da malograda expedição. Mas, de repente, Hines deu um grito.

— O que é aquilo? — exclamou Zuppner, levando seu binóculo aos olhos. — O que é que você está vendo?

— É um homem! — exclamou Hines fora de si. — Agora tenho certeza!

— Onde? — perguntou Dorf, levando também seu binóculo aos olhos.

— Dois pontos a bombordo! — disse Hines.

— Agora estou vendo — disse Dorf — e deve ser Gridley ou von Horst. Seja quem for, está sozinho.

— Chame depressa uns dez homens da tripulação — ordenou Zuppner a Dorf. — Providencie arma para todos e partam imediatamente ao encontro de quem se aproxima. Não percam tempo.

Hines e Zuppner continuaram em seu posto de observação, enquanto Dorf descia correndo a escada. E em poucos minutos partiam os homens em direção à floresta de onde surgira a figura humana que caminhava com visível dificuldade.

Os dois oficiais observavam atentamente a marcha do grupo chefiado por Dorf e viram quando já estavam bem próximos, o grupo e o homem, embora nem Dorf nem este tivessem podido avistar-lhe, devido à ondulação do terreno, até que estivessem frente à frente. Só então o grupo de Dorf reconheceu Jason Gridley.

E enquanto corriam, para apressar o encontro, trocando abraços e apertos de mão, era característico da personalidade de Gridley que sua primeira pergunta fosse sobre os outros membros desaparecidos da sua expedição.

— Até agora — respondeu-lhe Dorf — você foi o primeiro a aparecer.

Imediatamente apagou-se o brilho de alegria que iluminava os olhos de Gridley e logo ele pareceu mais cansado, mais abatido e mais velho, enquanto continuava a cumprimentar os demais tripulantes da 0-220 que tinham ido ao seu encontro.

— Estive muito tempo perdido da nave — disse ele — mas não sei exatamente quanto tempo. Quebrei o relógio no meio da floresta, quando tive que me defender de um tigre, sobre uma árvore, e quase fui atacado por um outro, já chegando a esta clareira e já avistando a 0-220. Tenho a impressão de ter levado uma semana fora. Há quanto tempo parti, Dorf?

— Há setenta e duas horas — respondeu-lhe Dorf.

— Então ainda não há motivo para perdermos as esperanças em relação aos outros — disse Gridley, com novo brilho nos olhos. — Sinceramente pensei que tinha levado uma semana para estar de volta aqui. Dormi diversas vezes pelo caminho e nunca conseguia saber por quanto tempo dormia. Passei, também, longos períodos sem dormir, devido ao excesso de fome, de sede e de cansaço.

E enquanto caminhavam em direção à nave, Jason Gridley fez questão de ouvir o relato completo sobre todas as ocorrências a bordo da 0-220 durante a sua ausência. Mas foi só quando se viu diante de Hines e de Zuppner que passou a narrar suas aventuras e tudo que acontecera a ele e a seus companheiros, durante a expedição.

— Agora — concluiu ele — estou louco por um banho. Depois, se Bob puder assar dois bois, serei capaz de devorá-los. Os pedaços de carne de touro selvagem e algumas frutas desconhecidas que comi só serviram para me abrir o apetite. E enquanto comer, contarei o resto.

Meia hora mais tarde, de banho tomado, barba feita e roupa mudada, Jason Gridley juntava-se aos companheiros, na sala de refeições da nave, pronto para continuar a narrativa de suas peripécias, quando Robert Jones veio da cozinha, com um grande sorriso lhe iluminando o rosto.

— Estou muito contente de ver o senhor de volta — disse ele, em sua linguagem simplória, dirigindo-se a Gridley. — Eu sabia que hoje ia acontecer uma coisa, que hoje a gente estava de sorte...

— Eu também estou muito contente por estar de volta — respondeu-lhe Gridley, visivelmente divertido pela conversa do cozinheiro. — Mas, por que você está dizendo que hoje estamos de sorte?

— Porque andei conversando com meu pé de coelho — disse Robert Jones. — Ele nunca me falhou e se eu o perdesse, ficaríamos todos sem sorte!

— Tenho visto muitos coelhos pelas redondezas — disse-lhe Zuppner — e a qualquer momento poderemos arranjar-lhe quantos pés de coelho quiser.

— Mas aqui nesse lugar o senhor não ia poder pegar coelho de noite, com a luz da lua — respondeu Bob. — Aqui só há dia. E pé de coelho, para dar sorte, tem que ser apanhado de noite, e em noite de luar.

— Então foi muito bom termos trazido você conosco — disse Gridley — e foi muito bom para Pellucidar também, pois aqui nunca existiu um pé de coelho apanhado em noite de luar. E acho que você vai precisar dele dentro de poucos minutos, Bob.

— Por que o senhor está dizendo isso? — quis saber o supersticioso cozinheiro.

— Os espíritos me dizem que lhe vai acontecer alguma coisa de ruim, se não trouxer a comida depressa para a mesa — pilheriou Gridley.

— Então é para já — respondeu Bob, correndo para a cozinha.

Enquanto Gridley comia, contava com detalhes tudo que lhe havia acontecido naquelas últimas setenta e duas horas. E os três homens tentavam calcular a distância que havia entre a nave a clareira onde a expedição havia sido desbaratada.

— Você seria capaz de conduzir uma outra expedição até à clareira onde se perdeu de von Horst e dos waziris? — perguntou Zuppner.

— Claro que seria — respondeu Jason Gridley — pois quando entramos na floresta, fomos deixando marcas em quase todas as árvores até encontrarmos a trilha que nos levou à clareira. Aliás, nem seria necessário que eu fosse junto e, se resolvermos organizar uma nova expedição, de qualquer modo, eu não irei.

Os outros dois oficiais se entreolharam, visivelmente surpreendidos com as palavras de Gridley e houve um embaraçoso momento de silêncio.

— Tenho novo plano em mente — continuou Jason Gridley. — Agora somos, ao todo, vinte e sete pessoas. Em caso de absoluta necessidade, bastariam doze homens para dirigir a nave. Sobrariam, então, quinze para formar uma nova expedição e, sem contar comigo, ainda seriam quatorze homens. Se estiverem de acordo com minha idéia, o tenente Dorf seria o chefe da expedição, enquanto o capitão Zuppner e Hines comandariam a 0-220, em caso de ninguém voltar ou se resolverem sair à nossa procura.

— Mas, você não disse que não iria? — indagou Zuppner.

— Não tomaria parte na expedição — respondeu-lhe Gridley — mas iria sozinho no pequeno avião de exploração e vocês só deixariam a expedição seguir vinte e quatro horas depois da minha partida, pois a essa altura já deveria ter localizado nossos homens ou já teria desistido de procurá-los.

Zuppner balançou a cabeça, em sinal de dúvida.

— Hines, Dorf e eu já havíamos pensado em usar o avião de exploração — disse ele. — Hines estava mesmo propenso a utilizá-lo, embora saiba, melhor do que qualquer de nós, que, perdendo de vista a 0-220, o piloto talvez não conseguisse mais localizá-la, uma vez que ninguém conhece os marcos e as características da região, na direção em que deveria ser orientada a busca.

— Já pensei nisso tudo — disse Gridley — mas seria o nosso último recurso para salvar nossos companheiros.

— Então deixe-me realizar este vôo — pediu Hines. — Tenho mais experiência, como piloto, do que qualquer um de vocês, à exceção do capitão Zuppner e está fora de dúvida que não nos podemos arriscar a perdê-lo.

— Qualquer de vocês três estaria mais capacitado a empreender este vôo do que eu — respondeu Gridley — mas isso não me aliviaria de minha responsabilidade. Sou o maior responsável por estarmos onde estamos e também pela vida de todos os participantes desta expedição, sobretudo os que estão perdidos na floresta. Diante disso, não permitiria que nenhum outro assumisse o risco desse vôo. Espero que todos entendam o meu ponto de vista e que todos compreendam e avaliem como me sinto, não interpondo outras objeções.

Seguiu-se um silêncio de tensão, enquanto os quatro homens pareciam inteiramente absorvidos pela ocupação de tomar café e fumar. E foi Zuppner quem finalmente quebrou o silêncio.

— Antes de você levar esses planos adiante — disse ele

— seria bom que dormisse e descansasse bastante, enquanto tiramos o avião e testamos seu funcionamento, pois tudo faremos para que você tenha todas as probabilidades de sucesso em seu empreendimento.

— Muito obrigado! — exclamou Gridley. — Vocês têm razão, quanto ao meu descanso, e embora deteste perder tempo, dormindo, irei imediatamente para minha cabina, com a condição de que me acordem assim que o avião estiver pronto para o vôo.

E enquanto Jason Gridley dormia, o avião de exploração era retirado da 0-220 e submetido a uma minuciosa inspeção c a todos os testes possíveis, pelos próprios engenheiros e oficiais da nave.

Antes mesmo que o pequeno aparelho fosse dado como pronto para decolar, Jason Gridley surgiu à porta de sua cabina, descendo para o exterior da 0-220.

— Você dormiu muito pouco — disse-lhe Zuppner.

— Não sei por quanto tempo dormi — respondeu Gridley

— mas o fato é que me estou sentindo descansado e nem conseguiria dormir por mais tempo, sabendo que nossos companheiros estão perdidos por estas selvas desconhecidas, à espera de socorro.

— Que rota você pretende seguir? — perguntou-lhe Zuppner. — E como é que você pretende orientar-se para retornar à nave?

— Pretendo voar em linha reta, na direção da floresta — respondeu Gridley — até o ponto mais longínquo que eles possam ter alcançado, depois da clareira, onde nos dispersamos. Tenho a impressão de que andaram em sentido oposto à 0-220, preocupados que estavam em fugir das feras e desnorteados pelas emoções por que passaram. Assim que conseguir atingir uma altitude suficiente para observar a região, tentarei localizar e memorizar alguns pontos de referência, na própria natureza, em relação à nave, como, por exemplo, uma elevação do terreno, um veio d’água, a fim de poder orientar-me quando tiver que retornar ao local onde se encontra a 0-220. Tomarei nota, por escrito, desses pontos de referência e estarei atento para não me afastar por mais de uns duzentos e quarenta quilômetros, mais ou menos, pois o combustível não daria para mais do que isso, incluindo a volta. Quando atingir o ponto mais afastado possível, tentarei voar em círculo, dependendo do ruído do motor para chamar-lhes a atenção, e estou certo de que, se me ouvirem, farão sinais, mesmo que estejam numa região de muitas árvores e muita vegetação, uma vez que há sempre o recurso de acender uma fogueira e deixar que a fumaça fale por eles.

— Você espera poder aterrar? — quis saber Zuppner, vendo a pesada espingarda que Gridley preparava para levar.

— Se os encontrar em campo aberto, sim — respondeu Gridley. — Mas, mesmo que não os consiga localizar, poderá surgir algum imprevisto que me faça ter necessidade de aterrar, e minhas recentes experiências nas selvas de Pellucidar me ensinaram a nunca andar desarmado por estas florestas.

Depois de uma rápida inspeção em tudo, Gridley despediu-se dos três oficiais que ficavam, acenou um adeus para a tripulação que observava ansiosamente seus preparativos e dirigiu-se para o pequeno avião de exploração.

— Adeus, meu velho — disse-lhe Zuppner. — Que Deus lhe acompanhe e a sorte também!

Gridley e Zuppner trocaram um forte aperto de mão e um olhar de mútua e leal amizade. Em seguida, Gridley entrou na Pequena cabina de comando do avião, que era aberta, isto é, sem teto, enquanto dois mecânicos acionavam a hélice. Ouviu-se o ronco de motor e logo o aparelho se pôs em movimento, ganhando distância sobre o terreno plano e recoberto de mato rasteiro. Em poucos minutos já estava no ar e todos puderam ver que Gridley descrevia um grande círculo sobre a clareira onde estava aterrada a 0-220, visivelmente para anotar algum ponto de referência que lhe facilitasse a volta. Repetiu a manobra por duas vezes e depois seguiu sua rota em direção às selvas.

E foi só quando Jason Gridley descreveu o segundo círculo que se deu conta da grande desvantagem que levava para se orientar, numa terra como Pellucidar, sem horizonte. Pensara existir alguma elevação maior ou mesmo alguma montanha, nas imediações da clareira onde estava a nave, o que representaria uma constante referência, durante todo o vôo. No entanto, havia algumas montanhas a distância, mas não havia um céu azul de fundo. As elevações se fundiam à paisagem por trás delas, paisagem que se elevava indefinidamente. Quando descreveu o segundo círculo, foi em vão que seus olhos perserutadores esquadrinharam a região, à procura de uma característica qualquer do local; mas a única coisa que lhe saltava à vista era mesmo a clareira recoberta de vegetação rasteira, onde estava pousada a 0-220.

Compreendeu que não deveria gastar mais combustível à procura de pontos de referência que não existiam. A pequena planície, que só poderia ser vista de uma pequena distância, seria seu único ponto de referência, na falta de outro melhor.

E sobrevoando aquele telheiro de folhagem que recobria a primitiva floresta de Pellucidar, não conseguia ver coisa alguma do que ocorria no solo. Era-lhe exasperador pensar que talvez estivesse voando justamente sobre seus companheiros, mas não havia outro jeito. Na volta, procuraria deter-se por mais tempo sobre aquela região, descrevendo círculos ou exagerados zigue-zagues, em busca de algum sinal por parte de seus homens.

Jason Gridley voou quase duas horas em linha reta, sobre as selvas, passando sobre clareiras, pequenas elevações, trilhas, sem distinguir o menor vestígio da malograda expedição. E já atingira a distância máxima que lhe permitia a quantidade de combustível do pequeno avião, quando divisou, ao longe, uma cordilheira de montanhas. Bastaria esse fato para determinar o seu regresso, pois seus companheiros jamais teriam tido a idéia de ultrapassar aquelas montanhas, uma vez que perceberiam de imediato estarem seguindo em direção errada. No entanto, quando já se preparava para voltar, deu com os olhos em algo, acima de seu avião, algo que quase lhe fez perder o fôlego, tamanho foi seu espanto.

Pairando no ar, exatamente sobre seu pequeno aeroplano. voava um exótico e gigantesco animal, cujas asas abertas eram do mesmo tamanho das asas de seu avião. Gridley conseguiu ver, embora de relance, as enormes mandíbulas cheias de dentes pontiagudos e quase no mesmo instante percebeu que o aterrorizante pássaro pré-histórico preparava-se para atacá-lo.

Gridley voava a uma altitude de mais ou menos uns cem metros do solo quando o gigantesco pterodátilo abaixou violentamente em direção ao avião, como se desse um mergulho no ar. Jason tentou esquivar-se, mergulhando também, mas ouviu-se um tremendo estrondo, um rugido e o estilhaçar-se de madeira e metal pelo ar, quando o animal chocou-se com o aeroplano, exatamente sobre a hélice.

E os acontecimentos que se seguiram foram tão rápidos que, cinco minutos depois, Jason Gridley seria incapaz de reconstituí-los.

O avião deu uma reviravolta e Gridley foi projetado no ar, puxando instintivamente a corda de seu pára-quedas. Mas, alguma coisa atingiu-lhe em cheio a cabeça e ele perdeu os sentidos.

UM PHORORHACOS DO MIOCENO

— Onde está a sua gente? — perguntou novamente Tar-gash.

— Não sei — respondeu Tarzan.

— Onde é a sua terra? — insistiu o grande sagoth.

— Muito longe daqui — disse o homem-macaco. — Não é em Pellucidar.

Tar-gash não entendeu, assim como também não entendia o fato de uma criatura estar completamente perdida, uma vez que possuísse as mesmas reações e se mostrasse perfeitamente à vontade, ou melhor, em casa, como os demais habitantes de Pellucidar.

Se fosse possível transportar Tar-gash de repente para qualquer ponto daquele mundo interno, por mais longínquo que fosse, até mesmo no oceano, encontraria, sem titubear, o caminho de volta ao lugar onde nascera. E como esse seu poder fosse instintivo, não podia compreender por que Tarzan também não era assim.

— Sei onde existe uma tribo de homens — disse Tar-gash, depois de algum silêncio. — Talvez seja a sua gente e posso levá-lo até eles.

Como Tarzan não tivesse a menor idéia sobre em que direção estava a 0-220, achou possível, embora fosse uma possibilidade remota, que Tar-gash se estivesse referindo aos participantes da expedição. E resolveu aceitar o oferecimento do grande sagoth, disposto a acompanhá-lo para onde quer que fosse.

— Há quanto tempo você viu esta tribo de homens? — indagou Tarzan. — E há quanto tempo estão eles no local onde você os viu?

Pelas respostas de Tar-gash às suas perguntas, o homem-macaco perceberia a possibilidade de ele estar-se referindo a uma tribo de homens de Pellucidar ou aos seus companheiros de viagem, estivessem eles há muito tempo no mesmo local ou fossem apenas recém-chegados. Mas as respostas não elucidaram Tarzan, pela simples razão da falta de noção de tempo, por parte do sagoth. Assim mesmo, saíram os dois à procura da tribo de homens, fosse ela qual fosse, numa caminhada sem pressa, pois o fator tempo não existia para Tar-gash. E para o próprio homem-macaco esse fator também não tinha grande importância, exceto em ocasionais emergências.

Tar-gash e Tarzan formavam um exótico par — uma criatura no limiar da raça humana e um lorde inglês sob muitos aspectos tão primitivo como o selvagem e peludo homem-gorila que o destino lhe dera por companheiro.

A princípio Tar-gash demonstrara certo desprezo por aquela insignificante criatura humana que considerava pertencente a uma raça inferior à sua, em fortaleza, agilidade, bravura e conhecimento sobre a floresta. Mas, depois de presenciar o ato de extrema coragem de Tarzan, ao salvá-lo da fúria de M'wa-lot, aquele desprezo transformara-se em profundo respeito e sentia-se preso ao homem-macaco, em termos de lealdade, sentimento que muito se aproximava da amizade, dentro de suas limitações de animal primitivo.

E caçaram juntos, lutaram juntos, ora saltando de galho em galho, quando os grandes tigres apareciam, ora percorrendo aquelas trilhas abertas pelos animais sob as árvores frondosas e seculares de Pellucidar, muitas vezes caminhando sobre a relva entremeada de flores das grandes campinas. Alimentavam-se principalmente de carne, pois ambos eram exímios caçadores.

Tarzan improvisara um novo arco e flechas, além de uma resistente lança de madeira, armas que, a princípio, Tar-gash desprezara e se recusara a usar, mas que, depois de verificar seu rápido e fácil manejo, na caça aos animais, interessara-se vivamente por elas, tendo o homem-macaco acabado por lhe ensinar e se utilizar delas e até mesmo a confeccioná-las.

A região que atravessavam tinha muita água e grande quantidade de caça. Havia longos trechos sem árvores, imensas clareiras atapetadas de relva e de vegetação rasteira, onde se concentravam os animais herbívoros que, por sua vez, atraíam para o local grandes bovinos e outras caças.

Até então Tarzan sempre pensara que não poderia haver um outro mundo semelhante ao seu, nem outras selvas semelhantes às suas. No entanto, à medida que se embrenhava pelas florestas de Pellucidar, apaixonava-se por suas maravilhas, enamorava-se daquele mundo primitivo que tão bem servia de moldura àquela vida selvagem que tanto amava. E a evidente existência de muito poucas criaturas humanas naquele universo no interior da terra constituía a melhor referência, a maior vantagem de Pellucidar. Se a ausência do homem fosse completa, Tarzan não hesitaria em pensar que encontrara, finalmente, um mundo perfeito, pois quem mais tolerante para com as crueldades e as desconsiderações do elemento humano do que os animais selvagens?

A amizade que se desenvolvera entre o grande sagoth e o homem-macaco — baseada principalmente no respeito que um tinha pelas habilidades e proezas do outro — aumentava à medida que descobriam, entre si, novas qualidades e características comuns, inclusive uma certa taciturnidade. Falavam estritamente o necessário, o que acontecia poucas vezes.

Se os homens falassem apenas quando tivessem realmente algo que valesse a pena ser dito e o mais resumidamente possível, noventa e oito por cento da humanidade seria quase muda e haveria mais harmonia sobre a face externa da terra.

A companhia de Tar-gash e mais o fascínio daquelas selvas desconhecidas, com seus múltiplos aspectos, seus estranhos ruídos e odores, tudo isso exercia a influência de uma verdadeira droga sobre Tarzan, devolvendo-lhe a alegria de viver e de estar em seu elemento, amortecendo um pouco o seu senso de responsabilidade. Reencontrar a nave e seus companheiros passara para segundo plano em seus pensamentos. Soubesse ele que alguns dos participantes da expedição, à sua procura, talvez estivessem em perigo, sua atitude seria bem outra. Mas o homem-macaco não sabia de coisa alguma e apenas imaginava que dispunham de todos os recursos para se colocarem a salvo de qualquer perigo iminente, para retornarem à crosta exterior da terra, caso fosse necessário, sem que sua ausência lhes trouxesse algum prejuízo. Por outro lado, quando pensava no assunto, tinha plena consciência de que deveria procurá-los, que deveria voltar para junto deles e, mais cedo ou mais tarde, retornar com eles para o mundo de onde tinham vindo.

Mas essas considerações conservavam-se afastadas de suas cogitações, enquanto, na companhia de Tar-gash, atravessava uma extensa planície em busca da tribo de homens que o grande sagoth dizia saber localizar. Em comparação com outras clareiras que já haviam atravessado, esta lhe parecia mais deserta de árvores e de vegetação, o que poderia significar ter sido devastada por manadas de herbívoros antes de buscarem novas pastagens. A completa ausência de vida e de movimento lhe causava uma certa depressão, e o homem-macaco quase que sentia falta dos perigos e das lutas imprevistas das outras regiões por onde haviam passado.

E caminhavam os dois sobre aquela relva rasteira, já alcançando o meio da planície, quando um estranho ruído fê-los parar. Simultaneamente Tar-gash e Tarzan ergueram os olhos para o céu, de onde lhes parecia vir o forte zumbido e avistaram, ao longe, uma pequena mancha que se deslocava em direção a eles, como se fosse um pássaro de gigantescas dimensões, dada a distância em que se tornava visível.

— Depressa! — exclamou Tar-gash. — É um thipdar! E puxou Tarzan para se abrigar com ele sob uma árvore.

— Mas o que é um thipdar? — indagou Tarzan.

— Um thipdar — respondeu-lhe o grande sagoth — é um thipdar. São usados pelos mahars para caçarem alimento e para se protegerem.

— Mas o thipdar é um ser vivente? — perguntou o homem-macaco.

— Sim — disse Tar-gash. — É coisa viva, muito forte e muito feroz.

— Então aquilo que vemos não pode ser um thipdar — declarou Tarzan.

— Então o que é? — quis saber o grande sagoth.

— É um pequeno aeroplano — respondeu-lhe o homem-macaco.

— O que é isso? — indagou Tar-gash.

— Seria muito difícil de explicar a você — disse Tarzan. P” Trata-se de uma máquina que os homens do meu mundo constroem, dentro da qual eles voam.

À medida que falava, adiantou-se para o meio da clareira, onde pretendia fazer sinais ao piloto, uma vez que tinha certeza de tratar-se do avião de exploração trazido pela 0-220 e certamente estava à sua procura.

— Volte! — exclamou Tar-gash. — Você não vai conseguir lutar contra um thipdar. Ele poderá baixar e carregar você, se o encontrar em campo aberto.

— Tenho a certeza de que não me fará mal algum —. respondeu Tarzan. — Um de meus companheiros deve estar dentro dele.

— E você irá para dentro dele também — disse Tar-gash — se não se esconder debaixo de uma árvore.

Quando o pequeno teco-teco se aproximou, Tarzan foi para o meio da clareira e começou a correr em circulo a fim de atrair a atenção do piloto; abanava os braços, corria novamente, mas tudo em vão, pois o aeroplano sobrevoou a clareira e seguiu em frente, prova de que o homem-macaco não tinha sido visto pelo piloto.

E à medida que o avião se afastava até desaparecer completamente de vista, Tarzan permanecia imóvel, no meio daquele descampado imenso, observando o pequeno aeroplano se distanciar, levando seu companheiro para longe.

No entanto, aquele episódio serviu para alertar o homem-macaco quanto à sua responsabilidade diante dos fatos: compreendeu que havia alguém arriscando a vida para salvá-lo e este pensamento lhe trouxe a resolução de sair à procura do local onde ficara a 0-220, a qualquer preço, à custa de todos os seus esforços.

A passagem do pequeno avião proporcionou-lhe uma série de conjecturas. Se estivesse descrevendo grandes círculos no ar, o que era perfeitamente possível, sua direção nada teria a ver com a posição da 0-220. Se estivesse voando em linha reta, tanto poderia ser na direção da nave ou em direção oposta, dependendo de estar indo ou vindo para o local onde haviam pousado.

— Acho que aquilo não era um thipdar — disse Tar-gash, saindo de seu esconderijo sob uma árvore e encaminhando-se para perto de Tarzan. — Era uma criatura completamente diferente, muito maior e com certeza muito mais feroz do que um thipdar. E deveria estar enfurecida, pois rosnava terrivelmente todo o tempo.

— Não se tratava de criatura alguma, Tar-gash — respondeu-lhe Tarzan. — Aquilo não era um ser vivente e sim, como já lhe expliquei, uma espécie de máquina voadora, construída pelos homens do meu mundo para poderem erguer-se no ar e voar. E quem a dirigia era um de meus companheiros, à minha procura.

— Foi muito bom que ele não tivesse descido — continuou o sagoth — pois deveria estar muito enfurecido ou muito faminto, senão ele não teria rosnado tão alto.

Tarzan compreendeu que Tar-gash era incapaz de entender suas explicações a respeito do aeroplano e que continuava a acreditar que se tratava de um gigantesco réptil voador. Mas isso era de somenos importância; o que realmente preocupava o homem-macaco no momento era a questão da direção que deveria tomar para encontrar a 0-220. E resolveu prosseguir na direção que tomara o avião, uma vez que era a mesma que Tar-gash escolhera para levá-lo ao local onde sabia existir uma tribo de homens.

E o ronco da pequena aeronave já silenciara nas distâncias quando o homem-macaco e o grande sagoth recomeçaram a caminhar, atravessando a clareira e embrenhando-se novamente na floresta, com seus altos e baixos.

A trilha muito bem delineada, que Tar-gash dizia que os levaria pelas montanhas, seguia sinuosamente através de um vale de pouca profundidade, marginado, de um lado, por rochedos não muito altos, onde se viam algumas cavernas escavadas na pedra e algumas fendas. O fundo do vale era cheio de fragmentos de rocha de todos os tamanhos. A vegetação era esparsa e toda a região muito árida. Tarzan ainda não vira região semelhante, desde que deixara a 0-220 e como se tornava evidente não haver abundância de água, nem tampouco de caça, ele e o sagoth apressaram os passos.

O silêncio era quase absoluto e o homem-macaco mantinha seus ouvidos atentos a qualquer ruído que pudesse acusar a volta do pequeno aeroplano. De repente, o silêncio foi cortado por um guincho rouco que parecia vir de um ponto mais elevado do que o vale.

— Um Dyal! — exclamou Tar-gash, parando subitamente de andar.

Tarzan olhou para o companheiro, sem nada entender.

— É um Dyal — repetiu o grande sagoth — e ele está enraivecido.

— O que é um Dyal? — perguntou o homem-macaco.

— É um pássaro feroz — explicou Tar-gash. — Mas sua carne é boa e Tar-gash está com fome.

Isso era tudo. Não importava quão feroz fosse o pássaro; sua carne era comestível e Tar-gash estava com fome.

Imediatamente os dois se jogaram por terra, espreitando a caça. Uma brisa ligeira trazia às narinas de Tarzan num cheiro desconhecido e estranho. Era cheiro de pássaro, mas lembrava o cheiro de avestruz, e pela sua intensidade o homem-macaco compreendia que deveria tratar-se de uma ave muito volumosa, impressão logo confirmada pelos guinchos estridentes, entrecortados por ruídos de quem escava ou arranha violentamente uma superfície pedregosa.

Tar-gash, que seguia na frente, aproveitando-se dos abrigos naturais que lhe ofereciam os fragmentos de rocha do fundo do vale, parou repentinamente sobre a parte mais baixa de uma enorme pedra boleada, escondendo-se atrás dela, no que foi seguido por Tarzan. Fez sinal ao homem-macaco para que espiasse cautelosamente pelo outro lado da grande pedra e assim ele pôde finalmente divisar o autor de todos aqueles estranhos ruídos. Sendo, ele próprio, uma criatura essencialmente das selvas, não deixou transparecer o espanto que lhe causou a visão daquele pássaro gigantesco que esfregava furiosamente as garras sobre pedaço de rocha em que estava pousado.

Para o homem-macaco, tratava-se de uma criatura desconhecida, de um outro mundo. Para Tar-gash, era simplesmente um Dyal. Nenhum dos dois sabia que tinham diante de si um Phororhacos do Mioceno. Viam apenas uma ave de grandes dimensões, cuja cabeça, maior do que a de um cavalo e dotada de uma crista, levantava-se a dois metros e meio do solo. Seu bico, recurvado e forte, abria-se em guinchos ameaçadores, enquanto suas enormes asas se agitavam furiosamente. E com as patas de três dedos, o exótico pássaro tentava abrir mais a fenda que tinha sob os pés e de onde alguém agitava uma lança, tentando defender-se do animal. E de repente Tarzan percebeu que eram mãos humanas que seguravam a lança — uma arma completamente inadequada para combater um réptil voador das proporções de um Dyal.

E enquanto observava aquela estranha criatura de Pellucidar, o homem-macaco perguntava-se a si mesmo como Tar-gash tinha coragem de se lançar à luta contra um animal do porte daquele monstruoso Dyal, munido apenas de uma pequena clava de madeira.

Viu, estupefato, o grande sagoth sair de detrás da pedra que lhe servia de abrigo e rastejar até uma outra pedra mais próxima de sua presa, escudando-se atrás dela. Mas o grande pássaro encontrava-se tão absorvido em seu ataque ao homem que se defendia do fundo de uma greta do rochedo, que nem deu pela aproximação de Tar-gash, pela sua retaguarda.

O homem-macaco não hesitou em segui-lo, ficando os dois a uma distância de uns quinze metros do Dyal.

Em dado momento, o sagoth ergueu a clava, rodopiou-a no ar, acima da própria cabeça, pôs-se de pé e correu desabaladamente em direção à sua presa, no que também foi seguido de perto por Tarzan, armado com seu arco e flecha.

E quando estavam à meia distância do gigantesco pássaro, o ruído de seus passos chamou a atenção do animal que se virou e deu com aquelas duas criaturas que ousavam interceptar seu ataque ao homem refugiado na estreita fenda da rocha. Soltando um formidável guincho, o Dyal levantou o bicho ameaçadoramente e lançou-se em direção a seus atacantes.

Certamente, pensou Tarzan, o sagoth desfecharia violento golpe, com sua clava, sobre uma das pernas do Dyal e, se conseguisse quebrá-la, teria o pássaro à sua mercê para prosseguir no ataque. Deveria ser esta a sua tática. Mas se errasse o alvo e não conseguisse atingir o animal? Tar-gash teria morte instantânea.

O homem-macaco já havia tido outras oportunidades de aquilatar a destreza e o total desapego à vida que o grande sagoth costumava demonstrar, em se tratando de caçar para comer. E aquela impulsividade quase suicida jamais ultrapassara os limites de um perfeito equilíbrio mental, de um perfeito controle de movimentos.

E finalmente aconteceu justamente o que Tarzan temia: a pesada clava não atingiu o alvo. Quase ao mesmo tempo que isto acontecia, o homem-macaco disparou uma flecha contra o Dyal que foi cravar-se no peito do animal. Tar-gash saltou para o lado, tentando escapar do ataque do grande pássaro.

Outra flecha atravessou as penas do Dyal, desaparecendo para dentro de seu corpanzil. No mesmo instante, Tarzan saltou agilmente para a direita, esquivando-se daquela verdadeira avalancha de destruição que visava agora sua própria pessoa, apesar de o Dyal já estar com duas flechas enterradas no corpo, o que não lhe diminuía as forças.

E antes que o pássaro tivesse tempo de virar-se para continuar o ataque a um dos dois, Tar-gash apanhou uma enorme pedra, das muitas que havia ao seu redor, arremessando-a com toda a violência contra o monstro. Atingiu-o num dos lados da cabeça, conseguindo tonteá-lo momentaneamente, enquanto Tarzan acertava-lhe mais duas flechas. Imediatamente o Dyal virou-se cm direção ao homem-macaco, ainda um pouco tonto, e quando armou o salto sobre Tarzan, uma grande lança passou à altura do ombro do Rei das Selvas, indo cravar-se no peito do gigantesco pássaro. Sob o impacto deste último e inesperado golpe, o Dyal caiu por terra praticamente aos pés de Tarzan.

Mas o homem-macaco não deu a luta por terminada, ignorante que se sentia a respeito dos métodos de defesa e ataque do pássaro gigante, não hesitando em saltar sobre ele e em golpeá-lo, com seu facão de caça, na altura da garganta. Em seguida, afastou-se correndo para escapar às contorções e rabanadas do animal em agonia, e pela primeira vez pôde ver o homem que desfechara a lança, salvando-lhe a vida.

Em posição ereta, com uma expressão de surpresa na fisionomia, ali estava um forte guerreiro, de grande porte, com a pele bronzeada luzindo à claridade do sol e uma vasta cabeleira amarrada para trás por uma tira de pele de veado.

Como armas, além da lança que usara, trazia consigo um facão talhado em pedra, enfiado no cinturão. Seu olhar era calmo e inteligente. Suas feições eram normais e bem delineadas. Em resumo, tratava-se de um perfeito espécime da raça humana.

Tar-gash, apanhando a clava que escapara de suas mãos no malogrado golpe contra o Dyal, aproximou-se do estranho.

— Sou Tar-gash — disse ele. — Eu mato!

O estranho puxou seu facão e esperou, olhando primeiro para Tar-gash e depois para Tarzan.

O homem-macaco adiantou-se, colocando-se de frente para o grande sagoth.

— Espere — ordenou. — Por que você quer matá-lo?

— Ele é um gilak — respondeu Tar-gash.

— Mas ele salvou você também das garras do Dyal — lembrou o homem-macaco. — Minhas flechas não conseguiriam abatê-lo e se não fosse aquela lança, atirada por ele, um de nós ou nós dois poderíamos ter morrido.

O sagoth estava confuso. Cocava a cabeça sem saber o que fazer.

— Mas se eu não matar o gilak — disse finalmente o sagoth — ele me mata.

Tarzan voltou-se para o estranho.

— Sou Tarzan — disse-lhe. — E este é Tar-gash — concluiu, apontando para o homem-gorila.

— Eu sou Thoar — disse o desconhecido.

— Sejamos amigos — respondeu Tarzan. — Não queremos briga com você.

Novamente o estranho mostrava-se surpreso.

— Você entende a linguagem dos sagoths? — perguntou-lhe Tarzan, achando que talvez o desconhecido não estivesse compreendendo suas palavras.

— Um pouco — disse Thoar. — Mas, por que motivo devemos ser amigos?

—- Por que sermos inimigos? — tornou o homem-macaco.

— Não sei — respondeu Thoar, meneado a cabeça. — É sempre assim.

— Nós três juntos abatemos o Dyal — continuou Tarzan. — Se Tar-gash e eu não estivéssemos aqui, o grande pássaro mataria você. E se você não tivesse atirado sua lança, ele nos mataria. Logo, só há motivos para sermos amigos e não inimigos. Para onde você está indo?

— Estou voltando para a minha terra — respondeu Thoar, apontando na direção para onde Tarzan e Tar-gash se dirigiam.

— Nós também estamos indo para aqueles lados — respondeu-lhe o homem-macaco. — Neste caso, vamos juntos, pois seis mãos podem mais do que quatro.

Thoar ainda olhava desconfiado para o grande sagoth.

— Você não acha que devemos continuar a viagem todos juntos, como amigos, Tar-gash? — perguntou Tarzan.

— Isto nunca aconteceu antes — respondeu-lhe o sagoth, como se tivesse atrás de si centenas de anos de civilização c cultura.

Tarzan sorriu, um de seus raríssimos sorrisos.

— Pois então vai acontecer agora — disse ele. — Vamos!

Admitindo que os outros obedecessem suas ordens, o homem-macaco aproximou-se do Dyal e, puxando seu facão de caça, começou a cortar vários pedaços de carne. Por alguns momentos Thoar e Tar-gash ainda se entreolharam, desconfiados; mas o desconhecido acabou por se juntar a Tarzan, ajudando-o a retalhar a caça, e, depois de alguma hesitação, Tar-gash também se juntou a eles.

Thoar demonstrava grande curiosidade em relação à lâmina de aço do facão de Tarzan, que deslizava facilmente cortando a carne do grande pássaro abatido, enquanto ele manejava com dificuldade sua faca talhada em pedra. Tar-gash, numa atitude de menosprezo pelos apetrechos usados pelos homens, preferia servir-se de seus próprios dentes para arrancar grandes pedaços de carne do Dyal, devorando-a crua. Tarzan, habituado a comer carne crua desde a infância, já se preparava para fazer o mesmo, quando viu que Thoar improvisava uma pequena fogueira, obtendo fogo da maneira mais primitiva possível, isto é, pela fricção de uma pedra na outra. Os três comiam em silêncio, sendo que o sagoth carregara seus bocados de carne para um local mais afastado, devorando-os sofregamente, porém a uma certa distância dos dois homens, prova de um instinto selvagem ainda muito forte.

Quando os três se deram por satisfeitos, retomaram a trilha em direção às montanhas, e enquanto caminhavam Tarzan aproveitava para fazer perguntas a Thoar, relativas à sua gente, seus costumes e sua terra. No entanto, a língua dos sagoths era tão primitiva e seu vocabulário tão reduzido, que a comunicação entre as duas criaturas humanas tornava-se muito difícil, ainda mais que Thoar falava e entendia pouco o linguajar dos grandes macacos. Diante disso, Tarzan resolveu tentar aprender o idioma do homem de Pellucidar; tinha muita prática e muita facilidade de aprender novos dialetos e novas línguas, o que lhe facilitaria a tarefa. E como o homem-macaco jamais renunciava ao que resolvesse obter, jamais desistia de levar a cabo seus propósitos antes de concluí-los com êxito, fez logo grandes progressos, auxiliado pelo interesse de Thoar em lhe ensinar sua língua.

Quando chegaram ao topo das montanhas mais baixas, avistaram, ao longe, o que lhes parecia uma cordilheira de montanhas muito altas.

— É lá que fica Zoram — disse Thoar, apontando para a cordilheira.

— O que é Zoram? — indagou o homem-macaco.

— É a minha terra — respondeu-lhe o homem de Pellucidar. — Está situada nas montanhas dos thipdars.

Era a segunda vez que Tarzan ouvia falar em thipdars, pois Tar-gash lhe havia dito que o pequeno avião que tinham visto era um thipdar e agora Thoar lhe falava nas montanhas dos thipdars.

— Afinal, o que é thipdar? — quis saber o homem-macaco .

Thoar mostrou-se surpreendido com a pergunta.

— De que lugar você vem — disse ele a Tarzan — que não sabe o que é um thipdar e não sabe falar a língua dos gilaks?

— Eu não sou daqui — respondeu o homem-macaco. — Não sou de Pellucidar.

— Acreditaria no que você me diz — falou Thoar — se houvesse algum outro local de onde você pudesse ter vindo. No entanto, além de Pellucidar só existe Molop Az, o mar de fogo sobre o qual está Pellucidar. E os únicos habitantes de Molop Az são os pequenos demônios que carregam os cadáveres que são enterrados em nosso solo, um por um, para o mar de fogo. E embora eu nunca tenha visto esses pequenos demônios, estou certo de que você não seria um deles.

— Não — disse Tarzan — eu não sou de Molop Az, embora muitas vezes já me tenha ocorrido pensar que o mundo de onde venho é habitado por pequenos e grandes demônios.

À medida que caçavam, que se alimentavam, dormiam e caminhavam juntos, aquelas três criaturas tornavam-se mais unidas, mais amigas e aumentava a confiança um no outro. Até mesmo Tar-gash já não se mostrava mais desconfiado em relação a Thoar. Embora cada um deles representasse uma era diferente na evolução do homem, com uma diferença de milhares de anos entre cada um dos períodos que representavam, possuíam tanto em comum que o progresso feito pelo homem, de Tar-gash a Tarzan, parecia uma recompensa pelo tempo e Pelo esforço despendidos pela Natureza nesse sentido.

De vez em quando o homem-macaco tentava calcular o espaço de tempo decorrido entre o momento em que deixara a 0-220 até o momento presente, mas não conseguia chegar a uma conclusão. Compreendia que estava seguindo um caminho errado, ao mesmo tempo que achava inútil retroceder, uma vez que não tinha a menor idéia sobre que direção tomar. Sua única esperança era ser localizado pelo piloto do teco-teco que deveria estar à sua procura ou mesmo pela própria 0-220, caso levantasse vôo e passasse sobre a região em que se encontrava, numa altitude que lhe permitisse ser visto ou pelo menos que lhe permitisse fazer chegar até à nave uma sinalização qualquer. Enquanto isso, a solução era continuar ao lado de Tar-gash e de Thoar.

E os três já haviam comido e dormido outra vez, já quase chegando ao fim de viagem, quando de repente os olhos perscrutadores de Tarzan divisaram, do alto de uma pequena elevação do terreno, um estranho e volumoso objeto parado à grande distância, em meio a uma extensa planície. Não conseguia distinguir de que se tratava, mas tinha a certeza de que não fazia parte da paisagem natural da região. Havia uma total desarmonia, uma discordância entre o objeto e tudo o mais que o cercava que qualquer homem acostumado a viver nas selvas notaria de um relance. E como era quase instintivo em Tarzan investigar o que não conhecia, ou o que não entendia, começou a andar em direção ao objeto não identificado.

No entanto, à medida que começara a descer a pequena colina, de onde avistara o objeto, perdeu-o de vista por completo, devido à densa vegetação e à mudança de seu ponto de observação. E foi só quando já se encontrava há poucos metros do que lhe atraíra a atenção, é que constatou, para seu grande espanto e surpresa, tratar-se dos destroços de um avião.

A FLOR VERMELHA DE ZORAM

Jana, a Flor Vermelha de Zoram, parou por alguns instantes, olhando para trás, para além dos íngremes penhascos que a cercavam por todos os lados. Estava com muita fome e já não dormia havia muito tempo, preocupada apenas em fugir dos quatro homens de Pheli, região situada no sopé das montanhas dos thipdars, do outro lado das terras de Zoram.

E permaneceu assim, em posição de alerta, por um breve momento, para logo em seguida correr para trás de um enorme fragmento de rocha que a ocultava parcialmente, permitindo que ela pudesse contemplar o caminho já percorrido, através das ruínas de granito. Criada nas montanhas, passara a vida entre os picos e os penhascos das montanhas dos thipdars, nutrindo uma certa superioridade em relação aos habitantes das terras baixas, de onde eram originários seus perseguidores. Mas se aqueles quatro homens conseguissem atingir o local onde se encontrava refugiada naquele momento, seria forçada a reconhecer sua coragem e seus esforços, uma vez que o caminho era por demais acidentado, principalmente para quem não fora criado naquelas paragens.

Os homens de Pheli já cresciam com aquela obsessão de conquistar e de aprisionar a Flor Vermelha de Zoram, aventurando-se de quando em vez até as alturas das montanhas dos thipdars, cujas moças eram famosas por sua extrema beleza, orgulho dos habitantes daquela região. Essa fama era tão difundida que vinham homens de longínquas terras, viajando pelos rios e arriscando a vida, pagando às vezes com a própria morte suas tentativas de raptar Jana.

A Flor Vermelha de Zoram tinha uma irmã, Lana, que havia sido raptada pelos homens de Pheli, bem como mais duas outras jovens de Zoram, daí o temor e o perigo sempre presentes para as beldades das montanhas. Para Jana, o fato de ser seqüestrada por aqueles homens lhe parecia pior do que a morte, uma vez que seria levada eternamente para longe de suas queridas montanhas, transformando-se numa habitante das terras baixas, bem como os filhos que viesse a ter. Para os montanheses isso constituía a maior desgraça, desde que os homens das montanhas só se casavam com mulheres das montanhas. Não podiam admitir que os homens de Zoram, de Clovi ou de Daroz roubassem moças de outras tribos para tomá-las por companheiras.

Jana era amada pelos jovens guerreiros de Zoram e, apesar de nenhum haver ainda conquistado seu coração, a Flor Vermelha sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por se apaixonar por um deles, a menos que nesse meio tempo fosse raptada por algum guerreiro de outra tribo.

Sabia que, se por acaso caísse nas mãos de algum homem de Clovi ou de Daroz, não seria maltratada e poderia até vir a ser muito feliz, mas preferia a morte a ser raptada pelos homens de Pheli.

Certa vez, embora lhe fosse impossível determinar quando, já que não dispunha de meios para calcular a passagem do tempo, lembrava-se de que estivera procurando ovos de thipdar entre os cavernosos penhascos de suas terras, quando, subitamente, deparou com um homem alto e de vasta cabeleira que surgira de detrás de um rochedo, tentando persegui-la. Ágil como qualquer animal das montanhas, conseguira escapar dele, mas o desconhecido escondera-se entre ela e a sua cidade. E quando Jana tentou circundar o local, a fim de voltar para sua moradia, percebeu que havia mais três homens em seu encalço, barrando-lhe a passagem. E assim começara sua fuga, fazendo com que ela se afastasse cada vez mais de Zoram, escalando penhascos e rochedos onde jamais tivera estado.

