Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Platão escreveu o "Teeteto" já passados os sessenta anos de idade, quando se encontrava definitivamente estruturado o seu pensamento original, cujas traves mestras são a teoria metafísica das formas ou ideias subsistentes (universo espiritual), causa e modelo do mundo sensível em que decorre a existência humana, e a correlativa interpretação do saber enquanto reminiscência da verdade, possuída antes da mesma existência terrena, ou seja, transcendente ao fluxo das informações sensoriais que apenas originam a opinião e nunca a ciência.
Quase toda a obra de Platão é constituída por diálogos em que o fio da discussão temática é urdido pela figura de Sócrates. O discurso socrático, o método dialéctico de permanente interpolação dos interlocutores que os leva das iniciais certezas, mal fundamentadas, à confissão embaraçosa da ignorância, assenta na oralidade da comunicação. Sócrates nunca teria passado a escrito o seu ensinamento, exactamente porque interrogava reconhecendo a própria ignorância. Só o discurso oral se ajusta a esta permanente demanda. Só a oralidade agarra a fluidez do quotidiano, colando-se a ele com aquela impertinência que irritou os doutos atenienses, tanto que o infamaram de ímpio e corruptor da juventude. Platão reconhece o método dialéctico do mestre, mas passa-o a discurso escrito. E a escrita visa a fixação das verdades procuradas; por ela o pensamento estrutura, organiza, sistematiza. Por isso, à medida que a obra de Platão se vai acrescentando, cada vez mais se esvaece o Sócrates real e mais ele se torna personagem através de quem o autor-Platão edifica a sua própria doutrina. Todavia, a permanência de Sócrates, mesmo nas obras tardias, não é um estratagema literário dum Platão a propor-se fiel herdeiro do mestre, nem apenas a homenagem sempre revivida do discípulo. Trata-se, sim, da expressão de identidade do projecto de Platão ao longo de toda a sua obra. De facto, todos os textos platónicos se enquadram no seu projecto inicial, prioritariamente político. O "Teeteto", embora especificamente limitado a questões gnoseológicas, insere-se no contexto desse mesmo projecto, o qual se terá imposto ao jovem Platão no momento e nas circunstâncias da morte de Sócrates (399 a.C.). O julgamento e a condenação à morte de Sócrates ficaram na história como expressão exemplar dos conflitos entre a consciência virtuosa do indivíduo e a decisão injusta dos poderes políticos, ainda que, nesse caso, a autoridade política estivesse posta na maioria representativa dos cidadãos. A democracia ateniense, corroída por dentro, mercê dos jogos de interesse dos grupos políticos (hetairias), condena-se a si mesma ao condenar o just
Sócrates. Mas será a injustiça uma qualidade inerente ao exercício do poder? Platão concebe o plano para a superação definitiva dos conflitos entre a justiça-virtude e a justiça-poder, propondo-se criar as bases teóricas duma República governada pelos cultores da virtude (areté), cidadãos formados segundo uma pedagogia (Paideia) não já assente no domínio público da palavra, como ensinava a retórica sofista, mas no amor da razão (logos) e da sabedoria. A nova cidade não consentiria escândalos como o da morte de Sócrates. Quando escreve o "Teeteto", já Platão desenvolvera a sua teoria política no extenso diálogo "A República". Em suma, a nova cidade só aparecerá quando o poder estiver nas mãos dos verdadeiros filósofos, os únicos que possuem o conhecimento do bem e da verdade. Sabe-se que Platão tentou ensaiar, por duas ou três vezes, o seu projecto político em Siracusa. O "Teeteto" é um dos diálogos escritos no período que se segue à segunda viagem à Sicília. O diálogo tem como objectivo discutir o que se entende por ciência. Mas que tem a ver esta questão gnoseológica com o fracasso quase trágico das tentativas de aplicação das ideias políticas do filósofo? É que Platão não desliga dos eventos históricos em que se empenha, a forte revivescência das correntes de pensamento relativista e sensista, bem presente no ensino dos mestres sofistas, dos quais ele salienta Protágoras de Abdera. Uma vez mais, torna-se necessário atacar de frente esses pensadores que, segundo Platão, negam qualquer ordem estável de valores, seja a verdade, seja o bem e a justiça. A asserção de Protágoras, que defende ser o homem "a medida de todas as coisas-." leva a que nada se possa considerar verdadeiro e justo em si mesmo. As coisas são como (a)parecem a cada qual. A morte de Sócrates foi justa aos olhos do poder ateniense porque assim parece ser. Nesta perspectiva, torna-se irrealizável a República de Platão.
O "Teeteto" nada ou quase nada acrescenta ao edifício do sistema platónico, mas surge como afirmação reiterante da urgência de superar o que Platão declara ser a mais forte e a mais tradicional constante da cultura helénica, remontando a Homero, "o educador de toda a Grécia" (República, X, 606 e). A refutação da filosofia Jónica, aliás, estender-se-á a outros três diálogos, concebidos por Platão à maneira de uma tetralogia (porventura, sob influência da literatura dramática, que desenvolve a acção em três tragédias e uma comédia final). Há, assim, uma unidade entre os quatro diálogos "Teeteto", "O Sofista", "O Político" e "O Filósofo". Este último, ou nunca chegou a ser escrito, ou perdeu-se completamente. Apesar da admiração confessa de Platão por Parménides (veja-se o parágrafo XXXIX), também a filosofia eleática, defensora da unidade e imobilidade universais, merece a rejeição do filósofo no "Parménides", diálogo escrito na mesma altura que a tetralogia.
Encontramos no "Teeteto" um modelo rigoroso dos "diálogos contraditórios" que constituíram a originalidade da lógica socrática. Utilizando o processo peirástico (investigativo), o Sócrates platónico propõe aqui ao jovem Teeteto que estabeleça a sua noção de ciência de uma forma exacta e indiscutível. O jovem discípulo de um famoso homem de ciência, matemático e astrónomo, que era Teodoro de Cirene, arrisca a primeira definição, socorrendo-se das doutrinas sofísticas, herdeiras de uma longa genealogia de filósofos jónicos. Porque a verdade do ser se limita à aparência dos sentidos, "a ciência não é mais do que sensação". O parteiro de almas que Sócrates declara ser (vejam-se os parágrafos VI-VII) entrega-se, então, à mais bela tarefa do seu ofício que é distinguir o verdadeiro do falso. A definição formulada dá-lhe azo a uma extensa série de argumentos (parágrafos VIII-XXX). Identificando a noção "a ciência é a sensação" com a sentença de Protágoras "o homem é a medida de todas as coisas", Sócrates, ou melhor, Platão pela boca do seu mestre e personagem, explica demoradamente a teoria da universal relatividade dos seres, não se furta a tecer o elogio de Protágoras (parágrafo XX), depois de ter apontado algumas das incongruências da teoria, e acaba por rebatê-la com uma série de objecções que, pouco a pouco, levam Teeteto a reconhecer "ter parido apenas vento". Aquela noção não explica as evidências que são a memória e a aprendizagem; não permite, sequer, falar de sábios e ignorantes; exclui o conceito de futuro, indispensável para que existam leis úteis para a cidade. Ciência e sensação não se identificam, antes se excluem mutuamente. A ciência nasce duma actividade específica da alma que é julgar. Em dado momento desta enxurrada de objecções, surge-nos um excelente retrato do verdadeiro filósofo (parágrafo XXIV), porventura a contrastar com o elogio de Protágoras, com certeza a excluir da filosofia, do amor à sabedoria, os intriguistas e bem-falantes oradores da tribuna pública. O espírito do filósofo voa sobre todo o universo, "sondando os abismos da terra", "perseguindo os astros para lá do Céu".
Arrumada como ventosidade da alma uma noção de ciência que, segundo Platão, formaria a síntese de toda a epistemologia e gnoseologia da escola Jónica, Teeteto formula sucessivamente outras duas noções que o Sócrates platónico rebate com uma sucessão mais breve de argumentações. A segunda definição proposta é a da ciência como opinião verdadeira (parágrafos XXXI-XXXVII). Platão debruça-se sobre um problema que era, na altura, objecto de acesas polémicas entre as escolas filosóficas: a possibilidade e a origem do erro. Concluindo só ser possível distinguir entre opinião falsa e verdadeira depois de saber-se o que é a ciência, rejeita a possibilidade de definir a ciência pelo que essa mesma definição supõe, a opinião verdadeira.
Sócrates arranca de Teeteto uma terceira definição: "a ciência é a opinião verdadeira acompanhada de razão" (parágrafos XXXVIII-XLIII). De novo, uma série de críticas, assentes no problema da identidade ou diferença entre a soma das partes e o todo, bem como dos possíveis sentidos da "investigação racional", leva Teeteto a confessar que tudo o que o seu espírito deu à luz não passa de vento, nem vale a pena ser alimentado. Assim acaba o "Teeteto": não é encontrada uma noção de ciência, mas o espírito fica liberto de conceitos vazios e infundados. Agora, estão criadas as condições para que a verdade o fecunde. outra coisa não pretende a maêutica de Sócrates.
Enfim, uma última chamada de atenção: a escola de Teodoro e de Teeteto como interlocutores de Sócrates. Ao trazer para o diálogo dois grandes vultos da matemática grega, Platão revela n«ão só o interesse da matemática para a educação dos governantes da sua República, obra escrita poucos anos antes, como ainda mais a indiscutível importância desta ciência para a sua filosofia da razão pura e das formas subsistentes. Já dissemos que a escrita deste diálogo se intercala na época das viagens de platão à SicÍlia. A primeira delas, em 388 a.C., levou-o a um prolongado contacto com a escola Pitagórica (para a qual o princípio de tudo se chama número). Onze anos atrás, logo depois da morte de Sócrates, platão havia contactado esta escola, tanto na Cirenaica, onde conheceu Teodoro, como no Sul da Itália. Foi entre 388 e 367 que escreveu os diálogos mais importantes (Fedon, O Banquete, A República, etc.). O "Teeteto", escrito depois da segunda viagem à Sicília, mostra necessariamente os vestígios de novos contactos com os grandes mestres da matemática. ([1])
Introdução Ao Diálogo
Euclides: -- ([2]) chegaste agora mesmo ao campo, Terpsíon, ou já regressaste há muito?
Terpsíon: -- há bastante tempo já. Andei, inclusive, pela Agora à tua procura, admirado de não conseguir encontrar-te.
Euclides: -- É que eu não estava na cidade.
Terpsíon: -- Então, onde estavas?
Euclides: -- Ia a descer na direcção do porto quando deparei com Teeteto. Traziam-no para Atenas, da batalha de Corinto. ([3])
Terpsíon: -- vivo ou morto?
Euclides: -- Vivo, mas quase por um fio. As feridas dão-lhe um sofrimento cruel e, pior ainda foi atingido pela doença que grassa no campo de guerra.
Terpsíon: -- estás a falar da disenteria?
Euclides: -- Sim.
Terpsíon: -- que homem, ao que me contas, a morte ameaça roubar-nos!
Euclides: -- homem de grande valor, Terpsíon! Precisamente agora, tinha eu a intenção de fazer altos elogios ao seu comportamento na batalha.
Terpsíon: -- não é nada de espantoso. De admirar seria que ele não se tivesse comportado de tal modo. Mas por que não parou Teeteto aqui em Mégara?
Euclides: -- tinha pressa de voltar para casa. Eu próprio lhe roguei bastante e aconselhei-o a ficar, mas ele não quis. Fui, então, fazer-lhe escolta e, enquanto voltava para cá, vinha pensando com admiração em como Sócrates foi bom profeta acerca de tantas coisas, nomeadamente a propósito de Teeteto. Se a memória não me engana, foi pouco tempo antes da sua morte que ele encontrou Teeteto, ainda adolescente. Depois de o conhecer e de haverem conversado longamente, Sócrates ficou maravilhado com o seu bom natural. Quando fui a Atenas, Sócrates falou-me da conversa que ambos tiveram, uma conversa realmente memorável, e acrescentou que, se chegasse à idade adulta, Teeteto viria a tornar-se indiscutivelmente famoso.
Terpsíon: -- E é evidente que falou verdade. Mas qual foi o tema da conversa? Poderias tu explicar-me?
Euclides: -- Não, por Zeus! Assim de memória, não! No entanto, logo que voltei para casa, passei a escrito o que me lembrava e redigi depois, com vagar, o que a memória me ditara. Sempre que ia a Atenas, de novo interrogava Sócrates sobre as coisas de que não me recordava e, de regresso a casa, corrigia os meus apontamentos. Deste modo, tenho escrita a conversa quase toda.
Terpsíon: -- É verdade! Já me tinhas contido isso anteriormente e sempre tive a intenção que me deixasses ler, mas fui adiando até hoje. Que nos impede de fazermos agora essa leitura? Aliás, estou a precisar bastante de repouso, dado que cheguei do campo.
Euclides: -- Também eu acabo de acompanhar Teeteto a Erinéon ([4]) e de boa vontade descansaria um pouco. Vamos, então, para minha casa e, enquanto descansamos, o meu escravo far-nos-á a leitura do que escrevi.
Terpsíon: -- Dizes bem.
Euclides: -- Aqui está o manuscrito, Terpsíon. Em vez de relatar a conversa como Sócrates realmente fez, escrevi-a de forma a ele dialogar directamente com aqueles que, segundo a sua narração, lhe ofereciam réplica. Eram, disse ele, o geómetra Teodoro e Teeteto. Procurei evitar, na redacção, o inconveniente de fórmulas intercaladas no discurso como, por exemplo, quando Sócrates diz, falando de si próprio: "e eu afirmei" ou "e eu respondi", e falando do interlocutor: "e ele concordou" ou "e ele discordou". É por esse motivo que o meu texto apresenta um diálogo directo de Sócrates com os seus interlocutores, suprimindo eu essas tais fórmulas.
Terpsíon: -- fizeste apenas, Euclides, o que era mais razoável.
Euclides: -- vamos, escravo, pega no manuscrito e lê!
Retrato do jovem Teeteto
Sócrates: -- se eu me preocupasse especialmente com a gente de Cirene, interrogar-te-ia, Teodoro, sobre as coisas e as pessoas dessa terra. Gostaria de saber se, entre a sua juventude, haverá quem se dedique à geometria ou a qualquer outra filosofia ([5]) Como, porém, tenho mais amizade às pessoas daqui, também é maior a minha curiosidade de conhecer aqueles que, de entre os nossos jovens, mais promessas dão de virem a ser homens distintos. Procuro descobri-los pessoalmente, tanto quanto me é possível, ao mesmo tempo que interrogo as outras pessoas cujo convívio vejo ser procurado espontaneamente pela nossa juventude. Ora, muito justamente, tu és aquele à volta de quem maior número de jovens reúne. Por muitas razões o mereces, mas sobretudo pela tua ciência da geometria. Se, portanto, entre esses encontraste algum que mereça falares dele, seria um prazer para mim conhecê-lo.
Teodoro: -- vale realmente a pena, Sócrates, que eu te diga e tu saibas dos talentos que descobri num adolescente da vossa cidade. Se fosse belo, teria grande receio de falar dele, não viessem a imaginar que me deixava tomar de paixões. Mas, sem querer ofender-te, verdade é que nada tema de beleza e é parecido contigo, nariz achatado e olhos a sair da cara, menos que tu no entanto ([6]) Falo, pois, com inteira segurança e fica ciente de que, entre todos os que até hoje encontrei, e tenho-me relacionado com um grande número, ainda não achei pessoa tão maravilhosamente dotada. Pessoa com uma facilidade tão grande de aprender que dificilmente se encontra igual, duma extrema doçura e, juntamente com isto, duma coragem incomparável, nunca eu julgaria ser possível encontrar e outro exemplo não vejo que exista. De facto, os que têm como ele tanta vivacidade de espírito, tanta argúcia e memória tendem geralmente a ser impetuosos; procedem inconsideradamente, como navios sem norte, e descobre-se neles mais ímpeto do que coragem. Os mais ponderados são mais preguiçosos no estudo e muito falhos de memória. Ele, ao contrário, dedica-se ao estudo e à investigação com um movimento tão uniforme, tão seguro, tão eficaz, tão suave, semelhante ao azeite que escorre sem ruído, que ficamos maravilhados de ver alguém ainda tão jovem e já tão avançado na ciência.
Sócrates: -- boa nova me dás. Mas de qual dos nossos concidadãos é ele filho?
Teodoro: -- disseram-me o nome, mas não me lembro. Ali está, porém, ele em pessoa! É o que vem no meio desses jovens que se aproximam. Há momentos, alguns dos seus companheiros e ele próprio estavam a untar-se no exterior do estádio. Agora parece-me que terminaram e vêm aí. Vê lá se o reconheces.
Sócrates: -- Sim, reconheço-o! É filho de Eufrónio de Súnio, um homem que, meu amigo, era exactamente como descreves o filho. Tinha, aliás, excelente reputação e deixou, segundo penso, uma fortuna bastante grande. quanto ao nome do adolescente, ignoro-o.
Teodoro: -- o nome dele, Sócrates, é Teeteto. Quanto à fortuna, penso que a delapidaram alguns tutores. Apesar disso, Sócrates, ele é espantosamente liberal quanto ao seu dinheiro.
Sócrates: -- segundo o que estou a ouvir, trata-se de pessoa nobre de carácter. Diz-lhe que venha sentar-se aqui.
Teodoro: -- com todo o prazer. Teeteto, vem aqui para junto de Sócrates!
Sócrates põe a Teeteto a questão da ciência
Sócrates: -- sim, Teeteto, aproxima-te para que eu possa olhar para mim próprio e ver como é feita a minha cara, uma vez que Teodoro afirma ser parecida com a tua. Supõe que cada um de nós dois tinha uma lira e que Teodoro afirmava estarem afinadas pelo mesmo tom. Acreditaríamos nele imediatamente ou deveríamos examinar se ele é entendido em música para falar desse modo?
Teeteto: -- Iríamos examiná-lo.
Sócrates: -- Não é verdade que, se nos parecesse entendido, acreditávamos nele, mas que, se o não fosse, não acreditávamos nele?
Teeteto: -- é verdade!
Sócrates: -- agora, se o que nos interessa é a presença de rostos, temos de examinar se quem o afirma é ou não conhecedor de pintura.
Teeteto: -- assim o julgo.
Sócrates: -- Ora bem: Teodoro percebe de pintura?
Teeteto: -- não, que eu saiba.
Sócrates: -- e também não percebe de geometria?
Teeteto: -- sem dúvida que percebe, Sócrates.
Sócrates: -- será igualmente entendido em astronomia, em cálculo, em música e em tudo o que diz respeito à educação? ([7])
Teeteto: -- penso bem que sim.
Sócrates: -- se, portanto, ele declara que temos alguma presença física, para bem ou para mal, não devemos prestar grande atenção às suas palavras.
Teeteto: -- talvez não.
Sócrates: -- mas, se fosse a alma de um de nós que ele elogiasse, pela sua virtude e sabedoria, não seria justo que quem escutasse o elogio se empenhasse em examinar aquele que foi elogiado e que também este último se empenhasse em descobrir a sua alma?
Teeteto: -- com certeza que sim, Sócrates.
Sócrates: -- chegou então para ti, caro Teeteto, o momento de revelares a tua alma; para mim, o de a examinar. É que Teodoro, fica bem ciente, embora tenha elogiado na minha presença muitos estrangeiros e atenienses, nunca louvou ninguém como acaba de te louvar a ti.
Teeteto: -- lisonjeia-me o seu elogio, mas acautela-te, não esteja ele a brincar.
Sócrates: -- não é esse o modo de ser de Teodoro. Não queiras, portanto, voltar atrás sobre o acordo que fizeste, a pretexto de que ele fala assim para divertir-se. Seria, então, necessário apelar ao seu testemunho e é certo que ninguém o recusaria. Confia, pois, e não retires o teu assentimento.
Teeteto: -- se é essa a tua opinião, tenho de render-me.
Sócrates: -- então, responde-me: aprendes muita geometria com Teodoro?
Teeteto: -- sim!
Sócrates: -- e também astronomia, harmonia e cálculo?
Teeteto: -- pelo menos, faço todo o esforço para isso.
Sócrates: -- eu, rapaz, faço o mesmo com ele e com outros que considero sabedores de alguma dessas matérias. Todavia, embora de um modo geral eu os compreenda bastante bem, há um pequeno aspecto que me deixa embaraçado e que gostaria de examinar contigo e com as pessoas aqui presentes. Diz-me lá: aprender não é tornar-se mais sábio relativamente ao que se aprende?
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- ora, segundo penso, é pela sabedoria que os sábios são sábios!
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- será que isso difere em alguma coisa da ciência?
Teeteto: -- isso, o quê?
Sócrates: -- a sabedoria. Ou não seremos nós sábios naquilo em que somos sabedores?
Teeteto: -- como é que não seríamos?
Sócrates: -- então ciência e sabedoria são a mesma coisa?
Teeteto: -- são.
Sócrates: -- eis exactamente o que me deixa embaraçado; por mim próprio, não consigo conceber com suficiente clareza o que vem a ser, afinal, a ciência. Seremos nós capazes de dizer no que ela consiste? Vós, que pensais? Qual de nós será o primeiro a falar? Aquele que se enganar e todos os que por sua vez, se forem enganando irão sentar-se e farão de burros como dizem as crianças quando jogam a bola; mas aquele que passar à frente dos outros sem errar será o nosso Rei e mandar-nos-á responder a todas as perguntas que bem lhe aprouver. Porque ficais silenciosos? Espero, Teodoro, não ser demasiado importuno o meu amor à discussão ([8]) e como eu desejo de conversar e de suscitar entre nós a amizade e a familiaridade.
Teodoro: -- de modo nenhum, Sócrates! Tudo isso nada tem de importuno. Convida, porém, um destes jovens a responder-te. É que eu não estou habituado a este género de discussões e já não tenho idade para me habituar. É aos jovens presentes que isso mais interessa e eles aproveitarão muito mais do que eu. A verdade é que para a juventude todo o progresso é possível. Não deixes, por isso, Teeteto e interroga-o como tinhas começado a fazê-lo.
Teeteto esboça uma primeira resposta
Sócrates: -- estás a ouvir, Teeteto, o que diz Teodoro? Penso que não deixarás de ser-lhe dócil, porque não é permitido a um jovem desobedecer em semelhante matéria às determinações de um homem sapiente. Responde-me, pois, com verdade e bravura: na tua opinião, o que é a ciência?
Teeteto: -- porque assim ordenais, tenho de obedecer, Sócrates! Aliás, se eu cometer algum erro, haveis de corrigir-me.
Sócrates: -- com certeza, pelo menos se disso formos capazes.
Teeteto: -- ora bem, antes de mais nada, parece-me que é ciência aquilo que podemos aprender de Teodoro: a geometria e as disciplinas que há pouco enumeraste; como me parece que são também ciência, todas e cada uma, a arte de sapateiro e as artes dos demais artesãos.
Sócrates: -- és muito generoso e liberal, meu amigo! Só te é pedida uma coisa e tu ofereces várias; pedem-te um simples objecto e tu apresentas uma série deles ([9])
Teeteto: -- como assim? Que pretendes dizer com essas palavras, Sócrates?
Sócrates: -- talvez nada. Vou, no entanto, explicar-te o meu pensamento. Ao referires-te à arte de sapateiro, queres apenas dizer a ciência de confecção de calçado, não é verdade?
Teeteto: -- não mais do que isso.
Sócrates: -- e pela palavra marcenaria, queres apenas significar ciência de confeccionar móveis de madeira?
Teeteto: -- também não quero dizer senão isso.
Sócrates: -- em ambos os casos, o que tu defines não será afinal o objecto de que cada uma delas é ciência?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas não era isso o que te perguntava: qual o objecto da ciência e quantas ciências existem. Não foi com a intenção de enumerá-las que eu te interroguei, mas de saber o que será a ciência em si mesma. Não terá sentido o que estou a dizer?
Teeteto: -- ao contrário, é perfeitamente razoável.
Sócrates: -- considera ainda mais isto. Se nos interrogassem sobre uma coisa banal e vulgar, por exemplo sobre o que possa ser o barro, e se respondêssemos que existe o barro dos oleiros, os barro dos construtores e fornos, o barro dos ladrilhadores, não estaríamos a ser ridículos?
Teeteto: -- talvez.
Sócrates: -- sê-lo-íamos, penso, antes de mais por acreditarmos que aquele que nos faz a pergunta compreende pela nossa resposta o que é o barro, quando pronunciamos a palavra barro, acrescentando que é o barro dos fabricantes de bonecos ou sei lá de que outros artesãos. Ou julgas que se compreende o nome de um objecto quando se não sabe o que ele é?
Teeteto: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- então, também não compreenderemos o que é a ciência do calçado enquanto não soubermos o que é a ciência?
Teeteto: -- efectivamente, não.
Sócrates: -- não compreenderemos, portanto, o que é a arte de sapateiro ou qualquer outra arte se ignorarmos o que é a ciência?
Teeteto: -- assim é.
Sócrates: -- damos, por conseguinte, uma resposta ridícula, quando nos perguntam o que é a ciência e nós respondemos com o nome de uma arte, pois dizemos qual é o objecto da ciência, não sendo sobre isso que a pergunta incidia.
Teeteto: -- parece-me bem que sim.
Sócrates: -- em segundo lugar, está-se a fazer um desvio por um caminho infindável, quando se pode dar uma resposta vulgar e breve. Assim, por exemplo, à questão do barro era fácil e simples responder que o barro é terra amassada com água, sem nos darmos ao trabalho de dizer quem a utiliza.
A Teoria dos Irracionais como primeira definição geral
Teeteto: -- apresentado como acabas de fazer, Sócrates, o problema parece-me fácil. Acho-o do mesmo género de um outro que, há dias, se levantou numa conversa entre mim e o teu homónimo Sócrates ([10]), aqui presente.
Sócrates: -- que problema foi esse, Teeteto?
Teeteto: -- Teodoro, aqui presente, traçara-nos algumas figuras a propósito das raízes ([11]) e mostrara-nos que as de três e de cinco pés não são de modo nenhum, quanto ao comprimento, comensuráveis com a de um pé e, tomando-as assim uma após outra, chegou à de dezassete pés, detendo-se aí sem eu saber porquê. Tendo em consideração que o número de raízes é infinito, surgiu-nos então a ideia de tentarmos reuni-las sob um termo único que nos serviria para designar todas estas raízes.
Sócrates: -- e encontrastes esse termo?
Teeteto: -- eu penso que sim, mas julga tu mesmo.
Sócrates: -- pois vejamos!
Teeteto: -- dividimos todos os números em duas classes: uns, os números que podem ser formados pela multiplicação de factores iguais, representamo-los sob a figura do quadrado e chamámo-los quadrados e equiláteros.
Sócrates: -- muito bem.
Teeteto: -- quanto aos números situados entre os primeiros, como o três, o cinco e todos os números que não podem ser formados pela multiplicação dos factores iguais, mas apenas pela multiplicação de um maior por um menor ou dum menor por um maior e que se exprimem sempre por uma figura de lados desiguais, representámo-los sob a figura de um rectângulo e chamámos-lhes rectangulares.
Sócrates: -- perfeito. E, a seguir, que fizestes?
Teeteto: -- definimos como "comprimentos" todas as linhas cujo quadrado forma um número plano equilátero, e definimos todas as outras cujo quadrado forma um número de factores desiguais como "raízes", por não serem comensuráveis com as outras quanto ao comprimento, mas apenas quanto às áreas que elas podem formar. O mesmo fizemos para os sólidos.
