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O céu mostrava-se turvo, de uma opacidade cinzenta e lúgubre, obscurecido pelas fumaradas que se elevam do porto. O sol, ardentíssimo, rompe a custo os nevoeiros densos, e mal reflete na água revolvida pelos lemes e hélices, pelas quilhas agudas dos faluchos turcos e dos barcos de vela que cortam o porto em todos os sentidos. As ondas, aprisionadas pelo granito das muralhas e sob a pressão dos pesados monstros de ferro, chocam de encontro aos costados dos vapores, galgando os molhes e murmurando a grande cólera indómita do oceano.
O ranger das correntes, o rodar dos vagões carregados de mercadorias, o gemido metálico das placas de ferro caindo, as sereias dos vapores, os gritos dos marinheiros e dos guardas, todos esses ruídos, tornando por assim dizer a atmosfera mais densa, como que se fundem num todo uníssono e vibrante, formidável clamor do trabalho humano, pululando, repercutindo-se, agitando-se sem tréguas.
O granito, o ferro, as barcas e os homens, aglomeração imensa de vida e de labor, erguem como que um hino sagrado ao deus do Tráfego. Mas neste brouhaha confuso, as vozes dos homens são afogadas por todos os outros ruídos, e eles próprios sentem-se pequenos e nulos diante da grandeza imponente que os rodeia. Cobertos de farrapos, curvados sobre as cargas enormes, agitam-se como vermes numa atmosfera abrasada e irrespirável, humilhados na sua insignificância ao lado dos colossos de ferro, das montanhas de mercadorias, dos comboios que correm vertiginosamente, de todas essas coisas, enfim, feitas de pequeninos nadas que as suas mãos juntaram num todo uniforme e vivo. A sua obra escraviza-os, anula-lhes a personalidade.
Os barcos gigantescos resfolegam como monstros de outras eras, parecendo porém em cada silvo agudo uma nota de ironia e desprezo por esses homens que se arrastam sobre as pontes e vão encher-lhes os flancos
com os produtos do seu labor de escravos. As grandes filas de descarregadores têm o quer que seja de ridículo e de lúgubre. Curvados e anelantes, transportam enormes quantidades de tripo para a goela insaciável
daqueles ventres de ferro a troco de uma miserável remuneração que mal lhes chegará para matar a fome. Esfarrapados, cobertos de suor, embrutecidos pela fadiga e pelo calor, que profunda ironia, o contraste
destas figuras lúgubres ao lado das máquinas reluzentes e poderosas, construídas pelas suas mãos, movidas pelos seus músculos e pelo seu sangue!
O ruído ensurdece, o pó irrita as narinas; tudo tem o aspeto de uma saturação de força latente prestes a rebentar nalguma catástrofe formidável, depois da qual, o ar se torne respirável, o céu adquira
o seu brilho, e a vida entre na tranquilidade pacífica do seu labor normal. Mas isto não é mais do que uma ilusão criada pela esperança infatigável do homem e por essa aspiração de liberdade, imperecível
e sempre ardente.
Soaram doze badaladas com uma sonoridade majestosa. O ruído confuso do trabalho foi amortecendo pouco a pouco como uma grande tempestade que se acalma. Apenas um murmúrio surdo errava pelas docas, onde
se distinguiam a voz do mar e a voz dos homens. Era a hora da refeição.
***
Quando os descarregadores se dispersaram, instalando-se nos lugares onde havia sombra e comprando comestíveis aos vendedores ambulantes, apareceu o velho Grichka Tchelkache, muito conhecido no porto pelas
suas proezas. Era um sujeito constantemente perseguido pela polícia e famoso como bebedor emérito e gatuno incorrigível. Ia descalço e com a cabeça descoberta; levava calças de pano velho e uma blusa de
algodão, rasgada nos ombros, deixando perceber sob a pele morena os ossos secos e angulosos. Os cabelos em desalinho e a cara de ave de rapina ainda por lavar indicavam que o velho acabava de levantar-se.
Levava uma palha no bigode espesso e comprido, outra nos pelos da cara e um ramo de tília recém-colhido, por detrás da orelha. Largo, ossudo, um pouco curvado, caminhava lentamente, esfregando as mãos
de dedos retorcidos e nodosos e lançando a vista para todos os lados como se procurasse alguém entre os descarregadores. Posto que parecesse um tipo vulgar em tal sítio, conseguia, porém, prender a atenção
pela sua semelhança com o milhano das estepes, pela sua desenvoltura de rapaz, o passo ligeiro e suave, mas, excitado e cauteloso como o voo da ave que a sua figura fazia lembrar.
Chegando a um grupo de operários instalados à sombra de grandes cestos de carvão, dirigiu-se-lhe um moço sujo e esfarrapado, saudando-o. Tinha o rosto corado e grandes arranhaduras no pescoço, sinal evidente
de uma luta recente. Aproximando-se de Tchelkache disse-lhe a meia voz:
— Os guardas andam à busca de duas caixas de mercadorias que desapareceram. Compreendes, Grichka?
— O que é? — perguntou o outro.
— É que as andam a procurar.
— Convidaram-me porventura para ir também procurá-las? — replicou Tchelkache, olhando fixamente os depósitos da Armada. — Vai para o diabo!
O moço voltou para o seu lugar.
— Mas espera! Quem te pôs nesse estado? Viste por aqui Michka?
— Há muito tempo que o não vejo.
Tchelkache continuou a sua ronda, recebendo cumprimentos amigáveis de todos. Posto que habitualmente alegre e mordaz, estava naquele dia de mau humor, replicando brevemente às perguntas que lhe faziam.
Detrás de um grande fardo surgiu um guarda com o uniforme verde-escuro todo cheio de pó. Cortando o caminho a Tchelkache, colocou-se-lhe diante com modos provocadores, agarrando-o pelo pescoço ao mesmo
tempo que lançava a outra mão ao punho da espada.
— Para aí! Onde é que vai?
Tchelkache retrocedeu um passo e, contemplando o guarda, limitou-se a sorrir com ar desprezível.
A cara do soldado, astuta e bonacheirona, debalde tentou uma expressão carrancuda.
— Sabes que te proibiram a entrada no porto; se teimas, quebro-te um dia as costelas — ameaçou o guarda.
— Bons dias, Semenitch! Há muito tempo que te não via — replicou Tchelkache, estendendo-lhe tranquilamente a mão.
— Preferia nunca te encontrar — disse o outro, estreitando-lhe a mão.
— Preciso que me digas uma coisa, Semenitch — acrescentou Tchelkache, sem largar-lhe a mão. — Viste por acaso Michka?
— Qual Michka? Não conheço ninguém com esse nome! Vai-te, amigo, não te veja o inspetor, senão...
— O russo, aquele com quem trabalhei em «Hostroma» — prosseguiu Tchelkache.
— É melhor dizer com quem roubaste... O teu Michka está no hospital com as patas esmagadas por uma barra de ferro. Vai-te, amigo. Peço-te, senão terei que te despedir à força.
— Ah, não o conhecias, então? Porque estás zangado, Semenitch?
— Bem, bem, Grichka, safa-te e deixa-me em paz...
O soldado começava a impacientar-se e, olhando para todos os lados, fazia esforços para soltar a mão.
— Não tenhas tanta pressa, homem. Quando te tiver dito o que quero, ir-me-ei então. Como vai a tua vida? A tua mulher e os teus filhos estão bons?
E, lançando-lhe um olhar perspicaz, acrescentou com os dentes cerrados:
— Ando com vontade de ir visitar-te uma vez; mas embebedo-me sempre...
— Bem, bem, acabemos com isto... Nada de zombarias, senão! Tens muito gosto em ir roubar casas e ruas?
— Para quê? Não temos aqui bastante para ambos? Sim, Semenitch. Lá desapareceu outro par de caixas! Cuidado, Semenitch, não te apanhem um dia com a boca na botija.
Indignado pelo atrevimento de Tchelkache o soldado tremia de cólera, suspirando raivosamente e fazendo esforços para falar.
O velho largou-lhe a mão e seguiu tranquilamente para a entrada dos molhes. O guarda seguia-o, praguejando como um danado.
Tchelkache pusera-se de bom humor. Com as mãos nos bolsos das calças ia assobiando por entre os dentes, dirigindo chalaças aos conhecidos.
