Biblio "SEBO"
Para qualquer lado que se vire, Lillie Burdette encontra sempre resistência. Parece que naquela cidade, onde passou toda a sua vida, existem segredos terríveis. Assim que Lillie os começasse a desenterrar, não poderia voltar atrás, por muito que isso lhe custasse. Levada pela dor, Lillie procura a verdade que está por trás da morte da filha e põe a descoberto um emaranhado de mentiras que ameaçam a sua sanidade mental e a sua segurança, desafiando tudo aquilo em que acredita, até no amor da mãe.
Durante três dias consecutivos os meteorologistas das estações televisivas de Nashville andaram a avisar que havia uma "baixa pressão" a meio do estado do Tennessee. Toda a gente em Cress County sabia que eles não estavam apenas a dizer que ia chover. Era época de tornados e as pessoas do campo não se deixavam enganar pelas meias-palavras das estações televisivas. Para não lançar o pânico, o noticiário nunca mencionava a palavra tornado até algum ser detectado. No entanto, à velocidade a que um tornado se desloca, quando avisassem já seria tarde de mais.
Sentada à sombra no alpendre da casa, Lillie Burdette olhava inquieta para o céu, procurando uma espiral longínqua de pó ou vento. Normalmente a época de tornados chegava mais cedo, em finais de Agosto. Era um pouco inesperado naquele último fim-de-semana de Setembro, mas era impossível não o reconhecer. O ar estava húmido e totalmente parado. Tudo aquilo para que se olhava parecia iluminado por um sol artificial e, no entanto, o céu mostrava-se carregado de nuvens negras e baixas. Estava um calor diabólico, mas, de vez em quando, uma brisa fresca roçava-lhe a pele e fazia-a tremer.
Do outro lado da estrada e em frente ao jardim de Lillie havia um campo delimitado por uma cerca, onde se via um cavalo velho a pastar. Normalmente, aquele animal com olhos de abrunho plantava-se sempre num local onde mal levantava a cabeça da erva. Naquele dia, o velho animada quinta caminhava sem cessar ao longo da cerca, de cabeça erguida, olhos temerosos como se também estivesse a olhar os céus.
"Os animais pressentem estas coisas", pensou Lillie. Ficavam irrequietos. Ela própria nunca vira um tornado. Tinha sentido a agitação e visto o enegrecimento do céu que precedia aquele fenómeno violento. Quando criança, sempre esperara que viesse algum, só pela excitação que causava. Tal como todas as outras crianças, escutara as histórias daqueles que tinham sobrevivido a um tornado. Bessie Hill, que já era velha, costumava contar a história em que um tornado a apanhara em casa sozinha. Foi ao fim da tarde e as luzes tinham-se apagado, o que acontecia frequentemente em Cress County quando havia vento ou chuva. Decidiu ir para a cama, pois não havia luz, mas algum tempo depois uma violenta rajada de vento abriu-lhe a porta de casa com corrente de segurança e tudo. Correu para a sala e tentou fechar a porta, mas o tornado levantara uma árvore do seu quintal, cujo tronco lhe entrara pelo telhado directamente sobre o tecto do quarto.
"Devo estar a ficar velha", pensou Lillie arrepiando-se. "Já não quero sequer que o tornado se aproxime." Um carro passou, avançando lentamente, e os ocupantes acenaram. Lillie protegeu os olhos com a mão e também acenou, se bem que não tivesse reconhecido ninguém. Em Felton, Tennessee, era costume cumprimentar as pessoas que se encontravam, fossem ou não conhecidas. Naquele dia havia mais trânsito do que era habitual na estrada que passava entre a sua propriedade e o campo do vizinho. Mas era normal no dia do Fundador.
Mais um dia do Fundador. Já assistia àquela celebração outonal há trinta anos, desde os seus quatro anos de idade. Era como se tivesse passado mais um ano de vida. "Suponho que deve ser isso. Isso e o tempo", pensou ela, tentando perceber o estado melancólico em que se encontrava desde que acordara nessa manhã, ansiosa e a suar, a tempo de ver os primeiros raios no céu. Passara-se mais um ano e, de algum modo, o dia já não continha o mesmo prazer e excitação dos seus tempos de juventude.
- Mãe, o teu relógio tocou.
- Ah, obrigada, querida - afirmou Lillie. Pegou no regador e deitou o resto do seu conteúdo nas plantas que estavam
dentro de um cesto pendurado na cobertura do alpendre. Podes fazer-me o favor de destapar as panelas? O relógio era para isso.
- Está bem. Vou já. Primeiro, diz-me como estou. Lillie pousou o regador e virou-se para a entrada da porta.
O rosto da sua filha Michele ostentava uma expressão de expectativa, qual lua luminosa atrás de um véu. Michele estendeu a mão, empurrou a porta e mostrou o vestido de saia rodada que envergava. O seu longo cabelo castanho brilhante caía pelos ombros estreitos e roçava nas mangas de balão do vestido fora de moda. O rosa era demasiado forte para o seu tom de pele e ela ainda não enchia o decote de renda; no entanto, os seus olhos brilhavam perante a sua própria imagem e o tecido da saia fazia ruído enquanto rodava.
O estado de espírito de Lillie mudou completamente quando a viu.
- Estás linda! - exclamou. - Encontraste-o.
- Bem, era difícil não dar com ele - retorquiu Michele.
- Estava pendurado na porta do meu guarda-vestidos.
- Mas fica-te muito bem - observou Lillie. Estendeu a mão e tocou o rodado do vestido. - Pareces saída de um sonho.
- Sinto-me estúpida com ele e está muito calor. Nem acredito que antigamente usassem estes vestidos todos os dias.
- Normalmente não está tanto calor no dia do Fundador - afirmou Lillie. - Estou desejosa de que o tempo refresque. Fica-se irritável. Sabes que essa saia foda minha bisavó...
- Eu sei, eu se- assentiu Michele, que já ouvira a velha história umas cem vezes. - A tua avó fez este vestido para ti quando tinhas a minha idade.
Lillie olhou para a filha. A cor rosa tinha sido cuidadosamente escolhida para Lillie pela mãe, a fim de fazer sobressair o cabelo escuro, os lábios e faces cor de cereja e a compleição cremosa característica de algumas beldades sulistas. A sua tez assemelhava-se a uma imagem extraída de uma tampa de caixa de bombons. A mãe sempre se orgulhara do seu olho para roupas e maquilhagem, mas fora a avó, há muito falecida, que amorosamente lhe fizera o vestido. Agora, sentia uma espécie de dor de felicidade ao ver a filha naquele vestido tão especial.
A sua filha, saudável e de olhos claros, que, segundo os médicos, não sairia viva do hospital no dia em que nascera.
Não percebera os termos clínicos que os médicos lhe tinham atirado à cara enquanto estava deitada na cama do hospital a recuperar do parto de Michele. Uma enfermeira muito bondosa dissera-lhe com o maior tacto possível que a filha iria com certeza necessitar de uma série de operações ao coração. As primeiras semanas após o parto não passavam agora de uma névoa de angústia. Lembrava-se da viagem de ambulância até ao Hospital Vanderbilt em Nashville, onde uma equipa de médicos estivera toda a noite a operar o bebé. Depois, a vida adoptara um padrão que se sustentaria durante anos: uma peregrinação de hospital em hospital, de especialista em especialista, seguindo um rasto ilusório de esperança, que finalmente conduzira a um bom estado de saúde e à normalidade, quando Michele chegara à adolescência.
Michele segurou na roda do vestido em dois pontos e afastou-o do corpo.
- Não lhe faço grande justiça - observou ela, tristonha.
Lillie sorriu. Michele seria sempre uma rapariga frágil e pequena. Era a herança da sua doença. Agora, todavia, estava forte.
- Não te queixes - disse Lillie. - Nunca terás de te preocupar com a gordura e com o rosto que tens provavelmente acabarás na capa de uma revista de moda.
Michele fez uma careta, mas estava contente. Atirou os cabelos para trás dos ombros.
- Vou levar os calções para mudar de roupa assim que aquela parvoíce acabar. Está um calor muito húmido, hoje.
- Eu se- concordou Lillie, assustada. - O céu está com mau aspecto.
Os olhos de Michele iluminaram-se.
- Boa! Pode ser que haja um tornado.
- Por favor, não te mostres tão contente com essa possibilidade - disse Lillie. - Agora, vai-te embora. Para casa. É preciso dar um jeito às mangas.
- Esqueci-me delas - disse Michele, entrando de rompante à frente da mãe, fingindo-se aborrecida quando ela gentilmente lhe levantou a saia para que Michele pudesse andar. Empoleirou-se no banco da cozinha, tornando a atar os laçarotes das mangas enquanto Lillie arrumava o bolo para o piquenique.
A porta das traseiras abriu-se e Pink Burdette entrou na cozinha. Apesar do calor, usava um casaco e gravata verde-claros. Era um homem forte, cuja linha da cintura já havia desaparecido, agora que já ia nos quarenta e cinco anos, O seu rosto redondo e de traços regulares estava húmido e viam-se gotas de suor a escorrer do cabelo ruivo, que já escasseava. O olhar recaiu no bolo que Lillie estava a arranjar.
- O que é isto? - perguntou, com um espanto fingido.
- Não me digas que vamos oferecer comida. As pessoas pagariam muito bem por um pedaço de bolo.
- Olha para a Michele. Não está bonita? - perguntou Lillie, ignorando a brincadeira relativa ao seu serviço de cateríng. Pink nunca quisera que ela trabalhasse e estava sempre a brincar com o facto para mascarar o seu desagrado. "com pouco sucesso", pensou Lillie.
- Deixa ver! - disse Pink.
Michele desceu desengonçadamente do banco e fez uma volta para que Pink desse a sua aprovação.
- Muito bonita - aprovou Pink - Tal como em E Tudo o Vento Levou.
- Tu e o Grayson já estão prontos para sair? - perguntou Lillie ao marido.
- Sim. Estive lá fora a atirar umas bolas ao Grayson. A aquecê-lo para o jogo. Cos diabos! Está muito abafado hoje.
- Porque não deixas o casaco em casa? - perguntou Lillie, se bem que já soubesse a resposta.
-- Haverá pessoas com quem iremos fazer negócios - respondeu Pink - Acho que preferem ver um homem com um ar mais digno.
Aproximou-se e provou a cobertura do bolo.
- Espera! Acho que te devo vinte e cinco cêntimos por isto. - Piscou o olho a Michele, que fez uma careta. Já ouvira todas aquelas brincadeiras. Ao contrário de Pink ela achava muito bem o facto de a mãe ter um negócio.
- É melhor irmos andando - disse Lillie firmemente. -" Porque não perguntas ao Grayson se quer boleia?
Pink abriu a porta das traseiras e gritou lá para fora.
- Anda, filho. Aquela equipa precisa de ti para os pores em forma. - Virou-se e anunciou. - Ele já vem. - Depois, ficou a olhar para a porta até Grayson aparecer e passar pelo pai.
Grayson era na realidade Grayson Jr., que era também o nome de Pink embora este começasse a ser chamado por este diminutivo ainda no berço e, segundo constava, nunca ninguém lhe dera a honra de o tratar pelo nome. Jurara que o filho não teria a mesma sorte e resistia até a usar o diminutivo Gray quando falava de ou com o filho. No entanto, fora uma preocupação vã, pois logo à partida o elegante nome de Grayson se adequara muito bem e nunca fora manchado com alcunhas pejorativas. Apesar do calor que fazia naquele dia, o uniforme de Grayson não parecia húmido e o seu forte cabelo louro caía suavemente sobre a sua testa alta. Piscou algumas vezes os profundos olhos azuis para se adaptar à relativa escuridão da casa e depois recuou e inclinou a cabeça.
- O que é isto? - gritou. - Uma fada.
- Cala-te, Gray - ordenou Michele.
- A Michele entra no espectáculo - disse Lillie.
- E tu - disse Pink com um ar sério, fechando a porta das traseiras e aproximando-se do filho -, tu vais levar a equipa ao campeonato nacional. Todas as pessoas importantes do condado vão estar presentes. Isso incluo presidente do banco que por acaso também é o presidente da Comissão de Bolsas de Estudo Rotary.
- Oh, Pink Por amor de Deus - exclamou Lillie. Ele só está no décimo ano. Ainda não precisa de se preocupar com bolsas de estudo. Além disso, o jogo é amigável.
- Lillie - disse Pink pacientemente -, para o caso de não te teres dado conta, este é o jogo para o qual nos estivemos a preparar todo o Verão. É este. Se o ganharmos, seremos campeões regionais, já para não referir que o Sterling Grisard, o presidente do banco, jogou na posição do Grayson quando integrou, há muitos anos, a equipa de Felton.
- Bem, pai - disse Grayson -, tenho todas as intenções de ganhar.
- Depois do jogo vai ter com o Sterling e apresenta-te. Eu estarei lá para quebrar o gelo. Queremos que ele saiba quem é a estrela da equipa.
Grayson acenou com a cabeça e balanceou preguiçosamente a bola de uma mão para a outra, tal como Pink lhe ensinara.
- Porque é que tudo tem de ter um motivo oculto? perguntou Lillie. - Toma, Michele. Leva este bolo para o carro.
Pink abotoou o seu apertado casaco desportivo.
- Só estamos a falar de amizade e sociabilidade e de nos apresentarmos o melhor possível.
Michele pegou cuidadosamente no bolo e afastou-o do vestido cor-de-rosa.
- E se ele perde? - grunhiu ela.
- Apanha, Michele - disse Grayson, fingindo atirar a bola à irmã.
Michele começou a caminhar e depois gritou "Grayson", mas só tinha no tom de voz uma preocupação fingida. Aos quinze anos, Grayson Burdette já era o tipo de rapaz de que todas as raparigas gostavam, o que incluía a irmã. Grayson ria-se com agrado da brincadeira e atirou a bola para a sua própria luva, vendo-se perfeitamente os movimentos dos músculos do seu antebraço.
- Sim, senhor - disse Gray. - Acho que vou ter com Mister Grisard, apresento-me, digo-lhe que sou filho da dona do catering mais solicitado de todo o condado de Cress e que foi o banco dele que emprestou o dinheiro para a- minha mãe iniciar o negócio. - Piscou o olho à mãe.
- Não digas isso! - exclamou Pink.
- Ele está a brincar - contrapôs Lillie. - Vamos. Michele, já tens a muda de roupa no carro?
- Tenho de a ir buscar - replicou Michele.
- Então, vai - disse Lillie. - A peça é o primeiro acontecimento. É melhor chegares a horas.
- Levas isto, Gray? - pediu Michele, estendendo o bolo
ao irmão.
- Claro - disse ele, metendo a luva debaixo do braço.
- Despacha-te.
Se bem que o local onde iam decorrer as festividades ficasse a menos de seiscentos metros, nunca teriam pensado em ir a pé. Em Cress County, ver um adulto a caminhar por uma estrada, a não ser que levasse um bidão de gasolina, era virtualmente uma indicação de doença mental. Pink mantinha o seu Oldsmobile em excelentes condições, sempre lavado e polido, e realmente sobressaía no meio das carrinhas e velhos sedans da maioria dos festejantes, estacionados no relvado que servia mais de perto a entrada para Briar Hill. Todos saíram do carro e ficaram de pé por alguns instantes, absorvendo a atmosfera festiva e olhando para as caras conhecidas. Depois, começaram a subir a encosta até Briar HilHouse.
A mansão de Briar Hill era o orgulho da cidade de Felton. A plantação de Briar Hill fora a maior do estado do Tennessee, mas, depois da Primeira Guerra Mundial, a família não tivera possibilidades de manter a casa e nenhuma das pessoas com meios para a comprar parecia querer instalar-se ali. A propriedade fora-se degradando até um membro ambicioso da câmara municipal a ter reclamado para a transformar num parque. Os terrenos eram vastos e muito bem arranjados pelos voluntários locais, mas a peça central era a casa, onde se viam colunas, varandas, trepadeiras, portas envidraçadas e uma pintura bastante recente. A câmara não tinha possibilidades financeiras de restaurar o interior da casa e, por isso, vários trabalhadores haviam contribuído para a sua reabilitação de modo a servir as necessidades de muitos grupos locais que se reuniam. Os melhoramentos tinham incluído cobrir os velhos soalhos de madeira com alcatifa barata cor de laranja, de uma fibra durável, instalar uma espécie de cafetaria com mesas e cadeiras de metal desdobráveis e mobilar com peças oferecidas pela população ou compradas em grandes armazéns. Se bem que as salas da velha mansão se assemelhassem pouco aos salões elegantes dos seus dias de glória, a Briar House voltara a ser o principal local de encontro da sociedade do condado.
Lillie entrou à frente do grupo no vestíbulo escuro e fresco. Olhou para o relógio.
- A que horas começa o espectáculo?
- Daqui a quinze minutos - disse Michele. - Tenho de me ir preparar.
- Nós vamos arranjar lugar - informou Lillie. - Dá este bolo a uma das senhoras da cozinha quando lá passares e diverte-te.
Cumprimentando amigos e conhecidos, Pink dirigiu-se ao salão de baile que tinha sido preenchido com filas de cadeiras de metal colocadas em frente de uma plataforma de madeira que servia de palco. Pink encontrou três lugares seguidos e sentaram-se.
Todos os anos aquele espectáculo marcava o início oficiado dia das festividades. Era sempre o mesmo de ano para ano: uma pequena peça de teatro em que os rapazes se vestiam de soldados da Confederação e as raparigas usavam vestidos compridos, numa pequena reencenação da sua cidade natal. Na verdade, a fundação de Felton tinha uma data anterior à da Guerra Civil, mas a história da cidade era parca e todos preferiam os trajes daquela época. Além disso, nenhuma celebração sulista estava completa sem uma evocação da Confederação, que ainda era considerada a glória do Sul, ao contrário do que muitos americanos do Norte eram levados a crer.
O aparecimento da professora de música do liceu, Gay Jones, sentada ao piano, assinalou o início da exibição. A multidão soltou um suspiro colectivo quando se ouviram os primeiros acordes de Dixie.
Lillie, que estava apertada entre Pink e Grayson, chegou-se mais para a frente na cadeira, esforçando-se por ver Michele enquanto as raparigas entravam em torrente pelo palco, usando os seus vestidos e ouvindo-se um murmúrio de apreciação na audiência. Lillie acenou a Michele, que revirou os olhos e os desviou da família.
Lillie mostrou um sorriso de culpa ao marido, pois acabara de se recordar do olhar de admiração do rapaz que a acompanhava naquele dia de há longos anos. Os olhos castanhos e brincalhões de Jordan Hill tinham ficado presos nela com um sorriso quente.
- Está cá toda a gente - disse Pink - Acho que ainda consigo fazer algum negócio.
Lillie deu-lhe um pequeno encontrão para que se calasse e aplaudisse com entusiasmo, tal como fazia o resto da plateia à medida que as beldades e os seus pretensos namorados interpretavam rapidamente a peça e cantavam com um entusiasmo crescente uma canção de Stephen Foster, antes de saírem desajeitadamente do palco, com muito menos dignidade do que haviam mostrado ao entrarem. À medida que os aplausos iam morrendo, Lillie sentiu os olhos a encherem-se de lágrimas. Durante todos aqueles anos de médicos e hospitais e as pequeninas mãos de Michele a agarrar as suas, ela mal ousara pensar no que se passaria no dia seguinte e muito menos sonhar que um dia a filha estaria ali, naquele palco, uma linda rapariga no vestido cor-de-rosa da sua mãe.
Pink levantou-se e espreguiçou-se.
- bom! Tenho de ir lá para fora e começar a estabelecer contactos - disse. Para Pink qualquer reunião, por muito social que fosse, era uma oportunidade de fazer negócio. Agente imobiliário num condado em que as pessoas passavam gerações nas mesmas propriedades, repetia o seu mote vezes sem conta: "É preciso lutar."
Lillie limpou os olhos e levantou-se. Já estava habituada ao marido. Agarraria na mão de uma pessoa que o cumprimentasse, não a largaria e começaria a falar de uma segunda hipoteca e se não seria melhor vender uma parte da quinta, dado ele conseguir o melhor preço.
Saíram juntos pelas portas envidraçadas para o brilho do soda tarde.
- Vai andando - sugeriu Lillie. - Quero ver se encontro a Brenda.
Brenda Daniels, a sua melhor amiga e sócia no serviço de catering, já ia no terceiro divórcio e usara o acordo do último e breve casamento para começar o negócio e atrair Lillie como sócia. Apanhara Lillie numa boa altura. Michele estava finalmente curada e ambos os filhos já tinham idade para não necessitar de atenção constante. O negócio fora um meio perfeito para libertar a sua inesgotável energia. Lillie não conseguia lembrar-se de um único dia em que Brenda e ela não tivessem falado pelo menos uma vez. Virou-se para Grayson.
- A que horas começa o jogo?
- Daqui a alguns minutos. Tenho de ir para o campo e fazer o aquecimento.
- Já lá vou ter - disse Lillie. - Boa sorte.
Pink fechou as mãos como se fossem um revólver e apontou o dedo para baixo.
- Dá cabo deles, filho. Conto contigo.
Pôs a enorme mão no ombro do filho e depois deu-lhe uma pequena palmada nas costas, mandando-o embora e voltando-se imediatamente à procura de um potencial cliente.
Lillie ficou a ver o filho a dirigir-se ao campo de basebol l. Aliene Starnes materializou-se no meio da multidão, usando ainda o seu vestido de baile, e Gray parou um pouco para falar com ela, com um joelho dobrado, o boné puxado para baixo, de maneira a deixar ver apenas o seu sorriso preguiçoso sob a sombra da pala.
Lillie olhou para ele melancolicamente. Não parecia ter as |inseguranças e dúvidas comuns aos rapazes da sua idade. Pelo menos nunca lhe falara delas. Talvez falasse com Pink Desde o dia em que nascera e Pink o retirara dos braços da mãe no hospital, olhando sedentamente para o seu rosto suave e inocente, Gray passara de algum modo a pertencer a Pink Fora aquele tipo de criança, cuja vida parecia desenrolar-se num suave arco de perfeição. O parto fora fácil, proferira as suas primeiras palavras muito precocemente e apontava com clareza para aquilo que queria. Dera os primeiros passos na direcção dos braços expectantes de Pink apenas com oito meses. A escola não apresentava dificuldades, parecendo ser uma daquelas crianças surpreendentemente coordenadas que aprendia as coisas à primeira. Todas as desilusões e frustrações que pudesse ter tido eram instintivamente levadas para Pink que estava sempre à espera. A ligação entre pai e filho tornara-se uma bênção para Lillie, que passava a maior parte do tempo a evitar que Michele sucumbisse às crises quase fatais que, então, se sucediam. Agora, no entanto, ao olhar para o filho, tão crescido, tinha uma sensação de perda. Já namoriscava com as raparigas e em breve seria um homem adulto e partiria; Lillie sentia que nunca realmente o possuíra.
"Pára com isso", pensou ela, zangada consigo própria. "Vais estragar o dia com essas ideias, é esta atmosfera deprimente que te está a afectar." Lillie começou a caminhar lentamente na direcção do diamante. Tentou encontrar Brenda, mas não a conseguiu avistar em parte alguma. Lillie estava convencida de que sabia o que aquilo queria dizer. Brenda devia ter ido para Nashville na véspera a fim de fazer compras e decerto teria visitado o músico casado com quem jurara não passar outra noite. Lillie suspeitava de que Brenda gostava do drama inerente àquelas relações condenadas à partida. Se bem que nunca o tivesse dito abertamente, Brenda considerava a vida de Lillie demasiado monótona para o seu gosto.
Lillie limpou a testa húmida e abanou-se com o programa das festividades. Todas as pessoas que cumprimentou no caminho para o campo de basebol sofriam do mesmo calor.
- Não me recordo de um dia do Fundador tão quente como este - comentou Bessie Hill, dando um beijo no rosto de Lillie.
- Um dia típico para tornados - entoou Bomar Flood, o farmacêutico local, enquanto Lillie lhe apertava a mão húmida e avançava.
Ao chegar ao campo, avistou Pink a chamar à parte um velho agricultor que usava jardineiras e um boné Cat puxado para a testa. Estavam de pé junto à linha da primeira base e Pink tinha um olho no jogo que já começara.
Lillie sentiu um impulso protector em relação ao marido. Na verdade, ele não era o tipo de homem que inspirasse poesia e fogo-de-artifício, mas entrara na sua vida numa altura em que ela estava desesperada e assustada. Prometera tomar conta dela e fizera-o. Trabalhava muito, ocupava-se dos filhos e aturava-lhe os estados de espírito sem se queixar. Estava grata por tê-lo como marido. Conhecia muitas mulheres que gostariam de dizer a mesma coisa.
Pink viu Lillie e acenou-lhe.
- Anda! O nosso filho está quase a pegar no taco.
Lillie acercou-se e sentou-se num dos lugares ao sol, ao lado de Pink que se conservava de pé. O velho agricultor aproveitou a oportunidade para se despedir. Lillie sentou-se na ponta do banco e colocou as mãos a protegerem-lhe os olhos do sol quando viu Grayson sair para o campo.
Royce Ansley, o xerife do condado, de camisa de mangas curtas e gravata cor de azeitona, chegou naquele momento e colocou-se ao lado de Pink Já com cinquenta anos, Royce mantinha o espírito de um homem com metade da sua idade e o porte do soldado que já fora. Usava o cabelo, já grisalho, muito curto, e Lillie sempre o conhecera assim. Os sapatos negros brilhavam.
- Aquele é o Gray, não é? - perguntou. - O número dezoito - disse Pink orgulhosamente. - Olá, xerife - saudou Lillie.
Royce acenou-lhe com a cabeça e sorriu. Lillie não se recordava de ver em Felton outro representante da lei senão Royce. Quando era rapariguinha pensava nele como uma figura romântica, austera e silenciosa. Permanecera solteiro até aos quarenta e poucos anos e era convidado para almoçar por muitas mães que esperavam consegui-lo para as suas filhas. Quando finalmente se casou, com uma rapariga de Memphis, emanou dele durante anos a felicidade de um rapazinho. Lillie voltou a dar atenção ao jogo. Gray estava a assumir a sua posição, semicerrando os olhos para ver melhor à distância. Lillie reparou que várias raparigas, incluindo Aliene, riam e cochichavam, com os olhos postos no filho. Quando a bola foi na sua direcção, Gray puxou o bastão para trás e bateu com fluidez, movendo o corpo com a graça de um atleta nato. O bastão colidiu solidamente com a bola, que voou para bem longe, levando as pessoas que estavam fora do campo a ir atrás dela e procurá-la numa vala que ficava abaixo da linha de falta que delimitava o diamante.
- É um belo batedor - observou Royce enquanto Pink batia com o punho na palma da mão de regozijo e se esforçava por não lançar um grito de guerra.
- Boa, Grayson - gritou Lillie enquanto aplaudia. Quando as manifestações de alegria acalmaram e o lançador da equipa de Welbyville tentou recompor-se, Lillie virou-se para o xerife. - Como tem passado? - perguntou ela.
- Bem, obrigado.
- O Tyler joga hoje?
O xerife franziu a testa.
- Era suposto jogar, mas não o vejo no banco.
Havia uma dureza na sua voz sempre que mencionava o filho. As disputas entre Royce e o filho de dezassete anos eram bem conhecidas na cidade, tendo várias vezes acontecido em público. Desde que a mãe de Tyler morrera, quando ele tinha doze anos, ninguém o conseguia agarrar.
Lillie decidiu mudar de assunto.
- Espero que os criminosos lhe dêem um dia sossegado, hoje - observou ela -, para que possa gozar os festejos.
- Posso garantir-lhe que esta noite terei muito que fazer.
A cadeia vai ficar cheia de bêbedos e desordeiros. - As pessoas levam os festejos um pouco longe de mais - comentou Royce secamente.
- Acho que sim - anuiu Lillie.
- Não consigo perceber aquele meu filho - interrompeu Pink afastando os olhos de Gray, que fora calorosamente cumprimentado por todos os membros da equipa. - Se fosse só no basebol compreenderia, mas digo-lhe que é em todos os desportos que pratica. E não é só no desporto. Também é muito inteligente. É assim mesmo, Grayson - gritou Pink quando o rapaz o viu e acenou. - Não há nada que aquele rapaz não saiba fazer. Não é verdade, querida?
- O orgulho e a alegria do papá - observou Lillie, quase pedindo desculpa a Royce.
- Tem razão para estar orgulhoso - disse Royce. -
O Grayson é um excelente rapaz.
- Mãe, mãe, preciso das chaves do carro.
Lillie virou-se e viu Michele a dirigir-se a ela, arrastando o vestido pela relva poeirenta.
- Olá, xerife Ansley - saudou Michele educadamente.
- Olá, Michele.
- Para que queres as chaves do carro?
- Para ir buscar a minha roupa. Está num saco dentro da bagageira.
- Ah, está bem. Pink...
- Hummmmmm.... - Pink virou-se. - Eis a rainha do baile. Foste muito bem na peça, querida.
Obrigada, papá. Preciso de abrir o porta-bagagens. Pink entregou-lhe as chaves do carro.
- Trá-las logo a seguir - disse ele. - Devias ter chegado mais cedo. Perdeste o espectáculo. O Grayson acabou de marcar pontos.
- Que bom - proferiu Michele com uma voz aborrecida. Já estava habituada aos bons resultados do irmão e até se orgulhava deles, mas o excesso de entusiasmo de Pink sempre a afectara muito e, por isso, agia com indiferença. Virou-se para o xerife. - O Tyler está cá? - perguntou com indiferença.
- Em princípio, devia jogar retorquiu o xerife.
- Olhe, ali está ele, Royce anunciou Lillie.
Assim que o fez, desejou não o ter feito. Tyler estava equipado, mas a camisola saía-lhe da parte de trás das calças e parecia que se tinha andado a rebolar na terra. Tyler inclinou-se para escolher um bastão e, quando se levantou, cambaleou um pouco. O treinador aproximou-se dele, agarrou-lhe no braço, falando-lhe com uma expressão muito séria, mas Tyler afastou-o com a mão e dirigiu-se cuidadosamente para a base. Tomou posição e passou a língua pelos lábios enquanto tentava focar o olhar no lançador. Tyler era um rapaz alto e bem constituído, quase da altura do pai, de cabelo escuro comprido e um rosto sensual, que estava quase sempre crispado.
Tyler fez um sinal com o queixo ao lançador para indicar que podia prosseguir. O lançador tomou balanço e atirou uma bola muito rápida. Tyler tentou selvaticamente atingir a bola, mas esta já estava na luva do apanhador e ele quase se desequilibrou. O treinador foi até ao campo, dizendo: "Já chega." Agarrou Tyler por um braço e falou-lhe rapidamente ao ouvido.
- Deve estar doente - observou Michele.
Lillie susteve a respiração. Conseguia ver os músculos dos maxilares de Royce a funcionar furiosamente enquanto Tyler protestava e tentava afastar o treinador. Alguns dos outros jogadores aproximaram-se e rodearam Tyler, que estava a abanar a cabeça com os olhos fechados. Dois dos rapazes tentaram agarrar-lhe os braços, mas Tyler afastou-os furiosamente e saiu com algum desequilíbrio da base.
- Não é justo - disse Michele. - Nem sequer lhe dão uma oportunidade.
Lillie ficou um pouco maravilhada com a ingenuidade da sua filha. Pelo silêncio que reinava nas bancadas era óbvio para todos que Tyler estava drogado, mas para Michele era apenas um desgraçado que devia ser defendido. Lillie pensava carinhosamente que era uma tendência natural de Michele. Qualquer desgraçado ou gato perdido era um protegido de Michele. Bradava quando ouvia as notícias sobre os pobres e, para grande aborrecimento de Pink usava fumos negros sempre que havia uma execução na cadeia. O perturbado Tyler Ansley era uma causa feita de encomenda para Michele.
Lillie não queria olhar para Royce. Sabia que ele estaria pálido de vergonha. Desejava poder esquecer todo o incidente.
O batedor seguinte levantou-se do banco e dirigiu-se à base. Lillie estava a pensar no que poderia dizer, mas foi salva por Wallace ReyrioIds, o delegado do xerife Ansley, que vinha a correr na direcção do campo com uma expressão triste no rosto.
- Xerife - disse Wallace, numa voz baixa e ansiosa -, é melhor voltar para o seu carro. O Francis tem estado a tentar contactá-lo via rádio. Alguém fugiu da cadeia.
Ouviu-se um murmúrio vindo das pessoas que se encontravam mais perto, que depois se elevou à medida que a notícia se espalhava. Lillie e Pink trocaram um olhar de surpresa e Lillie pôs a mão no ombro de Michele.
- Muito bem, Wallace. Vá comigo até lá - ordenou Royce.
Sem mais uma palavra, virou-se e correu na direcção do carro-patrulha.
- O que aconteceu? - perguntou Pink ao delegado do xerife, que hesitou um momento para respirar. Um grupo de pessoas saíra dos seus lugares e juntara-se à sua volta.
Wallace abanou a cabeça. - Não sei.
- Que disse o Francis? - perguntou um homem sentado à frente de Lillie. Toda a gente sabia que Francis Durham estava na central de rádio da cadeia do condado há mais de vinte anos. - Quem foi?
- Já disse - afirmou Wallace. - Não sei o que aconteceu. Eu próprio vou para lá.
Wallace começou a abrir caminho por entre a multidão, sendo bombardeado com inúmeras perguntas, às quais não respondia.
- Não distraiam os jogadores - suplicou o treinador, que correra até ali. Os jogadores, sem se aperceberem da razão de toda aquela excitação, observavam com espanto o monte de espectadores.
- Ele tem razão - disse uma mulher que usava calças vermelhas de toureiro. - O xerife apanha-o. Não podemos fazer nada.
Todas as cabeças anuíram enquanto o grupo de pessoas se dispersava e voltava para o seu lugar.
Lillie olhou para o outro lado do diamante e viu que Tyler Ansley desaparecera. "As coisas estão a favor dele?>, pensou. "Salvo mesmo a tempo." Prestou atenção novamente ao jogo enquanto Michele ia até ao carro para tirar a roupa.
Os festejos do dia continuaram sem mais incidentes, se bem que o xerife e o delegado não tivessem voltado para o piquenique. Havia vários boatos contraditórios sobre quem estava envolvido na fuga. Algures entre o momento em que a equipa de Feiton ganhou o campeonato a Welbyville e as mulheres começaram a servir pratos com broa de milho, costeletas e frango, o céu escureceu ameaçadoramente e uma brisa fresca começou a soprar, aclarando o ar. A multidão, que já estava alegre, ficou rejubilante. Toda a gente ajudou a limpar tudo, concordando que a comida estava melhor do que nos outros anos. Depois, como já caía a noite, uma banda de música começou a instalar-se dentro do grande salão de baile, donde retiraram todas as cadeiras para se poder dançar. Assim que a banda começou a tocar, Pink pegou no braço de Lillie.
- Acho que chegou a altura de irmos para casa, querida. Amanhã tenho propriedades para mostrar. - Olhou conspicuamente para o dedo de Lillie, que batia a compasso. - Não queres ficar, pois não?
Lillie continuou a olhar para a banda durante alguns segundos e depois virou a cara.
- Não especialmente. Achas seguro deixar duas crianças com os presos à solta?
- O xerife provavelmente já os apanhou. De qualquer modo, não virão para aqui. Há muita gente - disse ele. - Tens razão - anuiu Lillie. - De qualquer modo, é
melhor dizer-lhes que nos vamos embora.
Não tiveram de procurar muito para encontrar Grayson. já estava na pista de dança, levando nos seus braços Allene Starnes ao som de um swing. Pink chamou-o com o olhar e o rapaz veio ter com ele ainda de mão dada com Allene.
- Eu e a tua mãe vamos para casa, filho.
- Está bem. Até logo.
Não vás muito tarde. Em casa às onze - disse Lillie. Onze e meia - contrapôs Gray.
Está bem - assentiu Pink olhando radiante para Grayson, cujo cabelo louro brilhava à luz das velas eléctricas instaladas no salão de baile.
- Vai para casa com a tua irmã - ordenou Lillie. - Não quero que nenhum dos dois vá para casa sozinho.
- Não te preocupes, mamã - disse Gray. - Onde é que ela está?
- Não sei. Vou ver se a encontro - replicou Lillie. - Vou ter contigo ao carro - disse Pink
Lillie vagueou por entre a multidão que ainda estava do lado de fora da sala de baile. Viu Brenda que chegara a tempo de jantar com eles e lhe contar a história da noite selvagem que passara com o músico em Nashville. Brenda estava agora a falar com Bilmosher, um tipo que trabalhava no banco. Lillie conseguia perceber pela expressão do rosto da amiga e sorriso permanente que Brenda se preparava para ir para casa e sentar-se ao telefone. Lillie sorriu e seguiu em frente, sabendo que saberia tudo no dia seguinte.
Viu a filha que estava sozinha a beber uma Coca-Cola.
- Michele - disse - Estás sozinha?
- Estou à espera da Cherie. Está lá dentro, na casa de banho das senhoras.
- bom, eu e o teu pai vamos para casa. Queres uma boleia?
- Não. Prefiro ficar. Pus o vestido no carro. Importas-te de o levar?
- Claro que não. Vais dançar? Michele encolheu os ombros.
- Provavelmente ficarei a ver. Vamos encontrar-nos lá dentro com a Debbie e a Bonnie.
- Está bem - anuiu Lillie. - Diverte-te, mas quero-te em casa às onze e meia. Descobre o Grayson e vão juntos ou telefona para te virmos buscar.
- Por amor de Deus, mãe. Não sou um bebé. Aí vem a Cherie.
- Aposto que alguns destes rapazes vos vão pôr a dançar disse Lillie.
Michele levantou a sobrancelha para a amiga.
- Os milagres acontecem - observou ela, e ambas começaram a rir.
Lillie teve vontade de a abraçar, mas não quis envergonhá-la em frente de Cherie.
- Até logo - disse ela.
- Adeus, mamã.
Lillie caminhou lentamente até ao carro, saboreando a bri-
za fresca e suave da noite a bater-lhe no rosto. Pink já tinha o motor a funcionar e o ar condicionado ligado. O carro estava completamente gelado. Dirigiram-se a casa em silêncio. Quando pararam à entrada da garagem e saíram, Lillie ainda conseguia ouvir os acordes da Valsa do Tennessee que vinham de Briar Hill. Retirou o vestido de baile de Michele do banco de trás.
- bom, foi muito agradável este ano - afirmou Lillie, de pé no relvado à luz do luar. - Graças a Deus que aquela tempestade não desabou.
- Sim, foi agradável - concordou Pink. - E foi um belo jogo. Que tal o nosso rapaz? Jogou como se estivesse na primeira divisão.
- É um excelente jogador - confirmou Lillie. - Mas, Pink não lhe devias estar sempre a dizer isso. Ele vai ficar muito vaidoso.
- Não consigo evitá-lo - suspirou Pink. - Quero que toda a gente saiba que o meu filho está ala jogar. É tão bom em tudo o que faz. Digo-te, querida: aquele rapaz ainda vai ter o mundo nas mãos. Sempre houve poucos rapazes assim no liceu, ou em qualquer outra escola. Eu invejava sempre rapazes assim.
- Tu saíste-te muito bem - disse Lillie lealmente. Pink suspirou.
- Sim, está bem. Eu não me iludo. Saio-me bem. Consigo ganhar o suficiente para sustentar a família.
- Vá lá, Pink És um homem de negócios respeitado nesta cidade. Eu lembro-me das primeiras vezes que me vieste visitar; fiquei muito impressionada por te ver de casaco e gravata, sempre pronto para trabalhar. A fazer negócios uns atrás dos outros.
- Nessa altura tinha muitos sonhos - observou Pink com tristeza. - O que aconteceu é que as coisas não mudaram muito desde essa altura.
- Porque é que não nos sentamos no alpendre um bocado? Ainda se consegue ouvir a música - disse Lillie suavemente.
Pink endireitou-se e abanou a cabeça.
- Acho que vou para dentro beber uma cerveja fresca. A cerveja de Briar Hill não estava suficientemente gelada para o meu gosto. Quente como mio, se queres saber. Além disso
- continuou -, nunca me sentaria naquelas velhas cadeiras de baloiço da tua avó.
Lillie bocejou e riu-se ao mesmo tempo, preparando-se para ouvir algo que já conhecia.
- Arruinam a fachada. Compro-te uma casa de que te podes orgulhar e tu pões à frente aquelas cadeiras velhas que a fazem parecer..
- Como se lá vivesse uma cambada de parolos. Já sei - disse ela.
Pink sorriu.
- Já me conheces.
Lillie sentou-se numa das cadeiras de baloiço e deixou sair um suspiro de descontracção.
- Suponho que sim - disse ela. - já vou para dentro. Importas-te de levar o vestido, Pink?
Pink assentiu e tirou-lho das mãos quando ia a entrar. Ela ouviu a televisão a ser ligada na sala e encostou a cabeça à cadeira. O ar oferecia um odor estranhamente doce e a noite estava calma, à excepção dos sons longínquos da banda. O longo dia ao sol fazia-a sentir-se cansada. Fechou os olhos e sentiu-se flutuar enquanto baloiçava. Minutos depois estava a dormir. Foi acordada por Pink que lhe abanava o ombro.
- Está a fazer-se tarde - disse ele. - Vou buscar aqueles miúdos.
Lillie endireitou-se na cadeira, apalpando os braços, desorientada e assustada.
- Que horas são?
- Já passa das onze horas - disse Pink.
- Mas nós dissemos-lhes onze e meia - lembrou Lillie.
- De qualquer maneira, vou. Acabei de ouvir nas notícias
que não apanharam o tipo que fugiu da cadeia esta tarde. E é dos maus. O Ronnie De Partin. Os miúdos não deviam andar por aí a esta hora. Especialmente a Michele.
- Tens razão - concordou Lillie. Tentou espevitar a memória. - O Ronnie Lee Partin. Não foi ele que assaltou o restaurante da Estrada Trinta e Um...
-... e agrediu o gerente com a pistola e disparou sobre o caixa. É esse mesmo - disse Pink - Além disso, só os quero trazer para casa para ir para a cama sossegado.
Agarrou nas chaves do carro.
Lillie já tinha larga experiência dos alarmismos de Pink em 'relação às crianças, mas era uma qualidade que partilhava. Apercebeu-se de que a noite estava silenciosa e a música tinha parado. ?
- Tens razão - repetiu. - Queres que vá contigo?
- Não. É melhor ficares para o caso de um deles telefonar. A Michele pode ter ido para casa de uma amiga. Já volto.
Lillie viu o marido entrar no carro e partir na direcção de Briar Hill. "Os miúdos vão ficar furiosos", pensou, "quando ele aparecer antes da hora marcada, mas não seria a primeira vez." Abriu a porta e entrou em casa. A televisão ainda estava ligada. Desligou-a e sentou-se ao canto do sofá. No cesto ao lado encontrava-se uma pilha de revistas. Pareceu-lhe uma boa altura para lhes dar uma vista de olhos. Ela e Brenda reuniam muitas receitas publicadas em revistas para o seu negócio de catering. Andavam sempre à procura de um bom estufado ou de uma sobremesa para experimentar com os clientes. Lillie colocou algumas revistas no colo, pegou na tesoura que estava na mesinha e começou a folhear e a recortar. Os seus olhos vagueavam incansavelmente pelas páginas até se iluminarem, acidentalmente, com um artigo chamado "SoaOpera Dreamboats" numa revista feminina que comprava regularmente no supermercado. Jordan Hill, "que interpreta PauManville em Secret Live› estava a sorrir na página, com os seus profundos olhos castanhos ainda brilhantes, se bem que cansados depois de tantos anos. Lera o artigo à pressa quando ele saíra. Um artigo sobre Jordan era sempre notícia em Felton e as pessoas faziam questão de que ela fosse das primeiras a saber. Lillie conseguia perceber que esperavam uma reacção. Olhou para a fotografia com os dedos prontos a virar a página se Pink aparecesse à porta. Jordan já tinha cabelos brancos nas têmporas e deixara crescer um espesso bigode, mas ainda tinha um ar jovem e descuidado. Olhou para cima da lareira para a fotografia de Michele, a de Grayson mesmo ao lado numa moldura, quando o relógio bateu a meia-noite.
Lillie virou a página e tentou concentrar-se nas receitas, mas tudo lhe parecia enevoado e os ingredientes sempre os mesmos. Finalmente, pousou as revistas. Esfregou involuntariamente os braços e levantou-se. Avançou pelo vestíbulo até à cozinha, abriu o frigorífico e pensou em beber um copo de chá gelado. Depois fechou a porta. Os olhos dirigiram-se automaticamente para o relógio que se encontrava por cima do frigorífico. Era quase meia-noite e meia hora.
- Não é nada - disse ela em voz alta. - É dia do Fundador.
Era consabido que os miúdos chegavam tarde no dia do Fundador. Lembrava-se da sua própria juventude e, especialmente, dos seus dezassete anos. Ela e Jordan Hill tinham saído e ficado sentados no banco da frente da carrinha do Pai dele, parada na clareira junto ao acampamento de escuteiros, até às duas e meia da manhã. Teriam lá ficado toda a noite se o superintendente do acampamento não tivesse ouvido os cães à ladrar, saído e corrido com eles. Quando finalmente chegara a casa, o pai dera-lhe uma tareia com o cinto. Fora a única vez que lhe tocara. Ela ainda não sabia, mas o cancro já ia numa fase avançada. Sabia que ia morrer e estava preocupadíssimo com ela. Mordeu o lábio com aquela recordação. Os últimos meses, as últimas tentativas de amor e disciplina, tentando deixar uma impressão que durasse toda a vida de Lillie. "Todos os pais o fazem", pensou. "Quando os filhos finalmente se apercebem de que sabem tomar conta de si, nós atiramo-nos a eles por causa das preocupações que nos causaram."
Voltou para a sala de estar e dirigiu-se à lareira. Pegou na moldura em forma de dois corações. De um lado via-se Michele e do outro Grayson. Olhou para um e para outro e voltou a colocá-la cuidadosamente no seu lugar.
Sentou-se na cadeira de Pink de costas para a porta e ficou olhar para o ecrã escuro da televisão. O telefone encontrava-se na mesa ao seu lado.
Lillie estava a olhar para ele. "Toca", pensou. "Alguém que telefone a dizer-me que está tudo bem."
"Não é nada", lembrou a si própria. "Nada. Qualquer tipo que tenha fugido da prisão esta tarde, já estará longe. A milhas daqui. E todos os miúdos chegam mais tarde a casa no dia do Fundador. O Pink deve estar só com dificuldade em apanhar os dois. Ele não sabe para onde vão os jovens e, quando os encontrar, ficarão humilhados por o pai andar atrás deles." Não havia motivo para preocupações numa cidade daquelas. Era a cidade mais segura do mundo.
Pegou no jornal local e tentou lé-lo, mas as palavras não faziam sentido. Atirou-o para o chão, levantou-se e começou a Passear pela casa. De vez em quando ia à porta da rua e olhava para o relvado iluminado pela lua e para o campo que ficava do outro lado da estrada. Cada vez que voltava para trás e olhava para o relógio, pareciam ter passado mais dez ou quinze minutos. Começou a abrir e a fechar os punhos enquanto andava, como a imitar o batimento do coração.
Por favor, meu Deus - disse em voz alta -, não me assustes assim.
Naquele momento ouviu o ruído da gravilha da entrada e o som de um motor. Correu para a janela da sala. Então, através das cortinas de gaze que estavam fechadas entre os reposteiros abertos, viu uma luz azul à frente da casa e ouviu o ruído desmaiado de um rádio da Polícia.
Lillie ficou em pé como morta. A luz azul apagou-se, mas ainda se podia ouvir o ruído do rádio, bem como as portas a fecharem-se. Os passos cansados de Pink arrastaram-se pelo chão de cimento do alpendre e a porta abriu-se. Ele olhou para ela e depois desviou o olhar.
Lillie não gritou nem chamou por ele. Ficou a olhar fixamente enquanto Pink entrava, seguido de Grayson, e depois, com a cabeça inclinada como se estivesse a entrar numa igreja, surgiu o xerife Royce Ansley. Os olhos de Lillie saltavam rapidamente de um para o outro. Conseguiu ver que Grayson estava a chorar, havia grandes marcas de lágrimas ao longo do seu rosto macio. Pink apresentava uma tez doentiamente cinzenta. Tremia compulsivamente.
- Onde está a Michele? - perguntou ela com voz rouca, artificialmente calma e que até a ela soava estranha. - Não conseguiram encontrá-la?
Pink comprimiu a testa com a mão suada como se quisesse calar um clamor. Teve dificuldade em engolir e passou a língua pelos lábios pálidos.
- Grayson - exigiu Lillie. - Onde está a tua irmã? Devias ter vindo para casa com ela.
Grayson baixou a cabeça; as lágrimas caíram-lhe sobre a camisa e o peito saltava com os soluços.
- Eu... sei... Eu... estava...
Royce Ansley avançou e agarrou Lillie pelos braços.
- Sente-se - ordenou ele. E começou a empurrá-la na direcção da cadeira de Pink Ela conseguia ver que os seus olhos estavam brilhantes, como que marejados de lágrimas, mas a voz mostrava-se firme e a expressão impassível.
- Porquê? - perguntou ela.
Mas sabia porquê. já conseguia sentir o sangue a descer-lhe do cérebro, a leveza, a fraqueza dos seus membros, a escuridão que lhe enevoava a vista enquanto ele a empurrava para trás.
- Lillie, tenho algo de horrível para lhe dizer. A Michele... está morta, Lillie. Lamento muito.
- Morta - murmurou Lillie. - Não.
- Sim - disse Royce com firmeza. - Ela foi.... aparentemente alguém... a assassinou.
Encolhida sobre a cadeira, Lillie tentou respirar, mas a escuridão era cada vez maior e, no silêncio, sentia o coração a bater com muita, muita força. Os braços estavam dormentes e as mãos sem acção e frias sobre o colo. Sentiu os olhos a rolarem para trás e depois Royce a empurrar-lhe a cabeça para baixo, colocando-a entre os joelhos.
- Respire - ouviu ela dizer ao longe. - Respire fundo. Grayson, vai buscar um copo de água à tua mãe.
Lillie sentiu o sangue regressar à cabeça, mas não olhou para cima. Manteve os olhos fechados e desejou que o tempo andasse para trás. Só eram precisos dez minutos. Levantaria a cabeça e veria as coisas como elas eram. A porta estava a abrir-se e Pink a metê-los em casa, zangado. Levantou lentamente a cabeça. Viu o rosto sombrio do xerife e a expressão catastrófica que distorcia os traços do rosto do marido.
- Pink - disse, num murmúrio, sendo o som mais forte que conseguia emitir. - Ajuda-me. Oh, meu Deus! Diz que não é verdade.
Pink afastou o olhar do dela e fixou as costas do sofá. Tinha de lhe dizer. Falou com cuidado, mas os olhos reflectiam o horror do que tinham visto.
- Alguns minutos depois de sair de casa, encontrei Grayson em Briar Hill com dois rapazes - proferiu ele. -
O Grayson e os outros não a tinham visto. Peguei no Grayson e fomos à procura dela. Andei às voltas durante muito tempo. Procurámos em toda a parte. Finalmente, fomos até ao rio junto à ponte de pedra, os Três Arcos, e... encontrámo-la. Na realidade, o xerife já a tinha encontrado. Andava à procura do Partin. Em vez dele encontrou... a Michele. - A voz de Pink sumiu-se quando pronunciou o nome da filha. - Estava ali junto ao rio no meio de uns arbustos... - As lágrimas começaram a correr e o corpo tremia violentamente. Pink olhou para a mulher com os olhos e a voz cheios de lágrimas. – Era demasiado tarde. Lamento muito, querida - disse ele com as palavras entrecortadas por soluços. - Demasiado tarde.
Lillie levantou-se com esforço da cadeira e aproximou-se do marido. Abraçou-se a ele. Grayson entrou na sala, trazendo o copo de água. Ela estendeu o braço e ele abraçou-a.
- Não, não - disse ela. - Vocês não sabiam. Não podiam saber. Oh, meu Deus - soluçou -, como é que alguém lhe poderia fazer mal? Era apenas uma criança. Nunca fez mal a ninguém. A minha menina.
Tinha na mente a imagem de Michele no baile a dizer-lhe adeus. Não conseguira abraçar a filha em frente de toda a gente. Parecia ter o coração esmagado.
Pink lutou para se separar de Lillie.
- Sinto-me ma- disse ele. - Deixa-me sentar.
Lillie agarrou-se ao seu braço e Pink caiu pesadamente sobre o sofá. Ela sentou-se a seu lado. Gray ofereceu-lhe o copo de água, mas ela declinou-o. Ficou ali desamparado com pânico nos olhos.
Royce Ansley levantou-se.
- Tenho de voltar para o local. Está um delegado junto dela e o médico legista está a caminho. - Percebia que as suas palavras nem sequer estavam a ser ouvidas pelo casal sentado no sofá. - Eu informo-vos quando soubermos alguma coisa. Lillie pestanejou na sua direcção.
- Está bem - anuiu, com uma voz dormente e distraída. Levantou-se do sofá e começou a tentar dirigir-se à porta como se se quisesse despedir dele.
- Deixe estar - disse Royce rapidamente. - Por favor, por favor, sente-se.
Lillie olhou para ele.
- Talvez não seja a Michele - disse.
- Eu entrarei em contacto convosco - repetiu Royce suavemente. - Entretanto, é melhor que alguém chame o pai. Digam-lhe o que se passou.
Lillie assentiu com a cabeça.
- Eu telefono-lhe - disse. Jordan Hill tinha o direito de saber. Era o pai biológico de Michele e, de facto, tentara ser
um pai verdadeiro nos últimos dez anos. Telefonava-lhe, mandava-lhe presentes e fizera-a ir a Nova Iorque para o visitar.
Em Nova Iorque era uma hora mais tarde. Quase duas da manhã. Lillie perguntou a si própria se o iria acordar com aquelas palavras. Michele estava morta. Vivera durante tanto tempo com medo dessas mesmas palavras. Deitara-se em macas ao lado da cama de hospital de Michele e rezara para que ninguém a acordasse a meio da noite com essas palavras. Agora, quando o perigo já há muito passara, quando já baixara as guardas, tinha chegado a notícia, atingindo-a e atordoando-a com a força de um redemoinho.
Ela telefonaria a Jordan. Poderia acordá-lo e dizer as palavras necessárias, mas não seriam verdadeiras. Ela não conseguia sentir a sua realidade. Apesar dos testemunhos à sua volta, olhou novamente pela porta e pensou ver a filha a subir os degraus, arrastando um vestido de baile cor-de-rosa, o seu rosto de criança a brilhar ao luar como um luminoso medalhão oval.
Eram duas da manhã; Jordan Hill não estava a dormir, se bem que fingisse fazê-lo. A rapariga que se encontrava na cama a seu lado levantou-se e abanou a cabeça para que o seu abundante e ondulado cabelo castanho readquirisse o aspecto natural que a almofada lhe tirara. Esticou-se até aos pés da cama para apanhar a camisa dele, que estava amarfanhada, e vestiu-a sem se dar ao trabalho de a abotoar. Depois de sair da cama, a rapariga caminhou cautelosamente pelo chão de madeira, passando pelas estantes que ficavam à altura da cintura e que serviam de divisória entre a cama e a combinação sala-cozinha naquele longo e estreito estúdio. Inclinando-se para alcançar o pequeno frigorífico que ficava por baixo do lava-louça, lançou subitamente um grito.
Jordan apoiou-se num cotovelo e perguntou.
- O que se passa?
A rapariga voltou para a cama, transportando uma garrafa de cerveja aberta. Deu um gole na cerveja e entregou-lhe a garrafa. Jordan alisou o canto do bigode e abanou a cabeça.
- Está uma barata no lava-louça - disse ela, indignada.
- Só espero que não a tenhas afugentado com aquele grito, Amanda.
A rapariga fez-lhe uma careta e sentou-se aos pés da cama. Levantou o pé magro e franziu o sobrolho quando viu a sujidade que tinha recolhido na breve viagem até ao frigorífico. A camisa azul escorregava-lhe sedutoramente pelo ombro enquanto virava a barriga da perna para examinar o pé. Andava na casa dos vinte e a sua pele não apresentava rugas ou máculas. Jordan tapou-se com o lençol, lembrando-se subitamente dos cabelos brancos que já tinha no peito.
- Não sou grande dona de casa - admitiu ele.
Ainda agarrada ao pé, Amanda observou as paredes do apartamento meio iluminado com um olhar crítico. O quarto era engraçado, mas ele nunca tentara decorá-lo. Nas paredes viam-se alguns cartazes sobre temas de teatro. Sempre os quisera mandar emoldurar, mas, nesse momento, as pontas já estavam reviradas sobre as tachas que os sustinham. Além disso, o quarto era estritamente funcional e tinha pouca mobília. As paredes, que um dia haviam sido brancas, estavam a tornar-se cinzentas e o estuque já saltava por baixo das janelas e ao longo do tecto daquele apartamento situado num rés-do-chão. Amanda voltou a olhar para ele.
- Não entravas numa série da televisão? - perguntou.
- Durante duas temporadas - disse ele. - Na NBC. A rapariga largou o pé e pegou novamente na garrafa de
cerveja, limpando o fundo na ponta da camisa de Jordan.
- Também fizeste parte do elenco de uma telenovela. Não é verdade?
Jordan teve de pensar durante alguns instantes.
- Isso já foi há quase três anos.
- O que fizeste com o dinheiro? - perguntou ela. Gastaste-o em droga?
Jordan vacilou perante a frontalidade da pergunta.
- Não - disse ele. - Eu não uso essa coisa.
Amanda acenou com a cabeça e voltou a olhar em volta.
- Sinceramente pensava que vivias num sítio um pouco mais... bem, um pouco mais decente - afirmou. - Talvez um condomínio no West Side. É isso que vou comprar se alguma vez entrar numa telenovela. Vou investir no ramo imobiliário.
- É um bom investimento - retorquiu Jordan educadamente. Hesitou um instante, olhando mais uma vez para aquele corpo ágil que se mostrava com à-vontade dentro da sua camisa, saiu da cama e vestiu umas calças de fato de treino. Vou fazer café - disse. - Queres?
- A esta hora? - questionou ela. - Não conseguiria adormecer. Amanhã tenho de estar com muito bom aspecto. Tenho uma audição. Disse-te. Não te lembras?
- Ah, é verdade! - exclamou Jordan, em pé junto ao lava-louça, enchendo a chaleira. - O Clube de Teatro de Manhattan.
Passara umas belas horas com ela na cama. Tal como quase todas as mulheres mais jovens procuravam ser, era ardente, especialista e muito objectiva. Porém, naquele momento, ele não estava com disposição para falar e conseguia intuir que ela se preparava para travar conhecimento, aquilo que, antigamente, costumava preceder a união sexual. Tinham feito a leitura de uma peça de teatro juntos há cerca de um mês, e naquela noite encontrara-a casualmente a comer um hambúrguer com dois fulanos quando fora tomar uma cerveja ao Montana's Eve na Sétima Avenida.
- Afinal o que é que fizeste ao dinheiro? - voltou a perguntar.
Jordan suspirou e colocou um filtro na máquina de café.
- Tenho uma quinta em Green County. Passo lá grande parte do meu tempo livre. Faz-me lembrar a minha terra natal.
Amanda levantou-se da cama e começou a caminhar calmamente pelo apartamento, lendo os títulos dos livros que havia nas prateleiras e fazendo uma inspecção apurada aos seus documentos e contas.
- Tens uma ligeira pronúncia - disse ela. - De onde és?
- Tennessee.
- Ah! - exclamou Amanda. - Eu sou de San Diego. Deve-te parecer estranho ter vindo para Nova Iorque quando estava tão perto de Los Angeles, mas queria fazer teatro a sério e aprender bem a profissão. Gosto muito de cá estar. Aprecio toda esta energia.
- Tens a certeza de que não queres café? - perguntou Jordan, enchendo uma caneca.
- Não - retorquiu ela. Colocou a garrafa de cerveja em cima de uma das colunas da aparelhagem de alta fidelidade e tirou a camisa. - Tenho de ir andando.
Pegou no seu top de seda caído no já muito usado tapete persa e sacudiu-o. Depois, vestiu-o. Jordan virou-se a tempo de ver desaparecer os pequenos e perfeitos seios por baixo daquele tecido tão caro.
- Vais-te embora? - perguntou.
Amanda enfiou-se numas calças muito justas e sentou-se numa cadeira para puxar as botas de pele de crocodilo de cano curto.
- A audição é muito cedo e tenho de me maquilhar em casa.
- Ah... - proferiu Jordan cautelosamente, não desejando parecer demasiado aliviado. - Estou muito contente por te ter encontrado esta noite.
Era verdade. Estava contente, mas também estava feliz por "ter o resto da noite para si, por saber que iria acordar sem ter de enfrentar uma conversa estranha ou cuidadosos eufemismos sobre o que tudo aquilo significara.
Amanda retirou um espelho redondo da bolsa e mirou-se, humedecendo os lábios. Depois, passou as pontas dos dedos, parecendo um pente africano, pelo cabelo.
- Estás óptima - afirmou Jordan com sinceridade. Subitamente, deu-se conta do pequeno pneu à volta da sua sintura e cruzou os braços.
- Foi divertido - declarou a rapariga. - Talvez possamos repeti-lo um dia.
- Eu telefono-te - disse ele.
- Devo ter tempo livre este fim-de-semana.
Jordan sentiu que ela estava a tentar manobrá-lo como se fosse um 1eme. Conseguiu furtar-se muito bem, usando a desculpa do costume.
- Vou estar em casa do meu agente nos Hampton. Ele quer que eu conheça umas pessoas.
- Ah - retorquiu Amanda, acenando afirmativamente com a cabeça. Dirigiu-se à estante e pegou nas pulseiras que lá pousara. Olhou para uma fotografia que estava numa moldura de cartão, colocada entre o despertador e um cinzeiro. - Gostas delas jovens - observou com mordacidade.
Os olhos escuros e quase solenes de Jordan iluminaram-se.
- A minha filha. Bonita, não é?
- Foste casado?
- Há muitos anos, mas durante muito pouco tempo. Chama-se Michele.
Amanda inclinou a cabeça para o lado.
- É engraçada. Mas o cabelo! Está a precisar de um bom corte. Poderia levá-la ao meu cabeleireiro. Eles tratariam bem dela. Avisa quando vier a Nova Iorque.
- Não - retorquiu ele. - Normalmente levo-a à pesca. - À pesca?
Amanda riu-se como se fosse a ideia mais ridícula que já ouvira.
Jordan encolheu os ombros.
- Vamos para fora da cidade. Ela gosta de pescar. Amanda pousou a fotografia e dirigiu-se a ele.
- Mesmo com aqueles vermes nojentos que usam como isco? Não posso acreditar.
Virou o rosto para ele e começou a passear os dedos pelo tronco nu de Jordan. Subitamente, ele sentiu acidez no estômago por causa do café e da tensão do encontro. Era sempre estranho depois de passada a urgência do momento.
Ele inclinou-se para lhe dar um beijo e sentiu os lábios de Amanda a deterem-se nos seus por alguns instantes. Só esperava que ela não mudasse de ideias e ficasse.
- Queres voltar para a cama? - perguntou ele. Amanda abanou a cabeça, feliz com a pergunta.,
- Não posso - disse. - Nunca conseguiria o meu sono de beleza a teu lado.
Encaminhou-se para a porta e ele abriu-a, olhando para o corredor pintado num tom amarelado e forrado de linóleo já gasto.
- Tens dinheiro para o táxi? - perguntou Jordan.
- Claro.
Beijou-a novamente, mas desta vez com mais calor. Agora que ela estava realmente a sair, sentiu-se agitado pelo odor e pela forma do corpo de Amanda.
- Boa sorte para amanhã - disse ele.
Passou a língua pelo lábio superior por baixo do bigode.
Depois conto-te como correu.
Porque não esperas um minuto? Vou vestir-me e levo-te até lá baixo. Quero ter a certeza de que entras no táxi em segurança.
- Não há problema - garantiu ela. - Só tenho de andar um quarteirão até à Rua Seis.
Ele percebeu que a oferta lhe agradara. Não! É melhor esperares - insistiu. Cavalheirismo sulista.
Fungou, mas estava a sorrir.
"Que raio de cavalheiro", pensou Jordan. enquanto vasculhava a pilha de roupa que se acumulava na cadeira, procurando um par de calças e uma camisola. Antigamente, quem dormisse com uma rapariga sem casar com ela... era considerado 'um vadio., Agora, quem conseguisse levá-la para a cama e depois se oferecesse para a levar até à esquina a meio da noite era praticamente um herói.
- já está! - exclamou ele, calçando uns mocassins. Vamos embora. - Quando estava a fechar a porta atrás de si, o telefone começou a tocar. Ele e Amanda entreolharam-se e depois Jordan olhou para o relógio. - São quase duas da manhã - afirmou, sentindo um arrepio de medo. melhor atender.
Amanda encolheu os ombros.
- Não preciso de escolta - disse ela friamente, colocando a alça da bolsa sobre o ombro como se fosse uma espingarda.
- Porque é que não esperas? - propôs ele, tentando meter as chaves na fechadura.
- Deve ser uma antiga paixão tua - observou, descontraidamente, ficando, porém, parada à espera que ele negasse.
Jordan já tinha entrado. "São más notícias", pensou. "A esta hora só podem ser más notícias." A primeira pessoa que lhe veio à cabeça foi a mãe. Tinha quase setenta anos e vivia sozinha em Felton, se bem que a irmã mais velha de Jordan, JenRae, vivesse em Chattanooga, que não era longe. A mãe era Uma mulher saudável, mas com aquela idade tudo poderia . acontecer.
- Acho que me vou embora - disse Amanda com alguma incerteza.
Tirou os óculos de sol da bolsa e colocou-os apesar de ser noite.
- Está bem, está bem - gritou Jordan
Murmurou uma pequena oração pela mãe enquanto se dirigia ao telefone, tropeçando nas roupas espalhadas pelo chão. Quando levantou o auscultador, o seu olhar caiu sobre a fotografia de Michele. O seu coração parou por uns instantes e depois afastou a ideia. Era jovem e, depois de muito sofrer, saudável e perfeita. Tinha a vida inteira à sua frente. "Não!>, Talvez fosse um amigo ou algum colega da telenovela que tivesse bebido uns copos a mais ou precisasse de desabafar. Toda a gente tinha problemas sobre os quais precisava de falar. Além disso, para um actor, duas da manhã era um hora perfeitamente aceitável. "É isso mesmo", disse a si próprio. "Isso mesmo. Não é muito tarde."
- Estou? - proferiu ele calmamente.
Amanda projectou o lábio inferior para fora e olhou para ele com os olhos semicerrados por trás dos óculos de sol. Suspirou prolongadamente, mas ele não se virou. Amanda bateu com a porta.
Jordan tinha o telefone encostado ao ouvido e ouvia as palavras de Lillie. Fez algumas perguntas, disse que compreendia e agradeceu o telefonema. Depois, tacteou cegamente com o auscultador na mão até finalmente o conseguir desligar. Sentou-se na cadeira do canto do quarto.
Ficou lá sentado toda a noite, sozinho, enraivecido, a suar e, finalmente, quando chegou a madrugada, reconheceu a terrível perda. Desaparecera a única coisa boa e correcta que tentara fazer na vida. A sua única filha morrera.
Durante a noite, Lillie deitara-se na cama por uma hora ou duas, mas não conseguira dormir. O xerife tinha proibido Lillie e Pink de regressarem ao local do crime ou ir à morgue.
O médico fora lá a casa a meio da noite, mas ela recusara o calmante que ele lhe receitara. Ninguém a deixava sair de casa e, como tal, às quatro da manhã começou a limpá-la.
As janelas da cozinha estavam agora completamente nuas. Sem protecção, brilhavam à pálida luz da manhã. As cortinas de algodão, ainda húmidas da lavagem matinal, estavam amontoadas dentro de um cesto de roupa sobre a mesa da cozinha. Lillie estava inclinada sobre a tábua de engomar, colocada a meio, alisando meticulosamente o primeiro conjunto de cortinas. Ouviu o toque na porta das traseiras, mas nem levantou a cabeça do que estava a fazer.
- Grayson - disse ela.
- Sim, mãe... - Grayson, que estava apoiado sobre a mesa da cozinha com a mão na testa, levantou-se imediatamente e dirigiu-se à porta das traseiras. Antes de lá chegar, a porta abriu-se e Brenda Damiels entrou de rompante na cozinha. O seu cabelo louro já com brancas estava desalinhado e as rugas em torno da boca e na testa pareciam ter sido feitas com um ancinho. Tinha na mão um prato coberto com folha de alumínio. Parou e ficou a olhar para a amiga.
- Lillie, que estás a fazer? - exclamou.
Lillie olhou para ela com uma expressão quase assustada e os olhos escuros encovados no rosto pálido. O ferro tremeu-lhe na mão cerrada. Do seu cabelo escuro sobressaíam os caracóis desgrenhados.
- Estou a engomar.
- Acaba com isso, querida - pediu Brenda.
Lillie pousou cuidadosamente o ferro e dirigiu-se à amiga. Abraçaram-se as duas. Brenda soluçava enquanto Lillie olhava fixamente, sem chorar, por cima do seu ombro.
- Oh, Lillie-Lou - sussurrou Brenda, usando um nome que não lhe chamava desde a infância. - Não consigo acreditar. Não consigo.
- Acredita - disse Lillie em voz baixa.
- Senta-te aqui - pediu Brenda, conduzindo a relutante Lillie a uma das cadeiras da cozinha. - Gray, meu querido, isto é doce de leite com manteiga - disse ela, apontando para o prato que poisara na mesa. - Sei que gostas, meu amor.
- O Gray tem sido um bom rapaz - comentou Lillie, absorta, como se estivesse a descrever uma criança pequena. Tem-me ajudado muito. Ajudou-me a tirar as cortinas e, quando acabar de as engomar, ajudar-me-á a pendurá-las.
Lillie tamborilava impacientemente com os dedos na mesa. Brenda agarrou na mão inquieta e prendeu-a.
- Como é que o Pink está a lidar com a situação? Lillie encolheu os ombros.
- Não sei. Ele está... ele voltou ao... voltou lá esta manhã.
- Porquê? Meu Deus! Como é que ele suporta estar naquele sítio?
- Queria falar com o xerife. Acho que só quer saber se encontraram alguma coisa. Sabes, uma pessoa sente-se tão inútil. Não se consegue acreditar que a pessoa que fez isto ande por aí a passear, a ler o jornal ou a tomar um bom pequeno-almoço...
- Eu sei... - disse Brenda. - Eu sei. Matava-o com as minhas próprias mãos. Continuam a pensar que foi o taRonme Lee Partin. Foi o que ouvi na televisão.
- Não sei, Brenda. Presumo que seja possível. Mas porquê? Porquê?
- Porque não passa de um animal - afirmou Grayson, pegando num pedaço de doce.
Bem - disse Brenda, olhando para Gray como que a
pedir perdão - Ela foi... foi... molestada?
O médico legista examinou-a ontem à noite no local do
crime. Segundo afirma o xerife, não lhe pareceu - observou Lillie com a voz presa. - Saberão mais quando... a autópsia. Porém, é prováveque não.
- Graças a Deus - disse Brenda.
- Este doce está um espectáculo, tia Brenda - afirmou Grayson.
- Que bom, querido. bom proveito. Mas o que é que ela estava a fazer junto aos Três Arcos àquela hora da noite? Grayson, sabes de algum motivo que a tenha levado a ir para lá?
Grayson baixou o prato de doce e ficou a olhar para ela.
- Devia ter vindo para casa comigo. Eu só andava por ali com os meus amigos. Não a vi durante bastante tempo. Pensei que tivesse vindo para casa. Não faço ideia por que razão ela foi para junto do rio. Fica na direcção oposta de casa.
- A não ser que estivesse a caminho de casa - disse Brenda -, e alguém a tivesse apanhado.
- Não sei - proferiu Lillie, cansada. - Não consigo pensar.
- Claro que não consegues - disse Brenda. - Desculpa. Ouviu-se a campainha da porta da frente.
- Gray - chamou Lillie.
- Sim. - Antes de ela terminar a frase já ele estava de pé e saíra a porta da cozinha. Ela sorriu perante a figura que desaparecia. - Ele está a servir-me de intermediário. Não consigo enfrentar as pessoas e isto já começou há horas. Não sei como é" que descobrem as coisas tão depressa. - Lillie gesticulou vagamente na direcção do balcão da cozinha, que estava cheio de travessas cobertas e pratos de comida. - Querem ajudar acrescentou ela.