Sócrates: -- está muitíssimo bem, meus filhos. Não creio que se venha a acusar teodoro de falso testemunho.
Teeteto: -- todavia, Sócrates, não me considero capaz de resolver a questão que me puseste acerca da ciência, como resolvi a questão referente ao comprimento e à raiz. Parece-me, no entanto, que pretendes uma solução do mesmo género. Isto desmente uma vez mais o elogio feito por Teodoro.
Sócrates: -- como? Se ele tivesse elogiado a tua agilidade na corrida, afirmando não ter ainda encontrado entre os jovens um corredor com a tua valia, e se, disputando o prémio com um adulto de velocidade extraordinária, fosses vencido, pensas que o elogio feito por Teodoro se tornaria menos verdadeiro?
Teeteto: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- achas então que a ciência, como ainda há momentos afirmei, é coisa de fácil descoberta e não exige um espírito absolutamente superior?
Teeteto: -- ao contrário, por Zeus! exige, mesmo, um espírito que a todos ultrapasse.
Sócrates: -- então, ganha confiança em ti mesmo, convence-te de que Teodoro fala a sério e aplica todas as tuas forças à descoberta da natureza das coisas, em especial, da natureza da ciência.
Teeteto: -- podes estar seguro, Sócrates, quanto à minha aplicação.
A Vocação de Sócrates e o Ofício de Parteira
Sócrates: -- prossigamos, uma vez que tão excelentemente acabas de abrir o caminho, toma por modelo a resposta que deste ao problema das raízes e, tal como as englobaste todas, fosse qual fosse o seu número, numa fórmula única, procura designar igualmente por um só termo as numerosas formas do conhecimento.
Teeteto: -- fica sabendo, Sócrates, que já abordei muitas vezes esse problema, ao ouvir falar das interrogações que a propósito fazias. Infelizmente não consigo convencer-me de ter encontrado por mim próprio uma definição satisfatória, e nunca ouvi ninguém dar uma definição como tu a pretendes. Apesar disso, não posso deixar de preocupar-me com o problema.
Sócrates: -- meu caro Teeteto, é que estás a sofrer as dores do parto ([12]), sinal de que não tens a alma vazia, mas prenhada.
Teeteto: -- não sei, Sócrates, falo apenas do que sinto.
Sócrates: -- então não ouviste dizer, meu ingénuo rapaz, que sou filho de Fenareta, uma parteira muito competente e respeitável?
Teeteto: -- sim, já ouvi dizer.
Sócrates: -- e não ouviste dizer que também exerço o mesmo ofício?
Teeteto: -- nunca.
Sócrates: -- ficas a saber agora, mas não vás denunciar-me aos outros. Eles não sabem, amigo, que tenho este ofício e é por essa razão que não dizem nada sobre isso quando falam de mim. Ao contrário, afirmam que não passo de um original e que embaraço as pessoas ([13]). Também não ouviste falar disto?
Teeteto: -- sim, ouvi.
Sócrates: -- queres que te diga a razão?
Teeteto: -- sim, diz.
Sócrates: -- tem presente tudo quanto caracteriza o ofício das parteiras e compreenderás mais facilmente o que pretendo afirmar. Sabes, julgo eu, que nenhuma mulher faz de parteira de outras mulheres enquanto ainda for capaz de conceber e dar à luz e que as parteiras só exercem este ofício quando não se encontram em condições de ter filhos.
Teeteto: -- Com certeza.
Sócrates: -- diz-se que este costume vem de Artémis ([14]), a qual, sem nunca ter dado à luz, recebeu a missão de presidir aos partos. Por isso, ela não permitiu às mulheres estéreis serem parteiras, pois a natureza humana é demasiado frágil para exercer um ofício cuja experiência não possui; e foi às mulheres que passaram a idade de dar à luz que ela confiou tal tarefa, a fim de homenagear a semelhança que tem com ela.
Teeteto: -- É natural.
Sócrates: -- não é também natural e necessário que as parteiras conheçam melhor do que as outras se uma mulher está ou não grávida?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- as parteiras também podem, por meio de medicinas e de encantações, suscitar as dores do parto e suavizá-las, se assim se quiser, fazer parir as mulheres com dificuldade em desembaraçar-se e, assim, provocar o aborto do feto, se o acharem conveniente.
Teeteto: -- É verdade.
Sócrates: -- não reparaste também que, entre os seus talentos, se conta o de serem casamenteiras muito habilidosas, uma vez que sabem perfeitamente que mulher e que homem devem acasalar-se para terem os filhos mais perfeitos?
Teeteto: -- nunca. Aí está uma coisa que eu desconhecia totalmente.
Sócrates: -- pois fica a saber que elas sentem mais orgulho por isso do que por saberem cortar o cordão. Reflecte um momento: achas que pertence ao mesmo ofício ou a ofícios diferentes tratar e colher os frutos da terra e, por outro lado, saber em qual terreno se deve dispor certa planta ou lançar determinada semente?
Teeteto: -- cabe não a ofícios diferentes, mas ao mesmo.
Sócrates: -- e no caso da mulher, meu amigo, achas que são diferentes o ofício de semear e o de colher?
Teeteto: -- não é verosímil.
Sócrates: -- de facto, não. Mas, como existe uma forma desonesta e sem arte de acasalar o homem e a mulher, a que se chama prostituição, as parteiras, que são pessoas respeitáveis, evitam intrometer-se nos casamentos, com medo de serem acusadas de fomentar a prostituição. No entanto, é às autênticas parteiras e só a elas que pertence ajustar bem os casamentos.
Teeteto: -- assim parece.
Sócrates: -- eis, portanto, o ofício das parteiras, que é, todavia, inferior ao meu. De facto, não acontece às mulheres darem à luz uma vez quimeras, outras vezes seres verdadeiros, porque não é fácil de discernir. Se tal coisa lhes acontecesse, a mais importante e bela tarefa das parteiras consistiria em distinguir entre o verdadeiro e o falso. Não achas o mesmo?
Teeteto: -- sim.
Aplicação do Método Maiêutico
Sócrates: -- o meu ofício de parteiro compreende, assim, todas as funções exercidas pelas parteiras; mas difere no facto de partejar homens e não mulheres e de cuidar não dos seus corpos mas das suas almas em dores de parto. A principal vantagem do meu ofício, porém, é a de tornar possível distinguir com certeza se o espírito do jovem dá à luz uma quimera e uma falsidade ou um fruto real e verdadeiro. Tenho, por outro lado, um ponto comum com as parteiras: sou estéril em matéria de sabedoria e a censura que frequentemente me fazem de interrogar os outros sem nunca me pronunciar seja sobre o que for, porque não possuo em mim qualquer sabedoria, é uma censura a que não falta verdade. A razão está no seguinte: o Deus obriga-me a fazer parir os outros, mas impediu-me de gerar. Assim, de modo nenhum eu próprio sou sábio e não posso apresentar qualquer descoberta de sabedoria que a minha alma tenha dado à luz. Mas os que se ligam a mim, ainda que alguns deles pareçam ao princípio de uma completa ignorância, todos eles fazem, ao longo da sua convivência comigo, se o Deus lhes permite, progressos maravilhosos, não apenas aos seus próprios olhos, como também aos olhos dos outros. E é claro como o dia que nunca aprenderam nada de mim e que foram eles mesmos que descobriram em si e deram à luz muitas coisas belas. A verdade, porém, é que, se deram à luz, foi graças ao Deus e a mim.
E vou prová-lo. Já houve várias pessoas que, desprezando a minha assistência e atribuindo a si mesmos os seus progressos, sem ter em conta o meu trabalho, por decisão própria ou instigados por outrem, se afastaram de mim, mais cedo de que convinha. Longe de mim, sob a influência de maus mestres, abortaram todos os gérmes que em si continham e alimentaram mal e deixaram morrer os que eu lhes tinha feito dar à luz, porque deram mais importância a mentiras e a aparências vãs do que à verdade, acabando assim por parecerem ignorantes tanto aos seus olhos como aos olhos das outras pessoas. Entre eles, contam-se Aristides ([15]), filho de Lisímaco, e muitos outros. Quando regressam e me rogam com extraordinárias instâncias que os aceite na minha companhia, o génio divino que me fala proíbe-me restabelecer as relações com alguns deles e permite-o no caso de alguns outros, os quais colhem proveitos como da primeira vez. Os que a mim se juntam parecem-se ainda noutro aspecto com as mulheres na iminência de ter uma criança: as dores apoderam-se deles e, dia e noite, ficam cheios de inquietações mais vivas que as daquelas mulheres. Ora o meu ofício tanto é capaz de despertar-lhes essas dores como de fazê-las desaparecer. É isto o que eu faço por aqueles que buscam o meu convívio. Há alguns, porém, Teeteto, cuja alma não parece estar grávida. Quando reconheço que não têm qualquer precisão de mim, intervenho em favor deles com toda a boa-vontade e, graças ao Deus, conjeturo-lhes muito afortunadamente a companhia que lhes será proveitosa. Foi assim que emparceirei vários em Pródico ([16]) e bastantes com outros sapientes e divinos homens.
Demorei-me tanto neste assunto, excelente Teeteto, porque desconfio, e tu mesmo deves desconfiar, de que a tua alma está grávida e te encontras a sofrer as dores do parto. Confia-te, pois, a mim como ao filho duma parteira que é ele também parteiro. Às perguntas que eu te fizer, esforça-te por responder o melhor que souberes. Se porventura, ao examinar isto ou aquilo que tu disseste, eu achar que não passa de um fantasma sem realidade e então to extrair e o lançar fora, não fiques sentido como, por causa dos filhos, fazem as mulheres que são mãe pela primeira vez. Tenho visto bastantes, admirável amigo, tão enfurecidos contra mim que estariam realmente dispostos a morder-me, por eu lhes haver tirado uma opinião extravagante. Não acreditam que o faço por benevolência. Estão longe de saber que nenhuma divindade quer mal aos homens e eu também não; de modo nenhum faço o que faço por malevolência, mas não me é permitido consentir no que é falso ou ocultar o que é verdadeiro.
A sensação Como Primeira Definição da Ciência
Sócrates: -- retoma, então, o problema desde o início e procura dizer em que pode consistir a ciência. Livra-te e dizer que não és capaz! Serás capaz se o Deus quiser e te der coragem.
Teeteto: -- realmente, Sócrates, com o teu encorajamento, seria vergonhoso não empregar todos os esforços para dizer o que se guarda na alma. Deste modo, parece-me que aquele que sabe uma coisa sente o que sabe e, tanto quanto posso ajuizar neste momento, a ciência não é mais do que a sensação.
Sócrates: -- é, na verdade, meu rapaz, uma boa e brava maneira de responder: é assim que se deve declarar aquilo que se pensa! Mas vamos agora examinar em comum se a tua concepção é viável ou se não passa de vento. Dizes tu que a ciência é a sensação?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- segundo bem parece, o que dizes da ciência não é coisa banal; é o mesmo que dizia o próprio Protágoras ([17]). Defini-a como tu, embora por outras palavras. Com efeito, ele afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência daquelas que existem e da não-existência daquelas que não existem. Leste isto, suponho?
Teeteto: -- sim e mais do que uma vez.
Sócrates: -- não pretende ele dizer mais ou menos o seguinte: tal como uma coisa me aparece, assim ela é para mim, e tal como ela te aparece, afim ela é para ti? Porque ambos somos homens, tu e eu?
Teeteto: -- É exactamente o que ele quer dizer.
Sócrates: -- presume-se que um homem sapiente não fala no ar. Sigamo-lo, então. Não acontece às vezes que, expostos ao mesmo vento, um de nós sente frio e o outro não, que um o sente leve e outro o sente forte?
Teeteto: -- sem dúvida!
Sócrates: -- nesse caso, que diremos que é o vento considerado em si mesmo: é frio ou não é frio? Acreditaremos, afinal, em Protágoras e diremos que o vento é frio para quem tem frio e que não é frio para quem não tem frio?
Teeteto: -- parece-me bem que sim.
Sócrates: -- não aparece o vento desse modo a um e a outro?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e aparecer é ser sentido?
Teeteto: -- é, de facto.
Sócrates: -- então são a mesma coisa a aparência e a sensação, tanto no caso do calor como em todas as coisas do mesmo género, pois quais as sente cada um, tais elas parecem ser para cada um.
Teeteto: -- é razoável.
Sócrates: -- por isso, a sensação, enquanto ciência, tem sempre um objecto real e não é susceptível de erro.
Teeteto: -- evidentemente.
Sócrates: -- em nome das graças! Então, Protágoras, que era a própria sabedoria, não terá falado sobre isto por meio de enigmas à multidão e ao vulgo que nos somos, enquanto aos discípulos dizia em segredo a verdade?
Teeteto: -- que pretendes dizer, Sócrates?
A Teoria do Movimento Universal
Sócrates: -- vou dizer-te, e não se trata duma banalidade: nenhuma coisa, considerada em si mesma, é uma coisa, não há nada que possamos denominar ou qualificar de algum modo com justeza. Se designares alguma coisa como grande, também aparecerá pequena, e leve se a chamares pesada, e assim por diante, porque nada é algo, determinado ou qualificado seja de que modo for; é da translação, do movimento e da sua mistura recíproca que se formam todas as coisas que dizemos existirem, servindoº-nos duma expressão imprópria, uma vez que nada é jamais e tudo evolui constantemente. Todos os sábios ([18]). Outro, à excepção de Parménides, estão de acordo neste ponto: Protágoras, Heraclito e empédocles, os mais eminentes em cada género de poesia, Hepicarmo na comédia e, na tragédia, Homero. Quando este diz: "o oceano é a origem dos Deuses e Tétis a mãe deles", está a dizer que todas as coisas são produto do fluxo e do movimento. Na tua opinião, não é isso o que quis dizer?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- como é que alguém seria, ainda, capaz de lutar contra um exército tão numeroso e um general como Homero, sem cobrir-se de ridículo?
Teeteto: -- não seria fácil, Sócrates.
Sócrates: -- efectivamente não, Teeteto, tanto mais que existem, além disso, fortes provas a favor da tese segundo a qual o movimento é a causa do que parece existir e do devir, e o repouso a causa do não-ser e da destruição. De facto, o calor, o fogo, que engendra e regula todo o resto, é ele próprio engendrado pela translação e pela fricção, as quais são ambas movimentos. Não são elas que dão origem ao fogo?
Teeteto: -- são elas, com certeza.
Sócrates: -- é também delas que provém o género dos seres vivos.
Teeteto: -- sem dúvida nenhuma.
Sócrates: -- e não serão o repouso e a inactividade que destroem a constituição do corpo, ao passo que os exercícios e os movimentos lhe garantem uma longa duração?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- consideremos agora o estado da alma: não é pelo estudo e pelo exercício, que são movimentos, que ela obtém os conhecimentos, os conserva e se torna melhor, ao passo que o repouso, isto é, a falta de exercício e de estudo, a impede de aprender e a leva a esquecer que aprendeu?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- por conseguinte, o movimento é bom para a alma como para o corpo e o outro (o repouso) e o contrário?
Teeteto: -- parece que sim.
Sócrates: -- deverei citar-te ainda as calmarias, as bonanças e todos os estados do mesmo género para te provar que o repouso, sob todas as suas formas, tudo degrada e leva à perdição, ao passo que o seu contrário tudo conserva? Deverei chegar ao cúmulo das provas obrigando-te a confessar que, pela cadeia de oito ([19]) de que fala, Homero não pretende designar se não o sol e mostrar que, enquanto a esfera celeste e o sol se moverem, todas as coisas, divinas ou humanas, existem e se conservam, ao passo que, se este movimento se detivesse e ficasse amarrado, seria a ruína de tudo e tudo ficaria, como se costuma dizer, de pernas para o ar?
Teeteto: -- parece-me, Sócrates, ser isso exactamente o que Homero quis dizer.
Algumas Aplicações da Teoria
Sócrates: -- excelente Teeteto, concebe então a coisa como eu vou dizer. Antes de mais, no que diz respeito à vista, aquilo que tu chamas cor branca não é algo que exista à parte, fora ou dentro dos olhos, e ao qual possas atribuir uma determinada localização, pois nesse caso, estaria algures no seu lugar, seria estável e não se encontraria já em curso de geração.
Teeteto: -- como hei-de, então, representá-la?
Sócrates: -- sigamos o princípio que há instantes estabelecemos: nada existe que seja uno em si. Reconheceremos assim o preto, o branco e qualquer outra cor resultam da aplicação dos olhos à translação apropriada e que aquilo que afirmamos ser tal ou tal cor não é nem o órgão aplicado, nem o objecto ao qual ele se aplica, mas um produto intermédio próprio de cada indivíduo. Ou defenderias tu que todas as cores aparecem a um cão ou a um qualquer outro animal como te aparecem a ti?
Teeteto: -- não, por Zeus!
Sócrates: -- e achas que qualquer objecto aparece a outro homem tal como te aparece a ti? Tens a certeza? Não estarás muito mais perto de acreditar que tu mesmo não vês idêntico porque nunca és semelhante a ti próprio?
Teeteto: -- sou mais por este sentimento do que pelo outro.
Sócrates: -- se, portanto, aquilo a que nos medimos ou aquilo que tocamos fosse grande, ou branco, ou quente, nunca, posto em contacto com outra coisa, se tornaria outro, sem ele próprio sofrer alguma transformação. Por outro lado, se aquilo que mede ou toca fosse grande, ou branco, ou quente, também nunca se tornaria diferente quando outra coisa dele se aproxima e sofre alguma modificação, se ele mesmo não sofresse nenhuma. É assim que presentemente, meu caro amigo, se tal posso afirmar, facilmente somos levados a dizer coisas extraordinárias e ridículas, como diria Protágoras e todo aquele que está disposto a defender a sua opinião.
Teeteto: -- como? De que pretendes falar?
Sócrates: -- tomemos um exemplo simples e compreenderás tudo o que eu quero dizer. Estão aqui, suponho, seis ossinhos; se pusermos outros quatro ao lado, diremos que os seis são mais numerosos do que os quatro e os ultrapassam em metade. Se pusermos doze, diremos que os seis são menos numerosos e constituem, apenas, metade. Não é admissível falarmos de outra maneira. Ou tu admiti-lo-ias?
Teeteto: -- eu, não.
Sócrates: -- supõe agora que Protágoras, ou um outro qualquer, te fazia esta pergunta: "será possível, teeteto, que uma coisa se torne maior ou mais numerosa de outra forma que não seja a de ser aumentada?" Que responderias?
Teeteto: -- se respondesse, Sócrates, aquilo que penso tendo apenas em conta a questão presente, diria que não; mas, se tivesse em conta a questão anterior, para evitar contradizer-me, diria que sim.
Sócrates: -- por Hera, meu amigo! é o que se diz responder bem e divinamente. Mas se respondesses que sim, estarias a falar como Eurípedes ([20]): a nossa língua estará ao abrigo de qualquer censura, mas não o nosso espírito.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- então, se tu e eu fôssemos hábeis e sábios, depois de termos aprofundado tudo o que se refere ao espírito, poderíamos em seguia, ao jeito de passatempo, por-nos à prova um e outro, lutar entre nós à maneira dos sofistas, opondo reciprocamente argumentos a argumentos. Mas, como não passamos de homens normais, procuraremos antes de mais nada confrontar os nossos pensamentos para vermos o que eles valem e verificarmos se eles estão de acordo ou se não se ajustam de maneira nenhuma.
Teeteto: -- é o que eu desejo, garanto-te.
Consequências Embaraçosas da Teoria
Sócrates: -- também eu. Sendo assim e como temos bastante vagar, porque não havemos de retomar o nosso exame com tranquilidade, sem impaciência, para vermos, examinando-nos realmente a nós mesmos, o que poderão ser estas visões que se encontram em nós? Se considerarmos a primeira, diremos, imagino, que jamais coisa alguma se tornou maior ou menor, quer em volume, quer em número, enquanto foi igual a si mesma. Não é verdade?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- em segundo lugar, diremos que uma coisa, à qual nada se acrescenta nem se retira, jamais cresce nem diminui, mas permanece sempre igual.
Teeteto: -- é indiscutível.
Sócrates: -- não diremos ainda, em terceiro lugar, que aquilo que não existia antes não pôde existir depois sem mudar e sem ser mudado?
Teeteto: -- assim parece.
Sócrates: -- ora estas três proposições sobre as quais estamos de acordo combatem-se entre si no nosso espírito, quando falamos dos ossinhos, ou quando dizemos que eu, na idade em que estou, sem ter crescido ou sofrido alteração contrária, no espaço de um ano, sou presentemente maior do que tu, que és jovem, e serei depois mais pequeno, sem nada ter sido retirado à minha estatura, mas porque a tua terá aumentado. Com efeito, sou posteriormente o que não era antes, se bem que me não tenha transformado nisso, porque é impossível ser mudado sem mudar, e, não tendo perdido nada do meu volume, nunca poderia tornar-me mais pequeno. E encontraremos milhares de casos semelhantes, se aceitarmos os que mencionei. Espero que estejas a seguir-me, Teeteto. Pelo menos, penso que esta matéria não é nova para ti.
Teeteto: -- pelos Deuses, Sócrates! Perco-me de assombro quando me interrogo sobre o que poderá ser tudo isto e acontece-me, ao considerá-lo, ser verdadeiramente tomado de vertigens.
Sócrates: -- estou a ver meu amigo, que Teodoro não se enganou quanto à natureza do teu espírito, pois o sentimento de assombro que experimentas é a verdadeira marca dum filósofo. De facto, não tem outra origem a filosofia e não me parece ter sido um mau genealogista quem fez de Ìris a filha de Taumas ([21]). Mas estás já a perceber porque são estas as consequências da doutrina que atribuímos a Protágoras, ou ainda não compreendes?
Teeteto: -- creio que ainda não.
Sócrates: -- nesse caso, gostarias de que eu te ajudasse a descobrir a verdade oculta do pensamento de um homem ou, antes, de homens famosos?
Teeteto: -- como não gostaria? teria mesmo um gosto infinito!
Aprofundamento das doutrinas sensistas
Sócrates: - olha, pois, à nossa volta, não esteja a ouvir-nos algum dos não indicados. Entendo como tais os que pensam que nada existe se não aquilo que podem apreender e agarrar com ambas as mãos e que não admitem na categoria dos seres nem as acções, nem as gerações, nem tudo o que for invisível.
Teeteto: -- trata-se, Sócrates, de gente muito rude e casmurra.
Sócrates: -- de facto, meu rapaz, são pessoas totalmente estranhas às Musas; mas há, também, outras mais requintadas cujos mistérios te vou expor. O princípio deles, do qual depende tudo o que acabámos de dizer, é este: todo o universo está em movimento e fora disto nada existe; e há duas espécies de movimento, cada uma delas infinita em número; uma tem uma força activa, a outra, uma força passiva. Da sua união e fricção mútuas nascem rebentos em número infinito, mas em pares gémeos; um é o objecto da sensação, o outro é a sensação, a qual se produz e nasce sempre com o objecto da sensação. Às sensações damos nomes como estes: visões, audições, olfacções, frio e quente e também prazeres, dores, desejos, medos, etc. Inúmeras são as que não têm nome; muito numerosas as que têm um. Por outro lado, a classe dos objectos sensíveis é aparentada a cada uma destas sensações; cores de toda a espécie são-no a visões de toda a espécie; de igual modo, os sons são aparentados às audições e os outros objectos sensíveis estão ligados por natureza às sensações. E agora, Teeteto, qual é para nós o sentido deste mito ([22]) em relação ao que atrás foi dito? Será que o compreendes?
Teeteto: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- pois bem, escuta -- talvez sejamos capazes de acabar com o mito. Este significa que tudo, como dissemos, está em movimento; o movimento, porém, é ou rápido ou lento. Tudo o que é lento move-se no mesmo lugar e em direcção às coisas vizinhas e é assim que ele gera, sendo os produtos assim gerados mais rápidos, porque se deslocam e é uma tal deslocação que constitui naturalmente o seu movimento. Assim, quando a vista e qualquer objecto que lhe corresponde geraram, aproximando-se, a brancura e a sensação que lhe é ligada pela natureza (as quais nunca teriam sido produzidas se a vista ou o objecto se tivessem dirigido para outra coisa), então, enquanto se movem no espaço intermédio a visão que vem dos olhos e a brancura que bem do objecto que gerou a cor em combinação com eles, o olho enche-se de visão. Nesta altura, o olho vê e tornou-se, não já visão, mas olho vidente. De forma similar, o objecto que concorreu com o olho para a produção da cor, encheu-se de brancura e tornou-se não brancura, mas branco, seja uma peça de madeira, uma pedra, ou qualquer outro objecto colorido da mesma cor. Isto seja dito dos restantes casos: o duro, o quente, todas as qualidades devem ser concebidas de idêntica maneira. Nada é o que é em si e por si, como dizíamos há instantes; mas é nas suas mútuas aproximações que todas as coisas nascem do movimento sob formas de toda a espécie, pois, afirmam-nos eles, é impossível conceber firmemente o elemento activo e o elemento passivo como existindo separadamente, dado que não há elemento activo antes de ele unir-se ao elemento passivo, e o que, em tal encontro, foi agente, aparece como paciente na união com outra coisa. De tudo isto resulta, como afirmámos de início, que nada é uma coisa em si, que uma coisa está sempre em mudança para outra e que é necessário banir de toda a parte a palavra "ser", ainda que, muitas vezes e ainda agora, tenhamos sido forçados, por hábito e por ignorância, a servir-nos do termo. Na linguagem dos sábios, não é admissível que se possa dizer "uma coisa" ou "de alguém" ou "de mim" ou "isto" ou "aquilo" ou qualquer outra palavra que fixe as coisas; deve dizer-se, de acordo com a natureza, que elas "estão em mudança, a fazer-se, a destruir-se, a alterar-se"; se, pela maneira de falar, representarmos uma coisa como estável, expor-nos-emos a uma fácil refutação. É, pois, necessário seguir esta regra, tanto a respeito dos objectos particulares, como a propósito de grupos numerosos de objectos, aos quais se dá o nome de homem, pedra, de animal e de espécie. Achas prazer nestas teorias, Teeteto, e são elas do teu agrado?
Teeteto: -- a verdade é que não sei, Sócrates, porque nem sequer posso adivinhar se falas de acordo com o teu pensamento ou se apenas me queres pôr à prova.
Sócrates: -- não te lembras, meu amigo, de que não sei nada nem aceito como meu nada disto? Que sou estéril a este ponto e que é a ti que faço dar à luz? E que, nesta perspectiva, recorre às encantações e sirvo-te as opiniões de cada sábio para que as saboreies, até que, graças à minha ajuda, venhas a dra à luz a tua própria opinião? Quando ela tiver nascido, então examinarei se é apenas vento ou se é um produto de qualidade. Tem, pois, confiança e paciência; responde com liberdade e bravura o que julgares ser a verdade sobre o que eu te pergunto.
Teeteto: -- faz-me as tuas perguntas.
O sonho, a Doença e a Loucura como Fontes de Ilusão
Sócrates: -- pois bem! Diz-me, uma vez mais, se estás de acordo com a opinião de que nada existe, mas de que o bem, o belo e tudo, o que há pouco enumerei se encontra numa perpétua mudança.
Teeteto: -- da minha parte, ao ouvir-te expor tal opinião, acho-a magnificamente fundamentada na razão e, da forma como a apresentaste, parece-me que tem de ser aceite.
