Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEIA DE SONHOS / V. C. Andrews
TEIA DE SONHOS / V. C. Andrews

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TEIA DE SONHOS

 

O Luke e eu avançamos pelos altos portões de ferro forjado que deixam a descoberto a inscrição "MANSÃO FARTHINGGALE". Manchas de ferrugem invadiram os caracteres qual yerupção cutânea, e o embate das tempestades marítimas e dos ventos de Inverno entortaram os portões. Agora, encontram-se vergados contra o céu cinzento e sombrio e até a casa grande parece oprimida, desgastada pelo tempo e pela história pesada e triste que vive nos seus átrios e nos seus salões grandiosos. Foram mantidos alguns empregados para cuidar da casa e dos jardins; ninguém controla realmente o seu trabalho e eles pouco fazem para conservar as coisas.

O Luke aperta a minha mão. Parecem ter passado anos, séculos, desde que estivemos aqui pela última vez. O céu carregado está em consonância com a nossa chegada, pois esta viagem não é nostálgica. Preferíamos não ter de recordar a minha anterior estada aqui, mais exactamente, o meu aprisionamento, após o terrível acidente que levou a vida de meus pais.

No entanto, a nossa viagem ainda é mais triste. O ar fúnebre é adequado. Viemos sepultar o meu verdadeiro pai, viemos pôr finalmente Troy Tatterton a descansar junto do seu verdadeiro amor, a minha mãe, Heaven. O Troy havia permanecido na sua pequena cabana todos estes anos, dando continuidade ao seu complexo trabalho artístico nos maravilhosos brinquedos Tatterton, ausentando-se apenas em ocasiões especiais, como o nascimento dos meus filhos. Mas sempre que nos foi visitar, independentemente da ocasião, nunca conseguiu estar muito tempo afastado de Farthinggale. Alguma coisa o chamava sempre de volta.

Agora, nunca mais partirá.

Apesar de a casa grande ser uma aparição constante nos meus pesadelos e de as memórias desses dias de tortura ainda

permanecerem notavelmente vivas, ao contemplar esta propriedade grandiosa, percebo a razão por que o Troy sentia necessidade de regressar. Até eu, que tenho todas as razões para não o fazer, sinto necessidade de voltar a entrar na casa e caminhar através dos seus longos corredores, subir a sua grande escadaria, para dar uma vista de olhos ao quarto que havia sido a minha cela.

O Luke não quer que eu entre.

- Annie - diz ele -, não é necessário. Esperamos pelo início da cerimónia fúnebre e cumprimentamos quem estiver lá fora.

Porém, eu não consigo controlar-me. Há alguma coisa que me faz continuar.

Não entro no quarto que foi meu. Há teias de aranha por todo o lado e tudo está coberto de pó e fuligem. As cortinas estão desbotadas e soltas. A roupa de cama está manchada, suja.

Sacudo a cabeça e continuo, parando na suite da Jillian, a famosa suite que o Tony havia mantido com uma insistência fanática, recusando-se a encarar a morte da Jillian e tudo o que se fora junto com ela. Esta suite sempre me intrigou. Continua a intrigar-me ainda hoje. Entro, observo os espelhos sem vidros, fixo o meu olhar na roupa ainda dobrada sobre as cadeiras, os produtos de beleza sobre o toucador. Passo por tudo, devagar, movimentando-me como se fizesse parte de um sonho, onde o ar se assemelha a uma névoa muito leve.

E, então, paro junto à escrivaninha da Jillian. Não sei porquê, talvez por a gaveta estar ligeiramente aberta. Tudo nesta suite me intriga e pergunto a mim mesma se existe alguma coisa nessa gaveta que a Jillian possa ter escrito durante os seus dias de loucura. A curiosidade é mais forte do que eu e abro a gaveta. Afasto o pó com um sopro, espreito lá para dentro e vejo folhas brancas, canetas e tinta. Nada fora do normal, penso, e é então que descubro a bolsa de pano no fundo da gaveta e pego nela.

Lá dentro está um livro. Tiro-o para fora devagar.

Na capa está escrito o LIVRO DE LEIGH. Retenho a respiração. É o diário da minha avó. Abro na primeira página e perco-me no tempo.

 

O LIVRO DE MEMÓRIAS DE LEIGH

Acho que tudo começou com um sonho. Não, não era um sonho, era mais um pesadelo. Nesse pesadelo, eu estava em pé, com os meus pais - onde, não sei. Eles conversavam um com o outro e, por vezes, voltavam-se e diziam-me qualquer coisa. O único problema era que, sempre que tentava falar com eles, parecia que não me conseguiam ouvir. À medida que continuava a tentar entrar na conversa, ia penteando o cabelo para trás. Porém, em vez de ficar penteada, descobri uma madeixa enorme de cabelo na minha mão e fiquei aterrorizada. Tornei a puxar o cabelo para trás e, cada vez que o fazia, soltava-se outra madeixa de cabelo. Fitei, horrorizada, as enormes madeixas de cabelo na minha mão. O que é que estava a acontecer? De repente, apareceu-me um espelho à frente e pude ver a minha imagem reflectida. Abafei um grito. A minha linda camisola de caxemira estava cheia de buracos e a minha saia, rasgada e suja. Então, perante os meus já incrédulos olhos, observei as minhas feições a ganharem volume. Fui inchando, inchando, até que comecei a chorar. Um trilho de lágrimas escorria pelas minhas faces esborratadas. Afastei os olhos da horrível imagem e virei-me para os meus pais, gritando por socorro. Os meus gritos ressoavam e ultrapassavam as paredes. Os meus pais, porém, nada faziam. Porque não me ajudariam?

Não conseguia parar de gritar. Por fim, quando pensei que já não tinha voz e que era incapaz de pronunciar um único som, os meus pais voltaram-se para mim. Passou-lhes pela cara expressões de assombro. Queria chamar pelo papá... que ele me cobrisse de abraços e beijos... que me protegesse como sempre fez... mas antes de conseguir abrir a boca, a cara dele ensombrou-se com uma expressão de desgosto! Aninhei-me, aterrorizada, e então ele desapareceu. Ficou

apenas a mamã. Pelo menos, pensei que fosse a mamã. Esta estranha era igualzinha a ela... excepto nos olhos. Os seus olhos eram tão frios! Frios e calculistas... vazios do amor e do calor que eu via diariamente. Para onde tinha ido esse olhar? Porque é que ela estava a olhar para mim desta maneira? A minha linda mamã nunca me fitaria com tanto ódio. Sim, ódio... e inveja! A minha mamã nunca deixaria de me ajudar num momento de tanto desespero. Ela, porém, nada fez. Primeiro, a sua expressão foi de desgosto, idêntica ao olhar que o papá me tinha lançado. Logo foi substituído por um sorriso afectado... um sorriso de satisfação. E depois virou-me as costas... começou a afastar-se... a ir-se embora... deixando-me sozinha na escuridão.

Não sei como, reencontrei a minha voz e gritei por socorro. Ela limitava-se a continuar a andar, tornando-se cada vez mais pequena. Tentei segui-la, mas não me conseguia mexer. Então, tornei a virar-me para a minha imagem reflectida e, num abrir e fechar de olhos, o espelho despedaçou-se e pedaços de vidro saltaram-me para a cara.

com as forças que me restavam, gritei, levando as mãos à cara, para me proteger, enquanto continuava a gritar.

Quando acordei, ainda estava a gritar e o meu coração batia furiosamente. Por um momento, não consegui imaginar onde estava. Então, quando comecei a reconhecer o meu quarto, lembrei-me. Estava em casa, no meu quarto, em Boston. Nesse dia era o meu aniversário. O meu décimo segundo aniversário. Feliz por me ter livrado do horrível pesadelo, afastei os meus temores e afugentei as imagens que me tinham aterrorizado há apenas alguns segundos. Dirigi-me para o andar de baixo, pensando apenas no dia que se seguiria.

No dia do meu décimo segundo aniversário abri a prenda que viria a ser a mais preciosa de todas as que já recebera: este livro de memórias. À última hora, o papá enfiou-o à socapa na pequena montanha de prendas maravilhosas e dispendiosas que ele e a mamã me tinham comprado. Eu sei que foi ele próprio que o lá meteu, depois de a mamã ter posto tudo em ordem, pois ela estava tão curiosa como eu em relação a esse presente. Normalmente, o papá deixava ao cuidado da mamã a compra de presentes, da mesma maneira que era ela quem estava encarregada de fazer as compras para a casa e de escolher todas as minhas roupas, uma vez que ele assumia que não percebia nada de modas. Dizia que a mamã era uma artista e, por isso, sabia combinar melhor cores e cortes, mas eu acho que ele ficava era contente por não ter de ir às lojas de decoração e de roupa.

Em algumas ocasiões, quando eu era mais nova, o papá trazia-me modelos dos seus navios a vapor; a mamã, porém, achava que esses presentes eram disparatados para oferecer a uma menina, principalmente aquele modelo que se desmontava para aprender o funcionamento do motor. Eu não conseguia deixar de ficar curiosa, e muito interessada, e estava sempre a brincar com aquilo, excepto quando a mamã se encontrava por perto.

Estava tudo embrulhado a um canto da mesa da sala de jantar, onde tomávamos o pequeno-almoço, tal como sempre estivera em todos os meus aniversários, desde que me lembro. Tinha acordado cedo, obviamente, devido ao sonho. Para mim, as manhãs do dia de aniversário eram iguais às manhãs do dia de Natal, apesar de esta manhã ainda estar um pouco transtornada pelo pesadelo, tentando agora ferozmente esquecer o terror que me provocara.

O papá tinha embrulhado a prenda num papel de fundo rosa-claro, coberto com velas pintadas em azul-escuro que diziam FELIZ ANIVERSÁRIO. Só o facto de saber que ele tinha comprado a prenda sozinho fez com que se tornasse a mais importante para mim. Tentei não rasgar o papel ao desembrulhar. Adorava guardar coisas deste tipo, lembranças de todas as ocasiões especiais: as velas do bolo do meu décimo aniversário, aquele que era tão grande que foi preciso o Clarence, o mordomo, e o Svenson, o cozinheiro, para o conseguirem carregar para a sala de jantar; o anjo de rebuçado no topo da árvore de Natal de metro e meio que a mamã comprou para pôr no meu quarto de brincar quando eu tinha apenas cinco anos; bilhetes do circo ao qual o papá me levou quando veio fazer a sua apresentação em Boston, no ano passado; um programa de um espectáculo de marionetas a que a mamã e eu assistimos no museu, quando eu tinha sete anos, e dúzias de bugigangas, como botões e alfinetes, e até mesmo atacadores antigos. Por isso, o papá já sabia que, para mim, as recordações eram muito importantes.

Desembrulhei o livro muito devagar e percorri a capa e o meu nome gravado com a ponta dos dedos. Adorei o toque da capa, em couro, macio como manteiga, rosado, debruado a dourado, e gostei, em especial, de ver o meu nome impresso, como o título de um livro: o LIVRO DE LEIGH.

Levantei o olhar, emocionada. O papá, já vestido com o

seu fato e gravata cinzento-escuros, estava recuado, a sorrir, de pé, como habitualmente, com as mãos atrás das costas, balançando os calcanhares como um velho capitão do mar. Se não fosse um dia especial, a mamã tê-lo-ia feito parar, queixando-se de que a punha nervosa. Por ser o dono de uma grande companhia de paquetes de luxo e andar tantas vezes em barcos, o papá dizia que passava mais tempo na água do que em terra e que estava habituado a balançar.

- O que é isso? - inquiriu a mamã, quando abri o livro e folheei páginas e páginas em branco.

- Eu chamo-lhe um diário de bordo - disse o papá e piscou-me o olho. - O diário de bordo do capitão. Regista os acontecimentos importantes. As recordações são mais preciosas do que as jóias - afirmou.

- É apenas um diário - replicou a mamã, sacudindo a cabeça. - Diário de bordo! Ela é uma menina, não é um marinheiro.

O papá voltou a piscar-me o olho. A mamã tinha-me comprado tantas coisas caras e eu sabia que devia prestar-lhes mais atenção. Em vez disso, agarrei no livro intitulado o LIVRO DE LEIGH, cingi-o junto ao coração e levantei-me a correr para agradecer ao papá com um beijo. Ele ajoelhou-se e eu beijei-o na face rosada, mesmo rente à barba grisalha, e os cintilantes olhos castanho-acobreados luziram. A mamã queixava-se de que o papá estava tantas vezes num dos seus barcos ou no meio do mar que a sua pele sabia a sal, mas eu nunca sentia esse sabor a sal quando o beijava.

- Obrigada, papá - segredei. - Hei-de escrever sobre o papá o tempo todo.

Tinha tantas coisas para assentar, tantos pensamentos íntimos e preciosos; mal podia esperar para o fazer.

Contudo, a mamã estava ansiosa por que eu abrisse os outros presentes. Havia dúzias de camisolas de caxemira numa variedade de rosas, azuis e verdes, cada uma com a sua saia travada a condizer, o tipo de saia que a mamã e toda a gente usava, apesar de serem tão justas que não se conseguia andar depressa assim vestida. Havia blusas de seda, argolas de ouro e pulseiras a condizer, salpicadas de diamantes, da Tiffany's. Havia perfume Chanel e sabonetes perfumados, bem como um pente de madrepérola e um estojo de maquilhagem.

E bâtonl Finalmente podia usar bâton, ao de leve, claro, e apenas em ocasiões especiais. Mas tinha o meu próprio bâton. A mamã sempre me prometera que, quando chegasse a altura, me ensinaria a maquilhar correctamente.

10

A mamã não me deixou abrir um dos embrulhos na altura. Tinha de esperar até estarmos sozinhas, mais tarde.

Assuntos de raparigas - disse ela, olhando para o meu pai. A mamã achou horrível da parte do papá ir a correr para o escritório na manhã do meu aniversário, mas ele assegurou que podia passar o resto do dia comigo e depois levar-me a mim e à mamã a jantar fora; por isso, perdoei-lhe. Nos últimos tempos, havia sempre uma crise qualquer. Ele deitava as culpas para cima das companhias de aviação comercial que estavam a comprometer o negócio dos paquetes de luxo. A mamã estava sempre a criticá-lo pela quantidade de tempo que passava a trabalhar, o que piorava ainda mais a situação.

Apesar de termos feito muitas viagens, ela queixava-se de que nós éramos como sapateiros sem sapatos, pois não fazíamos as viagens que ela queria.

- O negócio do meu marido é viagens de férias e nós raramente fazemos férias. Temos de verificar novos percursos ou novos navios, em vez de os apreciarmos como devíamos - lamentava-se ela, por vezes com amargura.

Eu sabia que o meu último grande embrulho tinha qualquer coisa a ver com tudo isso, porque a mamã esclareceu que comprara o seu conteúdo na esperança de eu ter oportunidade de o usar, e então lançou um olhar carrancudo ao papá e queixou-se.

- Eu ainda não tive oportunidade de usar o meu. Desembrulhei rapidamente o presente e abri a caixa. Era um fato de esqui: uma pesada camisola de caxemira, umas calças de esqui de bom corte e uma blusa italiana de seda a condizer. Muitas vezes, durante o Verão, a mamã tinha exprimido o desejo de fazer umas férias de Inverno em St. Moritz e ficar instalada no Hotel Palace, "onde parava a nata da sociedade". Era um fato bonito.

Dei uma vista de olhos por todos os meus lindos presentes, soltei gritinhos de prazer e abracei-a. Prometeu que iria certificar-se sempre de que os meus aniversários fossem melhores do que os dela, quando era nova, no Texas. Ainda que a família da mamã não fosse pobre, ela dizia que a sua mãe, a minha avó Jana, era tão austera quanto um padre puritano. Tinha-me contado vezes sem conta a história de como não a deixavam sequer ter uma boneca, quando era pequena, e dizia que as suas irmãs, ambas mais velhas, eram tal e qual a mãe. Por não deverem nada à beleza, não se preocupavam em ser femininas e em possuir objectos graciosos e bonitos.

A tia Peggy e a tia Beatrice eram, verdade seja dita, tão feias como a bruxa má de O Feiticeiro de Oz. Não as víamos com frequência mas, sempre que o fazíamos, eu detestava a maneira como me fitavam embasbacadas, através dos óculos grossos. Ambas usavam as mesmas horrorosas armações pretas, que ampliavam os seus olhos castanhos de carneiro mal morto, fazendo com que parecessem sapos. O modo como a mamã as juntava no mesmo saco quando falava delas, levava-me a pensar nas tias como sendo gémeas. De facto, a constituição física delas era idêntica. A mamã chamava-lhes "tábuas de engomar". Contava também que a avó Jana lhes tinha arranjado maridos, eles próprios homens fracos e modestos: um era dono de uma loja em Ludville, no Texas, e o outro, um cangalheiro de Fairfax, nas redondezas.

Segundo a mamã, tanto uma cidade como outra, incluindo a dela, "eram tão poeirentas e sujas, que tínhamos de tomar banho depois de darmos um passeio na rua principal". O papá não precisou de muito tempo para conquistar a mamã e levá-la para longe de tudo aquilo. Obriguei-a a contar a história vezes sem conta e nunca me importava que, cada vez que o fazia, acrescentasse um pormenor novo, ou que alterasse, ou se esquecesse de alguma coisa que me tinha contado anteriormente. A parte principal da história era sempre igual e era uma das primeiras coisas que queria escrever no meu livro.

Assim, ao fim da tarde, quando ela veio ao meu quarto, enquanto nos preparávamos para ir jantar fora a um restaurante fino para festejarmos os meus anos, pedi-lhe para me contar a história de novo.

- Nunca te cansas de ouvir esta história? - perguntou-me ela, lançando-me um olhar rápido.

- Oh, não, mamã. Eu acho que é uma história maravilhosa, uma história de sonho. Nunca ninguém conseguiu escrever uma história tão bonita - afirmei eu, o que a fez muito feliz.

- Está bem - concordou, sentando-se à mesa do toucador. Começou a escovar o seu lindo cabelo até ele ficar a brilhar como ouro fiado. - Eu vivia como a pobre Cinderela antes de chegar o seu príncipe - começou, como sempre começava. - Mas nem sempre foi assim. Eu era a menina dos olhos do meu pai. Ele era o administrador encarregado de um campo de petróleo nas redondezas, um homem muito importante. Apesar de não ter medo de sujar as mãos quando era preciso, era muito elegante. Espero que um dia encontres um homem como o meu pai.

- Então, e o meu pai não é como ele? O papá não se importa de trabalhar nos seus navios e de descer à casa das máquinas com os seus homens, não é?

- Sim - concordou ela, secamente -, ele não se importa. Mas eu quero um homem diferente para ti, alguém que seja um verdadeiro executivo, que dê ordens aos seus empregados e que viva numa mansão e...

- Mas, mamã, nós não vivemos numa mansão? - protestei eu. A nossa era a maior e mais luxuosa casa de cidade da nossa rua, uma clássica casa, em estilo colonial jorgiano, com átrios excessivamente grandes e um pé-direito de quatro metros e meio. Todos os meus amigos adoravam a minha casa e ficavam particularmente impressionados com a sala de jantar, porque tinha um tecto em forma de cúpula e colunas jónicas em volta. A mamã redecorara a sala de jantar há dois anos, quando vira uma igualzinha numa das suas revistas de arte.

- Sim, mas eu quero que vivas numa propriedade com milhares de acres de terra, cavalos, piscinas, dezenas de empregados e uma praia privativa. E... - O seu olhar tornou-se doce e sonhador, afastando-se, enquanto evocava essa maravilhosa mansão e os seus jardins. - com um labirinto inglês!

Sacudiu a cabeça como se estivesse a libertar-se dos seus devaneios e, com movimentos longos e graciosos, começou a escovar de novo a cascata dos seus cabelos. Dizia que tinha de o escovar pelo menos cem vezes por noite, para o manter macio e saudável, e que o cabelo de uma mulher era a sua coroa. Normalmente usava o cabelo apanhado ou afastado do rosto para mostrar o seu perfil escultural.

- Em todo o caso, as minhas irmãs, as gémeas tábuas de engomar, tinham imensos ciúmes do amor que o meu pai me devotava. Quando regressava a casa, ele trazia-me com frequência algo bonito e elas recebiam apenas coisas práticas, como estojos de costura ou agulhas de croché. Aliás, as minhas irmãs também não eram dadas a fitas bonitas, brincos ou pentes novos. Detestavam-me por ser bonita, percebes? Ainda me detestam.

- Mas, depois, o seu pai morreu e o seu irmão mais velho foi para a tropa - disse eu, impaciente por chegar às partes românticas da história.

1 English maze: tipo de jardim, usual nas propriedades inglesas, cujo formato labiríntico é conseguido por meio de corredores de sebes altas e bem aparadas. (N. da T.)

- Sim, e como tudo mudou! Foi quando me tornei realmente na pobre Cinderela, percebes? Obrigaram-me a fazer toda a lida da casa e escondiam as minhas coisas bonitas sempre que podiam. Se eu não fizesse o que elas queriam, partiam os meus pentes ou enterravam as minhas jóias. Deitaram fora todos os meus cosméticos - afirmou ela, com ódio.

- Mas, e a sua mãe? O que é que a avó Jana fazia? Eu sabia a resposta, mas queria ouvi-la da boca dela.

- Nada. Ela aprovava. De qualquer maneira, a avó Jana achava que o meu pai me tinha estragado com mimos. A avó é igual a elas, mesmo que agora não pareça. E só porque te ofereceu aquele alfinete de camafeu pelos teus anos - acrescentou ela, apreciando o camafeu sobre o meu toucador -, não penses que se modificou em nenhum aspecto.

- É bonito e o papá diz que é valiosíssimo.

- É verdade. Há alguns anos pedi-lho, mas ela não mo deu - confessou, com amargura.

- Quer que lho dê, mamã?

- Não. é teu - respondeu ela, pouco depois. - A avó deu-to a ti. Só te peço para teres cuidado com ele. Bem, onde é que eu ia?

- Quando elas enterraram as suas jóias.

- Enterraram as minhas... ah, sim, sim. E também rasgaram os meus melhores vestidos, os meus vestidos mais caros. Uma vez, a Beatrice, num acesso de mau génio, entrou sorrateiramente no meu quarto e esquartejou um dos meus vestidos com uma faca da cozinha.

- Que crueldade! - exclamei eu.

- Claro que negam tudo até hoje. Mas fizeram-no, garanto-te. Até tentaram cortar o meu lindo cabelo uma vez; entraram no meu quarto pela calada, enquanto eu dormia, e tentaram cortá-lo com as longas tesouras de costura, mas eu acordei mesmo a tempo e... - Estremeceu, como se o resto da história fosse demasiado aterrador para continuar. Em seguida, recomeçou a escovar o cabelo e prosseguiu. - O teu pai tinha vindo ao Texas em negócios, e a minha mãe, que ainda se dava com os de sangue azul, conheceu-o num jantar e convidou-o a visitar-nos, com a intenção de ele vir a apaixonar-se pela tua tia Peggy.

"Mas quando me viu...

Parou e recostou-se, olhando-se no espelho. A mamã sempre teve uma pele lisa, nem uma ruga se atrevia a despontar. Tinha feições elegantes, um rosto que se podia encontrar retratado num camafeu ou na capa da Vogue. Tinha olhos azuis cintilantes que revelavam a sua disposição: brilhantes como luzes de Natal, quando estava contente, frios como pingentes de gelo, quando estava zangada, suaves e tristes como um cachorro perdido, quando estava infeliz.

- Quando olhou para mim pela primeira vez - prosseguiu ela, dirigindo-se à sua própria imagem no espelho -, o coração dele ficou imediatamente escravo da minha beleza.

"Claro que - acrescentou, virando-se bruscamente para mim - as tuas tias ficaram loucas de inveja. Obrigaram-me a vestir um vestido desbotado, castanho-pálido, que ia até aos pés e escondia o meu corpo, e não me deixaram usar qualquer jóia. Tive de apanhar o cabelo num carrapito tipo avozinha e não me deixaram usar maquilhagem, nem sequer uma ponta de bâton.

"Mas o Cleave viu-me como eu era na realidade. Não tirou os olhos de mim a noite toda e, cada vez que eu falava, nem que fosse para dizer "Pode-me passar o sal, por favor?", calava-se e bebia as minhas palavras como se fossem pérolas.

- Soltou um suspiro e eu fiz o mesmo. Deve ser maravilhoso, pensei, ter recordações tão românticas. Mais que tudo, um dia eu queria ter recordações tão românticas como estas só para mim.

- Também te apaixonaste logo por ele? - Sabia igualmente esta resposta, mas tinha de a ouvir outra vez, porque queria escrevê-la como deve ser no meu livro.

- Não foi logo, apesar de dar comigo cada vez mais atraída para ele. Achava que o teu pai tinha uma pronúncia esquisita, sabes, aquela pronúncia de Boston. Então, ficava curiosa com tudo o que ele dizia. Era distinto e tinha ar de homem de negócios bem sucedido: seguro de si próprio, mas não severo. Vestia roupas caras, tinha um espesso relógio de bolso de ouro com a corrente de ouro mais comprida que eu já vira. Quando abria o relógio, ouvia-se a melodia do Hino da Esperança.

- O aspecto dele era de velho lobo do mar? - perguntei, a rir. O papá dizia-me sempre que sim.

- Eu não sabia nada, nem do mar, nem do negócio dele, tendo vivido no interior do Texas toda a minha vida, Mas ele tinha a mesma barba que tem agora, só que não era toda grisalha e estava aparada com muito mais cuidado, devo dizer. De qualquer maneira, ele não parava de falar sobre o crescimento da sua companhia de navios a vapor. A avó achou interessante - acrescentou, com um sorriso afectado. - Já a pensar no pretendente rico que iria ter para a Peggy.

- E depois, o que é que aconteceu?

- Ele pediu para ver os nossos jardins e antes de a avó ter tempo para chamar a Peggy para o guiar, virou-se para mim e perguntou-me se eu o acompanhava. Devias ter visto a cara delas na altura. A Peggy ficou ainda mais carrancuda, caíram-lhe os queixos, e a Beatrice chegou mesmo a gemer.

"Claro que aceitei acompanhá-lo, primeiro só para as atormentar, mas depois do passeio naquela noite quente do Texas...

- Sim?

- E de ele começar a falar ternamente, apercebi-me de que o Cleave Van Voreen era mais do que um enfadonho homem de negócios da Nova Inglaterra. É certo que era rico e inteligente, e bonito à maneira dele, mas era também um homem muito só e muito apaixonado por mim, tão apaixonado que se declarou nessa primeira noite. Estávamos junto das roseiras.

- Pensava que tinhas ficado na dúvida e que ele só se havia declarado na segunda noite.

- Não, não, foi junto das rosas e foi na primeira noite. As estrelas... as estrelas irrompiam pela noite. Era uma explosão de luz por cima de nós. Deixou-me sem fôlego - descreveu ela, pondo com suavidade os dedos no pescoço e cerrando os olhos, como se a recordação fosse demasiado forte para alguém suportar.

Retive a respiração. Esta noite ela tinha contado a história melhor do que nunca. Estava a torná-la especial por ser o meu décimo segundo aniversário. Que maravilhoso da parte dela! Se calhar a mamã alterava a história de tempos em tempos porque achava que eu podia saber cada vez mais, à medida que ia ficando mais crescida.

- E, de repente, o Cleave pegou na minha mão e disse: "Jillian, já viajei por todo o país e visitei muitos outros, vi muitas pessoas e muitas mulheres lindas, do Oriente à América do Sul, princesas havaianas, princesas russas, princesas inglesas, mas os meus olhos nunca contemplaram nenhuma mulher tão linda como tu. És uma jóia tão esplendorosa como qualquer uma das estrelas que luz sobre nós.

""Sou um homem de acção", prosseguiu ele, "que, logo que se apercebe do que tem ou não tem valor neste mundo, toma decisões sem demora, mas são decisões fervorosas, decisões de que não abdico por motivo algum."

"Em seguida, pegou na minha outra mão e continuou: "Não deixarei esta cidade até te ter como minha mulher."

Murmurei as palavras, acompanhando-a num coro silencioso. Já havia ouvido aquela frase tantas vezes e continuava a achá-la emocionante. Pensar que o meu pai teria ficado naquela cidade poeirenta do Texas, negligenciando o negócio dele para sempre, até conseguir casar com a mulher que amava... O romance deles devia estar escrito num livro de histórias e agora pertencia ao meu.

- Bem, Leigh, claro que fiquei contentíssima com uma expressão de afecto tão profunda. Pediu permissão para me cortejar e eu concedi. A seguir, entrou em casa e falou com a avó Jana, em privado, pedindo também a sua permissão. A avó ficou chocada, mas suponho que pensou que conseguiria pelo menos um pretendente rico para uma das suas filhas.

"A partir daí, veio a nossa casa todos os dias durante uma semana e as minhas irmãs morriam de inveja, mas não podiam fazer nada. A avó Jana tinha vergonha que o Cleave me visse toda esfarrapada a fazer a lida da casa. Por isso, fui suspensa dessas funções e as tuas tias tiveram de fazer o meu trabalho.

"Por volta do quinto dia, o Cleave declarou-se formalmente. Pôs-se de joelhos, enquanto eu estava sentada no sofá, na nossa sala de estar, e eu aceitei - relatou ela, acabando a história abruptamente. - Fui-me embora do Texas com ele e livrei-me de tudo aquilo.

"Quando a tua avó e as tuas tias descobriram quão rica eu ficara, tornaram-se doces como o mel. - Olhou para o meu livro de memórias. - Vais escrever isto tudo aí?

- Oh, sim. Todas as minhas recordações mais importantes. Alguma vez teve um diário, mamã?

- Nunca, mas não faz mal - acrescentou prontamente.

- Tenho as minhas recordações todas armazenadas aqui mesmo - continuou, apontando para o coração. - Algumas, só te contei a ti - confessou ela, falando tão baixinho que o meu coração parou de bater. Confiava em mim mais do que em qualquer outra pessoa.

- Nunca terei segredos para si, mamã.

- Eu sei que não, Leigh. Nós somos demasiado parecidas, eu e tu, para escondermos uma da outra qualquer coisa que seja importante - confirmou ela, afagando o meu cabelo com os dedos. - Vais-te tornar numa rapariga muito bonita, dentro em breve. Sabias isso?

- Quero ser tão bonita como tu, mas não acho que o vá ser. O meu nariz é demasiado comprido e não tenho a tua boca carnuda. Os meus lábios são muito finos, não são?

- Claro que não. Aliás, as tuas feições ainda nem sequer estão totalmente formadas. Segue as minhas instruções, faz o que te digo e serás muito atraente. Prometes-me que o farás?

- Prometo.

- Óptimo - exclamou e virou-se finalmente para o presente de aniversário ao qual se tinha referido como "assunto de raparigas". - Está na hora de abrirmos isto e falarmos sobre o assunto - disse. Ela própria desembrulhou o presente e abriu a caixa.

Não acreditava no que via. Era um soutien. O meu peito tinha começado a crescer nos últimos tempos e algumas das minhas amigas já usavam soutien. Ergueu-o.

- O teu corpo está a desenvolver-se e acabaste de ter a tua primeira menstruação - afirmou. - Já é tempo de aprenderes os hábitos das mulheres e algumas coisas sobre os homens.

Acenei com a cabeça, quase sem respirar. Uma conversa tão adulta entre nós as duas fazia com que o meu coração batesse apressadamente.

- Não é para usar todos os dias, apenas quando fores encontrar-te com gente elegante e pretendentes formosos e abastados e quando o usares por baixo das tuas novas camisolas de caxemira...

Peguei com cuidado no meu soutien novo. O meu coração ainda estava acelerado.

- Os homens, em especial os homens com posição e bens, gostam de ser vistos com mulheres fascinantes. Eleva-lhes o ego, percebes? - Riu-se e sacudiu a cabeça por cima dos ombros em sinal de desdém.

- Acho que sim.

- Até o teu pai, que não presta atenção a mais nada que não seja os seus navios, tem prazer em entrar num restaurante fino comigo pelo braço. Os homens acham que as mulheres são enfeites.

- Mas isso é bom? - perguntei, intrigada, em voz alta.

- Claro que é bom. Deixá-los pensarem como quiserem, desde que trabalhem até à exaustão para nos fazerem felizes. Nunca deixes um homem saber exactamente o que estás a pensar. - De repente, virou-se para mim e a sua expressão doce tornou-se fria e dura. - Lembra-te sempre, Leigh, as mulheres nunca podem ser tão promíscuas como os homens. Nunca.

O meu coração começou outra vez a bater furiosamente. Ela estava prestes a entrar em assuntos mais íntimos.

- Os homens podem ser promíscuos. Espera-se que sejam. Precisam de provar a sua virilidade, mas se uma mulher fizer o mesmo, perderá tudo o que é importante. Raparigas decentes não vão até ao fim. Só quando se casarem - prosseguiu. - Promete-me que não vais esquecer-te disto.

- Prometo - murmurei, com a voz pouco mais alta do que um sussurro.

- Óptimo. - Voltou a contemplar a sua imagem no espelho e a expressão gélida dissipou-se, para dar lugar, de novo, à minha doce e linda mãe. - Tens oportunidades que eu nunca tive, se ao menos eu conseguir que o teu pai tire proveito delas.

"O teu pai levou-nos à Jamaica, como eu lhe pedi? Fomos a Deauville, às corridas? Possuímos paquetes de luxo, é verdade, mas temos um iate privativo para podermos velejar até à Ri viera? Não. Ele leva-nos a Londres três vezes por ano, porque nessa viagem pode conciliar os negócios com o prazer, e ele espera que eu distraia os passageiros como se fosse a mulher do dono de um hotel ou qualquer coisa no género. Quero ir para fora, pelo menos uma vez, e estar verdadeiramente em férias, nada de negócios. Apenas divertimento. Como é que ele espera que eu te apresente às pessoas certas, se não vamos a esses outros lugares?

Tornou a virar-se para mim. A sua face ardia de raiva.

- Não te cases com um homem que esteja mais apaixonado pelo seu negócio do que por ti.

Eu não sabia o que dizer. Ela contara-me tantas coisas e confundira-me com tantas ideias e pensamentos novos! E eu tinha mais questões para pôr. Quando é que os homens tentavam que nós fôssemos "até ao fim" e como é que sabíamos em que homens é que devíamos confiar ou não?

Não estava preparada, pensei, e comecei a entrar em pânico.

A mamã pôs-se de pé e precipitou-se para a porta.

- Estou tão contente por termos tido esta pequena conversa, querida... Mas agora receio bem que tenhamos de nos vestir. Sabes como o teu pai fica impaciente quando tem de esperar. Para ele, tudo está programado. Trata-nos como aos seus navios. Tenho a certeza de que está lá em baixo, no seu escritório, a andar de um lado para o outro e a resmungar por entre dentes.

- Eu vou despachar-me.

- Não, leva o tempo que precisares - disse ela, como se ignorasse que se estava a contradizer. - É bom praticares como deixar um homem à tua espera. Leva o teu tempo, trata do cabelo, pinta os lábios, como já te mostrei, sem comprimir, passa o bâton suavemente pelos lábios como se estivesses a acariciá-los com um beijo - explicou ela, demonstrando. - Percebido? - Assenti. - Óptimo. "E não te esqueças de pôr as tuas meias e calçar os teus sapatos novos de salto alto, que são iguais aos meus. Usa sempre saltos altos. Favorecem muito mais as nossas pernas - aconselhou ela.

Começou a sair e tornou a parar à entrada da porta.

- Quase me esquecia. Tenho outra surpresa para ti anunciou.

- Mais uma coisa? Mas a mamã e o papá já me deram tanta coisa hoje...

- Não é outro presente, Leigh. É um passeio, um lugar que eu quero que conheças - explicou ela. - vou levar-te comigo este fim-de-semana.

- Aonde?

- Àquela mansão de que eu te falei, que se chama Mansão Farthinggale.

- Onde está a pintar os murais da sala de música? perguntei. Um destes dias, ela tinha-me contado por alto. A mamã estava a fazer ilustrações em livros infantis para Patrick e Clarissa Darrow, um casal dono de uma editora aqui, em Boston, que eram nossos vizinhos. A decoradora deles, Elisabeth Deveroe, tinha sido contratada para um trabalho numa mansão fabulosa, fora de Boston. A mamã e a Elisabeth eram boas amigas e, um dia, a mamã tinha-a acompanhado à mansão e fizera algumas sugestões, que, ao que parece, o dono adorou. Ele e a Elisabeth pediram-lhe então para levar a cabo a encomenda, que consistia em pintar murais representativos de cenas de contos de fadas, o que a mamã tinha andado a fazer para as capas dos livros.

- É verdade, já fiz mais de metade e quero que vejas. E também quero que conheças o Tony.

- O Tony?

- Mister Tatterton, o dono, e quero que conheças a propriedade. Se quiseres ir, claro.

- Sim, quero! Estou ansiosa por ver as suas pinturas.

- Óptimo - sorriu. - Agora temos de nos vestir antes que o teu pai abra um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.

Ri-me, a pensar no pobre papá, e como seria para ele ter de viver agora com duas mulheres maduras, em vez de uma só. Não conseguiria nunca ser cruel para com o papá, pensei. Nunca seria

capaz de desiludi-lo ou de não lhe contar os meus pensamentos verdadeiros. "Será que não há uma altura", pensei, "uma altura, depois de nos apaixonarmos e casarmos, em que podemos confiar nos nossos maridos e sermos honestas com eles?"

Vesti o meu soutien novo, uma das minhas camisolas de caxemira e a saia a condizer. Penteei o cabelo para trás e pus bâton, como a mamã me tinha ensinado. A seguir fui buscar os sapatos de salto alto e pus-me em frente ao espelho a contemplar-me.

Estava tão diferente! Era como se tivesse crescido de um dia para o outro. Era provável que as pessoas que não me conheciam não conseguissem adivinhar a minha verdadeira idade. "Que excitante", pensei, porém, de certo modo, era um pouco asssustador. Parecia mais velha... Mas conseguiria agir como tal? Eu observava sempre a mamã em público, a maneira como parecia entrar e sair da pele de diferentes personagens, tornar-se esta pessoa ou aquela, dar risadinhas e comportar-se como uma tolinha, por vezes, enquanto aparentava um porte tão elegante e aristocrático outras vezes, de tal modo que qualquer um pensaria que ela faria parte da família real.

Linda, era-o sempre: o centro das atenções. Sempre que entrava numa sala, os homens paravam de falar e rodavam a cabeça tão bruscamente que quase a arrancavam do pescoço.

Fiquei nervosa quando pensei que, no momento em que entrássemos no restaurante, todas as atenções se virariam para nós, e os homens e as mulheres também me iriam fixar atentamente. Iriam rir? Iriam pensar: "Aqui está uma menina a tentar ser igual à mãe"?

Quando por fim desci ao escritório do papá, estava muito apreensiva. Ele iria ser o primeiro homem a ver-me tão aperaltada e, nesse momento, era o homem mais importante da minha vida. A mamã ainda estava a arranjar-se.

Encontrava-se por detrás da secretária a ler um dos seus relatórios. Há dois anos, a mamã tinha-se resignado a redecorar a casa toda, excepto o escritório do papá. Esta era a única divisão em que ele não deixava a mamã tocar, apesar de o chão estar coberto por um tapete rectangular bastante gasto, que a mamã considerava uma vergonha. A sua secretária tinha sido herdada do pai, estava riscada e lascada; contudo, ele não permitia que ninguém lhe tocasse. O escritório parecia desorganizado, porque havia prateleiras de modelos de navios e livros sobre náutica em todas as paredes. Havia um pequeno sofá de cabedal castanho-escuro, uma cadeira de baloiço de nogueira, já gasta, e, ao seu lado, uma mesa oval de carvalho silvestre. Ele trabalhava à luz de um candeeiro de latão a petróleo.

As únicas peças de arte no escritório eram as fotografias de navios: de Yankee Clippers de alguns dos primeiros paquetes de luxo e algumas peças de madeira flutuante, seca e tratada, em cima da desordenada secretária e sobre a mesa oval. Na parede atrás dele, estava pendurado um retrato do pai. As feições do avô Van Voreen, que havia morrido dois anos antes de eu nascer, eram duras e austeras. O rosto tinha rugas bem cavadas e as faces ostentavam um aspecto desgastado pela idade. O papá dizia sempre que saía à sua mãe, que também tinha morrido antes de eu nascer. Pelas fotografias, parecia uma mulher de pequena constituição, carinhosa, de quem o papá teria provavelmente herdado a sua maneira de ser sossegada e conservadora.

Eu estudava muitas vezes as fotografias dos parentes do papá à procura de alguma parecença comigo. Achava que os olhos da mãe dele eram iguais aos meus em alguns retratos, mas em outros eram bastante diferentes.

O papá levantou lentamente o olhar da sua secretária, quando deu conta que eu tinha entrado no seu escritório. Nos primeiros momentos, foi como se ele não me reconhecesse. Depois, levantou-se bruscamente; estava espantado.

- Como é que estou, papá? - perguntei, a título experimental.

- Estás tão... crescida. O que é que a tua mãe fez contigo?

- Estou bem? - indaguei, com ansiedade.

- Oh, sim. Não me tinha apercebido de como estavas a ficar bonita, Leigh. Parece-me que vou ter de deixar de pensar em ti como uma menina. - E ficou a olhar para mim durante mais alguns segundos, o que me constrangeu. Senti-me corar. - Bem - exclamou, por fim, contornando a sua secretária e vindo na minha direcção -, hoje à noite vou andar de braço dado com duas mulheres lindas. Que maravilha! - Puxou-me para me abraçar e aqueceu-me as faces com beijos.

- Tem a certeza de que estou bem, papá?

- Claro que tenho a certeza. Anda daí comigo. Vamos ver quanto tempo teremos de esperar antes de a tua mãe descer aquelas escadas. - Pôs o braço à minha volta e saímos para o átrio, fitando o alto da escadaria suspensa, porque a mamã estava nesse momento a descer.

Estava tão bonita como sempre. Os seus olhos brilhavam com tanta intensidade que irradiavam luz. As suas cores eram radiantes e o cabelo emanava um reflexo angelical. Piscou-me o olho, quando contornou o lance de escadas.

- Santo Deus, Cleave, podias ao menos ter mudado de fato desde hoje de manhã - exclamou, enquanto descia as escadas.

- Mas eu mudei de fato! - protestou o papá. A mamã abanou a cabeça.

- São todos tão iguais que ninguém diria. - Puxou para trás uma madeixa do meu cabelo. A Leigh não está maravilhosa?

- Absolutamente. Está irresistível. Não consigo imaginar outra altura em que parecessem tanto mãe e filha - assegurou ele, mas ela pareceu magoada. Ele também notou e corrigiu-se rapidamente. - Na verdade, tu pareces demasiado nova para já teres uma filha com esta idade. Parecem antes irmãs - concluiu ele. A mamã irradiou felicidade.

- Estás a ver - sussurrou-me ela, quando começámos a sair -, se quiseres, consegues sempre que eles digam as frases certas.

O meu coração batia irregularmente, a minha respiração ficou presa na garganta e parecia não querer sair. A mamã estava mesmo a fazê-lo: a partilhar realmente comigo os seus segredos de mulher. Vestida como estava, a caminho de um restaurante fino, senti-me mais arrepiada e excitada do que nunca.

E depois, no restaurante, o papá fez-nos outra surpresa. Anunciou que tinha inaugurado um cruzeiro de férias novo, às Caraíbas, na esperança de fomentar os negócios. Primeiro, seria um cruzeiro à Jamaica e ele tinha programado tudo para que fizéssemos a viagem inaugural. Partiríamos na semana seguinte com direito a festa na partida e tudo.

A mamã estava de boca aberta, e, ao princípio, não parecia feliz, apesar de ainda nesse dia se ter queixado de nunca ir passear à Jamaica, que se tinha tornado o novo local de férias para os ricos e os famosos.

- Mas, então, e a educação da Leigh? - perguntou ela.

- Levamos connosco o preceptor, tal como das outras vezes - respondeu o papá, parecendo perplexo pela súbita preocupação da mamã.

Eu também achei que era estranho da parte dela estar-se a preocupar com aquilo. Ela nunca se tinha preocupado antes.

- Pensei que ficasses contente - disse o papá. Parecia que o coração dele se tinha despedaçado por a mamã não ter ficado muito entusiasmada com a surpresa que havia acabado de anunciar.

- Eu estou contente. Só que... é tão fora do normal tu, Cleave, fazeres alguma coisa espontaneamente. - A voz dela soou estranha e frágil. - Preciso de tempo para me habituar à ideia. - Olhou para mim e pouco depois começou a rir e continuámos a festejar.

"Que dia de anos tão maravilhoso este", pensei. E como fora perfeito da parte do papá ter-me oferecido este diário para escrever estas recordações tão maravilhosas. Era como se ele tivesse adivinhado que, a partir de agora, eu teria tantas recordações especiais e que quereria, mais do que nunca, apontá-las para as guardar para sempre.

Hoje, senti um pouco do que seria ser mulher em vez de menina. No fundo do coração, gostava de saber se o papá me continuaria a trazer presentes e a chamar-me a sua pequena princesa. Uma parte de mim receava que, se eu crescesse, o seu amor por mim mudaria, diminuiria.

A mamã passou pelo meu quarto depois de eu me ter deitado e apagado as luzes. Queria lembrar-me do passeio à Mansão Farthinggale. Pressenti como era importante para ela eu gostar da Mansão Farthinggale. Mas como é que eu poderia não gostar do sítio que ela me tinha descrito? Segundo as suas palavras, soava a um reino de contos de fadas.

E aquele Tony Tatterton... um rei.

 

UM REINO ENCANTADO

Estava à espera que o papá viesse connosco para ver os murais pintados pela mamã, mas apesar de ser fim-de-semana, ele teve de ir ao escritório. Por norma, passava lá os sábados e, muitas vezes, uma parte das tardes de domingo. Sobretudo neste fim-de-semana, o papá estava mais apreensivo do que nunca em relação aos seus negócios, pois parecia certo que teria de vender um dos seus paquetes e reduzir o pessoal. As companhias de aviação estavam-se a expandir com mais velocidade do que ele imaginara e continuavam a roubar-lhe a clientela. Dizia que as companhias de aviação iam começar a oferecer aos passageiros refeições a bordo, comida confeccionada por cozinheiros famosos e que as pessoas até já faziam bicha para conseguirem lugares nos aviões. Eu não lhe queria contar que algumas das minhas amigas da escola sonhavam em vir a ser hospedeiras de bordo.

A mamã aconselhou-o a investir em outros negócios diferentes dos navios a vapor e dos paquetes de luxo, mas ele abanou a cabeça e respondeu que só sabia trabalhar nesse ramo.

- O comandante é o último a abandonar o navio - disse-me ele. - Percebes, princesa? - Senti pena dele, mas a mamã não parecia nada perturbada, nem preocupada. Ela achava que os novos cruzeiros às Caraíbas iriam ajudar a melhorar a situação. Dizia que já há algum tempo que o vinha a encorajar a iniciar esses cruzeiros.

- Mas como todos os homens - explicou-me ela -, detesta que uma mulher lhe diga o que fazer. Sinceramente prosseguiu -, os homens nunca deixam de ser umas crianças. Gostam de ser apaparicados e mimados, mas são sempre tão teimosos.

Ouvi o que ela disse; no entanto, não acreditava que o papá fosse assim tão teimoso, excepto quando se tratava do seu escritório lá em casa. "E toda a gente é teimosa em relação a qualquer coisa", pensei. A mamã também era teimosa em algumas coisas. Quando a questionei sobre o assunto, ela respondeu que era um privilégio das mulheres fazerem-se por vezes difíceis. Assegurou-me que isso fazia com que os homens tivessem mais consideração pelas mulheres.

- Nunca deixes que um homem pense que te tem na mão - aconselhou ela. Estávamos a ter esta conversa no caminho para a Mansão Farthinggale. Por hábito, tínhamos um motorista, mas desta vez a mamã quis conduzir.

O dia estava muito claro e invulgarmente quente. O papá comentou que estávamos a ter um Verão de São Martinho prolongado e, se continuasse assim, só veríamos neve em Janeiro. Eu esperava que houvesse neve no Natal. Era tão diferente ouvir o som das campainhas dos trenós ou os cânticos de Natal enquanto caíam os flocos de neve. Quando falei disso à mamã, ela riu-se.

- O Tony Tatterton está a planear uma festa de Natal disse ela -, e, se o Tony Tatterton quiser ver neve no Natal e se não tiver nevado, ele mandá-la-á vir de avião.

- Deve ser muito rico - observei eu.

- Quando deliciares os teus olhos com Farthy e vires os carros desportivos e os Rolls-Royces, os puros-sangues árabes e os jardins com uma piscina que tem o tamanho de uma piscina olímpica, vais perceber que esse adjectivo é até menosprezante - assegurou ela. Saímos da cidade e fomos em direcção ao mar.

- Farthy? O que é Farthy?

- Ah! - Voltou a rir-se, um riso agudo e curto, o tipo de som que as pessoas emitem quando estão a pensar em qualquer coisa bastante íntima, algo que só elas ou alguém muito próximo poderia apreciar. - É o diminutivo que o Tony deu à casa dele. Eu contei-te, chama-se Mansão Farthinggale.

- Soa a nome de lugar tirado de um livro de histórias. Só nas histórias é que as pessoas dão nomes às suas casas.

- Oh, não - explicou a mamã. - As pessoas com história, que possuem casas, elas próprias com a sua história, dão realmente nomes às suas casas. Hás-de ver mais propriedades grandiosas e espero que, a partir de agora, vás conhecendo cada vez mais pessoas dessa classe.

- Mamã, sempre quiseste viver em grande estilo, mesmo quando tinhas a minha idade, lá no Texas? - perguntei. Eu nunca tinha sonhado em viver numa grande propriedade ou ir a festas com aristocratas, cujas casas eram tão antigas e famosas que tinham nomes próprios, tal como Tara em E Tudo o Vento Levou. Era suposto eu desejar essas coisas? Ou seria uma consequência da idade ou da maturidade? Gostava de saber.

- Não propriamente - respondeu a mamã e riu-se à conta de outro pensamento íntimo. - Eu queria viver numas águas-furtadas, ser a amante de um poeta pobre, em Paris, e tornar-me uma artista esfomeada, mostrando o meu trabalho nas margens do rio Sena. À noite, sonhava sentar-me nas esplanadas dos cafés ouvindo o meu amante a declamar a sua poesia aos amigos, mas quando contei à minha mãe, ela riu-se e meteu tudo a ridículo. Achava que eu era tola em querer vir a ser artista. Uma mulher só tinha um propósito na vida: ser esposa e mãe.

- Mas ela não percebia que tinhas talento? Não tinha orgulho nas tuas pinturas e nos teus desenhos? - perguntei eu, apesar de ser muito difícil para mim imaginar a mamã a viver numas águas-furtadas, sem as suas roupas elegantes e as jóias e todos os cosméticos dela.

- A minha mãe nem sequer os queria ver e gritava comigo por passar demasiado tempo a desenhar ou a pintar. As minhas irmãs também não eram melhores. Sabotavam os meus desenhos ou pinturas. Não fazes ideia do quanto eu sofri quando tinha a tua idade, Leigh.

"Que horror", pensei, "a nossa própria mãe ignorar-nos e não nos suportar." Pobre mamã, a viver com aquelas irmãs horríveis e uma mãe que não ligava às coisas que eram a sua paixão, coisas tão importantes para ela. Devia estar mesmo tão sozinha até o papá chegar e arrastá-la para fora dali, para que ela se pudesse tornar uma artista e continuar a ter as coisas de que gostava e ambicionava.

- Mas agora és feliz, não és, mamã? Tens tudo aquilo que queres, não é? E podes ser uma artista, não é? - perguntei eu pressionando-a para que concordasse comigo. Ela demorou algum tempo a responder, mas eu fiquei calada, pois pressenti que o faria.

- Eu tenho muitas coisas caras, Leigh, mas sinceramente, pensei que a minha vida ia ser diferente - Sorriu ao de leve. Eu adorava esse seu sorriso, o modo como os olhos dela cintilavam quando recordava algo que lhe era querido. O papá tinha tanta razão quando disse que as recordações são mais preciosas do que jóias.

- Costumava imaginar que ia assistir a todos os tipos de galas, festas, baptizados de navios, enquanto as câmaras rodavam e os jornalistas me cercavam - confessou ela.

- Mas tu foste a algumas. Eu vi as fotografias, os recortes de jornais.

- Sim, sim, uma vez por outra assistíamos a um evento, mas tinha sempre de convencer o teu pai a ir. Ele foi educado num ambiente tão prático e puritano! Repara no estado do escritório dele, em casa. Segundo o teu pai, está tudo no sítio certo. Está tudo bastante bem, porque também o estava para o pai dele, que é muito provável que tenha morrido com o primeiro tostão que ganhou ainda no bolso. Francamente! Tenho de fechar o escritório dele cada vez que tenho uma visita em casa, mas ele não se preocupa. Conheces alguém que goste mais de trabalhar do que ele? - perguntou-me ela.

- Ele só está a tentar que o seu negócio tenha sucesso, para que nós sejamos felizes - respondi eu, em sua defesa.

- Sim, sim, para que nós sejamos felizes - repetiu ela, deixando diminuir a intensidade da sua voz. - Estamos cada vez mais perto, Leigh. Agora, olha para a direita e procura uma falha nessa fila de árvores. A primeira visão da Mansão Farthinggale é uma imagem para recordar - acrescentou ela, notando-se o entusiasmo na voz.

Via-se o Sol mesmo por cima das árvores e, quando virámos à direita e entrámos numa estrada particular, os seus raios iluminaram um enorme portão de ferro forjado, arqueado, por cima das nossas cabeças, com uma inscrição ornamentada que dizia MANSÃO FARTHINGGALE. Sobressaltei-me com os diabinhos, as fadas e os gnomos que espreitavam por entre as lanças de ferro. Senti-me realmente como se estivesse a entrar num lugar especial, um reino mágico. Mesmo antes de a casa grande surgir perante mim, percebi a razão do entusiasmo da mamã. A nossa casa na cidade era grande e luxuosa; a sensação, porém, era diferente quando se estava rodeado de acres e mais acres de terra com campos e montes e grandes vedações. Lá em Boston, vivíamos na parte rica da cidade, mas aqui... aqui teríamos a nossa cidade privada, o nosso mundo privado.

- A Mansão Farthinggale... - murmurei. Aquelas palavras produziam um som encantado. Quando as pronunciava, era como se mudasse o mundo à minha volta. Aqui, a relva parecia mesmo mais fértil, mais verde e espessa. Quase todos os relvados na cidade já tinham começado a ficar amarelos e castanhos. Pelo caminho, tinha observado muitas árvores que já haviam perdido o seu dourado de Outono e as suas folhas castanhas; as árvores nos campos de Farthy não largavam as suas preciosas folhas e estas tornavam-se ainda mais bonitas pelo modo como a luz do Sol as acariciava e as alumiava como jóias iluminadas. Uma parte de Farthy estava aninhada, abrigada no abraço dos montes cincundantes que protegiam as árvores dos ventos agrestes provenientes do mar. Algumas folhas estavam tão quietas que parecia terem sido pintadas nos ramos.

Vi pelo menos uma dúzia de pessoas do campo a trabalhar com o ancinho, a podar e a cuidar de plantas e árvores jovens. Alguns estavam de gatas à volta de fontes luminosas, cujos centros tinham pequenas estátuas de Cupido, Neptuno e Vénus. Noutro sítio, os trabalhadores transportavam carrinhos-de-mão cheios de pedra e areias naturais para outros lugares. Havia uma sensação tão forte de actividade e vida nos- jardins que dificilmente se acreditava que estávamos no fim de Outubro e que o Inverno se aproximava. Ao longo do caminho, senti como se a mamã e eu estivéssemos a entrar de novo na Primavera, como se o tempo tivesse voltado para trás ou como se nós tivéssemos penetrado num reino que nunca assistira a um dia frouxo e triste.