- Eu sei - afirmou Brenda. - Tive de vir quando soube pelo Pink Mas porque é que não me telefonaste ontem à noite?
Lillie fez um fraco sorriso à amiga.
- Conheço-te muito bem e sei que precisas do teu sono de beleza.
Brenda começou novamente a chorar, limpando as lágrimas a um Kleenex ensopado que tinha na mão.
- Não pode ser, Lillie. Aquela coisinha tão fofa. E depois de tudo o que passaste! Antes de te casares com o Pink levámo-la àquele hospital em Pittsburgh. Lembras-te?
Lillie anuiu com a cabeça e os seus ombros estreitos começaram a tremer. As lágrimas brilharam nos seus olhos escuros e correram-lhe pelas faces.
Brenda agarrou as mãos da amiga.
- Chora, querida. Precisas de chorar.
- Tenho de terminar de engomar as cortinas - disse Lillie a soluçar.
- Por amor de Deus, mulher. Que loucura! - exclamou Brenda. - Eu acabo as malditas cortinas - disse ela, irritada, levantando-se e tirando o tecido amarfanhado do cesto.
Grayson apareceu à entrada da cozinha com uma expressão de pedra no rosto.
- Tens visitas - anunciou.
Lillie ia começar a protestar, mas Gray interrompeu-a.
- Não se quis ir embora.
Lillie olhou para cima e viu o homem em pé atrás de Grayson à entrada da porta. A primeira coisa em que pensou foi que era muito peculiar ver Jordan Hill de gravata. Nem no dia do seu casamento a usara. Tinha os olhos inchados, mas o seu bonito rosto estava composto.
Brenda atirou com a cortina para cima da tábua de engomar e arrancou o ferro do descanso.
- Ora, quem diria - exclamou ela com uma voz desagradável. - Que bom ter aparecido.
- Olá, Brenda - saudou ele, com o olhar fixo em Lillie. Depois abanou a cabeça, baixou os olhos e meteu as mãos nos bolsos das calças. - Lillie - disse, quase num sussurro.
Ela apercebeu-se da inflexão da sua voz, que se assemelhava a um sino escuro e silencioso que ressoava na sua direcção, dizendo o seu nome como se fosse um apelo. Lillie tivera um momento feliz na sua vida, a ocasião arrebatadora em que Michele fora concebida, em que não conseguia recusar nada àquele homem, se ele pronunciasse o seu nome. Aquela sensação estranha de déjà vu desapareceu, dando lugar a um estado sombrio e cinzento.
- Como te sentes? - perguntou ele. Lillie encolheu os ombros e afastou o olhar. - Há mais notícias? -Não. Nada.
- A minha mãe queria vir, mas o médico deu-lhe um sedativo. Está muito abalada.
- Eu sei. Telefonei-lhe - disse Lillie, sem forças. - Não quero que adoeça. O funeral já vai ser suficientemente doloroso...
- Preciso de saber o que queres que faça - insistiu Jordan. - Está tudo pronto?
Lillie fez uma expressão palidamente surpreendida.
- Se queres alguma coisa de especial para ela... - Não, não! Concordo com o que decidires. Fez-se silêncio e Gray declarou numa voz alta e firme: - A mãe está cansada.
- O funeral é amanhã - informou Lillie. - O corpo não ficará exposto. É tudo o que se sabe de momento. Eu telefono a informar-te dos preparativos.
- Está bem - anuiu Jordan. - Estou em casa da minha mãe. - Olhou para Brenda e Grayson, que se tinham aproximado de Lillie e a rodeavam, como sentinelas. - Vou andando.
- Dá os meus cumprimentos a Miss Bessie - disse Lillie
com determinação.
Jordan acenou com a cabeça.
- A única neta...
- Não - interrompeu Lillie, levantando uma mão para o impedir de continuar.
A porta das traseiras abriu-se e Pink entrou. Parou imediatamente quando viu Jordan Hill dentro de sua casa. Os dois homens olharam um para o outro sem saber se deveriam oferecer as condolências ou até mesmo aceitá-las. Jordan quebrou o silêncio.
- Já se sabe alguma coisa?
- Ainda não apanharam o malandro, - disse Pink - se é a isso que te referes.
- Então, o xerife tem a certeza de que foi o Partin... afirmou Jordan.
- Claro que foi o Partin - murmurou Pink.
Um silêncio desconfortável invadiu novamente a cozinha. Lillie olhou para Jordan.
- Nós entramos em contacto contigo - disse. Jordan acenou com a cabeça e virou-se para sair. Depois
olhou para trás, na direcção de Pink.
- Sempre foste um bom pai para ela, Pink - disse. A Michele estava sempre a dizer isso.
Pink olhou para ele como se quisesse atirar-se ao pescoço de Jordan.
- O que é isto? Uma piada de mau gosto? - gritou. Jordan abanou pesadamente a cabeça e voltou a olhar para
Lillie.
- Não tem importância - disse ele. - Estarei em casa da minha mãe.
Lillie sentia o olhar de Jordan sobre si, mas não conseguia olhar para cima. Compreendia o que ele queria dizer. Só estava a tentar consolar Pink mas não valia a pena explicar. As suas palavras de consolo não eram bem-vindas. Pensou como ele a teria achado velha e mal arranjada... e ficou aliviada quando ouviu a porta fechar.
Na terça-feira de manhã começara a cair uma chuva fina mas persistente, e ainda chovia quando as pessoas começaram a reunir-se no exterior da Igreja Baptista do Rio Jordão, esperando pacientemente a sua vez de se sentar para os serviços fúnebres. Era uma chuva fria, o prenúncio do Outono em Cress County, e infiltrava-se pelos colarinhos das pessoas que integravam o cortejo fúnebre, enquanto os homens da agência funerária, sobriamente vestidos de negro, orientavam as pessoas para dentro da igreja e tentavam arranjar uma maneira de os acomodar dentro do recinto.
Aliene Starnes aproximou-se solenemente da multidão de adolescentes que se abrigava sob os guarda-chuvas no relvado da igreja. Abraçou algumas raparigas que choravam. Os rapazes mantinham-se afastados, parecendo sentir-se desconfortáveis de gravata. Todos os alunos do liceu haviam sido oficialmente dispensados das aulas e Aliene tinha a sensação de que metade do condado faltara ao trabalho de manhã para acompanhar o funeral. Aliene sentia um aperto no estômago. Custara-lhe bastante decidir o que iria vestir. Não tinha roupa preta porque a mãe dizia que era muito sofisticada. Decidira-se por um vestido azul-marinho, que a mãe assegurara ser apropriado. Também era muito importante mostrar a Grayson a sua compaixão. Não conhecera Michele muito bem. Era bastante tranquila e as amigas não eram tão populares como o grupo de Gray. Porém, partia-lhe o coração pensar no horror que seria perder uma irmã. Nem conseguia imaginar.
Depois de saber do homicídio, tivera medo de telefonar. Desejava desesperadamente ajudá-lo, consolá-lo, mas achou que não iria encontrar as palavras necessárias. Finalmente, reunira todas as suas forças e fora de bicicleta até à casa de Gray. Este abrira a porta com uma expressão sombria e cansada que lhe provocou uma dor no coração. Tentou que falasse, mas ele foi para o quarto e sentou-se na beira da cama. Tinha o rádio a tocar e o seu olhar vazio passava por ela como se estivesse sozinho. O corpo jovem estendeu-se na direcção de Gray como se se tratasse de uma varinha de condão e Grayson de um raio de luz oculto, mas não conseguiu tocar-lhe. Ele olhava para a frente, tamborilando com os dedos ao ritmo da música. Ao regressar, muito desconsolada, a casa, a mãe dissera-lhe que cada pessoa lidava com a dor à sua maneira.
Agora Aliene estava entre os amigos, sondando a multidão à procura da sua amada cabeça loura, mas não a viu. Quando olhou à sua volta reparou numa rapariga muito bonita, com um cabelo tão negro e brilhante como pele de foca, que avançara e ficara junto à multidão de adolescentes. Aliene reconheceu-a. Era a rapariga que chegara naquele Outono, transferida de Chicago e que se chamava Emily Crowell. Parecia desconfortável e deslocada. Ninguém falava com ela. "Foi muito bonito da sua parte comparecer ao funeral", pensou Aliene. Pediu desculpa aos amigos e dirigiu-se à rapariga. "Num dia como este", pensou Aliene, "temos de nos lembrar de que a vida pode ser curta e que é importante sermos bons uns para os outros."
O serviço fúnebre estava marcado para as dez horas, mas devido à grande quantidade de participantes, começavam a ser colocadas mais cadeiras nas alas e no átrio da casa paroquial, onde o serviço poderia ser ouvido através de altifalantes. O cheiro a perna de porco assado e vegetais cozidos, que vinha da cozinha localizada na cave da igreja, começou a espalhar-se pelo edifício enquanto as mulheres que faziam parte da congregação preparavam comida para todos. O dobre a finados dos sinos do campanário pareciam indicar pressa.
No assento traseiro do carro parado diante da igreja, Lillie, Pink e Grayson observavam em silêncio. O carro funerário estava estacionado à sua frente. Enquanto olhavam pelos vidros fumados, viram um Cadillac azul-prateado com matrícula do Texas parar em frente à igreja; do banco da frente saíram o irmão mais velho de Pink Haynes, e sua mulher, Edna. Quando Haynes e Edna apareceram em casa deles na noite anterior, Haynes usava botas de vaqueiro de pele de avestruz e um anecom uma gema do tamanho de uma noz. Haynes Burdette fizera fortuna no negócio de automóveis em Houston. Ele, Edna e. os três filhos viviam numa mansão com piscina aquecida e estufa. Pink raramente via o irmão, mas, quando isso acontecia, parecia ter um efeito nefasto, pensava Lillie. Durante dias falava compulsivamente sobre a inteligência e sucesso de Haynes e seguia-se um período de depressão.
- Olha para aquele casaco - disse Pink - Aquilo é Ultrasuede. Será que não vê que está a chover?
"Que importância tem isso?", pensou Lillie, cansada, mas não disse nada. Parecia demasiado trivial. Viu Haynes a subir os degraus da igreja à frente de Edna. No carro alugado que parara atrás do Cadillac, Lillie viu a mãe, Jo Evelyn, e o padrasto, Ron Henkle. Tinham vindo da Florida onde viviam num condomínio em Cocoa Beach. Jo Evelyn estava muito bem arranjada e, como sempre, dava nas vistas. As pessoas chegavam a elogiá-la, fazendo de conta que acreditavam que ela era irmã de Lillie e Jo Evelyn nunca duvidara da sua sinceridade. Ron segurava protectoramente o chapéu-de-chuva por cima da cabeça loura da mulher enquanto ela subia os degraus. Sem se saber como, a multidão estava a ser verdadeiramente encaixada dentro da igreja, e Shirley Lynch, a agente funerária de Felton, decidiu que era altura de começar. Afastou-se do carro funerário e bateu na janela.
- Acho que vamos começar - disse suavemente. - Estão prontos?
Pink olhou para Lillie, que estava imóvel, vestida de negro.
- Querida?
Lillie acenou com a cabeça.
Shirley Lynch bateu na capota do carro num gesto de encorajamento e regressou para junto do carro funerário. O motorista fê-lo avançar lentamente até à porta da igreja e depois deu a volta para abrir a porta de trás. Lillie viu juntarem-se os jovens que iam transportar o caixão.
Não houvera velório. O caixão permanecera fechado. Não pelo facto de os golpes fatais terem desfigurado Michele ou por haver demasiado sangue. Shirley tinha, cuidadosa e dolorosamente, ocultado os ferimentos. As lesões fatais eram internas, mas, apesar do orgulho que possuía em relação à sua competência cosmética, Shirley aconselhara, com a ternura que lhe era própria, que o caixão não fosse aberto.
- As pessoas são muito curiosas - dissera com um encolher de ombros. - Faz parte da natureza humana.
O conselho de Shirley fora desnecessário. Lillie já decidira que ninguém teria oportunidade de olhar para a sua menina.
- Vamos! - disse Pink.
Saiu do carro e ajudou Lillie. Grayson, apesar da expressão apreensiva e tensa, estava lindo com o seu blazer escuro e cabelo louro-claro em contraste com o céu cinzento. Atravessou a rua com os pais, e todos esperaram na base da escadaria da igreja que os jovens levantassem o caixão e subissem os degraus. Do interior da igreja, chegavam até eles os acordes tristes de Precious Memories, cantada por vozes trémulas.
O olhar de Lillie estava preso ao caixão, mas apercebeu-se do estado irrequieto de Grayson que, ao seu lado, murmurava furiosamente. De início, tentou ignorá-lo, mas as suas palavras pareciam um ruído persistente de rua, que a acordavam do seu sonho. Virou para ele o rosto sem expressão.
- O que se passa? - perguntou ela.
- O que é que eles pensam que estão a fazer aqui? protestou Grayson. - Não acredito.
Lillie virou-se e olhou. A família de Ronnie Lee Partin aproximava-se da igreja. O irmão de Ronnie Lee, Dwight, usando a sua roupa de domingo, segurava o braço da mãe já idosa, Ora. A esposa de Dwight, Debbie, pouco mais velha que Michele, caminhava a seu lado com os olhos postos no chão, segurando a parte da frente de uma gabardina cor de lavanda que fechava na zona do estômago devido à gravidez. Os Partin, incluindo Ronnie Lee, quando não estava na prisão, viviam juntos, fora da cidade, numa rulote e muitos consideravam-nos lixo, se bem que Dwight tivesse um emprego respeitável como distribuidor de mobiliário, apesar da falta de uma educação formal. Dwight era um jovem corpulento com uma personalidade agradável. Ao contrário do irmão, nunca tivera problemas com a lei, e a maioria das pessoas gostava dele. Era ele que conduzia a família, com uma expressão de determinação triste, à porta da igreja. Fingiu não ouvir os comentários de Grayson, se bem que a mulher tivesse olhado para cima com receio.
- É preciso ter lata - disse Grayson. - Vir cá.
- Cala-te, Grayson - ordenou Lillie.
O rosto largo de Dwight Partin corou, mas ignorou as palavras. O silêncio reinava entre as pessoas que estavam no exterior da igreja. Pink que apertava a mão a outros homens, virou-se e viu o seu filho sair do lado de Lillie.
Grayson aproximou-se de Dwight Partin e barrou-lhe o caminho. Dwight agarrou no braço frágil da mãe e fixou os olhos azuis gelados de Gray.
- Não deviam ter vindo - disse Grayson. - Se não fosse o seu irmão, a minha irmã ainda estaria viva.
Ouviu-se um murmúrio entre os observadores.
- Grayson, pára com isso - exigiu Lillie, mas o rapaz manteve-se teimosamente no caminho de Dwight Partin.
- Não me ouviu? - disse ele.
Dwight não respondeu. A mãe tentou puxá-lo para que continuassem, mas Grayson moveu-se para o lado, continuando a bloquear o caminho.
- Pink - chamou Lillie -, vem cá.
Porém, Pink estava a olhar para o filho como que fascinado e, simultaneamente, um pouco assustado. Naquele momento, Jordan, a mãe, Miss Bessie Hill, e a irmã mais velha, Jen^e, que tinha vindo de autocarro desde Chattanooga, aproximavam-se daquele grupo de gente zangada. Miss Bessie dirigiu-se imediatamente à idosa Ora Partin e pegou-lhe no braço, falando-lhe com carinho. Grayson ficou momentaneamente espantado com a amizade entre as duas mulheres, que pareciam ignorá-lo. Jordan falou baixo ao ouvido de Grayson.
-Vamos tentar passar por tudo isto sem problemas disse.
Grayson virou-se para Jordan.
- Não me diga o que devo ou não fazer - protestou ele, vendo-se uma extrema raiva no seu belo rosto.
O xerife Ansley, que acabara de chegar com o filho, interveio. Tyler ficou para trás, exibindo um ar doente e de ressaca. O seu cabelo pouco cuidado enrolava-se sobre a gola de um blusão de couro rasgado.
- O que se passa aqui? - perguntou Royce. Pink estava junto a Grayson.
- Não há problema nenhum. Vamos entrar - disse para o filho.
Grayson respondeu ao xerife com a voz a tremer. •-Não deviam estar aqui, sobretudo depois do que o irmão fez.
- Eu disse-te que era melhor não vir - balbuciou Debbie Partin.
- Cala-te, Debbie - ordenou Dwight. - Ele não sabe o que está a dizer.
- Guarda as tuas acusações para ti próprio - ordenou Royce a Grayson com um ar muito sério. - Estas pessoas estão aqui para apresentar os seus respeitos. Deixa-os estar.
Pink agarrou no braço de Grayson e começou a puxá-lo.
Grayson lançou um olhar furioso a Dwight Partin e depois endireitou a manga do casaco no sítio em que Pink puxara.
Os dentes de Lillie começaram a bater enquanto os observava, o que em parte era devido à chuva que lhe escorria pelas costas como um dedo frio. No entanto, a componente nervosa era maior, os nervos vibravam como as cordas de um violino e estava a fazer um esforço enorme para se manter de pé. Recusara-se a tomar um calmante. Tinha uma vaga ideia de que era imperativo sentir tudo, estar vigilante e sofrer, como se isso a mantivesse mais perto de Michele. Agora que a insultada família Partin subia resolutamente as escadas até à igreja, sentiu uma estranha piedade. Era preciso coragem para ir até ali naquele dia. Deviam saber o que as pessoas diziam deles.
Pink falava em voz baixa com o xerife enquanto as últimas pessoas eram arrumadas dentro da igreja. Lillie reparou que Al' Iene Starnes entrava relutantemente na igreja e que os seus olhos banhavam Grayson com um olhar terno de compaixão antes de a sua cabeça ruiva desaparecer no vestíbulo escuro. Royce Ansley virou-se, olhando para o filho com um ar triste e significativo, tentando empurrar o rapaz para o sítio onde Lillie estava, a tremer de frio.
- Os meus sentimentos, Mistress Burdette - murmurou Tyler.
O olhar de Royce estava preso ao filho enquanto acenava com a cabeça a Pink.
Lillie olhou tristemente para o rapaz com a sua tez doentia e as mãos enterradas nos bolsos das calças de ganga. Os seus modos eram quase rudes, mas tinha um ar de tristeza secreta que lhe tocava o coração. "Perder a mãe com aquela idade deve-o ter magoado muito", pensou Lillie. "Deve-lhe ser tremendamente difícil vir a outro funeral." De qualquer modo, os miúdos daquela idade tinham medo de ir a funerais. Estendeu a mão e apertou a do rapaz. Ele deu um salto quando sentiu o seu toque e olhou para ela com uma expressão assustada nos seus olhos escuros e raiados de sangue.
- Tem calma, Tyler - disse ela rapidamente. - Obrigada por teres vindo.
O rapaz desviou o olhar. Fez um breve aceno de cabeça a Grayson e a Pink e escondeu-se atrás do pai.
- Entremos - disse Pink.
As pessoas encolheram-se no vestíbulo abrindo alas para que a família pudesse passar. Lillie estava inclinada sobre o braço firme e jovem de Grayson, descendo lentamente até aos bancos da frente. Quando se ia sentar, olhou para o outro lado da ala e detectou Jordan sentado entre a mãe e Jeni Rae.
Os seus olhos encontraram-se e entre eles passou uma expressão de pesar. Lillie afastou imediatamente os olhos e fixou Bessie. Bessie fora uma verdadeira avó para Michele, estragando-a com mimos, fazendo-lhe os vestidos e deixando-a ajudar na cozinha. Fora a avó que Jo Evelyn nunca quisera ser. Fazia-a recordar a sua própria avó.
Pink remexeu-se no banco.
- Que grande afluência - comentou ele.
Lillie conseguia perceber o orgulho na sua voz e soube imediatamente em que é que ele estava a pensar. Conhecia-o demasiado bem. Naquele momento, o marido acalentava a esperança de que Haynes ficasse impressionado. Queria que o irmão pensasse que aquela imensa multidão reflectia a sua posição social no condado. Lillie mordeu o lábio para não dizer algo de perverso. "Ele não consegue evitá-lo", pensou. "Deixa-o em paz."
Os seus olhos viraram-se novamente para o caixão quando o reverendo Luttrano subiu para o púlpito. O reverendo era um sexagenário. Tinha baptizado Lillie e os seus filhos e também a maioria das pessoas que estava sentada na igreja. Começou o serviço com o seu tom familiar e sincero. Lillie conseguia ouvir as vozes que flutuavam à sua volta, mas continuava a ter a sensação de que estava sozinha numa sala silenciosa. Só ela e a sua filha, fechada para sempre naquele caixão.
Subitamente, reparou que Grayson, sentado a seu lado, olhava para o relógio; depois, suspirou suavemente e voltou a virar os olhos para o altar. Lillie levantou a cabeça e olhou-o fixamente.
- Estás aborrecido? - sussurrou, zangada. - Tens algum compromisso?
Grayson reclinou-se e olhou para ela, como que espantado com a pergunta.
- Vá lá, mãe. Isto parece um pesadelo. Lamento, mas gostaria que tudo já tivesse terminado. Não consigo acreditar que isto esteja a acontecer.
"Ele tem razão", pensou Lillie. "É uma espécie de tortura estar aqui sentado, a olhar para o caixão, sabendo que é o fim." Sentiu-o estender o braço e pegar-lhe na mão. Ela apertou-lha e sorriu-lhe fugidia e dolorosamente.
- Quando uma coisa destas nos acontece - disse o reverendo Luttrano, - sentimo-nos zangados. Perguntamos: "Porque é que Deus permitiu que acontecesse à nossa família?" Queremos que alguém pague por isto, por ter cometido um crime tão horrendo.
"Meus amigos. Não vos sei responder, pois Deus sabe o que faz. Todavia, digo-vos que, enquanto sentirem ódio, sofrerão. A vingança não é solução. Temos de aprender a perdoar, pois, de outro modo, nunca teremos paz na vida.
"A Michele encontrou a paz. Esta criança... - A voz do reverendo quebrou-se por um instante, mas esperou em silêncio até recuperar a compostura. - Esta criança está agora junto a Deus. Está sentada a seu lado, é um dos seus anjos e sussurra perdão aos nossos ouvidos.
As lágrimas de Lillie caíram-lhe sobre as mãos geladas. Sentada entre o marido e o filho, chorava devido ao vazio que seria o resto da sua vida sem Michele. À sua esquerda, o corpo possante de Pink abanava devido aos soluços. À sua direita, a mão seca de Grayson apertava a sua como se a quisesse partir.
No dia seguinte ao enterro de Michele Burdette, o reverendo Ephraim Davis contemplava seriamente as suas opções. Sabia muito bem qual era o seu dever, mas estava a oferecer resistência. Passara a maior parte da sua vida a evitar os problemas da gente branca e sempre se dera bem com isso.
No entanto, desde segunda-feira de manhã, ao ouvir as notícias na rádio enquanto estava a dar graças pelo pequeno-almoço, sentia-se preocupado com o homicídio da rapariga branca e essa preocupação começava a dar sinais: a tensão arterial tinha subido. Começava a senti-lo, e os medicamentos habituais não estavam a fazer efeito. Andava a dormir mal. No dia anterior fora ao funeral e evitara andar de carro por aquela parte da cidade. Naquela manhã, sentia que não era capaz de evitar o assunto nem mais um dia.
"Se pudesse falar com Elizabeth", pensava ele. Era sensata e, à sua maneira, uma pessoa forte. Durante os trinta anos em que tinham estado casados, confiara-lhe muitos dos seus problemas mais difíceis. Contudo, Elizabeth decidira ficar em Memphis quando ele fora chamado a assumir o cargo na paroquia de Felton durante um mês. O reverendo Davis era um daqueles pastores que circulavam de acordo com as necessidades. Tal como o pai e o avô, viajara pelo grande estado do Tennessee, visitando todas as paróquias de população negra espalhando a palavra de Deus e gozando da hospitalidade das pessoas de cada cidade. Ao contrário do avô, que andava & carro puxado a cavalo, Ephraim viajava numa carrinha FOT"
Pintada em dois tons de verde. Algumas vezes, Elizabeth ia com ele, mas nas visitas mais longas, quando substituía alguém durante mais tempo, ela ficava em Memphis com a filha e netos. Elizabeth estava habituada às viagens de fim-de-semana do marido. Era assim desde o dia em que se tinham casado, mas nessa altura ela ia sempre com ele, gostando de viajar e dos paroquianos que conheciam. Todavia, à medida que a idade fora avançando, começara a preferir evitar longas estadas em casa de pessoas desconhecidas. Gostava de permanecer no conforto da sua própria casa, na sua cama coberta por uma colcha com rosas estampadas e passar todo o tempo que podia com os netos. Achava-os exóticos devido aos seus nomes africanos e à coragem que manifestavam. No seu íntimo, dava-lhe muito prazer o facto de não terem os mesmos medos que ela. "Por um lado, ainda bem!", pensou Ephraim. Ficaria terrivelmente preocupada com o sarilho em que ele estava metido. Tudo o que tinha a ver com violência assustava-a bastante. Pensara em telefonar-lhe, mas Bill e Clara Walker, os seus anfitriões, tinham o telefone na sala de estar e ele não poderia explicar a situação a Elizabeth sem que toda a gente o ouvisse. Não! Teria de escutar a sua própria consciência e agora, um dia depois do funeral da rapariga, tomara uma decisão, Tinha a incumbência de dizer o que sabia. Vira a rapariga e o tipo que provavelmente a assassinara. Não era que, na altura, suspeitasse de alguma coisa. Se isso tivesse acontecido, teria evitado todo o mal. Porém, não havia maneira de saber e era demasiado tarde para os "ses". Entrou na cozinha onde Clara Walker estava a lavar a louça do almoço. - Posso usar o seu telefone, irmã? - perguntou. -- Claro, reverendo. Esteja à vontade. O reverendo Davis foi à sala e marcou o número do xerife do condado. Pensara tanto em telefonar-lhe que já decorara o número. Quando Francis Durham atendeu, pediu para falar com o xerife.
O xerife não está - disse o adjunto.
- Onde posso contactá-lo? - perguntou o reverendo cortesmente.
- Ainda pode demorar algum tempo - respondeu Francis - Está no local do crime.
- Muito bem. Obrigado - disse o reverendo. Desligou o telefone e ficou perdido nos seus pensamentos,
passando a mão pela face já enrugada. Clara Walker entrou na sala, limpando as mãos ao avental.
- Tenho de sair, Clara - comunicou ele.
- Volta para almoçar? - perguntou a simpática velhota.
- Sim! Sim! Muito antes do almoço. Espero... - disse o reverendo.
Na manhã seguinte ao funeral da filha, Jordan Hill acordou no quarto da sua infância. Sentia o cheiro dos biscoitos que estavam no forno, enquanto escutava um pequeno rádio sintonizado na frequência que emitia o programa sobre os Evangelhos, que a mãe ouvia sempre. A sua voz clara e determinada pronunciava as palavras: "Quando se faz a chamada para o Além."
Jordan ficou deitado de olhos fechados e deixou-se envolver pela dor agridoce do passado. Ali, naquela cama, sonhara com a fama e ardera de amor. Esgueirara-se para ala meio da noite em que Michele fora concebida, ainda com erva no cabelo do prado em que ele e Lillie se haviam deitado naquela noite de Verão. Não se tinham atrevido a ficar fora de casa toda a noite. Eram muito jovens. Os pais suspeitariam. Era uma vergonha, pensara ele. Agora, desejava que tivessem dormido naquele campo de odor doce nos braços um do outro, tal como ambos queriam. Antes de se aperceberem das coisas, estavam casados, tinham um filho e depois ele fora-se embora.
Ouviu a mãe bater à porta.
- Pequeno-almoço, querido - anunciou, com a mesma voz de sempre.
E agora estava ali na mesma cama estreita: perdera o casamento, deixara de ser pai e já não sonhava.
- Já vou - disse Jordan, levantando-se.
Jenrae já se encontrava à mesa e acabava de beber uma chávena de café. Jordan beijou a face seca de sua mãe e sentou-se em frente à irmã, que o olhava com uma expressão triste e nervosa.
- Tenho de voltar para casa hoje - afirmou ela como pedindo desculpa.
Tinha um bom emprego no campo da informática em Chattanooga.
- Eu sei - afirmou Jordan. Desdobrou um guardanapo e pegou num biscoito, se bem que não tivesse o menor apetite. __ Nem sequer te perguntei. Como vão as coisas com o teu novo companheiro? Chama-se Burt, não é? A mãe falou-me dele.
Jenrae olhou para a mãe, exasperada. Bessie continuava às voltas junto ao fogão, não prestando atenção à conversa, com os olhos avermelhados das crises de choro intermitentes e uma expressão distante.
- É boa pessoa - disse Jenrae com cautela. - Divorciado. Um fulano muito simpático.
Nunca tivera muita sorte com os homens. Durante a juventude fora sempre demasiado inteligente para os rapazes de Felton, mas não se podia orgulhar da sua beleza. Naquele momento, podia ser considerada uma solteirona, pensara Jordan, mas ainda tinha esperança de que ela encontrasse alguém e se casasse. Far-lhe-ia bem. Muito melhor do que quando era jovem.
- bom! Diz-lhe que te trate bem senão o teu irmão mais novo vai atrás dele - proferiu.
JenRae sorriu.
- A primeira mulher do Burt tinha uma enorme paixão por ti. Costumava ver a tua série televisiva.
- Uma mulher de bom gosto. E são poucas, devo acrescentar - disse Jordan. - Mesmo assim fez bem em livrar-se dela.
JenRae sorriu.
- Um dia destes podias ir a Chattanooga - propôs. Tenho um sofá-cama. Poderias conhecê-lo.
- Seria agradável.
Bessie encaminhou-se para a mesa e colocou uma frigideira de ferro em cima da mesa.
Milho frito - disse suavemente. - Sei que não comes disto lá no Norte.
- Não, senhora - disse Jordan, tirando uma colher cheia e colocando o conteúdo sobre um pãozinho, se bem que o seu estômago se revoltasse quando olhava para a comida. Porém, era o suficiente para agradar à mãe.
- Jordan, levas-me até à estação de autocarros? - perguntou JenRae.
- Claro que sim - disse ele. - De qualquer modo ia sair.
Talvez fosse por isso que tinha o estômago às voltas, pensara. Só a ideia de ir até ao sítio onde tudo acontecera fazia com que se sentisse desconfortável, mas, de qualquer modo, iria. Era como se quisesse provar a si próprio que era capaz de o fazer.
- És um bom irmão - disse ela, dando-lhe umas palmadinhas no cabelo já um pouco grisalho, enquanto se dirigia ao quarto.
A Ponte Velha dos Arcos, também conhecida como Três Arcos ou apenas Arcos, localizava-se no final de uma curta estrada poeirenta a curta distância do chamado Moinho da Noiva. Aquela forte ponte de pedra já fizera parte da rota principal dos agricultores locais, mas agora o moinho fechara e os agricultores levavam os seus camiões por pontes mais acessíveis, ligadas a modernas auto-estradas. As árvores e a vegetação tinham tapado a base dos arcos e quase escondiam a ponte. Normalmente, era um local sossegado e deserto, mas naquele dia a estrada estava apinhada de carros. Três delegados do xerife, dois uniformizados e outro de fato-macaco e camisola, esquadrinhavam os arbustos e a decadente margem do rio onde Michele Burdette morrera. A chuva do dia anterior enlameara toda a zona e já tinham as roupas sujas de vasculhar o local à procura da arma do crime. Alguns carros passavam pela estrada para trás e para a frente, e as pessoas paravam para ver. Aquele local familiar, mas já esquecido, recuperara o seu interesse desde o homicídio. As pessoas vinham ver e tremiam ao imaginar o cadáver na margem do rio, tal como fora descrito no jornal da região, uma rapariga frágil deitada de bruços nas ervas enlameadas, uma perna torcida pelo tronco de um salgueiro, braços estendidos para os lados e a cabeça esmagada pela força de algum objecto contundente que ainda não se sabia qual era.
O reverendo Ephraim Davis diminuiu a velocidade da sua carrinha Ford no cimo da estrada e estacionou. Não tinha vindo espiar ou especular e incomodava-o ver aquela gente toda que ia e vinha. Conseguia vê-los a abanar a cabeça e a falar uns com os outros enquanto regressavam aos carros, mas ele sabia que por baixo daquela exibição de compaixão, achavam toda a situação muito excitante. "bom", pensou, "é uma das facetas do ser humano e trata-se de uma cidade pequena. Um acontecimento como este homicídio não é assumido objectivamente."
A única coisa que o reverendo Davis queria era sair do carro, descer até à margem do rio, descobrir o xerife e contar-lhe o que tinha visto. Nessa altura, já poderia regressar a casa de consciência tranquila. Parecia ser uma coisa bastante simples, mas, no entanto, ficou no carro. Chegara outro carro, um Mercury Marquis novo em folha, e o reverendo reconheceu o homem que dele saiu. Era o farmacêutico local, Bomar Flood. Aquele homem hirsuto usava um laço e Wallabees e desceu a estrada em direcção à ponte. O reverendo reconheceu-o porque tinha ido à farmácia comprar o seu remédio para a hipertensão e, quando admitira ao farmacêutico que andava muito enervado, aquele homem curioso, mas amável, oferecera-lhe, quase à força, umas amostras de vitaminas que eram recomendadas para combater o stress. O reverendo experimentara as vitaminas, mas sabia que não havia cápsulas que lhe aliviassem os sintomas.
O reverendo Davis suspirou e mordeu o lábio. Da estrada principal emergia agora uma família: o homem, de camisa de trabalho de flanela e a esposa conduziam os seus dois filhos como se os levassem a um parque de diversões. Por que motivo decidira Deus que seria ele a ver o que acontecera naquela noite- Era praticamente um estranho no condado e mais um negro para expulsar.
Tentou imaginar-se a fazer aquelas revelações ao xerife. ^ dia do Fundador fora de festa, mas cansativo. Os negros de relton tinham celebrado com a sua fritada de peixe e, naquele caso, a segregação era uma questão de gosto pessoal. O reverendo Davis comera a sua refeição e decidira levar os restos a uma pessoa que fora afastada da paróquia e que vivia fora da cidade. Ao regressar a casa depois da visita à velhota, sentia-se cansado devido ao dia que passara e ao vinho de pêssego, e indignado com as dificuldades da mulher. Distraíra-se e entrara por uma estrada que não conhecia. Enquanto conduzia lentamente, procurando um desvio que conhecesse, vira aquela rapariga branca a descer a estrada em frente.
Numa situação normal, nunca teria parado para pedir informações a uma rapariga branca. Era o tipo de atitude que poderia provocar sarilhos. Já o sabia, mas estava cansado e não havia mais ninguém à vista. Como tal, encostara à beira da estrada e chamara-a amavelmente.
Aquilo que o reverendo recordava melhor era o facto de ela sorrir e não ter vacilado ao verificar que o fazia para um homem negro no meio de uma estrada solitária. Usava o seu colarinho eclesiástico e era velho, mas isso não teria a menor importância para muitos. Explicara-lhe rapidamente que estava perdido e procurava a Estrada 31. Ela dissera-lhe que continuasse a subir e que entrasse na estrada que conduzia à Ponte dos Três Arcos. Depois deveria fazer inversão de marcha, voltar pelo mesmo caminho e virar no quarto caminho à esquerda. Recordava-se de que ela se encostara à janela do carro com modos amáveis e ele ficara impressionado com os seus olhos. Eram calmos e sábios, como os de uma pessoa que já tivesse sofrido bastante. Lembrava-se de ter pensado isso a respeito da rapariga.
Ephraim Davis estremeceu. Talvez tivesse sido uma premonição. Fora assassinada naquela mesma noite e continuava a ser difícil de acreditar. Ela caminhava sozinha na direcção daquela estrada que conduzia à ponte. Ephraim agradecera-lhe a ajuda, lembrava-se de que ela tinha dito: "Boa noite, reverendo", e que aquilo lhe aquecera o coração. Era um homem optimista por natureza e sentia-se muito reconfortado quando havia um intercâmbio normal e cortês entre negros e brancos.
Ele subira até à entrada da referida estrada e virara. Estava a fazer inversão de marcha quando a luz dos faróis iluminaram uma figura que estava junto à ponte, e Davis conseguira ver um rosto assustado. Um fulano a urinar, pensara. Fizera rapidamente a manobra e afastara-se, deixando o homem nos seus afazeres privados. Agora, em retrospectiva, aquele breve momento assumira um carácter muito mais sinistro. Ela era uma rapariga simpática e amável e alguém a matara naquela noite junto à ponte.
Uma pancada seca na janela do carro fê-lo dar um salto e gritar de susto. Olhou para cima e viu um jovem agente a olhá-lo de sobrolho franzido, preparando-se para voltar a bater na janela com a coronha do seu revólver de serviço. O reverendo Davis olhou com uma expressão de espanto para o homem que lhe pedia que baixasse o vidro da janela. O reverendo cumpriu relutantemente a ordem. Olhou para o agente, com o suor a inundar-lhe a testa cor de café.
- Saia do carro - exigiu o delegado do xerife. O reverendo lambeu os lábios e abriu a porta.
- Devagar - ordenou o delegado.
Ephraim Davis saiu com esforço de trás do volante e ficou de pé junto ao carro.
- O que está aqui a fazer? - perguntou Wallace Reynolds. - Tem algum motivo para estar aqui?
- Não, senhor - respondeu Ephraim automaticamente.
- Só de passagem.
- A mim pareceu-me que tinha o carro estacionado. Ephraim sentia o coração a bater descompassadamente.
- Era só curiosidade. Como todas as pessoas que aqui estão - disse ele.
Se não está aqui a fazer nada, será melhor que se vá embora - ordenou Wallace, ignorando a referência aos outros observadores que iam e vinham sem serem perturbados.
O reverendo meteu-se imediatamente no carro e virou a chave na ignição. Aquilo não o surpreendia. Era exactamente o tipo de atitude que o fizera retrair-se durante tanto tempo. u reverendo adorava o Sul. Amava as pessoas, o clima e aquela terra tranquila e abundante. Era a sua terra e nunca a abandonaria. As pessoas davam-se muito bem desde que cumprissem regras. Se ele dissesse o que sabia sobre aquela rapariga, estaria a pisar o risco. Sabia, com uma certeza doentia, em que pensariam. Era um negro que abordara uma rapariga branca numa estrada solitária. Era só o que precisavam de saber.
O reverendo Davis afastou-se da berma da estrada e não olhou para trás, se bem que ainda tivesse vislumbrado o distintivo do delegado pelo espelho retrovisor.
Jordan Hill arrumou o seu carro alugado no local de onde acabara de sair a carrinha Ford verde. Ainda viu o delegado a anotar o número da matrícula da carrinha enquanto ela se
afastava. Jordan saiu do carro e subiu a estrada poeirenta. Não esperara encontrar todos aqueles polícias e observadores. Deixava-o furioso. Sentiu o súbito impulso de ir ter com aquelas pessoas, afastá-las e dizer-lhes que parassem de olhar para o sítio onde a filha fora morta. Simultaneamente, apercebeu-se de que estava demasiado habituado a Nova Iorque, onde o homicídio era quase uma coisa banal. Tudo era arrumado rapidamente para haver espaço para outro. As pessoas não ficavam muito tempo a pensar no homicídio de uma adolescente.
O delegado que estivera a anotar a matrícula meteu o bloco no bolso e passou por ele a caminho da ponte. Olhou para Jordan.
- O xerife está aqui? - perguntou Jordan. Wallace acenou com a cabeça.
- Está lá em baixo.
Jordan agradeceu-lhe e desceu a estrada. Na clareira junto à ponte viu Royce Ansley e Bomar Flood. Ambos olharam para ele enquanto se aproximava. Bomar estendeu-lhe a mão magra e Jordan apertou-a.
- Bem, Jordan Hill - disse Bomar enquanto lhe apertava a mão. - Há muito tempo que não nos víamos.
Royce ficou a olhar com uma expressão cansada nos seus olhos cinzentos.
- Não tive oportunidade de te falar no enterro - continuou Bomar. - Como vai a tua vida em Nova Iorque?
- Bem, muito obrigado - disse Jordan, com tristeza. Bomar ainda estava agarrado à sua mão.
- No entanto, são circunstâncias muito, muito tristes que te trazem a casa - disse ele.
Os olhos de Bomar estavam rasos de lágrimas ao olhar para o rio lamacento. Jordan conhecia Bomar desde sempre. Era um velho metediço sentimental, mas também um dos homens de negócios mais astutos e capazes do condado.
Jordan conseguiu libertar a mão e virou-se para Royce.
- Foi você que a encontrou - disse ele ao xerife num tom monocórdico.
Alem baixo - afirmou Royce. Um enorme salgueiro
estava inclinado sobre a ponte com os seus longos ramos quase a tocar a superfície da água. O xerife indicou o espaço entre a árvore e o esporão da ponte. - Estava ali deitada.
Jordan olhou para o local. Um agente encontrava-se de cócoras e, de lanterna na mão, fazia uma busca à margem lamacenta por baixo do salgueiro.
- Andam à procura da arma - disse Bomar, solícito.
- Muito bem - anuiu Jordan. - Já descobriram alguma coisa? Às vezes fibras ou cabelos são úteis...
- Sabemos que há análises laboratoriais, Mister Hil disse o xerife com sarcasmo. - O século vinte já chegou aqui ao nosso pequeno Cress County, no Tennessee.
- Aquele Ronnie Lee Partin - observou Bomar nervosamente, abanando a cabeça. - Sabíamos que não era boa rês, mas isto...
O xerife olhou penetrantemente para o farmacêutico.
- Não ajudes aos boatos sobre o Ronnie Lee. As pessoas estão a ficar muito excitadas e não temos provas que indiquem que foi ele.
Jordan olhou surpreendido para o xerife.
- Não acredita que foi ele?
Wallace Reynolds caminhou vagarosamente até ao local onde se encontravam e olhou para o outro lado do rio. Ao lado do jovem delegado, Royce parecia macilento e cansado, se bem que, calculava Jordan, estivesse na casa dos cinquenta. Era uma imagem remota do representante da ordem de olhos claros e ombros largos que Jordan romantizara na sua juventude.
- Ela não foi violada - declarou o xerife. - É o único motivo que conheço para um preso em fuga parar e incomodar-se com uma adolescente. De outro modo, continuaria a fugir.
- Faz sentido - disse Jordan.
Wallace franziu a testa ao ouvir as palavras do xerife. Depois, com uma voz calma e peremptória, afirmou:
- Eu acho que foi ele.
- Há muita gente que concorda contigo, Wallace - afirmou Bomar.
Royce suspirou.
- Uma coisa é certa: é melhor encontrarmos o rapaz antes que seja linchado.
Silêncio. Bomar virou-se para Jordan.
- Quanto tempo vais ficar por aqui?
- Até à próxima semana - disse Jordan.
- Ouvi dizer que vais dar uma pequena conferência no liceu - adiantou Bomar.
Jordan sentia-se alucinado com tudo o que aquele homem conseguia saber.
- Sim - confirmou. - A professora de música pediu-mo depois do funeral. Não consegui dizer que não.
- Ah, Miss Jones - disse Bomar. - Veio substituir a Lulene.
Lulene Ansley, a falecida esposa do xerife, dava aulas de Inglês e Teatro no liceu do condado quando Jordan ainda era aluno. Fora a sua professora preferida, uma mulher mundana de espírito ágil. A primeira a dizer que Jordan tinha muito talento e a encorajar as suas ambições. Estava grávida de Tyler no ano em que Jordan terminara os estudos. Miss Bessie mandara-lhe os recortes de jornal quando Lulene morrera de cancro há alguns anos atrás. Parecia-lhe tarde de mais para dizer a Royce o quanto lamentava.
- A Lulene era insubstituíve- observou, com sinceridade.
Royce olhou-o irado, como se só ele soubesse isso, e afastou o olhar.
- Não posso ficar aqui a conversar - disse ele.
- Xerife - retorquiu Jordan. - Só quero saber se posso ajudar de algum maneira neste caso da Michele.
Royce olhou-o com frieza.
- Acho que é um pouco tarde - declarou. - Devia ter pensado nisso há muitos anos.
Bomar Flood tossiu nervosamente e afastou o olhar. Jordan manteve-se no seu lugar. Nunca esperara que lhe atirassem pétalas de rosa.
- Pode ser - disse calmamente. - Mas agora estou zangado e quero saber se há alguma coisa que possa fazer.
- Nada - proferiu Royce com firmeza. - Estamos a empreender todos os esforços possíveis. Hoje todos os habitantes da cidade estão zangados. Creia que encontraremos o culpado.
- Lillie, não - disse Brenda, forçando fisicamente a amiga a sentar-se. - É demasiado cedo para começar a trabalhar. A Loretta e eu só passámos por aqui para ver como estavas. O funeral foi há dois dias, por amor de Deus.
Lillie esfregou a testa.
- Pensei que compreenderias, Brenda. Não posso ficar aqui sentada.
- Mas eu compreendo - disse Brenda com um ar sério.
- É a mesma história das malditas cortinas. Seque estás a tentar manter-te ocupada, mas esgotas-te nesse processo. Precisas de descansar.
- Não posso descansar - gritou Lillie. - Quando tento descansar continuo a vê-la ali deitada naquela margem...
- Querida, tens de descansar - insistiu Loretta Johnson, a negra que estava ao serviço de Brenda e Lillie em regime de part-time. - É muito duro para ti.
- O Pink está a trabalhar. O Grayson voltou para a escola
- protestou Lillie.
- São coisas diferentes - disse Loretta suavemente. Tu és a mãe.
As três mulheres ficaram em silêncio durante uns instantes. Os olhos de Brenda estavam cheios de lágrimas. Lillie agarrou a mão da sua velha amiga.
- Estou a pensar no que é melhor para ti, querida - insistiu Brenda.
Lillie afastou o olhar de Brenda, dirigiu-o para a janela, passando pela carrinha da Home Cooking e olhou para o céu cinzento. A humidade lá de fora parecia entrar pelas paredes da casa.
- Mas não imaginas como me sinto só aqui.
- Passarei por cá todas as tardes depois do serviço - afirmou Brenda.
- Obrigada.
- Vais ficar bem? - perguntou Brenda.
- Sim, fico bem.
Loretta vestiu o seu casaco verde e abotoou-o.
- O tempo mudou logo a seguir ao dia do Fundador -7disse ela. - A minha bursite já está a dar sinal.
- Foi o último dia bonito - observou Lillie.
Abriu a porta às duas mulheres e viu-as partir. Quando a carrinha já tinha saído da entrada da garagem e desaparecido, voltou para dentro de casa e tentou pensar em algo para fazer. Já limpara tudo o que havia para limpar. Foi ao quarto de Grayson para ver se havia roupa que precisasse de ser cosida. Abriu o armário e olhou lá para dentro. Nos cabides viam-se roupas novas que ela não conhecia, ainda com as etiquetas. Também havia uma raqueta de ténis.
"Quando é que ele comprou tudo isto?", pensou. "Quando é que começou a jogar ténis?" Um saco de couro fora descuidadamente atirado para o chão do armário e via-se um monte de camisas ainda dentro dos sacos de plástico. "Ele e o Pink devem ter ido às compras." Ela sabia que Pink o estragava com mimos e isso sempre a irritara. No que dizia respeito a amor e preocupação, sempre tratara as duas crianças da mesma maneira, mas comprava impulsivamente coisas para Grayson. Coisas que o rapaz na realidade não necessitava. Ou então levava-o às compras e gastava muito dinheiro. Era algo que nunca faria com Michele.
Mesmo assim, ao olhar para toda aquela roupa nova no armário, pensou como conseguira passar-lhe despercebida. Talvez não tivesse dado muita atenção à vida de Grayson no meio das suas preocupações com o trabalho e com Michele. Como que a confirmar o facto, reparou numa pilha de roupa para coser no canto do armário. "Não admira que tivesse de comprar roupa nova. Tudo o que tem precisa de arranjos." Pensou, com um sentimento de culpa, nas longas horas que passara a arranjar o vestido cor-de-rosa para que Michele o pudesse vestir no baile. Fora divertido fazê-lo, remendar a renda e sentir a quantidade enorme de tecido empilhada no seu colo. Enquanto trabalhava gostava de imaginar Michele com ele. Era muito mais agradável do que substituir os botões das camisas ou cerzir meias. Porém, não havia desculpa para negligenciar o filho daquela maneira, pensava ela. Inclinou-se e pegou na pilha de roupa. "Tomarei mais atenção", decidiu. Ele estava sempre tão ocupado a tratar da sua vida que parecia não reparar se ela estava, ou não, a tomar conta dele. Talvez fosse por isso que Pink lhe tinha trazido toda aquela roupa nova: porque tinha reparado que ela negligenciava Grayson.
"Nunca mais", jurou. Levou a roupa para coser para a sala e sentou-se. Estava a terminar de pregar os últimos botões que faltavam nas camisas quando chegou o telefonema do hospital. Há anos que Lillie era voluntária no Hospital de Cress County. Sentia uma enorme dívida de gratidão em relação a todos os estranhos que conhecera nos vários hospitais que a haviam ajudado nos piores momentos, lendo histórias a uma criança assustada para que Lillie pudesse dormir e levando-lhe café, pão ou jornais durante aqueles longos dias cinzentos. Mesmo assim, quando ouviu Mary Dean Hesketh, a coordenadora das voluntárias, do outro lado da linha, Lillie sentiu um choque de surpresa. Parecia uma voz vinda do Além.
- Sei que vocês estão a passar por momentos terríveis -- começou Mary Dean, - mas tenho aqui uma rapariga que precisa da tua ajuda, querida. Tem um bebé que está muito doente e necessita de alguma esperança. Pensei em ti.
Lillie não comentou a ironia da situação. Quando se passa muito tempo num hospital, aprende-se a ser objectivo sobre a vida e a morte. Mary Dean tinha razão. Lillie sabia o que significava precisar de alguma esperança. Era a pessoa indicada para o fazer. Disse a Mary Dean que iria, vestiu-se e saiu. Só quando chegou ao corredor do hospital e se encaminhou para o gabinete das voluntárias é que percebeu que não via gente desde o funeral. Sentiu-se irritada com o facto de as pessoas continuarem com a sua vida como se nada tivesse acontecido. Subitamente sentiu-se doente, anormal. Verificou os botões e fechos com os dedos a tremer para se assegurar de que não se esquecera de pregar nenhum.
Mary Dean, uma mulher robusta com uma pele imaculada, estava sentada atrás da secretária a beber uma Sprite Diet. Quando Lillie se sentou, reparou que Mary Dean não parecia ver nela nada de estranho. Devia estar com um aspecto normal.
- Foste um anjo, querida. A rapariguinha está lá em cima na maternidade e morta de susto.
- O que se passa com o bebé? - perguntou Lillie.
- Tem um pequenino buraco no coração. Está na Unidade de Cuidados Intensivos. Acho que o vão transferir para Nashville.
Lillie olhou para o arranjo de gerânios de plástico que se encontrava sobre a secretária de Mary Dean.
- É realmente uma situação muito familiar.
- Exacto - disse Mary Dean firmemente. - Tens a experiência, Lillie. Compreendes estas coisas. Agora quero que vás lá dentro e lhe digas que hoje em dia os cirurgiões são fabulosos e que as crianças são mais fortes do que parecem.
Lillie olhou para ela com uma expressão angustiada nos seus olhos muito abertos.
- E se começo a chorar?
- Não terá importância - disse Mary Dean com objectividade. - Ela sabe que és mãe. Pensará que estás a chorar por compaixão. É por isso que te mando a ti. Ela só vai dar ouvidos a outra mãe que tenha passado pelo mesmo.
E se ela pergunta como está a Michele agora? - inquietou-se Lillie.
bom, terás de fingir um pouco. Dir-lhe-ás que a Michele está óptima. Que a tua filha esteve ainda mais doente que o bebé dela, que sobreviveu, melhorou e que tudo acabou bem - Em parte, isso é tudo verdade, não é?
Lillie sentiu uma inesperada sensação de gratidão em relação a Mary Dean. Sabia bem ouvir dizer que a filha ficara boa e forte. Percebeu que agora as pessoas falavam de Michele no mesmo tom em que haviam falado quando ela estivera doente. Como se de algum modo tivesse uma mácula. Outra vez uma vítima.
- Vai lá - estava Mary Dean a dizer -, e depois diz-me como correu.
Lillie apontou o nome e o número do quarto e foi de elevador até ao piso da maternidade. Hesitou antes de entrar no quarto, temendo por alguns instantes não ser capaz de cumprir aquela missão. Depois, quando entrou e viu o rosto aterrorizado da jovem mãe, sentiu-se subitamente calma. Pensou no orgulho que Michele sentiria dela se conseguisse passar por tudo aquilo sem chorar.
A jovem estava demasiado perturbada para reparar na palidez da mãe que a confortava. O seu estado de espírito pareceu animar-se enquanto Lillie lhe dizia muito seriamente que eles tinham de lutar, ela e o filho, mas que poderiam ganhar. A mulher pressionou a mão de Lillie contra a face antes de esta sair do quarto e agradeceu-lhe sinceramente.
A visita também aqueceu um pouco o coração de Lillie. Absorta nos seus pensamentos, atravessou a sala de espera dos médicos que ficava no exterior da ala da maternidade e premiu o botão do elevador. Pensou ouvir alguém chamá-la e virou-se. Viu uma mulher grávida a levantar-se com grande esforço da cadeira e dirigir-se a ela.
- Mistress Burdette - disse a jovem. Lillie franziu o sobrolho.
- Sim?
- Tenho estado à sua espera. Estou aqui para o meu exame médico. - Colocou uma mão protectora sobre o próprio ventre. - Vi-a entrar e esperei por si. Preciso de falar consigo. - A rapariga percebeu pela cara de espanto de Lillie que não estava a ser reconhecida. - Sou a Debbie Partin - disse ela. - A mulher do Dwight Partin.
- Ah, sim! - disse Lillie com uma voz desconfiada.
Lembrava-se vagamente de ver no funeral de Michele uma rapariga frágil e em avançado estado de gravidez que usava uma gabardina cor de lavanda e que estava nas escadarias da igreja enquanto Grayson e o marido quase se esmurravam. Li]lie premiu novamente o botão do elevador.
- Poderíamos falar uns instantes? - pediu Debbie. - Sentarmo-nos em qualquer lado afastado? Não quero que ninguém me veja a falar consigo porque se o Dwight souber que o fiz perceberá porquê e mata-me.
- Olhe - disse Lillie -, não temos nada a dizer. - Começou a tremer, como um doente que se levanta de uma.cama antes de ter forças. Verificou em que -andar se encontrava o elevador. Estava parado no átrio. - Tenho de ir.
- É sobre o Ronnie Lee - murmurou a rapariga. - É importante.
Lillie olhou para as luzes dos números dos andares que começavam a mudar.
-Venha até aqui. Debbie apontou.
Com um suspiro que parecia mais preocupação do que exasperação, Lillie seguiu a rapariga enquanto esta caminhava para um recanto da sala de espera onde não estava ninguém. Acomodou-se no assento de plástico da cadeira. Lillie sentou-se em frente e olhou ansiosa para as portas do elevador que se abriram e fecharam.
- O que deseja? perguntou Lillie.
- O Ronnie Lee não matou a sua filha - declarou Debbie muito séria.
Lillie pressionou as bordas da cadeira de _plástico com a parte posterior da mão.
- Disso já não tenho tanta certeza - afirmou.
Debbie inclinou-se para a frente e puxou a manga do casaco, como uma criança.
- Sei que tenho razão - disse ela. - Mistress Burdette, não imagina o que tem sido a nossa vida desde que a sua filha foi morta. Toda a gente nos trata tão mal! Ninguém nos fala e os miúdos vêm atirar pedras à nossa rulote durante a noite. Além disso, receio que o Dwight seja despedido. Trabalha naquele armazém de móveis baratos e faz entregas. Agora estão a dizer que é provável que não precisem mais dele. Dizem que o negócio vai mal, mas não é verdade. É a época em que têm mais trabalho e o nosso filho está quase a nascer - prosseguiu ela com um tom de súplica na voz. - O Dwight precisa daquele emprego.
Lillie mal podia acreditar que aquela rapariga estivesse a queixar-se a ela dos seus problemas. Sentiu vontade de a agarrar, abanar e dizer: «Não sabe que a minha filha morreu? Como ousa queixar-se a mim?» Lembrou-se de uma coisa que o pai lhe dissera uma vez: «Toda a gente pensa que os seus problemas são os mais graves.» Respirou fundo e recompôs-se.
- É uma pena - disse ela, aborrecida. - As pessoas não deviam culpar o seu marido por aquilo que o irmão fez. Mas acho que faz parte da natureza humana. - Olhou para o rosto desfigurado da rapariga e amaciou a voz. - Se quer que eu telefone para o armazém e fale com o patrão do seu marido, poderei fazê-lo. Se é que isso vai ajudar.
A rapariga levantou-se como que espantada.
- É muito gentil da sua parte. Muito obrigada. Depois de tudo o que já passámos... - Abanou a cabeça. - É realmente muito gentil, mas não, não é isso. Sabe, eu acho que tudo vai continuar assim enquanto as pessoas pensarem que o assassino é o Ronnie Lee.
- Bom! Tudo indica que foi ele - afirmou Lillie friamente. Levantou-se. - Se quer que telefone ao homem do armazém de móveis, fá-lo-ei. Acho que não está em posição de me pedir muito mais.
- O Dwight pode provar que o Ronnie Lee não é o assassino, mas não o faz - disse a rapariga muito depressa. - Não quer denunciar o sítio onde ele está escondido.
Lillie olhou fixamente para a rapariga, que começara a abanar a cabeça.
- Mata-me se descobrir que eu lhe contei. Mata-me, mas não é justo. Já não consigo suportar mais esta situação. Ninguém me dirige a palavra - queixou-se.
Começou a soluçar e tirou um lenço de papel da mala de pano.
Lillie voltou a sentar-se e continuou a olhar sem dizer uma palavra.
- O Dwight é boa pessoa. É bom e amável. Não se parece nada com o irmão, mas têm a mania que deve sempre protegê-lo e o Ronnie Lee não merece ser protegido. Sempre foi mau, agora está a arruinar a nossa vida e o Dwight não diz uma palavra. Porém, tenho de pensar no bebé - continuou ela, num tom honesto, olhando para Lillie com uma expressão suplicante. - É por isso que estou a contar-lhe tudo. A senhora é mulher. Consegue compreender. Não quero que as pessoas chamem nomes ao meu filho. Fazer sofrer uma pobre criança quando o Dwight sabe onde está o Ronnie Lee e tudo o que se passou.
- O que sabe você sobre o homicídio da minha filha? - perguntou Lillie numa voz baixa e gelada.
Debbie respirou fundo.
- Muito bem. Prometa-me apenas que nunca dirá a ninguém como soube.
- Vou tentar que ninguém saiba - disse Lillie.
- Porque se o Dwight descobrisse...
- Por favor - insistiu Lillie entre dentes.
Debbie soluçou e permaneceu alguns instantes em silêncio. Lillie observou o seu rosto solene e infantil enquanto esperava, temerosa, pela informação. Debbie olhou para ela com os seus olhos redondos e decididos.
- Muito bem - repetiu ela. - No dia em que a sua filha... no dia do piquenique, estávamos em casa porque eu não me sentia bem. Assim que soubemos da evasão... o Ronnie Lee telefonou ao Dwight. Estava escondido em Caitlin Crossing e queria que o Dwight o fosse buscar. O Dwight tentou convencê-lo a voltar para a prisão, mas o Ronnie Lee amaldiçoou-o e discutiu com ele. Eu supliquei ao Dwight que o deixasse onde estava, mas o Dwight disse que tinha de o ir buscar. Ameacei chamar o xerife e por isso obrigou-me a ir com ele. Fomos até ao cruzamento e apanhámo-lo.
- A que horas foi isso? - perguntou Lillie, sentindo um aperto no peito.
- Por volta das quatro da tarde - disse Debbie. - Ele conhecia uma mulher do Kentucky com quem estivera antes de ser preso. Telefonou-lhe e ela veio ao nosso encontro a um local que fica a três horas daqui. Bebeu durante todo o caminho e cantava umas canções muito estúpidas. - Debbie estremeceu de nojo. - Quando lá chegámos, ele estava tão bêbedo que tivemos de o deitar no banco traseiro do carro. Ela ficou muito contente de o ver. Eu só pensei: "Que alívio! Fica com ele!" Até vomitou no assento do nosso carro, mas ela estava tão feliz como uma cobra num pântano. Ele ainda lá está com ela se bem que pareçam o cão e o gato. Penso que ele está a pensar em ir-se embora. Deve ir à procura de outra rapariga para chular.
A mente de Lillie trabalhava furiosamente à medida que a rapariga falava. Ela estava a dizer a verdade. Tinha a certeza. No entanto, forçava-a a pensar numa coisa em que não queria pensar. Tinha facilmente aceitado a ideia de que Ronnie Lee era o assassino e isso fazia com que a morte de Michele parecesse um acidente. Como se tivesse sido atropelada. Atravessara o caminho de um criminoso que se preparava para matar uma rapariga. Uma rapariga qualquer.
Agora tudo era diferente. Se não fora Ronnie Lee, então talvez não tivesse sido um acidente. Talvez tivesse sido de propósito. Talvez alguém houvesse assassinado Michele, a sua Michele, de propósito. Recomeçaram a sangrar todas as suas feridas psicológicas e todas ao mesmo tempo. Subitamente lembrou-se de algumas coisas que o xerife dissera. Coisas que tinha ouvido. Royce sempre declarara não acreditar que tivesse sido Ronnie Lee. Que ele não tinha motivo. Que não arriscaria cometer semelhante crime e que só queria fugir. Mas então, quem? Porquê? Abanou a cabeça e depois olhou para Debbie.
- Então, não pode ter sido ele... - afirmou. Debbie encolheu os ombros.
- Não foi. Estávamos com ele.
- Mas porque está contar-me tudo isso? Porque não diz ao xerife?
- Já lhe disse a razão - explicou Debbie pacientemente'
- O Dwight matar-me-ia. Mas a senhora pode contar ao xerife. Pode dar-lhe a morada do Ronnie Lee e eles poderão apanhá-lo, dizendo que acabaram de o descobrir. Assim tudo se saberá e as pessoas ficarão cientes de que não foi o Ronnie Lee
- O Dwight poderá arranjar problemas por o ter ajudado a fugir. Já pensou nisso?
Debbie olhou para Lillie.
- Pensei nisso, sim - confessou. - Direi que ele obrigou, com uma pistola apontada. - A rapariga tirou um pedaço de papel da mala e escreveu apressadamente. - Esta é a morada.
Lillie olhou para o pedaço de papel que tremia nas mãos da rapariga.
- Obrigada por me ter contado - agradeceu em tom suave.
- Foi Deus quem me fez encontrá-la hoje - disse Debbie sinceramente. - Só espero que apanhem o verdadeiro assassino.
Lillie trocou um olhar pensativo com a jovem futura mãe e estremeceu.
- Tenho de ir falar com o xerife - disse. - Imediatamente.
Um delegado do xerife, que Lillie não reconheceu, estava sentado à secretária de Royce, com os pés apoiados nela, lendo o último número da revista Guns and Ammo.
- O xerife não está - disse o rapaz em resposta ao ansioso pedido de Lillie.
- Onde está? Preciso de falar com ele imediatamente.
- Fora da cidade - disse o delegado.
- Fora da cidade! - gritou Lillie. - Há um assassino à solta no condado. Porque é que o xerife não está?
O delegado subitamente reconheceu Lillie como a mãe da rapariga assassinada e retirou os pés de cima da secretária. As suas botas de cowboy fizeram ruído ao bater no chão.
- O delegado Reynolds está a substituí-lo, minha senhora
- disse respeitosamente. - Está a almoçar no Five and Ten. Estou certo de que a poderá ajudar.
- Espero bem que sim - disse Lillie, zangada.
Bateu com a porta do gabinete em sinal de frustração e encaminhou-se a passos largos para a câmara municipal. As pessoas atravessavam a praça principal de Felton e o ambiente citadino era normal. A vida continuava. Havia pessoas que entravam nas lojas que rodeavam a praça. Viam-se alguns miúdos sentados na base da estátua de Andrew Jackson que ficava em frente do tribunal, esmagando as videiras-da-virgínia que se entrelaçavam à sua volta. As pessoas falavam do homicídio Disso tinha a certeza. Sempre que passava por alguém que reconhecia e se fazia silêncio, sabia que a morte da filha tinha sido o assunto de conversa. Todavia, com o passar do tempo, passaria a ser uma conversa trivial, um acontecimento que os chocara. Para elas o assunto não era urgente. Nem para o xerife Não tinham sido as suas vidas a sofrer alterações permanentes, pensava ela com lágrimas de ira a saltar-lhe das pálpebras. Respirou fundo e recompôs-se. Não podia esperar pelo xerife. Se Wallace Reynolds era o que havia, então teria de ser com ele. Atravessou a praça até ao Five and Ten e olhou para dentro da Farmácia Blood. Bomar devia ter saído, pois só a sua empregada estava ao balcão. Falava com um cliente, mas sempre a olhar-se ao espelho colocado por trás da fonte de água gaseificada, examinando a maquilhagem com uma expressão atenta. Como era habitual, alguns adolescentes estavam sentados na fonte. Lillie continuou a andar e abriu a porta do Five and Ten. Foi recebida pelo cheiro familiar de pipocas requentadas, doces e caixas de cartão velhas. Avistou Wallace Reynolds sentado ao balcão e rapidamente se dirigiu a ele.
- Wallace - disse sem preâmbulos -, preciso de lhe falar imediatamente.
O delegado pousou a sanduíche e olhou para ela com um ar surpreendido.
- Mistress Burdette - balbuciou, limpando a boca. Não devia estar em casa?
- Porque é que devia estar em casa, Wallace? - perguntou Lillie. O delegado era quatro anos mais novo do que ela, mas tinha uns modos reprovadores que faziam com que as pessoas se sentissem na obrigação de se explicar. - Vim falar com o xerife, mas parece que ele não está na cidade - disse, indignada.
Wallace empurrou um pedaço acinzentado de picles para a
beira do prato e limpou a boca com um guardanapo.
- Não é uma viagem de prazer, minha senhora. Saiu esta manhã para levar o filho ao Sentinel. É a academia militar que fica na Carolina do Norte.
- O Tyler? - Lillie deixou-se cair no banco ao lado do delegado.- Porquê? Nunca falou numa coisa dessas.
Wallace Reynolds abanou a cabeça.
- Aqui entre nós, Mistress Burdette, aquele rapaz tem sido uma fonte de desgostos para ele. - Wallace fez o gesto de meter uma garrafa à boca. - Se é que me entende.
Lillie acenou lentamente com a cabeça.
- Eu sei - disse ela. - Mas uma academia militar..
Pensou em Tyler no funeral, arranjado e com uma expressão selvagem no olhar. Há anos, depois da morte de Lulene, Lillie jurara a si própria que os iria ajudar. Convidara Royce e Tyler várias vezes para jantar. Contudo, Tyler permanecia silencioso e pouco à vontade mesmo com as crianças e Royce parecia entrar em ebulição com o rapaz. Fazia com que todos se sentissem desconfortáveis e, algum tempo depois, deixou de os convidar. Agora achava que se devia ter esforçado um pouco mais. Pelos vistos, tinham chegado ao ponto de rotura.
- A academia militar será o melhor para ele - disse Wallace. - Vai metê-lo na ordem. Mas queria falar com o xerife, Qual é o problema?
Lillie afastou o pensamento dos problemas do xerife e regressou aos seus. Aquilo não podia esperar.
- Wallace - disse ela -, recebi informações muito importantes. Alguém... Não lhe posso dizer quem foi, por isso nem pergunte... Alguém acabou de me narrar alguns factos que provam que o Ronnie Lee não foi oi responsável pela morte da minha filha.
Wallace sorriu tristemente para Lillie e, com um dedo, empurrou para o lado o prato de plástico.
- Mistress Burdette - disse num tom paternalista - acho que alguém lhe está a pregar uma partida de mau gosto. O Ronnie Lee Partin é um criminoso em desespero, e estou convencido de que a sua filha se atravessou no caminho dele num momento muito mau, tornando-se vítima do desgraçado Creio que, quando conseguirmos prender Mister Partin, teremos o nosso assassino.
- bom, então vão prendê-lo! - exclamou Lillie, entregando-lhe o pedaço de papel em que Debbie escrevera a morada no Kentucky. - Encontrá-lo-ão aí.
Wallace agarrou no papel e olhou para ele com alguma suspeita.
Onde arranjou isto?
. Já lhe disse. Não posso dizer. Recebi-o de alguém que
sabe que o Ronnie Lee não matou a Michele e apenas o quer provar.
Wallace olhou para a morada com uma expressão azeda.
- Segundo sei, o xerife nunca acreditou que o Ronnie Lee fosse o assassino - afirmou Lillie.
Wallace encolheu os ombros.
- com todo o respeito, minha senhora, o xerife está preocupado com os seus próprios problemas, trabalha demasiado e já não é exactamente um jovem. Pode não ser a pessoa indicada para decidir.
- Ele apenas diz o que faz sentido - insistiu Lillie. O Ronnie Lee Partin não tinha motivos para matar a minha filha.
- Mistress Burdette - prosseguiu Wallace, abanando a cabeça. - É preciso frequentar o meio para compreender esse tipo de pessoa. A única razão de que necessitam neste mundo é já terem bebido uma garrafa de uísque e lhes apetecer matar. Sabe que - continuou ele, tentando provar o seu ponto de vista -, há mais ou menos três semanas, prendemos os irmãos Boynton? Sabe porquê? Porque beberam uma garrafa de uísque feito a martelo e saíram no barco do Buddy Boynton e atravessaram o lago Crystal a toda a velocidade, disparando para a margem contra tudo o que se mexesse. Pensavam que estavam a divertir-se.
- Então, talvez o Buddy Boynton tenha morto a minha filha - disse Lillie. - Não entende o que está a dizer? Podia ter sido qualquer um que tivesse emborcado uma garrafa de bourbon.
Não fique irritada - retorquiu Wallace firmemente. Lillie suspirou de raiva enquanto a empregada, uma rapari-
ga gorducha com caracóis de um louro oxigenado empilhados no alto da cabeça, os abordou.
Querem mais alguma coisa?
" A conta - disse Wallace. - Olhou para o pedaço de papel e depois para Lillie. - Se encontrarmos o Partin nesta morada, terá de nos dizer onde arranjou isto.
- E vocês vão ter de descobrir um assassino - retorquiu Lillie de imediato.
Wallace levantou-se.
- Contactá-la-ei, a si ou a Mister Burdette sobre o assunto.
- Óptimo - disse Lillie num tom frio.
Sabia que o delegado estava ofendido, mas não se importava. Gostaria de ter falado com Royce, porém, não havia tempo a perder. Não estava interessada na opinião de Wallace Reynolds. Royce agradeceria a informação e sentir-se-ia aliviado por poder prender Ronnie Lee Partin. Todavia, não era de admirar, pensava ela, que Debbie tivesse medo de falar com eles. Só por tentar ajudar, era-se tratado como um criminoso.
E, claro, não era de espantar que Wallace Reynolds resistisse a tudo aquilo. Fazia com que voltassem ao princípio. Não tinham assassino nem pistas. Se alguém se apresentasse, como Debbie tinha feito... Depois, enquanto pensava nisso, percebeu que talvez pudesse fazer mais qualquer coisa.
Lillie ouviu a nota ansiosa na voz de Pink quando gritou:
- Lillie, cheguei. Onde estás?
- Estou aqui - gritou ela. - No escritório.
Pink foi até à porta e olhou com alguma prudência, como se estivesse relutante em ver o estado em que poderia estar.
- Entra - disse ela.
Encontrava-se sentada no chão, de pernas cruzadas sobre um tapete que tinha feito durante um Inverno em que Michele estivera no hospital com uma pneumonia. Em torno de Lillie, viam-se álbuns de fotografias e todas as fotografias mais recentes de Michele estavam empilhadas no seu colo.
- O que estás a fazer aqui, querida? - Pink utilizou um tom de voz adulador como se se dirigisse a alguém que caminhava num parapeito. - Não tens de fazer isso agora. As coisas continuarão aí. - Agachou-se a seu lado e começou a fechar os álbuns.
- Não - exclamou ela. - Preciso de uma fotografia da Michele.
- Para quê? - perguntou Pink com um ar infeliz.
Lillie sentiu pena dele. Estava claramente preocupado com
sua saúde mental e talvez, pensava ela, lhe tivesse dado razões para isso. Era óbvio que ele nunca perguntaria. Pink tinha horror a conversas sobre sentimentos e, ao longo dos anos, ela conseguira aceitar o facto. Mostrava o seu afecto com presentes e evitava discussões aumentando o som da televisão ou saindo de carro.