Sócrates: -- continua, porém, a haver na minha exposição uma lacuna a preencher. Falta ainda falar dos sonhos, das doenças e nomeadamente da loucura e de tudo o que se chama extravagâncias do ouvido, da vista, numa palavra, dos sentidos. Suponho que sabes haver acordo em ver, em todos estes casos, a prova da falsidade do sentimento que acabo de expor, porque as sensações nele experimentadas são absolutamente falsas e porque, longe de as coisas serem tais como parecem a cada um, ao contrário, nada daquilo que aparece existe.
Teeteto: -- cheio de verdade é quanto dizes, Sócrates.
Sócrates: -- se assim é, meu rapaz, que mais pode dizer quem pretende que a sensação é a ciência e que aquilo que aparece a cada um de nós é tal qual se manifesta a quem tem a respectiva sensação?
Teeteto: -- não me atrevo a afirmar, Sócrates, que não sei como responder, porque acabaste de censurar-me de ter dito isso. Todavia, não posso realmente negar que se tenham opiniões falsas na loucura ou nos sonhos, quando uns se imaginam deuses e outros pensam durante o sono terem asas e voar.
Sócrates: -- não tens, tu também, reflectido sobre a controvérsia suscitada à volta do assunto, especialmente sobre o sonho e a vigília?
Teeteto: -- qual controvérsia?
Sócrates: -- a que eu julgo teres ouvido mais de uma vez ser levantada por algumas pessoas ao perguntarem que resposta convincente seria possível dar a quem pusesse à queima-roupa o seguinte problema: "estaremos a dormir e a sonhar o que pensamos, ou estaremos acordados e a conversar realmente uns com os outros"?
Teeteto: -- sente-se um grande embaraço, Sócrates, em encontrar uma prova que deslinde o problema, uma vez que tudo é igual e corresponde exactamente em ambos os estados. tomemos como exemplo a nossa presente conversa: nada nos impede de acreditar que também a tenhamos a dormir e, quando, a sonhar, julgamos contar sonhos, então a semelhança com o que se passa no estado de vigília é desconcertante.
Sócrates: -- vês, portanto, que não é difícil suscitar a este propósito uma controvérsia, interrogando-nos se estaremos acordados ou a sonhar. Além disso, como o tempo durante o qual dormimos é igual ao tempo em que estamos acordados, em cada um destes dois estados a nossa alma sustenta que as ideias que ela tem sucessivamente são absolutamente verdadeiras, de modo que, durante metade do tempo, são umas que consideramos verdadeiras, e nós afirmamos uns e outras com a mesma segurança.
Teeteto: -- isso é verdade.
Sócrates: -- não será de afirmar o mesmo acerca das doenças e da loucura, ser quanto a duração, já que não é igual?
Teeteto: -- está certo.
Sócrates: -- mas então será pela demora ou pela brevidade do tempo que definiremos o verdadeiro?
Teeteto: -- seria ridículo sob muitos aspectos.
Sócrates: -- mas és capaz de mostrar por qualquer outro indício claro quais destas crenças são verdadeiras?
Teeteto: -- não me parece.
Nada Existe Em Si e Por Si Mesmo
Sócrates: -- ouve-me, então: vou expor-te o que poderiam dizer a este propósito os defensores de que, sejam quais forem as coisas que nos aparecem, elas são verdadeiras para quem as considera como tais. Começam, penso eu, por uma questão como esta: "será possível, Teeteto, que uma coisa inteiramente diferente de uma outra jamais tenha com esta alguma propriedade comum e não imaginemos que se trata duma coisa que é em parte a mesma e em parte diferente, mas sim de uma coisa totalmente diferente?"
Teeteto: -- é impossível, neste caso, que ela tenha seja o que for em comum com outra, tanto quanto às propriedades, como quanto a qualquer outro aspecto, uma vez que ela difere da outra totalmente.
Sócrates: -- não se deve, então, admitir que uma tal coisa é, também, dissemelhante da outra?
Teeteto: -- é o que penso.
Sócrates: -- se, portanto, acontece que uma coisa se torna de algum modo semelhante ou dissemelhante quer de si própria, quer de outra, diremos que, ao tornar-se semelhante, se torna a mesma, mas diferente, ao tornar-se dissemelhante?
Teeteto: -- forçosamente.
Sócrates: -- não afirmámos atrás que há um número infinito de agentes e, também, de pacientes?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e que, ao juntarem-se ora a um oura a outro, não darão origem aos mesmos produtos diferentes?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- podemos dizer o mesmo de mim, de ti e de tudo o resto, por exemplo, de Sócrates com boa saúde e de Sócrates enfermo. Diremos que é um semelhante ao outro ou dissemelhante?
Teeteto: -- quando falas de Sócrates enfermo, estás a entendê-lo como um todo, oposto ao Sócrates com boa saúde, considerando-o igualmente como um todo?
Sócrates: -- compreendeste perfeitamente: é isso mesmo que eu quero dizer.
Teeteto: -- é sem dúvida, dissemelhante.
Sócrates: -- e, por conseguinte, diferente, pela mesma razão por que é dissemelhante?
Teeteto: -- forçosamente.
Sócrates: -- o mesmo afirmarás de Sócrates adormecido e de todos os estados que enunciámos há instantes?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- nesse caso, quando uma coisa naturalmente apta a criar assumir Sócrates com boa saúde, achará em mim um homem de todo diferente daquele que achará ao assumir Sócrates enfermo.
Teeteto: -- não pode ser de outra maneira.
Sócrates: -- e, em cada um dos dois casos, eu, o paciente, e a tal coisa que é agente daremos origem a produtos diferentes?
Teeteto: -- naturalmente.
Sócrates: -- ora, quando bebo vinho, estando de boa saúde não se me apresenta ele agradável e doce?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- assim é porque, de acordo com os princípios que anteriormente estabelecemos, o agente e o paciente engendraram a doçura e a sensação, que estão em movimento ao mesmo tempo uma e outra. A sensação que vem do paciente tornou a língua sensiente e doçura proveniente do vinho e que no vinho está difundida fez que este nos tenha sido e parecido doce à língua de boa saúde.
Teeteto: -- é, de facto, como anteriormente concordámos.
Sócrates: -- mas quando o agente tomou Sócrates enfermo, não será antes e mais verdade que não foi realmente o mesmo homem que atingiu, uma vez que abordou um homem dissemelhante?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- foram, então, outros os produtos engendrados por Sócrates num tal estado e pela absorção do vinho da parte da língua, uma sensação de amargor e, da parte do vinho, um amargor que nele se engendra e passa para a língua. O vinho tornou-se, não amargor, mas amargo e eu tornei-me, não sensação, mas sensiente.
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- Quanto a mim, nunca sentirei outra coisa como sinto esta, porque, se o agente é outro, é outra a sensação, a qual modifica e torna outro aquele que sente; quanto ao agente que me causa esta sensação, jamais poderá, unindo-se a outra coisa, originar o mesmo produto e tornar-se o mesmo, porque, se ele origina um outro produto duma outra junção, tornar-se-á outro.
Teeteto: -- é exacto.
Sócrates: -- assim, nem eu me tornarei tal só por mim, nem ele por si só.
Teeteto: -- com certeza que não.
Sócrates: -- mas, quando me torno sensiente, é forçoso que me torne sensiente de alguma coisa, pois é impossível tornarmo-nos sensientes se não sentirmos nada. De igual forma, quando o agente se torna doce ou amargo ou outra coisa do género, torna-se forçosamente isso mesmo para alguém, pois que é impossível tornar-se doce se não é doce para ninguém.
Teeteto: -- não há dúvida.
Sócrates: -- parece-me, então, de concluir que nós somos ou mudamos, conforme o caso, numa relação mútua, porque estamos ligados um ao outro pela inevitável lei do nosso ser e não estamos ligados a mais nada, nem sequer a nós mesmos. Só resta, portanto, esta ligação mútua, de modo que, se afirmarmos que uma coisa existe, é para alguém, ou de alguém, ou relativamente a qualquer outra coisa que devemos afirmar que é ou que muda; o que não podemos dizer nem deixar dizer a ninguém é que uma coisa existe ou muda em si e por si mesma. Este é o alcance da doutrina por mim exposta.
Teeteto: -- nada é mais verdadeiro, Sócrates.
Sócrates: -- uma vez que, portanto, aquilo que actua sobre mim é relativo a mim e não a outro, sou também eu que o sinto e nenhum outro.
Teeteto: -- naturalmente.
Sócrates: -- a minha sensação é, por conseguinte, verdadeira para mim, porque, em todos os casos, ela é uma parte do meu ser e eu sou, como disse Protágoras, juiz da existência das coisas que são para mim e da não-existência daquelas que não são para mim.
Teeteto: -- assim parece.
Relativismo Sensista e Atitude Crítica
Sócrates: -- então, se me não engano e o meu espírito não hesita sobre o que existe ou muda, não possuirei eu a ciência dos objectos de que tenho a sensação?
Teeteto: -- é impossível que a não possuas.
Sócrates: -- foi, pois, com inteira razão que afirmaste ser a ciência o mesmo que a sensação; esta doutrina está de acordo com a de Homero, de Heraclito e de toda a linhagem que os segue, ou seja, que tudo se move como um rio; com a doutrina do sapientíssimo Protágoras, de que o homem é a medida de todas as coisas; e com a de Teeteto, de que, assim sendo, a sensação se torna ciência. Será exactamente isto, Teeteto? Poderemos nós dizer, se me é permitido falar assim deste modo, que aí está o teu filho recém-nascido, dado à luz graças a mim? Que dizes tu?
Teeteto: -- é isso que temos de reconhecer, Sócrates.
Sócrates: -- como vês, aí tens a criancinha, valha ela o que valer, que pusemos neste mundo, nem sem trabalho. Agora que já nasceu, temos de celebrar a anfidrómia ([23]) e fazer com a nossa razão uma autêntica corrida à volta da criancinha, tendo o cuidado de nos certificarmos se o recém-nascido merece realmente ser alimentado ou não passa de vento e de engano. Ou achas que é necessário alimentar o teu filho a todo o custo e não o expor? Suportarás que o sujeitem à crítica na tua presença e não ficará demasiado ofendido se to arrancarem, embora se trate do teu primogénito?
Teodoro: -- Teeteto é capaz de aguentar, Sócrates, pois não é nada difícil a sua maneira de ser. Mas diz-me, em nome dos Deuses, não será, pelo contrário, falsa a teoria?
Sócrates: -- és um verdadeiro guloso da discussão, Teodoro, e achas por bem tomar-me como uma espécie de saco cheio de argumentos e pensar que me é fácil sacar de lá um para te provar que estas teorias não passam de erros. Não vês que na realidade, nenhum argumento sai de mim, mas sempre da pessoa com a qual converso e que eu próprio nada sei, excepto uma pequena coisa que consiste unicamente em receber argumentação de um homem sábio e acolhê-la como convém. É o que eu vou tentar fazer, uma vez mais, com este jovem, sem nada dizer da minha lavra.
Teodoro: -- tens razão, Sócrates. Faz como estás a dizer.
Indistinção do Sábio, do vulgo e do animal
Sócrates: -- pois bem, Teodoro, sabes o que me surpreende no teu colega Protágoras?
Teodoro: -- Que é?
Sócrates: -- de um modo geral, aprecio muito a sua doutrina de que aquilo que aparece a cada um existe para ele, mas surpreendeu-me o início do seu discurso. Não compreendo porque razão, no princípio da sua obra "A Verdade ([24]), ele não afirmou que a medida de todas as coisas é o porco ou o cinocéfalo ou outro animal ainda mais extravagante de entre os que são capazes de sensação. Teria sido um começo magnífico e duma desenvoltura cheia de altivez, assim teria mostrado que, enquanto o admirávamos como um Deus pela sua sabedoria, não valia, pela inteligência, mais, não direi, do que outro qualquer homem, mas do que um girino de rã. Que outra coisa diz, Teodoro? Se, de facto, a opinião que cada qual se forma pela sensação é para ele a verdade; se a impressão de um homem não tem melhor juiz do que ele próprio e se ninguém possui mais autoridade do que ele para examinar se a sua opinião é justa ou errada; se, pelo contrário, como dissemos tantas vezes, cada qual forma por si só as suas opiniões e se estas opiniões são sempre justas e verdadeiras, em que é que, meu amigo, Protágoras era sábio a ponto de ser justamente considerado como digno de ensinar os outros e de receber altos salários? E porque é que nós éramos mais ignorantes e obrigados a frequentar a sua escola, sem cada um é para si mesmo a medida da sua própria sabedoria? Podemos nós deixar de afirmar que, dizendo as coisas que dizia, Protágoras não falava para a galeria? Quanto a mim e ao meu ofício de parteiro, bem como ao exercício da dialéctica em geral, não falo do ridículo que os atinge. De facto, examinar e procurar refutar mutuamente as nossas ideias e opiniões, que são justas para cada qual, não será metermo-nos num palavreado sem fim e esganiçarmo-nos para nada, se é verdadeira a verdade de Protágoras e ele não estava a brincar quando pronunciava os oráculos do santuário do seu livro?
Teodoro: -- como há pouco disseste, Sócrates, esse homem era meu amigo e não me agradaria nada em ver Protágoras refutado pelas minhas próprias palavras, nem também opor-me a ti contra aquilo que penso. Volta, portanto, a Teeteto, até porque me pareceu que ele continua a acolher muito bem as tuas sugestões.
Sócrates: -- se fosses à Lacedemónia, Teodoro, e assistisses às lutas, acharias bem ficar a ver os lutadores nus, alguns deles enfezados, sem tu mesmo te despires e mostrares, como os outros, as tuas formas? ([25]).
Teodoro: -- porque não, se eles estivessem de acordo em permitirmo e ceder às minhas razões , como neste momento espero convencer-vos a deixar-me continuar como simples espectador e a não arrastar-me para dentro da arena, agora que a idade me tornou hirto, para ter de lutar com um homem mais novo e mais ágil?
Indistinção do Divino e do humano; outras dúvidas
Sócrates: -- pois bem, Teodoro, se é o que te agrada, também me não desagrada, como é vulgar dizer. Voltemo-nos, pois, de novo para o sábio Teodoro: --. A propósito do sistema acabado de expor, diz-me antes de mais nada, Teodoro: --: não estás admirado por te veres tornar assim tão subitamente igual em sabedoria a qualquer dos homens ou dos Deuses? Ou pensas que a medida de Protágoras se aplica menos aos Deuses do que aos homens?
Teodoro: -- não, por Zeus, não penso uma tal coisa e para responder à tua pergunta, digo-te que me sinto estranhamente surpreendido. Enquanto analisávamos a maneira como eles provam que aquilo que aparece a cada um existe tal qual lhe aparece, eu achava a prova deles perfeitamente justa. Agora, porém, passei de repente à opinião contrária.
Sócrates: -- és jovem, meu caro rapaz: por isso é que estás tão pronto a escusar os discursos e a deixares-te influenciar. Vejamos, porém, o que nos contraporá Protágoras ou qualquer um dos seus sequazes: "bravos jovens e velhos, eis-vos aí sentados uns com os outros a discutir e a pôr, até, em causa os Deuses, quando eu próprio excluo do meu ensino oral ou escrito o problema de saber se eles existem ou não existem. Assumis como vosso o que a multidão aprova logo que o ouve dizer e afirmais que seria estranho que, do ponto de vista da sabedoria, o homem não diferisse em nada de qualquer animal; mas não forneceis a mais pequena demonstração e prova concludente, só empregando contra mim a verosimilhança." Se Teodoro ou qualquer outro geómetra fundamentasse deste modo as suas demonstrações, elas não valeriam um asse. Considerai, pois, tu e Teodoro, que acolhimento deveis dar em questões de tanta importância a argumentos que apenas assentam na persuasão e na verosimilhança.
Teodoro: -- faríamos mal, tu e eu, se os aceitássemos.
Sócrates: -- neste caso, parece-me, que tu e Teodoro pensais que é preciso examinar a questão de outra maneira.
Teodoro: -- sim, com certeza de outra maneira.
Sócrates: -- procedamos, então, como vou dizer para vermos se a ciência e a sensação são a mesma coisa ou coisas diferentes. Era, afinal, o objecto de toda a nossa discussão e foi desta perspectiva que resolvemos todas essas deixas extravagantes. Não é verdade?
Teodoro: -- absolutamente verdade.
Sócrates: -- estaremos, portanto, de acordo em que tudo o que sentimos pela vista e pelo ouvido, ficaremos, por isso mesmo, a conhecê-lo? Um exemplo: antes de termos aprendido a língua dos bárbaros, diremos que não os ouvimos quando eles falam, ou que os ouvimos e ficamos logo a saber o que eles dizem? Outro exemplo: se, não sabendo ler, passarmos os olhos por uma série de letras, sustentaremos nós que as não vemos ou que as compreendemos pelo facto de as ver?
Teodoro: -- diremos, Sócrates: --, que sabemos perfeitamente o que vemos e ouvimos; no caso as letras, vemos e simultaneamente conhecemos a sua forma e a sua cor, no caso da língua, ouvimos e ao mesmo tempo reconhecemos os sons agudos e os sons graves; mas não percebemos pela vista e pelo ouvido, nem conhecemos o que ensinam a propósito os gramáticos e os intérpretes.
Primeira Objecção à teoria Sensista
Sócrates: -- eis uma resposta perfeita, Teodoro: --, e não viria a propósito continuar tergiversando contigo sobre o assunto, pois é necessário ganhares segurança. Mas repara numa nova dificuldade que surge e vê como havemos de afastá-la.
Teodoro: -- qual é a dificuldade?
Sócrates: -- aqui a tens. Se nos perguntassem: será possível, quando adquirimos conhecimento de uma coisa e temos e conservamos a lembrança dela, que, no momento em que dela nos lembramos, não saibamos essa coisa de que nos recordamos? Parece-me ser uma frase complicada para te perguntar se, quando aprendemos uma coisa, não a sabemos quando a recordamos.
Teodoro: -- como não havíamos de sabê-la, Sócrates: --? O que estás a dizer seria prodigioso.
Sócrates: -- será que não sei o que estou a dizer? Presta atenção: não afirmas tu que ver é sentir e que a visão é sensação?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- ora, segundo o que acabámos de dizer, quem viu uma coisa não adquiriu o conhecimento da coisa que viu?
Teodoro: -- adquiriu.
Sócrates: -- e, agora, admitirás que a memória é alguma coisa?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- e é memória de nada ou de alguma coisa?
Teodoro: -- de alguma coisa, evidentemente.
Sócrates: -- de coisas que se aprenderam e que se sentiram, de coisas deste género?
Teodoro: -- naturalmente.
Sócrates: -- ora acontece, não é verdade, que nos lembramos daquilo que vimos?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- mesmo de olhos fechados? Ou será que nos esquecemos quando os fechamos?
Teodoro: -- seria estranho, Sócrates: --, afirmar semelhante coisa.
Sócrates: -- mas é o que temos de fazer se quisermos salvar o sistema em questão; se não, ele próprio se desfaz.
Teodoro: -- por Zeus, também eu tenho essa dúvida, mas não compreendo bem porquê. Explica-me tu a razão.
Sócrates: -- eis a razão: quem vê, afirmamos nós, adquire conhecimento daquilo que vê, porque acordámos em que a visão, a sensação e a ciência são a mesma coisa.
Teodoro: -- exactamente.
Sócrates: -- mas aquele que vê e adquiriu conhecimento do que viu, se fechar os olhos, recorda-se da coisa, mas já não a vê. É isso?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- mas afirmar que não vê é dizer que não sabe, porque ver é saber.
Teodoro: -- é verdade.
Sócrates: -- daí se conclui que, quando um homem adquiriu conhecimento de uma coisa e depois ainda se lembra dela, não a sabe, porque não a vê, conclusão que classificámos de monstruosa se fosse verdadeira.
Teodoro: -- totalmente exacto.
Sócrates: -- chegamos, então, parece-me, ao uma impossibilidade, quando se pretende que a ciência e a sensação são a mesma coisa.
Teodoro: -- parece que sim.
Sócrates: -- temos de reconhecer, portanto, que se trata de duas coisas diferentes.
Teodoro: -- receio que sim.
Sócrates: -- mas, afinal, que virá a ser a ciência? Parece que temos de retomar o problema pelo princípio, que vamos nós fazer, Teodoro: --?
Teodoro: -- de que pretendes falar?
Sócrates: -- parece que estamos a comportar-nos como um galo sem valor: retirámo-nos do debate e cantamos antes de ter conseguido a vitória.
Teodoro: -- como é isso?
Sócrates: -- parecemos aqueles polemistas que, depois de se porem de acordo quanto aos termos, se contentam em levar a melhor na discussão através deles. Embora pretendamos não ser controversistas mas filósofos, comportamo-nos, sem nos aperceber-mos, como esses habilidosos erísticos ([26]).
Teodoro: -- ainda não compreendo aonde queres chegar.
Sócrates: -- pois bem, vou tentar esclarecer o meu pensamento sobre o assunto. Perguntámos se, quando alguém aprende uma coisa e a recorda, não a sabe e, depois de termos mostrado que aquele que viu e fecha os olhos se recorda mas não vê, provámos que ele não sabe, ainda que se recorde; mas concluímos tratar-se de uma impossibilidade. eis como reduzimos a nada o mito de Protágoras e simultaneamente o teu, o qual confunde a ciência com a sensação.
Teodoro: -- não pode haver dúvida.
Sócrates: -- penso que assim não seria, meu amigo, se o pai do primeiro mito ainda fosse vivo, pois descobriria muitos argumentos para o defender; agora, porém, que o mito se encontra órfão, cobrimo-lo de vergonha. Os próprios tutores que Protágoras lhe deixou, entre os quais se inclui Teodoro aqui presente, negam-se a tomar a sua defesa. Pois bem, eu próprio, levado por um zelo de justiça, me vou arriscar-lhe a trazer-lhe auxílio.
Teodoro: -- não sou eu, Sócrates: --, o tutor dos seus descendentes, mas sim Calias, filho de Hipónico ([27]). No meu caso, bem depressa passei dos discursos abstractos para a geometria. No entanto, ficar-te-ia grato se lhe desses uma ajuda.
Sócrates: -- dizes bem, Teodoro. Repara, pois, de que maneira o vou defender; é que, por não se prestar atenção aos termos geralmente utilizados para afirmar ou negar, corre-se o rico de aceitar absurdos ainda mais graves do que os admitidos atrás. Será a ti ou a Teodoro: -- que devo dirigir-me?
Teodoro: -- peço que te dirijas a ambos, mas que seja o mais novo a responder: terá menos vergonha de cometer algum erro.
Saber e Não Saber o Mesmo ao Mesmo Tempo
Sócrates: -- vou então pôr a questão mais difícil, cuja formulação julgo poder ser esta: será possível que o mesmo homem, sabendo uma coisa, não saiba a coisa que sabe?
Teodoro: -- que responderemos, Teodoro: --?
Teodoro: -- da minha parte, penso que é impossível.
Sócrates: -- não é impossível se partes do princípio de que ver é saber. Como resolverás, de facto, o problema inextricável em que te acharás, como é costume dizer, preso no fundo dum posso, se um adversário atrevido, colocando a mão sobre um dos teus olhos, também perguntar se lhe vês a roupa com esse olho tapado?
Teodoro: -- responderei, imagino, que não vejo com esse olho, mas vejo com o outro.
Sócrates: -- portanto, vês e não vês simultaneamente a mesma coisa?
Teodoro: -- sim, de certo modo.
Sócrates: -- não é nada disso que eu quero saber, replicará o adversário: não te perguntei como, mas se o que tu sabes o não sabes também. Ora, neste momento é evidente que vês o que não vês, porque admitiste precisamente que ver é saber e que não ver é não saber. Retira daí as consequências que para ti resultam.
Teodoro: -- pois bem, concluo, que resulta o contrário daquilo que estabeleci.
Sócrates: -- serias, porventura, levado a muitas outras inconsequências, admirável jovem, se te perguntassem ainda: é possível saber a mesma coisa de uma forma penetrante ou de uma forma embotada, sabê-la de longe ou de perto, fortemente ou suavemente, e mil outras perguntas que fariam de ti um peltasta ([28]) metido em emboscada, mercenário das guerras de palavras. Quando declarasse que a ciência e a sensação são idênticas, ele atirar-te-ia às sensações do ouvido, do olfacto e dos outros sentidos, e, sustentando uma luta sem tréguas, refutar-te-ia ao ponto de, aturdido pela sua invejável sabedoria, acabares por tombar nas suas malhas. Depois de te haver assim dominado e amarrado, extorquir-te-ia a soma entre vós combinada. Perguntar-me-ás agora, talvez, o que poderia dizer Protágoras em defesa da sua doutrina. Não devemos nós tentar a formulação dessa defesa?
Teodoro: -- sim, com certeza.
A Defesa de Protágoras
Sócrates: -- Protágoras faria valer tudo o que nós mesmo dizemos para defendê-lo e, depois, penso que nos assaltaria corpo a corpo e nos diria em tom de desprezo: "esse honesto Sócrates assustou um garoto com a pergunta se o mesmo homem pode simultaneamente recordar uma coisa e não saber essa mesma coisa. Como o garoto assustado respondeu que não, por ser incapaz de prever as consequências do que dizia, Sócrates conduzia a conversa de forma a cobrir de ridículo a minha humilde pessoa. Ficaste bastante satisfeito, Sócrates, mas a verdade a aqui a tens: sempre que ezaminas por um processo interrogativo qualquer aspecto da minha doutrina, se aquele que interrogas, respondendo o que eu próprio responderia, se deixa escorregar, sou eu a ficar confundido; se responder de maneira diferente do que responderia, é o teu interlocutor a confundir-se. Julgas tu, por exemplo, que podes levar alguém a admitir que a memória que ele tem presentemente duma impressão passada é uma impressão do mesmo género da impressão passada que ele já não sente? Muito longe disso. Julgas, também, que ele terá dificuldade em confessar que o mesmo homem pode saber e não saber a mesma coisa? Ou, se tem medo de confessar isso, que alguma vez admitirá que aquele que se tornou diferente seja o mesmo de antes da mudança, ou antes, que este homem seja um e não vários, multiplicando-se até ao infinito por haver mudança contínua, se devemos abster-nos da caça às palavras para nos surpreender mutuamente? Ó homem ditoso, prosseguirá Protágoras, sê mais nobre, ataca-me nas minhas próprias doutrinas e refuta-as se puderes, provando que as sensações que chegam a cada um de nós não são individuais, ou, se o são, que aí não se conclui que a coisa que aparece a cada um aparece ou, se temos de usar a palavra ser, é apenas para aquele a quem aparece.
"Quando, porém, falas de suínos e cinocéfalos, não só tu mesmo te comportas como um suíno, como ainda convences os teus auditores a fazer o mesmo em relação aos meus escritos, o que não está certo. Eu afirmo que a verdade é como eu a defini: cada um de nós é a medida daquilo que é e daquilo que não é e um homem difere infinitamente de outro homem precisamente porque para aquele que as coisas são e aparecem outras do que são e aparecem para este. Quanto à sabedoria e ao homem sapiente, longe de mim negar a sua existência; mas entendo por homem sábio aquele que, mudando a face dos objectos, os faz aparecer e ser bons àquele para quem tais objectos apareciam e eram maus. E não te metas de novo à caça das palavras da minha definição. Vou explicar-me com mais clareza para te fazer compreender o meu pensamento. Recorda, por exemplo, o que atrás foi dito: os alimentos aparecem e são amargos para o enfermo, e são e aparecem como o contrário para o homem de boa saúde. Nem um nem o outro devem ser representados como o mais sábio (isso nem sequer é possível) e também não devemos afirmar que um enfermo é ignorante por ter uma tal opinião, ou que o homem saudável é sábio por ter a opinião contrária. O que devemos é fazer passar o enfermo para o outro estado, melhor do que o seu.