Foi então que olhei para a casa grande e pensei que tinha razão quando descrevi este lugar como um reino dos livros de histórias. O edifício enorme construído em pedra cinzenta parecia mesmo um castelo. O telhado era vermelho e alto, formando torreões e pequenas pontes vermelhas que faziam a junção com as partes mais altas do telhado que, de outra maneira, seriam inacessíveis. Pus-me a imaginar a vista que deviam ter as janelas dos andares superiores. De certeza que dali se podia ver o mar.

À medida que nos aproximávamos, a casa parecia ficar mais alta e mais larga. Achei que devia ser pelo menos tão grande como meio quarteirão de uma cidade. A nossa casa na cidade caberia lá com facilidade e ainda haveria espaço para mais algumas. Quando chegámos mais perto, a mamã lançou-me um olhar para observar a minha reacção. Ficou silenciosa, mas continuou a subir em direcção aos largos degraus de pedra que conduziam a uma enorme porta de entrada arqueada. À porta parecia tão pesada e espessa que imaginei que teriam sido necessários dez homens para a trazer.

- Chegámos - afirmou a mamã e desligou o motor.

Quase no mesmo instante, apareceu um criado para lhe abrir a porta. Era um homem alto e moreno, talvez na casa dos vinte e poucos. Vestia um uniforme de motorista e tirou o chapéu quando saímos do carro.

- Boa tarde, Miles - cumprimentou a mamã. Esta é a minha filha Leigh.

O Miles dirigiu-me um olhar rápido. Achei que ele era bastante tímido, mas engraçado, e tentei logo imaginar como seria tê-lo como meu namorado. Pensei, nervosa, se ele me acharia bonita e não consegui deixar de corar. Teria a mamã reparado?

- Prazer em conhecê-la, Miss Leigh - disse ele e acenou com a cabeça. Soava-me tão estranho e tão enfadonho ser cumprimentada de modo tão formal; no entanto, mesmo antes de pensar em sorrir, a mamã lançou-me um olhar de expectativa.

- Obrigada, Miles - respondi eu. - O prazer é todo meu. - O Miles sentou-se prontamente ao volante para estacionar o nosso carro.

- O Miles é o motorista de Mister Tatterton - explicou-me a mamã, quando começámos a subir as escadas. - Só cá está há duas semanas.

Antes de chegarmos à porta, esta foi aberta pelo mordomo, um homem muito alto e magro, com uma expressão triste e a cara profundamente marcada por rugas, e que me fazia lembrar Abraham Lincoln. Tinha cabelo castanho-escuro ralo, penteado para trás, liso e com um risco quase ao meio. Os seus movimentos eram tão lentos e suaves que me fazia lembrar um cangalheiro.

- Boa tarde, Curtis - cumprimentou a mamã. - Esta é a minha filha Leigh.

- Boa tarde. - O Curtis assentiu silenciosamente, sem levantar os olhos, como se estivesse a cumprimentar um membro da família real e depois recuou um passo para nos deixar entrar. - Mister Tatterton aguarda-vos na sala de música.

- Obrigada - agradeceu a mamã e descemos o enorme átrio de entrada. - O Curtis ainda não passou da casa dos vinte, mas parece já que é avô - segredou-me ela e riu-se.

Nunca tinha visto a mamã tão excitada; parecia quase uma menina ou uma rapariga da minha idade. Fiquei nervosa, quase assustada, mas não percebia porquê. Só sabia que queria que ela parasse, que agisse de novo como uma mãe.

Para tentar afastar a minha mente dessa inquietação sem sentido, observei as dúzias de enormes retratos antigos por que passávamos no caminho, bem como quadros com lindos cavalos, quadros que retratavam o mar, quadros e mais quadros, e esplêndidas tapeçarias artisticamente dispostas ao longo das paredes de mármore. Encostadas às paredes encontravam-se mesas de mármore pretas e brancas e bancos de pedra decorativos, que, obviamente, eram demasiado desconfortáveis e frios para servirem de assento. À nossa frente, estendia-se uma longa escadaria circular, duas vezes, não, três vezes mais comprida e mais larga do que a nossa. Por cima de nós pendia um lustre colossal, com tantas lâmpadas que me pus logo a imaginá-lo ligado; devia ser tão brilhante como o Sol. O chão do átrio estava coberto por enormes tapetes persas com um aspecto tão asseado e novo que até era pecado andar por cima deles.

- Vem - apressou a mamã, e eu segui a seu lado, enquanto atravessávamos uma enorme sala de estar. Vi, de relance, um piano de cauda. Parámos à porta da sala de música e eu olhei para cima e contemplei o tecto em forma de cúpula. Havia um escadote alto com andaimes suspensos exactamente no ponto onde a pintura ainda tinha de ser acabada.

Até ao momento, a mamã pintara um céu azul-vivo onde voavam andorinhas-do-mar e pombos. No centro, via-se um homem a voar num tapete mágico e, mesmo em frente, o esboço de um castelo místico, suspenso no ar, meio escondido por nuvens, que ainda estava por pintar.

Olhei para os murais e reconheci algumas cenas, pois eram desenhos que ela tinha feito para ilustrar vários livros infantis. A parede oposta consistia por inteiro na pintura de uma floresta ensombrada, através da qual espreitava a luz do Sol, com trilhos sinuosos que levavam a cordilheiras de montanhas enevoadas e castelos no topo.

- O que é que achas? - perguntou-me, com brandura.

- Oh, mamã, é lindo, mesmo lindo. Adoro!

Ficara tão fascinada pelos murais e pelas pinturas no tecto que não me havia apercebido do homem sentado no pequeno sofá, cuja armação era minuciosamente ornamentada. O sofá estava de frente para a porta, de modo que tínhamos sido observadas, enquanto eu estivera a descrever círculos lentos, com a respiração suspensa, os olhos esbugalhados, maravilhada.

- Oh - exclamei eu, recuando para mais perto da mamã. Não consegui deixar de corar de vergonha.

O atraente jovem, dono dos olhos azuis mais brilhantes que eu já vira, sorriu. Vestia um casaco de smoking de veludo cor de vinho, calças escuras e o seu cabelo castanho-escuro era espesso e farto. Os seus lábios eram carnudos; até eu me podia aperceber da sua sensualidade, e a sua face estava tão bronzeada como a de uma estrela de cinema. Achei que tinha um aspecto elegante e um toque de celebridade.

Quando se levantou, observei que era forte e tinha ombros largos. Era alto, talvez tivesse mais dois ou três centímetros do que o papá, e as suas mãos eram longas e graciosas. Este homem emanava um poder, uma confiança e uma firmeza que parecia demasiado jovem para poder possuir.

- Desculpem - disse ele -, mas tinha de vos observar à vontade por uns momentos. Não há dúvida de que esta é a sua filha, Jillian. Herdou a sua joie de vivre e os olhos cintilam com a mesma exuberância que caracteriza os seus. Olhei para a mamã para ver a reacção dela a elogios tão generosos. Oh, parecia desabrochar com o som dos elogios, como uma flor sob chuva quente de Verão. - Sejam bem-vindas a Farthy.

- Leigh, este é Mister Tatterton - apresentou a mamã, sem tirar os olhos dele.

Mr. Tatterton? Eu estava parva. Pelo modo como a mamã falara dele, eu simplesmente deduzira que era um homem muito mais velho, um homem grisalho. Eu idealizava que, de alguma maneira, todos os milionários eram como os homens dos nossos textos de História: os Rockefeller e os Carnegie, os barões do petróleo... Velhos enfadonhos, que só se interessavam por Wall Street ou por cartéis e monopólios.

Olhei para a mamã e percebi, pelo brilho dos olhos dela, que se estava a divertir com a minha reacção e que gostava muito do Tony Tatterton.

- Como está, Mister Tatterton? - cumprimentei eu.

- Oh, por favor, chama-me Tony. Então, gostas das pinturas da tua mãe? - perguntou ele, apontando para o tecto e depois para as paredes.

- São maravilhosas. Adoro!

- É verdade. - Virou-se para mim e fixou-me com um olhar penetrante, que fez o meu coração bater e me provocou calor no pescoço. Eu esperava não ter corado excessivamente. Desde pequena que o mais pequeno laivo de entusiasmo me fazia corar.

- Eu também adoro - concordou o Tony -, e hei-de estar eternamente em dívida para com Mistress Deveroe por ter trazido a tua mãe até aqui. Bem - exclamou, batendo com as palmas das mãos. - Primeiro, o mais importante. Tenho a certeza de que queres dar uma volta para conhecer Farthy.

- Eu também quero - ouvi uma voz miúda a gritar. Virei-me para a esquerda e deparei-me com um menino de olhos escuros e inquiridores, tão grandes como moedas de meio dólar, a olhar-me fixamente pelo canto do sofá. Era óbvio que estivera escondido atrás do sofá. Tinha o mesmo cabelo castanho-escuro do Tony Tatterton e usava-o comprido, mas cuidadosamente arredondado nas pontas, tornando-o parecido com um principezinho. Estava vestido com um fato de marinheiro azul-escuro.

- Anda cá, Troy - chamou o Tony Tatterton -, e deixa-me apresentar-te como deve ser. Anda.

O rapazinho hesitou e continuou a fitar-me.

- Olá - disse eu. O meu nome é Leigh. Queres apertar à minha mão?

Ele assentiu rapidamente e precipitou-se na minha direcção.

- Bem, percebe-se que o Troy já tem bom gosto com apenas quatro anos de idade. O Troy é o meu irmão mais novo - explicou-me o Tony, enquanto eu apertava a mãozinha do Troy. Este olhou-me com ansiedade. - Suponho que se possa dizer que sou mais um pai do que um irmão para ele, já que os nossos pais faleceram - acrescentou o Tony.

- Oh! - Baixei o olhar para aquele menino tão bonito e senti pena dele. Tinha um aspecto tão frágil e tão pequeno como um passarinho acabado de cair do seu ninho, perdendo desse modo o calor e o carinho da sua mãe. Havia ansiedade nos seus olhos, um pedido de calor e amor.

- Troy, apresento-te a filha da Jillian, a Leigh. Leigh, este é o Troy Langdon Tatterton - disse o Tony e riu-se muito, pois o Troy não largara a minha mão. Ajoelhei-me para olhar para a cara do Troy.

- Também queres acompanhar-nos na visita? - perguntei eu e ele assentiu prontamente, estendendo-me os braços para eu lhe pegar ao colo. Abracei-o e ergui-o. Levantei os olhos e deparei com os intensos olhos azuis do Tony Tatterton a fitarem-me. Os seus olhos fixaram-se nos meus por instantes e eu senti-me pouco à vontade; depois, riu-se.

- Uma mulher de força. Eu sabia - disse o Tony. Apesar disso, deves ser uma pessoa muito especial, Leigh.

Normalmente, ele fica bastante envergonhado quando está ao pé de pessoas que acaba de conhecer.

Corei e desviei o olhar. Se havia alguém tímido ali, era eu, pensei. O pequeno Troy parecia tão delicado que eu não queria fazer nada que o magoasse.

- Oh, ele não vai ser envergonhado ao pé de mim, pois não, Troy? - Ele assentiu.

- Excelente - exclamou o Tony. - Vamos então dar uma volta pela casa e depois damos uma saltada lá fora, para ver a piscina e os cavalos. Depois de almoço, vamos todos dar um passeio pela praia. Mas, Troy, a Leigh não pode andar contigo ao colo para todo o lado. Já estás demasiado grande e pesado.

- Não faz mal - retorqui eu. - Tenho a certeza de que logo, logo, o Troy há-de querer voltar a andar pelo seu pé, não é, Troy? - Ele acenou com a cabeça e estudou-me com minúcia. Apercebi-me do receio que os seus olhos deixavam transparecer, receio que eu o largasse e ignorasse. - Talvez o Troy me possa explicar algumas coisas e mostrar-me outras, também. Podes, Troy? - Ele assentiu. - Então, estamos prontos.

O Tony voltou a rir-se e ele e a mamã conduziram-nos para fora da sala de música. Talvez nenhuma das divisões da casa grande fosse tão impressionante como a sala de jantar. Era tão grande como um salão para banquetes e tinha a mesa mais comprida que eu alguma vez vira. Enquanto lá estivemos, o cozinheiro saiu da cozinha e o Tony apresentou-nos. Apercebi-me de que o Tony tinha muito orgulho nele. Tinha-o descoberto numa viagem a Nova Orleães e trouxe-o para ser o seu cozinheiro privativo. Chamava-se Ryse Williams. Era um negro muito caloroso e alegre e tinha uma maneira de falar que fazia com que as palavras soassem a música. Prometeu preparar-nos "um almoço tão especial que os nossos estômagos nos iriam agradecer por muito tempo".

Fiquei com os braços tão cansados que pensei que tinham esticado uns centímetros e pousei o Troy no chão para subirmos as escadas de mármore. Estava desejoso de que eu visse o quarto dele. Todos os quartos no andar de cima eram suites na verdadeira acepção da palavra, cada um com a sua própria sala de espera. A sala de espera do Troy estava tão cheia de brinquedos que parecia uma loja.

- A tua mãe não te falou do meu ramo de negócios? perguntou o Tony, ao ver a minha admiração. Eu fiz que não com a cabeça. - Queres dizer que ela não te contou que ias visitar o rei dos brinquedos? - Ele e a mamã olharam um para o outro, como se fosse uma piada privada. Voltei a negar, confundida, tanto pela conversa, como pelos olhares divertidos que a mamã trocava com esse jovem forte e atraente.

Porque é que ela haveria de lhe chamar rei dos brinquedos? - perguntei eu, enquanto o Troy ia à pilha de brinquedos buscar qualquer coisa especial para me mostrar.

Foi assim que construímos a nossa fortuna - explicou o Tony. Ele viu como os meus olhos se abriram de interesse e sorriu, um sorriso pequeno e firme... divertido. - Quer dizer então que tens sido uma criança privada de um brinquedo Tattertonl Jillian, devia ter vergonha - brincou ele.

- Por amor de Deus, já tenho problemas suficientes para tentar que o pai dela lhe compre coisas adequadas a uma rapariga - contestou a mamã, com malícia. O Tony e a mamã fitaram-se por um momento, como se já tivessem tido esta discussão anteriormente, e em seguida ele tornou a voltar-se para mim.

- Os nossos brinquedos são especiais. Não são brinquedos comuns, feitos de plástico. Os brinquedos que nós fazemos destinam-se a coleccionadores, a pessoas abastadas que não conseguem crescer nem esquecer que já não são crianças. Talvez algumas ainda não tenham superado as recordações do tempo em que eram pobres, quando não havia praticamente nenhuns presentes sob as suas árvores de Natal ou quando os seus pais não tinham dinheiro para lhes oferecer prendas de anos.

"Estás a ver aquele castelo com o fosso? - perguntou ele, apontando para o canto mais distante do quarto do Troy.

- Foi feito à mão por um dos meus artesãos. Se olhares com atenção, repararás no trabalho de pormenor. Cada brinquedo é único, por isso, cada um é especial e valioso. As pessoas que têm recursos, constróem o seu próprio reino, por assim dizer.

Fui até lá para ver o castelo.

- Até tem pessoas em miniatura, empregados, camponeses, senhores e senhoras! - exclamei eu. - Todos os seus brinquedos são assim tão perfeitos?

- Sim, são, ou então não os deixo serem vendidos. A sua manga de veludo roçou a minha quando avançou para o meu lado e eu senti o perfume forte da sua água-de-colónia e da sua loção de barba dispendiosas. - E também fazemos jogos, mas são jogos tão difíceis que põem mentes mais avançadas a pensar durante horas e horas.

Tornou a olhar para a mamã e sorriram um para o outro como anteriormente, como se partilhassem uma piada íntima.

- As pessoas ricas têm tendência para se aborrecerem mais depressa. Algumas estão sempre entediadas e é então que se viram para os artigos de colecção, sejam as antiguidades ou os meus brinquedos. Há pessoas neste país com tanto dinheiro que não têm tempo para o gastar. Eu forneço-lhes outro escape, um lugar para encontrarem a fantasia.

"Se viesses comigo a uma das minhas lojas de brinquedos, pensarias que estavas a entrar num país encantado. Nas minhas lojas, as pessoas podem penetrar no período de tempo que desejarem, seja o passado ou o futuro. Nós achamos que elas estão mais interessadas no passado. Talvez tenham medo do futuro - concluiu ele, em tom filosófico.

Olhei-o fixamente. Falava dos seus clientes como se devêssemos ter pena deles. Achei que, no fundo, ele não os respeitava, apesar de serem a fonte de rendimentos que lhe permitia sustentar aquela grandiosa propriedade.

- Olha! - O Troy insistia e puxava-me a saia. Baixei o olhar e vi-o a agarrar num carro de bombeiros de metal quase tão grande como ele. As peças eram todas móveis e algumas desmontáveis. Os rostos dos pequenos bombeiros estavam moldados e pintados com tanto pormenor, que cada um tinha uma expressão distinta. O Troy premiu um dispositivo e a sirene disparou.

- É maravilhoso, Troy - exclamei. - Aposto em como te divertes imenso com isso.

- Queres brincar? - perguntou ele.

- A Leigh não pode brincar com os teus brinquedos agora, Troy - explicou o Tony. - Nós íamos levá-la a dar uma volta pela propriedade, lembras-te?

O Troy ficou muito desgostoso.

- Brincamos mais tarde - disse eu. - Prometo, está bem?

Ele assentiu e a esperança voltou aos seus olhos.

Do quarto do Troy passámos às outras suites, cada uma mais luxuosa e maior do que a anterior. Todas as salas de espera estavam totalmente mobiladas com peças restauradas do século xix, algumas com aspecto de nunca terem sido usadas. Também havia obras de arte por todo o lado. As casas de banho eram grandes e estavam decoradas com acessórios de bronze e banheiras tão grandes como pequenas piscinas. Havia espelhos por todo o lado, o que tornava as casas de banho e os quartos ainda maiores.

A mamã e o Tony Tatterton caminhavam à nossa frente quando saímos para dar uma volta pelos jardins. Sempre que conversavam, falavam tão baixo que eu não conseguia ouvir o que diziam, mas provavelmente não teria conseguido ouvir nada na mesma por causa do Troy. Dei-lhe a mão enquanto passeávamos pelos atalhos ao longo dos jardins e do relvado, em direcção à piscina e ao caramanchão, e o Troy iniciou um monólogo singular para um menino da idade dele. Quando se começou a habituar a mim, revelou então como era encantador.

- O Boris, o jardineiro, vai plantar ali pequenas árvores

- disse ele, apontando para a direita, onde estavam a trabalhar dois homens. - As flores estão mortas mas, passando o Inverno, vão crescer mais e mais, pois o Boris diz que este ano vai plantar mais flores diferentes.

"Ele também é o patrão do labirinto - acrescentou o Troy, manifestamente impressionado com o facto.

- O labirinto?

Apontou para a minha direita e eu vi-o. Os muros de sebes tinham pelo menos três ou quatro metros de altura.

- É muito comprido? - perguntei eu.

- Vai até lá ao fundo - apontou o Troy -, e vai dar à casa pequena de pedra.

- A casa pequena de pedra?

- Hum, hum. - Assentiu e depois largou a minha mão e foi a correr até junto do Tony, puxando-lhe a parte de baixo do casaco de smoking.

- A Leigh quer ir ao labirinto! A Leigh quer ir ao labirinto! - entoou ele.

- Sim? - o Tony e a mamã voltaram-se para mim.

- Eu não disse isso. Ele é um diabinho. Mas se calhar é divertido - acrescentei, olhando na direcção do labirinto.

- Tens de ter cuidado quando lá entrares - avisou o Tony. - As pessoas perdem-se mesmo lá dentro.

- É grande e profundo? - perguntei eu, curiosa.

- Oh, sim. Eu nunca o medi, verdade seja dita, mas o Boris, o meu jardineiro, acha que mede pelo menos meio acre, se não for mais.

- Vamos entrar no labirinto, Tony! - gritou o Troy. Vamos entrar no labirinto, Tony!

- Talvez mais tarde. Troy, temos de mostrar à Leigh a piscina e as cavalariças e levá-la lá abaixo à praia, não é? É de mais para um dia só - acrescentou ele, abanando a cabeça. - Receio bem que tenhas de voltar cá muitas vezes, senão o Troy vai ficar muito perturbado.

Olhei para a mamã. Estava a sorrir que nem um gato Cheshire, um sorriso até às orelhas.

- Talvez possas voltar no próximo fim-de-semana - disse o Tony.

- Sim, por favor, por favor - implorou o Troy.

- Eu... nós vamos para fora no próximo fim-de-semana, mas quando voltarmos...

- Vão para fora? - O Tony virou-se bruscamente para a mamã. - Não me lembro de ter mencionado nenhuma viagem.

- Eu apenas soube disso a noite passada - disse ela. Soava tão descontente com o facto, que eu até fiquei surpreendida. "Mas porquê?", pensava eu. Ela queria tanto fazer aquela viagem. - Mais tarde falamos sobre isso - acrescentou com suavidade, dirigindo-se ao Tony, e virou-se, de maneira a continuarem o passeio. A conversa deles, apesar de manter o tom, tornou-se mais animada e ambos gesticulavam. Provavelmente, o Tony estava apenas preocupado com os murais por acabar, disse eu para mim mesma.

O pequeno Troy, começou outra vez a choramingar por causa do labirinto.

- Está bem - cedi eu. - Depois de vermos a piscina, tu e eu damos lá um salto, certo?

- Certo. - Voltou a pegar na minha mão e olhou-me muito satisfeito.

- És um pequeno enfeitiçador, não és, Troy Langdon Tatterton?

O Troy encolheu os ombros, como se tivesse percebido exactamente o que eu tinha dito e eu ri-me imenso.

"Que lugar estranho e, porém, maravilhoso, é este", pensei enquanto prosseguíamos. Era amplo e bonito e podia oferecer muitas coisas aos seus habitantes, mas Farthinggale era demasiado imensa só para um homem solteiro e o seu irmãozinho mais novo. "Mesmo com um exército de empregados à sua volta, eles devem sentir-se muito sozinhos", supus. Pobre pequeno Troy, lamentei eu, ter perdido os pais com quatro anos de idade. Tremi ao pensamento de poder perder os meus próprios e queridos pais, que eu tanto adorava. Muitas vezes a mamã falava como se o dinheiro pudesse comprar felicidade, mas eu tinha a certeza de que, se o pequeno Troy pudesse escolher, desistiria de tudo aquilo só para ter de volta os seus pais. Eu sei que eu o faria.

O Tony deixou o Troy correr para dentro da recém-esvaziada piscina olímpica. Ele achava engraçado ir para a zona funda, onde anteriormente houvera água.

O pirralho sabe nadar, sabias? - sussurrou-me o Tony ao ouvido. - Desde o ano e meio de idade.

- A sério?

Leigh, entra. Entra, Leigh. A água está óptima! -

O Troy ria-se da sua própria piada. Parou mais ou menos a meio do caminho e acenou.

- Está frio de mais para ir para a água - gritei eu. Ele olhou para mim, com uma expressão de espanto, o mais adulta possível.

- Estava a brincar. A piscina não tem água - disse ele, esbracejando, como se estivesse a falar com uma idiota chapada. Tive de rir, e a mamã e o Tony também.

- Está bem - concordei. - vou dar um mergulho. Desci os degraus e fui para dentro da piscina. Ele deu-me a mão e levou-me até ao fundo.

- Eu consigo nadar daqui até aqui - anunciou ele, apontando. Depois de tocarmos na parede mais afastada, voltámos para trás, para sair da piscina. A mamã e o Tony tinham ido à frente para outro sítio. Quando subimos as escadas, vi-os junto do caramanchão, conversando de novo muito animados e muito próximos. Achei que o Tony parecia transtornado. A mamã reparou que o Troy e eu tínhamos reaparecido e pousou a mão no antebraço do Tony para o interromper.

- Olha, Leigh - chamou ela -, até tem um pequeno palco para a banda tocar enquanto as pessoas tomam banho.

- É verdade - esclareceu o Tony. - Damos festas maravilhosas na piscina durante todo o Verão: comemos com requinte e dançamos a noite toda. Já alguma vez tomaste banho sob as estrelas? - perguntou-me, e apontou para o céu, como se estivéssemos a meio da noite e as estrelas se encontrassem a brilhar. Eu disse que não com a cabeça; porém, falar sobre aquilo já me parecia maravilhoso.

O Troy puxou-me o braço. Olhei para baixo e vi os seus olhos suplicantes.

- Tony, fazia mal se, a caminho das cavalariças, eu levasse o Troy a dar um passeio pelo labirinto? - perguntei, acenando na direcção do Troy.

- Está bem - assentiu, dirigindo-se ao Troy. - Podes levar a Leigh até ao labirinto. Entrem ali mesmo - disse, apontando -, mas não passem da primeira curva - instruiu.

- Diz isso de uma maneira que parece que o labirinto nos pode engolir - exclamei

Ele ficou mais sério e os seus olhos azuis cor do céu diminuíram.

- E pode mesmo - avisou ele. Eu concordei, impressionada com a preocupação dele.

- Pronto, Troy. Podemos ir, mas ouviste o que o teu irmão disse. Dá-me a mão e não desates a correr lá para dentro, percebes?

- Hum, hum - anuiu, acenando a cabeça, com ênfase.

- Mamã? - Pensei que ela talvez quisesse vir connosco.

- Vão vocês - disse ela. - Nós esperamos aqui. Peguei na mão do Troy e caminhámos através dos jardins em direcção ao labirinto.

Apercebi-me, pelo modo preciso e cuidadoso como o pequeno Troy entrou, que o labirinto o impressionava bastante. A expressão dele tornou-se reverente e receosa. Segurava a minha mão com firmeza e, por um momento, senti-me como se tivesse acabado de entrar numa igreja. Era tão sossegado! Até o chilrear dos passarinhos do jardim soava distante e enfraquecido, e os gritos melancólicos das gaivotas que voavam por cima de nós eram abafados e longínquos. As sebes eram tão altas, que, a uma determinada altura, cortavam o calor do sol e projectavam sombras compridas e escuras no nosso caminho. No entanto, achei o labirinto sereno, de uma tranquilidade bonita e misteriosa. Quando chegámos à primeira curva e eu olhei para o caminho em frente, que tinha ramificações para a esquerda e para a direita, apresentando alternativas que poderiam levar uma pessoa perdida a caminhar em círculos, ou, eventualmente, chegar a um destino, apercebi-me do desafio e não consegui deixar de ficar um bocadinho excitada e curiosa. Provavelmente era isto que o Tony queria dizer quando avisara que o labirinto nos poderia engolir. Era tentador, atraente; desafiava qualquer intruso a desvendar os seus segredos. Pensei que ia adorar voltar, um dia, sozinha, e tentar.

- Já alguma vez foste mais longe, Troy? - perguntei.

- Oh, claro. Às vezes o Tony leva-me até à casa pequena. Ele consegue atravessar o labirinto sem o menor problema - contou-me ele, antecipando os ziguezagues, com movimentos oscilantes da palma da mão. Depois, inclinou-se na minha direcção, com os olhos a rebentar de excitação e sussurrou-me: - Queres experimentar?

- Seu diabinho. Tu ouviste o que o teu irmão disse. Agora, anda, vamos voltar. A seguir quero ver os cavalos.

O Troy retrocedeu e fez um sorriso dengoso, como se fosse um jovem pelo menos quatro vezes mais velho. Logo a seguir, veio-lhe uma ideia melhor à cabeça, um pensamento mais excitante, e incitou-me a regressar ao sítio onde havíamos entrado.

Anda, vou mostrar-te o meu pónei, o Sniffles, e podes montá-lo, está bem?

Sniffles? - Segui-o em direcção à saída, deixando as minhas gargalhadas para trás, a esmorecerem nas sombras do labirinto.

O Tony e a mamã tinham andado a caminhar e estavam de novo envolvidos numa daquelas conversas animadas. Fiquei com o estômago às voltas perante a imagem da minha mamã a atirar para trás a sua amorosa cabeça e a rir de qualquer coisa que o Tony lhe havia dito com aquele lindo riso gutural. Tentei convencer-me de que apenas estava com fome para almoçar. No entanto, uma parte de mim estava subjugada por tudo, naquele reino de histórias de encantar, e a outra parte queria fugir do seu misterioso encantamento.

- TONY! TONY! - gritou o Troy, largando a minha mão e correndo para eles. - A Leigh quer montar o Sniffles. Pode? Pode?

Eu abanei a cabeça.

- A Leigh quer montar? Ou tu é que queres que ela monte? - perguntou-lhe o Tony. O Troy encolheu os ombros sem perceber a diferença. - Bem, Troy, tu sabes que leva tempo a preparar o pónei. Primeiro, temos de avisar o Curly e, de qualquer maneira, a Leigh não está adequadamente vestida para montar, não achas? - perguntou ele. O Troy virou-se e olhou para mim. Eu trazia uma das minhas camisolas novas de caxemira, mas em vez de usar uma daquelas saias justas novas, vestira uma das minhas saias com folhos.

A mamã estalou os dedos.

- Eu sabia que me tinha esquecido de alguma coisa. Ia comprar-lhe um fato de montar novo pelos anos.

- Pelos anos? - exclamou o Tony. - Ah, é verdade, a Leigh fez anos ontem. - Piscou o olho à mamã e deu um passo em frente. - Eu sabia que havia uma razão para carregar com isto - disse-me ele e tirou uma caixinha do bolso do casaco. Estava embrulhada em papel dourado com uma fita preta à volta.

- O que é isso?

- É óbvio que é um presente de aniversário, Leigh disse a mamã, um pouco com maus modos. - Pega nele e agradece.

- Mas... - Devagar, peguei nele.

- O que é? O que é? - perguntava o Troy. Desatei a fita e desembrulhei a caixinha. A seguir, abri-a

e deparei com um medalhão de ouro com a forma de barco e um colar também de ouro. O medalhão tinha dois diamantes minúsculos em cima de cada uma das chaminés do navio.

- Oh, olha - disse eu, tirando-o para fora da caixa. A mamã abanou a cabeça e sorriu.

- Lindo.

- Eu também quero ver. Mostra-me também - gritou o Troy. Ajoelhei-me e ele fitou-o com um interesse pouco duradouro.

- Não vai flutuar - afirmou.

- Não é para flutuar, Troy. É para usar à volta do pescoço, vês? - disse eu. Tirei o colar para fora e segurei-o.

- Repara na parte de trás - pediu o Tony. Virei o medalhão e li "A Princesa Leigh".

- Que bonito, Tony - disse a mamã, já sem o tom mal-humorado. - Gostava que o pai dela lhe desse presentes desse tipo, em vez de lhe oferecer modelos actuais de navios, para desmontar e estudar - acrescentou ela.

- Os papás são sempre os últimos a perceber como as filhas estão crescidas. - Levantei os olhos com brusquidão. O Tony fitava-me com aqueles intensos olhos azuis, o que me fez sentir mais velha. A sensação fez-me corar e, com o coração acelerado, baixei os olhos tão rapidamente como os tinha levantado.

- De qualquer maneira, espero que gostes, Leigh - disse o Tony quase num sussurro.

- Oh, adoro. Obrigada. Muito obrigada. - Olhei para a mamã, que assentia silenciosamente, e percebi que ela queria que eu lhe desse um beijo. Como tinha acabado de o conhecer, senti-me estranha por ter de beijar o Tony, apesar de ele me ter oferecido um presente muito caro. A mamã olhava para mim como se estivesse à espera disso e eu queria fazer tudo bem, se não por mim, então por ela.

O Tony antecipou o beijo de agradecimento. Inclinou-se e voltou a cara para os meus lábios. Dei-lhe um beijo rápido, mas cerrei os olhos e inalei o perfume da sua loção de barbear. Foi mesmo o primeiro homem que, para além do papá, alguma vez beijei. Não consegui impedir que o meu coração palpitasse furiosamente e que ficasse um pouco tonta. Tinha esperança de que ele não tivesse notado.

- Obrigada - murmurei.

- Deixa-me ajudar-te a pô-lo - disse o Tony e tirou-mo das mãos. Os meus dedos estavam mesmo a tremer. Ele abriu a corrente e pô-la à volta do meu pescoço, enquanto estudava o fecho. - Estas coisas são tão minúsculas. Pronto, já consegui. - Recuou um passo, pôs-se ao lado da mamã e os dois apreciaram-me. O medalhão pendia mesmo entre os meus seios.

A mamã tinha um ar distante, quase triste, como se, de repente, tivesse ficado um pouco ciumenta.

- Óptimo. - O Tony bateu palmas. - Bem, então prosseguiu ele -, vamos continuar e ver as cavalariças para que saibas o que podes fazer quando tiveres o fato de montar.

Quando chegámos às cavalariças, o Troy chamou o Curly, um escocês pequeno e robusto, que tinha mesmo cabelo ruivo muito encaracolado. Aparentava cerca de cinquenta anos. Cada uma das suas faces rechonchudas tinha duas rosetas vermelhas, tão vivas que parecia ter posto maquilhagem de palhaço.

- Imagino que queira dar uma olhadela ao Sniffles disse ele, indicando o caminho.

O Curly abriu a porta do estábulo. Olhei para dentro e vi o pónei Shetland preto e branco. Era tão bonito que fiquei logo apaixonada. O Troy ofereceu-lhe um bocado de feno, ele pegou-lhe delicadamente e começou a mastigar com os olhos postos em mim.

- Se quiser pode fazer-lhe festas, menina.

- vou fazer. Obrigada. - Afaguei o cavalinho e pensei outra vez no lugar mágico que era a Mansão Farthinggale, com os seus lindos jardins, a sua enorme piscina e o caramanchão com o palco, o seu labirinto e agora, as suas cavalariças. Comecei a perceber porque é que a mamã estava tão encantada. Talvez ela fosse tentar convencer o papá a sair da cidade e a comprar uma propriedade, pensei.

- Voltas amanhã para montar o pónei? - perguntou o Troy. - Voltas?

- Amanhã talvez não, Troy, mas em breve.

Ele ficou outra vez desapontado. Oh, como ele precisava desesperadamente de uma mãe, alguém que lhe desse ternura e carinho. O Tony devia ser um bom irmão para ele, mas não lhe conseguia proporcionar o conforto que uma mãe lhe

 

1 Curly: adjectivo que significa "encaracolado" e que normalmente se refere à descrição dos cabelos de uma pessoa; foi adaptado ao nome e/ou diminutivo do tratador dos cavalos.

 

traria. Gostava de poder levá-lo connosco para casa. Sempre quisera ter um irmãozinho mais novo.

O Tony e a mamã levaram algum tempo a chegar às cavalariças. Já tinha começado a pensar se deveríamos voltar atrás e ir à procura deles. Quando por fim chegaram, o Tony anunciou que era tempo de irmos ver do almoço. A mamã tinha decidido que queria ir trabalhar duas horas nos murais depois de comer e o Tony ofereceu-se para nos levar, a mim e ao Troy, à praia. O Tony apercebeu-se de que eu fiquei desapontada. Queria ver a mamã a trabalhar.

- Vou-te mostrar todos os meus lugares especiais na praia - prometeu ele. - Adoro o mar. - A sua expressão modificou-se, entristeceu. - É mágico e misterioso, e muda todos os dias.

- O meu pai também adora o mar - disse eu.

- Tenho a certeza que sim. Mas eu fico contente de não depender do mar para viver - acrescentou. - O mar pode ser tão imprevisível... tal como uma mulher. - Fiquei surpreendida quando vi a mamã a rir. Se fosse o papá a dizer aquilo, tinha a certeza de que ela lhe teria lançado um olhar mal-humorado ou que teria ficado calada. Contudo, parecia que ela achava que tudo o que o Tony Tatterton fazia ou dizia era maravilhoso. - Belo, todo-poderoso e falso - prosseguiu ele, fazendo um grande sorriso que parecia não chegar aos olhos. - Mas não há nada mais bonito do que o mar. Excepto, claro, a tua mãe - acrescentou, olhando para a mamã. Virei-me imediatamente para observar a reacção dela; porém, em vez de se sentir embaraçada, estava orgulhosa.

Pensei que devia ser embaraçoso para uma mulher casada ser elogiada por outro homem de uma maneira tão excessiva.

Era tão mais fácil ser apenas uma menina... Quase desejei voltar a sè-lo; sabia, porém, que o tempo e o destino não me deixariam voltar atrás.

 

UM LUGAR MUITO ÍNTIMO

O almoço foi tão maravilhoso como o Ryse Williams tinha previsto e o Tony transformou-o numa ocasião formal. De repente, estávamos rodeados por empregados, caras novas que parecia terem surgido do nada - dois empregados e uma empregada. Senti-me como se estivesse num restaurante chique.

- A mesa estava posta com louça de porcelana que parecia muito cara e o Tony explicou que era herdada dos seus avós. Sentámo-nos todos na extremidade da enorme mesa, o Troy e eu à esquerda do Tony e a mamã à sua direita. Cada lugar tinha um copo para vinho, até o do Troy. O Tony piscou-me o olho quando serviu algumas gotas de vinho no copo do irmão. O Troy portou-se de uma forma muito adulta, não mostrando qualquer surpresa. Reparei, pela maneira como estudava cada movimento do Tony, que tentava fazer tudo igual a ele. Pegou no guardanapo, desdobrou-o e colocou-o cuidadosamente no seu pequeno colo. Em seguida, recostou-se com a mesma postura perfeita.

Ao lado da taça da fruta, dentro da qual cada pedaço de fruta tinha uma forma estranha, tínhamos uma salada deliciosa com ingredientes que eu nunca havia provado ou visto anteriormente. Alguns pareciam pétalas de flores, mas sabiam que era uma maravilha. O prato principal era composto por camarões sob uma camada de arroz solto. Estava picante, e delicioso. Como sobremesa, o Ryse Williams trouxe-nos, ele próprio, um gelado pêche melba. Fiquei tão cheia que ansiei pelo passeio na praia.

- Leigh - chamou o Tony -, porque é que não levas o Troy lá para fora que eu já lá vou ter convosco? A tua mãe e eu temos ainda que discutir um ou dois pormenores sobre os murais.

- Anda, Leigh - gritou o Troy, saltando da cadeira.

Olhei para a mamã. Tinha os cotovelos em cima da mesa, os dedos das mãos entrelaçados, fazendo pressão contra os lábios, mas havia um sorriso de felicidade à volta dos seus olhos. Aqui, no meio deste encantamento, ela parecia mais do que nunca uma princesa de um conto de fadas, pensei eu.

- vou vestir a minha bata - disse ela, suavemente. Segui o Troy, saindo pela porta da frente.

- Onde vais, Troy? - perguntei eu. O Troy virara à direita e fora para trás de um arbusto. Respondeu-me, mostrando-me o pequeno balde e a pá que tinha ido buscar.

- Deixei isto aqui ontem quando estava a trabalhar com o Boris. Precisamos do balde e da pá na praia.

- Ah! Sim, é verdade.

- Anda - insistiu ele -, o Tony depois apanha-nos.

- Acho que devíamos esperar.

- Estou sempre à espera, à espera, à espera - queixou-se ele e bateu com o pé. Atirou-se para a relva e cruzou os braços à volta do peito, amuado.

- Ele não vai demorar, tenho a certeza - disse eu, sorrindo para o tranquilizar.

- Se a tua mãe vai pintar, ele não vem cá para fora. Que palavras estranhas estas, proferidas pelo Troy, pensei. De certeza que o Tony não ficava a olhar por cima do ombro da mamã durante o tempo todo que ela estava a pintar. Ele também tinha de tratar dos seus negócios e a mamã nunca gostara de público enquanto desenhava e pintava.

O Troy olhou para mim, desconfiado.

- Onde é que está o teu papá? - perguntou. - Também morreu e foi para o céu ter com os anjos?

- Não, está a trabalhar. Eu queria que ele viesse hoje connosco, mas ele não podia - acrescentei. O Troy continuou a fitar-me com curiosidade. Em seguida, olhou para a porta principal da mansão, com os olhos cada vez mais pequenos.

- OLÁ! - chamou o Tony do topo das escadas. O Troy saltou e pôs-se de pé. - Pronto, vamos - disse o Tony, descendo a correr, enquanto o Troy disparava a correr à nossa frente.

- Vais muitas vezes para ao pé do mar, Leigh? - perguntou-me ele, enquanto prosseguíamos atrás do Troy.

- vou muitas vezes até ao porto, ao escritório do meu pai, e já fizemos algumas viagens por mar - respondi eu.

Não podia acreditar que estava tão nervosa sem a mamã junto de mim. Tinha tanto medo de dizer ou fazer alguma coisa errada e de poder envergonhar não só a mamã, mas também a mim própria. O Tony parecia tão seguro de si próprio! Sendo dono de uma fortuna tão vasta e de um negócio tão grande, tinha de ser um homem muito cosmopolita e sofisticado, pensei. Devido ao ramo de negócios a que o papá se dedicava, eu tinha viajado muito mais do que a maior parte dos meus amigos e conhecera muito mais pessoas de outros países; mesmo assim não me sentia segura.

- Oh, claro - exclamou o Tony. - Que estúpido fui em perguntar. O que eu queria mesmo saber era se costumas ir à praia, no Verão.

- Não muito, não. A mamã não gosta de praia. Detesta ficar cheia de areia. Mas uma amiga minha, a Michele Almstead, tem uma piscina.

- Ah! - Continuámos a andar. O Troy caminhava tranquilamente à nossa frente, balançando as suas pernitas; o balde seguia, para a frente e para trás, os movimentos determinados dos seus braços.

- Ele é tão esperto - observei eu.

- É verdade - concordou o Tony numa voz triste. Tem sido difícil para o miúdo. Quando nasceu era muito doente. Houve uma altura em que pensámos que ele não conseguiria sobreviver.

- Oh! O que é que aconteceu aos...

- Aos nossos pais?

Acenei que sim com a cabeça.

- A nossa mãe morreu um ano e meio depois do nascimento do Troy. Tinha uma doença de sangue rara. O meu pai faleceu, faz um ano no mês que vem, com um ataque cardíaco. - Os seus calorosos olhos azul-celestes tornaram-se frios como o gelo, pois devia estar a lembrar-se da tragédia.

- Aconteceu no labirinto.

- No labirinto!

- Sim, e infelizmente o pequeno Troy estava com ele na altura.

- Oh, não! - lamentei eu.

- Estavam a caminho do outro lado. Temos lá uma pequena casa. Ninguém a usa agora, mas é um lugar tão gracioso e especial, que não o deixamos abandonado, e o Troy pensa que é um sítio mágico tirado de uma das suas histórias infantis. Sabias que ele já era capaz de ler quando tinha cerca de dois anos e meio? Uma ama que trabalhava para nós na altura, a senhora Habersham, uma deliciosa senhora de idade que vinha de Londres, passou horas a ensiná-lo com muita paciência. Ele é muitíssimo esperto e está muito avançado para a idade.

- Eu sei, mas deve ter sido horrível para ele encontrar-se no labirinto quando aconteceu uma coisa daquelas! - exclamei eu. - O que é que ele fez?

- Por mais incrível que pareça, não entrou em pânico. Qualquer outra criança da mesma idade ter-se-ia simplesmente sentado junto do corpo do pai e chorado até alguém os encontrar. Mas o Troy apercebeu-se de que se tinha passado algo muito sério com o nosso pai e descobriu rapidamente o caminho de saída do labirinto. Ainda hoje consigo ouvir a voz dele a gritar por mim enquanto corria em direcção à porta principal. Corremos para junto do meu pai, mas já foi tarde de mais.

- Que pena. Que tristeza - lamentei eu, voltando a imaginar como seria perder o meu próprio pai, mesmo agora, que já estava suficientemente crescida para perceber o que era a morte.

- Para o Troy tem sido muito mais difícil, claro. Nenhuma ama que eu contrate poderá substituir uma mãe e, por mais que eu faça, não poderei nunca ser o substituto do pai. Não posso passar tempo suficiente com ele, pelo menos não tanto quanto ele precisa.

- E a senhora Habersham, ainda cá está?

- Não, ficou doente e teve de regressar a Inglaterra. Neste momento, a senhora Hastings exerce funções de ama e de empregada. Chegámos - informou ele -, só falta passar este monte. O Troy já está na praia.

Logo que subimos um pequeno monte de terra, deparámo-nos com o mar. Era de cortar a respiração, o modo como demos um passo e ele se nos apresentou, o vasto Atlântico, à nossa frente. O Troy já estava na praia a escavar. A praia era imensa em ambas as direcções.

- Tudo isto faz parte da sua praia privativa? - perguntei, fascinada.

- Sim. Ali há uma pequena enseada - explicou ele, apontando para a direita -, um lugar muito íntimo e sossegado onde eu costumava ir quando queria estar sozinho.

- Que maravilha!

- Gostas deste sítio, Leigh? - perguntou, fixando-me de novo com aqueles olhos penetrantes.

- Muito.

- Fico contente - disse ele. Sorriu-me e fixou-me com os olhos tão cheios de calor que quase me bebia. Que idade teria?, pensei. Por vezes parecia um homem, experiente e sério, outras vezes, parecia ser pouco mais velho do que um rapaz do liceu. Voltou a olhar para o mar.

- É mesmo maravilhoso estar aqui - comentou ele. Quando tinha sete anos, mandaram-me para Eton, porque o meu pai achava que os Ingleses sabiam mais de disciplina do que as nossas escolas privadas. Ele tinha razão, mas eu sonhava sempre com o regresso a casa, a Farthy. - Cerrou os olhos e acrescentou, num tom de voz suave. - Sempre que tinha saudades de casa, que era quase sempre, fechava os olhos e fingia que conseguia sentir o cheiro dos balsameiros, dos abetos e dos pinheiros, e, mais que tudo, o perfume salgado do mar; e acordava com dores, com necessidade de sentir o ar matinal, húmido e frio, na minha cara, desejando a minha casa com tanta intensidade que até me doía fisicamente.

Retive a respiração enquanto o Tony falava. Nunca tinha ouvido ninguém a falar da sua casa de uma maneira tão romântica. O Tony Tatterton era capaz de sentir uma paixão muito profunda, pensei. Ficava com formigueiros na espinha só de ouvi-lo. Abriu os olhos subitamente como se lhe tivesse dado um estalo.

- Mas é uma responsabilidade muito grande gerir, sem ajuda, uma propriedade deste tamanho e um negócio que cresce a olhos vistos. E ainda com uma criança para cuidar

- acrescentou.

- Para uma pessoa tão jovem - deixei eu escapar. Ele riu-se.

- Que idade achas que tenho?

- Não sei... Vinte.

- Vinte e três.

Vinte e três, pensei. A mamã tinha quase o dobro da idade dele e no entanto parecia pouco ou nada mais velha.

- Anda, vamos deambular pela praia e ouvir o som do mar. Não podemos voltar para casa demasiado cedo e interromper a artista. Sabes como são os artistas, sensíveis, temperamentais - disse ele e riu-se.

Demos um passeio agradável. Contou-me os planos que tinha para expandir os seus negócios e fez-me imensas perguntas sobre a minha escola e a minha vida em Boston. Mais tarde, o Troy e eu fomos à procura de conchas enquanto o Tony se deitava na areia, com as mãos debaixo da cabeça e os olhos fechados. Quando regressámos à casa, a mamã já tinha arrumado tudo e mudado de roupa. A maior parte do castelo da cúpula já estava pintada.

- Falta-me um dia ou dois de trabalho - afirmou. - Temos de partir agora para Boston. Gostava de chegar antes de escurecer.

O Troy baixou a cabeça, desapontado.

- A Leigh volta outro dia, Troy. É má educação da tua parte comportares-te desta maneira em frente dos convidados - ralhou o Tony. O Troy olhou para mim com as lágrimas no canto dos olhos. - Agora, agradece a visita e deseja-lhes uma boa viagem de regresso a casa.

- Obrigado - declamou o Troy. - Boa viagem de regresso a casa - repetiu.

- Obrigada eu, Troy - retorqui.

- vou mandar o Miles trazer o carro - disse o Tony e saiu.

- Queres acompanhar-nos ao carro? - perguntei ao Troy. Ele assentiu e deu-me a mão.

Antes de entrar no carro, ajoelhei-me e dei um beijo na face do Troy. Ele tocou na sua bochecha, pensou um pouco e depois deu-me um beijo na minha, antes de se virar abruptamente e se atirar para as escadas para voltar para dentro de casa. O Curtis abriu-lhe a porta, mas ele hesitou e olhou para trás, ansioso.

O Tony e a mamã sussurravam atrás do carro e depois ela entrou e sentou-se ao volante.

- Adeus, Leigh - despediu-se o Tony. Parecia que os olhos dele entravam dentro de mim e liam os meus pensamentos. - Espero que tenhas gostado do dia em Farthy e que voltes em breve.

Desviei os olhos, na esperança de que a mamã não achasse que eu estava a ser mal-educada.

- Adeus e obrigada pelo maravilhoso presente de aniversário - agradeci, erguendo o medalhão de ouro.

- O prazer foi todo meu. - O Tony recuou e fomo-nos embora. Olhei para trás e vi que o pequeno Troy ainda estava à porta, acenando com a sua mãozinha. As lágrimas vieram-me aos olhos. Descemos a longa estrada, tornámos a passar por baixo do enorme arco e eu senti-me realmente como se tivéssemos acabado de sair de um reino mágico, cheio de coisas maravilhosas, mas também cheio de mistério e tristeza. Não estava enganada. Acabou mesmo por ser tal como um livro de histórias.

- O Tony não é maravilhoso? - perguntou a mamã mal nos afastámos. - E não foi amoroso da parte dele ter-se lembrado do teu aniversário e ter comprado um presente tão caro? Eu mencionei por acaso que os teus anos estavam próximos, mas nunca esperei que ele se lembrasse e muito menos que te comprasse uma prenda.

- Foi simpático. - Não referi o facto de achar fora do normal um homem que não conhecia de lado nenhum oferecer-me um presente tão caro, mesmo sendo muito rico.

- Divertiste-te em Farthy? Não foi tudo como te tinha prometido? - As faces da mamã ainda brilhavam de excitação.

- Oh, sim. O Troy é tão esperto, não é?

- Ele é esperto, mas o Tony estraga-o com mimos. Só vai tornar as coisas mais difíceis posteriormente. - O tom severo que ela utilizou surpreendeu-me.

- O Tony sente-se mal por ele ter perdido os pais tão novinho. Não acha que é isso? - Esperei, mas ela não respondeu. De repente, riu-se.

- O Tony jura que parecemos irmãs e não mãe e filha. É.porque eu trato a minha pele com tanto cuidado. Bebo muita água, evito comidas gordas e pesadas e levanto-me sempre da mesa ainda com fome. Nunca te empanturres de comida, Leigh. Não é próprio de uma senhora, para além de arruinar a tua linha.

- Eu sei. A mamã está sempre a avisar-me.

- Bem, é verdade. Olha para mim. Não sou a prova viva de que é verdade? - Rodou o corpo no assento como se me estivesse a mostrar o seu corpo pela primeira vez.

- É.

- Há alguma mãe das tuas amigas que se pareça comigo?

perguntou.

- Não, mamã. - Não era a primeira vez que tínhamos esta conversa. Não percebia porque é que eu tinha de passar a vida a dizer-lhe que ela era muito bonita.

- Hei-de fazer tudo para nunca parecer velha - afirmou ela, com convicção.

- Mas não pode evitar ficar mais velha, não é?

- Eu não posso evitar ficar mais velha de idade, mas posso evitar parecer mais velha - alardeou ela. - Que idade achas que aparento? Vá, diz-me a tua opinião.

- Eu sei que idade tem, mamã. Estava a conversar com o Tony e...

- Não lhe disseste a minha idade, pois não? - perguntou, e de repente a sua cara deformou-se, para dar lugar a uma expressão de pânico, com os olhos a brilharem para mim. - Disseste! - Franziu as suas delicadas sobrancelhas.

- Não. Ele só me disse a idade dele.

- Óptimo. Óptimo - repetiu, com alívio. - Ele pensa que só tenho vinte e oito anos.

- Vinte e oito! Mas mamã, ele sabe que eu tenho doze. Isso quereria dizer que eu nasci quando a mamã tinha apenas dezasseis!

- E então? - Ela encolheu os ombros. - Era muito comum, principalmente no Sul do Texas, as raparigas casarem-se muito novas. Conheci raparigas pouco mais velhas do que tu que já eram casadas e tinham um filho.

- A sério? - Tentei imaginar-me já casada. Ter um marido já me parecia uma responsabilidade tão grande, quanto mais marido e filhos. Como seria o meu marido? Fazia a pergunta a mim própria. Nunca tinha pensado nisso a sério. Oh, sonhava e fantasiava com estrelas de cinema e cantores, mas nunca pensara em montar uma casa e viver todos os dias com o mesmo homem. Claro que queria que ele fosse tão carinhoso e atencioso como o papá. Não queria que trabalhasse tanto. Por isso, se ele não tivesse tanto dinheiro, eu não estaria sempre a exigir coisas como a mamã; porém, se fosse rico, eu acho que iria querer as mesmas coisas.

Também devia ser tão jovial e sofisticado como o era o Tony Tatterton, pensei, e, claro, tão elegante. E queria que amasse e cuidasse dos nossos filhos tanto quanto eu. Não tinha de ser uma estrela de cinema ou um importante homem de negócios, desde que me amasse mais do que tudo no mundo.

"Mas, e eu?", pensei. Seria capaz de gostar de outra pessoa como gostava de mim? Seria capaz de amar alguém como uma esposa deve amar o seu marido? Não tinha sequer terminado o liceu e ainda queria ir para a faculdade. Ultimamente andava a pensar em vir a ser professora e o dia que passara com o pequeno Troy confirmara essas minhas ambições. Gostava de crianças pequenas, adorava a inocência e a curiosidade delas. A maior parte das crianças fazia as perguntas que queria, mesmo as mais embaraçosas. Eram imprevisíveis, e eu achava isso encantador, por vezes até excitante.

- Não me quero casar tão cedo - afirmei.

- O quê? Por que não? - perguntou a mamã com um sorriso amarelo, como se eu tivesse acabado de afirmar que queria ser ateia.

- Estava a pensar em ir para a faculdade para ser professora, professora de colégio - anunciei audaciosamente.

A expressão infeliz da mamã não se alterou, como eu esperava. Se tal aconteceu, então foi para pior.

- Isso é ridículo, Leigh. Tu sabes perfeitamente quem escolhe a profissão de professora de colégio... As solteironas, as mulheres parecidas com as minhas irmãs ou mulheres atarracadas com a pele estragada. Pensa um pouco. Consegues imaginar alguém como eu a dar aulas num colégio? Consegues? Era um terrível desperdício, não era? Pois bem, o mesmo se passaria contigo, pois espero que te desenvolvas e te tornes numa bonita rapariga. Eu já te disse... Vais ser uma "debutante". Vais frequentar as melhores escolas e conhecer jovens abastados e aristocráticos para que um dia venhas a viver numa propriedade igual a Farthy. Pela minha parte, eu sei que devia viver numa propriedade assim acrescentou, num tom de voz agoirento.

- Mas mamã, eu gosto de crianças. Adorei passar o dia com o pequeno Troy.

- Gostar de crianças é uma coisa. Às vezes também gosto de crianças. Existe uma hora e um lugar para elas. Mas condenares-te a uma vida com crianças, enfiada numa escola qualquer, onde não terás oportunidade de conhecer pessoas das classes mais altas... que horror! - observou ela, abanando a cabeça, como se eu tivesse sugerido ir trabalhar numa mina de carvão. - As crianças estão sempre doentes. Fungam e tossem para cima de ti. É por isso que aquelas professoras dos colégios têm um aspecto tão amarelo e anémico.