- Não te preocupes - disse ela. - Preciso dela para entregar ao jornal. Hoje passei pelo teu escritório, Pink.
- Eu sei. Encontrei o teu bilhete à porta. O que querias?
- Fui falar com o Wallace Reynolds. Queria falar com Royce, mas ele não está na cidade. Levou o Tyler para a academia militar. Sabias alguma coisa sobre isso?
- Sabia, sim - declarou Pink - Ele disse-me que ia.
- Disse-te? Não me mencionou o assunto.
- Talvez tivesse pensado que já tinhas com que te preocupar. Ele só tem tido aborrecimentos com aquele miúdo - observou Pink irritado.
- De qualquer modo - disse Lillie -, isto vai ser um choque para ti. Foi-o para mim.
Pink olhou-a fixamente.
- O que queres dizer com isso?
Lillie falou-lhe do encontro que tivera com Debbie Partin. Pink levantou-se enquanto ela falava e sentou-se na beira da otomana que fazia par com o velho sofá. Tinha um álbum no colo e passava os dedos pelos bosques gravados em relevo na capa.
- E estas fotografias? - inquiriu ele.
Lillie levantou-se e sentou-se no braço do sofá. - vou mandar pôr a melhor fotografia que temos dela no Jornal e pedir às pessoas que nos telefonem se tiverem informações. Aquelas pessoas que não gostam de ir à Polícia, como a pebbie Partin. Percebes o que estou a dizer? - Colocou a mão no ombro de Pink - Neste momento, pode estar alguém a passear-se pela cidade que sabe quem foi. No entanto, pode ter medo de falar com o xerife.
Pink ficou sentado em silêncio por alguns instantes como que a tentar respirar.
- Isto é um pesadelo - sussurrou finalmente. - Um maldito pesadelo. - Abanou a cabeça e passou a mão sardenta pelo cabelo já ralo. - Porque é que isto tinha de nos acontecer? - Levantou-se abruptamente e as fotografias brilhantes espalharam-se à sua volta. Foi abrir a janela. - Há quanto tempo estás fechada aqui dentro? - perguntou.
- Pink - disse Lillie. - Temos de fazer alguma coisa. Ele virou-se para ela.
- O que podemos fazer? Devemos deixar o xerife tomar conta do assunto.
- Não me ouviste? Não te importas? - perguntou ela.
- Sobre a morte da minha menina? - gritou Pink com o rosto vermelho. - O que é que achas? Como me podes dizer uma coisa dessas?
- Tens razão, Pink Lamento. Tens razão.
- Não podemos procurar o assassino. Por amor de Deus. E tudo o que posso fazer para manter esta família unida. Venho para casa e tenho medo do que vou encontrar. Medo que estejas morta. Mal comes. Não dormes. Deixa que a Polícia faça o que deve fazer. Tens de começar a cuidar de ti, Lillie. E o Grayson? E eu?
- Chegue- ouviu-se da cozinha. Pink endireitou subitamente a cabeça como que assustado. Lillie franziu o sobrolho, olhando para o punhado de fotografias que tinha na mão.
- Estamos no escritório, filho - gritou Pink Grayson apareceu à porta do escritório e olhou para os pais.
- O que estão a fazer? - perguntou
- Gray - disse Lillie teimosamente. - Talvez possas! ajudar. Parece que não foi o Partin quem matou a Michele! É capaz de ter sido outra pessoa. Consegues lembrar-te de alguém que não gostasse dela? Talvez uma pessoa que estivesse! zangada com ela por qualquer motivo.
Grayson foi apanhado desprevenido.
- Não sei - disse ele.
- Tenta pensar, querido. Ela alguma vez mencionou alguma coisa desse género? - insistiu Lillie.
- Como sabes que não foi o Partin? - perguntou Grayson.
- É uma longa história - interrompeu Pink - Ainda
não há provas de nada. É melhor não ficarmos muito entusiasmados. Como foi o teu dia na escola?
.- Óptimo - disse Grayson. - Fui nomeado para vice-presidente da associação de estudantes.
- Isso é maravilhoso, meu filho - exclamou Pink - Será muito bom para o teu currículo. E depois, se ganhares este, no último ano poderás atirar-te ao cargo de presidente.
- Acho que tenho boas probabilidades - afirmou Grayson. - A eleição é daqui a duas semanas e todos os miúdos estão com pena de mim por causa da Michele.
- Grayson! - gritou Lillie. - Como podes dizer uma coisa dessas?
Sentira aquelas palavras como uma bofetada. Grayson olhou espantado para a mãe.
- O quê?
- Estás a raciocinar como um político - observou Pink tentando suavizar as coisas. - É preciso ser realista nestas circunstâncias, Lillie. Existe uma coisa chamada voto por simpatia.
Lillie olhou fixamente para os dois.
- É só nisso que pensas em relação à morte da Michele? Que te vai dar votos na eleição da escola?
Grayson abanou a cabeça em sinal de incredulidade.
- Claro que não, mãe. Só estava orgulhoso de ter sido nomeado. Apenas mencionei o facto porque pensei que te sentirias orgulhosa e contente. - Olhou à sua volta para as fotografias da irmã espalhadas no chão. - Pensei que te sentisses feliz por ter outra coisa em que pensar, mas acho que estava enganado. Lamento ter-te incomodado com o assunto.
-- Não é isso que ela quer dizer - assegurou Pink imediatamente.
Grayson - disse Lillie com a voz a tremer, - eu não quis dizer que as tuas notícias não eram importantes. Mas falar na morte da tua irmã como se fosse uma vantagem... ." Desculpa - disse Gray. - Só queria dizer que havia muita gente na escola que gostava dela e que provavelmente votarão em mim. Se isso foi um erro, lamento. Era apenas o que queria dizer. Nunca sonhei que percebesses as coisas de outra maneira.
- bom, talvez tenha percebido mal - anuiu, cansada.
- Vá lá! Vá lá! - disse Pink - Estamos todos cansados e com os nervos em franja.
- Tenho uma reunião de campanha esta noite - informou Grayson. - vou fazer uma sanduíche. A não ser que tenhas feito jantar. - Olhou, expectante, para ela - Ou querem que também vos faça uma?
Lillie sentiu a familiar punhalada da culpa. Tinha estado demasiado absorvida com as revelações sobre Ronnie Lee Partin e não sentia fome. No entanto, não era motivo para continuar a não lhes prestar atenção.
- Fica sossegado, filho - disse Pink - Eu vou à Country Kitchen e compro peixe com batatas fritas. Para variar, vamos sentar-nos à mesa e comer. - Grayson mantinha-se parado à entrada da porta. Pink viu a expressão dos olhos de Lillie começar a mudar. - Vá lá, Lillie - disse ele, irritado - Todos precisamos de comer.
Lillie olhou desamparada para o marido.
- Odeio sentar-me ali dentro - disse ela. - Ver a cadeira vazia...
- Grayson - chamou Pink - Vai pôr a cadeira da Michele na garagem. Vai.
- Sim, senhor.
- Gray - disse Lillie. O rapaz parou e olhou para ela. - Não quis estragar a tua felicidade. Acho fantástico que tenhas sido nomeado. Sinceramente.
Gray ergueu o sobrolho em sinal de dúvida mas a voz continuava agradável.
- Nesse caso, os meus agradecimentos.
Lillie olhou para o marido.
- Pink eu não quis censurá-lo. Mas a maneira como o disse foi horrível.
Pink olhou para o relógio.
- Acho que vou buscar o peixe. Vamos pôr o jantar na mesa.
"Ele não quer discutir o assunto", pensou Lillie. "Nunca quer. Só quer que toda esta confusão desapareça, mas isso não vai acontecer." Olhou para baixo para a pilha de fotografias que estavam a seus pés, e sentiu-se subitamente exausta. "Depois arrumo-as", disse para si própria. Ouviu Pink bater a porta das traseiras. Fazendo um enorme esforço para se levantar, decidiu ir para a cozinha e pôr a mesa. Assim podiam sentar-se e jantar logo que o marido chegasse a casa com o peixe. Dirigiu-se à cozinha e chegou à porta a tempo de ver as pernas da cadeira de Michele a desaparecer, deixando marcas nos azulejos.
Bem cedo na manhã seguinte, depois de parar na loja de donuts, Lillie chegou à redacção do jornal Cress County Courier. Situava-se na Estrada 31 juntamente com mais uma dúzia de outras empresas com parques de estacionamento privativos e letreiros de néon e que prosperavam no troço de auto-estrada entre Felton e Welbyville. O jornal ocupava um edifício só com um piso com uma fachada de vidro e um largo beiral. O escritório vizinho, que partilhava uma parede e o parque de estacionamento, pertencia à Rádio Shack, e o ruído dos processadores de texto da redacção do jornal era constante e abafado.
Pink reiterara em voz alta que não aprovava a ideia de um anúncio no jornal e fora trabalhar de mau humor. Depois de sair, Lillie decidira telefonar a Brenda à procura de apoio moral, mas, quando Brenda atendeu o telefone, deu por si a falar de trabalho sem mencionar o anúncio. Suspeitava que Brenda também não iria aprovar. Assim, Lillie contou-lhe que estava a sentir-se melhor e queria trabalhar; Brenda finalmente concordou em deixá-la experimentar na segunda-feira.
Lillie olhou para a fotografia que tinha na mão, respirou fundo e abriu a porta da redacção do jornal. Foi carinhosamente cumprimentada por vários membros do pessoal que a reconheceram. Muitas vezes ajudava Pink colocando-lhe os anúncios semanais das propriedades e, de vez em quando, ela e Brenda punham anúncios quando o negócio andava mais fraco. Lillie foi directamente aos classificados e pousou o saco de papel castanho que tinha na mão sobre a secretária de uma mulher que usava um fato azul-turquesa e uma blusa de folhos.
A mulher, de cabelo grisalho, encontrava-se ao telefone, mas sorriu e fez umas caretas que exprimiam: "Não era necesário", enquanto Lillie tirava do saco um copo de papel de café e um brilhante donut Krispy Kreme. A mulher despediu-se, desligou o telefone, acendeu um cigarro e deu um gole no café. Depois olhou para o donut.
vou deixá-lo para o intervalo da manhã - disse a Lillie numa voz profunda e áspera.
Passou o papel de cera para um dos lados do mata-borrão com as pontas dos dedos e unhas perfeitamente tratadas, nunca largando o cigarro.
- Sei que gostas deles cobertos, Rebecca Louise.
A mulher acenou com a cabeça e exalou um anel de fumo.
- É verdade! É verdade! Duas vezes por semana sinto um desejo perfeitamente irresistível de os comer. - Apoiou o rosto cheio de rugas na palma da mão, segurando o cigarro num ângulo estranho. - Como está, querida? Tenho pensado em si e no Pink.
- Estou bem - disse Lillie firmemente. - Rebecca Louise, quero pôr uma coisa no jornal.
- Nisso não há dúvida de que a posso ajudar. O que tem aí?
Rebecca Louise meteu a mão nas pastas que tinha na secretária e retirou os formulários para um anúncio.
Lillie tirou uma fotografia da mala e entregou-a à empregada. Era a fotografia mais recente e a melhor que encontrara Michele. Exibia um sorriso natural e estava realmente muito parecida, ao contrário da fotografia mais solene que fora publicada no jornal por ocasião da conclusão do nono ano. Rebecca Luise segurou cautelosamente na fotografia e empalideceu por baixo da delicada camada de pó-de-arroz. Quando voltou a olhar para Lillie, os seus olhos cuidadosamente maquilhados trairam a sua verdadeira idade.
Era uma menina muito bonita - comentou ela.
Obrigada - agradeceu Lillie calmamente. - Agora, queria mandar colocar... uma espécie de agradecimento junto à fotografia.
Rebecca Louise deu outra fumaça no cigarro.
- Bem, tecnicamente isso seria um obituário, querida
- Eu sei - anuiu Lillie. - Mas quero que seja colocado nos classificados, pois aí as pessoas param para ler. - Vasculhou a carteira à procura de um pedaço de papel. - Foi isto que escrevi. - Olhou novamente para o papel e entregou-o.
- Consegue perceber a minha caligrafia?
A mulher mais velha franziu o sobrolho. Os lábios murmuravam as palavras enquanto as lia.
- Obrigada... amabilidade... informação... a noite de vinte e oito de Setembro, dia do Fundador, contactar o xerife ou... De quem é este número? Vosso?
Lillie assentiu com a cabeça.
- Se puser este número no jornal, irá receber todo o tipo de chamadas loucas, Lillie.
- Alguém a deve ter visto nessa noite. Alguém deve ter a possibilidade de nos dizer o que é que ela estava a fazer naquele sítio. com quem estava.
- Era o rapaz, o Partin, não era? - perguntou Rebecca Louise.
- Não - disse Lillie. - Não creio. Rebecca Louise, quero este anúncio publicado todas as semanas até apanharmos o culpado.
- O xerife autorizou isto? - perguntou a mulher suspeitosamente.
- O xerife não está na cidade. Quero o anúncio no jornal de segunda-feira. Por favor.
- Isto vai sair-lhe caro, querida.
- Não me importa - disse Lillie.
- Não. Parece-me bem que não. - Rebecca Louise acendeu outro cigarro no que estava a fumar. - Está bem. vou pô-lo num bom sítio. Deixe comigo.
Lillie agradeceu-lhe e recebeu um aceno de cabeça como resposta.
- Voltarei em breve - prometeu Lillie.
Enquanto se dirigia para a frente do edifício, viu a porta abrir-se e surgir uma figura familiar. Tentou evitá-lo, mas Jordan interpelou-a.
__ Lillie...
Olá - disse ela. - O que fazes aqui?
__ Venho a uma entrevista sobre o espectáculo. Actores. Tentamos nunca deixar para trás uma oportunidade de conseguir publicidade gratuita - disse ele com um sorriso estranho.
bom - retorquiu Lillie rapidamente -, então vais conseguir muita à conta deste homicídio.
vou fingir que não ouvi - disse Jordan.
Uma rapariga de óculos com um ar simpático, usando uma camisola da Universidade do Sul, saiu de trás do monitor do computador e dirigiu-se a Jordan e a Lillie.
- Mister Hill - saudou ela. - Fui eu que lhe telefonei. Kendra Spencer. Fico muito contente por ter vindo.
Lillie tinha aberto a porta da frente e preparava-se para sair. Jordan virou-se para a rapariga, que estava a ajeitar os óculos no nariz.
- Dá-me licença durante alguns minutos? - perguntou enquanto saía atrás de Lillie, indo até ao parque de estacionamento.
- Lillie - pediu. - Espera.
- O que é?
- Há notícias? Sobre a Michele. Alguma coisa que deva saber?
Lillie suspirou e encostou-se ao carro.
- É possível. Estava a pôr um anúncio para tentar obter mais informações. Neste momento, parece que o Ronnie Lee artin não é o responsável.
- O quê? Bem, sei...
Parece que ele tem um álibi. É tudo o que sei neste momento.
Já o apanharam?
- Ainda não. Acho que não. Olha! Não estou disposta a contar tudo outra vez. Aparecerá no jornal, se é que vais estar por cá para o ler. O que é que ainda estás aqui a fazer? Não vais estar em Nova Iorque ou Hollywood ou num sítio qualquer?
- Já não vinha a casa há muito tempo e pensei que a minha mãe pudesse precisar da minha presença durante mais algum tempo.
-Que consideração - observou Lillie friamente.
- É preciso tempo para digerir uma coisa destas - disse ele. - Todos nós precisamos de tempo.
Lillie mordeu a parte interior da boca e evitou o olhar de Jordan.
- Isso é realmente verdade. Sei que Miss Bessie quer que fiques.
- Lillie, estava na esperança de que, já que estou aqui, nos pudéssemos sentar e conversar.
-Não quero ser malcriada, mas não me parece que tenhamos algo para conversar - retorquiu Lillie. - A única coisa que .tínhamos em comum era a Michele. Morreu. Que mais há para dizer?
- Bom, eu gostaria de falar sobre a Michele.
O que queres dizer sobre a Michele? - perguntou ela na defensiva.
- Sabes que durante todos estes anos perdi grande parte do seu crescimento.
- E de quem é a culpa?
- Minha, é claro, mas tenho muitas perguntas sobre ela para as quais não encontro resposta. Gostaria de saber o que se passou nos primeiros anos e ver fotografias dela dessa época.
- Uma espécie de resumo da sua vida - declarou Lillie com uma expressão impiedosa.
- Olha, Lillie! Isto pode parecer estranho, mas também tenho recordações dela e ninguém com quem as partilhar. Se pudéssemos falar... ajudar-me-ia muito falar sobre ela.
Lillie olhou com incredulidade para o seu rosto enrugado e expressão séria.
- Ah, ajudava-te, não era? - retorquiu. - Então, faz favor. Vou traçar um breve plano de todo o tempo que necessitas. Na verdade, ajudaste-nos muito. Ajudaste-nos imenso. Deixando-me sozinha com uma criança que lutava por sobreviver.
- Não estiveram sozinhas durante muito tempo - disse ele com frieza.
Lillie olhou para ele.
- Como te atreves? - exclamou. - Como te atreves a atirar-me com isso à cara?
- Tens razão, Lillie. Não queria discutir. Só me parecia que devíamos tentar conversar para nos ajudarmos um ao outro. Pela Michele. Pela sua memória.
Lillie abanou a cabeça com os maxilares cerrados.
- Pela Michele - repetiu. - És inacreditável. Consegues ouvir o que estás a dizer? Sabes, Jordan, espero que tenha valido a pena. Espero que tenhas encontrado o que procuravas, mas uma coisa é certa: não quero falar contigo sobre a minha filha ou seja sobre o que for.
- Está bem! Ouve - insistiu Jordan, irado. - Não vou sequer tentar justificar a minha vida aqui no meio do parque de estacionamento da Rádio Shack. Só te peço um pouco do teu tempo.
- Não tenho tempo para te dar - declarou Lillie com amargura. - Tenho de ir fazer compras para casa. Acho que em Nova Iorque as pessoas não fazem este tipos de tarefas banais. Tu e eu poderíamos ir a um café beber um cappuccino e reviver velhos tempos, mas tenho uma série de bolos para fazer para o jantar das Filhas da Confederação. Assim, se me dás licença, tenho de ir ao Kroger. E creio que tens um encontro com a imprensa.
Lillie olhou para a porta do edifício do Courier. Conseguia ver a camisola amarela por trás dos vidros filmados, pois a jovem repórter continuava a olhar para eles.
- Está bem - aquiesceu Jordan. - Muito bem. Não me deves favores. Concedo-te isso.
Lillie entrou no carro e bateu com a porta. Não se virou para trás; ele ficou de pé a olhar para ela. Saiu para a Estrada 31 e dirigiu-se cuidadosamente à luz vermelha do primeiro semáforo, onde finalmente conseguiu tirar um lenço de papel da carteira e limpar as lágrimas de raiva que lhe dificultavam a visão.
Segunda-feira bem cedo, Aliene Starnes já se encontrava na escola a agrafar os cartazes que fizera para a campanha de Grayson. Trabalhara neles durante todo o fim-de-semana e ficara muito contente por ele lhe ter pedido ajuda. Tinha querido trabalhar com ela, mas fora obrigado a ficar em casa quase todo o fim-de-semana. Havia muitas visitas por causa de Michele.
Aliene compreendeu. Disse-lhe que não se preocupasse e prometeu que lhe faria uns cartazes perfeitos e, tal como dizia Grayson, ela tinha talento artístico. Andou às voltas com a grafia até parecer um trabalho profissional e, no domingo à tarde, o pai deixou-a usar a fotocopiadora que tinha na loja para que os cartazes ficassem prontos na segunda-feira de manhã.
Naquele momento, em que pendurava o último cartaz no quadro informativo da escola que ficava sobre o bebedouro à porta do auditório, não pôde deixar de imaginar a gratidão que Grayson sentiria ao vê-los. Os cartazes tinham ficado exactamente como ele queria. Fechou os olhos e imaginou o sorriso nos olhos de Grayson, o seu hálito quente a sussurrar-lhe um agradecimento, os seus corpos colados, talvez ali mesmo no corredor. Ficou muito corada enquanto pensava nisto e sentiu os mamilos a erguerem-se por baixo do tecido leve da camisa. Envergonhada, agarrou no bloco de notas e colocou-o em frente ao peito. Inclinou-se sobre o bebedouro, bebeu água e esperou que desaparecessem os sinais de excitação.
As portas do auditório abriram-se e os miúdos começaram
a sair. Distraidamente, Aliene cumprimentou alguns. Sabia que Grayson estava lá dentro e queria que tudo parecesse casual: como se ela estivesse a passar quando ele saísse. A estrela de séries televisivas que era o verdadeiro pai da irmã de Grayson estava a dar uma conferência e Gray dissera que provavelmente iria.
Cherie Hatchett parou e tentou começar a'conversar, mas Aliene não era capaz de prestar atenção ao que a outra rapariga estava a dizer. Mantinha os olhos postos nas portas, pronta para cortar a palavra a Cherie e saltar na direcção de Grayson a sim que o visse. Subitamente, a rápida visão de uma cabeça loura junto à porta mais distante fez com que o seu coração batesse de prazer.
- Vemo-nos mais tarde - disse ela a Cherie, não esperando por uma resposta. Dirigiu-se a Gray, ensaiando mentalmente uma voz calma e sensual para proferir o nome dele, quando reparou que Gray não estava sózinho nem com os amigos. Encontrava-se de pé, muito chegado a Emily Crowell, a rapariga de cabelos negros que viera de Chicago, aquela com quem Allene falara no dia do funeral.
Allene estacou e ficou a olhar. Uma sensação gelada percorreu-lhe o corpo. Grayson não estava a tocar a outra rapariga, mas tinha a cabeça inclinada na sua direcção de uma maneira que Allene sentiu uma lâmina afiada a trespassar-lhe o coração. Tinha o rosto a arder. Tentou afastar-se, mas Emily viu-a e deu uma pequena cotovelada a Grayson.
Gray olhou para cima e fez um brilhante sorriso a Allene. Ele e Emily dirigiram-se-lhe, e Grayson estendeu o braço e rodeou-lhe a cintura.
- Olá - saudou ele. - Como estás?
O braço à sua volta funcionava como uma bóia para uma pessoa que estivesse prestes a afogar-se, mas ainda se sentia muito abalada.
- Estou bem - disse ela friamente.
- Conheces a Emily? - perguntou ele.
- Já nos encontrámos - retorquiu Allene. Assim que pensou no funeral, sentiu-se imediatamente culpada por ter agido com frieza e ciúme. Era tão mesquinho. - Olá, Emily - disse ela amigavelmente.
-Acabámos de ouvir a conferência do Jordan.
Grayson proferiu o nome dele com orgulho.
- Foi fabuloso afirmou Emily com os olhos negros muito abertos de entusiasmo. - Contou como conseguiu o seu primeiro papel, como aprendeu a representar, falou de tudo.
- A Emily gostava de ser actriz - explicou Grayson.
-Ah - disse Aliene, sentindo-se subitamente envergonhada pelo desejo, que já expressara várias vezes, de se ocupar mais tarde de terapia ocupacional. Pareceu-lhe, por comparação, uma escolha menor.
- Por isso - disse Gray -, eu prometi-lhe que a apresentava a Jordan. Talvez ele a possa ajudar.
Emily esticou o pescoço para olhar para a porta.
- Estou ansiosa por conhecê-lo. É um homem lindo. -já acabei de afixar os cartazes, Grayson - disse Aliene. - Ah, óptimo - observou Gray, sempre atento à porta do auditório.
-Vem ver.
Gray franziu ligeiramente o sobrolho.
- Não pode esperar um momento? - perguntou. Aliene sentiu novamente um frio no coração.
- Está ali um - indicou ela, apontando para o local onde se encontrava o bebedouro.
Grayson olhou por cima do ombro e depois seguiu-a até lá. Olhou para o quadro informativo.
- Está uma maravilha - afirmou, e os olhos começaram a brilhar-lhe da maneira que Allene imaginara. O calor do seu sorriso envolveu-a. - Fizeste um excelente trabalho, Allene. Obrigado.
Aliene acenou com a cabeça de contentamento.
- Não achas? Afixei duas dúzias.
Grayson aproximou-se do cartaz e tocou a sua fotografia
com o dedo como que alisando um cabelo fora do lugar. - Que pena não estar a usar a minha camisa Tattersall no
dia em que tirei esta fotografia. Esta T-shirt não ficou muito
bem.
-Evidencia os teus músculos - disse Aliene, solícita. - Aí vem ele - guinchou Emily. - Oh, Gray, não consigo aguentar. Vem cá.
- Está bem - anuiu Gray, simulando um cansaço em relação ao mundo. - Já agora faço as honras da casa.
Aliene ficou a olhar para Grayson enquanto ele se dirigia a Jordan Hill e Miss Jones, a professora de Música e Teatro, que acabara de sair pela porta. Passou-lhe rapidamente pela cabeça que podia ir até lá e pedir também para ser apresentada a Jordan. Mas para quê? Ela não queria ser actriz. Virou-se e encaminhou-se para a sala onde iria ter aulas a seguir. Esperou que ele a chamasse quando a visse afastar-se, mas não ouviu o seu nome.
Jordan gostara de dar aquela conferência. Quando subira ao palco do auditório, sentira-se subjugado pela nostalgia. O palco parecia-lhe muito mais pequeno do que ele recordava. Era estreito e velho, mas já se sentira grandioso em cima dele. Lembrava-se da mão a tremer enquanto gesticulava com o cachimbo quando desempenhara o papel de narrador em A Nossa Cidade. Fora uma personagem que Lulene Ansley insistira para que ele tentasse em vez dos papéis românticos que facilmente conseguia interpretar. Orgulhara-se tanto daquele papel!
A audiência era agora composta por alunos de liceu, tal como fora no seu tempo, mas actualmente pareciam-lhe crianças impacientes. Outrora tinham-lhe parecido críticos fantásticos. Depois da conferência e das perguntas, dera alguns autógrafos. Gay Jones caminhava nervosamente a seu lado enquanto subiam o plano inclinado em direcção às portas do auditório. Por trás dos seus óculos de lentes grossas, piscou os olhos em reacção à luz do vestíbulo.
- Não sei como agradecer-lhe - disse ela. - Gostámos imenso. Saber que o senhor nasceu em Cress County foi realmente uma inspiração para aqueles jovens.
- O prazer foi todo meu - replicou Jordan. - Não há mal nenhum num pouco de encorajamento. Não é uma profissão para pessoas tímidas.
De facto, não é concordou Miss Jones. - Gostaria de me acompanhar até à sala de professores onde preparámos um pequeno beberete?
- Olá, Jordan.
Jordan virou-se e viu Grayson caminhar vagarosamente na sua direcção com uma bonita rapariga de cabelo negro a reboque. Normalmente o rapaz lidava com ele com alguma frieza, tratando-o por «senhor» como qualquer outra criança sulista bem-educada, mas dando-lhe uma expressão sardónica. Contudo, nesse dia o rosto de Grayson exibia uma expressão calorosa e demasiado familiar que demonstrava que queria alguma coisa. Jordan voltou-se deliberadamente para a professora de Música.
- É muito gentil da sua parte - respondeu -, mas tenho de voltar para casa.
Miss Jones sorriu com timidez. Um dos seus dentes incisivos estava ligeiramente sobreposto ao outro.
- Estou-lhe realmente muito grata. Sei que foi uma péssima altura para si...
Jordan apertou-lhe a mão.
- Fico feliz por ter vindo.
Voltou-se para Grayson, cujo sorriso confiante desaparecera ao ser forçado a esperar sem que a sua presença fosse reconhecida.
- Olá, Grayson - disse Jordan. Lançou um breve sorriso a Emily.
- O Grayson disse-me que o senhor é padrasto dele - começou Emily sem ter a certeza do que dizia. - Espero que não o estejamos a incomodar. Os meus pais costumavam ver sempre o seu antigo show quando vivíamos em Chicago.
Jordan ficou surpreendido com a designação «padrasto». No entanto, seria difícil dizer o que é que ele realmente era a Grayson. As relações familiares eram muito difíceis de definir
- Ela queria conhecê-lo - explicou Gray com uma voz dura e apreensiva, e Jordan sentiu-se imediatamente culpado por o ter humilhado. O rapaz só estava a tentar impressionar uma rapariga bonita. Não havia mal nisso e eles eram de facto aparentados. Não havia motivo para envergonhar o rapaz
- Então, porque não ma apresentas, Grayson? - perguntou cortesmente. - Também gostaria de a conhecer.
- Esta é a Emily Crowell - disse Grayson. - Jordan Hill.
Jordan apertou a mão à rapariga.
- Prazer em conhecê-la.
Emily sorriu para Grayson como se o rapaz tivesse feito um truque de ilusionismo e depois voltou-se para Jordan.
-Gostaria de um dia ser actriz - informou. - Pode dar-me alguns conselhos?
- Comece já - disse Jordan. - Faça testes para todas as produções.
- Acha que sou suficientemente bonita? - perguntou ela com um ar serio.
Grayson sorriu para Jordan, de homem para homem, arvoando uma expressão malandra.
-Não sei, Jordan. Eu não acho. Você acha?
- Grayson - resmungou ela, dando-lhe um ligeiro soco no braço.
Jordan sentiu o sorriso a desaparecer. Queria gostar do rapaz por ser filho de Lillie e irmão de Michele, mas havia algo nele que o irritava por muito que se esforçasse. «Sê honesto», pensou ele. «Não gostas dele porque é filho do Pink.»
- Você é muito bonita - assegurou. - Preocupe-se apenas em aprender a representar.
- Bom, é melhor irmos andando - disse Gray. Levantou o dedo na direcção de Emily, gesto que também era habitual em Pink. - Vamos, Emily. Temos aulas.
-Até à vista - disse Jordan.
Ficou a ver Grayson afastar-se ao lado da beldade de cabelo negro. Percebera que o rapaz o rejeitara e isso aborrecia-o. Além disso, não gostava que o tratasse pelo primeiro nome. Preferia o «senhor». Sentiu vontade de o chamar e dizer-lhe o que sentia. «Calma», pensou. «Pára de te armares em grosseiro.»
Um grupo de raparigas aos risinhos aproximou-se dele; virou-se e sorriu-lhes. Estenderam-lhe folhas de caderno e ele assinou os autógrafos com dedicatórias para elas e respectivas mães.
- Porque é que usa bigode? - perguntou uma mais ousada.
- Faz-me parecer mais novo. Não acha?
Elas riram-se outra vez e depois dispersaram como pequenas aves.
Jordan ficou a vê-las afastarem-se e depois dirigiu-se ao bebedouro. Quando lá chegou, reparou que estava a olhar para um dos cartazes da, campanha de Grayson. Sentiu o nariz enrugar-se enquanto o estudava como se algo cheirasse mal.
Na parte de cima do cartaz lia-se: «Grayson Burdette para Vice-Presidente da Associação de Estudantes.» A fotografia fora tirada no Verão. O cabelo de Grayson parecia quase branco do sol e estava encostado ao carro com um sorriso astuto no rosto. Tinha o braço sobre os ombros frágeis de Michele e ela olhava-o com uma expressão sorridente de admiração.
«O filho-da-mãe», pensou Jordan, olhando para o cartaz. «Com tanta fotografia, tinha de usar uma em que estivesse com a Michele.» Todos os miúdos sabiam o que acontecera com Michele. Ele não escolhera aquela fotografia por mero acaso. Sabia que as pessoas se mostrariam comovidas e sentiriam pena dele. «Provavelmente foi ideia do Pink», pensou ele, enojado. Não! Era demasiado subtil para vir de Pink.
Jordan bebeu outro gole de água, mas soube-lhe mal. «A Michele deveria sentir-se muito orgulhosa de aparecer num cartaz com o irmão mais novo», pensou. Ela adorara aquele rapaz. Jordan recordava-se de que, sempre que Michele estava com ele, passava o tempo a falar alegremente sobre o que o irmão fazia e como era bonito e popular. Gabava a sua habilidade para o desporto. Era um atleta brilhante enquanto ela era delicada e a última a ser escolhida para qualquer equipa. Ficava maravilhada com as notas altas do irmão enquanto se fartava de trabalhar para manter notas medianas.
E agora a sua fotografia iria certamente ajudá-lo a conseguir outra vitória. Se soubesse, pensaria sem dúvida que era óptimo. Todavia, Jordan não conseguia ver as coisas dessa maneira. Sentia que Grayson estava a rentabilizar a memória de Michele.
«Provavelmente só estás com ciúmes», disse a si próprio, olhando para os dois adolescentes na fotografia. «Ciúmes de o pink ainda ter o seu filho e tu já não teres a tua. Talvez seja essa a razão. É estúpido da tua parte», pensou. Michele também era filha de Pink, mas mesmo assim desejava que Grayson estivesse naquele momento à sua frente. Abaná-lo-ia até os dentes lhe caírem.
Tinha de admitir que era uma ideia que o satisfazia, mas impraticável. O miúdo já se fora embora há muito. «Mete-te na tua vida», pensou. Mas antes de se virar, levantou a mão e arrancou o cartaz do quadro. Amachucou-o com as mãos enquanto se dirigia à saída do edifício. Quando chegou à porta, atirou-o para o caixote do lixo que estava no átrio.
A prisão de Ronnie Lee Partin e a declaração de que fora estabelecido um álibi, tendo tudo isto ocorrido durante o fim-de-semana, não tinham conseguido acalmar os nervos do reverendo Ephraim Davis. Sempre suspeitara de que o fugitivo não era quem eles procuravam. Vira as fotografias de Ronnie Lee Partin no telejornal e decididamente não correspondia à pessoa que vira junto aos Três Arcos naquela noite horrível.
- Quer outra fatia de bolo, reverendo? - perguntou Clara Walker com a faca pousada sobre a cobertura de coco.
Absorto nos seus pensamentos, o reverendo não reparara que Bill Walker abandonara a mesa do jantar e que Clara tentava limpar as coisas à sua volta. Olhou para o desejado bolo e depois mentiu.
- Não, obrigado. Não consigo comer mais nada.
Levantou-se da mesa e foi para a sala, por um lado, para não incomodar os afazeres de Clara e, por outro, para fugir à tentação. Em trinta anos de casado, nunca enganara a mulher, mas cobiçara os cozinhados de outras mulheres. As suas viagens tinham-no levado a paróquias com excelentes cozinheiras e pagava caro o seu vício, usando os coletes apertados e cintos nos quais era necessário fazer furos suplementares com martelo e sovela. Tinha provado o frango, as ervilhas, os rabanetes e costeletas de muitas mulheres de todo o estado. No entanto, em Cress County havia poucas guloseimas que se comparassem com o bolo de coco de Clara Walker. O reverendo sentou-se numa cadeira da sala e pegou no jornal da região que estava sobre uma mesa a seu lado. Conseguia ouvir o ruído da serra eléctrica de Bill Walker que vinha da oficina. Bill era um tipo sossegado e introvertido, mas parecia nunca se incomodar com a presença de um estranho em sua casa. O reverendo pegou no jornal e pôs os óculos, sentindo-se, como sempre, grato pela bondade das pessoas que o acolhiam. Abriu o jornal e estudou-o com o interesse superficial de um estranho. Quando chegou às páginas finais, parou e olhou para a fotografia da rapariga.
Era uma rapariga de aspecto normal, havendo, contudo, algo de pungente no seu sorriso. Leu o pedido de informações feito pela família e, simultaneamente, começou a sentir azia por baixo do colete.
Lembrava-se daquele sorriso. Talvez só parecesse pungente agora, depois de tudo o que acontecera. Todavia, era irónico que ele, que tão pouca atenção prestava às coisas dos brancos que o rodeavam, tivesse os seus sonhos assombrados pelo sorriso daquela menina. Disse a si próprio que tentara, que fazer mais seria uma loucura, mas, de facto, dormia pessimamente, não estava bem de saúde e não conseguia libertar-se da vergonha e culpa que sentia por manter o silêncio.
Olhou novamente para a fotografia. Era possível que o que vira não fosse importante, dizia a si próprio pela centésima vez. E era uma boa menina, tinha uma mãe e um pai a sofrer e que mereciam uma resposta. Talvez aquele anúncio fosse a solução. Poderia telefonar para aquele número e falar com eles anonimamente. Seria mais seguro do que telefonar à Polícia e certamente muito melhor do que não fazer nada.
Clara Walker entrou na sala e deixou-se cair no sofá aveludado com um suspiro.
- Alguma coisa interessante no jornal? - perguntou O problema, pensava ele, era que o telefone estava na sala.
Não queria pedir a Clara que saísse da sua própria sala. Estava cansada. Trabalhara todo o dia.
- Nada de importante - disse ele. "Estás outra vez a arranjar desculpas", pensou. "Telefona.
Como que respondendo aos seus pensamentos, Bill Walker
meteu a cabeça pela porta da sala. Tinha serradura no cabelo negro.
- Querida, vem cá fora e dá aqui uma olhadela. Está bem?
Clara rolou os olhos para o reverendo.
- Está a fazer-me uma mesa nova - comunicou ela. - Já vou.
Levantou-se com esforço do sofá com um suspiro e saiu atrás do marido. O reverendo Davis ficou sozinho na sala.
Dirigiu-se ao telefone e depois hesitou. Apesar da humidade fria da noite, sentia o suor a escorrer por baixo da camisa. Pegou no auscultador e marcou o número que vira no jornal. O telefone tocou três vezes e depois surgiu uma voz jovem.
- Estou?
O reverendo Davis respirou fundo e começou.
- Estou... - disse ele. - Estou a falar por causa do anúncio no jornal de hoje. Quero falar com Mister ou Mistress Burdette.
- O que se passa com o anúncio? Fala o Grayson Burdette.
- É sobre a Michele. O homicídio. Acho que estou em posse de algumas informações.
- com quem estou a falar, por favor? - replicou Grayson num tom cortante.
O reverendo ficou calado e zangado consigo próprio por causa desse silêncio. Tinha vergonha de não conseguir dizer o seu nome a um miúdo.
Olhe - disse o rapaz numa voz frágil. - Não sei quem é o senhor, mas se é que é maluco ou psicótico... ~~ É muito grave, garanto-lhe. ~~~ Então, porque não se identifica?
Mais uma vez o reverendo não conseguiu responder. Não exactamente a recepção que esperara.
- Sabe alguma coisa sobre o assassínio da minha irmã? Porque é que não disse nada à Polícia?
- Vi o anúncio no jornal. Dizia para telefonar...
- Telefone ao xerife Royce Ansley e fale com ele.
À excepção de segunda-feira à noite, em que concordara em ajudar Brenda e Loretta com o jantar das Filhas da Confederação, Lillie ficou em casa e esperou junto do telefone. Esteve com os nervos à flor da pele durante todo o dia de segunda-feira, pois tinha a certeza de que alguém leria o anúncio e telefonaria. Quando chegou a casa na segunda-feira à noite, Grayson admitiu com desgosto na voz que um lunático qualquer tinha telefonado, mas, de resto, mais nada. O dia de terça-feira pareceu-lhe interminável. O telefone tocou várias vezes, sem contudo ser nada importante, e no final do dia ela estava espantada com o cansaço que sentia por estar sentada à espera. Fê-la lembrar as longas horas que esperara à porta das salas de operações, em que não havia nada a fazer para além de concentrar a atenção, a energia mental, numa coisa em relação à qual era impotente. E esperar pelo veredicto. Quando Grayson chegou a casa na terça-feira à noite, ela fez algumas perguntas mais concretas sobre a pessoa que tinha telefonado na véspera.
- Como podes ter a certeza de que era um embuste? - perguntou, mantendo-o sentado à mesa do jantar.
-já te disse - afirmou Gray pacientemente. - Era um tipo negro. Não tinha nada para contar. Não queria dizer o nome. Só telefonou para nos incomodar. Disse-lhe que, se sabia alguma coisa, que telefonasse ao xerife.
- Mas a questão era exactamente essa - insistiu Lillie. - No caso de alguém não querer telefonar ao xerife.
- Lillie - interveio Pink - Por amor de Deus, pára com isso. O Grayson está certo. Disse ao homem que telefonasse ao xerife. Se o tipo soubesse alguma coisa e tivesse telefonado ao xerife, não achas que já saberíamos?
- Eu sei - disse ela. - Eu sei.
- Se sabes, então porque não paras com isso? Depois de pai e filho terem saído da mesa, ela permaneceu
sentada, caída numa cadeira, olhando cegamente para a confusão que ia à sua volta. Pink tinha razão. Estava agarrada àquela ideia do anúncio como se fosse uma esperança. Mas esperança de quê?, perguntou a si própria. Mesmo que alguém telefonasse, isso não lhe devolveria a filha. O que podia fazer era limpar tudo e cair na cama.
Na manhã seguinte, quando acordou reinava o silêncio em casa e estava sozinha. Tal como um pugilista depois de um combate, os olhos vidrados e os joelhos trémulos, achava-se finalmente encurralada. Sabia que tinha de enfrentar a perda.
Demorou muito tempo a levantar-se. Quando o fez, forçou-se a ir à cozinha e comer uma torrada. A seguir tomou duche e lavou a cabeça. Depois, voltou para o quarto.
A luz do Sol entrava pela janela do quarto, caindo sobre o tapete verde-pálido e rosa que fora da sua avó. Olhou para a cama, mas dirigiu-se ao toucador, sentando-se em frente ao espelho ao lado da janela aberta. Fechou os olhos e respirou o claro ar de Outubro. O Outono no Tennessee nunca era muito seco, tal como diziam ser na Nova Inglaterra, por exemplo. mas naqueles primeiros dias de Outono sentia-se um ar fresco e sedoso, e o céu, visto através das cortinas de renda de Lilud estava azul-claro. Lillie ficou sentada com as mãos no colo, deixando que a dor passasse por ela, assumindo a perda, aceitando-a de uma maneira que, até então, evitara. Era um daqueles dias em que as pessoas se sentiam alegres por estarem vivas. Lillie limpou as lágrimas que corriam pelas faces. Algum tempo depois, já sabia o que queria fazer.
Levantou-se lentamente e dirigiu-se ao guarda-fatos. Tirou um par de calças de bombazina cinzenta e vestiu-as. com uma vaga sensação de surpresa, reparou que ficavam penduradas nas ancas e faziam um balão na cintura. Toda a gente ralhara e lhe dissera que comesse. Notava, pela primeira vez, que já tiinha perdido alguns quilos. Usou um cinto para segurar as alças na cintura. Depois foi à cómoda e procurou na gaveta das camisolas. Andava à procura da camisola mais escura que possuía quando os seus olhos recaíram sobre uma de algodão azul-safira que Michele lhe comprara como prenda de aniversário. Era uma camisola grande e larga do tipo mais apreciado pelas jovens. Lillie nunca a teria comprado para si, mas Michele aplaudira quando a mãe a provara e Lillie tivera de admitir que lhe ficava muito bem. Michele tinha-se gabado de que já sabia que iria ficar-lhe bem. Lillie tirou a camisola e vestiu-a. Já vestida, sentou-se ao toucador e olhou-se ao espelho. A sua pele estava mais pálida que nunca. A luz do Sol parecia incendiar as pontas do seu cabelo escuro e ondulado que caía sobre os ombros e até os olhos pareciam mais claros do que era costume, como se a luz solar fosse filtrada através deles, retirando-lhes a cor. Se bem que tivesse uma constituição frágil, Lillie considerava-se uma pessoa saudável e forte. Porém, a pessoa que via no espelho parecia evanescente, como uma baforada de fumo prestes a dissolver-se. Lillie abriu a gaveta da maquilhagem e colocou um pouco de blush nas faces. Agora percebia por que razão Brenda mencionara a sua falta de maquilhagem. Até para si própria parecia um fantasma. O blush cor-de-rosa ajudava. Usou um bâton rosa-pálido nos lábios, mas não tocou nos olhos. De qualquer modo, as lágrimas limpariam toda a maquilhagem. Prendeu o cabelo húmido num rabo-de-cavalo, se bem que algumas madeixas escapassem e se encaracolassem junto à pele pálida das têmporas.
Levantou-se do toucador e saiu de casa. Foi para o jardim
E ficou de pé no meio das flores já murchas de Verão e os brilhantes rebentos de Outono. O dia foi ainda mais solitário e agridoce do que ela imaginara. Foi ao barracão buscar os instrumentos de jardinagem e regressou ao jardim. Inclinando-se, começou a podar. Cor-de-rosa, douradas e castanho-avermelhadas, as dálias e as zínias caíam-lhe no cesto. Algumas rosas creme e cor de pêssego ainda balançavam ao vento. Também as
cortou e juntou ao ramo. Ergueu-se e esfregou as costas.
Depois, dirigiu-se a casa e encheu um frasco vazio de maionese
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com água. Arranjou as flores dentro do frasco e voltou a colocar as luvas, tesoura e cesto no barracão. Seguidamente, pegou numa pá e nas flores e dirigiu-se ao automóvel.
Do outro lado da rua, o velho cavalo resfolegava no campo que ficava por trás da vedação de madeira. Lillie hesitou durante alguns instantes à porta do carro, mas depois colocou as flores no assento do passageiro e atravessou a estrada até à vedação. Arrancou um punhado de erva e ofereceu-o ao velho animal. O cavalo enfiou o focinho por cima da vedação e mordiscou as ervas que ela tinha na palma da mão. Lillie passou os dedos pela áspera crina e encostou ligeiramente a cabeça ao seu focinho quente, que suavizou o frio da sua pele. O cavalo perdeu rapidamente o interesse nas ervas e afastou-se. Lillie voltou a atravessar a estrada e meteu-se no carro.
O cemitério situava-se a uma distância de apenas três quilómetros, mas as ruas tranquilas de Felton nunca lhe tinham parecido tão bonitas e sossegadas. Ela recebeu bem a dor que lhe inundou o coração. As flores estavam direitas a seu lado, como uma criança obediente.
Estacionou o carro na berma da estrada e atravessou o portão de ferro que constituía a única marca do velho cemitério. Há muito que tinham escolhido um lindo local para a sepultura. As árvores protegiam-na e estava rodeada de terras de lavoura. Margaridas amarelas e asclépias cor de laranja cresciam ao longo da vertente que ia ter às sepulturas. Lillie não voltara ao cemitério desde o dia do funeral. Estivera lá muita gente e o tempo chuvoso mostrara-se carregado de raiva, tensão e lágrimas. Agora, enquanto descia ao local onde Michele estava enterrada, podia sentir a paz e a tranquilidade imperturbável e infinita daquele lugar.
Estava ainda a alguma distância da sepultura quando reparou que não se encontrava sozinha. Ficou assustada, pois convencera-se de que iria estar só. Pensou se teria estado a falar consigo própria em voz alta, mas não. Era claro que Jordan Hill não dera pela sua presença. Estava ao lado da sepultura com um joelho por terra, olhando para a cruz branca que temporariamente marcava o local até ser colocada uma lápide. As sombras dos ramos passeavam-se pelos seus ombros inclinados e à medida que se aproximava, Lillie podia ver que ele estava a tremer, se bem que o dia estivesse agradável. Não quis assustá-lo e por isso disse suavemente o seu nome.
Jordan levantou-se desajeitadamente e olhou para ela com os olhos brilhantes por entre as lápides do cemitério. O coração de Lillie reagiu de uma maneira que já esquecera há muito, quando viu a dor de Jordan. Tentou ir buscar a antiga raiva, mas, por alguma razão, pareceu-lhe pouco importante. Olhou para as flores que trazia dentro do frasco.
- Pensei em colocar estas flores na sepultura - disse ela. Conseguia vê-lo a engolir em seco e a afastar o olhar. Aclarou a garganta e alisou o bigode num gesto nervoso.
- Eu vou-me embora.
- Não faz mal - disse ela. Encaminhou-se para a sepultura e baixou-se ao lado. Pousou o frasco e a pá que trazia debaixo do braço. - São do jardim.
- São lindas.
Lillie enterrou a pá na terra. O solo avermelhado já começava a ter a crosta invernosa. Alguns instantes depois, Jordan ajoelhou-se a seu lado.
- Importas-te que eu faça isso? - pediu ele.
Lillie olhou para Jordan e depois entregou-lhe a pá. Inclinou-se para trás e manteve as flores no colo enquanto ele cavava. Observou as mãos de Jordan a trabalhar e pareceram-lhe mais familiares do que o rosto. Quando ele estendeu a mão para o frasco e os seus dedos se tocaram, ela sentiu um choque, como se não tivesse percebido que eram de carne e osso. Era como se as tivesse visto numa recordação.
Jordan colocou o frasco no buraco que cavara e depois tapou com terra. Afastou-se um pouco e olhou para as flores e Para a cruz. Depois baixou a cabeça. Lillie fez o mesmo.
Quisera estar ali sozinha e falar com a filha com o coração.Sabia que a presença de Jordan deveria parecer uma terrível intrusão, mas não era assim. Disse as suas orações e o seu coração falou à vontade. Apesar de tudo o que acontecera, sentia-se estranhamente reconfortada com o facto de estarem juntos. A mãe e o pai de Michele.
Quando Jordan estendeu o braço para a ajudar a levantar-se, ela não lhe afastou a mão. A amargura já não estava lá "Ele tem as suas próprias lágrimas e dor", pensou. Permitiu que a ajudasse a erguer-se. O silêncio entre eles era confrangedor, mas não havia rancor. Ele olhava-a com uma expressão estranha e ocorreu-lhe subitamente se não seria a camisola que a fazia parecer demasiado alegre ou demasiado colorida, pois Jordan usava os tons sóbrios do luto.
- Acho que deveria estar vestida de preto - disse
mas vesti esta camisola porque foi ela que ma ofereceu.
A expressão grave de Jordan transformou-se em surpresa e depois sorriu e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A imagem que veio à cabeça de Lillie foi a de um arco-íris que aparece quando ainda está a chover.
- Sabia muito bem qual era o número que vestias - observou ele.
Lillie começou a falar e depois calou-se. Podia não sentir amargura, mas continuava a não querer falar com ele sobre Michele. Virou as costas à sepultura e encaminhou-se para o carro.
- Queres uma boleia? - perguntou ela. - Não vi mais nenhum carro.
- Vim a pé de casa da minha mãe - afirmou ele. Acho que vinha dizer adeus.
- Vais regressar a Nova Iorque? - perguntou ela educadamente.
- Esta tarde.
- Ah!
Desceram a colina lado a lado, passaram o portão e dirigiram-se ao local onde o carro se encontrava estacionado. Uma velha tartaruga castanha atravessava lentamente a estrada com os seus pés tortos. Jordan aproximou-se, levantou-a do chão e colocou-a do outro lado da estrada, enquanto o animal movimentava as patas no ar em sinal de alarme. Depois voltou para junto de Lillie, que estava encostada ao carro.
- A vida deve continuar - afirmou Lillie. Jordan franziu o sobrolho.
- Dizem que sim.
- É o que toda a gente está sempre a dizer-me - insistiu.
- Acho que tenho andado um bocado transtornada desde
que tudo aconteceu.
Jordan anuiu com a cabeça.
Já obtiveste alguma resposta àquele anúncio do jornal?
Alguém telefonou?
Um doido. Só isso.
Estava a pensar falar com o xerife antes de me ir embora se bem que eu e ele nunca nos tivéssemos dado muito bem.
Lillie suspirou.
Acho que vais desperdiçar tempo. Só sabem quem não é
o assassino. Nomeadamente, o Ronnie Lee Partin. Tenho estado a tentar... Não posso... não posso continuar a pensar nisto. Não está nas minhas mãos. Talvez ande sempre a pensar no homicídio para não me lembrar de que a Michele está morta. Tenho de aceitar o facto de que nada, nada a trará de volta. É o que toda a gente me diz e têm razão.
Jordan enfiou as mãos nos bolsos e expirou lentamente. As suas sobrancelhas escuras formavam uma linha densa e pesada sobre os olhos.
- Lillie, eu sei que isso é verdade, mas continuo a querer que apanhem o filho-da-mãe, o prendam e deitem fora a chave.
Lillie olhou para ele e os seus olhos encontraram-se como dois membros da milícia popular a reconhecerem a presença um do outro. Depois, Lillie abanou a cabeça.
- Acho que tenho andado a... namoriscar com uma depressão nervosa e não posso dar-me a esse luxo. Ainda tenho uma família em que pensar.
Arrependeu-se imediatamente do que tinha dito. Ele arqueou as costas, o que exprimia com mais clareza do que quaisquer palavras que estava completamente só. "A culpa é só dele", recordou a si própria.
Jordan olhou à sua volta.
Sabes - prosseguiu ele -, lembro-me de caminhar por aqui quando era rapaz. O cemitério da cidade. Era apenas um lugar assustador por onde se passava a correr na Noite das Bruxas.
Lillieassentiu com a cabeça e não disse nada.
- Podemos ir para longe, mas nunca nada é exactamente o mesmo. Esta zona fica-nos no coração. Estou sempre a conhecer pessoas que não sentem nada pelo sítio onde nasceram e cresceram. Não têm um lugar que os chame. Quando a Michele existia, sentia sempre que uma parte de mim ainda estava aqui. Ainda fazia parte disto.
Lillie olhou para os campos tranquilos.
- Não sei - disse ela. - Nunca estive noutro sítio.
Depois, arrastou os pés pela estrada. Um áster ficou-lhe preso nos atacadores. - Isto não é bem verdade. Já estive nos aeroportos e hospitais de algumas grandes cidades.
Jordan olhou para ela, como que esperando ira, mas nos seus olhos só viu um olhar distante de recordação.
- bom - proferiu ela rapidamente -, será melhor voltarmos. A que horas é o teu voo?
- Às quatro horas em Nashville - disse ele.
Ele abriu-lhe a porta do carro e depois deu a volta para o lado do passageiro.
Lillie voltou a olhar para os portões do cemitério.
- Ela estava sempre ansiosa por ir a Nova Iorque ter contigo. Tinha tanto orgulho nisso. De apareceres na televisão. Adorava.
- E eu adorava-a - disse ele em voz baixa.
Lillie pôs o motor em marcha, sem olhar para o rosto dele.
O reverendo Ephraim Davis ficou de pé nas escadarias da câmara municipal e respirou fundo. Sentia o coração leve e paz de espírito, sensação que só se pode ter quando se sabe que se fez uma coisa difícil, mas correcta, e se tem consciência disso. Estivera duas noites sem dormir depois de ter falado ao telefone com aquele rapaz, o irmão da rapariga assassinada. A sua consciência dizia-lhe para falar com o xerife e o seu instinto de sobrevivência dissera-lhe que se metesse no carro e voltasse para Memphis.
O seu sermão ficou por escrever e os paroquianos de Hilton por visitar enquanto ponderava o problema. Talvez sempre tivesse sabido o que iria fazer. Era um homem que dedicara a sua vida ao bem. Por isso, vomitara o pequeno-almoço depois, com o coração receoso e em oração, fora falar com o xerife. Agora sentia-se feliz, aliviado e até recompensado. De facto fora fácil. O xerife mostrara-se interessado e educado. Tinha todo o ar de ser um antigo militar, e o reverendo Davis, como muitos da sua geração, sentia muito respeito pelos soldados. Não era um xerife qualquer. Era um cavalheiro que lhe chamava "senhor", lhe fez algumas perguntas e lhe agradeceu com um aperto de mão as informações que prestara. Agora já sentia que podia voltar ao seu serviço a Deus com a consciência tranquila. Fizera o seu dever como cidadão e como homem de Deus. Quase desceu os degraus aos saltos até ao carro. Tinha fome e gostava muito do churrasco do Otis's Pit Stop, mas daquela vez achou que não iria lá. Queria voltar para a igreja e para o trabalho que fora chamado a fazer. Quando desceu o último degrau, passou por um homem branco vistoso e robusto que usava um casaco cinzento-escuro.
- Está com um ar muito alegre hoje, reverendo. - O rapaz proferiu aquelas palavras enquanto tentava não colidir com ele no degrau.
- bom, está um dia lindo, meu filho - afirmou o reverendo Davis.
Jordan ficou a ver o padre a descer os degraus e entrar na carrinha Ford em dois tons de verde, que lhe parecia familiar. Jordan desejou sentir-se tão alegre como o velho padre. Abriu a porta da câmara municipal e encontrou Francis Durham, o expedidor, que lhe indicou o gabinete do xerife.
- Mas ele não está lá - disse Francis. - Vai para uma reunião.
- Já saiu? - perguntou Jordan.
- Acho que está nos lavabos dos homens - informou Francis bruscamente.
Jordan hesitou alguns segundos, depois percorreu o corredor até aos lavabos e abriu a porta. Empurrou para trás a porta interior e entrou. Royce Ansley estava a fechar o fecho das calças junto ao urinol. O chapéu encontrava-se pendurado no cabide.
- Xerife - chamou Jordan. - Posso incomodá-lo um minuto?
A sua voz fez eco nos azulejos.
- Não pode esperar? - perguntou Royce, dirigindo-se ao lavatório.
- Não. Não pode - replicou Jordan. - vou voltar para Nova Iorque esta tarde e queria falar consigo antes de partir O Francis disse que estava a caminho de uma reunião.
Royce abriu a torneira, enrolou as mangas e deitou um pouco de sabonete líquido na palma da mão.
- Exactamente.
Jordan conseguia perceber que o xerife não gostava dele enquanto lhe olhava para os olhos pelo espelho pendurado sobre a sua cabeça. Fez de conta que não percebeu e continuou.
- Tenho estado preocupado com a investigação. Sei que tem de pensar em todo o condado e eu calculei que talvez pudesse ajudar, contratando um detective privado. Alguém que pudesse dedicar-se ao caso a tempo inteiro. Não queremos que o rasto arrefeça.
Royce ensaboou cuidadosamente as mãos e depois passou-as por água. Virou-se para Jordan enquanto as sacudia, e gotas de água caíram sobre o casaco cinzento.
- Não interpretou já o papel de detective numa das suas séries de televisão? - perguntou Royce.
O rosto de Jordan endureceu quando retribuiu o olhar do xerife.
- Sim, já. O que é que isso tem a ver com o caso?
- Não é isso que dizem na televisão? Não deixar arrefecer o rasto?
Antes de Jordan poder responder, Royce premiu o botão do secador de mãos e começou a esfregá-las por baixo do jacto de calor. O ruído do secador fazia com que Jordan não pudesse ser ouvido. Esperou até que o secador parasse; o xerife começou a desenrolar as mangas.
- Olhe, xerife - disse Jordan. - Não estou a tentar meter-me nos seus assuntos, mas quero resultados. Foi a minha filha que morreu.
Royce foi buscar o chapéu e o casaco. A expressão dos seus olhos cinzentos tornou-se distante.
- Sabe, Mister Hill, lembro-me do dia em que aquela
criança nasceu. A Lillie entrou em trabalho de parto e telefonou-me para a ir buscar e levá-la ao hospital. O senhor já se tinha ido embora ou estava a preparar-se para as abandonar?
. Estava lá - disse Jordan friamente.
Ah, é verdade! Só se foi embora quando descobriu que
o bebé não era saudável.
A porta dos lavabos dos homens abriu-se e Wallace Reynolds entrou. Olhou para os dois homens que se fixavam ferozmente e depois cumprimentou o xerife.
- Precisa que vá consigo, xerife? - perguntou.
- Não. Toma conta das coisas por aqui, Wallace.
- Está bem. Só vim urinar.
- Encontramo-nos lá fora - disse Royce. Empurrou a porta interior e Jordan seguiu-o.
- Não me interessa o que pensa a meu respeito, Royce afirmou Jordan -, mas aconselho-o a apanhar o tipo que matou a minha filha.
- É a única coisa que desejo - declarou Royce.
- E quero que me mantenha informado - disse Jordan.
- Telefone quando quiser - sugeriu o xerife maliciosamente. - Alguém o informará. Neste momento não tenho nada a dizer-lhe.
Jordan percebeu que seria inútil acrescentar mais alguma
coisa. O homem considerava-o um proscrito, um ser quase tão indesejável como o assassino que procuravam. Era uma cidade onde as pessoas não perdoavam nem esqueciam. Um dia fugira de uma filha doente e de uma esposa muito jovem para correr atrás de um sonho. Agora tinha fechadas todas as portas da cidade. Não havia qualquer explicação que as voltasse a abrir.
de certo modo compreendia. Era esperar demasiado. Deixara o destino da filha nas mãos de outros e era tarde de mais para voltar a querer. Não tinha alternativa senão confiar neles.
Jordan virou-se e saiu. Nem ele nem o xerife se deram ao trabalho de se despedir.
Nas semanas que se seguiram à partida de Jordan, a vida voltou a um ritmo quase normal. Pink tentara vender uma parcela de uma grande quinta a um indivíduo que queria fundar um negócio de aluguer de automóveis, mas o vendedor voltara atrás no último momento. Lillie fazia muito serviço de voluntariado no hospital e ela, Brenda e Loretta tinham o calendário cheio com almoços e jantares que solicitavam os serviços da Home Cooking. Não houve mais telefonemas sobre o anúncio do jornal. Royce passava lá por casa de vez em quando para informar que estava a interrogar esta ou aquela pessoa ou para lhes mostrar os relatórios laboratoriais sobre elementos recolhidos na cena do crime. A arma do crime não fora recuperada, se bem que o laboratório já tivesse determinado que era feita de madeira. Só Grayson tinha notícias frescas. Ganhara facilmente a eleição na escola e entrara num jogo em que tinham saído vitoriosos os Cress County Cougars. Lillie tentou mostrar entusiasmo, mas era difícil experimentar esse tipo de emoção. Sentia-se feliz por a vida do filho correr tão bem. Apercebia-se frequentemente de que a sua apenas marcava passo.
Numa segunda-feira à tarde em finais de Outubro, Lillie acordou quando ouviu bater pesadamente à porta. No despertador digital lia-se quatro e meia e mal conseguiu acreditar que tivesse estado adormecida durante mais de uma hora. Durante o dia esforçava-se bastante por manter uma atitude positiva, mas, quando se tornava demasiado difícil, o sono era a sua fuga.
A única desvantagem do esquecimento provocado pelo sono era o facto de acordar com uma sensação terrível e já conhecida de vazio e perda.
- Só um minuto - balbuciou, dizendo depois em voz alta: - Já vou.
Percorreu o corredor até à porta principal, passando as mãos pelo cabelo para o afastar do rosto e beliscando as faces. Abriu a porta e olhou lá para fora. Inicialmente não viu ninguém, mas depois reparou que Aliene Starnes estava sentada numa das cadeiras de balouço do alpendre, limpando os olhos com as mãos. Lillie saiu e tremeu ao sentir o frio daquela tarde de Outubro. Sentou-se noutra cadeira de balouço ao lado da rapariga.
- Aliene?
A rapariga olhou para Lillie com os olhos vermelhos.
- Olá, Mistress Burdette.
- O que se passa, querida? - Lillie bocejou e abanou a cabeça. - Perdão. - Apertou a camisola contra o peito.
- Não queria acordá-la - disse a rapariga tristemente.
- Não faz mal - respondeu Lillie. - Não devia estar a dormir a esta hora.
- O Grayson está em casa? - perguntou Aliene.
- Não. Acho que não. Talvez tenha entrado enquanto eu estava a dormir. - Lillie levantou-se e abriu a porta. - Grayson - chamou. Não se ouviu nada para além do silêncio.
- Sabe onde é que ele está? - perguntou Aliene. Lillie franziu o sobrolho.
- Esta manhã disse que depois da escola ia ter com alguém. Parti do princípio de que eras tu.
- Supostamente era comigo - disse Aliene. - Ficámos de nos encontrar junto do meu cacifo depois das aulas.
- E ele não apareceu? - perguntou Lillie com o tom de voz a subir.
Aliene começou a chorar e abanou a cabeça. As lágrimas cairam-lhe pelas faces como gotas de água de um guarda-chuva molhado.
Lillie começou a sentir suor nas palmas das mãos. «Deve haver uma explicação muito simples», disse a si própria. «É praticamente um homem. Sabe tomar conta de si. Mas não havia racionalização que afastasse o medo que subitamente a atacara.
- Eu não sei - prosseguiu Lillie agitada- Talvez tivesse ido a algum lado com o Russel ou outro qualquer. Deve estar a aparecer.
- Eu já sabia - soluçou Allene. - Já sabia. Ele estava a planear tudo isto.
- O quê, Aliene? - perguntou Lillie.
- Tudo - disse Allene. - Tenho de me ir embora.
- Espera - pediu Lillie. - Espera. Se sabes onde é que ele está, por favor, diz-me. Estou preocupada. Se ele disse que ia ter contigo...
- Acho que mudou de ideias... - proferiu Allene numa voz baixa e dura.
- Mas onde é que ele pode estar? - gritou Lillie.
- Tenho um palpite - disse Aliene com azedume.
E subitamente Lillie percebeu que poderia haver outra rapariga.
- Quando ele chegar, digo-lhe que te telefone - afirmou Lillie suavemente.
- Não é preciso - retorquiu Aliene. -- Será demasiado
tarde.
Aliene desceu os degraus do alpendre a correr, subiu para a bicicleta e dirigiu-se para a cidade. Lillie ficou a vê-la afastar-se. Por um lado, tinha pena dela e esperava que a rapariga não ficasse com o coração destroçado. Por outro lado, esperava que Aliene tivesse razão e que ele se encontrasse em segurança na companhia de outra rapariga. O cabelo cor de cobre de Aliene parecia uma pequena chama no meio dos castanhos outonais. "O amor é tão doloroso quando se é jovem», pensou. «O coração é tão vulnerávell.» O som do telefone interrompeu-lhe os pensamentos e o coração palpitou, - Talvez fosse Grayson. Fechou a porta, entrou e atendeu. O som da voz que veio do outro lado assustou-a.
- Jordan? - perguntou.
- Como estás, Lillie?
Lillie olhou pela janela para a estrada, esperando ver o filho.
- Tenho de desligar - disse ela. Jordan ficou em silêncio. - Olha, Jordan! Não posso ter o telefone ocupado.
- Desculpa. Não queria incomodar-te. - A sua voz era profunda e, como todos os actores, tinha aquela capacidade de a tornar rica e confiante, mas Lillie conseguia perceber a preocupação.
- Onde estás? - perguntou, desta vez com mais amabilidade. - Estás em Nova Iorque?
- Sim. A trabalhar e tudo. Estava a pensar se já haveria notícias. Não queria incomodar-te, mas é frustrante não saber o que se está a passar.
- Podes crer - acrescentou ela - que sabes tanto quanto eu. Já disse ao Pink que acho que o xerife está tão desencorajado como nós. Porém, não parece haver muito a fazer.
- Acho que não - anuiu ele.
Lillie ouviu passos no corredor e virou-se, pensando tratar-se de Grayson. Era Pink.
- A propósito - disse ela a Jordan. - A tua mãe veio visitar-me.
- Foi? Que tal a achaste? Tenho estado preocupado com ela.
- Pareceu-me bem. E muito forte. Já passou muito na vida. De facto, acabou por conseguir que me sentisse melhor.
- Isso é bom. - O alívio na voz de Jordan era patente.- Tive medo que tudo isto fosse demasiado para ela.
Lillie conseguia detectar um certo tom na sua voz que conhecia há muito tempo. Estava a preparar-se para ter uma conversa séria. Pink saíra e voltara à sala com uma garrafa de JacDaniels e um copo. Serviu-se, franzindo o sobrolho para o copo. - Ela sabia que aquela expressão não era dirigida ao uísque.
- bom - disse ela bruscamente -, se soubermos alguma coisa, aviso-te.
- Está bem - retorquiu Jordan, parecendo um pouco surpreendido.
- Obrigada por teres telefonado. - Trata de ti, Lillie. - Assim farei. Adeus. Desligou o telefone.
- Bom - disse Pink - O que é que o Romeu queria? Lillie olhou para ele com frieza.
- O Jordan queria notícias sobre a investigação. Pink abanou a cabeça e serviu-se de mais uísque.
- Que oportunidade de ouro. - Suspirou. - Está há muito tempo à espera de uma oportunidade como esta...
- Pink - interrompeu ela. - Estou preocupada com o Grayson. Ficou de ir ter com a Aliene depois das aulas...
Pink bebeu deliberadamente de um trago todo o uísque que tinha no copo.
- Depois do dia que tive, é óptimo chegar a casa e encontrar a minha mulher a conversar confortavelmente ao telefone com o ex-marido.
- Ouviste o que disse? - perguntou Lillie. - O Grayson não foi ter com Aliene e não veio para casa...
- Por amor de Deus - disse Pink - Ele tem dezasseis anos. Decerto encontrou algo melhor para fazer.
- E se ele teve um acidente ou coisa assim?
- Não fiques histérica, Lillie.
- Lamento. Preocupo-me com ele. Já perdi um dos meus filhos. Não posso evitar esta preocupação.
- Sim. Eu também estou preocupado. Preocupado com a minha mulher e o ex-marido.
- O Jordan telefonou para saber se havia notícias sobre o homicídio da Michele. Parece-te estranho que ele deseje que o assassino da filha seja apanhado? - inquiriu, furiosa.
- Ah, é verdade. Ele é o pai verdadeiro. Tinha-me esquecido.
Lillie olhou tristemente para o marido.
- Tu foste o único pai verdadeiro da Michele, Pink Ninguém poderá dizer o contrário. Só estou a tentar explicar-te por que razão ele está preocupado.
- Pai... - pronunciou Pink - Ele não foi pai. Foi apenas um pénis erecto. Não passou disso. E agora viu uma oportunidade de o pôr de novo à tua frente. - Pink levantou o copo e despejou-o. - À sua saúde.
- Meu Deus - disse Lillie, dirigindo-se à porta. Ele seguiu-a pelo corredor até à cozinha.
- Não me vires as costas, Lillie.
Ela virou-se e encarou-o.
- Então, não fales como um porco!
- Eu sei - assentiu ele. - Tens razão. - Tapou a garrafa e pousou-a no balcão da cozinha. - Tive um dia péssimo - murmurou.
Lillie abriu a porta do frigorífico e" olhou lá para dentro. Não lhe apetecia falar com Pink Suspirou e tirou uma embalagem de hambúrgueres. Depois olhou para o marido.
- Achas que devíamos ir procurar o Grayson? - perguntou.
- Ainda nem sequer é noite! - exclamou Pink.
- Está bem - disse Lillie, ainda com a embalagem de carne na mão. - Só pensei. A Aliene estava tão perturbada...
- Ele é demasiado jovem para estar preso a uma só rapariga - afirmou Pink - Tem a vida toda à sua frente. Sinto-me péssimo, Lillie. Vou-me deitar.
- Vai.
- Chama-me quando essas coisas estiverem prontas pediu Pink.
- Está bem - disse Lillie com um suspiro.
Aliene sabia onde procurar Grayson. Era a chamada intuição feminina. Como se um pequeno demónio estivesse vivo dentro do seu estômago, atormentando-a. Já o sabia antes de ir a casa dele. Tivera a ideia quando estava à sua espera fora da escola e cumprimentara RusselMeeks, perguntando-lhe se vira Grayson. Russeldissera que o vira há pouco a falar com Emily Crowell e subitamente afastou o olhar como se se sentisse culpado. Aliene percebeu imediatamente.
Pedalava, mal conseguindo ver por onde ia. Na realidade, não era preciso prestar atenção. Vivera toda a sua vida naquela cidade e sabia de cor o caminho para a quinta dos Millraney. Ela e Grayson tinham lá ido algumas vezes. Todos os' momentos que lá passara brilhavam na sua memória como se fossem ouro.
Da primeira vez ela não quisera ir, mas Grayson convencera-a de que não havia qualquer problema. Estava desabitada.
Era uma propriedade que o pai de Grayson tinha para vender. O velho Millraney morrera e o seu único herdeiro era um sobrinho de Chicago que apenas queria livrar-se da propriedade. Todavia, ninguém a queria comprar por estar velha e em mau estado. Ainda tinha no seu interior toda a mobília e pertences acumulados durante anos. Nem era preciso chave para entrar, dissera Grayson. E tinha razão.
Aliene sentia-se a pedalar pelo meio de uma seara, o coração e os membros extremamente pesados. «Talvez não encontre lá ninguém», disse a si própria. «Talvez estejas a fazer uma tempestade num copo de água. Sabes que ele esteve a falar com uma rapariga bonita e condena-lo imediatamente.» Travou e parou a bicicleta. Equilibrou-se sobre uma perna à beira da estrada, com o outro pé ainda sobre o pedal. «Se fores já para casa talvez tudo fique bem.» Parou alguns instantes, olhando fixamente, mas sem ver, para o outro lado da estrada, onde montes de folhas castanhas se agitavam nos milheirais secos.