"Da mesma forma, a respeito da educação, devemos fazer passar os homens dum estado para outro estado melhor; enquanto, porém, o médico utiliza remédios, o sofista emprega discursos. Nunca, de facto, se conseguiu fazer com que um homem que tinha falsas opiniões tenha, depois, opiniões verdadeiras, porque não é possível ter opiniões sobre o que não é, nem impressões diferentes das que se experimentam e estas são sempre verdadeiras. Creio, porém, que, quando um homem, por má disposição de espírito, tem opiniões conformes com esta disposição, trocando tal disposição por uma boa, fazemos-lhe ter opiniões diferentes, conformes com a sua nova disposição, opiniões que alguns, por ignorância, qualificam de verdadeiras. Concordo que umas são melhores do que as outras, mas não que sejam mais verdadeiras. Quanto aos sábios, meu caro Sócrates, estou longe de os comparar às rãs: quando eles tratam do corpo, chamo-lhes médicos; quando tratam das plantas, chamo-lhes agricultores. Afirmo, de facto, que os agricultores, quando encontram plantas doentes, lhes mudam as sensações más para sensações boas, sãs (e verdadeiras), e que os oradores sábios e bons actuam de modo que as coisas boas apareçam como justas aos Estados, em lugar das más. Na verdade, o que se apresenta como justo e honesto a uma cidade, assim é para ela enquanto ela assim considerar; somente o sábio, sempre que as coisas são más para os cidadãos, as substitui por coisas que são e lhe aparecem como boas. Pela mesma razão, o sofista capaz de assim dirigir os seus discípulos é sábio e merece um salário elevado quando a educação deles termina.
"É neste sentido que há pessoas mais sábias do que outras sem que ninguém tenha opiniões falsas e tu, quer tu queiras quer não, tens de resignar-te a ser a medida das coisas, pois estas considerações provam-te que este princípio se mantém de pé. Se quiseres discutir o problema desde o início, discute-o contrapondo discurso a discurso; se preferes proceder por interrogações, interroga, pois, se trata de um método de modo nenhum a rejeitar, e é mesmo o que uma pessoa inteligente deve preferir a todos os outros. Mas utiliza-o como vou dizer-te: não ponhas má-fé nos teus interlocutores. Seria, de facto, grande inconsequência pretender interessar-se pela virtude e proceder sempre deslealmente na discussão. A deslealdade, neste caso, consiste em não distinguir, quando se está a conversar, entre a disputa e a discussão; na primeira, zomba-se e ludibria-se tanto quanto for possível; na segunda, há seriedade e corrigimos o interlocutor limitando-nos a mostrar-lhe os erros em que se deixou cair, fosse por si próprio, fosse em consequência das lições recebidas. Se seguires esta regra, os teus interlocutores atribuirão a si mesmos e não a ti a causa da sua deturpação e do seu embaraço. Virão buscar o teu convívio e sentirão amizade por ti. Descontentes consigo e de si mesmos fugindo, buscarão refúgio na filosofia a fim de se tornarem outros e se despojarem do homem que anteriormente eram. Se, como faz um grande número, agires ao contrário, será o contrário que te acontecerá e, em vez de transformar os teus interlocutores em filósofos, levá-los-ás a odiar a filosofia, quando forem mais velhos. Se, portanto, me quiseres dar ouvidos, evitarás o humor malévolo e agressivo de que falei há instantes e examinarás verdadeiramente, com espírito de suavidade e condescendência, o que nós asseveramos ao declarar que tudo está em movimento e que as coisas são como aparecem a cada um, indivíduo ou Estado. A partir desta base, examinarás se a ciência e a sensação são idênticas ou diferentes, sem te prenderes, como ainda há pouco, ao uso comum das expressões e das palavras, que a maior parte das pessoas puxam para o sentido que lhes convém, lançando-se assim mutuamente em toda a espécie de embaraços."
Eis, Teeteto, o que as minhas forças me permitiram oferecer em defesa do teu amigo, débil auxílio dos meus débeis recursos. Se o próprio Protágoras fosse ainda deste mundo, teria defendido as suas ideias com outra grandiosidade.
O Método do Exame Crítico
Teodoro: -- estás a brincar, Sócrates! Defendeste-o com muito vigor.
Sócrates: -- é lisonja tua, meu amigo. Mas diz-me: reparaste no que Protágoras dizia há instantes e na censura que nos fez de estarmos a discutir com uma criança, aproveitando-nos da sua timidez para combater-lhe a doutrina. Considerou isso zombaria e, exaltando a sua medida de todas as coisas, recomendou-nos que examinássemos com seriedade a sua própria tese.
Teodoro: -- é evidente, Sócrates, que reparei.
Sócrates: -- e, então, queres que lhe obedeçamos?
Teodoro: -- é o que de todo o coração desejo.
Sócrates: -- como estás a ver, todos os presentes, salvo a tua pessoa, não passam de garotos. Portanto, se lhe quisermos obedecer, teremos de examinar, tu e eu, a sua tese com seriedade, perguntando e respondendo um ao outro, não venha ele acusar-nos de termos continuado a discussão divertindo-nos com crianças.
Teodoro: -- que dizes? Teeteto não te acompanhará porventura melhor neste exame do que muita gente de grandes barbas?
Sócrates: -- não melhor do que tu, em todo o caso Teodoro. Não julgues que eu tenha de empregar todos os esforços para defender apaixonadamente o teu colega e que tu não faças nenhum. Vamos, excelente Teodoro, acompanha-me um pouco, só até vermos se deves ser tomado por medida em matéria de figuras geométricas, ou se todos os homens têm a mesma competência que tu em astronomia e nas outras ciências em que gozas fama de ser exímio.
Teodoro: -- quando estamos sentados junto de ti, Sócrates, não é fácil fugirmos à réplica e há pouco falava irreflectidamente ao dizer que me permitiriam não despir-me e que não me obrigariam a tal coisa, ao contrário do que fazem os Lacedemónios. Parece-me, antes, alguém que faz o papel de Esquíron Os Lacedemónios convidam-nos, efectivamente, a ir embora ou a despir as roupas; tu, porém, mais pareces comportar-te como Ateu ([29]): não largas quem se aproxima de ti antes de o teres forçado a despir-se para travar contigo uma luta de palavras.
Sócrates: -- pintaste a minha doença da melhor maneira, Teodoro; mas eu sou mais forte do que esses dois lutadores, porque já deparei com milhares de Hércules e de Teseus, terríveis na disputa, que me castigaram fortemente; mas não será por isso que desistirei, tão violenta e entranhada é a paixão que tenho por esse género de ginástica. Não me recuses, por inveja, também tu, o prazer dum corpo-a-corpo, do qual aproveitarás tanto como eu.
Teodoro: -- já não tenho mais nada a objectar, leva-me para onde quiseres. Relativamente a esta discussão, terei que sofrer de qualquer maneira o destino que me teceste e sujeitar-me à tua crítica. Mas não me entregarei às tuas mãos para além daquilo que me propuseste.
Sócrates: -- basta seguires-me até lá. E toma cuidado com uma coisa: não dêmos inadvertidos, uma forma infantil à nossa argumentação, não aconteça ficarmos outra vez expostos a qualquer censura.
Teodoro: -- vou ter esse cuidado, tanto quanto for capaz.
Contradição Intrínseca da Teoria de Protágoras
Sócrates: -- comecemos por voltar a um problema já tratado e vejamos se o nosso desagrado se justificava ou não, quando desaprovámos a proposição segundo a qual cada um se basta a si mesmo em matéria de sabedoria, Protágoras concordou, então, connosco em que certos homens discerniam melhor do que os outros o melhor e o pior, e que esses eram sábios. Não é verdade?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- se estivesse aqui presente e fizesse ele próprio essa confissão, em vez de termos sido nós a formulá-la para sua defesa, não precisaríamos de voltar mais a ela para a confirmar. Mas podem objectar-nos que não temos qualquer autoridade para fazer tal confissão em seu nome. Por isso, será mais correcto que, sobre este ponto, nos ponhamos mais nitidamente de acordo, tanto mais que não é de somenos importância que a coisa seja assim ou ser de outro modo.
Teodoro: -- dizer bem.
Sócrates: -- afastemos, então, qualquer outro testemunho e deduzamos esta concessão, o mais brevemente possível, dos seus próprios discursos.
Teodoro: -- como?
Sócrates: -- desta maneira: é certo ele afirmar que aquilo que parece a cada um existe realmente para aquele a quem assim parece.
Teodoro: -- disse-o, de facto.
Sócrates: -- ora também nós, Protágoras ([30]), exprimimos as opiniões de um homem, ou antes, de todos os homens, quando afirmamos não existir ninguém que, em certos aspectos, se não considere mais sábio do que os outros, e não considere os outros mais sábios do que ele noutros aspectos e que, pelo menos nos grandes perigos como nas guerras, doenças intempéries sobre o mar, não olhe, como se fossem Deuses, para aqueles que detêm o comando nestas ocasiões, porque se espera deles a salvação, quando afinal a sua única superioridade está no saber. Podemos dizer que o mundo inteiro está cheio de pessoas à procura de mestres e de chefes para si mesmos, para os animais e para os seus trabalhos, como, em contrapartida, está cheio de pessoas que se julgam capazes de ensinar e capazes e governar. Em todos estes casos, que podemos nós dizer se não que os próprios homens pensam existirem no meio deles sábios e ignorantes?
Teodoro: -- Outra coisa não é possível afirmar.
Sócrates: -- não defendem eles que a sabedoria é um pensamento verdadeiro e a ignorância uma opinião falsa?
Teodoro: -- sem dúvida.
Sócrates: -- então, Protágoras, que havemos de concluir destas observações? Diremos que as opiniões dos homens são sem+pre verdadeiras ou que umas vezes são verdadeiras, outras vezes falsas? De ambas as possibilidades resulta que elas nem sempre são verdadeiras, mas ou verdadeiras ou falsas. Reflecte, Teodoro: algum partidário de Protágoras aceitaria, e aceitarias tu mesmo defender que ninguém pensa dum outro homem que ele é ignorante e tem opiniões falsas?
Teodoro: -- isso é impossível, Sócrates.
Sócrates: -- no entanto, é a conclusão inevitável a que nos leva a tese de que o homem é a medida de todas as coisas.
Teodoro: -- como?
Sócrates: -- quando, no teu íntimo, formaste um juízo sobre qualquer objecto e me transmites a tua opinião sobre esse objecto, admito perfeitamente, segundo a tese de Protágoras, que tal opinião é verdadeira para ti; mas será proibido que nós sejamos, por nosso lado, juízes do teu juízo? Ou temos de julgar sempre como verdadeiras as tuas opiniões? Não encontrará cada uma delas, ao contrário, milhares de opositores de opinião adversa, convencidos de ser falso o que julgas e o que pensas?
Teodoro: -- Sim, por Zeus, Sócrates! Tenho realmente, como diz Homero ([31]), miríades de adversários que me causam todas as dificuldades que pode haver no mundo.
Sócrates: -- queres, então, que digamos que tens opiniões verdadeiras para ti e falsas para essas miríades?
Teodoro: -- segundo me parece, trata-se duma inevitável consequência da doutrina.
Sócrates: -- e quanto ao próprio Protágoras? Supõe que ele mesmo não acreditava que o homem é a medida de todas as coisas e que a grande maioria dos homens também não acredita (como, de facto, não acredita): não seria então necessário concluir que a verdade tal como ele a definiu não existe para ninguém? Se, pelo contrário, ele acreditou, mas a multidão se recusa a partilhar da sua crença, quanto mais o número dos que não acreditam nele ultrapassar o número dos que acreditam, tantas mais razões haverá para o seu princípio ser falso e não verdadeiro.
Teodoro: -- isso é inegável, se a existência ou não-existência da verdade depende da opinião de cada um.
Sócrates: -- daí resulta mais outra coisa muitíssimo engraçada: Protágoras admite que, quando os seus opositores julgam a sua própria opinião e pensam que ele está no erro, a opinião deles é verdadeira, uma vez que Protágoras reconhece que só se podem ter opiniões verdadeiras.
Teodoro: -- efectivamente.
Sócrates: -- portanto, confessa que a sua opinião é falsa, se admite como verdadeira a opinião dos que julgam no erro?
Teodoro: -- forçosamente.
Sócrates: -- mas os outros, não concordam também eles mesmos que estão no erro?
Teodoro: -- com certeza que não.
Sócrates: -- ele, pelo contrário, confessa que também esta opinião é verdadeira, se tomarmos em conta o que escreveu.
Teodoro: -- é evidente.
Sócrates: -- a verdade de Protágoras será, portanto, posta em dúvida por toda a gente, a começar por ele, ou, melhor dizendo, o próprio Protágoras desde que reconhece por verdadeira a opinião dos seus opositores, confessará que nem um cão, nem o primeiro homem que aparece pode ser a medida de coisa alguma se não a estudou. Não é exacto?
Teodoro: -- sim, é exacto.
Sócrates: -- portanto, uma vez que toda a gente a contesta, a verdade de Protágoras não é verdadeira para ninguém, nem para qualquer outro que não seja ele, nem para ele mesmo.
Teodoro: -- estamos a cair sobre o meu amigo com exagerada animosidade.
Sócrates: -- não vejo, amigo, que estejamos a passar além da justa medida. Naturalmente, é verosímil que, sendo ele mais velho, seja também mais sábio do que nós e se, neste momento, deitasse o pescoço de fora da terra, é provável que nos censurasse, a mim por ter dito alguns disparates, a ti por tê-los aprovado, após o que voltaria a sumir-se, desaparecendo velozmente. Penso, todavia, que somos obrigados a fazer o que a nossa natureza nos ordena e a dizer sempre o que nos parece verdadeiro. E não devemos agora, uma vez mais, afirmar que toda a gente se encontra indistintamente de acordo neste ponto: que existem pessoas mais sábias e mais ignorantes do que outras?
Teodoro: -- é, em todo o caso, a minha opinião.
A Cidade e o Indivíduo na Perspectiva Sensista
Sócrates: -- não devemos, também, afirmar que a doutrina de Protágoras tem o seu mais firme ponto de apoio no que apresentámos em sua defesa, a saber, que a maior parte das coisas como o calor, a secura, a doçura e outras qualidades do mesmo género, são para cada um tal como lhe aparecem? Mas, se Protágoras admite que, em certos casos, um homem supera outro em matéria de saúde e de doença, não aceitará admitir também, que não está ao alcance da primeira mulherzita que apareça, de um garoto ou de um animal curarem-se a si mesmos pelo conhecimento daquilo que lhes é salutar, mas que, se há casos em que um homem é superior a outro, este é precisamente um deles?
Teodoro: -- a tua opinião é também a minha.
Sócrates: -- também no campo da política o que é belo ou feio, justo ou injusto, pio ou ímpio, é verdadeiramente para cada cidade tal como ela o julga e o declara legal para si mesma e, nestas matérias, não há diferença de sabedoria de particular para particular, de cidade para cidade. Mas, quando se trata de fazer leis vantajosas ou desvantajosas para a cidade, Protágoras reconhecerá ainda, que neste campo, mais do que em qualquer outro, um conselheiro é, acerca da verdade, superior a outro conselheiro e a opinião de uma cidade superior à de outra cidade, e não ousará pretender que as leis que um Estado se impõe, julgando-as úteis, o serão de facto infalivelmente. Mas, a propósito das primeiras coisas de que falei, ou seja, do que é justo ou injusto, pio ou ímpio, alguns afirmam ousadamente, que nada disto tem existência própria por natureza e que a opinião que a comunidade se forma sobre tais coisas se torna verdadeira nesse próprio momento e continua a ser verdadeira enquanto essa opinião durar. Assim discorrem mais ou menos todos os que adoptam parcialmente a tese de Protágoras. Mas estou a ver, Teodoro, que um argumento puxa outro e que, depois de um mais pequeno, outro maior nos solicita.
Teodoro: -- pois bem, não temos nós bastante vagar, Sócrates?
Sócrates: -- é evidente que sim. Muitas vezes tenho pensado, meu divino Teodoro, e penso agora particularmente, em como é natural que as pessoas que passaram muito tempo a estudar a filosofia pareçam oradores ridículos quando se apresentam perante os tribunais.
Teodoro: -- que pretendes dizer?
Sócrates: -- Parece que as pessoas que, desde a juventude, têm andado a cirandar pelos tribunais e pelas assembleias do mesmo tipo, comparadas às pessoas que foram criadas na filosofia e nos estudos desta natureza, são como escravos diante de homens livres.
Teodoro: -- porque razão?
Sócrates: -- porque, tal como dizias há instantes, uns têm sempre vagar e conversam à vontade uns com os outros em paz. Fazer como nós, que acabámos de passar pela terceira vez dum assunto para o outro, sempre que o assunto surgido lhes dá, como a nós, mais prazer do que aquele que estava sobre a mesa. Que importa a discussão ser longa ou breve, contanto que cheguem à verdade? Os outros, ao contrário, nunca têm tempo a perder quando discursam. Pressionados pela clépsidra ([32]), não podem falar do que desejariam. Têm na sua presença a parte adversa a constrangê-los com o acto acusatório, chamado antomósia ([33]), lido diante deles e diante de cujos termos devem manter os seus discursos. Estes discursos giram sempre em volta de algum companheiro de escravidão e dirigem-se a um mestre sentado na cátedra, que tem não uma queixa, e os debates nunca deixam de ter uma consequência, mas a aposta da corrida está sempre num interesse pessoal e, muitas vezes, na própria vida dos oradores. De tudo isto deriva tornarem-se tensos e rudes, hábeis em lisonjear o mestre com palavras e em comprazê-lo com os seus actos; vão-se-lhes porém, definhando e torcendo as almas, porque a escravatura que os oprime lhes roubou a capacidade de crescer, a rectidão e a liberdade, forçando-os a práticas tortuosas e expondo-os, desde a mais tenra juventude, a graves perigos e a grandes temores. Impotentes para os suportar tomando o partido da justiça e da verdade, imediatamente se voltam para a mentira, respondem à injustiça com a injustiça, curvam-se e cedem de mil formas, passando assim da adolescência à idade viril com o espírito inteiramente corrompido e imaginando terem ganho habilidade e saber. Eis, Teodoro, o que são os oradores. Quanto aos que fazem parte do nosso Coro ([34]), queres que os descreva ou preferes que, sem nos determos neste ponto, voltemos ao nosso tema, para não abusar dessa liberdade da mudança de assunto de que há pouco falávamos?
Teodoro: -- de modo nenhum, Sócrates; pelo contrário, descreve-os. Como disseste, e muito bem, nós, os que pertencemos a este Coro, não estamos às ordens da argumentação; a argumentação é que está às nossas ordens e cada um dos nossos argumentos espera a nossa livre vontade para ser conduzido ao seu objectivo. Nós não temos, como os poetas têm, nem juízes, nem espectadores que nos presidam, nos censurem e nos ordenem.
O Verdadeiro Filósofo
Sócrates: -- sendo esta, como vejo, a tua opinião, vou falar dos corifeus; de facto, porquê falar dos filósofos medíocres? Daqueles, a primeira coisa a dizer é que, desde a sua juventude, ignoram o caminho que leva à ágora ([35]) ou aos locais onde se encontram o tribunal, a sala do Conselho ou qualquer outra sala de reunião pública. Não têm olhos nem ouvidos para as leis e os decretos proclamados ou escritos. Nem sequer em sonhos lhes vem ao espírito a ideia de participarem nas intrigas das hetairas ([36]) que disputam as magistraturas, nas reuniões, nos banquetes, nas orgias acompanhadas por tocadores de flauta. Que ao Estado aconteçam êxitos ou reveses ou que indivíduo tenha herdado alguma ignomínia dos seus antepassados, homens ou mulheres, o filósofo ignora isso tudo como ao número de gotas de água que tem o mar. Não sabe sequer que ignora tudo isso, porque, se ele se abstém de tomar conhecimento dessas coisas não é por vaidade, mas porque realmente apenas o seu corpo está presente e habita na cidade, enquanto o seu pensamento, desdenhando tudo isto como coisas mesquinhas e sem valor, estende o voo a todo o universo, como dizia Píndaro ([37]), sondando os abismos da terra e medindo a extensão da superfície, perseguindo os astros para lá do Céu, perscrutando de todos os modos a natureza e cada ser particular na sua totalidade, sem nunca descer às coisas vizinhas dele.
Teodoro: -- que entendes tu por estas palavras, Sócrates?
Sócrates: -- o exemplo de Tales fár-te-á compreender, Teodoro. Estando ele a observar os astros, caiu dentro de um poço porque tinha os olhos postos no Céu. Uma serva da Trácia, esperta e cheia de bom-humor, pôs-se a troçar dele, conta-se, dizendo que Tales punha todo o entusiasmo em saber o que se passava no Céu e não prestava atenção às coisas que tinha diante de si e debaixo dos pés. A mesma troça aplica-se a todos os que passam a vida a filosofar. É, de facto, verdade que um homem deste género não conhece nem semelhantes nem vizinhos; ignora o que eles fazem e mal sabe se são homens ou criaturas de outra espécie. O que ele procura e se empenha em descobrir é o seguinte: que pode ser o homem e que deve fazer ou sofrer uma tal natureza para se distinguir dos outros seres? Penso, Teodoro, que compreendes. Ou não compreendes?
Teodoro: -- compreendi e penso que disseste a verdade.
Sócrates: -- aqui tens, portanto, meu amigo, aquilo que eu disse no começo: o que é o filósofo nas relações privadas e públicas com os seus semelhantes. Quando é obrigado a discutir, num tribunal ou em qualquer outro lugar, sobre o que tem a seus pés ou diante dos olhos, presta-se ao riso não só das servas trácias, mas de toda a restante multidão, pois que a sua inexperiência o leva a cair nos poços e em toda a espécie de perplexidades. A sua terrível falta de jeito fá-lo passar por estúpido. Quando o cobrem de insultos, não é capaz de tirar do seu bolso qualquer insulto contra alguém, porque não conhece nenhum defeito seja de quem for, por nunca ele ter prestado atenção. Então acanha-se e parece um homem ridículo. Como o vêem rir-se, não a fingir mas a valer, quando as pessoas se elogiam e se gabam a si mesmas, tomam-no por idiota. Se ouve o elogio de um tirano ou de um rei, julga ouvir exaltar a felicidade de algum pastor de ovelhas, de porcos ou de vacas, por tirar muito leite do seu rebanho. Pensa, aliás, que os reis apascentam e ordenham um rebanho mais rebelde e mais desleal do que as bestas do pastor, e que é por falta de lazer que eles se tornam tão grosseiros e ignorantes como os pastores, uma vez que se fecham entre muralhas como os últimos nos cercados sobre os montes. Ouve falar de um homem que é dono de dez mil pletros ([38]) de terra como de um homem extraordinariamente rico e como que se trata de uma insignificância, habituado como está a lançar a vista sobre a terra inteira. Quanto àqueles que enaltecem a nobreza e dizem que um homem é um bem-nascido porque pode provar que tem sete avós ricos, o filósofo pensa que esse elogio vem de pessoas de visão baixa e curta, porque, desprovidos de educação, jamais conseguem fixar os olhos no género humano inteiro ou aperceber-se de que cada um de nós possui incontáveis miríades de avós e de antepassados, entre os quais há ricos e indigentes, reis e escravos, bárbaros e gregos, que se sucederam aos milhares em todas as famílias. Buscar a glória numa série de vinte e cinco antepassados e reportar a sua origem a Héracles, filho de Anfitrião ([39]), não passa para ele de uma estranha tacanhez de espírito. O vigésimo quinto antepassado de Anfitrião e o quinquagésimo antepassado desse vigésimo quinto foram o que os fez o acaso e o sábio ri-se daqueles que são incapazes de fazer este cálculo e de libertar o espírito de tão estulta vaidade. Em todas as circunstâncias, o vulgo escarnece o filósofo, que lhe parece ora arrogante, ora ignorante do que se passa aos seus pés, e sempre atrapalhado.
Teodoro: -- as coisas passam-se exactamente como dizes, Sócrates.
Louvor Do Modelo Idealista
Sócrates: -- quando, porém, meu amigo, o filósofo conseguiu atrair alguém às alturas e esse alguém consentiu em fugir de perguntas como: "que mal te fiz eu e tu a mim?" para passar a examinar em di mesmas a justiça e a injustiça e procurar saber em quê uma e outra consistem e em quê diferem entre si e das outras coisas; se renunciou a interrogar-se sobre se o rei que é grande senhor de grandes tesouros será feliz, para considerar a realeza e a felicidade ou a infelicidade humana em geral, a essência de uma e de outra e a forma como o homem deve naturalmente procurar uma e evitar outra; quando este homem de espírito acanhado, rude e trapaceiro, for por sua vez forçado a responder a todas estas questões, deve sofrer nesse momento a pena de Talião. Anda-lhe a cabeça à roda, ao ver-se suspenso nas alturas, e, como não está habituado a olhar lá de cima, sente-se inquieto, atrapalhado, gaguejante e provoca o riso, não a servas da Trácia nem a qualquer outro ignorante que nada percebem, mas a todos os que receberam uma educação contrária á dos escravos.
Esta é, teodoro, a maneira de ser dos dois homens. Aquele a quem chamas filósofo, criado no seio da liberdade e do lazer, não deve ser censurado por ter o aspecto de um homem simples e ser absolutamente inepto quando se encontra diante de tarefas servis, quando não sabe, por exemplo, fazer a trouxa de viagem, temperar um prato ou manter uma conversa bajuladora. O outro é capaz de fazer tudo isto com habilidade e rapidez, mas não sabe lançar com um gesto nobre a capa sobre o ombro direito à maneira de um homem livre, nem aprender a harmonia dos discursos, nem cantar dignamente a verdadeira vida dos Deuses e dos homens felizes.
Teodoro: -- se conseguisses convencer toda a gente, Sócrates, sobre o que acabas de dizer como o fizeste a mim, haveria mais paz e menos desgraças entre os homens.
Sócrates: -- sim; mas não é possível, Teodoro, nem que os males desapareçam, pois tem de haver sempre alguma coisa contrária ao bem, nem que eles tenham lugar entre os Deuses. É uma necessidade que os males circulem entre o género humano e sobre este mundo. Por isso devemos tentar fugir o mais depressa possível deste mundo para o outro. Ora, esta fuga consiste em tornar-nos, dentro do possível, semelhantes à divindade e sermos semelhantes à divindade é tornarmo-nos justos e piedosos, com a ajuda da inteligência. Mas, de facto, meu excelente amigo, não é coisa fácil convencer as pessoas de que as razões pelas quais o vulgo pretende que se deve evitar o vício e seguir a virtude não são aquelas pelas quais, realmente, devemos praticar esta e evitar aquele. A verdadeira razão não é esquivar-se à fama de mau e passar por virtuoso: para mim, isto não é mais que palavreado de mulheres idosas; a verdade é o que te vou dizer. Em nenhuma circunstância e de maneira nenhuma Deus é injusto; pelo contrário, ele é a própria justiça e não há nada que lhe seja mais semelhante do que aquele de nós que se tornou o mais justo possível. É por isto que se mede a verdadeira actividade do homem, bem como a sua nulidade e frouxidão. É esta a verdade cujo conhecimento é sabedoria e virtude autêntica e cuja ignorância é estultícia e vício manifesto. Os outros pretensos talentos e ciências não passam, no governo dos Estados, de conhecimentos grosseiros e, nos ofícios, de rotina mecânica. Portanto, quando um homem se revela injusto e ímpio nas palavras e nos actos, o melhor é não lhe conceder que é hábil por astúcia; é que tais pessoas tiram glória dessa censura e pensam que lhes estamos a dizer que não são sonhadores de quimeras, inúteis fardos da terra ([40]), mas sim os homens capazes de assumir os negócios da cidade. Há que dizer-lhes a verdade, quanto menos julgam ser o que são, mais eles o são na realidade. Ignoram, de facto, a pena reservada à injustiça, a coisa que menos é permitido ignorar. Não é a pena que eles imaginam, as chicotadas ou a morte, a que, algumas vezes, escapam completamente apesar de fazerem o mal; é uma punição a que é impossível escapar.