Pensei em algumas da minhas professoras. Não me tinham parecido adoentadas ou pálidas. A professora Wilson era uma mulher bonita com cabelo comprido, castanho-escuro, e olhos verdes calorosos. Adorava o seu sorriso enorme e aberto. Era tão simpática que era difícil zangar-se a sério, mesmo quando os rapazes pregavam partidas, como, por exemplo, pôr tachas na cadeira de alguém.

- Afasta esses pensamentos da tua cabeça. Tu queres estudar arte, música. Queres viajar mais. Um dia destes - ironizou a mamã -, vens dizer-me que queres ser um dos engenheiros dos navios do teu pai.

- Eu cheguei a sonhar uma vez que seria a primeira mulher a capitanear um paquete - confessei. - E contei ao papá.

- Sim? E qual foi a brilhante resposta do teu pai?

- Ele disse que um dia isso poderia acontecer. Há médicas, advogadas, porque não mulheres a capitanear um navio?

- Só ele, para encorajar esse tipo de pensamentos. Um dia destes até vão aparecer mulheres electricistas, canalizadoras e empregadas da companhia dos telefones. Oh, mas teríamos que as chamar telefonistas, não era? - perguntou e riu-se. - Francamente, Leigh, receio bem que tenhamos de te afastar dos estaleiros mais cedo do que eu imaginava e mandar-te para um colégio decente de raparigas. Não é saudável andares por aí no escritório do teu pai ou desceres às casas das máquinas rodeada por todos aqueles homens suados e gordurosos. Vês-me a fazer isso? Quando foi a última vez que fui ao escritório do teu pai? Nem sequer me lembro. "Agora deixa-me pensar nessa festa que o teu pai quer dar para a partida do cruzeiro das Caraíbas. Já convidei o Tony Tatterton.

- Convidou?

- Claro. E também vou convidar alguns dos amigos abastados dele. Mas deixa-me pensar agora. Se não fizer planos para esta festa, o teu pai vai transformá-la num funeral.

Ficou silenciosa durante a maior parte da viagem de regresso a casa, planeando mentalmente a festa, como havia referido. Pensei em tudo o que me tinha dito e interroguei-me se eu teria algum problema por não conseguir sentir tanta paixão por algumas coisas como ela. Decidi que só o tempo poderia dizer, e, à velocidade com que me estava a modificar e a desenvolver, a espera não ia ser longa.

Uma vez que a festa de "boa viagem" ia ter lugar no salão de baile do navio, a mamã exigiu que o papá destinasse um navio maior para o cruzeiro das Caraíbas. Ele não queria ceder, porque diminuiria os lucros, dado que o barco era demasiado grande para o número de passageiros previsto e isso iria requerer uma tripulação muito maior. No entanto, ela foi insistente.

- Tens de aprender a fazer as coisas em grande, mesmo esbanjar dinheiro, Cleave - observou ela. - O que interessa neste caso, é a impressão que causas no público. Esquece os lucros e os prejuízos. A Imprensa vai estar presente e tu mostraste-me a lista dos convidados. Algumas das melhores famílias vão estar presentes nesta viagem inaugural. Vale a pena a despesa extra.

No fim, o papá acabou por ceder às exigências dela e destinou o The Jillian, o seu segundo paquete mais luxuoso. A mamã descia diariamente ao barco durante o tempo que antecedeu a festa, para supervisionar a decoração do salão de baile e para controlar as diversões, a ementa e a lista de convidados. Muitos dignitários de Boston estavam convidados, apesar de não fazerem o cruzeiro. E foi então que a mamã teve uma ideia emocionante.

Estavam a ensaiar um novo musical em Boston para uma estreia final em Nova Iorque e as críticas já eram espectaculares. Chamava-se The Pajama Game. Nós tínhamos ido à estreia. A mamã convenceu o papá a gastar ainda mais dinheiro e a contratar alguns membros do elenco para a festa a fim de cantarem algumas das canções mais famosas, como Steam Heat, o que nos trouxe mais publicidade a nível de jornais e revistas.

Acompanhei-a quando foi à tipografia para encomendar os convites que ela própria elaborara. A capa dos convites tinha uma fotografia de um casal em fato de noite, de pé, no convés, com o olhar sobre um oceano azul-forte e um céu estrelado. Podia sentir-se o calor e o romance que transparecia na fotografia. No verso da capa vinha a cópia de um anúncio recente de uma revista.

AMANHÃ... 1500 MILHAS NO MAR...

Cada dia passado num cruzeiro VanVoreen é um convite aberto. O luxo do pequeno-almoço na cama... jogos ou apenas preguiçar nos amplos convés... fazer compras,

dançar e divertir-se... tempo para refrescar... e para elaborar o movimentado plano de trabalho, com o qual se irá deparar à chegada.

Quer seja a sua segunda lua-de-mel ou a primeira, haverá tónico melhor do que a envolvente paz proporcionada pelo mar, o céu e um barco... os infinitos recursos da comida e do serviço VanVoreen?

BON VOYAGE!

E na página interior lia-se ainda o convite:

SOLICITAMOS o PRAZER DA SUA COMPANHIA PARA o BAILE DE "BON VOYAGE"

QUE VAI INAUGURAR O NOVO CRUZEIRO DAS CARAÍBAS

NOS PAQUETES VANVOREEN.

THE JlLLIAN

20 HORAS FATO DE CERIMÓNIA

Ia ser muito excitante. A mamã comprou um original sem ombros Christian Dior preto, com uma faixa de veludo cinzento-carvão, que atravessava o corpete na diagonal, e uma saia até aos pés. Pôs o seu colar de diamantes ovais Tiffany, com brincos e uma pulseira de diamantes ovais a condizer. Passou toda a tarde a arranjar-se, rejeitando e alterando por duas vezes os penteados criados pelo seu cabeleireiro particular. Por fim, foi buscar umas revistas que divulgavam fotografias de membros da família real inglesa e escolheu um penteado usado por uma das mulheres bonitas que aí estavam retratadas, uma verdadeira duquesa inglesa. Fez um penteado em que o cabelo estava solto, penteado para trás, deixando a testa livre, passando por detrás das orelhas para que se vissem os seus lindíssimos brincos.

Quando finalmente saiu da sua suite para o baile, achei que estava colossal, como se ela própria estivesse para ser coroada rainha e eu fosse uma das suas damas de honor.

Não consegui deixar de me sentir constrangida com o vestido que ela tinha escolhido para mim. Também não tinha ombros, mas eu não me sentia tão segura, mesmo usando um soutien com armação. Achava que os meus ombros eram demasiado ossudos, que as minhas clavículas eram demasiado proeminentes e que o aspecto artificial dos meus seios era demasiado óbvio para os meus olhos críticos, até disparatado. O vestido era azul-escuro profundo e a saia ia até aos pés, forrada com camadas de crinolina. A mamã havia-me pedido para usar o colar que o Tony me tinha oferecido e emprestou-me dois pequenos brincos que condiziam muito bem com o colar. Pus a pulseira de ouro que ela e o papá me tinham dado no ano anterior. Tinha o cabelo solto e escorrido, à pajem.

O papá, vestido com o seu smoking, estava no andar de baixo a andar de um lado para o outro, como sempre. Quando começámos a descer as escadas juntas, ele parou e fitou-nos com um sorriso de admiração.

- Magnífico, magnífico! - Exclamou. - Estás mais linda do que nunca, Jillian. E tu, Leigh, hoje à noite vais certamente ser a princesa da festa. - Deu-me um beijo rápido na face e ia beijar também a mamã, mas ela fez-lhe notar que ele lhe borraria a pintura.

- Está bem, está bem. De qualquer modo, já estamos bastante atrasados.

Essa noite, por insistência da mamã, havia uma limusina à porta para nos levar até ao barco. Todas as nossas malas tinham sido transportadas durante o dia e arrumadas nas nossas suites a bordo. A noite não poderia estar mais perfeita para uma festa a bordo de um barco. O céu estava coberto de estrelas e poucas eram as nuvens que se viam passar. Até a brisa soprava invulgarmente quente na doca.

Logo que chegámos, ocupámos os nossos lugares no átrio de entrada do grandioso salão de baile, para cumprimentarmos todos os convidados. Para além de ser o maior navio do papá, o The Jillian era um dos mais luxuosos. O corredor que levava ao salão era forrado com as madeiras mais finas, muito bem polidas e embutidas com mármore. Espelhos enormes com molduras douradas revestiam as paredes e havia peças de mobiliário francês antigo - cadeiras almofadadas, sofás e mesas de pinho escurecido - ao longo do caminho.

O salão de baile era uma sala enorme e as paredes eram forradas com cortinas de veludo cor de vinho a pender do tecto, e havia ornamentos dourados e prateados por todo o lado.

A sala era iluminada por uma dúzia de lustres com falsos castiçais rematados por lâmpadas eléctricas em forma de chama. Ao fundo, à direita, havia um bar que se estendia até quase metade da sala. Uma dúzia de empregados de bar, vestidos com camisas brancas engomadas, laços pretos e calças pretas lustrosas, introduziam os convidados no estado de espírito das Caraíbas servindo-lhes margaritas e pinas coladas.

A comida estava disposta em mesas organizadas por pratos: mesas de saladas, mesas de pato, de carne de primeira qualidade, de galinha e de peixe. Uma secção inteira estava dedicada às sobremesas, pudins, flambés, todo o tipo de tartes de natas e frutas, bolos e petits fours, e gelado. Empregados e empregadas de mesa vestidos com trajos típicos das Caraíbas as mulheres com coroas coloridas na cabeça, serviam hors d'oeuvres quentes e taças de champanhe.

No palco actuava um grupo de músicos constituído por dezasseis membros e uma vocalista. Principiaram a tocar mal ocupámos os nossos lugares e os convidados começaram a chegar. Alguns convidados entraram directamente para a pista de chão de azulejos que se situava em frente ao palco e começaram a dançar. Gerou-se instantaneamente um ambiente festivo à nossa volta. Nunca tinha visto tanta gente com roupas tão chiques, nem sequer nas nossas viagens e festas de bon voyage anteriores. As mulheres vestiam-se numa quantidade de estilos diferentes, cada qual a tentar ter um aspecto mais encantador e estar mais à moda do que as outras. Muitas envergavam vestidos de noite bordados e cobriam-se de diamantes e de ouro, algumas usavam tiaras de diamantes, mas, na minha opinião, nenhuma estava tão bonita como a mamã.

O Tony Tatterton foi um dos últimos a chegar. Parecia tão alto e formoso no seu elegante smokingg. Dirigiu-se logo a nós, com um pequeno e divertido sorriso nos lábios sensuais e os seus olhos azul-celestes a brilhar.

- Miss Leigh VanVoreen - cumprimentou, pegando na minha mão e beijando-a. Eu corei e voltei-me bruscamente para a mamã. Adivinhavam-se outra vez no rosto dela vestígios daquela expressão de menina excitada, uma expressão que acordava logo as borboletas esvoaçantes do meu estômago e o fazia andar às voltas.

- Cleave, gostava de te apresentar o Townsend Anthony Tatterton, de quem me tens ouvido falar tanto - disse a mamã. O papá examinou o Tony de relance e depois fez um sorriso tão caloroso como tinha feito a toda a gente.

- Prazer em conhecê-lo, Mister Tatterton. Obrigado por proporcionar à minha esposa uma ocupação que ela aprecia.

- Oh, eu é que devia agradecer-lhe, senhor, por permitir que ela exteriorize o seu talento nas paredes da minha casa.

O papá assentiu, com os lábios comprimidos e os olhos pequenos. Não se percebia se ele estava com vontade de rir ou de chorar. A mamã rompeu o silêncio assustador sugerindo ao Tony que se servisse de uma bebida exótica e saboreasse os hors d'oeuvres. O Tony voltou-se, como se se tivesse apercebido da festa pela primeira vez.

- Parece ser um acontecimento em grande - elogiou.

- Obrigado pelo convite. Leigh - acrescentou, virando-se na minha direcção -, talvez me concedas a honra de dançar comigo mais tarde.

Fiquei sem fala. Porquê eu, estando rodeado de todas aquelas mulheres incrivelmente bonitas e sofisticadas? Não seria capaz de ir para o salão e dançar com ele em frente de todas aquelas pessoas. Não era muito boa a dançar. Oh, só pensar nisso já me aterrorizava! O Tony deve ter notado a minha expressão de medo, pois o seu sorriso abriu-se ainda mais. Acenou com a cabeça à mamã e ao papá antes de se dirigir ao bar.

- Bem - disse o papá prontamente -, acho que a maior parte dos convidados já chegou. Tenho de me reunir com o capitão do navio para discutir o itinerário e outros assuntos.

- Agora, Cleave? - perguntou a mamã, denotando irritação na voz.

- Receio que sim. Tu podes perfeitamente aguentar as coisas cá em baixo por um bocado, Jillian. Leigh, queres vir comigo? Tens de te familiarizar com o negócio. Um dia, tudo isto será teu. Se aguentar até lá - acrescentou ele.

- Não a vais levar agora para a casa das máquinas - Escandalizou-se a mamã -, como fizeste da última vez. Ela não tem que saber como funcionam as coisas.

- Claro que tem. Ela devia conhecer as coisas por dentro e por fora e, além disso - observou o papá -, parece ter inclinação para a mecânica. Aposto em como conseguia desmontar um motor e voltar a montá-lo num instante. Não era, Leigh?

- Não é propriamente um feito do qual uma rapariga se possa gabar - interrompeu a mamã. - Gostava que a tratasses como ela é na realidade, e não como uma maria-rapaz. Francamente, Cleave. - Havia uma ponta extra de aborrecimento na voz da mamã, como se até se tivesse esquecido de que estava no meio de uma festa chique. Retive a respiração com medo que fossem iniciar uma discussão naquele momento e naquele lugar.

- Nós não vamos descer à casa das máquinas, mamã. Eu não estou vestida para isso.

- Fico contente de, pelo menos, teres esse bom senso. Muito mais do que o teu pai - criticou, lançando um olhar irritado ao papá.

- Bem, vamos já para voltarmos rapidamente - disse-me ele e afastámo-nos em direcção à ponte do navio, deixando a mamã a ferver, de certeza.

Eu já conhecia o capitão do The Jillian, Thomas Willshaw, um ex-oficial da Marinha inglesa, e gostava muito dele, porque se virava sempre e falava para mim quando eu e o papá estávamos com ele, e parecia que gostava de me ensinar coisas. Enquanto ele e o papá discutiam a viagem, o navegador abriu os mapas náuticos e traçou a nossa rota para eu ver.

- Fico feliz por estas coisas não te aborrecerem - observou o papá. - Não há razão nenhuma para que não possas gerir um negócio a sério quando saíres da escola.

Assenti, mas fiquei a pensar como a mamã e o papá eram diferentes e como viam as coisas de maneira diferente, principalmente, no que me dizia respeito.

Quando voltámos ao convés, a caminho do salão de baile, o papá deu-me a mão e ficámos a olhar lá do alto, por cima do grandioso barco.

- Vês, Leigh, um homem tem de ter uma razão profunda para trabalhar, para se empenhar e construir tudo isto. O seu ego não é suficiente. Tem de acreditar que está a construir tudo isto por uma razão mais substancial. Eu estou a fazê-lo por ti, ou melhor, a batalhar para ti, pois neste momento toda a indústria dos paquetes de luxo está com problemas.

"Eu sei que trabalho de mais e que acabo por não passar tempo suficiente contigo, mas percebes o que quero dizer, Leigh? - perguntou, com uma expressão tão firme e séria como eu nunca tinha visto.

- Sim, papá.

- Quer dizer, eu não tenho intenção de te afastar de todas as coisas que as raparigas gostam. A tua mãe pensa que eu estou sempre a tentar transformar-te num filho, em vez de te ver como uma filha, mas eu apenas quero que tu sejas capaz de ser a proprietária e de dirigir tudo isto. Não quero que isto vá parar às mãos de um administrador, só porque não te preparei de modo adequado.

- Papá, estou tão orgulhosa por considerar que sou suficientemente inteligente e que um dia serei capaz de o ajudar aqui. Para mim, isso é mais importante que todas as festas e vestidos de baile do mundo.

A sua expressão ficou descontraída e abriu-se num sorriso.

- Óptimo - disse. Beijou-me duas vezes, puxou-me para si e eu, pela primeira vez desde há dias, senti-me confortada e segura.

- Bem, minha pequena princesa, temos de voltar para a festa ou a tua mãe vai encostar-me à parede.

Quando chegámos, a festa estava em pleno auge. A pista de dança abarrotava de gente e estavam todos entregues aos prazeres das deliciosas comidas.

O papá foi logo conversar com as pessoas e eu andei às voltas à procura da mamã; porém, não consegui encontrá-la. Fui à procura do Tony, mas também não o consegui encontrar. Decidi comer qualquer coisa. Pouco depois, avistei a mamã e o Tony a entrarem no salão. O Tony afastou-se para falar com umas pessoas e a mamã veio ter comigo e sentou-se à minha mesa.

- Estive a mostrar o barco ao Tony - explicou, com uma risadinha. - Bem, fico contente por desta vez não teres óleo nos cotovelos.

- O papá só quer que eu perceba as coisas.

- As pessoas são pagas para perceberem as coisas por ti.

É por isso que se é patrão - replicou. A mamã não parava de olhar na direcção do Tony, manifestamente à espera que ele se virasse para nós. Não era próprio dela não circular entre todos os convidados, pensei. Normalmente, e apesar de se queixar tanto, gostava de ser a esposa do anfitrião e ajudar a decidir quem seria convidado para se juntar, mais tarde, à mesa do capitão. A mamã notou que eu a estava a observar.

- Porque é que te estás a empanturrar com essa comida toda? - perguntou-me. - Nunca é cedo de mais para nos começarmos a preocupar com a linha.

- Eu não estou a empanturrar-me, mamã. Eu não comi quase nada o dia todo é só peguei...

De repente, fez uma cara esquisita, uma expressão fria e os olhos diminuíram.

- Diz-me a verdade, Leigh. Como é que eu estou esta noite? Estou mais linda do que qualquer outra mulher nesta sala? Viste alguma que tenha um ar mais jovem ou mais bonito? - Parecia quase que estava a delirar. Depois, o seu tom de voz mudou. - Podes dizer-me a verdade - sussurrou. Mas os seus olhos ainda demonstravam dureza, pareciam blocos de gelo. Agarrou o meu braço com tanta força que até doeu.

- Mamã... - ia eu a começar, mas ela nem me ouviu.

- Olha só para estas mulheres - prosseguiu ela, acenando com a cabeça em direcção à multidão da festa. - Algumas tornaram-se tão gordas que perderam toda a sua feminilidade. Não é de admirar que os maridos delas andem à minha volta que nem cães com a língua de fora. - A sua expressão suavizou-se e voltou a ser a mãe a que eu estava habituada. Tornou a olhar na direcção do Tony e ele voltou-se. Mesmo em lados opostos do vasto salão, parecia que conseguiam comunicar, pois ela virou-se para trás para me dizer que já vinha e foi a correr juntar-se a ele.

Observei-os durante um bocado. O papá trouxe algumas pessoas para me apresentar e fiquei então a seu lado até ele me deixar para ir falar com o chefe dos cozinheiros. Estava sozinha e sentia-me um pouco perdida, quando, de repente, alguém me bateu no ombro e eu voltei-me deparando com os olhos azuis do Tony.

- Está na hora da nossa dança - avisou e estendeu os braços.

- Oh, mas eu não sei dançar muito bem - implorei, mesmo depois de ele me tomar nos seus poderosos braços e me arrastar para a pista.

- Que disparate! Deixa-te levar por mim.

Vi a mamã de relance, de lado, junto a umas pessoas, a sorrir; sentia-me tão nervosa e tensa que tinha a certeza de estar a fazer uma figura ridícula na pista de dança.

- Fico feliz por teres decidido usar o meu presente hoje à noite - comentou o Tony. - Fica muito bonito em ti.

- Obrigada. - O meu coração estava aos saltos. Tinha a certeza que estavam todos a olhar para mim e a rir, pois devia parecer tão desajeitada nos seus braços. O Tony era tão alto, tão gracioso e seguro, e os meus movimentos pareciam os de uma aleijada. Era difícil descontrair-me numa pista de dança com todos aqueles adultos tão elegantes à minha volta. Não tinha nada a ver com um baile de escola.

- Esta festa é maravilhosa - elogiou. - Não consigo imaginar como deve ter sido para ti crescer no meio disto tudo.

- Neste ramo trabalha-se arduamente - retorqui, pensando no meu pai. - Principalmente, hoje em dia.

- Oh, estou a ver. - Sorriu, como se tivesse de me fazer a vontade. - Então estás a pensar vir a ser uma mulher de negócios?

- Não há nenhuma razão que impeça uma mulher de tratar de negócios. - Sabia que estava a ser antipática mas, não sei porquê, não conseguia parar.

- Não, nenhuma mesmo. - Os seus olhos iluminaram-se e riu-se. Fiquei contente quando a música acabou. Ele fez uma vénia e agradeceu-me. Desapareceu no meio da multidão e deixou-me ali especada, a sentir-me ainda mais constrangida. Retirei-me para um canto do salão. Pouco depois, começou a actuação do elenco da peça The Pajama Game. Foram tão espectaculares como no palco do teatro. A seguir ao espectáculo, via-se muitas pessoas a saírem. Quando a sirene começou a tocar para que os visitantes partissem, muitos já o tinham feito. A tripulação do navio começou a tirar algumas mesas. Fui ter com o papá que estava a conversar com o capitão e com o primeiro oficial, quando a banda anunciou que ia tocar a última música, uma valsa.

De súbito, reparei que os olhos do papá ficaram mais pequenos e que os seus lábios se comprimiram de tal maneira que ficaram brancos. Quando me voltei para ver o que se passava, percebi o que lhe tinha chamado a atenção. À mamã e o Tony eram praticamente o único par que restava a dançar, e moviam-se com tanta graciosidade e tão próximos um do outro que os restantes convidados e visitantes tinham todos os olhos postos neles.

Não consegui deixar de sentir pena do papá, pois a mamã e o Tony faziam um par tão bonito e movimentavam-se como se dançassem juntos há anos e anos. A mamã parecia resplandecer nos braços do Tony. Nunca a tinha visto tão radiante e essa noite parecia tão jovem. Não me apercebera de como era jovem, em contraste com o papá. A diferença de idade entre eles nunca tinha parecido tão grande, como de repente se fez notar.

Parecia que o papá também sentira isso, pois tinha um ar cansado, resignado, derrotado, como se tivesse envelhecido dez anos. Oh, havia tanta tristeza na bonita expressão do meu pai. Ele percebeu a maneira como eu o fixava e esboçou um sorriso forçado. Então, inclinou-se e abanou a cabeça.

- De uma maneira ou de outra, a tua mãe é sempre o coração da festa, não é, Leigh?

Assenti silenciosamente. O tom não era zangado; era melancólico. Suspirei de alívio, quando por fim a música terminou e a mamã e o Tony pararam de dançar. O Tony seguiu a mamã de volta à nossa mesa para desejar boas-noites.

- Foi uma festa maravilhosa - disse. - Desejo-lhes muita sorte para a estreia da vossa viagem.

- Obrigado - respondeu o papá, num tom nem amargo nem agradável. - Ainda bem que se divertiu.

- Leigh - disse o Tony, voltando-se para mim -, não apanhes sol de mais. Boa noite. - Voltou-se para a mamã.

- Jillian - proferiu, acenando com a cabeça.

- Acompanho-o à saída - ofereceu-se a mamã e seguiu-o em direcção à porta.

O papá observava-os com um olhar frio. Instintivamente, alcancei-o por cima da mesa e apertei-lhe a mão. Ele sorriu para mim, como se quisesse dizer "estou bem". Mas eu não conseguia que o meu coração parasse de bater, trazendo consigo os seus agoirentos avisos. Tal como uma velha alma de marinheiro, apercebia-se de uma tempestade iminente no horizonte, e senti necessidade de reforçar as escotilhas.

 

MARES AGITADOS

Há pouco mais de um ano, a mamã decidiu que, se o papá quisesse que nós fizéssemos férias com ele nos cruzeiros, teria que a deixar redecorar as nossas suites a bordo do paquete. Decorou duas suites em apenas dois barcos antes de perder o interesse, mas um dos dois tinha sido, é óbvio, o The Jillian. Numa das suas revistas de moda a mamã tinha visto a fotografia ampliada de um apartamento em Nova Iorque que pertencia a uma celebridade e decidiu adaptar o modelo à sua suite a bordo. A nossa suite estava decorada em cores serenas e neutras, pálidos beges e com madeiras claras, branqueadas, que proporcionavam o ambiente perfeito à beleza fria e loura da mamã.

O paquete era um centro de recursos flutuante. Num dos pisos havia todo o tipo de lojas, incluindo institutos de beleza e cabeleireiros, tabacarias e boutiques que apresentavam a última moda do país e a última moda que chegava do estrangeiro. Havia um plano de actividades contínuas para os convidados, que compreendia aulas de dança, aulas de ginástica, visitas a galerias de arte e conferências, chás, refeições intermináveis, competições de jogos, shuffleboard1, e, claro, mal entrávamos em climas quentes, tomar banho numa das três piscinas do The Jillian. A noite dançava-se e havia espectáculos com cantores e comediantes, e até se podia assistir a estreias de filmes.

De manhã, a mamã dormia até muito tarde. Assim, em geral, o papá e eu tomávamos o pequeno-almoço sem ela. Comíamos sempre com o capitão ou, quando ele não estava disponível, com o primeiro-oficial e convidados. Às vezes, a

 

1 Shuffleboard ou shovleboard: jogo, em coberta de barco, que consiste em impelir pequenos discos que deslizam sobre uma superfície dividida por linhas. (N. da T.)

 

mamã só saía da sua suite à tarde e tomava o pequeno-almoço na cama. Por hábito, bebia apenas um copo de sumo de laranja pequeno e comia um ovo escalfado e uma tosta.

Tinha uma disciplina muito rígida em relação ao tempo que estava exposta ao sol, chegando mesmo a cronometrá-lo, de maneira a ganhar apenas uma cor muito leve na cara. Tinha lido em qualquer sítio que a luz do Sol provocava rugas e não havia nada que aterrorizasse mais a mamã do que a possibilidade de lhe aparecer uma ruga. O seu toucador estava pejado de todo o tipo de cremes para a pele e para o corpo disponíveis no mercado, em especial os que prometiam juventude eterna. A mamã passava a maior parte da manhã a pôr cremes na cara e a preparar a sua maquilhagem. Ia muitas vezes à sauna e tinha marcações diárias para massagens corporais, e semanais, para massagens faciais.

Desde o dia em que deixámos o porto de Boston, a mamã queixava-se continuamente do efeito devastador que o ar salgado estava a exercer sobre o seu cabelo. Tinha de ir ao cabeleireiro quase todos os dias para que o cabelo não "encaracolasse". Dizia que o ar do mar lhe roubava suavidade ao cabelo e que lhe gretava a pele, uma vez que tinha uma pele demasiado sensível. Era raro vir ao convés de noite, quando o clima já era mais quente e as noites tépidas. Eu achava que havia poucos quadros tão bonitos como o mar calmo numa noite quente e a luz da Lua reflectida sobre a água. As ondas, para cima e para baixo, sob um céu nocturno limpo, eram uma visão tão deslumbrante que me cortava a respiração. Estava sempre a tentar que a mamã viesse ao convés comigo; porém, ela dizia-me que podia ver a mesma coisa pelas janelas sempre que queria.

Apesar de o papá estar mais ocupado do que era normal, pois era uma viagem experimental para lançar um cruzeiro novo, fazia todos os esforços para passar mais tempo com a mamã e comigo, prometendo sempre ir ter connosco aqui ou ali. A mamã parecia não se importar se ele estava ou não com ela. Sempre que ele arranjava tempo para fazer qualquer coisa connosco, ela encontrava outra coisa para fazer. O papá e eu passámos muitas noites sem ela, a ver um filme ou a assistir a um dos espectáculos. Ela prometia vir ter connosco, mas nunca aparecia. Quando indagava a razão, respondia que estava demasiado cansada ou que tinha uma dor de cabeça. Ia encontrá-la na cama a ler uma das suas muitas revistas ou a escrevinhar cartas. Quando lhe perguntava a quem é que estava a escrever, respondia, simplesmente, "a amigos", e punha tudo de lado, como se ficasse logo farta do que tinha estado a fazer.

Mesmo quando me sentava na sua cama e descrevia os cantores, os comediantes e as actividades, ela parecia distraída e não muito interessada, e eu percebia que não se sentia muito feliz. E então, uma noite, quase uma semana depois de termos partido, acordei com o som da mamã e do papá a gritarem um com o outro.

- Eu faço tudo o que me pedes - lamentava-se o papá -, mas tu continuas a comportar-te como se estivesses a sofrer. Querias redecorar a suite, acedi e gastei o dinheiro. É um disparate, pensei, mas gastei o dinheiro na mesma. És a esposa do proprietário, mas dás atenção a algum dos nossos convidados mais importantes? Não. E quando te dignas a vir à sala de jantar e sentar-te comigo, com o capitão e um convidado escolhido por ti, o que é que fazes?... Queixas-te do mar e de viveres a bordo de um barco, como se fosses uma escrava negra acabada de sair de África, acorrentada no porão.

"O que é que achas que as pessoas vão pensar das viagens em paquetes de luxo... se a minha própria mulher as abomina!

- Não fui feita para estar presa - replicou ela.

- Foste tu que escolheste. Não sou eu que te digo que não podes sair deste quarto. Porque é que não desfrutas das actividades, do que o navio tem para oferecer?

- Já te disse que o ar do mar me afecta, mas tu não te preocupas comigo, só te preocupas com o teu precioso barco e com o teu negócio. Serias capaz de me sacrificar, pôr em perigo a minha beleza, o meu aspecto e a minha saúde, só para me poderes usar como uma espécie de relações públicas.

- Isso não é justo! Foste tu própria quem sugeriu este cruzeiro.

- Eu não sugeri que fôssemos nele.

- Mas... eu pensei... tu sempre quiseste que eu te levasse à Jamaica - balbuciou o papá, confuso. - Francamente, Jillian, estás a levar-me à loucura. Já não sei o que queres e o que não queres.

- Não quero passar a noite a discutir. Preciso do meu descanso para combater os elementos nocivos - alegou ela, e fez-se um silêncio profundo. O papá parecia tão frustrado e zangado. O que é que estava a acontecer com eles? Perguntei-me. Teria a ver com a pressão dos negócios?

Durante os dias que se seguiram houve uma paz inquietante entre eles até àquela manhã em que fui com o papá à sala das máquinas quando o engenheiro-chefe comunicou que havia um problema. Estava vestida com um dos novos fatos que a mamã me tinha comprado para o cruzeiro: uns calções brancos até aos joelhos com uma blusa à marinheiro, azul e branca, a condizer. Os bolsos dos calções eram bordados a azul.

Sempre gostara de descer à sala das máquinas e ver os enormes mecanismos que impeliam um navio tão grande através do oceano. Alguns corredores eram bastante estreitos e os andaimes também, mas eu achava perigoso e ao mesmo tempo divertido. Sabia que os homens que trabalhavam lá em baixo achavam engraçado eu demonstrar interesse pelo trabalho deles; eram todos muito simpáticos e tinham sempre vontade de me explicar em que consistiam as suas responsabilidades e qual a função dos indicadores, das alavancas e das rodas.

Um dos nossos motores teve de ser desligado para reparar, mas os outros conseguiam compensar o tempo perdido. Ouvi as perguntas que o papá fez ao engenheiro-chefe e andei atrás dele para saber quais eram os problemas. Distraí-me com as discussões e não me apercebi de que me estava a encostar a umas grades cheias de óleo até sairmos da sala das máquinas e encontrarmos a mamã no corredor junto da nossa suite. Ela tinha acabado de sair para tomar o pequeno-almoço e, pela primeira vez desde que saíramos de Boston, tinha um aspecto fresco e exuberante.

Contudo, mal pôs os olhos em mim, ficou gelada, gritou tanto e com tanto ódio que me assustou.

- Onde é que estiveste? Olha para os teus braços cheios de óleo. E o teu fato! - Apontou e eu olhei para baixo e vi uma mancha espessa de óleo de motor nos meus calções, de lado e à frente. Voltou-se para o papá, acusando-o. - Onde é que a levaste, seu idiota? - intimou ela.

Um arrepio percorreu-me a espinha. Repetia para mim própria que estava tudo bem. Estava tudo bem.

As faces do papá enrubesceram. Nunca tinha ouvido a mamã chamar-lhe um nome e eu sabia que ele tinha ficado ainda mais envergonhado pelo facto de ter sido à minha frente. Virou a cabeça para trás como se ela lhe tivesse realmente dado um estalo na cara, mas a sua reacção não a acalmou.

- Escolhi este fato para ela numa das melhores lojas de Boston - acrescentou ela -, porque queria que ela se vestisse à moda, não que parecesse um macaco cheio de óleo. Tu estás sempre a sabotar as minhas tentativas de lhe ensinar a ser fina, de a ajudar a perceber o seu potencial como mulher. E insistes em fazer dela uma maria-rapaz - acusou ela.

- Pára aí, Jillian...

- Não me digas para parar. Leigh, vai para o teu quarto e limpa-te. vou mandar a empregada levar imediatamente o fato para a lavandaria a ver se ainda se pode salvar.

- Mamã, o papá não teve culpa. Eu é que não tive cuidado, eu...

- Claro que a culpa foi dele - insistiu ela, lançando-lhe um olhar de ódio. - Se ele não te tivesse levado para onde levou, nada disto teria acontecido.

- Mas eu queria ir, mamã. Eu queria ver os motores e...

- Tu querias ver os motores? - Revirou os olhos. Vê no que é que a estás a transformar - disse ela, apontando na minha direcção com as palmas das mãos para cima, como se eu me tivesse transformado numa espécie de criatura, ali mesmo. O papá abriu e fechou os olhos, pacientemente.

- Não lhe faz mal nenhum querer aprender um pouco sobre o funcionamento do barco e sobre coisas que podem correr mal. Há-de chegar o dia...

- Há-de chegar o dia em que tudo isto vai acabar - disparou a mamã e empurrou-me para a minha suite, deixando o papá para trás, de boca aberta. Senti tanta pena dele... Mas a mamã estava com um ataque de fúria e não parava de divagar sobre como ele me estava a arruinar, a arruinar as hipóteses de eu vir a ser uma "debutante", uma rapariga jovem e desejável, que ele estava a "sufocar a minha feminilidade".

Tentei defendê-lo. Ela, porém, não queria ouvir. Despi rapidamente o meu fato e mudei de roupa enquanto ela saía para entregar os calções e a blusa manchados de óleo à empregada. Quando voltei da minha suite, o papá já se tinha ido embora. Passei o resto do dia maldisposta, porque pensava que a culpa tinha sido minha. Oh, porque é que não tivera mais cuidado? Porque é que não me preocupara com a minha roupa e com o meu aspecto, como a mamã? O meu frágil mundo estava a começar a desmoronar-se e eu tentava desesperadamente mantê-lo unido.

Não me lembrava de alguma vez ter visto a mamã a gritar com o papá daquela maneira, ou o papá tão envergonhado e tão zangado. Aquele cruzeiro, que tinha como objectivo fazer a mamã feliz e animar o papá, impulsionando o seu negócio, acabara por ser um desastre para todos nós.

Nessa noite, as coisas ficaram ainda piores, quando a mamã caiu de cama. Não só não desceu para jantar, como também não saiu para desfrutar de nenhuma das actividades, que incluíam um baile, uma das poucas coisas com que ela se divertia quando estava no barco. Sempre que descia à sua suite para ver como ela estava, encontrava-a a lamentar-se e a gemer.

- Porque é que eu concordei com isto? Porque é que eu vim neste barco? Quem me dera desaparecer - lamentava-se ela. Não podia fazer nada para a ajudar.

O médico de bordo foi chamado duas vezes. Deu-lhe doses duplas de medicamentos. No entanto, no dia seguinte, não apresentava melhoras, e, mais uma vez, não saiu da cama. Desci para junto dela para lhe ler e lhe fazer companhia. Estava muito deprimida, porque tinha um aspecto tão pálido e adoentado que nem a maquilhagem conseguia esconder.

- Nem quero que os empregados me vejam - choramingava ela. - vou demorar semanas para me recompor queixava-se. - Semanas! - Agarrou num bocado de cabelo.

- Vê bem o que me está a acontecer. Olha!

- Mas, mamã, isto nunca lhe tinha acontecido. Porque é que está a acontecer nesta viagem? - perguntei. Os seus olhos fitaram-me, penetrantes, e, por uns momentos, ficaram mais pequenos. Então, deixou-se cair contra a sua enorme almofada de penas e cruzou os braços por baixo do peito, fazendo beicinho.

- Como é que eu ia saber? Tive sorte nas outras viagens.

- Virou-se bruscamente para mim. - Suponho que não te lembras da tua primeira travessia do Atlântico - acrescentou, num tom amargo. Era como se eu a estivesse a acusar de fingir e ela me quisesse castigar. - Ficaste tão maldisposta nos primeiros dois dias que eu pensei que o barco tivesse de dar meia volta e voltar para Boston. Depois disso, como diria o teu pai, ganhaste o teu andar de marinheiro. Ele ficou tão contente. Era como se andar por aí a fazer figura de marinheiro de pernas arqueadas fosse um feito.

Voltou-se para a parede para ganhar fôlego. As suas faces resplandeciam de emoção, enquanto encorajava a sua própria fúria. Quando voltou a olhar para mim, tinha uma expressão muito feia, mas determinada.

- Bem, eu nunca quis ter esse andar de marinheiro disse, com um sorriso afectado. - Oh, não sei porque não insisti com o Cleave há anos para deixar este estúpido negócio. Podíamos ter um negócio respeitável na cidade... Talvez uma cadeia de lojas, qualquer coisa do tipo do do Tony Tatterton. Assim não estávamos à mercê do tempo e deste mar aborrecido - concluiu ela.

- Mas o papá foi sempre um homem ligado aos navios. Só sabe fazer isto - protestei, em voz baixa e assustada.

- Disparate. Um homem, se é homem, aprende o que tem de aprender. É mas é mais fácil para o teu pai ficar como está. O que ele é é preguiçoso.

- Preguiçoso? O papá?

- Sim - insistiu ela. - Só porque trabalha muito naquilo que gosta, não quer dizer que não seja preguiçoso. E não tem muito jeito no que respeita a investimentos. Devíamos ser duas vezes, não, três vezes mais ricos do que somos...

Fiquei chocada com a maneira como ela falou do papá. Queixava-se muitas vezes disto ou daquilo, mas as suas recriminações nunca tinham sido tão veementes, tão maldosas. Estava tão zangada e tinha o olhar tão cheio de ódio que fiquei com o coração aos pulos a pensar no papá. Ainda bem que ele não estava ali ao pé para ouvir tudo aquilo, mas perguntava-me a mim própria se ela não lhe teria já dito coisas parecidas. Talvez fosse outra das razões pelas quais o papá andava quase sempre com uma expressão tão triste.

- Mas, mamã, não adora ser dona disto tudo? Os grandes navios, os fascinantes cruzeiros, todos estes passageiros cheios de dinheiro e...

- ADORAR? NÃO! Eu NÃO GOSTO DISTO! - berrou ela. Graças a Deus que não passo muito tempo nos navios. Quando se faz um destes cruzeiros alargados perde-se toda a actividade social em Boston. Eu acho que as pessoas que descobriram as viagens de avião é que estão certas. Deslocas-te rapidamente para o local onde vais passar férias, divertes-te e voltas. Assim não perdes os acontecimentos importantes da tua cidade.

"De qualquer modo - continuou, um pouco mais calma -, não é de mais repetir: nunca te cases com um homem que seja escravo do seu trabalho, mesmo que seja muito rico e muito atraente. Tu tens de vir em primeiro lugar, mesmo que isso implique que ele tenha de perder algum dinheiro aqui e ali.

- Mas... - A mamã tinha acabado de se queixar por não ter tanto dinheiro como desejava, pensei, e agora estava disposta a sacrificá-lo. Mas ela não se preocupava com as suas contradições.

- Um executivo inteligente tem pessoas de confiança para fazer o seu trabalho - continuava, divagando. - Mas não

o teu pai..

"O teu pai - prosseguiu, puxando o cobertor até ao queixo -, receio bem, é um camponês mascarado de homem rico. - Voltou-se de costas para mim e puxou o cobertor até à cabeça. - Agora, Leigh, tenho de fechar os olhos e imaginar que não estou aqui. Vai lá para cima, mas não te ponhas outra vez a brincar com coisas mecânicas e não voltes à casa das máquinas.

- Sim, mamã. Se se sentir melhor, tenta vir jantar hoje à noite? É um jantar especial, porque amanhã chegamos à Jamaica - expliquei.

- Graças a Deus. vou ver. Se me sentir melhor - murmurou por entre dentes, com pouco entusiasmo.

Na verdade, a mamã não saiu do quarto até atracarmos em Montego Bay e o papá descer para avisar que tínhamos chegado. Estava um dia magnífico, o tipo de dia pelo qual as ilhas das Caraíbas são famosas - um céu azul esplêndido, via-se apenas uma nuvem passageira; uma brisa quente, voluptuosa, e música por todo o lado. Eu estava no convés de cima a jogar ténis de mesa com duas raparigas que tinha conhecido durante a viagem, as irmãs Spenser, Clara e Melanie, que tinham ambas mais ou menos a minha idade. Por isso, não soube o que aconteceu lá em baixo entre a mamã e o papá, mas, quando dei por mim, os porteiros estavam já a transportar as malas da mamã do barco para dentro de um táxi.

Observei, incrédula. "Oh, mamã, o que é que estás a fazer?", perguntei a mim mesma. Aqui não era suposto irmos para um hotel. O barco ficava na doca do porto três dias e três noites. Os passageiros desembarcavam para fazer compras e para irem comer a restaurantes, e, a seguir, iniciávamos a viagem de regresso a Boston.

O papá fez-me um sinal para ir ter com ele.

- A tua mãe quer falar contigo lá em baixo - disse-me. Parecia tão cansado e deprimido: olhava para baixo, para o convés, e os seus olhos denotavam tristeza e infelicidade. As minhas borboletas no estômago voltaram a acordar, mas desta vez não batiam as asas; pareciam pássaros a voar e a embater contra as paredes do estômago. Fiquei com medo de estar doente.

Quando entrei na suite deles, encontrei a mamã vestida com um dos seus conjuntos de seda verde-azeitona, com um alfinete em forma de lírio pregado na parte de cima, um lenço de seda e luvas de seda a condizer. Estava a pentear o cabelo para trás e a afastá-lo da cara para pôr o seu chapéu branco em forma de casca de ovo, quando se voltou e deparou comigo. A suite estava impregnada com o cheiro do seu perfume de jasmim.

A palidez e a tristeza tinham desaparecido da sua cara. As suas faces estavam novamente rosadas, os lábios resplandecentes. Tinha-se maquilhado toda e até tinha posto rímel nas pestanas. Achei-a com um aspecto tão saudável como sempre tivera. Era uma recuperação miraculosa e que me enchia de ansiedade e receio.

- Ah, Leigh - exclamou ela, quando me viu. - Tomei uma decisão. vou voltar para Boston - anunciou. As suas palavras caíram que nem uma bomba e o meu coração parecia um tambor de chumbo pesado no peito.

- Voltar? Mas como, mamã?

- Pedi ao capitão do navio para se informar sobre os horários dos aviões e descobri um que vai para Miami, na Florida. Daí, tomo outro avião para Boston.

- Mas, mamã, e as nossas férias na Jamaica? - Não acreditava no que estava a ouvir, e o que me custava ainda mais a digerir, era que ela já tinha feito todos estes planos de viagem, conspirando aqui, na sua suite, e eu preocupada, a pensar que ela estava fraca e doente. - Porque é que está a fazer isto? - gritei, incapaz de esconder o meu desapontamento.

- Para mim, isto acabou por ser tudo menos umas férias, Leigh. Não me estou a divertir nem um bocadinho, como sabes. - Ajustou os dedos nas luvas. Estava manifestamente determinada a sair do barco em grande estilo, sabendo que muitas pessoas a estariam a observar e a interrogar-se sobre o que estaria a acontecer, pois era a mulher do proprietário.

- Mas, mamã, agora estamos ancorados no porto, não vamos para o mar. Não vai ficar enjoada.

- E a viagem de regresso, Leigh? Queres-me fazer passar por tudo aquilo?

- Não, mas eu queria que ficássemos juntos, que fôssemos fazer compras juntos e comer a restaurantes finos juntos e ver os espectáculos e tomar banho no mar e...

- De qualquer modo, o teu pai não teria tempo para fazer muitas dessas coisas. Ele não iria sair do barco. Não te lembras que tivemos de lhe torcer o braço para conseguirmos que ele saísse do barco em Londres, e se não tivéssemos feito essa excursão, não teríamos conhecido nem metade da cidade?

Ele tomou providências para fazermos a excursão, mamie e nós passámos uns bons bocados. Tenho todas aquelas fotografias nossas na Ponte de Londres, no Big Ben e na Torre de Londres. Nós divertimo-nos tanto lá. Também nos vamos divertir agora. Por favor, mamã, fique connosco. Por favor - supliquei, rezando em silêncio para que ela reconsiderasse.

- Não posso. - Afastou-se. - Desculpa. Não posso mesmo. Mais tarde perceberás.

- Porquê? O que é que quer dizer com isso? - O meu coração estava a bater freneticamente. Porquê mais tarde? Que notícias horríveis estariam para vir?

- Por agora, Leigh, não interessa. Goza o resto destas férias. Vou-te buscar à doca quando chegares. - Pegou na minha cabeça com as duas mãos e beijou-me a face. - Agora, sê uma boa menina e promete-me que não vais fazer nenhumas reparações enquanto eu não estiver por perto.

- Oh, mamã. - Agora chorava, chorava tanto que pensei que nunca mais parava, e não conseguia deixar de a chamar pelo nome que sempre usei durante a minha infância. Oh, porque é que não podia voltar àquela infância, em que me sentira feliz e em segurança!

- Deixei-te algumas das minhas jóias para usares quando saíres à noite. Tem cuidado com elas. - Afagou-me a cabeça distraidamente, mas eu sabia que ela estava determinada a levar os seus planos avante.

- Obrigada, mamã. - Baixei a cabeça, em defesa. Nada que eu pudesse fazer ou dizer a iria demover. Senti-me tão abandonada e só. No entanto, mais do que pena de mim, tinha pena do papá. Iria ser tão embaraçoso para ele encarar os passageiros quando soubessem que a sua mulher se tinha ido embora e tomado um avião de volta para Boston. E ele não podia dar a desculpa de que ela estava doente e que tinha de voltar para casa. Parecia uma estampa quando desembarcou. Facilmente poderia estar presente um fotógrafo das revistas de moda e ter-lhe tirado uma fotografia, enquanto descia em direcção à doca. Por isso, decidi esforçar-me para não o envergonhar e tentar controlar-me.

- Só cá vais estar três dias, Leigh, e fizeste alguns amigos a bordo, não foi? Contaste-me das irmãs Spenser e eu pedi ao capitão para averiguar sobre a família delas. São bastante abastados.

"Aqui, só estou a estorvar - acrescentou. - Não é justo para ti nem é justo para mim. Percebes?

Acenei que sim, com relutância. Não podia acreditar que ela estava a inventar aquelas desculpas sem nexo para mim. Não percebia. Porque é que ela estava a fazer aquilo? Porque é que ela estava a fazer uma coisa que nos ia magoar tanto, ao papá e a mim? Parecia que quanto mais velhos, mais difícil era sermos felizes. Será que comigo se ia passar a mesma coisa?

- Óptimo. Agora, ajuda-me a sair. Traz a malinha dos meus cosméticos, por favor.

Saímos juntas. Senti-me tão vazia. "Oh, mamã, a tua partida é tão dolorosa." Ela não se importaria connosco?, pensei. Houve qualquer coisa no modo como a mamã, à porta, se voltou para trás e olhou para a suite, que me deu a impressão de estar a dizer: "Adeusinho."

Fiquei surpreendida por não ver o papá à espera no convés. Como é que ela podia ir-se embora sem lhe dar um beijo de despedida? Nem sequer o procurou com os olhos. Avançou simplesmente pela prancha de desembarque até à doca, em direcção ao táxi.

- Mamã, onde está o papá? - Percorria o convés com os olhos, mas ele não estava à vista.

- Nós já nos despedimos - replicou bruscamente. Tirou-me a malinha dos cosméticos da mão. - Sê uma boa rapariga. Vou-te compensar por tudo isto de um modo que nem podes imaginar, Leigh.

Parecia uma coisa boa, mas fiquei ainda mais assustada.

Beijou-me de novo e entrou a correr no táxi, parecendo feliz como nunca quando espreitou pela janela e acenou com a mão. Fiquei ali a vê-la afastar-se. Em seguida, voltei para o barco. Lá do cimo da ponte, o papá estava a espreitar cá para baixo. A cara dele parecia a de uma estátua de pedra, fria, inanimada, abatida, envelhecida e desgastada por momentos dolorosos. Tinha um aspecto tão cinzento e tão velho. As lágrimas que escorriam pelas minhas faces pareciam gotas de gelo. O que é que estava a acontecer à nossa vida feliz e maravilhosa? Costumava acreditar que as palavras "Era uma vez..." tinham sido inventadas para mim. Agora, até tinha medo de as incluir no meu próprio diário, medo do significado que elas tinham ganho.

Apesar de estar zangada com a mamã por se ter ido embora do barco e por nos ter deixado a mim e ao papá desta maneira, não conseguia deixar de sentir saudades dela. Sempre que viajáramos num cruzeiro do papá, tínhamos feito tantas coisas juntas. Era tão divertido ir às compras com ela; descobria sempre um lugar em voga para almoçarmos, onde quer que estivéssemos. Enquanto ficávamos sentadas, a mamie punha-se a observar e fazia comentários sobre esta ou aquela pessoa, descrevendo o tipo de pessoa que ela achava que seria, a profissão que teria, quanto dinheiro faria, se seria sofisticada ou não. Sempre que estava com a mamã, as pessoas tornavam-se interessantes.

Quando nos encontrávamos em férias, tinha uma maneira de estar em restaurantes e lojas que levava os empregados, os maítres e os vendedores a pensarem que estavam a servir alguém que fosse ou muito famoso, ou membro da família real. Falava um bocadinho de francês e de italiano, aprendido nas cassetes "Como aprender uma língua sem ajuda" que punha a tocar em casa vezes sem conta. Mesmo quando pronunciava mal ou dizia qualquer coisa totalmente errada, fazia-o de um modo que as pessoas não a corrigiam. E cada vez que fazia compras ou escolhia alguma coisa num restaurante, fazia sempre questão de se inclinar e segredar-me o que tinha feito, para eu aprender.

Não era de admirar que sentisse esse enorme vazio no coração, quando ela se foi embora. De repente, tudo o que ansiara por fazer havia perdido interesse. E agora, ainda tinha de animar o papá.

No primeiro dia esteve muito ocupado com todos os preparativos para as excursões que os passageiros iam fazer e com a colocação em doca do navio. As irmãs Spenser e os pais delas convidaram-me para ir jantar com eles a Montego Bay, mas eu não queria deixar o papá na sua primeira noite sem a mamã, apesar de ele ter insistido para que eu fosse. Mrs. Spenser tinha-lhe pedido permissão para me levar, por isso ele estava ao corrente. Não tivemos oportunidade de falar até ao fim da tarde. Fui ter com ele à cabina do capitão, e depois de ele e o capitão terem terminado o que tinham para conversar e de o capitão ter partido, ficámos sozinhos.

- Devias ir jantar com as tuas amigas, Leigh. Quero que te divirtas enquanto cá estás.

- Mas, papá, pensei que íamos jantar juntos.

- Tenho de ficar a bordo e fazer umas coisas - replicou. - Estava a pensar petiscar qualquer coisa.

- Eu petisco consigo e ajudo-o a fazer o que tem para fazer - insisti eu.

- Não, isso não - disse o papá e abanou a cabeça. Parecia tão cansado, tão desgastado pelos acontecimentos do dia. Sombras profundas e escuras tinham-se instalado nos seus olhos. As paredes do meu coração estremeceram. Reprimi as lágrimas, engoli em seco e tentei encontrar uma voz que não vacilasse e que soasse a voz de menina.

- Porque é que a mamã nos deixou assim, papá? Não podia ter pedido ao médico de bordo para falar com ela?

Ele abanou a cabeça.

- Não foi só a crise da doença, Leigh. Ela não estava com muita vontade de fazer este cruzeiro, desde o início.

- Mas porquê, papá? Estava sempre a falar do cruzeiro, não era? Queria vir à Jamaica. Tinham cá vindo tantos amigos dela - insisti. - Não te lembras de ela uma vez ter pendurado no seu escritório aquele anúncio de uma revista que dizia "Venha à Jamaica... não há nada como estar em casa"?

O papá acenou com a cabeça, lembrando-se. E depois soltou um suspiro.

- Se ela pudesse ser uma passageira em vez da esposa do proprietário, sentir-se-ia mais feliz - constatou ele, com tristeza.

- Mas porquê, papá? Ela não tinha de trabalhar a sério e nós temos os melhores aposentos que se pode ter. O papá tem feito tudo o que ela queria que fizesse.

- Receio bem que não, Leigh. A tua mãe continua desapontada comigo.

- Mas porquê? - gritei eu. - O papá dá-nos tudo. Temos uma casa linda e podemos comprar tudo o que queremos. Todos os meus amigos têm inveja de mim.

- Às vezes, isso não é suficiente - insistiu ele. Fitou-me por um longo momento e depois sorriu-me calorosamente.

- Às vezes, principalmente quando estás frustrada, ficas muito parecida com ela, embora sejam tão diferentes.

- Somos? - Fiquei surpresa por lhe ouvir dizer aquilo. Nos últimos tempos estava sempre a dizer que parecíamos irmãs, principalmente ao pé da mamã. Seria porque eu ainda não tinha desenvolvido o gosto pelas mesmas coisas que ela, com tanta intensidade como ela?

- Em que é que somos diferentes, papá? Eu sei que ela é tão bonita e...

- Oh, não - exclamou o papá prontamente -, não tem nada a ver com isso. Tu vais ser muito mais bonita do que a tua mãe.

Fiquei chocada por o ouvir proferir aquelas palavras de modo tão sincero. "Eu? Mais bonita que a mamã?"

- E não vais ter de trabalhar tanto ou tanto tempo para isso. Não que a tua mãe não tenha sido abençoada pela beleza natural. Longe disso. Simplesmente, ela está mais envolvida em si própria do que tu irás estar.

- Como é que pode ter tanta certeza, papá? - Queria mesmo saber, pois, apesar de acreditar que ele estava certo, eu própria não tinha a certeza.

- Tu tens outros interesses, Leigh. Tens um espírito ávido de conhecimento. Vais ser muito impaciente para aprenderes novas coisas. Não é que tenhas tendência para ser maria-rapaz, como a tua mãe acha que eu te estou a transformar. Não senhor. Toda tu és uma rapariga.

Apesar do nosso tema de conversa ser triste, as palavras que ele proferiu foram directas ao meu coração e encheram-no de calor e de amor.

Recostou-se na cadeira de cabedal do capitão.

- A tua mãe ainda é uma mulher muito jovem, Leigh. Há muitos anos, quando a vi pela primeira vez, não levei a sério a nossa diferença de idade, nem pensei que isso viesse a ser um problema. Talvez por o amor ser cego.

"O amor pode ser assim, sabes, como uma explosão de raios de sol reflectidos na água. Não podes olhar directamente. Tens de proteger os olhos ou mesmo fechá-los, e, quando o fazes, só vês o que queres ver. Percebes? És suficientemente crescida para perceber o que estou a dizer, Leigh? - perguntou ele.