Tinha de ter a certeza. Voltou a montar a bicicleta e continuou. Alcançou uma estrada estreita e cheia de buracos e pedalou através de um grande campo vazio. Após a curva seguinte erguia-se a velha casa. Os últimos raios de sol da tarde caíam sobre o telhado e faziam brilhar as janelas poeirentas. Atrás da casa havia um celeiro com um buraco no telhado e um curral desgastado pelo tempo. Não muito longe da porta das traseiras via-se um antigo poço de pedra. A primeira vez que Grayson a levara lá, dera-lhe uma moeda e dissera-lhe que formulasse um desejo. Depois murmurara-lhe ao ouvido aquilo que tinha desejado. Ainda ficava sem respiração só de pensar no calor do seu hálito, o roçar dos lábios na orelha, as mãos a agarrar as dela, conduzindo-a para a casa sob os fracos protestos de um desejo enorme.
O carro desportivo vermelho de Emily Crowell encontrava-se estacionado junto à porta das traseiras. Sabia que era o carro de Emily. Não havia muita gente na escola que tivesse carro e Emily já tinha idade para conduzir. O pai era um alto funcionário do banco e, por isso, Emily possuía um carro desportivo, que Grayson já várias vezes admirara em voz alta.
O seu vermelho cor de rubi brilhava agora na entrada da garagem e só a sua presença era como uma faca no coração de Aliene.
Desceu da bicicleta no início da passagem e encostou-a à anca, agarrando no guiador com as mãos a suar. Sabia qual era a janela do quarto. Sabia onde eles estariam. Lembrava-se da primeira vez que ele a atraíra ao quarto com palavras de amor e ela desejara ir, mesmo sabendo que não estava a agir correctamente. Quando fechara os olhos, sentira as protuberâncias da colcha na pele nua e toda a opulência de Grayson dentro de si e vira aquele belo rosto contorcer-se de desejo enquanto se elevava, gemendo, sobre ela.
«Não quero ir à janela olhar», pensou. Vê-los juntos poderia ser mais terrível do que a imagem mental, mas uma enorme necessidade de tirar todas as dúvidas forçou-a a avançar. Ao aproximar-se da janela, formaram-se-lhe na mente pequenos fragmentos de orações. Os vidros estavam sujos e reflectiam a luz. Fechou a mão e esfregou cuidadosamente a parte inferior do vidro. Enquanto isto, esteve sempre a pensar que poderia não existir nada para ver. Talvez estivessem a estudar. Ela sabia que ele dava explicações. Acontecera com Tyler Ansley antes de ele ir para a academia militar. Costumavam encontrar-se ali. Grayson dissera-lhe. Talvez estivesse a dar explicações a Emily.
O canto do vidro ficou limpo e Aliene agarrou-se ao parapeito e olhou lá para dentro.
Ele estava em cima de Emily: a colcha emaranhada nas pernas, os seios brancos e redondos espalmados contra o seu peito dourado e o cabelo espalhado na almofada. Tinham os olhos fechados, as bocas abertas e moviam-se em conjunto como uma onda.
Aliene afastou-se da janela, sentindo vontade de vomitar.
poderia apanhá-los em flagrante se quisesse. A porta das traseiras estaria aberta e eles provavelmente nem a ouviriam entrar. Mas para quê? A sua humilhação já era total. Ela oferecera-lhe ° seu amor, corpo e alma, e não fora o suficiente para o manter a seu lado. Em breve toda a escola saberia do assunto. O amor que sentia por ele passaria a ser uma anedota de que todos ririam.
Nesse momento, foi assaltada por outro pensamento. Seria possível que já soubessem? Era ela a última a saber? Há quanto tempo faria amor com ela? No dia do Fundador quando ele dissera que queria ficar com os amigos? Emily estivera no piquenique. Aliene lembrava-se vagamente de a ter visto. E naquele fim-de-semana em que ela trabalhara nos cartazes e ele dissera que tinha de ficar em casa? Todas essas possibilidades a esmagavam. Aliene nunca sonhara que uma pessoa pudesse sentir-se tão mal e sobreviver. Virou a bicicleta, montou e regressou para a cidade, enquanto, num sussurro desesperado, soluçava o seu nome.
- Tu... - disse CyriCarty quando Jordan desligou o telefone após conversar com Lillie. - Para a sala de maquilhagem. Já deste cabo dos olhos.
Jordan subiu pacientemente os estreitos degraus que conduziam aos domínios do maquilhador e sentou-se na cadeira. MarO'Connell, o publicitário da cadeia de televisão destacado para Secret Lives apareceu à porta e anunciou a Jordan, entre dentadas numa sanduíche de fiambre, que Walter Solames estava ali para falar com ele.
- Queres que o mande embora? - perguntou Mark. Walter Solames era um estofador de mobiliário de Nova
Jérsia que ainda vivia com os pais. Era um jovem muito bem-educado e de boas maneiras, que gozava de um estatuto de familiaridade dentro do estúdio situado na Rua 68 do West Side por ser presidente de um clube de fãs que Jordan partilhava com Lorna Maxwell. Durante grande parte dos três anos em que fizera parte do elenco de Secret Lives, a personagem interpretada por Jordan, Paul Manville, tinha estado sentimentalmente envolvido com a personagem interpretada por Lorna, Jennifer Taylor. Na sua vida privada, Lorna era casada com um oftalmologista e tinha uma filha de dois anos. Jordan almoçava ocasionalmente com Lorna e todos os anos ia à festa que ela e o marido davam no seu duplex no East Side pelo
Natal. Além disso, não conviviam muito. No entanto, na perspectiva dos espectadores, estavam tão enredados que fora inevitável a criação de um clube de fãs.
- Queres que lhe diga que já te foste embora? - perguntou Mark.
Jordan sabia que não podia abanar a cabeça enquanto CyriCarty trabalhava nos seus olhos.
- Não faz mal - disse. - Diz-lhe que falo com ele depois da próxima cena. Ficarei livre para o resto do dia.
- Está quieto - ordenou Cyril, lambendo os lábios devido à concentração.
- Provavelmente quer saber coisas da tua filha - disse Mark, metendo o resto da sanduíche na boca e puxando para trás os seus cabelos compridos com os dedos sujos de mostarda.
- Não é segredo - declarou Jordan.
Não estava muito interessado em O'Connell, que era o maior boateiro de todos, mantendo, todavia, uma aparência cínica que sugeria que estava acima de coisas tão mesquinhas.
- São os fãs. Adoram histórias dessas - observou Mark.
- Podes ir - disse Cyrialegremente, dando uma palmadinha no traseiro de Jordan. - Vai!
Jordan verificou a gravata e o cabelo no espelho iluminado antes de se preparar para voltar ao cenário.
- A sua compaixão é mais genuína do que a da maioria das pessoas que conheces - disse ele.
- Oh, Jordan! - exclamou Mark. - Não admira que te adorem. És tão antiquado.
Jordan suspirou.
- Ele que espere no meu camarim.
Walter Solames estava sentado numa cadeira giratória em frente à parede espelhada do camarim quando Jordan terminou a cena. Todos os intervenientes na série, à excepção da actriz principal, a venerável Margaret Clarke, partilhavam um camarim, mas normalmente com pessoas que intervinham em dias diferentes. Por isso, o camarim era, por vezes, relativamente privado. Walter pôs-se de imediato em pé quando Jordan entrou. Jordan estendeu a mão ao rapaz gordo e de pel pálida e convidou-o a sentar-se.
Começou a retirar a maquilhagem e a mudar de camisa.
- Walter - disse ele -, fiquei muito impressionado com a coroa de flores que o clube mandou. Era linda.
- Não tens de quê, Jordan. Tomei a liberdade de a comprar com o dinheiro das quotas do clube porque sabia que era isso que os membros desejavam.
, - Agradeço muito.
- Não quero maçar-te nesta hora de dor - disse o rapaz com uma expressão solene -, mas queria dar-te as condolências pessoalmente.
Naquele momento, Jordan já tinha mudado de roupa. Passou os dedos pelo cabelo para lhe tirar parte da laca que Cyrilhe colocara antes da cena. Depois reclinou-se na cadeira giratória e suspirou.
- Era a minha única filha, Walter, e não fui grande coisa como pai.
- Nem pensar - disse Walter rapidamente. - Tenho a certeza de que foste. És uma óptima pessoa.
«Estás a confundir-me com o Paul Manville», pensou Jordan.
- Não falo do Paul Manville - disse Walter muito sério como se lhe estivesse a ler os pensamentos. - Falo de ti. Conheço muitas estrelas de televisão, Jordan. Acredita. Sei o que estou a dizer.
Os olhos tristes de Jordan sorriram para o rapaz. Walter era educadamente persistente. Sabia muito bem quais os actores que o censuravam e quais os que se riam nas suas costas enquanto perseguia o seu entusiasmo pelas estrelas de televisão.
- Vindo de ti, Walter - disse Jordan sinceramente -, isso significa muito para mim. Iluminaste o meu dia.
Walter fez um largo sorriso. - vou para casa. Queres uma boleia até à baixa? Passarei por lá.
Jordan sabia que o presidente do clube de fãs ia de autocarro até Port Authority quando fazia as suas visitas.
- Não, obrigado. vou falar com a Lorna depois da gravação. Tem umas fotografias novas da filha para pôr na revista. de qualquer modo, obrigado.
Jordan apertou a mão de Walter, pediu licença e caminhou
ao longo do corredor, desejando as boas-noites às pessoas por quem passava. Atravessou o conjunto duplo de portas que da-
vam para o átrio e perguntou ao segurança que equipa achava que ia ganhar o jogo de futebol daquela noite.
- Os Giants, é claro - disse o guarda.
- Claro - repetiu Jordan, acenando enquanto saía. Tremeu quando chegou à rua. Estava frio e o céu cinzento,
e a cidade parecia envolta num brilho romântico e triste. Jordan chamou um táxi e disse ao motorista que o levasse a Sheridan Square. Comprou um pacote de seis garrafas de cerveja e um jantar congelado na loja que ficava na Rua 4 e foi para o apartamento. Pensou ler o argumento e depois aquecer" o jantar durante o jogo. Sentiu o coração a afundar-se quando contornou a esquina e reconheceu a rapariga que estava sentada à entrada do seu prédio. Amanda levantou-se quando o viu aproximar-se e sorriu-lhe.
- Vim cortar o cabelo à Christopher Street e pensei passar por cá. Gostas?
Amanda abanou glamorosamente os caracóis.
- Muito bonito - disse Jordan.
- Apetece-te companhia?
- Claro - assentiu com um sorriso forçado. -- Entra. Ele abriu a porta do prédio e foi recebido pelo habitual cheiro a humidade do corredor. Ouviu-a falar atrás de si, mas já estava a pensar no que iria fazer com ela. Vira-a duas vezes desde que regressara e sabia que as coisas não iriam a lado nenhum. Esperava que ela sentisse o mesmo e que tivesse percebido a razão da sua falta de contacto. Porém, era certo que ela não estava disposta a desistir sem uma explicação. «Bem» pensou ele, «poderia levá-la a jantar aqui nas redondezas e depois metê-la num táxi.» Guardaria o jantar congelado para outranoite.
Destrancou a porta do apartamento e Amanda entrou e sentou-se no sofá. Jordan abriu o frigorífico que ficava por baixo do lava-louça e meteu o jantar no exíguo congelador. Abriu uma cerveja e ofereceu-lha. A rapariga brincou com a língua em torno do gargalo da garrafa, mas Jordan fingiu não ver.
- Fui a uma audição hoje - disse ela. - Um anúncio de um produto de limpeza doméstico. De qualquer modo,acho que não mo vão dar. Eu não era o tipo de pessoa que eles pretendiam. Queriam uma dona de casa desmazelada. Só gostava que o meu agente me tivesse dito. Teria posto um lenço velho na cabeça ou coisa assim.
- Não. Isso não condiz contigo - observou Jordan educadamente, dando outro gole na cerveja.
- Ouve - disse ela. - Enquanto estava sentada lá fora à tua espera, tive uma grande ideia.
- O quê?
- Vais ou estás a planear ir para a tua casa de campo este fim-de-semana?
- Ainda não resolvi - disse ele. - Porquê?
- Pensei que ias todos os fins-de-semana. - Normalmente vou.
- Estava a pensar ir ao Balducci's comprar comida... e podíamos ir juntos. Descansar e passear. Gostava imenso de conhecer a casa e é realmente o tipo de local onde me sinto melhor. No meio da natureza. Nunca viste essa minha faceta.
A ideia de Amanda invadir a sua casa de montanha não lhe agradava. Nunca, nem na melhor das circunstâncias, aquela casa fizera com que as suas relações com as mulheres funcionassem bem, mesmo quando ele as levava cheio de optimismo e planos românticos. Já o sabia, sem precisar de imaginar, que nunca funcionaria com Amanda.
-- Olha - disse ele -, a minha vida neste momento está um bocado pesada. Preciso muito do fim-de-semana para estuar os guiões e recompor-me. Não é o momento exacto.
Amanda olhou para ele durante uns instantes e depois pousou com ruído a garrafa de cerveja na mesa de café. A sua voz era cortante.
-- Sabes, Jordan, eu pensei que estávamos a passar uns momentos razoáveis juntos. O que aconteceu de repente? Pensava que te excitava.
- Amanda, não és tu. A culpa é minha. Depois do que
aconteceu, fiquei um bocado em baixo...
- Então permite-me que te ajude a não pensar nisso. Para ser honesto, não quero deixar de pensar nisso - ou, com franqueza. - Não sei como te explicar.
- Acho que é apenas uma desculpa, Jordan. Estás interessado ou não?
Jordan odiava aquele tipo de cenas. Não queria dizer nada que a magoasse. De facto, ela não fizera nada. Não conseguia explicar-lhe. Não queria ficar toda a noite acordado com ela ou mantê-la ali até de madrugada. Ele não via profundidade suficiente nos olhos de Amanda para querer estar com ela. Talvez só ocorresse essa sensação uma vez na vida. Se calhar era preciso ser-se jovem e inocente para sentir isso. Ele não sabia. Não tinha importância. A que ponto de crueldade é que ela o forçaria?, pensava. O estômago de Jordan começou a fazer ruído.
- Já me falaram de ti - proferiu ela abruptamente, levantando-se. - Toda a gente sabe o que tu és. Arrogante... e nenhuma mulher é suficientemente boa para ti.
Jordan tentou recordar-se onde já ouvira aquilo, mas, como não queria encorajar aquela conversa, nem sequer tentou defender-se.
- De qualquer modo, é esse o teu problema - prosseguiu ela. - Não passei cinco anos a fazer psicoterapia para que um tipo qualquer derrube a minha auto-estima. - Tirou os óculos de sol da carteira e dirigiu-se à porta. - Quando te sentires só, quero dizer, realmente só, não me telefones.
Jordan suspirou.
- Lamento, Amanda. Tens razão. O problema é meu. Não há motivo para continuar a magoar-te.
As lágrimas saltaram dos olhos da rapariga, que colocou rapidamente os óculos de sol.
- A magoar-me? - disse ela com voz rouca. - E tu? Maldito sejas, Jordan. Nem sequer tentas.
Jordan baixou os olhos. Amanda passou por ele e saiu para o corredor amarelado. Sentiu um alívio imenso quando ela chegou ao corredor.
Amanda abanou a cabeça.
- Decerto que tens dinheiro para alugar um apartamento melhor - disse ela friamente.
Jordan encolheu os ombros e sorriu-lhe.
- Gosto deste.
- Acho que não vou ter saudades de um sítio tão miserável como este - afirmou ela.
Começou a percorrer o corredor com o seu chão de linóleo em mau estado. Ele ficou a vê-la afastar-se. Assim que desapareceu, fechou a porta e encostou-se a ela. No silêncio do apartamento vazio, os seus pensamentos tinham espaço para voar. Não havia ninguém para o perturbar enquanto a sua mente se afastava para Felton, Michele, Lillie e para tudo o que perdera.
- Onde é que estiveste? - perguntou Lillie no momento Grayson entrou. - Tinhas ficado de te encontrar com a Allene.
Grayson olhou-a, surpreendido, e depois sorriu com uma expressão de culpa.
- È verdade - assentiu. - Esqueci-me. Não fiques com esse ar preocupado, mãe.
-Desculpa - disse Lillie num tom pouco convincente. Eu só estava... preocupada contigo.
- Então não te preocupes - retorquiu Grayson. - Já sou crescidinho. Sei tomar conta de mim.
- O jantar está pronto - disse ela. - Acorda o teu pai.
Sentaram-se à mesa em silêncio. Lillie informou Grayson da visita de Allene e ele respondeu que lhe telefonaria mais tarde. Fez-se novamente silêncio à mesa e Lillie sentiu-se quase responsável. Tinha a sensação de que Pink e Grayson estariam a conversar se ela não se encontrasse presente. Virou-se para Pink e perguntou-lhe o que acontecera naquele dia. Pink disse apenas que nunca conseguiria vender a quinta dos Millraney. Grayson levantou rapidamente a cabeça ao ouvir aquelas palavras e olhou para o pai. Pink continuou a comer.
- Grayson, porque é que estás com essa cara? - perguntou Lillie.
Grayson mostrou-se ofendido, como se ela estivesse a invadir a sua privacidade. - Por nada - disse ele.
- Está bem - respondeu Lillie e nem se deu ao trabalho de começar outra conversa.
Depois de jantar, Grayson foi para o quarto e Pink sentou-se na sala enquanto Lillie lavava a louça. Estava junto ao lava-louça com os braços enfiados no detergente até ao cotovelo e lembrou-se de que, quando Michele era viva, gostava de fazer aquela tarefa. Era uma espécie da melhor parte do dia, aquela em que punham as conversas em dia sobre assuntos em que os «rapazes» não estariam interessados. Falavam dos planos que tinham para o dia seguinte, lembrando uma à outra o que era preciso fazer e aquilo que desejavam. «Têm-se saudades de partilhar essas pequenas coisas», pensou Lillie. «Têm-se saudades de ver que alguém se interessa por nós.»
Estava quase a terminar quando ouviu um toque de campainha e, pouco depois, outro. Secando as mãos, foi à sala perguntar a Pink por que razão não ia abrir a porta. Pink mantinha-se afundado no sofá, o jornal caído sobre o colo e uma garrafa de uísque e um copo a seu lado. Beber dava-lhe sono, especialmente depois de jantar. Adormecer no sofá estava a tornar-se um padrão habitual. Lillie esperou que só durasse até passar a pior parte do seu sofrimento. Quando bebia, tornava-se insuportável. Abanou-lhe o ombro e dirigiu-se à porta. Pink acordou e olhou-a com a visão turva.
Lillie acendeu a luz do alpendre e abriu a porta. Betty Starnes, a mãe de Aliene, encontrava-se no arco de luz com os olhos sombrios de preocupação.
Antes de Lillie a poder cumprimentar, Betty disse:
- A Aliene não foi para casa esta noite. Está aqui com o Grayson?
Lillie convidou-a a entrar.
- Não, não está. Veio cá à tarde à procura do Grayson, mas depois foi-se embora.
- Ela diz-nos sempre para onde vai - continuou Betty. •- Nem sequer telefonou. O Bill ficou em casa na eventualidade de telefonar, mas eu tive de vir à procura dela. Não conseguia ficar ali sentada.
- Pink - disse Lillie. - Vai chamar o Grayson, está bem? Talvez ele saiba onde está a Aliene. - Voltou-se para aquela mãe destroçada. - Não se quer sentar? Posso oferecer-lhe qualquer coisa
para beber? Talvez um chá?
Betty abanou a cabeça.
- Não conseguiria engoli-lo. Sinto um nó na garganta.
- Eu sei - anuiu Lillie. - Mas vamos encontrá-la. Não se preocupe.
- Se lhe aconteceu alguma coisa... - disse Betty, abanando a cabeça. As suas pestanas ruivas estavam cheias de lágrimas, e o rosto sardento deformado e manchado.
Lillie apertou as mãos frias da mulher.
- Tenho a certeza de que está bem.
Naquele momento, Grayson entrou na sala atrás do pai.
-Olá, Mistress Starnes - saudou ele educadamente.
- Olá, Grayson. Ando à procura da Aliene. Tens alguma ideia de onde possa estar? Gray encolheu os ombros.
- Não a vejo desde esta tarde na sala de estudo.
Betty soltou um gemido.
- Oh, meu Deus! Já tentei todos os outros amigos. Já sabe o que estou a pensar. Lillie estremeceu, mas a voz manteve-se firme.
- Nem pense nisso.
- Não posso evitá-lo - gritou Betty. - Há um louco nesta cidade. Ainda anda à solta. Ele fê-lo à vossa menina... Começou a soluçar.
Lillie agarrou-a firmemente pelos ombros.
- Calma - tranquilizou-a, numa voz mais calma do que aquilo que lhe ía na alma. - Deve haver uma boa explicação. Vamos. Eu ajudo-a a procurar.
- Acha que devo chamar o xerife? - perguntou Betty.
- Tenho a certeza de que vai aparecer e que está bem - disse Pink, compassivo.
- Quer que ajude a procurar? - perguntou Grayson.
- Tu ficas a acabar de fazer os trabalhos de casa - ordenou Lillie. - Gray, a Allene estava muito perturbada quando cá veio hoje. Sabes do que se tratava? Vocês discutiram?
- Não - declarou Gray, abanando a cabeça. - Não faço ideia.
- Onde vão procurar? - perguntou Pink.
As duas mulheres olharam gravemente uma para a outra.
- Temos de ir lá abaixo à ponte - disse Betty. - Só para tirar as dúvidas.
- Não quero que lá vás, Lillie - exclamou Pink - Será demasiado impressionante para ti. Eu vou.
Foi ao armário do vestíbulo e pegou no casaco.
- Posso ir sozinha - disse Betty.
- Não se preocupe - contrapôs Pink - É para isso que servem os amigos.
Pink tirou as chaves do carro de cima da prateleira da chaminé e fez um gesto na direcção da porta. Lillie franziu o sobrolho ao marido.
- Estás em condições de conduzir?
-^- Não sejas chata - disse Pink - Conheço os meus limites.
Nesse momento, o telefone tocou.
- Pode ser o Bill - disse Betty com os olhos muito abertos.
Lillie pegou no auscultador e falou alguns minutos com a pessoa que estava do outro lado da linha. Quando se virou para Pink e Betty, o seu rosto estava cor de cinza.
- O que foi? - suplicou Betty.
- Era o Bill. Temos de ir ao hospital. Encontraram a Aliene desmaiada na varanda do cinema de Felton.
- Não - gritou a mãe da rapariga.
- Parece que tomou um frasco inteiro de Sleep-Eze ou coisa parecida. Estão neste instante a fazer-lhe uma lavagem ao estômago. Vai ficar boa.
- Oh, meu Deus - gritou Betty. - Oh, meu Deus!
- Vamos - disse Pink - Eu levo o carro. Quando chegaram ao hospital, encontraram Bill Starnes a
andar de um lado para o outro na sala de espera das urgências.
Quando entraram, estava a apagar um cigarro num cinzeiro.
Betty correu para os braços do marido e ele afagou-a.
- Acabei de falar com o médico - disse. - Ela está bem.
Betty começou a chorar e Lillie sentiu as lágrimas a correr pelas faces.
- Porquê? - perguntou Betty. - Porque é que ela fez isto? Parecia sempre tão feliz.
- Não sei - proferiu Bill gravemente. - Vamos ter uma conversa muito séria quando ela estiver melhor.
Naquele instante, uma enfermeira saiu da sala das urgências e olhou para Bill e Betty.
- São os pais? - perguntou. Betty assentiu com a cabeça.
- Daqui a pouco já a poderão ver. Estamos a transferi-la para um quarto. Só queremos tê-la sob observação durante um ou dois dias para ter a certeza que não há efeitos perigosos. Mas podem estar com ela alguns minutos.
Betty agradeceu à enfermeira e virou-se para Lillie.
- Foi muito amável. Obrigada.
Lillie acenou com a cabeça e olhou para Pink e Grayson.
- Nós vamos andando - disse ela. - Se pudermos ser úteis, por favor, telefonem.
- Assim faremos - prometeu Betty, dando-lhe um beijo
na face.
- Digam à Aliene que eu mando cumprimentos - disse
Grayson com uma voz fraca.
- Está bem, querido.
Betty voltou para junto do marido.
Lillie seguiu atrás de Pink e Grayson a caminho do parque de estacionamento. Antes de chegarem ao carro, Lillie chamou Gray. Ele virou-se e olhou para ela. O seu cabelo louro quase branco brilhava sob os candeeiros que iluminavam o parque.
- Grayson, onde estiveste esta tarde? - perguntou ela.
- com quem estiveste?
- Já te disse que não a vi, mãe.
- Estiveste com outra rapariga?
- Está bem - anuiu Grayson. - Está bem. Estive com outra rapariga. Não sabia que isso era crime em Cress Count
- Grayson, não sejas insolente! - exclamou Lillie. - ^° estou a tentar perceber o que se passou. Estava a chorar e muito só quando foi lá a casa. Talvez seja essa a razão.
- Então, agora eu é que sou o responsável por ela ter tomado um frasco de comprimidos?! Não acredito.
- Eu não disse isso - insistiu Lillie.
Os olhos de Grayson brilharam de raiva.
- Estás a responsabilizar-me pelo que ela fez? Quero saber. Estás a dizer que ela tentou matar-se por minha causa?
- Isso é ridículo - interveio Pink.
- Grayson - disse Lillie. - Eu sei que a culpa não é tua. Claro que não. Todavia, ela é a tua namorada e quebraste um compromisso para saíres com outra pessoa.
- Olha, mãe - retorquiu Grayson. - Vivemos num país livre. Não sou casado com a Aliene... Lamento que ela tenha feito isto, está bem? - acrescentou ele, momentos depois.
- Como é que eu poderia saber que ela ia ficar tão perturbada?
Lillie tiritou devido ao frio da noite. Aliene tentara suicidar-se por estar deprimida por causa de Grayson. Tinha a certeza. Mas quando olhou para os olhos do filho, viu neles uma verdade desconcertante. O gesto dramático de Aliene fora em vão. A nova rapariga devia ser especial, pois não estava a dar a mínima importância ao caso de Aliene.
Já era tarde quando chegaram a casa, e Lillie só foi para a cama muito mais tarde. Todo aquele incidente pusera-lhe os nervos à flor da pele. Não conseguia deixar de pensar em Aliene, encolhida na cadeira de balouço do alpendre, lavada em lágrimas, e na sua própria falta de discernimento para ver que a rapariga estava prestes a fazer algo de drástico. Lillie não conseguia deixar de perguntar a si própria se não o conseguiria ter evitado, fazendo um maior esforço para falar com Aliene. Se não estivesse tão adormecida pelos seus próprios problemas.
Pink já estava a dormir quando ela finalmente se deitou a seu lado. Respirava pesadamente, como se houvesse acabado de ser salvo de um afogamento. Ficou deitada ao lado dele, tentando descontrair-se, mas a sua mente não parava.
Compreendia a ferocidade das paixões dos jovens. No
meio da escuridão, enquanto a noite transcorria lentamente,
recordou-se da sua própria desilusão quando Jordan a abandonara com uma filha doente e saíra da cidade, deixando apenas um breve bilhete. Corou intensamente, deitada na cama, quando se lembrou dos sentimentos de vergonha, de perda, de traição insuportável... e tudo aquilo se passara há dezassete anos. Para sua surpresa e irritação, sentiu as lágrimas a virem-lhe aos olhos.
«Isto é estúpido», pensou, limpando-as. Mas ainda conseguia recordar o rosto jovem de Jordan e a maneira como acreditara nele, como se os seus olhos escuros comportassem a resposta que ela procurara durante todo o seu curto tempo de vida. Pink começou a respirar ruidosamente e virou-se, atirando um braço para cima dela. Lillie olhou para ele. Estivera sempre a seu lado depois de Jordan sair da cidade. De facto, já estava a seu lado há bastante tempo, mas ela não o vira, pois sentia-se profundamente apaixonada pelo seu jovem marido.
Lillie mudou de posição sob o peso do braço dele, mas Pink aproximou-se ainda mais. Deslocou-se vagarosamente por baixo dos cobertores para fugir ao peso do braço e poder respirar.
No silêncio da noite, continuou a recordar aqueles dias terríveis após a partida de Jordan. Na altura, não era muito mais velha do que Aliene. Toda a gente lhe dizia que não valia a pena chorar por ele e que tinha a vida inteira à sua frente. Ninguém parecia compreender o que ela sentia. «Poderia ter-me suicidado naquela altura», pensou. «Posso compreender isso. Se não fosse pela Michele... Não se sabe o que aquele tipo de dor pode levar-nos a fazer.»
Pensar em Michele reavivou-lhe a sua própria dor e Lillie lembrou-se de que o sono era o único remédio, por muito fugaz que fosse. Fechou os olhos e deixou-se levar até chegar o sono.
Subitamente, deu por si acordada com os olhos abertos no meio da escuridão. Seria possível?, pensou. Sentou-se na cama, agarrando firmemente o lençol, e tentou pensar com clareza. Teria Michele despedaçado o coração de alguém? Tê-lo-ia irritado o suficiente para a matar? Ela ainda era virgem, segundo o relatório do médico legista, por isso ninguém estava a pensar que o motivo pudesse ser sexo. Porém, quando se era jovem, as paixões subiam muito alto, apesar da falta de experiência. Talvez alguém a tivesse amado. Talvez o tivesse ferido sem se aperceber. Aquela ideia pusera-lhe o coração aos saltos como se tivesse tropeçado na resposta ali no meio da escuridão. Quis acordar Pink para lhe contar, mas sabia instintivamente que ele se zangaria por ser acordado apenas para ouvir uma suspeita com que ela sonhara durante a noite. Forçou-se a pousar a cabeça na almofada. Ficou acordada durante muito tempo. Quando finalmente adormeceu, os sonhos atormentaram-na.
De manhã, Lillie examinou novamente a sua teoria. Pensou nela enquanto fazia as camas e limpava a cozinha. Continuava a fazer sentido.
Segundo sabia, não havia namorados na vida de Michele. Para a mãe, sempre fora uma criança, mas já tinha idade suficiente para ter experiências sentimentais. Se bem que partilhassem muitos problemas, Michele sempre tivera um lado secreto e dado à reflexão.
Lillie não conseguira entrar no quarto de Michele desde o homicídio. Brenda tinha lá ido a fim de retirar as roupas que Lillie lhe descrevera para vestir a filha para o funeral. O xerife fizera uma busca ao quarto e Lillie vira-o retirar inúmeros papéis e objectos, mas ela ficara no corredor. Agora que pensava nisso, Lillie percebeu que o xerife poderia ter tirado algumas conclusões. Nunca lhes dissera nada, mas provavelmente as suas ideias iam nessa direcção. Era isso que procurara no quarto de Michele. Alguma pista sobre a identidade de um namorado.
«Mas se havia lá dentro alguma pista», raciocinou Lillie' «poderia não ser clara para o xerife.» Poderia perfeitamente ser algo que só uma mãe reconhecesse. Afinal, quem melhor do que uma mãe para saber o que era normal numa filha?
Ela sabia que teria de entrar no quarto para satisfazer a sua ansiedade, mas hesitou no patamar, cheia de medo. Só a esperança de uma resposta lhe deu a coragem para pôr a mão na maçaneta e fazê-la girar.
Lillie abriu a porta do quarto e entrou. O aspecto, o odor e tudo o que havia nele quase lhe cortaram a respiração. O vestido cor-de-rosa ainda estava pendurado na porta do guarda-fatos. A tremer, sentou-se na cama e alisou a colcha com a mão enquanto deixava as recordações desabarem em cima de si. A finalidade, a crueldade e a injustiça do acto bateram com dureza no seu coração, mas não fugiu. Algum tempo depois, começou a recompor-se. Recordou que estava ali para encontrar alguma coisa, se bem que não tivesse a certeza do que seria.
Ao contrário de muitas raparigas da sua idade, Michele não tinha livros de recortes nem diário. Lillie pensou que talvez um diário fosse para coisas frívolas e a vida de Michele estava cheia de dias com agulhas espetadas nos braços, quartos de hospitais e máscaras verdes sobre si. Talvez soubesse que nunca mais queria ler nada sobre esse assunto. Só era vista a escrever quando fazia os trabalhos da escola. Fora obrigada a um grande esforço para se manter a par dos outros.
Lillie agarrou gentilmente nos livros escolares que estavam em cima da secretária e folheou-os. Lillie conseguia ver Michele, a aluna diligente para quem nada era fácil, inclinada sobre eles de testa franzida. Lillie passou as páginas do caderno. Michele fora uma pessoa excepcionalmente arrumada. Não havia rabiscos nas páginas, nem desenhos disparatados, qualquer indicação de impaciência ou de falta de atenção. Lillie pousou o caderno e pegou no livro anual dos estudantes. A turma que obtinha o diploma em Junho seria a de Michele. Ficara retida devido às longas ausências. Mesmo assim, comprara o livro e fora assinado por muitos dos seus antigos colegas. Havia uma impessoalidade amável nas dedicatórias. Para uma miúda querida. Para uma rapariga simpática. Muita sorte, lembra-te da sala de aula. Lembra-te do ginásio.
Em parte alguma se podia ler: «Lembra-te do nosso encontro fabuloso, daquela festa fantástica, do baile da escola.» Ela não fora a nenhum deles. Tudo brilhava à sua frente quando um louco a matara.
Lillie enfiou o livro na prateleira e olhou à sua volta. Tudo estava arrumado e limpo. «Será que a vida desta criança não tnha um lado oculto?», perguntou Lillie a si própria. Foi até ao armário e vasculhou os bolsos. Abriu todas as caixas de sapatos e todas continham um par. Foi até à cómoda, erguendo as roupas cuidadosamente dobradas, os cintos enrolados, a organizada gaveta das jóias. Estava a verificar exaustivamente a última gaveta quando a sua mão caiu sobre algo volumoso que se encontrava por baixo de uma pilha de camisolas de algodão. Lillie estendeu a mão e puxou. Era um saco de papel com o logotipo da Farmácia Flood. Lillie abriu o saco e retirou um pequeno cãozinho de peluche de orelhas compridas, o tipo de brinquedo que se podia comprar para uma criança de dois anos. Ainda sustentava um pequeno medalhão de papel dourado pendurado ao pescoço com um fio, mas não tinha preço e quando Lillie sacudiu o saco não caiu qualquer recibo. Virou o boneco, examinando-o. «A Michele nunca gostou muito de animais de peluche», pensou. «Talvez o tenha comprado para alguma criança conhecida.» Lillie sentou-se sobre os calcanhares e tentou perceber para quem Michele comprara aquele brinquedo. Então, enquanto passava mentalmente em revista um rol de crianças possíveis, ocorreu-lhe outra coisa. Talvez o brinquedo tivesse sido um presente para Michele. Talvez comprado por um admirador secreto. Talvez a admiração se tivesse transformado em ódio.
Lillie voltou a colocar o brinquedo dentro do saco. «É demasiado rocambolesco», pensou. «Só estás à procura de alguma coisa, qualquer coisa que justifique um crime insano. Olhou para o logotipo da farmácia. Haveria provavelmente uma explicação muito simples para que o brinquedo estivesse metido na gaveta. «Mesmo assim», pensou, «não há problema em tentar descobrir.»
Lillie preparou-se para sair e foi de carro até ao centro de Felton. Estacionou na rua principal e atravessou a praça até à Farmácia Flood. Uma campainha ressoou quando ela abriu a porta e entrou. A rapariga loura que trabalhava para Bomar estava atrás do balcão das maquilhagens, arranjando o cabelo com um pente e observando o rosto num dos espelhos redondos que estavam sobre o balcão. Falou sem levantar os olhos.
- Em que posso servi-la?
Lillie sentiu-se imediatamente envergonhada e escondeu o saco atrás das costas. Aquela rapariga não iria lembrar-se da pessoa que comprara um boneco de peluche numa data desconhecida. Nem sequer havia uma factura que referisse a compra. Lillie fingiu olhar para os postais para dar a sensação de ter um motivo para estar ali. Tendo cumprido a sua obrigação, a rapariga começou a aplicar sombra nas pálpebras.
Lillie dirigiu-se à secção de brinquedos e olhou para os bonecos de peluche como se eles pudessem falar e dar-lhe a resposta que procurava. Fila após fila, os olhos de plástico redondos olhavam, sem expressão. «Vai para casa», pensou Lillie. «É uma ideia estúpida.»
- Lillie, minha querida, como estás?
Lillie assustou-se. Não ouvira Bomar aproximar-se devido às solas suaves dos seus Wallabee. O seu rosto enrugado brilhava por cima do laço que usava. - Bomar!
- A Kimberly está a atender-te? - perguntou com um ar sério, olhando para a vendedora que rapidamente se mostrou muito atarefada a arrumar frascos de perfume.
- Estava só a ver - disse Lillie com uma voz fraca. - Bem, acho que mereces os parabéns - disse ele.
Lillie olhou para ele, confusa. " - Porquê?
- Lá estou eu a estragar a surpresa - comentou Bomar. Que surpresa? - perguntou Lillie.
- Acho que vou ter de te contar - disse o velho alegremente. - A Câmara de Comércio reuniu-se esta manhã na Sizzler SteaHouse e decidiu nomear o teu Grayson como um dos vencedores dos prémios de liderança que vão distribuir no banquete da próxima sexta-feira.
- Isso é óptimo - disse Lillie. - Ele vai ficar delirante.
- Merece-o, sabes! É um excelente rapaz.
- Obrigada, Bomar.
- De facto, fui eu que o nomeei - informou o farmaceutico orgulhosamente.
- Foi muito .simpático da tua parte. Bomar encolheu os ombros e esfregou as mãos.
- Não tens de quê - disse ele. - Agora diz-me o que desejas, minha menina.
Lillie hesitou, pois não queria estragar as boas notícias sobre Grayson, mas se havia alguém que podia saber algo sobre o boneco, pensou, era Bomar Flood. Meteu a mão no saco e tirou o cão. Olhou para o boneco durante alguns instantes e mostrou-o ao farmacêutico.
- Sei que isto te vai parecer estranho, Bomar, mas faz-me este favor.
- Tentarei - disse ele.
- Estava a passar revista às coisas da Michele e encontreisto numa gaveta ainda dentro do saco. Vendes este tipo de peluches? Não vejo nenhum igual.
Bomar olhou para o cão e acenou com a cabeça.
- Oh, sim - disse. - Claro. - Depois olhou para ela com algum desconforto. - Queres devolvê-lo?
- Não - disse Lillie. - Por amor de Deus, não. A ideia de devolver o brinquedo parecia tão macabra que, por comparação, fazia com que a sua missão parecesse inócua.
- Não. Só estou a tentar perceber onde é que ela o arranjou - disse depois, mostrando-se mais confiante. - Quero dizer, onde o comprou. Se era um presente...
Bomar olhou tristemente para ela.
- Lillie - disse ele -, segues o conselho de um velho? Não insistas nestas coisas. Não é saudável.
- Bomar, não é isso que estou a fazer. Só estou a tentar perceber se havia alguém de especial na vida dela e que nós desconhecêssemos. Algum rapaz que pudesse ter gostado dela. Talvez alguém que se tivesse zangado ou que sentisse qualquer coisa contra ela.
O farmacêutico percebeu subitamente as implicações.
- Um destes miúdos? - perguntou, incrédulo. - Nem pensar.
- Alguém o fez - afirmou Lillie, zangada. - Porque não um destes miúdos?
- bom, está bem. Espera um momento. - O farmacêutico colocou as mãos na cintura estreita e franziu o sobrolho para o chão. - Às vezes, ela costumava passar por aqui depois das aulas como os outros miúdos. Normalmente vinha com as amigas. Não tinha namorado. Isso posso-te assegurar. - Não. Eu sei - anuiu Lillie.
Bomar agarrou no boneco de peluche e olhou para ele. -vou ser honesto, Lillie. Não me lembro muito bem quem o comprou. Lillie suspirou. - Realmente era uma hipótese muito remota - afirmou.
- Mas lembro-me - disse Bomar, estendendo um dedo magro na direcção da cabeça do boneco - que uma tarde houve aqui uma zaragata por causa destes animais. Estavam a embirrar com um dos miúdos, o Tyler Ansley. Um dos rapazes apanhou-o a admirar um boneco destes e atiraram-se a ele. Lembro-me porque também me pareceu estranho. O Tyler parecia sempre tão duro e carrancudo. De qualquer modo, amaldiçoou-os a todos e tive de o obrigar a sair antes que começasse a partir coisas. - Bomar abanou a cabeça. - Pobre rapaz. Espero que esteja bem na academia militar, se bem que seja sempre um inadaptado. Não me lembro se a Michele estava ou não nesse dia. É possível que tenha estado. Não me lembro.
Lillie olhou para o boneco. Tyler Ansley. Recordou-se de repente do jogo de basebol do dia do Fundador. Michele mostrara-se muito indignada por toda a gente ser tão injusta com Tyler.
- Bomar - disse ela lentamente -, alguma vez os viste juntos? A Michele e o Tyler?
- bom - retorquiu ele -, vi-os a conversar algumas vezes, mas ele sentia-se muito desconfortável perto das raparigas. Acho que ela deve ter gostado um pouco dele, mas não creio que estivesse interessado. Detesto dizer estas coisas sobre o rapaz porque o pai é meu amigo, mas as coisas que mais o interessavam nesta loja eram as drogas. Não que alguma vez me tenha roubado. Não me entendas mal, mas, sempre que estava aqui, eu ficava de olhos bem abertos.
Bomar parou de falar o tempo suficiente para reparar na palidez do rosto de Lillie.
- Espera lá - disse Bomar. - Não comeces a pensar nessas coisas sobre o Tyler. Ando neste mundo há muito tempó e sou bom juiz de caracteres. Aquele rapaz não faria maa uma mosca. Tem os seus problemas, mas não é desses.
- Obrigada, Bomar - agradeceu Lillie. Sentiu-se subitamente um pouco tonta. - Agradeço o tempo que me dispensaste.
- Estou a falar a sério, Lillie. Não comeces a meter palermices na cabeça. Estás a entender?
- Sim - disse ela, agarrando o saco e recuando até à porta.
- Toma conta de ti - recomendou Bomar. - Vemo-nos no banquete.
Lillie olhou para ele com uma expressão vazia.
- O banquete da Câmara. O prémio do Grayson.
- Isso mesmo - disse ela. - Vejo-te na...
- Sexta-feira - disse Bomar.
- Sexta-feira.
A campainha da porta tocou atrás dela enquanto corria pa-
ra a rua.
Depois de sair da farmácia, Lillie entrou no carro e começou a conduzir. Conduziu sem rumo durante mais de uma hora, preocupada com os seus pensamentos. Quando um camião buzinou, apercebeu-se de que não estava a prestar atenção suficiente à estrada. Lillie olhou à sua volta para saber onde se encontrava. Não estava longe do lago Crystal. Precisava de parar o carro, pensar e aclarar as ideias. Conduziu na direcção do lago e entrou no parque de uma pequena loja de iscos e artigos de pesca que estava fechada durante a semana até à Primavera e estacionou.
Através dos ramos nus e da pouca folhagem das árvores, conseguia ver a superfície brilhante do lago prateado. Era um local que Lillie frequentara toda a sua vida quando tinha alguma coisa importante em que pensar. Ela e Brenda haviam brincado nas suas margens com pedras e rãs e, mais tarde, caminhado à sua volta falando de rapazes. Ela e Jordan tinham tomado banho nus ao luar em lindas noites de Verão. Deambulara por ali, sozinha, tentando decidir se aceitava ou não proposta de casamento de Pink Sentara-se sob uma árvore e chorara quando tivera de levar Michele para Pittsburgh a fim de ser operada, sentindo que Deus estava mais perto daquele lago do que de qualquer outro sítio. Uma vez tinha lá ido com Pink que levara Grayson à pesca.
Saindo do carro, Lillie desceu a estrada, passando por um campo brumoso cor de lavanda e castanho que rodeava o lago e por uma fila de árvores plantadas mesmo à beira da água. Caminhou pela margem durante algum tempo, com a água a enrolar-se suavemente junto dela. Inclinou-se, pegou numa pedra e atirou-a para dentro de água. Havia um motel do outro lado e algumas caravanas e cabanas no seu perímetro. Mesmo assim, continuava a ser um local sossegado.
Lillie sentia-se tudo menos tranquila. Continuou a caminhar até entrar num longo molhe de madeira. Depois de o percorrer até ao fim, sentou-se com os pés de fora. A água estava baixa e os pés não lhe tocavam.
Segurou no cão de peluche e olhou para o seu focinho simples e inocente. «Tyler Ansley», pensou. Impossível. Era um rapaz com perturbações mentais. Toda a cidade o sabia, mas não era um assassino. Não podia ser. Conhecia-o desde que nascera. Era jovem e estava confuso e furioso com o mundo, mas não era mau nem perverso. Só estava a atravessar uma fase de rebeldia.
Além disso, Royce Ansley era seu amigo. Um dos homens mais íntegros que conhecia. Nunca educaria um filho de tal modo que se tornasse um assassino. Depois, veio-lhe à cabeça uma ideia pouco reconfortante. Diziam sempre que os filhos dos padres eram os piores pecadores. Talvez o mesmo se aplicasse ao filho do xerife. Talvez Royce andasse à procura de um assassino que seria o seu próprio filho.
No momento seguinte, teve um pensamento ainda pior. Talvez ele já soubesse. Afinal, não tinha enviado o filho para uma academia militar dois dias depois da morte de Michele? *Não», pensou. «É impossível.»
Deitou-se no molhe e sentiu o calor suave que vinha dos
arrotes de madeira contra as suas costas. Cobriu os olhos com as mãos, mas os rostos de Royce e Tyler continuavam à sua frente. Talvez o rapaz tivesse uma faceta violenta e Royce soubesse disso. Era do conhecimento geral que Tyler tinha problemas com o álcool e as drogas. Talvez tivesse morto Michele e confessado ao pai, pedindo-lhe protecção.
Lillie sentou-se novamente. «Não», repetiu em pensamento. «Não. Mesmo assim não havia motivo. Não fazia sentido. Além disso, se Royce tinha querido proteger o filho, por que motivo insistira na inocência de Ronnie Lee Partin? Tinha ali um suspeito a quem poderia culpar, um bode expiatório arranjado à pressão, e ninguém sequer duvidaria.
Lillie pegou novamente no brinquedo e manobrou-o impacientemente. Era uma ideia monstruosa. E em que é que ela se podia basear? Um cão de peluche como milhões de outros. Na má memória de um farmacêutico abelhudo? E se Michele estivesse realmente apaixonada e fosse um sentimento que ele não retribuía? Isso tornava o rapaz suspeito de homicídio?
Em torno do lago ainda havia luz, mas Lillie percebeu que estava ali sentada há muito tempo e que a noite já começava a cair. Levantou-se, exausta pela confusão dos seus pensamentos, percorreu o molhe no sentido inverso e dirigiu-se ao carro. Tal como suspeitara, o céu estava a ficar de um azul-violeta profundo. Atirou o brinquedo para o assento do passageiro e encetou o caminho para casa.
Quando chegou, Pink encontrava-se na entrada da garagem a lavar o carro à luz do alpendre das traseiras. Lillie estremeceu quando viu os baldes cheios de água fria e detergente.
- Não é um bocado tarde para estares a fazer isso? perguntou ela.
- Temos de estar preparados para a próxima sexta-feira - respondeu Pink.
Fez um gesto a Lillie para que se afastasse enquanto retirava o resto do detergente com a mangueira.
- Para quê? - perguntou Lillie.
Pink fechou a água e, ainda de mangueira na mão, como um ceptro, olhou de soslaio para os riscos que via à luz da lâmpada. - Acho que ainda não sabes - disse ele com orgulho. - É sobre o teu filho.
- Ah, sim! O Prémio da Câmara de Comércio. Eu soubeEstive hoje na loja do Bomar.
Pink pegou num pedaço de pano e começou a limpar o tejadilho do carro.
- E que tal?
- Estou muito orgulhosa dele - disse Lillie.
- Orgulhosa? - repetiu Pink abanando a cabeça. Deixa-me que te diga uma coisa. Ele trouxe-nos muita honra. É a nossa esperança para o futuro, Lillie.
- Eu sei - anuiu Lillie suavemente.
Pink atacou uma mancha no pára-brisas com um pano macio.
- Sei que é uma loucura fazer isto durante a noite, mas ;tenho muito que fazer entre hoje e sexta-feira. Prometi que lhe |compraria um fato para o banquete. Quando se pensa nisso, um rapaz da idade dele já devia ter um fato.
Lillie olhou para o brinquedo que tinha nas mãos.
- Sim. Acho que sim - disse ela.
- Penso que as coisas estão a melhorar para esta família
- disse Pink Só temos de apoiar as ambições do nosso filho e pôr o passado para trás das costas. Acho que este prémio é uma espécie de sinal.
- Talvez - sussurrou Lillie.
- O quê? - perguntou Pink - O que tens aí? E o que é que foste fazer hoje à loja do Bomar?
Lillie abriu a boca para falar, mas Pink inclinou-se para agarrar na caixa de polimento Turtle Wax. Falou com ela agachado atrás do pára-choques dianteiro.
- Sabias que foi oBomar quem o nomeou?
Antes de dizer uma única palavra, já sabia que ele não iria gostar do que tinha para lhe dizer. Andava muito ocupado a pensar nas coisas boas da vida. Estava a pensar em Grayson e, e claro, tinha razão. Havia coisas que se deviam agradecer. Coisas que provocavam alegria. Contudo, ela disse-o.
- Encontreisto no quarto da Michele - pronunciou 'entamente -, e acho que ela o deve ter comprado para o Tyler Ansley.
Pink endireitou-se com o polimento numa mão e o pano na outra. Apesar do frio da noite, estava a transpirar do esforço.
- O que é que disseste? Sobre o Tyler Ansley?
Lillie olhou-o desamparadamente. «E o que tem ele?», pensou. Um rapaz que conheciam desde que nascera. O filho de um amigo. Tentou imaginar-se a explicar que poderia ser ele o culpado. A pessoa que tinha morto Michele. Até a ela parecia absurdo, mas alguém matara Michele. Poderia ter sido Tyler.
- Acho que a Michele gostava dele - disse Lillie teimosamente.
Pink olhou para ela.
- E depois? - perguntou, cansado. - Qual é o problema?
- Pink - prosseguiu Lillie -, achas que é possível que ele...?
- Que ele o quê? - proferiu Pink impacientemente.
- Que tenha sido ele o assassino - disse Lillie.
- Acho que já ouvi tudo! - gritou Pink.
Ela olhou-o fixamente. Se bem que só o conseguisse ver parcialmente com aquela luz, podia perceber que estava a olhar ferozmente para o animade peluche, como se tivesse medo que o boneco ganhasse vida nas mãos dela.
- Pink o que se passa? Estás com um ar estranho!
- Eu estou com um ar estranho - repetiu ele, zangado. Deitou polimento no pano e começou a aplicá-lo no carro com movimentos bruscos. - Essa é boa! Por amor de Deus! Tu é que estás com ideias estranhas.
Ela ficou a olhar enquanto ele aplicava o polimento no carro.
- Pink - prosseguiu lentamente -, tens estado a pensar na mesma coisa?
- Não sejas louca, Lillie.
- Conheço-te, Pink Acho que podes ter razão. Pink pôs-se de pé e abanou o pano na sua direcção.
- Ouviste uma única palavra do que disse sobre esta família? - perguntou.
- Pink - insistiu ela -, isto não vai simplesmente desaparecer.
Pink pusera-se novamente aos gritos.
- Será que não consegues deixar de pensar nisso por um instante? - gritou. - Não poderás mostrar algum interesse pela nossa família? Terei de ser eu a fazer tudo? Será que vou ter alguma ajuda da tua parte?
A porta abriu-se e Grayson saiu para o alpendre com uma garrafa de Coca-Cola na mão. Lillie olhou-o com uma expressão de culpa.
- Porque é que vocês os dois estão a gritar? - perguntou Gray. - Depois, olhou para os pais. - Estás a lavar o carro a esta hora, pai?
A expressão de Pink tornou-se mais suave quando olhou para o rapaz.
- Estou a prepará-lo para sexta-feira - disse ele. - Não quero que chegues ao banquete num carro sujo. És um dos premiados!
Se bem que a Home Cooking tivesse sido contratada para o serviço de catering do banquete da Câmara de Comércio e Lillie estivesse a planear servi-lo, no princípio da semana disse a Brenda que não iria trabalhar.
Pensara muito nas queixas de Pink Por muito que pudesse ser assolada por suspeitas ou pensamentos feios relativos à morte de Michele, não havia desculpa para negligenciar o filho e o marido. Pensou em ir ter com Royce e confrontá-lo com a sua teoria sobre Tyler, mas, quando Pink lhe perguntou sarcasticamente quais as provas que tinha para lhe oferecer, percebeu que seria impossível fazer qualquer tipo de acusação sem provas. Continuava a suspeitar que Pink tinha as mesmas suspeitas sobre o filho do xerife, mas ele negava-o terminantemente. Dissera-lhe que estava a tentar concentrar-se no presente e no que restava da sua vida, e Lillie compreendera que tinha de tentar ir pelo mesmo caminho.
Contudo, a tentativa de juntar-se a Pink e Grayson, e fazer daquele dueto um trio, era mais fácil de dizer do que de fazer. Apesar de Pink desejar a sua presença, sentia-se uma intrusa entre eles. «Deixaste-os afastarem-se demasiado», pensou. «Já nem sequer precisam de ti.»
O grande plano daquela semana era ir à loja de artigos de homem da cidade e comprar um fato a Grayson. Lillie afirmou alegremente que iria com eles e tentou ignorar o olhar relutante quando ouviram a sugestão.
- É uma loja de homens - afirmou Grayson.
- Não faz mal - disse Pink apressadamente. - Deixam entrar mulheres.
Lillie tentou não se sentir magoada pelo comentário do filho. «A culpa é tua», pensou. «Tens estado tão preocupada com o teu emprego, com a Michele e depois com a morte da Michele, que eles agora preferem estar sem ti.» Quando chegou o dia das compras, arranjou-se cedo e foi, a conversar alegremente pelo caminho.
Assim que chegaram à loja, foi preciso algum esforço para se manter calada quando Grayson escolheu o fato mais caro que havia e Pink aplaudiu a escolha. Tentou ter algum tacto, salientando outras opções, mas Pink anunciou que, no que tocava ao filho, não andava à caça de pechinchas. Decidiu também não protestar quando Grayson não conseguiu decidir-se entre duas camisas e Pink insistiu que comprasse as duas.
Quando chegaram a casa, Grayson atirou com o fato e as camisas para cima da cama e foi ver televisão. Lillie pegou no fato e pendurou-o na porta do armário. Depois, agarrou nas camisas e abriu a última gaveta da cómoda. Quando olhou lá para dentro, viu uma dúzia de camisas novas ainda nos sacos.
- Grayson - gritou ela.
Ela levantou-se quando o rapaz entrou no quarto e apontou para a gaveta.
- O que é isto? - perguntou.
- Camisas - disse ele com um ar agradável.
- Como é que arranjastes todas estas camisas? Nem sequer as usaste.
Grayson observou os sacos que estavam na gaveta com uma expressão impassível.
- Em certos casos - disse ele -, não há nada que dê com elas. -- Baixou-se e pegou numa de riscas amarelas. Esta precisa realmente de um blazer azul-escuro e o que tenho já me está apertado nos ombros.
- Onde arranjaste dinheiro para pagar tudo isto? - perguntou Lillie. - Nem sequer tens um emprego.
- Às vezes, dou explicações - proferiu ele na defensiva.
- Já te tinha dito.
- E ganhaste o suficiente para tudo isto? Ou foi oteu pai que as comprou? E por que diabo é que precisavas hoje de mais duas camisas? - insistiu ela.
- Nenhuma destas fica bem com o fato - disse Grayson, fechando a gaveta com o pé. - Virou-se e olhou para a mãe.
- Pensei que querias que me apresentasse bem no banquete. Devo ter percebido mal.
Pink que ouvira as vozes a subir de tom, apareceu à porta do quarto.
- Quero que vás bem vestido, mas isto é um desperdício, Grayson. Tens um guarda-fatos cheio de coisas.
Grayson virou-se para Pink.
- A mãe acha que não preciso desta roupa. Talvez seja melhor que a devolvas.
- Não vamos devolver nada - declarou Pink zangado, fazendo um gesto para que Grayson saísse do quarto. Virou-se para a mulher. - Será que é possível dizeres-lhe alguma coisa que não seja uma crítica? Meu Deus! A maioria das mães estaria a rebentar de orgulho. Só sabes embirrar com ele.
As faces de Lillie estavam muito vermelhas.
- Eu não disse que ele tinha de devolver a roupa. Só queria saber onde arranjou dinheiro para tudo isto. Se não foste tu...
- Não fui eu que lho dei - disse Pink sarcasticamente.
- Ele dá explicações e gosta de andar bem vestido. Se tivesses prestado atenção, sabias isso.
- Mas para que precisa de tanto? - protestou Lillie. Pink fez um gesto de desgosto.
- Volta para o teu mundo de sonhos, Lillie. Sabia que isto nunca iria resultar. Volta para as tuas recordações e obsessão com a Michele. Deixa-nos em paz. Está bem?
Lillie virou-lhe as costas, segurando as camisas contra o peito. Parte de si queria gritar com ele, mas a outra achava que, de certo modo, ele poderia ter razão. Há muito temp° que não prestava atenção suficiente ao filho por causa de MI* chele e agora não sabia quase nada sobre ele. Prometeu a si própria que, a partir daquele momento, se concentraria apenas em amar o filho e o marido. O que precisavam dela era atenção e interesse e não críticas.
Nos dias que se seguiram, o esforço parecera compensar. Começara a questionar Grayson sobre os seus dias na escola. Inicialmente o rapaz suspeitou, mas os rasgados elogios da mãe tornaram-no loquaz sobre as suas realizações diárias. Soube por Grayson que ele e Pink tinham almoçado duas vezes juntos na cantina da escola. Não revelou à mãe se ficara, ou não, envergonhado com o facto de o pair à escola.
Mantendo os seus propósitos, Lillie não referiu o nome de Michele. Sempre que lhe vinham à cabeça pensamentos sobre a filha e as suspeitas começavam a rondar, redobrava os esforços para se concentrar na família. Na família que estava viva.
Na noite do banquete arranjou-se cedo e foi Pink quem teve de ser apressado. Grayson estava muito elegante e esbelto com o fato novo. Lillie admirou-o efusivamente e ele pareceu derreter-se com os cumprimentos da mãe.
O banquete iria ter lugar na Briar HilHouse. Enquanto subiam a alameda sinuosa, viam a mansão a brilhar à sua frente. No entanto, Lillie estremeceu quando a viu. Saíram do carro e ficaram alguns instantes parados sob o ar húmido da noite que cheirava a folhas mortas. Lillie olhou para Pink tentando perceber se ele estava a pensar na última viagem que lá tinham feito. Ele evitou o olhar, virando-se para Grayson e começando a verificar a gravata, o colarinho e os punhos do rapaz.
- Está óptimo - afirmou Lillie. - Muito bonito. Começaram a caminhar sobre o relvado cheio de folhas
mortas até à casa iluminada.
- Tenho estado ansioso por este momento - disse Pink.
- Eu também - anuiu Lillie. - Se bem que tenha algum receio de lá entrar.
Tomou imediatamente consciência da frieza do ambiente. Grayson olhava para a frente com uma expressão de pedra e Pink soltou um suspiro. Durante toda a semana, o silêncio so°o nome de Michele ganhara a sua aprovação tácita. Lillie conseguia perceber que o comentário os ofendera, como se tivesse quebrado um acordo.
- Bem - prosseguiu ela alegremente, - é uma grande ocasião. Posso pedir o braço ao convidado de honra? - Grayson olhou para ela com prudência, mas ofereceu-lhe o braço.
Lillie afagou-lhe a mão fria enquanto ele a conduzia ao átrio do edifício.
A comissão de esposas tinha decorado a velha mansão com motivos de Outono, com arranjos de abóboras e espigas de milho. Na varanda, que dava para o átrio, Gay Jones, a professora de Música, estava a tocar piano. O tema de amor de Romeu e Julieta, que a solteirona Miss Jones executava admiravelmente e fazia deslizar pelo ar.
Cada um retirou um bilhete para o prémio; penduraram os casacos e juntaram-se aos outros convivas, que se mostravam muito animados. Estava a ser servido ponche na chamada biblioteca. Já não continha livros, mas era o local perfeito para um bar temporário. Ao regressar dos lavabos das senhoras, Lillie espreitou para dentro da sala de baile e viu Loretta e Brenda a dar os últimos retoques às mesas redondas que lá tinham sido colocadas. O caminho para a cozinha era mais longo, mas, para uma ocasião daquelas, era muito mais elegante do que a sala de jantar tipo cafetaria.
- Está lindo - comentou Lillie para Brenda, que lhe beijou a face. - Sinto-me culpada por não ter ajudado.
- Não te preocupes. Não vamos aguentar com essas desculpas durante muito mais tempo. Pois não, Loretta? - disse Brenda.
Loretta riu-se e deu a Lillie os parabéns pelo prémio que Grayson ia receber.
- E estás muito bonita!
- É melhor voltar para junto deles - disse Lillie. - Até logo.
Saiu do salão de baile e regressou para as salas onde tinha lugar o convívio. Ao aproximar-se por trás, viu uma figura de costas direitas que conhecia bem, à sombra de um dos arcos. Usava fato e o seu cabelo muito curto parecia ter brilhantina.
- Royce - disse Lillie.
O xerife virou-se e olhou-a com uma expressão triste e
séria.
- Olá, Lillie.
Sentiu-se culpada ao olhá-lo nos olhos, devido a todos os pensamentos horríveis que tivera sobre o seu filho. Simultaneamente, não podia deixar de pensar se seria verdade. Seria possível? Ele saberia? Parecia tão pouco à vontade e só. Desde a morte de Lulene que raramente frequentava eventos sociais, a não ser que, como era o caso, a sua presença fosse necessária. «Deixa-o estar», pensou. «Tem sido sempre um homem muito decente.» Mas ela não conseguiu evitar.
- Como é que o Tyler se está a dar no Sentinel? - perguntou num tom de voz que tentou manter neutro.
Lillie reparou numa ligeira hesitação, na maneira como ele desviou o olhar. Porém, a voz estava calma.
- Lamento dizer que o Tyler está com dificuldades de adaptação. Mas essa é a história da vida do Tyler.
Fora a primeira vez que ela o ouvira referir-se, se bem que veladamente, à desilusão que o filho era para ele. Embora não fosse segredo. Como era possível? Parecia cruel insistir no assunto, mas ela sentiu que devia.
- A maneira como o enviaste para a escola foi muito súbita. Já andavas a planear fazê-lo?
Os olhos de Royce pareciam assombrados.
- Digamos que as coisas já estavam a preparar-se há muito tempo - disse ele.
- Sabes, só há muito poucos dias percebi que ele e a Michele eram muito chegados. - Lillie tremeu ao proferir aquelas palavras.
- O Tyler e a Michele? - perguntou ele.
- Sim - insistiu Lillie num tom alegre. - Acho que ela gostava muito do Tyler.
- Eu também não sabia - disse Royce. - Não sabia que havia alguém que gostasse do Tyler, a não ser eu próprio, é claro - acrescentou com uma voz inexpressiva.
Lillie quase desejou não ter aberto a boca. Sentiu muita pena dele e culpada por ter pensado coisas tão tremendas sobre ele e o filho.
- Nestes últimos tempos quase não te temos visto continuou ela.
Royce olhou para o átrio cheio de gente, mas o seu olhar estava distante.
- Não me esqueci da Michele - disse ele, - se é a isso que te referes. Estou sempre a pensar nela.
- Não foi isso que quis dizer - retorquiu Lillie amavelmente. - Sei que andas a trabalhar no caso. Vais-me perdoar, Royce, mas tenho de ir cumprimentar umas pessoas.
- Claro - disse o xerife. - É uma grande noite para o Grayson.
Ela pensou detectar uma expressão amarga no seu tom de voz e olhou para ele. Estava a abrir caminho na direcção do bar. «com um filho como o Tyler», pensou, «não admira que sinta amargura.»
Lillie entrou na sala e foimediatamente assaltada por uma vaga de saudações e apertos de mão. A hora de convívio social passou rapidamente e depois todos se dirigiram para o salão de baile e tomaram lugar nas mesas que lhes tinham sido destinadas. Grayson estava sentado na mesa da presidência. Lillie e Pink encontraram os seus lugares nas mesas da frente. Enquanto todos se sentavam, o presidente da Câmara de Comércio, Sterling Grisard, bateu no copo para chamar a atenção. O ruído da sala acalmou e ele agradeceu a todos por terem comparecido. Prometendo que haveria discursos depois do jantar, apresentou um dos dois homens do clero que estavam sentados na mesa da presidência. O reverendo Ephraim Davis diria a oração de graças.
Depois de o padre negro se levantar e fazer uma breve oração numa voz profunda, toda a gente começou a comer. Quando o ruído das conversas aumentou, Pink ouviu uma mulher que estava sentada a seu lado.
- E esta! Um padre negro a dar graças. A igreja dele nem sequer é daqui. Só está a fazer uma substituição em Mount Olive.
Pink esvaziou o copo de vinho que tinha ao lado do prato e olhou para cima da mesa à procura da garrafa.
- Bem - disse ele -, este ano a Câmara de Comércio tem dois membros negros.
- E quem são? - perguntou a mulher.
- São os donos da Crispy Chicken na Estrada Trinta e UnV
- Sim! É verdade! - assentiu a mulher. - Acho que vem qualquer coisa sobre isso no jornal da região.
- Também há um paquistanês - disse Pink - Ele e * mulher são proprietários do motel no lago Crystal.
A mulher barrou um pãozinho quente com manteiga e pô-lo no prato.
- Para o ano darão graças em hindu.
Fungou.
Pink riu-se e saltou da cadeira quando viu Brendá passar com uma garrafa de vinho na mão.
- Enches-me o copo?
- Isto é um emprego e pêras. Ficarei aliviada quando voltares. O Grayson está tão bonito. É um fato novo?
- Acabado de comprar. - Lillie acenou com a cabeça. - Para mim é o homem mais bonito da sala.
Lillie sorriu e olhou com orgulho para o filho que estava a conversar seriamente com um comerciante sentado ao seu lado.
O jantar prosseguiu agradavelmente e em breve chegou a altura dos discursos e entrega dos prémios. Ouviram pacientemente a apresentação dos novos membros, Um momento comemorativo dedicado a um membro da Câmara de Comércio recentemente falecido, um discurso sobre o crescimento económico em Cress County e por fim chegaram aos prémios de liderança. Pink que nunca deixara de ter o copo cheio, aplaudiu ruidosamente quando Bomar Flood subiu à tribuna. Lillie percebeu que a parte posterior do pescoço de Pink estava vermelha e tinha gotas de suor na testa.
- ... um jovem que se distinguiu no trabalho e nas actividades escolares, no campo de jogos e no círculo familiar disse Bomar. - Temos muito orgulho em conceder-lhe este prémio.
Enquanto se ouvia um caloroso aplauso e Gray subia à tribuna, Lillie viu Bill e Betty Starnes levantarem-se da mesa e saírem com expressões solenes. Lillie corou de vergonha quando o filho começou a falar.
Grayson ergueu a placa e admirou-a durante algum tempo. Depois, inclinou-se sobre a tribuna.
- Será que fiz mesmo tudo isso? - perguntou com uma voz ardilosa. As mulheres riram-se e os homens remexeram-se
nas cadeiras. - bom - prosseguiu, - estou muito comovido por receber esta distinção.
Quando terminou, Bomar aplicou-lhe umas palmadinhas nas costas e voltaram a dar um aperto de mão, obtendo mais uma salva de palmas. Grayson sentou-se e Lillie sentiu-se descontrair. Tinha feito boa figura. Inicialmente parecera muito presunçoso, especialmente depois do protesto silencioso dos Starnes, mas todos pareciam ter gostado do discurso.
Pink virou-se e olhou para ela com os olhos a brilhar.
- Tudo vale a pena - declarou com a voz já um pouco entaramelada. - Vale tudo.
- O quê? - perguntou Lillie, enquanto a mulher sentada ao lado de Pink afirmava:
- Deve estar muito orgulhoso do seu rapaz.
- Sim, minha senhora --• assegurou Pink - Estamos muito orgulhosos.
Os oradores seguintes continuaram a falar monotonamente até Lillie pensar que ia adormecer. De súbito, tudo terminara e as pessoas começavam a levantar-se. Os amigos e vizinhos juntaram-se em torno de Pink e Lillie para lhes dar os parabéns. Junto ao grupo, Loretta, ainda de avental, estava a conversar com o padre que dissera a oração de graças. Pediu desculpa e foi ter com Loretta.
- Loretta - disse ela -, dás-me licença. Só te queria dizer que tudo estava uma maravilha. Fizeram um excelente trabalho. Têm a certeza de que ainda precisam de mim?
- Não sejas tonta, Lillie - retorquiu Loretta. - O teu filho fez um excelente discurso.
- Muito obrigada.
Loretta fez um gesto na direcção do padre que estava a seu lado.
- Lillie, deixa-me que te apresente um 'velho amigo da família, o reverendo Davis. Reverendo, Mistress Lillie Burdette.
Lillie cumprimentou o velho padre.
- Estamos muito contentes por o ter aqui, reverendo.
- É um prazer conhecê-la, Mistress Burdette. Oro muitas vezes por si.
Lillie olhou para o velho, surpreendida.
- Por mim?
- Pela sua família. A sua filha.
- Obrigada, reverendo - agradeceu Lillie. - É muito amável da sua parte.
- Sabe se o xerife conseguiu fazer alguma coisa a partir daquilo que lhe contei? Nunca mais me disse nada.
Lillie franziu o sobrolho.
- Acho que não estou a perceber.
O velho tentou disfarçar, ligeiramente envergonhado.
- Não é nada - disse ele. - Não devia ser importante.
- Não! Por favor, diga-me o que se passou - insistiu Lillie.
- Só disse ao xerife que tinha visto a sua filha naquela noite...
- Na noite em que foi morta... - interrompeu Lillie.
- Sim. Caminhava sozinha pela estrada que vai dar aos Arcos. Eu perdi-me...
Lillie pareceu sentir um punho a cerrar-se dentro de si. - Estava sozinha? A caminhar sozinha?
- Sim, mas depois vi um jovem lá em baixo nos Arcos. O xerife não vos disse nada disto? Então, deve ter esclarecido imediatamente a situação.
^ As mãos de Lillie estavam geladas e sentia que os joelhos não suportavam o peso do corpo.
- Que rapaz? - perguntou em voz baixa.
- Estava junto da ponte. Ela era uma linda rapariga, Mistress Burdette. Explicou-me o que fazer para sair dali e depois, quando entrei numa estrada de terra para fazer inversão de marcha, vi um rapaz lá em baixo.
Lillie lutou para manter a voz calma e casual.
- Como é que ele era?
O reverendo coçou nervosamente a face enrugada. - Só o vi por um instante. Parecia um rapaz alto e bem constituído. Cabelo negro. O xerife não vos contou isto?
Lillie abanou a cabeça. Loretta olhou para ela. - Não estás com bom aspecto, querida - observou Loretta. - Porque não te vens sentar?
- Lamento, Mistress Burdette - disse o reverendo Davis. *- Não a devia ter feito recordar tudo isso numa ocasião tão festiva.
Lillie apertou a mão do velho como se procurasse apoio.
- Não - sussurrou ela. - Obrigada por me ter dito.
- Anda! Senta-te! - insistiu Loretta, ajudando Lillie a sentar-se.
Lillie olhou de modo suplicante para a outra mulher.
- Loretta, tenho de sair daqui.
- vou dizer ao teu marido.
- Não! Estou bem! Eu digo-lhe.
Lillie afastou a mão solícita de Loretta e dirigiu-se a Pink que se encontrava no meio da multidão com Grayson. Fez um sinal, mas ele apenas lhe sorriu.
- Pink - suplicou ela.
Grayson ouviu a voz da mãe e virou-se, levantando a placa para ela ver. Pink tinha um braço sobre os ombros do rapaz. Lillie acenou distraidamente com a cabeça a Grayson e o triunfo que ele tinha nos olhos desapareceu. Indicou-lhe que queria falar com Pink. Grayson informou o pai e Pink veio ter com ela, arrastando consigo o relutante rapaz.
- Que tal este miúdo? - perguntou. Lillie acenou com a cabeça.
- Preciso de falar contigo, Pink Viste o xerife? Viste o Royce? Acabei de ouvir uma coisa. Acho que se está a passar algo. Eu própria mal consigo acreditar...
- O que é isto? - rosnou Pink - O que é? - Grayson olhava para a mãe.
Lillie contou-lhe rapidamente a conversa que tivera com o reverendo Davis.