— Ditoso Grichka! — gritou-lhe um dos descarregadores. — A autoridade preocupa-se muito contigo.
— E mais não tenho sapatos; sem dúvida, por isso me dizia Semenitch que cuidasse dos pés.
Chegando à porta, dois soldados empurraram-no para fora, não o deixando entrar.
— Apanhem-no! — gritou Semenitch que acabava de chegar.
Tchelkache atravessou a via e foi sentar-se num poial próximo da taberna. Saía do porto uma infinidade de carros carregados e no sentido inverso iam chegando outros vazios. O solo estremecia sob o ruído
infernal que se levantava do porto. Tchelkache habituado àquele chinfrim estava como que no seu elemento.
Apresentava-se-lhe um bom negócio para aquela noite e com vantagem rara de não ser arriscado. Julgando segura a empresa, regozijava-se pensando na pândega do outro dia. Lembrou-se de Michka que lhe seria
de grande utilidade se não fosse aquela maldita ocorrência de se deixar colher.
Soltou uma maldição supondo que a falta de Michka lhe ia transtornar o negócio. Que tal estaria a noite? Pôs-se a interrogar o céu e a rua.
A seis passos de distância estava sentado à beira do passeio um rapaz de blusa e calça azul, com sapatos de cortiça e um gorro vermelho na cabeça. Tinha junto dele um saco e uma foice embrulhada cuidadosamente
em feno.
O moço era largos de ombros, forte e arruivado, com o rosto crestado pelas intempéries; contemplava Tchelkache com os seus grandes olhos azuis, onde havia uma comunicativa expressão de bondade.
Tchelkache deitando-lhe a língua de fora fez-lhe uma horrível carantonha para ver o que ele dizia.
O moço surpreendido, desatou a rir.
— Que graça tu tens! — E arrastou-se pesadamente para Tchelkache, arrojando o saquito e golpeando as pedras com a foice.
— Parece que nos havemos de divertir um pouco, amigo.
— Adivinhas, rapaz — replicou Tchelkache com bonomia.
Simpatizou com aquele moço robusto e ingénuo, de olhos grandes e infantis.
— Vens da ceifa?
— Sim. Ceifei uma versta para ganhar apenas um kopek. A coisa vai mal. São tantos os trabalhadores! Os esfomeados fazem baixar os preços. Em Kubagne pagam sessenta kopeks e dantes chegavam a três, quatro
e cinco rublos!
— Dantes! Acredito. Naquele tempo davam três rublos só para contemplar um verdadeiro russo. Há dez anos entretinha-me a mostrar-me. Chegava a um povoado e dizia: «Sou um russo, um russo autêntico». Miravam-me,
apalpavam-me e num instante caíam três rublos no bolso. Além disso davam-se de comer, e de beber, convidando-me a permanecer ali o tempo que quisesse.
O momo escutava Tchelkache com uma admiração sincera, escancarando a boca de pasmo; compreendendo, porém, que aquele esfarrapado estava a troçar com ele, soltou uma gargalhada, enquanto o velho permanecia
muito sério, escondendo o sorriso por debaixo do bigode.
— És um divertido! Falas de tal modo que muita gente acreditaria em ti.
— Porquê? Julgas porventura que não é verdade?
— Vai bugiar! Olha lá, que és tu? Sapateiro ou alfaiate?
— Eu? — perguntou Tchelkache. E depois de um momento de reflexão disse: — Sou pescador.
— Pescador? Deveras? E que é que tu pescas? Peixes?
— Porque havia de ser peixes? Aqui não pescamos isso. Regra geral, pescamos afogados, âncoras velhas, barcas que foram a pique. De tudo! Temos rede para toda a espécie de objetos.
— Ah! Ah! Ah! És então desses pescadores que cantam:
Quando deitámos as nossas redes
É em terreno bem seco,
Sobre estábulos e granjas!
— Já viste algum desses? — perguntou Tchelkache ironicamente, julgando que aquele moço devia ser muito estúpido.
— Não sei, mas ouvi falar deles.
— E agradam-te?
— Porque não? É gente livre e arrojada.
— Que necessidade tens tu de liberdade?
— Ora essa! Com a liberdade podemos fazer tudo o que quisermos... Consegue-se tudo o que se deseja, diverte-se a gente que é uma graça, sem ofender a Deus, bem entendido.
Tchelkache cuspiu com ar de desprezo, divertido com a tagarela do rapaz.
— Olha para mim — disse ele — e vê o que me sucede. Meu pai morreu deixando-me uma insignificância. Minha mãe está já velha e na terra, cansada, nada produz. Preciso viver. Como? De que modo?
— Sei lá! Casar-me-ia de boa vontade com alguma moça que possuísse de seu. O sogro, porém, não estaria pelo ajuste de contas; seria preciso trabalhar anos e anos para os manter a todos. Se obtivesse cento
e cinquenta rublos sentir-me-ia capaz de dizer ao velho. Dás ou não dás um dote a Marfa? Não queres? Pois bem, graças a Deus, não faltam moças na aldeia.
O moço suspirou, acrescentando:
— Agora não tenho outro remédio senão casar-me ou ir a Kubagne para ver se reúno duzentos rublos. O mais certo é não alcançá-los e ter que pôr-me ao serviço de alguma família como um escravo.
Não lhe agradava aquela ideia de casar com uma moça rica que continuasse a viver em casa dos pais. Tomou uma expressão sombria, abanando a cabeça, desalentadamente.
Tchelkache, posto que com pouca vontade de falar, perguntou-lhe:
— E o que fazes agora? Aonde vais?
— Para casa.
— Não podias ir para outra parte, para a Turquia, por exemplo?
— Fazer o quê? Vão lá cristãos, porventura?
— Que imbecil — murmurou Tchelkache, contemplando de mais perto o interlocutor. Aquele robusto camponês despertara-lhe ideias estranhas.
Um despeito inexplicável absorvia-o numa contínua reflexão, desligando-lhe os pensamentos dos projetos que tencionava pôr em prática aquela noite.
O moço, a quem ele acabou de injuriar, murmurava entre dentes, deitando-lhe olhares despeitados. Não julgava que a sua conversa com aquela personagem terminasse de um modo tão humilhante para ele.
Tchelkache, sem reparar nos modos bruscos do rapaz, assobiava por entre dentes, batendo compasso com o calcanhar de pele enrugada e suja.
O moço sentiu desejos de se vingar das afrontas recebidas.
— Escuta! E tu não andas sempre bêbedo?
Tchelkache interrompeu-o bruscamente, perguntando-lhe:
— Ouve, rapaz, queres trabalhar esta noite comigo? Diz depressa.
— Trabalhar? Em quê? — perguntou o rapaz com desconfiança.
— Depois te direi... Pescaremos. Tu... é só remares.
— Se assim é, porque não? A única coisa que receio é que tu me faças dar algum mau passo. Não me satisfaz o teu aspeto misterioso.
Tchelkache sentiu invadi-lo uma onda de cólera e replicou com raiva concentrada:
— Não te metas naquilo que não entendes, senão apanhas tamanha lambada que é num instante enquanto se te aclaram as ideias.
Saltando do poial, retorceu os bigodes com a mão esquerda, cerrando o punho da outra mão, duro como ferro. Relampejavam-lhe os olhos.
O moço, assustado, circunvagou um olhar em volta e levantou-se também.
Mediram-se tranquilamente com os olhos.
— Então? — perguntou Tchelkache severamente.
Estremecia ainda da injúria que aquele fedelho lhe lançara; desprezando-a a princípio, odiava-o agora com inveja dos seus olhos azuis, do rosto moreno e são, e porque, enfim, tinha em qualquer parte uma
casa, uma família. Aborrecia-o também, porque sendo apenas uma criança à vista dele, se atrevia a desejar a liberdade, coisa que desconhecia e que lhe seria completamente inútil. É sempre desagradável
ver que uma pessoa que nos é inferior ama e detesta o mesmo que nós. É como se se tornasse igual a nós.
O rapaz contemplava Tchelkache e sentia-se dominado.