Acenei com a cabeça. O papá e eu raramente tínhamos este tipo de conversa séria, adulta. Cada vez que começava a falar sobre um tema sério, parava e dizia: "Bem, suponho que a tua mãe vai falar contigo sobre esse assunto dentro em breve."

- Talvez até percebas - disse ele, a sorrir. - Acho que és muito mais esperta do que a tua mãe e eu imaginamos.

- Mas, papá, o que é que isso tudo tem a ver com o que está a acontecer agora?

- Bem, como te disse, a tua mãe era ainda muito nova. Amadureceu rapidamente, claro, mas eu já estava bastante acomodado com as minhas coisas. Quando um homem está acomodado, é difícil, senão impossível, fazê-lo mudar. À medida que ia ficando mais adulta, a tua mãe foi querendo que eu fizesse alterações na minha vida. Queria que eu fosse uma pessoa diferente em muitos aspectos. Eu tentei, mas receio bem que não esteja dentro da minha natureza, e foi isso que tornou a tua mãe muito infeliz.

- Em que aspectos, papá?

- Em que aspectos? Bem, por exemplo, ela adorava que eu a levasse num destes cruzeiros e que agisse como um simples passageiro... Dormir todos os dias até tarde, comer, ir-me depois recostar no convés ou jogar shuffleboard. À noite, gostaria que eu a levasse a dançar e que dançássemos toda a noite, até de madrugada, a beber champanhe, e depois que voltasse a dormir até tarde e que não falasse com a tripulação sobre negócios ou sobre o decorrer da viagem.

Sorriu.

- Por vezes ela consegue ser tão criança - acrescentou -, tão ávida de entusiasmo e de diversão. Nunca vi uma mulher que tivesse o apetite que a tua mãe tem por diversão e prazer. Nunca lhe conseguiria oferecer diamantes que chegassem ou levá-la vezes suficientes a restaurantes. Ela é insaciável.

"Oh, mas eu compreendo. A tua mãe é jovem, bonita, cheia de vida. Por outro lado, aqui estou eu, a trabalhar horas a fio, profundamente envolvido numa importante empresa familiar, com pouco tempo para frivolidades. Se a tua mãe conseguisse o que queria - acrescentou, abanando a cabeça -, eu estaria a divertir-me cinco horas por cada hora de trabalho. Tenho pena, mas não posso, e, se pudesse, provavelmente não o faria, não só porque estou velho de mais para isso, mas também porque não faz parte da minha maneira de ser.

"E assim, respondendo à tua pergunta, esta é a razão por que a tua mãe está desapontada - concluiu e sorriu para mim com ternura.

Não consegui conter as lágrimas por mais tempo. Mal apareceu a primeira, o papá levantou-se e veio ter comigo.

- Vá lá, vá lá, não chores. Não me faças arrepender de ter tido esta conversa adulta contigo, Leigh.

- Não faço, papá. - Sequei os olhos prontamente e retive o resto das minhas lágrimas. Doía-me o coração, mas sorri. - O que é que vai acontecer agora, papá? - indaguei.

- Vamos ver. A tua mãe queria ter algum tempo para ela própria, para reflectir. Entretanto, jovem capitão VanVoreen, tu e eu temos um cruzeiro para dirigir, percebes?

- Sim, papá.

- Bem, aqui está a minha primeira ordem. Vais jantar fora com as tuas amigas e com os pais delas e vais-te divertir.

- Mas, e se eles me começarem a fazer perguntas sobre a mamã? - perguntei. Ele ficou pensativo por uns momentos.

Tu dizes que houve uns problemas familiares graves em casa que tinham de ser resolvidos imediatamente. Ninguém te vai perguntar muito mais do que isso, e, se o fizerem, diz-lhes só que os teus pais não te contaram mais nada.

"bom - prosseguiu, batendo com as mãos uma na outra -, isso já está resolvido. Amanhã podes ir fazer compras ao bazar e comprar uma lembrança para cada um dos teus amigos lá de Boston, se quiseres. À tarde, podes ir tomar banho à praia e, à noite, tu e eu iremos a um autêntico restaurante jamaicano comer um prato que se chama galinha curada. Um dos porteiros, que por acaso é jamaicano, estava a falar-me disso. O que é que achas?

- Maravilhoso, papá.

- Óptimo. Agora, vai-te embora. Depois quero um relatório completo. Como está a ir esse teu diário de bordo? Está a ser preenchido?

- Oh, sim. Escrevo todos os dias.

- Óptimo. - Beijou-me na face, abraçou-me com força e eu inalei os cheiros que me eram familiares: o perfume da sua loção de barbear e da sua água-de-colónia, o aroma do seu tabaco de cachimbo e o cheiro fresco e limpo do mar.

Gostava que tivéssemos tido conversas destas antes. Por um lado, a mamã tinha muita razão em ficar com ciúmes do tempo que ele passava a trabalhar. Quem me dera que ele tivesse passado mais tempo comigo e me tivesse falado dele próprio quando era da minha idade ou mais novo. Apercebi-me de que nunca me havia contado a sua versão da história da Cinderela entre ele e a mamã. Talvez consiga que o faça, um dia. No entanto, o papá era tão modesto. Iria mesmo descrever o que tinha sentido quando vira a mamã pela primeira vez? E estaria disposto a descrever a cena em que se declarou de joelhos? Nunca revelara qualquer antipatia para com a avó Jana ou para com as duas irmãs da mamã. Sempre que ela gozava ou dizia mal delas à nossa frente, o papá simplesmente assentia ou desviava o olhar. Eu queria saber tantas coisas mais. Deus queira que, agora que ele se apercebera de que eu estava mais crescida e mais madura, me falasse disso.

A pequena conversa com o papá na cabina do capitão acabou por me animar o suficiente para ir jantar com os Spenser. Levaram-me a um restaurante italiano encantador, chamado Casablanca. As mesas estavam postas sob as estrelas e havia um grupo de três músicos e um cantor a trautear canções românticas. Mr. e Mrs. Spenser dançaram tão juntinhos, tão amorosos e carinhosos, que as minhas amigas até ficaram envergonhadas. Davam risadinhas como crianças da escola primária. Eu percebia porque é que elas se sentiam constrangidas com o comportamento dos pais, mas achava que era maravilhoso ver marido e mulher tão amorosos e afectuosos um com o outro. Não consegui deixar de fechar os olhos e de imaginar que eram os meus pais, imaginar a mamã e o papá na pequena pista de dança, as estrelas a cintilar por cima deles e o cantor a cantar serenatas de amor para eles.

O papá tinha dito que o amor é cego. Quando nos apaixonamos, será que temos oportunidade de pensar em todas estas coisas? Será que temos oportunidade de prever como irá ser daqui a muitos anos? Pela maneira como a mamã falava agora do papá, eu sentia que, se ela pudesse ter previsto o futuro quando ele se declarara pela primeira vez, provavelmente não teria dito que sim, mesmo que isso significasse continuar a viver no Texas, com as suas horríveis irmãs.

- Quando me apaixonar - confessei às irmãs Spenser -, quero que seja como os vossos pais. - Olharam ambas para mim, sem saberem se deviam ou não rir. Nesta altura, já riam por tudo e por nada. Sorriram, apenas, devido à minha expressão séria, apesar de eu poder imaginar que iriam falar sobre mim mais tarde, no quarto. É verdade que tínhamos mais ou menos a mesma idade; contudo, eu sentia-me tão mais velha do que elas...

Era tudo tão confuso para mim. Talvez a idade não tivesse influência no nosso crescimento. Era provável que o papá estivesse a querer dizer-me no barco que achava que a mamã ainda não crescera, ou, pelo menos, que ainda não crescera em relação àquilo que ele tinha esperado.

A música e as estrelas entristeciam-me agora. Fiquei contente quando chegou a hora de voltar para o barco. O papá viu-nos chegar e falou com Mr. e Mrs. Spenser para lhes agradecer terem-me levado a jantar fora. Depois, perguntou-me se eu tinha gostado.

- Foi divertido - disse-lhe, a falar meio verdade, meio mentira. - Mas estou desejosa que chegue amanhã à noite para estarmos só os dois, papá.

- Oh, meu Deus - exclamou ele -, terá de ser depois de amanhã. Desculpa, mas amanhã à noite temos um convidado muito importante para jantar -, o governador da ilha. Entendes, não entendes, princesa?

Engoli rapidamente o meu desapontamento e pus a minha máscara de sorriso, tal como a mamã sabia fazer.

- Sim, papá. Estou cansada - disse-lhe. - vou dormir.

Deu-me um beijo de boas-noites e foi-se embora verificar qualquer coisa na cozinha. Fui a correr para a minha suite e fechei a porta atrás de mim. Então, caí na cama e chorei. Não estava a chorar por uma coisa, mas por tudo... Chorava por a mamã nos ter deixado, por ver os pais de outra pessoa tão felizes e apaixonados, pela frustração e infelicidade do papá com a mamã e pela infelicidade dela com ele, chorava por ele não ser capaz de estar sozinho comigo.

Depois de ter vertido dez oceanos de lágrimas, fiquei finalmente cansada e enrolei-me na minha cama, agarrada ao meu ursinho de pelúcia vestido de marinheiro. Ouvia-se a banda do salão de baile lá em cima a tocar música suave e romântica, e ouvia-se a água lá em baixo a embater contra os costados do navio, e, se me esforçasse ainda mais, conseguia ouvir o bater do meu coração.

Nada me poderia ter feito sentir tão só. Ainda bem que adormeci.

 

QUASE UMA ÓRFÃ

Fiz um esforço enorme para me manter ocupada durante o resto do tempo que permanecemos em Montego Bay para não estar sempre a pensar no regresso da mamã a casa, pois, sempre que o fazia, sentia o coração como um tijolo no meu peito. As irmãs Spenser e eu fizemos finalmente amizade com dois rapazes que, ao princípio, pareciam muito desinteressados, provavelmente porque eram mais velhos e deviam andar no liceu e achar que não se deviam associar a raparigas mais novas. Frequentavam ambos uma escola nos arredores de Boston e tinham o nariz empinado. Já os tinha visto algumas vezes ao lado um do outro, sentados nas espreguiçadeiras do convés ou a jogar xadrez, mas nunca nos prestaram a mínima atenção, a mim e às irmãs Spenser.

O mais alto, um rapaz com cabelo muito fino castanho-claro e olhos cor de avelã, apresentou-se como Fulton Wittington Júnior. O amigo dele, Raymond Hunt, era muito mais entroncado e muito menos bonito, mas muito mais informal e descontraído. Acho que simpatizou comigo, porque foi ele que nos aproximou quando nos viu a mim, a Clara e a Melanie a jogar shuffleboard. Começou a gozar comigo.

- Tu atiras isso como se estivesses a empurrar uma vassoura - criticou ele. Apesar de não ser muito atraente, pois a sua boca era demasiado grande e o nariz demasiado fino, tinha um sorriso simpático e caloroso quando se permitia sorrir.

- Como é que eu podia saber. Nunca empurrei uma vassoura - retorqui e voltei-me de costas para eles, o que os fez rir a ambos.

- É melhor não gozares com ela - avisou a Clara, com as mãos nas ancas. - O pai dela é o dono do barco.

- A sério? - De repente, o Fulton ficou mais interessado e pouco tempo depois vieram jogar connosco, primeiro para nos ensinar e mais tarde só por divertimento. Almoçános todos juntos e decidimos ir à praia nessa tarde. As irmãs Spenser passaram o tempo às risadinhas e aos segredinhos, o que, na minha opinião, foi muito antipático e imaturo da parte delas. Ao fim da tarde, foram sozinhas chapinhar e brincar na água, e deixaram-me sozinha com os dois rapazes, estendida entre eles numa enorme toalha de praia.

Estava um dia sem nuvens, e a brisa marítima fazia com que sentíssemos o sol menos intensamente do que estava na realidade; eu tinha comigo todos os óleos bronzeadores e cremes protectores solares da mamã. O Fulton, o Raymond e eu falámos sobre muitas coisas, incluindo a escola, os filmes recentes e as novas modas. Na maior parte das coisas, achei que tinham o mesmo gosto que eu.

A família do Fulton tinha uma casa de praia em Cape Cod e quando eu mencionei que estivera recentemente na praia na Mansão Farthinggale, fiquei surpreendida por saber que ele não só tinha conhecimento da sua existência, como o pai dele tinha comprado dois brinquedos da Fábrica Tattterton, uma réplica da Torre de Londres e outra da Bastilha.

- São espectaculares! - exclamou o Fulton. - Até tem uma guilhotina que funciona. Se pusesses o teu dedo mindinho lá por baixo, cortar-te-ia a ponta.

- Acho que posso passar bem sem o fazer - disse eu, fazendo uma careta.

- Alguns amigos dos meus pais têm brinquedos Tatterton de colecção. O meu pai deu instruções ao gerente da Loja de Brinquedos Tatterton para o avisar quando produzirem uma nova prisão famosa.

- A minha mãe quer que o meu pai compre um brinquedo Tatterton - contou o Raymond. - Ele deve comprar um, este Natal.

- Os meus pais têm muito orgulho neles - acrescentou o Fulton. Queria saber como era a Mansão Farthinggale e eu descrevi-lha e falei-lhes do Tony, do Troy e do labirinto. Pareciam fascinados e eu fiquei muito orgulhosa de mim própria por ser tão interessante e atraente aos olhos de dois rapazes mais velhos, sendo ambos manifestamente muito ricos e viajados. Pensei que a mamã também iria ficar muito orgulhosa de mim.

Fartei-me de chamar as irmãs Spenser e de lhes dizer para porem creme protector, porém, não ligaram importância e ficaram ambas com um escaldão no ombro e outro no pescoço antes de voltarmos para o barco.

- Sabes - comentou o Fulton, enquanto observava as irmãs Spenser -, é difícil, se não impossível, acreditar que vocês têm a mesma idade.

- Podias passar por uma rapariga do secundário - referiu o Raymond, com o que o Fulton concordou. Sob a forte luz do Sol, não dava para perceber que estava a corar; no entanto, senti uma pontinha de entusiasmo pelo modo como ambos me encaravam agora.

Nessa noite, disse-lhes adeus da mesa do capitão onde estava sentada com o papá e o governador da ilha. Encontravam-se todos a discutir a indústria turística e como a Jamaica estava a tornar-se um dos locais mais populares das Caraíbas. Quando o governador expressou o seu desejo de tornar a Jamaica no tipo de paraíso de férias que pudesse ser desfrutado não só pelos mais ricos e famosos, mas também pela classe média, pensei que era bom que a mamã não estivesse ali. Ficaria muito desapontada em sabê-lo, pois andava sempre à procura dos lugares visitados apenas pelos muito ricos e famosos.

Notei que a Clara e a Melanie não tinham vindo jantar. Quando perguntei por elas, Mr. e Mrs. Spenser informaram-me que elas estavam na suite com dores por causa dos escaldões. Depois de jantar, o Raymond e o Fulton escoltaram-me até ao show das Caraíbas, que acabou por ser um dos espectáculos mais emocionantes que alguma vez vi em qualquer dos paquetes de luxo do papá. Havia bailarinos de danças populares, vestidos com fatos coloridos e chapéus de palha, músicos de calypso, com uma orquestra de vinte elementos a tocar instrumentos de percussão e a cantar músicas populares sobre o amor nas ilhas.

Depois do espectáculo, as pessoas eram convidadas a tentar dançar o limbo. Tinham de dançar e dobrar-se para trás para passar por baixo de uma vara de bambu, sem lhe tocar. A vara baixava e baixava até não haver quase ninguém a jogar. Nesse momento, entrava em cena um bailarino da ilha que dobrava o corpo até este ficar a poucos centímetros do chão e movimentava-se por baixo da vara com a agilidade de uma cobra. A audiência adorou.

Passei o dia seguinte com o Fulton e o Raymond. Ensinaram-me a jogar xadrez e fomos novamente tomar banho à praia. Ao fim da tarde, pela fresca, fomos fazer compras aos mercados de rua, e eu encontrei um lenço de seda pintado à mão, lindo, que tinha a certeza que a mamã ia adorar. Para o papá, comprei uma bengala decorativa coberta de peixes esculpidos.

O Fulton e o Raymond queriam levar-me a dar uma volta pelo porto num barco com fundo de vidro, mas eu estava desejosa de voltar para o navio e de me vestir para jantar, porque nessa noite o papá ia levar-me a um restaurante jamaicano, em vez de jantarmos a bordo. Esperava, ansiosa, por passarmos os dois uma noite maravilhosa a falar. Pus algumas das jóias que a mamã me deixara e sentei-me em frente ao espelho a pentear o meu cabelo como ela costumava pentear o dela, enumerando as cem escovadelas. Pus o bâton como ela me ensinara e pulverizei-me com perfume de jasmim. Vesti uma blusa de seda azul-forte, com uma gola de renda e uma saia plissada a condizer. Para parecer mais velha e mais sofisticada, desabotoei os dois primeiros botões da minha blusa.

A minha cara estava uniformemente bronzeada, o que os brincos de prata e a blusa de cor forte ainda punham mais em relevo. Achei que estava sensacional e esperava sinceramente que o papá também achasse. Os rapazes mais velhos gostavam de mim e achavam-me interessante e madura. Estava a usar as jóias e o perfume da mamã e, pela primeira vez, admiti para mim própria que havia fortes semelhanças entre nós. Talvez até viesse a ser bonita. Seria vaidade pensar desse modo? Não conseguia deixar de admirar a minha imagem ao espelho, apesar de saber que não devia ser convencida. Mas não estava ali ninguém, ninguém iria saber, pensei.

Fiquei ali, assumindo várias poses, tentando imitar algumas expressões e olhares da mamã. Belisquei as bochechas, virei os ombros, endireitei-me e puxei os seios para cima até ficarem mais saídos. Imaginei um homem jovem e bonito a fitar-me do lado oposto da pista de dança. Devia retribuir-lhe com um sorriso e encorajá-lo. Provavelmente era o que a mamã faria, pensei, apesar de o papá não gostar. Voltei-me, devagar, e sorri. Depois, ri-me de mim própria. Contudo até era divertido ser tola de vez em quando.

Respirei fundo, mirei-me outra vez ao espelho, para ver se o cabelo estava bem, e saí para ir ao encontro do meu companheiro, o papá.

O papá estava à minha espera no convés. De súbito, senti-me a tremer, quando pensei na reacção que teria. Porém, ele olhou para mim, fez um enorme sorriso e ficou com os olhos a brilhar, tal como ficava muitas vezes quando a mamã aparecia toda aperaltada para ir a uma gala ou a um restaurante chique.

- Estou bem? - Quase que podia ouvir a mamã a sussurrar-me: "Procurar elogios não tem nada de mal. Uma mulher deve sempre parecer um pouco insegura, mesmo que seja muito segura."

- Estás deslumbrante, princesa. - Virou-se para a sua direita. - Hoje temos a companhia mais bonita da Jamaica

- afirmou para o capitão Willshaw.

- Sem dúvida - confirmou o capitão Willshaw, dando um passo em frente. Estava tão ansiosa para ver a reacção do papá quando me pusesse os olhos em cima, que nem tinha reparado no capitão, que estava a seu lado.

Não consegui controlar a minha expressão confusa, nem o meu desapontamento, quando o papá acrescentou:

- O capitão recomendou-nos o restaurante que considera o melhor da Jamaica e concordou em vir jantar connosco, Leigh. Não foi amável da parte dele?

- Jantar connosco? Oh, sim.

"Papá", pensei, "e o nosso jantar íntimo? Não percebes o que se está a passar no fundo do meu coração? Não reparaste que eu precisava de ti, e só de ti, hoje à noite? O que foi feito da noite que íamos passar juntos na Jamaica, em que era suposto confortarmo-nos um ao outro e ficarmos mais íntimos?" Oh, eu tinha tantas coisas íntimas e pessoais para lhe contar. Queria falar-lhe sobre o Fulton e o Raymond e sobre os brinquedos Tatterton e descrever-lhe o que tinha comprado para oferecer à mamã. Queria confiar-lhe os planos que tinha feito, para me esforçar por não lhe desagradar a ela e de não fazer coisas que pudessem provocar discussões entre eles.

Mais do que tudo, queria que ele olhasse para mim e se lembrasse dela, e depois queria que ele me dissesse que tinha muitas saudades da mamã e que precisava dela. Tinha esperança que ele me narrasse os primeiros dias que haviam passado juntos, quando o romance entre eles era intenso e verdadeiro, como eu esperava que o amor viesse a ser para mim, um dia.

Depois de jantar, caminharíamos de mãos dadas pela noite jamaicana e sentir-nos-íamos felizes de novo, sob as estrelas.

Em vez disso, o papá e o capitão Willshaw conversaram sobre o cruzeiro. Fizeram um levantamento de tudo, avaliaram cada dia, cada acontecimento, revendo o que iriam modificar, o que iriam melhorar ou aumentar e nunca mais paravam. Ouvi tudo, bem-educada. Numa ocasião normal, ter-me-ia interessado; naquela noite, porém, queria que o meu pai me tratasse como uma mulher. Estava aborrecida e extremamente infeliz. Apesar de a comida ser deliciosa, perdi o apetite e tive de comer à força, mas o papá pareceu não ter reparado.

Tivemos de voltar para o navio logo após o jantar. Era a última noite que passávamos na Jamaica e estava programado um espectáculo e um baile. Disse ao papá que tinha de ir à suite por uns momentos e que iria ter com ele mais tarde.

- Tal como a tua mãe, tens de ir retocar-te, hem, princesa? - perguntou, piscando o olho ao capitão.

- É verdade, papá - respondi, com os olhos baixos. Senti duas pequenas lágrimas nos cantos dos olhos, que se detiveram, sem cair.

- Estás bem? A comida não estava picante de mais, ou estava? Não estás excessivamente fatigada, pois não? - perguntou, com uma voz plena de preocupação paternal.

- Não, papá. - Tive de morder o interior da boca para não desatar a chorar ou a gritar. Porque é que ele estava a falar comigo como se eu fosse outra vez uma criança? Porque é que ele não conseguia discernir o verdadeiro problema? Será que os homens eram absolutamente insensíveis aos sentimentos das mulheres? Passavam-me tantas dúvidas pela mente, questões às quais acho que só outra mulher me poderia responder.

Quando entrei na minha suite, senti-me tão desiludida e sozinha que só consegui sentar-me na cama e chorar. Vi de relance a minha imagem no espelho: o meu cabelo penteado e brilhante, a minha roupa bonita, as jóias da mamã e a minha pele uniformemente bronzeada, agora alterada pela tristeza e pelas lágrimas. Achei que tinha um aspecto patético e ridículo, como uma menina a tentar imitar a mãe. Estava na expectativa de que, quando o papá me visse e inalasse o perfume de jasmim da mamã, se perdesse nas recordações dela e que fosse delicado e refinado comigo. Mas nada disso acontecera.

Nunca sentira antes que precisava tanto da mamã. Queria que ela me dissesse o que sentiria se se vestisse a rigor e não deslumbrasse um homem como tinha planeado. O que é que eu podia fazer? Não podia ter uma conversa íntima com ninguém a bordo, e muito menos com as irmãs Spenser ou a mãe de outra pessoa.

"Deve ser tão horrível para um órfão verdadeiro", pensei, "nunca ter ninguém em quem confiar, ninguém que lhe dê amor e que não se ria dele quando este confessa os seus sentimentos mais profundos e sinceros." Essa noite, sentia-me como uma órfã, abandonada no meio do mar, a flutuar sem destino, perdida nas ondas para ser arremessada aqui e ali, sem ninguém para ouvir os meus gritos.

Limpei os fios de lágrimas que escorriam das minhas faces e mirei-me no espelho. Talvez o papá e eu fôssemos ter a nossa pequena conversa íntima dentro de um dia ou dois, durante o caminho de regresso. Talvez fosse muito difícil para ele falar sobre este assunto e estivesse deliberadamente a encontrar desculpas para evitá-lo. Tinha a cabeça tão ocupada, tantas responsabilidades e preocupações, que não precisava que eu lhe acrescentasse a lista. Teria de ser mais compreensiva e mais paciente, pensei. Endireitei-me.

- Ninguém quer saber de uma pessoa patética e fraca dissera-me uma vez a mamã. - A piedade é o sentimento mais decadente que existe. Mesmo que estejas transtornada, não dês a ninguém a satisfação de o saber. Faz com que se sintam superiores.

- Está bem, mamã - sussurrei eu, como se ela estivesse aqui, na minha suite, comigo -, farei o que tenho de fazer. Ninguém saberá os meus pensamentos secretos e tristes. Fá-lo-ei pelo papá e por ti, e fá-lo-ei por mim própria.

Levantei-me com determinação. No meu íntimo, porém, sabia que, quando voltasse para a minha suite ao fim da noite, me enfiasse por baixo dos cobertores e fechasse a luz, iria soluçar que nem um bebé no escuro e choraria até adormecer.

A viagem de regresso a casa pareceu-me muito mais comprida, pois estava ansiosa para chegar junto da mamã e por vê-la cumprimentar o papá. Ajoelhava-me todas as noites e rezava para que ela estivesse menos zangada com ele. Li muito e estudei as minhas lições a fundo com o meu preceptor, Mr. Abrams. joguei xadrez com o Raymond e o Fulton, fui ao cinema e assisti a espectáculos com eles, e passei mais tempo na companhia das irmãs Spenser. O papá parecia mais ocupado do que nunca. Mal o vi no último dia no mar. Não almoçou comigo e, quando por fim nos sentámos juntos para jantar, foi abordado por muitas pessoas: convidados que passavam por ali para lhe dizerem que tinham gostado muito do cruzeiro e membros da tripulação e do pessoal que lhe vinham pôr questões.

Na noite anterior à chegada ao porto de Boston, o Raymond e o Fulton vieram falar comigo em particular para me darem as moradas deles e apontarem a minha. Prometeram ambos escrever e até fazer-me uma visita na primeira oportunidade que cada um tivesse. Fiquei muito lisonjeada pela atenção deles. O Raymond deu-me um beijo na face, um beijo rápido, afastando-se logo, a corar. Era a primeira vez que um rapaz mais velho me beijava e eu não consegui impedir que as asas das minhas borboletas batessem por baixo do coração. O Fulton deu-me apenas um aperto de mão, mas manteve os ombros direitos e os olhos fixos em mim, como se quisesse beber a minha cara e nunca a esquecer.

Quando se foram embora, fui tratar das minhas malas. O papá disse-me para deixar as malas dentro da suite que os bagageiros as viriam buscar enquanto eu estivesse a tomar o pequeno-almoço. Segundo o horário, íamos atracar pouco depois do pequeno-almoço. Estava tão excitada que demorei imenso tempo para adormecer. Escrevi e escrevi neste diário, até as minhas pálpebras se fecharem, mas, mesmo depois de desligar as luzes e de fechar os olhos, não parava de pensar em tudo o que queria contar à mamã. Não queria esquecer-me de nada.

Mal despontaram os primeiros raios de luz matinais através da minha janela, saltei da cama e tomei o meu duche. Queria comer um pequeno-almoço rápido e ir lá para fora para assistir do convés à chegada a Boston. Quando, já vestida, estava a acabar de pentear o cabelo, ouvi alguém a bater à porta. Era o papá.

Estava vestido com o seu fato escuro, mas não tão elegante como era normal. Parecia que tinha estado a pé toda a noite e que se vestira às escuras. O nó da gravata não estava bem feito e o casaco do fato tinha um aspecto enrugado. O cabelo estava um pouco desalinhado.

- bom dia, princesa - disse, com ternura. O meu coração começou a palpitar descompassadamente. Parecia tão triste; a cara dele estava tão cinzenta como o cabelo.

- bom dia, papá. Está tudo dentro do horário? - Senti muito medo, de repente, mas tentei convencer-me de que houvera algum problema e que a atracagem fora adiada.

- Sim, sim. - Fez um sorriso frágil e fechou a porta atrás de si. - Queria ver-te antes de ires tomar o pequeno-almoço e antes de entrarmos na doca.

Dei uma volta inteira na cadeira do meu toucador. O papá mostrou-se enervado por um momento e olhou à volta da minha suite, como se não tivesse a certeza de onde iria sentar-se.

Por fim, sentou-se aos pés da minha cama. Juntou as mãos e inclinou-se na minha direcção. Estava bastante preocupado com alguma coisa... Percebia-se bem porque os pequenos músculos do seu maxilar estavam aos pulos e porque as veias das têmporas faziam tanta pressão contra a pele que parecia que iam rebentar. Ficou bastante tempo em silêncio, até que me senti tão nervosa que pensei que ia começar a gritar.

- O que é que aconteceu, papá? - Retive a respiração.

- Leigh - começou ele -, esperei até ao último momento para vir aqui contar-te isto. Queria aguentar o máximo possível, para evitar a tua tristeza pelo máximo de tempo possível.

- Tristeza? - Levei as mãos à base da garganta e sentei-me, tão quieta, sem conseguir respirar, à espera que ele continuasse. Ouvi o palpitar do meu coração e senti o leve balanço do navio na água. Por cima de nós e à nossa volta, ouvia-se o som dos convidados e da tripulação a prepararem-se para a última manhã a bordo: pessoas a falar alto, excitadas, a caminho do pequeno-almoço, bagageiros à espera de instruções, portas a fechar, crianças a rir e a correr. Chovia excitação e algazarra à nossa volta, o que tornava o nosso silêncio ainda mais profundo e perturbador. Por dentro, senti-me gelar, transformando-me numa princesa de gelo, em vez de uma princesa de carne e osso.

- Lembras-te, quando tu e eu tivemos aquela pequena conversa logo após a tua mãe nos ter deixado na Jamaica, que eu te disse que ela se tinha ido embora para pensar recomeçou ele.

- Sim? - A minha voz soou tão frágil, tão assustada.

- Eu disse-te que ela estava desapontada comigo, desapontada pelo modo como as coisas corriam entre nós. - Engoliu em seco. Acenei com a cabeça, para que ele continuasse, pois parecia que estava a desdizer-se. - Bem, há alguns dias, Leigh, recebi um telegrama a bordo. Era da tua mãe, a informar-me de que tinha levado avante uma das suas possíveis alternativas.

- Que alternativas? O que é que ela fez? - bradei, desanimada.

- Em Miami, apanhou um avião para o México, em vez de ir directamente para Boston, e instaurou um processo de divórcio - disse ele, bruscamente, como um médico a transmitir más notícias a um paciente, para não arrastar mais o sofrimento.

As suas palavras ficaram a pairar no ar, como se se tivessem congelado ali. O meu coração palpitava sob o meu peito, tornando-se depois num tambor a rufar. Os meus dedos ficaram entorpecidos pela força com que eu os tinha encerrado nas mãos.

- Divórcio? - Era uma palavra tão proibida, tão estranha. Eu tinha lido coisas sobre divórcios de estrelas de cinema e de outros artistas. No caso deles, parecia o curso natural dos acontecimentos, quase que esperado, mas eu não tinha nenhuns amigos cujos pais se tivessem divorciado, e os colegas de escola que tinham pais divorciados eram considerados diferentes; às vezes, os outros até os evitavam, como se tivessem lepra.

- No fundo - acrescentou o papá, suspirando -, sinto-me quase um pouco aliviado. Já esperava isto há meses. Era raro o dia em que a tua mãe não dizia que estava infeliz comigo ou que não trocássemos palavras desagradáveis, amargas, entre nós. Fiz o possível e o impossível para esconder de ti isto tudo, tal como penso que a tua mãe terá feito.

"Afundei-me ainda mais no meu trabalho para não estar sempre a repisar os problemas em casa. Por um lado, todas estas crises financeiras e os problemas nos negócios foram uma espécie de bênção. Afastaram a minha mente dos problemas conjugais. - Forçou o regresso de um sorriso, que pouco durou. Por atenção a ele, reprimi as minhas próprias emoções e socorri-me delas para poder falar.

- A mamã ainda está no México?

- Não, já regressou a Boston. Está em casa. Mandou-me o telegrama de Boston. Contudo - prosseguiu, depois de respirar fundo -, eu prometi-lhe que concordaria com o que ela decidisse. Não vale a pena forçar uma pessoa a ficar connosco se ela já não o quer.

- Mas porque não? - inquiri eu. - Como é que ela pode querer deixar-te depois de todos estes anos?

O que eu queria mesmo saber, era como é que um amor que tinha começado de um modo tão esplendoroso, tão romântico, podia ter morrido. Como é que duas pessoas podiam ter tanta certeza uma da outra, num momento, e mais tarde terem tanta certeza de que já não queriam estar juntas? Será que era isto que o papá queria dizer quando me explicou que o amor era cego?

Então, como é que uma pessoa pode saber se ele ou ela está apaixonado ou apaixonada de verdade? Se os sentimentos nos traíam e as palavras eram como irrealidades que apareciam e desapareciam na nossa memória, o que é que se podia fazer para ter a certeza? Promete-se a uma pessoa, e essa pessoa também nos promete a nós, que iremos ficar juntos até que a morte nos separe e depois... outra coisa qualquer separa-nos. Qual seria o valor de uma promessa? E de uma promessa que vinha acompanhada por um beijo?

- A tua mãe ainda é muito jovem. Ela acha que ainda tem oportunidade de viver uma vida mais feliz e eu não me vou atravessar no caminho dela. Por mais irónico que pareça, amo-a demasiado para o fazer - confessou ele. - Eu sei que isto não faz sentido para ti, agora. Nada disto... Mas mais tarde talvez penses no que eu te disse e talvez percebas a razão pela qual digo que a amo demasiado para impedir que ela me deixe.

- Mas, papá, o que vai ser de nós? - Estava frenética agora, e fiquei bastante surpreendida por a minha voz não sair aos guinchos. No fundo, a minha pergunta era: "O que vai ser de mim?" Ele percebeu.

- Vais ficar com a tua mãe. Vão viver as duas na nossa casa pelo tempo que a tua mãe desejar. - Fez uma pausa, soltou um suspiro e depois prosseguiu: - Tenho muito com que me ocupar neste momento. Na verdade, após uma pequena estada em terra, partirei novamente, para explorar a hipótese de fazer um cruzeiro para um lugar chamado ilhas Canárias. Tenho de procurar locais novos e exóticos para atrair a minha clientela e manter o nível de competição.

"Acho que a tua mãe tem razão numa coisa, Leigh... Gosto de mais do meu negócio. Não consigo encostar-me e deixá-lo morrer - confessou.

- Quero ir contigo, papá - consegui dizer, enquanto soluçava.

- Então, então, meu amor. Isso seria impossível e incorrecto. Tu tens a tua escola e os teus amigos e deves ficar com a tua mãe na tua casa, onde te sentirás confortável. Não temos problemas a nível financeiro, apesar de, à velocidade com que a tua mãe gasta dinheiro, este nunca seja suficiente

- acrescentou secamente.

Não havia lágrimas nos olhos do papá. Se ele chorara por causa disso, fizera-o sozinho e pusera esse assunto de lado. Até num momento como este ele conseguia ter as suas emoções sob controlo, quando eu nunca o tinha conseguido. Percebi que o romance de amor entre ele e a mamã já estava morto e enterrado, enterrado num cemitério pleno de momentos felizes de outrora, de coisas felizes. A cabeça dele já divagava por outros caminhos. O funeral já fora.

A sua expressão cansada estava tão carregada de resignação que bastava um olhar para apagar a pequena vela de esperança que eu tentava guardar acesa e viva no meu coração. Fiquei chocada por saber que o amor entre a mamã e o papá há muito tempo que tinha começado a morrer, aos poucos, devagar. No entanto, agora que ele me tinha contado isso, comecei a pensar no passado e lembrei-me de coisas que a mamã havia dito sobre ele e do tom que ela tinha utilizado para as dizer. Quando comecei a recordar as suas palavras, elas apareceram-me no seu verdadeiro sentido, e consegui perceber a infelicidade e os avisos que me tinha recusado a ouvir anteriormente.

A partir de agora, já não podia continuar a ignorá-los.

- Papá, nunca mais o vou ver? - supliquei eu. Tive de molhar os meus lábios que haviam ficado secos. As minhas mãos traíram-me e começaram a tremer; tive então de as juntar e fazer pressão contra o meu colo.

- Oh, claro que vais. Claro, claro. Esta viagem só vai demorar cerca de um mês e depois passo por lá.

- Passa por lá? - Estas palavras soavam tão idiotas quando proferidas pela boca do meu pai. Ele "passaria por lá"? Pela sua própria casa? Como uma visita, um estranho, iria tocar à campainha e ser recebido pelo mordomo e depois anunciado?

- E hei-de telefonar-te e escrever-te sempre que puder

- acrescentou. Inclinou-se para alcançar a minha mão. Estás a crescer muito rapidamente agora, Leigh. És uma jovem e tens preocupações de jovem mulher. Precisas da tua mãe mais do que alguma vez precisaste, precisas dos conselhos dela e da sua companhia. Vais começar a interessar-te cada vez mais por rapazes e eles por ti.

"Talvez a tua mãe tenha razão num aspecto: eu não devia encher-te a cabeça com negócios e matérias de mecânica, nesta altura da tua vida.

- Oh, não, papá, eu nunca me importei com isso. Eu gostava - protestei eu, com fervor.

- Eu sei. - Acariciou a minha mão. Ansiava por que me abraçasse com tanta força que eu não conseguisse respirar, que me aquecesse os lábios com os seus beijos e que me fizesse sentir que estava tudo bem.

- Oh, papá, eu não quero que se vá embora. Eu não quero que apenas passe por lá - disse eu, por entre soluços. As lágrimas corriam agora livremente pelas minhas faces. Por muito que tentasse, não conseguia conter os soluços. Os meus ombros tremiam. Por fim, o papá abraçou-me e apertou-me nos seus braços com mais força do que nunca, beijou-me no cabelo e afagou-me.

- Vá lá, vá lá, minha querida princesa. Vai ficar tudo bem. Vais ver. Quando ultrapassarmos esta depressão, vai ficar tudo bem. - Abraçava-me e limpava as minhas lágrimas.

- És a filha do patrão. Vais fingir uma cara feliz e vais lá para cima despedir-te das pessoas a meu lado. Fazes isso por mim?

- Claro que faço, papá. - Engoli os meus gritos de choro, mas comecei com soluços ritmados. O papá riu-se. vou conter a respiração - disse eu. - Costuma dar resultado.

- Assim é que é! - Pôs-se de pé. - Leva o tempo que precisares e depois sobe e vem tomar o pequeno-almoço comigo. A seguir, iremos para a ponte observar o capitão Willshaw a entrar com o navio no porto. Está bem? E, aconteça o que acontecer, princesa, lembra-te sempre que eu te adoro. Prometes?

- Prometo, papá. E eu também o adoro.

- É esse o espírito, o espírito do mar. Espero por ti lá em cima. - Depois de ele fechar a porta, fiquei sentada, de olhos fixos.

O meu coração era uma ruína de sofrimento, mas já estava emocionalmente tão exausta que as lágrimas já não saíam, apesar de uma parte de mim própria querer berrar e berrar até ficar seca. Nesse momento, fiquei zangada, furiosa com a mamã pelo que ela fizera. Como era egoísta! Agora via quão egoísta ela sempre havia sido. Como é que ela podia pensar só nela própria a este nível? Como é que ela podia fazer-nos isto, a mim e ao papá? Quem é que estava preocupado se ela era jovem ou se parecia jovem? Ela não iria ser jovem para sempre e nunca iria encontrar nenhum homem que a amasse tanto como o papá, e que ainda a amava.

Oh, era tão ingrata, virando-lhe as costas agora, que os anos tinham passado por ele. Ele tinha-a salvo de uma vida horrível. Eu ouvira estas palavras da sua própria boca, e agora, punha-o de parte, só porque se queria divertir mais. Talvez não fosse demasiado tarde. Talvez conseguisse convencer a mamã a mudar de ideias, pensei. "Ninguém tem de saber que ela foi ao México para tratar daquele horrível divórcio!" Podia regressar e voltar atrás. Quando desse conta de que tinha arruinado a minha vida...

O meu coração afundou-se como uma rocha num lago, pois eu sabia que era evidente que a mamã já tinha considerado todos estes aspectos, e que isso não a tinha impedido de continuar. Tinha-me deixado na Jamaica, não tinha? Isto era demasiado importante para ela. Não iria ouvir nada do que eu tinha para lhe dizer, pensei, e nem que eu chorasse muito, nem mesmo se eu derramasse litros e litros de lágrimas, conseguiria convencê-la de que estava errada.

O papá tinha aceite o facto; não tinha esperanças nenhumas. Levantei-me, devagar, e olhei para a minha imagem no espelho. Estava com um aspecto horrível: a minha cara manchada, os meus olhos injectados de sangue. Ainda estava com soluços, para além disso. Acontecia tudo tão depressa e com tanta intensidade que a dor tornava-se física. Bebi um copo de água e retive a respiração; os soluços não pararam até lavar de novo a cara e estar pronta para ir ter com o papá à sala de jantar. Não tinha apetite, mas faria o que ele me pedisse.

Depois do pequeno-almoço, o papá e eu fomos para a ponte, tal como ele tinha prometido, e ficámos junto do capitão Willshaw a observar como ele e os outros oficiais dirigiam a entrada em doca do The Jilllan. Pensei como seria triste agora, para o papá, pensar no nome do navio. Recordei o dia em que ele me tinha levado a mim e à mamã a dar uma volta, sem nos dizer a razão. Virara em direcção à doca, fingindo ter um pequeno recado para dar e, de repente, ali estava ele à nossa frente... o novo paquete nos preparativos para o baptizado. Tanto eu como a mamã ficámos entusiasmadas, mas só quando o papá virou à direita, para a lateral do barco, é que percebemos porque é que ele tinha insistido tanto para virmos dar essa volta. Ali estavam as palavras, reluzentes, pintadas nas laterais do novo paquete: The Jillian.

Como a mamã tinha dado gritinhos de satisfação e coberto as faces do papá de beijos. Tudo isso parecia tão longínquo, tão distante.

A esta altura, à medida que nos aproximávamos da doca, já conseguia distinguir a multidão que se tinha formado para saudar os que regressavam. Havia uma fila de táxis paralela às limusinas e aos veículos privados. Lá em baixo, no convés, os passageiros acenavam e gritavam para as pessoas que acenavam com chapéus e lenços, tirando fotografias e chamando por eles. Procurei a mamã com os olhos, mas não a vi em lado nenhum. Por fim, avistei um dos nossos carros, mas só lá estava o Roberts, um motorista que trabalhava para nós com frequência, à espera, junto do carro.

- A mamã não me vem buscar, papá?

- Eu imaginei que era provável que ela mandasse o Paul com o carro. Não deve ter muita vontade de me ver.

- Mas, e eu?! Ela devia cá estar como os parentes de todas as outras pessoas.

- Ela só está a evitar uma cena - disse o papá. Continuava a defendê-la, mesmo agora, pensei. Se ela soubesse como ele a amava de verdade. Estava decidida a contar-lhe.

- Não vem mesmo para casa, papá? - perguntei calmamente. Eu sabia que ele contava comigo para não chorar e não expor os nossos problemas íntimos à frente dos passageiros e dos tripulantes.

- Não. Ainda tenho coisas para fazer. Vai andando. Eu passo por lá mais tarde.

Lá estava aquela expressão de novo: "Passo por lá." Acenei com a cabeça prontamente. Quando por fim o navio já estava atracado e as pessoas tiveram autorização para desembarcar, voltei-me para o papá. Ele apenas fechou e abriu os olhos e depois assentiu silenciosamente.

- Vai-te embora - disse, com suavidade. - Eu fico bem.

- Papá. - A minha garganta ficou bloqueada. Voltou a acenar com a cabeça, em direcção à porta. Percebi que ele também estava a esforçar-se ao máximo para se controlar. Deu-me um beijo rápido na face. Comecei a tentar abraçá-lo, mas ele afastou-me e então eu dirigi-me para a porta e desci para o convés.

A manhã estava parcialmente nublada, mas a mim parecia-me triste e cinzenta. Sentia a brisa do mar contra as minhas faces, como o hálito do boneco de neve, a gelar instantaneamente as minhas lágrimas quentes. Enrolei-me mais no casaco e comecei a andar em direcção à prancha de desembarque, quando senti alguém a puxar-me o braço.

Era a Clara Spenser e a sua irmã Melanie. Os pais encontravam-se mesmo atrás delas e estavam todos tão juntinhos, a mãe descansando a mão na mão da Melanie. Era como um retrato de família, por cima da legenda A FAMÍLIA FELIZ.

- Adeus, Leigh - despediu-se a Clara. - Escrever-te-emos.

- Adeus. Eu responderei - prometi e comecei a afastar-me. Queria fugir delas.

- Leigh! - gritou a Clara. - Foi divertido, mas não é maravilhoso estar outra vez em casa?

Acenei apenas com a mão e fui a correr para o carro, tão depressa quanto consegui. As minhas malas já haviam sido carregadas.

A minha mãe está bem? - perguntei eu ao Roberts.

Talvez estivesse tão preocupada pelo que tinha feito, que caíra doente na cama, em casa, pensei, com esperança.

Oh, sim. Ela telefonou-me hoje de manhã e parecia óptima. Teve sorte em estar fora. Esta semana tem estado tanto frio. Divertiu-se? - perguntou ele, quando viu que eu não respondia.

- Sim - respondi e virei-me para trás enquanto o carro arrancava. Consegui ver o papá na ponte a falar com o capitão Willshaw, mas ele parou a meio da conversa e olhou na minha direcção. Disse-lhe adeus da janela. Ele levantou a mão devagar e manteve-a levantada, como uma bandeira de capitulação e derrota.

O Clarence saiu para a rua para me receber e para levar a minha bagagem mal o carro começou a aparecer; a mamã nãose via em parte nenhuma. Entrei dentro de casa a correr e chamei por ela, exigindo a sua presença.

- MAMÃ! MAMÃ! ONDE ESTÁS?

O Clarence subiu atrás de mim carregando as minhas malas.

- Mistress VanVoreen foi dar uma volta à praia hoje de manhã - informou o Clarence. - Ainda não voltou.

- O quê? À praia? Mas... ela não sabia que eu voltava esta manhã? - descarreguei eu em cima do Clarence. Este parecia espantado pela fúria com a qual eu exigia respostas às minhas perguntas.

- vou levar as malas para o seu quarto, Miss Leigh. Começou a subir as escadas. Confusa, fiquei ali parada por uns momentos. O meu olhar fixou-se na porta do escritório do papá. Não iria usá-lo mais, pensei, com dores na garganta. O que é que a mamã iria fazer agora? Encerrá-lo? Eu sabia como ela detestava aquele aposento.

No entanto, para mim, tornou-se de repente tão importante como uma igreja. Entrei no escritório e fiquei a observar as coisas do papá. Inalei os cheiros... Ainda se sentia o aroma do tabaco dele, tal como o cheiro da madeira, da mobília antiga e da velha carpete. Apesar de muitas destas coisas estarem desgastadas e desbotadas, eram bonitas aos meus olhos, pois eram do papá.

Na minha mente conseguia imaginá-lo, inclinado sobre a sua secretária, a ténue coluna de fumo proveniente do seu cachimbo trabalhado, o primeiro cachimbo que o seu pai lhe havia oferecido. No canto direito da frente da sua secretária estava um modelo do The Jillian. Tinha tanto orgulho nele, ficara tão orgulhoso de lhe dar o nome da mamã. O resto da sua secretária estava tão desordenada e desorganizada como sempre, mas agora, essa imagem animava-me, pois significava que ele teria de voltar brevemente para levar os papéis mais importantes.

Saí dali, devagar, e foi devagar que subi as escadas. O Clarence estava a descer. Parecia ansioso por se afastar de mim.

- Está tudo no seu quarto, Miss Leigh.

- Obrigada, Clarence. Oh, Clarence - chamei eu, depois de ele ter passado por mim.

- Diga?

- A minha mãe não deixou nenhum recado em relação à hora em que voltava?

- Não.

- Obrigada, Clarence. - Continuei a subir as escadas e fui para o meu quarto.

Como o meu mundo se me afigurava diferente agora. Estivera numa ânsia enorme por voltar depressa para casa, por voltar para o meu precioso quarto e por adormecer na minha própria cama, a afagar os animais de pelúcia que me tinham oferecido ao longo dos anos. Estivera desejosa de telefonar às minhas amigas e de saber todas as novidades sobre o que se havia passado enquanto eu tinha estado no cruzeiro. Quisera ter-lhes falado sobre o Fulton e o Raymond, e os espectáculos e os bailes, e que tinha sido beijada por um rapaz e que havia trocado moradas com os dois. Mas nada disso importava agora; nada disso voltaria a ter importância.

Senti-me como se tivesse sido hipnotizada. Desfiz as malas mecanicamente, examinando as minhas roupas e separando o que tinha de ir para limpar e lavar do resto. Depois, sentei-me em cima da minha cama, como que ofuscada. Por fim, movida por curiosidade e pelo aborrecimento, levantei-me e fui à suite da mamã.

Ainda não tinha voltado. Estava tudo na mesma. O seu enorme toucador continuava atafulhado de cremes e cosméticos, de escovas e pentes.

E não tinha guardado a fotografia do seu casamento com o papá! Ainda lá estavam os dois, enquadrados por aquela moldura de ouro maciço, ambos com um aspecto jovem e feliz, a mamã tão bonita e o papá tão bem-parecido e distinto.

A palavra "divórcio" soava-me tão mística. Tinha imaginado mais ou menos, que, agora que a mamã estava divorciada do papá, a própria casa estaria sob o efeito de um encantamento, como se o divórcio nos tivesse posto nas mãos de algum feiticeiro. A casa estaria diferente; os empregados estariam diferentes; a mamã e o papá estariam certamente diferentes; e eu... eu ainda receava o que podia vir a acontecer-me.

Comecei a andar em direcção à saída da suite; parei na sala de espera, quando qualquer coisa em cima da escrivaninha da mamã me chamou a atenção. Parecia uma pilha de cadernos de amostras de uma tipografia. Não havia nenhuma ocasião para festejar brevemente, nenhum aniversário e, de certeza, nenhuma comemoração. O que é que a mamã estava a fazer? A planear anunciar o seu divórcio? Aproximei-me da escrivaninha e abri o primeiro caderno de amostras.

Ao princípio, não fez nenhum sentido, mas o meu coração apercebeu-se mais depressa do que a minha mente, pois começou a palpitar com tanta força que me cortou a respiração. As palpitações ressoavam que nem tambores na minha cabeça. Engoli as minhas lágrimas, as lágrimas que ameaçavam romper desde o momento em que entrara em casa, e continuei a vasculhar os cadernos. Eram todos iguais.

Todos continham amostras de convites de casamento.

 

UMA NOVA CONFIDENTE

A mamã só chegou a casa horas depois. Fui para o meu quarto e esperei, esperei, até que a ouvi entrar em casa. As suas gargalhadas precediam os seus passos na escadaria. Não podia imaginar como, ou porque é que ela estaria tão bem-disposta. O mundo desmoronava-se à nossa volta e a voz dela ecoava como uma melodia, como se fosse a manhã do dia de Natal ou a manhã do dia do seu aniversário. Saí do meu quarto no preciso momento em que ela alcançou o fim da escadaria.

Estava tão bonita como sempre, talvez a sua beleza tivesse florescido desde que me deixara a mim e ao papá. Parecia tonificada, plena de vida e energia, os olhos cintilavam, o cabelo dourado e suave brilhava sob o gorro branco de pele. Vestia o seu casaco branco de pele de marta, que o papá tinha importado da Rússia. As faces estavam rosadas, tendo sido acariciadas pelo ar fresco de Novembro. Não me tinha apercebido, até a ver, de como desejara vê-la adoentada e pálida, arrasada pela decisão que tomara.

A sua explosão de exuberância e o seu brilho confundiram-me. Era capaz de ficar ali especada a olhar para ela. Mas a sua cara não estava deformada, os seus olhos não estavam vermelhos, muito pelo contrário, parecia que tinha acabado de ser libertada de uma masmorra escura e triste, dentro de um castelo, que lhe tinham tirado as correntes e que estava livre para voltar a ser jovem, encantadora e viver de novo. Interpretou mal a minha expressão de surpresa e tristeza.

- Oh, Leigh, desculpa não estar cá quando chegaste, mas não podes imaginar o trânsito que estava. - Sorriu, como se estivesse à espera que eu esquecesse instantaneamente todas as coisas horríveis que se estavam a passar.

- Porque é que não foi ao cais? Onde esteve?

Onde estive? Em Farthy - cantarolou e começou a andar em direcção à suite dela. - Sabes que não se pode confiar nas horas de chegada dos barcos... um atraso de meia hora de uma hora. Há sempre alguma coisa que corre mal. Estava mesmo a ver-me encafuada naquele carro abafado, à espera, à espera, à espera. - Voltou-se para trás para esboçar um sorriso rápido. - Achei que não te irias importar, e, além disso, hoje estava-se muito melhor na praia - prosseguiu, enquanto tirava o chapéu e o casaco. - Lá, o céu é completamente azul - acrescentou e atirou o casaco de pele para cima de uma das cadeiras estilo rococó. - Mas, para mim, o céu é sempre azul naquele lugar, mesmo quando está cinzento - sussurrou, fazendo com que a sua frase soasse como palavras de uma canção de amor.

Então, ainda com o chapéu na cabeça, caiu sobre a cama dela e atirou com os braços para o lado, enquanto se balançava em cima do colchão. Nunca a tinha visto tão alegre. Parecia anos mais nova, como uma das minhas amigas, tola e sempre a dar risadinhas. Os seus olhos cintilavam conforme sorria para o tecto. Fiquei ali de boca aberta, fitando-a. Seria possível que ela não soubesse que o papá me tinha contado tudo?

- O papá contou-me do seu telegrama - proferi eu, abruptamente.

Ela olhou-me, o sorriso a esmorecer lentamente, o brilho dos seus olhos a morrer. O vigor e o brilho apagaram-se do seu rosto. Era como se estivesse a voltar à terra, a voltar à realidade. Os seus olhos esfriaram, a sua boca comprimiu-se. Respirou fundo e soergueu-se, devagar e com muito esforço. Então, tirou o chapéu, desprendeu o cabelo e abanou a cabeça para deixar o cabelo solto.

- Era suposto ser eu a contar-te - disse ela, com uma calma notável. - Mas não me surpreende nada. Tenho a certeza de que ele contou tudo destorcido, como se se tratasse da falência de uma companhia. O que é que ele te disse, que o nosso casamento tinha aberto falência?

- Oh, não, mamã, o papá está com o coração despedaçado - gritei eu. Ela fez um sorriso afectado, levantou-se e dirigiu-se para a mesinha do toucador. - Foi mesmo ao México conseguir o divórcio? - Uma parte estúpida e infantil de mim mesma ainda tinha esperanças de que talvez não fosse tudo verdade.

- Sim, Leigh, fui. E não me arrependo. - senti as palavras dela como agulhas a espetarem-se por todo o corpo.

- Mas porque é que fez isso? Como pôde fazer semelhante coisa? - berrei eu, furiosa com a minha mãe. Detestei o pouco que parecia preocupá-la o facto de eu ter sido afectada pela sua decisão egoísta. Sentou-se e voltou-se para mim.

- Leigh, estava à espera que tivesses uma reacção adulta em relação a tudo isto - disse, com calma, mas com firmeza. - Já há algum tempo que tenho vontade de tomar esta decisão, mas aguentei até achar que tinhas idade suficiente para lidar com este assunto de um modo mais maduro. Passei por meses, anos de sofrimento, até seres suficientemente crescida para poderes perceber porque é que eu estava a dar este passo - acrescentou ela, e abanou a cabeça, como se tivesse conseguido escapar de baixo de uma carga pesada qualquer.