Teodoro: -- a que punição te queres referir?
1 Sócrates: -- há na natureza duas coisas, meu caro amigo, dois modelos: um, divino e feliz; outro, inimigo de Deus e infelicíssimo. Mas eles não vêem isso: a sua estúpida e excessiva loucura impede-os de sentir que, agindo de maneira injusta, se aproximam de um e se afastam de outro. São castigados pela vida que levam, em conformidade com um modelo a que se assemelham. Se, porém, lhes dissermos que, a não abandonarem a sua habilidade, depois da morte serão excluídos desse lugar puro de todo o mal e que neste mundo levarão sempre uma vida conforme ao seu carácter, malfeitores escravos do mal, tomarão as nossas palavras como ridicularias e não deixarão de considerar-se menos hábeis e espertos.
Teodoro: -- é assim exactamente, Sócrates.
Sócrates: -- bem sei, companheiro. Mas eis o que lhes acontece: quando, num frente-a-frente, são obrigados a discutir com outrem as doutrinas que rejeitam e aceitam suportar virilmente um demorado exame sem se esquivarem por cobardia, então, divino Teodoro, causa surpresa ver como eles se sentem tão insatisfeito com os seus próprios argumentos; a sua famosa retórica murcha ao ponto de podermos tomá-los como crianças. Deixemos, porém, estas observações meramente secundárias; caso contrário o seu fluxo cada vez maior fará submergir o nosso tema original. Se estiveres de acordo, regressamos ao nosso tema.
Teodoro: -- da minha parte, Sócrates , escutar as tuas digressões não me causa menos prazer. Um homem da minha idade facilmente as acompanha. No entanto, se preferires, voltemos atrás.
A Objecção das Leis Vantajosas para o Futuro
Sócrates: -- na nossa discussão , tínhamos chegado a este ponto: aqueles que pretendem, dizíamos nós, que a realidade está em constante mudança e que, em todos os casos em que uma coisa aparece a alguém essa coisa é isso mesmo para aquele a quem aparece, estão decididos a sustentar em tudo o resto, e sobretudo no que se refere à justiça, que aquilo que uma cidade considera justo e erige em lei é perfeitamente justo para esta cidade enquanto a lei subsistir; mas, no que respeita aos bens, ninguém até hoje foi suficientemente ousado para defender que as leis de que uma cidade se dotou porque as considerava vantajosas, são realmente vantajosas enquanto subsistirem, a menos que nos limitemos a denominá-las como tais. Mas isso seria brincar com o nosso tema, não achas?
Teodoro: -- indubitavelmente.
Sócrates: -- portanto, não falemos do nome; examinemos a coisa que ele designa.
Teodoro: -- de facto, não é o nome que está em questão.
Sócrates: -- aliás, seja qual for o nome atribuído pelo Estado a esta coisa,
é realmente ela que o Estado tem em vista ao legislar e todas as suas leis visam a sua máxima utilidade que ele pensa e pode retirar delas para si mesmo. Ou terá ele em vista algum outro objectivo quando as estabelece?
Teodoro: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- ora, atingirá o Estado sempre a sua finalidade, ou não haverá bastantes casos em que não a atinge?
Teodoro: -- quanto a mim, estou convencido de que lhe acontece não a atingir.
Sócrates: -- há uma coisa que é mais fácil toda a gente pôr-se de acordo: a questão sobre a classe universal a que pertence o útil. Ora, ela estende-se ao tempo que há-de vir, porque, ao legislarmos, fazemo-lo com a ideia que as nossas leis serão úteis no tempo futuro e o nome de futuro é o que melhor convém a esta utilidade.
Teodoro: -- não há dúvida.
Sócrates: -- interroguemos, pois desta maneira Protágoras ou qualquer um dos defensores das suas mesmas teses. Os teus discípulos e tu, Protágoras, afirmais que o homem é a medida de todas as coisas, do branco, do pesado, do leve e de todas as impressões deste género, sem excepção. Como ele tem o critério em si próprio, crê serem estas coisas tais como as experimenta e, por conseguinte, crê serem verdadeiras e reais para si. Não é verdade?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- tratando-se, porém, das coisas futuras, diremos igualmente, Protágoras, que o homem tem o critério em si próprio e que, assim como ele pensa que elas serão no futuro, assim elas se tornam para aquele que as pensa? Vejamos o exemplo de calor. Suponhamos que um homem não entendido em medicina pensa que a febre o assaltará e que ele experimentará esta espécie de calor, e que outro homem, agora um médico, pensa o contrário. Diremos nós, então, que o futuro se concretizará segundo a opinião de um deles, ou segundo a opinião de ambos ao mesmo tempo? Que, para o médico, esse homem não terá calor nem febre e que este os terá para si mesmo?
Teodoro: -- Seria verdadeiramente ridículo.
Sócrates: -- e quando se trata de saber se o vinho será doce ou seco, a opinião autorizada será, julgo eu, a do viticultor e não a do tocador de cítara.
Teodoro: -- é indiscutível.
Sócrates: -- do mesmo modo, se se trata de fazer o acordo musical, o professor de ginástica não julgará melhor do que o músico sobre uma coisa que, depois, será experimentada pelo próprio professor de ginástica.
Teodoro: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- e, quando se prepara um banquete, a opinião de quem vai tomar parte nele, se não percebe de cozinham, terá igualmente menos autoridade que a do cozinheiro sobre o prazer gostativo que nele se experimentará. Não vamos discutir sobre o gosto que alguém está a sentir ou já sentiu. Mas, a propósito do que parecerá e será, no futuro, agradável a cada um, será cada um melhor juiz para si mesmo ou és tu, Protágoras, que, pelo menos em relação ao que será persuasivo para cada um de nós num discurso destinado aos juízes, julgarias antecipadamente melhor do que qualquer profano?
Teodoro: -- com certeza, Sócrates, pelo menos nisto ele afirmava altivamente ser superior a toda a gente.
Sócrates: -- sim, por Zeus, meu doce amigo! Ninguém lhe teira dado grandes quantias para receber as suas lições, se ele não tivesse convencido os discípulos de que, mesmo acerca do que devia ser e parecer no futuro, ninguém era capaz de julgar melhor do que ele mesmo julgava, fosse adivinho ou qualquer outro.
Teodoro: -- nada de mais verdadeiro.
Sócrates: -- mas a legislação e a utilidade não têm elas também por objecto o futuro? Não reconhecerá toda a gente que, quando o Estado estabelece as suas leis, forçosamente se enganará mais do que uma vez acerca do que é mais vantajoso?
Teodoro: -- com certeza.
Sócrates: -- não passaremos portanto, das marcas se dissermos ao teu mestre que ele é obrigado a reconhecer que um homem é mais sábio do que outro e que o mais sábio é que é medida, enquanto eu, que sou um ignorante, não sou de modo nenhum obrigado a ser medida, como me obrigava a ser o discurso que fiz em sua defesa, de bom ou de mau grado.
Teodoro: -- parece-me ser por aí, Sócrates, que a tese cai mais na rede, mas também cai na rede pelo valor que atribui às opiniões dos outros, quando já vimos que essas opiniões não reconhecem qualquer verdade nas asserções de Protágoras.
Sócrates: -- existem, Teodoro, várias outras razões pelas quais se poderia provar que nem todas as opiniões dos homens são verdadeiras. Tratando-se, porém, das impressões presentes em cada um, as quais são a fonte das sensações e das opiniões daí resultantes, é mais difícil de provar que elas não são verdadeiras. Aliás, talvez eu erre ao dizer "difícil; é que talvez elas sejam inatacáveis e talvez digam a verdade os que defendem serem elas evidentes e constituírem ciências. E talvez Teeteto, aqui presente, não tenha falado a despropósito quando adiantou que a sensação e a ciência são uma e a mesma coisa. Temos de atacar o problema de mais perto, como prescrevia o nosso discurso em defesa de Protágoras, examinar esta realidade móvel e bater nela com a mão para verificar se tem um som cheio ou rachado. A batalha que se trava sobre ela não é de somenos importância e não mobilizou poucos combatentes.
Defensores e Opositores da Mobilidade Universal
Teodoro: -- está muito longe de ser uma batalha sem importância. Pelo contrário, na Jónia assume proporções consideráveis, porque os partidários de Heraclito lutam com um grande vigor pela sua doutrina.
Sócrates: -- mais uma razão, meu caro Teodoro, para retomarmos desde o princípio o exame dessa doutrina, tal como eles no-la apresentam.
Teodoro: -- é, sem dúvida, o que se deve fazer, pois discutir, Sócrates, as doutrinas de Heraclito, como tu dizes, de Homero ou de sábios ainda mais antigos, com as gentes de Éfeso ( [41]) é tão impossível como discutir com gente furiosa. Podemos dizer que eles, de harmonia com o que escrevem, estão em perpétuo movimento. Deter-se sobre um assunto e um problema, responder e perguntar com serenidade e alternadamente, não há nada de que eles sejam menos capazes; a palavra "nada" é, mesmo, insuficiente para exprimir a absoluta falta de serenidade dessa gente. Faz-lhes qualquer pergunta e logo eles tiram da aljava pequenas palavras enigmáticas que disparam sobre ti e, se lhes pedes explicação do que disseram, imediatamente és atacado com outra rajada sob a forma de uma nova palavra. Jamais consegues chegar a qualquer conclusão com algum deles, como nem eles entre si. Têm grandes preocupações em não deixarem fixar nada tanto nos seus discursos como nos seus espíritos, convencidos, suponho eu, de que haveria neles algo de estável. Ora, é precisamente contra isto mesmo que eles movem uma guerra sem tréguas; é isto que eles expulsam de toda a parte, tanto quanto podem.
Sócrates: -- talvez, Teodoro, só tenhas visto, por não serem teus amigos, esses homens em pé de guerra e nunca os tenhas encontrado quando conversam pacificamente. Mas expõem com sossego, imagino, as suas teorias aos discípulos que pretendem formar à sua própria imagem.
Teodoro: -- de que discípulos estás a falar, bravo amigo? Entre eles, nenhum é discípulo do outro: crescem sozinhos, ao sabor da inspiração que deles se apodera, e cada qual pensa que o outro nada sabe. Nestas condições, como eu ia a dizer, não se pode arrancar a estes homens qualquer explicação, nem de livre vontade, nem pela força; temos que de os agarrar e de os examinar como um problema.
Sócrates: -- falas sensatamente. Quanto ao problema, não o herdámos nós dos antigos que, sob o véu da poesia, dissimularam à multidão que o gerador de todas as coisas, Oceano e Tétis ([42])são correntes e que nada é estável? É isto que os contemporâneos, mais que os sábios demonstram abertamente, a fim de que até os sapateiros que os escutarem se compenetrem da sua sabedoria e deixem de acreditar estupidamente que uma parte dos seres está em repouso e outra em movimento, e reverenciem os seus mestres aprendendo que tudo se move.
Ia-me esquecendo, porém, de dizer, Teodoro, que outros se manifestaram a favor da opinião contrária, dizendo, por exemplo, que imóvel é o nome do todo ([43]). devemos, ainda, lembrar todos os protestos levantados contra toda essa gente por Melisso e Parménides ([44]), os quais defendem energicamente que tudo é uno e se conserva imóvel em si mesmo, visto não existir espaço para onde se mover. Que partido tomaremos nós, amigo, perante todos estes filósofos? Fomos caminhando pouco a pouco e, sem darmos por isso, caímos no meio de uns e de outros; se não encontrarmos maneira de nos defendermos e de fugirmos, pagaremos os custos como aqueles que, nas palestras, jogam à barra, quando, apanhados entre os dois partidos, são puxados ao mesmo tempo por ambas as partes. Na minha opinião, devemos examinar antes de mais, os primeiros, aqueles por quem nós começámos, os partidários do fluxo. Se a doutrina deles nos parecer sólida, apoiaremos os seus esforços para nos puxarem para o seu lado e procuraremos escapar aos outros; se, porém, os que defendem a imobilidade universal nos parecerem mais verdadeiros, corremos para eles, escapando aos que põem em movimento o que é imutável. Enfim, se acharmos que nem uns nem outros têm razão, assumiremos o ridículo de acreditar que, apesar da nossa mediocridade, pensamos com justeza, depois de termos reprovado homens veneráveis pela antiguidade e pela sabedoria. Vê, portanto, Teodoro, se é bom correr-se semelhante risco.
Teodoro: -- seria inadmissível, Sócrates, renunciarmos ao exame das doutrinas de ambas as escolas.
Movimento e Ciência
Sócrates: -- temos então de as examinar, uma vez que mostras um desejo tão vivo. Na minha opinião, a investigação relativa ao movimento deve começar pela seguinte questão: que pretenderão eles exactamente afirmar quando dizem que tudo se move? O que pergunto é isto: pensam eles que há uma só espécie de movimento ou, como me parece a mim, haverá duas espécies? Mas não devo ser só eu a defender esta opinião; partilha, também, tu mesmo o risco a fim de que, sejam quais forem as consequências, as suportemos em conjunto. Diz-me, pois: falas de movimento quando uma coisa passa dum lugar para outro, ou gira sobre si no mesmo lugar?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- eis, portanto, uma p+primeira espécie de movimento. Mas quando a coisa permanece no seu lugar e envelhece, ou de branca se torna preta, ou de dura se torna mole, ou sofre qualquer outra alteração, não será justo dizer que se trata de uma segunda espécie de movimento?
Teodoro: -- assim parece.
Sócrates: -- é, de facto, indiscutível. Distingo, portanto, duas espécies de movimento: a alteração e a translação.
Teodoro: -- tens razão para o fazer.
Sócrates: -- feita esta distinção, dirijamo-nos agora aos que defendem que tudo se move, perguntando-lhes: dizeis vós que tudo se move das duas maneiras ao mesmo tempo, por translação e por alteração, ou que uma parte se move das duas maneiras e outra parte se uma das maneiras?
Teodoro: -- Por Zeus! Não sei que dizer, mas penso que responderiam: das duas maneiras.
Sócrates: -- se não respondessem assim, companheiro, seriam obrigados a reconhecer que as coisas estão ao mesmo tempo em movimento e em repouso e que não é mais justo dizer que tudo se move do que dizer que tudo está em repouso.
Teodoro: -- nada mais verdadeiro do que as tuas palavras.
Sócrates: -- portanto, uma vez que necessariamente tudo se move e que a imobilidade em parte nenhuma se encontra, tudo se move sempre segundo cada espécie de movimento.
Teodoro: -- assim é forçoso.
Sócrates: -- peço-te que examines, agora, um outro aspecto da sua doutrina. Não dissemos nós que eles explicam a produção do calor, da brancura e de qualquer outra coisa, afirmando que cada uma destas qualidades se move com a sensação no espaço que separa o agente do paciente, que paciente se torna sensiente e não sensação e que um agente se torna qualificado e não qualidade? Talvez a palavra qualidade te pareça estranha e não compreendas esta expressão geral. Vou explicá-la em pormenor. O agente não se torna calor ou brancura, mas quente ou branco, e assim por diante. Lembras-te sem dúvida de termos dito anteriormente que nada é em si unidade definida, nem o agente nem também o paciente, mas que da sua aproximação mútua nascem as sensações e as qualidades sensíveis, tornando-se o agente qualificado desta maneira e tornando-se o paciente sensiente.
Teodoro: -- lembro-me, naturalmente.
Sócrates: -- deixemos, pois, de lado todo o resto do seu sistema, bem como as diversas interpretações que eles lhe podem dar. Fixemo-nos apenas no aspecto que temos em vista e perguntemos-lhes: afirmais que tudo se move e flui, não é verdade?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- portanto, segundo as duas formas de movimento que distinguimos, deslocação e alteração?
Teodoro: -- sem dúvida, se quisermos que o movimento seja completo.
Sócrates: -- se, de facto, apenas houvesse deslocação sem alteração, poderíamos dizer, penso eu, de que natureza são as coisas que fluem e se deslocam, não é verdade?
Teodoro: -- sim.
Sócrates: -- como, porém, não podemos contar sequer com a estabilidade da brancura do que flui branco e como há um fluxo da própria brancura e uma passagem para outra cor, de maneira que se não pode provar que ela é fixa sob este aspecto, alguma vez será possível chamar alguma coisa por um nome de cor, de maneira que este nome seja exacto?
Teodoro: -- de que modo, Sócrates? Como dar nome seja ao que for deste género se, de cada vez que falamos da coisa, ela nos escapa porque está sempre a fluir?
Sócrates: -- que dizer, então, duma sensação qualquer, por exemplo, as da vista e do ouvido? Diremos que elas ficam no estado de visão ou de audição?
Teodoro: -- não pode ser, se for verdade que tudo se move.
Sócrates: -- por conseguinte, não há mais razão para dizer de uma coisa que ela vê do que para dizer que ela não vê, não há mais razão para dizer duma sensação que ela sente do que para dizer que não sente, uma vez que tudo se move de todas as maneiras.
Teodoro: -- não, de facto.
Sócrates: -- todavia, Teeteto e eu dissemos que a sensação é ciência.
Teodoro: -- de facto, dissestes.
Sócrates: -- nesse caso, a nossa resposta à pergunta: que é a ciência? não significa ciência mais do que não ciência.
Teodoro: -- assim parece.
Sócrates: -- este seria um belo resultado da correcção que fizemos à nossa primeira resposta, quando nos esforçámos por demonstrar que tudo se move, a fim de mostrar a justeza desta resposta. Agora, parece demonstrado que, se tudo se move, qualquer resposta a propósito seja do que for é igualmente justa, quer digamos que uma coisa é assim, quer digamos que não é assim, ou, se preferires, que uma coisa se torna assim, a fim de evitar uma expressão que imobilizaria essas pessoas.
Teodoro: -- tens razão.
Sócrates: -- talvez, Teodoro, em ter dito "assim" e "não assim". É que nem sequer se deve dizer a palavra "assim", pois o que é "assim" já não estará em movimento; não devemos igualmente dizer "não assim", porque estas palavras não exprimem o movimento. Portanto, os partidários desta doutrina precisam de inventar qualquer outra expressão, uma vez que, até agora, não têm palavra que se ajuste à sua hipótese, a não ser a expressão "nem mesmo assim". É, porventura, a que mais lhes conviria dada a sua acepção indeterminada.
Teodoro: -- é, de facto, a expressão que melhor lhes serviria.
Sócrates: -- assim, Teodoro, temos as contas ajustadas com o teu amigo. Não lhe concedemos que o homem seja a medida de todas as coisas, a não ser que seja inteligente. Não lhe concedemos, também, que a sensação seja ciência, segundo a doutrina de que tudo se move, a não ser que Teeteto tenha outra opinião.
Teodoro: -- Disseste muitíssimo bem, Sócrates, porque, agora que a discussão chegou ao fim, também eu fico livre da obrigação de responder-te. Tínhamos, de facto, combinado que assim seria quando o exame do sistema de Protágoras chegasse ao fim.
Razões para não discutir a doutrina da Imobilidade Universal
Teeteto: -- não, Teodoro! Não, antes que Sócrates e tu tenhais discutido a doutrina dos que defendem que tudo está em repouso tal como ainda há pouco a expusestes.
Teodoro: -- jovem como és, Teeteto, ensinas os mais idosos a agirem mal, violando os seus acordos. Prepara-te, antes, para responder a Sócrates sobre aquilo que ainda resta para dizer.
Teeteto: -- está bem, se essa for a vontade dele. Gostaria muito, no entanto, de ouvir a discussão do sistema a que me refiro.
Teodoro: -- convidar Sócrates para a discussão é o mesmo que desafiar a cavalaria a correr na planície. Interroga-o e ouvirás o que desejas.
Sócrates: -- creio, porém, Teodoro, que não vou render-me ao desejo de Teeteto quanto ao assunto sobre o qual ele me convida a falar.
Teodoro: -- mas porque não lhe fazes a vontade?
Sócrates: -- um sentimento de respeito impede-me de criticar indelicadamente a Melisso e aos outros defensores de que tudo é uno e imóvel. Mas Parménides, por si só, merece-me ainda mais respeito. Parménides parece-me ser, servindo-me das palavras de Homero, "ao mesmo tempo venerável e terrível" ([45]). Encontrei-o, era eu ainda muito novo e ele já muito velho, e pareceu-me ter uma profundidade de raro valor ([46]). Receio, por isso, que não compreendamos as suas palavras e, muito mais ainda, que o seu pensamento nos ultrapasse; o que, porém, mais temo é que o assunto que nos lançou nesta discussão, ou seja, a natureza da ciência, não chegue a ser estudado, em consequência das divagações que nos invadiriam se lhes déssemos ouvidos. Aliás, o problema que aqui afloramos é duma vastidão infinita; se o examinássemos apenas de fugida, cometeríamos uma injustiça; se o examinássemos como ele merece, a sua extensão far-nos-ia perder de vista a questão da ciência. Temos de abster-nos de uma e de outra coisa, procurando antes, pelo nosso ofício de parteiro, levar Teeteto a dar à luz as suas ideias sobre a ciência.
Teodoro: -- pois bem, se assim te parece, é o que importa fazer.
Sócrates: -- considera, Teeteto, a seguinte observação sobre o que foi dito. Respondeste, não é verdade, que a sensação é a ciência?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- agora, se te perguntassem com que é que o homem vê o branco e o preto e ouve os sons agudos e os graves, penso que responderias: com os olhos e com os ouvidos.
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- utiliza as palavras e as frases à vontade, sem as passar pelo crivo do rigor, geralmente não é sinal de baixeza. O contrário, sim, é que é indignidade num homem livre. Às vezes, porém, isso é necessário; assim, por exemplo, temos de assinalar o que há de defeituoso na tua resposta. Reflecte em qual das duas expressões é mais correcta>: dizer que é com os olhos ou pelos olhos que vemos, com os ouvidos ou pelos ouvidos que ouvimos?
Teeteto: -- parece-me, Sócrates, ser mais pelos órgãos do que com os órgãos que nós nos apercebemos de qualquer coisa.
Sócrates: -- seria, sem dúvida, muito estranho, meu rapaz, que um certo número de sentidos estivessem alojados em nós como se fôssemos cavalos e pau, e que eles não se relacionassem todos com uma mesma ideia, chamemos-lhe alma ou demos-lhe qualquer outro nome, pela qual, usando-os como instrumentos, aprendemos tudo o que é sensível.
Teeteto: -- acho esta explicação mais acertada do que a outra.
Sócrates: -- se te obrigo assim a seres exacto, é para saber se existe em nós um princípio, sempre o mesmo, pelo qual atingimos, através dos olhos, o branco e o preto e outras coisas através de outros sentidos, como, também, pra saber se, a seres interrogado, poderias referir ao corpo todos os actos desta natureza. Mas talvez seja melhor falares tu mesmo, dando resposta às minhas perguntas, não ser eu a fazê -lo no teu lugar. Diz-me, pois: pensas que os órgãos pelos quais sentes o quente, o duro, o leve, o doce, são todos eles partes do corpo ou partes de outra coisa?
Teeteto: -- não, só do corpo.
Sócrates: -- estás, além disso, disposto a concordar comigo em que aquilo que sentes através duma faculdade ´+e impossível que o sintas através de outra=? será, por exemplo, possível sentir pela vista o mesmo que sentimos pelo ouvido e pelo ouvido o que sentimos pelos olhos?
Teeteto: -- como não havia de concordar?
Sócrates: -- se, portanto, concebes uma ideia que se relaciona simultaneamente com estes dois sentidos, não pode ser pelo primeiro nem pelo segundo que temos a percepção comum.
Teeteto: -- com certeza que não.
Sócrates: -- tomemos como exemplo a cor e o som: não tens, antes de mais, acerca dos dois simultaneamente a ideia de que ambos existem?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e, também, de que cada um deles é diferente do outro, mas idêntico a si mesmo?
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- e, ainda, de que em conjunto são dois, mas cada um deles é um?
Teeteto: -- também concebo isso.
Sócrates: -- não és tu igualmente capaz de examinar se eles são dissemelhantes ou semelhantes um ao outro?
Teeteto: -- talvez.
Sócrates: -- agora, por qual órgão concebes tudo isto acerca destes dois sentidos? Não é pelo ouvido nem pela vista que é possível apreender o que ambos têm de comum. Mas eis outra prova: suponhamos que é possível examinar se ambos são ou não salgados; sabes como seria fácil dizeres com que órgãos farias tal exame e este não é, aparentemente, nem a vista nem o ouvido, mas qualquer coisa diferente.
Teeteto: -- é indiscutivelmente a faculdade que utiliza a língua.
Sócrates: -- dizes bem. Mas por qual órgão se exerce a faculdade que te faz conhecer o que é comum a todas as coisas, tal como às coisas de que estamos a falar, aquilo a que aplicas os termos "é" ou "não" e os outros que, há pouco, mencionei ao interrogar-te sobre elas? A tudo isto, que órgãos atribuirás, afinal, por meio dos quais aquilo que se sente em nós tem a percepção das coisas?
Teeteto: -- queres falar do ser e do não-ser, da semelhança e da dissemelhança, da identidade e da diferença e, ainda, da unidade e dos outros números aplicados a estas coisas. É evidente que a tua questão visa, também, o par e o ímpar e tudo o que daí resulta e que queres saber por quais órgãos corporais a nossa alma tem a percepção de tudo isto.
Sócrates: -- acompanhas-me, Teeteto, maravilhosamente. É isso mesmo o que eu quero saber.
Teeteto: -- Por Zeus, Sócrates! Não sei que dizer, senão que, na minha opinião, não há nenhum órgão especial para estas noções como há para as outras: é a própria alma, e por si mesma, que, segundo penso, examina as noções comuns em todas as coisas.
Sócrates: -- afinal, Teeteto, és belo e não feio como dizia teodoro, pois quem fala bem é belo e bom. Mas não só és belo; prestas-me também um serviço, livrando-me duma discussão interminável, se te parece que, no caso de certas coisas, é a alma por si mesma que as examina, enquanto, no caso de outras, o faz por meio das faculdades corpóreas. Era, também, o que eu pensava e desejava que fosses da minha opinião.
Teeteto: -- é exactamente assim que me parece.
Actividade Específica da Alma
Sócrates: -- em qual destas duas classes colocas, então, o ser? Trata-se do que é mais comum a todas as coisas.
Teeteto: --r coloco-o entre os objectos que a alma procura atingir por si mesma.
Sócrates: -- fazes o mesmo quanto ao semelhante e ao dissemelhante, ao idêntico e ao diferente?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e quanto ao belo e ao feio, ao bom e ao mau?