— Pois bem — disse ele — consinto. Busco trabalho, e tanto se me dá trabalhar para ti como para outro. Se mostrei dúvidas é porque não tens nenhuma aparência de operário. Não te recomenda o porte. E sei
que isto acontece a muito boa gente... Tenho visto bêbados piores do que tu.
— Sempre te resolves, então? — perguntou Tchelkache com voz menos rude.
— Sim, com muito gosto. Quanto me dás tu?
— Depende do serviço que se fizer. Talvez cinco rublos. Percebes?
Tratando-se de dinheiro, o camponês queria lisura no negócio. De novo mostrou desconfiança.
— Não estou pelos ajustes, amigo. Preferia que me desses primeiro os cinco rublos.
Tchelkache quis convencê-lo.
— Basta de palestra. Vem daí comigo à taberna.
Tchelkache caminhava com o aspeto de um patrão, retorcendo os bigodes, ao lado do moço, com ares submissos e desconfiados ao mesmo tempo.
— Como te chamas?
— Gravilo.
Entretanto, na taberna suja e enfumarada, Tchelkache aproximou-se do balcão e no tom familiar de um freguês habitual pediu uma garrafa de aguardente, sopa de couves, carne assada, chá, dizendo para o taberneiro:
— Assenta lá!
Gravilo sentiu uma admiração respeitosa por aquele homem que, apesar dos seus ares de pelintra, inspirava tamanha confiança.
— Bem, toca a comer alguma coisa. Depois falaremos. Espera-me um momento, que não me demoro.
Ficando só, Gravilo pôs-se a contemplar o que o rodeava.
A taberna estava instalada num sótão húmido, impregnado de fumo de tabaco e de um cheiro forte a alcatrão.
Noutra mesa, defronte de Gravilo, estava um bêbado com traje de marinheiro, todo enegrecido de pó de carvão. Mastigava entre dentes uma canção cujas palavras não se entendiam, cortadas de quando em quando
por um grito persistente. Não parecia russo. Detrás dele estavam duas mulheres da Moldávia esfarrapadas, muito morenas, que entoavam outra canção.
Mais longe emergiam da obscuridade novas figuras com os cabelos emaranhados, homens e mulheres, atrozmente bêbados e agitados.
Gravilo, que começava a ter medo, impacientava-se pela demora do amo; os ruídos da taberna fundiam-se num só, parecendo o rugido de um grande animal furioso, lutando desesperadamente para sair daquela
jaula de pedra.
Gravilo sentiu-se enervar numa indolência embriagadora que lhe dava vertigens e lhe perturbava a vista, apesar do seu grande desejo de observar.
Entretanto voltou Tchelkache, começando ambos a comer e a beber.
Ao terceiro copo, Gravilo estava bêbado. Parolava muito alegre, dizendo que desejava corresponder à boa vontade do patrão que antes de o fazer trabalhar lhe oferecia daqueles mimos.
As palavras começavam a correr com muita dificuldade; emperrava-se-lhe a língua.
Tchelkache, que o observava, disse-lhe com ironia:
— Estás pronto ao quinto copo, compadre! Como te arranjarás tu para trabalhar?
— Amigo, não tenhas receio. Verás como eu me desembaraço. Deixa-me abraçar-te.
— Bom, bom! Vá mais outro copo.
Gravilo sentia já andar-lhe a cabeça à roda. O rosto tomava-lhe uma expressão parda de imbecilidade. Nos esforços que fazia para falar, abria a boca e grunhia.
Tchelkache olhava-o fixamente, como se recordasse de o ter já visto alguma vez. Sorria com expressão sombria e malévola.
A taberna estava cheia de um ruído espantoso. O marinheiro ruivo dormia de cotovelos fincados na mesa.
— Saiamos — disse Tchelkache, erguendo-se.
Gravilo quis levantar-se, mas não pôde e, lançando uma praga formidável, começou a rir estupidamente.
— Em bom estado te puseste — disse Tchelkache, voltando a sentar-se.
Gravilo continuava rindo e olhando tontamente o amo.
O outro contemplava-o com uma atenção lúcida e penetrante. Via diante dele um homem cujo destino dependia da sua vontade. Tchelkache sentia-se com forças para fazer dele o que quisesse, ou um homem perdido
ou um bom camponês.
Dizia para consigo, muito satisfeito, que nunca esse moço beberia no copo que o destino enchera para ele. Invejava e ao mesmo tempo compadecia-se daquela vida jovem, enternecendo-o a ideia de que poderia
cair em outras mãos parecidas com as suas. Finalmente, todos aqueles sentimentos fundiam-se num afeto carinhoso, quase paternal e autoritário. Compadecia-se dele, ao mesmo tempo que sentia necessidade
de sacrificá-lo talvez. Então Tchelkache, tomando-o pelo braço, conduziu-o pouco a pouco para fora da taberna até deixá-lo estendido junto a um monte de lenha.
Tchelkache sentou-se ao lado dele e acendeu o cachimbo, enquanto o pobre bêbado, depois de se agitar por alguns momentos, deu uns grunhidos e acabou por adormecer profundamente.
***
— Estás pronto? — perguntava Tchelkache a Gravilo, que segurava nos remos.
— Adiante! Um dos toletes move-se; não poderíamos dar-lhe com um remo?
— Não, não. Nada de ruído. Aperta-o com as mãos e ficará seguro.
Empurravam ambos cautelosamente a barca, que estava presa à proa de um barco de vela. Havia em volta uma flotilha de veleiros carregados de cortiça, faluchos turcos quase cheios de palmas, madeira de sândalo
e grossos troncos de ciprestes.
A noite estava escura. No céu moviam-se espessas camadas de nuvens e o mar tranquilo parecia feito de um líquido negro e espesso de que se exalava um aroma húmido e salgado.
A grande distância, surgiam do mar as negras silhuetas dos navios, com os seus mastros altíssimos em cujos extremos tremulavam pequenos faróis multicolores.
O mar refletia essas luzes, sombreado de manchas ruivas e amarelas, oscilando sobre o seu peito brando, de um mate negro, erguido num poderoso hausto de gigante, como a respiração de um obreiro que descansa
do trabalho.
— Marcha! — disse Gravilo, mergulhando os remos na água.
— Voguemos.
Tchelkache, num forte impulso, deitou a barca para o largo; as ondas ao contacto dos remos iluminavam-se de uma claridade fosforescente.
Ficava para trás uma larga esteira de luz que o movimento da água fazia tremular suavemente.
— Dói-te a cabeça? — perguntou Tchelkache com interesse.
— Horrivelmente. Vibra como um sino. Vou molhá-la um pouco para refrescar.
— É melhor refrescares antes o interior — disse-lhe, estendendo a Gravilo uma garrafa.
— Acreditas? Deus me perdoe.
Ouviu-se um gluglu suave.
— Basta — gritou Tchelkache, detendo-o.
A barca deslizava suavemente e sem ruído por entre os navios. De repente, saindo do molhe, apresentou-se-lhes diante o mar infinito, poderoso e brilhante. Perdia-se ao longe no horizonte azul, de onde
se levantavam montanhas de nuvens cinzentas com franjas amarelas ou esverdeadas, pesarosas e tristes como uma grande opressão que baixasse do alto sobre o espírito.
As nuvens acastelavam-se umas sobre outras, mesclando as cores e as formas, dissolvendo-se e reaparecendo de novo em contornos majestosos e lúgubres... Tinha alguma coisa de fatal e de terrível aquela
lenta movimentação de massas inanimadas. Parecia que por detrás das grandes colinas de água se erguiam batalhões inumeráveis de nuvens invadindo o céu ao seu galope rápido e escondendo na sua opacidade
sombria os olhos de ouro das estrelas.
— Como é lindo o mar! — disse Tchelkache.
— Sim, mas é pena que se tenha medo sobre ele — replicou Gravilo, remando com força e compassadamente.
Sobre as ondas crepitavam fulgurações arrancadas pelo movimento brando dos remos.
— Medo? Quem é que tem medo?
Ele, o ladrão cínico, adorava o mar. O seu temperamento buliçoso, ávido de impressões fortes, não se fartava nunca de contemplar aquela imensidade livre e majestosa.
Indignava-o aquela apreciação de Gravilo acerca do oceano que tanto amava.
Sentado ao leme, cortava a água com o seu remo, desejando mergulhar, enterrar-se naquela planura suave que se lhe abria diante.