Um pouco mais abaixo do local onde agora se encontrava Jana, aqueles quatro homens que a vinham perseguindo há muito tempo haviam parado para descansar.

— É melhor voltarmos — disse um deles. — Jamais conseguiremos alcançá-la, Skruk, num lugar como este onde só os thipards conseguem andar.

Skruk fez que não com a cabeça.

— Tenho certeza de tê-la visto — disse ele — e hei de capturá-la nem que tenha de persegui-la até às praias de Molop Az.

— Nossas mãos já estão feridas por estas rochas pontiagudas — disse um outro — nossas sandálias arrebentadas e nossos pés sangrando. É impossível continuarmos. Assim, morreremos todos.

— Pode ser que você morra — disse Skruk — mas até que isto aconteça vamos continuar. Sou Skruk, o chefe, e tenho dito.

Os outros três homens resmungaram entre si, mas, quando Skruk recomeçou a andar, continuaram a segui-lo. Naturais de uma região plana, era-lhes extremamente penoso escalar aqueles abruptos rochedos, sentindo-se extenuados e exaustos. No entanto, não era apenas o cansaço que os desanimava em prosseguir, e sim a precariedade do caminho por entre escarpas e desfiladeiros, a uma altura vertiginosa, por onde a Flor Vermelha os levava.

Do ponto em que se encontrava, Jana avistou-os escalando perigoso caminho e percebendo que estavam na direção certa, em seu encalço, ficou parada, creta, bem à vista deles. Sua roupa era feita de pele de filhote de tarag, deixando à mostra suas pernas bem torneadas e mal escondendo as formas arredondadas de seu corpo de menina moça. O sol a pino fazia luzir a pele fina e bronzeada de um ombro nu e punha reflexos acobreados em seus sedosos cabelos castanhos, presos displicentemente por pequeninos ossos esculpidos e coloridos de filhotes de dimorphodons, animal da família dos thipdars. Em sua testa, uma tira de couro, pintada de várias cores, e nos braços e tornozelos, pulseiras feitas também de couro, com ossinhos de pequenos animais pendurados artisticamente a toda volta. Calçava uma espécie de sandália de pele de mastodonte e, na cabeça, presa à tira de couro colorida, uma única pena. Como armas, tinha apenas uma faca talhada em pedra, na altura dos quadris, e na mão direita uma pequena lança.

Jana havia parado e, apanhando um fragmento de rocha, não hesitou em atirá-lo sobre Skruk e seus companheiros.

— Voltem para seu pantanais, jaloks das terras baixas! — gritou-lhes a pleno pulmões. — A Flor Vermelha de Zoram não é para vocês!

Em seguida, recomeçou a subir pelos penhascos com espantosa agilidade. À sua esquerda ficava Zoram, mas havia uma enorme tenda na rocha, entre ela e sua cidade. Começou a andar pelas bordas da abertura, sem se deixar perturbar pelo aterrorizante abismo a seus pés. De vez em quando procurava descer um pouco, pois sabia que, se conseguisse atravessar o vazio da fenda, chegaria rapidamente a Zoram. Mas o desfiladeiro descia, íngreme, a uns seiscentos metros de profundidade e pelo menos nos primeiros trinta metros não havia a menor saliência que lhe permitisse firmar um pé ou agarrar-se com uma das mãos.

Ao contornar a extremidade do despenhadeiro, avistou uma extensa campina que se estendia um pouco abaixo do local onde se encontrava — uma região que jamais tinha visto — e compreendeu que havia conseguido atravessar a cordilheira e estava diante das terras que ficavam do outro lado das montanhas . A fenda que viera seguindo pelas bordas, agora alargava-se num grande vale que conduzia a uma grande planície. As escarpas das colinas mais baixas eram cobertas de árvores e para além da planície havia florestas.

Era um novo mundo que se descortinava aos olhos de Jana de Zoram, mas não a atraía; sabia que as feras e os homens selvagens das terras baixas vagavam por aquelas paragens.

À sua direita erguiam-se as montanhas que havia conseguido contornar; à sua esquerda, a fenda na rocha, um abismo ameaçador; por trás dela, Skruk e seus companheiros se aproximavam. E por um breve instante, Jana julgou-se irremediavelmente perdida. No entanto, depois de avançar mais alguns metros, constatou que as paredes íngremes do abismo haviam mudado de aspecto, dando lugar a uma sucessão de pedras mais ou menos salientes, constituindo espaçados degraus. Restava saber se conseguiria descer por aqueles fragmentos de rocha, uma vez que poderia estar em falso, não oferecendo resistência ao peso de seu corpo, caso conseguisse apoiar-se neles com os pés e com as mãos.

Jana era forçada a parar a cada momento, a fim de se certificar do melhor lugar para efetuar sua descida e com isso perdia tempo. Seus perseguidores já deveriam estar bem próximos, enquanto a Flor Vermelha de Zoram apressava-se em seus perigosos e arriscados passos pelo despenhadeiro abaixo.

Em dado momento, olhando para baixo, divisou um acúmulo de granito fragmentado, acumulado há uns trinta metros do local onde se encontrava, formando uma saliência na rocha, uma espécie de promontório.

Olhou para trás e Skruk já estava quase à vista. Ela começou a descer pela íngreme escarpa demonstrando grande dificuldade, saltando desajeitadamente de uma pedra para outra, resfolegando de cansaço. Mas os perseguidores encontravam-se muito perto da moça, e urgia que ela tomasse uma decisão para tentar escapar-lhes. A bem dizer, só lhe restava o recurso de saltar para a extremidade oposta do penhasco, onde estaria a salvo, embora temporariamente, ou perderia a vida.

Sem perda de tempo, amarrou a tira de couro que pendia da extremidade de sua lança, à volta do pescoço, ficando a lança pendurada sobre suas costas. Em seguida, rastejando sobre as pedras, conseguiu chegar à extremidade do rochedo. Não sabia se haveria saliências na rocha que lhe permitissem agarrar-se com as mãos. Olhou para baixo. A superfície era áspera e não totalmente perpendicular, isto é, ligeiramente inclinada em direção à montanha. Tateando com os pés, conseguiu localizar uma protuberância onde poderia firmar-se. Soltou uma das mãos e procurou uma fenda ou qualquer reentrância na pedra, onde pudesse enfiar os dedos e se pendurar.

Precisava agir com a maior rapidez possível, pois já ouvia os passos dos homens de Pheli logo acima do lugar em que estava. E encontrou, finalmente, um estreito vão, onde mal cabiam as pontas de seus dedos, o que já era alguma coisa a seu favor. No entanto, olhando para baixo, só via o abismo sem fim, a morte certa.

Sem perder a calma, Jana retirou a outra mão da borda do penhasco e foi deslizando muito devagar, descendo um pouco mais e procurando outro apoio mais abaixo, com um dos pés. E com um pé aqui, outro ali, outro mais adiante, ouviu um barulho acima de sua cabeça. Ergueu a cabeça e viu a cara de Skruk numa proximidade ameaçadora.

— Segurem minhas pernas — gritou ele aos companheiros, aos mesmo tempo que inclinava o corpo para a beira do penhasco.

Os outros três homens obedeceram ao comando e assim Skruk pôde esticar seu braço cabeludo em direção a Jana, tentando agarrá-la. Diante disso, a Flor Vermelha de Zoram já estava pronta para se soltar das pedras e deixar-se cair naquele abismo de rochas pontiagudas. Mas, ainda olhando para cima, percebeu que a mão do homem de Pheli estava longe de alcançá-la irremediavelmente. As pontas de seus dedos tocavam-lhe os cabelos, quando Jana conseguiu descer um pouco mais, encontrando novo apoio para um dos pés.

Skruk, mais enfurecido do que nunca, ao ver tão perto de si aquele rosto voltado para ele, sentia crescer-lhe a obsessão de capturar Jana. Mas, enquanto em seu coração ardia-lhe o desejo e o firme propósito de se apossar daquela beldade das montanhas, a visão do despenhadeiro o deixava em dúvida quanto à segurança de conseguir seu objetivo. Parecia-lhe inacreditável que ela tivesse podido descer tanto, sem cair, embora a distância percorrida pela Flor Vermelha de Zoram fosse apenas o começo da longa descida. Compreendeu que nem ele nem seus companheiros, conseguiriam segui-la naquele arriscado caminho e compreendeu também que, qualquer ameaça que lhe fizesse, ocasionaria um pânico na fugitiva, de conseqüências fatais.

Com esses pensamentos em mente, Skruk pôs-se novamente de pé e virou-se na direção de seus companheiros.

— Temos que encontrar um outro meio mais fácil para descer daqui — disse ele.

Em seguida, inclinando-se outra vez para o despenhadeiro, chamou por Jana.

— Você me venceu, moça das montanhas — disse-lhe ele. — Vou voltar para Pheli, mas retornarei para buscá-la e para torná-la minha mulher!

— Tomara que os thipdars ataquem você e estraçalhem seu coração antes que consiga chegar a Pheli novamente — gritou-lhe Jana.

Skruk não lhe deu resposta. Ela viu que os quatro homens voltavam pelo mesmo caminho que tinham vindo, mas não sabia se iriam procurar um outro caminho para chegar ao fundo do desfiladeiro para onde ela própria se encaminhava, ou se as palavras de Skruk haviam sido apenas um ardil para fazê-la desistir de escalar o rochedo.

De toda a maneira, aliviada momentaneamente da grande tensão que a dominara por tanto tempo, desceu até uma proeminência maior do penhasco e ali encontrou, por sorte, um ovo de thipdar que lhe serviu para minorar um pouco a fome e a sede que quase a enlouqueciam.

Logo em seguida recomeçou a perigosa descida e finalmente conseguiu chegar ao fundo do abismo, enquanto Skruk e seus homens haviam encontrado uma descida mais fácil que também os levara ao término do despenhadeiro, porém há alguns quilômetros do ponto em que se encontrava a moça.

Uma vez no fundo do abismo, Jana teve um momento de hesitação quanto ao caminho a seguir, e instintivamente pensou em subir pelo outro lado do penhasco, que a levaria em direção a Zoram. No entanto, raciocinando com mais calma, resolveu descer um pouco mais e contornar o sopé da montanha, para a esquerda, à procura de um caminho mais fácil. E assim dirigiu-se vagarosamente em direção ao vale, enquanto os quatro homens de Pheli também caminhavam na mesma direção, sem que ela disso suspeitasse.

As paredes rochosas do canyon iam diminuindo de altura, à medida que Jana descia, mas ainda constituía um grande obstáculo a transpor e lhe parecia mais acertado contornar essa espécie de amurada de pedras irregulares do que tentar escalá-la de um lado a outro. Finalmente, chegou à embocadura do canyon de onde pode descortinar toda a beleza do extenso vale que se prolongava a perder de vista.

Era a primeira vez, em toda a sua vida, que a Flor Vermelha de Zoram chegara tão perto das terras baixas, pois fora criada com a idéia de que região era insignificante e jamais serviria de domicílio para as poderosas tribos das montanhas.

No entanto, a beleza do desconhecido e o exotismo do local, juntamente com o espírito aventureiro de Jana, levaram-na a caminhar pelo deslumbrante vale que tinha diante de si, conduzindo-a muito mais longe do que era necessário.

De repente, sua atenção foi atraída por estranhos sons que vinham do alto — sons inteiramente desconhecidos como se fossem notas novas do diapasão de seu mundo selvagem. Olhando para cima, deparou com a criatura que emitia tais ruídos.

A princípio, pareceu-lhe tratar-se de um gigantesco thipdar, de tão grandes dimensões como jamais vira em toda a sua vida.

Observando melhor, percebeu um outro thipdar, muito menor, sobrevoando o primeiro, até que avançou sobre ele e depois de se chocarem violentamente no ar, começaram à descer, ao mesmo tempo que uma parte do thipdar maior se destacava no espaço. Os dois pássaros caíam vertiginosamente das alturas, descrevendo uma espiral, o menor apoiado sobre as asas do maior. A essa altura, a parte que se havia destacado do que Jana considerava o thipdar maior, mudou de formato e transformou-se num enorme cogumelo flutuante que descia lentamente, balançando-se de um lado para outro, como se fosse uma pedra amarrada a uma tira de couro.

E à medida que o estranho objeto, destacado do thipdar maior se aproximava do solo, os olhos de Jana, arregalados de surpresa e pavor, reconheciam a figura de um homem pendurado no que ela julgava ser um cogumelo gigante.

Sua gente tinha algumas superstições, mas ainda não atingira um grau de civilização que permitisse a adoção de uma crença ou de uma religião definida. No entanto, ali estava algo que fugia a qualquer explicação lógica, que, a seu ver, tocava as raias do sobrenatural. Tinha presenciado a luta de dois grandes répteis voadores no espaço e de um deles havia saído uma criatura humana, e para Jana tratava-se de um fato inacreditável e ao mesmo tempo aterrorizante. E sua reação natural foi sair correndo e fugir.

Mas, ao retornar ao canyon, avistou Skruk e seus três companheiros que vinham em sua direção.

Eles também haviam visto a luta dos dois pássaros gigantes à grande altura e a descida do estranho objeto em direção ao solo. E como estivessem também estupefatos e atemorizados, preparavam-se para fugir quando Skruk avistou a Flor Vermelha de Zoram correndo para o lado em que vinham. No mesmo instante, suas emoções em relação a inusitado acontecimento que presenciara submergiram no seu desejo de capturar a jovem das montanhas e, aos gritos de suas ordens, seus companheiros, embora ainda horrorizados com o que tinham visto, acompanharam-no em direção a Jana.

à vista de seus perseguidores, Jana correu para a direita e tentou a fuga na direção oposta, mas Skruk mandou que um de seus homens interceptasse sua passagem e, quando ela se voltou na outra direção, os quatro homens de Pheli se juntaram para alcançá-la numa corrida desabalada, impedindo sua retirada-

Preferindo qualquer outro destino a ser capturada pelos seus perseguidores, a Flor Vermelha de Zoram mudou novamente de direção, avançando para o vale e saltando por cima dos quatro homens de Pheli.

No instante em que Jason Gridley se desembaraçava das cordas de seu pára-quedas, um fragmento da hélice partida de seu avião atingiu-o justamente sobre a cabeça, e quando voltou a si da violenta pancada encontrou-se deitado sobre a relva que recobria o vale, onde o canyon se abria para a extensa superfície plana que se estendia por incalculável distância.

Profundamente contrariado com a desastrosa conseqüência de sua inútil busca por seus companheiros de expedição, Gridley se pôs de pé e livrou-se dos cordéis do pára-quedas. Sentiu-se aliviado ao verificar que não sofrerá maiores danos do que um pequeno ferimento na testa e sua preocupação era apenas com o aeroplano. Imaginava-o completamente destroçado, no entanto ainda tinha esperanças de poder recuperar sua espingarda e a respectiva munição.

E enquanto esse pensamento lhe ocupava a mente, sua atenção foi desviada por verdadeiro coro do uivos e grunhidos selvagens que partia de uma pequena elevação do terreno, a poucos metros do local onde se encontrava. Viu então uns quatro animais de aspecto aterrorizante que reconheceu tratar-se de quatro hienodontes, na classificação dos paleontologistas da face externa da terra, e conhecidos pelo nome de jaloks entre os habitantes de Pellucidar. Assemelhavam-se a cães selvagens, com características de lobos e de hienas, com pernas fortes e curtas, possantes mandíbulas que se abriam em uivos estridentes, deixando à mostra grandes presas pontiagudas.

Mas, ao observá-los, Gridley percebeu que as feras ainda não se tinham dado conta de sua presença e toda aquela fúria era voltada para uma jovem que corria desesperadamente, seguida de perto por quatro homens que pareciam persegui-la.

Na verdade, era Jana que tentava escapar aos homens de Pheli e que, de repente, ao ouvir os uivos dos selvagens animais e ao vê-los tão próximos, estancara como que paralisada pela situação em que se via.

Em dado momento, os hienodontes começaram a avançar em sua direção, ao mesmo tempo que os quatro homens também ganhavam terreno em seu encalço. Só lhe restava uma tentativa para escapar aos dois grupos de atacantes e quando a H0r Vermelha de Zoram se voltou na única direção que poderia fugir, avistou Jason Gridley exatamente em seu caminho, o que fez com que a jovem hesitasse novamente em prosseguir.

Intuitivamente Gridley compreendeu o dilema em que estava Jana: ameaçada por trás e por um dos lados pelos quatro homens de Pheli e pelas feras, sentia-se também aterrorizada pela presença daquele desconhecido que poderia ser um terceiro inimigo.

Mas, agindo impulsivamente, como sempre acontecia às criaturas de sua espécie, Gridley correu em direção à moça gritando-lhe palavras de encorajamento e fazendo-lhe sinais para que viesse ao seu encontro.

Skruk e seus homens já estavam muito próximos, cercando-a por trás e pela direita, enquanto os jaloks vinham pela esquerda. Jana ainda teve alguns segundos de hesitação, mas finalmente resolveu lançar-se na direção de Gridley, preferindo colocar seu destino nas mãos de um estranho, do que render-se aos homens de Pheli ou à voracidade dos jaloks. Começou a correr em direção a Jason Gridley, seguida agora pelos quatro homens e pelas quatro feras.

Enquanto corria ao encontro da jovem das montanhas, Gridley sacou seu revólver Colt 45.

Os hienodontes, em trote acelerado, aproximavam-se cada vez mais e quando um deles já estava prestes a atacar a Flor Vermelha de Zoram, ela tropeçou e caiu por terra, quase ao mesmo tempo que chegava junto a Jason, que atirou no animal, um tiro certeiro e mortal. Mas o jalok estava tão próximo, que seu corpo ferido caiu por cima de Jana.

Ao ouvirem o estampido do revólver, um ruído totalmente desconhecido para aquelas criaturas de Pellucidar, os jaloks pararam assustados, bem como os homens de Pheli, que, sob o comando de Skruk, pretendiam salvar a jovem das garras dos temíveis hienodontes.

Rapidamente Jason Gridley empurrou o corpo do animal ferido de cima de Jana, ajudando-a a pôr-se de pé. No mesmo instante, Jana sacou seu facão de pedra ameaçadoramente contra Gridley, pois, a seu ver, qualquer homem que não fosse de Zoram representava um inimigo. E pelas leis de sua natureza primitiva e selvagem, movida também pelo instinto de conservação comum a todas as criaturas, seu primeiro impulso era matar, antes que fosse morta. No entanto, no momento em que ergueu sua arma para atacar Gridley, percebeu algo de diferente no olhar daquele desconhecido, uma expressão que jamais vira no olhar ou na fisionomia de qualquer outro homem. E sem que Gridley pronunciasse uma só palavra, a Flor Vermelha de Zoram compreendeu que o estranho estava pronto a defendê-la, estava muito mais propenso a lhe oferecer sua amizade do que a lhe atacar. E embora ainda atemorizada pelo estampido do revólver de Jason e a onda de fumaça que lhe turvava a vista, entendeu, de relance, que aquilo havia sido um meio usado pelo homem desconhecido para protegê-la contra as feras e contra seus perseguidores de Pheli.

Num gesto quase inconsciente, abaixou a mão que segurava o facão e, ao vislumbrar um sorriso na face de Gridley, a Flor Vermelha de Zoram sorriu-lhe de volta.

De pé, um diante do outro, na mesma posição em que estavam desde que Jason Gridley lhe ajudara a erguer-se do chão, ele com uma das mãos sobre o ombro de Jana, num gesto inconsciente de proteção, assim permaneceram por breves segundos. Mas Jason desviou os olhos para os inimigos da moça das montanhas, que, passado o primeiro susto com a detonação da arma, voltavam ao ataque, lançando-se furiosamente contra aquele estranho par.

Dois dos jaloks tinham-se voltado contra Skruk e seus companheiros, enquanto um terceiro se dirigia para Jason e Jana.

Os homens de Pheli se colocaram para rechaçar o ataque das feras que avançavam em sua direção, erguendo no ar suas possantes clavas. E quando os jaloks lançaram-se ao ataque, os homens desfecharam violentos golpes sobre os animais. Skruk era, sem dúvida, o mais capacitado, e logo acertou a perna de um dos hienodontes, quebrando-a de um só golpe. A fera caiu por terra, ao mesmo tempo que o outro homem de Pheli saltava sobre o enfurecido Jalok, batendo-lhe violentamente sobre a cabeça.

Em seguida, ao desferir um outro golpe sobre o segundo animal, o homem de Pheli deixou escapulir a clava. O jalok atirou-se sobre seu atacante cuja única defesa era somente o facão de pedra que sacara da cintura. Mas um de seus companheiros avançou em seu socorro e conseguiu abater o animal com a pesada clava que ainda tinha nas mãos. Enquanto isso,

Skruk e o outro pheliniano, já livres do adversário abatido, correram em socorro do companheiro.

Aquela encarniçada luta entre as feras e os homens de Pheli passava despercebida a Jason Gridley, que só tinha olhos para o quarto jalok que avançava em direção a ele e a Jana.

Jana, por sua vez, percebendo que a atenção dos homens de Pheli se concentrava apenas em combater os enfurecidos hienodontes, compreendeu que lhe era chegado o momento oportuno de fugir. Sentia a mão do desconhecido sobre seu ombro, mas segurava-a tão de leve que não lhe seria difícil libertar-se, com um movimento rápido e preciso. No entanto, o contato daquela mão transmitia-lhe um sentimento de tamanha proteção, como jamais sentira fora de seus domínios, longe de sua gente de Zoram. Talvez o inconsciente instinto protetor do homem exercesse uma forte influência sobre a Flor Vermelha de Zoram, que, em vez de tentar fugir, sentia-se mais protegida ali do que em qualquer outro lugar.

Finalmente o quarto hienodonte lançou-se sobre suas duas vítimas, mas foi rechaçado pelo Colt 45 de Jason Gridley. O animal caiu pesadamente, atingido pela possante descarga do revólver, mas conseguiu levantar-se novamente, enlouquecido de dor, o sangue escorrendo por toda a cabeça, investindo violentamente sobre a garganta de Gridley.

O homem tombou por terra, ao peso do corpanzil do animal, tentando defender o pescoço daquelas presas, que mais pareciam duas espadas, com o antebraço esquerdo. Mas as mandíbulas do feroz jalok não chegaram a se fechar sobre sua carne. Jason Gridley conseguiu sair de debaixo do animal e, quando se pôs de pé, percebeu que a moça das montanhas tentava arrancar seu facão de pedra do corpo da fera.

Se fora sua última bala ou a arma de Jana que abatera o jalok, Gridley não podia saber. O fato é que, naquele momento, dominava-o apenas um forte sentimento de gratidão pelo gesto de bravura e de coragem daquela frágil criatura que tinha a seu lado, que havia enfrentando a fúria daquele selvagem carnívoro sem perder a calma, e em sua defesa.

Os quatro jaloks jaziam por terra, mortos, mas a luta de Gridley ainda continuaria, pois assim que se viu livre do ataque das feras, a jovem das montanhas agarrou-o pelo braço, apontando para trás.

— Lá vêm eles! — exclamou ela, aterrorizada. — Vão matar você e depois me levarão com eles. Oh, por favor, não deixe que me levem!

Jason não entendeu uma palavra do que Jana lhe dizia, mas pela sua inflexão, pelo seu tom de voz e pela expressão de sua fisionomia, compreendeu que ela temia muito mais aqueles quatro homens que se aproximavam do que os terríveis hienodontes. E quando se virou na direção deles, não teve dúvidas quanta à sua periculosidade, pois pareciam-lhe tão ferozes quanto os jaloks, embora não tivessem a imponência e a beleza selvagem dos grandes carnívoros — fato que se verifica quase que universalmente, quando se compara a raça humana com as chamadas raças inferiores.

Gridley ergueu o revólver, mirando o homem que vinha à frente e que não era Skruk, o chefe do pequeno bando.

— Sumam! — exclamou Jason. — Vocês assustam esta jovem! i . [

— Sou Gluf — disse-lhe o homem. — Eu mato!

— Se eu conseguisse entender vocês — respondeu Gridley — poderíamos entrar num acordo. Mas com essas cabeleiras enormes, essas suíças até o meio da cara e essa testa curta, não devem raciocinar bem e devem estar totalmente errados em suas intenções!

Gridley não queria matar o homem, no entanto compreendia que era perigoso deixá-lo aproximar-se demais. E se tinha dúvidas de consciência quanto ao homicídio que se sentisse forçado a cometer, era evidente que Jana encarava os fatos de maneira totalmente diversa, pois não parava de falar, em sua linguagem incompreensível para Jason Gridley, mas fazendo-o compreender seus gestos, uma vez que tocava em sua arma e apontava significativamente para Gluf, como que exigindo dele alguma ação.

Gluf estava a uns quinze passos de distância e seus companheiros começavam a movimentar-se em círculo, apertando o cerco.

Gridley tinha consciência de que precisava agir rapidamente e, movido por seus instintos humanitários, resolveu atirar para o alto. O forte estampido assustou os atacantes, fazendo-os parar. Mas do momento que perceberam que nenhum deles havia sido atingido, irromperam numa série de ameaças e impropérios, e Gluf, impelido pelo desejo de capturar a jovem para poder regressar a Pheli, recomeçou a avançar em direção a Jason e Jana, agitando ameaçadoramente sua clava. E f0j nesse momento que Gridley, embora contra sua vontade, disparou outro tiro, desta vez para matar. Gluf parou, contorceu-se e numa reviravolta em torno de si mesmo projetou-se pesadamente ao solo.

Virando-se na direção dos outros homens, Gridley atirou novamente, compreendendo que aquelas pesadas clavas teriam o mesmo efeito sobre ele e sobre a moça do que as balas de seu Colt 45. Outro homem caiu por terra enquanto Skruk e seu último companheiro bateram em retirada, fugindo desabaladamente.

— Bem — disse Gridley, olhando para os dois homens que fugiam, depois para os corpos inertes dos outros dois e mais os quatro jaloks abatidos — trata-se de um mundo de grandes belezas, mas duvido que alguém consiga sobreviver num lugar destes para poder apreciar e gozar de suas maravilhas!

A Flor Vermelha de Zoram permanecia imóvel, olhando para Jason Gridley com respeito e admiração. Tudo que se relacionava com aquele desconhecido despertava-lhe interesse, atiçava-lhe a curiosidade e estimulava-lhe a imaginação. Era um homem diferente de todos que jamais vira, em suas particularidades, em suas características, em seus mínimos detalhes. Não havia coisa alguma em sua aparência, em seus apetrechos, nas roupas que usava, que se assemelhasse às outras criaturas humanas que conhecera. Aquela poderosa arma, de onde saía fogo e fumaça, ao som de um formidável estampido, deixava-a ao mesmo tempo atemorizada e fascinada. No entanto, o principal motivo de sua grande admiração por Gridley residia no simples fato de que ele não lhe causava medo. Além de um temor inato por criaturas estranhas ao seu meio, Jana aprendera desde criança a esperar sempre o pior, por parte dos homens que não pertencessem à sua tribo, e tinha sido aconselhada a fugir deles em toda e qualquer ocasião. Talvez tivesse sido aquele sorriso de Gridley que a desarmara ou talvez a expressão de lealdade e de amizade de seu olhar que houvesse conquistado sua imediata confiança. Mas fosse qual fosse o motivo, o fato era que a Flor Vermelha de Zoram não procurou fugir de Jason Gridley que se encontrava agora inteiramente perdido num mundo estranho, o que já seria bastante aflitivo para ele, sem a responsabilidade de proteger uma jovem desconhecida que nada entendia do que ele falava e que, por sua vez, não se podia fazer compreendida por ele.

 

JANA E JASON

Tar-gash e Thoar observavam atentamente os destroços do avião e Tarzan procurava ansiosamente pelo corpo do piloto. Finalmente, o homem-macaco teve uma sensação momentânea de alívio quando descobriu que não havia nenhum cadáver entre as ferragens do pequeno aeroplano destruído. No entanto, examinando o solo à sua volta, localizou algumas pegadas de pés calçados com botas, compreendendo imediatamente terem sido deixadas por Jason Gridley, o que lhe deu a certeza de que o piloto não tinha morrido e aparentemente não deveria ter sofrido ferimentos graves. E de repente descobriu mais alguma coisa que o deixou estupefato. Misturadas às pegadas de Gridley, havia outras, evidentemente marcadas ao mesmo tempo, de pés muito menores, calçados com sandálias.

Depois de um exame mais detalhado, Tarzan chegou à conclusão de que duas pessoas, uma delas sendo Jason Gridley e a outra uma mulher ou um jovem de alguma tribo de Pellucidar, haviam-se aproximado do avião destroçado, permanecendo algum tempo em suas imediações e afastando-se na direção de onde ele e seus dois companheiros tinham vindo. E tendo diante de si aquele rasto tão bem marcado, não havia outra alternativa para Tarzan do que segui-lo.

A evidência dos fatos sugeria que Gridley havia sido forçado a abandonar o pequeno aeroplano em pleno vôo, lançado mão de seu pára-quedas, para descer à terra. Mas onde e sob que circunstâncias teria encontrado uma companhia, era-lhe impossível adivinhar.

Teve grande dificuldade em afastar Thoar de junto do avião, pois seu interesse e curiosidade em relação àquela máquina totalmente desconhecida para ele motivavam-lhe uma série interminável de perguntas e indagações.

A reação de Tar-gash fora completamente diferente. Olhara o aparelho demonstrando pouca curiosidade e fez uma só pergunta a respeito.

— O que é isto? — indagou o homem-gorila.

— Isto é aquele objeto voador que passou sobre nós e que você pensou que fosse um réptil voador — explicou-lhe Tarzan. — Aliás, eu disse a você, naquela ocasião, que um de meus companheiros deveria estar dentro dele. Deve ter acontecido alguma coisa que fez a máquina cair, mas meu amigo escapou com vida e sem grandes ferimentos.

— Mas isso não tem olhos — continuou Tar-gash. — Como é que poderia voar sem enxergar?

— Não se trata de uma coisa viva, Tar-gash — continuou Tarzan.

— Mas eu ouvi o seu ronco — disse o grande sagoth que não se convencia de não se tratar de um ser vivente, aquele estranho objeto voador.

Em seguida, começaram a caminhar, seguindo as pegadas deixadas por Jason e Jana. E tinham percorrido uma pequena distância quando depararam com a carcaça de um gigantesco pterodátilo. Tinha a cabeça estraçalhada e praticamente separada do corpo. De seu crânio projetava-se uma lasca de madeira que Tarzan logo reconheceu como sendo um fragmento da hélice do avião. Não lhe restava dúvidas: o grande réptil voador deveria ter-se chocado no ar com o aeroplano de Gridley, causando-lhe a queda.

Alguns quilômetros adiante, os três companheiros encontraram novos vestígios da passagem de Gridley, desta vez um tanto estarrecedores. Havia um pára-quedas aberto sobre o solo e a pouca distância jaziam os corpos de quatro jaloks mortos e os cadáveres de dois homens de vastas cabeleiras.

Examinando esses corpos, Tarzan notou que tanto os animais como os dois homens haviam sido abatidos a tiros. E por toda a parte apareciam as pequeninas pegadas de pés calçados de sandálias, acusando a presença da companheira de Jason Gridley. Era evidente, aos olhos perscrutadores de Tarzan, que mais dois outros homens haviam tomado parte na luta, sendo da mesma tribo dos outros encontrados mortos, Junto aos animais abatidos. Às marcas de suas sandálias eram as mesmas e completamente diferentes dos daquelas usadas por Thoar.

Contornando o local, em busca de outros vestígios, reparou que os dois homens que conseguiram escapar haviam corrido velozmente em direção à embocadura do grande canyon, denunciando sua retirada. E as pegadas de Jason e de sua companheira mostravam que os dois haviam caminhado na mesma direção, em busca talvez do pequeno aeroplano abatido. Depois, deveriam ter retornado ao local da luta, partindo em seguida em direção às montanhas, mas obedecendo um caminho muito mais para a direita da trilha deixado pelos dois nativos fugitivos.

Thoar mostrava-se também muito interessado nas marcas e nas pegadas que sulcavam o solo, bem como no pára-quedas aberto no chão. Mas nada disse antes que Tarzan terminasse suas investigações.

— Havia quatro homens e provavelmente uma mulher, ou um jovem, em companhia do meu amigo — disse finalmente o homem-macaco.

— Esses quatro homens deveriam ser das terras baixas de Pheli — esclareceu Thoar. — A mulher deveria ser de Zoram.

— Como é que você sabe disso? — indagou Tarzan, sempre interessado em aumentar seus conhecimentos sobre as coisas das florestas.

— As sandálias usadas pelos habitantes das terras baixas nunca são do feitio exato dos pés, como acontece com as usadas pelos habitantes das montanhas — respondeu-lhe Thoar. — As solas são muito mais finas e confeccionadas de pele de animal, uma vez que esse povo só caminha sobre terreno mais ou menos plano, recoberto de relva ou sobre regiões pantanosas. As sandálias das tribos das montanhas são feitas de couro muito mais resistente, em geral da pele dos Majs, da família dos Tandors. Se você observar melhor as pegadas, verá que as sandálias que deixaram suas marcas não deveriam estar com solas muito gastas, enquanto há buraco nas sandálias dos homens de Pheli que encontramos mortos.

— Estamos perto de Zoram? — indagou Tarzan.

— Não — respondeu-lhe Thoar. — Zoram fica do outro lado do pico mais elevado dessas montanhas à nossa frente.

— Quando nos encontramos, Thoar, — lembrou Tarzan .__você me disse que era de Zoram.

— E isto é verdade — disse Thoar — pois Zoram é a minha terra.

— Então talvez esta mulher que acompanhou Jason Gridley seja conhecida sua — sugeriu o homem-macaco.

— Ela é minha irmã — respondeu-lhe Thoar. Tarzan ficou surpreendido com aquela revelação.

— Como é que você sabe? — perguntou.

— Encontrei uma pegada num local onde não havia relva, apenas uma areia fina. E o rasto estava tão nítido que pude reconhecer o formato das sandálias que ela usa. Estou tão habituado com os trabalhos que ela faz, que identifiquei seu sistema de costurar a sola na parte superior da sandália. Além disso, vi também a marca dos entalhes, feitos no couro, o que indica a tribo a que a pessoa pertence. O povo de Zoram faz três entalhes na sola da sandália do pé esquerdo, exatamente sob a parte onde ficam os dedos.

— O que é que sua irmã estaria fazendo nestas paragens tão distantes de sua terra e como se terá tornado companheira de meu amigo? — quis saber Tarzan.

— Muito simples — respondeu-lhe Thoar. — Esses homens de Pheli deveriam estar em seu encalço, tentando capturá-la. Um deles certamente a desejava como esposa, mas ela conseguiu ludibriá-los, e com certeza eles a perseguiram pelas montanhas dos thipdars até este vale, onde ela deve ter sido perseguida também pelos jaloks. A esta altura, seu amigo deve ter aparecido, matando as feras e aqueles dois homens de Pheli. Depois, conseguiu afugentar os outros dois e minha irmã não pôde fugir, sendo capturada pelo seu companheiro.

Tarzan não pôde deixar de sorrir.

— Mas, de acordo com as pegadas que vimos, não há nenhum sinal de que ela tenha tentado fugir do meu amigo.

— Isso é verdade — concordou Thoar. — No entanto, não posso compreender este fato, pois as mulheres de minha tribo nunca se juntam aos homens de tribos diferentes, e sei que Jana, minha irmã, preferiria a morte a se tornar esposa de alguém que não fosse habitante das montanhas dos thipdars. Ela sempre afirmava isso e Jana é uma moça de palavra.

— Tenho certeza de que meu companheiro não forçaria sua irmã a acompanhá-lo — disse Tarzan. — Se ela ficou com ele, foi por livre e espontânea vontade. E posso garantir-lhe de que, quando os encontrarmos, você verá que ele a estará acompanhando de volta a Zoram, pois meu amigo é o tipo do homem que não permitiria que uma moça prosseguisse sozinha e indefesa até seu lugar de origem, numa região perigosa como esta,

— Veremos — respondeu Thoar. — Mas se ele levou Jana em sua companhia, contra a vontade dela, ele morrerá!

E enquanto Tarzan, Tar-gash e Thoar seguiam caminho, acompanhando as pegadas de Jason e de Jana, uma turma de homens surgiu à frente deles, contornando a parte final das montanhas dos thipdars, ingressando no Gyor Cors, isto é, nas grandes planícies dos gyors.

A expedição consistia em dez guerreiros negros e um homem branco, e nunca, na história da humanidade, teria havido um grupo de onze homens tão desnorteados e tão perdidos como aqueles.

Muviro e seus guerreiros, adestrados em descobrir trilhas e em se orientar nas mais densas florestas da face externa da terra, encontravam-se naquele momento completamente incapacitados para descobrir o caminho de volta à 0-220.

O estouro das bestas perseguidas pelos grandes tigres, do qual os homens escaparam miraculosamente com vida, havia destruído pegadas e marcas que haviam deixado atrás de si. E julgando terem percorrido uma pequena distância da clareira onde se dera aquela terrível carnificina, não conseguiram mais localizá-la e agora andavam mais ou menos sem rumo, sendo que o único recurso, sugerido por von Horst, era caminharem o mais possível por campos abertos e planícies, na esperança de que a 0-220, sobrevoando a região, conseguisse localizá-los. Von Horst tinha certeza de que seus companheiros viriam em seu socorro, de uma maneira ou de outra.

A bordo da nave, a ansiedade pela salvação dos treze homens ausentes havia-se transformado na certeza de um desastre fatal, ainda mais que Jason Gridley não retornara dentro do prazo previsto, isto é, dentro dos limites de tempo que conseguiria manter o pequeno aeroplano de exploração no ar.

Zuppner tinha enviado uma outra expedição, chefiada por p0rf, mas ao fim de setenta e duas horas já estavam todos de volta, sem a menor notícia dos companheiros desaparecidos. Haviam seguido uma trilha que os levara a uma clareira onde os chacais devoravam restos de carne apodrecida e, fora disso, não tinham encontrado o menor vestígio, a mais vaga indicação da direção tomada pelos companheiros.

Na ida e vinda dessa expedição, seus componentes haviam sofrido tantos ataques dos animais selvagens de Pellucidar que voltaram com a certeza de que os demais deveriam ter sido devorados pelas feras da região.

— Mas enquanto não tivermos provas disso — havia dito Zuppner — não devemos perder as esperanças de encontrá-los e nem diminuir nossos esforços no sentido de procurá-los, vivos ou mortos. O que não podemos fazer é permanecermos aqui parados esperando por algum milagre ou simplesmente esperando passar o tempo.

A solução era partir imediatamente. Enquanto os motores se esquentavam, foi levantada a âncora e o ar expelido dos tanques inferiores, refazendo-se o vácuo. E quando a 0-220 ergueu-se do solo, Robert Jones fez uma anotação num velho caderno de notas: “Levantamos vôo ao meio-dia.”

Quando Skruk e seu companheiro bateram em retirada, Jason Gridley guardou seu revólver na cartucheira e olhou para Jana.

— Bem — disse-lhe ele — e agora?

— Não entendo nada do que você diz — respondeu a Flor Vermelha de Zoram — pois você não sabe falar a língua dos gilaks.

Jason cocou a cabeça, pensando no que deveria fazer.

— Já que não nos compreendemos — disse ele, como se falasse consigo mesmo —, uma vez que um não entende a linguagem do outro, vou dar uma espiada no meu avião, pedindo a Deus que encontre minha outra arma e minha reserva de punição, o que não será de todo impossível, pois se tivessem sido destruídas, ou queimadas, eu teria visto a fumaça.

Jana ouvia atentamente suas palavras, embora sem nada entender.

— Vamos — disse-lhe Jason, fazendo-lhe sinal que o acompanhasse na direção do aeroplano sinistrado.

— Por aí, não! — exclamou Jana, segurando Jason pel0 braço e apontando para a direção oposta, onde se erguiam os altos picos das montanhas dos thipdars, onde ficava Zoram.

Gridley tentou explicar, através de mímica e de uma improvisada linguagem de sinais, que desejava ir à procura de seu avião, mas logo compreendeu que não conseguiria fazer com que a moça das montanhas entendesse suas explicações, embora ela soubesse o que era um aeroplano. E com um sorriso condescendente, tomou-a pela mão e conduziu-a delicadamente para o local onde deveria estar o aparelho.

E mais uma vez o simpático sorriso de Jason Gridley desarmara a Flor Vermelha de Zoram, que, embora sabendo que estava sendo levada em direção oposta às cavernas de seu povo, não hesitou em acompanhá-lo documente. No entanto, seus pensamentos estavam confusos, pois não conseguia saber por que aquele desconhecido não lhe causava o menor temor e também por que se deixava levar por ele, uma criatura que nem ao menos deveria ser um gilak, pois não falava a língua dos homens.

A meia hora de busca foi recompensada pela descoberta do aeroplano acidentado, que, afinal de contas, sofrerá muito menores danos do que Jason esperava.

Era verdade que a queda vertiginosa ao solo danificara quase que irremediavelmente o aparelho e seria impossível recuperá-lo, mesmo que dispusesse de todas as facilidades para consertá-lo, mas de qualquer maneira não se havia incendiado, e assim Gridley conseguiu recuperar sua arma e sua munição.

Jana mostrava-se muito interessada no aeroplano, examinando-o detalhadamente. Nunca, em sua vida, tivera tido tanta vontade de fazer perguntas e indagar coisas, uma vez que jamais vira um objeto que lhe despertasse tamanha admiração e curiosidade. E ali ao seu lado estava a pessoa que lhe poderia dar todas as explicações possíveis, todas as respostas às suas perguntas, mas que não seria capaz de compreender uma só delas. Por um breve momento, chegou quase a odiar Jason Gridley, em sua incapacidade de entendê-la, mas bastou que ele lhe sorrisse e lhe apertasse a mão para que ela imediatamente o perdoasse e lhe sorrisse de volta.

— E agora — disse Jason —, para onde vamos? Pelo visto, todas essas regiões se equivalem.

Absolutamente certo de estar irremediavelmente perdido de seus companheiros e da nave, Jason Gridley chegara à conclusão de que sua única chance era ser localizado pela 0-220, caso Zuppner resolvesse sobrevoar a região. E fosse ele em direção norte ou sul, leste ou oeste, as possibilidades de ser encontrado seriam as mesmas. A 0-220 tinha capacidade de percorrer, no período de uma hora, a mesma distância que Jason levaria vários dias para fazê-lo. Mesmo que caminhasse em direção oposta ao local onde estava aterrado a nave, nunca iria tão longe, a ponto de não poder ser localizado pela 0-220, se a busca se processasse na mesma direção. Assim raciocinando, virou-se para Jana tentando perguntar-lhe para que lado deveriam caminhar. Apontava para a frente, para a direita, para a esquerda, esforçando-se por mostrar-se disposto a acompanhá-la na direção que ela escolhesse.

Finalmente, compreendendo o que Gridley lhe tentava transmitir, Jana apontou para as montanhas dos thipdars.

— É lá que fica Zoram — disse-lhe ela — onde mora a minha gente.

— Sua lógica é irrefutável — respondeu-lhe Jason — e só gostaria de entender o que você está me dizendo, pois uma moça com um sorriso tão bonito jamais deixaria de ter razão.

Jana não disse mais nada e começou a caminhar em direção às montanhas, seguida por Jason Gridley, da Califórnia.

Sua mente fervilhava para encontrar um meio de comunicar-se com Gridley, uma vez que não suportava mais sua curiosidade insatisfeita a respeito de tudo que se relacionasse com aquele desconhecido. E surgiu-lhe a idéia de ensinar sua língua ao estranho companheiro. Mas, como começar? Jamais tivera necessidade disso, mas sentia-se impelida a pelo menos tentar. E julgando aquela criatura primitiva, da idade da pedra, por este seu raciocínio, era fácil chegar à conclusão de que possuía um alto nível de inteligência, uma grande agilidade mental. Se alguém exigisse de um homem, que nunca tivesse ouvido falar ern vapor, que acionasse uma máquina a vapor, teria as mesmas dificuldades de Jana, para ensinar um idioma a um estrangeiro. No entanto, a possibilidade de êxito em satisfazer uma curiosidade incontrolável, ainda mais em se tratando da curiosidade de uma linda jovem por um atraente rapaz, induzia a Flor Vermelha a qualquer esforço. As vestimentas mudam, mas a natureza humana é e será sempre a mesma.

E assim, apontando para si mesma com aquelas mãos bronzeadas e bem torneadas, a Flor Vermelha de Zoram pronunciou seu nome: Jana. Repetiu o gesto diversas vezes e em seguida, apontando para Gridley, ergueu as sobrancelhas como que indagando o nome dele.

— Jason — disse-lhe ele, compreendendo perfeitamente a pergunta que a jovem lhe fazia por sinais.

E a lenta e trabalhosa tarefa prosseguiu, enquanto os dois caminhavam em direção ao sopé das montanhas dos thipdars. Começaram a subir as primeiras escarpas, onde havia abundância de córregos e regatos para mitigar-lhes a sede. Jana conhecia perfeitamente as plantas e as frutas comestíveis que encontravam em grande profusão pelo caminho que seguiam, e quando tinham vontade de comer carne, Jason encarregava-se de abater as caças que também abundavam na região.