Teeteto: -- parece-me que sobretudo esses objectos são daqueles cuja essência a alma examina comparando-os, quando, em si mesma, reflecte sobre o passado e o presente em relação com o futuro.
Sócrates: -- pára aí! Não sentirá a alma por meio do tacto a dureza do que é duro e, pela mesma via, a moleza do que é mole?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas a essência dessas coisas, a dualidade do seu ser, a sua oposição mútua, bem como a existência desta oposição, é a própria alma que, reflectindo sobre estas noções e comparando-as entre si, procura ajuizar delas para nós.
Teeteto: -- perfeitamente.
Sócrates: -- existem, portanto, certas coisas que os homens e os animais, desde o seu nascimento, são naturalmente capazes de sentir: as impressões que chegam à alma passando pelo corpo. Ao contrário, os raciocínios que se fazem sobre estas impressões, acerca da sua essência e utilidade, só com muita dificuldade e com o andar do tempo, só à força de trabalho e de estudo, chegam àqueles em quem se formam.
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- ora, será possível atingir a verdade quando nem o ser se atinge?
Teeteto: -- é impossível.
Sócrates: -- e, se não se atinge a verdade acerca de um objecto, alguma vez se alcançará a sua ciência?
Teeteto: -- como poderia ser, Sócrates?
Sócrates: -- portanto, não é de modo nenhum nas impressões que a ciência reside, mas no raciocínio sobre as impressões; é por esta via, parece-me, que podemos atingir a essência e a verdade; por outra via, é impossível.
Teeteto: -- efectivamente.
Sócrates: -- darás, então, o mesmo nome às duas coisas, quando entre elas há tão grandes diferenças?
Teeteto: -- não seria correcto.
Sócrates: -- neste caso, que nome dás à primeira, ou seja, ao facto de ver, ouvir, cheirar, ter frio, ter calor?
Teeteto: -- por mim, chamo-lhe sentir. Que outro nome dar-lhe?
Sócrates: -- então chamas sensação a tudo isso?
Teeteto: -- necessariamente.
Sócrates: -- e dizemos que por essa via não nos é possível atingir a verdade, uma vez que também não podemos atingir a existência?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- nem, por conseguinte, a ciência?
Teeteto: -- não, de facto.
Sócrates: -- deste modo, Teeteto, a sensação e a ciência nunca poderiam ser a mesma coisa?
Teeteto: -- é evidente que não, Sócrates, e agora tornou-se absolutamente claro que a ciência é coisa diferente da sensação.
Sócrates: -- se, porém, iniciámos a discussão, não foi para descobrir o que a ciência não é, mas sim o que ela é. Todavia, já avançámos o suficiente para nunca mais a procurarmos na sensação, mas no nome, seja qual for, que se dá à alma quando ela própria se aplica por si só ao estudo dos seres.
Teeteto: -- Mas, se não me engano, Sócrates, chama-se a isso julgar.
Sócrates: -- tens razão, meu amigo. Agora, retoma a questão desde o início, fazendo tábua rasa de tudo o que foi dito anteriormente, e repara se não estás a ver mais claro no ponto a que chegaste. E diz-me, de novo, o que é a ciência.
A Ciência Definida Como Opinião Verdadeira
Teeteto: -- dizer que qualquer opinião é ciência, Sócrates, é impossível, porque também existem opiniões falsas. Mas é bem possível que a opinião verdadeira seja ciência e aí tens a minha resposta. Se, à medida que formos avançando, descobrirmos que não é assim como estamos agora a pensar, tentaremos uma outra definição.
Sócrates: -- assim é que se deve falar, Teeteto: com decisão, em vez de hesitar na resposta como antes fazias. Continuando assim, das duas uma: ou descobriremos o que procuramos, ou seremos menos levados a crer que sabemos o que de maneira nenhuma sabemos, o que não deixaria de ser já um ganho apreciável. Uma vez mais, que dizes tu? Dada a existência de duas espécies de opiniões, uma verdadeira e outra falsa, defines a ciência como opinião verdadeira?
Teeteto: -- sim, neste momento parece-me correcto.
Sócrates: -- sendo assim, merecerá a pena voltarmos a um ponto a propósito da opinião?
Teeteto: -- de que ponto pretendes falar?
Sócrates: -- de algo que neste momento me preocupa e me tem preocupado muitas outras vezes, chegando a deixar-me profundamente perplexo perante mim próprio e perante os outros, porque não sou capaz de explicar este fenómeno que se produz em nós, nem de que maneira ele se forma.
Teeteto: -- que fenómeno?
Sócrates: -- a opinião falsa. Por isso, estou a reflectir e ainda hesito se hei-de pôr de lado este problema ou se hei-de examiná-lo seguindo um método diferente do que atrás utilizei.
Teeteto: -- porque não examiná-lo, sócrates, por pouco que isso te pareça necessário? Há momentos, falando do lazer, Teodoro e tu dizíeis com toa a razão que nada pode urgir em conversas como a nossa.
Sócrates: -- fazes bem em recordar-me, mas talvez não seja despropositado recuarmos um pouco no nosso caminho. De facto, vale mais fazer pouco mas bem do que muito mas mal.
Teeteto: -- é indiscutível.
Sócrates: -- como havemos, então, de proceder? Que tese avançaremos? Não falamos nós constantemente de opinião falsa? Não dizemos que um de nós tem uma opinião falsa e que o outro tem uma opinião verdadeira, porque assim é a natureza das coisas?
Teeteto: -- é realmente o que afirmamos.
Sócrates: -- não estaremos nós, a respeito de todas as coisas e de cada uma em particular, perante a forçosa alternativa de saber ou de não saber? Entre os dois termos há o aprender e o esquecer, mas por hora deixo-os de lado, porque nada têm a ver com a nossa discussão actual.
Teeteto: -- exactamente, Sócrates: não resta outra alternativa a respeito de cada objecto, senão a de saber ou não saber.
Sócrates: -- portanto, quando formamos uma opinião, não será forçoso que ela seja sobre qualquer coisa que se sabe ou qualquer coisa que se não sabe?
Teeteto: -- sim, é forçoso.
Sócrates: -- e será impossível, se sabemos uma coisa, não a sabermos e, se não a sabemos, sabê-la?
Teeteto: -- como seria possível?
Sócrates: -- quando, pois, formamos opiniões falsas, tomaremos nós as coisas que sabemos, não por aquilo que elas são, mas por outras que sabemos e, embora conheçamos umas e outras, ignorá-las-emos a todas elas?
Teeteto: -- é impossível, Sócrates.
Sócrates: -- nesse caso, tomar-se-ão as coisas que não se sabem por outras que também se não sabem, podendo acontecer a um homem que não conhece nem Teeteto nem Sócrates convencer-se de que Sócrates é Teeteto ou Teeteto é Sócrates?
Teeteto: -- como seria isso possível?
Sócrates: -- também não se tomam, suponho eu, as coisas que se sabem por aquelas que se não sabem, nem as que se não sabem pelas que se sabem.
Teeteto: -- seria algo de estranho.
Sócrates: -- sendo assim, que meio resta para formarmos uma opinião falsa? É, de facto, impossível formarmos uma opinião, fora dos casos que citei, uma vez que nada existe que não conheçamos ou não ignoremos e, nos casos citados, é evidente que não há lugar para uma opinião falsa.
Teeteto: -- nada de mais verdadeiro.
Sócrates: -- talvez, afinal, não seja assim que se deva olhar a questão; talvez tenhamos que seguir outro caminho e, em vez do saber e da ignorância, considerar o ser e o não-ser.
Teeteto: -- que queres dizer?
Sócrates: -- que se pode muito simplesmente afirmar o seguinte: quem, sobre um objecto qualquer, pensa o que não é, não pode deixar de ter uma opinião falsa, seja qual for o seu estado de espírito sob outros aspectos.
Teeteto: -- isso também é verosímil, Sócrates.
Sócrates: -- então, como fazer? Que havemos de responder, teeteto, se nos fizerem esta pergunta: "haverá alguém que se encontre no caso de que falais? Podemos pensar o que não é, tanto a propósito de um ser qualquer, como absolutamente?"
Imagino ser esta a resposta: "sim, quando se crê em qualquer coisa e aquilo em que se crê não é verdadeiro." De outro modo, que responder?
Teeteto: -- isso mesmo.
Sócrates: -- haverá outros casos em que a mesma coisa se verifique?
Teeteto: -- que coisas?
Sócrates: -- que se veja alguma coisa e que não se veja nada.
Teeteto: -- como é que isso seria possível.
Sócrates: -- então, se vemos um objecto qualquer vemos com certeza alguma coisa que é. Ou achas que um objecto pertence ao número das coisas que não são?
Teeteto: -- não, não acho.
Sócrates: -- então, quem vê um objecto qualquer vê alguma coisa que é?
Teeteto: -- parece que sim.
Sócrates: -- e quem ouve qualquer coisa, ouve uma coisa que é?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e quem toca alguma coisa, toca determinada coisa e uma coisa que é, porque é uma?
Teeteto: -- sim, mais uma vez.
Sócrates: -- e quem julga, não julga uma certa coisa?
Teeteto: -- necessariamente.
Sócrates: -- e quem julga uma certa coisa, não julga alguma coisa que é?
Teeteto: -- concordo.
Sócrates: -- portanto, quem julga o que não é não julga nada?
Teeteto: -- não, evidentemente.
Sócrates: -- mas quem não julga nada, não faz juízo nenhum.
Teeteto: -- parede evidente.
Sócrates: -- não é, portanto, possível julgar o que não é, nem relativamente aos objectos existentes, nem absolutamente.
Teeteto: -- é claro que não.
Sócrates: -- o juízo falso é, pois, coisa diferente de julgar o que não é.
Teeteto: -- parece evidente tratar-se de outra coisa.
Sócrates: -- não é, portanto, desta maneira, nem da maneira que examinámos um pouco mais atrás, que se forma em nós a opinião falsa.
Teeteto: -- não, com certeza.
A Opinião Falsa como Equívoco Sobre Os Objectos
Sócrates: -- mas daremos o nome de falsa à opinião quando ela se forma desta outra maneira?
Teeteto: -- de qual maneira?
Sócrates: -- dizemos que uma opinião falsa é uma espécie de engano que se produz quando, confundindo no nosso pensamento duas coisas igualmente reais, afirmamos que uma é a outra. Desta forma, julga-se sempre qualquer coisa que é, mas toma-se uma pela outra e podemos dizer com razão que temos uma opinião falsa quando falhamos o que visávamos.
Teeteto: -- acho o que dizes perfeitamente acertado. Quando tomamos uma coisa feia por uma bela ou uma bela por uma feia, estamos a formar uma opinião verdadeiramente falsa.
Sócrates: -- bem se vê, Teeteto, que não fazes caso de mim e não me respeitas.
Teeteto: -- mas porquê?
Sócrates: -- é que não pensaste, suponho, que eu assinalaria esse teu "verdadeiramente falso", perguntando-te se é possível o rápido fazer-se lentamente, o leve pesadamente, e qualquer outro contrário, não segundo a sua própria natureza, mas segundo a do seu contrário, em oposição à própria. Ponho de lado, no entanto, esta objecção, para não desiludir a tua ousadia. Mas estás satisfeito com a tua afirmação de que julgar falso é tomar uma coisa por outra?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- então, segundo o teu parecer, é possível admitirmos no nosso pensamento que uma coisa é uma outra e não aquela que é.
Teeteto: -- sim, é possível.
Sócrates: -- ora, quando o pensamento comete este equívoco, não se torna igualmente forçoso que ele se represente ou os dois objectos ao mesmo tempo, ou um dos dois?
Teeteto: -- é, de facto, necessário que os represente, seja ao mesmo tempo, seja sucessivamente.
Sócrates: -- muito bem. Mas por "pensar" entenderás tu o mesmo que eu?
Teeteto: -- que entendes tu por "pensar"?
Sócrates: -- um discurso que a alma faz a si mesma sobre os objectos que examina. Dou-te esta explicação sem estar bem seguro. Mas parece-me que a alma, quando pensa, não faz senão conversar consigo mesma, perguntando e respondendo, afirmando e negando. Quando chega a uma decisão, quer lentamente, quer num rápido impulso, aí se fixando e não duvidando mais, temos aquilo que consideramos uma opinião. Deste modo, para mim, opinar é falar e a opinião é um discurso pronunciado, não, certamente, para outra pessoa e de viva voz, mas em silêncio e para mim próprio. E para ti?
Teeteto: -- para mim, também.
Sócrates: -- portanto, quando tomamos uma coisa por uma outra, afirmamos a nós próprios aparentemente que um é o outro.
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- procura agora recordar-te se alguma vez disseste a ti mesmo: indubitavelmente o belo é o feio e o justo é o injusto. Ou ainda mais, pois é um ponto capital, pergunta a ti próprio se alguma vez tentaste convencer-te a ti mesmo de que um é seguramente o outro, ou se, pelo contrário, nunca tiveste, nem sequer em sonhos, a audácia de dizer a ti mesmo que, sem qualquer dúvida, o ímpar é par, ou alguma outra coisa deste género.
Teeteto: -- falas verdade.
Sócrates: -- e serás capaz de imaginar que qualquer outro homem de espírito são ou doente, tenha chegado ao ponto de dizer seriamente a si mesmo e de convencer-se de que o cavalo é necessariamente um boi, ou qualquer outra coisa semelhante?
Teeteto: -- não, por Zeus!
Sócrates: -- portanto, se falar a si mesmo é julgar, não há ninguém que, falando e julgando sobre dois objectos ao mesmo tempo e apreendendo-os aos dois pelo pensamento, possa dizer e julgar que um é o outro. É preciso também que me desculpes a expressão "um é o outro". O que pretendo dizer é isto: ninguém julga que o feio é belo, nem faz qualquer juízo semelhante.
Teeteto: -- está bem, Sócrates, desculpo-a e acho que tens razão.
Sócrates: -- assim, é impossível que, ao pensar em dois objectos simultaneamente, se julgue que um é o outro.
Teeteto: -- assim parece.
Sócrates: -- por outro lado, se apenas pensarmos num dos dois e de modo nenhum no outro, nunca julgaremos que um é o outro.
Teeteto: -- é verdade; caso contrário, teríamos de ter presente no pensamento o próprio objecto em que não pensamos.
Sócrates: -- em conclusão, quer se pense nos dois, quer se pense num só, é impossível tomar um pelo outro. Por conseguinte, definir a opinião falsa como uma confusão com um outro objecto é não dizer nada, pois nem esta definição, nem as anteriores fazem aparecer em nós a opinião falsa.
Teeteto: -- parece que não.
Possibilidades de formular Juízos Falsos
Sócrates: -- todavia, Teeteto, se não provarmos que a opinião falsa existe, seremos obrigados a admitir um grande número de coisas absurdas.
Teeteto: -- que coisas absurdas?
Sócrates: -- não vou dizê-las antes de tentar ver o problema de todos os seus ângulos. Sentiria vergonha por nós se o embaraço em que nos encontramos nos obrigasse a concordar com aquilo que quero dizer. Se, porém, encontrarmos o que procuramos e nos libertarmos da nossa perplexidade, então será o momento de falar dos outros, prisioneiros dessas coisas absurdas, uma vez que teremos evitado o ridículo. se, pelo contrário, o nosso embaraço não tiver saída, imagino que, assim humilhados, ficaremos à mercê do argumento, como os que sofrem de enjoo no mar, para que ele nos espezinhe e nos maltrate à vontade. Escuta, portanto, onde é que eu descubro uma nova saída para a nossa investigação.
Teeteto: -- só precisas de falar.
Sócrates: -- direi que não tínhamos razão quando concordámos com o seguinte: é impossível tomar o que sabemos por aquilo que não sabemos e enganarmo-nos desse modo. Há, pelo contrário, uma via pela qual isso é possível.
Teeteto: -- quererás tu falar de uma coisa de que eu próprio tive a desconfiança, quando dissemos que a opinião falsa era algo semelhante ao que, por vezes, me aconteceu, ou seja: eu, que conheço Sócrates, ao ver de longe um estranho que não conheço, tomei-o por Sócrates, que conheço? Acontece neste caso um equívoco igual àquele de que falas.
Sócrates: -- não rejeitámos nós esta explicação porque daí resultava que não sabemos aquilo que sabemos, embora sabendo-o?
Teeteto: -- é exacto.
Sócrates: -- renunciemos, pois, a essa explicação a favor desta outra, que talvez nos ofereça alguma complacência, como talvez também nos oponha resistência. Encontramo-nos, de facto, numa situação tão embaraçosa que se torna indispensável virar em todos os sentidos todos os argumentos para os pôr à prova. Repara, portanto, se aquilo que vou dizer tem alguma solidez. Será possível que, não se sabendo antes uma coisa, ela se aprenda depois?
Teeteto: -- sim, com certeza.
Sócrates: -- e depois outra e mais outra?
Teeteto: -- é indiscutível.
Sócrates: -- supõe então comigo, por necessidade de argumentação, que há nas nossas almas um bloco de cera, maior neste, mais pequeno naquele, duma cera mais pura num, mais impura e mais dura noutro, mais macia nalguns e com a consistência exacta noutros.
Teeteto: -- estou a imaginar.
Sócrates: -- digamos, agora, que se trata dum presente de Mnemósine, a mãe das Musas ([47]), e que, sempre que pretendemos recordar-nos de alguma coisa que já vimos, ouvimos ou concebemos, utilizamos esse bloco onde imprimimos as sensações e as ideias, com o gravamos o selo de um anel, e que aquilo que assim foi impresso, o recordamos e sabemos enquanto a imagem permanecer gravada na cera, ao passo que esquecemos e não sabemos aquilo que se apagou ou foi impossível gravar.
Teeteto: -- pois seja!
Sócrates: -- agora, imagina um homem que conhece as coisas deste mundo e que considera alguma daquelas que vê ou que ouve, e examina se ele não poderia formar-se desta maneira, uma opinião falsa.
Teeteto: -- de que maneira?
Sócrates: -- pensando que as coisas que ele sabe são, umas vezes as que sabe, outras vezes as que não sabe; de facto, cometemos um erro quando aceitámos atrás que isso era impossível.
Teeteto: -- que pensas tu neste momento?
Sócrates: -- eis o que se deve dizer, voltando uma vez mais ao princípio e fazendo as distinções que se seguem. É impossível pensar que aquilo que sabemos e cuja marca temos na alma, mas não percepcionamos, seja uma outra coisa que sabemos, cuja marca temos igualmente, mas não percepcionamos. É também impossível pensar que aquilo que sabemos seja aquilo que não sabemos e de que não temos o selo em nós mesmos, ou que aquilo que não sabemos seja aquilo que também não sabemos, ou que aquilo que não sabemos seja aquilo que sabemos. É do mesmo modo impossível pensar que aquilo que percepcionamos seja outra coisa que percepcionamos igualmente, que aquilo que percepcionamos seja qualquer coisa que não percepcionamos, que aquilo que não percepcionamos seja qualquer coisa que não percepcionamos e que aquilo que não percepcionamos seja qualquer coisa que percepcionamos. Ainda mais impossível, se tal se pode dizer, é pensar que aquilo que sabemos, percepcionamos e de que temos a marca conforme à percepção, seja outra coisa que conhecemos, percepcionamos e cuja marca possuímos conformemente à percepção. Igualmente impossível ainda é confundir o que sabemos, percepcionamos e de que temos uma recordação exacta, com aquilo que sabemos; e, ainda, o que sabemos, percepcionamos e de que temos uma recordação fiel, com aquilo que percepcionamos, e, do mesmo modo, aquilo que não sabemos, que não percepcionamos e ainda aquilo que não sabemos e que não percepcionamos com aquilo que não percepcionamos. Em todos estes casos, é absolutamente impossível conceber uma opinião falsa. Só nos restam, portanto, se é possível haver opinião falsa em algum lado, os casos seguintes.
Teeteto: -- que casos? Talvez por eles eu consiga compreender melhor o que estás a dizer; por agora, não estou a acompanhar-te.
Sócrates: -- os casos em que se confunde o que se sabe com outras coisas que se conhecem e se percepcionam, com aquilo que se não conhece mas se percepciona, e os casos em que se confunde o que se sabe e se percepciona com aquilo que se sabe e se percepciona igualmente.
Teeteto: -- agora fiquei ainda muito mais longe de compreender-te do que há pouco.
Opiniões Falsas e Opiniões Verdadeiras
Sócrates: -- vou, então, reformular o problema desta outra maneira: escuta-me! Não é verdade que, conhecendo eu Teodoro e guardando em mim a lembrança da sua figura e conhecendo igualmente Teeteto, algumas vezes os vejo, outras vezes os não vejo; ora lhes toco, ora lhes não toco; ora os oiço ou os sinto por qualquer outra sensação, ora não tenho qualquer sensação referente a eles, mas nem por isso me recordo menos de vós ou tenho de vós, dentro de mim, um menor conhecimento?
Teeteto: -- é inteiramente verdade.
Sócrates: -- mete bem na cabeça -- e é este o primeiro dos pontos sobre os quais quero esclarecer-te -- que podemos não ter a sensação daquilo que sabemos, como também podemos tê-la.
Teeteto: -- está bem.
Sócrates: -- e quanto ao que não sabemos, não acontece também que muitas vezes não temos sequer a sensação, e que muitas vezes temos a sua sensação e nada mais?
Teeteto: -- também é possível.
Sócrates: -- vê lá se agora consegues acompanhar-me mais facilmente. Se Sócrates conhece Teodoro e Teeteto, mas não vê nem um nem outro e não tem presentemente qualquer sensação referente a eles, nunca julgará para consigo mesmo que Teeteto é Teodoro. Tenho ou não tenho razão?
Teeteto: -- sim, tens razão.
Sócrates: -- ora bem: era este o primeiro caso de que te falei.
Teeteto: -- é, de facto.
Sócrates: -- o segundo é este: conhecendo um de vós mas não o outro e não percepcionando qualquer dos dois, não poderei confundir aquele que eu conheço com aquele que eu não conheço.
Teeteto: -- está certo.
Sócrates: -- eis o terceiro caso: se eu não conhecer nem percepcionar nem um nem outro, não poderei pensar que um homem que não conheço seja algum dos outros que também não conheço. Supõe ouvir de novo todos os casos que, atrás, enumerei sucessivamente, nos quais jamais poderei formar opinião falsa acerca de ti e acerca de Teodoro, quer vos conheça ou não conheça aos dois, quer conheça um e não o outro. O mesmo se passa com as sensações, se me estás a acompanhar.
Teeteto: -- estou a acompanhar-te.
Sócrates: -- resta, por conseguinte, a possibilidade de fazer juízo falso no seguinte caso: conheço-te a ti e conheço Teodoro, e tenho no meu bloco de cera as marcas de cada um de vós, como se elas tivessem sido gravadas por um sinete. Quando vos descubro ao longe indistintamente, procuro aplicar a marca própria de cada um de vós à impressão visual que lhe corresponde, e fazer entrar e ajustar esta impressão dentro do seu próprio traço, a fim de obter o reconhecimento; pode, então, acontecer que eu me engane nestas operações, inverta as coisas, como alguém que mete num pé o sapato do outro pé, e aplique a impressão visual de cada um de vós à marca que não lhe pertence. Podemos também dizer que o erro se assemelha àquilo que se produz num espelho, onde vista coloca à esquerda o que está à direita: acontece, então, tomarmos uma coisa por outra e haver uma opinião falsa.
Teeteto: -- é realmente o que eu penso, Sócrates. Descreves duma forma maravilhosa o que se passa com a opinião.
Sócrates: -- há, ainda, um outro caso: aquele em que, conhecendo-vos a ambos, tenho além disso a percepção de um de vós, mas não do outro, e em que o conhecimento que tenho do primeiro não coincide com a minha percepção. É um dos casos por mim descritos anteriormente, mas nessa altura não me compreendeste.
Teeteto: -- de facto, não.
Sócrates: -- o que eu dizia era que, se conhecemos alguém, se temos a sua percepção e se o conhecimento que dele temos está conforme com esta percepção, jamais o confundiremos com qualquer outra pessoa que conhecemos, de quem temos a percepção e de quem temos também um conhecimento coincidente com a percepção. Não era precisamente isto?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- Mas não referia o caso de que falo agora, o caso em que a opinião falsa se produz deste modo: conhecemos um e outro, vemos um e outro, ou temos de um e de outro qualquer outra sensação; mas as duas marcas não correspondem cada qual à sensação que lhe é própria e, como um archeiro que atira mal, passamos ao lado do alvo e falhamo-lo e é a isto exactamente que chamamos erro.
Teeteto: -- e com razão.
Sócrates: -- agora, quando se tem a sensação dos sinais de um, mas não do outro, e se aplica à sensação presente o que pertence à sensação ausente, o pensamento faz um juízo absolutamente falso. Numa palavra, parece não ser possível haver engano ou ter uma opinião falsa sobre o que nunca se soube nem se percepcionou, pelo menos se aquilo que estamos agora a dizer tiver um fundamento razoável; é exactamente nas coisas que sabemos e que sentimos que a opinião se deixa enrolar e virar e se revela falsa ou verdadeira: verdadeira, quando ajusta de forma directa e rigorosa a cada objecto as impressões e as marcas que lhe são próprias; falsa, quando as ajusta de uma forma oblíqua e às avessas.
Teeteto: -- eis uma excelente explicação, não é verdade, Sócrates?
Sócrates: -- ainda estarás mais de acordo quando tiveres ouvido o que vou dizer. De facto, é belo julgar verdade, como é vergonhoso julgar falso.
Teeteto: -- naturalmente.
Sócrates: -- a diferença, diz-se, resulta do seguinte. Quando a cera que temos na alma é profunda, abundante, lisa e amassada como convém, e os objectos vindos através dos sentidos se gravam neste coração da a alma, como diz Homero aludindo à sua semelhança com a cera ([48]), então as impressões lá deixadas são puras, suficientemente profundas e duradoiras, e os homens dotados dessas almas possuem, antes de mais, facilidade de aprender, depois boa memória, enfim, não confundem as marcas das suas sensações e formam juízos verdadeiros. Como essas marcas são nítidas e bem espaçadas, rapidamente as relacionam com os respectivos sinetes, as coisas reais, como lhes chama. A tais homens dá-se o nome de sábios. Não achas que está certo.
Teeteto: -- certíssimo.
Sócrates: -- quando, ao contrário, o coração de um homem é peludo (qualidade elogiada pelo poeta da sabedoria perfeita) ([49]), ou quando a cera, misturada com imundícies, é impura e demasiado húmida ou demasiado seca, aqueles cuja cera é mole mostram facilidade em aprender, mas logo esquecem, passando-se o contrário com os homens cuja cera é rija, aqueles cuja cera é peluda, dura como a pedra e misturada de terra ou de imundícies recebem impressões indistintas. Igualmente indistintas são as impressões quando a cera é seca, porque falta a profundidade; indistintas, ainda, quando a cera é húmida, porque se fundem umas nas outras e em breve se tornam confusas. Mas são ainda mais indistintas se, além disso tudo, se acumulam umas sobre as outras, por falta de espaço, numa alma pequena. Toda esta gente está, portanto, sujeita a fazer juízos falsos. De facto, quando vêem, ouvem ou concebem qualquer coisa, estas pessoas são incapazes de referir cada coisa à sua marca, são lentas, tomam uma coisa por outra e quase sempre vêem, ouvem e pensam às avessas. Por isso, delas se diz que se enganam acerca das realidades e são ignorantes.
Teeteto: -- o que dizes, Sócrates, é o que há de mais justo.