Quando estava no mar, uma emoção profunda e duradoura brotava-lhe do fundo do ser, extasiando-lhe a alma e livrando-o até certo ponto das indignidades da sua vida. Gostava daquela impressão, sentindo-se
melhor entre o céu e as ondas, nessa amplidão ilimitada onde os pensamentos perdem toda a sua maldade e até a vida perde o seu valor.
De noite, no mar, sente-se o ruído ligeiro da sua respiração, e aquele murmúrio introduz-se na alma refreando os maus impulsos e inspirando sonhos de felicidade.
— Onde tens as redes? — perguntou Gravilo, inspecionando a barca.
Tchelkache estremeceu.
— Que espécie de redes são essas? — perguntou Gravilo desconfiado.
— Uma tarrafa e...
Tchelkache sentia-se envergonhado de mentir daquela maneira, para ocultar os seus verdadeiros projetos, tomando para mal as interrogações que o moço lhe dirigia. Indignou-se sentindo invadi-lo a cólera
tão terrível e difícil de reprimir.
— Não te metas no que te não importa. Contrataram-te para remar, rema!
Durante um minuto a barca vacilou e deteve-se.
Os remos imobilizaram-se na água agitada. Gravilo agitou-se no banco com inquietação.
— Rema!
Uma praga acabou de decidir Gravilo. A barca, como que assustada também, adiantou-se com sacudidelas rápidas e nervosas, fendendo a água ruidosamente.
— Rema melhor.
Tchelkache levantara-se e, sem largar o remo, fixou tremulamente o rosto pálido de Gravilo. Curvado, com a expressão feroz de quem vai atacar, parecia um gato prestes a formar o salto.
Ouviu-se um rangido de dentes, como de ossos entrechocados.
— Mexes-te ou não?
A entoação das suas palavras ressoou no mar como se viesse de longe.
— Com mil demónios! Rema, anda! Assim, devagar, senão mato-te, cão! Rema! Uma, duas, se gritas, mato-te!
— Valha-me a Virgem Maria — murmurou Gravilo, extenuado pelo medo e pelo esforço.
A barca virou com ligeireza. Encaminharam-na para o porto, onde os faróis formavam um grupo multicor, a cujos reflexos se distinguiam os mastros.
— Quem grita? — perguntou uma voz, já muito distante, o que tranquilizou Tchelkache.
— Eras tu que gritavas, amigo — replicou.
Depois dirigindo-se a Gravilo, que murmurava uma oração:
— Sim, irmão, tiveste sorte; se nos perseguissem estavas arranjado. Tinha-te mandado de presente aos peixes, hein?
Gravilo, que via agora Tchelkache mais sossegado, suplicou-lhe:
— Escuta, deixa-me ir embora. Em nome de Cristo, deixa-me. Ai, ai! Estou perdido! Por Deus, deixa-me. É a primeira vez que faço isto, senhor. Estou perdido! Que fizeste tu para me seduzires?
— O quê? — interrogou severamente o outro. — Fala, o que é que tens?
Sentia-se orgulhoso de inspirar tamanho susto àquele rapaz.
— Isto parece-me misterioso, irmão... Deixa-me por Deus! Que mal te fiz eu?
— Cala-te. Se não precisasse de ti não te tinha trazido, compreendes? Bem, cala-te.
— Senhor! — suspirou Gravilo, soluçando.
— Basta!
Gravilo, compreendendo que não tinha outro remédio senão conformar-se, chorava silenciosamente, agitando-se no banco e remando com toda a força do seu desespero. A barca deslizava com a rapidez de uma
flecha. Apareceram de novo os grandes molhes de navios erguidos como muralhas por diante deles; a barca conseguia evitá-los, deslizando como uma cobra por estreitos canais que se abriam entre os grandes
vasos.
— Escuta. Se tens algum amor à vida, não respondas se alguém nos interrogar, entendeste?
— Ai! — suspirou Gravilo, desconsoladamente.
E, como replicando àquela ordem severa, disse:
— Foi o destino que causou a minha desgraça!
— Não chies! — murmurou Tchelkache.
Aquelas palavras amedrontaram de tal modo o pobre moço que para ali ficou aparvalhado e sem consciência, pressentindo uma grande catástrofe. Manejava os remos maquinalmente, fendendo a água a golpes compassados,
e contemplando os sapatos de cortiça.
As ondas faziam um barulho ensurdecedor. Era ali o porto. Detrás da muralha de granito ressoavam vozes humanas, rumores da água, canções e assobios.
— Para! — murmurou Tchelkache. — Larga os remos e apoia as mãos na parede! Pouco a pouco, demónio!
Gravilo, agarrando-se à pedra resvaladiça, conduzia a barca lentamente ao longo do molhe, roçando de encontro ao musgo peganhento da pedra.
— Para! Dá-me os remos. Onde tens o passaporte? No saco? Deixa cá ver o saco. Depressa... Sabes para que é isto? É para não te escapares... Ficas em meu poder. Sem remos poderás fugir, sem o passaporte
não te atreverás. Lembra-te que se dizes uma palavra, pilho-te, ainda que seja no fundo do mar.
De repente, agarrando-se com as mãos a alguma coisa, desapareceu subitamente no ar.
Gravilo estremeceu. Fora uma coisa tão rápida! Sentiu desvanecer-se-lhe o medo que lhe inspirava a presença daquele bandido de bigodes façanhudos e débil. Fugiria? Respirando com mais tranquilidade pôs-se
a olhar em volta.
À esquerda levantava-se um casco negro sem mastro, como um imenso ataúde vazio e abandonado... A cada pancada das ondas no seu casco respondia um eco surdo, semelhante a um suspiro profundo. À direita,
sobre a água, prolongava-se a parede húmida, do molhe como uma serpente fria e pesada. Adiante distinguiam-se esqueletos negros, e no espaço compreendido entre a parede e o ataúde repousava o mar silencioso
e deserto, toldado de nuvens negras. As massas informes avançavam lentamente, enormes e pesadas, horrivelmente escuras parecendo prestes a desabar sobre as coisas. Tudo era frio, negro e de mau agouro.
Gravilo sentiu-se dominado pelo terror. O medo, maior do que o que lhe inspirava Tchelkache, comprimia-lhe o peito, retinha-o como uma massa inerte, de encontro aos bancos da barca.
No meio do silêncio, ouvia-se apenas o suspiro magoado do mar; parecia que aquela tranquilidade ia subitamente interromper-se por alguma coisa espantosa, por alguma força terrível que sacudisse o mar até
aos seus abismos, que arrancasse a grande coberta de nuvens negras, e lançasse ao abandono das fúrias do oceano todas as negras embarcações que o cercavam. As nuvens moviam-se lentamente para o céu, sugerindo
um outro oceano por cima do mar tranquilo, cujas ondas se erguessem sob o influxo de uma terrível tempestade e fossem lançar-se sobre a terra, como uma inerte massa de chumbo.
Gravilo sentia-se perturbado por aquela tranquilidade do céu cuja revolta subia numa maré silenciosa. Tinha pressa de ver o seu amo, que já se demorava bastante. O tempo ia deslizando lentamente, como
aquelas avalanches de nuvens que subiam incessantemente do horizonte. De súbito agitou-se a água por detrás do paredão; sentiu-se um murmúrio leve, como o roçar de qualquer coisa. Gravilo sentiu abandonarem-no
as últimas forças.
— Eh! Estás a dormir? Toma! Pouco a pouco, cuidado! — disse a voz surda de Tchelkache.
Descia ao longo da parede um objeto cúbico e pesado. Gravilo depositou-o na barca e, depois de receber outro igual, viu aparecer o grande corpo de Tchelkache. Tornaram a aparecer misteriosamente os remos,
caiu-lhes aos pés o saco que o bandido lhe arrancara, e por último este, que muito tranquilamente foi postar-se ao leme.
Gravilo contemplava-o com um sorriso tímido e alegre.
— Estás muito cansado? — perguntou-lhe.
— Sem dúvida, pequeno! Rema agora com toda a tua força. Ganhei um bom jornal, irmão. Metade do trabalho está feito. Agora só falta passar despercebidamente por entre esses demónios para receberes o teu
dinheiro e ires ver a tua Machka. Não foi Machka que disseste?