À medida que prosseguiam, em direção a Zoram, Jason Gridley tinha oportunidade de observar e analisar sua companheira, chegando à conclusão de que a natureza havia atingido o auge da perfeição física, naquela encantadora criaturinha selvagem. Cada curva e cada detalhe daquele delgado corpo bronzeado obedeciam a uma perfeita simetria de medidas e proporções, transformando a Flor Vermelha de Zoram num verdadeiro poema de beleza. Se Jason achava seus dentes lindos, era forçado a admitir que não perdiam em nada para a perfeição de suas feições e a luminosidade de seu olhar. E quando Jana o ajudava a escalpelar uma caça, com sua primitiva faca de pedra, preparando-a para ser assada na brasa; quando Gridley viu seu desembaraço e sua destreza em acender uma fogueira, lançando mão dos meios mais primitivos para fazer fogo; quando observou sua agilidade e sua segurança em localizar ovos de aves em seus ninhos, vegetais e frutas comestíveis, compreendia que seus dotes não eram apenas físicos e ainda se sentiu mais ansioso em adquirir uma suficiente compreensão de sua língua, para poder comunicar-se melhor com ela, embora estivesse consciente de uma possível decepção, uma vez que, através de uma comunicação perfeita de linguagem, viesse a descobrir as limitações de sua mente primitiva.

Quando Jana se sentia cansada, ia para debaixo de uma árvore e, improvisando uma cama de capim, esticava-se sobre ela, adormecendo instantaneamente. E enquanto ela dormia, Jason Gridley ficava de vigília, pois os perigos daquela região primitiva e selvagem eram numerosos e constantes. Não hesitava em usar suas armas, tanto para caçar alimento, como para se proteger e também proteger sua companheira contra os animais ferozes. Esses episódios, a princípio lhe pareciam emocionantes e extremamente perigosos, transformaram-se, aos poucos, em verdadeiros lugares-comuns, exatamente como acontece diariamente aos pedestres das grandes cidades, escapando da morte a cada esquina, na crosta externa da terra.

Quando Jason sentia necessidade de algumas horas de sono, Jana ficava vigiando. Algumas vezes eles apenas descansavam, sem dormir, à sombra de alguma árvore mais frondosa, uma vez que julgavam ser este o melhor meio de se proteger contra seus mais ferozes inimigos, isto é, os gigantescos e vorazes thipdars que vinham das montanhas que levavam seu nome. Aqueles primitivos répteis voadores constituíam uma constante ameaça, no entanto a natureza era tão sábia que Jana seria capaz de ouvir o rufar de suas enormes asas, a grandes distâncias, antes mesmo que os referidos animais avistassem as duas criaturas humanas.

Jason Gridley não dispunha de meios para determinar a distância já percorrida ou há quanto tempo estavam caminhando. Mas estava certo de que deveriam ter decorrido muitos dias, segundo a cronometragem utilizada na face externa da terra, depois de ter encontrado a jovem das montanhas, quando os dois se defrontaram com um obstáculo aparentemente intransponível. Havia feito considerável progresso no domínio da linguagem da Flor Vermelha de Zoram e já conseguiam trocar algumas frases, embora curtas, causando, muitas vezes, divertidos sorrisos à jovem, com seus erros de pronúncia e de construção de frases.

Agora encontravam-se diante de um desfiladeiro. profundo, com suas paredes íngremes, o que representava para Jason um obstáculo de grande periculosidade, uma vez que impedia a travessia para as montanhas, estendendo-se por centenas de quilômetros.

Durante algum tempo, Jana deteve-se em estudar um meio de descer pelo despenhadeiro, a fim de atingir o outro lado sem ter que contornar a montanha pela esquerda, o que poderia levá-los de volta ao grande canyon onde ela se defrontara com

Skruk e seus companheiros e onde as escarpas eram muito mais íngremes e difíceis de serem escaladas. Temia, também, voltar a encontrar-se com os homens de Pheli, seguindo por aquela direção, o que fez com que ela induzisse Jason a acompanhá-la pela direita, à procura de uma descida menos perigosa até o fundo do abismo.

   Jason compreendia que perdiam muito tempo, naquela tentativa de atravessar o desfiladeiro, mas sabia também que o tempo nada significava para os habitantes de Pellucidar. Era um fator que não merecia consideração pelo único motivo de que simplesmente não existia. E ao se dar conta disso, descobriu, para sua grande surpresa, que ele próprio, que sempre fora um verdadeiro escravo do relógio, já começava a se acostumar àquela irresponsável maneira de viver de Pellucidar. Não se tratava apenas do fato de ninguém dar importância à passagem do tempo, mas da influência que este fato exercia sobre a maneira de encarar a vida e suas obrigações. Sem sentir o transcurso do tempo, não havia contas a prestar, uma vez que os escravos do tempo haviam sido criados pensando sempre no futuro para receber a recompensa ou o castigo de seus atos. E acontecia com Jason Gridley o mesmo que havia acontecido com Tarzan, em relação aos seus companheiros de expedição: nenhum dos dois se detinha mais em pensar ou preocupar-se com eles. O que lhes tivesse acontecido, já teria acontecido e nem Jason nem Tarzan poderiam alterar os fatos. Não estavam em companhia deles e assim não podiam prestar-lhes assistência. E, afinal de contas, era-lhes muito difícil visualizar o futuro, sob aquele eterno sol a pino. Como poderiam planejar para adiante, em relação ao próprio destino e ao destino dos companheiros?

Jason Gridley procurou desviar o pensamento daquele enigma indecifrável e procurou alívio na contemplação do lindo perfil da Flor Vermelha de Zoram.

— Por que você olha tanto para mim? — indagou-lhe Jana, pois já conseguiam entender-se perfeitamente na linguagem da moça das montanhas.

   Jason Gridley enrubesceu ligeiramente e desviou o olhar. Aquela pergunta havia sido muito direta e completamente inesperada, e pela primeira vez ele se deu conta de que, de fato, andava olhando muito para Jana. Tentou responder qualquer coisa, hesitou e acabou por nada dizer. Afinal, por que ele a observava tanto? Parecia-lhe imbecil dizer-lhe que era por ser ela muito bonita.

— Por que você não diz, Jason? — indagou-lhe a jovem.

— Dizer o quê? — perguntou ele.

— Dizer o que está em seus olhos e em seu pensamento, quando olha para mim — replicou Jana.

Gridley contemplou-a admirado. Só um idiota não teria compreendido o significado do que a Flor Vermelha de Zoram lhe dizia e Jason Gridley estava longe de ser um idiota.

Seria possível que ele estivesse realmente olhando para ela tão significativamente assim? Estaria louco a ponto de alimentar algum interesse sentimental por aquela jovem selvagem que segurava carne com as mãos e arrancava-lhe pedaços com seus alvos dentes e que andava seminua como quase um animal selvagem, com aquela inconsciência peculiar aos habitantes da floresta, em relação a qualquer lei de pudor? Seria possível que seus olhos haviam revelado àquela primitiva criatura de um mundo estranho, que ele abrigasse, em sua mente, algum sentimento de amor por ela? E as artificialidades de milhares de anos de civilização levantaram-se escandalizadas contra tais conjeturas.

E pela tela de sua memória passou a figura da elegante e altiva Cynthia Furnois, de Hollywood, filha do famoso diretor cinematográfico Abelard Furnois, nascido Abe Fink, lembrando-se das maneiras requintadas e da absoluta observância dos menores detalhes de educação e de comportamento social daquela jovem que lhe merecia o maior respeito. Lembrou-se também das feições aristocráticas de Barbara Green, filha do velho John Green, corretor de imóveis de Los Angeles, natural do Texas. Era verdade que seu amigo John Green não era um purista e que sua total desconsideração pelos requintes da vida social muitas vezes havia chocado sua esposa e sua filha, cujo verniz de educação havia sido adquirido em Montmarte ou no Cocoanut Grove, mas Barbara havia estudado dois anos em Marlborough e sabia conjugar corretamente os verbos, empregar corretamente sufixos e prefixos e usar corretamente os talheres.

Cynthia era uma jovem esnobe não só aparentemente como também nas profundezas de sua alma fútil e vazia, enquanto o esnobismo de Barbara parecia-lhe puramente artificial, resultado de tomar por autênticas as artificialidades e afetações da maioria das celebridades e dos novos-ricos que infestavam os lugares públicos de Hollywood.

Mas, de qualquer maneira, aquelas duas figuras refletiam a vida social a que estava acostumado Jason Gridley, e quando tentava responder à pergunta de Jana não podia deixar de imaginá-la sentada ao seu lado, nas elegantes recepções e lugares noturnos de seu país, em companhia de pessoas da sociedade. Era bem verdade que a companhia da Flor Vermelha de Zoram era-lhe muito agradável, numa aventura como aquela em que se via engajado, mas o homem moderno não pode passar a vida em aventuras da Idade da Pedra. Se seu olhar houvesse transmitido a Jana algum outro sentimento além de uma amigável camaradagem, sentia muito, pois compreendia que não poderia haver mais nada do que isso entre os dois.

Enquanto esse turbilhão de pensamentos passava pela mente de Jason Gridley, fazendo-o hesitar em responder à pergunta de sua companheira de aventuras, Jana observava-o atentamente, como se conseguisse enxergar o que lhe ia no fundo da alma e pouco a pouco seu sorriso foi esmaecendo. Tratava-se de uma jovem selvagem e inculta, ainda na Idade da Pedra, mas, acima de tudo, não era imbecil e era mulher.

Retomando o controle de suas emoções, colocou-se em posição ereta e, virando-se de costas para Jason, começou a perigosa descida pelo desfiladeiro, como já o fizera quando perseguida por Skruk e seus homens.

— Jana — disse-lhe Gridley —, não fique triste. Para onde você está indo?

A jovem parou e, erguendo seu pequenino queixo no ar, olhou para trás, por cima de seu ombro tão bem torneado, encarando fixamente Jason Gridley por uma fração de segundo.

— Siga seu caminho, jalok — disse-lhe ela — e Jana seguirá o dela.

A CAMINHO DO NINHO DOS THIPDARS

Nuvens escuras e ameaçadoras começavam a envolver os picos mais elevados das montanhas dos thipdars, espalhando-se vagarosamente pelos declives, ao norte, leste e oeste.

— As chuvas recomeçaram — disse Thoar. — Já devem estar caindo sobre Zoram e dentro em pouco chegarão até aqui.

O céu estava cor de chumbo e as nuvens já encobriam o sol. Para Tarzan, a paisagem era totalmente nova: opressiva, fria e triste. Era a primeira vez que via Pellucidar sem sol, sombria, e essa visão não lhe agradava. E os efeitos dessa mudança de tempo eram visíveis em Thoar e em Tar-gash. Mostravam-se deprimidos e mesmo atemorizados. As condições atmosféricas não afetavam apenas os homens, pois o desaparecimento do sol parecia influir também sobre os animais que desciam das montanhas, como que procurando um local onde ainda houvesse um pouco mais de claridade. Até os carnívoros e os animais ferozes pareciam amedrontados, correndo lado a lado de seus semelhantes de menor porte, suas eventuais presas, sem que nenhum deles desse pela presença dos três homens.

— Por que eles não nos atacam, Thoar? — quis saber Tarzan.

— Eles sabem que as chuvas estão prestes a cair — respondeu-lhe Thoar — e ficam com medo. Chegam a esquecer seus antagonismos e sua voracidade, em busca de um abrigo.

— Mas há tanto perigo assim, quando chove nesta região? — indagou novamente o homem-macaco.

— Não tanto — disse Thoar —, se conseguirmos ficar num lugar elevado. Às vezes, as planícies e os pântanos ficam cheios d’água em poucos minutos e o único perigo de ficarmos no alto das elevações do terreno é sermos atingidos pelas lanças que são atiradas das nuvens escuras. Mas se ficarmos num local descampado, o perigo é bem menor, pois geralmente as espadas são atiradas contra as árvores. Nunca fique debaixo de uma árvore quando as nuvens disparam suas espadas de fogo.

À medida que o sol se escondia, o ar ia-se tornando mais frio e um vento gelado começou a soprar, deixando os três homens seminus tremendo com a friagem.

— É melhor juntarmos um pouco de lenha — sugeriu Tarzan — para nos esquentarmos junto a uma fogueira.

Imediatamente começaram a juntar galhos secos. Tarzan fez fogo e os três se sentaram em volta, tentando aquecer os corpos gelados. Enquanto isso, os animais continuavam a passar por eles, em busca de um local que ainda estivesse ensolarado.

Veio a chuva. Não caía em gotas e mais parecia nuvens de água caindo pesadamente, sufocantemente. Verdadeiras cascatas escorriam pelas montanhas, enchendo rapidamente as depressões do terreno, os pantanais e as planícies mais baixas.

O vento transformava as rajadas de chuva em verdadeiras cortinas opacas de água, impedindo a visibilidade do que quer que fosse, a poucos metros de distância. Os animais, aterrorizados, soltavam urros e grunhidos, ao mesmo tempo que corriam desnorteados por todos os lados, constituindo, eles próprios, o maior perigo da tempestade. Os relâmpagos e as trovoadas eram quase ininterruptos e cada vez o pânico dos animais era maior, tocando as raias da loucura, gerada pelo pavor.

Elevando-se acima dos estampidos dos trovões, erguiam-se os urros dos animais e dos monstros pré-históricos, misturados ao rugir da ventania, ao mesmo tempo que gigantescos répteis voadores cruzavam o espaço, tentando vencer os elementos da natureza, numa busca desesperada do sol. Enormes pterodátilos eram atirados ao solo, mal conseguindo manter-se sobre as patas, uma vez que não estavam acostumados a andar no chão. Enquanto isso, os três homens selvagens acotovelavam-se numa parte mais alta do terreno, onde não havia nem vestígios da fogueira que haviam acendido.

Tarzan tinha a impressão de que a tempestade durava demais, embora estivesse acostumado a enfrentar as intempéries da natureza, no desconforto de sua vida primitiva. Enquanto os homens civilizados talvez protestassem contra a má sorte de serem colhidos por tão violenta borrasca, blasfemando contra os elementos da natureza, aqueles três seres animalescos permaneciam sentados, em estóico silêncio, com as costas voltadas para a direção do vento, uma vez que cada um sabia que aquilo não poderia durar por muito tempo e que nada adiantaria dizer ou fazer para amenizar a fúria da intempérie, ou para diminuir sua duração.

Se não fosse o exemplo de Tarzan e de Thoar, Tar-gash também teria desembestado em busca do sol, como os demais habitantes das selvas, não que fosse menos corajoso do que os dois companheiros, e sim por estar acostumado a agir guiado muito mais pelo instinto do que pela razão. Mas não se incomodava de permanecer ali onde estavam, mudos, à espera de que o sol voltasse a brilhar.

A chuva começou a diminuir. O vento já não era tão forte. As nuvens começaram a se afastar, como que se desfazendo no ar e finalmente reapareceu o sol. Os três homens puseram-se de pé, sacudindo a água que se acumulara sobre seus corpos e o primeiro a falar foi Tarzan.

— Estou com fome — disse ele.

Thoar apontou para os pequenos animais que haviam sido massacrados pela corrida desabalada dos animais maiores e cujos corpos jaziam inertes sobre a lama. E como não houvesse galhos secos para fazerem uma fogueira, até Thoar não se incomodou em comer a carne crua, o que não era sacrifício para Tarzan nem para Tar-gash. À medida que o homem-macaco saciava seu apetite, um sorriso lhe aflorou aos lábios, lembrando-se de um nobre inglês, com quem havia jantado certa vez, num elegante restaurante londrino, e que quase tivera um ataque de apoplexia ao verificar que a carne da ave que lhe serviram estava mal passada e praticamente crua.

Depois de haverem saciado o apetite, os três recomeçaram a caminhar, em busca de Jason e Jana, mas verificaram que a chuva torrencial havia destruído todas as pegadas, todos os vestígios que pudessem conduzi-los ao paradeiro daquelas duas criaturas.

— Agora é impossível seguir-lhes os passos — disse Thoar — até que cheguemos ao ponto onde eles terão recomeçado a caminhar, depois de cessada a chuva. À esquerda há um profundo canyon, cujas escarpas são muito difíceis de escalar. À nossa frente, há uma profunda fenda na rocha, ocupando uma grande extensão ao longo do sopé das montanhas. Mas, se formos para a direita, encontraremos um lugar onde a descida é mais fácil, e assim conseguiremos atravessar para as montanhas, por onde eles devem ter ido também.

No entanto, embora tivessem conseguido descer até o fundo do desfiladeiro e depois tivessem subido a montanha, em direção aos picos mais elevados, não encontraram o menor vestígio da passagem de Jason e de Jana por aquela região.

— Talvez eles tenham tomado outro rumo — disse Tarzan — chegando a Zoram por outros caminhos.

— Talvez — concordou Thoar. — Em todo o caso, vamos continuar até Zoram. Não há outra coisa a fazer. E lá podemos recrutar alguns homens de minha tribo para darmos uma busca pelas montanhas.

À medida que continuavam a subida para o pico das montanhas dos thipdars, Thoar muitas vezes seguia por trilhas que por muitos e muitos anos haviam sido percorridas pelos carnívoros pré-históricos ou escalando rochas sinuosas, de difícil acesso, a ponto de Tarzan se admirar de conseguirem chegar vivos ao topo das montanhas.

Em determinado ponto da subida, descobriram um ninho de thipdars e quando roubavam os ovos para comer, Thoar assumiu de repente uma posição de alerta, apurando os ouvidos. E conseguiu escutar o ruído longínquo de um ruflar de asas, anunciando a aproximação de um réptil voador.

— Deve ser um thipdar — disse ele, ao fim de alguns minutos. — E não temos onde nos abrigar.

— Mas, nós somos três — respondeu-lhe Tarzan — e o que podemos temer?

— Você não conhece os thipdars — disse-lhe Thoar. — É muito difícil matá-los e eles nunca abandonam a luta enquanto não são mortos. Às vezes, quando conseguimos matar um deles e depois retalhamos seu corpo, nunca encontramos o cérebro, o que prova que eles, não tendo cérebro, não temem coisa alguma, nem mesmo a morte, pois não sabem o que é a morte. E tenho a impressão de que eles também não sentem dores. Apenas se enfurecem com os golpes recebidos, o que os torna ainda mais ferozes. Talvez nós três consigamos matá-lo, mas era melhor que houvesse uma árvore sob a qual pudéssemos esconder-nos.

— Mas, como é que você pode ter certeza de que ele nos virá atacar? — indagou Tarzan.

— Porque está voando em nossa direção e costumam atacar qualquer criatura viva que encontrem — explicou Thoar.

— Você já foi atacado por algum? — perguntou novamente Tarzan.

— Já — disse-lhe Thoar. — Mas só quando não havia nenhuma árvore ou caverna para me esconder. Aliás, os homens de Zoram não se envergonham de confessar que temem os ferozes thipdars.

— Mas, se você já conseguiu matar alguns — continuou o homem-macaco — por que não haveremos de matar esse também?

— Pode ser — disse Thoar. — No entanto, nunca me defrontei com nenhum deles sem estar acompanhado por vários homens de minha tribo. Os inúmeros casos de caçadores que partem sozinhos para caçar e jamais voltam é que nos fazem temer tanto os thipdars. E mesmo quando há um grupo numeroso de homens para enfrentá-los, muitos ficam feridos e outros morrem.

— Lá vem ele! — exclamou Tar-gash, apontando para o espaço.

— Lá vem ele! — repetiu Thoar, segurando sua lança com firmeza.

E chegou aos ouvidos dos três homens um ruído que mais parecia o escapamento de vapor de uma locomotiva.

— E ele já nos viu — disse Thoar.

Tarzan depositou sua lança no chão, aos seus pés, colocando uma flecha em seu arco. Tar-gash agitava no ar sua pesada clava, rosnando.

E o gigantesco réptil voador se aproximava, adejando as grandes asas. Os três homens estavam imóveis, alertas, armas em punho, esperando o ataque.

Não houve um minuto de hesitação por parte do thipdar. Foi direto ao ataque, em direção aos três homens. Tarzan acertou-lhe o peito com uma flecha e o silvo do enorme pterodátilo se transformou num estridente urro. Em seguida, mais três flechas foram disparadas sucessiva e rapidamente pelo homem-macaco, indo cravar-se na carne do grande pássaro.

Era evidente que o thipdar não contava com aquela recepção, pois voou mais para o alto, flutuando sobre os três homens como se pretendesse desistir do ataque. Mas, de repente, numa velocidade incompreensível num animal de suas dimensões, o pterodátilo deu uma reviravolta no ar e mergulhou exatamente na direção de Tarzan, agarrando-o pelas costas.

Foi tudo tão rápido e tão imprevisto que não houve defesa possível. O homem-macaco sentiu aquelas garras de ferro enterrarem-se na carne nua de suas costas e, simultaneamente, foi erguido do solo.

Thoar ergueu sua lança e Tar-gash fez menção de dar um golpe com sua clava, mas nenhum dos dois chegou a concluir o ataque, temerosos de machucarem o companheiro, preso pelas patas do réptil voador. E assim se viram forçados a uma atitude passiva, de meros espectadores, enquanto Tarzan era levado pelo monstro para o topo das montanhas dos thipdars.

Permaneceram em silêncio, com os olhos fixos no gigantesco pterodátilo que se afastava velozmente, o corpo de Tarzan balançando no ar, até que o perderam de vista, quando o animal desapareceu por trás de um dos picos das montanhas.

— Tarzan está morto — disse Tar-gash.

Thoar concordou, com um triste menear de cabeça.

E sem dizer mais uma palavra, Tar-gash retomou o caminho do vale, de onde haviam subido. Tendo desaparecido o único elemento de ligação entre o grande sagoth e o homem de Zoram, dois inimigos por hereditariedade, os dois se separaram e Tar-gash tomou o caminho de volta para suas terras e sua tribo.

Thoar observou-o por um breve instante, depois, deu de ombros e virou-se em direção oposta, em direção a Zoram.

Enquanto o thipdar sobrevoava os picos mais elevados das montanhas dos thipdars, Tarzan, seguro por suas possantes garras, compreendeu que, se o destino lhe reservava algum meio de escapar com vida daquele terrível animal, encontraria morte certa sobre as rochas pontiagudas que sobrevoava. Sua única esperança era manter-se consciente durante o vôo e ter forças para combater com thipdar quando este resolvesse pousar em terra. Sabia que havia muitas aves de rapina que matavam suas vítimas simplesmente deixando-as cair de grandes alturas, mas esperava que os thipdars não conhecessem ou não tivessem ainda adquirido este hábito.

Ao observar a paisagem que se descortinava aos seus olhos, pôde avaliar que já se distanciara consideravelmente do ponto onde havia sido capturado, tendo percorrido talvez uns trinta quilômetros.

Finalmente, depois de passarem sobre um tenebroso desfidaleiro, o pterodatilo contornou um elevado pico, descendo lentamente sobre ele, onde Tarzan divisou um ninho de pequenos thipdars, ansiosamente esperando pelo alimento que o gigantesco réptil voador trazia em suas garras, todos com suas mandíbulas entreabertas, ávidos por uma suculenta refeição.

O ninho ficava exatamente no cume de um altíssimo pico de granito, ocupando-lhe quase toda a área, cercado por íngremes escarpas, um local muito perigoso para uma luta de vida ou morte.

Cautelosamente, Tarzan conseguiu tirar o facão da cintura e muito vagarosamente foi erguendo a mão esquerda, arrastando-a junto ao corpo, passando acima do ombro esquerdo, até que seus dedos tocaram uma das pernas do Thipdar. E sempre com muita calma, conseguiu agarrar-lhe o tornozelo escamoso, logo acima das garras.

O réptil voador começava lentamente a sua descida, em direção ao ninho, enquanto os filhotes se agitavam e grasnavam, ansiando pelo alimento que chegava. E os pés de Tarzan já estavam quase à altura daquelas pequenas mandíbulas abertas, à espera de carne, quando, num golpe rápido e seguro, enfiou o facão no peito do gigantesco pássaro selvagem.

Não se tratava de confiar na sorte. Sua única e remota chance de sobreviver dependia exclusivamente da violência daquele golpe. E o enorme pterodatilo, soltando um agudo grito, retesou-se convulsamente no ar, afrouxando as garras que soltaram imediatamente o corpo do homem-macaco, deixando-o cair sobre o ninho dos pequeninos thipdars.

Felizmente, para Tarzan, só havia três filhotes, embora seus dentes fossem afiados e suas mandíbulas já muito fortes.

Saltando de um lado para outro, ao mesmo tempo que atacava os pequenos pterodátilos com seu facão de caça, conseguiu sair de dentro do ninho com apenas pequenos ferimentos e arranhões nas pernas. E o corpanzil do grande thipdar caiu na beira do precipício, bastando que Tarzan lhe desse um ligeiro empurrão para que despencasse pelo desfiladeiro abaixo. Em seguida, olhando à sua volta, constatou que havia muito pouca ou nenhuma possibilidade de conseguir descer daquele elevado pico.

Os filhotes do thipdar continuavam a se agitar e a grasnar, mas nenhum deles saía de dentro do ninho. E o homem-macaco examinava atentamente o pequeno espaço que lhe sobrava, no cume daquele pontiagudo rochedo, onde certamente terminaria sua existência.

Deitando-se de bruços sobre a superfície pedregosa, contornou lentamente toda a beirada da escarpa, observando cada detalhe, tentando memorizar cada saliência, cada protuberância da rocha que lhe pudesse servir de apoio para os pés ou para as mãos, no caso de tentar a descida. Às vezes, retornava a um ponto, examinando-lhe todos os detalhes e, finalmente, desenrolando a corda que trazia pendurada a tiracolo sobre um dos ombros, segurou-a pelas duas extremidades e lançou-a escarpa abaixo, a fim de calcular a distância que o separava da primeira plataforma de granito que lhe permitisse ficar de pé. Mas aqueles sete ou oito metros de corda nada representavam, diante dos cem metros que iam do cume da rocha até à primeira plataforma.

Soltando uma das pontas da corda, deixou-a cair em todo o seu comprimento e quando viu onde chegava sua extremidade, ficou mais animado em tentar a descida pelo menos até aquele ponto. Mas era-lhe muito difícil avaliar a distância que havia abaixo da altura onde chegava a corda, e o único jeito era arriscar e contar com a sorte.

Puxando a corda toda para cima, enrolou-a, pelo meio, numa saliência da rocha, deixando as duas pontas penduradas ao longo da escarpa. Em seguida, segurando com firmeza os dois pedaços da corda com uma das mãos, foi-se deixando escorregar pelo desfiladeiro abaixo. A uns seis metros encontrou uma saliência que lhe permitiu firmar os pés, ao mesmo tempo que se agarrava a uma pequena fenda com a mão esquerda.

Bem em frente ao seu rosto, viu uma protuberância maior, sabendo que encontraria outra, mais para baixo. E baseado nesses precários pontos de apoio, teve esperança de conseguir continuar a descida.

Cautelosamente escorregou um pouco mais, sempre com a mão direita segurando firmemente uma das partes da corda, deixando a outra parte solta. Seus pés tocavam a rocha com a máxima leveza, enquanto ele não ousava escorregar mais do que alguns centímetros de cada vez, com medo de que um movimento mais brusco e fizesse perder e equilíbrio, causando-lhe uma queda fatal pelo despenhadeiro abaixo. Aos poucos ia puxando a corda, até que a parte que ficara enrolada à volta da pequena saliência de granito, no cume do pico, começou a se afrouxar e, finalmente, a outra extremidade caiu sobre ele. E à medida que continuava a descer, mal respirava de tanta preocupação em não falsear os pés ou as mãos, nas saliências que ia encontrando e que lhe serviam de apoio, ainda mais que carregava consigo a corda.

Em dado momento, começou o lento processo de ir puxando a corda que estava completamente solta, até atingir a sua metade. Pendurou-a, então, numa pequena protuberância que tinha diante de si, dando uma volta bem apertada em torno da pedra saliente e, agarrando fortemente as duas partes que haviam ficado penduradas, com a sua mão direita, preparou-se para descer mais uns seis ou sete metros.

Essa parte da descida foi a mais perigosa. Tarzan sabia que a corda poderia escorregar, a qualquer momento, da pequena saliência onde havia sido enrolada e quando seus pés encontraram um ponto de apoio, justamente quando suas mãos já atingiam as extremidades da corda, sentiu um profundo sentimento de alívio.

Nesse ponto da escarpa, a superfície era muito mais áspera, cortada por fendas e fissuras horizontais que não eram visíveis do alto. E comparado com os primeiros quinze metros percorridos, essa parte era muito menos perigosa, até atingir a plataforma.

E quando Tarzan se viu de pé, numa plataforma grande de granito, foi que se deu conta dos ferimentos que tinha sobre o corpo.

Suas pernas estavam arranhadas e cortadas pelos dentes e garras dos filhotes do pterodátilo, no entanto essas escoriações tornavam-se insignificantes, diante das feridas abertas em seus ombros pelas garras do gigantesco thipdar que o sustentara no ar, pelas costas e pelos ombros. Percebia que eram feridas profundas, apenas pelo tato, pois não podia vê-las, localizadas que estavam em suas costas, nem tampouco o acúmulo de sangue coagulado que havia escorrido pelo seu corpo.

Os ferimentos estavam doloridos e Tarzan sentia os músculos distendidos e sensíveis. Mas sua maior preocupação era a possibilidade de um envenenamento pelo sangue; no entanto, acostumado, desde a infância, aos ataques dos carnívoros de suas selvas, não deu maior importância ao fato.

Num rápido exame da posição em que se encontrava, em relação ao ponto onde se separara de Thoar e Tar-gash capturado pelo grande thipdar, o homem-macaco chegou à conclusão de que lhe seria impossível descer o imenso desfiladeiro que o separava do solo. E diante desta terrível constatação, compreendeu que a concentração de homens, para a qual Tar-gash e Thoar tinham tentado conduzi-lo, jamais poderia ser o grupo de seus companheiros, no local onde havia aterrado a 0-220. Parecia-lhe também impraticável tentar localizar novamente Tar-gash e Thoar, por entre aquelas rochas, gargantas e desfiladeiros. A solução era procurar descer de qualquer maneira e retornar às selvas, onde se sentiria muito mais à vontade do que sobre aqueles picos e rochas desnudas. Movido por essa idéia, recomeçou a perigosa descida, procurando manter a calma e o sangue-frio, escolhendo os trechos que lhe oferecessem maior segurança, mudando inteiramente de direção, em busca da floresta e não mais do fundo do desfiladeiro.

Agora a descida lhe parecia mais fácil, embora continuasse a se utilizar da corda, até que começou a encontrar alguma vegetação, a princípio esparsa e rasteira e aos poucos se transformando em pequenas touceiras, arbustos, e finalmente as grandes árvores, que marcavam o início da floresta.

Descobriu uma trilha que o levava pelos mais variados caminhos. Às vezes, atravessava uma região arborizada, de repente continuava sobre uma rocha áspera e de difícil acesso, para depois prosseguir até à extremidade de um penhasco, de onde se descortinava extenso canyon.

Não conseguia ver aonde ia dar o caminho que seguia, pois a trilha contornava as bordas dos penhascos.

Em dado momento, à medida que continuava a caminhar, Tarzan, sempre atento a todos os ruídos, começou a ouvir um leve rumor de passos, como se alguém caminhasse pela mesma trilha que a sua, porém bem mais adiante. E a mesma brisa que lhe permitia farejar a presença de uma outra criatura, embora distante, deveria levar o seu próprio cheiro àquele outro ser, cujos passos lhe chegavam aos ouvidos. No entanto, havia qualquer coisa naqueles passos que, mesmo de longe, Tarzan percebia que não eram de um homem. Mas estava bem claro que seguiam a mesma direção, pois o ruído era sempre de uma mesma intensidade. Se o som estivesse aumentando gradativa-mente, significaria que a criatura vinha em sentido contrário, aproximando-se do homem-macaco.

A trilha era muito estreita, e só quando passava por algum barranco ou alguma ravina havia possibilidade de alguém descer ou subir para outro lugar.

Defrontar-se com algum animal selvagem naquele estreito caminho seria muito perigoso, mas Tarzan tinha resolvido seguir aquele rumo e não era homem de retroceder em seus planos e de não enfrentar os obstáculos que viessem interferir em suas decisões, mesmo que esses obstáculos surgissem sob a forma de feras ou de homens. Tinha a seu favor o fato de a criatura desconhecida estar à sua frente e, além disso, seria difícil ser pressentido em seus passos, pois o homem-macaco sabia, melhor do que ninguém, locomover-se sem fazer o menor ruído. Caminhava pela trilha que escolhera com tal leveza que mais parecia a sombra de uma sombra.

A curiosidade fez com que ele apressasse os passos, uma vez que precisava saber qual era a natureza do animal que caminhava à sua frente. E quanto mais se aproximava dos passos, apurando os ouvidos e o olfato, percebia que se tratava de um animal de quatro patas. Isso era tudo que conseguia concluir, uma vez que não tinha a menor idéia quanto ao tipo de animal que poderia ser, nem mesmo pelo faro. E quando Tarzan já se encontrava a uma pequena distância de sua presa, chegou aos seus ouvidos um terrível urro, seguido de um rosnar enfurecido de alguma fera de grandes proporções.

Havia algo, no tom daqueles terríveis grunhidos, que despertou mais ainda a curiosidade de Tarzan. Pelo volume do som, compreendeu que deveria tratar-se de alguma monstruosa besta selvagem, pois as próprias montanhas pareciam estremecer aos estridentes urros do animal.

Pressentindo que deveria estar prestes a atacar alguém, ou alguma outra fera, Tarzan apressou ainda mais os passos e, ao contornar uma curva do caminho, seus olhos presenciaram uma cena que impulsionou-o a agir o mais rapidamente possível.

A uns trinta metros de distância, onde a trilha terminava na embocadura de uma caverna, avistou um menino — um jovem de seus onze ou doze anos — enquanto um gigantesco urso, entre ele e o rapaz, avançava velozmente para atacar a indefesa criança.

Quando o menino avistou Tarzan, seus olhos brilharam de esperança, mas, logo depois, ao perceber que não se tratava de nenhum homem de sua tribo, a expressão de desamparo e temor retornou à sua fisionomia, embora continuasse corajosamente esperando o ataque, segurando fortemente sua lança e seu rústico facão de pedra.

O homem-macaco entendeu imediatamente o que se passava: o urso, voltando à sua caverna, defrontara-se com o jovem, saindo de dentro dela, enquanto o menino, igualmente surpreendido pela presença do animal, encontrava-se encurralado, sem possibilidade de escapar.

De acordo com as leis primitivas das selvas, que orientaram suas ações desde a mais tenra infância, Tarzan não deveria assumir o papel de salvador de nenhuma das partes, mas ficara-lhe no coração o cavalheirismo inglês de seus antepassados, fazendo com que ele, em inúmeras ocasiões, não hesitasse em arriscar a própria vida para defender os interesses alheios. Aquela criança, de uma tribo desconhecida, num mundo também desconhecido, não deveria despertar a menor simpatia de um animal selvagem ou mesmo de um homem que não pertencesse à sua tribo. E talvez não despertasse também as simpatias de Tarzan, embora, na realidade, se sentisse profundamente tocado pelo fato de tratar-se de uma criança e, ainda mais, de uma criança indefesa e desamparada.

É muito fácil, para quem está de fora das situações, analisar e julgar as proezas e os atos de um homem em ação, mas a pessoa envolvida jamais tem condições para se analisar — apenas age, como sempre acontecia ao homem-macaco. Estava diante de uma emergência e pronto a enfrentá-la, uma vez que, desde o momento em que pressentira a presença de um animal, caminhando à sua frente, preparara as suas armas para o que desse e visse. Os anos de experiência em permanente contato com feras e criaturas humanas ensinaram-lhe a vantagem de colocar-se sempre em guarda.

Levava a corda enrolada à volta de seu braço esquerdo e na mão esquerda segurava sua lança, seu arco e três flechas sobressalentes, enquanto na outra mão carregava uma quarta flecha, pronta para ser colocada no arco.

Bastou-lhe um rápido olhar em direção ao monstruoso urso à sua frente para compreender que somente uma extrema habilidade, em combinação com um golpe de sorte, poderia permitir-lhe abater aquela fera com as primitivas armas de que dispunha. Mas deveria, ao menos, tentar desviar a atenção do animal em relação ao menino e, enquanto fizesse isso, talvez a criança conseguisse fugir ou escapar de alguma maneira. E quase no mesmo momento em que assim raciocinava, lançou uma flecha que atingiu as costas do animal, enterrando-se junto à sua espinha, no mesmo instante em que soltava formidável berro para atrair a fera para sua direção, forçando-a a dar as costas ao indefeso jovem.

Louco de dor e surpreendido pelo grito de Tarzan atrás de si, o enorme urso virou-se, e o homem-macaco jamais vira, em toda a sua vida, tamanho ódio selvagem estampado nos olhos de uma fera.

Lançou mais três flechas, numa rápida sucessão, que foram cravar-se no peito do animal enfurecido, que imediatamente avançou para frente, lançando-se contra Tarzan.

Naquele mesmo instante, o homem-macaco levou o braço direito para trás do ombro, segurando firmemente sua lança, e em seguida, com toda a força de seus possantes músculos e mais o impulso de seu vigoroso corpo, lançou-a contra o animal.

Àquela altura, o urso já estava muito próximo de Tarzan e ele não hesitou em saltar agilmente para fora da trilha, sem procurar verificar o efeito que causara o seu ataque. E embora o volumoso e pesado urso das cavernas estivesse muito próximo, o homem-macaco deu mais uma prova da eficiência de sua estratégia.

Saltara para a borda do rochedo, um caminho estreito e áspero, disparando numa corrida desabalada, certo de que, se não encontrasse nenhum obstáculo intransponível à sua frente, o urso jamais conseguiria alcançá-lo, pois só Ara, o relâmpago, era mais veloz do que ele.

Existia a probabilidade de defrontar-se com a fêmea, companheira do urso das cavernas, vindo em direção a seu macho, mas tratava-se de uma possibilidade remota. E os ferimentos que causara no animal enfurecido, com suas certeiras flechadas deveriam ter-lhe diminuído as forças e a capacidade de se locomover com rapidez.

Mas a fera demonstrava grande resistência e grande fortaleza, pois corria, ainda que ferida, perseguindo velozmente sua presa. Parecia infatigável, mas isso Tarzan também o era. No entanto, feria-lhe o amor-próprio o fato de estar fugindo de um animal ferido e em posição de desigualdade. E pensando desta maneira, procurou um meio de por fim àquela corrida desenfreada. Observou que as íngremes escarpas do rochedo, que se erguiam ao longo da estreita borda que percorria, apresentavam uma protuberância a uns oito metros de altura, acima de seu caminho.

Tinha ainda a corda enrolada à volta de seu braço esquerdo, enquanto segurava o laço com a mão direita. E num relance, atirou o laço em direção à saliência da rocha, conseguindo, com sua precisão e prática de agir rapidamente sem perder a segurança de seus gestos, não só acertar o alvo como também puxar violentamente a extremidade da corda, apertando o nó da outra extremidade presa ao rochedo. O urso continuava a avançar furiosamente em sua direção, já quase o alcançando, quando o homem-macaco, agarrando-se fortemente à corda pendurada, com a agilidade de Manu, o macaco, subiu à toda velocidade até à altura máxima onde havia apoio para seus pés.

 

ONDE SÓ UM HOMEM PODIA IR

Não seria preciso ser um Sherlock Holmes para descobrir que Jana estava furiosa, e Jason era suficientemente perspicaz para saber a causa de seu descontentamento, que atribuía à natural humilhação feminina, sofrida por Jana, ao perceber que se enganara ao julgar que tinha conquistado o coração de um homem. Julgava-a através de seus conhecimentos de homem civilizado sobre a psicologia das mulheres. Sabia que ela era uma linda e atraente jovem e ela também tinha consciência disso. A Flor Vermelha de Zoram já lhe havia contado que tinha sido cortejada por vários homens de sua tribo, que desejavam tomá-la por esposa, e ele próprio a tinha salvo de um de seus pretendentes, que a perseguira pelas montanhas dos thipdars, arriscando a vida por ela. Julgava muito natural que Jana se desse conta de seus encantos e que seria capaz de conquistar qualquer homem, mas não via razão para que ela assumisse aquela atitude de revolta e indignação, apenas por não ter sido bem sucedida em relação a ele próprio. Haviam feito muito boa camaradagem, durante o tempo todo em que caminharam juntos, e Jason não se lembrava de ter estado tanto tempo em companhia de uma jovem com tamanho prazer. E sentia profundamente que tivesse acontecido algo que viesse romper aquela amizade, decidindo que o melhor que tinha a fazer era ignorar sua raiva e continuar a acompanhá-la até sua tribo, esperando que lhe voltasse o bom senso e a calma. Não tinha coragem de deixá-la continuar sozinha e desprotegida seu caminho para Zoram. Era óbvio que não lhe tivesse sido agradável ouvi-la chamá-lo de jalok, uma vez que isso representava um insulto entre os habitantes de Pellucidar, mas Jason procuraria relevar sua falta, pelo menos naquele momento, e estava certo de que ela viria a se arrepender e talvez até lhe pedisse desculpas.

Assim raciocinando, continuou a segui-la até que, de repente, Jana virou-se em sua direção, como um tigre selvagem tirando seu facão da cintura em atitude ameaçadora.

— Já lhe disse para seguir seu caminho — disse-lhe ela.

— Não quero mais vê-lo junto a mim e se você insistir, eu o mato!

— Não a posso deixar sozinha, Jana — disse-lhe Jason, com toda a calma.

— A Flor Vermelha de Zoram não precisa da proteção de um homem como você! — exclamou ela, enraivecida.

— Temos sido tão bons amigos, Jana — insistiu Gridley.

— Vamos continuar a caminhar juntos, como vínhamos fazendo até aqui. Não tenho culpa se...

— Não me incomodo de você não me amar — cortou Jana. — Saiba que odeio você, porque seus olhos são mentirosos. Às vezes nossa boca mente, mas a gente não fica magoada porque já espera isso das palavras. Mas quando os olhos mentem, o coração também é capaz de mentir e a pessoa então é toda falsa. Não posso mais confiar em você. Não quero sua amizade, não quero mais nada de você. Desapareça da minha frente.

— Você não compreende, Jana — continuou Jason.

— Só compreendo que, se você continuar a me seguir, eu o matarei.

— Então você vai ter que me matar — respondeu-lhe Gridley — porque vou continuar a acompanhá-la, pois não a posso deixar prosseguir sozinha, você me odiando ou não.

E parando de falar, Jason Gridley deu um passo em sua direção. Jana continuava olhando fixamente para ele, com seus pequeninos pés muito firmes no chão, a faca erguida em sua mão direita, chispas de ódio se desprendendo de seus olhos.

Com os braços ao longo do corpo, Gridley continuava a andar em direção à jovem das montanhas, como lhe oferecendo o peito à sua arma.

Jana ergueu mais ainda o facão e por uma fração de minuto permaneceu nessa atitude, para logo em seguida virar as costas e sair correndo pela borda do desfiladeiro.

Corria velozmente e ganhava distância de Jason que levava desvantagem na corrida pelo peso de suas roupas, de suas armas pesadas e da munição que carregava consigo. Chamou por ela uma ou duas vezes, implorando-a que parasse, mas ela parecia surda às suas palavras, prosseguindo em sua desabalada carreira com a maior velocidade de que era capaz. Jason sentia-se profundamente magoado e ofendido, mas a emoção que gerava esses sentimentos era apenas por ver destruída uma agradável e doce amizade.

Pouco a pouco pôs-se a raciocinar que se havia sentido muito feliz, ao lado de Jana, que ocupara constantemente seu pensamento, excluindo até todas as suas considerações sobre o passado e o futuro. Até mesmo a lembrança de seus companheiros perdidos havia sido relegada a um segundo plano, havia sido mesmo esquecida temporariamente, diante da responsabilidade que sentia em relação àquela jovem indefesa e desprotegida, responsabilidade de conduzi-la, sã e salva, à sua terra.

— Por que motivo ela me despreza tanto? — pensava ele consigo mesmo. — Odisseu nunca encontrou uma Circe mais poderosa ou mais bela — continuava seu pensamento a divagar, lembrando-se dos encantos da linda Flor Vermelha de Zoram, daquela pequenina e impetuosa jovem selvagem.

E quão impetuosa e selvagem ela havia demonstrado ser, não hesitando em erguer sua arma contra Jason, ameaçando-o de morte. Ao mesmo tempo, ele não podia deixar de sorrir intimamente, compreendendo o quanto Jana demonstrara sua feminilidade, em suas ações. E com um profundo suspiro, continuou a correr atrás dela.

De vez em quando Jason conseguia vislumbrar aquela figurinha esbelta e ágil, numa curva mais acentuada do caminho, percebendo que agora ela já não corria com a mesma velocidade do princípio, embora ele estivesse longe de alcançá-la. Sentia-se constantemente temeroso de que ela fosse atacada por alguma lera e mortalmente atingida por algum animal selvagem, antes que tivesse tempo de ir em seu socorro. Sabia que, mais cedo °u mais tarde, ela haveria de parar para descansar e sua única esperança de alcançá-la era esta, quando tentaria mais uma vez persuadi-la a esquecer sua raiva e reconquistar sua amizade perdida.

Mas tudo levava a crer que a Flor Vermelha de Zoram não tivesse a menor intenção de descansar, embora Gridley já tivesse atingido tal estado de fadiga que o ameaçava de ter que interromper sua corrida para se recuperar do cansaço que o dominava. À medida que continuava a correr, sentia os braços cada vez mais impotentes para agüentar o peso de suas armas e de sua munição. Sua espingarda lhe parecia um pesado canhão que tivesse que transportar, mas estava decidido a não desistir, e suas pernas moviam-se quase mecanicamente, como que acionadas por alguma máquina de torturas, sobre a qual não tivesse controle, impulsionando-o sempre para a frente, enquanto cada fibra de seu ser implorava-lhe por descanso.