- Mas eu não percebo - disse eu, cortando-lhe a palavra. - Nunca hei-de perceber. Nunca. - Esperava que a mamã sentisse as minhas palavras como punhais. Ela endireitou os ombros e os seus olhos dilataram-se, flamejantes.

- O que é que o teu pai te contou exactamente?

- Que a mamã nos deixou para pensar na sua vida e que recebeu um telegrama seu, dizendo que tinha ido de avião até ao México para tratar do divórcio.

- E explicou-te porquê?

- Disse que estava muito desapontada com ele e que ainda era jovem e queria uma oportunidade para ser feliz. Mas porque é que não pode ser feliz com o papá? - perguntei eu, num gemido.

- Ora, Leigh, tens de tentar perceber o meu ponto de vista. Devia ser mais fácil para ti perceber, agora que tu própria te estás a tornar numa mulher.

"Tu não sabes, não podes imaginar o que estes últimos anos têm sido para mim. Sempre que o teu pai me levava num desses cruzeiros, era porque queria dar uma boa impressão... usar-me para seu próprio benefício. Tenho-me sentido como um pássaro na gaiola, encerrada numa gaiola dourada, sim, mas não obstante, aprisionada.

Aprisionada! O que é que ela queria dizer? Ela podia ir e vir como queria, comprar tudo o que queria, fazer o que queria. Tínhamos uma casa tão bonita; não conseguia imaginar ninguém que considerasse a nossa casa uma prisão.

- Os outros passageiros têm pena de mim, Leigh. Eu vejo esse sentimento nas suas caras. - Passou com os dedos furiosamente pelo cabelo. - Eles sabem que eu raramente posso fazer o que eles passam a vida a fazer. Odeio a pena que eles me dispensam! Odeio!

Cerrou os punhos e deu socos nas coxas.

Tem sido assim desde há anos - prosseguiu -, e eu tenho tentado manter a minha sanidade mental para que pudesses crescer no seio de um lar feliz mas não consigo fazer mais sacrifícios. Não faço! Não vou abdicar do que me é tão precioso e efémero: a minha juventude e a minha beleza. Não vou murchar como uma flor afastada do sol.

"O meu lugar é lá fora, nas pistas de dança, nas óperas e nos teatros, nas estâncias de férias balneares, nas festas, com fotógrafos a tirarem fotografias minhas para as colunas da sociedade.

"Fazes ideia da quantidade de acontecimentos sociais aos quais tive de faltar porque o teu pai estava demasiado ocupado para ir comigo? Fazes? - Nesse momento, respirou fundo. As suas faces estavam escarlates e os olhos rolavam nas órbitas, de tal modo que me assustei. Fiquei aturdida com o ataque dela. Nunca imaginara que ela pudesse acolher tanto ressentimento e desespero.

Queria odiá-la pelo que estava a fazer ao papá e a mim, mas, ao vê-la nesse estado, com os olhos a saltarem para fora das órbitas, o cabelo solto, o rosto vermelho de frustração, a única coisa que me vinha à cabeça era que esta criatura assustadora não era a minha mãe.

- O papá está arrependido disso tudo. Está mesmo.

- Tenho a certeza que sim... neste momento, mas amanhã, uma crise qualquer nos negócios vai voltar a roubar-lhe toda a sua atenção e ele esquece-se do que aconteceu entre nós.

- Não, mamã, ele não se esquecerá. Não pode deixá-lo tentar de novo? Pode? - supliquei eu.

- Já o deixei tentar de novo, Leigh. Muitas, muitas vezes. Esta história não é recente. Começou quase mal nos casámos.

"Oh - disse ela, a suspirar, encostando-se -, não foi tão mau nos primeiros anos, pois tu nasceste logo e eu tive de cuidar de ti. O teu pai era muito atencioso e bastante dedicado. É óbvio que era doze anos mais novo então, mas tens de ter em conta que, já nessa altura, ele tinha uma idade avançada. Aposto em como nunca te apercebeste de que ele tem idade suficiente para ser meu pai.

A ideia era tão ridícula e estranha que quase me ri, mas ela nem esboçou um sorriso. O papá, pai dela? Meu avô?

- A idade pesa-lhe. Admito que, em parte, a culpa é minha, por ter concordado em casar com ele, mas eu era tão jovem e infeliz que nem pensei como seria no futuro.

"E o teu pai fez-me todo o tipo de promessas... promessas que nunca cumpriu... promessas que nem se lembra de ter feito!

- Mas a mamã estava tão apaixonada... Foi mesmo a mamã que me disse. - O meu pequeno salva-vidas de esperança estava-se a afundar rapidamente. Cada frase que ela dizia abria mais buracos.

- Eu era jovem. Nessa altura não sabia o que era o amor. - Ela sorriu. - Mas agora... agora sei. Plenamente

- prosseguiu, e as suas faces retomaram o brilho e o fulgor.

- Oh, Leigh... Leigh - gritava ela -, não me odeies, mas eu estou apaixonada, apaixonada de verdade, profundamente apaixonada.

- O quê? - Olhei para trás, em direcção à sala de espera da suite e lembrei-me dos convites. - Apaixonou-se por outro homem? Aquelas amostras de convites... - balbuciei eu, caindo em mim, como se estivesse a levar um banho de chuva gelada.

- Tu viste-os? Assenti silenciosamente.

- Bem, já agora conto-te tudo - disse, endireitando-se com firmeza. - Estou apaixonada pelo Tony Tatterton e ele está doido de paixão por mim, e vamo-nos casar no Natal e viver em Farthy! - Nesse momento as feições que me tinham parecido uma versão monstruosa da minha linda mamã descontraíram-se. Então sorriu, com os olhos plenos de felicidade.

Apesar de eu ter previsto qualquer coisa deste tipo, ouvi-la de facto proferir aquelas palavras, teve um efeito devastador. Senti a minha cara branca e vazia. Uma combinação de choque e sofrimento enfraqueceu-me as pernas e prendeu-me os pés ao chão. Não conseguia falar, não conseguia engolir. Acho que fiquei sem respiração e o meu coração gelou. Era como se duas mãos gigantescas constituídas por gelo me tivessem apertado o peito.

- Não deves odiar-me, Leigh, e tens de tentar perceber. Leigh, por favor. Estou a falar contigo de mulher para mulher.

- Mas, mamã, como é que pôde apaixonar-se por outra pessoa? - A minha mente estava a funcionar a mil à hora, tentando entender. Quando recordei a maneira como a mamã e o Tony tinham dançado juntos no baile de bon voyage; cada momento em que ele a tivera nos braços, cada olhar que ele lhe dirigira, todos aqueles sinais tinham uma acepção diferente, a sua verdadeira acepção. Eu sentira qualquer coisa quando fora a Farthy com ela e reparara no modo como caminhavam juntos e sussurravam, mas não me tinha apercebido do que sentira. "Porque será que o coração se apercebe das coisas muito mais rapidamente do que a mente?", pensei para mim mesma. Talvez eu não quisesse saber, não quisesse perceber. Agora, não tinha hipótese.

- Não é difícil perceber porquê ou como isto tudo aconteceu, Leigh. O Tony adora-me, venera-me. Ele diz que eu sou como uma deusa mítica que desceu dos céus para fazer com que a vida dele não seja em vão, pois até os homens com todo aquele dinheiro e poder se sentem incompletos se não têm uma mulher a quem amar e que os ame a eles.

"O amor, o verdadeiro amor, é que enche a nossa vida, Leigh. Hás-de perceber isto, e, quando perceberes, vais valorizar tudo o que estou a dizer-te.

"Posso contar-te mais? Vais ouvir como uma confidente, como uma amiga íntima? Nunca tive uma boa amiga a sério. Cresci com duas horríveis irmãs que tinham tantos ciúmes de mim... Eu nunca lhes diria alguma coisa boa ou partilharia um sentimento bom com elas. Leigh?

- Eu sou a sua melhor amiga. Eu... só...

- Ah, bom - exclamou ela e os seus olhos ganharam um olhar distante. - A primeira vez que vi o Tony e que ele me viu, foi como se as nuvens tivessem sido afastadas do céu azul. Tudo à minha volta se tornou mais vívido, mais claro. As cores brilhavam com mais força, os pássaros cantavam, e a brisa, mesmo fria, era refrescante e suave. Ansiava por acordar todas as manhãs e ir para Farthy, só para estar ao pé dele, ouvir a sua voz e sentir os seus olhos em mim.

"Isto é que é amor, Leigh, o verdadeiro amor.

Estendeu-me os braços. As suas palavras eram tão mágicas, os seus pensamentos tão maravilhosos, que eu não consegui deixar de me aproximar até ela pegar na minha mão e olhar-me nos olhos.

- Eu sabia que ele me tinha aberto o seu coração e que eu havia encontrado um lugar nesse mesmo coração. Sempre que ele me dirigia a palavra, a sua voz tornava-se tão terna, tão amorosa. Via-se desejo nos seus olhos, o que me emocionava - prosseguiu ela, confessando-se como uma adolescente que tinha acabado de encontrar o seu primeiro amor.

No entanto, quem estava a falar era a mamã... a mamã... e para mim!

- Oh, ao princípio tentei resistir, Leigh. Não fui infiel ao teu pai. Disse para mim própria vezes sem conta que era uma mulher casada, que tinha de pensar no meu marido e na minha filha, mas, à medida que o Tony e eu nos íamos aproximando um do outro, o meu autodomínio foi-se tornando mais fraco até eu não poder continuar a negar o que estava a acontecer.

"Aconteceu uma noite, depois de ter terminado o meu trabalho e de me ter arranjado para voltar para casa. Estava um dia quente, um fim de tarde quente. O Tony pediu-me para ir dar uma volta com ele para espreitar o mar. Eu hesitei, mas ele suplicou, prometendo que não demorávamos nada. Eu cedi e caminhámos até uma pequena colina, de onde ficámos a ver o mar. O Sol estava a pôr-se e era vermelho, o fundo tocava o oceano. A imagem era de cortar a respiração. De repente, senti a sua mão na minha, e, quando ele me tocou, o meu coração gritou... não... exigiu que fosse ouvido.

"Confessei-lhe a minha infelicidade, mas disse-lhe que não podia precipitar-me. Ele foi muito compreensivo; porém, estava determinado.

"Tentei por três ou quatro vezes explicar as coisas ao teu pai, mas ele ou ignorou, ou nem sequer ouviu. Só pensa nos negócios. Por fim, no baile de bon voyage, fiz uma promessa ao Tony. Mesmo assim, tentei quebrá-la. Sofri tanto naquela viagem para a Jamaica, mas o amor não nos é negado, quando é verdadeiro e sincero, como o é entre o Tony e eu, e no fim percebi que tinha de agir drasticamente ou definharia na escuridão como uma flor.

"Vais fazer um esforço para perceber? Vais, Leigh? Pode acontecer contigo um dia e podes precisar que alguém que ames, e que te ame a ti, perceba. - Apertou-me a mão e suplicou-me com os olhos.

- Oh, mamã. Está a acontecer tudo tão depressa. Para si pode não ter sido de um dia para o outro, mas para mim foi.

- Eu sei disso, Leigh. Eu entendo o que estás a passar, mas também vou precisar de ajuda. Preciso do teu apoio e do teu amor. Podes ser mais do que minha filha? Podes ser a minha melhor amiga, também?

Os seus olhos estavam vítreos, cheios de lágrimas, mas calorosos. Não consegui deixar de me chegar mais perto. Ela beijou-me na face. - vou tentar. Mas, mamã, o que é que vai acontecer ao papá?

- Não lhe vai acontecer nada, Leigh. Acredita em mim. Ele tem o negócio dele que o mantém ocupado dia e noite. Tu vais vê-lo e ele vai ver-te tantas vezes como agora, o que não é muito - acrescentou, secamente.

Eu não disse nada. Ela até podia ter razão em relação a isso, mas, mesmo assim, quando ouvi aquelas palavras da boca dela, senti-as como uma espada a atravessar-me o coração.

- E, Leigh, mais importante que tudo, vais tentar gostar do Tony? Vais dar-lhe uma oportunidade? Se o fizeres, vais ver como ele é amoroso e vais perceber porque é que eu o amo tanto.

Não conseguia controlar os meus sentimentos. Sempre que ela dizia que amava o Tony, eu pensava no papá e em como toda esta situação era cruel. Quando pensava no Tony, as minhas borboletas no estômago batiam as asas, despertavam do seu sono inquieto. E foi então que, sentada ali, fez-se luz para mim, a ideia afundou-se em mim como água no cimento: o Tony era o culpado de tudo isto. Eu odiava o Tony

"Oh, porque é que este homem rico e atraente teve de se intrometer na vida da mamã e arrebatá-la tão depressa e tão profundamente?" O meu maior desejo era fazê-lo arrepender-se por ter despedaçado o meu mundo feliz, o meu mundo de amor.

- Leigh, fazes isso? - repetiu a mamã; a sua voz já soava um pouco desesperada. Hoje, mais uma vez, os desejos dela entravam em combate com os meus e iam ganhar. Eu assenti. - Obrigada. Oh, muito obrigada, querida.

- Abraçou-me e eu estava tão faminta por essa afeição, tão necessitada do calor que o contacto dela me proporcionava que sabia que, se ela me pedisse qualquer coisa nesse momento, eu acederia. Mas não conseguia deixar de me sentir fria, inanimada, nos seus braços. Era horrível da minha parte concordar com aquilo. Estava a trair o papá.

- E há ainda outra coisa que tenho de te pedir, Leigh, só uma coisa... Um segredo que deve ser guardado entre duas grandes amigas como nós agora somos, e eu confio em ti para o guardares. Prometes manter segredo? Um segredo entre amigas do peito - acrescentou ela, pondo a mão sobre os seios.

"O que é que poderia ser?", pensei.

- Prometo, mamã.

- Óptimo. - Inclinou-se para mim e segredou-me, como se estivessem outras pessoas no quarto. - O Tony não sabe a minha verdadeira idade, mesmo agora, que ele se declarou e eu aceitei. Não quero que ele saiba. Tal como te disse no caminho ao regressarmos de Farthy, ele pensa que eu tenho vinte e oito anos.

- Nunca vai dizer-lhe a verdade?

- Um dia, mas não agora. Está bem?

Eu acenei que sim, mas pensei: se eles estavam tão apaixonados, qual era a necessidade de mentir? Estarmos apaixonados, amarmos de verdade, não queria dizer que não haveria mentiras entre nós, que confiaríamos um no outro tão cegamente que nada nos poderia afastar?

- Obrigada, Leigh. Eu sabia que ias perceber. Eu sabia que eras adulta. Eu disse ao Tony. A propósito, ele gosta muito de ti. Está sempre a falar de ti, de como és amorosa, de como o Troy gosta de ti e de como ele gostou do tempo que passaram juntos, quando foram passear os três para a praia.

"Mal posso esperar para estarmos todos juntos em Farthy. É uma vida de sonho a tornar-se realidade, Leigh. Vais ver. Vais ser uma princesa, uma verdadeira "debutante".

Pôs-se de pé. Eu fiquei calada.

- vou tomar um banho de espuma quente, pois já posso descontrair-me, agora que sei que a minha menina é compreensiva e gosta muito de mim. Depois, vamo-nos sentar e conversar e vais contar-me tudo o que se passou na Jamaica e tudo o que andaste a fazer. Está bem? - Eu fiz sinal que sim e lembrei-me da prenda dela.

- Comprei-lhe uma prenda no mercado da rua, mamã.

- A sério? Foi amoroso da tua parte pensares em mim, mesmo depois de eu te abandonar daquela maneira. És uma criança tão calorosa e maravilhosa, Leigh. Tenho tanta sorte em ter-te.

- vou buscá-la - exclamei e fui a correr ao meu quarto.

- Não é muito - disse-lhe, quando voltei -, mas achei que era bonito.

Ela desembrulhou-o rapidamente.

- Adoro prendas, adoro surpresas, independentemente do preço. O Tony também é assim. Quer oferecer-me qualquer coisa nova e bonita todos os dias da nossa vida em comum - disse ela, aos gritínhos. Tendo em conta as promessas que tinha feito, tentei ao máximo não me tornar insensível à sua recém-adquirida felicidade. Ela observou o lenço de seda pintado à mão. - Oh, é óptimo, Leigh. Foi de bom gosto teres escolhido este. Condiz com tantos fatos meus. Desculpa não ter lá estado contigo, mas compensar-te-ei de mil maneiras. Vais ver.

Ofereci ao papá uma bengala esculpida à mão - comentei eu, com brandura.

- Que bom.

E foi para a casa de banho a correr. Fiquei ali parada por um momento a ouvi-la cantarolar por entre dentes e depois saí.

O papá chegou pouco antes do jantar. A mamã ainda estava na suite dela a falar ao telefone com as amigas e a arranjar as unhas e o cabelo. Ainda não tinha tido oportunidade de conversar com ela sobre as irmãs Spenser e sobre o Fulton e o Raymond, mas esperava contar-lhe tudo ao jantar. De repente, ouvi a porta da frente a abrir e a voz do Clarence: "Boa tarde, senhor VanVoreen."

"É o papá!", pensei. E saltei da cama. Quando desci, ele já estava no escritório a juntar uns papéis.

- Papá!

- Olá, Leigh. Já estás instalada?

- Sim. A mamã está cá. Está lá em cima.

- Estou a ver. - Voltou-se bruscamente para os papéis.

- Vai cá ficar algum tempo? - Senti pena dele. Tinha um aspecto cansado e desgastado, mais velho do que nunca e eu só pensava em como ele ficaria ainda mais em baixo quando descobrisse que a mamã estava apaixonada pelo Tony Tatterton. Talvez ainda tivesse uma réstia de esperança, como eu, mesmo sabendo que ela tinha conseguido o divórcio.

- Não, Leigh. Tenho de voltar para o meu escritório e preparar-me para a próxima viagem.

- Mas onde é que vai dormir hoje à noite?

- Há quartos no Hilton. Não te preocupes comigo. Quero que tomes bem conta de ti e... - Elevou os olhos, como se pudessem ver através do tecto a suite da mamã. - E da tua mãe. - Tornou aos papéis, seleccionou dossiers, abriu gavetas de móveis de arquivos e começou a encher uma pasta.

Eu estava sentada no sofá de cabedal a observá-lo e sentia-me muito mal. Era como se estivesse a traí-lo por não lhe contar o que sabia sobre a mamã e o Tony.

Sentia-me dividida ao meio. Se sorria para a mamã ou me sentia bem com ela, não conseguia deixar de me sentir culpada por sentir que estava a magoar o papá, e o mesmo acontecia se eu sorria para ele e me sentia bem com ele. A mamã odiar-me-ia. E seria ainda pior, de certeza, se eu desvendasse ao papá qualquer segredo dela. O que é que eu devia fazer?

O papá reparou na minha expressão preocupada.

- Então, então - confortou-me ele. - Não deves consumir-te a ti própria. Já te disse que, uma vez ultrapassada esta tempestade, voltaremos a navegar com visibilidade. Luta contra o vento. Sê forte. Estiveste no meio de marinheiros e de homens do mar tempo de mais para te comportares de maneira diferente.

- vou tentar, papá.

- Assim é que se fala. Bem - disse ele olhando à sua volta -, acho que já tenho o que preciso por agora. - Fechou a pasta. O meu coração começou a pulsar. Achava que não tinha força suficiente nas pernas para me levantar. Quando começou a contornar a secretária, parou, abruptamente, e a expressão terna e amorosa da sua cara alterou-se bruscamente, dando lugar a um olhar firme, zangado até. Girei sobre mim mesma. A mamã estava à porta.

- Olá, Cleave - saudou ela.

- Só passei por aqui para vir buscar alguns dos meus papéis.

- Ainda bem que o fizeste - disse ela. - Gostava de discutir alguns assuntos contigo. Ia deixar para mais tarde, mas talvez este momento seja tão bom como qualquer outro.

- Sim - concordou ele.

- Leigh, dás-nos licença por um momento, por favor? pediu a mamã e depois sorriu com frieza. Olhei para o papá. Ele assentiu com a cabeça e, de súbito, as minhas pernas, que há pouco sentira como dois bocados de esparguete cozido de mais, reencontraram a sua firmeza, e levantei-me, saindo apressadamente do escritório. Virei-me para ver a mamã a fechar a porta.

Queria voltar para trás e pôr-me à escuta junto à porta; porém, tinha medo que me descobrissem.

Parecia que estava à espera há horas, mas, por fim, a mamã veio buscar-me. Olhei para trás dela, à espera de ver o papá. Talvez se tivessem entendido e decidido dar uma nova oportunidade à nossa família. Talvez o papá tivesse proferido as palavras mágicas e tivessem recordado ambos os primeiros tempos que haviam passado juntos, quando estavam muito apaixonados. Esperava por aquelas palavras; rezava por elas.

Aposto em como estás esfomeada - disse a mamã. -

Eu cá estou.

O papá vai jantar connosco? - perguntei, com esperanças..

Não, é como nos tempos antigos - retorquiu ela, secamente. - Já se foi embora para os estaleiros.

- Embora? Ele foi-se embora? - gritei eu. "Oh, de certeza que ele não saiu sem se despedir de mim, sem me dar um último beijo..."

- Sim, ele já se foi embora. Vamos jantar. - Ela afastou-se.

"Mas ele não pode ter-se ido embora", gritava eu na minha cabeça. Fui a correr atrás dela, mas em vez de ir directa à sala de jantar, dirigi-me ao escritório dele.

A porta encontrava-se fechada e, quando a abri, olhei para dentro de uma sala escura. A mamã esperava no átrio de entrada. Dei meia volta com as lágrimas a correrem pelas minhas faces abaixo.

- Onde é que ele está?

- Já te disse, Leigh. Saiu.

- Mas ele não... ele não me deu um beijo de despedida

- berrei eu.

- Ele não estava com disposição de beijar ninguém. Agora por favor, querida. Domina-te. Vai lavar a cara. Hefresca-te. Não queremos mostrar aos empregados que estamos infelizes, pois não? Depois de teres alguma coisa no estômago, vais sentir-te logo muito melhor. Tenho a certeza.

- Não tenho fome - gritei e corri para a escadaria.

- Leigh!

Não me voltei. Não conseguia. Subi as escadas a correr e fui para o meu quarto. Precipitei-me para a janela, com esperança de ainda ver o meu pai a sair de casa; a rua lá em baixo, porém, estava vazia, os candeeiros da rua projectavam sombras compridas, escuras e solitárias nos passeios.

Cerrei os punhos para afastar os meus olhos dali e depois olhei à volta no interior do meu quarto. Olhei para todas as coisas que eu tinha e que me faziam lembrar o papá, olhei para a sua fotografia, para os modelos de barcos. Estava tudo acabado. Esta vida que eu tinha conhecido seguira o seu caminho por essa noite vazia fora.

O papá, quando conhecia alguém, em especial alguém de quem gostava, costumava dizer esta frase:

"Não sejamos como dois barcos passageiros na noite. Volte sempre. Passe por cá."

"Oh, papá", pensei, "será que nós agora nos vamos tornar dois barcos passageiros na noite?"

Os dias passaram. Eu voltei para a escola e descrevi o meu passeio à Jamaica a todas as minhas amigas. Estavam todas interessadas nas minhas histórias sobre o Fulton e o Raymond, e, uma semana depois da minha chegada, recebi uma carta simpática do Raymond. Levei-a comigo para a escola para mostrar às minhas amigas, principalmente àquelas que tinham ficado mais cépticas quando lhes contara dos dois rapazes mais velhos que diziam que eu podia passar por uma rapariga do secundário.

A maior parte da carta do Raymond falava sobre o trabalho dele na escola, também referia que tinha gostado muito de estar comigo e, no fim, assinara: "Afectuosamente, Raymond."

Perto do final da primeira semana, o papá telefonou-me para me contar os seus planos para a próxima viagem. Havia muito barulho à volta dele no escritório, e, apesar de a conversa ter sido curta, fomos interrompidos várias vezes. Ele disse que ia tentar escrever ou telefonar logo que chegasse às ilhas Canárias. Oh, como sentia a falta dele e como tentara não odiar a mamã por o afastar da minha vida.

Algumas noites mais tarde, a mamã veio ao meu quarto anunciar que íamos celebrar o dia de Acção de Graças na Mansão Farthinggale.

- Vai ser o jantar de Acção de Graças mais espectacular que já tivemos. Vão estar presentes muitos dos amigos abastados do Tony e ele convidou o Patrick e a Clarissa Darrow, os editores das minhas ilustrações, e, claro, a Elisabeth Deveroe, a decoradora, e o marido dela. Assim, estaremos com pessoas que já conhecemos. Não é bom?

- Mas, mamã, nós sempre celebrámos o dia de Acção de Graças aqui. - Não me tinha ocorrido até esse momento que o papá não estaria em casa, connosco, nesse dia. Seria a primeira vez, pois, por onde quer que estivesse em negócios, ou fosse o que fosse que estivesse a fazer, arranjava sempre maneira de estar em casa para o jantar de Acção de Graças.

- Eu sei, mas eu quero estar com o Tony e ele todos os anos dá uma grande festa. Comeremos faisão em vez de peru, champanhe e sobremesas que ultrapassam a nossa imaginação. Lembra-te de como o cozinheiro dele faz coisas boas.

- Mas sem peru, não será Acção de Graças.

- Oh, haverá tantas outras comidas deliciosas, que nem darás pela falta do peru. Já sei o que faremos - prosseguiu - vamos comprar vestidos novos para esta ocasião.

Mas eu ainda não estreei a maior parte da roupa que me ofereceu pelos anos.

- Isto é diferente - replicou ela, voltando-se devagar, pensativa. - Nós temos de sobressair... Vai buscar o teu casaco - ordenou bruscamente, enquanto a sua cara se iluminava de excitação. - Vamos à Boutique Andre's escolher um vestido original para ambas.

- Mas, mamã... - Eu sabia que o preço dos vestidos e dos chapéus no Andre's custavam, no mínimo, oitocentos dólares e alguns chegavam aos dez mil. - Temos dinheiro para isso, agora que o papá... que o papá não está cá?

- Claro que temos. O teu pai ainda é responsável pelas nossas despesas - replicou, com firmeza. - Até eu voltar a casar. Aí, será apenas responsável pelas tuas despesas, apesar de não teres de te preocupar. O Tony é muito generoso. Anda - incitou ela, fazendo-me sinal. - Vamos lá.

A mamã comprou um vestido preto de veludo com tiras fininhas e um cinto de seda cor de carvão. Calçava luvas pretas de cetim até aos cotovelos. Pôs o seu maior colar de diamantes e brincos de diamantes em forma de pêra a condizer.

A mim, comprou-me um bonito vestido verde-azulado, de um tecido leve. Nunca me senti tão chique para assistir a um jantar de Acção de Graças.

O Tony mandou o Miles vir-nos buscar na sua limusina ao princípio da tarde, mas ele teve de se sentar no átrio de entrada e esperar mais quarenta e cinco minutos para que a mamã acabasse de arranjar o cabelo e de se maquilhar. Vestida com o seu casaco de marta-da-sibéria, desceu finalmente as escadas. O seu cabelo nunca parecera tão macio ou brilhara com tanta intensidade. Percebi pelo modo como o Miles se levantou da cadeira que estava fascinado com a sua beleza. Eu achei que ela parecia uma estrela de cinema.

Gostava tanto que o papá pudesse estar aqui para a ver, pensei, mas então lembrei-me de que seria ainda mais doloroso para ele, pois ela estava tão bonita e tinha saído da vida dele.

- Estou bem? - perguntou-me, girando sobre si própria.

- Mais linda do que ninguém.

- Oh, meu amor, obrigada. E tu também estás bonita. Vamos deslumbrar toda a gente - acrescentou ela e saiu em direcção à limusina.

Durante o percurso até Farthy, a mamã falou-me de alguns dos amigos do Tony que tinha conhecido. Parecia que todos eles se evidenciavam pelo negócio que tinham ou pela sua profissão.

- E espera até veres as mulheres deles - dizia ela. - com toda aquela riqueza e a posição que ocupam, não sabem muito sobre moda e maquilhagem. Tu e eu iremos sobressair como... como rosas num canteiro de ervas daninhas.

- Deu um risinho e abraçou-me.

Mesmo sentindo toda aquela tristeza por ir celebrar um jantar de Acção de Graças sem o papá, não conseguia deixar de ficar fascinada pelo modo como a mamã falava comigo. Senti, talvez pela primeira vez na vida, que ela me estava a tratar como a sua amiga mais íntima.

- Agora não fiques nervosa só porque estas pessoas têm muito dinheiro. Vais ver que elas não são muito inteligentes no que toca a estar em sociedade. Quando te fizerem uma pergunta, responde com educação, mas não lhes dês informações extras, só o que te perguntarem. Os homens apreciam as mulheres que não são muito faladoras e mexeriqueiras à mesa. Os homens gostam de dominar a conversa com discussões sobre política e negócios.

- Mas o papá nunca foi assim. - Pobre papá, pensei, a festejar o dia de Acção de Graças com estranhos, sem a família à volta dele, lá fora, no meio do mar, num dos seus barcos.

- Não faças essa expressão triste - aconselhou a mamã.

- Tu és tão linda quando sorris.

Mrs. Deveroe, o seu marido e os Darrow já lá estavam quando chegámos. Todos diziam que a mamã e eu parecíamos duas irmãs. Os homens fizeram-me sentir muito adulta com os seus elogios e olhares de aprovação e a mamã entrou na mansão como se se tratasse da chegada da própria rainha. Havia empregados por todo o lado, às ordens dela... para levar os nossos casacos, para nos conduzir à sala de música, onde os outros já estavam reunidos e servir-nos um ponche de champanhe.

- Jillian! Finalmente chegaste - exclamou o Tony e veio a correr à porta da sala de música cumprimentar-nos. Pegou na mão dela e bebeu-a com os seus olhos azuis, ardentes de amor e consideração. - Tu és, sem sombra de dúvida, a mulher mais linda que alguma vez vi. Acho que nunca me cansarei de dizer isto. - Eu tinha passado a manhã a matutar no ódio que sentia pelo Tony; porém, neste momento, um sentimento quente e eléctrico atravessava o meu corpo. Nunca tinha estado tão perto de uma cena tão romântica. Era como se tivesse entrado no meio de um filme, e não conseguia desviar os meus olhos dos dois. Ninguém na sala conseguia. Houve uma pausa enorme, como se estivéssemos todos a suspirar, e, em seguida, desataram todos a conversar. O Tony virou os seus divinos olhos azuis para mim.

- Leigh, tu também estás muito bonita. Tenho tanta sorte por vos ter aqui, às duas. A Mansão Farthinggale cintilará como nunca. - Deu-nos o braço, colocando-se no meio de nós, mas eu fiquei o mais rígida possível, toquei-lhe o menos possível, à espera de poder magoá-lo quando ele nos apresentasse a toda a gente.

O pequeno Troy estava sentado a um canto numa poltrona almofadada enorme, com os pés suspensos a balançarem no ar. Parecia perdido e só, mas tão engraçado no seu minúsculo smoking com gravata preta. Mal me viu, os olhos dele iluminaram-se.

- Olá, Troy. Feliz dia de Acção de Graças. - Apertei-lhe a mãozinha.

- Olá. O Tony diz que vens viver aqui e que vais ser a minha irmã mais velha. Vais? Vais mesmo? - Tive de sorrir perante o seu entusiasmo, apesar de as palavras proferidas por ele ainda me soarem tão estranhas e assustadoras.

- Sim, parece que sim, Troy.

- Óptimo. Tenho tantas coisas para te mostrar, coisas secretas - acrescentou ele, em segredo, olhando à volta para ter certeza de que ninguém tinha ouvido.

Quando chegou a hora de irmos para a enorme sala de jantar ocuparmos os nossos lugares à volta da mesa colossal, o Troy e eu ficámos sentados ao lado um do outro. A mamã estava sentada à direita do Tony e eu à sua esquerda com o Troy à minha esquerda. Estavam trinta e três pessoas à mesa para jantar. Nunca tinha visto tanta gente a jantar na mesma mesa.

No centro estava um patê de fígado de cisne às fatias. Havia taças largas para o vinho e a louça era de porcelana Wedgwood, com motivos de pequenas figuras e de cenas campestres. A prata era pesada, mas reluzente, com desenhos florais. Os pesados guardanapos azuis tinham as letras M.. bordadas a branco.

Pouco depois, a mamã começou a anunciar os planos para o casamento dela e do Tony.

- Será como uma coroação real - disse, desatando depois a rir. Mas então prosseguiu na revelação dos pormenores. - O convite vai-se tornar num artigo para coleccionadores, pois eu própria vou desenhá-lo, com base numa das ilustrações que fiz para as Publicações Darrow - acrescentou ela e acenou com a cabeça em direcção ao casal Darrow.

- Teremos uma orquestra constituída por vinte e seis elementos a tocar para nós e flores trazidas de avião da África do Sul, e o Tony teve uma ideia espectacular, que dará ao casamento um cunho especial. Conta-lhes, Tony.

- Bem, estás a estragar a surpresa - comentou ele amavelmente e sorriu. - Mas suponho que não faz mal, uma vez que hoje à noite estamos entre amigos especiais. vou criar um brinquedo Tatterton comemorativo da ocasião para cada um dos convidados, que terá a data da nossa boda gravada.

- É uma ideia maravilhosa. - O rosto da mamã irradiava alegria. - Duas figuras feitas a partir da nossa imagem...

- Agarrou a mão do seu atraente jovem futuro marido - a dançar no topo do mundo.

Toda a gente emitiu um "ooh!", mostrando o seu apreço. Até eu tinha sido apanhada de surpresa, pois era a primeira vez que ouvia falar disso. O Tony tentou ir ao encontro do meu olhar com os seus olhos intensos, mas eu desviei os meus. Como era fácil para a mamã captar a atenção da mesa toda, pensei eu. Pareciam todos invejosos... Os homens, com inveja do Tony por ir tê-la como mulher; as mulheres com inveja da beleza e da exuberância da mamã.

Estes planos para o casamento soavam realmente emocionantes e fascinantes; porém mesmo nesse momento, mesmo sentada à mesa de jantar em Farthy que parecia tão distante dos nossos íntimos jantares familiares de Acção de Graças do passado, eu não conseguia deixar de me sentir só e perdida.

O resto da conversa ao jantar foi dominada pelos planos e pelos pormenores do casamento. O pequeno Troy ficou com a cara cheia de natas batidas quando atacou a tarte de chocolate. Eu ri-me e limpei-lhe a boca.

Depois de jantar, voltaram todos para a sala de música. O Troy pediu-me para ir com ele para o quarto de brincar ajudar a colorir os seus desenhos. Quando lá chegámos e eu me apercebi que os desenhos tinham sido feitos por ele, fiquei a olhar para eles de boca aberta. Era invulgarmente dotado para uma criança. Havia desenhos da mansão e dos jardins e alguns desenhos de pessoas.

- Este é o Henderson e esta é a Margaret Stone e este é o Edgar. - Apontava para os diferentes desenhos.

Estão maravilhosos, Troy. Muito, muito bons - elogiei eu. Os olhos dele brilharam.

Toma - disse ele, dando-me um lápis castanho para a mão..- O Edgar usa sempre uma camisa castanha. Tu pintas o Edgar.

Eu ri-me e comecei a pintar. Perdi a noção do tempo, ali sentada a pintar e a ouvir o Troy tagarelar sobre os empregados e a piscina e o labirinto, e sobre o Tony; mas, talvez urna hora depois, pareceu-me ouvir a voz da mamã ao fundo do corredor do quarto de brincar do Troy. Depois, ouvi a voz do Tony. Parecia aborrecido. O Troy não deu conta, pois estava demasiado absorvido pelo seu trabalho. Percebi como ficava concentrado quando estava embrenhado a fazer alguma tarefa criativa e pensei que era notável que um rapazinho conseguisse alhear-se do mundo desse modo. Nem sequer reparou quando me levantei e fui até à porta.

O Tony e a mamã estavam a cerca de cinco metros. O Tony, de pé, alto e viril, tinha as mãos nas ancas dela, tentando mantê-la junto dele. Não se tinham apercebido de que eu estava ali, em silêncio, a observar.

- Vá lá, Jillian. - Os seus lábios carnudos pareciam carrancudos. - Estamos praticamente casados.

- Mas não estamos casados. Ainda não. É por essa razão. E também temos de pensar na Leigh.

- Eu ponho-a do lado oposto da casa. Ela nem sequer vai saber que vieste ao meu quarto. - Inclinou a sua cabeça escura para a aconchegar no pescoço dela.

- Não, Tony. - A mamã afastou-o. - Já te disse que não, até nos casarmos. E além disso, amanhã tenho umas coisas para resolver em Boston. Não podemos passar cá a noite e está decidido. Agora, não compliques.

- Está bem - cedeu ele, abanando a cabeça -, mas estás-me a torturar... e no dia de Acção de Graças - gracejou ele, meio a sério meio a brincar, pensei. Sentia uma coisa esquisita no fundo do estômago e sentia-me mal por estar ali a observá-los, mas não conseguia afastar-me. Mesmo antes de se voltarem para se irem juntar aos outros, o Tony apanhou-me a espreitar pela porta do quarto de brincar do Troy. Por um longo momento, os olhos dele incendiaram-se nos meus e eu senti como se ele tivesse afagado o meu cabelo ou o tecido delicado e airoso do meu vestido. Voltei para junto do Troy por mais ou menos meia hora e depois a mamã veio-me buscar.

- Está na hora de nos retirarmos para Boston.

O pequeno Troy fez uma careta.

- Quando é que vais ficar cá para sempre e sempre?

- Daqui a muito pouco tempo, Troy - respondeu-lhe a mamã. - Já é tarde e também está na hora de ires para a cama.

- Não estou cansado - choramingou ele.

- Não te cabe a ti decidir - disse ela. - Tens estado adoentado e precisas de descansar. Anda, Leigh. - Virou-se e saiu com rapidez.

- Voltarei dentro em breve e acabaremos isso tudo assegurei-lhe eu. Ele não se acalmou, mas a sua expressão carrancuda apagou-se quando eu lhe dei um beijo de despedida na face.

Fui ter com a mamã e com o Tony ao átrio de entrada. A maior parte dos convidados já se tinha retirado.

- Obrigada por entreteres o Troy hoje à noite, Leigh agradeceu o Tony. - Ele adora-te.

- Ele é muito talentoso.

- É. - Os lábios do Tony estavam enrolados formando um sorriso divertido. - Num instante estará a desenhar brinquedos Tatterton. - Aproximou-se o suficiente para me dar um beijo na testa. - Boa noite, Leigh - disse, detendo a sua mão no meu ombro. Senti-me a tremer. Como é que eu alguma vez poderia considerar este jovem atraente como meu padrasto?

- Boa noite - murmurei e saí rapidamente pela porta. A mamã deixou-se ficar para trás por uns momentos aos sussurros com o Tony. Então, ele beijou-a suavemente nos lábios e ela voltou-se e veio ter comigo. Descemos as escadas e ocorreu-me, que, dentro em pouco, isto seria o meu lar. Contudo, ainda me parecia tudo tão estranho. Havia tantos quartos vazios, tantas sombras escuras. Gostava de saber se alguma vez conseguiria chamar a um lugar destes a minha casa.

A mamã, aparentemente, não sentia nada disto. Estava a rebentar de tão excitada.

- Não foi o melhor jantar de Acção de Graças que alguma vez tiveste? Todas aquelas pessoas... toda aquela comida. Viste as jóias da Lillian Rumford?

- Não me lembro de quem ela era, mamã.

- Não te lembras? Oh, Leigh, como é que pudeste não reparar naquela tiara de diamantes e naquelas pulseiras e naquele camafeu?

- Não sei. Acho que me falhou - disse eu, bruscamente.

Ela apercebeu-se da tristeza na minha voz e o seu sorriso esmoreceu. Fiquei contente, por maldade. De súbito, o meu coração endureceu contra ela... contra a minha bonita mãe e a sua ânsia de diversão e de um marido rico e bonito.

Não ia falar mais com ela. Virei-me para olhar a noite através da janela. Ela também se calou por um bocado, mas depois começou a tecer considerações sobre a roupa que as outras mulheres traziam vestida, sobre as coisas fantásticas que lhe tinham dito e as coisas que ela dissera, como o Tony a adorava e que o casamento deles ia ser o motivo de conversa da cidade...

Enquanto fixava o olhar na escuridão através da janela, quase que não a ouvia. Havia um corte na paisagem e podia-se ver o mar. A noite não tinha nuvens e estava fresco. Ao longe, observei as pequenas luzes de um barco e pensei no papá, algures lá fora, na escuridão... uma luz solitária, no fundo aveludado da noite escura, como uma estrela solitária no céu nocturno.

 

PERDIDA

Duas semanas após o dia de Acção de Graças, estava a caminho de Farthy para um ensaio da cerimónia do casamento. Dois dias antes tinha nevado muito por toda a costa da Nova Inglaterra. A paisagem por onde passámos no caminho para Farthy estava coberta por um manto branco cintilante, que parecia puro e limpo à luz matinal do Sol. Quando entrámos na área florestal, mesmo antes de chegarmos à propriedade, reparei que muitas árvores tinham mudado de configuração, ou estavam curvadas, como homens velhos, devido ao peso da neve, ou erguiam-se, geladas sob o pano de fundo do céu azul, e os seus ramos mais pareciam ossos pois a neve colava-se a eles. Algumas tinham pingentes de gelo pendurados nas extremidades dos seus ramos. Pareciam lágrimas enormes congeladas no ar.

A mamã não estava muito interessada na Natureza. Tinha assumido a liderança do casamento, planeando cada momento, cada pequeno detalhe, como se o casamento fosse mesmo tornar-se o acontecimento social mais importante da década. O Tony cedera-lhe uma das suas secretárias, Mrs. Walker, uma mulher muito alta, muito magra, de cabelo escuro, que era toda trabalho e nada de sorrisos. Na minha opinião, ela pura e simplesmente não tinha ficado muito contente com a tarefa que lhe tinha sido imposta. Estava sentada à nossa frente na limusina a tomar notas, à medida que a mamã se ia lembrando de coisas que ainda queria acrescentar ou alterar. A leitura da lista de convidados abria as actividades de todas as manhãs. Mal entrámos para a parte de trás da limusina e iniciámos a nossa viagem para Farthy, a mamã pedira a Mrs. Walker para refazer a lista.

A mamã tinha decidido que, logo que ela e o Tony se casassem, nunca mais voltaria a conduzir para lado nenhum. Dali em diante seriam motoristas e limusinas e, sempre que Miles não estivesse disponível por estar ao serviço do Tony, a mamã, pura e simplesmente, alugaria uma limusina e um motorista temporários.

Nos dias que se seguiram ao jantar de Acção de Graças na mansão Farthinggale, verifiquei também outras mudanças nela. Por mais incrível que pareça, a mamã passava ainda mais tempo a preparar o cabelo e a maquilhar-se, pois acreditava que agora tinha responsabilidades acrescidas em relação ao seu aspecto.

- As pessoas sabem que eu sou a futura Mistress Tony Tatterton. Observam-me, agora, mais de perto, com maiores expectativas. Actualmente faço mesmo parte da sociedade, Leigh.

Eu não achava que o tempo extra que ela passava a arranjar-se fizesse alguma diferença. O seu cabelo não podia ser mais macio, a sua pele não podia ficar mais cor de pêssego e cremosa do que já estava. Porém, não lhe disse nada, pois percebia o quanto tudo aquilo era importante para ela. O que me fazia sentir mal era o modo como ela falava dos seus antigos amigos, mesmo de alguns como a Elisabeth Deveroe. Eu sabia que ela achava que eles eram bons conhecimentos enquanto tinha sido casada com o papá, mas, agora, que ia ser a futura Mrs. Tony Tatterton, já não eram suficientemente bons. Até porque a Elisabeth Deveroe era uma pessoa para a qual ela tinha trabalhado mas que agora iria trabalhar para si.

Hesitava sempre que passava pelo nome dela ou de alguns amigos antigos quando Mrs. Walker lia a lista.

- Tenho pena de os ter convidado - dizia. - Vão sentir-se fora do ambiente deles.

A caminho do ensaio em Farthy, acabou mesmo por riscar o nome de um casal ao qual ainda não tinha enviado convite e, em seu lugar, acrescentou o nome de outro casal, os Kingsley, porque a Louise Avery lhe tinha dito: "O Martin Kingsley, editor do Globe, acabou de regressar de Moscovo, e ele e a mulher são dois dos convidados para jantar mais requisitados da cidade." A mamã acrescentava estas pequenas explicações sempre que mandava Mrs. Walker apontar um nome novo; Mrs. Walker, porém, não parecia ficar muito impressionada. A mamã ou não notava ou não se preocupava. Estava no seu próprio mundo, mais feliz do que alguma vez a tinha visto.

Quando atravessámos os portões de Farthy, ela estava a rever a ementa, perguntando-se em voz alta se seria preciso uma selecção extra de hors d'oeuvres quentes. Apesar de não ter estado a prestar atenção à tagarelice dela ao longo da viagem para Farthy, respondi-lhe que me parecia que havia quantidades suficientes de tudo. Cometi o erro de acrescentar: "Vai haver mais comida do que num dos barcos de cruzeiros do papá." Ela olhou-me de soslaio e fez uma careta com a boca, como se lhe tivessem dado um estalo.

- Leigh, não há comparação possível. Nós não estamos a preparar-nos para empanturrar as pessoas de comida, para lhes dar a impressão de que o dinheiro delas está a ser bem gasto. Eu contratei alguns dos melhores cozinheiros de Boston, cada um com a sua especialidade. E repara que o francês que está a preparar o consomé de lagosta é muito conhecido e...

- Mas o Ryse Williams é um cozinheiro tão maravilhoso, mamã. Ele não podia ter confeccionado tudo?

- Confeccionado tudo? - Riu-se e fez um sorriso para Mrs. Walker como se eu tivesse cinco anos. - Dificilmente. Há trabalho suficiente para manter ocupados dez cozinheiros do calibre do Ryse Williams. Não te preocupes com estas coisas - acrescentou, fazendo-me festas no joelho. - Preocupa-te apenas em pareceres bonita dentro do teu vestido.

Tinha de admitir que estava nervosa com tudo aquilo. Como era uma das damas de honor, eu ia vestir um vestido de chiffon sem ombros, rosa-claro, com uma faixa branca debruada, atravessada no corpete, e uma saia até aos pés. Todas as outras damas de honor da mamã eram mulheres feitas. Nenhuma delas teria os meus ombros estreitos, os ombros que eu continuava a considerar demasiado ossudos, e nenhuma delas teria de depender de um soutien com forro de espuma para ter uma figura feminina. Eu tinha a certeza de que iria fazer figura de parva naquele vestido quando estivesse no meio das outras, mas a mamã tinha-o escolhido, ela própria, como complemento ao seu vestido de noiva. A nenhuma das damas de honor era permitido usar nem colares nem brincos. A mamã queria que as suas jóias sobressaíssem e ter a certeza de que ninguém brilharia mais do que ela, pois muitas dessas senhoras eram muito ricas e possuíam diamantes famosos.

Quando a limusina estacionou junto dos primeiros degraus da mansão Farthinggale, o pequeno Troy estava na rua com Mrs. Hastings, a ama dele. A senhora até era simpática, mas as poucas vezes que tinha estado com ela, tivera a sensação de que estava um tanto sobrecarregada de responsabilidades.

O Troy era muito perspicaz para a idade dele e já tinha descoberto maneiras de levar a melhor sobre ela e de conseguir aquilo que queria. Percebi pela posição de Mrs. Hastings a seu lado, enquanto o Troy tentava construir um boneco de neve, que estava a aliciá-lo a voltar para dentro de casa.

Também percebi, pela expressão de intensidade que transparecia na cara dele, que estava demasiado envolvido na sua criação para sequer a ouvir. A sua expressão era idêntica àquela que eu tinha visto quando estávamos os dois a colorir os desenhos que ele tinha feito: os olhos fixos, a cara tão quieta como uma estátua de granito. Estava a trabalhar os pormenores do rosto do boneco de neve, esculpindo as feições com a parte de trás de uma colher de prata.

- Leigh! - gritou ele no momento em que saí do carro.

- Anda ver o meu boneco de neve. Anda ver.

- Tens de ir já lá para cima e vestir-te - avisou-o a mamã. Mrs. Walker tinha ido à bagageira do carro com o Miles para trazer as compras. O Curtis já vinha a descer as escadas para ajudar, com pequenas bolhas de ar a saírem-lhe pela boca enquanto caminhava. Nunca o tinha visto movimentar-se com tanta rapidez. Não tinha posto um casaco e, vestido com a sua farda, camisa e calças, parecia um espantalho mal engomado.

- É o melhor boneco de neve que alguma vez vi - observei ao Troy. Ele endireitou-se, orgulhoso, e lançou um olhar a Mrs. Hastings. Esta tinha enfiado as mãos enluvadas com tanta força dentro dos bolsos do casaco que parecia que os ia arrancar. - Mas agora vamos todos para dentro e vamos preparar-nos para o ensaio do casamento. Tu também

- acrescentei, enquanto os olhos de Mrs. Hastings se iam tornando cada vez mais calorosos e apreciativos a cada palavra que eu proferia. - Lembra-te de que és o padrinho.

- Eu sei. O Tony já me disse que eu tinha de levar o anel.

- Então anda. Vamo-nos vestir. Mais tarde vimos cá para fora e brincamos com a neve.

- Prometes?

- Prometo - assegurei eu, estendendo a minha mão. Ele agarrou-a com rapidez e seguimos a mamã e Mrs. Walker para dentro de casa, com Mrs. Hastings mesmo atrás de nós a fazer um enorme sorriso.

O casamento propriamente dito seria celebrado no enorme átrio da entrada. A mamã desceria a escadaria enquanto o pianista tocaria a marcha nupcial e toda a gente seria forçada a olhar para cima e vê-la descer como um anjo. Mesmo por baixo da escadaria, o pastor ocuparia o seu lugar e o Tony e o Troy esperariam. Já tinham colocado cadeiras almofadadas para os convidados no pátio de entrada. O Tony contou à mamã que esta seria a quarta cerimónia de casamento a realizar-se ali. O seu bisavô, o seu avô e o seu pai tinham-se casado em Farthy. O átrio de entrada iria transpirar tradição com os enormes retratos dos ancestrais do Tony a olharem para baixo e a mamã e o Tony a pronunciarem os juramentos de amor e de lealdade um ao outro.

O Tony surgiu do seu escritório logo que a nossa chegada foi anunciada. Vestia as calças do seu smoking e camisa branca sem gravata, ainda com as mangas da camisa abertas sem botões de punho. Era a primeira vez que o via vestido de modo tão informal. Por alguma razão, assim, ele fazia-me lembrar ainda mais uma estrela de cinema... parecia tão alto e fogoso.

Incomodava-me o facto de o Tony ser tão bem-parecido. O papá não era um homem feio, mas era muito mais velho e tinha a cara cheia de rugas, exposta às intempéries de horas, dias e meses passados no mar. Ele não tinha um aspecto tão encantador, nem era parecido com uma estrela de cinema, e eu não o adorava menos por isso. Porém, quando o Tony e a mamã estavam ao lado um do outro, eram o centro das atenções de toda a gente. Era como se tivessem saído da capa de uma revista. Tornava-se-me muito doloroso admitir que estavam perfeitos um para o outro. Fazia-me pensar no papá como cada vez mais distante, a diminuir como uma estrela longínqua que morreu há um milhão de anos. Eu esperava desesperadamente casar um dia com um homem igual a ele, excepto talvez menos obcecado pelo seu trabalho.

- Querida. - O Tony pegou nas mãos da mamã e deu-lhe um beijo rápido nos lábios. Sorriu, com um olhar malicioso. - Estás pronta para o ensaio?

- Claro.

- A tua suite está preparada. - Voltou-se para mim. Olá, Leigh. Aposto em como não estás tão nervosa como eu.

- Claro que estou - disse eu bruscamente. Não consegui evitá-lo. Como é que ele podia pensar que eu não iria estar nervosa... mais que nervosa... transtornada? Eu não queria ter nada a ver com este casamento e para evitar pô-lo ao corrente desse facto a gritar, desviei os meus olhos dos dele.

- Eu não estou nervoso - arengou o Troy, o que fez toda a gente rir, excepto eu.

Isso é porque não és tu que te vais casar - disse-lhe o Tony. O Troy apenas encolheu os ombros, mas continuava a agarrar com força a minha mão. - Bem, agora é uma altura tão boa como outra qualquer para mostrar à Leigh a suite de quartos dela - exclamou o Tony, dando uma palmada com as mãos uma na outra.

Sim, isso seria maravilhoso, não é, Leigh?

- Redecorei tudo para te fazer uma surpresa - revelou o Tony, lançando-me um olhar penetrante. Deu-me o braço para eu me apoiar.

Olhei para a mamã. Ela acenou com a cabeça e fez-me sinal com o olhar para eu dar o braço ao Tony. Dei-lho prontamente.

- Também posso ir? - pediu o Troy.

- Tu tens de te vestir, jovem. Para este ensaio temos de estar vestidos a rigor - explicou o Tony. - Excepto a noiva, claro - acrescentou ele. - Dá azar o noivo ver o vestido de noiva antes do casamento.

- Eu quero...

- Agora, Troy - interrompeu o Tony e olhou para Mrs. Hastings.

- Anda, Troy. Eu ajudo-te a vestir.

- Eu não preciso de ajuda - replicou ele, com petulância. A mamã lançou-lhe um olhar carrancudo e abanou a cabeça.

- Por aqui - indicou o Tony, e subimos a escadaria. Estar de braço dado com ele punha-me nervosa, não sei porquê. As borboletas do meu estômago esvoaçavam por todo o lado e tinha a certeza que estava a corar.

O Tony conduziu-me para a esquerda no segundo andar e parou ante um conjunto de portas duplas.

- Aqui estamos - anunciou, abrindo com ímpeto as duas portas. - Leigh - começou. Elevou a mão e eu pensei que iria tocar no meu cabelo, mas afastou-a bruscamente. Tentei tornar estes quartos femininos, mas não infantis. Espero que gostes deles - acrescentou, a voz quase num sussurro. A cabeça dele estava numa posição que me impediu de lhe ler os olhos. A luz do Sol através do pálido tecido transparente cor de marfim era enevoada e débil, o que concedia à sala de estar uma característica irreal. As paredes estavam forradas com um delicado tecido de seda cor de marfim, entrelaçado, com subtileza, por tímidos motivos orientais em verde, violeta e azul; os dois pequenos sofás estavam forrados com o mesmo tecido e as almofadas num azul-suave para condizer com o tapete chinês do chão.

Não obstante o meu desejo de não gostar de qualquer coisa que proviesse daquele homem, tinha de admitir para mim própria que este era o quarto mais gracioso que alguma vez vira. Podia facilmente imaginar-me neste quarto, aninhada à frente da pequena lareira.

- O que é que achas? - Encostou-se contra a parede e dispôs as mãos em forma de templo por baixo do queixo. Parecia que me estava a estudar.

- É um quarto muito bonito. Nunca tive a minha própria sala de estar - acrescentei eu, arrependendo-me depois de o ter dito. Parecia que tinha passado privações.

- bom, agora já tens - disse o Tony, levantando-se de repente. Um sorriso rasgou os seus lábios carnudos e sensuais. - Anda, vem ver o teu quarto. Passou à minha frente e abriu as portas do quarto.

O que é que eu podia fazer? Eu não queria gostar ou ficar impressionada, nem ficar entusiasmada e excitada, com a minha nova casa, mas deparei-me com uma cama de casal com quatro colunas, tão amorosa, tão linda, e que ainda por cima tinha um dossel arqueado de renda pesada. Os dois quartos estavam decorados nas minhas duas cores favoritas: azul e cor de marfim.