- Ele viu um rapaz - concluiu com a voz a tremer. Um rapaz que se parece muito com o Tyler Ansley.
Pink olhava para ela com um sorriso de dor, como se tivesse acabado de assistir a um acidente.
- Pink - insistiu Lillie -, o xerife nunca nos disse nada sobre isto. É uma testemunha ocular.
Pink olhou para o reverendo.
- Porque é que temos de acreditar numa pessoa como ele? O que é que estava a fazer lá, a falar com a Michele-
Lillie agarrou no braço do marido e abanou-o.
- Pink por amor de Deus. Creio que o rapaz que ele viu era o Tyler.
- Podia ter sido uma pessoa qualquer - disse Pink Para eles, somos todos iguais. Deve ter sido por isso que o xerife nunca falou do assunto.
- Ou pode ter sido o Tyler e o xerife saber - exclamou Lillie.
Grayson olhava fixamente para os pais.
- Controla-te, Lillie - pediu Pink - Porque é que o Tyler Ansley faria mal à Michele?
- Não sei - declarou Lillie -, mas poderia ser uma explicação para o facto de o Royce ainda não ter encontrado o assassino e de nós ainda não termos recebido qualquer informação.
Pink olhou para a mulher.
- Pensei que o Royce Ansley era nosso amigo. Agora suspeitas dele?
- O Tyler é filho dele. Quem sabe o que faria pelo filho?
- bom - interrompeu Grayson com um sorriso triste, - acho que fui muito idiota em pensar que seria eu a estar na ribalta esta noite.
Lillie virou-se e olhou para o filho. Sentira aquela conhecida punhalada de culpa, mas ao mesmo tempo algo disparou dentro dela.
- Pára de choramingar, Grayson - ordenou. - Não vamos admitir. Sei que tudo isto é importante para ti, mas a tua irmã foi assassinada e isso é bem mais importante do que esse prémio.
Grayson afastou-se dela com uma expressão de surpresa e ira nos olhos. No momento seguinte, parecia constrangido; estava pálido e abatido.
- Quero ir para casa - disse Lillie.
Pink olhou para ela com indignação. Meteu a mão no bol-
so e entregou-lhe as chaves do carro.
- Nós pediremos boleia a alguém - disse ele, deixando~as cair na palma da mão. - O Grayson ainda não pode abandonar a festa.
Lillie sentiu-se corar de fúria perante a indiferença do marido. Agarrou nas chaves com a mão a tremer e dirigiu-se à porta. Brenda chamou-a quando passou, mas Lillie continuou a andar em direcção ao relvado. Entrou no carro e foi-se embora. A sua mente não parou durante todo o caminho até casa.
Estavam a tentar castigá-la por se importar, mas não resultaria. Por que razão eles não se importavam tanto quanto ela? Essa era a verdadeira questão. Pink estivera bem empenhado em apanhar Ronnie Lee Partin, mas, quando os factos sobre ele tinham vindo à luz, parecia ter perdido o interesse. Agora que Tyler era um possível suspeito, ele nem queria ouvir falar disso, e Grayson ia pelo mesmo caminho. Só parecia pensar em si próprio. Ela sabia que todos os miúdos eram egoístas, mas, se ele se tivesse preocupado um pouco, talvez conseguisse obter alguma informação sobre Tyler. Tinham andado juntos na escola durante anos. Decerto conseguiria saber alguma coisa sobre o rapaz. Mas, se tinha de fazer tudo aquilo sozinha, fá-lo-ia. A coisa mais importante era encontrar o assassino. Estacionou na alameda e entrou na casa escura e silenciosa.
«Se foi o Tyler...», pensou ela, «mas... e o Royce? Porque é que não deixou que o Ronnie Lee Partin fosse responsabilizado pelo crime?» Recordou novamente a imagem do xerife, afastado dos acontecimentos daquela noite. Teria deixado Tyler escapar sem castigo? Depois perguntou a si própria que Royce a teria visto a falar com o reverendo Davis naquela noite. Não vira o xerife em lado nenhum. Partira do princípio de que se teria ido embora mais cedo. Todavia, se a tivesse estado a observar, sabendo o que o velhote lhe estava a dizer, pensaria que ela tivesse relacionado as coisas? Nessa noite, praticamente revelara-lhe as suspeitas que tinha de Tyler. Lillie estremeceu e acendeu as luzes da casa.
Mesmo ao fazê-lo, teve medo. «O Royce nunca te faria mal», pensou. «Não seria possível.» Contudo, um ruído que veio do lado de fora da janela do escritório assustou-a. Nunca pensara que Royce fosse capaz de esconder um criminoso. Nem o próprio filho. Se fosse até aí... Dirigiu-se à janela, sustendo a respiração, e olhou lá para fora. O pátio permanecia tranquilo e aparentemente vazio. Fechou a janela e puxou os cortinados.
Caminhou até à porta do quarto de Michele, abriu-a acendeu as luzes e entrou. Dirigiu-se rapidamente à janela e fechou as gelosias. Lillie repetiu mentalmente a conversa que tivera com o xerife. Dissera-lhe que soubera da amizade entre Michele e Tyler. Saberia ele mais sobre a relação entre os dois? Seria possível que tivesse existido uma paixão secreta e correspondida entre a sua menina e o filho do xerife? Uma paixão que se tivesse transformado em raiva? Tinha feito bluff quando o dissera a Royce mas, se calhar, era verdade. Lillie olhou freneticamente à sua volta como se o quarto pudesse falar. Tentou pensar onde poderia estar a resposta. Alguns instantes depois, dirigiu-se à estante e tirou o livro anual da escola. com os dedos gelados passou as páginas. O retrato dele estava na segunda página. Tyler Ansley. Ao lado da fotografia via-se um borrão. Lillie acendeu o candeeiro da secretária e colocou o livro sob a luz. O borrão era de um rosa pálido e estriado. Percebeu imediatamente que era um borrão de bàton, como se alguém tivesse beijado a fotografia. Lillie olhou para aquela imagem com a cabeça latejando em simultâneo com o coração. A casa estava tão silenciosa que conseguia ouvir o coração a bater. «Tyler», pensou. «Oh, não.»
O toque estridente do telefone assustou-a. Deu um salto na cadeira e gritou. Depois fechou o livro como que escondendo a sua descoberta. com os pensamentos desordenados, foi à cozinha e pegou no auscultador. Instantes depois, colocou-o no ouvido.
- Estou -- disse ela.
- Lillie - proferiu uma voz distante. - É o Jordan. Lillie deixou-se cair na cadeira.
- Jordan - murmurou.
- O que se passa? Estás com uma voz estranha. Estás bem?
Lillie passou a língua pelos lábios e tentou acalmar a respiração.
- Não sei. - Sabia a razão do seu telefonema, mas não queria contar-lhe. Conseguia imaginar a sua reacção incrédula. pensou em desligar. - O que queres?
- Tenho estado a pensar na Michele. Que havia de ser?
É uma má altura para telefonar? Lillie, sentada na cadeira, segurava o telefone com a mão a tremer; a sua mente trabalhava ferozmente e Jordan permanecia silencioso do outro lado. De súbito, teve vontade de o dizer. Queria ouvir a reacção de espanto e depois a piedade na sua voz, o débil esforço para a consolar por ter enlouquecido.
- Acho - disse ela calmamente - que o Tyler Ansley a matou e que o pai está a protegê-lo.
Ouviu a já esperada inspiração de ar e depois houve uma pausa.
- O que te faz pensar isso? - perguntou ele com uma voz firme.
Lillie começou a rir. Não conseguiu evitá-lo. O riso, que estava perto das lágrimas, irrompeu descontroladamente.
- Devo estar louca - declarou. - Devo estar a perder o juízo.
- Tu não, Lillie. És a pessoa mais sã que conheço - disse ele. - Por favor, conta-me.
- Esquece, Jordan. É uma longa história. Estou demasiado cansada e não há provas de nada. Na realidade, não há. Tenho de ir.
„ -Lillie! - Adeus!
Desligou o telefone e esfregou os braços gelados. Depois, voltou para o quarto de Michele. A casa parecia fria e insuportavelmente solitária. Chutou os sapatos e meteu-se debaixo do edredão completamente vestida. Desligou a luz da mesa-de-cabeceira e ficou deitada no escuro. Tentou imaginar Michele, deitada naquela cama, fantasiando sobre Tyler Ansley. Devaneios inocentes sobre o rapaz por quem estava apaixonada. Talvez fazendo planos para ir ter com ele. Nunca suspeitando...
Lillie saiu da cama e foi até à porta do quarto de Michele. Fechou-a e trancou-a. Depois de verificar que as janelas também estavam fechadas, voltou para a cama. Alguns minutos depois, agarrada à almofada da filha, estava a dormir.
Acordou com a sensação de ressaca. A cabeça estava pesada e os olhos a arder das lágrimas que devia ter derramado enquanto dormia. Inicialmente, assustou-se por se encontrar num quarto desconhecido e depois lembrou-se. Michele e Tyler. Fez um esforço para se sentar.
Da cozinha vinha o cheiro a café. Ela olhou para o relógio. Eram quase dez e meia. Perguntou a si própria por que razão Pink ainda não tinha ido trabalhar. Talvez estivesse à sua espera para falar sobre o sucedido na noite anterior. No estado em que se encontrava, temia aquele confronto. Mas era o menor dos seus problemas. O que iria fazer a respeito de Tyler?
Depois de abrir a porta do quarto de Michele, foi em meias até à cozinha. Jordan Hill estava sentado à mesa a beber uma chávena de café.
- Meu Deus - gritou ela. - O que estás aqui a fazer? Jordan não conseguiu evitar o sorriso ao ver o seu cabelo
acachapado, a roupa amachucada e a maquilhagem espalhada pelo rosto.
- Sempre tiveste esse ar lindo pela manhã - disse ele.
- Raios te partam, Jordan. Perguntei-te o que estás a fazer na minha cozinha.
- O que achas? - perguntou ele. - Ao contrário de ti, não consegui dormir depois do telefonema de ontem à noite. Levantei-me de madrugada, desci das montanhas e apanhei o primeiro voo para Nashville. Depois vim para cá. A porta das traseiras estava aberta. - Jordan ofereceu-lhe uma caneca de café. - Ainda está quente. Acabei de chegar. Lillie olhou para a caneca que ele segurava.
- Serve-te - insistiu. - Sempre gostaste do meu café. Lillie, com as mãos a tremer, alcançou a caneca de café, da
qual subiu vapor que suavizou a inflamação das pálpebras e a testa tensa de Lillie. Alguns instantes depois deu um gole no café e depois levou a caneca para a janela, aquecendo nela as mãos, e olhou para o dia cinzento e chuvoso.
- Foi muito dramático da tua parte - observou. - De facto, escolheste a profissão mais indicada para ti. Sempre tiveste uma veia dramática. - Virou-se, lançou-lhe um ligeiro sorriso e bebeu mais um gole de café. - Sinto-me um pouco como o rapaz que gritou «lobo». Estava completamente desnorteada quando falei contigo, mas à luz cinzenta do dia já não tenho a certeza de nada. - Esfregou o braço. - O Tyler é um bom rapaz. Conheço-o desde que nasceu. Não é um miúdo mau.
- Começa do princípio - pediu Jordan. - Conta-me tudo passo a passo.
Lillie suspirou e tentou organizar as ideias. Depois começou lentamente a falar. Quando chegou à parte do jantar e à conversa com o reverendo Davis, Jordan interrompeu-a.
- Espera - disse ele. - Um tipo negro, não é? Bastante bem constituído. Já com alguma idade. com as patilhas já brancas.
- É esse. - Ela assentiu com a cabeça.
Jordan levantou-se e começou a caminhar pela cozinha.
- Eu vi-o, Lillie. No dia em que me fui embora, ele vinha a sair do gabinete do xerife.
- Sim, ele foi falar com o xerife.
- Sim, mas o que quero dizer é que ele ia a sair quando eu ia a entrar. No entanto, quando perguntei ao Ansley se havia alguma novidade ou informação, ele disse que não. Um não redondo.
- - Talvez dissesse que era confidencial. Assunto da Polícia.
- Temos de falar outra vez com esse padre, Lillie.
- Para quê? - perguntou ela. - Eu disse-te o que ele sabe.
- Mostramos-lhe a fotografia do Tyler que está no livro anual da escola, para ver se ele o reconhece. - Olhou para Lillie que estava encostada ao lava-louça como se se sentisse doente. - Achas que tens forças para isso?
- Sim - afirmou ela. - Deixa-me mudar de roupa. Dirigiu-se ao quarto, mas depois virou-se. - E se é ele, Jordan? O que fazemos então?
- Preocupa-te com isso na altura. Eu lavo a louça - disse ele, passando as duas canecas pela água corrente e colocando-as no escorredor.
Lillie telefonou a Loretta para saber onde podia encontrar o reverendo e depois Jordan conduziu o carro que alugara através do nevoeiro que cobria os campos da cidade, enquanto Lillie permanecia sentada a seu lado agarrada ao livro anual da escola.
- Chuva, chuva e mais chuva - disse Jordan. - O Tennessee no Outono. E no Inverno.
- Acho que sim - anuiu Lillie. - Eu já estou tão habituada que mal dou por isso. Lembras-te do caminho para BelStreet?
- Claro - disse ele. - Acho que ainda conheço todas as estradas deste condado. De facto, também chove muito nas montanhas onde tenho a minha casa. Só que no Inverno é capaz de se transformar em neve.
- A Michele contou-me que andaram de trenó no Inverno passado.
- Foi divertido - disse Jordan melancolicamente.
Ficaram em silêncio até chegarem a casa dos Walker. A casa estava tranquila e escura. Lillie receou que Loretta não tivesse tido tempo para avisar que eles lá iam. Depois, viu Clara walker abrir a porta da frente e olhar para o carro.
Lillie e Jordan correram debaixo de chuva até ao alpendre, Clara convidou-os a entrar. O reverendo Davis estava sentado na sala, folheando a Bíblia.
- Obrigada por nos receber, reverendo Davis - disse Lillie - Este é o meu... este é o pai da Michele, o Jordan Hill.
Cumprimentaram-se, e Clara Walker inclinou-se e disse a Jordan numa voz conspiratória:
- Quando estou em casa às terças-feiras à tarde, gosto muito de ver o seu programa. É muito bom.
Jordan cofiou o bigode, sorriu e agradeceu-lhe. Virou-se para o homem que estava sentado na cadeira.
- Reverendo Davis, a minha mulher diz-me que contou ao xerife que tinha visto um rapaz junto dos Três Arcos na noite em que a minha filha foi morta.
O reverendo acenou, fatigado, com a cabeça. Lillie abriu a boca para dizer «ex-mulher», mas acabou por não se dar a esse trabalho. O padre parecia estar ansioso por se livrar deles.
- Importava-se apenas de olhar para uma fotografia sugeriu Jordan - e dizer-nos se é o rapaz que viu?
Lillie olhou para Jordan e abriu o livro. Entregou-o ao velho pregador e apontou para a fotografia de Tyler. Ephraim Davis estudou a fotografia em silêncio. Lillie pensou que toda a gente que estava na sala a tinha ouvido engolir em seco.
O velho levantou os olhos da fotografia.
- Ansley - proferiu ele. - O mesmo apelido do xerife.
- É o filho do xerife - admitiu Jordan.
Os dois homens olharam-se fixamente nos olhos. Depois o reverendo voltou a baixar os olhos e fechou o livro. Entregou-o a Lillie.
- Não tenho a certeza - disse ele.
- Mas o senhor viu-o - protestou Lillie.
- Eu vi um rapaz - insistiu o padre. - Poderia ter sido este, mas estava escuro e os meus faróis só o ilumimaram durante alguns segundos.
- Por favor - gritou Lillie. - O senhor é o único que sabe, que nos pode ajudar. Apenas tem de dizer a verdade.
O velho reverendo levantou-se da cadeira e olhou para
Lillie.
- É isso que estou a fazer, minha senhora. Eu não queria ir falar com o xerife, mas analisei a minha consciência e fiz o que era preciso fazer. Contudo, não vou acusar de homicídio um rapaz que pode estar inocente, só porque estive a olhar para uma fotografia do tamanho de um selo. Já estou velho, e os meus olhos não são o que eram.
Jordan fez um sinal a Lillie para parar, se bem que ela já estivesse pronta para se lançar com mais uma súplica.
- Obrigado pelo seu tempo - disse ele educadamente. - Não tem de quê - retribuiu o reverendo.
Clara Walker acompanhou-os ao alpendre. Eles correram para o carro e bateram as portas.
- Pronto! Acabou-se - disse Lillie. - Agora tu também vais pensar que imaginei tudo.
- Não - respondeu Jordan. - Acho que tens razão. Ela olhou para o seu perfil pensativo enquanto ele punha o
carro em marcha. Não perguntou para onde é que iam. Parecia estranhamente normal estar com ele e deixá-lo assumir o controlo. Conduziram através dos bosques e estradas de campo e apenas o ruído dos pneus sobre o pavimento molhado acompanhava os seus pensamentos. Ela não ficou surpreendida quando ele virou para a estrada que conduzia à Ponte Velha dos Arcos. Ramos molhados batiam no carro enquanto seguiam pela estrada esburacada e pararam na clareira. Do sítio onde estavam, conseguiam ver a massa disforme de pedras que formavam a ponte e as longas frondes molhadas do salgueiro que caía sobre ela. O pequeno rio que corria sob a ponte parecia uma estria escura. Jordan desligou o motor e ficaram sentados em silêncio. Lillie ainda segurava o livro contra o peito. O carro estava inundado do cheiro das suas roupas húmidas, do cabelo, do after-shave de Jordan e da água-de-colónia de Lillie. Olharam furtivamente um para o outro e afastaram o olhar.
- O que estamos aqui a fazer? - perguntou Lillie. - A pensar.
Lillie acenou com a cabeça e olhou para a ponte. Começou a tremer. Jordan despiu o casaco e colocou-lho sobre os ombros apesar de ela protestar que não era preciso. Depois ficaram novamente a olhar para a frente.
- O facto - disse ele finalmente - é que tudo faz sentido. - Faz mesmo.
- Eu sei - assentiu Lillie.
- Só não sabemos porquê. De resto, tudo faz sentido. Lillie olhou para ele.
- Obrigada por teres vindo, Jordan.
Jordan encolheu os ombros e não olhou para ela.
- Já era altura de vir - disse.
- Tento falar com o Pink mas ele reage como se eu fosse demente. Está sempre a dizer que deixe o xerife tratar do caso. Mas como é que podemos deixar o xerife tratar do caso, se se trata do filho dele? Sei que o Royce é um bom homem. Mas quando se trata de filhos...
Jordan virou-se para ela de olhos muito abertos.
- Talvez o Pink saiba que foi o Tyler e o xerife o esteja a obrigar a estar calado.
- Não sejas ridículo - disse Lillie. - É impossível. No entanto, recordou-se imediatamente da reacção furtiva
de Pink quando ela mencionara Tyler.
- Porquê? Pode estar sob ameaça do Royce.
- Pensa um pouco no que estás a dizer, Jordan. O xerife podia obrigar-te a estar calado? Mesmo com ameaças? Não é possível.
- Está bem - respondeu Jordan. - Tens razão.
- Não sabes como o Pink amava a Michele. Como podes dizer uma coisa dessas?
- Está bem! Não te zangues - repetiu Jordan. - Não estava a tentar diminuir o Pink Pensei que o xerife pudesse estar a ameaçar-lhe a vida ou outra coisa qualquer.
- O Royce não é esse tipo de pessoa - declarou Lillie.
- Quem sabe que tipo de pessoa é ele? - perguntou Jordan.
Lillie encostou a cabeça ao assento enquanto Jordan abria a porta do carro e saía. Ficou uns instantes a olhar para o céu nublado e depois, de cabeça baixa e mãos nos bolsos, atravessou a ponte e parou junto do salgueiro a olhar para o sítio onde Michele morrera.
Lillie ficou a olhá-lo como se ele estivesse sozinho. Durante anos, depois do seu casamento com Pink quando as pessoas lhe perguntavam por Jordan, ela dizia: «Eu não o odeio. Tenho pena dele.» Era uma boa resposta. Indicava que tudo estava bem na sua vida e que era ele que tinha perdido tudo. Metade era verdade. Ela não o odiava. Não tinha tempo para odiar. Tinha, antes de mais, de tomar conta de Michele e depois de Pink e Grayson. Não havia tempo para pensar em Jordan. Contudo, quando pensava nele, quando o olhava agora, de cabeça baixa, ombros encurvados contra a chuva, continuava a pensar a mesma coisa: «Como pudeste abandonar-me? Éramos tudo um para o outro.»
Ele levantou a cabeça como se tivesse ouvido os pensamentos de Lillie e olhou solenemente para ela. Lillie abriu a porta do carro e caminhou até à ponte. Depois, com alguma relutância, atravessou-a até ao local onde Jordan se encontrava.
Jordan virou as costas ao salgueiro e examinou aquele local sossegado junto ao rio.
- O que aconteceu aqui? - proferiu ele. ! Lillie apertou mais o casaco à sua volta.
- Achas que o reverendo estava a mentir? Terá reconhecido o Tyler?
Jordan abanou a cabeça.
- Acho que ele não queria cometer um erro. - Olharam para aquele lugar desolado, as pedras que caíam da ponte e o rio lamacento. - Ela nunca teria vindo aqui sozinha. Tinha de vir ter com alguém. Muito bem! Acho que o próximo passo é óbvio.
Lillie limpou a chuva do rosto com as costas da mão. - Para mim, não é - afirmou ela. - vou falar com o Tyler Ansley. Lillie abriu muito os olhos. - E fazer o quê?
- É inútil ir ter com o Royce, se tem estado a esconder o assunto até agora. Mas se apanhar o Tyler de surpresa e fingir que sei mais do que sei, talvez seja capaz de conseguir que me diga alguma coisa.
- Tens razão - murmurou ela.
Só tenho de me assegurar de que o Royce não vai descobrir. Não queremos que avise o Tyler de que eu estou a caminho.
Podes ter a certeza - disse Lillie - que ele não vai descobrir. Quando partes?
Quanto mais depressa, melhor. Esta tarde. Quanto menos gente souber que estou na cidade, melhor. Além disso, são cinco horas de carro até lá. Está no Sentinel, não é? Lillie assentiu com a cabeça.
- vou deixar-te em casa. Acho que nem vou ver a minha mãe. Far-me-á milhares de perguntas.
- E se ele confessar? O que fazes? - perguntou Lillie. Olharam um para o outro, ligeiramente horrorizados com
a ideia de enfrentar o assassino da filha.
- Levo-o à Polícia local. O Royce não poderá interferir
- disse Jordan resolutamente.
Lillie mordeu o lábio.
- É uma acusação terrível para um jovem. Talvez não tenha nada a ver com isso.
- Então não se incomodará que lhe faça algumas perguntas, Lillie. Vamos - disse ele. - vou levar-te a casa.
Quando chegaram, ela olhou à sua volta para ter a certeza de que ninguém estava a vê-la sair do carro. Retirou o casaco desportivo de Jordan e entregou-lho. Começou a tremer quase imediatamente.
- Telefona-me, está bem? - pediu. - Tem cuidado.
- Vai para dentro - ordenou ele, acenando com a cabeça. - Não quero que congeles.
Assim que entrou em casa, Lillie foi ao quarto mudar de roupa e vestiu uma camisola quente e um par de calças. Usara um bom vestido de malha para o encontro com o reverendo, como se tivesse ido à igreja. O vestido estava molhado da chuva e ela pendurou-o a secar. Olhou para o espelho do toucador. O seu cabelo escuro estava encaracolado numa massa revolta e desordenada.
Agora sentia-se aliviada e estranhamente calma. Jordan encontrava-se a caminho para falar com Tyler e chegar, possivelmente, à verdade. De certo modo, desejava poder ir com ele, mas Tyler certamente não falaria se a visse e, além disso, Pink nunca admitiria que ela acompanhasse Jordan. Depois de todos aqueles anos, ainda suspeitava do primeiro marido de Lillie. Talvez isto finalmente o convencesse de que os motivos de Jordan eram honestos.
Recordou como Pink reagira quando Jordan a contactara Pela primeira vez, tinha Michele cerca de seis anos, e perguntara se lhe dava autorização para ver a filha e possivelmente fazer-lhe curtas visitas quando ela estivesse melhor de saúde. De facto, ela própria não gostara inicialmente da ideia. Mas a mãe de Jordan, Bessie, que se assumira como avó de Michele desde
o seu nascimento, intercedeu a favor do filho e Lillie aceitara. Durante anos Pink resmungara ou ficara em silêncio nos dias em que Jordan vinha buscar Michele e percebia que Michele Se sentia culpada por gostar do seu «novo» pai. No entanto, ela gostava muito dele e Lillie teve de insistir para que Pink se mostrasse mais simpático, para bem de Michele. Então Pink aprendera a viver com o facto. Todos tinham aprendido.
A única vez que explodira fora um dia, vários anos depois de começarem as visitas, tinha Michele doze anos. Jordan pedira autorização para que a filha o visitasse em Nova Iorque e mandara um bilhete de avião. Levaram Michele ao aeroporto de Nashville e Grayson fartara-se de chorar por não poder ir também. Michele contara tudo aquilo a Jordan e, na visita seguinte, Jordan telefonara, oferecendo-se para mandar bilhetes para as duas crianças.
Lillie estremeceu só de recordar a cena que se seguira. Michele despejara ansiosamente as notícias junto do irmão mais novo e Pink ficara furioso.
- Só precisava de estalar os dedos para te ter de volta gritava ele enquanto ela lhe pedia que baixasse a voz. - Tem a minha filha e agora queres dar-lhe o meu filho. E.le nunca, nunca terá o meu filho. Estás"a ouvir?
Lillie achou que toda a cidade o tinha ouvido, mas as pessoas eram demasiado educadas para mencionar o facto. Grayson não chorara perante a sua desilusão, e nunca mais se tocara no assunto.
Sim, pensara Lillie nervosamente, Pink ia sentir-se ofendido quando soubesse. Poderia achar que deveria ser ele a ir. Sentiu uma pequena dor de cabeça a começar na nuca quando pensou em contar-lhe. Mas ele não tinha o direito de se zangar, dissera a si própria. Nem sequer queria ouvir falar dos seus receios sobre Tyler. Estava decidido a confiar cegamente no xerife. Alguém tinha de ajudar. E se Jordan queria ajudar a procurar o assassino de sua filha, ninguém o poderia culpar.
Lillie suspirou. Sabia quem o culparia. Mesmo assim, achou que não haveria maneira de o evitar. Pink tinha de ser informado. Talvez ela o conseguisse fazer entender se falasse de maneira adequada. Já não eram nenhuns bebés. Não seria preciso entrar em competição para provar a sua devoção pelos filhos. Todos percebiam que buscavam um bem maior.
Armada dos seus argumentos, Lillie vestiu o casaco e decidiu ir ter com Pink antes de perder a coragem. Meteu-se no carro e dirigiu-se à cidade.
O escritório de Pink situava-se no segundo andar de um edifício que ficava na praça. No rés-do-chão havia uma sapataria que servia clientes mais velhos. A gente jovem ia ao centro comercial comprar os sapatos de ténis e de salto alto. Aquela loja tinha em stocsapatos resistentes, confortáveis e intemporais na sua falta de estilo. Lillie acenou para Ben Duvall, o proprietário, através da montra salpicada de chuva e abriu a porta lateral que dava para as escadas. Havia um longo corredor no cimo das escadas e o chão era forrado a linóleo acastanhado e já gasto. O primeiro escritório pertencia a um advogado chamado Alvin Bickers. A porta verde estava fechada e não havia luz no interior que iluminasse o vidro fosco e as letras negras que diziam ALVIN BICKERS, ADVOGADO. «Talvez esteja no tribunal», pensou Lillie enquanto passava, «ou a trabalhar em casa.» Alvin já não era nenhum jovem e cada vez vinha menos ao escritório em dias frios e chuvosos. A seguir havia uma casa de banho para homens e a das senhoras era do outro lado do corredor. A última porta à esquerda era a de Pink Uma placa de bronze manchada ao lado da porta dizia GRAYSON BURDETTE, IMÓVEIS, NOTÁRIO PÚBLICO. Os ténis de Lillie rangiam suavemente sobre o velho linóleo enquanto se aproximava da porta aberta do escritório de Pink Entrou e olhou à sua volta. Não havia ninguém na recepção. Reba Nunley, uma dona de casa que recebera recentemente a sua licença de agente imobiliário encontrava-se lá por vezes, com o fim de receber os telefonemas e dar as boas-vindas aos clientes. Em troca, Pink deixava-a utilizar o espaço restante do escritório e servir-se do atendedor de chamadas para possíveis clientes. A secretária de Pink situava-se por trás de uma divisória que ficava de costas para a secretária de Reba. Lillie bateu à porta.
- Está alguém?
Pink saiu de trás da divisória e pareceu surpreendido por ver a esposa.
-Olá, querido - saudou ela. ... ,
-Olá - disse Pink ..
- Onde está a Reba? Foi almoçar?
- Tinha algumas coisas para fazer. - Pink preciso de falar contigo.
- Ainda bem. Que surpresa tão agradável. Depois de teres passado a noite trancada no quarto da Michele, pensei que não
falavas comigo.
- Melhor dizendo, eu «desmaiei» no quarto - respondeu Lillie. - Não tinha qualquer outra intenção.
- Bem, pareces ter acalmado um pouco. É bom sinal. Lillie encolheu os ombros.
- De certo modo.
- Devias ter ficado orgulhosa. Os cumprimentos feitos ao teu filho foram bastante impressionantes.
- Ele merece-os - afirmou Lillie.
- Ele só quer dar-te motivos de orgulho. Quer que penses
nele.
- Eu penso nele, Pink Vá lá.
- bom - disse Pink -, às vezes não o manifestas muito bem. Perdoa-me. - Voltou para trás da divisória e atendeu o telefone que começara a tocar. - Burdette. Em que posso ajudá-lo?
Lillie atravessou o escritório e olhou para o quadro informativo com as novas listagens e as descrições das propriedades por baixo de fotografias de má qualidade.
- Está com sorte - disse Pink à pessoa que se encontrava ao telefone. - Tenho exactamente aquilo que deseja. Que tal encontrarmo-nos aqui às quatro horas? Estamos a falar da casa dos seus sonhos. Isso mesmo. Quatro horas.
Pink saiu de trás da divisória e Lillie enfrentou-o.
- Tenho uma coisa para te dizer, Pink Foi por isso que
vim.
- Muito bem. Diz - encitou ele, cruzando os braços sobre o peito.
- O Jordan apareceu esta manhã. O rosto carnudo de Pink cedeu.
- Muito bem - disse ele. - Que linda surpresa.
- Telefonou ontem à noite quando eu cheguei a casa. Falei-lhe das minhas suspeitas. Deve ter pensado que era muito sério e decidiu vir cá.
Pink sorriu com tristeza.
- Quando tu dizes «mata», ele acrescenta «esfola». Não é
isso?
Lillie ignorou o sarcasmo.
- Fui hoje falar com o reverendo Davis e mostrámos-lhe a fotografia do Tyler. - Viu que Pink se empertigara ao ouvir aquilo. - Não foi capaz de dizer ao certo se era o Tyler o rapaz que viu.
- Isto é incrível - afirmou Pink pegando num conjunto de chaves que estavam atrás dele, começando a atirá-las de uma mão para a outra. - Devem ter feito uma equipa muito engraçada. Dois detectives.
- Queria dizer-te isto para o caso de alguém nos ter visto e te vir contar - acrescentou Lillie.
- Já nada me surpreende - disse Pink com as chaves nas mãos. - Ele fará tudo para te recuperar e tu adoras.
-- O Jordan foi até ao Sentinel. Para tentar falar com o Tyler. Continuamos a pensar que pode ter sido ele.
Pink atirou com as chaves para a beira da secretária. - O quê? - gritou. - Que diabo estão vocês...
- Pink - interrompeu Lillie. - Achámos que se o Jordan o apanhar de surpresa, o Tyler poderá dizer alguma coisa. Vale a pena tentar.
- Ah, sim? - proferiu Pink com sarcasmo. - É isso que «nós pensamos»? Então, pensa nisto. O que é que o Royce Ansley vai dizer quando descobrir que estás acusar o filho de homicídio? O que está dentro dessa tua cabeça? Além do Jordan Hill. Serradura?
- O Jordan fez uma sugestão interessante - continuou Lillie friamente. - Se o Royce Ansley não estaria a fazer qualquer tipo de pressão sobre ti.
O rosto corado e furioso de Pink ficou subitamente pálido. Olhou para a esposa com os olhos semicerrados - O que estás tu a dizer? - perguntou em voz baixa.
Ela sentiu-se imediatamente culpada e desejou retirar o que tinha dito.
- Nada - respondeu. - Ele anda à procura de alguma explicação. É óbvio que o Royce não está a fazer nada em relação ao caso. E olha a pressa com que ele mandou o Tyler para a academia militar. Nem sequer estava para ir. O Jordan apenas pensou que tu também poderias ter suspeitado e dito até alguma coisa ao xerife. Tens de perceber que ele está a deitar a mão a tudo. Todos estamos.
Pink começou a passear de um lado para o outro como se estivesse em transe.
- Dirá seja o que for para conseguir o que quer! - Praguejava como que alucinado. - Acusa-me para subir na tua consideração e tu deixas! É uma oportunidade única para ele. Adoro isto. - Pink soltou um riso sufocado.
- O assunto não é o Jordan, Pink Não tem nada a ver com ele.
Pink virou-se para ela com o rosto desfigurado pela raiva.
- Tem tudo a ver com ele. Veio cá para te afastar de mim e tu ainda vais na sua cantiga. Acho que já te esqueceste de como te deixou. Até a Michele. Doente como estava.
- Não me esqueci de nada - protestou Lillie. - Vim cá para te explicar o que estamos a tentar fazer, mas já vejo que nem sequer estás capaz de ouvir.
- Suponho que deveria ficar quieto e vê-lo destruir a minha família. Usar a morte da minha filha como arma contra mim. É isso. A minha filha. Não dele. Minha. Eu paguei as contas, passei noites em branco a tratar dela, fiz sacrifícios. Fiz. E agora o cavaleiro andante aparece e já é filha dele.
- Pink vamos parar. É mesquinho. Não tenho tempo para isto.
- Peço desculpa, minha querida menina. Ele deixou-te e tu decidiste-te por mim. Será que não tens orgulho suficiente para não o bajulares assim que entra pela porta?
- Vai para o diabo - exclamou Lillie, virando-lhe as costas e saindo de rompante do escritório.
Depois de bater com a porta, percorreu o corredor, insultando mentalmente o marido. Quando abriu a porta que dava para as escadas, tremia de raiva. Foi até ao patamar e forçou-se a parar.
Lillie encostou-se à parede e respirou fundo. A maneira como ele dizia as coisas era tão feia, tão maldosa, que a fazia sentir-se enojada. Todavia, conseguia compreender. Conseguia. Sentia que ela estava a virar-se para Jordan e não para ele e isso constituía um dos seus maiores receios. Sempre tivera muitos ciúmes de Jordan. E estaria enganado?, pensou, sentindo uma facada de culpa. Não podia ser acusada de ter feito algo de errado e o medo que Pink sentia da hipótese de ela o poder trocar por Jordan não tinha qualquer fundamento. Lillie tinha a sua vida. Jordan pertencia ao passado, mas fora o grande amor da sua vida e as recordações permaneciam à sua volta, tal como um aroma enganador. Pink não era parvo. Conseguia cheirá-lo e isso assustava-o. Contudo, depois de Jordan voltar para Nova Iorque, ela e Pink teriam de continuar com a sua vida. Não era Pink que tinha de fazer compensações. Era ela.
Virou-se lentamente e subiu as escadas. Voltou a percorrer o corredor. Não servia de nada fugir do assunto, pensava. Aporta do escritório estava encostada, mas não fechada. Quando pôs a mão na maçaneta, percebeu que devia ter ido a correr atrás dela. Provavelmente seguira-a, tentara chamá-la de volta, mas as palavras deviam ter ficado engasgadas. Sentiu um pequeno ímpeto caloroso em relação a ele. Empurrou a porta e entrou. Pink encontrava-se ao telefone por trás da divisória. Quis surpreendê-lo e, por isso, esperou.
- Quando é que ele volta? - estava Pink a dizer. bom! Diga ao xerife Ansley que o Pink Burdette telefonou e que é muito importante que fale com ele. Obrigado, Francis.
«Afinal ele preocupa-se», pensou Lillie. «Preocupa-se mais do que é capaz de mostrar. Agora vai tomar conta do assunto. Vai afirmar-se. Óptimo. Já era altura de fazer alguma coisa.» Sentiu aquele velho sentimento caloroso pelo marido, que trabalhava tanto, e sem se queixar, para os sustentar. Quis pedir-lhe desculpa e fazer com que acreditasse nela. Realmente amava-o. Ele sempre se esforçara tanto.
Antes de conseguir pronunciar o seu nome, ouviu-o marcar outro número e depois falar.
- Sim. Preciso de falar com um dos vossos caloiros. Tyler Ansley. bom! Está bem! Acredito que sim, mas preciso de dar-lhe um recado imediatamente. É da maior importância. Por favor peça-lhe que telefone com urgência para Mister Burdette, para este número. - Pink ditou o número de telefone do esCritório. - Diga-lhe que não telefone para o meu número de casa. Este é o telefone do escritório. Exactamente. Para o escritório. Imediatamente. É urgente. Está bem. Adeus.
Pink pousou o telefone. Esfregou as mãos suadas e passou-as pela testa. Depois, endireitou-se na cadeira e fê-la girar.
Lillie estava ao lado da divisória, a olhar para ele, branca como a cal.
- Oh, meu Deus! - exclamou Pink Olhou com um ar culpado para a expressão chocada de Lillie e depois afastou o olhar, mal-humorado. O escritório abafado encontrava-se no mais completo silêncio. - Não olhes para mim assim - murmurou. - Pensei que te tinhas ido embora. Por que diabo voltaste?
Faíscas explodiram no estômago de Lillie, queimando-lhe as entranhas. Piscou os olhos como se não conseguisse ver-lhe bem o rosto. Um rosto que conhecia. Pensava que conhecia.
Pink levantou-se da cadeira bruscamente e esta recuou e bateu no arquivador. Lillie deu um salto e gritou. Pink que fora até à porta do escritório para a fechar, virou-se para ela.
- Poupa-me a histeria, Lillie. - Suspirou. - Diz o que ias dizer.
- Estavas a telefonar ao Tyler... - proferiu ela lentamente, quase como uma pergunta. Parecia esperar ter percebido mal.
- É verdade - afirmou Pink.
- Para o avisar - gritou Lillie. - Para o avisar.
- Sim - anuiu Pink - Exactamente.
Lillie colocou-se mesmo à frente do marido para o forçar a olhá-la nos olhos. Pronunciou todas as palavras de dentes cerrados.
- Não te atrevas a dar-me respostas curtas. Diz-me que raio se passa. Já!
Pink pôs os ombros para a frente e agarrou as costas da cadeira.
- Há uma boa razão, Lillie - disse.
Lillie teve a sensação de que lhe faltava o ar, como se não pudesse libertar nem uma palavra desnecessária.
- Qual?
Os olhos de Pink deambularam pelos cantos do escritório.
- Não mintas, Pink - gritou Lillie. - Já chega de mentiras. Conheço essa expressão. Há semanas que te vejo assim, mas pensei que estava a imaginar coisas.
- Muito bem - disse ele, franzindo o sobrolho. - Muito bem. Não será melhor irmos para casa conversar? Este não é o lugar apropriado.
- Diz-me já - insistiu ela. - Porque telefonaste ao Tyler? Ele matou-a, não foi? Perdeste completamente a cabeça? Porque é que lhe estavas a telefonar?
Pink deixou-se cair na cadeira e cobriu o rosto pálido e húmido com as mãos. O telefone começou a tocar. Estendeu o braço e atendeu-o. Sem hesitar um segundo, Lillie inclinou-se sobre a secretária, arrancou-lhe o auscultador da mão e bateu com ele no descanso. Pink olhou para cima com ar de quem ia protestar, mas ela fitou-o com uma expressão selvagem.
Pink abanou a cabeça.
- Lillie, não sei como te dizer isto. Esperava que nunca descobrisses. - Pousou as mãos trémulas sobre a secretária. As pontas dos dedos deixavam marcas escuras no mata-borrão. Sim - disse ele. - É verdade. A tua suposição estava correcta. Ele matou-a.
Não interessava o que ela supusera. O que tinha pensado, especulado e descoberto. As palavras que saíram dos lábios de Pink deixaram-na tão atordoada como se nunca tivesse pensado naquilo. Tacteou à procura de uma cadeira e sentou-se.
- Tu sabias? - sussurrou.
- Sempre o soube.
- E nunca disseste nada. Filho-da-mãe!
- Lillie, quando te digo... - suplicou ele.
- Filho-da-mãe! - cuspiu ela. - Sabias e deixaste-o ir? E agora... estavas a telefonar para o avisar?
Pink aproximou-se da cadeira onde ela estava sentada e ficou desamparado à sua frente.
- Lillie, ouve-me. Ouve-me.
Lillie encostou a cabeça para trás e fechou os olhos. Sacudindo a cabeça.
- Não - murmurou. - Não, não, não.
Pink inclinou-se e abanou-a. Os olhos pareciam revirar-se como os de uma boneca.
- A tua própria filha - murmurou Lillie, incrédula. , Filho-da-mãe mentiroso. Não há desculpa possível.
- Primeiro - declarou Pink -, as coisas não se passaram como tu pensas. Não foi um homicídio. Acho que se pode dizer que foi um acidente. Estavam a brincar como fazem os miúdos. Tinham estado a beber.
- Queres dizer que o Tyler tinha estado a beber! - Já lá chego.
- A Michele não bebia.
- Bebia. Tinha tomado algumas bebidas. A Michele não
era perfeita, sabes? - disse Pink na defensiva.
- Não acredito no que estou a ouvir! - Lillie saltou da cadeira.
- Senta-te. Estou a tentar contar-te... - começou. Pink.
- Não consigo respirar. Acho que vou vomitar - gritou ela. - Esse rapaz assassina a tua filha a sangue-frio e tudo o que consegues dizer é que ela tinha estado a beber?
- Não tornes as coisas mais difíceis do que já são - contrapôs Pink - Já te disse. Ele é só um miúdo. Não teve intenção de o fazer.
- O médico legista disse que ela tinha levado pelo menos três pancadas na base do crânio. Lembras-te, Pink?
Pink fê-la calar, continuando a explicação.
- Eles estavam junto da ponte depois da festa. Tinham bebido uísque de má qualidade e o Tyler ficou bêbedo. Sei como ele é. É um alcoólico. Ainda tinha consigo o bastão de basebol que utilizara no jogo e a Michele estava a arreliá-lo. A namoriscar, acho eu. Contudo, ele ficou muito excitado e tentou atingi-la com o taco.
- Di-lo. Ela assassinou-a. Atingiu-a na cabeça.
- Tudo aconteceu em segundos - protestou Pink ;, Antes de se aperceberem...
- E concordaste em protegê-lo? - gritou Lillie. O Royce sabe disto tudo? Ê tu alinhaste? Estás louco, Pink?
- Tive de o fazer - gritou Pink.
- Tiveste!
- Foi um acidente - insistiu Pink.
- Nunca, nunca - protestou Lillie, esfregando as mãos inconscientemente como se estivesse a morrer de frio. Nunca.
- Fui obrigado a fazê-lo - repetiu Pink Tinha o rosto encharcado em suor e a testa enrugada como se estivesse com dores. - É que... sabes, o Grayson estava lá.
Lillie fixou Pink Ficou sem respiração. Exalou uma única palavra.
- Grayson?
- Estavam os três nos Arcos - disse Pink apressadamente. - O Grayson também já tinha bebido bastante e aquele Tyler parece um urso. O Grayson nem teve hipótese de o impedir.
- O Grayson? - repetiu ela. - O nosso Grayson?
- Oh, Lillie. Pára com isso. Por amor de Deus. A maneira como o dizes parece que o nosso filho é responsável. Foi o álcool. Sei que é uma tragédia, mas estas coisas acontecem com os miúdos. Poderia ter acontecido a qualquer um.
Pink parou e ficou a olhar com aflição para a mulher.
- Lilíie, estás com um aspecto horrível - disse. - Sei que é um choque. Era por isso que não te queria dizer. - Estendeu a mão para a ajudar a equilibrar-se. - Vem sentar-te, querida. Parece que as tuas pernas vão deixar de ter forças a qualquer momento.
Lillie afastou o braço de Pink Ele tinha razão. Durante uns instantes, ela balouçara, suplicando que o esquecimento a soltasse, mas estava demasiado furiosa para ceder.
- Nem te atrevas.
- Já sabia - disse Pink - Era disto que eu tinha medo.
- Deixa-me ter a certeza de que compreendi - proferiu ela, formando as palavras como se a boca estivesse dormente.
- O Tyler Ansley matou a minha filha enquanto Grayson ficou a ver. Tu decidiste não me contar, só para os deixares escapar à responsabilidade.
Pink suava profusamente. Havia meias-luas de transpiração nas cavas da camisa.
- Não. Não foi assim. O Royce e eu... Ele encontrou-os lá. Não sei. Pareceu a melhor solução. Não era só para não os responsabilizar. Qual seria a utilidade de arruinar a vida de ambos os miúdos? Isso não traria a Michele de volta e eles estavam desolados. Nunca vdois rapazes daquela maneira. Foi só um terrível, terrível acidente.
- Arruinar a vida deles... - repetiu Lillie.
- Lillie - disse ele, sério. - Crê que sei como te sentes. Quando soube só me deu vontade de matar os dois com as minhas próprias mãos, mas era preciso tentar ser racional. Tínhamos de pensar nas consequências. Foi por isso que não te disse nada. Sabíamos que irias ficar demasiado perturbada para pensar.
«Depois o Royce veio com a ideia de mandar o Tyler para a academia militar e, de facto, aqueles sítios são piores que a prisão. Aqueles oficiais duros que lá estão talvez consigam endireitar o rapaz...
- Pára, Pink Pára - gritou ela, furiosa. - Ele é um assassino. Matou a nossa filha e deixaste-o solto por causa do Grayson. Não finjas que foi outra coisa. Não sou idiota. Fizeste-o para que ninguém descobrisse que ele deixara morrer a própria irmã sem fazer nada. Assim ninguém saberá como foi cobarde.
O rosto corado de Pink ficou pálido e apontou um dedo à mulher.
- Não digas isso do Gray, Lillie. Já se sente suficientemente mal com tudo isto. Não lhe chames cobarde.
- Não, não. Tens razão - gritou Lillie, levantando as mãos como que em sinal de rendição. - Não podemos magoá-lo. Se bem que a Michele tenha perdido a vida, ele só ficou a ver.
Pink observou-a com os olhos semicerrados enquanto Lillie tremia de fúria.
- Bem - disse ela. - Veremos.
Virou-se e encaminhou-se para a porta. Num instante,
Ele estava à sua frente, bloqueando o caminho. Quando tentou alcançar a maçaneta da porta, ele agarrou-lhe o pulso.
- Aonde vais? - perguntou.
Lillie olhou ferozmente para ele com lágrimas nos olhos.
- vou ter com o Gray - declarou. - Vai ter de me responder a mim. Como foste capaz, Pink? Mentiroso. Cambada de mentirosos.
- Não podes dizer a mais ninguém, Lillie.
- Porquê? - gritou ela. - Porquê, Pink? Eu também posso ser uma mentirosa?
O rosto de Pink assumira uma expressão estranha e dura e os olhos um ar distante.
- Sabia que poderias reagir assim - comentou, apertando ainda mais o pulso de Lillie. - Agora vais ouvir-me. Estou farto de pedir desculpa. O Grayson é apenas um miúdo. Tem a vida inteira à sua frente. Não vou deixar que o destruas.
Lillie olhou-o com ira e empurrou-o para trás com o pulso que ele ainda estava a agarrar.
- É um mentiroso, um cobarde e... um traidor - gritou ela. - Não me interessa quem o possa saber.
Ficaram agarrados apenas durante segundos, a olhar um para o outro, mas Lillie ficou com a sensação de ter sido uma eternidade. Os ossos do seu pulso pareciam estar a ser esmagados enquanto tentava libertar-se das suas mãos. Foi com alguma incredulidade que o viu levantar o punho e, quando percebeu o que viria seguir, era demasiado tarde para proteger a cara. Os dentes bateram uns nos outros e sangue caiu-lhe para dentro da boca quando o soco lhe atingiu o osso da face. A pancada fez-lhe tremer os joelhos. Sentiu Pink afastá-la e caiu sobre a parede.
Os olhos palpitaram nas órbitas e ficou demasiado atordoada para se mexer, mas depois viu-o agigantar-se à sua frente e pôs-se de pé.
- Não to vou permitir! - gritava Pink Depois baixou a voz. - Desculpa, Lillie, mas não posso.
- Olá! - Ouviu-se uma voz no corredor e o ruído da maçaneta. - Pink estás aí? Sou a Reba.
Pink e Lillie não se mexeram nem falaram. Ambos tinham ouvido a sócia de Pink abrir a carteira e começar à procura das chaves.
- Oh, meu Deus! - disse Reba exasperada. - Onde estão?
Como que em transe, Pink virou-se, dirigiu-se à porta e destrancou-a. Hesitou, mas depois abriu-a. Olhou inexpressivamente para Reba.
- Meu querido - ralhou ela -, não é bom para o negócio manter esta porta fechada a estas horas. É o momento em que há mais movimento.
Ainda resmungando por causa das chaves, Reba entrou com os braços cheios de embrulhos. Fez um sorriso indulgente a Pink e depois viu Lillie, que estava de pé virada para a parede, segurando o outro lado do rosto. Já se via uma nódoa amarelada por cima dos dedos e o olho começava a fechar-se com o crescimento do hematoma. O sorriso de Reba desapareceu enquanto olhava para Pink e Lillie.
- Lamento muito - disse ela como se fosse de algum modo responsávepelo conflito em que tropeçara. Correu para a secretária de olhos baixos. Pink tentou olhar para ela, pronto a oferecer uma explicação, mas o rosto de Reba estava sério e manteve os olhos no chão enquanto as mãos mexiam nos papéis que estavam sobre a secretária. - Vou-me já embora disse rapidamente. - Só preciso da folha de especificações e a chave daquela casa em Larkspur. Onde estão as chaves? O telefone tocou e Reba atendeu-o. - Burdette e sócia disse ela com uma alegria fingida. - Só um momento, por favor. Quem devo anunciar? - Acenou com a cabeça e virou-se para Pink com o telefone estendido.
- É o jovem Tyler Ansley. O filho do xerife.
Pink olhou automaticamente para Lillie, mas virou-se de imediato para escapar à acusação amarga que lhe lia nos olhos.
- Eu atendo -- disse ele.
Ficou com o auscultador na mão, tapando o bocal, enquanto Reba juntava rapidamente as suas coisas.
Ao sair passou por Lillie e dirigiu-lhe um sorriso breve e envergonhado.
-- Eu fecho a porta - disse ela.
- Obrigado, Reba - agradeceu Pink enquanto ela fechava a porta atrás de si. Virou as costas à mulher e falou para o bocal.
- Olá, Tyler - disse ele. - É verdade. Telefonei.
Lillie pensou em arrancar o fio, mas para quê? Pink arranjaria outro telefone. A ferida que palpitava no seu rosto atestava a determinação do marido.
- Sim - estava ele a dizer. - Há um homem que tem andado por aqui a fazer perguntas. De facto é o ex-marido da minha mulher e está convencido de que foste tu. Foi para aí tentar fazer-te falar e é melhor teres cuidado porque te quer apanhar.
Pink ouviu durante uns instantes com uma expressão irritada.
- O que te estou a dizer é que cales essa boca. De facto, seria muito melhor se não o deixasses apanhar-te, porque se te descais não se sabe o que ele poderá fazer. Quer sangue!
Pink ouviu e interrompeu em voz alta.
- Não, não. Escuta, rapaz. Estou a dizer-te isto para o teu próprio bem. Este tipo anda atrás de ti. O quê? O Jordan Hill. Acabou de sair daqui e deverá chegar dentro de cinco ou seis horas. Não sei. Descobre tu. Não me importaria que ele te desse uma tareia, mas concordei em manter o silêncio. É melhor que também o faças. Está bem.
Pink bateu com o auscultador. Virou-se para olhar para Lillie com uma expressão de desafio nos olhos, mas apenas a tempo de ver a porta fechar-se. Fora-se embora. Pink deixou cair os ombros e sentiu um peso enorme no peito. Quis chorar, mas em vez disso agarrou no telefone e marcou um número. Era demasiado tarde para lágrimas. Grayson e Royce tinham de saber. Primeiro Grayson. Era o telefonema que ele mais temia. Prometera proteger o filho e falhara. No estado em que Lillie se encontrava, era impossível saber o que faria. Era preciso levá-la a raciocinar antes que fosse demasiado tarde.
Desceu as escadas quase a correr, mas quando chegou ao passeio o ar frio atingiu-a como uma bofetada e ela sentiu-se tonta e enjoada. O coração batia descontroladamente e não conseguia lembrar-se do local onde estacionara o carro. Os transeuntes fitavam-na e os seus olhares assustavam-na. Era como se todos soubessem, como se não conseguissem acreditar que ela só agora tivesse descoberto. O seu olhar recaiu sobre as cores reconfortantes do seu carro e caminhou aos tropeções até ele. Quando se viu em segurança dentro do carro, ficou sentada, pois as mãos tremiam demasiado para conseguir fazer girar a chave na ignição. Queria chegar a Grayson e saltar-lhe em cima como um gato-selvagem, abaná-lo como uma boneca de trapos e gritar-lhe: «Porquê?» No entanto, os seus dedos recusavam-se a fazer girar a chave e, como tal, ficou sentada ao volante a tremer e a tentar pensar.
Grayson. O seu menino. O seu filho. Sempre tivera um carácter independente. Afastando-a das recordações mais antigas que tinha dele. Querendo ser ele a fazer tudo. O verdadeiro oposto de Michele, que se virava para a mãe, pois precisava dela e recebia o seu amor. Não! Grayson era o mais novo, mas era o mais forte, saudável e independente. Saía a porta a correr> e Michele observava com adoração os sucessos do irmão. Ela idolatrava-o e ele tinha-a deixado morrer.
Lillie pôs as mãos no volante e sujou-o com o sangue que tinha nas palmas, pois ferira-as devido à força com que as unhas se cravaram, ao cerrá-las. Tentou pensar. Onde estaria ele? Na semana seguinte havia um jogo de futebol, e naquela tarde estaria nos treinos, a conduzir a equipa enquanto treinavam as jogadas estudadas. O capitão da equipa, o vice-presidente da associação de estudantes, o vencedor do prémio de liderança. Tinha ficado a ver. Tinha deixado Tyler Ansley matar a irmã e ficara a ver. E depois as mentiras. Também as mentiras. Tudo! Lillie teve a sensação de que o peso dos acontecimentos a poderia esmagar. Iria atrás dele. Era tudo o que sabia. Ele nunca lhe pedira conselhos e, quando ocasionalmente lhos oferecia, mostrava-se inquieto e com uma expressão sofredora. Mas hoje ouvi-la-ia.
Esperou mais alguns minutos até se sentir suficientemente recomposta para conduzir e depois dirigiu-se ao liceu, conduzindo o carro pelas traseiras até ao recinto desportivo. Os Cress County Cougars lá estavam no campo. Havia lama devido à chuva e os brilhantes equipamentos brancos e cor de púrpura já estavam sujos. O treinador apitava e gritava instruções ininteligíveis enquanto os rapazes se alinhavam para atacar um boneco articulado.
Agarrando firmemente as chaves do carro numa das mãos ensanguentadas, Lillie avançou até à beira do campo e ficou a olhar para os rapazes. Ergueu o pescoço para tentar divisar os vários números das camisolas, mas não conseguia detectar entre eles o número cinco. Normalmente conseguia reconhecê-lo pela sua atitude arrogante e descuidada, mas não havia sinal de Grayson entre os jogadores.
Uma voz pronunciou o seu nome, e Lillie virou-se para ver quem era. Em cima nas bancadas, avistou uma figura solitária de costas arqueadas para se proteger do frio, usando um casaco cor-de-rosa e botas de vaqueiro. Lillie reconheceu imediatamente o cabelo cor de fogo de Aliene Starnes. O coração de Lillie saltou quando a viu. Sentiu um ímpeto de raiva injustificada quando a rapariga lhe acenou.
- O Grayson foi agora mesmo chamado ao telefone gritou-lhe Aliene. - Uma emergência.
Lillie soube imediatamente quem era. Pink a dizer ao rapaz que ela ia a caminho.
- Aliene - perguntou -, o que estás aqui a fazer?
Mas Lillie sabia. Sabia que aquela rapariga frágil e instável se encontrava ali à espera do filho.
- Fiquei de me encontrar com o Gray depois do treino - admitiu Aliene timidamente.
Numa ocasião normal, Lillie não se teria metido no assunto, pois confiava no filho. Porém, aquele não era um dia normal e o filho não merecia confiança. Não merecia a atenção de uma rapariga. De nenhuma rapariga. Muito menos daquela, que era tão frágil e vulnerável.
- Aliene - chamou ela com dureza. - Vem cá baixo. Já!
Aliene começou a protestar, mas depois guardou lentamente os livros na mala e desceu as bancadas com as botas de vaqueiro a bater ruidosamente nas placas de madeira. Enquanto a rapariga descia os degraus, Lillie voltou a olhar para o campo. Grayson ainda não estava à vista. Ele e Pink ainda deviam estar a discutir os seus segredos e a tentar evitar a sua raiva. No entanto, Grayson desta vez não iria levar a melhor.
Aliene chegou à primeira fila. Lillie estendeu a mão e ajudou-a a saltar. A pequena mão sardenta encontrava-se agora na sua, e Lillie sentia que estava a tirá-la da beira de um precipício onde ficara encurralada.
«Oh, não», pensou Lillie, furiosa. Grayson não iria ter a oportunidade de tratar aquela rapariga sem a menor consideração, ou qualquer outra, porque ela não o permitiria. Ele que nem sequer tinha tido a coragem de defender a irmã. Não era digno de ter uma namorada. Nunca mais magoaria ninguém. Ela trataria do caso.
--Aliene - disse Lillie, muito séria. - Os teus pais sabem que te encontras aqui com o Grayson?
Aliene abanou tristemente a cabeça.
- Então, é melhor deixares de o ver, senão conto-lhes. Estou a falar a sério, Aliene. Esquece o Grayson. Não percas tempo com ele. Só te vai magoar. Não gosta de ti.
Lillie quase esperou que a rapariga a desafiasse, mas em vez disso Aliene encolheu os ombros e meteu as mãos nos bolsos.
Eu sei. Desculpe - disse ela.
- Não peças desculpa - protestou Lillie. - Vai-te embora.
O Grayson vai ficar zangado - disse ela, preocupada.
- Eu trato do Grayson - afirmou Lillie tristemente.
- Mistress Burdette, por favor, não diga à minha mãe.
- Só se te apanhar outra vez a rondá-lo. Agora, vai-te embora.
A rapariga pôs a alça da carteira dos livros sobre o ombro e despediu-se. Lillie viu-a desaparecer na esquina das bancadas. Depois virou-se e voltou a olhar para o campo lamacento. Grayson estava a sair do vestiário.
Devia ter olhado para cima para ver se Aliene ainda se encontrava ali a admirá-lo, pois já vira a mãe e dirigia-se a ela a passos largos; no seu belo rosto exibia uma inocência fingida.
- O que aconteceu à Aliene? - perguntou ele em forma de cumprimento.
- Mandei-a para casa. Vem cá - chamou Lillie. Sentia o coração aos saltos no peito quando se virou e começou a descer a ala.
- Mãe, tenho treino - disse ele teimosamente. Lillie encarou-o com os olhos flamejantes.
- Não finjas que não sabes porque estou aqui. Sei que foi oteu pai que telefonou. Agora faz o que te mando - ordenou ela. - Ainda sou tua mãe.
O tom de voz de Lillie silenciou-o, levando-o a baixar os lânguidos olhos azuis. Começou a ficar corado. Olhou para ela e viu o hematoma que se formava por baixo do olho e pela face.
- Mãe! - exclamou. - O que te aconteceu?
- Isso não interessa - declarou Lillie rapidamente.
- Desculpa - disse ele, encolhendo os ombros e seguindo-a docilmente até às bancadas.
Lillie, a tremer de raiva, não se virou até ver que não estava ninguém à vista. Queria dizer todas as coisas vis que lhe iam na mente. Tinha vindo preparada para descarregar toda a sua bílis, para fazer soprar a sua fúria como uma tempestade. Queria magoá-lo, humilhá-lo e acusá-lo. Porém, quando se virou e o viu obedientemente atrás de si, com o capacete sobre a anca, o cabelo desgrenhado, os seus grandes olhos a fixá-la como se apenas quisesse dar-lhe paz de espírito, sentiu a fúria desaparecer e o que restou foi confusão e incredulidade. Aquele
era seu filho. O seu menino. Pink devia ter percebido mal. Ele nunca abandonaria a irmã daquela maneira. Talvez nem estivesse presente. Se calhar fora Tyler que o dissera. Tinha de haver outra explicação.
- Grayson - começou ela com um tom severo e a voz a tremer -, como decerto o teu pai já te disse ao telefone, já sei o que se passou: que o Tyler Ansley matou a tua irmã e que tu não fizeste nada para o impedir.
Grayson lançou a mão ao capacete e fixou-a com uma expressão selvagem.
Lillie hesitou face ao seu silêncio. «Não é verdade», pensou, com uma súbita esperança no coração. «Ele vai dizer-me que isto não sucedeu. Que não estava lá. Que o Tyler o inventou.»
- É verdade? - perguntou ela. "Não respondas», pensou.
Grayson afastou o olhar, olhando para o campo e depois passou o peso do corpo para a outra perna.
- Então? - disse ela. Grayson abanou a cabeça.
- Lamento, mãe. Esperava que nunca viesses a saber. Confessou, em voz baixa.
Para sua surpresa, a confissão atordoou-a como se nunca tivesse ouvido falar daquele assunto.
- Grayson - sussurrou ela. - Meu Deus...
- Mãe - suplicou ele. - Mãe, desculpa. Foi... foi uma coisa estranha...
Lillie tentou manter o controlo, mas parecia que não conseguia respirar.
- Conta-me o que aconteceu - pediu, falando quase aos soluços. - Não acredito... que aquilo que o teu pai me contou... seja a história completa. Que deixaste... matar a tua irmã. Grayson, tenho de saber... Como é que foi possível?
Gray tinha o rosto deformado e as lágrimas caíam-lhe pelas faces abaixo.
- Mãe, sei que estás furiosa comigo...
- Furiosa? - gritou ela, quase rindo perante uma palavra tão inadequada e incongruente. - Grayson, olha para mim. Conheço-te. És meu filho. Tu não... poderias fazer uma coisa dessas. Deixá-la ali. Deixá-la morrer. Tu amavas a tua irmã...
- A voz dela era suplicante.
- Amava. Tu sabes que sim - gritou ele, - Mas juro-te, mãe. Nunca pensei que o Tyler lhe fizesse mal. Pensava que estava só a brincar.
Olhou para a mãe com um ar desesperado, esperando que ela falasse, mas Lillie não o fez.
- Estivemos a beber - disse Grayson. - Sei que não devíamos, mas sabes que todos os miúdos o fazem.
Lillie olhava para ele como se se esforçasse por compreendê-lo, como se Gray estivesse a falar uma língua estrangeira.
Grayson mudou de posição, sentindo-se desconfortável sob o olhar da mãe e continuou.
- Na realidade, a Michele... não era para estar presente. Ela ouviu-nos dizer que íamos lá baixo e insistiu em vir connosco. Tentei dizer-lhe que fosse para casa, mas ela... ela gostava do Tyler. Deve ter pensado que seria uma boa oportunidade de estar com ele.
«De qualquer modo, tínhamos estado a beber, ela estava a provocá-lo e o Tyler começou a brandir o bastão de basebol. A Michele estava a rir-se e então... Antes de eu me dar conta, ele atingiu-a e ela caiu.
- Pára - gritou Lillie, pondo as mãos nos ouvidos. Não queria imaginar a sua menina a ser abatida. Não conseguia suportar que o filho estivesse a contar a história como se se tratasse de um incidente na escola.
- Mãe, ouve - disse ele num tom urgente. - Como é que eu poderia saber que ele lhe ia bater?
- Devias... devias ter tomado conta dela - gritou Lillie.
- Não foi possível, mãe. Por favor. - Deu um passo na^ direcção da mãe. - Não faças isso.
Ela recuava afastando-se, acenando debilmente um punho como se o quisesse manter à distância. Chocou com a bancada e agarrou-se a ela, pois as lágrimas cegavam-na. Limpou furiosamente os olhos.
- Então - declarou, numa voz fria e cruel, - esse rapaz matou a tua irmã e tu ficaste a assistir como um verdadeiro cobarde, sem tomar uma atitude, a não ser mentir sobre o assunto e protegê-lo, é claro.
- Não - negou ele. - Não. Eu saltei para cima dele. Bati-lhe. Era demasiado tarde. Mãe, tu não estavas lá. Afirmo-te que ninguém o conseguiria evitar.
- É tudo o que consegues dizer? Que estavas impossibilitado de tomar qualquer atitude?
- Vá lá, mãe. Não achas que, se pudesse, teria feito alguma coisa?
Os olhos de Gray estavam brilhantes das lágrimas e passou sobre eles a manga enlameada da camisola, sujando a cara.
Lillie abanou furiosamente a cabeça com as lágrimas a sufocá-la.
- Não sei - disse. - Nunca saberei. Tu estás aqui a contar-me tudo isto como se não percebesses que a traíste. Traíste a Michele e a mim. A todos. Não tens vergonha?
Aquela afirmação pareceu ofendê-lo e a expressão do rosto endureceu.
- Olha - disse ele -, não sou o único...
- Não consigo compreender isto - proferiu ela. - Por muito que me esforce. Como pudeste assistir e não fazer nada? Como consegues dormir tranquilo sem pensar nisso? Como podes viver como se nada disto tivesse acontecido?
- Já pedi desculpa - gritou ele com a voz rouca. O que queres de mim? O que queres que faça? Diz-me, que farei.
Lillie virou-lhe as costas e olhou para o céu cor de aço. Que mais poderia ele dizer? Michele estava morta. Claro que pedia desculpa. De quantas maneiras poderia fazê-lo? As lágrimas que vertia diziam tudo. Lamentava o mais que podia.
Lillie abanou a cabeça e sentou-se na ponta de um dos assentos da bancada, olhando inexpressivamente para a frente.
- Não te quero torturar com isto - disse suavemente. És meu filho. Sei que lamentas e também sei que sofreste, mas não consigo deixar passar todas estas mentiras. - Abanou a cabeça. - E a Michele? Quando concordaram com estas mentiras, com este silêncio, nenhum de vós pensou nela?
- Que queres dizer? - perguntou, cansado.
- Sabes o que quero dizer - afirmou Lillie. - A tua irmã é assassinada e todos vocês fingem que nada aconteceu...
- Espera lá, mãe - disse ele. - Não podíamos contar. Assim que se soubesse que eu também lá estava...
- Eu sei - interrompeu ela. - Não queres enfrentar a humilhação e até um julgamento. Deus sabe que eu também não o desejo. E agora o teu pai também está envolvido. E o xerife. Mas, diz-me uma coisa, Grayson. Achas que esse rapaz que matou a tua irmã deve andar em liberdade? Ficar impune? Como vamos conseguir viver com isso?
Grayson ficou de pé, em silêncio, mordendo o interior da boca enquanto olhava para o campo. Depois, lenta e delicadamente, sentou-se ao lado da mãe.
- Mãe! Há outra razão - disse ele. - Isto é difícil de dizer... Há mais coisas para além do que já sabes.
Lillie franziu o sobrolho.
- E isso significa o quê?
Grayson passou a língua pelos lábios e começou a brincar com o capacete, evitando o olhar da mãe. Parecia estar a concentrar-se em alguma coisa e a lutar com ela.
- Naquela noite aconteceu mais uma coisa - disse ele, então. - O pai nem sequer sabe.
- Desde quando me contas as coisas a mim e não ao teu pai? - perguntou ela.
Grayson suspirou.
- Não contei ao pai porque... é sobre a Michele. Não quis que ele soubesse isto. Tu já sabes como ele é no que diz respeito à Michele. Ou seja, aos olhos dele, ela era apenas... a sua menina.
- O que estás a tentar dizer? - perguntou Lillie. - Não aguento muito mais, Grayson.
- Eu sei que pensas que eu sou um cobarde e que é por isso que quis ocultar toda esta confusão. Porém, à minha maneira, também estou a tentar proteger a Michele. Para que não se saiba o que aconteceu.
- Espera lá - gritou Lillie. - Não. Não estás a pensar em virar as coisas ao contrário e tentar culpar a tua irmã de tudo isto, pois não? Será que vais dizer-me que ela tomou uma bebida e o atingiu primeiro? Não te atrevas, Grayson. Não te atrevas a pôr as culpas em cima dela.
- Não foi uma bebida, mãe - interrompeu ele. - Todos bebemos.
- Ficaste parado a ver e não fizeste nada. Pelo menos, sê homem para o admitir, Grayson.
- Eu não estava ali ao pé. A verdade é que... Eu afastei-me - disse Grayson. - Eu vinha-me embora.
- Isso já sabemos, Grayson. - Tive de o fazer.
- Não tiveste de o fazer. Optaste por fazê-lo - insistiu Lillie.
- Tive de o fazer - gritou ele. - Ela... ela tirou a blusa. Lillie olhou fixamente para ele. O pescoço e o rosto de
Gray ficaram vermelhos. Não olhou para a mãe. O próprio rosto de Lillie estava quente.
- É mentira - disse Lillie numa voz trémula.
- Tirou, mãe - afirmou Grayson. - Ela gostava dele. Estava apaixonada pelo Tyler. Deve ter pensado que isso o interessaria... Não sei. Ela disse que estava muito calor e tirou-a. Eu não podia ficar ali, mãe. Era demasiado embaraçoso. Tinha de me ir embora.
Lillie começou a abanar a cabeça. «A Michele, não», pensava, muito corada com vergonha da filha. «A minha menina, não.» Mas ela já não era um bebé.
- Deve ter pensado que ele gostaria, mas o Tyler decerto a achava uma chata. - Grayson suspirou. - De qualquer modo, já me ia embora e ouvi o barulho. Quando me virei para trás...
Lillie escondeu o rosto com as mãos, humilhada, aterrorizada, como se ela própria estivesse a reviver os momentos finais da vida da filha.
- Eu vesti-lhe a blusa depois de tudo terminar - disse Grayson. - Não podia fazer mais nada. Não quis que a encontrassem naquele estado.
Lillie apertou as pálpebras; não conseguia imaginar a sua querida Michele a agir de uma maneira irreflectida devido à Paixão, à bebida e à luz do luar, tentando ser ousada. Nunca suspeitando... Uma vítima da sua própria inocência.
Grayson interrompeu-lhe os pensamentos.
- Não digas ao pai - pediu ele, muito sério. - Está bem, mãe? Não quero que ele saiba isto.
Lillie assentiu com a cabeça.
- O que é que isso quer dizer? - perguntou Grayson.
Vais contar-lhe ou não?
Lillie olhou para o filho com um vazio nos olhos.
- Neste momento não tenho a menor vontade de falar com o teu pai.
- Não quero que ninguém saiba - insistiu Grayson. Ficarão com uma ideia errada dela. Normalmente não era assim. Mostrava-se muito tímida em relação aos rapazes. Ainda não sei porque é que o fez.
«Porquê?», pensou Lillie, agora mais vazia do que zangada. Pensaria ela, como às vezes acontece com as raparigas, que nunca ninguém a quereria? «Devia ter-me dito o que sentia», pensou Lillie amargamente. «Poderia ter-lhe feito entender que não precisava de chamar a atenção dos outros. Que um dia seria amada, desejada e querida.» Lillie sentiu a cabeça a girar devido àquela revelação. «Podias ter confiado em mim», quis Lillie gritar. «Éramos tão chegadas.» Sentiu-se maldisposta.
- Eu estava a tentar protegê-la, mãe - insistiu Grayson. Lillie olhou para o filho como se tivesse acordado de um
transe e sentiu o coração a acalmar em relação a ele. Perscrutou os olhos perturbados do filho e depois abanou a cabeça.
- Eu entendo isso - disse ela, estendendo a mão e agarrando-lhe o braço por um instante.