Fome e sede juntavam-se a seu estado de total exaustão e, só dispondo desses fatos para calcular a passagem do tempo, chegou à conclusão de que já deveriam ter decorrido muitas horas, desde que Jana e ele haviam descansado pela última vez.

Subitamente Gridley chegou ao cume de uma pequena elevação e avistou Jana logo adiante dele. Estava de pé, à beira do desfiladeiro que naquele ponto se abria numa profunda garganta e era evidente que se encontrava em dúvida quanto ao caminho a seguir. O rumo que desejava tomar estava bloqueado pela garganta do desfiladeiro. À sua esquerda, havia uma trilha que a levaria em direção oposta a Zoram, isto é, em direção ao vale. E se retrocedesse, seria forçada a encontrar-se com Jason.

E estava ela observando o precipício que tinha a seus pés, ainda de pé, à beira do desfiladeiro, certamente procurando descobrir um meio de descer, quando percebeu que Gridley se aproximava.

— Volte! — gritou-lhe, virando-se abruptamente em sua direção. — Volte, senão eu me atiro lá embaixo!

— Por favor, Jana, — implorou Jason — deixe-me acompanhá-la. Não vou incomodá-la em nada, não vou nem falar com você, a menos que você queira, mas deixe-me acompanhá-la para protegê-la contra as feras.

— Proteger-me! — exclamou Jana, com um sorriso de zombaria. — Você nem conhece os perigos dessas terras. Sem essa sua estranha lança, que cospe fogo e mata gente, não conseguiria defender-se do menor dos animais que povoam esta região. E nas altas montanhas dos thipdars há feras tão gigantescas e tão terríveis que seriam capazes de engolir você e suas armas de uma só dentada. Volte para sua gente, volte para o mundo de onde você veio. Volte para junto das frágeis e suaves mulheres de sua terra. Só um verdadeiro homem poderia ir onde a Flor Vermelha de Zoram vai.

— Você está quase me convencendo de que não passo de um verme — respondeu-lhe Gridley, com um sorriso triste.

— Mas até os vermes têm certa dose de coragem. E vou acompanhar você, Flor Vermelha de Zoram, até que algum monstro dessas montanhas me arranque deste vale de lágrimas.

— Não estou entendendo o que você quer dizer com isso

— disse-lhe Jana. — Mas se você me acompanhar, morrerá. Lembre-se do que já lhe disse: só um verdadeiro homem pode ir onde vai a Flor Vermelha de Zoram.

E dizendo isto, como que para provar o que afirmava, Jana deslizou pela borda do precipício, começando a descer e desaparecendo das vistas de Jason.

Ele correu até à beirada do desfiladeiro e avistou, a alguns metros abaixo do local onde se encontrava, a jovem das montanhas, agarrando-se às fendas e protuberâncias da íngreme escarpa, descendo lentamente pelo abismo. Gridley chegou a ficar sem fôlego, ao ver aquela criatura humana se atrever a uma perigosa descida como aquela. Um suor frio começou a escorrer-lhe pela testa, vendo o risco a que se expunha aquela corajosa moça de Zoram.

Procurando apoio aqui e ali para seus delicados pés, firmando as mãos na aspereza das pequenas protuberâncias do rochedo, ela conseguia ir descendo por aquelas paredes aparentemente inescaláveis, enquanto ele se deitara de bruços, no topo do despenhadeiro, com a cabeça projetada para fora, sobre o precipício, observando a jovem em silêncio. Nem ousava dirigir-se a ela, com medo de desviar sua atenção. E quando finalmente, ao fim de um espaço de tempo que parecia uma eternidade, Jana conseguiu chegar ao fundo do abismo, Jason Gridley começou a tremer da cabeça aos, pés e só assim compreendeu a extensão de sua tensão nervosa, diante do que presenciara .

— Meu Deus! — murmurou ele. — Que fantástica demonstração de coragem, sangue-frio e agilidade!

Mas ao chegar às profundezas do precipício, a Flor Vermelha nem olhou para trás, ou melhor, para cima. Tratou de procurar o caminho mais fácil para subir pelo outro lado do rochedo, enquanto Gridley continuava a observá-la, envolto em seus pensamentos.

Só mesmo um homem pode ir onde a Flor Vermelha de Zoram vai — pensou com seus botões.

E ficou acompanhando com os olhos aquela linda figura de mulher, até vê-la desaparecer por trás de uma rocha, onde a garganta descrevia uma curva para a direita. A menos que ele conseguisse descer pelo mesmo caminho que Jana descera, compreendeu que ela desaparecera para sempre de sua vida.

Jason Gridley pôs-se de pé, ajustou a correia que sustentava sua espingarda a tiracolo, de maneira que a arma lhe ficasse pendurada às costas, empurrou para trás as cartucheiras de munição, tirou as botas e atirou-as pelo desfiladeiro abaixo. Em seguida, deitando-se de bruços, foi deixando o corpo escorregar pela borda do desfiladeiro, decidido a tentar a descida, quando percebeu que, a pouca distância, dois olhos o observavam, por detrás de um monturo de pedras desmoronadas, na subida do lado oposto à escarpa que ele tentava descer. A princípio havia uma expressão de raiva, naquele olhar que o acompanhava; depois a raiva transformou-se em cepticismo e finalmente em pavor.

Enquanto Jason procurava, cautelosamente, os esparsos pontos de apoio para os pés e as mãos, descendo lentamente a perigosa escarpa, os olhos da moça não se despregavam dele.

“Só um verdadeiro homem pode ir onde a Flor Vermelha de Zoram vai.” Essas palavras não saíam de seu pensamento, enquanto continuava a descida, procurando movimentar-se com toda a cautela, contando apenas com as precárias saliências e fendas da íngreme rocha. A fome, a sede, o cansaço, tudo isso havia sido esquecido, enquanto tentava centralizar todas as suas forças e todo o seu sangue-frio na arriscada tarefa a que se propusera. Seu corpo, colado às pedras, deslizava sobre suas asperezas sem nem as sentir, e ele não ousava olhar para baixo, sem imaginar o quanto ainda faltava para atingir o fundo do desfiladeiro, uma vez que cada etapa vencida lhe parecia ter durado uma eternidade. Não sabia se conseguiria chegar ao fim, pois cada ponto de apoio que encontrava lhe parecia mais precário do que o anterior, transmitindo-lhe uma sensação de total insegurança. Finalmente chegou a um ponto em que não achava meios de continuar a descer. Não podia deslocar-se nem para a direita, nem para a esquerda, assim como não lhe era possível retroceder e voltar ao topo da escarpa. Aparentemente parecia ter esgotado todos os recursos, mas mesmo assim não queria desistir. Recolando os pés já esfolados e sangrando sobre o último ponto de apoio que encontrara, procurou alguma fenda ou alguma reentrância mais abaixo, onde pudesse enfiar as mãos, e quando as localizou — duas pequenas saliências na pedra — deixou que seus pés escorregassem lentamente do ponto de apoio em que se encontravam, ficando pendurado apenas pelas mãos, que agüentavam todo o peso de seu corpo. Enquanto permanecia nesta posição, tateava com os pés a parede rugosa do rochedo, recriminando-se por ainda não se ter descartado de suas armas e de sua munição. E por que isso? Por que se encontrava em perigo e tinha medo de morrer? Não. Simplesmente porque, com aquele peso excedente, talvez não conseguisse chegar ao fundo do despenhadeiro e quando suas mãos não o agüentassem mais, seu corpo cairia vertiginosamente e ele perderia a vida e com isso a sua última chance de ver a Flor Vermelha de Zoram pela última vez. Era estranho que naquela precária situação, entre a vida e a morte, não lhe viesse ao pensamento a lembrança de Cynthia Furnois ou de Barbara Green, com o mesmo sentimento de nunca mais poder tornar a vê-las.

Em dado momento, começou a sentir que seus dedos fraquejavam e começavam a escorregar de seu ponto de apoio. E aconteceu finalmente o inevitável: o peso de seu corpo afrouxou-lhe uma das mãos, logo em seguida a outra começou a deslizar incontrolavelmente e Jason Gridley caiu em direção ao fundo do abismo, a uns quarenta e cinco centímetros de altura.

Quando parou de cair e sentiu os pés sobre a rocha sólida, não podia acreditar na sorte que tivera. Quase sem coragem de olhar para baixo, percebeu que chegara, realmente, ao fim do precipício e que tinha conseguido vencer a perigosa descida pela íngreme escarpa. Sentia os joelhos trêmulos, e quando se deixou cair sentado sobre o solo, havia uma moça observando-o do alto da garganta, banhada em lágrimas.

Um pouco abaixo do local onde se encontrava, divisou uma pequena nascente, que se transformava num riacho, cujas águas brilhavam à luz do sol, a caminho do interior do vale.

Jason recompôs-se como pôde, encontrou as botas que havia atirado do alto do desfiladeiro e correu para o riacho, onde saciou a sede e lavou os pés, limpando os ferimentos e envolvendo-os em tiras de pano, rasgadas de seu lenço, calçou novamente as botas e saiu em direção ao canyon, à procura de Jana.

Em dado momento, olhando para o alto, avistou nuvens escuras se aglomerando em torno dos picos mais elevados das montanhas e eram as primeiras nuvens que via em Pellucidar. E não só por serem as primeiras que via, como também pelo fato de anunciarem chuva, Gridley ficou preocupado, embora nem de leve pudesse imaginar as proporções catastróficas do aguaceiro que viria a cair.

Bem adiante dele, a Flor Vermelha de Zoram tentava escalar uma íngreme escarpa de rocha que a conduziria ao topo do desfiladeiro e depois ao cimo das montanhas dos thipdars, onde ficava Zoram.

Quando Jana presenciara a perigosa descida de Gridley, arriscando corajosamente a vida por sua causa, foi tomada de remorso e de temor, mas depois que o vira chegar, são e salvo, ao fundo do precipício, seus sentimentos se modificaram e, novamente dominada pela raiva de ter sido desprezada por ele, reação feminina compreensível, recomeçou a fugir de Jason. No entanto, mal atingira o cimo da escarpa quando explodiu a violenta tempestade. E ela compreendeu que aquele homem que a seguia não poderia suspeitar dos perigos a que estaria exposto, perigos muito maiores do que aqueles que enfrentara na descida do despenhadeiro.

E sem mais um instante de hesitação, a Flor Vermelha de Zoram voltou-se e desceu o mais rapidamente que pôde a escarpa que acabara de subir, a fim de alcançá-lo antes que as chuvas torrenciais começassem a cair. Precisava levá-lo para algum lugar mais elevado, talvez para uma das paredes do canyon, pois sabia que dentro de poucos minutos a parte baixa estaria transformada numa lagoa, para onde desceriam as impetuosas torrentes de água que vinham das montanhas.

Mas a tempestade já começava a cair em toda a sua violência, formando verdadeiras cataratas e cascatas pelas encostas dos desfiladeiros, arrastando, com sua força, pedras e terra em direção às terras baixas do canyon. Nunca, em toda a sua vida, Jana presenciara uma borrasca de tão terríveis proporções. Os trovões ecoavam por toda a parte e os relâmpagos riscavam o céu em todas as direções. O vento soprava violentamente e a quantidade de chuva era tamanha que formava lençóis opacos de água, impedindo a visibilidade do que quer que fosse. E a jovem das montanhas continuava a sua descida, embora constatando que, àquela altura, as terras baixas já estavam recobertas pelas águas torrenciais e nada teria chance de sobreviver, em tal situação. Gridley já deveria ter-se perdido na correnteza. Jason Gridley deveria estar morto.

A Flor Vermelha de Zoram ainda permaneceu parada, por alguns instantes, observando as águas que subiam cada vez mais, no fundo do canyon, quando de repente passou-lhe na mente a idéia de atirar-se sobre aquelas águas. Não queria mais viver. No entanto, um sentimento mais forte a continha. Talvez seu primitivo instinto de luta contra a morte, herdado de seus ancestrais e próprios das criaturas de seu grau de evolução, cuja existência inteira se resumia numa constante batalha contra a morte, sem conhecimento de outro tipo de vida e sem admitir uma rendição ao inimigo.

E Jana, obedecendo aos seus instintos, voltou a escalar a escarpa, como que se fugisse das águas que subiam em seu encalço, ao mesmo tempo que lutava contra as torrentes que desciam em sua direção.

Jason Gridley, por sua vez, já assistira às mais violentas tempestades da Califórnia e do Arizona, sabendo perfeitamente como as chuvas muito fortes podem transformar, em questão de minutos, as ravinas e os sulcos cavados na rocha em caudalosas torrentes. Certa vez, em San Simon Flats, vira formar-se um rio, de mais de um metro de largura, em poucas horas de chuva torrencial. E quando percebeu que as águas já rolavam impetuosamente pelo fundo do desfiladeiro, abaixo do lugar onde estava, tratou de procurar um local mais elevado, pois aquela tempestade de Pellucidar não tinha grau de comparação com as de sua terra. As paredes laterais do canyon eram muito íngremes e sua tentativa de escalá-las seria lenta demais, em relação à rápida progressão com que subiam as águas. De toda a maneira, ainda havia um recurso: avistou um pequeno aclive, um pouco mais para cima do lugar onde se encontrava, em direção ao cume da borda do canyon.

Mas, ao mesmo tempo que lutava para escalar o rochedo as águas já se haviam elevado tanto que a correnteza já fazia com que seus pés falseassem, enquanto a chuva torrencial exercia uma certa força contrária aos seus esforços de subir, deixando-o, por alguns instantes, sem conseguir sair do lugar.

Agora, as águas que corriam pelo fundo do desfiladeiro já lhe atingiam os joelhos, e de repente sentiu que seus pés perdiam o ponto de apoio em que se firmavam. Agarrando-se às pedras com toda a força de suas mãos, deixou cair a espingarda, que rolou pela correnteza abaixo. Mas, por outro lado, conseguiu subir um pouco mais, readquirindo uma precária e talvez momentânea segurança.

Ora escorregando, ora subindo, Gridley continuava a lutar, até que alcançou um ponto em que tinha certeza de que as águas não o atingiriam mais. E naquele local, parcialmente abrigado sob uma saliência da rocha, como Tarzan, Thoar e Tar-gash haviam feito, em outra parte das montanhas, permaneceu quieto e pensativo, esperando cessar a fúria da natureza.

Perguntava-se a si mesmo se Jana teria conseguido escapar às violências do aguaceiro que caía sobre Pellucidar, mas tinha tamanha confiança na presença de espírito e na habilidade daquela jovem das montanhas, ao se defrontar com os perigos de seu mundo, que não chegou a temer por sua vida.

E enquanto era forçado a permanecer naquela situação de espera, sentindo as roupas encharcadas, tremendo de frio e em quase total escuridão, Jason Gridley começou a pensar em seu futuro. Tinha, na realidade, muito pouca chance de encontrar novamente a Flor Vermelha de Zoram, naquele caos de rochedos, penhascos, picos e desfiladeiros, uma vez que nem ao menos sabia em que direção ficava Zoram. Não havia trilhas nem caminhos que lhe servissem de orientação e as pegadas que a jovem pudesse ter deixado atrás de si há muito já teriam sido destruídas pelas chuvas e pelas cascatas que rolavam montanhas abaixo.

Teria que caminhar a esmo, desde que não sabia o caminho para Zoram e nem tampouco tinha a menor noção da direção que devia ter tomado seus companheiros de expedição.

Finalmente, parou de chover. O sol voltou a brilhar e> talvez influenciado pelo bom tempo, Jason sentiu-se mais animado a prosseguir, com mais esperança do que dantes.

Tentando manter em mente a direção em que Jana lhe dissera que ficavam as suas terras, virou-se para os lados onde divisou uma espécie de platibanda, entre dois picos elevados, que lhe parecia passar por cima do topo da cordilheira. A sede não mais o atormentava e a fome já não lhe fazia doer tanto o estômago. Aliás, seria quase impossível encontrar alguma caça pelas redondezas, pois a tempestade parecia-lhe ter varrido todos os animais que pudessem existir naquelas montanhas. Mas a sorte lhe favoreceu, fazendo com que Gridley encontrasse um ninho com alguns ovos, num buraco cavado na rocha, que haviam resistido à fúria das águas. Não conseguiu identificar a natureza do animal que os havia posto; e também não lhe importava em nada saber se eram ovos de ave ou de algum réptil. Estavam frescos, representavam alimento e eram tão grandes que bastaram dois deles para saciar totalmente seu apetite.

A pouca distância desse ninho, avistou uma pequena árvore, para onde se dirigiu, levando consigo os ovos restantes para longe das vistas de algum animal que por ali passasse. Tirou a roupa molhada, pendurando-a nos galhos da árvore, onde cm pouco tempo estariam secas pelo sol, deitando-se, em seguida, à sombra da árvore, onde não lhe foi difícil adormecer, sob o agradável calor do sol que voltara a brilhar em Pellucidar.

Por quanto tempo dormira, era-lhe totalmente impossível calcular. Mas, quando despertou, sentia-se descansado e refeito, talvez um pouco mais confiante em si, depois de tantos obstáculos vencidos. Espreguiçou-se gostosamente por alguns instantes e quando procurou por suas roupas, teve uma surpresa: havia desaparecido. Procurou-as um pouco pelas redondezas, procurando também por algum vestígio da criatura que as roubara, mas não encontrou nem uma coisa, nem outra.

Embaixo da árvore, caída no chão, achou sua camisa que, com certeza, escapara aos olhos do ladrão, bem como seus revólveres e seu cinturão de balas. E isso era tudo que lhe restava.

A temperatura de Pellucidar era tão elevada que as roupas se tornavam mais uma carga do que propriamente uma necessidade. No entanto, o homem civilizado está tão acostumado a andar vestido que chega a se sentir desprotegido e diminuído em seus valores, vendo-se, de repente, despojado de suas vestes.

E nunca, em sua vida, Jason Gridley se sentira tão desamparado e tão ridículo como naquele momento em que retomara seu caminho, obrigado pelas circunstâncias a enfrentar aquele mundo desconhecido, tendo sobre o corpo apenas uma camisa rasgada e um cinturão cheio de balas. Embora compreendesse que, além das botas e da espingarda, nada tivesse perdido de essencial a seu conforto e a sua eficiência, sentia-se moralmente abatido, talvez por não poder mais perseguir seu ideal, isto é, por não poder mais procurar localizar a Flor Vermelha de Zoram. Como poderia apresentar-se diante dela naqueles sumários trajes?

Está claro que Jana jamais se escandalizaria com sua semi-nudez, pois demonstrara, em várias oportunidades, que não havia ligação, para ela, entre o pudor e a escassez de vestimentas. Mas a ansiedade de encontrá-la estava agora empanada pela figura ridícula que Jason representaria aos seus olhos. Muitas vezes já lhe havia passado pela mente encontrar-se, por um motivo ou por outro, naquelas precárias condições, e muitas vezes chegara mesmo a sonhar que havia perdido toda a roupa, sendo obrigado a andar despido. No entanto, nunca imaginara que se sentiria tão constrangido e tão desprotegido como na realidade dos fatos.

Em dado momento, resolveu rasgar sua camisa em tiras e improvisar uma corda de pano trançado. Em seguida, recolocando o cinturão, prosseguiu seu caminho, um Adão com dois revólveres na cintura.

à medida que continuava a procurar a direção de Zoram, deu-se conta de que seu maior prejuízo havia sido perder as botas, pois o desconforto e a dor que sentia nos pés, ao caminhar descalço por terrenos ásperos e pedregosos, eram-lhe muito penosos por ter ferido os pés na descida daquele inesquecível desfiladeiro. No entanto, em pouco tempo conseguiu solucionar o caso, pois com a volta dos répteis às montanhas, cessadas as chuvas, atirou sobre um pequeno animal e com sua pele improvisou um par de rústicas sandálias.

O sol, batendo em cheio sobre seu corpo nu, não lhe causava os mesmos efeitos do sol da face externa da terra, sob as mesmas condições em que se encontrava. Dava-lhe, antes, um tom bronzeado em toda a pele e devolvia-lhe a confiança em si, como se tivesse encontrado suas roupas. E analisando este fato, Gridley descobriu que a verdadeira causa de todo o seu constrangimento em se ver despojado de suas vestimentas advinha da brancura de sua pele, em relação às outras criaturas de Pellucidar, brancura que simbolizava e lhe sugeria fraqueza e inferioridade. Mas agora que se sentia vestido de uma pele bronzeada e saudável, sentindo os pés protegidos pelo couro das sandálias e já bem menos sensíveis às asperezas do solo, sua nudez já não lhe afetava mais.

Dormiu e se alimentou várias vezes e tinha plena consciência de que muito tempo já deveria ter decorrido depois que se separara de Jana. No entanto, não encontrara o menor vestígio da jovem das montanhas e nem de nenhuma outra criatura humana. Havia sido perseguido por inúmeros animais ferozes e répteis de grandes proporções, mas a experiência já lhe havia ensinado a fugir e a escapar de todos eles, sem recorrer às suas armas, que só pretendia usar em casos extremos, em caso de se defrontar com perigos maiores.

Havia atravessado o topo da cordilheira e encontrara uma região muito mais bela do outro lado. Era também uma região rochosa, inóspita e selvagem, mas tinha uma vegetação muito mais exuberante e em muitos trechos as lombadas eram recobertas de pequenas florestas que se estendiam até os picos mais elevados. Havia muitos riachos e grande abundância de caça miúda, o que lhe garantia uma alimentação mais regular.

No firme propósito de economizar ao máximo a munição de que dispunha, Gridley tinha confeccionado outras armas; a influência de sua convivência com Jana era evidente na lança que improvisara e devia a Tarzan e aos guerreiros waziris seu arco e flechas. Antes de dominar completamente o manejo daquelas armas primitivas, teria morrido de fome, se não fossem seus revólveres. Mas, aos poucos, foi adquirindo perfeito domínio sobre elas, dispensando inteiramente o uso dos Coltes que levava à cintura.

Jason Gridley já tinha desistido inteiramente de reencontrar seus companheiros de expedição ou o local onde deveria estar a 0-220. E aceitara a situação baseado na filosofia de que não podia mandar no próprio destino, ou escapar à fatalidade, prevendo passar o resto de sua vida ali em Pellucidar, lutando, com suas armas primitivas, pela sobrevivência entre as selvagens criaturas daquele mundo desconhecido.

Sentia muita falta da companhia humana e ansiava pelo dia que encontrasse uma tribo de homens com a qual pudesse manter relações amistosas. E embora estivesse bem avisado por Jana de que jamais obteria a confiança ou a amizade de nenhuma criatura humana de Pellucidar, cuja atitude, em relação a homens de outras tribos, era sempre hostil, alimentava certa esperança dessas afirmações não serem de ordem geral e tinha os olhos sempre alertas para qualquer vestígio humano cm seu caminho. E mal sabia ele que isto não demoraria muito para acontecer.

Gridley havia perdido totalmente seu senso de orientação quanto à localização de Zoram e andava sem destino, de região em região, sempre com esperança de um dia encontrar a terra de Jana.

E caminhava ele, como de costume, observando cada detalhe, cada ruído, cada característica dos locais por onde passava, quando, de repente, lhe chegou às narinas um cheiro forte de fumaça. No mesmo instante, criou alma nova, pois fumaça significava fogo e fogo significava a presença do elemento humano.

Movendo-se cautelosamente, Jason começou a descer a montanha, direção de onde partia o cheiro de fumaça, quando de repente seus olhos atentos divisaram um tênue fio de fumaça que partia de um canyon logo adiante. Tratava-se de um canyon rochoso, de paredes íngremes, apenas do lado oposto, em relação à posição de Jason. De seu lado, para onde se aproximava dominado por forte emoção, a muralha era bem mais baixa e em alguns pontos totalmente destruída pela erosão ou por quaisquer outras causas, facilitando o ingresso ao canyon.

Esgueirando-se até à borda, Jason Gridley pôde ter uma visão geral do canyon. Ao longo do meio de seu solo recoberto de relva, corria uma espécie de cascata, originária das montanhas. Gigantescas árvores erguiam-se espaçadamente, dando-lhe a aparência de um parque, aparência esta acentuada por florescências coloridas que manchavam a relva e enfeitavam as árvores.

Diante de uma pequena fogueira, à beira de um regato, estava agachado um guerreiro de tez bronzeada, assando uma ave sobre o fogo. Observando-o mais atentamente, Jason Gridley pensava na maneira mais amistosa de se aproximar dele, a fim de convencê-lo, de imediato, de suas intenções pacíficas, desfazendo a natural hostilidade aos estranhos, hostilidade que sabia inerente às criaturas humanas de Pellucidar. E estava decidido a encaminhar-se calmamente em direção ao desconhecido, sem levar nenhuma arma nas mãos, quando de repente sua atenção foi despertada para o cimo do rochedo, do outro lado do canyon.

Não tinha ouvido o menor ruído que pudesse vir daquela direção e nem mesmo olhava para aqueles lados, com o olhar fixo no homem que divisara no meio do canyon, mas o fato é que Jason foi levado a olhar naquela direção, atribuindo o fato a um sexto sentido, um dom que muita gente possui, às vezes sem saber.

Mas a verdade é que Gridley avistou do lado oposto ao que estava, no alto da íngreme parede do canyon, uma criatura como jamais nenhum homem da face externa da terra poderia ter visto ou mesmo imaginado. Tratava-se de um gigantesco dinossauro, um réptil de proporções indescritíveis, com uns dezoito ou vinte metros de comprimento, sentado sobre as ancas, seu ponto mais alto, a uns sete metros do solo. A cabeça, relativamente pequena, era pontuda e lembrava a cabeça de um lagarto. Ao longo de sua espinha dorsal, havia uma seqüência de pequenas placas pontiagudas, em ordem crescente, sendo que a maior deveria medir uns noventa centímetros de altura e de comprimento, com a espessura de um pouco mais de trinta centímetros. A longa cauda, que terminava em ponta, tinha mais duas pontas, na parte superior, em direção à extremidade da cauda. Cada uma dessas pontas, que mais pareciam gigantescos espinhos, deveria medir noventa centímetros de comprimento. O animal andava sobre quatro patas, semelhantes às dos lagartos, sendo que as pernas da frente eram mais curtas, mantendo-lhe a cabeça muito próxima ao chão, dando-lhe uma aparência ainda mais exótica.

Jason teve a impressão de que o dinossauro observava o mesmo homem que ele, no descampado do canyon, quando subitamente o animal armou um salto e projetou-se do alto da rocha em que estava. Só então Gridley percebeu que suas pernas traseiras eram gigantescas, o que lhe facilitava o salto.

Sua primeira idéia foi de que o animal cairia estraçalhado, no fundo do canyon, mas, para sua maior estupefação, percebeu que a horripilante criatura deslizava no ar, em vez de cair pesadamente, equilibrada pelas placas que tinha ao longo da coluna vertebral, como se fosse um planador.

O deslocamento de ar que seu corpo produziu, ao passar sobre o homem desconhecido, chamou sua atenção. Pôs-se de pé, de um salto, erguendo sua lança, ao mesmo tempo que Jason Gridley saltava de onde estava, correndo pelo pequeno declive em direção ao guerreiro, puxando imediatamente seus dois revólveres da cintura.

A CAVERNA DE CLOVI

Assim que Tarzan subiu pela corda, o urso, que corria velozmente e já estava praticamente em seus calcanhares, deu uma parada brusca, agachando-se sobre as patas traseiras para melhor frear sua corrida, colocando-se justamente embaixo do homem-macaco. E foi então que ocorreu um desses acidentes imprevisíveis e inesperados, dos quais ninguém se livra.

A protuberância do granito, à qual Tarzan havia preso o laço de sua corda, tinha a parte superior pontiaguda e afiada como a lâmina de uma faca. E com o peso do corpo de um homem que se firmava na corda, para escalar a pequena escarpa, a referida corda partiu-se, no ponto em que contornava a ponta do granito, e o homem-macaco foi precipitado justamente sobre o lombo do gigantesco urso das cavernas que o perseguia.

E tudo isso aconteceu com tal rapidez que seria difícil dizer qual dos dois, Tarzan ou o urso, levara maior susto ou ficara mais surpreendido com o acontecimento. No entanto, as criaturas primitivas que estão sempre em luta pela própria sobrevivência nunca se permitem deixarem-se perturbar pelo inesperado. E naquele acidente, ambas as criaturas enfrentaram o fato como se fosse esperado ou tivesse sido planejado.

O urso afastou-se para trás, estremecendo o corpo, num esforço por livrar-se do homem-macaco, enquanto Tarzan passou rapidamente um dos braços à volta do pescoço do animal, apertando-o com todas as suas forças, enquanto, com a outra mão, puxava seu facão da cintura. O local era dos mais precários para uma luta corpo-a-corpo, pois de um lado havia o desfiladeiro íngreme e profundo e do outro erguia-se um paredão de rocha de grande altura. E apenas a tentativa do urso das cavernas em livrar-se de Tarzan, sacudindo violentamente o corpo, bastaria para que os dois fossem lançados no abismo, encontrando morte instantânea.

Os urros e grunhidos do animal ecoavam pelas montanhas dos thipdars, mas o homem-macaco lutava em silêncio, a golpes de facão sobre o dorso do grande urso que continuava tentando libertar-se de seu atacante, embora consciente do risco que ele próprio corria de ser projetado pelo despenhadeiro abaixo.

Mas a luta não poderia continuar interminavelmente e em dado momento o facão atingiu a medula do gigantesco animal, que, enrijecendo espasmòdicamente o corpo, permitiu que Tarzan saltasse de cima dele, assistindo a sua queda para o fundo do precipício, arrastando consigo quatro flechas e a lança do homem-macaco.

Apanhando a corda, que ficara caída no chão, sob a ponta de granito de onde tombara, Tarzan retomou seu caminho pela trilha que viera seguindo, à procura de seu arco, que fora obrigado a lançar fora durante a corrida, e também à procura do menino.

E tinha dado uns poucos passos, quando, ao contornar uma curva do rochedo, viu-se frente à frente com o jovem que imediatamente ergueu sua lança, ao mesmo tempo que deixava cair aos seus pés o arco de Tarzan que havia encontrado no caminho. Assim seria mais fácil defender-se, no caso de ser atacado por aquele homem desconhecido.

— Sou Tarzan — disse-lhe o Rei das Selvas. — Venho como amigo e não para matar.

— Sou Ovan — disse-lhe o rapaz. — Se você não veio aos nossos domínios para matar, deve ter vindo, então, para raptar uma companheira e, assim sendo, o dever de um guerreiro de Clovi é matá-lo.

— Tarzan não está aqui para raptar ninguém, nem para arranjar uma companheira — disse o homem-macaco.

— Então, por que está em Clovi? — perguntou-lhe o rapaz.

— Tarzan está perdido — respondeu o Rei das Selvas. — Tarzan vem de um outro mundo, muito além de Pellucidar. Ele se perdeu de seus companheiros e não consegue encontrar o caminho de volta até o lugar onde eles estão. E Tarzan será amigo do povo de Clovi.

— Por que motivo você atacou aquele urso? — continuou o jovem.

— Se eu não o tivesse atacado, ele teria matado você — disse Tarzan.

— Acho que você deve estar falando a verdade — disse o rapaz, cocando a cabeça. — Realmente, não havia outro motivo que levasse você a atacar aquele urso das cavernas. Com certeza era o que teria feito qualquer homem da minha tribo. Mas você não é da minha tribo. Você é um inimigo e, sendo assim, não posso entender por que você agiu daquela maneira. Então você quer-me dizer que, não sendo de minha própria tribo, teria salvo minha vida?

— Claro — respondeu-lhe Tarzan.

Ovan ficou calado por alguns instantes, observando atentamente aquele homem corpulento e forte que tinha diante de si.

— Acredito em você — disse, finalmente — embora continue sem entender coisa alguma. Nunca vi coisa igual, em toda a minha vida, e não sei se os homens de minha tribo acreditarão em você. Mesmo que eu conte a eles o que você fez por mim, talvez queiram matá-lo, pois acham que nunca se deve confiar num inimigo.

— Onde é que fica sua cidade? — quis saber o homem-macaco.

— Não muito longe daqui — respondeu-lhe o menino.

— Pois irei até lá com você — disse Tarzan — e explicarei tudo ao seu chefe.

— Está bem — replicou o rapaz. — Você poderá conversar com Avan, o chefe da tribo. Ele é meu pai. E se ele resolver matar você, tentarei ajudá-lo, pois salvou-me a vida, quando aquele urso poderia ter-me destruído.

— E por que estava você na caverna daquela fera? — indagou-lhe o Rei das Selvas. — Era evidente que se tratava de uma caverna de algum animal selvagem.

— Você também estava seguindo por aquela mesma trilha respondeu o jovem — só teve sorte de estar caminhando atrás do urso e eu estava à frente dele.

— Mas eu não sabia aonde ia dar aquele caminho — disse Tarzan.

— Nem eu — continuou o rapaz. — Nunca havia saído para caçar, exceto em companhia de outros homens mais velhos que eu. Mas agora estou na idade de me tornar um guerreiro e saí sozinho de minha tribo para fazer minha primeira caçada e matar minha primeira caça. Só assim um homem pode tornar-se um guerreiro. Encontrei aquela trilha e comecei a segui-la sem saber para onde me levaria. E mal comecei a caminhar, quando escutei os passos do animal atrás de mim. Logo que cheguei à caverna e percebi que a trilha terminava ali, achei que nunca mais poderia retornar à minha cidade, que jamais conseguiria tornar-me um guerreiro. Foi quando apareceu aquele enorme urso, que me pareceu furioso por me encontrar em seus domínios. E eu deveria ter lutado contra ele, talvez até tivesse conseguido matá-lo, embora fosse uma tarefa difícil demais para mim. Foi nessa hora que você apareceu e com esse galho encurvado conseguiu atirar uma lança nas costas dele. E o urso ficou tão enraivecido que se esqueceu de mim e saiu atrás de você, como certamente você planejara. Estou vendo que deve haver corajosos guerreiros nessa terra de onde você vem. Fale-me sobre sua cidade. Onde é que fica? Todos, lá são guerreiros, caçadores valentes e seu chefe tem grande poder sobre sua tribo?

Tarzan tentou explicar ao rapaz que sua terra não estava situada em Pellucidar, mas isso estava muito acima da compreensão de Ovan. Sendo assim, o homem-macaco desviou o assunto para a pessoa do jovem e enquanto caminhavam juntos, em direção a Clovi, Ovan discorreu sobre a bravura e a coragem dos homens de sua tribo e sobre a beleza das mulheres de sua terra.

— Avan, meu pai, é um grande e poderoso chefe — dizia o rapaz. — Os homens da nossa tribo são notáveis guerreiros e muitas vezes já temos combatido contra os homens de Zoram e já chegamos a ir até Daroz, que fica além de Zoram, porque na nossa tribo sempre houve muito mais homens do que mulheres e nossos guerreiros têm que procurar suas esposas em outras tribos. Ainda agora o guerreiro Carb partiu para Zoram, com mais vinte companheiros, para raptar mulheres. Aliás, as mulheres de Zoram são famosas pela sua beleza, e quando eu for mais velho, pretendo ir procurar lá uma companheira .

— E Clovi fica muito longe de Zoram? — indagou Tarzan.

— Alguns dizem que sim, outros dizem que não — respondeu Ovan. — Ouvi falar que se leva mais tempo para ir até lá, do que para voltar, pois nossos guerreiros, quando vão de Clovi até Zoram, costumam fazer seis refeições durante a viagem e na volta comem apenas duas vezes.

— Mas, como é que se explica que a distância de ida é maior do que a de volta? — quis saber o homem-macaco.

— Porque quando os guerreiros voltam de Zoram — explicou o rapaz — voltam sempre perseguidos pelos homens de lá.

Tarzan interiormente achou graça na ingenuidade do raciocínio de Ovan e ficava impressionado com aquela total impossibilidade de medir distâncias ou tempo, sob as anômalas condições de Pellucidar.

à medida que caminhavam em direção a Clovi, Ovan ia perdendo sua atitude desconfiada em relação ao homem-macaco, e aos poucos começou a aceitá-lo quase como se fosse um dos homens de sua tribo. Reparou nos ferimentos ocasionados pelas garras do grande thipdar, nas costas e nos ombros de Tarzan, e ao ouvir o relato das peripécias pelas quais passara o homem-macaco, não escondia sua admiração e seu entusiasmo pela coragem do companheiro, pela sua fortaleza e pela sua presença de espírito ao escapar praticamente ileso das estranhas e perigosas criaturas de Pellucidar.

E o rapaz percebeu que os ferimentos estavam todos inflamados, o que deveria causar dor e mal-estar ao homem-macaco. Assim, quando pararam pela primeira vez perto de um riacho, Ovan fez questão de lavar todas as feridas e depois, apanhando as folhas de determinada planta, espremeu-as até obter um líquido que passou sobre elas.

No entanto, a dor que Tarzan sentiu, quando o jovem lhe aplicou o sumo das referidas folhas, foi muito maior do que a dor que lhe causava a inflamação. E cresceu ainda mais a admiração do jovem de Clovi pelo Rei das Selvas, ao perceber que ele não demonstrara, nem mesmo pelo tremor de algum músculo, o sofrimento que sabia insuportável, quando aquele primitivo ungüento era aplicado sobre um machucado qualquer.

— Sei que isso dói muito — disse-lhe Ovan — mas evita que as feridas apodreçam e faz com que cicatrizem muito depressa.

Na verdade, durante boa parte da caminhada, a dor que Tarzan sentia era martirizante. Mas pouco a pouco foi diminuindo, até desaparecer por completo.

A trilha pela qual seguiam, levou-os a atravessar uma grande floresta, embora as árvores não fossem muito frondosas. E o homem-macaco teve tempo suficiente para fazer uma outra lança e mais algumas flechas adicionais.

Ovan mostrava-se muito interessado no facão e no arco e flechas que o homem-macaco levava consigo, embora considerasse as flechas pequenas, como se fosse lanças para crianças. No entanto, quando tiveram fome, e Tarzan abateu um carneiro montanhês com uma só e certeira flechada, o desprezo do rapaz pelo arco e flecha transformou-se em admiração e respeito, chegando mesmo a pedir ao homem-macaco que lhe ensinasse a confeccionar a arma e que lhe ensinasse também a usá-la.

Ovan conquistou rapidamente a amizade de Tarzan, à medida que caminhavam em direção a Clovi, pois possuía aquela dignidade discreta dos animais selvagens. E não tinha aquela prolixidade e aquela verborragia comuns aos homens civilizados, que são ao mesmo tempo vantagens e desvantagens das criaturas humanas que vivem em sociedade. Não havia oradores natos, no Plioceno.

— Já estamos quase chegando — disse finalmente o rapaz, ao chegarem às bordas de um grande canyon. — Ali abaixo ficam as cavernas de Clovi e espero que Avan, nosso chefe e meu pai, nos receba como amigos, embora não lhe possa garantir coisa alguma. Quem sabe é melhor você seguir seu caminho e não vir comigo até Clovi? Não gostaria que o matassem.

— Eles não me matarão — respondeu-lhe Tarzan. — Venho como amigo.

Mas, em seu íntimo, desconfiava que houvesse muita possibilidade de ser recebido como um amigo ou um igual, por aqueles seres tão primitivos.

— Então vamos continuar — disse Ovan, começando a descida para o canyon.

Naquela altura, a trilha fazia uma curva, ao longo da margem do grande canyon, em direção ao topo do desfiladeiro.

Via-se que era um caminho muito percorrido e muito bem conservado, embora não houvesse o menor vestígio do uso da engenharia em seu planejamento. Não era absolutamente uma trilha feita ao acaso, por animais; na realidade representava um trabalho inteligente, embora realizado por homens primitivos e selvagens.

Quando já haviam percorrido boa parte do caminho, Ovan deu um assovio longo e estridente, logo respondido por outro que vinha da curva mais próxima. E depois de contornarem essa curva, os dois viram-se diante de uma grande proeminência da rocha, sustentada por prolongamentos do rochedo, ao fundo do qual havia a entrada escura de uma caverna.

Sobre a superfície plana da proeminência da' rocha, que deveria medir dois acres, agrupavam-se umas cem pessoas, entre homens, mulheres e crianças.

Todos os olhares convergiam para a direção de Tarzan e Ovan, e ao perceberem a figura desconhecida e estranha do homem-macaco, os guerreiros se puseram de pé, facões e lanças em punho, enquanto as mulheres corriam para o interior da caverna, levando os filhos.

— Não tenham medo! — exclamou Ovan, ainda de longe.

— Trata-se apenas de Ovan e de seu amigo Tarzan.

— Nós matamos! — responderam-lhe alguns dos guerreiros.

— Onde está o chefe Avan? — perguntou o rapaz, projetando a voz.

— Aqui está o chefe Avan! — anunciou uma voz possante e gutural, ao mesmo tempo que Tarzan via emergir da caverna a figura bronzeada e corpulenta de um selvagem.

— Quem é que você traz aí, Ovan? — perguntou o chefe.

— Se for algum prisioneiro de guerra, já deveria tê-lo desarmado antes.

— Não se trata de um prisioneiro — gritou de volta o rapaz. — Este homem não é de Pellucidar e vem como amigo e não como inimigo.

— Mas é um estranho — continuou Avan — e você tinha que matá-lo. Já aprendeu o caminho para as cavernas de Clovi e, se nós não o matarmos, vai voltar para junto de sua gente e guiá-la até aqui para nos atacar!

— Ele não pertence a nenhuma tribo e não sabe como voltar ao seu local de origem — disse Ovan.

— Então as palavras dele não são verdadeiras, pois isto tudo é impossível — exclamou o chefe Avan. — É impossível existir um homem que não saiba o caminho de casa. Aproximem-se! Afaste-se dele, Ovan, para que eu possa destruí-lo!

Ao contrário do que seu pai lhe ordenava, Ovan colocou-se bem à frente de Tarzan.

— Quem matar o amigo de Ovan — disse o rapaz — terá que matar Ovan também.

Um guerreiro que estava mais próximo de Avan segurou-lhe o braço, dizendo:

— Ovan sempre demonstrou ser um bom rapaz. Não há nenhum outro jovem de sua idade, aqui em Clori, com tanto bom senso, tanta sabedoria e tanta honestidade. Se Ovan diz que esse desconhecido é seu amigo e não deseja que o matemos, deve ter boas razões para declarar isso. Ê melhor ouvirmos o rapaz, para depois decidirmos se devemos matar ou não o estrangeiro que vem com ele.

— Muito bem — disse o chefe. — Talvez você tenha razão, Ulan, vamos ver. Fale, Ovan, e explique por que não devemos matar este desconhecido.

— Porque ele arriscou a própria vida para salvar a minha — respondeu o rapaz. — Lutou, corpo-a-corpo, com um gigantesco urso do qual eu não teria escapado se não fosse ele. Além disso, não me atacou, não procurou capturar-me, e qual o inimigo do povo de Clovi, mesmo entre os habitantes de Zoram ou de Daroz, que são da mesma raça que nós, que não teria tentado aprisionar e raptar um jovem de Clovi, prestes a se tornar um guerreiro? Este homem é muito corajoso e um grande caçador. E seria muito bom, para a nossa tribo, que ele viesse viver entre nós, como amigo.

Avan baixou a cabeça, pensativo.

— Então, quando Carb regressar — disse, finalmente, o grande chefe de Clovi — faremos uma reunião de conselho para tomar uma decisão. Enquanto isso, esse estranho permanecerá como nosso prisioneiro.

— Recuso-me a permanecer como prisioneiro — disse Tarzan. — Venho como amigo e permanecerei como tal. Ou então, não ficarei aqui.

— Deixe-o ficar como amigo — aconselhou o guerreiro Ulan. — Afinal de contas ele caminhou tanto tempo ao lado de Ovan, sem lhe fazer mal, por que motivo e de que maneira poderia atacar-nos se somos tantos e ele é um só?

— Talvez ele tenha vindo para roubar alguma mulher __disse o chefe.

— Não se trata disso — falou Ovan. — Deixe que ele permaneça entre nós como amigo e eu garanto, com minha própria vida, que não fará mal a nenhum de nós.

— Deixe-o ficar — disse um outro guerreiro, para quem Ovan continuava a ser a mascote da tribo, pois, por mais que o mimassem e brincassem com ele, nunca se havia aproveitado de suas prerrogativas para se impor ou para exigir coisa alguma.

— Bem — falou finalmente o chefe Avan — ele pode ficar. Mas Ovan e Ulan são responsáveis pela sua conduta.

Muito poucos clovinianos aceitaram Tarzan sem desconfiança ou suspeitas, e entre esses estavam Maral, a mãe de Ovan, e Rela, sua irmã. As duas aceitaram Tarzan sem restrições porque Ovan também o aceitava. Uma também demonstrou logo uma grande simpatia por Tarzan e isso era de grande importância e significação, uma vez que se tratava de um guerreiro inteligente, corajoso e eficiente, cuja opinião tinha grande influência nas reuniões de conselho de Clovi.