Sócrates: -- devemos, então, afirmar que há em nós opiniões falsas?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- e, também, verdadeiras?
Teeteto: -- verdadeiras, também.
Sócrates: -- estamos, portanto, a partir de agora, perfeitamente de acordo em que há indiscutivelmente duas espécies de opinião?
Teeteto: -- sim, perfeitamente de acordo.
O Problema do Erro no Pensamento Puro
Sócrates: -- na verdade, Teeteto, é bem possível que um tagarela não passe duma criatura esquisita e desagradável.
Teeteto: -- porquê? A que propósito dizes isso?
Sócrates: -- é que me sinto desgostoso por ser renitente a compreender e por um autêntico palrador. De facto, que outra palavra usar para uma pessoa que puxa os argumentos em todos os sentidos e que tem dificuldades em acabar com cada um deles?
Teeteto: -- mas que é que te aborrece?
Sócrates: -- não é só aborrecer-me; temo, também, não saber que responder se alguém me perguntar: "descobriste então, Sócrates, que a opinião falsa não se encontra nem nas relações naturais das sensações, nem nos pensamentos, mas no ajustamento da sensação ao pensamento?" Presumo que responderei sim e me felicitarei por ter feito uma bela descoberta.
Teeteto: -- a mim, Sócrates, parece-me que não há motivo de vergonha na demonstração que acaba de ser feita.
Sócrates: -- "assim -- insistir-se-á -- pretendes que jamais podemos pensar que um homem no qual pensamos simplesmente sem o ver, é um cavalo que também não vemos nem tocamos, mas no qual pensamos simplesmente sem ter dele qualquer sensação?" A minha resposta, penso eu, será que é exactamente isso o que pretendo dizer.
Teeteto: -- e terás razão.
Sócrates: -- "mas então -- dir-se-á -- não se conclui daí que jamais se tomará o número àquele, que é concebido apenas pelo pensamento, pelo número doze, também ele concebido apenas pelo pensamento?" Vamos! Agora, cabe a ti dar a resposta.
Teeteto: -- pois bem! A minha resposta será que, em relação aos objectos que vemos ou tocamos, podemos confundir àquele com doze; mas, quanto aos objectos, que estão no pensamento, nunca poderíamos ter esta opinião.
Sócrates: -- mas quê? Pensas tu que, se o homem se pôs alguma vez a examinar em si mesmo cinco e sete (não falo de sete homens e de cinco homens, nem de nada de semelhante, mas dos próprios números cinco e sete, que afirmamos estarem impressos como recordações naquele bloco de cera e sobre os quais pretendemos não ser possível fazer um juízo falso), pensas tu, repito, que, se alguns homens examinaram uma vez estes números em si falando a si próprios e perguntando-se quanto somam, nunca nenhum deles terá dito e acreditado que são onze e outro que são doze, ou toda a gente diz e acredita que são onze?
Teeteto: -- não, por Zeus! Muitos dizer ser onze e, quanto maior for o número considerado, mais são as possibilidades de erro. Suponho realmente que te queres referir a toda a espécie de números.
Sócrates: -- tens razão em supô-lo. Considera agora se, no presente caso, não é de goa-fé que se toma como onze o doze que será impresso na cera.
Teeteto: -- parece-me que sim.
Sócrates: -- eis-nos assim regressados às nossas primeiras afirmações: aquele que se engana deste modo, pensa que uma coisa por ele conhecida é uma outra igualmente conhecida por ele. Dissemos ser isto impossível e, por esta mesma razão, concluímos necessariamente que não existe opinião falsa; de outro modo, estaríamos a obrigar o mesmo homem a saber e a não saber ao mesmo tempo a mesma coisa.
Teeteto: -- perfeitamente certo.
Sócrates: -- assim, temos de mostrar que a opinião falsa é algo de totalmente diferente dum desacordo entre o pensamento e a sensação. Se fosse, de facto, esse desacordo, nunca nos enganaríamos nos nossos pensamentos puros. Mais, na realidade, ou não há opinião falsa, ou é impossível não saber-se o que se sabe. Qual das duas possibilidades escolhes?
Teeteto: -- é uma escolha bastante embaraçosa a que me propões, Sócrates.
Sócrates: -- não podemos, todavia, aceitar ambos os casos, pois é bem possível que a argumentação o não permita. Mas, como é necessária uma total ousadia, porque não pôr de lado todo o receio?
Teeteto: -- como?
Sócrates: -- resolvendo-nos a dizer o que virá a ser, afinal, o saber.
Teeteto: -- mas que tem isso de ousado?
Sócrates: -- não pareces ter consciência de que toda a nossa conversa, desde o princípio, mais não tem sido do que uma investigação sobre a ciência, visto ignorarmos em que pode ela consistir.
Teeteto: -- tenho perfeita consciência disso.
Sócrates: -- então, não achas uma ousadia querer mostrar em que consiste o saber quando não sabemos o que é a ciência? A verdade, Teeteto, é que, desde há bastante tempo, a nossa discussão vem sofrendo dum vício de lógica. Temos dito centenas de Vezes "conhecemos" e "não conhecemos", "sabemos" e "não sabemos", como se nos compreendêssemos duma parte e de outra, quando afinal continuamos a ignorar o que é a ciência. Ofereço-te mais uma prova: agora mesmo nos servimos dos termos "ignorar" e "compreender" como se tivéssemos o direito de nos servirmos deles, quando estamos privados da ciência.
Teeteto: -- mas como poderás discutir, Sócrates, se te abstiveres desses termos?
Sócrates: -- sendo o homem que sou, de maneira nenhuma; mas poderia discutir se fosse um polemista. Se estivesse agora aqui um desses homens e logo declararia que se abstém de tais expressões, ao mesmo tempo que me repreenderia vigorosamente pelas palavras que utilizo. Como, porém, não passamos de modestos conversadores, queres que me arrisque a dizer-te o que é o saber? Parece-me que haveria vantagem em fazê-lo.
Teeteto: -- arrisca-te, por Zeus! Se não te abstiveres dessas expressões, facilmente serás perdoado.
O Ter e o Possuir (a ciência)
Sócrates: -- pois bem! já ouviste como definem hoje o saber?
Teeteto: -- talvez, mas de momento não me lembro.
Sócrates: -- dizem que é ter a ciência.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- façamos nós uma ligeira modificação e digamos que é possuir a ciência.
Teeteto: -- que diferença fazes, então, entre uma coisa e outra?
Sócrates: -- talvez não haja nenhuma; escuta, no entanto, o meu parecer e ajuda a verificar se é correcto.
Teeteto: -- sim, se eu for capaz.
Sócrates: -- ora bem! possuir não me parece ser o mesmo que ter. Por exemplo, se alguém comprou um fato e é o seu dono, mas não o traz vestido, podemos dizer não que ele o tem, mas que o possui.
Teeteto: -- e com razão.
Sócrates: -- vê, então, se é igualmente possível possuir a ciência sem a ter, como o homem que tivesse apanhado aves selvagens, pombos bravos ou outras, e as criasse em sua casa, num pombal que tivesse mandado construir. Em certo sentido, poderíamos dizer que ele as tem sempre, uma vez que as possui. Não é verdade?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- Noutro sentido, porém, diríamos que ele não tem nenhuma, mas que, pelo facto de as haver colocado ao alcance da mão numa gaiola sua, atem sobre elas o poder de as agarrar e segurar quando quiser, apanhando de cada vez a ave que entender, e depois soltá-las, podendo fazer isso sempre que lho pedir a fantasia.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- façamos uma vez mais como anteriormente, modelando nas nossas almas uma qualquer figura de cera. Façamos neste caso, em cada alma, uma espécie de gaiola com todo o tipo de aves, vivendo umas em bandos e separadas das restantes, outras em grupos pequenos e algumas solitárias a voar ao acaso entre as outras todas.
Teeteto: -- suponhamos estar construída essa gaiola. E depois?
Sócrates: -- temos de supor que, quando somos criancinhas, está vazia a gaiola e, em vez de aves imaginar ciências. Logo que, tornando-nos possuidores de uma ciência, a tenhamos encerrado no recinto, podemos dizer que aprendemos ou encontrámos o objecto de que ela é a ciência e que isso mesmo é saber.
Teeteto: -- admitamos que sim.
Sócrates: -- e agora, se quisermos caçar qualquer uma destas ciências, agarrá-la, segurá-la e soltá-la depois, vê lá de que nomes precisaremos para exprimir tudo isto: serão os mesmos que empregámos inicialmente no momento da aquisição, ou nomes diferentes? Um exemplo far-te-á compreender com mais clareza o meu pensamento. Não existe uma arte a que chamas aritmética?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- concebe essa arte como uma caça às ciências respeitantes a tudo o que é par e ímpar.
Teeteto: -- assim a concebo.
Sócrates: -- é por essa arte que temos ao nosso alcance as ciências dos números e as transmitimos aos outros quando queremos.
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e, quando as transmitimos, dizemos que ensinamos; quando as recebemos, aprendemos; quando as temos, porque as possuímos no nosso pombal, sabemos.
Teeteto: -- perfeitamente.
Sócrates: -- presta, agora, atenção ao seguinte: não é verdade que um aritmético perfeito conhece todos os números, uma vez que não há número cuja ciência ele não tenha no seu espírito?
Teeteto: -- indiscutivelmente.
Sócrates: -- ora, pode esse homem, às vezes contar na sua cabeça quer os números em si, quer outros objectos exteriores que se podem enumerar?
Teeteto: -- sem dúvida alguma.
Sócrates: -- mas contar não é, para nós, senão examinar a quanto se eleva o número.
Teeteto: -- está certo.
Sócrates: -- é, portanto, evidente que o homem que, conforme admitimos, conhece todos os números procura descobrir aquilo que conhece como se disso não tivesse nenhum conhecimento. Com certeza, já ouviste debater questões deste género.
Teeteto: -- sim.
(in)compatibilidade da ciência e da ignorância
Sócrates: -- voltemos à nossa comparação com a aquisição e a caça aos pombos: diremos que há aí dois tipos de caçada, a que feita antes da aquisição com o objectivo de adquirir, e a que se faz depois com o objectivo de agarrar e de ter nas mãos o que já se possui há muito tempo. Do mesmo modo, quando somos, desde há muito tempo, possuidores de ciências que aprendemos e que sabemos, podemos reaprender as mesmas ciências, reapoderando-nos e segurando a ciência de cada objecto, ciência de que já tínhamos a posse, mas que não tínhamos presente ao pensamento.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- era precisamente o que eu estava a perguntar à momentos: de que termos havemos de provir-nos para falar do aritmético que se põe a fazer um cálculo ou do gramático que vai ler alguma coisa? Diremos neste caso que, sabendo uma coisa, vai novamente aprender de si próprio o que sabe?
Teeteto: -- seria estranho, Sócrates.
Sócrates: -- diremos, então, que ele vai ler ou calcular aquilo que não sabe, depois de termos concedido a um a ciência de todas as letras, a outro a ciência de todos os números?
Teeteto: -- seria igualmente ilógico.
Sócrates: -- queres que digamos que pouco nos importam os nomes e o sentido que lhes
dá se diverte a disparar as expressões "saber" e "aprender"? E que, tendo estabelecido que uma coisa é possuir uma ciência, outra coisa é tê-la, afirmemos ser impossível não possuir o que se possui, de modo que nunca acontece que não saibamos o que sabemos, sendo, no entanto, possível ter uma opinião falsa a seu respeito, porque podemos não ter a ciência de um objecto, mas a de outro na sua vez, quando, dando caça a uma ciência entre as que voam rasgando os ares, nos enganamos e apanhamos uma na vez da outra? Foi assim que dissemos tomar-se o onze pelo doze, porque se tomava o conhecimento do onze na vez do conhecimento do doze, como quem tomasse uma rola por uma pomba.
Teeteto: -- isto sim, é razoável.
Sócrates: -- quando, porém, agarrarmos aquela que pretendíamos agarrar, não nos enganamos e fazemos um juízo sobre aquilo que é; desta maneira, pode haver uma opinião verdadeira e uma opinião falsa e já não somos impedidos pelas dificuldades que anteriormente nos incomodavam. Talvez< me dês agora a tua concordância. Caso contrário, que partido é que tomas?
Teeteto: -- nenhum outro.
Sócrates: -- livrámo-nos, de facto, da contradição que era não saber o que sabemos, porque já não nos acontecerá em caso algum não possuirmos o que possuímos equivoquemo-nos ou não sobre qualquer objecto. Todavia, parece-me que estou a entrever outro inconveniente mais incómodo.
Teeteto: -- qual?
Sócrates: -- que a confusão das ciências se possa tornar numa opinião falsa.
Teeteto: -- como pode ser isso?
Sócrates: -- não é o cúmulo do absurdo, em primeiro lugar, que, tendo o conhecimento duma coisa, se ignore essa mesma coisa, não por ignorância, mas pela sua própria ciência, e, em segundo lugar, que se tome essa coisa por outra e esta outra por ela, e que a alma na qual a ciência está presente não conheça nada, mas ignore tudo? De facto, se assim for, nada impede que a ignorância presente em nós nos leve ao conhecimento de alguma coisa e que a cegueira nos faça ver, uma vez que também a ciência pode tornar um homem ignorante.
Teeteto: -- talvez seja, Sócrates, por não termos razão em supor que as aves só representam ciências; devíamos ter metido entre elas algumas espécies de ignorâncias a voar também dentro da alma, de modo que o caçador, capturando ora uma ciência, ora uma ignorância do mesmo objecto, fará um juízo falso em virtude da ignorância e um juízo verdadeiro em virtude da ciência.
Sócrates: -- custa não fazer-te um elogio, Teeteto, mas volta a examinar o que acabas de dizer. Suponhamos que é, de facto, como propões. Quem capturar a ignorância terá uma falsa opinião, afirmas tu, não é verdade?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas essa pessoa não vai, com certeza, pensar que a sua opinião é falsa.
Teeteto: -- como poderia pensar tal coisa?
Sócrates: -- pelo contrário, julgará que ela é verdadeira e estará na situação de um homem que sabe as coisas acerca das quais se encontra no erro.
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- julgará, portanto,
que captou e que tem uma ciência e não uma ignorância.
Teeteto: -- evidentemente.
Sócrates: -- assim, depois de um longo circuito, eis-nos de novo diante da nossa primitiva dificuldade. O nosso polemista vai dizer-nos com um riso de troça: "é lá possível, minha brava gente, que um homem que conhece ao mesmo tempo a ciência e a ignorância, julgue ser a que ele sabe uma outra que também sabe, ou que, não conhecendo nem uma nem outra, julgue ser a que ele não sabe, uma outra que também não sabe, ou que, sendo uma e outra, tome a que sabe por aquela que não sabe ou aquela que não sabe por aquela que sabe? Ou dir-me-eis ainda que estas ciências e ignorâncias são, por sua vez, objectos de novas ciências, que o seu possuidor encerrou sabe-se em que outros ridículos pombais ou ceras imaginárias e que ele conhece enquanto é seu possuidor, embora as não tenha presentes ao espírito? Aceitareis ser, assim, forçados a regressar mil vezes ao mesmo ponto, sem avançar ao menos um passo?" Que responderemos a isto, Teeteto?
Teeteto: -- por Zeus, Sócrates! Da minha parte, não vejo que resposta podemos dar.
Sócrates: -- não será com toda a justiça, meu rapaz, que este debate nos adverte e nos mostra que não temos razão em procurar a opinião falsa antes da ciência, que deixámos ficar de lado? É que é impossível conhecer alguma coisa antes de se ter um conhecimento exacto da natureza da ciência.
Teeteto: -- nesse caso, Sócrates, é impossível recusar esta conclusão.
A Definição Da Ciência Como Opinião Certa e Razão
Sócrates: -- mas, voltando ao início da discussão, como «é que podíamos definir a ciência? Não vamos desistir da investigação, presumo eu.
Teeteto: -- de modo nenhum, a não ser que tu mesmo desistas.
Sócrates: -- diz-me, então, qual a melhor definição que poderíamos dar da ciência, para não entrarmos em contradição connosco mesmos.
Teeteto: -- é exactamente a que já procurámos dar, Sócrates. Da minha parte, não vejo outra.
Sócrates: -- Qual é ela?
Teeteto: -- que a opinião verdadeira é a ciência. A opinião verdadeira, parece, é infalível e tudo o que dela resulta é belo e bom.
Sócrates: -- não há como experimentar para ver, Teeteto, diz o chefe de fila na passagem do rio. Aqui dá-se o mesmo: o que temos a fazer é avançar na investigação. Talvez venhamos a esbarrar nalguma coisa que nos revele o que procuramos. Se passarmos por aqui, é que não descobriremos nada.
Teeteto: -- tens razão. Vamos em frente e examinemos!
Sócrates: -- o problema não exige um estudo prolongado, pois existe toda uma profissão que mostra bem como a opinião verdadeira não é a ciência
Teeteto: -- como ´+e possível? Que profissão é essa?
Sócrates: -- a desses modelos de sabedoria a que se dá o nome de oradores e advogado. Tais indivíduos, com a sua arte, produzem a convicção, não ensinando, mas sugerindo as opiniões que lhe aprazem. Ou julgas tu que há mestres tão habilidosos que, no pouco tempo concedido pela clépsidra, sejam capazes de ensinar devidamente a verdade acerca dum roubo ou de qualquer outro crime, a ouvintes que não foram testemunhas do facto?
Teeteto: -- não creio, de forma nenhuma. Eles não fazem senão persuadi-los.
Sócrates: -- mas, para ti, persuadir alguém não será levá-lo a ter uma opinião?
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- então, quando há juízes que se acham justamente persuadidos de factos que só uma testemunha ocular, e mais ninguém, pode saber, não é verdade que, ao julgarem esses factos por ouvir dizer, depois de terem formado deles uma opinião verdadeira, pronunciam um juízo desprovido de ciência, embora tendo uma convicção justa, se deram uma sentença correcta?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- mas, meu amigo, se a opinião verdadeira dos juízes e a ciência fossem a mesma coisa, nunca o melhor dos juízes teria uma opinião correcta sem ciência. A verdade, porém, é que se trata de duas coisas diferentes.
Teeteto: -- eu mesmo já ouvi alguém fazer essa distinção, Sócrates; tinha-me esquecido dela, mas voltei a lembrar-me. Dizia essa pessoa que a opinião verdadeira acompanhada de razão é ciência, e que, desprovida de razão, a opinião está fora da ciência e que as coisas que não é possível explicar são incognoscíveis (é a expressão que empregava) e as que é possível explicar são cognoscíveis.
Sócrates: -- estás a falar bem. Mas como distinguia ele o cognoscível do que não é? Diz-me lá, para ver se o que ouviste está de acordo com o que eu também ouvi.
Teeteto: -- não sei se vou ser capaz de lembrar-me. Se, no entanto, ouvir outra pessoa dizê-lo, penso que consigo acompanhar.
Os Elementos Da Escrita: modelos da definição
Sócrates: -- então, em troca do teu sonho, escuta o meu. Também creio ter ouvido alguns dizerem que os chamados primeiros elementos de que somos compostos, nós e todos os restantes seres, não admitem explicação racional. Cada elemento tomado em si mesmo só podemos nomeá-lo, sendo impossível dizer mais sobre ele, nem que é, nem que não é. Isto seria desde logo atribuir-lhe a existência ou não existência, quando nada se lhe deve adicionar, se quisermos exprimir apenas este elemento em si mesmo. Nem sequer lhe devemos juntar palavras como "o", "aquele", "cada", "ele só", "este", nem muitas outras palavras semelhantes. É que estes termos correntes aplicam-se a tudo, sendo diferentes das coisas a que se juntam. Se fosse possível exprimir o elemento em si mesmo e se ele admitisse uma explicação que lhe pertencesse inclusivamente, teríamos de enunciá-lo sem nenhuma outra coisa. A verdade, porém, é que nenhum dos primeiros elementos pode ser expresso por uma definição: apenas pode ser denominado, porque nada mais tem senão um nome. Já quanto aos seres compostos por esses elementos, dá-se o contrário: uma vez que são complexos, os seus nomes também complexos tornam-se explicáveis, porque a combinação de que são formados estes nomes é a essência da sua definição. Deste modo, os elementos são irracionais e incognoscíveis, mas perceptíveis, ao passo que as sílabas são cognoscíveis, exprimíveis e podem ser o objecto duma opinião verdadeira. Quando, pois, se forma uma opinião verdadeira sobre qualquer objecto sem justificação racional, a alma está na verdade a respeito deste objecto, mas não o conhece. Com efeito, quem não consegue dar nem receber a explicação racional duma coisa permanece na ignorância acerca da mesma coisa; se, porém, juntar à opinião justa a explicação racional, tudo se lhe torna possível e ele possui a ciência perfeita. Foi assim que te contaram este sonho, ou foi de outra maneira?
Teeteto: -- foi exactamente assim.
Sócrates: -- então, isso satisfaz-te e admites que a opinião verdadeira acompanhada de razão é a ciência?
Teeteto: -- perfeitamente.
Sócrates: -- será possível, teeteto, termos descoberto precisamente hoje aquilo que há tanto tempo tem sido procurado por tantos sábios que envelheceram sem o descobrir?
Teeteto: -- pelo menos, Sócrates, acho a tua definição magnífica.
Sócrates: -- é bem provável que o seja. Que ciência poderia haver fora da razão e da opinião recta? Há, todavia, no que acabo de dizer, um ponto que me desagrada.
Teeteto: -- qual é ele?
Sócrates: -- precisamente aquele que me parece mais engenhoso; serem os elementos incognoscíveis e o género das sílabas cognoscíveis.
Teeteto: -- não está certo?
Sócrates: -- temos de ver. De facto, os garantes da tese são os modelos de que o autor se serviu para formular os seus princípios.
Teeteto: -- que modelos?
Sócrates: -- os elementos da escrita: as letras e as sílabas. Ou pensas que o autor da teoria que estamos a discutir tinha em vista qualquer outra coisa?
Teeteto: -- não, era mesmo isso.
Crítica à Definição, a soma e o Todo
Sócrates: -- voltemos, pois, aos ditos modelos e ponhamos à prova a teoria. Melhor, provemo-nos, a nós mesmos, vendo se foi ou não foi desta maneira que aprendemos as letras. Para começar, será verdadeiro que podemos explicar sílabas, mas não elementos?
Teeteto: -- talvez.
Sócrates: -- sim, talvez. Também assim me parece. Se, por exemplo, te fizessem a seguinte pergunta sobre a primeira sílaba do nome de Sócrates: "diz-me, Teeteto, o que é SO?", que resposta darias
?
Teeteto: -- que é um S e um O.
Sócrates: -- é, então, a explicação que dás da sílaba?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- ora bem! Dá-me agora a explicação do S.
Teeteto: -- como seria possível exprimir os elementos dum elemento? De facto, Sócrates, o S é uma consoante, um som ruído, como um sopro da língua. Mas o B, por seu lado, não tem som nem roído, como a maior parte dos elementos, de modo que temos todo o fundamento para dizer que estas letras são irracionais, porque até as mais claras entre elas, as próprias sete vogais ([50]) apenas têm o seu próprio som e não comportam nenhuma explicação, seja de que espécie for.
Sócrates: -- aí está, companheiro, um ponto que nós conseguimos estabelecer acerca da ciência.
Teeteto: -- parece evidente.
Sócrates: -- mas teremos tido razão em declarar o elemento incognoscível e a sílaba cognoscível?
Teeteto: -- é provável.
Sócrates: -- vejamos: para nós a sílaba ó que é? Os dois elementos ou, se houver mais que dois, todos os elementos? Ou uma entidade única que resulta da junção deles?
Teeteto: -- da minha parte, penso que é a totalidade dos elementos.
Sócrates: -- considera então o caso das duas letras S e O. As duas formam a primeira sílaba do meu nome. Quem a conhece não conhecerá as duas letras juntamente?
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- conhece, portanto , o S e o O.
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas como? É ignorante de cada uma delas e, não conhecendo nem uma nem outra das duas, conhece as duas juntamente?
Teeteto: -- seria estranho e irracional, Sócrates.
Sócrates: -- mas se é indispensável conhecer cada uma das duas para conhecer as duas em conjunto, é absolutamente necessário conhecer antes os elementos, se alguma vez quisermos conhecer a sílaba; deste modo, a nossa bela teoria escapa-se e desaparece.
Teeteto: -- sim, com espantosa rapidez.
Sócrates: -- é por falta de vigilância da nossa parte. Talvez devêssemos dizer que a sílaba não é os elementos, mas uma entidade única, com o seu carácter próprio e diferente dos elementos.
Teeteto: -- perfeitamente. Talvez seja mais assim do que da outra maneira.
Sócrates: -- eis o que temos de examinar, em vez de abandonarmos cobardemente tão grande e respeitável teoria.
Teeteto: -- com certeza, seria errado.
Sócrates: -- suponhamos, então, que é assim como estamos agora a dizer, que a sílaba é uma entidade única resultante de um grupo de elementos combinados entre si, o mesmo acontecendo no caso das letras e em todos os outros.
Teeteto: -- suponhamos que sim.
Sócrates: -- portanto, a sílaba não deve ter partes.
Teeteto: -- porquê?
Sócrates: -- porque onde houver partes o todo é necessariamente a totalidade das partes. Ou irás, também, dizer que o todo resultante das partes é uma entidade única, diferente de todas as partes?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas, a teus olhos, a soma e o todo são idênticos ou diferem um do outro?
Teeteto: -- não estou bem seguro. Como, porém, me incitas a responder ousadamente, arrisco-me a afirmar que são diferentes.
Sócrates: -- é justa a tua ousadia, Teeteto; resta ver se a tua resposta o é também.
Teeteto: -- então, é preciso ver.
Outras Dificuldades Postas à Definição
Sócrates: -- pois bem! segundo o que acaba de ser dito, não é verdade que a soma difere do todo?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- mas vejamos: existe alguma diferença entre todas as partes e o todo? Quando, por exemplo, dizemos "um, dois, três, quatro, cinco, seis", ou "dois vezes três", ou "três vezes dois", ou "quatro e dois" ou "três mais dois e mais um", exprimimos em todos sos casos a mesma coisa ou coisas diferentes?
Teeteto: -- a mesma coisa.
Sócrates: -- exactamente seis e nada mais?
Teeteto: -- nada mais.
Sócrates: -- por cada uma destas expressões não representamos nós o seis como um todo?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e agora? Dizer isso não será apenas dizer a totalidade?
Teeteto: -- sim, necessariamente.
Sócrates: -- será dizer uma coisa diferente de seis?
Teeteto: -- não.
Sócrates: -- por conseguinte, em tudo o que é formado por um número, é a mesma coisa o que entendemos pelo total e por todas as partes?
Teeteto: -- parece.
Sócrates: -- falemos, pois, desta maneira: o número que constitui o pletro e o pletro são a mesma coisa, não é verdade?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e o mesmo acontece com o número que constitui o estádio? ([51])
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e igualmente com o número do exército e o exército e com todas as coisas semelhantes. Efectivamente a totalidade do número é o que é cada uma destas coisas tomadas no seu todo.
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e o número de cada uma será coisa diferente das suas partes?
Teeteto: -- não pode ser de outro modo.
Sócrates: -- portanto, tudo o que tem partes é composto de partes?
Teeteto: -- é evidente.
Sócrates: -- mas nós reconhecemos que todas as partes são o total, se é verdade que o número total deve ser, ele também, a coisa total.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- o todo não é, portanto, constituído de partes, de outro modo, seria uma soma, sendo todas as partes.