Apesar da angústia que sentia, imaginando a desajeitada tentativa de sedução e as consequências explosivas, ficou contente por ele lhe ter contado. Era como uma ponte vacilante que a voltava a ligar ao filho. Como se o seu coração tivesse parado definitivamente e agora começasse novamente a bater.
- Obrigada por teres feito isso por ela - proferiu.
- Só desejava ter podido salvá-la, mãe - gritou ele.
- Oh, Grayson. Eu também.
Lillie gemeu, abanando a cabeça. Levantou-se lentamente do assento e alisou o fato.
Grayson também se levantou.
- Quando chegares a casa... - começou ele.
- Não vou para casa - interrompeu Lillie.
- Para onde vais? - perguntou, alarmado.
Lillie olhou para o campo de jogos, agora vazio; as nuvens
estavam baixas e cor de fumo à medida que a noite descia.
- vou para casa da tia Brenda. Fico lá esta noite, se ela me deixar.
Ele olhou para o olho inchado da mãe e assentiu com a cabeça.
- Por causa disso.
- Por causa de tudo. Não consigo. Preciso de pensar, Grayson. Não sei o que fazer a seguir. Só preciso de estar sozinha e pensar em tudo isto.
- O que é que vais fazer? - perguntou ele ansiosamente. - Não sei - retorquiu ela. - Não me importo de te dizer que nunca me senti tão perdida na minha vida.
- É preciso tempo para nos habituarmos à ideia - disse ele. - Mas acho que não devias afastar-te de casa agora.
- Não te preocupes comigo - tranquilizou-o. - Vai-te vestir. Ficarei bem.
Grayson olhou para ela com os olhos semicerrados.
- Não vais contar tudo isto à tia Brenda, pois não?
- Esta noite não tenciono dizer nada a ninguém. Podes ;crer. Só vou para lá para ter alguma privacidade. Espaço para respirar. A resposta pareceu deixá-lo mais tranquilo.
- Ouve, mãe - disse ele. - Eu já pensei muito nisto e lamento profundamente.
- Eu sei - anuiu ela num tom monocórdico.
- Mas é demasiado tarde para começar a dizer isto a outras pessoas. Toda a gente vai ficar magoada. -- Todos já estão magoados - disse ela.
- Sim, mas agora temos de pensar no futuro. Qual era a vantagem de reviver tudo outra vez?
-Tenho de me ir embora, Grayson. - Lillie suspirou. - Diz ao teu pai onde estou, está bem?
Não esperou por uma resposta. Tinha de se afastar dele. De tudo. Sentia-se espancada por dentro e por fora. Pensara que o homicídio de Michele fora o derradeiro pesadelo. Sorrira amargamente da sua própria ingenuidade. Agora parecia que a morte da filha fora apenas o início. Sentia que tudo o que mantinha o seu mundo unido estava a desmoronar.
Lillie caminhou lentamente para o parque de estaciona mento. Quando chegou ao carro, virou-se e olhou para trás O filho ainda estava ali, de pernas abertas, punhos cerrados os olhos fixos nela. A sua figura almofadada recortava-se contra o céu cinzento, uma silhueta semelhante à estátua de um ho mem enorme e impossível de idealizar.
Na obscuridade de uma noite enevoada, o conjunto mal iluminado de edifícios de estilo georgiano da Academia Militar Sentinel parecia uma fortaleza construída numa colina da Carolina do Norte. Jordan passou pela placa que indicava que a escola fora fundada em 1887 e conduziu o carro lentamente pela alameda até chegar ao parque de estacionamento situado ao lado do edifício principal.
Eram quase sete horas e estava cansado da viagem, mas queria cumprir imediatamente a sua missão. Sentia-se inquieto e ansioso sobre o modo como iria lidar com o rapaz, e era melhor fazê-lo o mais depressa possível. Havia uma bandeira americana e um canhão da Primeira Guerra Mundial ancorado no meio de uma ilha de relva à frente da fachada central. Jordan achou que seria ali que ia encontrar alguém com autoridade. Alguns cadetes de uniforme cinzento passaram por ele a correr, de cabeças baixas, e ouviu-se o ruído de folhas secas nos relvados. De resto, estava tudo sossegado. Jordan subiu os degraus que conduziam ao edifício principal, entrou e olhou à sua volta.
O mogno antigo trabalhado brilhava como os sapatos de um oficial, mesmo com a pouca luz que havia no átrio. O edifício parecia deserto, mas ele seguiu uma placa que indicava o gabinete do comandante e ficou aliviado ao ver que havia luz lá dentro. Não estava ninguém no posto da secretária na antecâmara. As paredes forradas a madeira estavam cobertas com placas de louvor e estantes com histórias militares e os livros anuais do Sentinel desde 1930. Aporta do gabinete encontrava-se entreaberta e, quando Jordan se dirigiu a ela, reparou na placa: CORONEL JAMES PREAVETTE. Jordan bateu à porta. Quando uma voz áspera o autorizou a entrar, Jordan meteu a cabeça e viu um homem bronzeado e hirsuto em mangas de camisa, com óculos de aros prateados que condiziam com o seu cabelo já branco e bem penteado para trás. Quando olhou para cima, os óculos brilharam.
- Lamento incomodá-lo, coronel Preavette - disse Jordan.
- Não há problema. Entre! Apanhou-me a despachar algum do trabalho burocrático que estava atrasado.
Quando se apresentou, Jordan não pôde deixar de reparar que a secretária do coronel estava imaculada, à excepção de duas pastas de arquivo muito bem arrumadas e uma moldura com a fotografia da família.
- Em que posso ajudá-lo? - perguntou o coronel.
- Na realidade, estou aqui para falar com um dos seus caloiros. Chamo-me Jordan Hill.
O coronel fez um rápido aceno com a cabeça.
- Lamento, mas terá de voltar amanhã. O dia das visitas é ao domingo. É membro da família?
Jordan hesitou.
- Um amigo da família - disse ele vagamente. - De facto, o assunto é importante. Seria uma grande ajuda se pudesse falar com o rapaz esta noite.
- Há alguma emergência médica na família? - perguntou o coronel.
Jordan sentiu-se como um soldado numa inspecção. Não tentou mentir.
- Não, mas é uma questão da maior urgência para mim. Creio que este rapaz detém informações vitais sobre um crime muito grave...
- È da Polícia? -; perguntou o coronel.
- Não - admitiu Jordan, bastante consciente da sua aparência amarrotada, o cabelo comprido e o casaco que ainda tinhã o cheiro de Lillie.
- As regras e a disciplina são a base do funcionamento desta instituição, Mister Hill. O exemplo que damos a estes rapazes é muito importante. Há um motel muito bom na estrada, onde costumam ficar os membros da família quando vêm à visita. Volte amanhã, Mister Hill - disse o coronel, atirando-lhe um sorriso glacial.
A decisão era irreversível e Jordan sabia-o. Também sabia que não valia a pena persuadir o coronel. Durante uns instantes, pensou que teria sido melhor contornar os canais oficiais.
- Amanhã, a que horas? - perguntou com frieza.
- A qualquer hora depois das nove. com que caloiro é que deseja falar?
«Ah», pensou Jordan. «Afinal a referência a um crime sem-
fcpre funcionou. Está curioso.»
- O nome do rapaz é Tyler Ansley.
As sobrancelhas do coronel ergueram-se por cima dos aros de metal. Agarrou num maço de Camel que estava sobre a secretária e tirou um cigarro. Jordan esperou pacientemente enquanto o acendia e puxava uma fumaça. O coronel assentiu •com a cabeça.
- Eu sabia que havia algo de estranho - disse ele. - Detecto um rapaz com problemas a milhas.
Jordan não respondeu. Se o coronel queria informações, teria de contornar um pouco as regras. O coronel percebeu imediatamente as condições que não foram expressas e pensou durante uns momentos. Depois, abanou a cabeça. - Volte amanhã, Mister Hill.
Jordan agradeceu-lhe, cortês, e saiu. Quando chegou ao exterior, olhou furiosamente para os edifícios da academia. Era possível que um deles albergasse o assassino de sua filha. No entanto, se tentasse determinar qual sem a autorização do coronel, os guardas da segurança poderiam expulsá-lo e não lhe seria possível voltar no dia seguinte.
O cansaço apoderou-se subitamente dele e a ideia de uma noite de descanso parecia apelativa. Mal conseguia acreditar que de madrugada estava na sua quinta em Green County. Parecia ter passado um mês, e não uma noite, desde que telefonara a Lillie e decidira ir ter com ela.
Resignado com a espera, voltou para o carro e desceu a Montanha até ao motel que o coronel mencionara. Deram um quarto forrado a alcatifa azul-turquesa e verde e colchas de cama castanhas. Abriu o seu estojo da barba e lavou-se na casa de banho, ficando alguns minutos a olhar para o espelho e observando o seu rosto macilento.
Agora que estava num quarto, a única coisa que desejava era dormir, mas decidiu evitar a convidativa cama e ir ao restaurante do motel antes que fechasse. Saiu do quarto e caminhou até à parte da frente do edifício, tendo sempre em mente o seu encontro com o coronel. O velho oficial não ficara surpreendido ao saber que ele procurava Tyler Ansley. Pelo contrário, confirmara as suspeitas do coronel. «Raios», pensou Jordan. Não havia nada a fazer, a não ser esperar pela manhã seguinte. Nessa altura, apanharia o rapaz e descobriria o que queria saber.
Jordan abriu as portas duplas e desceu um pequeno corredor que conduzia ao restaurante. Do salão que ficava do outro lado do corredor, vinha o som de uma banda country e ele perguntou a si próprio se estariam a tocar para uma sala vazia. Havia poucos carros no parque de estacionamento.
Jordan sentou-se numa cadeira junto a uma mesa de canto e olhou para a sala de jantar que estava quase vazia. Havia um jovem casal com um ar exausto com um bebé numa cadeira alta e dois casais de meia-idade que já iam no café e que se riam enquanto uns homens metiam conversa com uma bem-disposta empregada de mesa. A duas mesas da sua, um casal de velhotes estudava a ementa e conferenciava. Quando a jovem empregada se aproximou da mesa deles, Jordan conseguiu perceber pela familiaridade da conversa que eram pessoas da localidade, que se encontravam ali por ser a noite dedicada aos cidadãos mais idosos. O jantar especial de escalopes com massa custava três dólares se apresentassem um cupão que fora publicado no jornal da região.
A empregada escusou-se amavelmente do casal de idosos e dirigiu-se à mesa de Jordan. Jordan consultou a reduzida ementa e pediu um JacDaniel's, com gelo e um bife. Quando a empregada se afastou para fazer o pedido, a velhota chamou-a novamente.
Ela sorriu à rapariga, transformando o rosto numa manta de rugas.
- Além do que pedimos, queria uma sopa de tomate, querida.
- Isso será pago à parte. Não está incluído na ementa disse a empregada,
A velhota olhou, alarmada, para o marido e fixou a ementa de testa franzida.
- Normalmente, faz parte da" ementa, não é? - perguntou a velhota.
- Às vezes - respondeu pacientemente a rapariga. Mas esta semana, não. É mais um dólar pela sopa.
«Não têm dinheiro que chegue», percebeu Jordan de repente, observando-os.
O velhote levantou orgulhosamente os olhos da ementa.
- Traga à minha mulher uma tigela de sopa de tomate ordenou ele.
A mulher abanava a cabeça.
- Não, querido. Não! Nem sequer me apetece muito. Como sempre demasiado quando vimos cá. Se comer sopa, não terei espaço para o pudim.
- Tens a certeza? - perguntou o marido com algum alívio na voz.
- Absoluta - disse ela.
Jordan começou a comer um pãozinho e fingiu não estar a escutar a conversa. Não queria que o velhote visse a pena que tinha no olhar. «Provavelmente já lhe prometeste a Lua», pensou. «E é a isto que as coisas chegam. Não lhe podes dar uma tigela de sopa de tomate.» Olhou para o uísque que a empregada estava a pôr-lhe à frente e sentiu-se culpado. Depois ouviu a velhota rir-se. Quando olhou, viu-a dar um pequeno empurrão no braço do marido, como que a criticá-lo jocosamente por algum comentário brejeiro.
Jordan deu um pequeno gole na sua bebida. «Aqui estás tu», pensou, «a sentir pena deles porque não têm dinheiro para pagar uma tigela de sopa. Contudo, irão para casa juntos e contentes com a sua noite. Se calhar, irão sentar-se na cozinha a falar dos netos e adormecerão juntos na velha cama.»
A empregada colocou-lhe o bife à frente, mas ele não tinha muito apetite. Esforçou-se por comer parte e, quando terminou e abandonou o restaurante, a banda tocava um swing no salão. Viu os casais de meia-idade com quem estivera no restaurante a sair do salão após uma breve permanência. Habitualmente ele poderia ter entrado e tomado uma bebida para passar o tempo, mas naquela noite não lhe apetecia testemunhar as diligências da banda local. Sabia que estariam a tentar sair de Beauville, na Carolina do Norte, e alcançar o sucesso. Conhecia bem o assunto: rejeitar uma vida normal e ansiar pela fama.
Jordan caminhou lentamente até ao seu quarto e abriu a porta. O vazio do local recordou-lhe o seu apartamento. Não havia lá ninguém, nem um animal de estimação. Pensara algumas vezes em arranjar um cão, mas nunca desejara realmente essa responsabilidade. Era como casar-se de novo. Sempre admitira essa hipótese, mas nunca lhe parecera merecer a pena inquietar-se com uma mudança tão radical na sua vida, ou seja, arranjar espaço para outra pessoa.
Michele sempre lhe falara do assunto. Quando ia visitá-lo, perguntava-lhe por que razão ele não se casava outra vez. E nas raras ocasiões em que uma mulher ia com eles jantar a Chinatown ou ao cinema, Michele elogiava-o à rapariga mesmo à sua frente e bombardeava-o com milhões de perguntas sobre a rapariga quando chegavam a casa. Jordan sorriu da recordação. Às vezes parecia ser ele o adolescente baralhado e ela a adulta. Ficava com aquele olhar conhecedor e dizia-lhe que um dia encontraria a pessoa certa. Uma vez ele perguntara-lhe:
- Porque é que estás tão ansiosa por me ver casado? E ela respondera:
- Porque não quero que te sintas só quando eu não estou.
O sorriso de Jordan desapareceu e sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos.
- Não posso pensar nela - disse em voz alta para o vazio.
Ligou a televisão e percorreu os canais sem rumo certo. Depois desligou-a. Estava exausto, mas inquieto. Conduzira o dia inteiro, indo de madrugada de Green County até ao Aeroporto Kennedy, depois de Nashville até Felton e, finalmente»
aquele longo percurso de cinco horas até ao Sentinel. Percebeu que estava esgotado devido à tensão do dia e agora era só nervos e ansiedade. No entanto, dormiria sobressaltado, sabendo que a manhã seguinte o poria frente a frente com Tyler.
Olhou para o telefone e pensou em Lillie. Devia estar a jantar com Grayson e Pink tentando manter-se ocupada enquanto esperava pelas notícias. Não havia motivo .para lhe telefonar naquela noite. Sentou-se à beira da cama e olhou para o telefone. Viera-lhe subitamente à cabeça a imagem da Lillie daquela manhã, o cabelo húmido e encaracolado da chuva, envolta no seu casaco. Ficava sempre espantado com o seu aspecto juvenil. Como se a vida não a tivesse magoado.
Agora, quando pensava nisso, ficava estupefacto quando se lembrava da facilidade com que tomara a decisão de as deixar
- Lillie e Michele - há todos aqueles anos. Um agente artístico de Nashville vira a sua fotografia, pedira-lhe que cantasse e oferecera-se para lhe arranjar uma audição para um espectáculo musical em Nova Iorque. Para Jordan, fora um milagre. Uma oportunidade de concretizar todos os seus sonhos. O amor era uma coisa doce, mas vulgar, comparado com aquela oportunidade de ouro.
Dissera a si próprio para ir, apenas ir, para que a dor fosse aguda, mas rápida. De outro modo, passaria o resto da vida arrependido. Por isso, fora, conseguira o papel e pouco tempo depois já estava na Califórnia a trabalhar numa série de televisão. Porém, a dor que fora aguda e rápida acabara por se transformar em longa e permanente. Tentara outras mulheres, mas mesmo assim sentia-se vazio, e à noite sonhava com Lillie e com a bebé, acordando à luz do Sol da Califórnia envolto numa nuvem de medo. Finalmente, uma manhã, depois de uma noite especialmente agitada, compreendera que o que queria era outra oportunidade.
Assim que meteu a ideia na cabeça, começou a aperceber-se de que afinal sempre fora essa a sua intenção. Verificou o calendário de gravações, fez as reservas para ir a casa e começou a tecer fantasias sobre a sua eminente reunião e a forma como a cortejaria. Três semanas depois, apenas dois dias antes da planeada viagem, chegou uma carta da mãe a dizer que Lillle tornara a casar. Que agora era mulher de Pink Burdette.
Jordan pegou no auscultador. «Em breve», pensou, «deixarás de ter motivos para lhe telefonar. A Michele está morta. Esta confusão será esclarecida e vocês ficarão a mil quilómetros de distância sem nada em comum. Nada mais a dizer.» Pelo menos naquela noite havia uma explicação plausível para lhe telefonar. Pediu uma linha para o exterior.
O telefone tocou uma vez e Pink atendeu.
- Pink é o Jordan.
- O que queres? - perguntou Pink Interrogou-se a si próprio sobre a hipótese de Lillie lhe ter
contado a história de Tyler e falado sobre a sua viagem ao Sentinel. Já lhe devia ter dito, mas Pink não estava claramente com disposição para discutir o assunto.
- Posso falar com a Lillie um instante?
- Não está - disse Pink Não teceu mais comentários.
- Ah! Está bem! Podes dizer-lhe que telefonei?
Pink ficou em silêncio como se estivesse à procura de algo para dizer, mas depois proferiu apenas:
- Está bem. Adeus.
- Adeus. - Jordan pousou o auscultador.
Por alguma razão, ficara contente por ela não estar em casa. Não fazia sentido, mas era o que sentia. Passou-lhe rápida e absurdamente pela cabeça que ela tivesse decidido vir atrás dele. Olhou para a porta como se esperasse que ela batesse, mas depois abanou a cabeça, admirado com a sua louca imaginação. Alguns minutos depois, levantou-se com um suspiro e decidiu dar mais uma oportunidade à televisão.
Brenda Daniels nunca casara por dinheiro, mas sempre fizera tudo para ser adequadamente compensada pelas dores causadas por todos os divórcios e, consequentemente, aos trinta e quatro anos, possuía uma das casas mais luxuosas de Cress County.
Quando virava o seu Lincoln para a alameda ladeada de árvores que conduzia à sua garagem, experimentava uma contínua sensação de satisfação ao ver a sua casa de estuque de um branco puro com colunas à frente. Passara o dia em Nashville num evento de comida para gourmets, acompanhado de uma exposição, realizado no HoteOpryland e tinha pensado em convidar um guitarrista que conhecia para dar um pequeno baile, mas, à última hora, decidira ir para o conforto do seu lar.
Sabia que muitas das mulheres locais achavam que ela era uma grande prostituta, mas estava convencida de que tudo não passava de inveja em relação à casa e à liberdade de que desfrutava. Ficariam surpreendidas se soubessem que a sua vida amorosa era normalmente muito tranquila. Não por falta de pretendentes. Ela sempre fora muito bonita. E se quisesse poderia mudar-se, de um momento para o outro, para um daqueles condomínios fechados com piscina e clube de ténis existentes em Nashville com rápido e fácil acesso a inúmeros restaurantes e bares frequentados por homens solteiros que se espalhavam por Nashville como se fosse Lãs Vegas. No entanto, gostava muito da sua casa e do terreno e, de facto, não estava à procura de marido.
Por vezes desejava ter uma família, como qualquer outra pessoa, mas o cepticismo prevalecia. Depois do casamento, os tipos arrefeciam muito e, subitamente, tornavam-se desmazelados, começavam a beber demasiado e não queriam levar a esposa a jantar fora. Ela não conseguia suportar uma casa desarrumada, beatas e cinza nos cinzeiros ou um copo meio a riscar-lhe o verniz da sua mobília francesa importada. Considerava-se uma pessoa tolerante, mas o facto era que os hábitos dos homens quase sempre a irritavam. Meias sujas metidas nos sapatos e maços de cigarros amachucados enfiados no couro branco dos assentos do carro exasperavam-na. Gostava das coisas de uma determinada maneira, e os homens nunca conseguiam entender isso.
Mesmo assim, tudo lhe anunciava mais uma noite solitária e ficou deliciada quando viu o carro de Lillie estacionado na alameda. Premiu o botão do comando da porta da garagem e meteu o Lincoln ao lado da carrinha da Home Cooking. Há muito que dera uma chave a Lillie, sabendo, por isso, que ela estaria lá dentro à sua espera. Retirou os sacos que tinha na bagageira, contente por poder mostrar as suas novas aquisições alimentares a alguém que as pudesse apreciar.
Depois de abrir a porta, gritou:
--Ei, Lillie!
No entanto, não surgiu qualquer resposta do interior da casa. Pousou os sacos no balcão da cozinha e olhou à sua volta. A arrumação da sua casa era tão imaculada que conseguia detectar facilmente a mais pequena alteração. Um copo lavado no escorredor e uma gota de líquido acastanhado sobre o balcão significavam que Lillie bebera chá. Brenda limpou a gota com a esponja e começou a mover-se pela casa. Uma das suas revistas não estava alinhada sobre a tampa de mármore da mesa de café. Lillie devia ter estado a ler. Avançou pelo corredor. Na casa de banho, uma toalha de mãos de linho bordado fora usada e depois dobrada novamente. No quarto de hóspedes adjacente, o candeeiro da mesa-de-cabeceira de porcelana estava aceso. Brenda franziu o sobrolho, alisou automaticamente a colcha da cama e continuou a procurar. Não havia ninguém no escritório, A televisão não estava ligada. Espreitou para o jardim e reparou que uma das luzes exteriores das traseiras estava acesa.
«Está demasiado frio para estar sentada no pátio», pensou. Todavia, quando se dirigiu às portas de vidros, conseguiu ver os contornos de uma figura humana aninhada na cadeira branca de ferro forjado. Brenda abriu as portas e saiu.
- Lillie?
Lillie olhou para cima e virou-se, ficando o rosto pouco nítido devido à escuridão.
- Querida, o que estás a fazer aqui fora? - perguntou Brenda. - Não é Verão. Há quanto tempo estás aqui?
- Algumas horas - disse Lillie. - Preciso da tua ajuda, Brenda.
A voz de Lillie estremeceu e Brenda não gostou da maneira como soou. Conseguia perceber, mesmo às escuras,, que os olhos de Lillie estavam cheios de lágrimas.
- Claro. Tudo o que precises. O que aconteceu, querida? Pensei que estavas melhor!
- Preciso de ficar aqui contigo durante algum tempo -disse Lillie.
- Ah! - exclamou Brenda com um ar conhecedor. Sempre suspeitara que havia mais infelicidade entre Lillie e Pink do que a amiga deixava transparecer, mas era a primeira vez que ela saía de casa, sem que fosse por uma noite. - O que é que ele fez?
- Essa é a outra parte do favor - disse Lillie, olhando para o pátio escuro. - Não posso falar sobre isso. Por favor, não perguntes, pois não posso dizer-te. Pelo menos enquanto não souber...
- Como queiras - anuiu Brenda, tentando, com muito pouco sucesso, não parecer ofendida. Dirigiu-se a Lillie e sentou-se numa das outras cadeiras de ferro forjado, sentindo, com desagrado, o ferro frio e húmido através da roupa. - Levei as almofadas para dentro há semanas - disse. - Tenho de te mostrar onde estão no caso de quereres sentar-te aqui outra vez.
- A única coisa que te posso dizer, Brenda, é que sinto a minha vida a cair aos bocados. Nem imaginas como gostaria de poder conversar contigo sobre isto.
- Se não podes confiar em mim...
Oh, Brenda.
-- Tens razão! Não é justo - admitiu Brenda. Se não queres que fique, arranjo um quarto num motel.
- Não sejas tonta! - disse Brenda. - Ficas o tempo que precisares.
- Sabia que podia contar contigo.
- bom - afirmou Brenda -, isso é verdade. Podes. E se quiseres falar... Ao fim e ao cabo, tu conheces todos os pormenores dos meus casamentos.
Lillie abanou a cabeça.
- Não posso.
- Está bem! Está bem! - disse Brenda, levantando-se. Mas vamos para dentro. Está frio aqui fora. Apanhas uma pneumonia.
- Estou bem - insistiu Lillie.
- Vem - pediu Brenda. - Não podes ficar aqui sentada toda a noite e eu quero mostrar-te o que comprei na exposição de alimentos. Aquele HoteOpryland é tão grande que me perdi lá dentro. Tive de pedir informações a duas pessoas.
Lillie levantou-se e seguiu como um autómato atrás de Brenda até à alegre cozinha, cujas paredes eram forradas a azulejos importados Pintados à mão.
- Vou tomar uma bebida - disse Brenda, encaminhando-se para o bar espelhado e pegando numa garrafa de Southern Comfort. - Olha para dentro daqueles sacos. São as coisas que comprei na exposição. - Virou-se. - Apetece-te beber alguma coisa?
Quando Lillie olhou para cima, tirando os olhos daquela profusão de utensílios de cozinha, a fim de recusar a bebida, Brenda reparou no rosto da amiga, agora bem iluminado. Bateu com a garrafa de uísque sobre o bar e olhou espantada para Lillie.
Lillie olhou para ela, admirada por uns segundos, e depois tapou o rosto com a mão.
- Que diabo é que ele te fez? - exigiu saber Brenda. Lillie recuou quando viu Brenda contornar a zona central
da cozinha e vir na sua direcção.
- Aquele filho-da-mãe! - exclamou Brenda. - Deixa-me ver.
Lillie baixou a mão e expôs a zona inchada e azul em torno do olho e osso da face.
- Não admira que o tenhas deixado - disse Brenda, examinando o rosto da amiga. - Puseste gelo?
Lillie abanou a cabeça.
- Lillie, não há desculpa para uma coisa dessas. Sabes disso, não sabes? Não me interessa qual o motivo da discussão.
- Eu sei - disse Lillie em voz baixa.
- Maldito seja! - prosseguiu Brenda. Pegou num copo, encheu-o com gelo e verteu uma boa dose de Southern comfort. Acrescentou umas gotas de limão e deu-lhe um gole. Divorcia-te! - exclamou. - Ouve o que te digo, Lillie. Assim que começam com esse tipo de merdas, nunca mais acaba. Há sempre uma próxima vez.
Lillie sentou-se numa das cadeiras com espaldares de bambu ao lado da zona central da cozinha, com uma expressão distante.
- Não haverá uma próxima vez.
- É melhor que não haja. Aquele filho-da-mãe. Nunca gostei dele, Lillie. Não me importa. Um dia posso arrepender-me de dizer isto, mas não me importa. Sei que tem sido um bom pai para os miúdos, mas olha para a tua cara. Está roxa.
Lillie foi até ao espelho atrás do bar e tocou suavemente na escoriação que tinha na face. Olhou impassivelmente para ela como se se tratasse do rosto de outra pessoa. Nesse mesmo momento, ouviu-se a campainha da porta e ambas se assustaram. Olharam uma para a outra.
- Deve ser o Pink - disse Lillie calmamente. •- Importas-te de o mandar embora? Não quero vê-lo nem falar-lhe.
Brenda pousou o copo no balcão do bar com estrondo e olhou na direcção da porta com uma expressão vingativa no olhar.
- Farei mais do que isso - disse.
Abriu a porta de um antigo armário de carvalho e meteu a mão. Procurou durante uns segundos e depois tirou uma Smith & Wesson, calibre 38.
- Brenda! - gritou Lillie. - O que estás a fazer?
- Vou correr com ele - exclamou.
- Isso está carregado?
- E bem - disse Brenda. - Nem te passa pela cabeça como uma coisa destas é útil para uma pessoa que vive sozinha.
- Guarda-a - suplicou Lillie.
- vou ter de te comprar uma - disse Brenda, ignorando a súplica.
Começou a atravessar a casa até à porta principal, de queixo levantado; a pistola parecia uma extensão natural da sua mão bem tratada e coberta de brilhantes.
Naquele momento, as pancadas na porta já se tinham transformado em socos, e Brenda conhecia bem aquele som. O marido irado. Iria pôr imediatamente um ponto final na história, pensou. Brenda chegou ao vestíbulo, ligou o interruptor que iluminava o pátio dianteiro e abriu a porta, mantendo a pistola baixa. Quando viu quem era, cumprimentou-o primeiro com o cano da pistola.
Pink que se encontrava em frente da porta, sacudindo nervosamente as chaves, viu a arma e deu um salto para trás. Brenda olhou-o friamente.
- Ela não te quer ver.
- Tenho de falar-lhe - insistiu Pink olhando com preocupação para a pistola. - Isto não pode esperar.
- Desaparece, Pink.
- Vá lá, Brenda. Pára de me apontar essa coisa. Deixa-me entrar.
- Para quê? Para que lhe possas dar mais uns socos? Pink mostrou um ar mal-humorado, mas tinha uma expressão triste nos olhos.
- Este assunto não te diz respeito - declarou. - Agora, deixa-me entrar.
- Nem tentes, Pink Eu uso a arma.
Pink olhou exasperado para a arma e depois para a expressão de Brenda.
- Provavelmente até o farias.
- Vou contar até três - disse Brenda.
- Toda a gente sabe que tu odeias os homens - observou Pink.
Molestador de mulheres! - retorquiu Brenda. - Um...
- Quero ver a minha mulher - gritou Pink.
- Mexe-te - gritou Brenda, saindo a porta atrás dele.
- Lillie - gritou Pink descendo os degraus que ficavam 'entre as colunas brilhantes. - Lillie, vem cá fora.
Brenda seguiu-o degraus abaixo, brandindo a pistola. Pink murmurou algo que ela não conseguiu perceber e dirigiu-se ao Oldsmobile estacionado junto ao relvado.
- E não voltes - gritou Brenda. Ela voltou a subir os degraus e bateu com a porta. Virou-se para Lillie, que estava no vestíbulo, ansiosa, junto ao móvel antigo que servia de mesa de telefone. - Acho que ele percebeu.
- Obrigada - disse Lillie com um sorriso amargo. Brenda soprou para dentro do cano da pistola como se a
tivesse disparado e sorriu para Lillie.
- Gostei.
- Devias ter mais cuidado com essa coisa - aconselhou Lillie. - Por amor de Deus, vai guardá-la agora.
- Acho que devias levar a arma contigo para o caso de o Pink continuar a espancar-te. Sabes usá-la?
- Claro que sei usá-la, mas não quero. Não tenho medo do Pink.
Brenda arqueou as sobrancelhas e fixou o inchaço do rosto de Lillie.
- Se calhar, devias ter.
- Oh, Brenda - disse Lillie, abanando a cabeça. - É o menor dos meus problemas.
- Meu Deus, Lillie - exclamou Brenda -, porque é que não falas comigo?
- Primeiro, tenho de tentar esclarecer as coisas comigo própria. Perceber como é que as nossas vidas correram tão mal e o que fazer.
- Só espero que não leve toda a noite. Precisas de dormir. - A noite inteira é apenas o princípio - disse Lillie. - Vai para a cama - insistiu Brenda. - Tenta descansar.
- Acho que é mesmo o que vou fazer - afirmou Lillie, com um ar cansado.
Brenda mordeu o lábio e olhou zangada para a amiga, que parecia mais frágil do que uma criança, enquanto ela se dirigia ao vestíbulo.
- Se precisares de alguma coisa... - disse em voz alta
- Não te preocupes respondeu Lillie, virando-.se para
se despedir com um aceno.
Brenda tamborilou com as unhas pintadas na superfície do móvel enquanto via Lillie desaparecer no quarto de hóspedes. Depois, olhou para a pistola que tinha na mão e sopesou-a, como que a tomar uma decisão. com um pequeno aceno determinado da cabeça, marchou para a cozinha, olhou à sua volta e localizou o grande saco de couro de Lillie. Depois de verificar se a patilha de segurança estava activada, deixou cair a pistola dentro do saco. «És demasiado ingénua, Lillie», pensou Brenda. «Quando começam apancada, tomam-lhe o gosto. Têm sempre de tentar outra vez.» Fechou a mala e foi para o quarto, sentindo-se feliz por não haver por ali nenhum homem que empilhasse toalhas molhadas no chão da casa de banho.
Desde a infância que Lillie adorava ouvir o som dos sinos da igreja aos domingos de manhã, sinos esses que espalhavam os velhos hinos pela cidade. Sentia sempre que vivia no sítio mais pacífico e protegido do mundo. No entanto, passara a noite sem dormir, virando-se de um lado para o outro, no quarto de hóspedes de Brenda, e naquela manhã o som dos sinos tinha-lhe parecido um despertador.
Saiu da cama, lavou-se e vestiu-se automaticamente. Enquanto caminhava sem ruído pelo corredor, olhou para dentro do quarto pintado de creme e mobilado em estilo Maria Antonieta; viu que Brenda ainda estava a dormir. Dormia tranquilamente e usava a sua máscara de dormir de renda negra. Lillie desejava poder bloquear com a mesma eficácia o dia que agora começava. Todavia, não tinha outro remédio senão enfrentá-lo.
Tivera uma longa noite para pensar: o seu casamento, os filhos, a situação impossível em que se encontrava. Porém, no momento em que o primeiro raio de sol iluminou a parede, ela ficou tremendamente ansiosa. Tomara uma decisão sobre o que tinha a fazer e tencionava fazê-lo imediatamente. Foi até à cozinha, vestiu o casaco e pegou na bolsa que estava sobre o balcão. A alça da bolsa pesava-lhe imenso no ombro e pensou se seria devido ao seu estado de exaustão. Pegou nas chaves do carro, olhou à sua volta e saiu silenciosamente de casa.
Estava uma manhã fria e com nevoeiro, o que era típico no Tennessee, as árvores nuas e frias e o ar límpido e silencioso à excepção do chilrear de algumas aves. Quando começou a descer a alameda em direcção ao carro, viu o Oldsmobile negro estacionado em frente à casa. Pink estava inclinado sobre o volante.
Lillie hesitou um segundo, sentindo que lhe devia falar. A dor que sentia na face fê-la recordar que não queria. Chegou à porta do seu carro e abriu-a o mais cuidadosamente possível, esperando que ele não a ouvisse. Contudo, Pink endireitou-se subitamente como se o ruído da porta a fechar-se parecesse um disparo de pistola e olhou para ela. Depois, saiu apressadamente do Oldsmobile e correu ao seu encontro.
- Lillie! Espera um minuto.
- Está calado - disse Lillie com rudeza enquanto ele se aproximava. - A Brenda ainda está a dormir.
- Temos de falar - disse Pink.
As roupas estavam em desalinho e tinha papos nos olhos por ter dormido no carro e por ter bebido bourbon, suspeitou Lillie.
- Não quero falar agora - retorquiu ela.
- Oh, querida! Vá lá! - pediu ele, estendendo os braços como que para abraçá-la. Lillie fugiu.
- Não te chegues a mim - disse ela.
- Só te quero dizer como lamento. Não queria que as coisas se descontrolassem daquela maneira - insistiu Pink Nunca te fiz isto e tu sabes.
- E isso faz com que tudo fique bem? - perguntou ela numa voz gelada.
- Não - declarou Pink ansioso. - Sei que foi um erro e prometo que nunca mais acontecerá. Nunca mais. Por favor, querida. Não estejas com tanta pressa para te ires embora. Aonde é que vais?
- Tenho de falar com uma pessoa.
- Então, vem - insistiu ele. - Dou-te uma boleia.
- Vou sozinha.
Pink agarrou-lhe na mão e tentou metê-la na sua, mas Lilie afastou-se dele.
- Eu só quero que voltemos a estar juntos. Tu, eu e ° Grayson. Como deve ser. Era assim que a Michele gostaria que acontecesse.
Lillie ficou tensa com a invocação da memória da filha.
- Não te atrevas - gritou ela. - Nem menciones o seu nome à minha frente. Meu Deus! O que é que ela pensaria de nós? Deixa-me em paz, Pink.
Pink olhou-a estupefacto e depois com raiva, como se tivesse percebido que o pedido de desculpa não surtira o efeito desejado.
- Eu disse que lamentava. - Eu ouvi.
- Foi só uma nódoa negra, por amor de Deus. Aonde é que vais, afinal?
Lillie olhou-o com uma expressão angustiada.
- vou falar com o Royce. O filho dele matou a minha filha. Lembras-te?
- Olha! O Royce já não pode fazer nada sobre o assunto. Mós tomámos uma decisão - disse Pink teimosamente. Para que é que vais levantar toda esta história outra vez?
- Foram vocês que decidiram. Não eu. Tudo o que sabia sobre o assunto eram mentiras e mais mentiras.
Pink abanou a cabeça incredulamente e depois bateu com palma da mão no tejadilho do carro.
- Nada que eu faça é suficiente para ti. Passei toda a minha vida a tentar satisfazer-te e para quê? Para que te vires contra mim e contra o nosso filho.
- Pink não estou a virar-me contra ti. Vocês são a minha família. Tu e o Grayson... são tudo o que me resta no mundo. Mas trata-se de homicídio, Pink e não de uma brincadeira de Mau gosto. Vocês estão todos a fingir que nada aconteceu. & nossa filha foi assassinada!
- Isto é tudo vingança, não é? - perguntou Pink Porque não te consultámos. Vais começar a fazer muito barulho. Foi exactamente por isso que não te contei nada.
- Muito bem, Pink - disse Lillie sarcasticamente. Tens toda a razão. Não podiam confiar-me uma coisa dessas, "focês foram em frente e tomaram a decisão mais crucial das vossas vidas e mentiram com quantos dentes tinham. De facto, até te devia estar grata. Devia agradecer-te.
Pink olhou-a, obstinado.
- Não sejas tão hipócrita. Estava a pensar no futuro do Grayson. Alguém tinha de o fazer. O que achas que lhe teria acontecido se a história se espalhasse?
- Não sei - disse Lillie.
- Exactamente. Não sabes nem te importas. Não te importarias de arruinar a sua vida só para te vingares do Tyler. Se bem que a Michele esteja morta e nada possamos fazer por ela. Sempre a amaste mais do que ao Grayson.
Lillie quis protestar, dar uma resposta desagradável, mas esta não acudiu prontamente aos seus lábios. As palavras de Pink atingiram-na como um golpe baixo. Seria verdade? Michele sempre fora a mais vulnerável, a que tinha mais necessidades. A que dependia dela. Grayson deixara de precisar da mãe assim que começara a andar e isso talvez a tivesse magoado um pouco. Talvez se tivesse aproximado do filho que mais precisava dela, mas não era justo dizer que amava mais um do que o outro. Amava-os aos dois à sua maneira. Eram seus filhos, os seus meninos. Não tinha de justificar o seu amor a ninguém, mas, apesar de tudo, as palavras de Pink fizeram-na sentir culpada e ela não queria que ele se apercebesse disso.
- Lamento que vejas as coisas dessa maneira, Pink - disse ela friamente.
Estendeu a mão para o puxador da porta, mas Pink agarrou-lha.
Ela virou-se furiosamente para ele e gritou:
- Não me toques!
Ele largou-a. Lillie afastou-se dele e entrou no carro. Tirou a chave e começou a tentar inseri-la na ignição com a mão a tremer. Pink hesitou, mas depois estendeu o braço e tentou arrancar-lhe as chaves da mão. Lillie gritou e fechou o vidro da janela. Pink tirou a mão rapidamente para evitar ficar com o pulso preso. Lillie voltou a enfiar a chave, e accionou a ignição. Meteu a marcha atrás e soltou o travão de mão. Quando olhou para o espelho retrovisor, viu o marido de pé atrás do carro.
Desceu o vidro da janela e meteu a cabeça de fora.
- Sai daí, Pink - ordenou ela.
- Não podes fazer isto - gritou Pink - Não podes sair e destruir as nossas vidas.
- Não estou a tentar destruir nada, mas vou falar com o Royce Ansley. Agora.
Carregou no acelerador. O carro recuou um pouco. - Porque é que não me atropelas? - gritou ele.
Ela buzinou, mas ele ficou quieto, bloqueando o caminho do carro com o seu corpo maciço e envelhecido.
Ela olhou para ele com incredulidade. - Sai daí - gritou. - vou sair. - Força - disse ele. - Não me importo.
Nesse momento, ela percebeu que era verdade. Devido à sua ideia disparatada de proteger Grayson, ele ficaria no caminho do carro. Ela não sabia se era pena, revolta ou até compaixão que lhe estava a roer o coração.
Meteu a primeira e o carro avançou. Virou o volante e meteu a marcha atrás, recuando a toda a velocidade sobre a perfeição do relvado cor de esmeralda de Brenda, deixando marcas de pneus na zona em torno da alameda. Pink gritou alguma coisa, mas ela já fechara novamente a janela para não o ouvir.
Royce Ansley vivia numa rua sossegada; habitava uma casa rústica de pedra que algum soldado que regressara da Primeira Guerra Mundial tinha remodelado ao estilo rústico francês. Lillie estacionou o carro e lembrou-se do aspecto da fachada quando Lulene era viva. As roseiras trepavam em volta da porta e o jardim não tinha rivaem Felton. Agora tudo mostrava um aspecto decadente.
Depois da luta contra o cancro e consequente morte de Lulene, o cabelo castanho curto de Royce parecia ter ficado grisalho da noite para o dia e ele nunca recuperara. Casara-se tarde e, depois de passado o tempo adequado após a morte da esposa, as pessoas começaram a sugerir que ele saísse com outras mulheres. Todavia, a sua resposta era sempre a mesma: «Já tive a minha mulher.» E a maneira como o dizia parecia significar que já tivera a «sua vida».
Lillie deitou fora a compaixão que sempre sentira por ele. Dirigiu-se à porta principal, deixou cair a velha aldraba de ferro e esperou. Ouviu passos e a porta abriu-se. Royce Ansley, ainda em roupão, olhou para os seus olhos cansados. Não pareceu surpreendido ao vê-la.
- Pensei que pudesses ser tu - disse ele. - Entra! Lillie fechou a porta e seguiu-o até à sala.
- Importas-te que me vista? - perguntou ele.
Lillie esteve tentada a recusar. Parte dela queria humilhá-lo, obrigá-lo ao confronto naquele estado vulnerável. Ele já não era o homem que ela respeitara durante todos aqueles anos de convívio. Era um mentiroso e desrespeitara a lei. Contudo, por alguma razão que não conseguia compreender, queria ser justa com ele.
- Faz favor - disse ela abruptamente.
- Obrigado. Fica à vontade.
Lillie acenou com a cabeça e olhou à sua volta quando Royce saiu da sala. «Quem é que consegue sentir-se à vontade aqui?», pensou. A sala estava limpa e tudo no seu lugar, mas as cortinas amareladas pareciam não ser abertas há anos. Lillie conseguia perceber que Royce não mudara a posição de um único objecto, nem sequer um cinzeiro, desde a morte de Lulene. Lembrava-se de os visitar com Jordan quando este interpretara a peça da escola A Nossa Cidade. Lulene servira chá e falara com Jordan sobre as produções que vira na Broadway. Lillie recordava-se de que os olhos de Jordan tinham brilhado e que não reconhecera o perigo que aquele brilho constituía para ela. Só sentira um enorme prazer pelo facto de uma professora o considerar tanto, o que fazia Jordan muito feliz. Lulene estava, na altura, grávida de Tyler. Nessa altura, a casa também estava muito limpa, mas tornava-se ainda mais alegre devido às flores e serviço de porcelana. Agora, não pôde deixar de imaginar o que devia ter sido para Tyler crescer numa casa daquelas depois da morte da mãe. Uma casa cheia de morte e disposição metódica.
- Pronto - disse Royce, entrando na sala e ainda apertando o cinto das suas calças à civil. - Muito bem, Lillie
- O Pink telefonou-te? - perguntou ela maldosamente-
- Sim.
Aquela palavra lapidar indicava que ele estava pronto para o ataque de Lillie. Não tinha a menor intenção de o desiludir.
- Desde que te conheço, Royce, sempre te respeitei. Sempre te tive em muita consideração e estima. Se alguém me tivesse dito que eras capaz de uma coisa destas...
Ele não tentou adoptar uma postura agressiva. Sentou-se num sofá coberto de brocado já gasto e olhou para a fotografia do seu casamento que se encontrava na mesa ao lado. O casal da fotografia sorria para ele. Já não eram jovens, mas ainda inocentes.
- Eu não sei como te posso explicar isto - disse ele entre dentes.
- Não podes - contrapôs Lillie. - Não vim cá para pedir explicações ou desculpas. Já estou até aqui de desculpas.
Royce olhou para Lillie com um ar sombrio enquanto ela colocava a mão na garganta. Depois abanou a cabeça.
- Foi oPink que teve a ideia de te esconder o assunto. Disse que ias ficar tão perturbada com o caso que não ias conseguir pensar com clareza. Eu não vi as coisas assim, mas não havia uma solução melhor. Odiei ser obrigado a mentir-te, Lillie. Não espero que compreendas, mas quero que acredites nisto.
Lillie não estava na disposição de o deixar descansado.
- Portanto - disse ela, ignorando propositadamente o pedido -, tu e o Pink foram em frente e agora estamos todos apanhados neste monte de mentiras. E o que vamos fazer?
- Não sei - disse Royce.
Levantou-se da cadeira e dirigiu-se à secretária que estava no canto da sala. Lillie reparou subitamente no coldre, em cima da secretária, e, por um momento, sentiu medo. - Não, Royce! - exclamou.
Royce viu para onde ela estava a olhar e franziu o sobrolho. Depois, olhou-a com tristeza.
- Oh, Lillie! Pensas que sou mau?
- Não sei o que pensar - disse ela numa voz calma. Ele pegou na fotografia de Tyler e olhou-a durante uns instantes. Depois voltou a pousá-la na secretária.
- Como foste capaz, Royce? - perguntou Lillie. - Toda a tua vida foste agente da autoridade. Por acaso pensas que já estás acima da lei?
Royce suspirou.
- Amas o teu filho, Lillie?
- Não me venhas com essa - retorquiu ela impacientemente. - Já aguentei o que tinha a aguentar do Pink Só Deus sabe que não quero o meu filho preso ou humilhado publicamente. Sou mãe dele. Quero protegê-lo, tal como tu queres proteger o Tyler, mas não estamos a falar de um vidro partido ou de um carro roubado. Isto é homicídio. A minha filha perdeu a vida. Por isso não me venhas com essa história de amar o teu filho. Todos amamos os nossos filhos. Mas o que será melhor para eles? A questão é essa.
- Não, pelo contrário - disse ele. - Eu não tenho a certeza desse amor. Não sei o que um pai deve sentir pelo filho. Quando penso no Tyler... Lillie, vou ser honesto contigo...
- Já não era sem tempo.
- Eu não queria filhos. Nunca fui muito bom com crianças, com as suas brincadeiras e por aí adiante. Além disso, era mais velho do que a maioria dos pais. Mas ela ficou tão contente por ter o Tyler. - Apontou vagamente para a fotografia do casamento. - Tinha um carinho excessivo por ele. Eu mantinha-me bastante afastado. Castigava-o quando era preciso. Quando chegou à idade de poder ir caçar, praticar desporto e as coisas que eu sabia fazer, nunca se mostrou interessado. A mãe morrera e eu não sabia o que fazer com ele. Era reservado e rebelde. Nunca tivemos uma conversa que não terminasse em discussão. Estava sempre metido em sarilhos na escola e em toda a parte. Começou a beber. Eu sabia. E Deus sabe que mais. Há um ano, começou a desaparecer-me dinheiro da carteira. Avisei-o... ameacei-o... tudo foinútil. Era tudo aquilo que eu desprezava.
Lillie estava sentada a observá-lo. Royce voltou a sentar-se e olhou para ela.
- Naquela noite, quando descobri a Michele e o bastão de basebol... Aquela rapariga tão doce... Depois, encontreos rapazes e eles contaram-me o que acontecera.
«A minha vontade foi estrangular o meu filho com as minhas próprias mãos. Tens de acreditar, Lillie. Proteger o Tyller ia contra todos os meus princípios, sentimentos ou fé. Se o Pink não tivesse aparecido naquela altura... Bom, não vou dizer isso. Não vou depor os meus actos aos pés dele, mas digo-te uma coisa: não o fiz nem pelo Tyler nem por mim. Fi-lo por ela. Porque ela o amava.
- Compreendo - afirmou Lillie rudemente. - E assim a história acaba aí. O Tyler vai para a academia militar e a minha filha para o diabo. E o que acontece à próxima rapariga inocente que o faça zangar?
- Acho que a Academia Militar Sentinel será o melhor lugar para o Tyler. Estou a rezar para que consigam fazer dele uma pessoa.
Lillie mal conseguia acreditar na dureza que sentia. Era como se Michele estivesse vrva e ela se visse novamente a lutar para a salvar.
- Ele matou a minha filha - disse. - Devia estar na cadeia.
- Justiça - suspirou Royce.
-Muito bem. E isso mesmo - insistiu Lillie.
- Olho por olho - disse Royce.
- Vamos parar com a brincadeira, Royce. Tenho tanta coisa em jogo como tu. Pensas que tudo isto não me dói atrozmente? Quero dizer, a ideia de denunciar o meu marido e o meu filho. Não sei o que fazer. Mas como posso permitir que o Tyler não sofra? Tem de ser punido por este crime.
- Queres que ele morra, Lillie?
- Não sejas melodramático, Royce. Não há júri que condene um rapaz de dezassete anos à morte por um... não sei... recuso-me a chamar-lhe acidente.Um incidente. Nem no Tennesee. Mas irá para a cadeia durante bastante tempo e eu acho que deve. A academia militar não é um castigo.
- Compreendo - disse Royce. - Porém, o que tens de compreender é que se o Tyler fôr para a cadeia será morto. Pelos outros presos. Será morto porque é meu filho, porque encarcerei muitos daqueles tipos durante todos estes anos. Terão de o manter sempre na solitária, mas isso não lhe salvará a vida. Eles chegam lá. São muito ardilosos.
Lillie reclinou-se e agarrouu o braço do sofá.
- Foi por isso que concordei em abafar o caso - prosseguiu Royce. - Porque sabia que morreria e o motivo da sua morte seria eu. Tu podes sentir que merece morrer, mas eu não podia condenar pessoalmente o meu filho à morte.
«Isto não é justo», pensou Lillie. «Não quero ouvir mais nada.» Mas a sua mente trabalhava furiosamente, percebendo de imediato que aquilo que Royce dissera era verdade.
- Consegues ver o problema? - perguntou Royce. Conseguia. O problema era que a vida ou morte de Tyler
estava agora nas suas mãos e isso ela não queria.
- Lillie - continuou Royce muito sério -, não conheço uma maneira melhor, mas peço-te que sejas misericordiosa e poupes a vida ao meu filho. Se bem que ele não tenha poupado a vida à tua filha e não haja nenhum motivo sobre a terra para que mostres misericórdia.
- Talvez não o mandem para a prisão - protestou Lillie fragilmente.
- E porque não? Estamos no Tennessee. Aqui vai-se para a cadeia durante vinte anos por posse de mariuana e, como tu dizes, ele merece ir para a cadeia. Qualquer um percebe isso. Infelizmente, a decisão que deves tomar é se ele merece morrer.
Lillie olhou para ele.
- Tu sabes a escolha que fiz, mas é sangue do meu sangue - acrescentou Royce.
Lillie olhou para a cabeça cinzenta do xerife e sentiu uma onda de desamparo. Não era justo. Parecia-lhe uma grande responsabilidade. Uma coisa era mandar um rapaz para a cadeia e outra, ordenar a sua execução e, simultaneamente, desmantelar toda a sua família. «Deus sabe o que aconteceria a Grayson e ao Pink», pensou. Também poderiam acabar na cadeia. Tinham mentido. Encoberto um crime. Grayson acabara de fazer dezasseis anos. Já tinha idade para ser acusado. Não conseguia suportar a ideia de o ver passar por isso. E para quê? Por tentar proteger Michele à sua maneira? .
Mas... e Michele? Quem estava ali para tomar o seu partido a não ser a mãe? O seu homicídio seria simplesmente posto de lado, por vingar, como se se tratasse de um animal atropelado por um carro na auto-estrada? «Oh, minha querida», gritou com o coração à filha perdida, «o que queres que faça?»
Enquanto elaborava a pergunta, não conseguia deixar de pensar em Michele com a sua braçadeira de protesto contra a pena de morte. Pink chamava-lhe um coração a sangrar. Lillie nunca a levara muito a sério, pois Michele era jovem e estava protegida. O que poderia saber sobre criminosos e homicídio e o desejo de vingança das vítimas? Mas agora, quando pensava nisso, Lillie percebia que Michele compreendia muito bem o que era uma condenação à morte. De hospital em hospital durante toda a sua infância, forçara-se a enfrentá-la. A morte pairara muito baixo sobre a sua cabeça.
Lillie sentia o coração pesado. Não era justo ter de escolher. De um lado estava a sua filha assassinada e, do outro, o seu filho vivo e o filho de Royce. Quem tomar primeiro em consideração? Os vivos ou os mortos? E se ela mantivesse o segredo, todos mantivessem o segredo, tornar-se-ia um tormento permanente?
- Podes pensar mais um pouco sobre o assunto? - pediu Royce.
Lillie levantou-se sem forças.
- Não consigo que nada faça sentido - disse ela. , Royce acenou com a cabeça.
- Eu sei - anuiu. - Parece que seja qual for a escolha, não podemos ganhar, pois não?
De olhos nos olhos, fitaram-se intensamente.
- Sim?
- Daqui fala o coronel Preavette
- bom dia, coronel - disse, Jordan, surpreendido,
- Tem o jovem Ansley aí consigo ? - perguntou o coronel num tom impaciente e acusador.
- Comigo? - exclamou Jordan. - Claro que não.
- Esteve aqui ontem à noite à procura dele - afirmou o coronel.
- Sim, é verdade, e o senhor disse-me para voltar de manhã. Ía agora a sair para aí.
Do outro lado da linha fez-se um breve silêncio.
- Acabei de ser informado de que o Tyler Ansley não voltou para os seus alojamentos ontem à noite. Sabe do seu paradeiro, neste momento ?
- Raios me partam ! - explodiu Jordan, voltando rápidamente a si, e pedindo desculpa. - O senhor disse-lhe que eu ía aí para falar com ele, coronel?
- Não, não disse. Há vários dias que não vejo o Tyler.
«Onde diabo estará?», pensou Jordan. «Isto não é uma coincidência. Como é que ele soube que eu vinha?»
- Mister Hill! - disse o coronel.
- Vou já para aí - afir«nou Jordan. - Dê-me dez minutos.
Desligou, arranjou-se e saíu do motel em temp° recorde. A caminho da academia militar, a sua mente trabalnava inmterruptamente. A Sentinel parecia mais desleixada e menos severa à luz da manhã. Até no Sul, as escolas militares já não gozavam da prosperidade de antigamente. Jordan arrumou o carro e correu para o edifício da administração, mal reparando nos rapazes uniformizados qu«e passavam. «Talvez tenha sido o velho reverendo», pensou ele. Talvez tivesse informado o xerife da visita que ele e Lillie lhe tinham feito e o xerife tivesse telefonado ao filho a dizer que se escondesse até Jordan se ír embora. Só que Jordan não conseguia imaginar o reverendo a fazer uma coisa dessas. À partida, o velho não se queria ver envolvido no assunto. Por que razão telefonaria ao xerife quando podia calar-se? Não fazia sentido.
O coronel Preavette estava sentado à secretária a falar calmamente ao telefone quando Jordan chegou, quase sem fôlego, à sua porta. O coronel indicou-lhe que entrasse e se sentasse. Jordan deixou-se cair na cadeira das visitas e reflectiu os dedos impacientemente enquanto o coronel conversava tranquilamente sobre o Dia dos Aliunos com a outra pessoa. - Finalmente desligou e olhou para Jordan.
- Então? - disse Jordan.
- Aparentemente ele abandonou a escola - disse o coronel, não deixando transparecer qualquer vestígio da urgência do seu primeiro telefonema.
Jordan abafou um comemtário.
- Há quanto tempo não sabem dele?
- Segundo informações do seu companheiro de quarto, não regressou do refeitório ontem à noite. O companheiro partiu do princípio de que o Tyler teria um passe especial. Diz que o Tyler ficou muito perturbado com o telefon«ma que recebeu ontem à tarde. Como mantém que o rapaz não está consigo...
-Não está comigo - insistiu Jordan, zangado. - Quero falar com o companheiro.
- Não vejo necessidade disso - disse o coronel em voz baixa. - É perfeitamente possível que o jovem Ansley tenha passado a noite na cidade com alguma rapariga. Não seria inédito. Não há motivos para alarme.
- Como se chama o companheiro de quarto? - perguntou Jordan. - Onde posso encontrá-lo?
- Olhe, Mister Hill. Isto é um assunto disciplinar que apenas envolve a escola e a família do rapaz. Lamento que o tenha envolvido a si. Não lhe teria telefonado se não tivesse pensado que a ausência não autorizada do jovem Ansley pudesse estar relacionada com a sua visita de ontem à noite.
Os olhos do coronel estavam tão frios e cinzentos como ostras.
- Agora tenho de falar com esse rapaz e descobrir quem é que telefonou ao Tyler e o que é que o companheiro sabe sobre o assunto.
- Não lhe posso permitir que incomode os meus alunos, sir - disse o coronel. - Fui claro? Estamos todos preocupados com o paradeiro do rapaz.
Jordan considerou o coronel e percebeu que tinha de escolher bem as palavras. Não era o tipo de pessoa que reagisse bem a ameaças ou raiva. Era um homem que seguia as regras e acreditava no respeito pela autoridade e pela lei. Apesar da sua dureza, Jordan teve a sensação de que era um homem que assumia as suas responsabilidades. Estava preocupado com Tyler apesar de parecer muito brando em relação ao caso. Que outro motivo o levaria ao gabinete numa manhã de domingo? Por um lado, a Jordan apetecia-lhe brandir o punho ao velho oficial, mas sabia que não seria a melhor abordagem.
- Coronel - disse ele. - Compreendo perfeitamente a sua posição e não tenho a menor intenção de assediar o seu pupilo. Porém, preciso desesperadamente de encontrar o Tyler Ansley. Se o outro rapaz me puder dar uma pista... Coronel, posso confidenciar-lhe uma coisa?
Lá estava novamente. O brilho curioso no olhar do coronel. «Há realmente algo de muito humano por baixo desta crosta militar», pensou Jordan.
- Isso Fpoderia mostrar-se úti- disse o coronel.
- a minha filha, a minha única filha - proferiu Jordan, - foi recentemente assassinada. - Deixou aquelas palavras chocantes pairar no ar por alguns instantes para que surtissem efeito. O coronel estremeceu perante aquela ousada revelação. Jordan fez um gesto com a cabeça na direcção da fotografia que o coronel tinha sobre a secretária. - Vejo que tem família, sir. Creio que consegue compreender o quanto isto me abalou.
O coronel Preavette assentiu com a cabeça. - Lamento imenso - disse ele tristemente.
- Tenho motivos para crer - prosseguiu Jordan com cuidado - que o Tyler Ansley pode ter informações sobre o crime. E vitaque fale com ele.
- Isso parece ser um assunto para a Polícia - disse o coronel.
- Concordo consigo - anuiu Jordan. - E a minha... mulher e eu já apelámos repetidamente ao xerife. Contudo, como sabe, o xerife é o pai do Tyler.
- Compreendo. - A expressão controlada do rosto do coronel não mudou, mas Jordan pareceu ver os maxilares a ficarem tensos. O coronel pegou no maço de Camel que estava em cima da secretária e tirou um cigarro. Acendeu-o, pensando no que Jordan dissera. Depois suspirou. - Mister Hill, há anos que conheço o Royce Ansley. Serviu sob o meu comando na Coreia.
Jordan sentiu a esperança a esvair-se.
- Quando ele trouxe o Tyler para cá, eu aceitei-o contrariado, devido a uma antiga amizade. Percebi que o rapaz tinha problemas e conseguia sentir a tensão que havia entre eles. No entanto, tenho muita fé no programa que levamos a cabo aqui. Conseguimos ajudar um rapaz se ele se esforçar. - O coronel aspirou longamente o fumo do cigarro e olhou pensativamente para o retrato que tinha sobre a secretária. - Às vezes, quando um rapaz tem um pai como o Royce Ansley, que representa alguma coisa... a lei e é muito severo... Bom! É muito fácil envergonhar um pai assim.
Jordan assentiu com a cabeça, mas não falou, pensando onde a conversa iria chegar. O coronel levou mais uma vez o cigarro à boca e depois apagou-o cuidadosamente no cinzeiro limpo.
- Muito bem - disse ele. Vou permitir que fale com o rapaz, mas irei consigo para ter a certeza de que não irá abusar desse privilégio.
- Obrigado, sir.
Caminharam em silêncio através dos terrenos da escola até à porta do Edifício Jackson, o dormitório onde Tyler Ansley vivia. O cadete que estava na recepção fez continência ao coronel que devolveu a saudação e lhe acenou com a cabeça.
Um casal de meia-idade, com os seus melhores fatos de domingo, emergiram da escadaria e entraram no salão, acompanhados pelo filho que caminhava muito empertigado entre eles. A mãe limpava os olhos com um lenço. O filho saudou o coronel Preavette e o pai ficou radiante.
- No topo desta escadaria – disse o Coronel.
Os seus passos ecoavam na escadaria de ferro enquanto subiam até ao terceiro andar. Jordan reparou que o coronel subia facilmente as escadas, apesar do tabaco . O soalho de linóleo do dormitório não tinha alcatifa, e sua presença pareceu causar alguma perturbação no corredor. O coronel bateu à porta de um dos quartos e chamou.
- Cadete Fredericks, é o corone1 Preavette. Abra.
A porta foi mediatamente aberta por um rapaz com o cabelo quase rapado e olhar ansioso.
- Sim, sir.
- Cadete Fredericks, este é Mister Jordan Hill. O coronel pronunciou o nome de Jordan à maneira sulista. – Mister Hill, Fredericks.
Jordan apertou a mão húmida do rapaz.
- Mister Hill quer fazer-lhe algumas perguntas sobre o Tyler Ansley e quero que coopere integralmente e lhe conte tudo o que ele necessita saber.
- Sim, sir.
Jordan entrou no austero quarto e deu passagem ao coronel. O coronel abanou a cabeça.
- Vou fazer uma inspecção surpresa às instalações.
Olhou significativamente para Jordan. - Virei buscá-lo daqui a alguns minutos.
- Obrigado, coronel. - Jordan virou a atenção para o cadete que estava em sentido no corredor. - Está tudo bem! Ponha-se à vontade - disse. - Porque é que não se senta?
O rapaz sentou-se, agradecido, à beira da cama e ficou a olhar para ele. O lado do quarto que pertencia a Fredericks estava limpo e arrumado. O lado de Tyler, uma confusão total. Havia papéis empilhados na sua secretária e roupas a sair pela porta do armário. Jordan dirigiu-se à cadeira da secretária de Tyler e sentou-se de frente para o rapaz.
- O coronel disse-me que o Tyler não voltou ontem à noite - disse ele.
- Não. É verdade.
- Não ficou surpreendido quando não o viu aparecer? O rapaz encolheu os ombros.
- Pensei que tivesse um passe especial.
- Ouviu falar num telefonema? - perguntou Jordan. - É da Polícia? - indagou o rapaz. -Não - disse Jordan. - Sou um... amigo da família. Ele estava preocupado com a Polícia? - Acho que o pai é xerife.
- É verdade. E que me pode dizer sobre o telefonema? - Ele recebeu uma mensagem urgente para telefonar para ; alguém. Não sei quem era. Depois de voltarmos do campo de exercícios. Pensei tratar-se de uma emergência familiar que o obrigasse a ir a casa.
- Ele não lhe disse quem telefonou?
- Na realidade, ele não me disse nada - acrescentou Fredericks. - Não falávamos muito. Por mim, tudo bem.
- Não gosta dele - disse Jordan.
O rapaz encolheu os ombros e olhou fixamente para Jordan, tentando perceber se aquele fulano seria capaz de saltar em defesa de Tyler.
- Ele é estranho.
- O que quer dizer com «estranho»?
- Não sei. Estranho - repetiu o rapaz, evitando o olhar de Jordan.
«Ele sabe», pensou Jordan. «Só que não diz.»
- Então ele nunca lhe disse quem lhe telefonou, porquê ou para onde ia?
O rapaz abanou a cabeça. :-A mim, não.
- Sabe de alguém a quem ele pudesse ter feito essa confidência? - perguntou Jordan. - Talvez tivesse uma namorada na cidade? Já tinha passado alguma vez a noite fora?
Fredericks riu-se.
- Qual é a graça? - perguntou Jordan.
- Nenhuma - disse o rapaz. - Ele quase não falava. A maior parte dos outros colegas afastava-se dele. Veja na secretária - sugeriu Fredericks. - Talvez a mensagem ainda lá esteja. Sobre quem lhe telefonou.
- Uma mensagem escrita? - perguntou Jordan esperançoso, remexendo e levantando papéis.
- Sim - disse Fredericks. - São-nos entregues na recepção quando entramos.
Jordan passou rapidamente revista aos papéis que consistiam em apontamentos de aula amachucados, a ementa de um de um restaurante de churrasco local e gatafunhos vários. Jordan sentiu vontade de se sentar e ler cuidadosamente cada uma das páginas, tentando encontrar alguma pista sobre Tyler e Michele, mas sabia que tinha pouco tempo. O coronel voltaria dentro de alguns minutos. Não havia recados telefónicos sobre a secretária. Abriu os livros empilhados ao acaso, mas não descobriu qualquer papel.
Abrindo a gaveta da secretária, virou-se para Fredericks.
- Alguma vez lhe falou de uma rapariga chamada Michele? - perguntou.
- Uma rapariga? - inquiriu o cadete. Sorriu e abanou a cabeça.
Jordan olhou para dentro da gaveta e começou a esvaziá-la.
- As raparigas não lhe interessavam assim tanto - disse Fredericks, matreiro.
Quase no mesmo instante, Jordan agarrou num envelope aberto. Caiu uma fotografia que pousou no fundo da gaveta. A fotografia estava gasta nas pontas como se tivesse sido examinada muitas vezes. Era a fotografia de um rapaz com o cabelo louro puxado para trás, olhos brilhantes e conhecedores e os lábios a formar um sorriso.
Jordan tirou a fotografia e ficou a olhar para ela. Grayson. Olhou para Fredericks, que rolou os olhos e encolheu novamente os ombros.
- Há outra igual colada no interior do cacifo - disse ele. Jordan continuou a olhar para a fotografia. O que o rapaz estava a dizer era suficientemente claro, mas não fazia qualquer sentido.
Fredericks viu a confusão que ia na expressão de Jordan.
- Ele punha essa fotografia dentro dos livros e fingia estar a ler. Quando eu olhava para cima via-o passar o dedo sobre
ela com um ar embevecido. Assustava-me viver no mesmo quarto, sabendo que ele era assim. Tinha medo que começasse a meter-se comigo. Jordan estava pasmado. Tyler e Grayson. Claro que era possível, mas Michele não entrava nesse esquema. Não fazia sentido. Mesmo assim, sabia que aquele rapaz não tinha qualquer motivo para mentir. Motivo nenhum. Jordan olhou mais uma vez para a fotografia e depois meteu-a no bolso. Levantou-se com as pernas a tremer.
- Ele está em apuros? - indagou Fredericks. Jordan ignorou a pergunta.
- Não faz ideia para onde ele possa ter ido?
- Acho que, se descobriu que estava em apuros, deve es-
tar o mais longe possível daqui.
- Sim! É provável - assentiu Jordan distraidamente.
- Eu não quis chocá-lo - disse Fredericks amigavelmente. - Nunca seria de suspeitar. Parece tão másculo e rude!
Jordan olhou para o rapaz.
- A recepção mantém algum registo das mensagens? Um diário?
Fredericks encolheu os ombros. - Não sei. Pode perguntar. Jordan anuiu.
- Quando o coronel regressar, por favor, diga-lhe que fui até ao salão.
- Assim farei - prometeu Fredericks. Jordan voltou-se novamente para o rapaz.
- Obrigado pela sua ajuda.
- Não tem de quê! Espero que o encontre. Só não o traga de volta para aqui.
Jordan olhou para os dois lados do corredor, mas o coronel não estava à vista. Desceu as escadas de ferro até ao salão e dirigiu-se ao cadete que estava de serviço. Este, reconhecendo-o como o convidado do coronel, sorriu-lhe.
Jordan teve alguma dificuldade em retribuir-lhe o sorriso.
- Gostaria de saber se me poderá ajudar - perguntou.
- Se puder - disse o cadete alegremente.
- Vocês mantêm um registo escrito das mensagens telefónicas que chegam para os cadetes que vivem aqui?
O rapaz olhou para ele com cautela, mas ainda ansioso por ajudar o convidado do coronel.
- Sim. Porquê?
- Preciso de saber quem telefonou ontem a um dos vossos cadetes. O coronel sugeriu que lhe perguntasse a si. Não gostava de utilizar o nome do coronel depois de o homem o tentar ajudar, mas não era momento para esse tipo de escrúpulos.
O rapaz olhou para ele na expectativa.
- Ontem. Foi deixada uma mensagem para um dos vossos residentes, o Tyler Ansley, para que telefonasse a alguém. Pode dizer-me quem foi?
O rapaz agarrou no livro de registos e começou à procura. Jordan olhou para trás para ter a certeza de que o coronel ainda não entrara no salão. Depois inclinou a cabeça para tentar ler o livro enquanto o rapaz o examinava.
- Não encontro - disse o rapaz.
- Deve ter sido ao fim da tarde, princípio da noite - informou Jordan ansiosamente. - Começou a ouvir passos determinados nas escadas. - Já encontrou? - O suor escorria-lhe pela testa.
- Aqui está! - exultou o cadete. - Telefonar a Mister Burdette. Diz para telefonar para o escritório de Mister Burdette. Não para casa. E o número é este. - O rapaz olhou para Jordan. - Quer apontar o número? - perguntou.
-Mister Hill! O que está a fazer com esse livro de registos?
O coronel entrara no salão e encaminhava-se com largas passadas para a secretária.
O cadete olhou confuso para os dois.
- Precisa do número? - perguntou, preocupado, fechando o livro.
- Não - replicou Jordan, afastando-se da secretária. Não é necessário.
Tendo-se distendido e exercitado ao longo de cinquenta minutos, acompanhando um vídeo de aeróbica, Brenda estava a recompensar-se com um iogurte enquanto ouvia uma cassete de Crystal Gayle no seu walkman. Sentada à mesa da cozinha, trauteava em voz alta a música que estava a ouvir, quando olhou para cima e viu um homem encostado às portas de vidro a espreitar lá para dentro. Espalhou iogurte por todos os lados quando saltou devido ao susto e depois ficou mais tranquila ao reconhecer o visitante.
Dirigiu-se às portas e abriu-as furiosamente.
- Jordan Hill, nunca ouviste falar em campainha? Pregaste-me um susto de morte.
- Eu tentei - disse ele. - Tu não abriste, mas eu vi o teu carro.
- bom! Já que aqui estás, entra! - ordenou, irritada. - O que estás aqui a fazer?
- À procura da Lillie - disse ele. - Não estava ninguém em casa dela e por isso pensei em tentar a tua. Viste-a?
- Ah, percebo - proferiu Brenda. - Tem andado fora e dentro. Não me perguntes onde é que ela foi. Afinal o que se passa com vocês? Vão voltar a casar-se? Ela não me diz nada.
- Olha, Brenda, tenho de falar com ela imediatamente.
- Lamento, mas não sei onde é que está agora. Levantou-se muito cedo e saiu...
- Passou aqui a noite? - perguntou Jordan.
- Não te finjas tão inocente - disse Brenda. – Claro que passou. Ela e o Pink tiveram uma discussão enorme. Suponho que tenha sido por tua causa.
Pressionou-lhe o esterno com uma longa unha pintada de cor de orquídea.
- Não! Tenho a certeza de que não foi - balbuciou ele. «Então», disse para si próprio, «a Lillie deve ter descoberto que o Pink telefonou ao Tyler. Só há essa possibilidade. Por que outro motivo teriam tão grande discussão? Que raio se está a passar?», perguntou a si próprio pela centésima vez desde que abandonara a Academia Militar Sentinel.
- Quando é que voltaste? - perguntou Brenda, curiosa.- Não posso falar, Brenda - disse ele. - Fazes alguma ideia...