Tarzan, acostumado que estava à vida nas tribos de homens primitivos, integrou-se facilmente no sistema de vida de Clovi, não dando atenção a quem não lhe dava atenção, observando escrupulosamente a ética e os costumes da tribo, em cada detalhe de suas relações para com os clovinianos. Gostava de conversar com Maral, por causa de seu temperamento alegre e sua grande inteligência. E ela contou-lhe que era de Zoram, tendo sido raptada por Avan, quando ainda um jovem guerreiro saíra à procura de uma companheira. E o homem-macaco atribuía sua beleza ao seu local de origem, pois era voz corrente em Clovi que as mulheres de Zoram eram as mais belas de todos os povos de Pellucidar.

Tarzan simpatizara com o guerreiro Ulan desde o princípio, pois havia sido o primeiro a defender sua causa, depois de Ovan. Aliás, Ulan diferia em vários pontos de todos os outros clovinianos. Parecia ter sido o primeiro, entre seu povo, a descobrir que o cérebro humano deveria ser usado para outros fins, além de garantir e assegurar as necessidades primordiais da existência. Aprendera a divagar, a sonhar e a exercitar sua mente por caminhos mais agradáveis, com o que conseguia distrair-se e distrair seus companheiros. Sabia contar histórias fantásticas que, às vezes, divertia e, às vezes, atemorizava seus

atentos ouvintes. Sabia desenhar e pintar e fez questão de exibir suas obras a Tarzan, não escondendo um certo orgulho do que era capaz de fazer. Guiando o homem-macaco pela principal caverna, que era uma espécie de abrigo, em caso de guerra, ao mesmo tempo que depósito de viveres e fortaleza da tribo, acendeu um grande archote, com o qual iluminou as paredes, onde se viam suas pinturas por toda a parte. Pintava os grandes animais selvagens, como mamutes, ursos das cavernas, veados vermelhos, hienodontes e outros totalmente desconhecidos para Tarzan. Havia um animal que o homem-macaco só tinha visto uma única vez, em Pal-ul-don, onde era conhecido como grifo. No entanto, Ulan disse-lhe que se tratava de um gyor e que era muito encontrado em Gyor Cors, isto é, nas planícies de Gyor que ficavam no fim das cordilheiras das montanhas dos thipdars, do outro lado de Clovi.

Ulan desenhava apenas o contorno dos animais, sem muitos detalhes e seu desenho era, realmente, muito bem feito. E ele era muito admirado pelos outros membros da tribo, pois era o primeiro e único a realizar tal façanha e ninguém compreendia como é que Ulan conseguia executar tudo aquilo. Não fosse ele um bravo guerreiro e grande caçador, talvez seu povo até o desprezasse, pelos seus dons artísticos, considerando-os até uma fraqueza. Mas seu talento, adicionado às suas qualidades de exímio guerreiro, garantiam-lhe a estima e a admiração de toda a tribo.

Embora Tarzan houvesse conquistado, logo de início, a simpatia e a amizade desses poucos, acima mencionados, o restante da tribo demonstrava uma certa desconfiança a seu respeito, desde que era pela primeira vez, em toda a história de Clovi, que um desconhecido penetrava em seus domínios sem ser como inimigo.

Aguardavam todos a chegada de Carb e seus guerreiros para a reunião de conselho, quando então, como a maioria esperava, o homem-macaco seria certamente condenado à morte.

No entanto, à medida que foram conhecendo melhor Tarzan, outros clovinianos foram-se aproximando dele com mais confiança, admirando sua agilidade e seus recursos de grande caçador, quando o acompanhavam em suas caçadas, admirando até mesmo suas armas, que a princípio olhavam com desprezo.

Diante disso, quanto mais tempo Carb demorasse a voltar, maiores as chances de Tarzan ser aceito pela tribo como um igual, para não dizer amigo, favorecendo-lhe maior familiaridade com a região, tornando-lhe talvez mais fácil o prosseguimento de sua busca pelos companheiros perdidos. Quem sabe, até, os clovinianos ainda lhe viriam prestar serviços e ajudá-lo a encontrar os demais membros de sua expedição aparentemente malograda.

O homem-macaco achava que, se Jason Gridley ainda estivesse vivo, deveria estar perdido por aquelas acidentadas montanhas. E se conseguisse localizá-lo, poderia, eventualmente, com a ajuda do povo de Clovi, encontrar o lugar onde a 0-220 havia aterrado.

Dormiu e se alimentou muitas e muitas vezes, na companhia dos clovinianos e já os havia acompanhado em inúmeras caçadas. No entanto, com aquele sol constantemente a pino, era-lhe impossível determinar quantos dias, quantas semanas ou mesmo quantos meses já poderiam ter decorrido, depois de sua chegada àquela primitiva tribo.

Certa vez, estava Tarzan conversando com Maral e com Ulan, agachado em torno de uma fogueira, quando do fundo do desfiladeiro soou o assovio de um cloviniano, sinal que anunciava a aproximação de uma expedição amiga. Logo em seguida, veio correndo um jovem, contornando a curva do rochedo.

— É Tomar — disse Maral. — Talvez traga notícias de Carb.

O rapaz dirigiu-se para o centro da plataforma de granito, onde já se aglomerava o povo, e, pedindo-lhes silêncio, começou a falar.

— Carb está de volta! — exclamou ele. — Os vitoriosos guerreiros de Clovi estão de volta, trazendo com eles a mais bela mulher de Zoram! Viva Carb! Viva os guerreiros de Clovi!

As ocupações de rotina, os braseiros onde se preparavam alimentos, foi tudo abandonado pela tribo que imediatamente se lançou ao encontro da expedição vitoriosa.

E quando apareceram, na curva do rochedo, entre os vinte guerreiros, chefiados por Carb, vinha também uma moça, com os pulsos amarrados atrás das costas e uma laçada de correia à volta do pescoço, a extremidade dessa correia nas mãos de um. dos guerreiros.

As atenções de Tarzan se voltavam para Carb. Procurava analisá-lo sob todos os pontos de vista, uma vez que sua vida dependia da decisão daquele homem, que sabia exercer forte influência sobre todos os membros da reunião de conselho.

Fisicamente Carb era um guerreiro de grande porte, de grande fortaleza, e suas feições, muito bem delineadas, emprestavam-lhe certa beleza à fisionomia, característica, aliás, dos homens de Clovi. No entanto, havia qualquer coisa de cruel em seus lábios finos, certa frieza em seu olhar cortante que não o fazia simpático.

Depois de observar Carb, o homem-macaco deu com os olhos na jovem prisioneira e então sentiu-se verdadeiramente fascinado pela extrema beleza de todo o seu ser. Havia motivos de sobra para que ela fosse considerada a mais bela mulher de Zoram, pois, dificilmente, em Pellucidar ou em outro mundo qualquer, haveria semelhante perfeição de traços e de físico.

Avan, o chefe, ao centro de plataforma da rocha, recebia pessoalmente os guerreiros. Contemplou a prisioneira com certo orgulho e passou a ouvir atentamente a narrativa de Carb com todos os detalhes sobre sua expedição.

— Mas precisamos organizar imediatamente uma reunião de conselho — disse finalmente Avan. — Temos de decidir quem deve ficar com a moça como companheira e, além disso, há outro assunto que só esperava o retorno de Carb e de seus guerreiros para ser resolvido.

— E de que se trata? — quis saber Carb.

— Há um homem desconhecido que veio para a nossa tribo e deseja permanecer conosco — explicou Avan, apontando para Tarzan.

Carb dirigiu seu olhar frio e cruel em direção ao homem-macaco e sua fisionomia conturbou-se.

— Por que não o mataram logo? — indagou. — É melhor nos livrarmos dele o mais depressa possível.

— Não é só você quem pode decidir — respondeu-lhe Avan. — Faremos uma reunião de conselho com todos os guerreiros e a decisão será tomada pela opinião da maioria.

— Se a decisão for favorável a este estranho — disse Carb — eu pessoalmente darei cabo dele! Não admito um inimigo na minha tribo!

— Então vamos logo tratar dessa reunião — interferiu Ulan — pois se Carb for mais poderoso do que o conselho de guerreiros, saberemos de uma vez.

Havia uma nota de sarcasmo e desafio nas palavras de Ulan que não passou desapercebida a Carb.

— Caminhamos muito tempo sem alimento e sem descanso — disse Carb. — Seria melhor que comêssemos alguma coisa e descansássemos um pouco, antes da reunião, pois os assuntos a serem discutidos exigirão nossa máxima atenção.

Os demais guerreiros da expedição também reclamavam por alimento e descanso, e Avan terminou por atender às suas justas reivindicações.

A jovem prisioneira ainda não tinha dito uma só palavra, depois que chegara à cidade e fora entregue a Maral, que recebera instruções de alimentá-la e deixá-la descansar. Seus pulsos já haviam sido desamarrados e agora ela estava sentada em volta do fogo, onde a mulher de Avan lhe preparava alguma coisa para comer, contemplando sua beleza com certo desdém.

No entanto, Tarzan notara que nenhuma das mulheres da tribo se mostrava rude ou mesmo dispensava maus tratos à jovem cativa. Isso o surpreendia muito, pois estava acostumado a presenciar o oposto, nas tribos africanas, quando alguma prisioneira caía nas mãos das mulheres nativas que lhe infligiam toda a sorte de crueldades.

Maral, principalmente, mostrava-se muito atenciosa para com a moça.

— Por que motivo haveria eu de agir de outra maneira? — dissera ela a Tarzan, quando ele comentara o fato. — Nossas filhas, ou mesmo uma de nós, poderia também ser capturada por homens de outras tribos e se soubéssemos que haviam sido maltratadas, eles haveriam de nos pagar caro. Além disso, não vejo razão para ser cruel com uma jovem que, afinal de contas, passará o resto de sua vida entre nós. Os habitantes de Clovi são pouco numerosos e estamos todos sempre juntos. Se alimentarmos inimizades e se começarmos a brigar, entre nós, a vida se tornará insuportável. Aliás, desde que você chegou, ainda não viu nenhuma briga entre as mulheres dessa tribo, não é verdade? E nunca verá, se ficar o resto de sua vida entre nós. Já tem havido casos de mulheres brigonas, assim como de crianças aleijadas ou anormais, no entanto tratamos logo de exterminá-las, para o bem comum da tribo.

Em seguida, dirigindo-se à jovem de Zoram, seu olhar era até de simpatia por ela.

— Sente-se — disse-lhe gentilmente. — Há comida neste pote. Coma e depois durma. Não tenha medo, pois você está entre amigos. Eu, pessoalmente, também sou de Zoram

Ao ouvir estas últimas palavras, a fisionomia da jovem se iluminou.

— Você também é de Zoram? — perguntou-lhe. ,__

Então também deve ter-se sentido como me sinto agora. A. minha vontade era de voltar imediatamente para lá e prefiro a morte a viver em qualquer outro lugar.

— Isso passará — respondeu-lhe Maral. — Eu também me senti assim, quando fui capturada, mas aos poucos fui percebendo que o povo de Clovi se parece muito com o de Zoram. Foram sempre muito bons para comigo e o serão para com você também. E você será muito feliz, tão feliz como me sinto agora. Quando escolherem um companheiro para você, passará a encarar a vida de maneira bem diferente,

— Mas não me quero juntar a nenhum dos homens de Clovi — exclamou a moça, batendo com o pé no chão. — Sou Jana, a Flor Vermelha de Zoram, e eu é quem vou escolher meu companheiro!

— Eu também falava assim — disse-lhe Maral, com o olhar num passado que já ia distante. — Mas depois a gente muda e você também vai mudar.

— Eu, não! — disse a jovem. — Até hoje só encontrei um único homem com quem seria capaz de viver o resto de minha vida e jamais hei de me juntar a nenhum outro.

— Você é Jana, — perguntou-lhe Tarzan — a irmã de Thoar?

A prisioneira olhou surpreendida para Tarzan, como se somente naquele momento tivesse tomado conhecimento da presença dele, observando-o de relance.

— Então você é o homem que Carb quer matar? — perguntou-lhe Jana.

— Sim — disse o homem-macaco.

— E o que você sabe a respeito de Thoar, meu irmão? — indagou-lhe a jovem.

— Caçamos juntos — disse-lhe Tarzan. — Estávamos indo juntos para Zoram quando me separei dele. Procurávamos seguir a trilha deixada por você e por um outro homem, que deveria estar-lhe acompanhando, quando a tempestade destruiu as suas pegadas. Esse outro homem deveria ser justamente quem eu procurava.

— O que você sabe sobre o homem que me acompanhava? __continuou Jana.

— Ele é meu amigo — respondeu-lhe o homem-macaco. __E o que foi feito dele?

— Foi apanhado pela tempestade, em pleno canyon — explicou a moça — e deve ter morrido afogado. Você vem do mesmo lugar que ele?

— Sim.

— E como é que você sabe que ele estava comigo? — quis saber Jana.

— Reconheci as pegadas dele — explicou o homem-macaco — e Thoar reconheceu as suas.

— Ele era um grande guerreiro — disse a jovem — e um homem muito corajoso.

— Você tem certeza de que ele morreu? — perguntou Tarzan.

— Tenho certeza — respondeu a Flor Vermelha de Zoram.

Houve um silêncio entre ambos, os dois com seus pensamentos voltados para Jason Gridley. Em seguida, aproximando-se mais de Tarzan, Jana sentou-se a seu lado.

— Então você era amigo dele — disse ela, pensativa. — Cuidado, o pessoal daqui vai matar você — disse-lhe, num sussurro. — Conheço os homens dessas tribos melhor do que você e conheço Carb. Ele sempre acaba conseguindo o que deseja. Você era amigo de Jason e eu também era. Se pudéssemos fugir, eu levaria você até Zoram, e se você é amigo de Thoar e meu amigo, nosso povo aceitará sua companhia.

— O que vocês estão cochichando? — perguntou uma voz cavernosa atrás deles.

Tratava-se do chefe Avan, que, sem esperar pela resposta, dirigiu-se para Maral, dizendo-lhe:

— Leve a mulher para a caverna! Deverá ficar lá até que a reunião do conselho decida sobre quem deva tornar-se seu companheiro. Enquanto isso, colocarei alguns guerreiros à entrada da caverna para que ela não tente fugir.

Maral fez menção de encaminhar Jana até à caverna, c quando a prisioneira se pôs de pé, lançou um olhar suplicante Para Tarzan. O homem-macaco, que já se erguera, olhou rapidamente à sua volta. Viu uns cem membros da tribo espalhados pela plataforma do rochedo, enquanto uns dez ou doze guerreiros andavam de um lado para outro, exatamente no local onde havia a saída para o canyon, a única saída para uma possível fuga.

Se fosse para fugir sozinho, Tarzan conseguiria escapulir mas com a moça seria impraticável. Meneou a cabeça e, virando-se na direção de Jana, sem que Avan pudesse ver seu rosto, seus lábios articularam silenciosamente a palavra “espere”. Logo depois a Flor Vermelha de Zoram desaparecia dentro da escura caverna dos clovinianos.

— E quanto a você, homem estrangeiro, — disse Avan, dirigindo-se ao Rei das Selvas — até que o nosso conselho decida sobre sua sorte, considere-se prisioneiro de Clovi. — Vá, também, para a caverna e permaneça lá, aguardando sua sentença.

Se era verdade que a saída de Clovi estava impedida pela presença de uma dúzia de guerreiros, por outro lado aqueles homens andavam e conversavam despreocupadamente, sem estar preparados para um imprevisto que, no caso, seria a fuga de Tarzan. E este sabia que, com um salto inesperado para a liberdade, ganharia uma grande distância deles, antes que se dessem conta de que o homem-macaco tentava fugir. Estava certo de que a decisão da reunião do conselho não lhe seria favorável, e quando ela fosse anunciada, já estaria cercado por todos os guerreiros de Clovi, alertas e prevenidos para impedir sua fuga. Diante desse raciocínio, o momento propício era justa e unicamente aquele.

No entanto, Tarzan desprezou aquela oportunidade de se libertar. Obedecendo às ordens do chefe Avan, foi andando lentamente para o interior da grande caverna, atendendo ao mudo apelo que lhe fizera a Flor Vermelha de Zoram. Seria incapaz de abandonar a irmã de Thoar e a amiga de Jason Gridley.

O PÂNTANO DE PHELI

Enquanto Jason Gridley saltava para a parte mais funda do canyon, onde se encontrava o solitário guerreiro, na expectativa de ser atacado pelo gigantesco réptil voador que vinha em sua direção, veio-lhe à memória a figura reconstituída de um réptil semelhante, já extinto da face exterior da terra, e Jason lembrou-se de que se tratava de um stegosaurus do período jurássico. Sua lembrança poderia estar ligada às gigantescas proporções do animal ou ainda ao seu aspecto horripilante.

E ali estava aquele guerreiro, enfrentando seu inevitável destino, sem que sua atitude exterior demonstrasse o menor temor. Com a mão direita segurava firmemente uma lança e com a esquerda um facão talhado em pedra. Não havia sinal de pânico, em seu semblante, ou de desespero, em corridas inúteis.

A distância entre Jason e o stegosaurus era muito grande, para que um tiro de revólver o atingisse. No entanto, o americano achou que deveria, ao menos, desviar a atenção do animal de seu objetivo, ou então assustá-lo e fazê-lo talvez fugir, com os estampidos de sua arma de fogo. Assim pensando, disparou dois tiros seguidos, ao mesmo tempo que saltava para o fundo do canyon. Um desses tiros certamente atingiu o grande réptil, pois fê-lo mudar de rumo, emitindo um estridente e agudo grunhido.

E atraído pelo estampido dos tiros disparados, voltou-se na direção de Jason Gridley, atribuindo-lhe seu ferimento e vendo nele um novo inimigo e possível presa. Usava a cauda como se fosse um leme e inclinando todas as placas pontiagudas que lhe cobriam o dorso, ao longo da coluna, para um lado só, enveredou para o local onde se encontrava Jason.

Quando os dois tiros ecoaram pelo silêncio do canyon, o solitário guerreiro voltou os olhos em direção ao homem desconhecido que saltara para junto dele e viu que o stegosaurus se virará na direção do americano.

Por hereditariedade, por hábito e por experiência, aquele selvagem aprendera que qualquer homem que não fosse de sua própria tribo representava um inimigo. E só uma única vez, cm toda a sua vida, acontecera-lhe um fato que controvertera essa teoria. Portanto, em sua mente primitiva, não poderia admitir que aquela criatura humana desconhecida estivesse arriscando a própria vida para socorrê-lo. Por outro lado, não havia qualquer outra explicação para o gesto de Jason. Assim, em vez de tentar fugir, uma vez que as atenções do monstro voador estavam agora voltadas para o desconhecido, o guerreiro correu velozmente em direção a Jason Gridley, a fim de juntar forças com ele, no combate ao ataque ao stegosaurus.

Do momento que o gigantesco réptil saltara do cume do rochedo voando numa velocidade em completa desproporção com seu volumoso corpanzil, tudo acontecera em frações de minutos, e o americano viu-se diante da morte, muito antes de avaliar as conseqüências de seus atos.

Com as mandíbulas arreganhadas e emitindo urros estrepitosos, o stegosaurus se lançava agora contra Jason, que, num relance, percebeu as vantagens que poderia tirar desta nova situação: o alvo para sua arma estava cada vez mais próximo.

E atirando com seus dois revólveres ao mesmo tempo, tentou acertar a cabeça do animal. No entanto, as balas pareciam atraídas por aquela boca escancarada à sua frente e sua única esperança era de que o stegosaurus não suportasse por muito mais tempo aquela saraivada de balas, no que Jason estava certo. Os estampidos, o susto que lhe causavam e a dor que lhe atingia por toda a parte do corpo, tudo isso deixava o animal em pânico. De repente, como se não conseguisse mais agüentar, o réptil voador ergueu-se um pouco mais no ar e passou por cima de cabeça de Gridley, a uns quatro ou cinco metros de altura enveredou para outra direção, recebendo ainda algumas balas na barriga, e, urrando de dor e de raiva, foi cair pesadamente ao solo, um pouco mais além do local onde se encontrava Jason Gridley.

Logo em seguida, como que recuperando um resto de forças que ainda tinha de reserva, voltou ao ataque, desta vez por terra, e quando o americano percebeu que este tipo de ataque seria mais perigoso, pois o animal se movimentava no chão com a mesma agilidade e a mesma velocidade com que o fazia no ar, sentiu-se verdadeiramente perdido.

Mas, precisamente naquele instante, o guerreiro alcançara Gridley.

— Ataque-o por aquele lado — gritou-lhe o guerreiro .— e eu o atacarei pelo lado de cá. Procure esquivar-se dos golpes de sua cauda. Use sua lança. Não pense que poderá afugentar um dyrodor apenas com ruídos.

Jason Gridley saltou rapidamente para o lado que o guerreiro lhe indicara, ao mesmo tempo que interiormente achava graça na ingenuidade daquela primitiva criatura, acreditando que seus revólveres serviam apenas para fazer barulho e afugentar o animal.

O guerreiro foi colocar-se do lado oposto ao que estava Jason, mas antes que tivesse tempo de usar sua lança contra o grande réptil e antes que o americano disparasse seus revólveres, o stegosaurus rolou imprevistamente por terra, enterrando o focinho no solo, enquanto seu corpo adquiria a inércia da morte.

— Está morto! — exclamou o guerreiro, perplexo. — Qual terá sido a causa de sua súbita morte? Nenhum de nós dois chegou a usar a lança!

— Foi isso aqui a causa da morte desse monstro — disse Gridley, guardando os revólveres nas cartucheiras.

— Barulho não mata — insistiu o guerreiro. — Não é o uivo do jalok ou o grunhido do urso que estraçalha a carne dos homens. O assovio dos thipdars não mata ninguém.

— Mas não foi o barulho que matou esse animal —i tentou explicar-lhe Jason Gridley. — Se você examinar a cabeça e sobretudo o céu da boca desse réptil voador, ficará compreendendo o que acontece quando disparo minhas armas.

Aceitando a sugestão de Jason, o guerreiro examinou atentamente a cabeça e a boca do dyrodor, e quando viu os diversos ferimentos, sangrando por toda a parte, olhou para o desconhecido com muito maior respeito.

— Quem é você? — perguntou-lhe. — E o que você está fazendo nas terras de Zoram?

— Meu Deus! — exclamou Jason Gridley, estupefato.

— Então quer dizer que estou em Zoram?

— Sim — respondeu-lhe o guerreiro.

— E você é da tribo de Zoram? — continuou o americano .

— Sou — disse o guerreiro. — Mas, quem é você?

— Diga-me uma coisa — falou Gridley, como se nem tivesse ouvido a pergunta do guerreiro — você conhece Jana, a Flor Vermelha de Zoram?

— O que você sabe a respeito da Flor Vermelha de Zoram, homem desconhecido? — indagou o guerreiro, com ar desconfiado. — Mas, antes mesmo que Gridley lhe respondesse, sua fisionomia se aliviou e um brilho diferente lhe passou pelos olhos.

— Diga-me por que nome você conhecido no seu país? — perguntou o guerreiro.

— Meu nome é Gridley — respondeu-lhe o americano.

— Jason Gridley.

— Jason! — exclamou o homem de Zoram. — Sim, é isto mesmo, Jason Gridley! Diga-me, homem, onde está a Flor Vermelha de Zoram, o que foi que você fez dela?

— Era justamente a mesma pergunta que eu ia fazer a você — tornou Gridley. — Nós nos separamos e tenho andado à procura dela há muito tempo. Mas como é que você já sabia meu nome?

— Segui você durante muito tempo — explicou o guerreiro — mas as águas da chuva desfizeram as pegadas e não pude mais segui-lo.

— Por que você me seguia? — quis saber o americano.

— Porque você estava em companhia da Flor Vermelha de Zoram — disse o guerreiro. — E eu o estava seguindo para matá-lo, mas ele me disse que você não seria capaz de maltratá-la ou de querer raptá-la para torná-la sua companheira. E ele ainda me disse que se Jana aceitara sua companhia, deveria ter sido por vontade própria, pois você jamais forçaria a Flor Vermelha de Zoram a acompanhá-lo. Não é verdade o que digo?

— Bem — disse Jason — ela me acompanhou por vontade própria durante algum tempo. Depois, deixou-me, mas fique certo de que não lhe causei nenhum mal.

— Então talvez ele tivesse razão — continuou o guerreiro. — Primeiro terei que encontrá-la e se é verdade que você não a maltratou, então não matarei você.

— Mas quem é esta pessoa a quem você se refere como “ele”? — quis saber Jason Gridley. — Não existe ninguém em Pellucidar que possa saber meu nome ou qualquer coisa sobre mim, exceto Jana.

— Você conhece Tarzan? — perguntou o guerreiro.

— Tarzan! — exclamou Jason. — Você esteve com Tarzan? Ele está vivo?

— Estive com ele durante algum tempo — respondeu o guerreiro. — Caçamos juntos e seguimos as pegadas de vocês dois por muito tempo. Mas a essa altura Tarzan deve estar morto.

— Morto? — disse Jason, perplexo. — Você tem certeza de que ele está morto?

— Sim. Tarzan está morto — foi a resposta lacônica que Jason recebeu.

— E como foi que isso se deu? — indagou o americano.

— Estávamos atravessando o cume das montanhas quando ele foi apanhado por um gigantesco thipdar que o levou embora.

Tarzan morto! Tantas vezes Jason Gridley havia temido que aquilo acontecesse e agora ali estava ele diante de um fato consumado, embora inacreditável. Sua mente como que se recusava a aceitar e a entender o significado daquelas palavras, lembrando-se da fortaleza e da vitalidade daquele homem de aço. Era-lhe totalmente impossível acreditar que aquele arcabouço vigoroso, sustentáculo de um corpo forte e resistente, já não tinha mais vida; que aqueles músculos poderosos já não se movimentavam mais, sob aquela pele crestada por tantos sóis; que aquele braço e bom coração já não batia mais.

— Você gostava muito dele? — perguntou o guerreiro, reparando no silêncio e na emoção do companheiro.

— Sim — foi a lacônica resposta de Jason.

— Eu também — confessou-lhe o guerreiro. — Mas, nem eu, nem Tar-gash pudemos salvá-lo das garras do gigantesco thipdar que agiu tão rapidamente e afastou-se também com tamanha velocidade que nem tivemos tempo de usar nossas, lanças. .

— Quem é Tar-gash? — perguntou Gridley.

— É um sagoth — disse o guerreiro — uma raça de grandes macacos que mais parecem homens peludos. Vivem nas florestas e são, muitas vezes, usados como guerreiros, pelos mahars.

— E ele estava com você e com Tarzan? — continuou Jason.

— Ele e Tarzan estavam juntos, quando os encontrei — explicou o homem primitivo. — Mas, depois que Tarzan foi arrebatado aos ares pelo thipdar, Tar-gash voltou para as florestas e eu continuei a procurar pela Flor Vermelha de Zoram. Você me salvou a vida, homem estrangeiro, mas não tenho certeza de que você não tenha maltratado Jana. Talvez você a tenha matado. Como é que posso saber? Não sei nem o que devo fazer agora.

— Eu também estava procurando por Jana — disse Jason. — Vamos então procurá-la juntos.

— E se conseguirmos encontrá-la — continuou o guerreiro — ela mesma me dirá se devo ou não matar você.

Jason não podia deixar de se lembrar da explosão de raiva que Jana tivera contra ele, chegando mesmo a querer matá-lo. Talvez ela preferisse que aquele guerreiro o matasse por ela. E sem dúvida aquele homem de Zoram deveria ser um de seus pretendentes. Quando soubesse da verdade, não hesitaria em liquidar o rival. No entanto, Gridley não aparentava apreensão, nem em sua atitude, nem em suas palavras.

— Faço questão de acompanhar você — disse ele ao guerreiro. — E se você comprovar que maltratei a Flor Vermelha de Zoram, poderá matar-me imediatamente. Como c o seu nome?

— Thoar — respondeu o selvagem.

Jana havia falado com Jason a respeito de seu irmão, mas se ela havia mencionado seu nome, o americano não tinha a menor lembrança e continuava a achar que Thoar era um pretendente de Jana ou talvez seu companheiro e essa idéia lhe era um tanto desagradável, embora não soubesse bem explicar o motivo desse sentimento. E quanto mais pensava no assunto, mais certo ia ficando de que se tratava realmente de seu companheiro, de seu esposo, no linguajar dos homens civilizados. Agora não tinha mais dúvidas e sentiu-se irritado ao pensar que a Flor Vermelha de Zoram lhe enganara, declarando-lhe ser solteira. Mas, assim eram as mulheres, pensava Jason. Lançavam mão de todos os artifícios, de todos os seus próprios encantos para enlouquecer um homem, pelo simples prazer de passar algumas horas agradáveis. Mas com ele, Jana se enganara. Ela não o havia feito passar por ingênuo, não chegara a enlouquecê-lo, com seus artifícios e seus encantos. Ele não havia cedido à sua beleza e daí ela ter ficado com tanta raiva, com o amor próprio tão ferido. E sendo uma criatura primitiva, a primeira idéia que lhe viera à mente, como vingança, fora a de matá-lo. Ela havia sido quase diabólica, tentando fazê-lo apaixonar-se por ela, sendo casada, isto é, já tendo um companheiro. E Jason Gridley já estava a ponto de estourar de raiva, quando seu senso de humor veio em seu socorro. Mas, embora sorrisse, alguma coisa em seu íntimo lhe doía fundo e ele não conseguia saber por quê.

— Quando foi que você viu Jana pela última vez? — perguntou-lhe Thoar. — Poderíamos voltar a esse local e tentar localizar novamente suas pegadas.

— Não sei se conseguirei explicar direito — respondeu Jason. — Tenho muita dificuldade em me localizar ou em localizar qualquer ponto numa região em que não há e não funcionam bússolas.

— Poderíamos começar do lugar onde Tarzan e eu descobrimos as primeiras pegadas de vocês dois — lembrou Thoar.

— Talvez isto não seja necessário — disse Gridley — se você conhecer bem a região que fica do outro lado da cordilheira. Voltando na direção das montanhas, no lugar onde encontrei Jana, lembro-me de ter visto um grande desfiladeiro, à nossa esquerda. E foi para os lados desse desfiladeiro que dois, dos quatro homens que perseguiam a Flor Vermelha de Zoram, saíram a correr, depois que consegui matar os outros dois deles. Jana, então, tentou encontrar um caminho para o cume, pela extrema-direita do desfiladeiro, mas nossa rota foi interrompida por uma profunda fenda na rocha, impelindo-a a retroceder em direção ao desfiladeiro, pelo qual desceu. E quando a vi pela última vez, estava tentando subir o outro lado do desfiladeiro. Diante disso, se você souber onde ficam essas rochas, não haverá necessidade de andarmos para trás, até o ponto onde a encontrei.

— Conheço este desfiladeiro de que me falou — respondeu Thoar — e se os dois phelianos que a perseguiam conseguiram chegar lá, é certo que conseguiram também capturá-la. Vamos procurá-la na direção do desfiladeiro e se não encontrarmos nenhum vestígio de sua passagem por ali, teremos que descer até as terras dos phelianos, situadas no que chamamos de terras baixas.

Iniciaram a caminhada, Thoar como guia; e, para ele, o tempo não tinha o menor significado. Para Jason Gridley, o tempo era apenas uma lembrança a mais em sua memória. Quando encontravam alimento, comiam; quando se sentiam cansados, dormiam; e sempre encontravam perigosos obstáculos a vencer, íngremes escarpas, perigosos penhascos. Para o americano, parecia-lhe inacreditável que uma jovem conseguisse saber andar por aqueles lugares tão acidentados, sabendo orientar-se e nunca se perdendo por entre aqueles tortuosos caminhos. Jamais poderia ter trilhado aqueles verdadeiros labirintos se não houvesse sido guiado pela Flor Vermelha de Zoram.

Às vezes eram obrigados a seguir por uma rota que ia dar nas florestas que subiam montanhas acima, onde a caça era mais abundante. E com a ajuda de Thoar, Jason confeccionou uma espécie de vestimenta, da pele de um cabrito montes. Cobria-lhe algumas partes do corpo, deixando-lhe os braços e as pernas em liberdade. E sentia-se tão bem com aquele tipo de roupa que perguntava-se a si mesmo por que os homens civilizados se martirizavam com vestimentas tão complicadas e tão impróprias, quando a temperatura não exigia tanto.

À medida que Jason travava mais conhecimento com Thoar, percebera que ele modificara sua maneira de pensar a seu respeito e sua desconfiança inicial se transformara em respeito e admiração, depois até em certa forma de amizade peculiar aos homens de Pellucidar. Longe de ser uma animosidade declarada, era antes uma discreta simpatia.

Para Jason Gridley, era muito difícil analisar a espécie de sentimento que nutria por aquele primitivo companheiro. Não é que houvesse rivalidade entre os dois, no entanto a atitude de Jason, em relação a Thoar, era a de um homem educado em relação a um rival ou oponente que merecesse respeito.

Raramente falavam em Jana. Mas o pensamento dos dois estava sempre voltado para ela. Jason, muitas vezes, se apanhava relembrando cada detalhe de sua convivência com aquela jovem das montanhas; cada gesto, cada expressão, cada palavra da Flor Vermelha de Zoram pareciam estar impressos em sua memória, assim como cada contorno de sua silhueta perfeita, cada traço de suas feições de rara beleza. E nem mesmo as ásperas palavras que ouvira dela conseguiam apagar de sua lembrança a alegria e o bem-estar daquela saudável camaradagem de que desfrutaram durante tanto tempo. Era a primeira vez que tinha saudades da companhia de uma mulher. Às vezes, tentava afastá-la de suas recordações, lembrando-se de incidentes e de passagens agradáveis com outras moças, com Cynthia Furnois ou com Barabara Green, mas a figura da Flor Vermelha de Zoram estava sempre se intrometendo, sempre presente em seu pensamento, até que Cynthia e Barbara caíram-lhe em total esquecimento.

E aquele jugo mental, aquele domínio pela lembrança da personalidade de uma jovem selvagem e primitiva, embora muito bonita, incomodava seu ego, fazendo-o refugiar-se contra isso na tristeza que sentia pela morte de Tarzan. No entanto, sem mesmo saber a razão, Jason ainda não estava totalmente convencido do desaparecimento definitivo do homem-macaco. Não conseguia imaginar que ele houvesse morrido, e esse fato era-lhe inconcebível.

Sentindo falhar esta espécie de fuga, Jason tentou concentrar-se em conjeturas a respeito do destino que teriam tido seus outros companheiros de expedição, como von Horst, Muviro e seus guerreiros waziris. Ou então seus pensamentos voltavam-se para a grande nave 0-220, procurando-a constantemente pelo céu sem nuvens de Pellucidar. Mas pensasse no que pensasse, voltando em pensamento à sua vida mundana da Califórnia ou às selvas africanas onde encontrara Tarzan, a figura da Flor Vermelha de Zoram estava permanentemente rondando seu espírito.

Thoar, por seu lado, encontrara naquele americano o companheiro ideal; um homem acessível, cordato e sóbrio, sempre pronto a assumir sua parte de responsabilidades pelos selvagens caminhos que percorriam.

Finalmente, chegaram os dois ao topo do grande desfiladeiro, e embora acompanhassem suas diversas trilhas, não encontravam o menor vestígio que acusasse a passagem de Jana Por aqueles lugares.

— Acho que vamos ter que descer até às terras baixas — disse Thoar — as terras dos phelianos. E mesmo que não a encontremos lá, poderemos vingá-la.

Aquela idéia tão primitiva de vingança, sugerida por Thoar, não entrou em choque com os princípios e a ética do homem civilizado que era Jason Gridley. Parecia-lhe a coisa mais natural do mundo que ele e Thoar constituíssem ao mesmo tempo uma corte de justiça e seu instrumento de castigo, pois as criaturas humanas civilizadas perdem facilmente o verniz da civilização, aliás a única coisa que os diferencia dos seus ancestrais primitivos.

Uns cem mil anos de diferença deveriam existir entre o estado de evolução de Thoar de Zoram e Jason Gridley da Califórnia. Mas, imbuídos pelos mesmos sentimentos, os dois desceram as montanhas dos thipdars, em direção a Pheli, e no coração de cada um deles havia o mesmo desejo de vingança e de matar. Não lhes seriam necessárias armas modernas para que desencadeassem uma guerra.

E através de florestas e barrancos escorregadios, Thoar e Gridley se dirigiam para Pheli, encontrando fartura de caça pelo caminho, mas foi exercitando a inteligência humana que possuíam, em combinação com uma grande dose de sorte, que conseguiram chegar ilesos aos pantanais de Pheli. Enfrentaram ferozes carnívoros, estúpidos e irritáveis herbívoros de grande porte e gigantescos répteis sob cujas patas a terra parecia estremecei .

Pheli parecia o paraíso dos répteis, em todas as suas variedades, de todos os tamanhos, em número de alguns milhares. Aquáticos e anfíbios, carnívoros e herbívoros, sibilavam, emitiam estranhos gritos, lutavam e devoravam-se uns aos outros, e Jason chegou a se perguntar quando é que tinham tempo de propagar sua espécie, admirado de constatar a sobrevivência dos herbívoros. Uma verdadeira orgia de extermínio parecia constituir a maneira de viver da grande maioria daqueles estranhos espécimes. E o gigantesco tamanho de muitos deles, inclusive de várias espécies de herbívoros, evidenciava que deveriam ter uma vida muito longa, pois, ao contrário dos mamíferos, os répteis, enquanto vivos, estão sempre crescendo.

A grande região pantanosa, onde Thoar esperava encontrar a cidade de Pheli, era dotada de imensa floresta de árvores gigantescas, cujos galhos eram tão entrelaçados que muitas vezes os dois homens preferiam andar pelo chão pantanoso e traiçoeiro, a fim de ganhar tempo. Nessa floresta os répteis também era bem menores, embora quase tão numerosos quanto na região anterior. Havia algumas exceções, como serpentes de proporções titânicas. Quando Jason Gridley viu a primeira, chegava a duvidar do que seus olhos viam. Lançavam-se inesperadamente sobre as criaturas e engoliam um trachodonte, animal quase do tamanho de um elefante, como se engolissem uma formiga. O grande dinossauro herbívoro ainda existia em Pellucidar e, às vezes, lutava desesperadamente para se livrar das presas de uma das referidas serpentes, no entanto, nem mesmo sua força de gigante e seus múltiplos e afiados dentes, que só no maxilar inferior eram em número de uns quatrocentos, eram suficientes para vencer a voracidade daquelas cobras monstruosas que os comia e engolia vivos.

E talvez tivesse sido o tamanho diminuto daquelas duas criaturas humanas, aliado à inteligência e a golpes de sorte, que permitiram que eles tivessem escapado à ferocidade daqueles horrendos répteis. Ou ainda a total estupidez das serpentes, que permitia aos homens maior facilidade em esconderem-se e escaparem delas.

E naqueles intermináveis pantanais de horrores, nem mesmo os grandes animais selvagens, como os leões e os leopardos, se aventuravam a entrar. Como as criaturas humanas conseguiam sobreviver em tal região, estava acima da compreensão de Jason Gridley. Ele chegava a duvidar de que os phelianos ou qualquer outra raça humana tivessem escolhido aquele local para viver.

— Não é possível que existam criaturas humanas neste lugar — dizia Jason a Thoar. — Pheli não pode ser aqui.

— É aqui, sim — respondia Thoar. — Vários homens de minha tribo já estiveram nessa região por mais de uma vez, para vingar o rapto de uma de nossas mulheres por um pheliano, e as histórias que contavam nos deixaram familiarizados com todas as condições e características existentes nas terras de Pheli.

— Pode ser que você esteja certo — disse Gridley — mas adiante dessas monstruosas serpentes que encontramos, só acreditarei que as aldeias dos phelianos sejam por aqui depois que as vir com meus próprios olhos. E, assim mesmo, ainda ficarei em dúvida de estar tendo alucinações.

— Agora já estamos bem perto da cidade — respondeu-lhe Thoar — onde você verá toda a tribo de Pheli.

— Como é que você sabe que já estamos perto? — perguntou Jason.

— Olhe naquela direção ali abaixo — disse Thoar —. e verá o que eu estava procurando encontrar.

Jason Gridley fez o que lhe pedia o companheiro e viu apenas um pequeno riacho, por entre as terras pantanosas.

— Vejo apenas um pequeno rio — disse Gridley.

— Era justamente isso que eu procurava — respondeu-lhe Thoar. — Todos os homens de minha tribo que já estiveram aqui contaram que os phelianos moram à margem de um rio que atravessa o pântano. Nos locais onde as terras são mais altas, eles constroem suas cabanas. Os phelianos não moram em cavernas, como nós. Fazem suas casas com os troncos das grandes árvores e nem mesmo o mais gigantesco dos répteis conseguiria destruí-las, ou penetrar dentro delas.

— Mas, por que eles escolheram este lugar para morar? — quis saber Jason Gridley.

— Para comerem e viverem em relativa paz e em relativo sossego — explicou Thoar. — Os phelianos, diferentes dos povos das montanhas, não constituem uma raça de guerreiros. Não gostam de lutar e por causa disso construíram suas casas e esconderam suas aldeias nesse sítio pantanoso e inóspito, onde nenhuma criatura humana se aventuraria a invadir. Assim, ficam praticamente livres de inimigos. Além disso, há tanta abundância de caça que os alimentos vêm quase às suas portas. E essas condições são ideais para eles, onde, mais do que em qualquer outra região de Pellucidar, se sentem protegidos c felizes.

Agora, à medida que avançavam, os dois homens tomavam todas as precauções para não serem vistos ou pressentidos pelos phelianos, pois a qualquer instante poderiam encontrar-se diante de uma aldeia de Pheli.

De repente, Thoar deu um salto para trás, apontando para a frente, ao mesmo tempo que se escondia atrás de um volumoso tronco de árvore.

Jason olhou na direção que o companheiro apontava e viu uma pequena colina, praticamente sem vegetação; via apenas uma parte da colina, por entre o emaranhado de galhos de árvores, mas era evidente que aquela pequena elevação de terra havia sido capinada pela mão do homem, pois ainda havia, num ponto ou em outro, alguns tufos de plantas. E dentro de seu raio de visão, percebia a existência de uma casa, se é que se podia chamar assim aquela primitiva construção feita com troncos de árvores, de mais ou menos trinta ou sessenta centímetros de diâmetro. Três ou quatro desses troncos, colocados horizontalmente, uns sobre os outros, formavam a parede que era visível do ponto em que Jason se encontrava. A parede oposta ficava a uma distância de um metro e meio ou um metro e oitenta paralelamente à primeira e sobre os últimos troncos estavam colocados outros pedaços de árvores menores, de uns quinze centímetros de diâmetros, um ao lado do outro, mantendo uma distância de mais ou menos trinta centímetros entre cada um. Isso constituía o suporte para o telhado que era formado de toras de madeira um pouco mais longas do que as utilizadas nas paredes laterais, cujos interstícios eram preenchidos por barro. A frente da casa era formada de troncos mais curtos, enterrados no solo, deixando uma pequena abertura que servia como porta de entrada para seu interior. Mas a característica mais predominante da arquitetura pheliana estava nas estacas pontiagudas que partiam do solo, em diagonal, num ângulo de mais ou menos quarenta e cinco graus, saindo de junto da base da cabana, para fora, à volta de toda a construção, a intervalos de quarenta e cinco centímetros uma da outra. Essas estacas deveriam ter uns quinze ou vinte centímetros de diâmetro e uns três metros de comprimento, terminando em pontas muito agudas, talhadas na madeira, formando uma espécie de barreira contra a qual muito poucas criaturas, por menos inteligência que tivessem, se aventurariam investir. Chegando mais perto, os dois homens puderam ter uma visão maior da aldeia que ficava na face visível da colina, no topo da qual havia mais quatro cabanas semelhantes a que avistaram em primeiro lugar. No sopé da pequena elevação de terra, crescia a densa floresta, mas a colina, propriamente dita, era inteiramente despida de qualquer vegetação, de maneira que qualquer animal, por menor ou maior que fosse, não poderia aproximar-se das habitações dos phelianos sem que fosse imediatamente descoberto.

Não se via homem algum, nas imediações das cabanas, mas esse fato não pareceu estranho a Thoar. Qualquer criatura que ousasse subir pela colina seria imediatamente localizada pelos muitos olhos que espiavam constantemente pelas frestas dos troncos que formavam as paredes das casas, sob cujos tetos os phelianos deveriam passar a vida deitados ou agachados, uma vez que a altura das habitações não permitiria a um homem de estatura normal ficar de pé.

— Bem — disse Jason —, aqui estamos. O que vamos fazer agora?

— Você não quis usar suas armas para economizar as mortes que elas cospem com suas bocas azuladas — disse-lhe Thoar, olhando para os dois Colts que Jason trazia à cintura. — Mas com uma dessas armas poderemos encontrar Jana, se ela estiver aqui ou então vingarmos a sua ausência.

— Então, vamos em frente — disse Gridley. — Sacrificaria muito mais do que toda minha munição pela Flor Vermelha de Zoram.

E enquanto falava, descia da árvore em que estava, dirigindo-se à cabana mais próxima dos phelianos. Logo atrás dele vinha Thoar, e nenhum dos dois percebeu os olhares que os acompanhavam detrás das árvores que se agrupavam do lado da margem do rio, junto à colina — olhares cruéis que partiam de rostos cabeludos.

 

OS HORIBS

Avan, chefe de Clovi, havia colocado seus guerreiros à entrada da grande caverna, e quando Tarzan se aproximou para entrar também, como lhe fora ordenado, eles o fizeram parar.

— Onde você vai? — perguntou-lhe um dos guerreiros.

— Para dentro da grande caverna — respondeu o homem-macaco .

— Por quê? — indagou o mesmo guerreiro.