Havia um canapé azul e três cadeiras a condizer com as da sala de estar. Deambulei pela área do quarto de vestir e da casa de banho. Parecia que havia espelhos e luzes por todo o lado. E viam-se lustres e luzes escondidas que iluminavam todos os armários. Um deles era quase tão grande como o meu quarto em Boston.

Senti o Tony mesmo atrás de mim e voltei-me. Ele estava tão perto. Senti-lhe o hálito na minha testa e senti o perfume da sua loção para a barba.

- Espero que consigas ser feliz aqui, Leigh. Para mim é quase tão importante como fazer a tua mãe feliz - declarou ele, ternamente. Calou-se e eu levantei os olhos.

Queria responder-lhe a gritar. Queria exigir que me dissesse como é que ele podia esperar que eu viesse a ser feliz. Ele tinha conquistado o coração da minha mãe ao meu pai e tinha destruído a única vida, a única família que eu conhecera. O papá andava algures a vaguear pelo mundo, desorientado e entristecido pela velocidade vertiginosa com que os acontecimentos se estavam a suceder. A beleza e os modos requintados do Tony, a sua enorme fortuna e o nome de família, tinham roubado a minha mãe do meu pai, e agora, por cima de mim, choviam todo o tipo de luxos, como se isso bastasse para o tornar tão importante para mim como o meu pai como se eu pudesse perdoar tudo em troca de um quarto bonito. Cerrei os punhos e voltei a abri-los, para não lhe bater pois naquele preciso momento eu devo tê-lo odiado mais do que nunca.

O Tony continuava a olhar-me nos olhos fixamente. Acho que leu a minha fúria que se detinha à superfície, pois a sua expressão ficou mais suave e afastou-se.

- Eu sei que este momento não é fácil para ti, mas eu vou tentar fazer com que nos dêmos bem. Vai demorar, eu sei, mas com o tempo, espero que me consideres mais do que um simples padrasto. Também quero ser teu amigo.

Antes que eu pudesse responder, ouvi baterem à porta. Era Mrs. Walker que vinha trazer o meu vestido, os meus sapatos, e a minha roupa interior para usar no ensaio. Também ouvi a voz da mamã no corredor a dar ordens enquanto subia para a sua suite.

- Sim, sim - disse o Tony, aborrecido pela interrupção.

- Traga tudo cá para dentro. - Tornou a voltar-se para mim. - Mais tarde acabaremos a conversa. Teremos muito tempo para falar e para nos conhecermos bem. Se deixares.

- Virou-se e saiu.

- Que quarto tão bonito! - exclamou Mrs. Walker. Pousou as roupas sobre a cama e girou sobre si própria. Tem muita sorte em viver num lugar destes.

- Muito obrigada, Mistress Walker, mas nós vivíamos muito bem em Boston - repliquei eu, incisivamente. Viu a minha expressão e foi-se embora para dar assistência à mamã.

Fiquei ali sozinha, a olhar à minha volta. Isto iria ser o meu novo mundo, o lugar onde iria pensar e sonhar, construir as minhas esperanças, o lugar onde iria chorar e rir, sentir-me só e triste, e, talvez um dia, voltar a sentir-me feliz. Adorava-o e detestava-o ao mesmo tempo.

O papá nunca entraria por aquelas portas para me dizer "boa noite" ou para me cumprimentar quando chegasse a casa após um longo dia de trabalho no escritório, nas docas. De certa maneira, estava contente por ele nunca ter oportunidade de ver aquele quarto. Iria entristecê-lo, pois pensaria que eu me tinha afastado dele em troca de toda aquela riqueza.

Não deixaria que nada disto me fizesse esquecer o papá, gritava o meu coração. Alinharia na mesa do toucador todas as minhas molduras com fotografias: aquela em que eu estava sentada no joelho do papá, aquela em que eu e a mamã estávamos sentadas e o papá em pé atrás de nós. Quando tinha cinco anos, escrevi: "O papá, a mamã e eu", por baixo da fotografia. Rodear-me-ia de todas as minhas recordações felizes... fotografias dos nossos passeios, fotografias no jardim zoológico, fotografias a bordo dos navios do papá, como aquela em que o papá estava a tentar ensinar-me a dançar. Nunca, mas nunca, deixaria que materiais suaves e caros, mobílias ricas e acolchoadas, quartos enormes e luxos, me fizessem esquecer o papá. E, mais importante que tudo, o Tony Tatterton iria perceber, de imediato, que não tinha nenhuma hipótese, nenhuma hipótese, no mundo, de tomar o lugar do meu pai.

Comecei a despir-me com pouco entusiasmo. Vesti um soutien sem alças especial e depois entrei no vestido. Ficava-me confortável na cintura, mas cada vez que tentava alcançar as costas para correr o fecho, a parte de cima descaía. Era uma coisa muito esquisita para fazer sozinha. Frustrada, calcei os sapatos do conjunto e comecei a caminhar em direcção à porta, com tenções de ir até à suite da mamã para ela me ajudar. Quando saí do meu quarto de dormir, fui de encontro ao Tony. Já tinha posto a gravata, os botões de punho e a faixa, mas ainda não tinha vestido o casaco do smoking. Dei um passo atrás, surpreendida, e segurei a parte da frente do meu vestido.

- Desculpa incomodar-te, mas a tua mãe pediu-me para verificar se estava tudo bem contigo.

Por um momento, não consegui responder; tinha a respiração atravessada na garganta. Há quanto tempo estaria ele à porta do meu quarto? Seria possível que ele tivesse voltado e tivesse assistido a tudo, a observar-me? E porque é que a mamã o teria mandado? Ela nunca mandara o papá fazer uma coisa dessas.

- Eu... eu estou a caminho da suite dela para me ajudar a correr o fecho do meu vestido - expliquei e comecei a andar.

- Deixa-me ajudar-te. É por isso que vocês, as mulheres bonitas, nos querem ao pé de si... só para estas coisas. Pôs as mãos nos meus ombros para impedir que eu me fosse embora. Quase sufoquei e senti uma onda de calor a subir pelo meu pescoço acima. Se ele percebeu o meu constrangimento, ignorou-o e fez-me dar meia volta. - Agora, deixa-me ver... Ah, este é fácil.

Correu o fecho devagar, com muito cuidado, para não o prender na minha pele, e, quando acabou, plantou-me um beijo no alto da cabeça.

- já está - anunciou. - Precisas de ajuda para mais alguma coisa? Não - respondi eu bruscamente, tão bruscamente que lhe provocou um sorriso nos lábios e uma gargalhada nos olhos. Permiti que os meus olhos se encontrassem brevemente com os dele antes de fugirem para se fixarem no chão. Tenho de arranjar o meu cabelo - informei e voltei para o meu quarto. Sentei-me no toucador para recuperar a respiração. Quando me olhei ao espelho, reparei que ainda estava agarrada à parte de cima do meu vestido, apesar de já não ser preciso. Larguei-o e olhei para trás, para a porta, meio à espera que ele ainda lá estivesse.

Já se tinha ido embora.

A minha mente começou a perseguir os meus sentimentos. Havia tantas sensações diferentes para tentar perceber. Detestei o tom com que ele falou, tentando soar como um pai, e aninhei-me quando me beijou na cabeça, como o papá me beijaria, mas tinha de admitir para mim própria que, quando os seus dedos tocaram nos meus ombros e os seus lábios roçaram no meu cabelo, eu sentira um arrepio de prazer pelo corpo.

E os olhos dele! Quando ele os dirigiu para os meus, o azul reluzira como se tivesse percebido o arrepio que eu sentira. Oh, eu tinha de ter cuidado com um homem tão sofisticado como o era o Tony, pensei. Devia pensar mais no que os meus olhos podiam revelar. No fim de contas, ele era o homem que tinha conquistado o coração da mamã, o coração de uma mulher tão bonita que a maior parte dos homens daria o seu braço direito para estar na posição dele. Eu não podia competir por um homem com tanto poder.

E, não obstante, os seus afáveis olhos azuis e a sua bonita cara detinham-se em mim, imploravam compreensão e amor, suplicando-me para que eu o considerasse o meu novo pai. Como é que eu alguma vez podia conceber uma pessoa tão jovem como um pai e, quando ele descobrisse a idade real da mamã, sentir-se-ia a fazer figura de parvo, pensei.

A vida, outrora simples e agradável como uma história infantil, era agora tão complicada e difícil. Detestava estar aqui. Detestava! Detestava estar a preparar a minha roupa para este ensaio, detestava a ideia de ser uma dama de honor no casamento da minha própria mãe, detestava esta casa, os seus empregados e os jardins e...

- Olá. Estás pronta?

A minha raiva crescente foi interrompida. Virei-me e deparei com o pequeno Troy no seu smoking, com a sua minúscula gravata e o cabelo penteado com cuidado, à porta do meu quarto. Usava um anel de ouro rosado na mão esquerda e parecia uma versão em miniatura do seu bem-parecido e elegante irmão. Toda a minha fúria esmoreceu.

- Quase - respondi eu.

- O Tony diz que podemos voltar a vestir as nossas roupas "boas" logo que o ensaio tiver acabado - informou o Troy, ansioso. Ri-me pela maneira como abriu os olhos e acenou com a cabeça.

- Roupas boas?

- Eu tenho de ter muito cuidado quando estou vestido desta maneira, no que toco e onde vou - recitou ele. Tapou o nariz para mostrar como detestava aquilo. Era tão engraçado que me dava vontade de o agarrar como se fosse um dos meus ursinhos de pelúcia.

- Claro. Eu também estou desejosa de voltar às minhas roupas "boas". - Levantei-me, mirei-me uma última vez no espelho e comecei a sair. Ele deu-me a mão e fomos lá para baixo para começar o ensaio.

Durante todo o ensaio, senti como se estivesse a movimentar-me num sonho. Rodeada por todos aqueles estranhos, observando a mamã e o Tony a representarem a sua futura cerimónia de casamento, não conseguia evitar olhar em volta, de vez em quando, à procura do papá, sempre à espera de o ver entrar de rompante pelas imponentes portas principais. Deixei que a minha imaginação me levasse. No meu sonho, a música parava e toda a gente se voltava para o papá.

- Jillian - gritava ele. - Não podes fazer isto. E tu dizia ele, apontando para o Tony -, tu tens de pôr termo a este feitiço que lançaste sobre a minha mulher. - Neste meu sonho acordada, o papá estava maior e mais poderoso do que nunca. Erguia o braço e apontava o dedo acusador na direcção do Tony, que retrocedia por respeito a tanta força. De súbito, a mamã pestanejava. Olhava do papá para o Tony e de novo para o papá.

- Cleave? Oh, Cleave, Cleave, graças a Deus que vieste. Não sei o que me deu. Não sei o que estou a fazer aqui.

Ela corria para os braços dele e eu corria atrás dela. Então, o papá também punha o braço à minha volta, saíamos os três deste castelo e íamos para casa, sãos e salvos, para todo o sempre.

O meu devaneio acabou, rebentou como uma bolha, quando o pequeno Troy puxou a minha mão para reclamar a minha atenção. Eu estava de pé, atrás das outras damas de honor. Tínhamos descido a escadaria à frente da mamã e ocupado as nossas posições enquanto o pastor revia a cerimónia. Nesse momento, aparentemente tudo aquilo tinha terminado e o pequeno Troy estava a lembrar a promessa que eu lhe fizera de ir para a rua com ele.

- Voltem dentro de mais ou menos meia hora para o almoço - avisou o Tony.

Foram os dois para o escritório do Tony. Eu fui mudar de roupa e estava meio despida quando o pequeno Troy me veio chamar novamente, muito bem agasalhado e pronto para ir para a neve.

- Vai precisar de mim? - perguntou Mrs. Hastings, com a resposta que esperava estampada na cara.

- Não, Mistress Hastings. Ficaremos bem - respondi eu. Ela fez uma expressão como se eu lhe tivesse concedido a suspensão de uma pena de dez anos de trabalhos forçados. Os miúdos deviam dar muito trabalho, pensei, rindo-me sozinha. Vesti o meu casaco, calcei as minhas luvas e dei a mão ao Troy. Descemos as escadas e fomos para junto do boneco de neve.

Apesar de ainda estar bastante luz, o céu mostrava-se carregado de nuvens e a neve caía. Observei o trabalho aplicado do Troy nos dedos do boneco de neve e ouvi-lhe a tagarelice sobre os brinquedos que o Tony lhe iria oferecer pelo Natal. Saltava de um assunto para o outro e, a dada altura, contou-me uma história que o Ryse Williams lhe tinha contado sobre um rapazinho de Nova Orleães que tinha uma flauta mágica. Sempre que falava do Ryse, chamava-lhe "Rye", e quando lhe perguntei a razão, disse-me que tinha ouvido os outros empregados a tratarem-no assim.

- Eles disseram-me que o nome dele era Rye Whiskey1 e não Ryse Williams.

- Rye Whiskey? Tu não o tratas assim, pois não?

- Hum, hum - assentiu ele e depois olhou na direcção da porta principal e acrescentou -, quando o Tony não está por perto. Ele não gosta.

1 A palavra rye: significa "centeio" e Whiskey refere-se à bebida alcoólica, o que explica a confusão de Leigh e nos dá a entender que ele é conhecido por gostar de beber.

- Ah, estou a ver. Bem, então talvez não devesses fazer isso.

Ele encolheu os ombros. Nesse momento, os seus olhos luziram, pois tinha tido uma ideia nova. Deixou cair a colher de prata no chão e deu um passo atrás.

- Temos de arranjar ramos de sebes para fazer as roupas do boneco de neve. Temos de arranjar, Leigh.

- Ramos de sebes?

- Hum, hum. O Boris passa a vida a aparar o labirinto e há lá ramos de sebes. Temos de ir buscar alguns, está bem? Por favor. Está bem?

Eu soltei um suspiro. Estava frio, ali, em pé, os flocos de neve caíam com mais intensidade e eram cada vez maiores. Um passeio far-nos-ia bem aos dois, pensei.

- Está bem.

Ele agarrou na minha mão enluvada e começámos a afastar-nos de casa.

- Eu mostro-te. Não tenhas medo. Eu mostro-te.

- Está bem, está bem. Tem calma, Troy. O teu boneco de neve não vai derreter. Isso é certo.

Olhei para trás em direcção à casa, pois ouvi duas senhoras dos escritórios do Tony em Boston que iam servir de damas de honor a falarem sobre a mamã, enquanto caminhavam em direcção ao carro delas.

- Ela era casada com um homem que tinha idade suficiente para ser avô dela - dizia uma. - Ouvi dizer que ele está praticamente senil e que nem sequer tem noção de que ela o deixou.

- A única razão pela qual uma mulher daquelas casaria com um homem daquela idade é por dinheiro.

- Já não vai precisar de se preocupar mais com dinheiro

- disse a primeira mulher. - E agora também tem um homem jovem, devastadoramente atraente. Aí está uma mulher esperta. - Riram-se ambas e entraram no carro.

Apesar do ar frio e da neve a cair, a minha cara ficou quente de raiva. Estava com vontade de passar por cima do carro delas e de lhes esmurrar os vidros. Elas estavam a gozar com o meu pai. Como se atreviam? Quem é que lhes tinha contado uma história daquelas? Não mereciam participar na festa do casamento. Mexeriquices por ciúme, por inveja, por maldade...

- Anda, Leigh - dizia o Troy, puxando-me para continuar.

- O quê? Ah, sim. - Segui-o, olhando uma vez para trás para ver o carro delas a arrancar.

À entrada do labirinto parámos.

- Eu não estou a ver nenhuns restos de sebes aparadas, Troy. Vamos voltar.

Não, há sempre alguns. Vamos entrar um bocadinho e ver, está bem? - implorou ele.

- O teu irmão não quer que entremos lá, Troy.

Não faz mal. Eu sei entrar e sair.

- Tens a certeza? - Às vezes parecia tão maduro para a criança que era, tão seguro de si.

- O Tony não vai ficar zangado. O Tony agora vai ser o teu papá.

- Não vai, não senhor - interrompi eu, com rudeza. O pequeno Troy olhou para cima, confuso. - Ele vai casar com a minha mãe, mas isso não faz com que ele seja meu papá. Eu tenho um papá.

- Onde está ele? - perguntou o Troy, elevando os seus pequenos ombros.

- Ele trabalha com barcos grandes e está no meio do mar.

- Ele também cá vem?

- Não. A minha mãe já não quer viver mais com ele. Ela quer viver com o teu irmão. Por isso, nós vamos viver aqui e ele vai morar noutro lugar. Chama-se a isto um divórcio. As pessoas que estão casadas deixam de estar casadas. Percebes?

Ele abanou a cabeça.

- Para te dizer a verdade - confessei eu, com amargura -, nem eu. - Voltei a olhar para trás, para a casa. Um grupo de amigos do Tony vinham a sair, rindo e dando palmadinhas nos braços e nos ombros uns dos outros. - Está bem - assenti eu -, entramos no labirinto e procuramos ramos de sebes aparados. Não nos vamos perder de certeza acrescentei -, pois no regresso só temos de seguir as nossas pegadas na neve.

- É verdade. - E disparou à minha frente para dentro do labirinto. Eu hesitei, por um momento, e depois segui-o.

Na verdade, até acolhia com agrado a serenidade que o labirinto me proporcionava. Queria estar desligada de todo aquele barulho e de toda aquela actividade. Sentia-me muito irritada; o meu estômago estava agitado e o meu coração palpitava. Lembrei-me do som do piano a tocar a Marcha Nupcial e isso ia-me tornando cada vez mais furiosa.

Mas, à medida que dávamos a curva no labirinto e caminhávamos cada vez mais para o fundo, em direcção às suas entranhas, sentia o mundo a ficar para trás, cada vez mais longe. As altas sebes serviam de paredes enormes, desligando-nos dos sons que provinham da parte da frente da casa. Os flocos de neve que caíam, cada vez mais espessos, eram levados pelo ar para dentro dos corredores, colando-se às sebes. O Troy vagueava à frente, olhando para trás a todo o momento para se certificar de que eu ainda o seguia. Perdi a conta de quantos ângulos, oblíquos e rectos, passámos. Cada corredor era igual ao outro, principalmente desde que estavam cobertos pelos recém-formados mantos de neve. Apesar de tudo, ainda bem que estávamos a caminhar sob neve, pois agora compreendia como era fácil uma pessoa perder-se. O labirinto era, de facto, profundo e aparentemente infinito.

- Troy - chamei eu, por fim. - Era melhor voltarmos para trás. Não há nenhumas aparas de sebes e acho que só estamos a andar por aqui às voltas.

- Não, não estamos. Vamos a caminho da casa de pedra.

- O que é essa casa de pedra? Quem é que vive lá?

- Agora, ninguém. É um dos meus lugares secretos sussurrou ele.

- Era melhor não tentarmos encontrá-la - disse eu, olhando para trás.

- Só mais um bocadinho, por favor. Por favor, Leigh implorou ele.

- Está bem - acedi eu. - Só mais um bocadinho, mas se não a encontrarmos depressa, vamos ter de voltar, está bem?

Ele assentiu prontamente e largou a correr à minha frente, desaparecendo a seguir a uma curva. Movimentava-se com tanta rapidez através dos corredores que eu tinha de segui-lo pelas pegadas na neve.

- Troy, não andes tão depressa - gritei. - Troy. Acelerei o passo, mas ele estava a ser maldoso e mantinha sempre uma curva de avanço. - Troy.

Por fim, dei uma curva e dei comigo fora do labirinto, do lado oposto. E ali estava ela - tal como o Troy tinha dito, uma casinha que se parecia com um desenho que a mamã poderia ter feito numa das suas ilustrações para livros infantis. Um mágico qualquer tinha tocado nas páginas do livro e tinham-se tornado realidade. Rodeada por pinheiros altos, encontrava-se uma pequena casa de pedra com telhas vermelhas. Havia um carreiro de laje que conduzia à porta da frente.

Anda, Leigh - chamava o Troy, a correr através do carreiro até à porta.,.-...

Espera - gritei, mas ele já tinha aberto a porta e entrado. Segui-o e encontrei-o sentado numa sólida cadeira de balouço de carvalho silvestre junto à lareira. Exibia um sorriso enorme de auto-satisfação. Olhei em volta da pequena sala e pensei que podia ser muito acolhedora quando a lareira estivesse acesa. Tinha apenas alguns móveis simples, um sofá velho, uma poltrona, um tapete rectangular castanho, algumas mesinhas e prateleiras de pinho vazias. As delicadas cortinas brancas de algodão pendiam tristemente nas janelas geladas. Estava tanto frio dentro da casa que eu conseguia ver a minha respiração e a do Troy. Abracei-me a mim própria para me manter quente.

- Ninguém vive aqui agora? - perguntei, enquanto vagueava pela casa e observava um quartinho e uma pequena cozinha. No quarto havia uma cama individual e um pequeno armário, mas não havia tapete no chão nem espelhos. A cozinha tinha um fogão a carvão antigo, uma pequena pia para lavar a louça e, em vez do frigorífico, havia uma geleira, cujas portas estavam abertas de par em par. Porém, estava vazia. O Troy saltou da cadeira para me seguir.

- O Boris vive aqui no Verão, às vezes, mas, na verdade, é o meu lugar secreto - explicou o Troy.

- Não vens para aqui sozinho? Como é que encontraste o caminho através do labirinto? - perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros. Percebi que tinha tido sorte.

- Sorte a nossa que só temos de seguir as pegadas para voltar. - Continuei a olhar à volta. - Mesmo assim, isto deve ser agradável na Primavera e no Verão.

- Vamos voltar mais vezes? Vamos, Leigh?

- Acho que sim - disse eu. Talvez também viesse a ser o meu lugar secreto, pensei, principalmente quando as coisas se tornassem difíceis de mais para mim lá na mansão.

- Eu posso trazer alguns troncos da pilha de lenha lá de fora -, disse o Troy. - E podemos acender a lareira.

- Não, não, acho que é melhor voltarmos. Já saímos há muito tempo. Vão estar todos sem saber para onde fomos e está a começar a nevar com mais força.

- Não queres acender a lareira e ficar quentinha primeiro? Há aqui fósforos - incitou ele, desatando a correr à minha volta e entrando na cozinha. Puxou uma cadeira para junto do fogão e subiu para cima dela para chegar às prateleiras de cima e voltar para baixo com uma caixa de fósforos na mão. - Estás a ver?

- Sim.

- Vamos acender a lareira e vamo-nos aquecer, Leigh. Eu também vou buscar a lenha - afirmou ele, largando os fósforos em cima da mesa e correndo lá para fora.

- Troy. - Já estava na rua. Abanei a cabeça e ri-me do seu entusiasmo. Não achei que estivéssemos fora há muito tempo. Talvez fosse bom aquecermo-nos na lareira. E também parecia divertido. O Troy voltou a correr com uma mão-cheia de lenha. Limpou-lhe a neve de cima.

- Queres que eu faça ou sabes fazer? - perguntou ele.

- Tu sabes?

- Claro que sei. O Boris mostrou-me um monte de vezes. - Colocou a lenha dentro da lareira e dispôs os ramos secos com cuidado. Em seguida, abriu a portinhola do respiradouro e, com muito esforço por ser a primeira vez, acendeu alguns pequenos ramos dispostos sob outros maiores. Pouco depois, já tinha conseguido manter acesa uma pequena lareira. Correu lá para fora, trouxe dois troncos bem grandes e colocou-os com cuidado na fogueira.

- Muito bem, Troy. - Eu estava admirada. - És muito crescido.

- Aqui, faço o papel de papá - afirmou, com orgulho.

- Tu podes fazer de mamã e fazer o jantar e limpar.

Ri-me e pensei como desejava poder recriar uma família feliz dentro daquela pequena casa. Não me importava de ficar sem os quartos grandes e sem as coisas encantadoras.

- E o que é que farias para além de acender a lareira? Ele encolheu os ombros.

- Comia o jantar.

- Só isso?

- Não sei. Que mais devia fazer? Que mais faz um papá?

Pobre Troy, pensei, nunca teve oportunidade de conhecer o pai dele e saber como um papá era importante. Puxei a cadeira para perto da nossa pequena lareira. O Troy veio ter comigo e eu sentei-o ao meu colo.

- Um papá faz-te sentir protegido e seguro. Dá-te tanto amor como uma mamã, e, quando se é menino como tu, joga à bola contigo ou ensina-te coisas e leva-te a passear expliquei.

- E se for uma menina?

- Ele torna-te a sua princesinha e compra-te coisas e faz-te sentir especial porque gosta muito de ti.

- E o papá ama a mamã e a mamã ama o papá?

- Sim, muito. Para eles, não há pessoa mais importante no mundo inteiro. Porque o amor os junta, estás a ver,

amor é... o amor é... - Não consegui continuar. Dei por mim a soluçar, com os ombros a tremer.

O quê? - Ele levantou os olhos para mim. - Leigh,

porque é que estás a chorar?

- Eu choro, às vezes, quando penso no meu papá.

Porquê? Porque ele não está cá?

Hum, hum. - Funguei várias vezes para tentar parar de chorar.

Eu serei o teu papá quando ele não estiver cá, está bem?

- Oh, Troy. - Apertei-o nos meus braços. - Tu és muito querido e amoroso, mas receio bem que não possas ser o meu papá, porque... Oh, não.

- O quê?

- Olha a intensidade com que neva! - exclamei eu, apontando para a janela. Era quase impossível reconhecer os pinheiros através do dilúvio de pesados flocos de neve. É melhor irmos andando. - Pu-lo no chão. - Anda, depressa.

Peguei na mão dele e deixámos a pequena casa de pedra. A laje parecia já estar coberta com quase três centímetros de neve. Apressei-o a descer o carreiro em direcção ao labirinto e corremos para dentro dele, com a neve a cegar-me os olhos com a sua fúria. Fomos a correr até ao primeiro ângulo recto, demos a curva e começámos então a descer o corredor de sebes seguinte... E depois... Eu parei.

- Oh, não - exclamei, olhando para o desdobramento de caminhos com que nos deparámos, um para a direita, outro para a esquerda.

- Qual é o problema? - perguntou o Troy.

- As nossas pegadas! Desapareceram! A neve que tem estado a cair cobriu-as e eu não consigo lembrar-me se viemos aqui ter pela direita ou pela esquerda.

- Não faz mal - afirmou o Troy, com valentia. - Havemos de encontrar o caminho. - Começou a descer o corredor e voltou-se para trás. - Anda - instigou, fazendo sinal com a mão.

- Não sei. Tenho medo - disse eu, hesitante. O Troy observou o caminho à nossa frente. A neve caía tão depressa que até era difícil ver onde começava a próxima curva. O que é que vamos fazer? - perguntei para mim própria. Pensei em voltar para trás, mas a neve podia continuar a cair por muito tempo e ninguém sabia que tínhamos atravessado o labirinto. com alguma relutância, comecei a caminhar com grande esforço, peguei na mão do Troy e virei à sorte. Depois, virei outra vez e outra e mais outra. A neve não abrandou nem por um segundo e, pouco depois, todas as curvas e todos os corredores pareciam iguais. Quando voltei a dar outra curva e me deparei com as nossas pegadas frescas, apercebi-me de que tínhamos descrito um círculo.

- Estamos perdidos - gritei eu. O Troy começou a soluçar. - Não chores, Troy. Alguém nos há-de ajudar. Havemos de sair daqui brevemente. - Peguei nele ao colo e comecei a caminhar por outro corredor, com os flocos de neve a colarem-se às minhas faces e à minha testa. Os meus pés estavam muito frios. Não vinha preparada para uma jornada através de neve profunda. O pequeno Troy agarrou-se a mim com força e eu a ele.

E, como dois órfãos perdidos numa tempestade implacável, procurávamos um sinal de casa.

 

MENTIRAS, MENTIRAS E MAIS MENTIRAS

Ouvi uns gritos e berrei o mais alto que pude, esforçando as minhas cordas vocais até me doer a garganta. Ouvi outro grito e ainda mais outro. Reconheci a voz do Tony e depois ouvi-o a gritar umas ordens. De repente, através do dilúvio de neve, apareceu à nossa frente um homem entroncado, de certa idade.

- Boris! - exclamou o pequeno Troy.

O amável e preocupado jardineiro veio ter connosco a correr.

- Está bem, menina?

- Sim, só... com frio, muito... frio - disse eu, a tremer.

- É natural. Dê cá, deixe-me pegar no menino - ofereceu-se ele e o Troy agarrou-se logo aos braços dele. - Siga-me, menina. Não se afaste - avisou o Boris. Não teve de repetir. Eu quase que me colei ao casaco dele, enquanto ele nos levava pelo labirinto fora, em direcção à saída. O Tony e o Miles estavam à espera na entrada.

- O que é que aconteceu? Porque é que foram para dentro do labirinto? - protestou o Tony com brusquidão. Em vez de responder, comecei a chorar. A expressão dele suavizou-se instantaneamente. - Estás bem?

- Estou gelada - respondi eu. Sentia as minhas pernas entorpecidas e doíam-me os dedos dos pés. Uma espécie de combinação entre calor e frio subia nas minhas faces e isso assustou-me.

- Vamos levá-los lá para dentro - ordenou o Tony. Pôs os braços dele à volta dos meus ombros, e ele e eu, o Miles e o Boris com o Troy ao colo, regressámos a correr para a mansão através da tempestade de neve. A mamã estava a sair da sala de música no momento em que o Curtis abriu as portas. Estava furiosa e confusa.

- Perderam-se no labirinto - explicou o Tony, o mais depressa possível.

- No labirinto! - A cara dela contorceu-se com uma expressão de dor.

- Mistress Hastings, por favor, leve o Troy para a suite dele e ponha-o dentro de um banho quente - ordenou o Tony. - Ele é muito sensível ao frio. - A mamã olhava fixamente para mim, ainda com a cara contorcida, não acreditando no sucedido; tinha um olhar feroz e a boca ligeiramente aberta. Abanou a cabeça como que para negar o que estava a acontecer. - Jillian - disse o Tony, pegando-lhe na mão com firmeza -, também devias pôr a Leigh dentro de um banho quente. Ela não estava vestida com roupa adequada para permanecer no meio de uma tempestade de neve durante horas.

- Não posso acreditar. Porque é que entraste no labirinto, Leigh? - atormentou-me ela.

Os meus dentes ainda rangiam. As minhas luvas estavam encharcadas, tal como os sapatos e as meias, e a neve derretida escorria do meu cabelo pelas minhas faces, pela minha testa e pelo meu pescoço abaixo. Parecia que o boneco de neve do Troy se tinha animado e percorria o meu corpo com as pontas dos seus dedos para me atormentar.

- Eu... nós... fomos à procura de ramos de sebes aparadas e...

- Jillian, devias metê-la dentro de um banho quente repetiu o Tony.

- Mas o Tony avisou-te para não ires para dentro do labirinto e esta não era a altura própria para fazerem uma coisa destas. com todas estas pessoas aqui - disse ela, dando uma volta como se estivéssemos rodeados de convivas. Andávamos desesperados à vossa procura. Que vergonha disse ela, pondo as mãos à frente da cara como se se quisesse esconder por detrás delas.

- A rapariga está gelada - incitava o Tony.

- O quê?

- Jillian, põe-na dentro de água quente e muda-lhe a roupa.

A mamã abanou a cabeça.

- Não posso acreditar que me fizeste isto, Leigh. Não posso acreditar - repetia ela, com um tom de voz cada vez mais agudo.

O Tony agarrou no cotovelo do meu braço esquerdo e levou-me em direcção à escadaria. Olhei para trás para a mamã que ainda estava de boca aberta. Uma das damas de honor, Cecília Benson, estava mesmo atrás dela. A mamã voltou-se.

Acreditas nisto? - perguntou-lhe. Cecilia olhou na minha direcção, mas não disse nada, enquanto o Tony me apressava pelas escadas acima. Empurrou-me para dentro da minha suite e, na sala de estar, ajudou-me a tirar rapidamente o casaco que estava gelado e molhado. Depois, arremessou-o para cima do sofá e foi de imediato para o quarto em direcção à casa de banho.

No teu armário tens um roupão de veludo com o símbolo da mansão Farthinggale - disse ele, gesticulando. Tira essas roupas molhadas o mais depressa possível.

Pouco depois, já estava a pôr a água do banho a correr. Os meus dedos tremiam enquanto tirava as luvas encharcadas. O calor que estava dentro de casa fez-me tomar consciência do frio que eu tinha passado e de como ainda estava gelada. Tremi ainda mais e ouvi os meus dentes a ranger. Comecei a tirar a camisola, mas os meus braços tremiam tanto que não conseguia articular bem os movimentos. Quando já tinha conseguido puxá-la até à altura da cara, senti o Tony a agarrar na camisola e a ajudar-me a tirá-la.

- Estás bem? Os teus lábios estão tão roxos.

Eu acenei que sim com a cabeça, desorientada com tudo o que estava a acontecer e tão depressa. Agora, a mamã odiava-me. Estava certa de que eu tinha feito de propósito e eu ainda estava tão gelada que não conseguia pensar bem nem falar suficientemente rápido para explicar.

- Senta-te na cama - ordenou o Tony. Depois de eu me sentar, pôs-se de cócoras à minha frente e tirou-me os sapatos e as meias. - Os teus pés estão encharcados e os dedos dos pés estão tão vermelhos - disse ele. Segurou no meu pé direito entre as suas mãos e friccionou vigorosamente, fazendo depois o mesmo ao pé esquerdo. - Tens de ir depressa para dentro de água ou apanhas uma pneumonia. - Levantou-se e foi à casa de banho verificar a água do banho.

Desabotoei a minha saia humedecida e tirei-a com cuidado. A minha combinação também estava fria e húmida. Doíam-me os braços e ainda tinha dificuldade em controlar os dedos, mas consegui despi-la e voltei a sentar-me em cima da cama. Onde estava a mamã? Porque é que ela não subia para me ajudar? Porque é que ela estava a deixar esta tarefa para o Tony? Seria para me castigar?

- Está pronto - anunciou o Tony da porta da casa de banho. Levei os meus dedos à blusa mas os botões eram tão grandes e tão duros, e as pontas dos meus dedos faziam uma comichão doida pelo que fui incapaz de os desabotoar.

- Deixa-me ajudar-te - ofereceu-se o Tony.

- Não, eu...

- Eu sei. É embaraçoso. Mas eu dou-te só uma ajuda e tu fazes o resto.

Fitei os seus calorosos olhos azuis e a sua bonita cara. Ele estava tão perto de mim que o meu hálito frio era instantaneamente aquecido pelo dele. Desabotoou o botão de cima da minha camisa e depois o seguinte e o outro a seguir, fazendo tudo com graciosidade, mas com rapidez. Quando a camisa estava totalmente desabotoada, ele parou e olhou-me nos olhos. O meu corpo ainda tremia todo, mas não era só de frio. Ele sorriu ternamente, pegou na minha mão direita e depois esfregou-a com rapidez.

- Vais ficar boa - confortou ele. - Logo que estejas enfiada dentro da banheira.

- A minha mãe...

- Ela está só transtornada. Eu acalmo-a e mando-a já para cima. Não te preocupes - disse ele. Parecia tão atencioso, tão meigo. Senti que o muro de ódio que eu tinha construído entre nós se começava a desagregar, mas continuava a lutar contra isso. Queria o meu papá. Mais do que nunca, precisava do meu papá, mas ele não estava ali. Estava longe, muito longe, longe de mais até para ouvir a minha voz pelo telefone.

- Vá lá - apressou ele. Levantou-se, ainda a agarrar a minha mão. Eu desci os meus pés ao chão e levantei-me. Enquanto isso, ele levou os dedos ao colarinho da minha camisa e puxou-a devagar para trás por cima dos meus ombros e pelos braços abaixo. De um momento para o outro, estava de cuecas e soutien. - Vai - sussurrou ele, e eu senti o seu hálito quente no meu pescoço. Sem olhar para trás caminhei até à casa de banho.

A enorme banheira estava cheia e a fazer bolhas. Não podia parecer mais convidativa. Voltei-me e comecei a fechar a porta. Ele estava lá, de pé, ainda a segurar a minha camisa nas mãos, com um sorriso forçado nos lábios.

Depois de fechar a porta, despi o soutien e as cuecas e entrei dentro da água quente e azulada. Ao princípio, doíam-me os tornozelos, mas pouco depois de mergulhar por completo, senti uma maravilhosa onda de calor que afastava a sensação de frio. Gemi de prazer e fechei os olhos. Depois, veio a sensação de alívio, alagando-me, inundando-me de maneira a conseguir respirar, descontrair e até esboçar um ténue sorriso. Ouvi baterem à porta e abri os olhos.

"A mamã subiu finalmente", pensei.

A porta abriu-se, mas não era a mamã. Era o Tony. Espreitou com a cabeça.

Esqueceste-te do roupão - disse ele e abriu mais a porta. Submergi o meu corpo o máximo que pude. A espuma do sabonete escondia parte da minha nudez, mas ainda me sentia muito exposta e extremamente perturbada quando ele entrou e pendurou o roupão num gancho. - Como está a água?

- Está boa.

- Eu sabia que estaria - afirmou ele, fitando-me. Não percebia como é que ele podia ser tão insensível ao meu pudor, mas comportava-se como se fosse mesmo o meu pai. Não te sintas mal, o Troy vai ficar bem - disse ele, como se achasse que era essa a razão da minha expressão desconfortável.

- Eu não pensei que nos podíamos perder, porque conseguíamos seguir as nossas pegadas na neve, mas começou a nevar tão depressa que cobriu tudo e...

- Não faz mal. À sério - insistiu ele, ajoelhando-se ao lado da banheira. - A água ainda está suficientemente quente? - Mergulhou o dedo a centímetros da minha coxa.

- Sim, está boa. bom, vais ficar bem, agora?

- Sim - respondi eu prontamente. Cruzei os braços por cima dos meus seios.

- Eu podia lavar-te as costas. Sou perito em lavar costas

- acrescentou ele, aumentando o seu sorriso.

- Não. Estou quase a sair.

- Não te apresses. Não estás envergonhada, pois não? Agora somos uma família - prosseguiu ele. - Seremos tão íntimos e chegados quanto possível, como se tivéssemos vivido juntos a vida inteira. Vais ver. - Inclinou-se para a frente para me beijar a testa com ternura, agarrando a minha cara entre as palmas das suas mãos. Manteve a sua cara próxima da minha e olhou-me nos olhos, transparecendo nos seus luminosidade e afecto.

- bom, ainda bem que já cá tens a maior parte das tuas coisas. Queres que te vá buscar alguma coisa? Também sei fazer de criado de quarto, sabes - acrescentou com um sorriso divertido.

- Não. Ficarei bem.

Ele acenou com a cabeça, mas continuou a olhar para mim.

- Está bem - disse ele por fim. - vou ver como está a tua mãe e o Troy.

Soltei um suspiro profundo quando ele saiu. O meu coração palpitava com tanta força que pensei que iria fazer com que a água por cima do meu peito esguichasse. Nenhum homem, nem o papá desde os dez anos, me tinha visto nua e ali estava eu, coberta apenas pela água quente e pela espuma, com o Tony a poucos centímetros de distância. Tinha sido humilhante; mas também me tinha excitado de um modo que eu nunca esperara. Iria ser tudo tão confuso, com ele a pensar que podia ser o meu pai. Voltei a fechar os olhos e, no momento em que o fiz, imaginei os seus olhos azuis a perscrutar a minha cara, quase a tocar-me com o seu olhar intenso.

Quando passei a esponja ensaboada pelos seios, fiquei surpreendida por os meus mamilos terem ficado tão duros. Seria devido ao frio e ao calor ou teria alguma coisa a ver com a vibração que eu sentia a subir pelas minhas coxas acima e a descer pelo estômago abaixo, quando pensava nos dedos do Tony dentro de água, a dois ou três centímetros do meu corpo desnudado?

Antes de conseguir pensar sobre o assunto, a mamã entrava de rompante pela casa de banho adentro. Tinha recuperado a sua calma, mas ainda estava muito zangada.

- Como pudeste fazer uma coisa tão estúpida, Leigh? Tu, uma rapariga inteligente, que tem umas notas tão altas na escola? - perguntou ela, a andar para a frente e para trás.

- Pensei que não fazia mal. Podíamos seguir as pegadas e...

- Mistress Hastings foi lá fora procurar o Troy e depois voltou para dentro e perguntou se alguém vos tinha visto entrar. Por isso, o Tony mandou os empregados irem à vossa procura e eles voltaram dizendo que não havia sinal de vocês os dois.

"Tu sabes como é o Tony em relação ao seu irmãozinho, já de si imoderado e obviamente superprotector, mas quando ouviu dizer que tu e o Troy tinham desaparecido, ficou doido de preocupação. Formou-se um grupo para ir à vossa procura pelo meio da tempestade. E eu, com todas aquelas pessoas cá dentro.

Zás. A mão dela caiu sobre o balcão de mármore.

Mas quando eles vos trouxeram para dentro e o Tony disse que se tinham perdido no labirinto...

- Mamã, oiça só...

Nada mais nada menos do que ir lá para dentro no meio de uma tempestade. Em que é que estavas a pensar? Fizeste isto de propósito para me tentar envergonhar porque tens pena do teu pai? Ou talvez hoje não te esteja a prestar atenção suficiente, é isso? Talvez não fosse suficiente o Tony ter-te oferecido esta suite e a princesa teve de causar alguns problemas para que toda a gente reparasse nela!

NÃO! - gritei eu. - Aconteceu por acaso. Começou a nevar tão depressa que não nos apercebemos de que as nossas pegadas ficariam cobertas.

- Porque é que entraste no labirinto? - perguntou ela, com o olhar firme, o mais desconfiada possível.

- O Troy queria-me mostrar a casa pequena e eu pensei

- Oh, aquela criança. É tão mimado.

- Não, mamã, ele sente-se só e...

- Aquele menino precisa é de disciplina. Tens de ser mais firme com ele, Leigh. Insisto. Tens de te pôr no lugar de irmã mais velha, que sabe mais, percebes? Se tiveres dúvidas sobre alguma coisa que ele queira fazer, perguntas-me a mim ou ao Tony, mas não alimentes os caprichos dele. Oh, meu Deus - exclamou ela, vendo a sua imagem no espelho.

- Olha como eu estou. E isto tudo a acontecer precisamente antes do meu casamento.

- Desculpe, mamã. - Voltei a submergir na água.

- Bem... e deves mesmo pedir desculpa. Este casamento é a coisa mais importante que alguma vez me aconteceu... ou a ti, minha jovem. Vai ser perfeito. Não queres adoecer precisamente antes do casamento, pois não? Estás a imaginar o aspecto que daria tu atrás de mim a fungar, a espirrar e a tossir durante o cortejo nupcial? - Fez uma careta como se aquilo estivesse a acontecer nesse preciso momento.

- Está bem, mamã. Eu vou para a cama mal saia do banho.

- Óptimo. Oh, Leigh - disse ela, premindo a palma da mão contra o peito -, que susto. - Suspirou e depois sorriu como se alguém tivesse fechado o livro nessa cena. - Mais tarde virei cá acima e teremos uma conversa óptima sobre a minha lua-de-mel. Contar-te-ei todos os pormenores e depois discutiremos o meu guarda-roupa, o que devo levar, as jóias, a maquilhagem, está bem?

"Pobre querida. Tenho a certeza que ficaste aterrorizada lá fora. Mas já passou - acrescentou de repente, acenando com a mão como se estivesse a enxotar moscas. - Vamos esquecer o assunto. Temos demasiadas coisas maravilhosas em que pensar, não é?

- Sim, mamã.

- Óptimo. Não quero ter mais nenhum dia triste depois do que se passou, nem mais um. Porquê eu? Tenho tudo o que alguém pode desejar: juventude, dinheiro e um marido bonito e extremoso. - Baixou o olhar para mim. - Tenho a certeza de que um dia terás o mesmo. Bem, sai daí e seca-te ou vais ficar como uma ameixa seca - acrescentou ela e riu-se. - vou mandar arranjar um chá quente.

Foi-se embora e eu saí da banheira. Sequei-me e vesti o roupão de veludo. Depois, fui para o meu quarto e escolhi a camisa de noite mais quente que encontrei. Enfiei a camisa à pressa e rastejei para dentro dos cobertores.

Estava muito cansada. Adormeci mal fechei os olhos e nem sequer ouvi a empregada a trazer o chá.

A mamã não faltou à sua palavra. Recusou-se a ouvir falar mais sobre o incidente no labirinto, como lhe chamou. Logo que o Tony e ela vieram à minha suite ver se eu estava melhor e ele trouxe o assunto à baila, a mamã interrompeu-o com uma veemência surpreendente.

- Por favor, Tony, não falemos mais sobre este assunto. Aconteceu e já passou. Graças a Deus estão todos bem.

Uma das consequências do incidente foi que a mamã e eu íamos passar a noite em Farthy. Quando o Tony nos deixou a sós, ela informou-me e explicou-me porquê.

- Dei razão ao Tony - disse ela. - É melhor ficarmos por cá hoje à noite. Ainda está a nevar com muita intensidade e é melhor não te levar de novo para o meio da tempestade. Amanhã de manhã, depois do pequeno-almoço, voltamos para Boston e acabamos os preparativos da mudança para Farthy. O Tony promete honrar os meus desejos e não sair da sua suite hoje à noite - prosseguiu ela, com um sorriso coquete e um virar de ombros. A situação era fascinante.

- Também vão ter quartos individuais depois de se casarem?

- Claro.

- Mas nunca teve quartos individuais em Boston. Sempre partilhou o quarto com o papá - aleguei eu. Se ela estava apaixonada pelo Tony, pensei, porque é que queria ficar separada? Quando me apaixonasse, sabia que nunca iria querer o meu próprio quarto. Iria querer dormir com o meu marido todas as noites, em todos os momentos.

Eu sempre desejei ter a minha suite, mas o teu pai nunca conseguiu perceber. Uma mulher precisa da sua privacidade. Não quero o meu marido em cima de mim enquanto estou a efectuar os meus rituais de beleza. Há coisas que prefiro que ele não saiba - acrescentou ela, mirando-se num dos espelhos do meu toucador. - Tenho os meus métodos secretos para manter a minha pele sem rugas, métodos esses que partilharei contigo quando chegar a altura, claro, mas um marido não precisa de saber.

"Uma mulher tem de manter a sua áurea de mistério. Se um homem souber tudo sobre nós, vai perder o interesse. Mas se conseguirmos surpreendê-lo uma vez por outra, ele vai considerar-nos excitantes para sempre. É por isso que há coisas que eu hei-de ensinar-te, mas que nós nunca haveremos de contar aos homens, mesmo àqueles que amamos. Percebes? - perguntou ela, sorrindo.

- Sim. - Eu sabia que um dos segredos que ela queria manter bem guardado era o da sua idade. Possivelmente, se o Tony a visse à frente do toucador todas as noites, haveria de calcular que ela era muito mais velha do que pretendia ser, pensei eu.

- E além disso - continuou, a passear calmamente ao lado da minha cama, como se fosse uma professora e estivesse a dar uma aula -, há momentos em que não nos apetece ter contactos íntimos com o marido. Os homens conseguem ser tão insistentes, tão incómodos com os seus impulsos e as suas necessidades. Importunam-nos até à exaustão e só param quando cedemos aos seus apetites.

"Se tivermos quartos separados, só é preciso fechar a porta e deixar do lado de fora todos aqueles comportamentos incómodos, irritantes e insuportáveis. Se quiseres permanecer jovem e bonita, tens de ser um pouco egoísta, Leigh. Pensamos que um homem pode ser delicado e perceber, principalmente um homem que diz que te ama, mas às vezes os homens não conseguem controlar-se. O desejo sexual deles é muito mais exigente.

"Mas - observou ela, acenando com a mão no ar -, de certeza que a esta altura já sabes muitas dessas coisas.

- Oh, não, mamã. Não sei.

- A sério? Como és inocente e amorosa - disse ela, olhando para mim como se estivesse a ver-me pela primeira vez. - Quando eu tinha a tua idade... - Fez uma pausa e mordeu o lábio inferior. - bom, esses tempos eram diferentes. Eu não tinha nem uma quarta parte do que tu tiveste e estava à mercê de companhias diferentes. Nós crescíamos mais depressa.

"De facto - prosseguiu ela depois de soltar um profundo suspiro -, eu desperdicei metade da minha infância, perdi aquele momento de inocência maravilhoso em que o mundo parece cor-de-rosa e em que não há nada mais trágico do que não sermos convidadas para uma festa ou termos uma borbulha na cara.

Comecei a rir; depois pensei que, se a mamã encontrasse agora uma borbulha na cara, ia achar que era o fim do mundo. Nesse ponto de vista, ela não era assim tão diferente das minhas amigas.

- Pronto! - exclamou ela, voltando ao presente. - Fica na cama, confortável e quentinha. O Tony vai mandar servirem-te o jantar cá em cima.

- Eu posso vestir-me e ir ter com vocês à sala de jantar. Sinto-me óptima - protestei eu.

- Não, não. Estiveste em estado de choque. Eu passo por cá depois do jantar e teremos aquela conversa sobre a lua-de-mel. - E saiu.

Pouco depois, trouxeram-me o jantar por ordem do Tony, que transformou o jantar numa produção grandiosa, só para me divertir, tenho a certeza. Cada prato era servido por uma empregada diferente e o Curtis trouxe a entrada. Depois, apareceu o Tony em pessoa com a sobremesa e uma pequena toalha no braço, como um empregado de mesa. Vi-me impossibilitada de resistir e ri-me.

- Ah, é essa a cara que eu preciso de ver - reagiu ele. Retrocedeu, depois de pousar a tarte de leite-creme sobre a minha mesa-de-cabeceira. Senti-me corar. - Ainda bem que estás a sentir-te melhor. A comida foi suficiente?

- Oh, sim, obrigada. Mas eu podia muito bem descer.

- Não faz mal. Tens de te habituar a ser estragada com mimos. Agora vais viver como uma princesa - explicou ele, com uma voz terna e sedutora. - Farthy é um palácio. Os Tatterton são um império. - Tinha uma expressão tão séria, que eu nem esbocei um sorriso. - Queria comprar-te um guarda-roupa totalmente novo e disse à Jillian para nem sequer ter o trabalho de emalar as tuas coisas de Boston, mas ela insistiu em trazer algumas.

- Eu tenho imensa roupa nova, roupa que ainda nem sequer estreei - repliquei eu. - Não preciso de um guarda-roupa novo.

- Veremos. De qualquer modo, precisas de mais alguma

Não, obrigada. O Troy está bem?

Quase a dormir, mas conto que seja um dos primeiros a acordar de manhã. Por isso, não te admires se ele te entrar pela porta adentro quando descobrir que dormiste cá. Eu não lhe disse, mas ele é um Tatterton e, tal como eu, pressente tudo o que acontece de novo e de diferente em Farthy. Farthy faz parte de nós e nós fazemos parte dela. Existe uma ligação estranha, quase misteriosa, entre os Tatterton e a sua casa - explicou ele, olhando à sua volta, como se a casa pudesse realmente sentir, ouvir e saber as coisas que aconteciam no seu interior e o que era dito dentro dela. - Esta casa absorve-nos, a nossa história, as nossas paixões, os nossos desejos e sonhos - prosseguiu ele, num tom de voz pouco mais alto do que um murmúrio.

O seu olhar parecia sonhador e longínquo e deu-me a impressão de que se tinha esquecido que eu estava no quarto com ele. O amor que nutria pela sua casa era tão intenso, quase assustador.

- É por isso que eu espero que esqueças a má experiência por que passaste hoje no labirinto - referiu ele, olhando para mim com os seus olhos azuis semicerrados. - Não culpes Farthy. Quero que venhas a gostar deste lugar tanto como eu.

- Eu não culpo ninguém nem nada. Foi só um erro estúpido - reconheci eu.

Ele calou-se, o que me pôs nervosa, e senti que devia dizer mais qualquer coisa.

- Desde o primeiro momento que a vi, achei que Farthy era linda... Era como um reino de contos de fadas.

- É verdade - concordou ele. - Um reino de contos de fadas - sussurrou, com o olhar embaciado, longe dali. Voltou a haver um longo momento de silêncio entre nós e então ele bateu com as palmas da mão uma na outra. Pronto. Deixo-te para comeres a tua deliciosa sobremesa. Já aí virá alguém para levar os pratos. Dorme bem, Leigh disse ele, vindo na minha direcção. - Posso dar-te um beijo de boas-noites?

Eu hesitei. Seria isto outra traição ao papá? Sempre que estava em casa, vinha-me dar um beijo de boas-noites. O Tony, porém, parecia tão sincero e arrependido que não consegui dizer que não. Tinha-se preocupado tanto comigo. Também não era justo para ele, pensei. Acenei que sim com a cabeça e ele inclinou-se e beijou-me ternamente na testa, detendo os lábios um bocadinho mais do que eu esperava.

Depois, foi-se embora.

Os empregados vieram e levaram os meus pratos. Fiquei com o olhar fixo na porta vazia, a ouvir os sons vagos que vinham lá de baixo. Acordava e adormecia, passava pelas brasas uns minutos, num momento, e depois acordava, de repente, apercebendo-me de onde estava e do que tinha acontecido.

A mamã veio ao meu quarto mesmo antes de ir para a suite dela, como tinha prometido. No entanto, em vez de conversar sobre os planos para a sua lua-de-mel, contou-me tudo o que se tinha passado ao jantar, falou sobre alguns dos convidados, divagando sobre o serviço, sobre a louça, sobre os vários tópicos de conversa. O seu monólogo pôs-me ainda mais sonolenta e, quando os meus olhos se fecharam no meio de uma das suas frases, declarou que já estava na hora de ela ir dormir também.

- Queremos tomar o pequeno-almoço cedo e partir para Boston, não é? - disse ela e deu-me um beijo de boas-noites.

À porta, voltou-se e riu-se, um riso agudo, num tom alto.

- Que dia tão estranho, ainda que maravilhoso, foi este

- disse. - Tenho a sensação de que a partir de agora todos os nossos dias irão ser tão excitantes como este. Vais ajudar-me a tratar disso, não vais, Leigh?

Abri os olhos e olhei para a mamã, perplexa. Que quereria ela dizer com isto? O seu casamento com o Tony não era a realização dos seus sonhos? Qual era o meu papel na felicidade dela?

- Não vais, Leigh? - Não era uma pergunta, mas uma exigência feroz.

Após um dia exaustivo, só queria era dormir.

- Claro, mamã - concordei eu, com fraqueza, incapaz de encontrar forças para recusar, antes de entrar num sono profundo.

Partimos para Boston logo a seguir ao pequeno-almoço, tal como a mamã tinha planeado. A tempestade de neve havia terminado pouco depois da meia-noite, mas tinha caído uma quantidade tão grande e com tanta intensidade que havia quase meio metro de neve. Farthy parecia um país das maravilhas de Inverno à cintilante luz matinal do Sol. Era como se alguns dos pinheiros estivessem cobertos por lençóis brilhantes, pois quase que não se via verde.

Durante a viagem de volta a Boston, a mamã finalmente desvendou os pormenores dos planos para a sua lua-de-mel. Ela e o Tony iriam de avião até St. Moritz, ficariam instalados no Hotel Palace, um sonho que eu sabia que ela tinha há muito tempo e, visto que o Tony esquiava tão bem e já lá tinha estado, este concordou prontamente.

É um lugar maravilhoso para passar a lua-de-mel -

contou-me ela. - Vão lá estar membros da aristocracia europeia e tu sabes que eu sempre tive muita vontade de ficar instalada no Hotel Palace.

"Nunca tive uma lua-de-mel no verdadeiro sentido da palavra - prosseguiu ela. - Depois do casamento, o teu pai e eu viemos directos para Boston. Ele tinha prometido levar-me a Havana, mas, como era de prever, logo que chegámos a Boston, alegou que havia surgido uma grave crise no seu negócio, em parte devido à sua estada prolongada no Texas. Podes imaginar? Estava indirectamente a culpar-me por ter ficado no Texas mais tempo do que o previsto, para pedir a minha mão em casamento.