- Ninguém me conta nada - queixou-se Brenda. E não! Não faço! Voltou há algum tempo e andava de um lado para o outro como um leão enjaulado e depois disse que tinha de ir não sei aonde e estar sozinha para pensar. É tudo o que sei.
- Ela disse para onde ia?
- Não, mas está num estado lastimoso. Isso sei. Jordan franziu o sobrolho como se estivesse a concentrar-se. - Obrigado.
- Não tens de quê. Ouve, Jordan. Não te metas nisto se é só para lhe provocar mais dor. Não precisa de mais.
- Obrigado, Brenda - disse ele. - Não me esquecerei.
Desde que chegara ao lago Crystal e caminhara até ao fim do pontão, Lillie avistara a família que estava acampada na clareira a cerca de seiscentos metros. Tinha ido para lá, como tantas vezes no passado, para tentar pensar na situação, mas, desde o momento em que se sentara, nada mais existira para ela do que os campistas da clareira. A sua mente recusava-se a concentrar-se em fosse o que fosse, menos no grupo que se encontrava reunido à beira do lago à volta de uma fogueira.
Já era tarde para acampar. A maioria das pessoas já desistira há meses. Aquela família parecia ignorar a crueza do dia. Tinham a sua fogueira, e pai e filho haviam passado uma boa Parte da tarde a pescar, enquanto a mãe, que usava um colete e uma camisola de lã grossa, fazia tricô numa cadeira desdobrável e tomava conta dos dois gémeos que estavam a interpretar uma cena imaginária na clareira. Agora encontravam-se todos juntos à volta da fogueira, cozinhando o peixe, e as suas vozes pareciam campainhas no ar. O cheiro da comida fez com que o estômago vazio de Lillie se queixasse, sentindo que o fumo da fogueira lhe fazia arder os olhos, se bem que estivesse demasiado longe para chegar até ela. Porém, as lágrimas formavam-se nos seus olhos enquanto os olhava. Não havia dúvida disso. Observá-los era como olhar para as pessoas num sonho. Distinguiam-se as palavras e os seus gestos causavam-lhe desânimo, embora o que estavam a fazer não fosse estranho ou triste. Sentiu-se exausta pelo cansaço daquele dia e as pálpebras começaram a fechar-se.
«Não», pensou ela, abanando a cabeça. «Tenho de pensar. Há decisões a tomar.» Mas era escusado. Sentia-se fraca e permaneceu deitada de costas no pontão com o sol já fraco, mas ainda quente, a bater-lhe no rosto. A sonolência invadiu-a e instantes depois estava a dormir. O sono era leve; o desconforto das tábuas por baixo do corpo e o ar que ficava gradualmente mais frio contribuíam para sonhos terríveis e repetitivos. Sonhou que os campistas se iam embora, juntavam as coisas e partiam. A fogueira fora apagada e apenas se viam pequenos rolos de fumo que se escapavam das cinzas molhadas. Estavam a meter-se no carro e o motor a trabalhar, se bem que um dos gémeos não estivesse à vista e Lillie quisesse gritar para avisar a mãe, que parecia esquecida do facto. No sonho Lillie não conseguia perceber por que razão tinham decidido partir subitamente quando pareciam estar tão confortáveis ali. Dirigiu-se ao sítio onde haviam estado acampados e viu, alarmada, que tinham deixado para trás muitos dos seus bens, se bem que não houvesse motivo para a variedade de objectos pessoais e domésticos que encontrara no local.
Lillie mudou desconfortavelmente de posição enquanto as] águas do lago Crystal batiam por baixo dela, embalando-a com uma tranquilidade enganadora. Quando o pontão começou a vibrar por baixo do seu corpo, não acordou, incorporando o movimento, os passos pesados que se aproximavam, no seu sonho. Agora estava sozinha e agarrada a um tronco dentro do lago turbulento. Começava a trovejar. «Foi por isso que se foram embora», pensou ela no sonho. «Sabiam que vinha aí uma tempestade.»
Uma mão agarrou-lhe o ombro e ela acordou assustada, soltando um grito. Sentou-se e olhou para os olhos sombrios de Jordan Hill.
- Jordan - gritou. - Meu Deus! Assustaste-me!
Jordan agachou-se no pontão ao lado de Lillie e ela prontamente passou as mãos pela roupa para ver se estava tudo abotoado e alisou o cabelo. Olhou automaticamente para o outro lado do lago. A família de campistas ainda lá estava sentada à volta da fogueira.
- Quando é que voltaste? - perguntou ela, levantando-se
desajeitadamente. - Como é que me encontraste? O coração acelerou. Não estava pronta. Ainda não tinha descoberto uma maneira de lhe contar. Na verdade, quase se esquecera dele e do perigo que representava. Jordan também se levantou.
- Passei por casa da Brenda e ela disse-me que tinhas saí** do para pensar, para estar sozinha. Fiquei logo a saber onde devia procurar-te.
- Oh - disse Lillie. Apesar da noção de perigo e desorientação, algo nela se sensibilizara com o facto de se lembrar do local onde ela gostava de se esconder. - Que horas são? - perguntou, olhando para o relógio. - Tenho de me ir embora. Jordan colocou-lhe os dedos na cintura e impediu-a. Não havia espaço à volta dele no estreito pontão. Ela olhou para a água com o pânico a subir-lhe à garganta. - Não interessa que horas são - disse ele. - Temos de conversar. O que se passa, Lillie? - Reparou subitamente na nódoa negra que ela tinha no rosto e fez uma careta. O Pink fez isso - exclamou. Não era uma pergunta. a - Porque é que toda a gente pensa isso? – perguntou Lillie na defensiva.
Jordan levantou a mão e afastou-lhe gentilmente o cabelo do feio hematoma, como se uma nuvem de cabelo o pudesse irritar ou causar-lhe desconforto. Lillie vacilou com o toque quente, mas submeteu-se sem protestos aos seus cuidados, permitindo-lhe que lhe tocasse como se fosse um objecto frágil, mesmo que interiormente estivesse a proteger-se dele, das suas perguntas.
- Encontraste o Tyler? - perguntou.
- Não. O Tyler já tinha fugido quando eu cheguei. Suspeito que esteja a caminho de Nova Iorque ou até do Canadá.
Lillie fingiu surpresa, como se aquilo constituísse uma novidade. De facto, ainda estava em casa de Royce quando chegara o telefonema da Academia Militar Sentinel a participar o desaparecimento de Tyler.
- Então nem o chegaste a ver - disse ela cuidadosamente.
- Não - declarou ele.
Ela tentou não trair o alívio que sentiu. Ele ainda não sabia nada. Agora já seria possível sugerir que Jordan estava enganado. Que devia regressar a Nova Iorque, pois ela mantê-lo-ia informado. Lembrou-se de como se sentira grata quando aparecera para a ajudar. Agora só desejava que nunca se tivesse envolvido no caso.
- Isso é uma coincidência estranha.
- Não é bem assim - disse ele. - O Pink avisou-o a tempo.
- O Pink! - protestou, mas quando os seus olhos se encontraram ele estava a perceber tudo. Lillie afastou o olhar, sentindo o rosto quente, daquela vez de vergonha e medo. Ele sabia.
- Lillie, não tentes mentir-me. Não consegues. Tu já sabias. Foi esse o motivo disto, não foi? - perguntou ele, fazendo um sinal com a cabeça para a nódoa negra.
Lillie olhou teimosamente para o lago.
- Não sabes o que estás a dizer.
- Fiz-te uma pergunta. Por que razão o Pink está a proteger o assassino da nossa filha?
- Nossa filha? - retorquiu Lillie. - De repente ficaste muito possessivo. Não me lembro de estares por perto quando ela precisou de ti.
- Não te incomodes - disse Jordan. - Essa história da culpa não me vai afastar. Deixa-me que te diga uma coisa. Neste momento estou convencido de que tinhas razão sobre o Tyler. Não sei como é que o Pink está envolvido em tudo isto. Podes dizer-me ou não, mas se pensas que as coisas acabam aqui, só porque o Tyler fugiu, estás completamente enganada. Vou direito à cabeça do Royce Ansley. Apanhá-lo-ei nem que seja no fim do mundo.
Ela afastou o olhar com o coração pesado.
- Invejo-te - disse. - É tão simples para ti. Deve ser uma sensação maravilhosa.
Jordan olhou para ela, exasperado.
- Lillie, sei que queres que eu desapareça, mas estou me"tido nisto, quer queiras quer não. E, quer acredites ou não, tenciono ajudar-te.
- Ajudar-me!
Soltou um riso amargo.
- Ontem estavas feliz por teres a minha ajuda - lembrou ele.
Lillie virou-se e olhou-o. «Sim», pensou. «E hoje tens-me encurralada. Se não te contar, vais para os jornais ou para a justiça e tudo se saberá. E se eu te disser...»
- Não te pedi que viesses - protestou com uma voz fraca.
- Meu Deus! Agora estás a protegê-lo? O que se passa? O Royce Ansley tem alguma coisa que incrimine o Pink? Desde quando é que o filho dele pode escapar a uma acusação de homicídio? Não achas que devia ser castigado? Já te esqueceste do que aconteceu à Michele?
- Não. Claro que não - disse ela rapidamente.
- Porque é que preciso de dizer-te estas coisas? - perguntou Jordan.
Ela suspirou e abanou a cabeça, olhando para as mãos.
- Não precisas.
- Então o que é? O que é? - suplicou ele. - Por favor confia em mim.
Ela estudou-lhe o rosto que se mostrava quase inocente de preocupação. Jordan estava a ver tudo a preto e branco enquanto o mundo dela se tornara cinzento. Não tinha alternativa senão dizer-lhe. Arrastara-o para dentro do problema e agora ele continuaria em frente, quer ela quisesse ou não. Tudo o que podia fazer era pedir-lhe clemência. Olhou-o nos olhos, rodeados agora de rugas de preocupação e passagem dos anos e lembrou-se do quanto já acreditara profundamente nele. Era jovem e pensara que quando se ama alguém... e ele amava-a... se podia confiar nesse alguém. Já tinham passado tantos anos e ainda estava a aprender, da maneira mais dolorosa, que pensar assim era uma idiotice. Sabia que lhe contaria, mas não porque confiasse nele. Porque não tinha alternativa.
Jordan ficou a olhá-la pacientemente e esperou.
Finalmente ela falou.
- Tens razão - disse. - O Tyler matou-a.
Apesar da sua certeza, Jordan vacilou ao ouvir aquelas palavras. Assimilou-as durante uns instantes, abanando a cabeça. Depois voltou a olhar para Lillie.
- Estás a tremer - observou. - Sentemo-nos. - Ela fez o que ele pediu, instalando-se obedientemente a seu lado. Como é que descobriste? - perguntou. - O que é que o Pink tem a ver com tudo isto?
Lillie respirou fundo. Mal suportava ter de proferir aquelas palavras. Era como admitir uma falha terrível, uma culpa sua.
- O Grayson estava presente.
- O Grayson! - gritou. Ficou muito pálido e ela conseguia perceber que tentava controlar-se. Apertou as mãos contra o pontão como se fossem um torno. - Não acredito. Meu Deus... é por isso que...
- Não. Ouve! - interrompeu ela. - Deixa-me contar. Apressou-se a explicar tudo o que sabia sobre o assassínio
e a conspiração entre pais e filhos, a discussão com Pink e o confronto com Royce.
Jordan ouviu com os músculos do rosto crispados de ira, mas não a interrompeu. Quando terminou, ele abanou a cabeça como se quisesse afastar as palavras. Finalmente disse, de dentes cerrados:
- Como é que ele pôde deixá-la ali? A sua própria irmã? Lillie corou como se a atitude do filho fosse responsabili'
dade sua, mas saltou em sua defesa.
- Já te = disse afirmou ela. - Tinham estado a beber é
ela tirou a b»lusa. Ele pensou estar a defender a sua honra...
- O quê? Deixando-a com o rosto metido na lama? Vá lá, Lillie. De qualquer modo, a Mlchele não faria isso.
- Mas Fez. Ele contou-me! - gritou Lillie. - O Gray deve ter entrado em pânico.
- Tretas, ele está a mentir - disse Jordan. - Para não ficar mal.
- Ele mão mentiria sobre isso - protestou Lillie, furiosa. - Mentiu sobre tudo - gritou Jordan.
- Não» te atrevas a dizer isso sobre o meu filho - exclamou Lillie. Não te atrevas. Cometeu um erro terrível que o perseguirá para o resto da vida. Devia tê-la salvo. Nunca a devia ter abandonado. Pensas que não sei isso? Pensas que ele não sabe?
- Espero que sim - gritou Jordan. - Espero que não o deixe dorm «ir à noite.
- E o Tyler? E ele? Foi ele que a matou. Porque estás a atacar o Grayson?
Tremia de raiva.
Jordan tentou controlar-se. Sabia que era de Tyler que devia ter raiva, mas a ideia de Grayson abandonar Michele no preciso momento em que mais precisava dele parecia um ferro em brasa nas suas entranhas. Quando não podia chamar pelo pai, qualquer dos dois, para a ajudarem. Só de pensar que ele tinha feito aquilo e escondido o facto da mãe, deixando-a a pensar e a sofrer... «Não piores as coisas para ela», pensou. «Não lhe recordes tudo isso.» Controlou a sua fúria e tentou concentrar-se em Lillie.
- Desculpa - disse. Não conseguia tirar a amargura da voz. - A tua vida tem sido um inferno.
- Ainda continua.
Jordan olhou para ela e sentiu dor pela fragilidade da sua aparência. Perguntou a si próprio até que ponto ela poderia aguentar. Já era horrível perder uma filha. Agora tinha de lidar com a notícia de que o seu próprio filho estava metido nisso, que o marido e o filho lhe tinham mentido continuamente. Ele conhecia-a suficientemente bem para saber que, de uma maneira ou de outra, ela acabaria por se culpar a si própria. A sua raiva quase parecia comodismo quando considerava a situação dela. Lillie queria vingar a morte da filha. Que mãe não o desejaria? Mas trazer Tyler perante a justiça significava expor Pink e Grayson ao desprezo público e provavelmente até à cadeia. Significava a destruição do que lhe restava na vida. Por muito que tentasse, não conseguia colocar-se na pele de Lillie. Na sua opinião, o inferno era bom de mais para todos os que estavam implicados no homicídio de sua filha e nas miseráveis mentiras. Mas conseguia ver nos olhos de Lillie que isso estava a destruí-la. Quis aproximar-se e abraçá-la, protegê-la, mas em vez disso indagou calmamente:
- O que vais fazer agora?
Lillie olhou para ele, surpreendida.
- Que queres dizer? - perguntou. - Parece-me que é melhor dizer: «O que é que tu vais fazer.» Não é? A questão é essa. Eu ia pedir-te algum tempo.
- Vou respeitar os teus desejos - prometeu ele. Lillie olhou-o, incrédula.
- Porquê? - perguntou. - Por que razão deixas as coisas ao meu critério?
Jordan suspirou.
- Não te vou mentir, Lillie. Gostaria de mandar caçar o Tyler, fechá-lo numa prisão e deitar fora a chave. E se ele morresse lá, duvido que perdesse um minuto de sono. Só por ser filho do xerife não quer dizer que mereça tratamento especial. Se isso fosse verdade, haveria toda uma nova classe de criminosos: os filhos dos representantes da lei. Não. Talvez esteja a ser frio, mas é isso que sinto. Ele matou a minha filha. Quero vê-lo castigado. É só isso que me interessa.
Lillie ouviu-o sem protestar, com o rosto tenso e pálido.
-- Mas - continuou ele - também sei que se o Tyler for a tribunal, com ele irão o Pink e o Grayson. Toda esta confusão será do conhecimento público e eles próprios iriam para a cadeia. Encobriram um crime. Nem que seja por esse facto. Além disso, estaria a mentir-te se te dissesse que me preocupo com eles. Na minha opinião, seria bem feito.
A parte racional de Lillie ouvia e sabia que ele não estava a ser injusto, mas o seu coração não o suportava e odiava-o pelo que estava a dizer, fazendo-a sentir-se culpada.
Jordan agarrou-lhe a mão e segurou-a com força.
- Lillie - disse -, se fosse eu a decidir, dir-te-ia que lhes virasses as costas. Não te merecem. Vem para casa comigo. Não que eu te mereça.
Olhou corajosamente para ela, feliz de o ter conseguido dizer. Lillie fixou-o com choque e tristeza no olhar.
- Mas realmente não sou eu que tenho de decidir acrescentou. - A família é tua. Só tu podes decidir. Acatarei a tua decisão.
Durante um minuto fez-se silêncio, e ele esperou o que não podia esperar. Depois, os olhos de Lillie encheram-se de lágrimas e disse exactamente o que ele temia que dissesse.
- Obrigada, Jordan. Nunca te poderei agradecer. Deu-lhe uma palmadinha desajeitada na mão e largou-a.
Lillie abanou a mão como se a circulação tivesse estancado com a força de Jordan.
- Isto tem sido um perfeito pesadelo - observou ela, limpando as lágrimas. - Creias ou não, parte de mim quer fazer exactamente o que tu disseste. Assegurar-me de que Tyler é apanhado e castigado e para o diabo com as consequências. Acredita que a minha raiva é muito profunda. Às vezes, quando penso nas mentiras, nos segredos que o Pink e o Grayson... mal consigo respirar.
«Mas depois penso que esta é a minha família. É tudo o que tenho no mundo: o meu marido e o meu filho. Há muito tempo que são a única coisa que me importa. Eles. E a Michele. Sei que isto pode parecer egoísta, mas são a minha vida. Tenho milhões de recordações de cada um. Parece ter sido ontem que o Grayson começou a caminhar com o Pink atrás a impeli-lo para continuar. Penso nisso e penso em todas as desilusões que por vezes lhes causei. Estava tão preocupada com a doença da Michele! Sei que não lhes dei a atenção necessária. Depois comecei o negócio com a Brenda, mesmo sem a aprovação do Pink E eu sabia, mas continuei. Não estive lá para os apoiar como devia e continuo a pensar que, se não me confiaram a verdade, talvez tivessem boas razões. Talvez merecessem mais do que aquilo que obtiveram de mim. Talvez deva ser eu a pedir mais uma oportunidade.
«Duvido», pensou Jordan, zangado. Mas guardou a ira para si.
- Este tipo de segredo será um peso terrível - declarou por fim.
Lillie assentiu com a cabeça.
- Eu sei - concordou. - E não é justo que também tenhas de viver com ele por nossa causa. Eu sei, Jordan. Não pediria isso a ninguém. Não sabes como te estou grata.
- Estarei em Nova Iorque - disse ele. - Não terei de olhar para eles todos os dias, como tu, e lembrar-me.
As palavras saíram-lhe tão frias como as sentia no coração. Lillie não protestou.
- Nunca esquecerei isto, Jordan.
- Não faz mal - proferiu ele, tão casualmente quanto podia. - Eu estava a dever-te alguma coisa.
Ficaram sentados em silêncio e depois Jordan disse:
- Vou contar-te uma coisa estranha que soube sobre o Tyler na Academia Militar Sentinel.
- O que é? - perguntou Lillie.
- bom! A nossa filha pode ter estado lá naquela noite para se aproximar do Tyler - proferiu ele, e Lillie não vacilou ao ouvir as palavras «nossa filha». - Mas... o Tyler estava lá por causa do Grayson.
- O que queres dizer? - perguntou Lillie.
Jordan andou à procura no bolso do casaco e tirou a fotografia que encontrara na secretária de Tyler.
- Parece que o Tyler tinha uma paixão louca pelo Grayson. A fotografia dele estava colada no cacifo e encontrei esta na secretária. - Entregou-lha. - O colega de quarto disse-me que ele costumava entrar em devaneio com esta.
Lillie olhou com espanto para a fotografia gasta.
- Meu Deus. Acho que o Grayson não deve fazer a menor ideia.
Jordan acenou com a cabeça, mas ele próprio não tinha a certeza. Duvidava que Grayson não tivesse visto muitos dos sinais, mas não ia dizer isso a Lillie. A sua antipatia pelo rapaz roçava agora as raias do ódio, mas não podia esperar que Lillie visse as coisas à sua maneira. Era mãe dele.
Jordan não conseguia parar de pensar em Michele. Não acreditava nem por um segundo que Grayson tivesse tentado ajudar Michele ou vestir-lhe a blusa. Fugira como um cobarde e deixara-a ali. Ponto final. Mas Lillie acreditava na história porque precisava. Se tentasse que visse Grayson como o pequeno malandro egoísta que era, ela odiá-lo-ia.
Lillie estremeceu e reparou pela primeira vez que mal havia luz no céu.
- bom - disse ela -, acho que é melhor ir para casa.
Jordan abominou o som daquelas palavras, mas apenas assentiu com a cabeça. Levantou-se e ofereceu-lhe a mão. Ela aceitou-a e levantou-se.
- O que vais fazer? - perguntou.
- Ver a minha mãe - disse ele. - Depois regresso a Nova Iorque. Talvez consiga um voo de Nashville esta noite. Tenho gravações amanhã de manhã.
Lillie baixou a cabeça. Estava a tremer - de frio, suspeitava ele - e ia envolvê-la com o braço, mas parou. Não valia a pena fingir que ela ainda precisava dele. Depois daquele dia, os laços entre eles seriam cortados. A partir daquele momento, seria apenas a pessoa que a faria recordar uma coisa que ela tentaria tirar da cabeça e remeter para o passado.
- Acompanho-te ao teu carro - disse ele.
- Jordan - chamou ela. Depois apertou os lábios e afastou o olhar para o lago. - Não me odeies por causa disto.
- Nunca - prometeu ele. - Não te odeies tu a ti própria. Anda. Vamos embora.
O estômago de Lillie acusava grande nervosismo quando curvou para a entrada da garagem. Ficou sentada no carro, tentando recompor-se, e olhou para a casa. Não gostara muito dela quando a tinham comprado, mas estava muito mais preocupada com a doença de Michele e Pink insistira que era um bom negócio. Assim, concordara sem qualquer deliberação. Não tinha tempo para ir à procura da casa dos seus sonhos. Limitara-se a aceitar. Porém, ao longo dos anos fizera tudo o que estava ao seu alcance para a tornar confortável e convidativa. Tudo para que olhava era um testemunho do seu trabalho, da sua vida. Os arbustos que plantara enquadravam o caminho de acesso, e a cadeira de balouço da avó estava no alpendre da frente. As cortinas que ela própria cosera embelezavam e adoçavam as janelas. Ao longo dos anos, construíra um lar.
Lillie saiu do carro, aproximou-se da porta e hesitou. Sentia que, assim que entrasse, não poderia voltar atrás. Também atraiçoaria a sua menina para proteger o que restava da sua vida familiar. Nunca sentira tanta vontade de se virar e fugir. Não conseguia esquecer ou fingir que não compreendia o que Jordan lhe dissera. Depois de todos aqueles anos, depois de tudo o que acontecera, ainda sentia algo por ele. Aquela ironia do destino era quase dolorosa. Muitas vezes o imaginara a dizer-lhe exactamente aquelas palavras e se imaginara a rir-se com ^desprezo. À noite, os seus sonhos traíam-na e sonhava com a mesma cena. Em vez de se rir dele, aceitava-o apaixonadamente. No entanto, agora tudo parecia pouco importante.
Quando ele finalmente se declarara, a única coisa em que Lillie conseguira pensar era na família e na gratidão que sentia por lhe ser dada outra oportunidade. Não esperava que compreendesse. Ele abandonara a sua própria família sem olhar para trás e provavelmente parecera-lhe simples. Lillie sabia, mesmo quando tentava explicar isso a Jordan, que nunca conseguiria que ele entendesse o facto minimamente. Agora que o rejeitara e fizera a sua escolha, sentia-se profundamente só. «Em frente», pensou. «Não há que olhar para trás.» Poisou a mão na maçaneta, respirou fundo, abriu a porta e entrou.
Pink estava sentado no seu sofá com um copo na mão. Olhava para a televisão, apesar de estar desligada. Lillie percebeu que já bebera bastante, mas que ainda não estava bêbedo. Quando a porta se abriu, virou rapidamente a cabeça e olhou para ela. Os olhos estavam vermelhos, mas não conseguia perceber se era devido ao uísque ou a lágrimas. A sua tez corada estava invulgarmente brilhante e ela ficou a pensar como estaria a sua tensão arterial. Era uma preocupação que se devia ao hábito.
- Lillie - disse, com voz rouca - Voltaste? •Lillie fechou a porta.
- Olá, Pink - Pendurou o casaco no armário e atravessou a sala. Pink seguiu-a com os olhos cansados. - O Grayson está? - perguntou.
- Não.
- Onde está?
Pink voltou a pegar no copo.
- Não sei. Esta manhã depois de estar contigo fui para o
escritório. Precisava de sentir-me ocupado. Manter a cabeça ocupada. Ele não estava quando voltei. Não o vi toda a tarde.
- Queria falar com os dois - disse ela.
- Terás de te contentar só comigo - retorquiu Pink Não te deve ser muito difícil. Já o fizeste. - Saudou-a com o copo de uísque.
Lillie ignorou o comentário. Sentou-se no sofá que ficava em frente ao do marido. - Falei com o Royce - afirmou. - soube - afirmou Pink.
- E estive com o Jordan. Já voltou da Sentinel. Pink ficou subitamente pálido.
- Óptimo - disse ele. - E suponho que lhe contaste tudo.
- Ele já sabia, Pink Sabia que tinhas sido tu a avisar o Tyler. Conseguiu perceber quase tudo.
Pink pousou o copo com força sobre a mesa de café e esfregou as mãos no rosto.
- Então, acabou - disse ele. - Estamos todos arruinados. Tu e o teu amante vão-nos crucificar. - Pink saltou da cadeira e o copo caiu quando ele embateu na mesa. - Já devia ter percebido. Esta era a desculpa de que estavas à espera.
- Pink - gritou Lillie. - Cala-te. Ouve-me. Ninguém vai crucificar ninguém.
- Vá lá - disse Pink inclinando-se para ela e fazendo com que Lillie pudesse captar o seu hálito a uísque. - Pensas que sou estúpido? Pensas que nasci ontem? O que é que vocês estão a preparar? Esta situação é ideal para vocês. Provavelmente até estão a gostar. Podem ir dizer ao mundo que sou um vagabundo. Por tentar proteger o meu filho. A vingança da Lillie por me ter aturado todos estes anos. Quando toda a gente souber que só te casaste comigo por dinheiro e para teres um tecto sobre a (cabeça da tua fedelha...
Lillie afastou-se dele e do veneno que tinha dentro de si. Estava a tremer. Fez um esforço para falar com calma, mas o tom era duro e amargo.
- Lamento que penses assim, Pink Já tivemos a nossa quota-parte de desilusões.
Pink fez uma careta e nos seus olhos apareceu uma expressão mista de vergonha e pena. Deixou-se cair pesadamente na cadeira e cobriu o rosto com a mão.
- Desculpa o que disse sobre a Michele - pediu, num tom de desespero. - Era a criança mais doce do mundo. A minha menina. Pensava que o pai era o maior. A única coisa que sempre quis era que tu pensasses da mesma maneira.
Lillie ouviu a carência, a queixa na sua voz, mas ignorou-a.
- Pink - pediu -, acalma-te. Não vim aqui para te perseguir. Tenho estado a tentar dizer-te que compreendo porque o fizeste. Fossem quais fossem as razões, sentiste que não podias confiar-me a verdade...
- Não era isso - proferiu Pink - Queria poupar-te, Lillie. E tinha de pensar no Grayson e no seu futuro.
- Acredites ou não, também amo o meu filho. Não o quero magoar. Nem a ti.
Pink emitiu um som que se poderia situar entre um riso e um soluço.
- Mas... - disse ele como que a preparar o próximo comentário.
- Mas... nada - contrapôs ela tranquilamente. - Não há «mas». Voltei para ficar e vamos manter este segredo. O Jordan prometeu-me que não iria interferir nem dizer nada.
Pink olhou para ela estupefacto e depois semicerrou os olhos.
- Não acredito, Lillie. Por que razão manteria o silêncio? Adoraria apanhar-me.
Lillie olhou firmemente para ele.
- Porque lhe pedi porque sentiu que me devia esse favor. Por desentendimentos passados, digamos.
Pink olhou-a com cepticismo, mas ela conseguia ver que estava a começar a acreditar.
- Já está a caminho de Nova Iorque - anunciou e sentiu-se envergonhada pelo tom de pena da sua voz. - Provavelmente até já se foi embora - acrescentou, tão duramente quanto pôde.
- Como sabemos que podemos confiar nele? - perguntou Pink.
Lillie olhou para ele de sobrancelhas erguidas como se estivesse algo espantada com a pergunta.
- Como é que sabemos que podemos confiar em seja quem for? Apenas teremos de o fazer.
Pink abanou a cabeça.
- Oh, Lillie. Não sei o que pensar.
- Que mais podemos fazer? - inquiriu Lillie. - Continuar com a nossa vida.
Pink levantou os olhos para ela e, pela primeira vez, viu um pequeno resquício de esperança no seu olhar.
- Não vais mudar de ideias?
- Já te disse tudo - afirmou ela.
- Eu sei - disse Pink apressadamente. - Já sei que sim. Às vezes sinto que te devia ter dito tudo desde o início. Assim, o Jordan não teria sido envolvido no assunto.
Fez o possível para não mencionar o nome de Jordan com sarcasmo.
- bom - prosseguiu Lillie com um suspiro. - Acho que vamos fazer um esforço para, a partir de agora, dizermos a verdade um ao outro. As mentiras que já ouvchegam-me para o resto da vida.
- Fá-lo-emos - prometeu Pink ansioso. - A partir de agora. - Aproximou-se e agachou-se desajeitadamente ao lado do sofá dela, colocando uma mão sobre o seu joelho. - E lamento ter-te feito isso - acrescentou, olhando para a nódoa negra. - Não voltará a acontecer. Juro. De agora em diante, a vida vai melhorar para todos nós.
Lillie estudou tristemente o seu rosto sério durante uns instantes e depois olhou para cima quando ouviu a porta a abrir. Grayson entrou, muito corado e com os olhos febrilmente brilhantes. Quando viu os pais, recuou como um gato encurralado. Pink ergueu-se e olhou radiante para ele.
- Grayson - chamou. - Olha quem está em casa!
- Mãe - disse Grayson, simultaneamente surpreendido e triste.
- A tua mãe percebeu finalmente que a nossa atitude estava certa, filho. Sobre... Já sabes! O Tyler e o resto. Por isso, voltou para nós. Está tudo conversado.
- Óptimo - disse Grayson.
Lillie teve uma sensação de desagrado pela maneira como Pink se expressara, mas não o corrigiu. Pink estava alegre e cheio de esperança.
- E o Jordan Hill? - perguntou Grayson.
- Saiu das nossas vidas - exultou Pink - Concordou que não tem nada a ver com isto e que manterá o silêncio acrescentou sobriamente. - De facto, já está a caminho de Nova Iorque.
- Mais vale tarde do que nunca - disse Grayson com a tensão a sair-lhe dos ombros depois da notícia de Pink Boa, mãe.
Lillie tentou sorrir, mas sentia-se interiormente ofendida pelo prazer e aprovação dos dois.
- Não creio que seja motivo de alegria - disse ela, inflexível. - O Jordan não queria esquecer o assunto. Apenas achou que a nossa família já tinha a sua dose de sofrimento.
- Acho que foi muito decente da sua parte, considerando o sofrimento que já nos tinha infligido - retorquiu Pink.
- Se começas outra vez, Pink juro... - disse Lillie.
- Acabem com isso - ordenou Grayson alegremente. Fiquemos apenas contentes por ele se ter ido embora.
- Amen - disse Pink - A coisa mais importante é que a tua mãe está em casa e que tudo vai correr bem.
- Sim - anuiu Grayson. - Vamos esquecer o assunto.
Lillie ia protestar quando o telefone tocou, e todos se calaram. Depois, Grayson, que estava mais perto do aparelho, atendeu. Falou durante uns segundos e estendeu o auscultador a Pink.
- É para ti. É a Mistress Nunley.
- O que é que ela quererá? - disse Pink.
Dirigiu-se à mesa do telefone e tirou o auscultador das mãos de Grayson, começando a falar com Reba.
Grayson e Lillie entreolharam-se. Serenamente do lado de Grayson, e triste por parte de Lillie. Depois o rapaz desviou o olhar.
- Está bem - disse Pink zangado. - Mas é melhor que estejam a falar a sério. Telefonar-me a estas horas a um domingo... Estive lá metade do dia. Deviam ter lá ido nessa altura. Está bem. Está bem.
Pink bateu com o auscultador e dirigiu-se ao armário do vestíbulo. Tirou um dos seus casacos desportivos e enfiou-o sobre a camisa de veludo que tinha vestida.
- O que é? - perguntou Lillie.
- É um casal a quem mostrei uma propriedade há uns tempos atrás. Acabaram de aparecer no escritório e querem vê-la novamente. É praticamente de noite. Não sei como esperam ver seja o que for. Eu nem sequer me dava ao trabalho de ir... mas normalmente quando querem ver segunda vez é porque estão dispostos a comprar. E precisamos do dinheiro para mandar este miúdo para Harvard. Não é? Volto já!
- Fica o tempo que for preciso - disse Lillie.
- Lamento ter de interromper a nossa reunião desta forma - disse Pink.
- Estarei aqui quando voltares - respondeu Lillie.
- Assim é que é falar - afirmou Pink - Grayson, ajuda a tua mãe a fazer o jantar. Volto num instante.
A porta bateu atrás dele e Lillie ouviu Pink a assobiar enquanto se dirigia ao carro. Virou-se para Grayson.
- Tenho uma coisa para te dizer - anunciou bruscamente.
Grayson olhou para ela com uma expressão infantil e espantada. Não conseguia negar a si própria que tinha vontade de o castigar. «Ele não pode andar por aí a choramingar para sempre», pensou. No entanto, perguntou a si própria quanto tempo levaria a conseguir olhar para ele sem sentir um contínuo ressentimento.
- Olha, Grayson - começou calmamente -, aconteceu muita coisa. Ainda não consegui absorver tudo.
Grayson olhou para o punho da camisa e meteu-o novamente nas mangas arregaçadas.
- Eu sei - disse ele, muito sério.
- Lá porque decidi manter isto dentro da família, não significa que tudo vai ser esquecido e metido debaixo do tapete. Estás a entender?
Grayson franziu o sobrolho e olhou para ela enigmaticamente.
- Julgava que tinhas dito que tudo estava terminado.
- Sim. Suponho que se pode dizer que... oficialmente está terminado. Estou a referir-me ao aspecto legal. Mas isso não altera o facto de a tua irmã ter sido assassinada. Não é uma coisa que possa aceitar em vinte e quatro horas. Esta família nunca mais será a mesma.
Grayson levantou o queixo e afastou o cabelo da testa.
- Eu sei - disse.
- Vem cá e senta-te, Grayson. Quero falar contigo. Lillie sentou-se, e Grayson, depois de uma pequena hesitação, instalou-se na beira do sofá. Lillie deu-lhe uma palmadinha no joelho e depois juntou as mãos.
- Sabes que o Tyler fugiu da Academia Sentinel? - perguntou a mãe.
Grayson passou os dedos pelo cabelo.
- Sim - disse ele. - O xerife telefonou esta manhã.
- Isso incomoda-te?
Grayson olhou inexpressivamente para ela. - Não. Porquê? Lillie tentou escolher cuidadosamente as palavras.
- Meu filho! Sei que os últimos meses têm sido duros para ti. De certo modo, talvez mais duros do que para qualquer um de nós. Tiveste de engolir uma série de coisas. Penso que deves sentir muita dor e talvez até muita culpa devido ao que aconteceu. É natural, e não serve de nada fingires que não te importas. Não se pode ignorar uma coisa destas. Nenhum de nós pode. Poderá começar a corroer-te por dentro.
Grayson mudou de posição e olhou pensativamente para a
frente. Lillie observou-lhe o rosto e perguntou a si própria o que iria por trás daqueles olhos. Por vezes ficava espantada com o facto de o conhecer tão mal.
- bom, parece já ter acontecido há muito tempo - disse ele finalmente. - Tento não pensar muito nisso.
- É o que te estou a tentar dizer, Gray. Acho que é melhor que pensemos e falemos sobre o assunto. Aqui em casa, claro.
Grayson olhou para ela, desconfiado.
- Todos sabemos o que aconteceu. Não muda nada continuar a bater no assunto. Pensei que íamos começar de novo.
- E vamos - prometeu Lillie, cansada. - É isso mesmo.
- Se precisares, não me importo de falar sobre o assunto, mãe - disse ele num tom conciliatório. - Mas tenho trabalhos de casa para fazer agora. Importas-te...?
Lillie assentiu com a cabeça e afastou o olhar.
- Vai.
Quando ele saiu da sala, enterrou-se nas almofadas do sofá. Sentia-se novamente esmagada com a sensação de solidão. «Pára com isso», ordenou, zangada consigo mesma. «Pára de sentir pena de ti própria. Tens a tua segunda oportunidade e é melhor que a aproveites bem. As coisas não vão mudar do dia para a noite. Terás de ser paciente e atrair o Grayson. Ganhar a sua confiança. Fazer com que ele fale do assunto mais tarde. Passou por um grande trauma e não está habituado a confiar em ti.»
Porém, naquele momento, não se sentia forte nem determinada. Sentia como se lhe tivessem arrancado a pele e tudo lhe ardia. com um ligeiro sentimento de culpa, pensou novamente em Jordan, nos olhos graves que a observavam e a sua mão seca e quente sobre a dela. «Esquece o passado», pensou. «Só interessa o futuro.» No entanto, algumas lágrimas escaparam-lhe dos olhos cansados e então, quando uma gota começou a correr-lhe pelo pescoço e lhe entrou pela gola, meteu a mão na carteira que estava no chão a seu lado e procurou um lenço de papel.
Os seus dedos tocaram em algo frio, metálico e pouco familiar nas profundezas do seu saco de couro. Lillie pegou-lhe e tirou uma pequena pistola.
Olhou para ela durante um segundo, imaginando, com grande espanto, como teria ido parar à sua carteira. Depois, de repente, lembrou-se. Brenda dissera-lhe que ela precisava de uma arma. Fora no dia anterior. Parecia ter passado um ano.
Lillie limpou as lágrimas com os dedos e sorriu tristemente. Não havia necessidade. Pink estava arrependido. Era uma coisa que acontecia uma vez na vida. Mesmo assim, sentiu-se por alguns instantes um pouco menos só, pensando na teimosia de Brenda ao meter-lhe a pistola no saco, determinada a protegê-la à distância. Talvez o facto de encontrar a arma fosse um pequeno sinal de que gostavam dela, que era importante para aqueles que amava.
Com um suspiro, Lillie levantou-se e levou a arma para a prateleira da lareira e colocou-a entre as molduras que lá se encontravam. Era como se a quisesse manter fora do alcance das crianças, se bem que não houvesse crianças pequenas que pudessem ficar em perigo. “ Devolvo-lha amanhã “, pensou Lillie. “ Tenho a certeza de que vai ralhar comigo por a devolver “. Lillie sorriu. Para que serviam os amigos ?
- Não precisas de fazer isso, filho - protestou Bessie Hilenquanto Jordan pegava num pano e começava a limpar a louça do jantar. - Acalma-te. Tiveste um dia muito longo.
- Assim acabamos rapidamente e vamos os dois descansar
- disse ele.
Não comunicara quase nada à mãe sobre os motivos da sua inesperada visita. Apenas dissera que Lillie lhe pedira que viesse para investigar uma coisa, mas que não dera qualquer resultado. Bessie conseguia perceber que ele estava a omitir coisas, mas não lhe fez muitas perguntas e sentiu-se grato por isso.
Bessie pôs-lhe a mão molhada no braço e apertou-o.
- Não gostava que te fosses embora esta noite - declarou. - Não poderias esperar e partir amanhã de manhã?
Jordan sorriu-lhe.
- Gostaria que fosse possível - disse ele -, mas tenho gravações de manhã cedo.
Bessie continuou a lavar tranquilamente a louça enquanto Jordan andava pela cozinha a arrumar os pratos e taças que já limpara.
- Não fiques tão triste - disse ele à mãe. - Voltarei dentro de pouco tempo.
- As nossas noções de pouco tempo são muito diferentes
- comentou ela com alguma crítica na voz.
Sabia que o que a mãe dissera era verdade. Nunca fora um visitante de confiança. Só há alguns anos, quando começara a perceber como ansiava a visita da filha, é que revira as suas atitudes e se tornara um filho mais dedicado.
- Eu sei, mamã. Mas as minhas intenções são sempre as melhores.
- Sei que estás muito ocupado com o programa - anuiu ela. - Eu sei.
- Não sejas tão compreensiva - disse ele, para a arreliar.
- Sei que tens boas intenções - continuou Bessie, levantando um prato para o passar por água.
Jordan limpou uma mancha no balcão com o pano e olhou de lado para a mãe.
- Sempre me deste o benefício da dúvida. - Sempre tentei - respondeu ela.
- Não deve ter sido fácil às vezes - murmurou ele. Bessie assentiu com a cabeça.
- Houve alturas...
- Como a altura em que deixei a Lillie e o bebé... Bessie parou de passar a louça e inclinou a cabeça para o lado, recordando.
- Acho que foi omomento em que fiquei mais aborrecida contigo. Sim. Não me importo de dizer que foi o que mais me magoou. Senti-me profundamente desiludida.
- Sim - disse ele -, mas quando cheguei a Nova Iorque mandaste-me pequenas somas de dinheiro, meias, encomendas e telefonaste-me.
- Claro que sim - prosseguiu Bessie. - Eu amo-te. Fiquei preocupada. O que aconteceu com a Lillie não alterou nada disso. Achei que elas ficavam melhor se te fosses embora e temi também que te arrependesses para o resto da vida. As pessoas têm, por vezes, de cumprir o seu destino.
- E se eu o tivesse feito por maldade? - perguntou ele.
- Mas tu não farias isso - disse ela com simplicidade. Conheço-te.
Bessie tirou-lhe o pano e limpou as mãos.
- Sempre pensei que era triste porque era realmente a mulher certa para ti. Há poucas pessoas que consigam ter uma segunda oportunidade para amar assim.
Jordan fixou-a nos olhos e reconheceu a verdade do que estava a dizer.
- Isso é certo.
- Está frio esta noite - observou ela. - vou buscar uma camisola.
- Queres que vá eu?
- Não sabes qual quero - disse ela, afastando-o gentilmente e dirigindo-se ao quarto.
Jordan sorriu-lhe e depois dirigiu-se ao alpendre. A noite caíra, tranquila e estrelada, e ficou maravilhado com a tranquilidade da sua cidade natal. Lembrou-se de que já lhe parecera muito asfixiante. Imaginara que o mundo seria muito mais bonito longe dali. E tinha sido belo, pensava, mas não melhor.
Bessie voltou para a sala, sentou-se no seu canto do sofá e pegou nos óculos em meia-lua que estavam sobre a mesa. Abriu o jornal e começou a ler.
Jordan afastou-se em direcção à porta.
- Tenho de visitar uma pessoa antes de me ir embora. Bessie olhou-o inquiridoramente, mas ele apenas se inclinou e lhe deu um beijo.
- Não me demoro - declarou. - Quero sair para Nashville às oito horas.
Jordan ficou surpreendido com a facilidade com que encontrou a casa de Royce Ansley. A última vez que o visitara fora há dezoito anos e apenas uma ou duas vezes o fizera. Porém, aquelas visitas tinham-no impressionado profundamente. Fora ali naquela casa que adquirira a ideia de que era especial, talentoso, e que poderia alcançar a fama e a fortuna. Tinha saído daquela casa com estrelas nos olhos. Agora batia à porta de madeira seca e uma falha entrou-lhe no pulso.
Ninguém respondeu, e a casa estava em total escuridão. O carro de Royce nem sequer se encontrava à entrada da garagem. Jordan ficou de pé no degrau algum tempo, mas não havia sinais de vida. Voltou para o seu carro alugado e dirigiu-se ao centro da cidade, estacionando na praça. Não era muito provável que Royce estivesse a trabalhar a um domingo à noite, mas os criminosos não confinavam as suas actividades aos dias úteis das nove às cinco. Jordan subiu a correr a escadaria do tribunal, tentou abrir as portas, mas estavam fechadas.
O edifício tinha portas laterais e Jordan deu a volta para verificar cada uma delas, pensando que Royce pudesse ter as chaves, mas todo o edifício parecia completamente fechado. Decidiu que o melhor que tinha a fazer era dirigir-se à esquadra. Essa nunca estava fechada e eles decerto saberiam onde localizar o xerife. Jordan atravessou a praça. Bomar Flood estava a fechar a farmácia, agora às escuras, enquanto uma cliente agradecia profusamente ao farmacêutico o facto de ele ter aberto o estabelecimento a um domingo à noite.
- Os diabéticos têm de tomar a sua insulina - disse ele, renunciando à sua gratidão. "Olá, Bomar - saudou Jordan.
O velho farmacêutico olhou à sua volta e mal conseguiu esconder a surpresa.
- Ora viva, Jordan. O que te trás de volta à cidade? Ando à procura do Royce Ansley - disse Jordan. - Não está em casa nem no tribunal. Pensei experimentar a esquadra.
Bomar tentou não se mostrar muito curioso, se bem que parecesse matutar sobre o paradeiro de Royce.
"-Bem, é noite de domingo. Se calhar está no HoteWinchçster_ Janta lá todos os domingos. Faz isso há anos. ^"Obrigado - disse Jordan. " Sabes onde é?
- Claro que sim. - Muito obrigado.
Bomar ficou a observá-lo atentamente enquanto ele se dirigia para o carro e arrancava. Jordan pensou de imediato que aquilo ia proporcionar a Bomar e à esposa, Charlotte, tema para conversa toda a noite. Jordan atravessou a cidade, passou pela linha do comboio e subiu a colina até ao HoteWinchester. Era um grande e antigo hotel ao estilo do Sul, e já fora o orgulho do Condado, tendo suportado alguns anos difíceis. Edifício de tijolo com três andares, uma varanda branca e um alpendre suportado por colunas, o velho hotel conseguira sobreviver durante a infância de Jordan, mas um jovem casal de Atlanta comprara-o há alguns anos e começara lentamente a restaurá-lo até conseguir o seu encanto de antigamente. Jordan nunca jantara lá sob a nova gerência, mas a mãe sempre afirmara que tinham o melhor feijão-verde e tarte do condado.
Viam-se alguns carros parados no parque de terra batida que ficava do outro lado da rua, incluindo o carro do xerife. Jordan estacionou e entrou no átrio do hotel. Na sala viam-se cortinados pesados e rendas, estando decorada com mobiliário vitoriano bastante austero, tal como devia ter sido nos seus tempos áureos. O balcão da recepção era de mogno trabalhado e atrás dele situavam-se os cacifos para as mensagens e correio dos hóspedes. Pelo número de chaves que estavam penduradas em cacifos vazios, parecia que o hotel não tinha muitos hóspedes, mas a sala de jantar estava cheia.
Jordan dirigiu-se à empregada do restaurante e ia perguntar pelo xerife quando o seu olhar caiu sobre uma figura solitária sentada a um canto. O candeeiro com um abajur de franjas mal iluminava o rosto de Royce Ansley.
- Venho ter com o xerife - explicou Jordan, entrando na sala de jantar e dirigindo-se ao local onde Royce estava sentado. Quando Jordan chegou à mesa, aproximou-se uma empregada com um cesto de vime cheio de bolos fritos. Royce agradeceu à rapariga e olhou impacientemente para Jordan.
- Posso fazer-lhe companhia, xerife? - perguntou Jordan. Royce olhou firmemente para ele.
- Parece que o vai fazer, quer eu queira quer não. Jordan puxou a cadeira que ficava frente a Royce e sentou-
-se. A base da mesa era uma velha máquina de costura. Jordan colocou os pés sobre o antigo pedal de ferro.
- Tenho algumas coisas para lhe dizer - anunciou. Royce comeu um bolo frito e limpou a gordura dos dedos
ao guardanapo.
- Então, comece.
- Vamos ser francos - disse Jordan. - Você sabe que fui à academia do Tyler. Descobri que o Pink o avisou e a Lillie contou-me o resto sobre a morte da minha filha e a maneira como você e o Pink encobriram o assunto.
O rosto de Royce estava muito pálido à luz do candeeiro, mas não respondeu.
- Por muito que gostasse de o ver sofrer - disse Jordan -, digo-lhe que concordei em manter o silêncio e deixar que vocês lidem com a situação.
- bom - proferiu Royce calmamente. - Acho boa ideia não se envolver nisto.
- Eu estou envolvido - disse Jordan friamente. - Estamos a falar da minha filha. Só concordei por ser o desejo da Lillie.
- Lamento, mas não penso em si como pai da Michele
- declarou Royce. - Apesar desta recente manifestação de zelo.
Jordan bateu com o punho na mesa e os bolos saltaram dentro do cesto.
- Eu sou o pai dela quer você queira quer não. E você é um mentiroso. Não me tente a mudar de ideias.
As outras pessoas que estavam a jantar viraram-se para olhar para o xerife e seu companheiro.
- Não se incomode em manifestar o seu mau génio disse Royce em voz baixa quando as pessoas recomeçaram a conversar na sala de jantar. - Digo-lhe desde já que, com tudo o que se está a passar, não vou sentir-me intimidado por si.
Os dois homens olharam desafiadoramente um para o outro. Depois, Royce pegou no seu Ice-Tea, bebeu um longo trago e pousou-o.
- Obrigado por se ter metido onde não devia - disse ele lentamente. - O meu filho saiu da academia e fugiu sabe Deus para onde.
Jordan nem hesitou.
- Suponho então que não devia ter-me metido e permitido que o xerife levasse a cabo o seu dever.
- Sim - insistiu Royce -, não devia ter-se metido no assunto. Eu sei porque está aqui. Pensa que não sei? Procurou-me para me poder falar de alto. Fazer-se passar por uma espécie de herói. Deixe-me que lhe diga uma coisa: a minha opinião sobre si não mudou nada. Vem à cidade, o pai em busca de vingança e mete o focinho na vida de toda a gente e agora vai fazer um gesto magnânimo e sair novamente. Não me impressiona nada. Partir é a sua especialidade. Ser pai... Parece-me que não sabe nada do assunto. Não me ameace com denúncia. Você não abre a boca. Não conseguiria ficar aqui o tempo necessário para levar as coisas até ao fim.
- Espere lá! Espere aí! - protestou Jordan em voz alta, mas depois baixou a voz quando as outras pessoas começaram a olhar.
- Desde quando é que o meu carácter está aqui em questão? Foi você que abusou do seu cargo. É você que tem um filho assassino - sussurrou ele entre dentes.
Os olhos de Royce pareciam pedra. Evitou o olhar de Jordan e começou à procura da empregada de mesa. Momentos depois, voltou a olhar para Jordan.
- Eu não lhe devo explicações - afirmou. - Pode ficar aí sentado até apodrecer. Não lhe direi nada. Apenas o seguinte: o meu filho anda por aí, em fuga, sem saber o que fazer e tudo isso por sua causa. Só Deus sabe para onde ele foi. Se eu não for capaz de o localizar, considero-o responsável.
Jordan reclinou-se na cadeira.
- É inacreditável - disse. - Eu sei que a melhor defesa é o ataque, mas não está a levar isto um pouco longe de mais? Agora culpa-me do desaparecimento do Tyler?
- Pode crer - disse Royce, zangado.
Os dois homens ficaram sentados em silêncio quando a empregada apareceu e colocou um prato de peixe frito com vegetais à frente de Royce.
- Deseja alguma coisa? - perguntou a Jordan.
- Este senhor não vai ficar - disse o xerife.
Naquele instante, Wallace Reynolds apareceu, muito agitado, à porta da sala de jantar e dirigiu-se rapidamente à mesa onde Royce e Jordan estavam sentados.
- O que se passa, Wallace? - perguntou Royce, irritado.
- Xerife - disse o delegado. - Acabei de receber um telefonema da esquadra. Uma mulher viu um corpo junto da quinta dos Millraney. No poço. Temos de mandar uma equipa de salvamento. Alguém tem de descer ao poço e tentar trazê-lo para cima.
- Está vivo? - perguntou o xerife.
- Não sei. Está muito escuro. Mas não responde.
O xerife suspirou e retirou o guardanapo do colo.
- Muito bem. Telefona ao Estes Conroy. O jipe dele tem um guincho. É melhor chamar uma ambulância.
- Já chamei - disse Wallace. Royce olhou para o prato de comida.
- Também não importa. Perdi o apetite. - Olhou para Jordan. - Não tem de se ir embora? - perguntou.
- Esta noite - disse Jordan. - E quanto mais cedo melhor.
Pink voltou à beira do poço e olhou lá para dentro como que atraído por um íman. Era noite e a lanterna que descobrira no porta-luvas do carro era demasiado fraca, mas, quando a colocou no ângulo correcto, conseguiu ver as pernas torcidas e um tronco inclinado para baixo numa posição estranha. Havia marcas escuras nas roupas, que Pink pensou poderem ser sangue. Parecia que o tipo só tinha um sapato calçado. O outro devia ter ido parar ao fundo do poço quando o pobre diabo caíra. Pink não conseguia ver o rosto nem mesmo a cabeça. Por um momento, veio-lhe à ideia a terrível possibilidade de o corpo já não ter cabeça. Depois, afastou a hipótese.
O jovem casal que tinha querido ver a propriedade, os DuPres, estavam sentados, agarrados um ao outro, no alto das escadas da velha quinta. Pink pedira-lhes que fossem para dentro e que se sentassem enquanto esperavam pela Polícia. Afinal, a casa estava mobilada. No entanto, a mulher recusou-se. Disse que nunca mais queria entrar naquela casa.
«Adeus, venda», pensou Pink enquanto caminhava lentamente junto ao poço e se esforçava por ouvir o ruído de um motor na estrada. Fora uma sorte o facto de o telefone ainda estar ligado e ter podido pedir ajuda. O tipo que estava no poço ainda poderia estar vivo, mas Pink duvidava seriamente do facto. Pink e Mr. DuPres tinham gritado várias vezes para o fundo do poço, com as vozes ansiosas a ecoar nas pedras, mas não houvera resposta.
Pink conseguia ouvir a mulher a queixar-se ao marido, dizendo: «Só quero sair daqui.» O jovem tentava acalmá-la, prometendo que se iriam embora assim que falassem com a Polícia.
- Tenho frio - resmungou ela.
«Então, vá para dentro, por amor de Deus», pensou Pink «Ninguém a mandou ficar sentada nos degraus.» Na realidade, ele sentia-se bastante zangado com ela. À partida, Pink não tinha querido ir até à quinta àquela hora da noite. Estava exausto e a única coisa que queria era ficar em casa a descansar, especialmente agora que Lillie voltara. Porém, decidira ir e pareciam estar a fazer progressos no tocante à compra. O homem mostrava-se definitivamente interessado e apreciara muito a velha quinta desde a primeira visita. Estivera continuamente a mencionar as coisas de que gostava e a agir como se todas as reparações necessárias fossem coisas de pouca monta, se bem que Pink soubesse que na realidade não era bem assim. Todavia, conseguia perceber que o marido já conseguira quase convencer a mulher de que era a casa ideal para eles, e Pink estava a ficar com aquela velha sensação optimista de que ia conseguir fechar o negócio. Depois, ela referira-se ao poço.
- Está seco ou ainda tem água no fundo? - perguntara, como se estivesse familiarizada com a sua utilização. O facto era que Pink não sabia. Nunca ninguém fora tão longe nas suas visitas à quinta dos Millraney. Normalmente iam e vinham depois de uma visita rápida. Uma vez, uma mulher até se recusara a sair do carro, para grande vergonha do marido.
Pink chegara à conclusão de que eram sempre as mulheres a causar problemas naquelas coisas. Os homens reparavam nos aspectos bons da propriedade e pediam quase sempre desculpa por o terem feito perder tempo, como se mostrar casas fosse uma inconveniência para Pink Contudo, as mulheres embirravam com tudo. Eram sempre elas a mostrarem-se negativas, criticando o gosto do dono anterior e a agir com desconfiança, como se alguém as quisesse enganar.
Lillie fora exactamente assim quando tinham comprado a casa. Tinha aquela expressão contrariada que lhe provocava uma sensação de enjoo. Pink explicara-lhe vezes sem conta por que razão era o melhor negócio para eles, mas percebera que ela não estava exactamente deliciada com o facto. Sempre fora assim com Lillie. Por muito que tentasse agradar-lhe, ela ficava com aquela expressão caprichosa no olhar. Provocava-lhe sempre um nó no estômago.
Pink olhou novamente para a estrada. Porque é que não chegavam ?
Mal conseguia acreditar no decorrer daquele dia,
Mas, o mais importante, era que Lillie voltara para casa, assegurando, assim, o futuro de Grayson. Pink até se sentira muito bem ao chegar à Quinta dos Millraney com o casal DuPres. Com muita sorte. Nunca imaginara que pudesse acontecer uma coisa daquelas. A mulher tinha ido ate ao poço e, usando uma lanterna olhara lá para dentro; antes de ter tempo de se endireitar, batendo com a cabeça no balde, e de começar a gritar, o negócio da propriedade já estava arruinado.
O balde Começara a balançar de um lado para o outro e Pink tivera de o estabilizar com as mãos, antes de olhar, juntamente com o outro indivíduo, para o fundo do poço e ver o que provocara aquela reacção. Depois, nem sequer a pudera criticar por ter gritado. Também sentiu vontade de soltar um Grito quando viu a cena.
O som de uma sirene e barulho de motores na estrada de terra, fizeram com que Pink olhasse para cima. Correu para o limite da propriedade, com a lanterna, e começou a gesticular na direcção da entrada da garagem.
A ambulância foi a primeira a chegar, com as luzes azuis e vermelhas a pulsar contra o céu. Pink indicou o lugar ao lado do Oldsmobile, enquanto os DuPres saltavam dos degraus e corriam a saudar a equipa dos paramédicos. Dois auxiliares de casacos brancos saltaram da ambulância e houve uma agitação geral, enquanto Pink e os DuPres tentavam explicar-lhes o que acontecera no poço !! outros carros começaram a surgir na estrada. Os paramédicos preparavam o equipamento para qualquer contingência, Pink correu pela alameda e chamou Estes Conroy, que subia lentamente a estrada no seu Bronco.
Pink conduziu o jipe, que avançava lentamente, através do relvado, e o condutor estacionou a cerca de trinta metros do poço. Chegaram dois carros da Polícia. O xerife, ainda em roupa civil, Vinha num carro e Wallace Reynolds e outro delegado, Floyd Peterson, noutro.
Royce saiu do carro e dirigiu-se a Pink Os DuPres correram para o xerife como se ele fosse o calor de uma fogueira numa noite fria. Pink e o xerife acenaram ligeiramente com a cabeça.
- O que aconteceu? - perguntou Royce.
- O meu marido e eu estávamos a ver a propriedade disse a perturbada mulher -, e eu fui verificar o poço e vi-o.
O condutor da ambulância, um indivíduo ruivo de uniforme azul, juntou-se a eles.
- Sabem se ainda está vivo? - perguntou.
Um dos auxiliares, cujo casaco branco parecia brilhar na escuridão, inclinou-se para ouvir a resposta.
- Duvido - disse Pink...
- - Chamámo-lo repetidamente, mas não houve resposta - declarou Mr. DuPres, com uma voz gelada.
Royce dirigiu-se ao poço e examinou-o com calma. Conseguia ver as pernas torcidas, mas nada mais. Virou-se e chamou Estes Conroy que estava a enrolar uma corda no guincho situado na parte da frente do jipe.
- Como vai isso, Estes? Despacha-te com esse guincho. Está quase, xerife.
Royce virou-se para Wallace e para o jovem delegado. Floyd - disse ele -, fazes as honras? O jovem delegado acenou tristemente com a cabeça.
- Sim, senhor.
Estes, um homem corpulento com um cigarro pendurado na boca e um boné Cap na F cabeça, aproximou-se deles com a corda nas mãos.
- Quem vai usar o laço? - perguntou.
Floyd Peterson avançou e Wallace ajudou Estes a amarrar a corda em torno do peito do rapaz. O condutor da ambulância verificou o nó e depois fez um laço na ponta de outra corda " para que Floyd a levasse para dentro do poço.
- Se ele estiver vivo - disse o paramédico -, tenta descobrir onde está ferido. Teremos de ter muito cuidado a trazê-lo para cima.
Floyd acenou rapidamente com a cabeça, ansioso por começar a sua missão de salvamento.
- O poço deve estar muito escorregadio - avisou Royce. - Mantém-te bem apoiado dos lados. Segura a outra corda Wallace.
Wallace assentiu com a cabeça e posicionou-se ao lado do poço enquanto Floyd, a sua silhueta atlética iluminada pelos faróis dos carros, trepava para o poço e descia pela corda. Estes regressou para junto do Bronco a fim de preparar o guincho.
Ficaram em silêncio enquanto o jovem delegado começava a sua descida e depois, todos ao mesmo tempo, irromperam numa conversa nervosa.
Pink que ainda estava ao lado de Royce, balançava-se para trás e para a frente sobre os calcanhares.
- Não é lá grande maneira de passar uma noite de domingo - disse ele, pouco à vontade.
Royce afastou-se de Pink e dos outros e cruzou os braços sobre o peito. Pink seguiu-o. O resto das pessoas não poderia ouvi-los.
- A Lillie veio para casa - disse ele. - Decidiu que tínhamos razão.
- Já sei. Acabei de receber a visita do seu ex-marido.
- Esse vagabundo! - exclamou Pink O xerife olhou para ele de tal forma que Pink baixou a voz. - O que é que ele queria?
- Descobriu que eu estava no Winchester. - Royce suspirou. - Só me queria ameaçar um pouco.
- Esse filho-da-mãe - gritou Pink - Ele disse à Lillie que não se meteria mais no assunto. Detesto esse filho-da-mãe.
- Estás bem? - gritou Wallace ansiosamente para dentro do poço.
- O que aconteceu? - perguntou Royce, avançando.
- Escorregou contra um dos lados - disse Wallace. Está bem.
Mrs. DuPres agarrou-se ao marido, que a tranquilizou com um murmúrio. Não queriam ver o que ia sair do poço, mas, tal como o resto das pessoas, não conseguiam afastar o olhar.
Pink avançou novamente para junto de Royce, querendo discutir as notícias sobre Jordan, mas o xerife parecia absorvido com o salvamento. Pink bateu-lhe persistentemente no braço e Royce virou-se e olhou para ele com o rosto tenso e cinzento à fraca luz dos faróis.
- Eu pensava que ele tinha saído da cidade - queixou-se Pink - Porque é que ainda anda por aí?
- Porque está a divertir-se - resmungou Royce, cansado.
- De qualquer modo, diz que se vai embora esta noite... e que não abrirá a boca.
- É melhor que se cale - ameaçou Pink - Juro que se ele volta e torna a incomodar a minha família...
As pessoas estavam encostadas à beira do poço, gritando palavras de encorajamento a Floyd que já alcançara o corpo e estava a tentar manejá-lo.
- Está vivo? - gritou o condutor da ambulância. A voz de Floyd subiu das profundezas, fraca e oca.
- Há sangue por todos os lados. Morto.
Ouviu-se um sussurro de pena entre os espectadores e então, um a um, começaram a apoiar o delegado, dando-lhe indicações enquanto tentava mudar o morto de posição para o amarrar.
Royce olhava inexpressivamente para a confusão que ia à volta do poço.
- Não acho que torne a incomodar. Só estava a divertir-se. Se calhar pensou que iria conseguir publicidade grátis com isto.
- Mas conseguiu que a Lillie ficasse bastante zangada. Acho que finalmente a acalmei e só quero atirar tudo isto para trás das costas - disse Pink.
Do fundo do poço veio um grito estranho e estrangulado do jovem delegado, mas foi abafado pelo ruído dos espectadores.
- Iça-o, Estes - gritou Wallace quando Floyd lhe fez sinal lá de baixo.
- Diz ao xerife - ouviram gritar.
- Dizer o quê ao xerife - gritou o condutor da ambulância, apesar de os barulhos do motor e do guincho abafarem qualquer resposta. :
- Foi tudo obra do Jordan Hill - insistiu Pink.
- Foi tudo obra nossa - disse Royce com uma voz monótona.
A corda rangia no guincho, o motor rugia e as pessoas gritavam indicações quando Floyd Peterson, que estava pálido e a suar, apareceu à beira do poço. Olhou para a multidão e fixou o olhar em Royce.
_ Muito bem - gritou Wallace Reynolds -, ajudem-no a sair. - Liguem a outra corda.
Floyd saltou do poço e caiu junto à parede exterior, cobrindo o rosto com as mãos. Os outros homens apressaram-se a desatar a corda do seu corpo e a ligar a outra ao guincho. Segundos depois, estava feito, e Estes pôs o motor a trabalhar para começar a içar o corpo. Royce libertou-se da mão de Pink e acercou-se do local onde o delegado estava caído, respirando com dificuldade, junto à parede do poço.
- Lamento, xerife - soluçou Floyd.
- É um trabalho difícil - disse Royce, inclinando-se para ele e colocando uma mão reconfortante no ombro do delegado.
- Isso mesmo - gritou Wallace. - Aí vem ele. Mais um bocado.
Lentamente, o corpo ensanguentado e sem vida saiu das profundezas do negro buraco de pedra. Mrs. DuPres gritou quando o viu e enterrou o rosto no peito do marido. Aos gemidos de consternação que vinham do grupo seguiu-se o silêncio do choque quando todos reconheceram o corpo.
- Oh, meu Deus! - exclamou Wallace Reynolds. Então o xerife virou-se a fim de olhar para aquele corpo partido com a cabeça a abanar e o rosto cheio de sangue. Pink que tinha ficado para trás, não percebeu nada. Conseguia ver que o sangue escorrera pelo rosto do morto. «Está morto e bem morto», pensou. «Podem mandar a ambulância embora.» Reparou que a multidão estava calada como que em choque. A visão do cadáver calara todos. «bom, de facto, é tremendo», pensou Pink Mas não conseguia perceber porque estavam todos a olhar para o xerife. Pink achou isso estranho.
O xerife já vira muita gente morta. Mais do que qualquer outra pessoa.
Não. Não compreendeu até eles libertarem aquele corpo repulsivamente contorcido e o pousarem lentamente no chão. Subitamente, percebeu, quando viu Royce cair de joelhos ao lado do corpo e tomá-lo gentilmente nos braços.
Lillie andou pela casa a acender todos os candeeiros como se a luz conseguisse banir a frieza daquelas salas silenciosas. «Estás em casa», disse a si própria. «Está tudo na mesma.» Mas nada parecia o mesmo. A última vez que se encontrara naqueles quartos, estava inocente e na total ignorância. Pink e Grayson tinham partilhado o seu segredo sobre a morte de Michele, deixando-a a tropeçar cegamente na sua dor.
«Pára com isso», reflectiu. «Não podes pensar dessa maneira. Tens de fazer a tua vida normal. Começa a preparar o jantar. Um jantar de reunião. O início de uma nova era.»
Sabia que aquele pensamento a faria sentir-se melhor, mas tal não aconteceu. Toda a gente à sua volta parecia sentir que já terminara o tempo de luto e que haviam chegado dias melhores. No entanto, Lillie sentia a perda de Michele ainda com grande acuidade. «Será que algum dia desaparecerá?», pensou. «Será que vou voltar a ter uma vida normal?»
Percorreu a cozinha silenciosa, tirando pratos, tachos e tigelas, tratando automaticamente do processo de preparação de uma refeição. Retirou frango já cozinhado do frigorífico, fez uma salada e pôs água ao lume para cozer arroz. Durante todo aquele tempo sentia um peso no coração que não desaparecia. Pensou em ligar a telefonia, mas a ideia de ouvir música punha-lhe os nervos em franja. Preferia o silêncio.
Quando terminou de fazer a salada, foi ao vestíbulo e chamou Grayson. Minutos depois, ele apareceu à porta.
- O que é? - perguntou.
- Importas-te de pôr a mesa? - pediu ela.
- Claro - disse ele num tom agradável. Depois olhou à sua volta. - Onde está a toalha?
- Na realidade não sabes mesmo onde estão as coisas, rapaz - disse Lillie, picando-o. - A Michele dizia sempre que a ajudavas.
O sorriso desapareceu do rosto de Grayson « o comentário ficou no ar entre eles. Era como se Grayson não quisesse recordar-se da irmã.
- Na gaveta do lado esquerdo - disse Lillie. Grayson dirigiu-se à gaveta.
Normalmente, Lillie não tocaria mais no assunto, mas decidiu que iria ser franca e acabar com os silêncios desconfortáveis naquela casa. Tinha de começar por algum lado.
- Grayson - disse ela. - Incomoda-me... Quero dizer... parece que tu... e o teu pai... nem sequer querem que eu mencione o nome da Michele. É verdade? Até a menção do nome dela te desagrada?
Grayson colocou a toalha na mesa e alisou-a. Pensou durante uns instantes.
- Não - disse ele por fim. - Não me importo que fales nela agora que sabes o que aconteceu. Acho que era apenas um hábito. Não querer falar sobre o assunto.
Lillie suspirou de alívio. Sentia que tinham progredido alguma coisa.
- Isso é bom - observou. - Não quero sentir que toda a gente se aborrece quando falo no seu nome. Sempre iremos recordar-nos dela através de milhões de coisas nesta casa.
Engasgou-se na última palavra, mas aclarou a garganta. Grayson examinou a mesa.
- Precisamos de colheres? - perguntou, olhando para a mãe com uma expressão implacável.
- Estás a entender, Grayson? - perguntou ela.
- Sim - disse ele com alguma indignação. - Às vezes vais querer falar da Michele. Por mim, tudo bem.
- Ou tu ou o teu pai podem querer falar sobre ela acrescentou Lillie enfaticamente.
- Certo - disse Grayson. - E as colheres?
Lillie ficou desiludida. «Não me devia espantar», pensou. «Ele é igual ao pai. Evitar o assunto. Manter os sentimentos encerrados. Só está a seguir o exemplo do pai.» «Não sejas assim Grayson», quis gritar. «Partilha a dor comigo.» Mas sabia que não iria resultar. Só o afastaria mais.
- Sim, precisamos de colheres - acabou por responder. Temos pudim de banana.
- Ah, óptimo - disse ele. - Gosto muito.
Lillie serviu-se de um copo de vinho enquanto Grayson terminava de pôr a mesa. Observava-o pelo canto do olho. «Talvez», pensou, «talvez esteja a pedir demasiado, querendo que ele se recorde desses momentos tão terríveis.» Grayson pesara os últimos meses a digerir o assunto e a tentar afastá-lo do pensamento e agora toda aquela história com Tyler fizera voltar tudo atrás. Observando os movimentos graciosos do seu belo filho, não conseguia afastar a imagem que Jordan lhe metera na cabeça de que Tyler estava apaixonado por Grayson, andando com a sua fotografia, mesmo depois de tudo o que acontecera. Sabia que o que queria dizer iria cair que nem uma bomba, mas não conseguiu evitá-lo.
- Hoje, ouvi dizer uma coisa muito estranha sobre o Tyler - começou ela.
Grayson parou, mas não olhou para ela.
- Já sei - disse ele. - Fugiu. Já o tinhas dito.
- Não é isso - prosseguiu Lillie, bebendo um gole de vinho e pousando o copo sobre o balcão. - Alguma vez ouviste dizer que Tyler pudesse estar... mais interessado em rapazes do que raparigas?
Grayson olhou para ela calmamente.
- Claro. Era tão estranho como uma nota de três dólares. Toda a gente suspeitava disso. Ouvi dizer que pagava a um tipo lá na escola para fazer sexo com ele. E pagava-lhe até muito bem. Roubava o dinheiro do pai.
Lillie olhou para ele com incredulidade.
- Sabias disso?
- Era apenas um boato - disse ele. - Qual é o problema? -- Nunca falaste no assunto. A Michele não sabia. -- Não - retorquiu ele sobriamente. - Era um pouco ingénua em relação ao Tyler.
- E tenho a certeza de que o Royce não fazia a mínima ideia. Pensando bem, ele disse-me que o Tyler o roubava e que não sabia o que é que ele fazia com o dinheiro.
- Mãe - interrompeu Grayson abruptamente. - Temos de esperar pelo pai? Estou cheio de fome.
- Bem, tinha pensado em jantarmos juntos. Uma espécie de jantar de reunião - disse ela.
- Eu sei como ele é quando começa a falar. Poderá levar horas. Não me apetece esperar.
Lillie ficou apreensiva. Acabara-se a reunião.
- Está bem - concordou. - Se tens assim tanta fome...
- Posso levar o jantar para o quarto? - perguntou ele.