— Desejo dormir um pouco — respondeu-lhe Tarzan. — Já tenho entrado aqui outras vezes e nunca ninguém me impediu de fazê-lo.

— Avan deu ordens para que nenhum estranho entre ou saia desta caverna, antes da decisão da reunião do conselho dos guerreiros — exclamou o guarda.

— Deixe-o entrar — disse Avan, que naquele momento se aproximava. — Dei-lhe ordens para que entrasse, mas não deixem que ele saia.

Sem emitir um som, sem um gesto, sem um comentário, o homem-macaco penetrou na soturna caverna de Clovi e custou a acostumar a vista àquela semi-obscuridade, até poder tomar conhecimento das coisas que o cercavam.

A parte da caverna que era visível e que já lhe era familiar ocupava uma grande extensão. Podia ver as paredes dos lados e distinguir vagamente a parede do fundo. Mas a escuridão reinante não lhe permitia maiores detalhes, apenas levando-o a crer que a caverna se prolongasse para os lados das montanhas. Junto às paredes laterais, deitados sobre montes de palhas,

havia alguns guerreiros, mulheres e crianças a cochilar. Perto da entrada, onde havia um pouco mais de luz, viu um grupo que conversava aos sussurros, todos agachados, enquanto Tarzan se movimentava silenciosamente de um lado para outro, à procura da jovem de Zoram. E foi ela quem o avistou primeiro, atraindo sua atenção com um leve assovio.

— Você tem algum plano para fugirmos daqui? — perguntou ela, enquanto Tarzan se sentava à sua frente, sobre um pedaço de pele.

— Não — disse ele. — Tudo o que temos a fazer é aguardar o desenrolar dos acontecimentos e aproveitar qualquer oportunidade que possa surgir.

— Acho que você teria facilidade de fugir — disse Jana — pois eles não o tratam como prisioneiro. Você anda livremente entre eles e consentiram que conservasse suas armas.

— Agora sou prisioneiro também — explicou o homem macaco. — E Avan acabou de dar ordens aos seus guerreiros que guardam a caverna, para não me deixarem sair daqui até que a reunião do conselho decida a minha sorte.

— Então seu futuro não é dos mais promissores — disse a moça. — Quanto a mim, meu destino já está traçado. No entanto, não serei de Carb e nem de nenhum deles!

Conversavam muito baixo, com longos períodos de silêncio. Mas quando Jana desviou o assunto para o mundo do qual viera Jason Gridley, os períodos de silêncio eram bem menores, pois a Flor Vermelha de Zoram crivava Tarzan de perguntas, cujas respostas, em sua grande maioria, não estavam ao alcance de sua compreensão. A eletricidade, as máquinas a vapor e as inúmeras atividades de um mundo civilizado, que dependiam daqueles dois fatores, estavam muito acima de seu entendimento, bem como os corpos celestes, os instrumentos musicais ou simplesmente os livros. No entanto, do fundo daquela ignorância e daquele primitivismo absoluto, a inteligência de Jana fazia-se notar, não só quando falava sobre as coisas de seu próprio mundo, como também quando ouvia as palavras de Tarzan, sobre seu mundo civilizado, mostrando-se ela interessante e interessada.

De repente, um guerreiro que dormia perto deles abriu os olhos, sentou-se, espreguiçou-se e pôs-se de pé, olhando a sua volta. Em seguida, dirigindo-se aos outros que ainda dormiam, começou a chamá-los.

— Acordem! — exclamava ele. — Compareçam imediatamente à reunião do conselho dos guerreiros!

Ao dar com os olhos em Tarzan e em Jana, reconheceu logo o primeiro.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou-lhe. Tarzan pôs-se de pé e encarou o guerreiro cloviniano, mas não respondeu coisa alguma.

— Responda-me! — exclamou Carb. — Por que você está aqui?

— Você não é o chefe — disse-lhe Tarzan. — Vá fazer suas perguntas às mulheres e às crianças!

Carb espumava de ódio.

— Saia! — gritou-lhe o Rei das Selvas, apontando para a saída da cabana.

O guerreiro cloviniano hesitou por alguns instantes, depois continuou a acordar os guerreiros remanescentes.

— Agora você está mesmo perdido! — sussurrou-lhe Jana.

— Já estava antes — disse Tarzan — pois Carb já devia estar resolvido a sentenciar minha morte. Portanto, continuamos na mesma. Não estamos em piores condições do que já estávamos.

Em seguida permaneceram em silêncio, cada qual esperando pela sua sentença. Sabiam que, do lado de fora, os guerreiros deveriam estar agrupados na plataforma do rochedo, sentados em grande círculo, haveria muita conversa, muitas discussões, muita vangloria, antes que chegassem a alguma decisão definitiva, quase tudo isso totalmente desnecessário. No entanto, desde tempos imemoriais que isto acontecia, quando se tratava de homens reunidos para fazerem leis, sendo que nossos legisladores modernos levam uma grande vantagem, pois sabem mais palavras do que os primeiros homens-macaco.

Enquanto Tarzan e Jana esperavam, ansiosamente, pela decisão dos guerreiros, entrou um jovem pela caverna adentro, com uma tocha acesa, como se procurasse alguma coisa. De repente, descobrindo Tarzan, correu até ele. Era Ovan.

— O conselho dos guerreiros já chegou a uma decisão — disse ele. — Vão matar você e a moça ficou para Carb.

Tarzan pôs-se de pé de um salto.

— Venha! — exclamou, dirigindo-se a Jana. — Não haverá outro momento melhor para fugirmos. Atravessaremos a plataforma do rochedo e alcançaremos a trilha antes que o mais veloz dos guerreiros nos alcance. E se você é realmente meu amigo, Ovan, — continuou Tarzan — como me disse ser, não dirá nada a ninguém para nos facilitar a fuga.

— Sou seu amigo — disse Ovan — e é justamente por isso que estou aqui. No entanto, acho que você não conseguirá atravessar a plataforma do rochedo sem ser morto, pois há muitos guerreiros e estão todos de sobreaviso. Sabem que você está armado e já esperam que você tente fugir.

— Mas, não há outra saída! — exclamou o homem-macaco.

— Há outra saída, sim — respondeu o rapaz. — Vim aqui para mostrá-la a você.

— Por onde? — perguntou Jana.

— Sigam-me — disse Ovan.

E o jovem começou a andar na direção do fundo da caverna, seguido por Jana e por Tarzan.

à luz de seu archote, os dois fugitivos perceberam que as paredes laterais da caverna estreitavam-se, à medida que chegavam ao fundo da mesma, enquanto o chão era em aclive. Era-lhes, portanto, muito difícil andar naquela semi-obscuridade, em ascensão. De repente, Ovan parou e, erguendo o archote acima de sua cabeça, revelou-lhes uma reentrância na parede rochosa da caverna, formando um pequeno quarto, ao fundo do qual havia uma estreita fissura na pedra.

— Em seguida àquele buraco escuro — disse o rapaz — há um caminho que leva ao cume da montanha. Só o chefe da tribo e seu filho mais velho sabem da existência dessa saída secreta. Se meu pai souber que eu contei a vocês e que os trouxe aqui, terá que me matar. Mas ele nunca saberá disso, pois assim que vocês partirem, Avan me encontrará dormindo sobre um pedaço de pele, no meio da caverna. O caminho é íngreme e acidentado, mas é a única maneira de vocês escaparem. Agora, adeus. Essa é a minha retribuição ao fato de você ter salvo a minha vida, Tarzan.

Em seguida, abaixando o archote, nada mais disse, afastando-se para o centro da caverna e deixando Tarzan e Jana na mais completa escuridão.

O homem-macaco estendeu o braço e encontrou a mão de Jana. E cautelosamente guiou-a até à saída do fundo da rocha, prestando muita atenção em cada passo que dava, sempre com a mão livre estendida para a frente, até descobrir a entrada para o caminho da liberdade.

Andando sobre blocos de granito em decomposição, os dois fugitivos iam subindo pelo íngreme caminho, com a impressão de que não saía do lugar. Se o tempo pudesse ser medido por esforço muscular e desconforto físico, Tarzan e Jana teriam levado uma eternidade percorrendo aquela trilha tortuosa e escarpada, em trevas absolutas. Mas aos poucos o caminho começou a clarear e deduziram que já deveriam estar próximos da saída, no alto da montanha. E não demorou muito para se verem outra vez ao ar livre, à luz daquele sol inextinguível de Pellucidar.

— Agora — disse o homem-macaco — em que direção fica Zoram?

Jana apontou para um lado.

-— Mas não conseguiremos chegar lá — disse ela — se tomarmos a direção mais fácil. Os caminhos mais conhecidos estarão vigiados por Carb e seus guerreiros e não pense que eles nos deixarão escapar com tanta facilidade. E talvez, quando começarem a nos procurar dentro da caverna, “até descubram a fissura na rocha que nos permitiu chegar até aqui.

— Você está no seu mundo — respondeu-lhe Tarzan — e está muito mais familiarizada com ele do que eu. O que você sugere?

— Devemos descer esta montanha o mais depressa possível — disse a moça — para afastarmo-nos rapidamente de Clovi, pois é certo que nos irão procurar nas montanhas. Quando chegarmos às terras baixas, voltaremos, pelo sopé da montanha, até alcançarmos a parte que fica justamente embaixo de Zoram. E só então recomeçaremos nosso caminho pelas montanhas .

A descida foi lenta, pois nenhum dos dois fugitivos conhecia aquela parte da cordilheira. Muitas vezes eram obrigados a se desviar da trilha mais fácil, para evitar algum animal perigoso e com tudo isso comeram e dormiram muitas vezes, antes de alcançar as terras baixas. E embora Tarzan compreendesse que haviam levado muito tempo naquela descida, o que era o tempo para eles?

Enquanto desciam a montanha, Tarzan avistara uma grande planície que se estendia até se perder de vista. O último estágio da descida levou-os a um grande canyon e finalmente ao chegarem à sua embocadura, tinham à sua frente a referida planície que Tarzan divisara ao longe. Era uma grande extensão de terra quase sem árvores, com a aparência de um grande lago.

— Aqui é o Gyor Cors — disse Jana — e tomara que tenhamos sorte e não encontremos nenhum gyor.

— O que é um gyor? — quis saber o homem-macaco.

— É um animal terrível — disse-lhe a moça. — Eu pessoalmente, nunca vi nenhum, mas os guerreiros de Zoram que já tinham estado aqui, em Gyor Cors, já haviam tido ocasião de vê-los. O gyor é duas vezes maior do que o tandor e é mais comprido do que quatro homens altos, deitados em fila, no chão. Tem um bico recurvado e três grandes chifres, dois sobre os olhos e um sobre o focinho. A parte de trás da cabeça é recoberta por uma substância óssea, por sua vez recoberta por uma pele mais dura, a fim de protegê-lo contra os chifres dos outros animais, bem como contra as lanças dos homens. Os gyors não comem carne, mas são irritadiços e impulsivos, atacando qualquer criatura que vejam e mantendo o Gyor Cors exclusivamente para eles.

— Então, seus domínios são incomensuráveis — comentou Tarzan, contemplando aquela vastidão de terreno, recoberto de pastagem, descrevendo um pequeno aclive que se perdia nas distâncias. — E devem ter poucos inimigos interessados em disputar suas terras.

— Só têm que lutar contra os horibs — explicou Jana — que os caçam para comer sua carne.

— Quem são os horibs? — indagou o homem-macaco.

— O povo-serpente — disse a moça, estremecendo e abaixando a voz.

— Povo-serpente — repetiu Tarzan. — Quem é esta gente?

— É melhor nem falarmos nisso. São terríveis! — exclamou Jana. — São piores do que gyors. Têm o sangue frio e dizem que não possuem coração, pois não têm nenhuma das características que os homens admiram, nada sabendo a respeito de amizade, simpatia ou amor.

Ao longo da parte mais funda do canyon, uma cachoeira que partia das montanhas havia aberto uma garganta profunda, cujas paredes eram tão escarpadas que resolveram seguir pela trilha da água até à planície, a fim de descobrirem uma travessia mais fácil, uma vez que o pequeno riacho ficava justamente entre eles e as terras de Zoram.

Já haviam percorrido mais ou menos um quilômetro, abaixo da embocadura do canyon e à volta deles havia agora alguns barrancos, de terras corrediças, que, aos poucos, se fundiam às terras da planície. Havia grupos esparsos de árvores, sobre um chão de capim rasteiro, o que fazia do Gyor Cors um verdadeiro paraíso para os grandes dinossauros herbívoros.

Mas, apesar do ambiente ser de calma e tranqüilidade, Tarzan sentia-se apreensivo com aquela aparente ausência de vida animal. E já se familiarizara de tal maneira com a exuberância de vida animal, em Pellucidar, que não poderia crer naquele clima de falso marasmo.

Aos poucos, o homem-macaco começou a perceber, pelo faro, a presença de animais desconhecidos ao seu apurado olfato, aumentando-lhe a sensação de insegurança. Às vezes tinha a impressão de estar sentindo o cheiro de Histah, a serpente, mas tratava-se apenas de uma impressão. Estava ansioso por encontrar logo uma passagem para as montanhas que deveriam escalar, até encontrar Zoram, pois os animais que encontrassem na subida já lhes eram familiares e tanto Tarzan como Jana sabiam como fazer para livrar-se deles.

No entanto, as margens da pequena cachoeira que vinha das montanhas e atravessava o canyon desciam em barrancos íngremes, sendo impossível passar de um lado para o outro. E a impressão de terras planas que dava o grande Gyor Cors, a distância, era decepcionante, pois a região era cortada por ravinas, sulcos profundos formados por torrentes de água, barrancos, depressões do terreno, algumas delas de grande profundidade e extensão.

Chegaram a um ponto, por exemplo, em que uma ravina lateral, que ia dar no leito do pequeno rio que formava a garganta intransponível, obrigou-os a um grande desvio em direção oposta às montanhas de Zoram. E já haviam caminhado mais de um quilômetro nesta direção quando descobriram uma travessia. Mas quando chegaram do lado oposto, a moça puxou Tarzan pelo braço e apontou para a mesma coisa que o homem-macaco também acabara de ver.

— Um gyor! — exclamou ela, aos sussurros, a fim de não chamar a atenção do animal. — Vamos nos abaixar e nos esconder atrás dessa moita mais alta de capim!

— Ele ainda não nos viu — disse-lhe o homem-macaco — e pode ser que não venha nesta direção.

Não haveria descrição, por mais fiel que fosse, que pudesse dar uma idéia precisa das gigantescas proporções do animal que se aproximava. À primeira vista, Tarzan achou-o muito parecido com os. grifos de Paul-ul-don, pois tinha dois grandes chifres sobre os olhos, um chifre sobre as narinas, um bico recurvado e uma espécie de crista transversal da mesma consistência dos chifres. Sua coloração também lembrava a dos grifos, talvez um pouco atenuada, sendo que a cor predominante era um cinza-ardósia, tendo a barriga e a cara ligeiramente amareladas. O halo azul, à volta dos olhos, era menos marcado, e o vermelho da crista e das protuberâncias ósseas, ao longo da espinha, menos brilhante do que nos grifos. O fato de o gyor ser um herbívoro, como lhe havia informado Jana, dava-lhe a certeza de estar diante de uma gigantesco triceratopo que juntamente com seus companheiros dinossauros haviam imperado no período jurássico da face exterior da terra.

Jana havia se estendido no chão, escondendo-se o mais possível sob o capim e pedia a Tarzan que fizesse o mesmo. Mas o homem-macaco preferia manter-se agachado, o mais abaixado possível, porém sem tirar os olhos do monstruoso animal.

— Acho que ele já deve ter sentido nosso cheiro — disse ele. — Está com a cabeça erguida, olhando à sua volta. Agora está trotando em círculo e me parece muito ágil, em relação ao tamanho de seu corpanzil. Bem, acho que ele farejou algo, mas não foi o nosso cheiro que chegou às suas narinas, pois o vento está vindo de outra direção que não da nossa. Sinto que há alguma coisa se aproximando pela nossa esquerda, mas ainda a grande distância daqui. Posso apenas afirmar que ouço o ruído de algo em movimento e o gyor também já percebeu a mesma coisa, pois olha agora em direção de onde partem os ruídos. E seja o que for, está se aproximando com muita rapidez, pois o volume dos ruídos aumenta muito depressa. E trata-se de mais de uma criatura, talvez várias. Agora o gyor está se deslocando para frente, mas passará a grande distância de nós, pela esquerda. E sejam quais forem os animais que se estejam aproximando, estão vindo do fundo da ravina que atravessamos. Passará exatamente por trás de nós.

Jana continuava imóvel, enterrada no capim, sem sequer erguer a cabeça para não chamar a atenção do gyor.

— Talvez fosse melhor que tentássemos arrastar-nos para mais longe, enquanto ainda não fomos vistos — sugeriu ela.

— Estão saindo da ravina — sussurrou-lhe Tarzan. — Estão chegando à parte mais elevada e trata-se de um grupo de homens. Mas, em nome de Deus, que animais são aqueles «obre os quais vêm montados?

Jana ergueu os olhos até o nível do capim e olhou na direção que Tarzan apontava. Estremeceu.

— Não são homens! — exclamou, aterrada. — São os horibs, e os animais que eles montam são os gorobors! Se nos virem aqui, estamos perdidos, pois ninguém no mundo seria capaz de escapar aos gorobors. Não há animal mais veloz do que eles, aqui em Pellucidar. Deite-se e fique quieto. Nossa única chance é não sermos descobertos por eles!

À vista dos horibs, o gigantesco gyor emitiu um terrível bramido que fez estremecer o solo e, abaixando a cabeça, avançou furioso na direção dos intrusos. Havia bem uns cinqüenta, todos montados sobre os horripilantes Gorobors, armados com longas lanças — armas totalmente inadequadas para enfrentar um gyor enfurecido, pensou Tarzan. De repente, tudo levou a crer que os horibs não pretendiam esperar pelo ataque do gyor, pois, dando uma rápida reviravolta para a direita, formaram uma única fileira, atrás do que parecia ser o chefe e assim, pela primeira vez em toda a sua vida, o homem-macaco pôde assistir a uma exibição realmente extraordinária da velocidade dos gigantescos lagartos sobre os quais vinham montados os horibs, velocidade comparável apenas à de um pequeno lagarto dos desertos, famoso por sua ligeireza.

Usando a mesma tática dos índios do Oeste norte-americano, os horibs tentavam cercar sua presa. O enorme gyor, soltando urros e grunhidos, foi tomado de verdadeiro acesso de fúria, atacando primeiro numa direção, depois em outra, mas os gorobors eram tão ágeis e tão ligeiros em se esquivar dos ataques que o gigantesco animal não conseguia atingi-los. Estrebuchando e espumando de ódio, o gyor começou a ser encurralado por seus inimigos que apertavam o círculo à sua volta, numa velocidade estonteante. Enquanto isso, Tarzan observava atentamente a cena, sem saber como aquelas criaturas dariam cabo daquelas dez toneladas de um monstro enfurecido, que se virava de um lado para outro, dentro do círculo.

De repente, um dos horibs aproximou-se um pouco mais do gyor, mas em tal velocidade que montaria e cavaleiro pareciam apenas uma mancha, aos olhos de Tarzan. O grande gyor deu uma reviravolta, para atacá-lo de frente, abaixando ameaçadoramente aquela cabeça de três chifres, quando dois outros horibs o atacaram pela retaguarda. Quando os três voltaram à sua posição inicial no círculo, havia duas lanças cravadas no corpanzil da fera pré-histórica. Foi então que a fúria do animal ferido ultrapassou todas as suas demonstrações anteriores. Seus bramidos transformaram-se em verdadeiros trovões e novamente abaixou a cabeça para novo ataque.

Dessa vez, não tentou várias direções, como vinha fazendo; seguiu numa linha reta. talvez na esperança de romper o círculo dos horibs. E naquela fração de segundo, Tarzan percebeu que ele e Jana estavam colocados exatamente no caminho traçado pela besta enfurecida. Se os horibs não conseguissem fazê-lo mudar de rota, eles dois estariam irremediavelmente perdidos.

Uma dúzia dos homens-serpente avançou sobre o gyor, pela retaguarda, e mais uma dúzia de lanças ficou cravada em seu corpanzil, fazendo-o voltar-se uma vez mais, num esforço supremo de vingar-se daqueles que por último o haviam ferido.

No entanto, aquela corrida desabalada do gyor o tinha levado a uma distância de uns quinze metros do local onde se encontravam Tarzan e Jana, fazendo-os passar por maus momentos de expectativa. E o súbito retrocesso do monstro não lhes deu grande alívio, pois deslocara o círculo dos horibs para mais perto deles.

Por alguns segundos, o gyor manteve-se parado, arque-jante, cabeça baixa, sangrando por todos os ferimentos das lanças, como que juntando forças para um novo ataque. Mas naquele momento, um dos horibs foi se aproximando lentamente em direção ao animal, bem de frente para ele, enquanto dois outros, vindo em diagonal, pela retaguarda, um de cada lado, porém sem serem vistos pela presa, por causa de sua crista óssea transversal que lhe dava a volta ao pescoço, passando por trás dos chifres e dos olhos.

E os três horibs se aproximaram simultaneamente da fera, sendo que os que vinham pela retaguarda, numa velocidade alucinante, os corpos projetados para a frente, quase perdendo a montaria, cravaram mais duas lanças no gigantesco animal. Chegaram tão perto que os animais que montavam esbarraram no corpanzil do gyor, ao fazerem a volta para retomar o ataque.

Por alguns instantes o horripilante animal pré-histórico ainda tentou perseguir seus atacantes, mas cambaleava sobre as patas, acabando por cair pesadamente ao solo, rolando para um lado. As últimas lanças desfechadas pelos horibs lhe haviam atingido mortalmente o coração.

Tarzan sentiu-se aliviado, por ver terminada a luta e intimamente já se congratulava por ter ele e sua companheira escapado à fúria do animal, quando os horibs deram uma meia volta sobre suas montarias e desabalaram numa corrida vertiginosa justamente na direção onde estavam o homem-macaco e a Flor Vermelha de Zoram. E mais uma vez formaram o círculo, cujo centro, agora, eram aquelas duas desprotegidas criaturas humanas. Certamente os horibs já os teriam visto há muito tempo, ignorando-os apenas enquanto se livraram do gyof.

— Teremos de lutar — disse Tarzan. E como não fosse mais possível manter-se escondido, pôs-se de pé.

— Sim — respondeu-lhe Jana, levantando-se ao lado do homem-macaco. — Teremos que lutar, mas nosso fim será igual ao do gyor, pois eles são cinqüenta e nós somos apenas dois.

Tarzan nada disse. Apenas colocou uma flecha em seu arco. Os horibs aproximavam-se lentamente, em círculo, como que observando as novas presas. Finalmente, chegaram mais perto e pararam, encarando Tarzan e Jana.

Agora, pela primeira vez, Tarzan podia observar detalhadamente aqueles homens-serpente, bem como os animais que montavam. A conformação física dos horibs era semelhante à do homem apenas no tocante ao tronco e às extremidades. Suas mãos de cinco dedos e seus pés de três dedos eram iguais aos dos répteis. A cabeça e a cara eram de serpente. As orelhas pontudas e dois chifres pequenos davam-lhes um aspecto grotesco e ao mesmo tempo hediondo. Os braços eram mais bem proporcionados do que as pernas, que eram quase sem feitio. Tinham o corpo todo recoberto por escamas, sendo que as que recobriam as mãos, os pés e o rosto eram diminutas, dando a impressão de uma pele lisa, ainda mais que cor dessas mencionadas partes era bem mais clara do que a do restante do corpo, aproximando-se de uma brancura acinzentada, como a cor da barriga das serpentes. Como vestimenta, usavam uma espécie de avental, feito de uma pele espessa que poderia ser de algum réptil gigantesco. Servia-lhes como uma armadura, desde que sua única finalidade, como Tarzan depois ficou sabendo, era a de proteger a barriga flácida e esbranquiçada dos horibs. No peito do avental, havia um estranho enfeite: uma cruz de oito pontas, com um círculo no meio. Na cintura, usavam um cinto de couro, de onde pendia a bainha de uma faca de osso. Nos pulsos e nos cotovelos usavam pulseiras. Era este o traje dos homens-serpente. Além da faca, cada horib carregava uma lança com ponta de osso. Todos eles montavam seus estranhos animais da mesma maneira, isto é, prendendo os dedos dos pés aos cotovelos dos gorobors, répteis anomodontes do período triássico, conhecidos, entre os paleontologistas da face externa da terra, como pareiasuris. Alguns deveriam medir três metros de comprimento, sobre pernas muito fortes e flexionadas, como se estivessem agachados.

Enquanto Tarzan se detinha, fascinado, em observar aquelas exóticas criaturas de Pellucidar, cujo “sangue era frio e não possuíam coração”, segundo as explicações de Jana, compreendeu que talvez estivesse diante de um dos elos mais excêntricos da escala evolutiva do gênero humano ou quem sabe diante de uma réplica de alguma criatura que já tivesse existido na crosta externa da terra, um elo perdido na evolução dos répteis. E depois de alguma reflexão, concluiu que o fato de um homem-réptil ter evoluído de um réptil não era assim tão extraordinário como, por exemplo, as aves ou os mamíferos terem também evoluído de répteis, como a ciência procurava agora provar.

Mas todos esses pensamentos passaram pela mente de Tarzan numa fração de tempo muito pequena, quase que ao mesmo tempo que os horibs haviam parado diante dele, observando, também, aquelas duas criaturas humanas com seus olhos inexpressivos e sem pálpebras. E se o homem-macaco ficara perplexo e estupefato com a estranha aparência daqueles homens-serpente, sua emoção foi muito maior quando um deles lhe dirigiu a palavra, falando na língua dos gilaks de Pellucidar.

— Vocês não poderão fugir — disse-lhe um horib. — Entreguem as armas.

ATRAVESSANDO A FLORESTA ESCURA

Jason Gridley correu velozmente, na direção da colina onde estava situada a aldeia dos phelianos, onde esperava encontrar a Flor Vermelha de Zoram e a seu lado ia Thoar, armado de lança e facão, preparado para libertar ou vingar sua irmã, enquanto, por trás deles, escondidos atrás dos arbustos que cresciam sob as grandes árvores, ao longo das margens do rio, vários homens barbados e morenos observavam seus movimentos.

Para grande surpresa de Thoar, não surgiu nenhum guerreiro do interior da cabana para a qual se dirigiam e nem se ouvia o menor ruído de dentro dela.

— Cuidado — aconselhou Thoar a seu companheiro americano. — Pode ser que haja alguma armadilha para nós.

Obedecendo ao conselho de Thoar, Jason Gridley passou a andar com mais cautela. E chegaram, os dois, até a entrada da cabana sem que nada se opusesse à aproximação daquelas duas criaturas humanas.

Jason parou e olhou através da abertura que servia de porta. E pé ante pé, acompanhado de perto por Thoar, penetrou no interior da exótica construção de madeira.

— Não há ninguém em casa — pilheriou Gridley. — A cabana está vazia.

— Então vamos ver se temos mais sorte com a próxima — respondeu-lhe Thoar.

Mas também não havia ninguém na segunda casa onde entraram, nem na terceira e nem em nenhuma das cabanas da aldeia pheliana.

— Estão todos fora — comentou Jason.

— Sim — respondeu-lhe Thoar — mas eles voltarão. Acho melhor irmos para a margem do rio e permanecermos escondidos entre as árvores, esperando pela volta deles.

Inconscientes do perigo que corriam, Jason e Thoar desceram a colina e embrenharam-se por entre os arbustos que cresciam exuberantes sob as gigantescas árvores. Seguiram por uma trilha, onde havia marcas das sandálias usadas pelos phelianos, e mal a vegetação se fechou sobre eles, surgiram uns doze homens que os atiraram ao chão. E em poucos segundos os dois foram desarmados e tiveram os pulsos amarrados atrás das costas. Em seguida, foram postos de pé com brutalidade e os olhos de Gridley quase lhe saltaram das órbitas quando conseguiu finalmente ver o aspecto de seus captores.

— Com mil diabos! — exclamou ele. — Aprendi a não me assustar mais com os rinocerontes, mamutes, trachodontes, pterodátilos e dinossauros de Pellucidar, mas nunca esperei encontrar aqui o Capitão Kidd, Lafitte e Sir Henry Morgan!

Na emoção que lhe causara a aparência dos phelianos, Jason voltara a se exprimir em seu próprio idioma, no que, logicamente, não foi compreendido pelos demais.

— Que língua é esta que você fala? — indagou-lhe um dos seus captores. — Quem é você e de que lugar você vem?

— Isso é inglês dos Estados Unidos da América do Norte — respondeu-lhe Gridley. — Mas que diabos são vocês e por que motivo nos prenderam? São esses os phelianos? — indagou, dirigindo-se a Thoar.

— Não — respondeu-lhe o companheiro. — Esses homens são completamente estranhos para mim e nunca os havia visto antes.

— Já sabemos quem é você — disse um dos homens barbados. — Sabemos de onde você vem e não adianta querer enganar-nos.

— Pois bem — disse Gridley — se vocês sabem quem sou eu e de onde venho, soltem-me, pois hão de saber também que não venho como inimigo e que meu mundo não está em guerra com o seu.

— Seu país está sempre em guerra com Korsar — continuou o captor. Você é um sariano e sei disso pelas armas que você usa. No momento que as vi, compreendi logo que você vinha de Sari. Cid ficará muito contente com a sua chegada, bem como Bulf. Talvez — continuou o desconhecido, dirigindo-se a um dos companheiros — ele seja o próprio Tanar. Você chegou a conhecê-lo, quando esteve prisioneiro em Korsar?

— Não — respondeu o outro. — Eu estava fora, numa missão, quando Tanar ficou prisioneiro em Korsar. Mas se é ele, seremos muito bem recompensados.

— É melhor voltarmos para o barco — disse o primeiro. .— Não adianta ficarmos aqui à espera desses nativos de pés chatos, com uma probabilidade, em mil, de encontrarmos uma bela mulher entre eles.

— Disseram-nos, do outro lado do rio, que esse povo às vezes rouba mulheres de Zoram. Quem sabe vale a pena esperar um pouco? — disse o segundo.

— Nada disso — falou o primeiro. — Eu também tinha muita vontade de ver essas famosas mulheres de Zoram, das quais sempre ouvi falar, durante toda a minha vida, mas esses nativos não voltarão enquanto estivermos pelas proximidades. Já estamos fora da embarcação há muito tempo e como conheço bastante o nosso capitão, garanto que ele já deve estar com vontade de esganar alguns de nós, pela nossa demora.

Amarrada a uma árvore e guardada por mais cinco Korsars, lá estava uma pequena embarcação, à beira do rio, cujo formato fazia Jason lembrar-se de suas leituras de criança. E também aqueles homens, de longas barbas, com suas bizarras vestimentas, suas grandes pistolas, seus cutelos e seus arcabuzes antigos, também lhe traziam recordações dos livros de sua infância.

Os dois prisioneiros foram logo levados para o interior do barco. Depois entraram os Korsars e finalmente a embarcação se pôs em movimento, apesar daquela parte do rio ser estreita e de muita correnteza.

E, à medida que navegavam rio abaixo, Jason pôs-se a observar seus companheiros de bordo. Pareciam ter saído das páginas de uma história de piratas. Alguns usavam brincos, outros traziam argolas de ouro presas ao nariz, com lenços coloridos passados na testa, cinturões largos à volta da cintura

constituindo um quadro alegre e pitoresco, se fosse visto a distância, pois de perto tinham um aspecto sujo e desagradável.

Embora já tivesse tido algumas informações sobre os Korsars, através da mensagem enviada por Tanar de Pellucidar ao seu amigo Perry, pelo rádio, Jason Gridley nunca poderia imaginar que teria, algum dia, diante de si, os personagens legendários das aventuras de piratas, em carne e osso, praguejando e divertindo-se com gracejos de gosto duvidoso, sujos e malcheirosos.

E quanto mais Jason Gridley examinava aqueles homens, com suas exóticas vestimentas e suas armas antigas, mais se convencia de que eram, realmente, descendentes de habitantes da face externa da terra. Só assim compreendeu a insistência e a convicção de David Innes, ao afirmar que havia uma abertura na calota polar, ligando Pellucidar ao mundo de onde ele próprio vinha.

E enquanto Thoar maldizia a sorte de haver sido capturado por aqueles desconhecidos, Jason Gridley achava que o destino estava a seu favor, pois diante dos comentários e das conversas que ouvira, durante sua captura e agora durante a viagem, estava bem claro que eles seriam levados até Korsar, a cidade onde David Innes havia sido confinado. Afinal de contas, o objetivo de sua expedição era justamente libertar Innes, o Imperador de Pellucidar.

No entanto, o fato de chegarem a Korsar como prisioneiros, e somente os dois, não lhes seria em nada favorável. Em todo o caso, não seria pior do que continuar a vagar por aquelas regiões cheias de perigos e de imprevistos, sem a menor esperança de reencontrar os companheiros de expedição ou de ser localizado por eles. Agora, pelo menos, estava a caminho do lugar que todos desejavam encontrar e a probabilidade de todos se encontrarem tornava-se um pouco menos remota.

O rio pelo qual navegavam atravessou florestas, lagoas de tão grandes dimensões que poderiam ser elevadas à categoria de lagos, e por toda a parte a vida animal se fazia sentir em toda a sua pujança. Dentro d’água ou em suas margens, viam-se inúmeras espécies de répteis, como se Jason Gridley estivesse revivendo o período mesozóico, de milênios de anos atrás, na face externa da terra. E havia alguns répteis tão gigantescos e tão ferozes que a descida do rio tornou-se uma luta ininterrupta, sendo que muitas vezes os Korsars eram obrigados a disparar seus arcabuzes para salvar a própria pele. O estampido das armas assustava os animais, afastando-os da embarcação, mas, às vezes, surgia um mais beligerante, que insistia no ataque, e acabava por ser morto. Não estava de todo afastada a idéia de surgir, de repente, algum sáurio mais feroz que, com mais alguns outros, pudesse virar o barco e devorar todos os seus passageiros.

Jason e Thoar foram levados para o meio da pequena embarcação, onde se mantinham agachados, com os pulsos ainda amarrados atrás das costas. Junto a Gridley estava um Korsar que os outros chamavam pelo nome de Lajo e havia qualquer coisa naquele homem que atraía a atenção do americano. Talvez fosse sua maneira mais discreta de falar, ou talvez seu procedimento menos selvagem e menos grosseiro do que o dos demais. O fato era que Lajo não participava dos gracejos e das brincadeiras pesadas de seus companheiros, limitando-se a vigiar os prisioneiros, sem ofendê-los com deboches e palavras inúteis. Estava sempre atento aos ataques dos grandes répteis, sempre a postos para defender a embarcação.

Tudo levava a crer que não houvesse um comandante ou um líder entre a tripulação do barco. Tomavam decisões em conjunto, depois de discutirem e debaterem os assuntos. Mesmo assim, Jason Gridley começou a reparar que todos ouviam atentamente quando Lajo dizia alguma coisa, sempre objetivamente, sempre demonstrando inteligência em suas palavras. E levado pelas suas conclusões, Jason elegeu-o o Korsar mais acessível para fazer um pedido. E na primeira oportunidade, puxou conversa com ele.

— Quem é o comandante aqui? — perguntou-lhe o americano.

— Ninguém — respondeu-lhe Lajo. — Nosso comandante foi morto na vinda para cá. Por que você quer saber?

— Para fazer um pedido — disse Jason. — Queria que nos desamarrassem os pulsos. Sabemos que não podemos fugir. Estamos desarmados e em minoria, portanto não poderíamos fazer mal ou atacar nenhum de vocês. Assim, no caso de o barco ser atacado por algum réptil monstruoso e ser destruído ou virado para dentro d’água, teríamos mais facilidade em nos defender, tendo as mãos e os braços livres.

Lajo puxou seu facão.

— O que você vai fazer? — perguntou-lhe um dos outros Korsars que ouvira toda a conversa.

— Vou cortar as amarras que os prendem — respondeu Lajo. — Não ganhamos nada em conservá-los presos.

— Quem é você para resolver soltá-los? — continuou o outro, de maneira provocante.

— E quem é você para achar que não devem ser soltos? — disse Lajo, dirigindo-se aos prisioneiros para livrar-lhes os pulsos.

— Vou-lhe mostrar quem sou eu! — exclamou o outro, puxando uma faca e avançando em direção a Lajo.

Não houve um minuto de hesitação. Lajo atirou-se contra seu adversário como se fosse uma pantera, ferindo o antebraço na faca que o outro segurava, ao mesmo tempo que cravava a lâmina afiada de seu facão no peito do Korsar que o provocara. Emitindo um único e lancinante grito de dor, o homem caiu, já sem vida. Lajo retirou sua arma do corpo do adversário, limpou-a na própria camisa do morto e, em seguida, com toda a calma, cortou as amarras dos pulsos dos dois prisioneiros. Os outros Korsars limitaram-se a assistir à cena, aparentemente insensíveis à morte do companheiro, dizendo uma ou outra piada às custas do morto e dando vivas de aprovação ao ato de Lajo, que, imperturbável, passou a desarmar sua vítima, guardando as armas fora do alcance dos prisioneiros.

— Joguem o corpo no rio — ordenou ele a Jason e Thoar.

— Esperem — exclamou um outro Korsar. — Quero as botas dele.

— O cinturão é meu — disse um outro. E de repente, uma dezena deles, debruçados sobre o corpo inerte do companheiro morto, disputavam seus pertences como um bando de cães disputando um osso.

Lajo preferiu não se. imiscuir na disputa, e até o pano velho que cobria a nudez do cadáver foi arrancado de cima de seu corpo e dividido entre a tripulação, simplesmente num ato de auto-afirmação dos mais fortes. Em seguida, Jason e Thoar atiraram o morto nas águas do rio, sendo o mesmo rapidamente devorado pelos vorazes répteis que rondavam permanentemente a embarcação.

A viagem para um local desconhecido parecia interminável para Jason Gridley. Alimentaram-se e dormiram várias vezes e o rio continuava em seu curso sem fim. Até a luxuriante vegetação que recobria os barrancos e a beleza das flores que desabrochavam nas margens foram perdendo o encanto, transformando-se numa paisagem monótona, quase odiosa aos olhos dos prisioneiros.

Jason imaginava o esforço que deveria ter exigido a subida do rio por aquela embarcação, tendo a tripulação que remar contra a correnteza, enfrentando os ataques dos gigantescos répteis que não cessavam de agredi-los.

Em dado momento, a paisagem se modificou por completo. O rio se alargava e as terras pantanosas se transformaram em pequenas elevações. As florestas, que ainda acompanhavam as margens, eram menos densas, e a vegetação bem mais rasteira, o que significava tratar-se de uma região de pastagem para os animais herbívoros. E logo em seguida Jason teve provas disso, ao avistar veados vermelhos, bisões, touros e muitas outras espécies de herbívoros.

À margem direita do rio, a floresta era aberta, ensolarada, pontilhada de animais praticamente inofensivos, o que lhe dava um aspecto de vida e de tranqüilidade. No entanto, à margem esquerda, a floresta era escura e lúgubre. Os galhos das árvores eram tão frondosos e tão colossais que impediam a passagem da luz do sol. Os espaços entre um tronco e outro eram tão pequenos e tão escuros que pareciam formar longos e sinuosos corredores, sombrios e aterradores.

Nessa parte do rio havia muito poucos répteis. No entanto, os Korsars demonstravam grande nervosismo e forte tensão, como se pressentissem algum perigo na travessia daquele trecho. Durante toda a descida, haviam-se aproveitado da correnteza para impulsionar a embarcação, usando apenas um único remo, em feitio de crânio, para mantê-la em linha reta. Agora, chamando Thoar e Jason para ajudar a remar, vários Korsars esforçavam-se para aumentar a velocidade do barco. Arcabuzes carregados ficavam ao lado dos remadores, enquanto na proa e na popa havia permanentemente homens armados, de vigia. Quase não olhavam para a margem direita, mas concentravam seus olhares em direção à escura floresta da margem esquerda. Jason gostaria de saber o que é que eles tanto temiam, mas não teve oportunidade de perguntar, pois não lhe era permitido abandonar os remos nem por um instante de descanso, enquanto os Korsars se revezavam entre os postos de vigia e de remadores.

Juntando a força da correnteza com a força dos remos, a embarcação desenvolvia uma velocidade bem razoável e a viagem tornara-se bem mais rápida. Jason não sabia se estavam próximos de Korsar e se a região perigosa ainda seria muito longa. Não sabia, também, que tipo de ameaça representava aquela floresta escura, que tanto perturbava os Korsars.

E quando os dois prisioneiros já estavam chegando ao ponto máximo de exaustão, Lajo notou as condições em que se encontravam e liberou-os dos remos, para um período de descanso. Seria impossível a Jason calcular por quanto tempo haviam remado, ainda mais que não haviam comido nem dormido durante todo aquele período. No entanto, muito tempo deveria ter decorrido diante da distância percorrida, que o americano calculava meus cento e sessenta quilômetros. E famintos e exaustos que estavam, Thoar e Jason, mal largaram os remos, atiraram-se no fundo do barco para um mais do que merecido descanso. No entanto, mal haviam-se deitado quando um grito partiu do vigia da proa.

— Lá estão eles! — exclamava o Korsar, ao mesmo tempo que a excitação e o movimento dentro da embarcação era contagiante.

— Continuem remando! — ordenou Lajo. — Nossa única chance é passarmos velozmente por eles!

Embora exauridos em suas forças e dominados pela fadiga o suficiente para não se interessarem por coisa alguma, nem mesmo pela aproximação de um perigo de morte, Jason e Thoar conseguiram ainda se erguer do fundo do barco, permanecendo sentados, com os olhos justamente na altura das beiradas do barco. A princípio não conseguiam distinguir ou classificar a horda de criaturas que nadavam rio acima, com a evidente intenção de interceptar a passagem da embarcação. De repente perceberam que se tratavam de criaturas parecidas com o homem, montadas sobre gigantescos répteis. Dispunham de grandes lanças e os animais que montavam subiam o rio numa velocidade espantosa.

Quando o barco se aproximou um pouco mais, Jason verificou que não eram homens e sim exóticas e grotescas criaturas, com formas de homens, mas com todas as características de répteis; tinham cabeça de lagarto, orelhas pontudas e chifres curtos.

— Meu Deus! — exclamou Gridley. — Quem são eles?

— São os horibs — disse-lhe Thoar, estremecendo de pavor. — Seria melhor morrer do que cair nas garras deles!

Levada pela correnteza e acelerada pelos movimentos dos remos, a embarcação, com todo o seu peso, descia velozmente rio abaixo, em direção àquela estranha horda de monstros E quando já atingia o primeiro horib, que deveria ser o chefe, ouviu-se o estampido de um arcabuz que partia da proa. Rompendo o silêncio ameaçador que precedeu aquele momento, o tiro fez com que a horda de horibs se dividisse em duas facções, que, pouco depois, corriam ao lado da embarcação. As armas de fogo continuavam a detonar, espalhando fumaça e balas feitas de pequenos pedaços de ferro e de pedregulho, mas para cada horib que caía, havia sempre dois para substituí-lo.

Aparentemente sem esforço, os animais que os horibs montavam mantinham-se na mesma velocidade do barco e agora bastava que os homens-serpente estendessem o braço para que alcançassem os adversários com suas lanças pontiagudas. E percebendo o risco que corriam, os Korsars que remavam foram todos para o fundo do barco, erguendo-se apenas no momento de dispararem seus arcabuzes, um pouco acima da amurada, para logo voltarem a se agachar, enquanto recarregavam as armas. No entanto, essa tática não deu resultado por muito tempo, pois os horibs aproximaram-se ainda mais da embarcação e agora poderiam ferir os adversários mesmo que estivessem no fundo, sob a proteção da amurada do barco. E avançavam destemidamente, bem na direção dos arcabuzes, alguns com diversos ferimentos pelo corpo todo, outros sem uma das mãos ou sem um dos braços, lutando assim mesmo, inconscientemente corajosos. Muitos já haviam tombado decapitados, no entanto os companheiros continuavam a combater.

De repente, um dos horibs conseguiu prender o laço de uma longa correia de couro num gancho de ferro, preso à amurada da embarcação, e então vários deles, dirigindo os animais que montavam para a margem do rio, começaram a puxar o barco pela corda, até fazê-lo parar sobre o terreno arenoso que margeava as águas.

Completamente exausto e sem armas para se defenderem Thoar e Jason Gridley permaneciam no fundo da embarcação, como que à espera do que o destino lhes reservaria. Estavam praticamente soterrados sob os cadáveres dos Korsars abatidos e boiavam numa enorme poça de sangue. Ainda podiam ouvir os arcabuzes disparando alguns tiros esparsos, em meio a gritos e gemidos, e de repente, suplantando todos esses ruídos, ouviram um silvo estridente que era o grito de guerra dos horibs. Eles haviam amarrado a correia que haviam prendido no barco numa das árvores da margem do rio. Por três vezes os Korsars conseguiram cortá-la e por três vezes os horibs conseguiram amarrá-lo novamente.

E quando, finalmente, conseguiram saltar para dentro da embarcação, só havia uma meia dúzia de Korsars vivos. Os arcabuzes ainda foram disparados, mas em pouco tempo os terríveis homens-serpente engatinhavam sobre o monturo de cadáveres, à procura dos sobreviventes.