Teeteto: -- não é, de maneira nenhuma, segundo parece.
Sócrates: -- mas a parte pode ser parte de qualquer outra coisa distinta da soma?
Teeteto: -- sim, do total.
Sócrates: -- defendes-
te valorosamente, Teeteto. Mas não é quando nada lhe falta que o total é precisamente o total?
Teeteto: -- necessariamente.
Sócrates: -- e uma coisa à qual não falta absolutamente nada não será igualmente uma soma, ao passo que, se lhe falta alguma coisa, já não é nem uma soma nem um todo, porque nos dois casos a mesma causa produz nessa coisa o mesmo efeito?
Teeteto: -- agora, parece-me não haver diferença nenhuma entre a soma e o total.
Sócrates: -- não dizíamos nós que, onde existem partes, a soma e o total serão todas as partes?
Teeteto: -- exactamente.
Sócrates: -- voltemos ao que eu pretendia salvar ainda há pouco: se a sílaba não é de modo nenhum os elementos, não se deverá concluir necessariamente que ela tem estes elementos como partes de si mesma, porque, sendo a mesma coisa que eles, não é nem mais nem menos cognoscível do que eles?
Teeteto: -- concordo.
Sócrates: -- não foi para evitar tudo isto que a supusemos diferente dos elementos?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- e se os elementos não são de modo nenhum partes da sílaba, serás capaz de citar outras coisas que sejam partes da sílaba sem, todavia, serem os seus elementos?
Teeteto: -- não, de maneira nenhuma. De facto, Sócrates, se eu aceitasse que a sílaba tem partes, penso que seria ridículo pôr de lado os elementos para ir procurar partes dum outro género.
Sócrates: -- então, resulta indubitavelmente da tua presente afirmação que a sílaba deve ser uma forma única e indivisível.
Teeteto: -- parece que sim.
Sócrates: -- ora, não te recordas, caro Teeteto, de termos admitido ainda há pouco tempo, como coisa correctamente dita, que é impossível explicar os primeiros princípios de que são compostos todos os seres, porque cada um desses princípios, tomado em si e por si, está isento de composição e que nem sequer é correcto, ao falar dele, aplicar-lhe os termos "ser" ou "isto", porque exprimem coisas distintas dele, estranhas a ele, sendo precisamente esta a causa pela qual se é irracional e incognoscível?
Teeteto: -- recordo-me.
Sócrates: -- Haverá uma outra causa ou é a mesma que faz que o elemento seja de forma simples e indivisível? Quanto a mim, não vejo outra.
Teeteto: -- de facto, não parece que haja outra.
Sócrates: -- por conseguinte, não se situará a sílaba na mesma forma que os elementos, se é verdade que ela não tem partes e é uma entidade única?
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- se, portanto, a sílaba é uma pluralidade de elementos e uma soma cujas partes são elementos, as sílabas e os elementos são igualmente cognoscíveis e exprimíveis, dado termos visto que a totalidade das partes é a mesma coisa que a soma.
Teeteto: -- certamente.
Sócrates: -- se, pelo contrário, a sílaba é única e indivisível, a sílaba e o elemento são igualmente irracionais e incognoscíveis, porque a mesma causa produzirá neles os mesmos efeitos.
Teeteto: -- nada tenho a dizer contra.
Sócrates: -- não admitiremos, portanto que se diga que a sílaba é cognoscível e exprimível, e que o elemento é o contrário.
Teeteto: -- de facto não, se acreditarmos no argumento.
Sócrates: -- se, porém, ouvisses dizer o contrário, não te inclinarias a aceitá-lo, lembrando-te do que fazias quando aprendias a ler?
Teeteto: -- que fazia eu?
Sócrates: -- quando aprendias a ler, não fazias outra coisa senão procurar distinguir os elementos, tanto pela vista como pelo ouvido, considerando cada um deles isolado e em si mesmo, para não te perturbares, qualquer que fosse o lugar ocupado por eles na pronúncia e na escrita.
Teeteto: -- o que dizes é inteiramente verdade.
Sócrates: -- e, no mestre de cítara, não consistia a perfeição da aprendizagem em conseguir acompanhar cada nota e dizer a corda de onde ela saía? Ora, como toda a gente reconhece, estão precisamente aí os elementos da música.
Teeteto: -- sem dúvida.
Sócrates: -- por conseguinte, se devemos ajuizar de tudo o resto segundo a nossa própria experiência dos elementos e das sílabas, diremos que o género dos elementos se presta a um conhecimento muito mais claro e mais decisivo do que a sílaba, se queremos aprender com perfeição cada ensinamento, e se alguém sustentar que a sílaba é cognoscível e o elemento naturalmente incognoscível, julgaremos que, de propósito ou não, essa pessoa está a brincar.
Teeteto: -- perfeitamente.
Dois sentidos da Explicação Racional
Sócrates: -- parece-me, aliás, ser possível descobrir outros argumentos pra o provar. Mas acautelemo-nos, não nos façam eles esquecer o que nos propusemos examinar, ou seja, o que entendemos nós quando se diz que a explicação racional acrescentada à opinião verdadeira forma a ciência mais perfeita.
Teeteto: -- é isso que temos de ver.
Sócrates: -- avancemos, portanto! Que pretendem fazer-nos entender com a palavra "explicação"? Parece-me que ela significa uma de três coisas.
Teeteto: -- quais?
Sócrates: -- a primeira é tornar o próprio pensamento sensível pela voz servindo-se dos verbos e dos nomes, reflectindo assim a opinião na corrente que sai da boca, como num espelho ou na água. Não achas que uma explicação é qualquer coisa este género?
Teeteto: -- sim. De qualquer forma, de quem assim faz dizemos que explica.
Sócrates: -- por outro lado, é uma coisa que qualquer pessoa é capaz de fazer com maior ou menor prontidão: pode manifestar aquilo que pensa a respeito seja de que assunto for, desde que não seja mudo ou surdo de nascença; assim,, a opinião recta aparecerá sempre naquelas pessoas em que ela se encontra ligada a uma explicação, e já não haverá lugar em parte alguma para opinião recta separada da ciência.
Teeteto: -- isso é verdade.
Sócrates: -- no entanto, não acusemos, de ânimo leve, de não ter dito nada de sensato o autor da definição de ciência que estamos a examinar. Talvez não seja isso o que ele entendia. Pode ter pensado que a ciência era a capacidade de quando se pergunta uma coisa, responder à questão enumerando os seus elementos.
Teeteto: -- por exemplo, Sócrates?
Sócrates: -- por exemplo, Hesíodo, ao falar do carro, diz que ele é composto por cem peças de madeira ([52]). Eu não seria capaz de enumerá-las, nem tu, presumo eu; mas, se nos perguntassem o que é um carro, ficaríamos satisfeitos se pudéssemos enumerar as rodas, o eixo, a caixa, os taipais, a canga.
Teeteto: -- com certeza.
Sócrates: -- mas quem nos fizesse esta pergunta pensaria que somos tão ridículos como se, interrogados acerca do teu nome, respondêssemos soletrando sílaba por sílaba e imaginássemos, por termos uma opinião recta e darmos a explicação que damos, que somos gramáticos e que conhecemos e enunciamos a explicação do nome de Teeteto como os gramáticos o poderiam fazer. Ele afirmaria não ser possível dar a explicação científica de uma coisa, antes de se ter feito a enumeração completa dos seus elementos acrescentando a isso o juízo, tal como já dissemos anteriormente.
Teeteto: -- de facto, já o dissemos.
Sócrates: -- afirmaria igualmente que, na verdade temos uma opinião recta acerca do carro, mas que aquele que é capaz de descrever a sua natureza por essas cem peças e que junta este conhecimento ao resto, juntou a explicação racional à opinião verdadeira e substituiu a simples opinião pela competência técnica e pela ciência no que se refere ao carro, uma vez que descreveu o todo pelos seus elementos.
Teeteto: -- mas, Sócrates, não achas que isso está certo?
Sócrates: -- parece-te certo a ti, companheiro, e admites que a descrição de uma coisa pelos seus elementos seja uma explicação, ao passo que a descrição por sílabas ou por unidades reais ainda não explica nada? Diz-me qual a tua opinião a propósito disto, para que a examinemos.
Teeteto: -- sim, admito inteiramente.
Sócrates: -- será porque pensas que um homem qualquer é sapiente acerca de uma coisa quando julga que uma mesma coisa pertence ora ao mesmo objecto, ora a um objecto diferente, ou que o mesmo objecto tem como partes ora uma coisa ora outra?
Teeteto: -- n«ao, por Zeus!
Sócrates: -- então, esqueces-te de que é exactamente o que fazíeis, tu e os outros, quando começastes a aprender as letras?
Teeteto: -- queres tu dizer: quando pensávamos que pertenciam à mesma sílaba ora uma, ora a outra letra? E quando metíamos a mesma letra ora na sílaba em que devia estar, ora noutra sílaba?
Sócrates: -- é o que eu quero dizer.
Teeteto: -- então, por Zeus, não me esqueci, e não considero sapientes os que tais equívocos cometem.
Sócrates: -- ora bem: quando alguém se encontra na situação em que então vos encontráveis, ao querer escrever Teeteto, pensa que deve escrever e escreve T e E e ao querer escrever depois Teodoro, pensa que deve escrever e escreve T e E, diremos que conhece a primeira sílaba dos vossos nomes?
Teeteto: -- acabámos de estabelecer, ao contrário, que a pessoa que se encontra nesta situação ainda não sabe.
Sócrates: -- neste caso, nada impede que o mesmo homem faça o mesmo quanto à segunda, à terceira e à quarta sílaba?
Teeteto: -- não, nada.
Sócrates: -- quer isto dizer que, conhecendo a palavra inteira pelos seus elementos, ele escreverá Teeteto com opinião recta quando escrever o nome segundo a ordem pretendida?
Teeteto: -- sim, evidentemente.
Sócrates: -- segundo nós, não estará ele ainda desprovido de ciência, embora tenha a opinião correcta?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- no entanto, ele possui a explicação racional do teu nome, juntamente com a opinião justa; de facto, ao escrevê-lo, sabia a ordem dos elementos, a qual é, segundo reconhecemos, a sua explicação.
Teeteto: -- é verdade.
Sócrates: -- existe, portanto, companheiro, uma opinião certa com a explicação racional que ainda não devemos chamar ciência.
Teeteto: -- é bem possível.
Terceiro Sentido da Explicação Racional
Sócrates: -- segundo parece, só nos tornámos ricos em sonhos, ao acreditar que possuíamos a mais exacta explicação da ciência. Ou ainda devemos esperar, antes de pronunciar a sua condenação? De facto, talvez não seja a definição que deve ser adoptada, mas sim a última destas três formas, uma das quais, dizíamos nós, devia ser dada como definição da razão por quem define a ciência como opinião justa acompanhada de razão.
Teeteto: -- recordo-me: ainda resta uma, de facto. A primeira era, por assim dizer, a imagem do pensamento na palavra; a segunda, que acaba de ser discutida, o caminho para o todo, pela via dos elementos; mas a terceira, qual será ela, na tua opinião?
Sócrates: -- é exactamente a definição que a maior parte das pessoas daria: ser capaz de fornecer uma marca que distinga o objecto em questão de todos os outros.
Teeteto: -- conseguirias explicar-me dessa forma um objecto qualquer?
Sócrates: -- sim, o Sol, por exemplo. Penso que ficarás satisfeito se eu te disser que se trata do mais brilhante de todos os corpos celestes que giram à volta da Terra.
Teeteto: -- perfeitamente.
Sócrates: -- ouve a razão porque te disse isto. É, como acabo de explicar: se apreendes em cada objecto o que o distingue dos outros, apreenderás, segundo alguns, a sua razão; mas, enquanto só apreenderes um carácter comum, só terás a razão dos objectos aos quais esse carácter é comum.
Teeteto: -- compreendo e acho que fazem bem em chamar a isso a razão das coisas.
Sócrates: -- mas se, com uma opinião recta sobre um objecto qualquer, aprendemos ainda o que o distingue dos outros, teremos a ciência do objecto de que antes tínhamos apenas opinião.
Teeteto: -- não temos receio de o afirmar.
Sócrates: -- agora que consegui, Teeteto, ver de perto esta afirmação, como uma pintura em perspectiva, já não compreendo absolutamente nada. Enquanto estava afastado, supunha ver alguma coisa.
Teeteto: -- como e porquê?
Sócrates: -- vou explicar-te, se for capaz. Se à ~opinião certa que tenho de ti eu acrescentar a definição da tua pessoa, então conheço-te; de contrário, tenho apenas uma simples opinião.
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- ora, como vimos, esta definição é a explicação da tua diferença.
Teeteto: -- evidentemente.
Sócrates: -- quando, portanto, eu apenas tinha de ti uma opinião, não é verdade que não apreendia pelo pensamento nenhum dos traços que distinguem dos outros?
Teeteto: -- é provável.
Sócrates: -- assim, só tinha no meu pensamento alguns dos traços comuns que tanto são teus como de qualquer outro.
Teeteto: -- necessariamente.
Sócrates: -- em nome de Zeus, diz-me como poderia eu, nesse caso, ter uma opinião precisamente sobre ti e não sobre qualquer outro? Supõe que eu digo para mim mesmo: "aquele ali é Teeteto, que é um homem, com um nariz, olhos, uma boca e todos os outros membros": de que é que este pensamento me levará a conceber precisamente Teeteto e não Teodoro ou, como diz o vulgo, o último dos Mísias ([53])?
Teeteto: -- em nada, realmente.
Sócrates: -- e se eu me representar não apenas um homem que tem um nariz e olhos, mas que tem, além disso, um nariz achatado e olhos salientes, terei então uma opinião mais sobre ti do que sobre mim mesmo ou todos os que possuem traços semelhantes?
Teeteto: -- de modo nenhum.
Sócrates: -- mas, imagino, Teeteto não será o objecto da minha opinião antes que a chateza do seu nariz tenha gravado e deposto em mim uma recordação diferente das outras chatezas que eu vi, o mesmo se devendo dizer das outras partes que compõem, de modo que, se amanhã te encontrar, esta chateza te faça recordar ao meu espírito e me leve a conceber de ti uma opinião justa.
Teeteto: -- é perfeitamente exacto.
Sócrates: -- portanto, em cada objecto, seria sobre a diferença que também a opinião justa assentaria?
Sócrates: -- parece que sim.
Sócrates: -- então, que é além disto a associação da razão à opinião justa? Se, de facto, isso quer dizer associação do juízo sobre o que distingue o objecto dos outros, prescreve-se uma coisa absolutamente ridícula.
Teeteto: -- como?
Sócrates: -- é que seria, quando temos uma opinião certa sobre o que distingue um objecto dos outros, ordenar-nos a fazer mais uma opinião certa sobre o que diferencia este objecto dos outros. Deste modo, girar o almofariz ou o pilão ou qualquer outro objecto proverbial nada significaria ao pé desta determinação ([54]). Aplicar-se-ia melhor a palavra ao conselho dum cego, por ordenar-nos adquirir o que já possuímos, a fim de aprendermos coisas sobre as quais está feita a nossa opinião, é francamente estar cego.
Teeteto: -- diz-me, então, o que me querias dizer há momentos, quando me interrogavas.
Sócrates: -- meu rapaz, se pela adjunção da razão entendemos o conhecimento da diferença e não a simples opinião, esta razão é uma coisa agradável e temos a mais bela de todas as definições que se deram da ciência; de facto, conhecer é ter adquirido a ciência, não achas?
Teeteto: -- sim.
Sócrates: -- nesse caso, se lhe perguntarmos o que é a ciência, o autor da definição responderá certamente que é a opinião certa com a ciência da diferença; e efectivamente, segundo ele, a associação da razão seria isto.
Teeteto: -- parece que sim.
Sócrates: -- ora, é o cúmulo da ingenuidade dizer-nos, a nós que procuramos a ciência, que esta é a opinião certa com o conhecimento da diferença ou de qualquer outra coisa. Assim, Teeteto, a ciência não é nem a sensação, nem a opinião verdadeira, nem a razão acrescentada à opinião verdadeira.
Teeteto: -- parece que não.
Sócrates: -- ainda continuamos, caro amigo, grávidos de alguma coisa e sentimos dores de parto a propósito da ciência, ou já demos completamente à luz?
Teeteto: -- sim, por Zeus! E, com a tua ajuda, disse mais coisas do que as que trazia dentro de mim.
Sócrates: -- mas não afirma o nosso ofício de parteiro que tudo isso não passava de vento e não vale a pena alimentá-lo?
Teeteto: -- com certeza.
Os limites da maiêutica
Sócrates: -- se, portanto, Teeteto, procurares seguidamente conceber outros pensamentos e de facto os conceberes graças à discussão de agora ficarás prenhe de coisas melhores; se continuares vazio, serás menos pesado e mais dócil para as pessoas do teu convívio, porque terás a sabedoria bastante para não julgares que sabes o que não sabes. É tudo o que a minha arte consegue fazer, mais nada. Não sei nada do que sabem os grandes e admiráveis do nosso tempo e do passado. Quanto ao ofício de parteiro, recebemo-lo da divindade, a minha mãe e eu: ela, para servir as mulheres; eu, para servir os jovens de alma generosa e todos aqueles que possuem a beleza.
Já são horas de me dirigir ao Pórtico do Rei para responder à acusação intentada contra mim por Meleto ([55]). Mas marco encontro contigo aqui, Teodoro, amanhã de manhã.
[1]. Para uma leitura mais fácil, o texto é dividido em parágrafos que titulámos tematicamente.
[2].Euclides de Mégara e Terpsíon contavam-se entre os que assistiram aos últimos momentos de Sócrates. Depois da morte deste, Euclides retirou-se para a sua cidade natal, onde fundou uma das mais importantes escolas pós-socráticas. A ele se reuniram Platão e outros socráticos quando um mau clima os perseguiu em Atenas.
[3].Teeteto de Atenas foi um dos maiores matemáticos do século IV a.C. Não se confirma a veracidade do seu encontro com Sócrates, porventura forjado por Platão, que o utiliza, também, como um dos dois principais interlocutores de "O Sofista". A batalha de Corinto (369 a.C.) teve lugar durante a guerra de Atenas e Esparta contra Tebas.
[4].Localidade da Ática, a pouca distância de Elêusis, na estrada que vai de Corinto a Atenas.
[5].Teodoro de Cirene, denominado "o Ateu", viveu nos últimos decénios do século IV a.C., distinguindo-se como geómetra e um dos principais representantes da escola cirenaica, a qual se baseava no intelectualismo socrático para afirmar o prazer como um bem em si e uma ciência. O termo "filosofia" é tratado com a significação de "estudo científico".
[6].é proverbial a fealdade de Sócrates. Os próprios contemporâneos a consideravam anormal. Xenofonte descreve o seu mestre com "belos olhos de lagostim", "nariz achatado e de narinas arrebitadas", "boca de asno" (Banquete, V).
[7].Platão deve ter conhecido pessoalmente Teodoro, segundo Diógenes Laércio, e incluiu entre os grandes mestres da educação matemática, fundamental para a formação dos governantes da República por si teorizada. Por obra dos sofistas, o sistema escolar grego compunha-se do "trivium" (gramática, dialéctica e retórica) e do "quadrivium" (aritmética, geometria, astronomia e música). Entendia-se a música como ciência matemática, porque não constava apenas da prática do tom e do ritmo, mas envolvia também a teoria pitagórica sobre a harmonia.
[8].Platão escreve (filologia", "amor pela palavra", que se contrapõe a "misologia" "ódio à palavra ou às ciências".
[9].Interrogado sobre a natureza da virtude, Ménon dá a Sócrates uma resposta que lhe merece idêntico reparo: "procurava uma só virtude e encontro em ti um enxame de virtudes".
[10].Este jovem Sócrates aparece também no Sofista e é o principal interlocutor do Estrangeiro, no Político.
[11].Os antigos serviam-se da geometria para estudar a aritmética. Por exemplo, o número simples era uma linha e o número composto um rectângulo. Multiplicava-se construindo um triângulo e dividia-se encontrando um dos seus lados. Ainda hoje, encontramos vestígios da linguagem geométrica em expressões como "quadrado" e "cubo" em relação às potências, além da "raiz quadrada".
[12].A maêutica, arte da parteira, foi o termo que o Sócrates platónico utilizou para simbolizar o seu método filosófico e a sua concepção da verdade. Tomando pé no ofício da própria mãe, d diz não pretender mais do que levar os seus interlocutores a tirarem de si mesmos a verdade. A procura da verdade é a descoberta do mundo interior.
[13].A ironia socrática traduz-se na permanente contestação das "verdades" estabelecidas pelos mestres sofistas e, ao mesmo tempo, no reconhecimento da sua própria ignorância. Esta atitude embaraçava os que interpelavam d e esteve na base da sua condenação à morte por "corrupção da juventude".
[14].Artémis ou Artemísia (a Deusa Diana da mitologia latina) era a Deusa lunar, como Apolo o Deus solar. Deusa da castidade, substituía os prazeres sensuais pelos da caça.
[15].Este jovem Aristides é neto do homónimo estadista e general ateniense, denominado "o Justo" (540-468 a.C.). Lisímaco, filho deste herói, surge no "Laques", diálogo menor de Platão, cujo tema é a educação a dar aos filhos.
[16].Um dos mais conhecidos sofistas, a par de Protágoras Górgias e Hípias. Distinguiu-se como cultor da ciência da linguagem e são-lhe atribuídas duas obras: Estações (com a célebre parábola de Hércules na encruzilhada) e Acerca da Natureza. Platão refere-o com mais pormenor e sarcasmo no diálogo "Protágoras".
[17].Um pouco mais velho que d, Protágoras de Abdera (481-411? a.C.) é o mais ilustre dos sofistas, cujo convívio foi procurado por figuras importantes de Atenas, como Péricles e Eurípedes. Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, perecendo provavelmente num naufrágio.
[18].Incluem-se não só os grandes mestres da escola Jónica (concepção dinâmica da realidade), à qual se opõe a escola Eleática (teoria estática do ser), mas as grandes figuras da poesia grega, o mais remoto veículo da cultura helénica. De Hepicarmo de Cós, todas as obras se perderam. Platão vê em Homero o mestre precursor da tragédia grega.
[19].Ilíada, VIII, 18 e seguintes. Designação da revolução circular de todo o firmamento, dando lugar aos dias e às noites. O movimento solar zodiacal dá origem às estações. os dois movimentos circulares eram, para os antigos, o princípio da vida e do ritmo das gerações.
[20].Eurípedes, Hipólito, 612: "juramento da Minha Língua, não do meu espírito".
[21].O original joga com a palavra "assombro" (thauma) e o nome de "Thaumas", pai de Íris, a mensageira dos Deuses, que trouxe aos homens, o dom celeste, do amor da sabedoria (philosophia).
[22].Platão designa com a palavra "mito" as doutrinas sensistas, ligando-as às teogonias e às outras manifestações poéticas em que dominava a imaginação (muthos = palavra ou narrativa fabulosa). A filosofia é, ao contrário, a procura do ("logos" = palavra da razão).
[23].Festa dos recém-nascidos, a qual se celebrava no quinto dia depois do nascimento. A criança recebia um nome e era levada pela ama que corria à volta da casa.
[24].Título da principal obra de Protágoras, frequentemente citada por Platão. Dela restam pouquíssimos fragmentos. De outras obras do sofista conhecem-se alguns títulos como "Grande Discurso", "sobre os Deuses", "Contradições", etc.
[25].A prática do nudismo no Ginásio vigorava não só na Lacedemónia e em Creta, como também em Atenas. Na Lacedemónia, porém, havia a proibição de permanecerem no ginásio as pessoas que não se despiam para lutar.
[26].A Erística ou arte da controvérsia era bastante fomentada pela sofística decadente, contemporânea de dd, trocando-se pelo simples jogo de palavras as questões metafísicas sobre que se debruçavam os fundadores e principais representantes desse movimento cultural.
[27].Calias, abastado ateniense em cuja casa se hospedavam os mais famosos mestres, entre os quais Protágoras, Hípias e Pródico.
[28].Soldado da infantaria ligeira.
[29].Esquíron era um fabuloso bandido que lançava as vítimas ao mar. Ateu, um gigante Rei da Líbia, forçava os estrangeiros à luta.
[30].No diálogo, Platão identifica Teodoro com Protágoras, o discípulo com o mestre.
[31].Odisseia, XVI, 121.
[32].A clépsidra, ou relógio de água, media o tempo concedido a cada discurso.
[33].Antomósia: juramento das partes dum pleito judicial.
[34].Platão recolhe do teatro grego a figura do coro para representar os partidários de doutrinas em conflito. os filósofos são os corantas da justiça e da verdade.
[35].Praça onde se efectuavam as grandes assembleias populares.
[36].Associações ou partidos políticos no regime democrático de Atenas.
[37].Platão faz uma citação adaptada de um texto de Píndaro (518-438 a.C.) que conhecemos através de Clemente de Alexandria (século II-III) de Jâmblico (século III-IV).
[38].medida de superfície equivalente a 8,70 decâmetros quadrados.
[39].É com sentido de humor que Sócrates se refere aos que se gabam de honrosas genealogias. De facto, Héracles (Hércules) é filho de Alcmena e de júpiter, que, para a enganar, tomou a forma do desonrado Anfitrião.
[40].Citação livre duma expressão de Homero (Ilíada, XVIII, 104; Odisseia, XX, 379), transcrita com mais rigor na Apologia (28, d).
[41].Cidade onde nasceu Heraclito, situada na costa da Jónia. Tomam-se como gentes de Éfeso os defensores da mobilidade universal.
[42].Na tradição Homérica, Oceano é a origem de todas as coisas. Tales de Mileto chama água ao princípio originário de tudo e Heraclito escreveu: "descemos e não descemos um mesmo rio, nós mesmos somos e não somos" (fr. 49).
[43].citação, algo incerta, dum texto de Parménides (fr. 8).
[44].Melisso de Samos, Parménides e Zenão, ambos de Eleia, são os principais representantes da escola Eleática (Itália do sul), defensora da unidade e imobilidade universais.
[45].Citação da Ilíada, III, 172.
[46].Sobre este problemático encontro, vejam-se os diálogos de Platão O Sofista e, sobretudo, Parménides.
[47].A divindade Memória, mãe-origem das Musas, as nove deusas inspiradoras das artes liberais: história, música, comédia, tragédia, dança, astronomia, elegia, poesia lírica, eloquência e poesia heróica. Em suma, a memória é a fonte das várias formas do saber.
[48].Em grego, cera diz-se "kêrus" e coração "kêr".
[49].Ilíada, II, 851 (o coração peludo de Pilemenes) e XVI, 554 (de Patroclo).
[50].O grego usa as seguintes vogais: alfa, épsilon, êta, iota, ómicron, úpsilon e ómega.
[51].O pletro é, aqui, tomado como medida de comprimento (29 metros); o estádio mede 174 metros.
[52].Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, 454 e seguintes.
[53].Expressão proverbial, de sentido depreciativo. Os habitantes da Mísia eram considerados maus escravos e, por isso, o pior extrato da humanidade.
[54].Nada adianta mover o almofariz em vez do pilão ou vice-versa. Ou seja, segundo o adágio, diz-se o mesmo por outras palavras.
[55].Sobre a acusação de impiedade, movida por Meleto contra Sócrates, leia-se a Apologia e o começo do Eutífron. O encontro marcado com Teodoro remete para a abertura do Sofista.
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