- Não, Grayson - disse ela, sentindo-se ferida por se querer afastar. - Comes aqui à mesa. Não andes a espalhar comida pela casa.
Grayson encolheu os ombros, pegou num prato e serviu-se junto do fogão. Lillie sentou-se à mesa com o copo de vinho.
- Eu espero pelo teu pai - disse ela.
O rapaz sentou-se à sua frente e começou a comer. Lillie fez girar o vinho dentro do copo, olhando para ele. Instantes depois, disse com algum despeito:
- Se sabias que o Tyler era assim, porque é que foste aos Arcos naquela noite? Grayson levantou os olhos para o tecto e olhou para a mãe com uma expressão paciente.
- Ele tinha uísque de contrabando. Já sabes tudo isso - replicou. - Fomos lá para provar.
- Mas quem é que disse à Michele para ir também? Tu ou ele?
Grayson recomeçou a comer.
- Nenhum de nós - declarou ele com a boca cheia de frango. - Foi simplesmente atrás.
- Mas o reverendo Davis viu-a lá sozinha.
- O reverendo Davis - gozou ele. - Olha! Ficámos de nos encontrar lá. Não me lembro quem chegou primeiro.
- Grayson, não te armes em esperto. Isso já pode ser um assunto velho para ti, mas não te esqueças de que eu só o conheci há um dia. Ainda tenho muitas perguntas sem resposta -- insistiu Lillie.
Grayson ficou a olhar para o prato com uma expressão estranha. Por um instante, ela pensou ter tocado num ponto fraco e que se ia zangar com ela. Depois, subitamente, ele olhou para cima e disse.
- Mãe, esta salada tem pepino? Lillie ficou a olhar para ele.
- Porque é que estás a falar de pepino, Grayson? Grayson elevou uma fatia de pepino com um ar de desagrado.
- Estou farto de te dizer que não gosto.
Lillie levantou-se da mesa e ficou de costas para ele a olhar pela janela, enquanto Grayson tirava as ofensivas fatias de pepino do prato e as punha de lado. Quando viu que a salada já não tinha o indesejado pepino, olhou para ela.
- Tudo o resto está bom - afirmou encorajadoramente. Lillie virou-se e observou-o. Lera artigos suficientes, vira
programas de televisão e vivera o bastante para saber que as pessoas negavam frequentemente os seus sentimentos e tentavam enterrá-los por baixo de uma fachada de normalidade. Por vezes, só a ajuda de um psiquiatra os conseguia aliviar. Não pôde deixar de perguntar a si própria se seria essa a solução para o filho. Exteriormente, parecia perfeitamente bem, mas ela era sua mãe e não podia correr riscos com o seu bem-estar. Havia gente em Cress County que o podia ajudar. Poderia obter uma referência no hospital junto de Mary Dean.
- Pára de olhar para mim, mãe - queixou-se ele. - Estou a tentar comer.
- Grayson, estava a pensar que talvez a melhor coisa a fazer seria encontrar alguém com quem pudesses falar... em privado. Um profissional... para te ajudar a lidar com tudo isto.
Grayson semicerrou os olhos.
- Que queres dizer? Um psiquiatra?
- Querido, passaste por uma experiência terrível... Grayson apertou o garfo na mão.
- Estou bem - afirmou. - Não preciso de falar com ninguém. Está a arranjar um problema onde não existe nenhum. ;,
Lillie voltou a sentar-se à mesa.
- Grayson, o que tu passaste... ver a tua irmã morta, ter de viver com isso... em segredo. Foi uma coisa horrorosa. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Aquele dia do Fundador foi o pior dia da tua vida. Das nossas vidas...
Grayson sorriu e deu-lhe umas palmadinhas no braço.
- Não foi assim tão horrível. Ganhei o jogo, não foi? Lillie afastou-lhe a mão como se queimasse.
- Mãe, só estava a brincar - corrigiu ele, reparando na expressão de estupefacção no rosto dela. - Não fiques assim.
Naquele momento, o telefone tocou. Lillie virou-se e encaminhou-se para ele, mantendo consciência do desejo de o silenciar para parar aquela campainha. Sentia-se mal e desiludida, como se tivesse aberto uma gaveta e visto uma ratazana a olhar para ela. Poderia virar-se e desaparecer num instante e poderia fechar a gaveta e dizer a si própria que ela nunca mais voltaria, mas não conseguia fingir que não a tinha visto.
- Vá lá, mãe - disse ele. - Estava a brincar.
- Então, porque é que disseste isso? - gritou Lillie com
a voz a tremer.
Não lhe deu oportunidade de responder. Pegou no telefone, agradecida pela distracção.
Pink estava quase histérico. Lillie sabia que era ele, mas não conseguia perceber o que dizia.
- O que é, Pink? - perguntou. - Não consigo ouvir-te.
- O Tyler - disse Pink - Está morto. Acabaram de o encontrar.
- O Tyler Ansley? - As pernas de Lillie começaram a tremer e deixou-se cair na cadeira que ficava ao lado do telefone. - Não pode ser. O que estás para aí a dizer? O que aconteceu?
Lillie estava em choque. Percebera vagamente que Grayson entrara na sala e se mantinha de pé à porta, com o corpo numa tensa atitude de interesse.
Lillie olhou para ele; a indignação desaparecera com as notícias, ficando automaticamente grata por o filho estar ali e em segurança. Por não ter sido ele a morrer.
- Na quinta dos Millraney - gritou Pink - Eu estava a mostrar a propriedade. Foi assassinado, Lillie. Alguém lhe esmagou a cabeça com um martelo.
- Oh, meu Deus! - exclamou Lillie. - Oh, meu Deus! O Royce já sabe? Na quinta dos Millraney? O que estava ele aí a fazer? Ó Jordan disse que ele tinha fugido.
- O Royce estava aqui. Foi ele que o encontrou. Lillie, não posso falar. Só queria que tu e o Grayson soubessem. Está aí contigo, não está?
Lillie olhou para o filho que estava de pé junto à porta. Via-se preocupação nos seus olhos. Olhou vulneravelmente para ela, esperando uma explicação.
- Sim! Está aqui - disse ela debilmente. - Meu Deus! Isto é demasiado horroroso. Quem é que eles acham que...?
- O matou? - terminou Pink - Não é óbvio?
- Que queres dizer? - perguntou Lillie.
- O Jordan Hill. Quem mais? Vai atrás do Tyler que desaparece subitamente e depois aparece morto. Ele queria apanhá-lo, Lillie.
- Pára com isso, Pink É ridículo - gritou Lillie. O Jordan nunca...
- Olha, Lillie. Não posso ocupar esta linha.
- Não, Pink É impossível. Tens de dizer isso ao Royce. Pink soltou uma gargalhada.
- Eu não vou dizer nada ao Royce. Foi-se embora. Partiu há um bocado com sangue nos olhos.
- Ele não... - Lillie ouviu o telefone desligar. - Não foi o Jordan.
Lillie ficou sentada com o auscultador na mão e depois deixou-o cair no colo. O coração quase lhe saltava do peito. Tyler morto. Assassinado. Não podia ser. Tinha as mãos geladas. Agarrou no auscultador para o colocar no descanso.
- O que foi? - perguntou Grayson. - O que se passa?
Lillie olhou para ele, sentindo-se aturdida e assustada.
- O Tyler Ansley. Está morto. Foi assassinado. Havia incredulidade na sua voz.
- Isso percebi. Lillie olhou fixamente para o filho.
- Parece que o Royce acha que foi o Jordan.
- E se foi? - disse Grayson encolhendo os ombros. Acho que nos livrámos de boa. Ele merecia morrer. - Grayson! - exclamou Lillie.
- Ele matou a Michele. Lembras-te? Porque é que nos devemos surpreender com a morte do Tyler? Estava sempre metido em sarilhos, sempre bêbedo e com más companhias. Qualquer pessoa o podia ter feito. Talvez ele andasse na droga também.
Lillie acenou com a cabeça, reconfortada.
- É verdade - concordou. - É uma loucura apontar o dedo ao Jordan. O Royce está muito perturbado. Perdeu o filho. - Foi até à janela e olhou lá para fora. Não estava ninguém. Apenas os sons nocturnos das folhas das árvores, o apito longínquo de um comboio e o ruído ocasional de um carro.
- Pobre Royce!
- Mas isto pode criar uma grande confusão - continuou Grayson. - Se ele começa a pressionar o Jordan, o Jordan pode decidir quebrar o silêncio. Dente por dente.
- Ele prometeu-me - disse Lillie.
- Sim, mas se nos quiser meter em sarilhos, poderá fazê-lo.
- Se disse que não, é não. Só sabes pensar em ti próprio?
- contrapôs Lillie, irritada, ainda olhando para a noite. O Tyler está morto. Ainda mal consigo acreditar. O Jordan não foi, por isso não têm maneira de o prender. Provavelmente o Royce precisa de culpar alguém neste momento. - Falou calmamente, mas sabia como Royce devia estar desesperado. Só esperava que ele não apanhasse Jordan naquele estado de espírito. - Deve ter sido um choque terrível - acrescentou Lillie - encontrar o filho naquele estado.
- Onde é que o encontraram? - perguntou Grayson casualmente. - Ouvi-te falar na quinta dos Millraney.
- Sim - respondeu Lillie. - O teu pai estava lá a mostrar a propriedade a uns clientes e descobriram-no.
- É mesmo coisa do pai - disse Grayson.
- Não me parece que o teu pai tenha alguma coisa a ver com isso.
- Eu sei, mas ele poderia ter-lhes mostrado apenas a casa.
Tinha de lhes mostrar o poço também? Como se isso ajudasse a vender a quinta.
Lillie virou-se e olhou para o filho.
Grayson olhou para ela de sobrancelhas erguidas.
O rosto de Lillie perdera completamente a cor. Tentava fixar a vista no filho como se tivesse a visão turva. Tinha a boca aberta de espanto.
- O que é? - gritou Grayson. - Queres que finja que tenho pena? Não tenho. Era um filho-da-mãe. Mereceu morrer.
- O que disseste sobre o poço?
Ficaram a olhar-se fixamente; em seguida, Grayson afastou o olhar, perscrutando silenciosamente a sala.
- O telefone - disse ele, triunfante. - Mencionaste isso quando estavas a falar com o pai. Provavelmente não te lembras.
- Não, não mencionei - declarou ela lentamente. - Ele não disse nada sobre um poço. Eu nem sequer sabia que havia um poço.
- Não sei - disse Grayson, irritado. - Devo ter imaginado, mas tenho a certeza que o mencionaste.
A sala começou a girar à volta de Lillie. Tentou silenciar a sua mente, mas não conseguia evitar a ideia que estava a surgir. Uma sensação gelada de medo apertou-lhe o coração.
- Grayson - sussurrou. - Tens de me dizer a verdade. Não tiveste nada a ver com isto?
Grayson olhou para ela com um ar de frustração, como se ela fosse atrasada mental.
- Claro que não. Agora vais começar a perseguir-me por causa disto?
- Se tens alguma coisa a ver com isto, tens de me dizer.
- Já te disse. Não. De quantas maneiras tenho que to repetir?
- Filho, eu... eu quero acreditar em ti. Mas porque é que disseste aquilo sobre o poço?
Grayson olhou-a com uma expressão empedernida.
- Não sei de que estás a falar. Não disse nada sobre o poço. Estás a imaginar tudo.
Lillie esteve quase a protestar, mas depois controlou-se.
- Muito bem - anuiu ela com a voz a tremer. - Vamos
já resolver isto. vou telefonar para o xerife e perguntar onde encontraram o corpo.
- Não, não vais - gritou Grayson, pondo-se à frente dela. - Volta para trás.
Quando ele lhe bloqueou o caminho para o telefone, Lillie teve subitamente consciência, pela primeira vez, do seu tamanho e força. Ele não era uma criança. Era um homem. Capaz de a magoar se quisesse. Forçou-se a tirar aquela ideia terrível da cabeça. Era o seu filho.
- Tu não me dizes o que fazer - disse ela. - Sai da minha frente.
Grayson hesitou um momento e depois, para sua grande surpresa, deu-lhe passagem. Olhou para o vazio como se estivesse preocupado com alguma coisa.
Lillie olhou para ele e depois caminhou com pouca firmeza para o telefone. Tudo se agitava dentro dela, mas tentou parecer calma e resoluta. Grayson tinha-lhe virado as costas e envolvera o punho com a outra mão.
- Está bem - disse ele, impaciente. - Está bem. Larga o telefone. Não precisas de telefonar.
Lillie apertou o auscultador.
- Porquê? - perguntou sem olhar para ele.
- Porque... ele estava no poço. Sentiu um rugido dentro da cabeça.
- Como é que sabes?
- O que é que achas?
- Oh, meu Deus!
- Quiseste que eu te dissesse. Por isso estou a dizer - afirmou, zangado.
- Oh, Deus! Não! - exclamou Lillie.
Grayson começou a andar à sua volta, forçando-a a olhar para ele.
-- Espera lá, mãe. Não ajas como se fosse uma tragédia. Estamos a falar do Tyler. Era o que tu querias que eu fizesse. Não era? - Olhou para ela, implorando. - Não era, mãe?
Ela fixou-o, com o coração aos saltos, rosto brilhante como se tivesse sido marcado com um ferro.
- Vingar a Michele - gritou ele. - Era isso que querias.
Praticamente me acusaste por não o ter feito antes. Era o que tu querias. Não o negues. Se o fiz, foi por ti e pelo pai.
As pernas de Lillie perderam as forças e agarrou-se à cadeira de Pink para se apoiar. «Deus me ajude», pensava. «Será que fui eu que fiz isto? Foi o que eu lhe fiz crer?» Os olhos encheram-se de lágrimas e começou a abanar a cabeça.
- Não, querido, não!
Grayson começou a andar para trás e para a frente.
- Esta manhã, depois de o pai sair - começou -, o Tyler telefonou-me. Queria encontrar-se comigo. Inicialmente não o queria ver, mas depois pensei que talvez fosse melhor. «É a minha oportunidade. vou fazê-lo. Ela poderá orgulhar-se de mim outra vez. Para que seja feita justiça pela Michele.»
- Tu mataste-o? - sussurrou Lillie.
- Ele matou a Michele - gritou Grayson.
- Oh, meu filho! Eu sei que disse que devia ser castigado.
- Lillie gemeu. - Mas quando disse isso não estava a falar em... tirar-lhe a vida. Nunca foi isso que quis dizer.
- Espera lá - protestou Grayson. - Não podes começar agora a falar assim. Eras tu que querias olho por olho. Estavas a gritar comigo, dizendo que eu era um cobarde. Por isso, quando ele voltou, decidi que o faria pagar de uma vez por todas.
Lillie tinha a cabeça a latejar. A boca estava demasiado seca para formar palavras.
- Oh, Deus, querido! Eu estava zangada e gritei contigo. Disse algumas coisas com raiva... mas nunca... nunca quereria que tirasses a vida a outro ser humano. Fosse qual fosse a razão.
Tentou imaginá-lo a desferir os golpes.
- Não comeces a recuar agora, mãe - insistiu ele. É demasiado tarde para isso. Fiz o que disseste.
Lillie abanou a cabeça sem saber o que dizer, estendeu a mão para ele, mas Grayson recuou.
- Grayson - disse ela. - Tens razão. Sinto-me tão culpada como se eu própria o tivesse matado. Não estou a tentar negar isso, meu filho.
Sentia falta de ar e o coração doía-lhe tanto que chegou a pensar que ia ter um ataque cardíaco.
- Óptimo - disse ele.
- Não interessa o que eu disse. Tu percebeste que era o que eu queria que fizesses.
- Exactamente - exclamou ele.
- Eu digo-lhes isso, Grayson. Tanto eu como o teu pai temos a culpa. Só te posso dizer que as pessoas vão entender. Depois de tudo o que passámos, sei que vão perceber o que aconteceu. - «Só rezo para que compreendam», pensou, se bem que duvidasse que Deus ainda ouvisse as suas preces.
Grayson olhou-a com uma expressão espantada e fria.
- Espera aí - disse ele. - Não vais contar isto a ninguém. Não te contei tudo isto para que me atirasses aos lobos. És a responsável. Tens de me proteger.
- Oh, meu filho - suplicou Lillie com a voz estrangulada. - Tens de acreditar que te amo. que não há nada que
não fizesse por ti. Mas não te posso encobrir. Já foi longe de mais. Temos de dizer a verdade. Há mais pessoas envolvidas.
- Quem? O Jordan Hill? Nós não falámos sobre a Michele - gritou ele. - E tu achaste muito bem.
- Isso era diferente - disse Lillie, se bem que não conseguisse pensar na razão. - Ela era nossa. Nós éramos as vítimas
- conseguiu finalmente dizer. - Mas a questão não é essa. Neste caso, não temos opção.
- A questão é - gritou ele - que fiz isto por ti e tu tens de me proteger.
- Não percebes? - prosseguiu a mãe. - É isso que estou a tentar fazer. O que virá a seguir, Grayson? O quê? Tudo isto já foi longe de mais. Pensas que o Royce Ansley não descobrirá, mais cedo ou mais tarde, que foste tu? E depois? Vens a pé da escola um dia e és atropelado? E nunca ninguém é preso? Assim, o Royce vinga-se. E depois? Onde é que tudo isto termina? Estou a tentar proteger-te da única maneira que conheço. Tenho de parar com tudo isto.
As lágrimas eram tantas que a cegavam.
- Muito bem, mãe! Olha! Estás a perder o juízo. Não está a fazer sentido - disse Grayson. - O pai não tarda a chegar a casa. Ele saberá o que fazer. Contamos-lhe o que se passou e deixamo-lo decidir.
Lillie abanou tristemente a cabeça.
- Eu sei - retorquiu ela. - Eu sei o que o teu pai decidirá. Achará que tudo se resolverá com mais mentiras. É por isso que não vou esperar pelo teu pai. Não podemos viver assim. Parece mais fácil para ti agora, mas tens de acreditar em mim. Estas mentiras serão a nossa destruição. Não há outra maneira.
Virou-lhe as costas e dirigiu-se ao armário. Abriu a porta, meteu a mão e tirou um casaco.
- O que pensas que vais fazer? - perguntou Grayson.
- vou à Polícia - disse ela calmamente. - E quero que venhas comigo.
- Estás doida? - gritou ele. - Não vou lá. Porque é que me estás a fazer isto? Pensei que tinhas dito que me amavas.
A sua voz assumiu um tom sarcástico.
- Eu amo-te - disse ela. - É por isso que temos de ir. É a única maneira de ficares em segurança. - Voltou ao armário e tirou o casaco dele. - Veste isto. Vais precisar dele esta noite. Está frio.
- Não, não preciso!
Ela virou-se, segurando o casaco do filho, e viu-o a olhar para ela com os olhos brilhantes de ódio. Na mão tinha a pistola de Brenda.
- Não vais dizer a ninguém - gritou.
Ela não conseguia acreditar no que estava a ver.
- Por amor de Deus, Grayson.
Ele puxou a alça de segurança. Olhou-a com uma expressão fria e assassina. Os olhos do seu filho. Quis gritar, mas não saiu som. Vieram-lhe à mente as palavras «demasiado tarde».
- Sai de junto da porta - ordenou ele. - Faz o que te digo, senão também te mato.
Abandonando gentilmente os braços da mãe, Jordan beijou a sua face seca e dirigiu-se ao carro.
- Depois, telefono - disse-lhe quando se virou para lhe acenar. Ela ficou nos degraus, segurando a parte da frente do casaco com uma mão e acenando com a outra.
Atirou com o saco de viagem para o banco traseiro do automóvel e meteu-se à estrada que saía da cidade. Só pretendia fazer um pequeno desvio antes de ir para o aeroporto e, na realidade, até ficava em caminho.
Virou na estrada que ia dar ao cemitério. Depois de estacionar o carro na berma da estrada, subiu a colina até ao portão de ferro. A Lua dava luz suficiente, mas mesmo assim não gostava nada de ir ali à noite sozinho. Hesitou uns instantes antes de se aproximar do túmulo da sua filha. Depois pensou na sua menina ali sozinha, enterrada para a eternidade, e os seus medos atávicos envergonharam-no.
As folhas mortas rangiam debaixo dos seus pés e agitavam-se contra os túmulos de granito, enquanto tentava encontrar o caminho para a sepultura. Os ramos nus e negros das árvores pareciam estender-se na direcção das sepulturas, e os campos ceifados brilhavam ao longe como neve ao luar. Jordan suspirou e olhou para a lápide. Disse uma oração em silêncio e depois abanou a cabeça. As palavras do xerife ainda o irritavam: «O melhor que faz é ir-se embora.»
Ouviu o ranger de um portão e virou-se. Inicialmente, quando viu a sombra de uma figura sobre as sepulturas, pensou que os seus sentidos o estavam a enganar, que o cansaço o levava a ver e a ouvir coisas. Porém, sentiu subitamente um arrepio.
Alguém estava a entrar no cemitério e dirigia-se para ele. Jordan olhou com atenção para a escuridão e sentiu o coração a acelerar ao ver o intruso. À medida que a figura negra se aproximava, Jordan reconheceu o tamanho e contornos e respirou fundo, o mais inaudivelmente possível, quando viu que era o xerife, Royce Ansley. Logo a seguir, a apreensão voltou quando viu a expressão do seu rosto.
- Royce - exclamou com mais cordialidade do que sentia na realidade -, encontramo-nos de novo. O que está aqui a fazer?
Os olhos de Royce estavam completamente negros e pareciam encovados. O rosto assemelhava-se ao de um velho e a expressão era fria e impassível.
- Ia a caminho da casa da sua mãe para o apanhar, quando o vi arrumar o carro - disse ele.
Jordan não gostou do tom da expressão «para o apanhar», mas mesmo assim ficou curioso.
- Decidi parar aqui a caminho da cidade. Acho que foi só para dizer adeus - explicou.
Royce olhou para a sepultura de Michele.
- Queria regozijar-se um pouco, não era? Dizer-lhe que já tinha tratado do Tyler?
Jordan olhou para o xerife.
- Pensei que já tínhamos falado sobre o assunto - insistiu ele.
- Quase conseguiu o que queria - disse Royce lentamente. - Mas não tudo, não é verdade?
- Olhe, xerife - interrompeu Jordan, impaciente. Acho que já falámos o suficiente no hotel. - Jordan olhou para o mostrador do relógio, que era luminoso. - Sei que está irritado e talvez queira terminar este assunto em particular, mas tenho de apanhar o avião.
Royce sorriu tristemente para Jordan.
- Pensava que tinha encontrado o lugar ideal para ele. Não foi? Nunca imaginou que o encontrássemos tão depressa.
Deve ter ficado muito surpreendido quando o Wallace apareceu no hotel esta noite.
Pela primeira vez, Jordan ficou verdadeiramente confuso. - De que está a falar? Encontrar quem? Os olhos mortos de Royce encheram-se de raiva.
- Devia matá-lo com as minhas próprias mãos - exclamou, dando um passo na direcção de Jordan.
Jordan saltou para trás, ainda tentando compreender o que se passava. Mas, de repente, as palavras de Royce começaram a fazer sentido. Olhou fixamente para o xerife.
- Meu Deus, Royce. Encontrou o Tyler? - perguntou ele. - O que lhe aconteceu? Ele está bem?
- Poupe-me o espectáculo - disse Royce. - Guarde-o para alguém que o saiba apreciar. Por exemplo, um júri. Vamos. vou prendê-lo.
Enquanto falava, Royce tirara as algemas do cinto. Aproximou-se e colocou-as em Jordan, torcendo-lhe os braços atrás das costas, antes de Jordan ter a possibilidade de protestar.
- Prender-me? - gritou Jordan. - Espere. O que está para aí a fazer? O Tyler está morto, Royce?
Royce deu um safanão a Jordan e este tropeçou para a frente. Empurrado pelo xerife, caminhou aos tropeções através do cemitério.
- Está morto, está! - rosnou Royce. - O que pensou? Que lhe desfazia a cabeça e o atirava para dentro de um poço só para lhe dar uma lição?
Apesar da fúria, a voz do xerife falhou nas últimas palavras.
Tinham chegado ao portão e Royce empurrou Jordan para a frente, obrigando-o a cair pela colina abaixo e aterrar de rosto no chão, pois não podia utilizar os braços para amortecer a queda. Rolando o corpo para o lado, Jordan conseguiu pôr-se de joelhos enquanto Royce abria a porta do carro da Polícia. Agarrou Jordan pelo cotovelo, puxando-o para cima, e empurrou-o com toda a força para dentro do carro. A face de Jordan chocou contra a manivela da porta e ele caiu no banco de trás.
Tentou sentar-se enquanto Royce dava a volta e se instalava . ao volante. Jordan sentia o sangue a escorrer pela face.
- Royce! - gritou ele.
- Cale-se! - bradou o xerife.
Arrancou com o seu carro da berma da estrada, deixando o carro alugado de Jordan em frente do cemitério.
- O que aconteceu? O que aconteceu com o Tyler? Meu Deus! Eu disse-lhe que nem sequer cheguei a vê-lo!
- Isso foi o que você disse - retorquiu o xerife amargamente.
- Juro - disse Jordan. - Já tinha fugido quando cheguei à academia. O coronel telefonou-lhe. Ele poderá corroborar isso.
- Você afirma que ele fugiu - corrigiu Royce. - Deve ter sido depois de o matar. Depois trouxe-o para cá e largou-o num sítio onde supostamente ninguém procuraria. Que surpresa, para você, seu galã de cinema.
Jordan reclinou-se no assento e lambeu o sangue que lhe pingava para a boca. Fechou os olhos e tentou pensar. Tinha de haver uma maneira de fazer Royce compreender. «Acalma-te», disse a si próprio. «Pensa. Claro que ele suspeita de ti.» «Foste atrás do Tyler. Até então, o Tyler estava bem.»
Tyler morto. Jordan quase ficou sem respiração ao pensar nisso. Era inacreditável. No dia anterior tinha ido à procura dele e hoje estava morto. Jordan não pôde deixar de perceber que era muita coincidência. «Mas tu sabes a verdade», disse a si próprio. A verdade é que o Tyler tinha fugido. «O que significa que deve ter voltado para Felton. Deve ter tido uma razão para voltar.»
Jordan abriu subitamente os olhos e endireitou-se. «Já sei porque é que ele voltou», pensou. «Sabes algo que o Royce não sabe.»
Inclinou-se para a frente, aproximando-se da grade protectora que os separava.
- Xerife - disse ele. Royce ignorou-o.
- Royce, lamento muito a morte do seu filho. Por favor, acredite. Todavia, não tive nada a ver com isso.
- A visita que fez ao hotel esta noite. Foi um bonito pormenor. Queria ver se conseguia que eu lhe lambesse as botas depois de já ter morto o meu filho. Só queria esfolá-lo vivo.
Quase não me importo com as consequências desde que o fizesse pagar por isto.
- Quer continuar a fazer ameaças ou quer falar da verdade? - A voz de Jordan sobrepôs-se às ameaças do xerife. Eu não trouxe o seu filho para aqui. Nem vivo, nem morto. Ele voltou para ver uma pessoa e eu sei quem foi.
Através da grade que separava os assentos, Jordan conseguia ver que o xerife tinha os ombros encolhidos como para afastar o som da voz de Jordan. Este inclinou-se para a frente.
- O Grayson Burdette - exclamou. - Ele voltou para ver esse miúdo.
Royce abanou a cabeça e continuou a conduzir, mas depois foi como se ele, e não o carro, tivesse ficado sem gasolina. Diminuiu a marcha e encostou à berma da estrada, onde parou. Ficou ali sentado sem se mexer, recusando-se a olhar para Jordan.
Os lábios de Jordan estavam tão secos que mal conseguia falar. O rosto de Royce continuava virado para a frente, e Jordan não fazia ideia do que se passaria na cabeça do xerife. A estrada era deserta e desolada e sentiu algum medo. Porém, no mais fundo de si, estava calmo e controlado pelas suas convicções. A verdade começara a deslindar-se na sua cabeça.
Quando olhou pela janela do carro-patrulha, reconheceu o local onde tinham parado.
- Royce - disse ele ao homem silencioso e imóvel que estava sentado à sua frente. - Estamos mesmo junto à entrada para os Arcos. Quero ir lá baixo. Quero voltar a ver o local onde a Michele morreu.
Esperou ansiosamente, preparado para a hipótese de o xerife lhe apontar a arma. Ao contrário, Royce saiu do carro e abriu a porta de Jordan. Não disse nada e, no meio da escuridão, Jordan não conseguia ver-lhe os olhos. Saiu do carro, e os dois homens dirigiram-se à estrada de terra que conduzia à ponte. Jordan olhou para o xerife, mas Royce continuava a olhar para a frente. Chegaram à estrada de terra e começaram a descê-la na direcção da ponte e do rio. Jordan tinha os braços doridos por estarem presos, mas não se queixou. Enquanto caminhava, a sua mente trabalhava ininterruptamente. Só havia uma pessoa pela qual Tyler arriscaria a sua segurança: Grayson. Grayson, a outra testemunha. A única pessoa que sabia exactamente o que acontecera com Michele. Portanto, a única pessoa que poderia ter uma boa razão para o matar.
Pelo passo arrastado e expressão preocupada do homem que caminhava ao seu lado, Jordan achou que ele poderia estar a pensar o mesmo, de uma maneira diferente, mas havia uma peça que faltava no puzzle do xerife. Uma peça que ele não gostaria de ouvir.
Um ramo baixo chicoteou o rosto de Jordan e ele soltou um grito. O xerife parou e olhou para ele. Jordan calculou o efeito das palavras que viriam a seguir. Estava algemado e sem defesas. Preparou-se para um golpe e falou rapidamente antes de Royce poder reagir.
- Ele voltou para ver o Grayson e vou dizer-lhe porquê - pronunciou Jordan numa voz baixa. - O seu filho estava apaixonado pelo Grayson Burdette.
Royce balançou-se para a frente como se se fosse atirar ao prisioneiro. O seu rosto estava vermelho de raiva, mas não agrediu Jordan.
- Seu vagabundo mentiroso - exclamou.
Jordan conseguia sentir a respiração do xerife sobre si, mas não recuou.
- Descobri isso na academia. O Tyler amava-o. Faria qualquer coisa pelo Grayson. Acho que o Tyler estava a proteger o Grayson. - Jordan olhou para os olhos atormentados de Royce. - Acho que o Tyler admitiu o crime para proteger o Grayson.
- Maldito sejas - grunhiu Royce.
O seu rosto estava cada vez mais escuro e a voz muito dura. No entanto, Jordan conseguia perceber na voz uma nota desamparada de aquiescência.
- Você sabe que tenho razão - insistiu Jordan. -: Sabe que aquele rapaz não tem nada de normal.
Royce afastou-se dele e tropeçou na estrada esburacada como um urso ferido. Jordan seguiu-o, aproveitando a oportunidade. Começou a dizer em voz alta tudo o que lhe atormentava o pensamento.
- Nunca perguntou a si próprio - continuou - por que razão o Grayson nunca foi responsabilizado pela morte da Michele? Porque é que não tentou travar o seu filho, se é que lá estava? Tratava-se da própria irmã. Será que tudo se passou assim tão depressa? Não acredito.
- Eles disseram que sim - gritou Royce. - O Tyler disse que sim.
- Agora - disse Jordan suavemente -, o Grayson afirma que a irmã tirou a blusa e que ele lha voltou a vestir depois de morta.
Royce parou. ., - Ele disse isso? É Jordan assentiu com a cabeça. - Foi o que disse à Lillie.
Royce continuou a andar. Chegou à margem do rio e parou, olhando para a ponte.
Jordan colocou-se a seu lado.
- Você viu o corpo - disse Jordan com urgência. - Ela estava com o rosto enterrado na lama e o Grayson diz que lhe vestiu a blusa. E depois deixou-a assim? Eu acho que ela nunca tirou a blusa. É mais uma das mentiras do Grayson. Que tipo de pessoa deixa a irmã de cara enterrada na lama?
Os dois homens olharam para o outro lado do rio. Um, revendo a cena; o outro, imaginando-a com horror.
- Porque é que ele fugiu? - continuou Jordan. - Porque é que concordou prontamente em proteger um rapaz que matara a irmã à pancada? Não acredito. E você? Por que razão acreditou imediatamente que o culpado era o seu filho? É mais fácil acreditar nisso do que admitir que ele pudesse estar a proteger outro rapaz, o assassino, porque estava apaixonado por ele? É?
- Seu filho-da-mãe - murmurou Royce.
- Apenas o Tyler sabia quem realmente matara a Michele. Enquanto o Tyler mantivesse a sua história, o Grayson estaria seguro. Quando fui atrás do Tyler, o Grayson percebeu que a tampa poderia saltar - gritou Jordan. - E depois o Tyler fez exactamente o que ele queria. Apareceu aqui, provavelmente para pedir ajuda ao Grayson, e o Grayson viu a oportunidade de o calar. De se proteger!
- Não - disse Royce, furioso, virando-se para ele.
- Sim - disse Jordan. - Pense nisso.
- Não! Isso significaria que o Grayson a tinha assassinado. A própria irmã. Ela era apenas uma rapariga doce e inofensiva. Por que motivo a mataria?
- Porque, naquela noite, ela tropeçou na verdade. vou dizer-lhe o que penso - prosseguiu Jordan, olhando com ar de desafio para os olhos angustiados do xerife. - Acho que o seu filho mentiu por amor, mas o Grayson... bem, acho que o Grayson faria qualquer coisa para evitar essa humilhação. Qualquer coisa!
Lillie apertou o casaco do rapaz contra o peito como se fosse um escudo de protecção e olhou para o filho.
- Vem cá - chamou ele -, senta-te. Lillie não se mexeu do local onde estava.
- Grayson - disse ela com voz trémula -, vai imediatamente pôr a pistola onde a encontraste e eu tentarei esquecer que isto aconteceu. Imediatamente.
Grayson sorriu, mas os olhos estavam repletos de crueldade.
- Desculpa, mãe - disse. -- Não a devias ter deixado lá. Lillie sentiu-se acometida por uma imensa fúria e avançou
para ele. Grayson apontou-lhe, sem hesitar, a pistola ao peito.
- Para trás - gritou ele. - Pensas que estou a brincar? Ela percebeu imediatamente que não. Não havia incerteza
no seu olhar ou qualquer inclinação para recuar e fingir que tudo fora um jogo. Lillie sentiu-se enojada e o chão parecia areia debaixo dos seus pés. Sentou-se na cadeira que ele indicou.
- A culpa é tua - prosseguiu ele. - Foste tu que quiseste isto. Voltaste para casa a fingir que querias que tudo ficasse bem e regressasse ao normal, mas o que querias era meter-me em sarilhos. Admite! - exigiu. - Andavas à procura de alguma coisa para te vingares de mim. O que fizeste na primeira oportunidade? Mal podes esperar para me entregar à Polícia. Arrastar-me pela lama.
- Arrastar-te pela lama? - repetiu Lillie, incrédula. - Grayson, eu temia pela tua vida. Não te quero ver sofrer. Baixa a pistola, Grayson. Não sabes o que estás a fazer. Baixa a arma e conversemos. Por favor!
- Conversar! - exclamou Grayson. - É tudo o que tens feito a noite toda. Dar-me sermões. Interrogar-me.. _ ,A._ Michele isto, a Michele aquilo. O que aconteceu? Onde estavas? Quem lá estava? Quantas vezes é que o Tyler lhe bateu? O que é que isso importa? Acabou. Está feito. Esquecido. Mas não! Tens de falar, falar, falar. Oh, meu Deus!
«E agora queres falar do Tyler, não é? O que aconteceu ao pobre Tyler. Queres falar sobre isso com toda a gente. O que é que o Grayson fez ao pobre Tyler? Até parece que era ele o teu filho.
«Meu filho», dizia Lillie a si própria continuamente. Como se aquele pensamento fosse um mantra que a protegeria das suas palavras semelhantes a pedras. «O meu filho.»* - Abanou a cabeça sem saber o que fazer.
- É contigo que estou preocupada. Só contigo». Estava a tentar ajudar-te. Sei que não vês as coisas dessa maneira, mas é verdade.
- És uma mentirosa - acusou ele. - Já sabia que nunca poderíamos confiar em ti. Desde o princípio que disse ao pai. Ele queria contar-te tudo sobre a Michele. Estava pronto a chegar a casa e a despejar a história toda porque se encontrava muito excitado e não conseguia pensar. Tive de o avisar. Sabia que ficarias contra mim como sempre fizeste. Ela era ccomo um cãozinho que estava sempre a teus pés. Eu não sou »o+» cachorrinho de ninguém. Não me vou rebaixar e deixar que pessoas menos inteligentes do que eu me dêem ordens. Pessoas que não têm a aparência e classe que eu tenho no dedo mindinho. Não é justo que o faça.
Lillie olhou para o filho. As suas palavras feriam-na, e desejava poder cortar o som das tiradas sem remorsos quando estava a ouvir. De onde é que isto saiu?», pensou. «Será que sempre lá esteve?»
Ele viu-lhe o desespero nos olhos e assentiu ligiramente com a cabeça.
- Sei o que estás a pensar. Pensas que sou vaidoso, não é?
É claro que pensas isso porque és demasiado limitada para admitir que possa ser verdade. Reflectindo bem, faz sentido que preferisses a Michele. Era mais vulgar e ingénua. Mais o teu tipo.
Ele abanava a arma enquanto falava e Lillie mantinha os olhos postos nela como se se tratasse de uma cobra ondulante. Ele gostava de a ter na mão, gostava de a manter prisioneira e de a atormentar. Lillie teve de ignorar aquelas palavras e manter a compostura. «Sê a adulta. Tenta acalmá-lo.»
- Grayson - disse ela o mais tranquilamente possível. Lamento que penses que preferia a tua irmã. Isso só aconteceu porque ela estava doente. Amo muito mais os dois do que podes imaginar e agora és tudo o que me resta...
- Não me importo - disse Grayson impacientemente.
- Não imagino que seja um grande privilégio ser preferido por ti. De facto, parece-me mais um fardo.
- Odeias-me assim tanto? - perguntou Lillie.
Todavia, assim que as palavras lhe saíram da boca a resposta pareceu-lhe ridiculamente evidente. Ele estava a apontar-lhe uma arma e a ameaçá-la.
Grayson olhou para ela, surpreendido.
- Não - disse ele como que num desejo genuíno de a reconfortar. - Na generalidade, tens sido muito boa como mãe. Não diria que tens sido excepcionalmente boa, mas também não foste excepcionalmente má. Acho que fizeste um trabalho bastante decente. Tens sido uma boa cozinheira, a casa está sempre limpa e ainda pareces bastante jovem para a tua idade.
A sua avaliação indiferente cortou-lhe o coração. Teria preferido o ódio. Estava a tornar-se inegavelmente claro para Lillie, se bem que não o conseguisse entender, que nenhum apelo emocional o demoveria. Ela poderia ser uma estranha que ele encontrara num beco.
Lillie estremeceu e respirou fundo.
- Grayson - insistiu. - O que queres de mim? Grayson apertou os lábios e abanou tristemente a cabeça.
- Algo que lamento não poder obter. A tua lealdade. Preciso de saber que posso confiar em ti, mas não vejo como.
Apesar do controlo, as lágrimas saltaram dos olhos de Lillie, que se apressou a limpar com raiva.
- Como te atreves? - exclamou. - Só tentei fazer o que achei melhor.
- Vês? - respondeu ele. - Não estamos de acordo. Estarás sempre no meu caminho. Sempre a tentar puxar-me para baixo em nome do amor materno. Tenho de me livrar de ti.
«Livrar-me de ti.» Aquela ameaça sobressaltou-a como se fosse um choque eléctrico, mas quando o sobressalto desapareceu, não se sentia receosa, mas sim envergonhada e triste. O seu próprio filho. «Ele está louco», pensou.
Parte dela recusava-se a viver mais um instante que fosse com o que sabia, mas a vontade de sobreviver veio à superfície e orientou-a. O medo regressou, dando sinal. «Diz-lhe alguma coisa», pensou Lillie. «Mantém-no a falar até o Pink chegar.»
- O teu pai deve estar a chegar - disse.
- É disso que estou à espera - afirmou ele. - Assim poderei dizer que foi ele que te matou.
Lillie fixou-o.
- Toda a gente sabe que vocês têm discutido - continuou ele. - Toda a gente na cidade já viu que te matou. Diremos que foi uma espécie de acidente. Direi que tentei impedi-lo e sairei muito bem desta história. O pai ficará com as culpas - concluiu. - Ele faz qualquer coisa por mim.
Ela já não conseguia olhar para o filho. Os seus ouvidos estavam imersos num rugido que parecia o mar. Olhou para a arma. «Levanta-te, atira-te a ele e tira-lha das mãos. Se te matar, não importa. Existe alguma razão para viver?»
Mas estava colada à cadeira, paralisada a tentar acolher o último momento da sua vida. Grayson olhava para janela.
- Olha quem chegou - disse ele. Abriu uma testa da porta da frente e baixou a arma. - Entra!
Grayson afastou-se, abriu a porta e Pink entrou em casa.
- Fecha a porta - ordenou Grayson.
Pink fechou a porta, virou-se e viu Grayson empunhando a arma na direcção de Lillie. Por alguns instantes, o rosto enrugou-se, abriu muito os olhos e deu um salto para trás. Porém, recompôs-se quase imediatamente e agiu com a calma e desinteresse como se tivesse acabado de chegar a casa do trabalho e aquilo fosse a coisa mais natural do mundo: encontrar o filho com uma arma apontada à mãe. A única coisa que o traiu foi o suor que lhe invadiu o rosto.
Lillie reparou e compreendeu que Pink estava a fazer um esforço incrível para manter uma postura imperturbável e sentiu-se muito agradecida. Simultaneamente as palavras de Grayson correram-lhe pela mente como se fossem campainhas: «O pai fará tudo por mim.»
- O que se passa aqui? - perguntou Pink ao filho. - O que é isto ?
- Foi ela que começou - afirmou Grayson. - Pergunta- lhe.
- Perguntei-te a ti - disse Pink irritado. - Onde arranjaste essa pistola ?
- Estava ali - disse Grayson, indicando a lareira com a cabeça.
- E o que estava lá a fazer? - perguntou Pink como se fosse a arma a culpada.
- Não sei - disse Grayson.
- É da Brenda - sussurrou Lillie. - Pô-la na minha carteira.
Pink abanou a cabeça e suspirou.
- Brenda - disse ele. - Já devia ter pensado nisso. Muito bem, Grayson. Dá-me essa coisa e conta-me o que se está a passar.
Lillie viu uma expressão de raiva nos olhos do rapaz, um sorriso de desprezo em relação à autoridade do pai e depois pareceu pensar melhor no assunto. Continuou de arma na mão, mas o tom de voz era diferente. Ali estava o seu aliado, o seu amigo.
- Ela pensa que eu matei o Tyler. Ameaçou ir à Polícia e denunciar-me.
- O quê? - disse Pink incrédulo. Virou-se para Lillie.
- Nunca ouvi nada tão incrível.
- Foi ele que me disse - afirmou Lillie. - Apanhei-o numa mentira e ele admitiu.
- Não admiti - disse Grayson. - Ela está a inventar.
- Deves ter percebido mal o que ele disse, Lillie. Isto é um ultraje. Toda a gente sabe quem é o culpado. - Pink olhou para Lillie com desilusão no olhar. - Porque é que fizeste isto, Lillie? - perguntou. - Estávamos a começar a encarrilar esta família e tu dizes uma coisa dessas. O que é que ele tem de fazer para te dar provas? Porque é que pensas sempre o pior do rapaz?
O pequeno raio de esperança que Lillie sentiu á chegada do marido dissolveu-se dentro dela. Estava a criticá-la pelas suas transgressões e aparentemente aceitando a ideia de Grayson apontar uma arma à mãe. Olhou desamparadamente para o marido. Era como se ele estivesse encantado pelo filho. A sua fé era impenetrável. Preferia acreditar que a mulher era uma mentirosa do que perturbar a aura mágica que rodeava o rapaz.
- Pink - disse ela teimosamente -, quando tu telefonaste, ele já sabia que o corpo do Tyler estava no poço. Quando o confrontei com o facto, disse-me que tinha morto o Tyler por vingança.
Pink franziu o sobrolho e mordeu o lábio.
- Vingança. Até posso compreender. - Pink virou-se para Grayson. - Foi isso que aconteceu?
- Não - disse Grayson depois de um momento de hesitação. - Ela está a inventar Pink olhou para um e para o outro.
- Alguém está a mentir. Tens a certeza, Lillie? Tens a certeza de que não imaginaste tudo isto?
- Meu Deus, Pink - gritou Lillie, virando-lhe as costas.
- Não ajas como se a culpa fosse minha - disse Pink.- Entro em casa e ouço duas histórias diferentes. Só estou a tentar entender.
- Não estás a ver o que ele está a fazer? - Gritou Lillie.
- Está a defender-se - disse Pink - Porque é que não sais daqui, Lillie? Vai dar um passeio ou coisa do género. O Grayson e eu vamos conversar sobre o assunto.
- Esperem lá, esperem lá! - exclamou Grayson. - Calma. Ela não vai a lado nenhum.
- Olha - disse Pink - Não precisamos dela aqui. Nós falamos disto a sós.
Se Pink fosse outra pessoa, pensava Lillie, teria sido um estratagema inteligente; uma maneira verdadeiramente heróica de a salvar. Libertá-la e ficar com a carga sobre si. Mas ela sabia que não era assim. Era o padrão bem familiar das suas vidas. Observou o rosto brando de Pink tentando perceber o que lhe teria causado uma cegueira tão grande. Uma coisa era óbvia: Grayson não iria concordar com o seu plano.
- Não - repetiu Grayson. - Ela fica aqui.
- Olha, filho -- disse Pink pacientemente. - compreendo perfeitamente que estejas perturbado por seres acusado disso. É razoável. No entanto, não podes pegar numa arma e apontá-la às pessoas. Primeiro, porque é perigoso e, segundo, dá uma impressão errada.
- Não a posso deixar ir, pai. Irá a correr ter com o xerife e dir-lhe-á que eu matei o Tyler e que lhe apontei uma arma.
- Não vai. Posso garanti-lo - prometeu Pink - Isto é um assunto de família que fica estritamente entre os três. Não é verdade, Lillie?
Tinha medo de falar, de desafiar aquela arma carregada, mas não podia ficar em silêncio. =-'Já não é - disse ela.
- Estás a ver? - disse Grayson.
- Raios, Lillie. Esta família não foi já suficientemente sacrificada? Tens de arranjar mais coisas? Pensei que tínhamos concordado em resolver os problemas à nossa maneira.
- Isso era antes - afirmou Lillie com uma voz triste. Estavam os dois contra ela, preparando-se para a esmagar.
Mas já não se importava.
- Espera lá - disse Pink subitamente, semicerrando os olhos. - Vamos lá ver. Acho que já estou a compreender uma coisa. - Olhou sinistramente para a esposa. - Diz-me que estou enganado. Diz-me que isto não pode ser. Oh, meu Deus... Não admira... Isto é por causa do Jordan Hill, não é? Pensas que ele vai ser preso por causa disto e decidiste arranjar outra solução. Não admira que o Grayson esteja a agir desta maneira.
- Por amor de Deus, Pink - gritou Lillie. - Achas que acusaria o meu próprio filho... para proteger outra pessoa?
- Olha, Lillie - disse Pink pondo as mãos no peito. Não sei o que farias. Para mim és um mistério. Está bem? Mas este é o meu filho. O meu próprio filho e não vou admitir que tu ou qualquer outra pessoa o difamem ou acusem. Se não o amas, o problema é teu.
- Não é uma questão de amor... - gritou Lillie, mas ele virou-lhe as costas.
Abanou a mão, parecendo um polícia de trânsito, pedindo a Grayson que se aproximasse dele.
- Muito bem, filho. Dá-me essa arma. Tudo vai ficar bem.
- Ela vai dizer-lhes que fui eu- insistiu Grayson. - Vai contar ao xerife.
- Não te preocupes com ela. Não vai dizer nada a ninguém. Acredita.
Grayson abanou a cabeça.
- Não podemos confiar nela. Vai contar ao xerife.
- E nós dizemos ao xerife que está a mentir - contrapôs Pink pacientemente. - Saberá que ela está a mentir. Diga o que disser, eu trato do assunto.
- Pai - protestou Grayson quase gentilmente. - Não podemos correr esse risco. Vai ser ela e o Jordan Hill contra nós os dois. O Jordan Hill é uma pessoa importante. Trabalha para a televisão. Tu só tens um negociozito de aldeia. Em quem é que achas que as pessoas vão acreditar? Nele, é claro, e dirá tudo o que ela quiser. Já sabes que só andam à procura de uma maneira de nos lixar aos dois.
- bom - disse Pink -, ele pode trabalhar para a televisão, mas acho que ainda tenho alguma influência nesta cidade. De qualquer modo, não sei que mais poderemos fazer.
- Eu acho que não os devemos deixar levar a sua avante. Acho que a melhor solução seria matá-la acidentalmente com esta arma.
Lillie ficou quase feliz por Grayson ter finalmente proferido aquelas palavras. Levantou lentamente a cabeça e olhou para Pink como que dizendo: «Vês? Compreendes agora?»
Pink olhou estupefacto para Grayson e depois para a mulher. O queixo descaiu e piscou os olhos algumas vezes, como se tivesse acabado de acordar, e depois voltou a olhar para o filho com a expressão mais mortificada que ela jamais vira. Teve tanta pena dele que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Ele apostara tudo naquele filho. Agora precisava de conciliar aquela afirmação de crime com a figura perfeita de todos os seus sonhos e expectativas: aquele filho.
- Grayson - sussurrou Pink por fim com a voz a tremer.
- Sei que não querias dizer isso sobre a tua mãe. Estás apenas perturbado.
- Pai - insistiu Grayson, ansioso -, tenho estado a pensar. Não seria muito difícil. Primeiro, a arma é da Brenda, por isso a Brenda terá que admitir que a mãe a tinha.
Pink olhava para Grayson como que estupidificado, perdido, com uma expressão assombrada.
- Não digas mais nada, filho.
- Queres ouvir-me? - exigiu Grayson. - É um plano perfeito. Dizemos que vocês discutiram e que ela puxou da arma contra ti. Seria natural que tu lha tentasses tirar e que acidentalmente disparasse. Assim ela, digamos, desapareceria.
Pink estava a tremer e o seu rosto habitualmente corado mostrava-se pálido. Lillie enterrou o rosto nas mãos, pois não suportou a imagem que o seu próprio filho fizera da sua execução.
Pink aclarou a garganta.
- Grayson, todos nós nos excitamos às vezes e imaginamos que queremos magoar as pessoas que nos magoaram. É apenas uma coisa inofensiva... É uma coisa que... que toda a gente faz. Não significa nada.
- Podemos fazer isto, pai - disse Grayson. - Tu e eu. Ninguém saberá.
- Está bem - anuiu Pink abruptamente. - Já chega de disparates. Dá-me essa pistola. Ninguém vai matar ninguém.
- Mas o que é isto? - disse Grayson. - Pensei que nós estávamos sempre unidos. Foi o que sempre disseste.
- É verdade - assentiu Pink evitando os olhos do filho.
- E estou a dizer-te que tratarei de tudo. Ninguém te tocará.
Prometo.
Grayson semicerrou os olhos e depois começou lentamente
a abanar a cabeça.
- Não me venhas com desculpas, pai. O que te faz pensar que consegues lidar com o assunto? Não tens qualquer autoridade nesta cidade. Não és ninguém. Nem sequer tens um carro novo. Porque é que acreditariam em ti e não nela?
Pink corou ao ouvir aquela avaliação cruel.
- Esse problema é meu - disse ele. - Sou teu pai. Vais fazer o que eu te mandar.
- Não discutas com ele, Pink - pediu Lillie com uma voz baixa e de advertência.
Pink olhou para ela como que ultrajado com o facto de a mulher tomar o partido do filho.
- Não te metas - ordenou ele amargamente.
Havia rancor nos seus olhos como se ela tivesse toda a culpa daquela destruição.
- Não me venhas com essa do «Sou teu pai» - disse Grayson. - E os meus planos e o meu futuro? Eras tu que estavas sempre a dizer que eu ia ter uma vida fantástica.
- E terás - gritou Pink - Vai ser exactamente como pensámos.
- Não será, se permitires que ela me denuncie. Todos estes anos, fizesse eu o que fizesse, ficavas do meu lado. Punhas-me sempre a mão sobre o ombro para apareceres nas fotografias dos jornais, punhas os teus dedos sebentos sobre os meus trofeus, tentando sempre mostrar que eras tu que estavas por detrás. Quando eu ganhava um jogo, dizias que eras o treinador, e no melhor dia da tua vida nunca me chegaste sequer aos pés - proferiu Grayson com sarcasmo. - Deixa-me que te diga uma coisa: eu deixo-te ficar com os louros, mas o que é justo, é justo. Agora terás de assumir a culpa. É a tua vez.
Grayson levantou a arma e começou a caminhar na direcção de Lillie. Pink ficou paralisado como se as palavras de Grayson lhe tivessem tirado a vida. Depois, subitamente, deu um salto e colocou-se entre Grayson e a mãe.
- Grayson - suplicou ele, choroso. - Talvez não me tenhas em grande estima e talvez seja verdade o que estás a dizer. Não sei. Tenho tido muito orgulho em ti e acho que tu não te tens sentido muito orgulhoso de mim... - A voz de Pink falhou. Parou e afastou o olhar com o corpo a tremer. -
Mas - continuou -, eu posso tratar disto, Grayson. Vou-te provar o que valho. Entrega-me a arma e eu demonstro-to. Estendeu a mão, implorando, mas Grayson levantou a cabeça como um animal que fareja o perigo.
- O que é isso?
Lillie também tinha ouvido. Parecia a porta de um carro a bater lá fora.
- É o vento - disse ela.
- Está alguém aqui? - perguntou Grayson.
Pink parecia não se dar conta dos ruídos que vinham da rua e da agitação do filho. Avançou e abanou o braço de Grayson.
- Filho, tens de me dar essa pistola - insistiu. - Tens de confiar em mim. Crê que verás que tenho razão. Confia em mim. Por favor, filho. Por favor. Faz isso por mim. Posso salvar-te.
- Já sabia que eras um fraco - disse Grayson.
Lillie viu o desprezo nos olhos de Grayson enquanto o pai tentava tirar-lhe desajeitadamente a arma das mãos. Ela saltou da cadeira.
- Não, Pink Não - suplicou. - Afasta-te.
Mas Pink não recuou. Estava concentrado na sua tarefa com uma expressão determinada no rosto largo e magoado. Grayson suportou a interferência por uns instantes, mas foi tudo.
--Estás à minha frente - disse ele.
- Larga-o, Pink - gritou Lillie. - Ele mata-te.
No entanto, a voz foi abafada pelo barulho do tiro. Lillie gritou e correu para o marido. Pink ficou parado com os olhos muito abertos. Apertou o buraco sangrento que tinha no peito enquanto Grayson levantava a arma ainda fumegante. Pink esticou uma mão e depois cambaleou para a frente na direcção da figura tensa e inflexível do filho. Grayson sorriu, afastou-se para o lado e Pink caiu primeiro de joelhos e depois para o chão.
No mesmo instante, a porta da frente abriu-se. Jordan Hill atravessou a sala a correr e atacou Grayson, que foi apanhado de surpresa e caiu. A arma tombou-lhe das mãos enquanto lutavam. Grayson arranhava, dava pontapés e agarrava-se furiosamente a Jordan, cuja experiência e peso só constituíam uma pequena vantagem em relação à resistência feroz do rapaz.
Lillie gritou e depois voltou a gritar, enquanto Royce Ansley aparecia à porta de arma em punho. O xerife olhou para o corpo de Pink depois para Lillie, virando-se depois para o rapaz que Jordan conseguira lançar ao chão.
Nesse momento, Lillie viu qual era a sua intenção.
Gatinhou pelo chão e protegeu o corpo do filho com o seu.
- Não, Royce - gritou. - Não o mates. Por favor. Royce Ansley hesitou, vingativo e tentado, mas depois meteu a pistola no coldre.
- Está bem - anuiu.
Atravessou a sala e puxou Grayson para cima. Jordan soltou-o de boa vontade. Foi ter com Lillie e agarrou-lhe a mão. Ela apertou-a e agarrou-se a ele. Pouco depois, largou a mão de Jordan e dirigiu-se ao corpo do marido. Ajoelhou-se a seu lado e tomou-lhe o pulso. Em seguida, abanando a cabeça, tocou gentilmente o seu corpo sem vida e começou a chorar. Jordan agachou-se a seu lado e fechou as pálpebras do rosto espantado de Pink.
- Vamos embora - disse Royce, conduzindo Grayson já algemado para a porta.
Os olhos negros de Royce estavam completamente apagados quando se viraram para o corpo de Pink.
- O pai está morto? - perguntou Grayson com uma voz juvenil e ansiosa.
Lillie virou-se e olhou para cima, limpando os olhos.
- Sim, Grayson - disse.
Jordan ajudou-a a levantar-se. Estava a tremer incontrolavelmente.
- Eu não queria disparar - declarou Grayson. - Ele agarrou a pistola e ela disparou. Foi um acidente.
Ela não lhe virou as costas. Fixou-o.
- Não, não foi - declarou.
A voz não quebrou. Estava firme e paciente, como que a corrigir o erro de uma criança. Um erro que necessitaria de ser corrigido vezes sem conta.
O Dr. CarLundgren terminou de tomar as suas notas e depois reclinou-se na cadeira, olhando para a tarde cinzenta e chuvosa através da janela com grades do seu gabinete. Os Invernos ali assemelhavam-se a um dia continuamente cinzento e húmido, mas não o deprimiam. Achou que devia ser a sua costela escandinava, algo genético que o fazia gostar da estação do ano mais deprimente do Tennessee.
Afastou o seu bloco-notas e procurou, na desordem que reinava na sua secretária, a pasta que queria. Na realidade, nem precisava de a ler. Estudara-a muitas vezes nos últimos três anos. Era um dos seus casos favoritos.
De facto, se bem que alguns o achassem deformado ou macabro, CarLundgren adorava o trabalho que fazia na prisão. Tratava muitos casos na sua clínica particular, mas o trabalho na prisão estava a afastá-lo das neuroses do público em geral. Era um homem de família, sempre com a mesma disposição, cuja ideia de desrespeito pela lei era, por vezes, estacionar o carro perto de uma boca de incêndio, mas as pessoas que conhecia dentro daquelas paredes fascinavam-no. Todos os prisioneiros gostavam de falar com ele, porque se interessava muito por eles e pelas vidas bizarras que levavam. «A quem é que isso pode incomodar?», perguntava ele a si próprio.
O guarda apareceu à porta do bloco das celas e disse a Carl que havia alguém à sua espera na sala de visitas.
- Está bem - disse o médico. - Já vou.
Abriu a pasta que tinha na mão e passou novamente os olhos por ela a fim de ter as informações frescas para a visita com a mãe do prisioneiro. Sabia que ela lhe faria uma série de perguntas. Fazia sempre, mas ele não conseguia explicar muita coisa.
Depois de meter a pasta na gaveta dos arquivos e de a trancar, Lundgren saiu do bloco dos serviços de saúde e atravessou uma série de portões que tinham de ser destrancados até chegar à zona dos visitantes.
Olhou lá para dentro, mas não a viu. Havia alguns advogados a conferenciar com os clientes dentro das zonas privadas beges e cinzentas, sob o olhar atento dos guardas. Carl foi até à máquina de café, meteu vinte e cinco cêntimos e tirou o copo de papel de café. Olhou para o relógio. Tinha ficado de se encontrar com Lillie às duas e meia. Ela devia ter saído por alguns instantes. Quando olhou para cima, viu-a no corredor vindo na sua direcção.
Enquanto se aproximava, com um sorriso hesitante, ficou impressionado, tal como acontecera no seu primeiro encontro, com a beleza de Lillie. Não o surpreendera, dada a beleza física do filho. Aquelas coisas eram quase sempre genéticas. No entanto, estivera ansioso por a conhecer, pois sabia, devido à sua longa experiência, que a aparência não era a única coisa que se transmitia geneticamente. Ficara muito interessado em conhecê-la, estudá-la, em desenterrar as influências que tinham gerado uma aberração como Grayson Burdette. Os seus encontros nos últimos três anos tinham sido confusos e quase frustrantes para o médico. Gostava dela.
- Olá, Lillie - saudou, estendendo-lhe a mão.
Ela sorriu enquanto lha apertava, se bem que os seus olhos nunca deixassem aquela expressão preocupada.
- Obrigada por me receber hoje. É muito importante para mim. Esteve com ele?
- Há pouco tempo. - Carl abanou a cabeça. - Lamento, mas não mudou de ideias em relação à sua visita.
Lillie suspirou e Carl conduziu-a gentilmente até à porta de uma das salas de visita e deu-lhe passagem.
Lillie deixou-se cair numa cadeira e começou a mexer distraidamente na sua aliança de casamento.
- O seu marido veio consigo desta vez? - perguntou Carl num tom agradável.
Lillie olhou para cima.
- Sim. A minha melhor amiga casa este fim-de-semana em Felton. Ficaremos uns dias em casa da minha sogra.
- Deve ser agradável para os dois - disse ele.
- Sim - murmurou Lillie distraída. Carl sentou-se e engoliu um gole de café.
- Desculpe - disse ele. - Posso oferecer-lhe um café? Lillie abanou a cabeça.
- Se ele concordasse em ver-me. Nem que fosse só uma vez...
- Não quer que você volte cá e está a falar a sério, Lillie. Acho que você está a torturar-se desnecessariamente.
Ficava sempre muito perturbada quando lá ia, mas naquele dia parecia mais preocupada do que era habitual. O médico soprou para a superfície do café e estudou o seu rosto angustiado.
- Ele está a fazer progressos.
- Que quer dizer? - perguntou Lillie abruptamente.
Carl já a conhecia. Era uma das poucas mães que conhecera atrás daquelas paredes que realmente queria ouvir a verdade. Contudo, ele continuava a ter de a travar. Havia coisas que era melhor não saber.
- Está a estudar e a progredir rapidamente nos seus cursos. Está fisicamente forte e saudável.
Ela olhou para ele com tristeza como se as palavras fossem um insulto. . - Está a progredir?
Carl suspirou.
- É um rapaz forte, Lillie. Tem aprendido as regras. Sobreviverá. De facto, conseguirá melhores resultados que a maioria.
Lillie olhou para ele com os olhos brilhantes e assustados.
- Está a tratá-lo? - perguntou ela. - Há melhoras? Carl pousou a chávena de café e olhou-a directamente.
- Estou com ele de vez em quando, mas, não! Não está em tratamento. Não pode mudar, Lillie. Ele não acredita que está doente. Se ele fosse «tratável», estaria num hospital e não na prisão. Não há tratamento para ele. Tem-se... adaptado perfeitamente ao ambiente. Creia que ele está bem.
- Percebo o que está a dizer -- assentiu ela. - Só há uma maneira de as pessoas sobreviverem num sítio violento como este.
Carl encolheu os ombros e deu um gole no café.
- Oh, Deus - gemeu Lillie. - Onde é que isto vai acabar?
- Quer saber? - perguntou Carl. - Provavelmente nunca sairá em liberdade condicional. - Olhou solenemente para Lillie. - Devia ficar aliviada por o saber.
Os olhos de Lillie encheram-se de lágrimas.
- Estou paralisada. Já não sei o que desejar. Parecia perdida na sua angústia.
Carl olhou para ela com ternura.
- As coisas não se tornam mais fáceis, pois não? - perguntou.
Lillie abanou a cabeça.
- Diga-me então porque era tão importante falar comigo hoje?
Ao deixar a auto-estrada na saída de Felton e percorrer as estradas tão familiares, Lillie pensou, enquanto conduzia, como aquele lugar sempre a fizera sofrer. Até agora, depois de um Inverno longo, tinha a sua beleza própria. Os campos estavam cor de lavanda e, por baixo das pontes, o largo riacho serpenteava lentamente através da cidade. Via-se fumo a sair das chaminés das quintas, cinzento contra o céu cinzento, e estava tão tranquilo como sempre.
Continuou, passando pelo cemitério, onde os ramos nus das árvores se estendiam por cima das sepulturas. Iria lá pôr flores a Michele e a Pink antes de voltarem para o Norte. Bessie tomava conta das campas entre as visitas. Lillie sabia que era uma parvoíce preocupar-se com isso. Não fazia qualquer diferença a Michele ter flores ou não, mas Lillie sentia-se melhor sabendo que a avó a visitava. Tinham enterrado Pink a seu lado, e estranhamente isso reconfortava-a. Apesar de tudo o que fizera, ela nunca duvidara do seu amor pelos filhos. Passou pela rua que conduzia à sua antiga casa, mas preferiu não entrar. Viu a placa que indicava a antiga rua de Royce .Ansley, mas também não entrou. Quando fora à farmácia, soubera por Bomar Flood que Royce se tinha mudado para Hoiston e arranjara emprego como segurança. Lillie testemunhara a seu favor e ficara aliviada por ele não ir para a cadeia. viveria dentro da sua própria prisão, pensava Lillie. Já chegava. Lillie olhou para o relógio. Brenda pedira-lhe que, se voltasse a tempo, fosse lá a casa para ver o vestido de casamento, mas Lillie não estava com disposição para a alegria pré-nupcial e conversas de raparigas. Estava muito feliz por Brenda, que se ia casar com um jovem restaurador de Nashville cerca de dez anos mais novo do que ela. Lillie e Jordan gostaram dele assim que o conheceram. No entanto, para além do seu medo confesso de parecer a mãe do noivo nas fotografias do casamento, Brenda nunca parecera tão feliz. Lillie sorriu ao pensar na sua velha amiga. «vou lá amanhã», pensou ela. «Talvez me sinta melhor.»
Diminuiu a marcha ao chegar à encruzilhada que conduzia a. casa de Bessie, mas, no último instante, virou o volante e meteu pela outra estrada. Não queria voltar para casa da sogra. Não queria enfrentar Jordan nem as perguntas que certamente faria. Deu por si a conduzir, quase automaticamente, para o lago Crystal.
Como as árvores estavam nuas, conseguia ver claramente através dos bosques a superfície do lago. Parecia seda cor de chumbo e as margens estavam desertas e tranquilas. Lillie saiu do carro e caminhou pelo chão coberto de folhas frias e quebradiças até à beira do lago. O ar húmido passava através do seu casaco de lã, fazendo-a tremer, enquanto atravessava para chegar junto do seu pequeno pontão. Subiu para as pranchas de madeira e olhou para o lago. Todos os seus fantasmas pareceram juntar-se à sua volta.
Hesitou uns instantes e depois caminhou até à outra extremidade do pontão e sentou-se. A madeira estava fria e húmida e ela apertou o casaco contra si. «Não devias estar aqui sentada», pensou. «Não podes dar-te ao luxo de apanhar uma constipação. Estás grávida.»
Quando fora ao médico em Manhattan, tratava-se de mais do que uma suspeita. Já passara por isso duas vezes e reconhecera logo os primeiros sintomas. Naquele dia, antes de sair para a prisão, parara numa cabina telefónica e telefonara para o escritório em Nova Iorque. O médico tivera muito prazer em oficializar a notícia, afastando qualquer dúvida, qualquer suspeita de não ser verdade.
Um falcão circulou à volta do lago e depois subiu e desapareceu. Lillie viu-o afastar-se, invejando o seu voo. Sentia-se fraca e incapaz de enfrentar o que vinha aí. Jordan ficaria muito feliz. Ela sabia. Tinham concordado que tentariam ter uma família, mas, no momento em que concordara, uma voz secreta dentro dela sussurrava-lhe: «Não. Nunca mais.»
Lillie suspirou e olhou para as águas suaves e familiares do lago Crystal. Sempre tratara aquelas águas como se fossem uma bola de cristal que lhe dava todas as respostas de que necessitava. Porém, naquele dia, estavam escuras e opacas sobre o céu carregado.
- Grayson. Oh, Grayson - sussurrou.
Era a única coisa em que pensava desde que suspeitara de que estava grávida. Viver a sua vida numa cela de prisão, rogando-lhe pragas, se é que pensava nela.
Recordou a conversa que tivera com o Dr. Lundgren. Dissera-lhe que se sentia responsável pelo que acontecera a Grayson. Que, até certo ponto, tinha a culpa e confiara-lhe o seu maior receio: ter outro filho que lhe trouxesse o mesmo tipo de pesadelo.
Carl respondera-lhe com gentileza.
- Tem outro marido - disse ele -, e as circunstâncias são bem diferentes. Nunca conseguimos compreender totalmente a origem deste tipo de perturbações, mas não creio que deva ter medo. Vou-lhe dar o melhor conselho que conheço. Não se esforce demasiado por ser uma mãe perfeita para o seu novo filho. Quando sentir medo, tenha calma. Não se preocupe. Tenha algum prazer com a experiência. Nada do que fizer puderá mudar o que o Grayson é neste momento. Sei que isto parece brutal, mas ele não pode ser salvo. Isto é clinicamente verdade. Creia-me. Mande-lhe dinheiro para as despesas aqui, escreva-lhe se quiser. Talvez ele ceda e a queira ver um destes dias. Pouco mais pode fazer. Continue com a sua vida, Lillie, e não tenha medo.
Lillie suspirou e abanou a cabeça. Era mais fácil dizer do que fazer. Nunca conseguiria transmitir ao médico, ou fosse a quem fosse, como se sentia aterrorizada, não se achando merecedora de ter outro filho. Um dos seus filhos estava morto e o outro iria passar o resto da vida na prisão. Não tinha o direito de tentar outra vez, nem razão para acreditar que faria melhor, que o seu filho não sofreria por a ter como mãe.
Lillie estremeceu devido à humidade do ar e sabia que tinha que se levantar e ir-se embora. Voltar e dar a notícia a Jordan de que iam ter um filho. Que Deus também lhe estava a dar outra oportunidade.
Não conseguiu deixar de se lembrar da primeira vez que lhe dissera que estava grávida. Aquele primeiro momento assustador em que eram tão jovens e ingénuos. Ele tentara ser corajoso e consolador e dissera que era perfeito, pois até queriam casar-se. Depois Michele nascera, linda e tão doente. O que pensaria ela se soubesse de tudo isto?, reflectia Lillie. Como que em resposta à sua pergunta, uma imagem de Michele com o rosto brilhante e a rir-se atravessou a sua melancolia como um raio de sol sobre o lago. «Não», pensou Lillie, muito zangada, «tu estavas doente e sofreste tanto.» Mas a imagem alegre recusou-se a desaparecer e emitia um brilho que aqueceu o coração de Lillie. «Ela sabe», pensou Lillie. «Está lá em cima no céu, sabe e sente-se feliz.» Lillie cerrou os lábios e conteve as lágrimas. Parecia não haver fim para as lágrimas que conseguia verter pela sua filha perdida. A sua filha perfeita e maravilhosa, carinhosa e de bom coração. «Também era tua filha», lembrou a si própria. «Como te atreves a negá-la? Fizeste uma criança incrível.»
O som da porta de um carro a fechar ecoou pelo lago calmo. Lillie virou-se e viu um Ford azul-pálido. O carro de Bessie. Jordan viera à sua procura.
Levantou-se, sentindo-se um pouco culpada, pois sabia que devia ter ficado preocupado. Detestava que fosse sozinha à prisão, mas ela insistia sempre. Agora, como não voltara logo... Lillie espreitou pelas árvores e viu-o a descer o caminho com a gola do casaco de cabedal levantada por causa do frio. Jordan avistou-a no mesmo momento e acenou. Lillie também lhe acenou. A expressão de preocupação fora substituída por um sorriso.
- Encontraste-me - gritou ela.
- Vi o carro - disse ele.
Vinha na sua direcção, contornando o lago, com o casaco aberto, e o cabelo, já a ficar cinzento, despenteado pela brisa. O seu rosto estava iluminado enquanto vinha ao seu encontro. Sabia sempre onde a encontrar. Sempre soubera.
«Aí vem o teu pai», pensou ela. E durante uns instantes não percebeu se estava a falar com Michele ou com o bebé que tinha dentro de si. «Ambos», decidiu. Colocou suavemente a mão sobre a criança que tinha no seu ventre. «Ali vem ele para nos vir buscar e levar para casa.»
E enquanto caminhava pelo pontão, não pôde deixar de sorrir quando o viu. Fazia tudo para a proteger, para a envolver. Adoraria aquela criança, aquela segunda oportunidade. Ambos adorariam. Acreditar que tudo correria bem era meio caminho andado.
- Estava preocupado - disse ele. - Vieste mais tarde...
- Não te preocupes - respondeu ela. Estendeu a mão para agarrar a dele. - Querido, vem cá. Tenho boas notícias.
Patrícia J. MacDonald
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