Quando terminou a luta, havia apenas três Korsars com vida, sendo que Lajo era um deles. Os horibs ataram-lhes os pulsos e levaram-nos para terra firme. Em seguida, começaram a retirar os corpos de dentro do barco, matando os mais feridos com seus facões. E encontrando, finalmente, Jason e Thoar, sem ferimento algum, levaram-nos também para a margem do rio, para junto dos outros três Korsars sobreviventes, não sem antes atarem-lhes também os pulsos.

Terminada a batalha, os prisioneiros em lugar seguro e devidamente amarrados, os horibs caíram sobre os cadáveres dos adversários, devorando-os sofregamente até o último pedaço de carne. Enquanto isso, Jason Thoar e os outros três prisioneiros assistiam àquelas cenas repugnantes, horrorizados com o selvagem canibalismo daquelas estranhas criaturas. Até mesmo os Korsars, cruéis e frios como eram, estremeciam diante do que viam.

— Por que você acha que eles nos pouparam? — indagou Jason, dirigindo-se a Lajo.

— Não sei — respondeu o Korsar.

— Com certeza para alimentar suas mulheres e seus filhos com nossa carne — disse Thoar. — Dizem que eles engordam os prisioneiros humanos para depois comê-los.

— Você sabe quem são eles? — indagou Lajo a Thoar. — Você já os conhecia?

— Sim — respondeu Thoar — sei quem são eles, mas estes são os primeiros que vejo de perto. São os horibs, o povo-serpente. Moram entre Rela Am e o Gyor Cors.

Enquanto Jason Gridley observava os horibs, durante aquele tenebroso festim, notou uma mudança na coloração de seus corpos. Quando os vira pela primeira vez, e depois, durante a luta, pareceram-lhe ter um tom azulado sobre todo o corpo, sendo que as mãos, os pés e o rosto eram de um tom mais claro do que o tronco. Mas agora, enquanto satisfaziam seus bestiais apetites, o azul havia sido substituído por um tom avermelhado que variava de intensidade, de um indivíduo para o outro. O rosto e as extremidades de alguns tornavam-se quase encarnados, à medida que comiam.

E se a aparência daquelas criaturas, sua voracidade e sua sede de sangue humano já haviam estarrecido Jason Gridley, sua surpresa foi ainda maior quando os ouviu conversar entre si, na língua comum aos seres humanos de Pellucidar.

A conformação geral daqueles homens-serpente, suas armas, que consistiam em longas lanças e facões de pedra, a espécie de avental de couro que usavam, mais os ornamentos e enfeites, representados por uma espécie de insígnia, sobre a parte superior do avental e pulseiras à volta dos pulsos e dos cotovelos, tudo isso dava-lhes um toque humano, que os tornava, ao mesmo tempo, grotescos e aterrorizantes. E quando Jason percebeu que falavam, a semelhança com os homens tornou-se ainda mais repulsiva e desagradável.

E aquelas criaturas exerciam tal fascínio mórbido sobre a mente de Jason Gridley, que ele não conseguia desviar os olhos nem o pensamento daquelas estranhas figuras semi-humanas. Notou, por exemplo, que enquanto a maioria deles deveria medir um metro e oitenta de altura, havia alguns de estatura muito baixa, devendo medir, no máximo, um metro e vinte. Havia um, o mais alto de todos, que deveria ter pelo menos dois metros e setenta. Mas todos eram bem proporcionados e essa desconcertante diferença de altura entre eles não parecia ter relação com a idade de cada um. Apenas os mais altos tinham escamas maiores e mais grossas. Mais tarde, no entanto, Jason veio a saber que a diferença de tamanho, entre os horibs, estava realmente relacionada com a idade, sendo que o desenvolvimento daquelas criaturas obedecia às mesmas leis que comandam o crescimento dos répteis, que, diferentemente dos mamíferos, estão sempre crescendo, enquanto vivos.

Terminada a farta refeição, os horibs, saciados pela carne dos Korsars, deitaram-se pelo chão, mas Jason não sabia se dormiam, pois eram desprovidos de pálpebras sobre os olhos que se mantinham sempre abertos. E foi então que ocorreu um outro fenômeno: aos poucos a coloração avermelhada que tinham foi empalidecendo até um cinza que puxava para cor de barro, que combinava perfeitamente com a cor do solo sobre o qual estavam deitados.

Com o cansaço físico e mental da luta, exausto por ter remado durante tanto tempo seguido, Jason adormeceu, embora seu sono fosse agitado e perturbado por pesadelos inquietantes, nos quais via Jana presa pelas garras de um daqueles terríveis horibs. O homem-serpente tentava devorar a Flor Vermelha de Zoram, enquanto ele, Gridley, lutava desesperada-mente para libertar-se das amarras que lhe prendiam os pulsos.

Foi despertado por uma forte dor, num dos ombros, e quando abriu os olhos viu, perto de si, um homem-serpente, como ele mentalmente os visualizava, cutucando-o com a ponta de sua lança.

— Faça menos barulho — disse-lhe a estranha criatura, dando a entender que Jason havia delirado em voz alta, enquanto dormia.

Àquela altura, os outros horibs começavam a se levantar, emitindo agudos assovios. Imediatamente começaram a surgir das águas do rio e das circunvizinhanças os estranhos animais que lhes serviam de montaria.

— Levante-se! — ordenou a Jason o mesmo horib que o havia acordado. — Vou desamarrar suas mãos. Não adianta tentar fugir porque morrerá imediatamente. Siga-me! — exclamou a horrenda criatura, depois de desatar os pulsos do americano.

Gridley acompanhou o Horib por entre os periosaurios que já se aglomeravam à margem do rio, emitindo silvos e grunhidos.

Se por um lado os gorobors pareciam ser todos iguais, aos olhos de Jason Gridley, o mesmo não acontecia com os horibs que evidentemente sabiam diferenciar seus animais. A prova disso estava no fato de o homem-serpente ter levado Jason até junto de determinado periosauro.

— Levante-se — disse ele, enquanto levava Jason a montar o animal. — Sente-se bem inclinado para a frente, sobre o pescoço dele.

E foi com o maior desagrado que o americano montou no gorobor, arrepiando-se ao contato daquela pele fria e áspera sob suas pernas nuas. O horib montou atrás dele e o mesmo aconteceu com os outros prisioneiros, todos eles montados à frente de um homem-serpente, sobre um mesmo animal.

Começou então aquela estranha cavalgada pela floresta escura que margeava o rio pela esquerda, através de verdadeiros corredores sombrios e úmidos, cobertos por uma vegetação densa, de um verde pálido e descorado pela falta do sol. Um ar frio, o que não era comum em Pellucidar, invadia a atmosfera, aumentando a depressão em que já se encontravam os prisioneiros.

— O que vocês pretendem fazer conosco? — indagou Jason, depois de percorrerem uma grande distância no mais absoluto silêncio.

— Vocês serão alimentados com ovos até que fiquem no ponto de serem comidos pelas nossas fêmeas e nossos filhotes — disse-lhe o horib. — Eles já estão fartos de peixe e de carne de gyor e não é sempre que conseguimos tanta quantidade de carne de gilak.

Jason recolheu-se novamente ao seu silêncio, compreendendo que seria impossível manter uma conversa com uma criatura daquelas. E durante muito tempo o horror que lhe causara a resposta do horib ficou pesando sobre sua mente. Não que ele temesse a morte; era a idéia de ser cevado, como qualquer animal irracional, para ser devorado por seres semi-humanos que lhe parecia abominável.

Mas enquanto cavalgavam através daquela floresta interminável, Jason procurava descobrir as origens daquelas exóticas criaturas. Tinha a impressão de que constituíam um supremo esforço da natureza para atingir um ponto mais elevado, na evolução do homem, por um desvio mais curto do que a ordem de evolução da face externa da terra, passando diretamente da era dos répteis, para a era do homem.

Durante a viagem, Gridley trocava olhares com Thoar e com os demais prisioneiros, embora não conseguisse uma oportunidade para conversar com eles.

Finalmente, depois de um período que parecia uma eternidade, a cavalgada emergiu da lúgubre floresta para uma região clara e ensolarada, e Jason viu, a alguma distância, as águas azuis e brilhantes de um lago interno. E ao se aproximarem de suas margens, o americano divisou outros horibs que se banhavam no referido lago, enquanto outros permaneciam deitados ou agachados à beira d’água, apanhando sol. Quando o grupo chegou junto a eles, demonstraram muito pouco interesse pelos guerreiros que regressavam, à exceção de algumas fêmeas e de alguns filhotes que evidenciaram um sugestivo interesse pelos prisioneiros.

As fêmeas adultas diferenciavam-se muito pouco dos machos. Apenas não tinham chifres e andavam completamente despidas. E Gridley não viu nenhum sinal de que ali houvesse uma cidade ou mesmo uma aldeia. Não havia ferramentas nem apetrechos que não fossem os estritamente necessários à fabricação das primitivas armas que usavam e da espécie de avental-armadura que os guerreiros vestiam para proteger a pele flácida e fina de suas barrigas.

Os prisioneiros foram arrastados de suas montarias e cercados por uma horda de guerreiros que os conduziu ao longo do pequeno lago até uma pequena elevação de uma de suas margens.

Durante esse pequeno percurso, viram várias fêmeas botando ovos e depositando-os dentro da lama quente e macia que circundavam as águas, enterrando junto a eles uma pequena estaca, para marcar o local onde haviam sido depositados, isto é, o ninho. E ao longo das margens do lago, os prisioneiros viram centenas dessas estacas e um pouco mais longe divisaram pequeninos horibs, evidentemente recém-nascidos, emergindo da lama. Nenhum deles prestava atenção aos desconhecidos que chegavam, mais preocupados em aprender a andar sobre seus membros, sobre os quatro membros, como se fossem filhotes de grotescos lagartos.

Chegando à parte mais elevada da margem do lago, o guerreiro encarregado de Thoar, que ia à frente, subitamente levou a mão à boca do prisioneiro, apertando-lhe as narinas com o polegar e o indicador e em seguida, sem qualquer explicação, mergulhou nas águas do lago, arrastando o prisioneiro consigo.

Jason ficou horrorizado ao ver seu amigo e companheiro desaparecer dentro daquelas águas lamacentas, que, depois de alguns instantes de agitação, voltou à calmaria, descrevendo apenas um círculo que se alargava lentamente, marcando o lugar onde as duas criaturas haviam mergulhado. Logo em seguida, um outro guerreiro fez o mesmo com Lajo, depois foi a vez dos dois outros Korsars.

Jason Gridley, num esforço sobre-humano, ainda tentou libertar-se das garras do horib que o acompanhava, mas aquelas mãos frias e ásperas o seguraram fortemente e uma delas tampou-lhe a boca e o nariz. E um minuto depois ele também era arrastado para dentro do lago, envolvido por suas águas mornas.

Continuando a lutar para se libertar, Jason sentia que estava sendo arrastado logo abaixo da superfície das águas, sentindo o peso da lama de encontro a seu corpo. Seus pulmões ansiavam por ar, seus sentidos fraquejavam, e por alguns instantes viu tudo negro à volta. Mas não tão negro quanto o buraco para onde era conduzido, quando sentiu que a mão áspera do horib soltava-se de sua boca e de seu nariz. Automaticamente procurou tomar uma respiração e voltando a si percebeu que não estava afogado, e sim deitado sobre um colchão de lama, respirando ar, em vez de água.

Uma escuridão total o cercava. Sentiu um corpo viscoso passar raspando de encontro ao seu, depois um outro e ainda um terceiro. Em seguida, o ruído de água gorgolhando e finalmente o silêncio — o silêncio de um túmulo.

PRISIONEIROS

De pé, na extremidade da grande planície de Gyor, cercado por criaturas armadas que tinham acabado de dar provas de grande habilidade ao destruírem uma das bestas mais ferozes e mais gigantescas de Pellucidar, Tarzan não hesitou em depor suas armas, obedecendo às ordens de seus adversários, rendendo-se, sem tentar resistir, a mais um capricho de seu destino.

— O que vocês pretendem fazer conosco? — perguntou ele ao horib que lhe ordenara entregar as armas.

— Levaremos vocês para nossa aldeia — respondeu-lhe a estranha criatura — onde serão muito bem alimentados. Não poderão fugir, pois ninguém consegue escapar dos horibs.

O homem-macaco hesitou. A Flor Vermelha de Zoram tinha vindo para junto dele.

— É melhor irmos com eles — sussurrou-lhe a moça. — Seria impossível fugir. Eles são muitos e nós somos dois. Acompanhando-os, talvez mais tarde tenhamos oportunidade de escapar.

Tarzan fez que sim com a cabeça, e depois dirigiu-se ao horib.

— Estamos prontos — disse ele.

E montados sobre o pescoço dos gorobors, com um dos horibs montado atrás, no mesmo animal, foram levados a percorrer aquela mesma floresta escura, percorrida por Jason e Thoar, embora entrando por uma outra direção.

Tendo seu nascedouro a leste das montanhas dos thipdars, corria um rio, na direção sudeste, atravessando a floresta cerrada dos horibs, indo juntar-se ao Rela Ama, ou rio da Escuridão. E justamente próximo à confluência dos dois rios, foram atacados os Korsars pelos horibs. E era ao longo da parte mais alta desse mesmo rio que Tarzan e Jana estavam sendo conduzidos rio abaixo, em direção à aldeia dos homens-serpente.

O lago dos horibs ficava a uma distância considerável do extremo leste das montanhas dos thipdars, talvez a uma distância de uns novecentos quilômetros. E num mundo onde não existe o fator tempo e onde as distâncias são calculadas pelo número de vezes que se come e que se dorme, fazia pouca diferença um lugar ser distante do outro nove ou novecentos quilômetros. Uma pessoa poderia caminhar mil quilômetros sem o menor acidente, enquanto outra, tentando percorrer um quilômetro, poderia ter que lutar contra a morte, o que transformaria esse quilômetro num percurso muito mais longo do que os outros mil quilômetros sem obstáculos, representando para a pessoa uma verdadeira eternidade.

Enquanto Tarzan e Jana atravessavam a floresta cerrada, centenas de quilômetros adiante Jason Gridley conseguia sentar-se, em meio à total escuridão reinante.

— Santo Deus! — exclamou ele, à meia-voz, como se comentasse consigo mesmo a precária situação em que se encontrava.

— Quem falou aí? — perguntou uma voz na escuridão, uma voz que Jason reconheceu ser de Thoar.

— Eu, Jason — respondeu-lhe Gridley.

— Onde estamos? — indagou uma outra voz, a voz de Lajo.

— Que escuridão! — exclamou uma quarta voz. — Antes nos tivessem matado logo!

— Não se preocupe — disse uma quinta voz —, que eles não demorarão a matar-nos!

— Então quer dizer que estamos todos juntos nesse lugar — comentou Jason. — Pensei que estivéssemos liquidados, quando vi os guerreiros horibs arrastarem vocês todos para dentro da água barrenta do lago.

— Onde estamos? — insistiu um dos Korsars. — Que espécie de buraco é este em que nos meteram?

— No mundo de onde venho — disse Jason — há enormes répteis, chamados crocodilos, que cavam esta espécie de ninho ou de esconderijo nas margens dos rios, logo abaixo da linha d’água, cuja única entrada é justamente pelas águas do rio. Acho que estamos num desses buracos.

— E por que não podemos nadar de volta e sair daqui? — perguntou Thoar.

— Talvez possamos — disse Jason — mas os horibs nos veriam e nos trariam de volta para cá.

— Então vamos ficar aqui nesse lamaçal, esperando a morte? — indagou Lajo.

— Não — respondeu-lhe Jason. — Vamos planejar uma fuga de maneira lógica e razoável. Não vale a pena nos afobarmos.

E por algum tempo os prisioneiros se mantiveram em silêncio, sentados na lama, até que o americano fez ouvir sua voz.

— Será que estamos sozinhos aqui? — perguntou ele. — Estive prestando atenção e o único ruído que consegui captar foi o da nossa respiração.

— Eu também — disse Thoar.

— Aproximem-se um pouco mais — disse Jason, enquanto os cinco homens, tateando na escuridão, colocaram-se em círculo, agachados, inclinando-se para a frente até que suas cabeças se tocassem. — Tenho um plano — continuou Jason Gridley a falar. — No percurso para a aldeia dos horibs, percebi que a floresta chegava até à margem deste lago, no ponto em que estamos. Se conseguíssemos abrir um túnel até à floresta, talvez pudéssemos fugir.

— De que lado está a floresta? — indagou Lajo.

— Está aí uma coisa que só podemos saber por adivinhação ou talvez por intuição — respondeu Jason. — Correremos o risco de adivinhar errado, mas acho que, de qualquer maneira, já que estamos mesmo perdidos, valeria a pena tentar acertar. No entanto, pela lógica, a floresta deve estar em oposição ao ponto onde fomos introduzidos dentro d’água.

— Então vamos logo começar a cavar o túnel — disse um dos Korsars.

— Esperem até que eu consiga localizar a entrada — disse Jason.

Começou, então, a engatinhar na lama, apoiado nos joelhos e nas mãos, em meio àquela terrível escuridão e de repente sua voz se fez ouvir anunciando ter descoberto a entrada. Imediatamente seus companheiros de cativeiro começaram a cavar na direção oposta do ponto de onde partira a voz de Gridley.

Mostravam-se esperançosos e confiantes no pleno êxito do plano, mas depararam com um problema de difícil solução, isto é, onde seria depositada a lama que iam retirando do túnel?

Jason mandou que Lajo continuasse escavando, enquanto os outros homens tentariam avaliar o tamanho do recinto onde se encontravam, engatinhando em linha reta, em diferentes direções, contando o número de vezes que sentiam os joelhos tocarem o chão.

E assim conseguiram saber que a caverna era estreita e comprida, correndo paralelamente à borda do rio. Suas medidas deveriam ser, aproximadamente, as seguintes: um metro e meio de comprimento, por sessenta centímetros de largura.

Ficou decidido que as terras da escavação seriam distribuídas igualmente pelo chão do recinto, até um certo ponto, e depois depositadas numa de suas extremidades, a fim de não atraírem as atenções dos horibs, caso eles aparecessem.

Cavar com as mãos era um trabalho difícil e moroso, mas os homens não se deixavam desanimar e iam-se revezando. O que cavava, depositava a lama atrás de si, enquanto os outros a espalhavam pelo chão, para que não corressem o risco de aparecer um horib e deparar com um monte de terra.

E finalmente os horibs apareceram, trazendo alimento. Mas os prisioneiros puderam pressentir sua chegada, quando ouviram o barulho de seus corpos, ao mergulharem nas águas do lago em direção ao túnel que os levaria à caverna onde estavam os prisioneiros. E estes agruparam-se em frente ao buraco que cavavam, para evitar qualquer suspeita dos homens-serpente.

Os horibs que penetraram no recinto não demonstraram suspeitar de coisa alguma. Embora fosse evidente que eles enxergavam no escuro, era também evidente que não distinguiam as coisas com clareza, e assim o maior perigo do plano de fuga dos prisioneiros estava afastado.

Depois de muito tempo de penoso trabalho, quando já haviam conseguido escavar um túnel de noventa centímetros de diâmetro por uns três metros de comprimento, sendo a vez de Jason Gridley escavar, encontrou ele uma grande concha que veio facilitar-lhes o trabalho. E dali por diante começaram a avançar mais rapidamente naquele serviço que lhes parecia interminável. Não tinham a menor idéia sobre o momento em que os horibs viriam buscá-los para o festim.

Jason planejava avançar bastante para o interior da floresta, antes de começar a mudar a direção do túnel para cima, para a superfície. Mas para ter certeza disso era preciso que encontrassem raízes de árvores passando por baixo delas ou necessitando desviar a direção da escavação, o que representaria atraso e perda de tempo. Por outro lado, tentar alcançar a superfície antes da hora representava todo um esforço perdido e um ponto final numa probabilidade de fuga.

E enquanto aqueles cinco homens continuavam a cavar a terra ininterruptamente, naquele buraco escuro e soturno, uma grande nave voava majestosamente sobre as montanhas dos thipdars.

— Eles jamais teriam ultrapassado este ponto — dizia Zuppner. — Só mesmo um cabrito montes poderia andar sobre essas rochas, atravessando esses desfiladeiros, ou escalando esses penhascos.

— Concordo com você — disse Hines. — Será melhor procurá-los em outra direção.

— Mas se eu ao menos soubesse que direção tomar — comentou Zuppner — para procurá-los!

— Neste caso — respondeu-lhe Hines — qualquer direção serve.

— Também acho — disse Zuppner. E obedecendo a um leve toque no leme, a 0-220 inclinou-se a bombordo, seguindo uma rota a oeste. Passou paralelamente às montanhas dos thipdars, dirigindo-se para o Gyor Cors.

Bastaria uma pequena volta na direção para que a grande nave tivesse seguido a sudoeste, onde Tarzan e Jana estavam sendo conduzidos pelos horibs através da floresta, para um destino terrível. No entanto, Zuppner não sabia disso e a 0-220 continuou em direção ao leste, enquanto o homem-macaco e a Flor Vermelha de Zoram prosseguiam em sua trágica viagem.

Ao penetrarem na lúgubre floresta, Tarzan começou a achar que encontraria um meio de fugir, se estivesse sozinho. Bastaria que saltasse para um dos galhos mais baixos de uma árvore daquelas, galhos que, às vezes, lhe roçavam a cabeça, para que nenhum horib ou nenhum gorobor conseguisse alcançá-lo mais. No entanto, não podia abandonar Jana e nem confiar-lhe seu plano, pois jamais se aproximava o suficiente dela para que lhe pudesse sussurrar alguma coisa sem ser ouvido pelos horibs. Mas mesmo que conseguisse fazê-lo, duvidava da habilidade da moça em alcançar rapidamente os galhos mais altos das árvores, antes que os homens-serpente a alcançassem.

Se o homem-macaco pudesse chegar bem perto da Flor Vermelha de Zoram, talvez conseguisse agarrá-la e saltar com ela para as árvores, e assim pensando, na esperança de uma oportunidade dessas, prosseguia silencioso sobre o pescoço daquela inusitada montaria.

Quando já estavam quase chegando à extremidade superior do lago e já avistavam suas bordas, Tarzan percebeu, através dos comentários, embora raros, que ouvira durante o percurso, que deveriam estar bem próximos de seu destino e diante disso desaparecia qualquer possibilidade de fuga.

Mas Tarzan não se conformava e estremecia de impaciência. Estava a ponto de fazer qualquer loucura, para reaver sua liberdade. Achava que o inesperado de seu ato, nos segundos que levaria para arrancar Jana da montaria para cima de seus ombros, saltando para o galho mais baixo que naquele momento lhe roçava a cabeça, convidativamente, seria o bastante para confundir os homens-serpente, e nessa confusão ele desapareceria pelo arvoredo adentro, passando para os galhos mais altos, confiando na própria agilidade e na própria experiência.

Os músculos e os nervos do homem-macaco obedeciam instantaneamente ao comando de sua vontade; não haveria surpresa, emoção ou revelação que lhes provocassem uma reação que não fosse da vontade de seu cérebro. E também jamais revelariam suas próprias idéias, seus pensamentos ou seus sentimentos diante de estranhos ou inimigos, absolutamente controlados pelo seu autodomínio. No entanto, naquele instante, esses mesmos nervos e músculos tão disciplinados estiveram a ponto de traí-lo, quando ele farejou no ar um certo cheiro que uma leve brisa lhe trazia às narinas, um cheiro que ele pensara era nunca mais vir a sentir.

Os horibs seguiam na direção do vento, e assim sendo Tarzan estava seguro de que os responsáveis pelo odor familiar que farejava estariam à sua dianteira. Procurava raciocinar o mais depressa possível, pois não havia um minuto a perder, embora pesando e medindo a viabilidade do novo plano de fuga que lhe viera à mente, assim que seu olfato assinalou a presença de gente conhecida, embora à grande distância. Sua maior preocupação era a segurança de Jana, mas, para salvá-la, precisava proteger-se. Pouco antes achara que seria impossível os dois fugirem ao mesmo tempo, mas agora surgia-lhe uma outra idéia — uma idéia com muito maiores possibilidades de êxito. Atrás dele, montado no mesmo gorobor, tão perto que muitas vezes seus corpos se esbarravam, vinha um guerreiro horib. Numa das mãos carregava uma lança, mas a outra estava livre. Tarzan precisaria mover-se com extraordinária rapidez, a fim de que seu companheiro de montaria não tivesse tempo de segurá-lo com a mão que estava livre. Seria necessária uma agilidade sobre-humana, mas neste ponto poucas pessoas poderiam comparar-se ao Rei das Selvas. Os galhos mais baixos continuavam a roçar-lhe a cabeça e os ombros, e Tarzan aguardava pelo momento mais propício para levar adiante seu ousado plano. De repente, viu exatamente o galho que lhe servia. Era um galho forte, frondoso, uma verdadeira porta aberta para o telhado de folhagens que encobriria sua fuga. E inclinando-se ligeiramente para a frente, com as mãos levemente apoiadas sobre o pescoço no gorobor, esperou que estivesse exatamente embaixo do galho que escolhera, quando, num relance, ficou de pé sobre o animal e, quase simultaneamente, saltou para o galho, desaparecendo por entre a folhagem mais alta. Foi tudo tão rápido e tão inesperado que o horib que lhe servia de guarda só deu pela sua falta depois que ele desaparecera completamente. E aí já era tarde demais — o prisioneiro já tinha fugido. Assim mesmo, o guerreiro ainda soltou um grito de alarme aos que iam na frente, ajudado pelos outros que haviam presenciado a fuga de Tarzan, mas nenhum deles conseguiu mais localizar o homem-macaco, que desaparecera como por encanto, sem ser visto nem ouvido. Tarzan atingira a parte mais alta das copas das árvores, e a folhagem que formava, por assim dizer, o teto da floresta escondia-lhe os passos.

Jana, que vinha um pouco mais atrás de Tarzan, assistiu à sua fuga e sentiu um verdadeiro aperto no coração. Sozinha entre os homens-serpente, indefesa e desprotegida, nunca se sentira tão próxima do medo e do pânico. A presença do homem-macaco lhe dera uma certa tranqüilidade, mas agora, no momento em que ele fugira, sentia-se terrivelmente só e abandonada. Não o culpava por ter tentado escapar, aproveitando aquela oportunidade, mas, em seu íntimo, tinha a certeza de que Jason Gridley jamais a teria abandonado.

Guiado exclusivamente pelo faro, Tarzan ia saltando de galho em galho, movendo-se o mais rápido que conseguia, por entre as árvores. A princípio, galgara as galhadas mais altas e então um novo mundo se descortinara ante seus olhos perplexos, um mundo ensolarado, povoado por estranhos pássaros de vistosas plumagens coloridas. Havia também alguns répteis voadores, gigantescas mariposas e algumas cobras, enroladas em vários galhos, numa variedade de cores completamente desconhecida para o homem-macaco, o que o deixava sem saber se representavam ou não algum perigo. Era um mundo simultaneamente belo e repulsivo, onde o que mais apreciava era aquele silêncio total, pois seus habitantes pareciam mudos. A presença das cobras e a folhagem muito cerrada impediam-no de correr, como estava habituado em seu mundo, fazendo-o descer para um nível menos alto, onde a floresta era mais aberta e seu olfato tinha mais facilidade em seguir o cheiro que lhe servia de guia.

Algumas vezes ficava em dúvida, quanto à origem do que farejava, pois parecia-lhe impossível encontrar o que pressentia, em pleno mundo de Pellucidar.

Sua agilidade era realmente espantosa, na rapidez com que andava por sobre as árvores, mas seu objetivo era chegar antes dos horibs ao seu destino. Esperava que sua fuga tivesse atrasado um pouco a cavalgada dos homens-serpente e fora exatamente o que acontecera, pois, ao perceberem sua escapada, os horibs pararam imediatamente, sendo que alguns deles saltaram de seus animais e tentaram subir pelas árvores, a fim de localizá-lo. E suas estranhas fisionomias mal demonstravam a fúria que sentiam, ao deixar escapar o prisioneiro. No entanto, o tom azulado que se espalhara por suas escamas revelava o ódio crescente diante da facilidade com que aquele gilak havia fugido. Finalmente, malogrados em suas buscas, retomaram a caminhada, ainda mais enfurecidos.

Muito adiante deles, o homem-macaco continuava a seguir pelos galhos mais baixos, sentindo cada vez mais forte o cheiro que o guiava, como se lhe dissesse que já estava bem próximo do que procurava. Logo em seguida, caiu sobre uma das alas mais sombrias da floresta, como se descesse do céu, diante dos dez guerreiros que pareciam estupefatos com o que presenciavam .

Contemplaram-no por alguns instantes, sem acreditar no que seus olhos viam, para logo depois dispararem em sua direção, caindo de joelhos à sua volta, beijando-lhe as mãos, com os olhos marejados de lágrimas de felicidade.

— Bwana! Bwana! — era a única coisa que conseguiam dizer. — Então é o senhor mesmo, em carne e osso! Mulungu teve piedade de nós e devolveu-nos o nosso Bwana com vida!

— Mas, tenho muito trabalho para vocês, meus filhos — disse-lhes o homem-macaco. — Os homens-serpente estão a caminho daqui e com eles vem uma moça que capturaram. Dou graças a Deus por vocês estarem ainda de posse de suas armas e de suas munições!

— Economizamos nossa munição, Bwana, usando de preferência nossas lanças e nossas flechas sempre que era possível.

— Muito bem — respondeu-lhes Tarzan. — Vamos precisar dela agora mesmo. A que distância estamos da nave?

— Não sei — respondeu Muviro.

— Você não sabe? — perguntou novamente Tarzan.

— Não — continuou Muviro. — Estamos perdidos há muito tempo.

— E que é que vocês foram fazer sozinhos, longe da 0-220? — indagou o Rei das Selvas.

— Tivemos ordem de acompanhar Gridley e Von Horst numa expedição à sua procura, Bwana.

— E onde estão eles? — quis saber o homem-macaco.

— Há muito tempo atrás — respondeu Muviro — nem sei calcular há quanto tempo, nós nos separamos de Gridley e nunca mais o vimos. Daquela vez, foram as bestas selvagens que nos separaram. Mas não sabemos por que nem como Von Horst também não está mais conosco. Encontramos uma caverna abandonada e entramos para descansar um pouco. Adormecemos e quando despertamos Von Horst tinha desaparecido. Nunca mais o encontramos.

— Aí vêm eles! — exclamou Tarzan.

— Posso ouvi-los se aproximando, Bwana — confirmou Muviro.

— Vocês já viram esses homens-serpente alguma vez? — indagou o homem-macaco.

— Não, Bwana — respondeu-lhe o chefe negro. — Aliás, há muito tempo que não vemos criaturas humanas. Só animais e que animais!

— Pois então vocês agora vão ter a oportunidade de vê-los — disse Tarzan. — Mas não se assustem com a aparência deles. Suas armas serão mais que suficientes para destruí-los.

— Quando foi que o senhor já viu um guerreiro waziri ter medo? — perguntou Muviro, com certo orgulho.

O Rei das Selvas sorriu.

— Um de vocês terá que me emprestar a espingarda, enquanto os demais ficarão espalhados pela floresta — disse Tarzan. — Não sei exatamente por onde vão passar, mas assim que algum de vocês entre em contato com eles comecem imediatamente a atirar, não esquecendo que a moça vem montada com um deles e tenham cuidado para não feri-la.

Mal terminara de falar e o primeiro horib aparecia. No entanto, Tarzan e os waziris não procuraram esconder-se e, ao vê-los, o chefe dos horibs emitiu um urro de contentamento. Mas, quase ao mesmo tempo, ouviu-se o primeiro tiro dos waziris que fez com que o homem-serpente se contorcesse de dor, caindo ao solo, sem vida. Os outros, que vinham mais atrás, avançaram sobre os guerreiros negros, com suas lanças em punho, naquela estonteante velocidade que lhes era característica. No entanto, as balas dos waziris eram ainda mais velozes do que os gorobors, e sob aquela saraivada incessante, foram caindo por terra, um por um, retorcendo-se em seus últimos estertores.

Os gorobors moviam-se tão rapidamente e tão rapidamente Tarzan e os waziris detonavam suas armas que a luta não durou muito tempo. Os horibs sobreviventes, compreendendo que não conseguiriam capturar aqueles gilaks que usavam armas tão possantes, capazes de atingi-los antes mesmo que suas lanças se aproximassem deles, fizeram uma tentativa de fugir, espalhando-se para os lados, como se pretendessem contornar os adversários e continuar a cavalgada.

Tarzan ainda não tinha visto Jana, embora soubesse que ela deveria vir mais atrás, na mesma montaria de um dos horibs sobreviventes. Foi quando avistou-a a distância, montada sozinha sobre um gorobor em disparada. E a única chance de salvá-la era tentar atirar sobre o animal que a conduzia. Tarzan não hesitou; levou a espingarda ao ombro, para fazer pontaria, mas justamente naquele momento foi atingido por um gorobor sem cavaleiro que o atirou ao chão. E quando Tarzan se pôs de pé, já a moça desaparecera por entre a folhagem e os grossos troncos das árvores. Espalhados entre os waziris estavam dezenas de gorobors sem cavaleiros, completamente desorientados sem as ordens de seus donos. Mas, quando viram um deles seguir atrás de um horib que conseguira fugir, todos saíram na mesma direção, em desabalada corrida, o que representava perigo igual ou maior do que os próprios horibs.

Muviro e seus guerreiros subiram pelas árvores mais próximas, para escapar dos animais desembestados, mas, na mente de Tarzan, aqueles gorobors representavam uma nova esperança para salvar Jana.

E para grande espanto de Muviro e seus homens, Tarzan saltou sobre um dos animais, prendendo-se a ele com os dedos dos pés trançados sobre as juntas das pernas do gorobor, como tinha visto os horibs fazerem, saiu acompanhando aquela terrível cavalgada, levando consigo a espingarda, numa tentativa desesperada de salvar a Flor Vermelha de Zoram. Não era preciso incitá-lo a correr e nem Tarzan saberia como fazê-lo, pois, ainda excitados e aterrorizados pelos estampidos das armas de fogo, os animais corriam velozmente, na direção do último horib. Quando Tarzan o viu, percebeu que Jana estava com ele. Mas o animal que montava era tão veloz que o homem-macaco achou que seria capaz de ultrapassá-los, sem poder fazer coisa alguma em favor da moça. Foi assim que lhe veio a idéia de fazer parar o horib. Restava-lhe um instante para decidir e agir e esse instante foi o suficiente para Tarzan erguer a espingarda e atirar. Talvez por um golpe de sorte, talvez devido à sua condição de homem, à sua inteligência de homem, o fato é que a bala atingiu o gorobor exatamente na espinha e um segundo depois suas pernas traseiras fraquejavam, fazendo-o rolar para um lado, enquanto o horib e Jana eram atirados violentamente ao solo. Quase que ao mesmo tempo, o animal que o homem-macaco montava atingiu o local onde haviam caído o homem-serpente e a Flor Vermelha de Zoram. E arriscando-se a uma queda perigosa, Tarzan deixou-se escorregar de cima do gorobor, indo cair sobre a carcaça do animal que poucos instantes antes havia abatido.

Pondo-se de pé, de um salto, viu-se frente à frente com o horib, ao mesmo tempo que sentiu faltar-lhe o chão sob os pés, caindo num buraco, em cujos bordos apoiou as axilas. E enquanto lutava para sair dele, sentiu que alguma coisa o agarrava pelos quadris, puxando-o para baixo — dedos frios que mais pareciam garras, ao redor de seu corpo, fazendo-o entrar por um túnel subterrâneo, na maior escuridão.

A FUGA

A 0-220 sobrevoava lentamente o Gyor Cors e olhos perscrutadores observavam atentamente a região; no entanto, as únicas coisas com vida eram apenas os animais, ou melhor, os gigantescos dinossauros. Perturbados pelo ruído dos motores da nave, as bestas trotavam nervosamente em círculos. Algumas arriscavam um olhar furioso para o grande dirigível, urrando ameaçadoramente; outras perseguiam-lhe a sombra que se projetava no solo.

— Que bichinhos bem-humorados! — pilheriou Hines, que os observava de uma escotilha da sala de refeições.

— Como é o nome desses pesadelos, tenente? — perguntou Robert Jones, com sua maneira engraçada de exprimir-se .

— Triceratopos — respondeu-lhe o oficial.

— Já enfrentei muita coisa na vida — continuou Robert Jones — mas nada que se pudesse comparar a esses tipos!

Independentemente da vontade do piloto, a 0-220 desviava-se um pouco a sudoeste ao longe; a bombordo, erguia-se uma cordilheira de montanhas. Agora, um rio atravessava a planície — um rio que nascia nas montanhas distantes — e a nave começou a acompanhar seu curso, pois, em geral, quando os homens se perdem, em terras desconhecidas, procuram sempre seguir o caminho dos rios, se é que os oficiais tivessem a sorte de avistar alguma criatura humana ainda viva, naquelas paragens infestadas por animais ferozes.

E a 0-220 já tinha sobrevoado uma boa parte desse rio, quando, de repente, Dorf telefonou da cabina de observação para o capitão Zuppner.

— Há um grande volume de água concentrado à nossa frente, capitão, e talvez estejamo-nos aproximando de algum oceano — disse ele.

Todos os olhares se voltaram na direção do grande alargamento do rio, enquanto a nave o sobrevoava e como há muito tempo não comiam carne fresca ou mesmo não bebiam água fresca, Zuppner resolveu aterrar e julgou o local propício para acamparem, escolhendo, para isso, um ponto ao norte do rio que vinham seguindo, justamente onde o rio se alargava para o mar. E enquanto a 0-220 pousava suavemente sobre uma verdejante campina, Robert Jones escrevia em seu diário:

“Aterramos aqui ao meio-dia.”

Enquanto isso acontecia, Jason Gridley e seus companheiros, a centenas de quilômetros de distância, a oeste, já escavavam seu túnel em direção à superfície do solo. Jason, à frente dos trabalhos, atirava apressadamente punhados de terra para trás de si, enquanto seus companheiros também se apressavam em distribuí-la igualmente pelo chão do buraco de lama, uma vez que agora o túnel já estava muito grande e levavam algum tempo para retornar à caverna, quando pressentiam a aproximação dos horibs.

Quando, finalmente, Jason escavou a última porção de terra, alcançando a superfície da floresta, ouviu distintamente estampidos de espingardas, ou melhor, a reverberação desses estampidos. A princípio não acreditara no que seus ouvidos ouviam. Mas, que mais poderia ser além de ruído de tiros? Estava separado de seus companheiros de expedição, havia já tanto tempo, que lhe parecia impossível que o acaso os tivesse trazido exatamente àquela tenebrosa região de Pellucidar. E embora um fio de esperança lhe viesse à mente, procurou logo afastar aquela hipótese otimista, substituindo-a pela conclusão de que os tiros deveriam partir dos arcabuzes dos korsars que teriam vindo do navio que Lajo lhe dissera estar ancorado num ponto qualquer do oceano de Rela Am. Certamente, o comandante teria enviado uma expedição à procura de seus homens, e a perspectiva de voltar a cair nas mãos dos cruéis korsars parecia-lhe uma felicidade, em comparação com o destino que os homens-serpente lhe preparavam.

Redobrando seus esforços, Jason Gridley alargava o orifício de comunicação com a superfície, trabalhando freneticamente. O barulho dos tiros tinha durado apenas alguns minutos e agora cessara completamente, dando lugar ao ruído das passadas de grande número de animais, que cavalgava justamente naquela direção. Em dado momento, percebeu que os animais passavam muito perto, quase exatamente sobre sua cabeça e ouviu um outro tiro também muito próximo. Sentiu que um corpo pesado caíra ao solo, fazendo tremer a terra, sob o impacto da queda. E a ansiedade de Jason chegava ao auge quando subitamente p solo abriu-se sobre sua cabeça e algo de muito pesado caiu pelo buraco adentro, exatamente sobre ele.

Sempre na expectativa de que seu plano de fuga fosse descoberto pelos horibs, Jason reagiu imediatamente, guiado por seu instinto de conservação, julgando que a melhor coisa seria puxar a criatura para dentro do buraco, aquela criatura que agora sabia de seu segredo, para que não despertasse a curiosidade dos horibs, tirando-o de suas vistas o mais depressa possível. E com esta idéia em mente, começou a recuar para dentro do túnel, arrastando o intruso consigo, o que, até certo ponto, não lhe parecia difícil. No entanto, Tarzan havia firmado as mãos em sua espingarda que, com a queda do homem-macaco, havia ficado cravada horizontalmente nas bordas do buraco, transformando-se numa barra de apoio muito firme. E enquanto Jason continuava a tentar puxar Tarzan para o interior do túnel escuro, segurando-o pelos quadris, o homem-macaco, recobrando o domínio sobre seus músculos, que agora, tensos e retesados, levavam-no para fora do buraco, arrastando consigo Jason Gridley, pendurado em seus quadris. Por mais forte que fosse, o americano jamais conseguiria vencer aquela musculatura de aço do homem-macaco, e aos poucos não resistiu mais à sua pressão, deixando-se arrastar buraco acima, até à superfície do solo.

Àquela altura, Jason já compreendera que a criatura à qual estava pendurado não deveria ser um horib, pois sentia sob as mãos a pele fina de um ser humano, e não as horripilantes escamas dos homens-serpente. Assim mesmo, não queria deixar

escapar aquela criatura que poderia delatar seu segredo a seus captores ou ao menos despertar-lhes a atenção para o túnel.

O horib que se defrontara com Tarzan tinha presenciado seu misterioso desaparecimento pela terra adentro, mas não tentara desvendar o mistério, preferindo agarrar Jana pelo pulso e correr desabaladamente atrás de seus companheiros, arrastando sua prisioneira, que se debatia e lutava desesperadamente para libertar-se das garras do monstro.

E os dois já estavam quase desaparecendo por entre as árvores da sombria floresta, quando Tarzan conseguiu finalmente sair do buraco e os avistou de relance. E foi algo semelhante ao grunhido de uma besta enfurecida o som que saiu de seus lábios, ao compreender que aquela última ocorrência desastrosa poderia impedi-lo de salvar a Flor Vermelha de Zoram. Irritado com a insistência daquelas mãos que se agarravam à volta de sua cintura, Tarzan corcoveou violentamente, num esforço para se ver livre delas no que teve pleno êxito, pois Jason caiu pesadamente no fundo do túnel, enquanto o homem-macaco pulou rapidamente para o solo e para a liberdade, a fim de partir em perseguição ao horib que arrastava Jana para sua aldeia.

Chamando seus companheiros, Jason também subiu para a superfície de terra ainda em tempo de vislumbrar o corpo atlético e bronzeado que desaparecia entre os grossos troncos das árvores. No entanto, bastou-lhe aquele olhar de relance para a criatura humana que parecia ter a velocidade de um raio, para que sua memória lhe despertasse a lembrança de uma pessoa conhecida, fazendo seu coração bater mais forte. Seria possível ser quem ele pensava? Thoar não lhe havia contado que o Rei das Selvas havia morrido? Fosse ou não fosse Tarzan, o importante era descobrir o motivo de sua pressa. Estaria perseguindo alguém ou estaria sendo perseguido? De qualquer modo, algo dizia a Jason que não deveria perder aquele homem de vista. Pelo menos não se tratava de um horib e seria portanto um inimigo dos homens-serpente. Os acontecimentos haviam-se desenrolado numa sucessão tão rápida e tão imprevista que Gridley parecia um pouco atordoado com seus próprios pensamentos, sem saber ao certo o que fazer. Mas o americano resolveu seguir sua intuição e, agindo impulsivamente, saiu em desabalada corrida atrás do desconhecido.

Tarzan, guiado apenas pelo delicado e suave aroma que o rastro de Jana deixava atrás de si, e que jamais seria percebido por qualquer outra criatura humana que não fosse o homem-macaco, corria desesperadamente através daquela lúgubre e cerrada floresta. Farejava também o rastro dos repugnantes horibs e, temeroso de encontrá-los inesperadamente, já que estavam em maioria, resolveu saltar para o galho de uma árvore e continuar sua perseguição pelas alturas, sem, com isso, perder velocidade. De repente, vislumbrou-os justamente sob a árvore em que estava — um único horib tentando arrastar a Flor Vermelha de Zoram que ainda lutava e se debatia.

Sem um instante de hesitação, com a rapidez de um foguete humano, Tarzan atirou-se das alturas em que se encontrava, diretamente sobre as costas asquerosas do homem-serpente. E com tamanha força ele caiu sobre o horib, que este, antes mesmo de tombar ao solo, já estava completamente estonteado. Tarzan passou-lhe o braço pelo pescoço, levantando-se e puxando o homem-serpente consigo. Virando-se rapidamente e inclinando-se para a frente, o Rei das Selvas deu-lhe um balão, isto é, fez com que seu corpo rodopiasse no ar, por cima da cabeça, indo bater fragorosamente de encontro ao chão. E por várias vezes repetiu o golpe, sem afrouxar o braço que segurava o horib pelo pescoço, enquanto a moça, de olhos arregalados, perplexa diante daquela verdadeira exibição de força hercúlea, nada dizia.

Finalmente, quando viu que o adversário já deveria estar morto, ou fora de si, deu-se por satisfeito e largou-o. Tirou-lhe o facão talhado em pedra, apanhou sua lança, que jazia aos seus pés, e só então dirigiu-se a Jana.

— Venha depressa — disse-lhe ele. — Só há um lugar seguro para nós. — E levando-a nos ombros, saltou para um dos galhos mais baixos de uma árvore próxima. — Aqui, ao menos estaremos livres dos horibs e duvido muito que os gorobors consigam chegar até nós.