— Não.
Gravilo esforçava-se por o contentar. O peito arfava-lhe como um fole e os braços moviam-se como molas de aço. A água murmurava debaixo da barca, que deixava à popa uma esteira cada vez mais larga.
Coberto de suor, continuava remando com todas as forças. Depois dos tremendos acessos de terror que aquela noite lhe proporcionara, sentia agora um único desejo: saltar em terra e fugir daquele homem que
podia matá-lo ou ser a causa da sua desgraça.
Decidiu não o contradizer em coisa nenhuma, executando fielmente as suas ordens. Faria depois cantar um Te-Deum em S. Nicolau se conseguisse desembaraçar-se dele sem dano.
Tchelkache, seco e ossudo, inclinado para a frente, mirava a obscuridade com os seus olhos de milhano, como uma ave pronta a desprender o voo. Empunhava o leme com uma das mãos e retorcia o bigode com
a outra, sorrindo em carantonhas sinistras. Estava satisfeito da sua boa sorte, de si mesmo e daquele moço que havia transformado em escravo. Saboreava de antemão a orgia do dia seguinte; e, reparando
como o moço trabalhava, compadeceu-se dele, dizendo para o animar:
— Então, sentiste muito medo?
— Não importa — suspirou Gravilo.
— É inútil remares agora com tanta força. Há só um ponto difícil no caminho. Podes descansar um pouco.
Gravilo deteve-se docilmente. Depois de enxugar o suor com a blusa, deitou de novo os remos à água.
— Bem, rema suavemente para que a água não fale. Aqui está o ponto perigoso. Devagar, devagar. Ali, irmão, está alguém que poderia lembrar-se de te meter uma bala entre os olhos, sem dares por tal.
A barca deslizava pela água sem fazer nenhum ruído. Apenas algumas gotas de água caíam dos remos, e que ao tocarem na água acendiam uma pequena chama azul. A noite era cada vez mais silenciosa. O céu não
tinha já o aspeto de um mar agitado. As nuvens tinham-se estendido sobre a sua superfície, cobrindo o mar imóvel como uma cortina lisa e pesada.
O mar estava mais tranquilo e mais negro, exalando um cheiro acre e salino.
— Ah, se chovesse agora — murmurou Tchelkache — deslizaríamos sem receio como por detrás de uma cortina.
À direita e à esquerda da barca, os navios imóveis, lúgubres e negros, emergiam do mar também negro e lúgubre. Distinguia-se luz num deles: era alguém que anda com uma lanterna. Travava-se como que um
diálogo misterioso entre as ondas e os ecos das suas investidas nos costados ocos dos navios.
— A alfândega! — murmurou Tchelkache.
Tinha dito a Gravilo que remasse devagar! O moço experimentava de novo um sentimento de dolorosa expectativa. Os ossos e as veias pareciam sofrer uma tensão incómoda e dolorida.
Doía-lhe a cabeça, estremeciam-lhe os ombros, sentia como que alfinetes enterrarem-se-lhe nas pernas. Piscava os olhos à força de profundar a obscuridade, de onde esperava ver surgir alguém bradando-lhe:
«Parem aí, ladrões!»
Gravilo estremeceu quando o companheiro murmurou: «A alfândega!». Atravessou-lhe os nervos uma sensação áspera e mordente. Quis gritar, pedir socorro. A boca inchara-se-lhe insensivelmente. De repente,
vencido por uma crise súbita de terror, correu os olhos e deixou-se cair pesadamente no banco.
Mas ao longe, para lá da barca, quase no horizonte, rompera da água negra uma imensa espada de um azul claro e cintilante.
A lâmina fendeu as trevas da noite e, deslizando até ao cimo das nuvens, assentou depois na superfície do mar a sua grande tira luminosa.
Saíram então da obscuridade os navios que mal se percebiam nas sombras da noite. Dir-se-ia que tinham permanecido por muito tempo no fundo do mar que ressurgiam agora obedecendo à espada flamejante que
irrompera das águas.
Elevavam-se para olhar o céu e tudo que estava ao de cimo da água. Os cordames enroscavam-se nos mastros como algas marinhas ainda trémulas da vida dos abismos. A extraordinária espada azul levantou-se
de novo, fendeu as nuvens e voltou-se noutra direção. No sítio onde há pouco descansara fazia-se outra vez o vácuo de sombra riscado dos esqueletos informes das mastreações.
A barca de Tchelkache deteve-se vacilante, balanceando na água. Gravilo permanecia estendido no fundo da barca, tapando o rosto com as mãos.
Tchelkache deu-lhe com um remo, murmurando surdamente:
— Imbecil! É a ronda da alfândega! É o foco elétrico! Levanta-te, pedaço de atum! Vão dirigir a luz para nós! És capaz de nos perder, demónio!
Depois de uma segunda pancada com o remo, Gravilo levantou-se, com os olhos fechados, e, pegando ao acaso nos remos, fez andar a barca com força.
— Pouco a pouco, imbecil! Senão mato-te! Leve-te o diabo! De que tens tu medo? Trata-se de uma luz, uma lanterna. Então? Cuidado com os remos, estúpido! Que grande medo! É um cristal que se inclina à vontade
e ilumina o mar para caçar os pescadores como nós... Estamos já longe e fora de perigo... não tenhas medo! Estamos salvos!
Tchelkache dirigiu em volta um olhar triunfante.
— Sim, estamos salvos! Uf! Escapaste de boa, grande pedaço de asno!
Gravilo ia remando silenciosamente e deitando ainda os olhos para o sítio onde se sumira a espada flamejante. Custava-lhe a crer que fosse um simples refletor. A fria luz azul que fendia a obscuridade
produzia reflexos prateados no mar. Aquilo tinha para o pobre moço alguma coisa de inexplicável e terrível que de novo se deixou cair na hipnose de um terror concentrado.
Oprimia-lhe o coração o pressentimento de uma grande desdita. Remava maquinalmente, curvando os ombros, como se receasse algum golpe, incapaz de energia e de vontade. As emoções daquela noite tinham-lhe
arrancado tudo o que possuía de humano.
Tchelkache triunfara completamente. Vitória completa! Os seus nervos acostumados àquelas vibrantes comoções tinham-se tranquilizado agora. O bigode estremecia-lhe voluptuosamente e nos olhos brilhava-lhe
uma chama cobiçosa. Assobiava por entre dentes, aspirava o ar húmido do mar, e, lançando os olhos para todos os lados sorria bondosamente ao contemplar Gravilo.
Começou a soprar a brisa encrespando-se o mar. As nuvens tornaram-se mais transparentes, e um vento ligeiro ondulava suavemente por toda a superfície do mar.
— Eh, irmão, volta a ti! Então que é isso? Dir-se-ia que te levaram a alma e que ficaste apenas um saco de ossos. Ânimo.
Gravilo escutava satisfeito uma voz humana, posto que fosse de Tchelkache.
— Já ouço — replicou em voz baixa.
— Bem, vai para o leme, eu tomo os remos. Estás cansado, hein?
O rapaz mudou maquinalmente de lugar. Tchelkache, percebendo que lhe vacilavam ainda as pernas, tocou-lhe no ombro.
— Não tenhas medo, receberás boa maquia! hei de pagar-te bem! Queres vinte e cinco rublos?
— Não preciso de nada. O que quero é chegar a terra.
Tchelkache cuspiu e pegou nos remos.
O mar tinha despertado. As ondas, que o vento fazia nascer da água, adornavam-se com uma franja de espuma, amontoando-se umas sobre as outras até se desfazerem em pó num murmúrio quase impercetível. A
obscuridade animava-se pouco a pouco.
— Olha, escuta — começou Tchelkache — poderás voltar ao teu povoado e casar. Começarás a lavrar e a semear, tua mulher dar-te-á muitos filhos, a quem não poderás dar de comer, acabando afinal por perder
de todo a paciência.
— Não, não me parece um grande futuro esse — replicou timidamente Gravilo — porém, o que hei de eu fazer?
As nuvens tinham-se adelgaçado pouco a pouco, desfazendo-se numa névoa fria e húmida, através da qual se descortinava o céu azul e algumas estrelas. Refletidas pelo mar as estrelas pareciam dançar sobre
a água, ora desaparecendo ora tornando a aparecer como pequeninas joias de ouro.