"Agora, finalmente - concluiu ela -, vou ter a lua-de-mel que mereço. Infelizmente, estaremos fora no Natal e no Ano Novo, mas terás tudo à tua disposição em Farthy e montanhas de prendas. Se quiseres que o Miles te leve a algum sítio, ele leva-te. Entendes, não entendes? - perguntou ela, sem parar para respirar. Estava quase a implorar a minha aprovação.

- Sim, mamã - respondi eu, mas não consegui deixar de me sentir infeliz por iniciar a minha vida em Farthy, que em parte ainda me era um lugar estranho, sem o papá ou sem ela.

- Compensar-te-emos quando voltarmos. Já sabes que o Tony está a mexer influências para poderes frequentar o melhor colégio particular para raparigas das redondezas, não é?

- acrescentou ela, repentinamente. Eu não tinha conhecimento de nada, pelo menos até esse preciso momento. Partira do princípio de que iria para uma escola oficial perto de Farthy.

- Não, não sabia. Que colégio, mamã?

- Chama-se Winterhaven1. Não é um nome maravilhoso

 

1 A tradução de Winterhaven seria "Refúgio de Inverno", o que pode ser uma alusão ao facto de ser um colégio interno. (N. da T.)

 

para um colégio particular? Soa a classe e riqueza, não soa? Sabes que é um colégio especial, porque tem uma lista de espera enorme, mas o Tony tem a certeza que consegue mexer os cordelinhos e conseguir que tu entres, principalmente sendo tu uma aluna tão boa. É interno - acrescentou ela bruscamente.

- Interno? Quer dizer que eu fico a viver lá... como num colégio interno?

- O Miles leva-te de carro todos os domingos à noite e podes voltar todas as sextas-feiras, se quiseres. Não te parece maravilhoso? Pensa em todas as amigas novas que terás e todas elas provenientes de famílias conhecidas e abastadas. E também vais conhecer rapazes de boas famílias. Organizam bailes e encontros com uma escola secundária só de rapazes. Vais estar finalmente rodeada de pessoas da tua classe, Leigh... finalmente - acrescentou ela, de um só fôlego. E depois, como se não houvesse mais nada a discutir sobre este assunto, afastou-se e começou outra vez a rever os planos para o casamento.

Eu recostei-me, estupefacta. Todas estas mudanças a precipitarem-se sobre mim! Ia passar o Natal e o Ano Novo sozinha em Farthy. Ia para um colégio só de raparigas, interno, e teria de fazer novas amigas. A minha vida estava mesmo de pernas para o ar. Eu devia ter previsto isso, pensei, devia ter-me apercebido do que me iria acontecer; contudo, tinha continuado a iludir-me, sonhando que iria tudo voltar ao que era. Agora que ouvia os pormenores mais complicados, os meus sonhos rebentavam como balões. E não podia fazer nada.

Senti-me ainda mais triste e deprimida quando chegámos à nossa casa em Boston. Visto que o papá ia estar tanto tempo fora e nós nos íamos mudar para sempre, os nossos empregados tinham de ser despedidos. De quem eu gostava mais era do Clarence e do Svenson e eles simpatizavam comigo. Estavam connosco desde que eu me lembrava. Aquela viagem a casa podia ser a última vez que nos víamos uns aos outros.

No entanto, fiquei contente quando soube que o papá os ia contratar para trabalharem num dos navios dele. Nos paquetes, havia sempre lugar para um bom cozinheiro e, como o Clarence era um empregado tão perfeito, ia ser nomeado para servir o capitão do barco.

Uma segunda coisa que me fez feliz foi descobrir uma carta do papá. Tinha acabado de chegar das ilhas Canárias. O Clarence trouxe-a ao meu quarto, pouco depois da nossa chegada. Percebi pela expressão dele que não tinha contado à mamã. Talvez fossem essas as instruções que o papá deixara Eu não gostava de ter segredos com a mamã, mas pensei que assim talvez fosse melhor. Não teria que se sentir mal com nada.

Abri a carta rapidamente e li-a.

Minha muito querida Leigh,

Espero que esta carta te encontre a salvo e bem de saúde. Eu sei que não podes estar a sentir-te feliz com todas estas reviravoltas que a tua vida deu, mas espero que, de algum modo, as coisas tenham acalmado e que, com o tempo, venhas a ser outra vez feliz. Eu, claro, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que tal aconteça.

A minha viagem para as ilhas Canárias não teve incidentes de maior. Porém, o sítio é bonito e estou contente por me terem convencido a incluí-lo no meu projecto. Definitivamente, vai mesmo fazer parte das nossas rotas.

Partiremos dentro em breve para Miami, na Florida, onde irei trabalhar os meus itinerários das Caraíbas com peritos em viagens, entre outras pessoas. Parece que passarei lá as festas, mas telefono-te na noite da passagem de ano. Sei onde estarás.

É verdade, Leigh. Eu conheço os planos da tua mãe em voltar a casar. Foi um dos temas da nossa conversa naquele dia em que ela veio ao meu escritório e te pediu para nos deixares a sós. Eu sabia que isto só iria contribuir para aumentar o teu sofrimento, por isso não quis tocar no assunto. Talvez agora a tua mãe encontre esse mundo de felicidade com o qual sonha. Ela também me contou que planeava mandar-te para uma das melhores escolas secundárias da costa leste. Fico mais descansado sabendo que, pelo menos, desfrutarás de todos os confortos materiais que a vida tem para oferecer.

Prometo ir visitar-te sempre que possa. Durante algum tempo gostava de me enterrar no trabalho. Tem-me ajudado a superar a crise emocional e a tragédia. No entanto, é um consolo para mim saber que estarás aí quando voltar.

Neste momento és a única parte suave e bonita da minha vida que me resta. Não quero dizer nada que te faça chorar, por isso, fecha as escotilhas e espera que o meu barco regresse. Prometo que voltará.

com amor, do teu papá

As paredes do meu coração estremeceram. Retive as lágrimas cá dentro e engoli os gritos que tentavam emergir da minha garganta latejante. O papá não queria que eu chorasse; não queria que esta carta me deixasse triste, nem perturbada, mas era tão difícil ler as suas palavras e não ouvir a sua voz, não ver a sua barba grisalha, as suas faces rosadas, os seus olhos plenos de orgulho e de amor. Era difícil ouvir as palavras na minha mente e não o imaginar lá em baixo, no seu escritório, a escrevinhar na sua velha escrivaninha. Queria gritar "NÃo, NÃO, NADA DISTO ACONTECEU!" Queria que os meus gritos apagassem todos os momentos infelizes e que nos trouxessem de volta os momentos felizes. Não vou tolerar isto, não vou, não vou!

O meu coração palpitava com fúria e frustração; porém, os meus punhos frágeis e fracos aterraram insignificantemente em cima da mesa. Quem iria ouvi-los? Quem se importaria? Deixei cair a cabeça nos braços, em cima da carta do papá, e afoguei os meus gritos respirando fundo. Depois, ergui a cabeça, dobrei a primeira carta do papá com cuidado e pu-la dentro do meu diário. Sabia que iria ficar cada vez mais fina e estragada nas pontas, comigo a abri-la e a fechá-la constantemente, depois de a ler e reler.

Quando a mamã passou pelo meu quarto, já estava recomposta e ocupada a empacotar as últimas coisas que queria levar para Farthy. Claro que íamos deixar muitas coisas ali, em Boston. A mamã tinha decidido que algumas coisas não tinham qualidade suficiente para irem para Farthy; outras, ela iria comprar novas para as substituir.

- Não vais acreditar nisto - disse ela, perdida de riso. Acenava com uma carta. - A minha mãe decidiu que afinal vinha ao meu casamento, apesar de as minhas horríveis irmãs não comparecerem.

"Aliás - continuou ela, fitando a carta -, se não houve alterações de horário, ela deve chegar hoje a Boston.

- Quando? A que horas? - Uma visita da avó Jana era sempre uma ocasião especial. As suas visitas não eram frequentes porque ela detestava viajar e não gostava do Norte, principalmente do Nordeste. No entanto, quando chegava, ausava sempre bastante rebuliço. A mamã não ficava muito contente quando ela vinha e soltava sempre um suspiro de alívio quando a avó se ia embora. A mamã olhou para o relógio.

- pode ser a qualquer momento. É melhor avisar os empregados, em especial o Svenson. Sabes como ela costuma ser meticulosa com a comida. Oh, raios. Estava à espera que ela e as minhas irmãs com cara de bruxas chegassem juntas no dia do casamento, que assistissem e se fossem logo embora. Neste momento, não tenho tempo para lhe dar atenção. Tens de me ajudar, Leigh. Ela gosta mais de ti do que de mim.

- Oh, mamã, não gosta nada - protestei eu.

- Gosta, sim, mas não faz mal. Eu não me importo. Até é milagre ela gostar de alguém. Agora, por favor - pediu-me a mamã -, não ponhas uma cara infeliz. Já vou ter de a ouvir a dizer cobras e lagartos sobre o meu divórcio e o meu segundo casamento tão rápido. Se ela te vê para aí a fazer caretas...

- Eu não vou andar para aí a fazer caretas - protestei eu, voltando-me rapidamente, para ela não reparar nos meus olhos.

- Óptimo. Assim é que é, minha menina, minha querida menina - exclamou. - Bem, o que é que ia fazer? Ah, sim, avisar os empregados - disse ela e saiu do meu quarto a correr.

A avó Jana chegou realmente pouco menos de duas horas mais tarde, queixando-se amargamente dos aviões, dos comboios e dos táxis, ao mesmo tempo que entrava em casa atrás da sua bagagem. Ouvi-a a gritar com o taxista que se debatia com a bagagem e que arranhou uma mala na porta, à entrada. O Clarence foi a correr ajudar o pobre homem.

Era difícil acreditar que uma senhora de idade, com pouco mais de um metro e meio de altura, uma pequena amostra de mulher, conseguisse pôr homens feitos num rodopio e a tremer daquela maneira, mas a voz dela soava como um chicote quando estava zangada e os seus olhos pequenos e penetrantes faziam faíscas. Tinha o seu cabelo dourado-prateado apanhado num carrapito tão apertado que até parecia que a pele do canto dos olhos e a testa estavam deformadas, o que apenas contribuía para o seu comportamento furioso e impetuoso. Até a mamã parecia aterrorizada e recuou, com as mãos entrelaçadas contra o peito, enquanto a avó Jana balançava a sua bengala ameaçadoramente na direcção do taxista que estava desejoso de passar o testemunho ao Clarence. Fiquei parada, na escadaria, a observar.

- Aquelas malas sobreviveram nas mãos de monos no aeroporto. Não pretendo que se estraguem a caminho da casa da minha própria filha - guinchava ela, enquanto o taxista fugia a sete pés.

- Olá, mãe - cumprimentou a mamã. Deu-lhe um abraço desastrado, durante o qual a avó Jana não tirou os olhos do Clarence, que tentava, aflito, carregar as malas pela escadaria acima, com o máximo de cuidado possível. Os olhos dela encontraram-me.

- Não fiques aí especada, rapariga. Cumprimenta a tua avó - ordenou ela. Desci a correr os degraus que faltavam. A avó Jana deu-me um abraço verdadeiro e um beijo que me aqueceu o coração e depois afastou-me. - Deus meu, olha para ti. Cresceste quase trinta centímetros, e de outras maneiras também, pelo que vejo.

- Não cresci tanto assim, avó - disse eu a sorrir. Ela grunhiu e virou-se para a mamã.

- Antes de me instalar, quero saber o que se está a passar... com todos os pormenores - informou ela. Os lábios da mamã tremeram enquanto forçava um sorriso. A avó olhou em volta. - Imagino que o Cleave já não esteja nesta casa - acrescentou.

- Não, está numa das suas viagens.

- Hum! - resmungou a avó. Foi directamente para o escritório do papá e abriu as portas com um empurrão, apontando para dentro com a sua bengala. A mamã lançou-me um olhar rápido, rezando para que eu pensasse em alguma coisa para dizer em sua ajuda, mas eu estava tão chocada como ela com a rudeza da avó Jana.

- Não quer uma chávena de chá ou lavar-se primeiro, mãe?

- Absolutamente não. Usaremos o escritório do Cleave

- insistiu ela e entrou. - JILLIAN! - chamou a avó.

- Está bem, mãe. - A mamã abanou a cabeça, impotente, e seguiu a avó ao escritório do papá. O que é que a mamã lhe teria contado sobre o divórcio e o segundo casamento que a tinha posto tão nervosa?

- Fecha a porta atrás de ti - ordenou a avó, no momento em que a mamã estava a entrar no escritório. A mamã fechou a porta, mas ficou mal fechada e eu conseguia ouvir as vozes delas. Dei uma vista de olhos à escadaria quando o Clarence vinha a descer, limpando o suor da cara. Ele sorriu-me e depois foi-se embora. Não havia mais ninguém no átrio de entrada. Não conseguindo controlar a minha curiosidade, sentei-me no banco colonial que estava colocado mesmo à esquerda da porta do escritório do papá, a fingir que estava à espera que elas saíssem.

Então, que história é essa de o Cleave não te amar -

começou a avó Jana. - Não estavas preocupada com isso quando eu consegui que ele se casasse contigo, a correr, no Texas. Tiveste uma sorte danada em encontrar alguém tão bem instalado na vida que te quisesse.

- Tu sabes que eu nunca me resignei com esse casamento. Sabes que nunca amei o Cleave e nunca o consegui. Eu não era capaz de acreditar no que estava a ouvir. Nunca amara o papá? Nunca conseguira? Mas a história... as estrelas cadentes... a Cinderela...

- Nunca conseguiste? - bufou a avó. - Suponho que terias sido mais feliz agora, se eu te tivesse deixado casar com aquele inútil do Chester Godwin, depois de ele te ter engravidado, hem? Sim, suponho que a ele conseguiste tu amar. A esta hora estariam os dois a viver numa simpática barraca, no bairro da lata, e a Leigh andaria por aí esfarrapada.

"Mas em vez de me agradeceres por te ter arranjado um homem rico e decente, que te iria proporcionar uma vida mais do que confortável, o que é que fazes?... Detestas-me e ainda deitas tudo a perder por um homem quase vinte anos mais novo!

As palavras dela feriram-me os ouvidos: "... depois de ele te ter engravidado..."? O que é que a avó Jana estava a dizer? A mamã já tinha estado grávida uma vez antes de me ter a mim? Fizera um aborto? Havia outra criança?

- Eu não estava à espera que tu percebesses alguma coisa - replicou a mamã, hesitante -, e muito menos que te importasses com os meus sentimentos, com as minhas necessidades e os meus desejos. O Cleave agora é um velho. Não se interessa por nada que não seja o seu negócio. Sou jovem de mais para me enterrar e tive a sorte de ter encontrado um homem como o Tony Tatterton. Espera até veres a mansão Farthinggalle, espera até veres...

- O que é que este jovem sabe do teu passado? Sabe a verdade? Contaste alguma vez a verdade ao Cleave, ou ele ainda pensa que a Leigh é filha dele? - perguntou a avó Jana.

Foi como se um par de mãos gigantescas, invisíveis, me tivessem agarrado pela cintura e me comprimissem. Inclinei-me sobre os joelhos, de agonia, abraçando-me a mim própria. Que dizia a avó Jana...? O papá não era o meu pai verdadeiro? Houvera outro homem que a engravidara e o papá casara com ela sem saber? Quem era eu? Como é que ela podia ter escondido um segredo tão horrível, tão horrível, do papá e de mim!

- Porque é que eles têm de saber essas coisas? - interrogou a mamã, com a voz a enfraquecer.

- Bem me parecia. - Podia imaginar os olhos da avó Jana a fulminarem a cara da mamã. - Esse Tony Tatterton sabe a tua verdadeira idade?

- Não - respondeu a mamã, baixinho. - E por favor, não lhe digas. Não me estragues a vida.

- É repugnante. Outra vida construída sobre mentiras. A minha cabeça está no seu lugar e eu devia era dar meia volta e ir directamente para casa, mas vim e ficarei, por atenção à Leigh. Aquela pobre criança, a ter de passar por situações atrás de situações, arrastada por uma mãe egoísta, vaidosa, insensata.

- Isso não é justo - gritou a mamã. - Tenho feito tudo o que posso para que a Leigh tenha uma vida feliz, mais feliz do que a minha, que foi uma desgraça. Agora vai viver como uma princesa e frequentar as melhores escolas e conhecer a nata da sociedade, e tudo graças a mim, graças à minha beleza e graças ao estado em que a minha beleza pode deixar um homem!

- Daqui não provirá nada de bom - predisse a avó Jana, numa voz bíblica. - Ouve o que te digo. Tu és uma pecadora, Jillian! - pronunciou a avó Jana num tom de voz apocalíptico. - E muito pior, és uma pecadora muito mais estúpida do que eu alguma vez imaginei!

- bom, está tudo feito, assinado e selado, e não há mais nada que possas fazer ou dizer sobre este assunto. Já não diriges a minha vida como o fazias no Texas, e não quero que andes por aí a escarnecer de tudo. Isto vai ser o casamento mais maravilhoso, talvez o acontecimento social mais importante do ano, em Nova Inglaterra.

- Hum! - resmungou novamente a avó.

A mamã começou então a descrever os planos para o seu casamento. Levantei-me do banco devagar, parecendo uma sonâmbula a subir as escadas, ainda agarrada a mim própria.

Nunca contaria ao papá, pensei. Nunca partiria o coração dele, e estava-me nas tintas para o que era verdade e o que era mentira... Na minha mente e no meu coração, ele seria sempre o meu papá. Mas a mamã, todas aquelas mentiras, aquelas histórias. Era como se estivessem a rebentar bolhas à minha volta, luzes a estilhaçarem-se, bandeiras a esvoaçarem pelo ar, o meu mundo a ruir como uma casa feita de cartas de jogar, ou, como a avó Jana disse, uma vida de mentiras.

E a mamã a viver a maior mentira de todas. O conselho dela veio-me à boca como leite azedo. Ainda conseguia visualizar a cara dela quando mo disse, com a sua máscara de sinceridade, falsa sinceridade:

"Lembra-te disto, Leigh: as raparigas decentes não vão até ao fim. Pelo menos, enquanto não se casarem. Promete-me que não te vais esquecer disto."

Não esquecerei, mamã.

No topo da escadaria voltei-me. Queria gritar cá para fora, queria que ela soubesse que eu tinha ouvido.

NÃO ESQUECEREI, MAMÃ!

 

MARCHA NUPCIAL

Nada fiz para que a mamã percebesse o que eu tinha ouvido casualmente, enquanto estava sentada à porta do escritório do papá; mas agora, sempre que olhava para ela, via alguém diferente da mulher com quem eu tanto tinha desejado parecer-me. Era quase como se a minha verdadeira mãe se tivesse ido embora, deixando em seu lugar esta sósia, esta mulher que tinha o cabelo da mamã, os olhos da mamã e a linda pele da mamã, mas que, por dentro, era vazia.

De qualquer modo, passámos a maior parte do nosso tempo a discutir os últimos preparativos para o casamento. Vendo bem, era o nosso único tema de conversa. Até a avó Jana era arrastada para as discussões quando a mamã, inteligentemente, lhe perguntava a opinião sobre isto ou aquilo. E depois Farthy, com os seus poderes mágicos e a sua presença mística, dominou a avó por completo. Apesar do sentimento que nutria em relação à mamã deixar o papá e casar-se com um homem tão mais jovem, a avó Jana ficou impressionada. O tamanho e a opulência da Mansão Farthinggale deixaram-na sem fôlego. Quando atravessámos os portões, a expressão dela era de espanto, perguntando-se em voz alta, tal como eu o tinha feito, como era possível um único homem possuir tanta coisa.

O Tony também lhe dera a volta com o seu charme, tratando-a como se ela fosse um membro da família real. Se ele tivesse um tapete vermelho para lhe estender sobre os degraus e sobre a neve, tê-lo-ia feito. Colocou a mão direita dela sobre o seu braço esquerdo, escoltou-a através dos enormes quartos, explicou-lhe quem era a pessoa neste e naquele retrato ancestral, passou bastante tempo a rever a história desses antepassados e falou-lhe dos seus pais e avós.

Ao almoço, pôs os empregados e as empregadas a servirem à volta dela como abelhas. Mal a avó pensava em levantar uma colher ou em ir buscar um prato, aparecia logo um empregado que se antecipava aos seus desejos e o fazia por ela E enquanto isso, a mamã deixou-se ficar em segundo plano, sossegada, a fazer o seu sorriso tipo Mona Lisa. Qualquer resistência ou reserva que a avó Jana trouxesse à chegada desaparecera. Depois de assistir à maneira como o Tony Tatterton a apaparicara, a adulara, a encantara com os seus modos, a sua aparência e a sua fortuna, percebi porque é que um homem deste tipo conseguia roubar o coração de qualquer mulher, especialmente o de uma mulher como a mamã.

- Eu tinha a certeza que o Tony Tatterton conseguia domá-la - sussurrou a mamã ao meu ouvido quando fomos para a nossa casa de Boston pela última vez, pois no dia seguinte seria o casamento e, quando voltássemos, seria para sempre. À noite, mesmo antes de ir dormir, empacotei todas as minhas fotografias e lembranças importantes. Deixara esta tarefa para o último momento, pois tinha esperanças de que nada disto fosse acontecer. Agora, porém, o meu destino estava traçado.

De manhã, a casa zumbia de actividade. A mamã voava de uma divisão para a outra como uma abelha num campo de flores selvagens. Estava tão agitada e excitada que, quando eu lhe fazia a pergunta mais simples do mundo, entrava em pânico e implorava-me para que eu resolvesse o problema sozinha. Recusou-se a comer ao pequeno-almoço. Eu também não tinha muito apetite, mas comi o que consegui. Esta seria a minha última refeição preparada pelo Svenson; a última servida pelo Clarence. Só quando entrámos na limusina é que me apercebi de que a mamã não tinha convidado nem o Svenson nem o Clarence para o casamento. Encontravam-se os dois à porta, lado a lado, enquanto o Miles arrumava as malas na bagageira.

- Boa sorte para si, menina - desejou-me o Clarence, com a lágrima ao canto do olho.

- E não se esqueça de nos vir ver quando for a bordo do paquete do seu pai - disse o Svenson.

Murmurei um adeus e entrei a correr atrás da mamã. Sentia as minhas próprias lágrimas latentes nos olhos. A mamã olhou para a minha cara e gemeu.

- Oh, Leigh, por favor, não ponhas essa expressão tão deprimida no dia do meu casamento. O que é que as pessoas irão pensar?

- Deixa-a sossegada - replicou a avó Jana. - Não é o dia do casamento dela. Ela pode ter a expressão que quiser.

- Bem, eu não posso passar o tempo a tentar animá-la Hoje não. Tenho demasiadas coisas para fazer - afirmou a mamã com petulância. Depois, fez beicinho e olhou para o outro lado. Nunca me tinha apercebido de que ela podia ser tão mimada quando não lhe faziam tudo exactamente como queria.

Olhei para trás e contemplei a nossa casa de Boston. O Clarence e o Svenson ainda estavam nas escadas a ver-nos a partir. Recordei os tempos em que era pequena e sabia que o papá devia estar a chegar a casa a qualquer momento de uma das suas viagens. Brincava na sala de estar, mantendo sempre um ouvido à escuta na direcção da porta principal. Logo que ouvia o Clarence a abri-la, ia a correr saudar o papá e, por muito cansado que estivesse, ele abria-se sempre num enorme sorriso alegre e estendia os braços para que eu corresse para eles. Eu dava-lhe um beijo enorme e sonoro na face.

- É assim é que se dá as boas-vindas a um marinheiro!

- exclamava ele. - Hem, Clarence?

Ainda agora conseguia ouvi-lo. Depois da primeira curva, a casa desapareceu de vista e deu-me a impressão de que a minha infância tinha acabado num instante.

Desta vez, quando passámos por baixo do eminente arco dos portões de Farthy, senti o significado deste acto. Esta enorme propriedade era agora a minha casa, pensei, quer eu quisesse quer não. Os trabalhadores estavam ocupados a limpar todos os flocos de neve remanescentes no caminho e nas escadas. Duas empregadas estavam absorvidas na limpeza de cada resíduo de bronze e de ferro à vista, e meia dúzia de homens, a limpar as portadas e os vidros.

Os preparativos para o casamento junto com as decorações da época natalícia criavam uma atmosfera extremamente festiva. Havia luzes espalhadas pelas sebes, lanternas a balouçar, suspensas nas árvores sempre verdes, e enfeites prateados e dourados por todo o lado. O boneco de neve do Troy, apesar de ter diminuído consideravelmente por causa da luz do Sol, ainda se erguia em frente da mansão. Ele tinha-lhe posto uma cartola na cabeça e uma gravata preta à volta do pescoço. A visão do boneco provocou-me um sorriso de boas-vindas, apesar de a mamã achar que alguém já devia ter mandado aquilo abaixo.

- Oh, o Troy vai ficar desolado. Teve tanto trabalho com o boneco.

- Existe um tempo e um lugar para estas coisas, Leigh.

O Tony tem de deixar de alimentar os caprichos do irmãozinho!

Fez um sorriso rápido para a avó Jana. - Agora que

eu estou aqui, tudo isso vai mudar.

Lá dentro, a orquestra ensaiava no salão de baile; o pessoal da cozinha punha a comida nas mesas gigantes. Os arrumadores estavam reunidos à volta do chefe deles como jogadores de futebol à volta do treinador, para receber as últimas indicações. A mamã subiu directamente à sua suite para dar os últimos retoques com a ajuda do seu cabeleireiro. Havia um tráfego ininterrupto de pessoas nos corredores: damas de honor, acompanhantes, floristas e fotógrafos. Um redactor da coluna social do Globe estava à porta da suite da mamã a tentar que ela lhe concedesse uma entrevista.

O Troy estava muito excitado. Sempre que tinha oportunidade, levava as pessoas a verem a sua colecção de brinquedos. Passaram por lá parentes, primos, tias e tios. Nunca pensei que uma casa daquele tamanho pudesse ficar tão cheia. Pensei que o casamento ia ser uma confusão, mas, quando chegou o momento, tudo e todos estavam no lugar certo.

Fui ter com as outras damas de honor ao corredor do primeiro andar. Deram a cada uma um bouquet de rosas para levarmos. O Troy, bonito como sempre no seu smoking e gravata preta, foi arrastado pelas escadas abaixo para ocupar o seu lugar no altar, junto do Tony. Por fim, fez-se silêncio. Ouvimos as primeiras notas do piano. Uma onda de emoção passou pelas faces de todos.

A mamã surgiu da sua suite com um ar angélico no seu vestido de noiva vitoriano coberto de pérolas. Sorria através do véu e parou para me apertar a mão, quando passou por mim. O meu coração começou a bater com tanta força e a minha cara estava tão quente que pensei que ia desmaiar. Senti-me horrível, pois sabia que lhe devia dizer qualquer coisa terna, qualquer coisa amorosa, mas doía-me a garganta de engolir as lágrimas.

- Deseja-me boa sorte - pediu-me ela.

Sorte? O que é que a sorte tinha a ver com o amor e com o casamento? A mamã ficara grávida de mim por azar ou apenas por estupidez? O papá viera ao Texas naquela noite fatídica por azar ou por manipulação da avó Jana? A Elisabeth Deveroe lembrara-se da mamã para fazer o trabalho em Farthy e tinha-a levado lá para conhecer o Tony por sorte ou por azar? Ele apaixonara-se por ela ao primeiro olhar por sorte ou por azar? Teria o papá pensado que tudo tinha sido um grande azar? Estaria a pensar isso agora?

Onde estaria o papá nesse momento?, pensei. A meio caminho da Florida, talvez de pé, na ponte do seu navio, a olhar para o mar e a pensar em nós, aqui em Farthy? Estaria a pensar em mim?

- Boa sorte, mamã - murmurei rapidamente, enquanto ela continuava em direcção ao fim do grupo.

Ouvimos a Marcha Nupcial e a procissão começou. Enquanto descíamos a enorme escadaria, baixei o olhar para o mar de rostos que se me deparavam, para aqueles homens e mulheres elegantemente vestidos, todos eles a olhar para cima, a contemplar-nos, e senti-me como se fizesse parte de um grandioso espectáculo. A mamã, obviamente, era a estrela. Eventualmente, estariam todos de olhos postos nela. Eu já me encontrava no meu lugar; por isso, quando ela fez a curva no fim da escadaria, conseguia ver-lhe a cara. Estava linda e estática. Encontrava-se pura e simplesmente no lugar que sempre desejara, pensei, no centro das atenções.

E, de repente, apeteceu-me gritar "PÁRA!", de acabar com tudo e de revelar bem alto o meu desconforto e a minha agonia. "Como é possível que estejam todos tão alegres e excitados! Como é possível que queiram todos fazer parte disto?" Sonhei que gritava. Queria contar a verdade a todas essas pessoas ricas e sofisticadas. "A minha mãe nunca contou ao meu pai a verdade sobre mim. Temos vivido uma mentira durante todo este tempo e agora ela afastou-me dele e trouxe-me para aqui, para viver com um homem vinte anos mais novo do que ela. Mais falsidades. Tudo mentiras, mentiras, mentiras!"

No entanto, cobarde como sou, engoli as palavras do meu sonho. A potência da música, das luzes, da emoção e a visão do Tony, tão alto e elegante, de pé, junto ao altar, e o pequeno Troy com uma expressão tão adulta e séria ao seu lado, tudo isso me deteve. Senti-me totalmente impotente perante aquela loucura, levada nas suas ondas. Avistei a avó Jana sentada na fila da frente e vi-a acenar e sorrir para mim. A esta altura, até ela tinha sido absorvida pela cerimónia. Os acontecimentos fluíam, transcendendo-nos. Não conseguíamos sustê-los.

O pequeno Troy espreitou por detrás do Tony à minha procura. Quando me viu, sorriu e acenou-me com a mão. O Tony fitou-o e ele, diligente, retomou o seu lugar. A seguir, a mamã ocupou o seu lugar no altar; a música parou e as palavras começaram. O meu coração palpitava ao som das palavras, principalmente ao som de "... e prometo ser-te fiel e amar-te e honrar-te, tanto na prosperidade como na provação até Que a morte nos separe."

A mamã pronunciara o mesmo voto com o papá e fora em vão. Qual era o valor de proferir essas palavras, até mesmo perante o altar? Observei a expressão do Tony para desvendar o que lhe ia na cabeça. Teria pensado o mesmo que eu... que ela pronunciara as mesmas palavras com outro homem e que quebrara esse voto? Desta vez seria a sério?

O Tony olhava para os olhos da mamã, enquanto ela falava. Parecia enfeitiçado. De uma maneira subtil e misteriosa, ela havia conseguido penetrar nos seus reinos e agora controlava tudo, pensei. Parecia que ele estava pronto para aceitar ou dizer qualquer coisa só para a possuir. Detestava-o por estar tão apaixonado por ela.

Chegou o momento em que o pequeno Troy tinha de exibir a aliança. No meio daquela excitação, precipitou-se a tirá-la do bolso e deixou-a cair. O som metálico pareceu ecoar pelo colossal átrio de entrada e houve um sobressalto simultâneo de todos os espectadores, assemelhando-se a um suspiro conjunto de gigantescas dimensões. Percebi que o Troy estava prestes a chorar, mas o Tony apanhou rapidamente a aliança e deu-lha para ele lha devolver. A mamã fulminou o Troy com o olhar, retomando, logo a seguir, o seu sorriso.

As alianças foram apresentadas, as derradeiras palavras pronunciadas e o pastor declarou-os unidos pelo matrimónio. Beijaram-se e o público aplaudiu. A mamã lançou o seu enorme bouquet na direcção das damas de honor e foi cair directamente nas mãos da Nancy Kinney, a dama de honor com o aspecto mais singelo. A seguir, ela e o Tony atravessaram a multidão imensa e deu-se início à recepção.

Levei um copo de ponche e hors d'oeuvres à avó Jana, que estava sentada na sala de música a cumprimentar pessoas. O Troy, um pouco assustado pela multidão e pelo alvoroço à sua volta, não se afastou de mim a maior parte do tempo. Andavam dois fotógrafos pela casa a tirar fotografias para o álbum do casamento. Tiraram algumas a mim e ao Troy, ao pé um do outro, em que estávamos ambos com os olhos esbugalhados e um pouco desconfortáveis, comigo ainda agarrada ao bouquet de rosas.

Pouco depois, abriram as portas do grandioso salão do banquete e os convidados foram entrando, aliciados pelo som da orquestra. Quando já estavam quase todos no salão, o maestro mandou parar a orquestra e foi ao microfone anunciar a festa do casamento. Primeiro entraram todas as damas de honor seguidas do Troy. Após um rufar de tambores, a mamã e o Tony entraram de braço dado, e a cara dela resplandecia de excitação. Os aplausos foram aumentando em crescendo e ouvia-se o rumor de máquinas fotográficas. A mamã e o Tony deslocaram-se para o meio da pista de dança e a orquestra começou a tocar uma valsa. Dançaram como se tivessem dançado juntos a vida toda.

Enquanto eles davam voltas e se movimentavam com graciosidade, não conseguia deixar de imaginar o dia do meu casamento. Iria ser um acontecimento grandioso como este, com uma orquestra completa, centenas de convidados, toneladas de comida e uma horda de empregados? Se a mamã levasse a sua avante, iria ser assim. Talvez até me casasse aqui, seguindo a tradição dos Tatterton, que se ia tornar agora a minha. E o meu marido, seria tão bonito e tão jovial quanto o Tony? Iria estar profundamente apaixonada ou iria a mamã encontrar-me um aristocrata rico qualquer e convencer-me a casar-me com ele?

E quando vestisse o meu vestido de noiva, ficaria de algum modo parecida com a mamã? Reparei no respeito e na inveja que transpareciam nos olhos das outras mulheres enquanto ela e o Tony dançavam. Não havia um fio de cabelo fora do lugar; a sua pele era perfeita. Parecia uma deusa, uma estátua de Afrodite ressuscitada.

Pouco depois, outros casais foram juntar-se ao Tony e à mamã na pista de dança, e a recepção entrou em pleno ritmo. Eu sentia-me rodeada de champanhe a borbulhar. Bebi dois copos e senti-me um pouco tonta.

Fiquei contente quando o Troy me encontrou e me puxou pela mão, insistindo para que eu o seguisse para "ver uma coisa". Escapámo-nos do salão de baile, atravessámos o som da música, das conversas, do tinir dos copos de champanhe, o som estridente dos risos e percorremos o corredor até uma sala de estar nas traseiras. O Troy abriu a porta dupla com um empurrão. O chão da sala estava inundado de prendas de casamento, algumas empilhadas a uma altura de quase um metro.

- Olha para isto! - exclamou ele. - O Tony disse que podíamos abrir tudo mais logo.

Eu só conseguia acenar com a cabeça, de espanto. Havia tanta coisa. O Troy caminhou através dos corredores de prendas, tocou em algumas, deu pancadinhas leves em outras e depois encostou o ouvido às caixas para ver se descobria o seu conteúdo. Eu ri-me e abanei a cabeça.

- Estás feliz, Troy? Feliz por o teu irmão estar casado e por a minha mãe vir viver para cá com ele? - Ele parou de

inspeccionar os presentes de casamento e virou o olhar para mim, com uma expressão sombria. - Não estás feliz, Troy?

Continuou silencioso.

- Mas porque não?

- A tua mãe não gosta de mim - disse ele, com um ar de quem estava prestes a chorar.

O quê? Porque é que dizes isso, Troy? - Ele encolheu os ombros. - Diz-me, por favor.

Ela olha para mim com rosnidos nos olhos - respondeu ele de rompante.

- Rosnidos? O que é isso? Ele rosnou como um cão.

- Ah! - Comecei a rir, mas percebi que ele estava muito sério. - Oh, tenho a certeza que não é a intenção dela, Troy. É só porque... é que ela nunca teve um menino. Ela só me teve a mim e não está habituada a meninos. Daqui a algum tempo, vai-se habituar a ti e tu a ela.

Ele voltou a encolher os ombros; percebi pela sua expressão que não tinha muitas esperanças.

- Tenho pena que não estejas contente por o teu irmão se ter casado, Troy.

- Eu estou contente. Tu agora ficas aqui, não é?

- Sim. Agora fico aqui.

- Então, estou contente - repetiu ele, batendo palmas com as suas mãozinhas.

- Ainda bem - disse eu. - Vendo bem, é também o que mais me agrada nesta situação. - Ajoelhei-me e abracei-o.

- Anda - chamou ele, dirigindo-se para a porta. - Vamos voltar para a festa, senão perdemos o bolo.

Dei uma olhadela à montanha de prendas e depois voltei com ele para o salão de baile.

Tinham montado uma mesa especial ao centro da sala. Sobre a mesa, encontrava-se um bolo de casamento que ia até ao céu, com as figuras do noivo e da noiva a dançarem sob a palavra PARABÉNS. A mamã e o Tony foram até à mesa para a tradicional cerimónia do corte da primeira fatia. A mamã cortou-a com cuidado e deu-a a comer ao Tony, que tentava desesperadamente manter alguma dignidade enquanto ela lhe enfiava a enorme fatia pela boca abaixo, mas a cobertura cremosa espalhou-se pelo queixo dele e caiu sobre o smoking. Todos riram e aplaudiram. Quando ia ter com a avó Jana para receber o meu pedaço de bolo, a mamã agarrou-me o braço.

- Correu tudo bem, não correu? - Olhou em volta, orgulhosa. - Estas pessoas jamais se esquecerão. Vai ser um eterno tema de conversa. E a tua avó? - perguntou, olhando na direcção da avó Jana, que estava embrenhada numa conversa com outra senhora da idade dela.

- Parece estar a divertir-se.

- Ficarei mais descansada quando a avó voltar para o Texas. Sabe-se lá o que ela anda para aí a dizer a estas pessoas. - Perguntei-me a mim própria se a mamã estava com medo que a avó Jana me contasse a verdade sobre o seu passado. Virou-se para mim. - O que foi?

- Nada, mamã.

- Pareces triste. Como é que alguém pode estar triste numa ocasião destas? - Fez uma pausa e suspirou. - Ainda estás preocupada, não é? Não tens culpa de sair ao teu pai, suponho. - Estremeci. Ela mentia com tanta sinceridade. Talvez por mentir há tanto tempo, pensei. Quanto tempo conseguiria eu esconder o que sabia? - Vem comigo - disse ela, de repente.

- O quê?

- Segue-me. Depressa. Quero-te mostrar uma coisa. Pegou-me na mão e conduziu-me para fora do salão de dança. Dirigimo-nos para a escadaria e subimo-la a passo rápido.

- Onde vamos?

- À minha suite - respondeu. Quando chegámos, foi ao cofre na parede. - Pedi ao Tony que me instalasse este cofre para guardar as minhas jóias - explicou. Em seguida, acrescentou, voltando-se para mim com um sorriso perverso.

- E... os meus documentos.

- Documentos?

Ela persistiu no seu sorriso maldoso e abriu o cofre. Depois, meteu lá a mão e tirou uma pasta com uma aparência imponente. Dentro da pasta estavam três folhas grandes de papel agrafadas. Passou-ma para a mão e eu li o título: "Acordo pré-nupcial".

- O que é? - perguntei.

- É um contrato entre o Tony e eu - explicou ela com orgulho. - Mandei o meu advogado prepará-lo.

- Um contrato?

- Sim. Se nos divorciarmos por alguma razão - disse ela enquanto apontava para umas frases no segundo parágrafo da primeira página -, eu fico com metade do que ele tem. Metade! - repetiu ela. - Metade de tudo isto - disse, estendendo os braços. - Está escrito aqui - prosseguiu, apontando para os papéis que se encontravam nas minhas mãos. Eu olhei para eles, mas as palavras não me diziam nada não só porque não entendia os "No caso de..." e os "Tendo em conta...", mas também pelo efeito do choque de descobrir que o caso amoroso da mamã e do Tony estava escrito no papel em linguagem jurídica como se fosse a escritura de uma casa.

- Não percebo, mamã. Porque é que precisa disto?

- Por segurança - referiu ela, pegando nos papéis, obviamente descontente com a minha confusão. Voltou a colocá-los no cofre da parede. Depois de o fechar, voltou-se para mim. - Não há nenhum homem no mundo em quem eu confie. Nem um. Pensava que já te tinha ensinado isso.

- Mas não está apaixonada pelo Tony?

- Claro que estou apaixonada por ele. O que é que uma coisa tem a ver com a outra?

- Mas se está apaixonada, porque é que precisa de um contrato destes? - Eu ainda estava perplexa.

- Sinceramente, Leigh. Para uma aluna com tão boas notas, às vezes consegues fazer perguntas muito estúpidas. Eu já te disse... Nunca confies num homem, por nenhuma razão. Eu amo o Tony e ele ama-me a mim, mas isso não quer dizer que daqui a algum tempo ele não faça alguma coisa que me desagrade ou invente que eu fiz qualquer coisa que lhe desagradou, só para me levar à certa. Isto é uma segurança - disse, apontando para o cofre. - Ele sabe que não me pode despachar sem perder metade do que tem e isso ajuda a manter um homem sob controlo.

"Queria mostrar-te isto agora, para te sentires melhor em relação ao teu futuro. A partir de agora vais ter tudo, Leigh. Não tens de te preocupar com mais nada.

- Mas o Tony não ficou aborrecido quando lhe pediu este contrato?

- Ficou, mas ama-me tanto que reprimiu quaisquer sentimentos que este acordo lhe tenha provocado - contou ela, com orgulho. - É por isso que o amo. Eu sou a coisa mais importante da vida dele. Percebes?

Não sabia o que dizer. Pensava que amor significava confiança. Seria possível estarmos apaixonados com a sombra de advogados e juizes à espreita?

- bom, agora que sabes tudo, também podes sentir-te feliz - concluiu ela. - Vamos. Temos de voltar para a recepção.

Dei instruções aos empregados para entregarem as lembranças dos Tatterton nesta altura e quero ver as caras deles quando cada um receber a sua.

"Põe uma cara feliz, Leigh. Por favor. Afasta os maus pensamentos só por um dia e fica contente por mim.

- Eu vou ficar contente por si, mamã. - Roçou-me na cara um beijo rápido e depois descemos as escadas a correr. Estava estupefacta com as revelações da mamã. Seria que as coisas boas, verdadeiras e honestas só aconteciam nos livros de histórias? Nada parecia ser o que era na realidade. A vida era tão complicada como... como o labirinto lá fora. "Não admira que seja tão fácil perdermo-nos", pensei.

A avó Jana foi-se embora antes do fim da recepção. Estava ansiosa por voltar para a casa dela, no Texas, apesar de aqui todos a tratarem como uma rainha. O Tony tinha tomado providências para que o Miles a levasse de carro até ao aeroporto. Acompanhei-a lá fora à limusina, uma vez que a mamã estava demasiado ocupada para se despedir convenientemente.

- Adeus, avó - disse eu. - Boa viagem até casa. Ela ficou ali, parada, com um olhar pensativo, fixo em mim e depois abraçou-me com tanta força que quase me tirou a respiração. Contemplou-me, e depois os olhos dela diminuíram e endureceram. Por um momento, pensei que me ia contar tudo, que ia deixar escapar a verdade sobre todas as mentiras terríveis da mamã e explicar porque é que tinha ficado transtornada, quando soubera do divórcio da mamã e do seu novo casamento; o seu olhar, porém, retomou a sua ternura e ela aliviou a força que estava a fazer nos meus ombros.

- Espero que sejas feliz aqui, Leigh, mas, se por alguma razão não fores, lembra-te sempre que podes vir ter comigo. Eu não vivo neste luxo, mas vivo bastante confortável - disse, parecendo bem diferente do papão que a mamã muitas vezes fazia dela. Naquilo que a mamã me contara sobre o seu passado no Texas, quanto havia de verdade?, perguntei a mim própria.

- Obrigada, avó.

Ela voltou a beijar-me e entrou na limusina. Vi-a desaparecer de vista e depois voltei para dentro. Pouco depois começaram a sair os convidados.

Ouvi a mamã chamar o meu nome e vi ela e o Tony a descerem a escadaria juntos. Os saltos dela em contacto com as escadas de mármore produziam um ruído seco. Como parecia experiente e confiante, a descer a escadaria em passo vagaroso, de braço dado com o Tony. Vestia o seu fato preto de crepe de lã, enfeitado com uma gola e punhos de pele de marta. Visto de baixo, o casaco dela deixava entrever uma blusa branca de chiffon que brilhava. Contrastando com o tom escuro do fato, a cara da mamã sobressaía, deslumbrante que só visto. Parecia um conjunto de diamantes sobre veludo preto.

O Tony vestia um casaco de cabedal preto e um lenço branco lustroso. Tal como a mamã, tinha um aspecto fresco e cheio de vida. Imaginei que ainda estariam animados pela excitação do dia e pela que ainda estava para vir. Pareciam ambos tão jovens, plenos de vivacidade e tão felizes juntos.

- Acreditas que já acabou? - perguntou a mamã. Estás perante Mister e Mistress Tony Tatterton. Como é que ficamos ao lado um do outro, Leigh? - Apertou-se contra o Tony.

- Maravilhosos - respondi eu, tentando que a minha voz soasse o mais excitada possível, mas a mamã não ficou satisfeita. O seu sorriso esmoreceu.

- bom, estamos de saída. Tens tudo o que necessitas e sabes tudo o que precisas de saber. Gostava de poder estar aqui contigo na manhã do dia de Natal, quando abrires os teus presentes, mas sei que tu entendes a situação.

- Tenta impedir que o Troy abra os presentes até à noite de Natal - disse o novo e atraente marido da mamã, que me seguia com os olhos por todo o lado e fazia aquele seu sorriso que parecia escarnecer e saber tanta coisa.

- O Tony prometeu-lhe que ele podia abrir os presentes de casamento - lembrei eu, quebrando com os meus olhos o seu olhar fixo em mim.

- Tínhamos combinado fazer isso quando voltássemos da nossa lua-de-mel - lamentou-se a mamã. - Ele terá de esperar.

- Oh, não sei qual é o mal de ele desembrulhar alguns

- compadeceu-se o Tony. - Não deixes é que ele estrague nada.

- De certeza que vai estragar, é uma criança - queixou-se a mamã. - Oh, deixa lá, neste momento não quero pensar em nada que seja minimamente desagradável. Adeus, Leigh, querida. - Abraçou-me, e mesmo com a fúria mal contida, devolvi-lhe o abraço forte, com uma ferocidade que acho que a surpreendeu. De repente, não queria que ela se fosse embora, precisava dela, no fundo do meu coração, precisava que fosse minha mãe e que me aquecesse com abraços, beijos e pequenas carícias.

- bom Natal e feliz Ano Novo na tua nova casa. Não tenhas medo de explorar o território - disse o Tony. - Vais demorar quase tanto tempo como nós na nossa lua-de-mel

- Mas, por favor... afasta-te do labirinto - avisou a mamã.

- Está bem, mamã. Divirta-se - disse eu, quase sem fala.

- Posso dar um beijo de despedida à minha enteada? perguntou o Tony. - Adeus, Leigh. Até breve. - Os seus longos braços agarraram-me e, mesmo através do cabedal, sentia-os fortes e musculosos. Beijou-me na face, mas muito próximo do canto da boca. A mamã pareceu ter ficado impressionada com o tempo que ele me teve nos braços e por ele me ter beijado com tanta ternura e afecto. Depois, enfiou o seu braço no dele e saíram. O Curtis abriu-lhes as grandes portas e depois fechou-as atrás deles. Acenou-me com a cabeça e foi-se embora.

Ouvi as vozes de alguns empregados e o eco do pessoal no salão de baile a carregarem as coisas de volta para a cozinha. Fecharam as portas e, de repente, fez-se silêncio total no enorme átrio de entrada. Olhei à minha volta. Era como se todos os espíritos dos antepassados Tatterton tivessem sido sorvidos de novo aos seus retratos e lugares eternos. O recém-surgido silêncio tornou-se ensurdecedor. Olhei através de uma janela da fachada da frente e vi que as luzes de Natal estavam acesas. Os jardins, as sebes e as árvores resplandeciam em vermelhos, verdes e azuis. Parecia que um arco-íris se esmigalhara e que tinham chovido pedaços dele por toda a mansão Farthinggale.

Mrs. Hastings desceu e disse-me que o Troy estava quase a dormir. Foi-se juntar aos outros empregados que estariam agora, deduzi eu, na cozinha a fazer a festa deles e a celebrar com os restos da recepção.

Fui à sala de música onde o Tony tinha mandado colocar e decorar a árvore de Natal de três metros de altura. Tinham-lhe acendido as luzes, e a árvore estava encantadora, com o seu anjo de vidro a brilhar no topo. Havia presentes espalhados e empilhados à sua volta. A lareira de mármore estava acesa. O quarto parecia preparado, pronto para acolher uma família.

Mas, onde estava a família? E quem tinha feito tudo aquilo? Era quase como se a casa tivesse vida própria e como se cada uma das suas salas renascesse à sua maneira quando chegava a sua hora. Perguntei a mim própria se estaria tudo ligado a um interruptor automático. No dia de Natal, a árvore iluminar-se-ia a si própria espontaneamente e a lareira acender-se-ia sozinha. De repente, como se a casa estivesse mesmo a brincar comigo, começou a ouvir-se música de Natal através dos altifalantes embutidos nas paredes.

Eu ri. Senti-me tão tonta de súbito... Teriam também programado um Pai Natal a descer pela chaminé na noite de Natal? O Curtis devia estar nas redondezas e provavelmente teria ouvido a minha gargalhada, porque logo a seguir apareceu à porta, pondo uma expressão confusa quando percebeu que eu estava sozinha...

- Precisa de alguma coisa, Miss Leigh?

"Sim", era o que eu queria dizer. "Traga-me o meu papá e a minha mamã. Traga-me a felicidade que já vivemos. Ponha-nos juntos nesta sala quente, a rir e a sorrir, a dar beijos e abraços ternurentos uns aos outros. Transforme-me este Natal num Natal verdadeiro."

- Não, Curtis. Agora não. Obrigada.

- Muito bem, menina. Se quiser alguma coisa, é só tocar à campainha.

- Obrigada.

Ele assentiu com suavidade e desapareceu. Olhei para a árvore de Natal e para os presentes e depois contemplei os murais feitos pela mamã. Sentia o meu coração pesado como chumbo e doía-me a garganta de reprimir os soluços. Saí depressa e subi para a minha suite. Estava tão cansada. Vesti a minha camisa de dormir e enfiei-me por debaixo dos cobertores da minha nova cama. Depois de apagar o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, olhei através das cortinas transparentes de uma das minhas janelas e vi a Lua a espreitar por detrás de uma nuvem, o que me fez ir até à janela.

Contemplei a vastidão que constituía a mansão Farthinggale. Dali podia ver o longo caminho sinuoso lá em baixo. Nessa noite, sob o efeito da neve derretida, o caminho reluzia como uma banda de prata. Era mais fácil sentirmo-nos sozinhos num lugar tão grande e tão rico como Farthy, pensei eu. Os meus amigos de Boston nunca pensariam dessa maneira, mas eu não me lembro de alguma vez me ter sentido tão pequena e tão só como me estava a sentir nesse momento.

Olhei para cima, vi a Estrela Polar e recordei-me do papá, quando me explicou que os marinheiros dependiam dela quando estavam perdidos. Poderia eu depender dela? A estrela difundiria o seu brilho reflectindo-o de volta para mim. Talvez o papá estivesse algures também a olhar para ela. Talvez me tivesse atirado um beijo e esse beijo tivesse ressaltado da Estrela Polar e tivesse descido até mim, ali, em Farthy.

- Boa noite, papá - sussurrei eu.

- Boa noite, princesa - disse, fingindo que estava a ouvi-lo.

Voltei para a cama e, pela primeira vez na vida, não estava ansiosa por que a manhã de Natal chegasse nem tive dificuldade em adormecer.

Acordei com alguém a sacudir-me e abri os olhos para deparar com o Troy a puxar-me a mão.

- Acorda, Leigh. Acorda!

- Quê? - Esfreguei os meus olhos com os punhos e olhei em volta. Iria demorar algum tempo até me habituar a acordar num quarto tão grande.

- É Natal. Vem. Temos de ir lá para baixo e abrir os nossos presentes. Anda lá. Despacha-te.

- Oh, Troy - gemi eu. - Que horas são? - Olhei para o meu relógio. Eram só sete da manhã.

- Despacha-te - implorou ele.

- Está bem. Está bem, Troy. Dá-me uns minutos. As raparigas demoram mais tempo a levantar-se do que os rapazes

- disse eu, à espera de uma pequena prorrogação.

- Porquê? - Virou os seus olhos cépticos para mim.

- Porque têm de arranjar o cabelo e a cara e ter um aspecto apresentável. Bem vistas as coisas, os rapazes também fazem a mesma coisa.

Ele pensou um pouco e baixou o olhar para se observar a ele próprio, que ainda estava de pijama, roupão e chinelos.

- Está bem. Eu vou pentear o cabelo e venho ter contigo daqui a uns minutos! - exclamou ele e saiu a correr. Eu ri-me e levantei-me da cama. Lavei o sono da minha cara e dei um jeito ao cabelo, consciente de que a mamã nunca sairia do quarto assim. Mas a mamã nem sempre tinha razão, pensei. Mais do que nunca, agora era esta a minha opinião. Vesti o roupão e encontrei o Troy impaciente à minha espera na sala de estar. Mal cheguei, deu-me a mão e conduziu-me pelas escadas abaixo. A seguir, precipitou-se sobre os presentes. Mrs. Hastings apareceu atrás de mim a rir.

- Feliz Natal - desejou ela.

- Feliz Natal.

- vou tratar do pequeno-almoço, se desejar - ofereceu-se ela.

- Obrigada, Mistress Hastings. Espero que consigamos afastá-lo dos presentes o tempo suficiente para comer acrescentei eu. Ajoelhei-me ao lado do Troy e ajudei-o a desembrulhar primeiro os presentes dele.

O presente maior era uma televisão só para ele. Havia uma no gabinete, mas agora ele teria uma no seu quarto.

Tenho de levá-la para o meu quarto - disse ele, excitado.

Espera. Há tempo para isso, Troy. Vê primeiro os outros presentes.

- Está bem. E tu desembrulha os teus também. Eu ofereci-te um.

- A sério? - A mamã e eu tínhamos ido às compras de Natal e passáramos metade do tempo a tentar conseguir alguma coisa "adequada" para o Tony, uma vez que ele tinha tudo. Ela decidiu oferecer-lhe um alfinete de gravata em ouro maciço e com diamantes nas pontas. Depois, mandou gravar "com amor, Jillian", na parte de trás. Eu tive alguns problemas em imaginar uma prenda suficientemente boa para o papá. Luvas e gravatas de seda, loções para a barba caras, luvas de camurça, uma boquilha nova para o cachimbo... Nada tinha significado próprio para um papá que não iria abrir a prenda comigo ao lado.

Por fim, numa das lojas, reparara numa prenda que não era tão cara como as outras em que eu tinha pensado, mas que me encheu o coração de prazer e de calor só de imaginar o papá a desembrulhar e a ver a prenda. Era uma fotografia especial, que se tirava ao lado de uma árvore de Natal. Em baixo, o fotógrafo gravava em relevo as palavras "Feliz Natal". E também podíamos gravar o nosso nome e a data. Comprei também uma bonita moldura de pinho para pôr a fotografia lá dentro.

Quando posei para a fotografia, fiz o sorriso mais caloroso e mais amoroso que consegui, pois sabia que seria o sorriso que o papá veria sempre, principalmente quando estivesse sozinho e tivesse vontade de pensar em mim. Mandei embrulhá-lo e deixei-o na secretária do papá na casa de Boston, para que ele a encontrasse mal voltasse da sua viagem.