— Sempre pensei que não houvessem guerreiros semelhantes aos de Zoram — comentou a moça — mas isto foi antes de conhecer você e Jason.

Tarzan sabia que ela falava com toda a sinceridade de seu coração, e não apenas por ter sido salva por ele, pois as mulheres primitivas consideram sempre os homens das próprias tribos como os mais valentes, os melhores guerreiros, os mais corajosos.

— Gostaria bem que Jason não tivesse morrido — continuou ela. — Ele era um grande homem e um guerreiro poderoso; e acima de tudo, ele era um homem delicado, gentil. Os homens de Zoram nunca são cruéis para com suas companheiras, mas não são compreensivos nem demonstram consideração por elas. Jason Gridley, antes de mais nada, pensava no meu bem-estar, no meu conforto e acima de tudo na minha segurança.

— Você gostava muito dele, não é verdade? — indagou-lhe Tarzan.

A Flor Vermelha de Zoram não respondeu. Corriam-lhe lágrimas dos olhos e sua garganta estava embargada. Apenas fez que sim, com a cabeça.

Uma vez no alto das árvores, Tarzan fizera com que Jana saltasse de seu ombro, percebendo que a moça tinha grande facilidade em andar sobre as árvores, demonstrando ser muito ágil em passar de um galho para outro, acostumada que estava, desde a infância, a saltar de pedra em pedra, nos rochedos das montanhas dos thipdars. Voltaram, sem pressa, ao local onde haviam ficado Muviro e seus guerreiros waziris. E como o vento não estivesse a seu favor, o Rei das Selvas não se pôde guiar pelo faro, deixando-se levar apenas pelos ouvidos atentos aos menores ruídos que pudessem revelar a proximidade de seus companheiros. E de repente começaram a ouvir barulho de passos, através da floresta, passos de alguém que caminhava na direção deles.

O homem-macaco puxou a Flor Vermelha de Zoram para trás de um enorme tronco de árvore, mantendo-se calado e imóvel, na expectativa de quem poderia ser, pois nem todos os passos que ouvissem poderiam ser de pessoas amigas.

E decorridos apenas alguns instantes, avistaram a seus pés, caminhando o mais depressa que conseguia, um homem seminu, com um pedaço de pele de cabra sobre o corpo, completamente irreconhecível sob a espessa camada de lama escura que o cobria da cabeça aos pés, alterando-lhe as feições c escondendo a cor de sua pele. Via-se uma parte de sua cabeleira escura e sua aparência era das mais estranhas. No entanto, Tarzan compreendeu logo que não se tratava de um horib e viu que o desconhecido não trazia armas. O homem-macaco não podia imaginar o que estaria fazendo aquele ser humano no meio daquela tenebrosa floresta e resolveu saltar imediatamente para o solo, deixando perplexo o misterioso caminhante enlameado.

À vista do homem-macaco, a criatura parará de andar e seus olhos quase lhe saltavam das órbitas, entre estupefato e incrédulo.

— Tarzan! — exclamou ele. — Meu Deus! É você mesmo! Então, quer dizer que você não morreu! Graças a Deus que você não morreu!

E um momento antes de Tarzan reconhecer a criatura, Jana, do alto das árvores, ouvindo o som daquela voz, identificou-a .

Logo em seguida um largo sorriso iluminou a fisionomia do Rei das Selvas.

— Gridley! — exclamou ele. — Jason Gridley! Jana me disse que você tinha morrido!

— Jana! — exclamou Gridley. — Você a conhece? Você esteve com ela? Onde é que ela está?

— Está aqui, em minha companhia — respondeu o homem-macaco, quase no mesmo instante em que a moça saltava da árvore para o chão e aproximava-se de Tarzan.

— Jana! — gritou Jason, dirigindo-se para perto dela.

— Jalok! — exclamou Jana, empertigando-se e olhando-o por cima do ombro. — Será preciso dizer-lhe novamente para não se aproximar da Flor Vermelha de Zoram?

Jason parou, deixando cair os braços ao longo do corpo, numa atitude de total desânimo.

Tarzan se mantinha calado, embora perplexo, diante do que presenciava. Mas não era de seu feitio interferir em assuntos exclusivamente alheios.

— Venham — disse ele — temos que encontrar os waziris.

De repente, o ruído de vozes anunciou a aproximação de outros homens que falavam alto e ao mesmo tempo, denotando grande excitação. Tarzan reconheceu-as de imediato, como sendo dos guerreiros waziris. E avançando na direção de onde partiam essas vozes, o homem-macaco deparou com uma cena momentaneamente cômica, mas que poderia ter tido graves conseqüências, caso não fosse interrompida em tempo.

Dez guerreiros waziris, empunhando suas espingardas, cercavam Thoar e os três korsars, todos falando ao mesmo tempo, em sua própria língua, sem que conseguissem fazer-se entender.

Os homens de Pellucidar, que nunca tinham visto seres humanos de cor negra, como eram os waziris, e sendo os guerreiros totalmente estranhos, tomaram-nos como inimigos e estavam a pique de tentar uma escapada. Muviro, por sua vez, acreditando que aqueles homens pudessem ter alguma ligação com o desaparecimento de seu amo, estava resolvido a mantê-los prisioneiros e a interrogá-los. E não teria hesitado em matá-los, caso houvessem tentado resistir. E foi um alívio geral para todos, quando Tarzan apareceu, seguido por Jana e por Jason Gridley, ocasião em que Muviro e os waziris viram o grande Bwana dirigir-se amigavelmente a um dos seus prisioneiros.

Thoar ainda ficou mais surpreendido em encontrar o Rei das Selvas vivo, do que Jason Gridley. E quando viu Jana, seu comportamento discreto e sempre reservado foi traído pela alegria e pelo contentamento de encontrar a irmã sã e salva. E não menos surpreendida e feliz estava a Flor Vermelha de Zoram, quando correu e atirou-se nos braços de Thoar, abraçando-o, comovida.

Sentindo uma emoção diferente, Jason Gridley se conservava à parte, testemunha silenciosa daquele reencontro e pela primeira vez compreendeu que o sentimento que seu coração abrigava, em relação àquela jovem selvagem, não era outro senão amor.

E achava até certa indignidade de sua parte, sentir ciúmes de Thoar, que era um homem selvagem e primitivo, que sempre se mostrara seu amigo, enquanto ele próprio, Jason Gridley, era um produto de séculos de cultura e civilização.

Thoar, Lajo e os três korsars não esconderam sua alegria ao compreenderem que aqueles estranhos guerreiros negros, que, a princípio, haviam considerado perigosos adversários, haviam-se transformado em amigos e aliados, e quando ouviram a narrativa da luta que haviam enfrentado contra os horibs, ficaram mais sossegados, pois o perigo que representavam os homens-serpente era agora bem menor, uma vez que as espingardas usadas pelos waziris faziam os velhos arcabuzes dos korsars parecerem armas de brinquedo. E além disso, tinham conseguido escapar com vida daquela tenebrosa aldeia onde teriam sido devorados pelos horibs, caso não tivessem conseguido fugir.

E enquanto descansavam daquela sucessão de emoções, cada grupo contava suas aventuras e peripécias, tentando fazer alguns planos para o futuro. No entanto, isso se tornava a parte mais difícil de acertar, pois Thoar, por exemplo, desejava voltar para Zoram, em companhia de Jana. Tarzan, Jason e Muviro e seus guerreiros queriam encontrar os demais membros da expedição que os levara a Pellucidar, enquanto Lajo e seus dois companheiros korsars estavam interessados em regressar ao navio, se é que ainda o comandante estivesse esperando por eles.

Tarzan e Jason, julgando mais prudente não revelar aos korsars o verdadeiro objetivo da viagem a Pellucidar e percebendo que êlcs estavam bem a par da história de Tanar, deixaram que eles pensassem que estavam à procura de Sari apenas para fazer uma visita a Tanar c a seu povo.

— Sari fica muito longe daqui — disse Lajo. — Daqui até lá, teremos que dormir pelo menos umas cem vezes durante a viagem, atravessando o Korsar Az e passando por diversas aldeias, repletas de inimigos, pois ainda é mais longe do que a Terra da Sombra Grande. Na realidade, talvez nem conseguíssemos chegar a Sari com vida.

— E não poderíamos ir sempre por terra? — indagou Tarzan.

— Sim — respondeu-lhe Lajo — principalmente se estivéssemos cm Korsar, uma vez que eu lhes serviria de guia. Mas a viagem seria igualmente arriscada e perigosa, pois ninguém sabe que espécie de tribos e de animais ferozes poderiam surgir no caminho de Korsar até Sari.

— Se fossemos até Korsar — disse Jason — certamente não seríamos recebidos como amigos, não é mesmo, Lajo?

— Bem — respondeu Lajo — realmente vocês não seriam recebidos como amigos.

— No entanto — disse Tarzan — se tivermos que encontrar a 0-220, será por certo, nas imediações de Korsar.

Jason fez que sim com a cabeça.

— Mas, por outro lado, — disse ele — estaríamos cm desacordo com os planos de Thoar que, se não me engano, declarou que nos encontramos muito mais perto de Zoram do que de Korsar. E se resolvermos ir até Korsar, nosso caminho será em direção contrária a Zoram. Ao mesmo tempo, duvido que Jana e Thoar cheguem com vida a Zoram, se seguirem a mesma rota que eu e Thoar vínhamos seguindo, depois de deixarmos as montanhas dos thipdars, a menos que nós e os waziris os acompanhássemos.

Tarzan olhou para Thoar.

— Se vocês quiserem vir conosco, em direção a Korsar

— disse ele — depois será muito fácil levarmos vocês de volta a Zoram, caso encontremos a nossa nave. E se não a encontrarmos, dentro um prazo razoável de tempo, acompanharemos vocês até Zoram. Qualquer dessas duas hipóteses é mais favorável ao objetivo de alcançarem suas terras do que você dois se arriscarem a partir sozinhos, do ponto em que estamos, até Zoram.

— Então nós vamos com vocês — concordou Thoar. No entanto, sua fisionomia conturbou-se, como se algum pensamento desagradável lhe viesse à mente. Olhou um instante para Jason e depois para Jana.

— Já ia me esquecendo de uma coisa — disse ele, dirigindo-se à irmã. — Antes de iniciarmos a caminhada com esses homens, como amigos, preciso saber se Jason Gridley injuriou-a ou maltratou-a durante o tempo em que estiveram caminhando juntos. Se isto aconteceu, devo matá-lo!

— Não precisa matá-lo — respondeu-lhe Jana, sem olhar para Jason. — Se isto fosse necessário, a Flor Vermelha de Zoram o teria feito!

— Muito bem — disse Thoar. — Fico muito contente de saber disso, pois Jason é meu amigo e assim podemos continuar todos juntos.

—- Nosso barco ainda deve estar à margem do rio — disse Lajo — onde os horibs o deixaram, depois de nos prenderem. E se assim for, desceremos o rio até encontrarmos nosso navio que ficara ancorado em Rela Am.

— E então seremos feitos prisioneiros pelos seus homens — ajuntou Jason. — Não, Lajo, agora a mesa já está virada c se vocês nos quiserem acompanhar, vocês serão nossos prisioneiros.

— Para mim tanto faz — disse o korsar. — Certamente seremos reduzidos a cinzas, quando o capitão verificar o insucesso de nossa expedição, sabendo que nada trouxemos conosco e que ainda perdemos um oficial e vários membros da tripulação.

Finalmente, depois de muita argumentação, ficara decidido que iriam todos à procura do barco dos korsars, à margem do rio, e que depois iriam até o navio, sendo que Lajo e seus dois companheiros tentariam convencer o comandante de recebê-los como amigos, transportando-os até as proximidades de Korsar.

Enquanto caminhavam em direção ao Rela Am, não foram mais atacados pelos horibs, que, evidentemente, compreenderam que os waziris e suas armas de fogo eram-lhes superiores. Durante todo o percurso Jason fez questão de se manter o mais afastado possível de Jana. A simples presença da moça lembrava-lhe sua humilhante e desesperançada posição, ao mesmo tempo que estar junto dela não deixava de ser uma forma de masoquismo, que ele já não podia mais agüentar. O orgulho de Jana, que ela não se preocupara em disfarçar, o atingira profundamente, e sofria também ao compreender que, apesar de todos os motivos que tinha para detestá-la, ainda a amava — amava-a como jamais pensara que pudesse amar uma mulher.

E o americano sentiu um certo alívio, ao avistar as águas do Rela Am, pondo fim àquela interminável caminhada, através da escura e lúgubre floresta, que tornava ainda mais tenebrosos seus próprios pensamentos, transformando aquele período num dos mais tristes de toda a sua vida.

Para a alegria de todos, lá estava o barco, amarrado a uma árvore, exatamente no lugar onde os horibs o haviam deixado. Em poucos minutos estavam embarcados, flutuando sobre as águas escuras do Rela Am.

À medida que se aproximavam do mar, o rio alargava-se consideravelmente, permitindo-lhes içar um mastro e desenrolar a vela, o que lhes dava uma velocidade muito maior. Embora o caminho fosse pontilhado de perigos, sob a forma dos vorazes e enfurecidos saurianos, as espingardas dos waziris garantiam uma proteção muito maior do que as armas antiquadas dos korsars.

O rio se tornara muito largo e não fosse pela correnteza, poderia ser considerado um braço do oceano. Sob o comando de Lajo, a embarcação tomou a direção da margem esquerda, perto da qual, segundo ele, o navio deveria estar ancorado. A margem oposta era muito pouco visível, pois a superfície de

Pellucidar era encurvada para cima. À mesma distância, se estivessem na crosta externa da terra, o outro lado nem seria visto, encoberto pela curvatura do globo terrestre.

Ao se aproximarem do mar, Lajo e Korsar demonstravam grande nervosismo, pois não viam o navio que ali ficara ancorado.

— Já ultrapassamos o lugar onde ele deveria estar — disse Lajo. — Aquela colina arborizada ficava exatamente do lado oposto ao local onde deveria estar o nosso navio. É impossível que eu esteja enganado, pois reparei bem nesse detalhe e fixei-o na memória para que nos servisse de ponto de referência, quando tivéssemos que retornar de nossa expedição.

— Então o capitão partiu sem nos esperar — resmungou um dos outros dois korsars, usando um adjetivo grosseiro, em relação ao capitão.

Continuando pelo oceano, avistaram uma grande ilha exatamente diante da embocadura do rio que Lajo conhecia como região de muita caça e água potável. E como estivessem todos famintos e sedentos, resolveram acampar na referida ilha, que, de fato, era um local aprazível, livre de animais ferozes e carnívoros. Não havia o menor sinal da passagem do homem por aquelas paragens, mas a caça era realmente abundante.

Discutindo os planos para o prosseguimento da viagem, chegaram à conclusão de que a melhor coisa a fazer seria continuar na embarcação até as imediações de Korsar, uma vez que Lajo garantia que suas terras ficavam a pouca distância da ilha.

— Não conheço nada para aqueles lados — disse ele, apontando para o sul — mas tenho certeza de que Korsar está situada nessa mesma costa, um pouco mais para diante, na direção norte. Se estou enganado, então não conheço mais nada sobre este oceano ou sobre Pellucidar, uma vez que as nossas expedições nunca passaram do Rela Am.

Imediatamente começaram os preparativos para o longo cruzeiro até Korsar. Cortaram em fatias uma grande quantidade de carne, secando-as ao sol ou defumando-as na fumaça de pequenas fogueiras, colocando-as depois em bexigas e tripas, devidamente limpas e secas. Tudo isso foi sendo estocado no fundo do barco, bem como uma grande reserva de água potável. Pretendiam seguir uma rota ao longo da costa, mas poderia sobrevir uma tempestade, afastando a embarcação para alto-mar e não pretendiam parar, durante a viagem, a fim de não perderem tempo e também para não correrem o risco de serem atacados por algum animal feroz. Portanto, era indispensável um bom carregamento de víveres e de água.

Finalmente, quando já estava tudo pronto, embarcaram todos, iniciando a longa viagem para Korsar, um grupo heterogêneo de pessoas que conseguia um relativo bom relacionamento entre si.

Jana ajudara muito nos preparativos, trabalhando, muitas vezes, lado a lado com Jason Gridley, mas sempre numa atitude distante, parecendo até ignorar sua presença.

— Será que não podíamos ser apenas bons amigos, Jana?

— perguntou-lhe Jason, certa vez. — Garanto que assim nós dois nos sentiríamos muito mais felizes.

— Sinto-me tão feliz quanto me permitem as circunstâncias

— respondeu-lhe a moça — até que Thoar me leve de volta para Zoram.

REUNIDOS OUTRA VEZ

Enquanto ventos favoráveis levavam a embarcação e sua tripulação ao longo da costa, a 0-220, seguindo a mesma rota, descrevia grandes círculos no ar, sobrevoando as regiões internas. Zuppner mostrava-se inteiramente sem esperanças de localizar os companheiros de expedição. E não só não tinha esperanças de encontrá-los, como também duvidava que pudesse reencontrar a saída de Pellucidar para a crosta externa da terra, no que era secundado por seus companheiros de vôo. Sabiam, todos eles, que as reservas de óleo e de combustível não poderiam durar eternamente e se não conseguissem mais encontrar a abertura polar, enquanto ainda dispusessem de quantidade suficiente de óleo e de combustível que permitisse a volta ao mundo civilizado, teriam que resignar-se em permanecer em Pellucidar para o resto de suas vidas.

Decorrido algum tempo, Hines tocou neste assunto com Zuppner e os dois oficiais, chamando Dorf para participar da conferência, decidiram que, antes de esgotarem as reservas de combustível, procurariam um local de pouso onde ficassem a salvo dos ataques das tribos mais selvagens e dos ferozes carnívoros de Pellucidar.

E enquanto a tripulação desempenhava suas tarefas de bordo e os oficiais remanescentes ponderavam sobre os sérios problemas que tinham pela frente, a 0-220 voava tranqüilamente sob aquele sol inextinguível de Pellucidar.

No entanto, Robert Jones, de Alabama, sentia-se angustiado. Não conseguira ainda se acostumar com os contrastes de Pellucidar. Freqüentemente era visto resmungando consigo mesmo, balançando a cabeça em sinal de desaprovação ou de não estar entendendo coisa alguma. Muitas e muitas vezes tirava o relógio da parede onde estava pendurado, levando-o ao ouvido.

O panorama visto da nave era o mais tranqüilo e o mais belo possível. Via-se a costa toda recortada por pequenas baías e enseadas. Havia pequenas colinas verdejantes, planícies, florestas e riachos de águas azuis como a turquesa. A paisagem era de inspirar os mais elevados sentimentos aos corações mais humildes. E aquele cenário deslumbrante causava efeitos diversos, na mente daquele grupo que constituía agora a tripulação da 0-220. Havia os espíritos aventureiros que jamais se lamentariam, no caso de terem que permanecer para o resto da vida em Pellucidar. Havia outros, mais apegados aos seus entes queridos, que já começavam a discutir as probabilidades e as possibilidades que o futuro lhes reservava. Com raras exceções, eram todos homens inteligentes e perspicazes, todos conscientes dos problemas que poderiam atingir a nave. Mas haviam sido muito bem selecionados e por isso mesmo não haveria o risco de uma falta de lealdade, para com Zuppner, ou mesmo falta de confiança na habilidade do piloto. Estavam certos de que, fosse qual fosse o destino que lhes estivesse reservado, Zuppner compartilharia dele; sabiam perfeitamente que ele era o único homem capaz de todos os recursos para evitar um fracasso.

E assim a grande nave continuava seu majestoso vôo entre o sol e a terra, com sua parte mecânica e sua parte humana funcionando perfeitamente bem, em completa harmonia.

Enquanto Zuppner e Hines ponderavam sobre o futuro, Robert Jones, em sua ingenuidade, limitava-se a contemplar aquele sol permanentemente a pino, aquele céu de um azul límpido e sem nuvens, esforçando-se por entender as estranhas condições meteorológicas de Pellucidar.

Finalmente, resmungando consigo mesmo palavras ininteligíveis, voltou à sua cozinha e, retirando o relógio do gancho, atirou-o por uma das escotilhas, irritado com a inutilidade daquele marcador de um tempo que não existia, naquele mundo desconhecido.

Quanto aos tripulantes da grande embarcação que singrava suavemente o mar azul de Pellucidar, sem meios para determinar o tempo ou a distância, a monotonia da viagem era-lhes menos penosa devido à constante expectativa de atingirem o fim da jornada e também devido aos repetidos ataques dos ferozes habitantes daquele oceano mesozóico.

Para o americano mais civilizado, a não-existência do fator tempo, em Pellucidar, era muito mais angustiante do que para os mais selvagens. Muviro e seus guerreiros waziris, por exemplo, mal se davam conta dessas anômalas condições, enquanto Tarzan, um pouco mais civilizado, já se enervava um pouco mais com a situação.

Os habitantes de Pellucidar, que só conheciam aquelas condições, não se deixavam abater. E esse fato se tornara evidente quando Tarzan e Jason discutiram o assunto com eles: demonstraram desconhecer totalmente o significado da passagem do tempo.

Não obstante, o tempo continuava a passar, enquanto a embarcação percorria léguas de oceano e as condições da viagem iam-se modificando.

À medida que avançavam, ao longo da costa, a rota começou a se modificar. E embora não dispusessem de instrumentos ou de corpos pesados para servir-lhes de orientação, estavam conscientes dessa modificação. Durante algum tempo, haviam seguido a direção noroeste e agora, durante um longo período, seguiam a direção leste, acompanhando a curvatura da costa. Depois, aos poucos, foram tomando a direção norte, e exclusivamente por instinto os korsars sabiam que já deveriam ter percorrido três quartos da distância entre a ilha, de onde haviam saído, e o ponto final da viagem. Começava a soprar uma brisa, vinda da terra, aumentando-lhes a velocidade. Lajo, de pé na proa da embarcação, parecia farejar o ar, como se fosse um cão de caça. De repente, virou-se para Tarzan.

— Acho melhor chegarmos mais para junto da costa — disse ele — pois esta brisa vai-se transformar em ventos fortes.

E mal ele acabara de pronunciar estas palavras, já um vento mais forte começava a agitar as águas do mar, assumindo rapidamente as proporções de um violento vendaval que levantava gigantescas ondas sobre a embarcação. Não era mais possível mudar a direção do barco e a solução era procurar fugir da tempestade, seguindo sempre em frente. Não havia chuva, nem relâmpagos e nem trovoadas, pois não havia nuvens no céu apenas uma ventania forte, quase um tufão, enquanto o mar se erguia c se agigantava como se quisesse tragar a grande embarcação.

Os waziris estavam aterrados, uma vez que não estavam acostumados com o mar. Jana e Thoar pareciam muito assustados, mas não davam a menor demonstração de medo. Tarzan e Jason estavam certos de que o barco não venceria a tempestade e o americano dirigiu-se para onde estava a Flor Vermelha de Zoram, tentando equilibrar-se sentada sobre um banco. O barulho do vento impedia qualquer troca de palavras, mas Jason abaixou a cabeça e colocou os lábios à altura do ouvido da jovem.

— Jana — disse-lhe ele — é impossível que este barco consiga vencer a tempestade. Nós vamos morrer, mas antes que isso aconteça, mesmo que você me odeie, quero dizer-lhe que gosto de você. Eu a amo!

E antes que ela tivesse tempo de responder, antes que ela o humilhasse ainda mais, Jason afastou-se, voltando para onde estava.

Sabia que havia agido erradamente, sabia que não tinha o direito de declarar seu amor à namorada de Thoar, sabia que cometera um ato de deslealdade contra seu amigo, mas uma força maior do que a lealdade, maior do que seu orgulho, o tinha levado a pronunciar aquelas palavras. Não poderia morrer sem dizer a Jana o que sentia por ela. Talvez lhe tivesse sido mais fácil falar, por ter notado que as relações entre Thoar e a moça fossem completamente platônicas. E como não pudesse admitir um amor platônico por aquela jovem atraente e bela, chegara à conclusão de que Thoar não deveria gostar muito dela. Thoar mostrava-se sempre muito gentil para com a Flor Vermelha de Zoram, mas não muito preocupado com ela, como deveria ser, no caso de amá-la verdadeiramente. Talvez se tratasse de mais uma das estranhas características dos pellucidarianos e de toda a maneira era difícil entender o temperamento de Jana e Thoar, sendo eles duas criaturas humanas normais, demonstrando muito maior discrição e dignidade do que os homens civilizados. Por outro lado, não era comum que duas pessoas, ligadas por um sentimento de amor havia tanto tempo, não deixassem escapar qualquer indicação, qualquer sinal deste amor.

— Parece até que são irmãos — disse Jason para consigo mesmo.

A tempestade continuava a açoitar o mar até que, por milagre, a embarcação conseguiu atravessá-la ilesa. E quando o vendaval diminuiu de intensidade c as águas voltaram ao normal, não se via o menor sinal de terra por perto.

— Agora que estamos afastados da costa, Lajo, como é que poderemos retomar a rota para Korsar? — indagou Tarzan.

— Não vai ser fácil — respondeu-lhe o korsar. — Só poderemos orientar-nos pelo vento. Estamos cm plenas águas do Korsar Az c sei de que lado costuma soprar o vento. Se conseguirmos manter-nos sempre na direção desse vento, é possível que alcancemos terra firme, não muito longe de Korsar.

— O que é aquilo? — perguntou Jana, apontando para alguma coisa que flutuava no mar. Todos os olhares se viraram na direção que ela indicava e foi Lajo quem deu as explicações.

— É uma vela de barco — disse ele. — Estamos salvos.

— Mas suponhamos que sua tripulação seja de inimigos? — indagou Jason.

— Não será — tornou Lajo. — Devem ser todos korsars, pois nenhuma outra embarcação singra o mar de Korsar Az.

— Mas há uma outra — continuou Jana. — Há muitas outras iguais à primeira!

— Então é melhor tentarmos fugir deles — disse Tarzan

— uma vez que ainda não nos devem ter visto.

— Fugir, por quê? — perguntou Lajo.

— Porque não dispomos de gente suficiente para combatê-los — explicou o homem-macaco. — Pode ser que não sejam seus inimigos, mas podem ser nossos!

Lajo cedeu à sugestão do Rei das Selvas, pois não tinha outra alternativa. A bordo de sua embarcação havia apenas três korsars desarmados c dez waziris armados de espingardas.

Ninguém tirava os olhos dos barcos que chegavam cada vez mais perto, uma vez que a embarcação dos korsars, com sua pequena vela, não podia atingir maior velocidade. Pouco a pouco a distância entre eles diminuía e era evidente que a pequena frota perseguia o barco de Lajo.

— Agora tenho a certeza de que essas embarcações não são dos korsars — disse ele. — Nunca vi nenhum barco semelhante a estes, em Korsar Az.

E procurava, a todo custo, aumentar a velocidade da embarcação, enquanto a pequena frota se aproximava velozmente, uma pequena frota que agora dava a impressão de uma grande armada.

O barco que vinha à frente estava já tão perto que a tripulação da embarcação dos korsars podia até vislumbrar suas características em todos os seus detalhes. Dispunha de duas velas e além disso era impulsionado pela força de remos, uns cinqüenta remos ao todo, emergindo por orifícios de cada lado da embarcação. Acima da linha dos remos, sobre as amuradas laterais, viam-se os escudos dos guerreiros.

— Meu Deus! — exclamou Jason Gridley. — Além de piratas espanhóis, há também vikings aqui em Pellucidar! Se aqueles barcos não são de vikings, são adaptações dos mesmos!

— Ligeiramente modernizados — ajuntou o homem-macaco. — Há um canhão instalado num pequeno compartimento, na proa da embarcação.

— Isso mesmo — disse Jason — e deveríamos ter tentado fugir deles, pois há um homem manobrando o canhão em nossa direção.

No mesmo instante, aparecia um outro homem na proa do barco inimigo.

— Parem! — gritou ele. — Ou então vocês explodirão no ar!

— Quem é você? — perguntou Jason Gridley.

— Sou Ja de Anoroc — respondeu o desconhecido. — E esta esquadra pertence a David I, Imperador de Pellucidar.

— Ainda está em tempo de mudarmos de direção — aconselhou Tarzan a Lajo.

— Alguém, nesta nossa embarcação, deve ter nascido em dia de domingo — disse Jason — pois nunca vi tanta sorte como a nossa!

— Quem são vocês — perguntou Ja, aproximando-se cada vez mais.

— Somos amigos — respondeu Tarzan.

— O Imperador de Pellucidar não tem amigos no mar de Korsar Az — respondeu Ja.

— Se Abner Perry estiver com vocês — disse Jason — poderemos provar que você está enganado.

— Abner Perry não está conosco — continuou Ja. — Mas, o que é que vocês sabem a respeito dele?

Àquela altura as duas embarcações já se encontravam lado a lado e os bronzeados guerreiros mezops, que constituíam a tripulação de Ja, observavam com curiosidade os ocupantes do barco dos korsars.

— Este aqui é Jason Gridley — disse Tarzan, dirigindo-se a Ja, ao mesmo tempo que apontava para o americano. — Talvez vocês já tenham ouvido Abner Perry falar nele. Foi Jason quem organizou uma expedição, vinda da crosta externa da terra, para salvar David Innes das mãos dos korsars.

Ja parecia desconfiado daqueles três korsars, a bordo da embarcação, mas quando ouviu maiores explicações sobre a expedição de Gridley e quando examinou as espingardas dos waziris, convenceu-se da veracidade das declarações e deu-lhes as boas vindas ao seu barco, à volta do qual já se aglomerava toda a esquadra. Quando se espalhou entre eles a notícia de que havia dois amigos do mundo exterior, entre os desconhecidos da outra embarcação, amigos que tinham vindo ajudar a salvar David Innes, diversos comandantes passaram para o barco de Ja, a fim de cumprimentar Tarzan e Jason Gridley. Dentre esses capitães estavam: Dacor, o Forte, irmão de Diana, a Bela, a imperatriz de Pellucidar; Kolk, filho de Goork, chefe dos thurianos, e Tanar, filho de Ghak, o Cabeludo, Rei de Sari.

E foi através deles que Tarzan e Jason ficaram sabendo que aquela esquadra estava no mar, justamente para tentar o salvamento de David Innes. Haviam levado muito tempo para construir todos aqueles barcos, tanto tempo que nem poderiam dizer quantas vezes haviam dormido e quantas refeições haviam feito, desde que se iniciara a construção da primeira quilha. Agora estavam à procura da rota que os levaria às terras dos korsars, através do mar de Korsar Az, vindo pelo Lural Az, onde os barcos haviam sido construídos na ilha de Anoroc.

— Muito abaixo do Sojar Az, além da Terra da Sombra Grande, encontramos uma passagem para o mar de Korsar Az — explicou um dos comandantes. — Os thurianos já tinham ouvido falar nela e enquanto nossas embarcações eram construídas, eles enviaram seus guerreiros para saberem se a referida passagem realmente existia. Encontraram-na e aqui estamos nós a pouca distância de Korsar.

— Como é que vocês pretendem salvar David Innes só com uma dúzia de homens? — perguntou Tanar.

— Nossa expedição não está toda aqui — explicou Tarzan.

— Nós nos perdemos de nossos companheiros e não conseguimos encontrá-los mais. No entanto, não dispomos de muitos homens, mesmo que a expedição estivesse reunida. Dependemos de outros meios, que não a força do homem, para libertar David Innes, o Imperador de vocês.

Naquele instante, ouviu-se um grito que partia de uma das embarcações. Uma grande excitação espalhou-se entre todos enquanto os guerreiros apontavam para o céu. Alguns já erguiam o cano de seus canhões, outros armavam as espingardas, e quando Tarzan e Jason olharam para cima avistaram a 0-220 voando sobre eles.

A nave havia localizado a esquadra c descia lentamente sobre ela, descrevendo uma grande espiral.

— Agora tenho a certeza de que alguém aqui deve ter nascido em dia de domingo — pilheriou Jason Gridley. — Aquela é a nave que nos trouxe até aqui c dentro dela devem estar nossos companheiros — disse ele, dirigindo-se a Ja.

A notícia espalhou-se rapidamente por todas as embarcações da esquadra, até que todos os tripulantes ficaram sabendo que não se tratava de algum estranho e perigoso réptil voador, mas sim de uma nave que transportava amigos de Abner Perry e de David I, o Imperador de Pellucidar.

Muito lentamente a 0-220 foi baixando em direção à superfície do mar e enquanto isso Jason Gridley apanhava uma lança de um dos guerreiros, amarrando o lenço de Lajo na sua ponta. E com aquela bandeira improvisada, conseguiu sinalizar a seguinte mensagem: “Olá, 0-220! Essa esquadra pertence a David I, Imperador de Pellucidar, comandada por Ja de Anoroc. Lord Grcystoke, dez waziris e Jason Gridley estão a bordo!”

Logo em seguida ouviu-se uma salva de canhão, partindo da 0-220, que era a primeira das vinte c uma que se seguiram, constituindo a primeira saudação internacional jamais ouvida em Pellucidar. E quando Ja recebeu explicações sobre seu significado, apressou-se em responder com outras tantas salvas do canhão que tinha na proa de seu navio.

A 0-220 baixou até uma distância que permitia a seus tripulantes trocarem algumas palavras com a tripulação da embarcação de Ja.

— Vocês estão bem? — perguntou Tarzan.

— Muito bem — respondeu-lhe Zuppner.

— Von Horst está com vocês? — perguntou Jason.

— Não — disse Zuppner.

— Então é só ele que está faltando — concluiu tristemente o americano.

— Será que vocês podem atirar uma escada de corda para que possamos subir para bordo? — perguntou Tarzan.

Zuppner manobrou a nave, colocando-a a quinze metros do tombadilho da embarcação de Ja; uma escada de corda foi lançada e um por um foi subindo para a 0-220. Primeiro subiram os waziris, depois Jana e Thoar, seguidos por Jason e Tarzan, sendo que os três korsars permaneceram no barco de Ja, como prisioneiros, com a condição de serem tratados com humanidade.

Antes de Tarzan deixar a embarcação, havia combinado com Ja que, se prosseguissem até Korsar, o dirigível manter-se-ia em contato com ele, enquanto traçariam os planos para o salvamento de David Innes.

Quando Thoar e Jana se viram a bordo da 0-220, não conseguiam esconder seu espanto. Para eles, aquela gigantesca nave, construída pela mão do homem, era inconcebível.

— Tive a impressão de estar sonhando — explicou Jana, mais tarde. — Mas, ao mesmo tempo, sabia que não poderia sonhar com uma coisa que nunca tinha visto e que não poderia existir!

Jason apresentou Jana e Thoar a Zuppner e a Hines, mas o tenente Dorf só chegou à cabina de comando depois que Tarzan havia subido para bordo. E foi este quem apresentou os dois habitantes de Zoram a seu amigo Dorf.

— Essa é Jana — disse ele — e este é Thoar, o irmão da Flor Vermelha de Zoram.

Quando estas palavras chegaram aos ouvidos de Jason Gridley, ele reagiu como se tivesse levado uma pancada física. E deu-se por muito feliz de ninguém estar prestando atenção à sua pessoa, enquanto se refazia do choque e procurava dissimular sua emoção. No entanto, teve a sensação de ter sofrido uma grande injustiça, por parte de todos. Então os outros sabiam que Thoar era irmão de Jana e ninguém se lembrara de lhe contar! E já estava a ponto de se zangar com os companheiros quando lhe ocorreu a idéia de que, provavelmente, todos pensavam que ele sabia, todos menos Jana, que bem poderia ter-lhe avisado. No entanto, não fazia diferença que Thoar e Jana fossem irmãos ou namorados, pois o fato é que a Flor Vermelha de Zoram não queria saber dele. Isso ela deixara bem claro, com a atitude que assumira a seu respeito atitude que o convencera muito mais do que as palavras amargas que ouvira dos lábios da jovem das montanhas.

Enquanto a 0-220 prosseguia em seu curso, os oficiais reunidos tinham muito que contar e muito que discutir sobre os planos futuros. Mas sentiam-se, acima de tudo, muito felizes, preocupados apenas com a ausência de Von Horst.

Sobrevoavam agora o mar de Korsar Az, quando Zuppner resolveu descer sobre a embarcação de Ja de Anoroc. E assim que avistaram a costa de Korsar, foi içada a escada de corda e Ja subiu para bordo da grande nave, a fim de tomar conhecimento dos planos para o salvamento de David Innes. Em seguida, retornou ao seu barco e subiram então os três korsars prisioneiros para o interior da 0-220.

Tarzan encarregou-se de mostrar a eles toda a nave, explicando-lhes o funcionamento de cada aparelho, de cada arma, e os três não esconderam uma certa tensão ao tomar conhecimento do alto poder de destruição das bombas que a nave transportava, para qualquer eventualidade.

— Bastaria uma delas — disse Jason a Lajo — para que o palácio do Cid voasse pelos ares. E como vêem, temos várias desse tipo. Poderíamos destruir Korsar e todos os seus navios.

Enquanto Ja mantinha sua esquadra a uma considerável distância da costa, a 0-220 dirigia-se, a toda velocidade, para as terras dos korsars, pois o plano que haviam elaborado, se bem sucedido, garantia o salvamento de David Innes sem derramamento de sangue. Se fosse necessário atacar a cidade de Korsar, fosse por mar ou fosse pelo ar, a vida do Imperador estaria em perigo, não só pelas bombas e pelos canhões de seus amigos, como também por um possível espírito de vingança do Cid.

Enquanto o grande dirigível sobrevoava a cidade, as ruas e os terrenos das casas se enchiam de pessoas olhando aterradas para o céu.

Quando estavam exatamente a uma altitude de trezentos metros sobre Korsar, Tarzan mandou chamar os três prisioneiros à sua presença.

— Como vocês sabem — disse-lhes ele — estamos numa posição em que poderíamos destruir completamente a cidade. Vocês viram a grande esquadra que se aproxima para salvar o Imperador de Pellucidar. Sabem que cada guerreiro, naquelas embarcações, dispõe de armas muito mais possantes do que as melhores que vocês possuem. Mesmo que só usassem facões, lanças e arcos e flechas, tomariam facilmente Korsar. No entanto, além dessas armas, eles ainda têm as espingardas e um canhão em cada embarcação. A esquadra de Ja seria o suficiente para destruir a cidade, mas aqui estamos nós, pelo ar, com bombas de grande potência, como já tiveram ocasião de constatar. Os tiros de suas armas jamais atingiriam a O-220. Você não está convencido, Lajo, de que podemos tomar a cidade em pouco tempo?

— Estou certo disso — respondeu Lajo.

— Bem — disse Tarzan — então nós vamos enviar uma mensagem ao Cid, por seu intermédio. Você promete que lhe falará a verdade?

— Prometo — respondeu Lajo.

— A mensagem é muito simples — continuou o homem-macaco. — Você vai dizer ao Cid que vimos até aqui para libertar o Imperador de Pellucidar. Explicará a ele quais são os meios de que dispomos para conseguir nosso objetivo, caso seja necessário reforçar nosso pedido. Em seguida, você dirá que, se ele enviar o Imperador num barco, ao encontro da embarcação de Ja de Anoroc, sem armas, voltaremos imediatamente para Sari, sem que um único tiro seja disparado. Compreendeu bem?

— Compreendi — respondeu Lajo.

— Muito bem — prosseguiu o homem-macaco. — Agora, Dorf, — disse ele, dirigindo-se ao companheiro — prepare-o para descer.

Dorf aproximou-se, trazendo uma espécie de trouxa nos braços.

— Vista isso — ordenou-lhe Dorf.

— O que é isto? — indagou Lajo.

— É um pára-quedas — informou Dorf.

— Mas, de que se trata? — insistiu Lajo.

— Enfie os braços nestas alças — continuou Dorf, sem maiores explicações.

E em poucos instantes o pára-quedas estava ajustado em Lajo.

— Agora — disse Jason Gridley — uma grande honra vai ser conferida a você, pois você executará o primeiro salto de pára-quedas sobre Pellucidar!

— Não estou entendendo o que você quer dizer — disse Lajo.

— Vai entender num instante — continuou Jason. — Você vai ser o portador da mensagem de Lord Greystoke para o Cid.

— Mas vocês vão ter que descer com a nave até à terra — tornou Lajo.

— Muito ao contrário — disse Jason — ficaremos exatamente na altura em que estamos e você saltará no espaço.

— Como?! — exclamou Lajo. — Então vocês vão-me matar?

— Não — respondeu-lhe Jason, com um sorriso. — Se você fizer exatamente o que eu lhe disser, chegará são e salvo a Korsar. Já teve ocasião de ver algumas coisas maravilhosas, dentro desta nave, não é verdade? Portanto, deve ter uma noção do que nós, da face externa da terra, somos capazes de inventar. Agora, terá oportunidade de assistir à demonstração de outro maravilhoso invento do homem civilizado e lhe dou minha palavra de honra que nada de mal lhe acontecerá, se seguir fielmente todas as minhas instruções. Aqui está uma argola de ferro — e Jason mostrou-lhe a argola que pendia sobre seu peito, do lado esquerdo. — Segure-a com sua mão direita. Depois que você saltar da nave, puxe a argola com força de uma só vez, e imediatamente começará a flutuar no espaço, leve como uma pluma, até atingir a terra.

— Vou morrer — disse Lajo.

— Se você está com medo, se é covarde — continuou Jason — talvez um desses outros Korsars tenha mais coragem do que você. Já lhe disse que não correrá o menor perigo e nem sofrerá a menor escoriação.

— Não tenho medo, nem sou um covarde — protestou Lajo. — Eu saltarei.

— Diga ao Cid — continuou Tarzan — que começaremos a bombardear a cidade se não virmos imediatamente um barco zarpar sozinho, em direção à esquadra de Ja.

Dorf conduziu Lajo até à porta da cabine de comando, abrindo-a. O Korsar hesitou.

— Não se esqueça de puxar a argola — disse-lhe Dorf. Em seguida deu-lhe um violento empurrão, fazendo-o saltar de cabeça, através da porta da cabine e um instante depois abria-se o pára-quedas no ar. Todos assistiram àquela cena e todos tinham certeza de que a mensagem seria transmitida ao Cid.

Ninguém soube ao certo o que aconteceu na cidade, depois da chegada de Lajo. Tudo que se viu, da nave, foi o povo se deslocando da frente do palácio para a beira do rio, onde as embarcações estavam ancoradas. Logo em seguida, um dos barcos levantou âncora e partiu pelo rio abaixo, levado pela correnteza, até entrar no oceano, avançando em direção à esquadra que viera de Sari.

A 0-220 sobrevoava a região e a embarcação de Ja deslocou-se em direção ao barco dos korsars. E assim, David Innes, Imperador de Pellucidar, foi devolvido a seu povo.

Quando o barco dos korsars voltou a seu local de origem a 0-220 baixou de altitude, exatamente sobre o barco de Ja de Anoroc e foram trocadas saudações amistosas entre David e seus salvadores — homens de um outro mundo, homens que ele jamais conhecera.

O Imperador havia passado fome e estava muito emagrecido e muito fraco, depois daquele longo período de cativeiro. Mas, por outro lado, não lhe haviam maltratado e foi indescritível a alegria entre os tripulantes de toda a esquadra de Sari quando voltaram a atravessar o Korsar Az, em direção aos seus domínios.

Tarzan estava apreensivo, quanto ao fato de acompanhar a esquadra até Sari, temeroso de que o combustível não fosse suficiente para ir até lá e depois levá-los de volta à crosta externa da terra. Resolveram, então, seguir as embarcações até o ponto em que David Innes lhes pôde fornecer informações precisas para encontrar a abertura polar, partindo daquela região.

— Ainda temos uma tarefa a cumprir — lembrou Jason a Tarzan. — Temos que levar Jana e Thoar até Zoram.

— É verdade — respondeu o homem-macaco. — Além disso, temos que deixar estes dois korsars nas proximidades da cidade deles. Já havia pensado em tudo isso, daí a minha preocupação com o combustível.

— Não voltarei com vocês — disse Jason Gridley, para espanto de todos. — Desejaria que vocês me fizessem descer para a embarcação de Ja.

— Que é que você está dizendo? — perguntou Tarzan. — Você pretende ficar aqui?

— Essa expedição foi organizada e foi realizada por sugestão minha — disse Jason. — Sinto-me responsável pela segurança e pela vida de cada um dos participantes e jamais voltaria para a crosta externa da terra sem descobrir o destino de Von Horst.

— Mas, como é que você poderá encontrar Von Horst se vai voltar para Sari com a esquadra? — perguntou Tarzan.

— Pedirei a David Innes que organize uma expedição para dar busca por Von Horst — explicou Jason. — Com um grupo de pellucidarianos na expedição, será muito mais fácil localizar nosso companheiro do que com a 0-220.

— Nisso concordo com você — disse Tarzan. — E se está realmente resolvido a levar adiante este plano, desceremos imediatamente sobre a embarcação de Ja.

Enquanto a 0-220 baixava sobre o barco, fazendo-lhe sinais para interromper a marcha, Jason juntou seus pertences, incluindo revólveres e espingardas, juntamente com grande quantidade de munição. Esse material desceu em primeiro lugar, para dentro da embarcação, enquanto Jason Gridley despedia-se dos amigos.

— Adeus, Jana — disse ele, depois de apertar as mãos de todos os outros.

A moça nada respondeu; apenas virou-se na direção do irmão.

— Adeus, Thoar — disse-lhe ela.

— Adeus? — perguntou ele, sem entender. — O que é que você quer dizer com isto?

— Vou para Sari com o homem que amo — respondeu a Flor Vermelha de Zoram.

 

                                                                                            Edgar Rice Burroughs

 

                      

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