— Mais à esquerda! — disse Tchelkache. — Abordaremos em seguida. O trabalho foi magnífico. Sabes? Numa só noite ganhei quinhentos rublos. Que te parece?
— Quinhentos rublos! — exclamou Gravilo duvidoso; e, tocando de repente com os pés nos fardos que vinham na barca perguntou: — O que é isto?
— É seda, uma mercadoria que vale muito; se a vendesse pelo seu verdadeiro preço render-me-ia mil rublos: não sou porém, ambicioso.
— Mil rublos! É possível? — interrogou Gravilo. — Ah, se eu possuísse tanto dinheiro.
E suspirou ao lembrar-se dos campos, a sua vida miserável e as suas fadigas, a mãe e todas aquelas coisas longínquas que o haviam impulsionado a procurar trabalho tão distante da sua aldeia. Envolveu-o
uma onda de recordações. Tornou a ver a aldeia situada numa colina, o rio oculto entre os salgueiros e os álamos, toda uma visão estremecida que o comoveu.
— Que alegria! — suspirou tristemente.
— Sim, era tomares o comboio e boas noites! Como as moças te quereriam! Era só escolher! Construías uma isba! Mas talvez não te chegasse o dinheiro para tanto...
— É verdade, a madeira custa muito na minha terra.
— Mas restaurarias a que lá tens... E um cavalo! Tens cavalo?
— Tenho, mas é muito velho! Demónio!
— Então, um cavalo, um bom cavalo! Uma vaca, ovelhas, galinhas, hein?
— A que propósito vem tudo isso? Ah, senhor, que bela vida não levaria!
— Sim, irmão, não seria das piores... Eu também entendo alguma coisa disso; também tive um ninho; meu pai era um dos mais ricos lavradores do povoado.
Tchelkache remava lentamente. A barca balouçava indolentemente sobre as vagas, fazendo pouco caminho. Derreados de fadiga, invadia-os a sonolência do balouço das ondas, contemplando abstratamente os longes.
Tchelkache falou na aldeia a Gravilo para o tranquilizar e fazer-lhe desaparecer a emoção do medo; mas à força de recordar as alegrias campesinas de que pouco a pouco se esquecera, deixou-se insensivelmente
arrastar pelas ruas recordações, e, em vez de fazer falar o rapaz, era agora ele que se punha a tagarelar por sua conta.
— O essencial, irmão, é a liberdade. Deves ser o senhor de ti próprio. Tens casa. Vale pouco? No entanto, é tua. Possuis um bocado de terra. Não é muito? No entanto, é teu. Pertence-te a tua galinha, os
teus frutos, o teu trigo; és rei na tua terra. Mas é necessário levar uma vida muito ordenada. De manhã, apenas te levantes, deves começar logo a trabalhar. Na primavera faz-se uma coisa, outra no verão
e outra no outono e inverno. Onde quer que estiveres podes voltar à tua casa quando muito bem queiras. O aconchego... o repouso... És ou não um rei?
Tchelkache entusiasmara-se ao fazer aquela longa enumeração dos direitos do aldeão, esquecendo-se todavia de enumerar os deveres.
Gravilo contemplava-o muito admirado, entusiasmando-se também. Tinha esquecido a índole do homem com quem falava para ver apenas nele um lavrador que tinha também apego aos torrões por muitas gerações
de lavradores, pelas recordações da infância, e que, tendo-se desviado voluntariamente da aldeia, sofria agora o castigo da sua rebelião.
— Sim, irmão, é assim mesmo. Vê-te em ti próprio como exemplo. O que és tu agora sem a terra? Ah, irmão! A terra é como uma mãe. Não pode esquecer-se por muito tempo.
Tchelkache voltou a si. Sentia aquele ardor no peito, que o acometia sempre que ofendiam o seu amor próprio de aventureiro audaz, sobretudo quando a pessoa que o ofendia não lhe merecia nenhum crédito.
— Aí estás a disparatar! — exclamou bruscamente. — Imaginas acaso que estou a falar seriamente? Valho alguma coisa mais do que tudo isso.
— Julgas que falo de ti? — replicou Gravilo intimidado. — Há muitos como tu... Creio que andam pelo mundo muitos desgraçados e vagabundos!
— Recolhe os remos, foca! — ordenou Tchelkache com aspereza, contendo uma onda de injúrias que lhe subia aos lábios.
Mudaram outra vez de lugar. Tchelkache, passando sobre os fardos para tomar o leme, sentiu desejos de dar um empurrão a Gravilo que o tombasse no mar; todavia nem tinha ânimo de olhar para ele.
Cessara a conversa; mas, intimamente, aproveitando-se do silêncio de Gravilo, Tchelkache, impulsionava a imaginação para muito longe dali. Recordava o passado, esquecendo-se da barca que balouçava ao sabor
das ondas.
Diante de Tchelkache desfilavam as cenas da sua vida passada, já há muito longínquas e separadas do presente por um longo intervalo de doze anos de vida errante. Tomou a ver-se criança, nas ingenuidades
primitivas da sua aldeia; num lance retrospetivo evocou a lembrança da mãe, corada, muito gorda e de olhar bondoso; o pai, um gigante, de barba ruiva e rosto severo; a mulher, Anfisa, de olhos negros e
longos cabelos, muito alegre, asseada e gorducha... viu-se a si próprio, esbelto soldado da guarda, e numa evocação adjunta, o pai já grisalho e curvado do trabalho, e a mão enrugada, muito velhinha e
corcovada.
Como o tinham recebido bem na aldeia ao voltai do serviço militar! O pai sentia-se orgulhoso do seu Gregório, com grandes bigodes, um moço perfeito, o pimpão do sítio! A memória, esse reagente dos desgraçados,
anima até as pedras do passado e dulcifica todas as amarguras sofridas só para aniquilar o homem pela consciência das suas faltas e para destruir na sua alma a fé pelo futuro, tornando-lhe o passado mais
doce e benéfico, e unicamente capaz de o sustentar ainda na vida.
Tchelkache sentia-se envolto num sopro benéfico de ar pátrio que trazia nas suas asas as suaves palavras de sua mãe, as advertências sensatas do pai, murmúrios olvidados e saborosos perfumes da terra,
desgelada na primavera ou coberta das sementeiras ternas, verdes como esmeraldas e de uma carícia suave para o tato... Então sentiu-se despenhado, miserável e solitário, sem laços que o unissem a alguma
coisa, e deslocado dessa vida onde se formara o sangue que lhe corria nas veias.
— Para que lado vamos? — perguntou subitamente Gravilo.
Tchelkache estremeceu e, lançando em volta o olhar inquieto e feroz, exclamou:
— Ah, demónio! Que te importa? Rema com mais força, estamos a chegar.
— Dormias? — perguntou Gravilo, sorrindo.
Tchelkache sondou-o com o olhar. O moço conseguira enfim tranquilizar-se, e mostrava-se muito satisfeito. Era novo. A vida pertencia-lhe. Talvez fosse escravizá-la na terra. Pensando naquilo, Tchelkache
sentiu-se ainda mais triste, e ao responder à pergunta de Gravilo, grunhiu mal humorado:
— Estou cansado e isto dança.
— Bem vejo que dança; suponho que não irão aqui apanhar-me com isto... — disse, indicando os fardos com o pé.
— Não tenhas medo. Vou em seguida entregá-los e receber o dinheiro.
— Quinhentos rublos?
— Sim, provavelmente.
— É uma bela conta! Se o possuísse! Pobre de mim!
— Para a aldeia, hein?
— E sem demora...
Gravilo deixou-se arrastar pela imaginação. Tchelkache, parecia aniquilado. Tinha os bigodes descaídos, os olhos sem brilho, todo molhado de um lado pelas ondas. O que tinha de ave de rapina desaparecera-lhe
para se converter num desprendimento humilhante que se notava até nas pregas da sua blusa suja.
— Estou moído, fatigadíssimo!
— Pronto, chegámos.
Tchelkache fez bruscamente virar a barca, dirigindo-a para uma massa negra que surgia da água.
O céu estava coberto de nuvens que se desfaziam numa chuva miudinha e fria, salpicando alegremente as ondas.
— Detém-te um pouco! — ordenou Tchelkache.
A barca chocou de encontro ao costado de um navio.
— Ainda dormem estes diabos? — murmurou Tchelkache, colhendo com um croque as cordas que pendiam de bordo — A escada não está lançada. Não podia vir em pior ocasião esta maldita chuva! Eh! Esponjas do
diabo! E!
— És Tchelkache? — perguntou de cima uma voz carinhosa.
— Sim, deita a escada!
— Bons dias, Tchelkache.
— Deita a escada, maldito! — rugiu Tchelkache.
— Estás hoje muito zangado... Eh! Eh!
— Sobe, Gravilo — ordenou Tchelkache ao seu companheiro.
Ao cabo de um minuto estavam ambos na ponte do navio, onde três personagens de barbas enormes falavam acaloradamente numa língua estranha e arrevesada.
Outro, envolto num grande capote, adiantou-se para Tchelkache e, apertando-lhe silenciosamente a mão, deitou um olhar desconfiado a Gravilo.
— Prepara o dinheiro para de madrugada — disse brevemente Tchelkache. — Agora vou dormir. Vamos, Gravilo, tens fome?
— Tenho sono.
Ao cabo de cinco minutos roncava já sobre a coberta suja, enquanto Tchelkache, sentado ao pé dele, experimentava uma bota que ali deixara um marinheiro. Cuspindo por uma vigia, assobiava ao mesmo tempo
de tristeza e de cólera. Depois, estendendo-se ao lado do moço, cruzou as mãos por debaixo da nuca, examinando atentamente a fronte e franzindo os grossos lábios ensombrados de grandes bigodes.
O basco agitava-se levemente na água; a madeira rangia lamentavelmente, enquanto a chuva fustigava os costados com violência. Um canto lúgubre evolava-se das coisas como o canto carinhoso de uma mãe que
lamenta a sorte do filho amado. Tchelkache levantou a cabeça, lançou um olhar vago em redor e, depois de ter murmurado algumas palavras, estendeu-se de novo na coberta. As pernas abertas davam o aspeto
de uma tesoura enorme.
***
Quando despertou sentiu-se inquieto durante um momento; mas tranquilizou-se, avistando Gravilo que dormia, ressonando fortemente.
Tchelkache subiu por uma escada de corda. Pela abertura da escotilha avistava-se um pouco de claridade azulada. Amanhecia. Como se estava ainda no outono, a madrugada vinha carrancuda e sombria.
Tchelkache voltou passadas duas horas. Tinha a face corada e o bigode retorcido. Errava-lhe nos lábios um sorriso alegre de bondade. Vestia jaqueta, calça de couro e uma botas altas que lhe davam o aspeto
de um caçador. O traje, alguma coisa usado, mas ainda em bom estado, ficava-lhe bem, dissimulando-lhe o que a sua pessoa tinha de angulosa e dando-lhe em conjunto um aspeto de militar muito favorável.
— Eh, rapaz, acorda — disse ele, tocando Gravilo com o pé.
Este estremeceu, não o reconhecendo naquela mudança de vestuário. Tchelkache soltou uma gargalhada.
— Pareces um cavalheiro! — exclamou Gravilo, sorrindo.
— Que cobarde tu me pareceste. Quantas vezes julgaste morrer esta noite, hein?
— Nunca me dedicara a semelhante coisa. Num instante se pode perder a alma.
— Eras capaz de trabalhar outra vez?
— Sim, mas primeiro precisava saber quanto ganho.
— Duzentos rublos.
— Duzentos, dizes? Parece-me que não tinha dúvida em voltar.
— E a tua alma?
— Talvez a não perdesse; seria depois um homem para o resto da minha vida.
Tchelkache pôs-se a rir.
— Bem, basta de gracejos. Vamos para terra.
— Vamos.
Saltaram novamente na barca. Tchelkache empunhou o leme e Gravilo lançou mãos dos remos.
A grande massa das nuvens esconde a alva claridade da manhã. O mar de um verde sombrio joga violentamente com a embarcação. Pela proa, no longínquo esfumado, aparece a linha arenosa da praia; para traz
fica o mar livre coberto de vagas espumantes.
— Temos tempestade esta noite — disse Tchelkache, indicando o mar com um movimento de cabeça.
— Julgas isso?
— Sim.
Gravilo olhou-o com curiosidade.
— Afinal, quanto te deram? — perguntou ele, vendo Tchelkache silencioso.
— Olha! — disse Tchelkache, estendendo a mão cheia de bilhetes de banco.
— E eu a pensar que tu exageravas! Quanto é isso?
— Quinhentos e quarenta, que te parece?
— Bonita soma! — disse Gravilo, acompanhando com um olhar de desespero os quinhentos rublos que Tchelkache tornou a meter no bolso. — Ah, se tudo isso fosse meu! — suspirou ele.
— Vamo-nos divertir, rapaz — exclamou Tchelkache com entusiasmo. — Não tenhas medo, irmão, dar-te-ei quarenta rublos. Que te parece? Desejavas recebê-los agora?
— Se não te molestas… dá-mos.
Gravilo tremia de ansiedade, sentindo que alguma coisa se lhe despegava do peito.
— Ah, filho do diabo! Aceitas? Toma, irmão, toma de uma vez. Não sei onde hei de pôr este dinheiro. Toma!
Tchelkache deu a Gravilo alguns bilhetes de dez rublos. O moço, largando os remos, pegou no dinheiro com a mão trémula e ocultou-o no forro da blusa ao mesmo tempo que aspirava sofregamente o ar.
Tchelkache olhava-o com ironia. Gravilo pegara de novo nos remos com os olhos baixos como se tivesse medo. Sentia percorrer-lhe o corpo um arrepio de comoção.
— Como tu és ambicioso! A verdade é que sendo um camponês...
— O que o dinheiro faz! — exclamou Gravilo, entusiasmando-se de repente e pronunciando entre dentes uma litania embrulhada, onde se distinguiam unicamente as palavras: respeito, bem estar, liberdade, alegria...
Tchelkache escutava-o atentamente, com seriedade e um pouco irónico.
— Enfim, chegámos.
Uma onda fez saltar a barca para a areia.
— Livres, livres de tudo! Leva a barca um pouco para mais longe, não a arraste a água quando a maré subir. Virão depois buscá-la. Adeus. A cidade fica a oito verstas. Vais lá, não é verdade?
No rosto de Tchelkache havia uma expressão bondosa e ao mesmo tempo cheia de astúcia. Parecia preparar alguma novidade agradável e inesperada para Gravilo. Apertava nervosamente os bilhetes que tinha num
bolso das calças.
Gravilo asfixiava. Sentia uma desordem interior de sentimentos e de desejos. Tchelkache olhou-o com assombro.
— O que tens tu? — perguntou-lhe.
— Nada.
O rosto de Gravilo ora corava ora empalidecia. Agitava-se como tomado de um desejo irresistível de lançar-se sobre Tchelkache. O bandido experimentou um certo mal-estar diante da atitude do moço. Gravilo
começou a rir de um modo que mais parecia soluçar. Tinha a cabeça baixa, ocultando a expressão do seu rosto.
— Vai-te para o diabo! — exclamou Tchelkache com um gesto arrebatado. — Parece que estás enamorado da minha pessoa e tens pena de eu te deixar... Fala depressa, senão, vai-te para o diabo!
— Vai-te? — perguntou Gravilo com voz sonora.
Aquelas palavras ecoaram pela praia deserta e silenciosa. De repente Gravilo, deitando-se aos pés de Tchelkache, agarrou-o pelas pernas atraindo-o a si. Tchelkache cambaleou, e, sentando-se na areia, ameaçou-o
com o seu braço enorme. Reteve a pancada, diante do olhar confuso e penetrante de Gravilo.
— Amigo, dá-me... dá-me esse dinheiro em nome de Deus! Para que o queres tu? Em uma só noite ganhaste o que eu não ganharia durante anos. Dá-me esse dinheiro. Rogarei a Deus por ti... Sempre... em três
igrejas... pela salvação da tua alma. Tu gastá-lo-ás sem proveito, eu empregá-lo-ei na terra... Anda, dá-me esse dinheiro... Que vais tu fazer dele? Que falta te faz? Basta-te uma só noite para adquirires
outro tanto... Pratica uma boa ação! Tu estás perdido para o bom caminho, enquanto eu... Dá-me esse dinheiro, dá-mo!
Tchelkache, surpreendido e furioso, meio deitado com ambas as mãos fincadas na areia, observava com os olhos quase a saltarem-lhe das órbitas o aspeto humilhante do rapaz que apoiava a cabeça sobre os
seus joelhos em súplicas cheias de queixumes.
Tchelkache empurrou-o e, levantando-se arrebatadamente, tirou os bilhetes do bolso, lançando-os a Gravilo com desprezo.
— Toma, cão, farta-te! — exclamou, trémulo de cólera e de desprezo por aquele escravo ambicioso.
Sentiu-se um herói praticando aquele ato de audácia que o soerguia a seus próprios olhos.
— Queria dar-te ainda mais. Ontem causavas-me lástima... Pensava nos campos e dizia para comigo: «Ajudemos este pobre moço!» Esperava ver qual era o teu procedimento, se pedias ou não. Mendigo sabujo!
Vale a pena martirizarmo-nos desse modo? Imbecis, demónios ambiciosos que se vendem por cinco kopeks!
— Deus te proteja, irmão. Ai, tanto dinheiro! Agora sou rico — exclamava Gravilo entusiasmado, ocultando os bilhetes na blusa. — Ah, bom homem! Não te esquecerei nunca, nunca! Pedirei a minha mulher e
a meus filhos que supliquem a Deus por ti!
Tchelkache escutava aqueles gritos de alegria, contemplando-lhe o semblante transfigurado pelo frenesi da ambição. Ele, vagabundo como era, sem afeição alguma no mundo nunca desceria à vileza daquele rapaz.
Este pensamento dava-lhe a consciência da sua audácia e retinha-o junto de Gravilo à margem daquele mar deserto.
— Fizeste a minha felicidade — exclamava Gravilo, apoderando-se-lhe da mão e levando-a aos lábios.
Tchelkache, calado, rangia os seus dentes de lobo.
Gravilo continuava a lamúria:
— Que ideias me ocorreram pelo caminho! Depois de ver o dinheiro, tinha dito para comigo: Se lhe desse uma pancada na cabeça com o remo, deitá-lo-ia ao mar e o dinheiro seria só para mim! Compreendes que
ninguém cuidaria de averiguar porque terias desaparecido, e, ainda que te encontrassem, pouco se incomodariam com a causa da tua morte. Não és pessoa a quem se ligue importância. Quem te defenderia, pois?
— Dá-me o dinheiro — rugiu Tchelkache, agarrando o camponês pela garganta.
Gravilo não teve tempo de se defender. O outro enroscara-se-lhe ao peito como uma serpente. Ouviu-se um ruído de tela que se rasga. Num instante, Gravilo ficou estatelado na areia, agitando desesperadamente
os braços e as pernas. Tchelkache rangia os dentes como uma fera e ria nervosamente, fazendo saltar o bigode sobre o rosto anguloso. Nunca durante toda a sua vida experimentara um tal desespero ao mesmo
tempo de raiva e de pesar.
— Estás contente agora? — perguntou, dirigindo-se a Gravilo; e voltando-lhe as costas, encaminhou-se para a cidade.
Porém ainda não tinha dado dois passos quando Gravilo, lesto como um gato, pôs um joelho no solo e, num arranco desesperado, atirou-lhe com um grande seixo.
— Toma!
Tchelkache levou ambas as mãos à nuca e, inclinando-se para diante, caiu de bruços, como fulminado.
Gravilo deitou a correr ao longo da praia, encaminhando-se para a estepe. Murmuravam as ondas, espraiando-se preguiçosamente pela areia.
Começou a chover. A água descia em fios tenuíssimos formando uma cortina espessa que obscurecia o horizonte. Não se avistava mais do que a cortina de chuva e aquele corpo estiraçado na areia, junto do
mar. De súbito apareceu o vulto de Gravilo correndo desesperadamente como um louco. Aproximando-se de Tchelkache, ajoelhou-se ao pé dele, procurando reanimá-lo. Desfalecia de terror diante daquele corpo
inanimado.
— Levanta-te, irmão — murmurava ao ouvido de Tchelkache.
O velho, voltando a si, afastou Gravilo, dizendo-lhe com voz enrouquecida:
— Vai-te!
— Perdoa-me, irmão, foi o diabo que me tentou — continuava Gravilo todo lacrimoso e osculando-lhe a mão.
— Vai-te!
— Perdoa-me o meu crime, amigo, perdoa!
— Vai-te, vai-te para o diabo — rugiu Tchelkache, sentando-se na areia.
Tinha uma expressão colérica e feroz, e os olhos cerravam-se-lhe como que vencidos pelo sono.
— Que mais queres? Já tens o que cobiçavas, vai-te.
Empurrando Gravilo com força, teria caído de novo se o rapaz não o sustivesse. Estavam ambos pálidos e ofegantes.
— Uf!
Tchelkache cuspiu nos olhos do camponês, que se limitou a limpar o rosto humildemente, murmurando:
— Faz o que quiseres. Não me importo. Mas perdoa-me em nome de Cristo!
— Desastrado, que nem sequer sabes roubar — gritou Tchelkache com desespero; e, rasgando um pedaço da camisa, ligou a cabeça que se esvaía em sangue. — Tiraste o dinheiro? — perguntou.
— Não, irmão, nem tão pouco o quero. Traz por força desgraça.
Tchelkache meteu a mão no bolso e, tirando os bilhetes, guardou um, atirando com os restantes a Gravilo.
— Toma e vai-te embora.
— Não, não posso pegar-lhe... Perdoa-me.
— Toma, mando eu! — rugiu Tchelkache colérico.
— Bem, guardo-o, mas perdoa-me — disse Gravilo timidamente, caindo-lhe aos pés.
— Toma — disse Tchelkache com firmeza, apresentando-lhe o dinheiro à cara. — Toma, toma! Não foi debalde que tu trabalhaste. Não te arrependas de teres quase assassinado um homem. Ainda te agradeceriam
se me tivesses matado. Pega! Ninguém saberá da tua ação que merecia ser bem recompensada.
Gravilo sentiu um certo alívio vendo que Tchelkache sorria, e apertou sofregamente o dinheiro na mão.
— Irmão, perdoa-me e não me guardes rancor.
— Irmãozito — disse Tchelkache, arremedando-o. — Perdoar-te? Não sei de quê. Hoje de mim, amanhã de ti.
— Ah, irmão, irmão! — suspirou dolorosamente Gravilo, abanando a cabeça.
Tchelkache estava de pé diante dele e sorria de um modo estranho; o trapo que levava na cabeça estava já todo repassado de sangue. Parecia levar na cabeça um turbante vermelho.
A chuva caía torrencialmente. As vagas vinham quebrar-se estrondosamente na praia, desfazendo-se em cachões de espuma.
Contemplaram-se ambos.
— Adeus! — disse Tchelkache com ironia.
— Perdão, irmão! — murmurou ainda Gravilo.
— Não vale a pena — replicou secamente Tchelkache, apoiando a cabeça com ambas as mãos como se receasse perdê-la.
Gravilo contemplou-o ainda um bocado até vê-lo desaparecer por entre a chuva que caía compacta, envolvendo a estepe numa névoa cinzenta e impenetrável. Gravilo tirou o gorro e, depois de persignar-se,
contou o dinheiro que tinha na mão, ocultando-o na blusa sofregamente. Tomando a direção contrária à de Tchelkache começou a andar com passo firme ao longo da praia.
Rugia o mar atirando para a praia as suas grandes ondas pesadas como moles. As rajadas de água abalavam furiosamente o mar e a terra. O vento assobiava por entre os aguaceiros um murmúrio indefinido, feito
de pragas, de gemidos, de raivas e de imprecações, que fazia lembrar uma batalha sangrenta de monstros invisíveis...
Dali a pouco o vento e a água tinham apagado do sítio onde se travara a luta as manchas de sangue e as pegadas profundas, não ficando na praia deserta um único sinal do drama representado por aqueles dois homens.
Máximo Gorki
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