Decidi comprar um kit de montagem para o Troy, uma vez que ele era tão bom a trabalhar com as mãos. Era um brinquedo, mas ele também podia fazer dali qualquer coisa criativa. Até tinha um motor eléctrico, por forma a que, Se ele quisesse construir uma roda gigante, ela rodaria mesmo. Ficou muito excitado quando abriu a caixa e viu o que era. Para minha surpresa, o Troy sabia exactamente do que se tratava. Levantou-se logo e deu-me um grande abraço e um beijo.

- Obrigada, Leigh. Agora vê o presente que tenho para ti - pediu ele. - Fui eu que o fiz e embrulhei.

Abri o pequeno embrulho e não acreditei no que estava perante os meus olhos. Tinha sido feito por ele? Era um cavalinho de cerâmica com uma amazona. A amazona era removível.

- Este é o Sniffles - explicou o Troy -, o meu pónei. E esta és tu, a montá-lo.

- Foste tu que fizeste?

- A rapariga, não - confessou ele. - O Tony mandou fazer na fábrica, mas fui eu que fiz o Sniffles. Tirei-lhe uma fotografia, decalquei, modelei e cozi. Depois pintei-a acrescentou ele, com orgulho.

- É lindo, Troy. É um dos melhores presentes de Natal que alguma vez recebi. Obrigada. - Dei-lhe um beijo na face. Os olhos dele reluziram e depois continuou a desembrulhar as prendas. Que rapazinho tão maravilhosamente talentoso, pensei. Como é que a mamã não ficava seduzida por ele?

- Tens mais presentes - disse ele, apontando. Havia pelo menos uma dúzia de caixas diferentes embrulhadas em papel brilhante, com o meu nome escrito, alguns da mamã, outros do Tony, mas saltou-me logo à vista uma caixinha em especial, porque reparei no logotipo da companhia de transatlânticos do papá no envelope do cartão.

com cuidado, levantei a caixa e percorri a tampa amorosamente com os dedos. O Troy ficou impressionado com a maneira reverente com que eu a tratava. Pousou a prenda e chegou-se para junto de mim.

- O que é? - perguntou num sussurro.

- A prenda de Natal do meu papá. Não sei como, apareceu aqui.

- Porque é que não abres? - Os olhos dele oscilaram da caixinha para mim e de novo para a caixa.

- Eu vou abrir. - Delicadamente, com muito cuidado para não rasgar o papel, desembrulhei o presente e encontrei uma caixinha de veludo azul. Abri-a e tirei de lá um medalhão de ouro pesado em forma de coração, com um fio de ouro. premi o botão de desengate e o medalhão abriu-se. Lá dentro estava uma fotografia minúscula do papá e de mim no The Jillian. Estávamos ambos bronzeados e felizes. Lembreime porque é que manifestava uma expressão tão feliz na fotografia. Estávamos a caminho de casa e pensava que ia encontrar a mamã à minha espera no cais.

Posso ver? - perguntou o Troy. Tirei o medalhão para fora, pegou nele cuidadosamente da palma da minha mão e ficou a olhar para a fotografia. Vi os olhos dele a aumentar e depois a diminuir. - Eu tenho uma fotografia grande do meu papá - disse ele. - Mas não está a sorrir. Falei nisso ao Tony e ele disse que o papá estava a sorrir no céu e que sorriria sempre, desde que eu fosse bom.

- Então tenho a certeza de que o teu papá estará sempre a sorrir - disse-lhe eu. Deixei que ele me ajudasse a pôr o medalhão ao pescoço e depois voltámos para a nossa tarefa de abrir os presentes.

Passei o dia de Natal a ajudar o Troy a organizar os brinquedos dele e a guardar a roupa que recebera de presente. Ao fim da tarde, estivemos a ver uns programas na sua nova televisão. Comemos um delicioso peru ao jantar e o Rye Whiskey preparou legumes com molhos que eu nunca tinha provado antes.

O Troy manteve-me tão ocupada que fiquei contente quando chegou a hora de ele ir dormir. Nessa noite também fui dormir cedo. Tinha-lhe prometido que íamos andar no seu pónei de manhã, e foi o que fizemos. Na verdade, havia tanta coisa para fazer em Farthy - nadar na piscina interior, praticar esqui em corta-mato, fazer caminhadas de ida e volta até ao mar, andar a cavalo e andar de trenó - que a primeira semana passou num instante.

O Tony tinha uma biblioteca enorme, e o meu livro preferido de todas as suas recheadas prateleiras era Lolita, a história do amor de um homem mais velho por uma rapariga de doze anos, uma rapariga da minha idade! Custava-me a acreditar nas coisas que ela fazia e dizia. Havia excertos que eu lia e relia, partes que me faziam corar e me aceleravam o coração. Pus o romance por baixo dos outros livros para que os empregados não descobrissem que eu o andava a ler, no caso de algum deles saber do que é que tratava.

Prometi ao Troy que passaríamos a noite de Ano Novo no quarto dele a ver televisão. Estava decidido a ficar acordado até à meia-noite e a ver as pessoas a celebrar na Times Square em Nova Iorque. Aguentou quase até às onze, mas a essa hora os seus olhos já se tinham fechado e o pequeno peito subia e descia ao ritmo da sua respiração calma.

Pouco depois das onze e meia, o papá telefonou da Florida. Soava tão baixo e tão longe. A linha telefónica crepitava.

- Adorei o teu presente de Natal, papá. O meu está à tua espera na tua secretária em casa.

- vou lá na semana que vem e telefono-te depois de o abrir - disse ele. - Como estás?

- Estou bem, papá, mas tenho saudades tuas - respondi eu, com a voz quase a soluçar.

- E eu também tenho saudades tuas. Dentro de algumas semanas, vou aí e passaremos um dia juntos em Boston.

- Nessa altura já estarei na escola, papá. Terás de ir a Winterhaven. Mas não é longe daqui. - Contei-lhe as várias coisas que tinha andado a fazer.

- Parece um sítio óptimo - referiu o papá, num tom triste.

- Eu preferia estar em casa contigo, papá.

- Eu sei, meu amor. Em breve estaremos juntos. Prometo. bom, agora deixa-me desejar-te um feliz Ano Novo. Eu sei que este ano que passou não foi muito feliz, mas esperemos que o próximo seja.

- Feliz Ano Novo, papá. Adoro-te.

- E eu adoro-te a ti, princesa. Boa noite.

- Boa noite, papá.

Depois de ele desligar, comprimi o auscultador contra o meu peito com tanta força que até doeu. Não o pus no lugar até ouvir o apresentador da televisão começar a contagem decrescente: "Dez, nove, oito.." o Troy gemeu no seu sono e depois virou-se de lado. "Sete, seis, cinco..."

Reparei que tinha começado outra vez a nevar. Os flocos de neve eram grandes e bonitos. Eram tão fofos e alguns colavam-se à janela por momentos, antes de se transformarem em lágrimas e escorrerem pelo vidro abaixo.

"Quatro, três, dois..."

Comprimi o meu novo medalhão contra os lábios e beijei-o, dizendo para mim própria que estava a beijar o papá.

"Um... FELIZ ANO NOVO PARA TODOS."

A câmara filmou tantas caras diferentes... pessoas a bater palmas, pessoas a rir, pessoas a gritar, pessoas a chorar. Gostava de estar ali com eles, perdida numa multidão de estranhos.

Já escrevi quase metade das páginas do meu diário. É um

bom sítio para me desejar a mim própria um "Feliz Ano Novo.

Claro que para mim é mais do que um ano novo, é uma Leigh VanVoreen.

 

A LUA-DE-MEL ACABOU

No dia de Ano Novo, o Troy acordou com uma forte constipação. Era o dia em que a mamã e o Tony regressariam da sua lua-de-mel. Às oito da manhã, ele estava cheio de febre e Mrs. Hastings teve de mandar chamar o médico. Eu tinha a certeza de que ele estava muito doente, porque não fez nenhum esforço para se levantar da cama para ir brincar. Enquanto era examinado pelo médico, fiquei à espera no corredor. Depois, ouvi Mrs. Hastings e o médico a conferenciarem no quarto exterior da suite do Troy. O médico foi o primeiro a sair, com um olhar carregado e as rugas da cara marcadas pela preocupação e pelo pesar. Seguiu-se-lhe Mrs. Hastings com os olhos cheios de lágrimas. Segurava o lenço contra a boca e abanava a cabeça, olhando para mim.

- O que é? O que é que ele tem? - perguntei, inquieta.

- O médico acha que ele está a desenvolver uma pneumonia. Oh, valha-me Deus, valha-me Deus. Foi chamar uma ambulância. Quer que ele vá imediatamente para o hospital para ser radiografado e fazer o tratamento adequado. Mister Tatterton avisou-me de que o Troy tem muito pouca resistência aos micróbios; mas ele estava tão bem, tão feliz e cheio de energia que eu não pensei que tinha sido demasiado branda e que ele tinha exagerado - choramingou ela.

- Ora, Mistress Hastings, a culpa não é sua. Sempre que ele mostrava o mínimo sinal de frio na rua, nós trazíamo-lo para dentro e, com excepção da noite passada, que é a noite mais especial do ano, ele foi sempre cedo para a cama. E também tem comido bem - acrescentei eu. - Ele não ficou doente depois de nos perdermos no labirinto. A senhora fez milagres para impedir que isso acontecesse, lembra-se?

- Sim, sim. Mesmo assim, sinto-me tão mal. Volto já. Tenho de tomar algumas providências. Mister e Mistress Tatterton só chegarão a meio da tarde, mas o médico diz que não podemos esperar por eles. - Abanou a cabeça de preocupação.

Posso ir vê-lo?

Sim, mas não se chegue perto de mais. Ai, valha-me Deus, valha-me Deus - murmurava ela, correndo em direcção às escadas.

O pequeno Troy parecia ainda mais pequeno na sua grande cama com os cobertores puxados até ao queixo. Eu tinha bonecas, cuja cabeça era maior do que a cabecinha dele, ali, deitada na almofada branca, grande e fofa. As suas orelhinhas, o seu nariz minúsculo, os seus olhos fechados, que não pareciam maiores que berlindes, e a sua boca pequenina, levemente aberta pela dificuldade que tinha em respirar, faziam-no parecer um brinquedo frágil.

As maçãs do rosto estavam escarlates da febre e os lábios pareciam inchados. As suas mãos estavam cerradas em punhos minúsculos; o resto do corpo estava enterrado dentro do enorme edredão. Fiquei à sua cabeceira a observá-lo. Não o queria acordar. De repente, começou a delirar com febre.

- Papá, acorda, acorda - dizia ele. Depois, ainda com os olhos fechados, esboçou um sorriso. - Tony... Tony. A sua cara contorcia-se de agonia. Cheguei-me a ele e peguei na sua mão pequenina e quente.

- Está tudo bem, Troy. Está tudo bem. Eu estou aqui.

- Tony... Eu quero o Tony...

- É a Leigh, Troy. Queres beber um gole de água?

- Tony - murmurava ele e abanava a cabeça. Depois, fechou os olhos ainda com mais força, como se estivesse a tentar afastar uma imagem da sua mente. Toquei no seu rosto a escaldar e fiquei chocada e assustada por sentir a pele dele tão quente. O meu coração começou a bater. Olhei com expectativa para a porta. Onde estava o médico? Como é que eles o podiam deixar sozinho, mesmo por um momento?

Ele balançava a cabeça de um lado para o outro, gemendo baixinho.

- Troy - gritei eu, com as lágrimas a virem-me aos olhos. - Ai, meu Deus - murmurei. Saí a correr do quarto para tentar encontrar Mrs. Hastings. Ela e o médico estavam no andar de baixo com o Curtis e o Miles.

- Doutor, ele está a arder de febre na cama! E geme como se estivesse a sofrer! - exclamei eu. O médico olhou para mim e depois para Mrs. Hastings, tentando perceber quem eu era. Ela segredou-lhe rapidamente qualquer coisa ao ouvido.

- Ah! - Acenou com a cabeça e virou-se para mim.

Sim, nós sabemos, minha querida. Acabámos de decidir que não vamos esperar por uma ambulância. Vamos levar o Troy imediatamente para o hospital na limusina. Mistress Hastings ia agora mesmo prepará-lo para a viagem.

- Posso ajudar?

- Não, acho que é melhor ficar bem afastada dele. Não quero ter dois pacientes de uma vez só - disse ele, a sorrir. Como é que podia brincar numa altura daquelas, pensei. Mrs. Hastings começou a subir as escadas. Sentia-me tão inquieta e nervosa. Só podia esperar para ver o que ia acontecer. Pouco depois, o Miles apareceu com o Troy enrolado em cobertores, mal se vendo a sua cara rosada, e carregou-o em direcção à escadaria. Mrs. Hastings vinha mesmo atrás, dizendo:

- Ai, valha-me Deus, valha-me Deus.

Passaram-se horas antes de o Miles e Mrs. Hastings voltarem, mas, logo que os ouvi a entrar, vim a correr.

- É mesmo pneumonia - declarou Mrs. Hastings, com os lábios a tremer. E começou a soluçar. - Ele está a levar oxigénio. É um quadro tão triste. Oh, meu Deus.

Tentei confortá-la.

- Devia comer qualquer coisa e beber uma bebida quente, Mistress Hastings, e pare de se culpar. Ninguém tem a culpa.

- Sim - concordou ela. - Beber qualquer coisa quente

- murmurou. - Tem muita razão. Obrigada, querida. E foi para a cozinha.

- Qual é realmente o estado dele, Miles? - perguntei eu. Não sei porquê, tinha a certeza de que ele me diria a verdade nua e crua.

- Está com febre muito alta. O Troy tem uma história clínica com várias doenças nos seus antecedentes e uma baixa resistência. Receio bem que seja muito sério.

O coração caiu-me aos pés. Senti o sangue a vir-me à cara. As borboletas no meu estômago explodiram num frenesim, às voltas e às voltas, e as pontas das suas asas, tão finas como papel, faziam-me comichão lá dentro.

- Não significa que ele possa morrer, pois não, Miles?

- Retive a respiração até ouvir a resposta.

- É muito grave, menina - disse ele, olhando para o relógio. - Tenho de ir para o aeroporto. Mister e Mistress Tatterton devem estar a chegar. Presumo que os levarei directamente ao hospital - acrescentou.

- Pobre Tony e pobre mamã. Vão ter um choque - disse eu. Ele assentiu e saiu a correr.

Passei o resto da tarde à espera, perturbada. Cada vez que ouvia o telefone a tocar, o meu coração parava. Contudo nenhum dos telefonemas tinha alguma coisa a ver com o Tròy. Incapaz de esperar mais tempo, pedi a Mrs. Hastings para telefonar para o hospital e pedir notícias à enfermeira do piso dele. Não havia melhoras. De facto, pela maneira como Mrs. Hastings ouviu e assentiu, com os olhos abertos e a boca descaída, percebi que, se havia novidades, eram para pior.

Por fim, ouvi alguma agitação na porta de entrada e saí da sala de música, deparando-me com a mamã a fazer uma entrada espectacular: empregados a carregarem a bagagem dela, ela a gritar ordens e queixando-se ao Curtis do tempo frio e da longa viagem. O Tony não vinha com ela.

- MAMÃ! - gritei eu. - GRAÇAS A DEUS, CHEGOU!

- Aleluia! - exclamou a mamã, explodindo em seguida numa longa e aguda gargalhada. Descalçou as luvas. Apesar de estar a queixar-se do frio e da viagem, tinha um aspecto fresco e bonito. As suas faces estavam brilhantes e rosadas, tinha um chapéu preto novo, de marta-da-sibéria, e um casaco da mesma pele, luvas pretas de veludo e calças de esqui. Das orelhas pendiam brincos de ouro em forma de pérola. Desviou-se para que o Miles conseguissse trazer para dentro o equipamento de esqui.

Deu-me um abraço rápido e segredou-me:

- Nunca pensei que uma lua-de-mel pudesse ser fatigante, Leigh, mas acredita que esta foi. Estou completamente exausta, a minha energia esgotou-se. Estou doida para entrar na minha cama macia e fechar os olhos.

- Mas, mamã, onde está o Tony? Sabem o que aconteceu ao Troy, não sabem?

- Claro que sabemos. O Tony foi directamente para o hospital. Deixámo-lo lá - disse ela. - Espera até veres algumas das coisas que eu comprei na Europa, Leigh - continuou ela, sem parar para tomar fôlego. - Depois de estar bem descansada, mostro-te tudo e conto-te tudo. - Inclinou-se outra vez para mim e sussurrou: - Tudo mesmo. Depois começou a andar em direcção à escadaria. - Mas por agora... um banho quente... descanso...

- Mas mamã, e o Troy? - Voltou-se nos primeiros degraus com um ar baralhado.

- O que é que tem?

- Ele está tão doente e...

- Bem, ele está no hospital, Leigh. Que mais podemos fazer?

- Viu-o?

- É óbvio que não - afirmou, abanando a cabeça. Uma pessoa só se expõe a essas doenças se tiver de ser.

- Mas...

- Tu não estiveste ao pé dele, estiveste? Era só o que me faltava agora - prosseguiu antes que eu pudesse contestar -, tu ficares também doente. Eu, pura e simplesmente, não tenho força nem energia para aguentar isso. Pelo menos neste momento. - E começou a subir as escadas. - Chamar-te-ei mal esteja mais descansada - acrescentou ela.

Como é que ela podia ser tão insensível e só se preocupar com ela própria num momento daqueles? Teria sido sempre tão egoísta? Interrogava-me a mim própria. E porque é que a lua-de-mel tinha sido tão cansativa? Não era suposto ser o momento mais maravilhoso da nossa vida, principalmente quando ficamos instalados num sítio tão luxuoso como o hotel onde ela e o Tony tinham ficado, onde podiam divertir-se e estar juntos dia e noite, em jantares românticos e rodeados de música? Pensava que os recém-casados se recolhiam num mundo à parte e desfrutavam da companhia um do outro e do milagre do seu amor mútuo.

Como é que ela podia deixar o Tony sozinho no hospital, mesmo estando muito cansada? Apesar de me ressentir profundamente da presença do Tony na minha vida, a afeição que nutria pelo seu irmão fora aumentando rapidamente de dia para dia. E o Troy agora era quase como um enteado da mamã. O Tony estaria certamente muito preocupado e transtornado. Não era esse o momento em que a esposa devia estar perto do seu marido para o confortar e apoiar? Em vez disso, ela viera para casa, ia tomar um banho quente e dormir. Estava preocupada com o seu sono de beleza. Talvez aquele casamento não fosse melhor do que o casamento dela com o papá, uma vez que também era construído com base numa mentira.

A mamã estava muito diferente, pensei eu; depois, perguntei a mim própria se ela não teria sido sempre assim e eu é que simplesmente não me havia apercebido, porque a vira com olhos de criança. Contudo, naquele dia em que ouvira a conversa entre ela e a avó Jana, eu tinha crescido mais depressa do que alguma vez sonhara. A tinta cor-de-rosa fora raspada do meu mundo. Muitas das coisas que haviam sido tão brilhantes e coloridas como o arco-íris eram agora cinzentas..

Subi para o meu quarto e sentei-me na cama a olhar para o cavalinho que o Troy me tinha feito pelo Natal. "Não interessa se somos muito ricos, muito bonitos ou poderosos. No fundo somos tão frágeis e delicados como este pequeno brinquedo de cerâmica que o Troy me fez", pensei. Cingi o cavalinho contra mim e rezei em silêncio.

Adormeci ali sentada, e já passavam das seis da tarde quando acordei. À luz do crepúsculo, o meu quarto tornava-se triste e ensombrado. Senti um arrepio, como se um vento de Inverno se tivesse infiltrado na mansão pelo friso das portas e tivesse aberto caminho através das salas, subindo a escadaria directamente para o meu quarto. Envolvia-me como um cobertor cosido com linhas de gelo. Eu estremeci e abracei-me. Sentia que era um mau pressentimento.

"Troy", pensei eu com inquietação, e saltei rapidamente da cama. O corredor estava sombrio e silencioso. O meu coração começou a bater. A casa parecia muda, como se todos, excepto os seus fantasmas, tivessem desertado.

Receando o pior, deslizei pelo corredor como uma sonâmbula até à suite da mamã e pus-me à escuta à porta. Estava tão silenciosa como o resto da casa. Abri a porta exterior, atravessei a sala de estar em pontas dos pés e fui espreitar o quarto dela.

Ainda estava na cama, quase a dormir. Tinha um cobertor espesso a tapá-la e o seu cabelo dourado estava solto sobre uma almofada grande e fofa. O chão estava coberto de caixas e embalagens. O casaco novo de pele de marta-da-sibéria, o chapéu, as calças de esqui e as botas ainda estavam no mesmo lugar, dobrados em cima de cadeiras e bancos, onde ela os tinha deixado quando se despira para tomar banho. Como é que ela conseguia estar ainda a dormir? Seria possível que não sentisse nada em relação ao pequeno e querido Troy?

Nas salas do andar de baixo também não encontrei ninguém. Até que fui à cozinha e descobri os empregados todos reunidos à volta da mesa numa conversa amena. Voltaram-se para mim mal entrei. Tinham todos a mesma cara: olhos tristes e um semblante sombrio e preocupado.

- Houve notícias? - perguntei eu, a recear pela resposta que me iriam dar.

- Oh, meu Deus! - exclamou Mrs. Hastings. - Mister Tatterton telefonou há pouco mais de uma hora e disse que a febre ainda estava mais alta e que ele estava a respirar com muita dificuldade. O estado dele é crítico.

Ficaram todos a olhar para mim, à espera da minha reacção.

- Quero ir ao hospital, Miles - pedi eu. Pode levar-me?

O seu olhar passou por mim, por Mrs. Hastings e por todos os outros empregados, sem saber como reagir ao meu pedido.

- A sua mãe pode não querer que a menina vá - disse ele, por fim.

- A minha mãe - repliquei eu, realçando a palavra está a dormir. Estarei pronta dentro de cinco minutos. Por favor traga o carro para a porta principal - instruí eu e fui-me embora, para não dar azo a mais conversas.

Encontrei o Tony a falar com uma enfermeira na sala de espera do Hospital Geral de Boston. Tinha o sobretudo de caxemira dobrado no braço. Pela primeira vez não senti raiva, ódio ou ressentimento em relação a ele... Nesse momento, todas as minhas emoções estavam canalizadas para o Troy. Aliás, até achei que nunca tinha visto o Tony tão bronzeado e atraente.

- Leigh! - gritou ele, mal me viu. Atravessou a sala de espera a correr para me vir cumprimentar. - A Jillian veio contigo? - Espreitou por cima da minha cabeça em direcção à entrada.

- Não. Está a dormir - respondi, incapaz de conter a minha desaprovação. Ficou com uma expressão abatida e a luminosidade que lhe enchera os olhos desapareceu num instante.

- Ah!

- Houve alguma alteração no estado de saúde dele?

- Leve, para melhor. A temperatura baixou meio grau. Foste muito simpática em ter vindo fazer-me companhia. Obrigado.

- Oh, Tony, eu estou tão preocupada com ele. Divertimo-nos tanto juntos, enquanto o Tony e a mamã estiveram fora, mas acredite que não fizemos nada que pudesse tê-lo posto doente. Brincámos muitas vezes ao ar livre, mas o Troy estava sempre bem agasalhado, e, mal notávamos que ele estava a começar a ficar com frio, íamos logo para dentro de casa. E tinha imenso apetite e...

- Calma... calma. - O Tony segurou-me nos cotovelos com as mãos. - Já não é a primeira vez que o Troy está assim.

- Faz Parte da natureza dele. Ninguém pode prever. Ninguém tem a culpa, muito menos tu. Pára de pensar nisso. Olhou para o relógio. - Vai demorar algum tempo até que

o médico possa adiantar alguma coisa sobre o estado de saúde do Troy e está na hora de jantar. Conheço um pequeno restaurante italiano muito simpático aqui ao pé - disse. Tens fome?

- Eu...

- Claro que deves ter. Eu ainda não comi nada desde hoje de manhã. Não tem sentido ficarmos aqui sentados. Anda - instigou ele, vestindo o casaco, dando-me em seguida o seu braço. Tive de hesitar. Eu não tinha pedido para me trazerem a Boston para jantar. Eu queria estar perto do Troy.

Mas, pensei, se o Tony achava que não fazia mal sair por um bocado para comer qualquer coisa, então estava bem.

- O Troy está a receber o melhor tratamento possível informou o Tony, depois de nos sentarmos numa pequena mesa junto à janela. - Aquele piolho arranja sempre maneira de ultrapassar as crises quando quer, e agora que estás a viver connosco em Farthy, eu sei que mais do que nunca ele tem vontade de viver e de ficar bom. - Debruçou-se sobre a mesa para me afagar a mão e me tranquilizar.

- Espero que sim - disse eu, prestes a soltar um soluço.

- Vamos comer. Aqui fazem uma massa maravilhosa. Deixa-me encomendar para os dois - propôs ele. Como era requintado a pronunciar as palavras italianas com tanta perfeição! O empregado apercebeu-se imediatamente de que se tratava de um conhecedor e ficou logo impressionado. Percebi isso pelo modo como ouvia e assentia. Depois, o Tony virou-se e fitou-me por momentos. Reteve o seu olhar azul, impetuoso e penetrante, em mim, com profunda consideração.

- És uma rapariga desconcertante, sabias, Leigh? Num segundo estás positivamente radiante de felicidade e no outro toda a felicidade desaparece e tens lágrimas nos olhos. Acho que és tão intrigante, ou melhor, tão complexa como a tua mãe. Receio bem que nenhum homem possa competir com vocês - acrescentou, num tom mais resignado com o seu destino do que amargo.

- Divertiram-se na lua-de-mel? - perguntei, pressentindo um resíduo de amargura. - A mamã foi directamente para a cama. Por isso, não tive oportunidade de lhe perguntar nada. - Os olhos azuis do Tony estreitaram-se, com um certo ar de desconfiança.

- Eu sei que eu me diverti - respondeu ele fazendo um sorriso forçado. Esperei quase sem fôlego que continuassse.

- A tua mãe disse-me que gostava de praticar esqui e de andar de patins no gelo. Disse que adorava desportos de Inverno mas, quando chegámos a St. Moritz, decidiu que estava frio de mais para ir esquiar. Acreditas? - Riu-se. - Frio de mais para esquiar. bom, de qualquer maneira, eu passei os dias nas encostas e ela passou o tempo a fazer compras ou à lareira, no hotel.

"Um dia, lá consegui levá-la até às encostas, mas ela queixou-se tanto e caiu tantas vezes que a deixei voltar para o hotel. Quanto a ir patinar no gelo à noite naquele lindíssimo lago... - Acenou com a mão e abanou a cabeça. - Não demorou nem dez minutos a dizer que não.

"Não parava de se queixar do efeito que o ar frio exercia sobre a sua pele e descobri que detesta suar. E a lua-de-mel a praticar desportos de Inverno foi por água abaixo. Ou qualquer tipo de desporto, diga-se de passagem - acrescentou ele, com os olhos muito abertos.

- Mas devem ter ido comer a restaurantes europeus maravilhosos - observei. Eu sabia que a mamã estava cheia de vontade de o fazer.

- Oh sim fomos. Mas a tua mãe come que nem um passarinho. É um desperdício encomendar uma porção para uma criança, quanto mais pedir um prato completo. Acabei por comer a comida dela e a minha todas as noites. Sorte a minha que andava a fazer muito exercício, hem? - disse, recostando-se a acariciar a barriga.

- Não, está... Está bem - disse eu. Ia-me saindo "maravilhoso".

- Obrigada. E esta é a história das nossas férias e da nossa lua-de-mel de Inverno - finalizou, desapontado.

O empregado de mesa trouxe-nos o pão e as saladas. Não tinha dado conta da fome que sentia até começar a comer. O restaurante acolhedor, a conversa casual do Tony sobre a mamã e a lua-de-mel, e a comida deliciosa contribuíram para que me acalmasse. Descontraí-me pela primeira vez desde que descobrira que o Troy estava doente.

Conversámos mais sobre a Europa e eu contei-lhe as nossas viagens a Londres. Depois, descrevi-lhe tudo o que tinha feito enquanto ele a mamã haviam estado no estrangeiro. Não me apercebi de que estava a falar tanto e há tanto tempo, porque ele ouvia com muita atenção e com os olhos fixos em mim.

Oh, desculpe estar a falar tanto. Não sei o que me

- Não faz mal. Estou a gostar. Foi o máximo que conversaste comigo desde... desde que nos conhecemos.

Um pouco envergonhada, afastei os olhos para observar umas pessoas que iam a entrar no restaurante.

Estás com óptimo aspecto - elogiou ele. - Vê-se que passaste muito tempo ao ar livre.

- Obrigada.

Não consegui controlar-me e corei. Ainda não tinha aprendido a aceitar elogios com ar de indiferença como a mamã conseguia, apesar de ela contar sempre com eles. Para mim, os elogios eram ainda um imprevisto e qualquer coisa de muito especial, principalmente quando eram proferidos por um homem tão atraente como o Tony Tatterton. Conseguia fazer com que os elogios soassem sinceros. Entusiasmou-se e fez-me vibrar. Depois, fiquei com remorsos de estar a sentir-me tão bem, enquanto o pequeno Troy, tão doente, se encontrava estendido numa cama de hospital.

- Não está na hora de regressarmos? - perguntei eu. Ele ainda me fitava intensamente, com um olhar muito penetrante e directo.

- O quê? Oh, sim. Imediatamente. - Fez sinal ao empregado.

Quando chegámos ao hospital, o Tony foi directo ao quarto do Troy, enquanto fiquei à espera no corredor. Pouco depois, apareceu com o médico e fez-me sinal para me aproximar deles.

- A febre baixou - anunciou ele, feliz. - E está a respirar com muito menos dificuldade. Vai ficar bem.

Fiquei tão aliviada que comecei a chorar. Ele e o médico olharam um para o outro e riram-se e depois o Tony abraçou-me.

- Obrigada, Leigh - sussurrou ele -, por te preocupares tanto com ele. - Beijou-me na testa e eu olhei para cima, para dentro dos seus calorosos olhos azuis, com a mente baralhada de tanta confusão. Tinha herdado uma família totalmente nova tão depressa. Sempre que me sentia bem, principalmente com o Tony, sentia que estava a trair o papá, mas, por outro lado, o Tony parecia afectuoso, preocupado e solícito. Ele e eu tínhamos sido atirados um para o outro pelo capricho da mamã e talvez ele, tanto quanto eu, estivesse a tentar adaptar-se e a organizar os seus sentimentos. Descontraí-me nos braços dele e encostei a cabeça ao seu ombro.

"Não posso odiá-lo", pensei. "Perdoa-me, papá, mas não posso odiá-lo."

- Queres entrar para vê-lo, Leigh? - perguntou o Tony.

- Ele não está acordado, mas podes ficar à porta por uns momentos.

- Sim. Obrigada.

O Tony abriu a porta e eu observei o pequeno Troy, que parecia ainda mais pequeno do que me parecera de manhã. A cama do hospital, a máscara e a garrafa de oxigénio tornavam-no tão pequenino, tão frágil. O meu coração chorou por ele. Não consegui conter as lágrimas que se tinham formado de novo ao canto dos meus olhos. O Tony tirou um lenço e limpou-me as lágrimas.

- Ele vai ficar bem - assegurou-me, num tom tranquilizador, e abraçou-me outra vez. Eu acenei com a cabeça. Vamos para casa - disse. Desta vez, quando atravessámos o enorme portão de Farthy, as palavras do Tony soaram verdadeiras: "Vamos para casa."

Eu estava de facto em casa, pois a nossa casa não era só um edifício, ou uma casa, ou um lugar numa rua qualquer; era onde tínhamos amor e calor à nossa espera e onde viviam as pesssoas de quem gostávamos. Eu amava o papá, mas ele estava embarcado no mar e agora já ninguém vivia na nossa casa em Boston. Eu amava a mamã, apesar de todas as suas mentiras e de ser tão egoísta, assim como o pequeno Troy, e eles viviam ali, em Farthy.

Perguntei a mim própria se alguma vez viria a gostar do Tony Tatterton. A maneira como me dava a mão enquanto subíamos os degraus da entrada fez-me pensar que era provável que sim.

A mamã acordara finalmente. O Tony e eu encontrámo-la sentada à frente do toucador a escovar o cabelo. Tinha acabado de sair da cama e vestia apenas um longo roupão de seda verde, uma das muitas compras que fizera na Europa.

- Leigh, chamei-te há mais de uma hora. Onde estiveste? - perguntou ela. O Tony parou à porta, atrás de mim, e trocámos um olhar de desapontamento.

- Estive no hospital com o Tony, mamã, para ver como estava o Troy.

- Eu pedi-te para não te expores à doença. Já estás a ver como vai ser educar uma adolescente, Tony - disse ela, com brusquidão. - São tal e qual cavalos selvagens, teimosos e imprevisíveis.

Ela não esteve exposta à doença - retorquiu o Tony.

- Manteve a distância necessária e eu achei que foi maravilhoso da parte dela ter querido ir.

- Podias ter telefonado. Como é que me pudeste deixar aqui sem saber o que estava a acontecer... onde estavam todos...

- Eu telefonei - protestou o Tony -, mas os empregados disseram-me que tu tinhas dado ordens para não seres perturbada.

- Ora, tu, mais que toda a gente, sabias que eu estava exausta. De qualquer modo, agora que chegaram, digam-me, como está ele? - perguntou ela, voltando-se para o espelho para alinhar uma madeixa de cabelo.

- A febre baixou. Está a restabelecer-se.

- Estás a ver - disse ela, apontando para mim. - Enquanto ele estivesse no hospital, não havia nada a fazer. A partir do momento em que deu entrada, tudo dependia dos bons médicos, das enfermeiras e dos milagres da medicina - recitou ela, como se tudo tivesse sido uma história da carochinha.

- Ele ainda está muito doente - disse o Tony -, mas a fase crítica já passou.

- Óptimo, graças a Deus. Podemos ir jantar agora? Acordei faminta.

O Tony e eu voltámos a trocar um olhar rápido. A mamã apanhou a nossa troca de olhares.

- O que foi?

- Eu levei a Leigh ao Leone's enquanto estávamos à espera de notícias do estado de saúde do Troy - confessou o Tony.

- Já comeram os dois? E sem mim? - gritou ela.

- Bem, tu estavas em casa e...

- Está bem - interrompeu ela e a sua expressão desapontada desapareceu. - Pede aos empregados para me trazerem qualquer coisa leve para comer aqui no quarto - entoou ela. O seu humor mudara tão rapidamente que me pôs a cabeça a andar à roda. - De qualquer modo, eu também não estou em condições de descer e sentar-me à mesa. vou precisar de pelo menos mais um dia para me recompor prosseguiu, como se tivesse estado no hospital, em vez de ter regressado de uma maravilhosa lua-de-mel na Europa.

- Óptimo - exclamou o Tony. Deu um passo em frente e inclinou-se para lhe dar um beijo; ela, porém, afastou-se, pois ele podia despenteá-la. O Tony sentiu-se embaraçado.

- Ainda estou muito cansada - foi a desculpa dela. Ele acenou com a cabeça e saiu rapidamente.

Mal ele tinha saído, a mamã fez-me sinal para que me aproximasse, abrindo os olhos para dar mais ênfase.

- Ai, Leigh, não podes imaginar como foi difícil.

- O quê? - Não fazia ideia do que ela queria dizer.

- Passar estes últimos dias com um homem tão jovem e tão forte como o Tony. Ele nunca precisa de descansar e veste-se num ápice - disse ela, irritada e com uma ponta de inveja. As suas sobrancelhas delicadas elevaram-se como que em sinal de desespero.

- Então não se divertiu na lua-de-mel? - perguntei, para confirmar o que o Tony me havia contado.

- Sim e não. Ele é tão atlético, levantava-se de madrugada contando que eu já estivesse vestida e pronta para tomar o pequeno-almoço, e, quando eu me queixava, ficava aborrecido. Estás a ver a falta de consideração? Como é que ele podia esperar que eu descesse à sala de jantar sem estar devidamente pintada e vestida? Mandava-o o descer sozinho e até ficava feliz por me ver livre dele e por poder arranjar-me sem ele me ver. Estava sempre arranjado e pronto para sair em menos de metade do tempo do que eu precisava. Ficava aborrecido e então eu dizia-lhe para não esperar por mim. Dizia-lhe para ir à frente e para deslizar para cima e para baixo naquelas montanhas geladas.

"Pensava que um dia daquela actividade, que requer esforço, o deixaria exausto. Mas, não... Ele voltava todas as tardes verdadeiramente fortalecido e podes imaginar do que é capaz um homem com a juventude e a vitalidade do Tony quando está cheio de força.

Ela viu a minha expressão confusa e fez um sorriso malicioso.

- Faz amor como se fosse a última vez, praticamente a violar-me - explicou ela.

Ao ouvi-la fazer referência a um assunto tão íntimo, o sangue subiu-me ao rosto.

- E quando acaba e tu estás à espera de conseguir retomar o fôlego, ele volta ao ataque. Senti-me como uma prostituta.

"E vê lá que, até a meio da noite, ele me dava cotoveladas para eu acordar, traumatizava-me, interrompendo o meu sono descansado, querendo entrar em carícias. O facto de eu estar meio a dormir não era relevante para ele. Ficava zangado porque eu não correspondia como ele estava à espera.

"Bem, eu não conseguia. Não queria. Não vou sacrificar a minha saúde e a minha beleza para satisfazer o apetite animal de um jovem - acrescentou ela, com determinação.

Eu não sabia que dizer. A mamã dava a ideia de que fazer amor era uma tortura; porém, não era assim que estava descrito nos livros que eu tinha lido.

Oh, Leigh - choramingou ela, voltando-se para mim

e pegando nas minhas mãos -, tens de ser a minha melhor amiga, a minha aliada, agora mais do que nunca. Vais ser? Vais ser?

- Claro que vou - repliquei eu, embora não fizesse ideia do que ela estava a falar.

- Óptimo, porque o Tony gosta de ti e não se importa de estar contigo. Eu já percebi isso. Foi bom teres ido jantar com ele em Boston. vou precisar que me ajudes a mantê-lo divertido e feliz. Ele precisa de tanta atenção e exige tanta afeição. É absolutamente esgotante! - lamentou-se ela.

Mantive-me calada.

- Não é que não o ame. Eu amo-o. Eu adoro-o. Só que nunca esperei que ele fosse tão... tão viril... tão faminto de sexo. Se não encontrar maneira de o manter à distância, ele vai esgotar-me, vai roubar-me a minha energia.

"É verdade - confirmou, antes que eu pudesse reagir. Já vi isso acontecer a outras mulheres. Os maridos delas são tão exigentes que elas se tornam velhas antes de tempo, e depois eles vão à procura de satisfação noutros lugares. Uma mulher tem de resguardar a sua beleza, como uma jóia preciosa, mantê-la numa redoma, protegida, permitir que os homens olhem para ela, a contemplem de longe, mas raramente lhe toquem, pois cada contacto físico absorve, tira, diminui.

"O Tony quer-me a seu lado constantemente. Quer que eu lá esteja, sempre que tem vontade de me beijar, de pegar na minha mão, de me abraçar e, depois, de me possuir.

Eu achei que devia ser maravilhoso... ter um homem que precisa de nós e que nos quer tanto. E afinal, não era ela que se estava sempre a queixar do papá, porque ele não passava tempo suficiente com ela, porque ele não gostava tanto dela como do seu negócio? Agora tinha encontrado um homem que lhe era dedicado, que a adorava, e ela sentia-se ameaçada por isso. Era tão confuso.

Ficou calada por uns instantes a contemplar uma linha por baixo dos olhos. Depois suspirou e mergulhou o dedo numa embalagem de creme para a pele.

- Oh, Leigh - suspirou ela, ao mesmo tempo que passava o creme pelo rosto e olhava para o espelho -, receio bem que tenhas de vir passar fins-de-semana a casa, quando estiveres em Winterhaven, com mais frequência do que eu tinha pensado. O Tony quer fazer fins-de-semana a praticar esqui e viagens de pequenas luas-de-mel regularmente. Está à espera que eu vá de avião com ele passar três dias aqui, três dias ali. Um ritmo tão activo vai envelhecer-me.

Voltou a virar-se para mim e a pegar-me nas mãos.

- Vais ajudar-me, não vais? Também vais passar tempo com ele e mantê-lo ocupado. Uma rapariga tem muito mais energia. Talvez consigas estafá-lo de tal maneira que ele de noite não se venha atirar a mim tipo Casanova. Oh, por favor, Leigh, diz que sim.

Eu não sabia que dizer. com que é que eu estava a concordar? Mas eu sabia que ela queria muito que eu dissesse que sim.

- Sim, mamã, eu virei a casa frequentemente.

- Obrigada, Leigh. Obrigada. Eu sabia que tu eras suficientemente crescida para entender a minha situação. Deu-me um abraço rápido. - É tão bom ter uma filha com esta idade que possa ser como uma irmã para mim. E prosseguiu: - Agora, deixa-me mostrar-te as coisas todas que comprei na Europa. Comprei algumas camisolas lindas para ti também. Gostaste dos teus presentes de Natal? perguntou ela, sem parar para respirar.

Nem consegui falar.

- Vi que o teu pai te mandou uma prenda. O que era?

- perguntou, estreitando os olhos a transbordarem de desconfiança.

- Este medalhão - respondi eu e tirei-o para fora. Ela deu-lhe uma vista de olhos, mas não me pediu para o abrir.

- Muito bonito - disse e voltou-se para as coisas que tinha trazido da Europa.

A saúde do Troy continuou a fazer progressos e no dia seguinte estava muito melhor. Acompanhei mais uma vez o Tony à visita, antes de começar o meu ano lectivo em Winterhaven. A mamã cumpriu com todas as suas decisões. A beleza tinha-se tornado a sua religião; venerava a sua própria imagem no espelho e prosseguia com um furor renovado na recuperação da vitalidade que insistia ter perdido durante a lua-de-mel. Não só se recusava a ir ao hospital, como também começou a levantar-se de manhã cada vez mais tarde, e depois passava horas à frente do toucador, antes de descer para tomar o pequeno-almoço e para se encontrar com amigas.

Apercebi-me de que o Tony estava cada vez mais aborrecido com ela: de manhã, subia as escadas furioso para tentar que ela descesse e viesse tomar o pequeno-almoço connosco e depois voltava, com uma expressão desanimada e com os olhos murchos, derrotado. Então, na noite antes de iniciar a minha vida em Winterhaven, ouvi-os a terem a primeira discussão. Não tive intenção de escutar à porta, mas estava a caminho do quarto da mamã para falar com ela sobre a roupa que ia levar para a escola. Passava pouco das nove da noite; a mamã já tinha subido à sua suite para descansar e para ler um dos seus romances, uma coisa que ela andava a fazer cada vez mais nos últimos tempos. Tinha acabado de entrar na sala de estar, quando ouvi o Tony a dizer:

- É como se não estivéssemos casados.

Fiquei gelada. Ele implorava mais do que gritava. - Eu não vou deixar que o teu apetite sexual me ameace a saúde - replicava a mamã.

- Mas, Jillian, fazer amor não vai ameaçar a tua saúde. Se tiver algum efeito é o de te sentires mais completa, mais realizada como mulher.

- Ah, tretas. Só um homem é que se lembrava de dizer isso. Sinceramente, Tony, estás-te a comportar como um menino de escola que acabou de descobrir o sexo. Estou desapontada com a tua falta de autocontrole.

- Falta de autocontrole! - vociferou o Tony. - Ficaste demasiado cansada a meio da nossa lua-de-mel e, cada dia que passava, ias arranjando uma desculpa diferente e agora, que já estamos em casa há três dias, tu ainda não tens força suficiente para fazer amor, e eu é que sou acusado de falta de autocontrole.

- Fala mais baixo, por favor. Queres que os empregados nos ouçam? - disse a mamã baixinho. - Já te disse - insistiu ela num tom mais ameno -, só preciso de mais algum tempo. Por favor, Tony, por favor, sê compreensivo. Hoje à noite dormes outra vez no teu quarto. Talvez amanhã...

- Receio bem que amanhã tenhas outra desculpa - proferiu ele, em tom de derrota. - Não sei para que é que estás a guardar-te - disse ele, de súbito. - Ou estás à espera de um dia ter outro marido ainda mais novo?

Antes que eu pudesse dar meia volta e sair dali, ele apareceu de rompante, saído do quarto da mamã. Parou, quando me viu ali em pé com uns olhos enormes. As suas feições ficaram um pouco mais suaves, mas não disse nada. Continuou simplesmente a andar. Eu esperei uns minutos e depois entrei para discutir o meu guarda-roupa com a mamã, a fingir que não tinha ouvido nada.

- Lembra-te do que me prometeste, Leigh - avisou ela antes de eu sair. - Vem a casa tantas vezes quantas conseguires e passa o máximo de tempo que puderes com o Tony. Preciso de ajuda, pelo menos nestes primeiros tempos deste meu novo casamento.

- Mas, mamã, ele não vai querer estar comigo. Ele casou consigo. Vai querer estar consigo.

- Ele só precisa de companhia. Vais ver. Oh, valha-me Deus - disse ela, a contemplar a sua imagem no espelho. Toda esta tensão fez-me olheiras.

Eu não vi olheiras nenhumas.

- Preciso de uma boa noite de descanso. Dorme bem, querida, e que tenhas um bom primeiro dia na escola.

- Mas a mamã não vem comigo? - O meu coração bateu mais depressa com medo.

- Por amor de Deus, Leigh. Tu não precisas de mim. O Tony vai tratar de tudo como prometeu. Ele vai levar-te, falar com a directora e verificar se ficarás confortável e em segurança. Depois vai para o seu escritório. Tudo correrá bem.

- Mas...

- Tenho de descansar. - E desligou a luz de ler. - Boa noite, Leigh.

Afastei rapidamente os meus olhos, desgostosa, zangada... Talvez mais do que o Tony. Eu sabia porque é que ela não queria vir comigo. Não queria que as pessoas soubessem que ela tinha uma filha da minha idade. Queria prosseguir nesta charada da juventude. Estava tão decidida a que eu fosse como uma irmã para ela que na mente dela eu era a sua irmã, não a sua filha. Não faria as mesmas coisas que as outras mães faziam; pelo menos o que estivesse ao seu alcance evitar. Neste momento, eu desprezava-a, desprezava-a por tudo: pela dor e sofrimento que tinha trazido ao papá e a mim com o divórcio, por ser tão egocêntrica e por me ter mentido ao longo de todos estes anos. Estava tão zangada que demorei imenso tempo a adormecer.

Quando abri os olhos, deparei-me com o Tony à minha cabeceira, olhando-me fixamente, a sorrir. Parecia que já ali estava há algum tempo. Tinha-me mexido e virado ao longo da noite e o cobertor estava enrolado à volta da minha cintura e a camisa de dormir pendia, quase que expondo os meus seios.

- bom dia - disse ele. - Não queria assustar-te, mas sabia que ainda não estavas levantada e esta manhã temos um horário para cumprir. Quero sair dentro de mais ou menos uma hora, está bem?

Assenti prontamente, puxando o cobertor até ao pescoço.

Dentro de vinte minutos vou mandar o Miles cá acima para levar as tuas malas. Vejo-te ao pequeno-almoço - acrescentou ele e saiu.

Levantei-me apressadamente, tomei um duche e vesti-me. A caminho do pequeno-almoço, reparei que as portas da suite da mamã ainda estavam bem fechadas. Nem me preocupei em entrar e dizer adeus.

 

WINTERHAVEN

O céu estava limpo, naquela manhã em que partimos para Boston e para a minha nova escola, mas o céu azul-claro iludia pois, quando saí da mansão, o ar estava tão frio que parecia que tínhamos acabado de entrar num frigorífico. A luz do Sol brilhante reflectida na neve compacta fez-me fechar os olhos. O Tony riu-se da careta que fiz e deu-me os seus óculos de sol.

- Toma. Põe estes. Tenho outros na limusina - disse ele.

- Mas estes óculos de sol são de homem.

- Não, eu comprei-os na Europa, são unisexo e muito caros, diga-se de passagem. A tua mãe comprou dois, apesar de eu não perceber para quê. Ainda não saiu de casa desde que chegámos - murmurou ele, por entre dentes, e fez-me sinal para entrar no carro à sua frente. Havia um Wall Street Journal e uma espessa pasta com papéis em cima do banco.

- Normalmente leio e trabalho no caminho para a cidade explicou ele. - Mas hoje vou pô-los de lado uma vez que tenho uma companhia tão bonita.

Desviei rapidamente o olhar. Eu sabia que ele estava a tentar ser simpático, pois tinha visto como eu ficara perturbada por a mamã não vir também, mas não estava a sentir-me nem bonita, nem de bom humor. Sentia mais que tinha caído numa armadilha, forçada a ir para lugares para onde não queria ir e fazer coisas que não queria fazer, só porque isso fazia a mamã feliz. Ela parecia conseguir sempre o que queria, e sem qualquer dificuldade ou esforço. Estava lá em cima, confortavelmente instalada na cama.

- Vais adorar Winterhaven - disse ele, quando o Miles arrancou. - O edifício principal foi anteriormente uma igreja e o campanário ainda lá está. Toca o sino hora a hora, e ao fim da tarde ouvem-se melodias.

"Todos os edifícios têm nomes e constituem um semicírculo. Há uma passagem subterrânea que liga os cinco edifícios As alunas usam-na quando a neve dificulta a passagem. Vais ficar instalada no edifício principal, Beecham Hall. É onde estão situados os dormitórios e os refeitórios, e as reuniões também são feitas lá.

Se é uma escola só para raparigas, como é que conhece tantas coisas? - perguntei eu bruscamente. Não tinha intenção de despejar a minha fúria sobre ele, mas não consegui controlar-me. Ele sorriu e olhou pela sua janela por algum tempo. Pensei que não ia explicar-me a razão, mas depois voltou-se para mim com os olhos a brilhar.

- Eu conheci uma rapariga que frequentava Winterhaven - respondeu ele, com suavidade.

- Oh! Era uma namorada? - perguntei eu, petulante. Ele, ou ignorou, ou não ouviu o meu tom sarcástico. O seu sorriso reacendeu-se e ele assentiu.

- Sim. Era uma rapariga muito bonita, muito doce... quase angelical, achava eu. Estava sempre contente, mas albergava tanta compaixão e amor, que, se um rato fosse apanhado numa ratoeira, até chorava. - Os olhos dele tornavam-se mais sonhadores à medida que ia recordando mais coisas relacionadas com ela. - Tinha uma voz suave e um rosto pequeno e perfeito, em forma de coração. Era como uma criança, inocente e muito dócil. Mesmo que estivesse muito triste ou deprimido, quando a via, voltava a sentir-me feliz e cheio de vida.

- O que é que lhe aconteceu? - perguntava a mim própria porque é que ele não tinha casado com uma pessoa tão maravilhosa.

- Morreu num acidente de automóvel na Europa quando estava em férias com os pais dela... numa daquelas estradas traiçoeiras das montanhas. Eu conheci-a por pouco tempo, mas... Bem - disse ele, mudando rapidamente de assunto -, ela frequentava Winterhaven e eu encontrava-me lá com ela, por isso é que conheço bem o sítio.

"Na verdade, a Jillian faz lembrar muito ela. Tem o mesmo rosto perfeito, a mesma expressão suave, a expressão que os artistas procuram obter. Tu também tens essa expressão, Leigh - disse ele, voltando-se bruscamente para mim.

- Eu não, eu não sou muito parecida com a mamã. Os meus olhos estão demasiado juntos e o meu nariz é muito maior.

- Que disparate - insistiu ele. - Tu és muito modesta.

Parte dessa modéstia devia ser canalizada para a tua mãe

disse ele com uma amargura surpreendente. - Ela está a pôr-me maluco, sabes. Mas - continuou -, esse problema é meu. Hoje temos de tratar da tua felicidade e do teu bem-estar. - Recostou-se para apreciar o passeio.

Seria eu demasiado modesta? Estaria mesmo a ficar bonita ou o Tony só estava a dizer aquilo para me animar? Para além do papá, nenhum homem me tinha elogiado tanto. Seria por eu ainda ser nova ou porque só os papás e os padrastos é que nos diziam essas coisas? É certo que o meu cabelo estava a tornar-se tão brilhante e tão macio como o da mamã e os nossos olhos eram da mesma cor. Seria errado da minha parte ter esperanças de um dia ser tão bonita como ela, talvez até mais?

- Olha - exclamou ele, apontando, quando estávamos a chegar à escola -, estás a ver o que eu dizia?

Wintherhaven tinha realmente uma aparência elegante e especial. Estava confortavelmente aninhado no seu próprio pequeno território de árvores despidas, devido ao Inverno, com pequenos focos de verde a aliviar a tristeza que causava. O edifício principal era feito em ripas brancas que brilhavam à luz matinal do Sol. Estava à espera de um edifício de pedra, com tijolos.

Logo que chegámos, um empregado da escola veio buscar a minha bagagem e levou-a em cima de um carrinho de mão. O Tony fez um gesto na direcção dos serviços administrativos. Reparou na minha expressão temerosa. Era uma escola nova, com professores novos e amigas novas. Não conseguia deixar de me sentir nervosa. Era este o momento em que uma rapariga precisava da mãe ao seu lado, para a confortar, a minha, provavelmente, ainda estaria na cama, com o rosto coberto de cremes de noite, pensei eu, com desdém.

- Não fiques tão assustada. Vais dar-te bem aqui. Eu vi as tuas notas da escola e, no que respeita a fazer amigas, todas as raparigas neste lugar vão tropeçar umas nas outras para tentar ter-te como companhia. Excepto aquelas que sentirem inveja e raiva por a nova aluna ser tão bonita - acrescentou. O sorriso dele deu-me a força que precisava para subir os degraus.

Fiquei surpreendida. Estava à espera de qualquer coisa estilo entrada de hotel de luxo, mas o que vi era muito austero. Estava tudo muito limpo e o chão era de madeira dura, muito bem encerada. As paredes eram quase brancas e os acabamentos trabalhados e escurecidos. Fetos em vasos e outras plantas domésticas estavam espalhadas aqui e ali sobre mesas ou ao lado de cadeiras de costas direitas com um aspecto pesado, para aliviar a nudez das paredes brancas. Da sala de estar eu podia ver a sala de visitas, que era um pouco mais acolhedora, com a sua lareira e os seus sofás e cadeiras forrados a chita, cuidadosamente dispostos.

O Tony conduziu-me ao gabinete da directora, Miss Mallory, uma mulher robusta e afável, que nos dirigiu a ambos um sorriso aberto e caloroso.

Bem-vinda a Winterhaven, Miss VanVoreen - disse ela. - É uma honra e um privilégio ter a filha do dono dos paquetes de luxo mais famosos do país a frequentar a nossa escola.

Continuou a sorrir para o Tony. Segundo a minha estimativa, devia ter entre vinte e cinco e trinta anos, talvez fosse um pouco nova de mais para o cargo que ocupava, mas a sua voz aguda e os óculos tipo avozinha faziam-na parecer mais velha. Tinha o cabelo castanho-escuro apanhado num carrapito e não usava maquilhagem, nem sequer bâton. Parecia um pouco insegura; no entanto, pela maneira como a mamã tinha descrito a influência que o Tony tinha na escola, presumi que o parecer dele poderia ter efeito sobre o futuro dela. As propinas da escola eram caras, mas, o fido, existia graças às contribuições de pessoas abastadas como o Tony.

- Eu sei que Mister Tatterton é uma pessoa ocupada, portanto vamo-nos despachar. Presumo que queira dar uma vista de olhos aos aposentos da Leigh - disse ela, sorrindo para o Tony. - Eu própria vou mostrar o quarto - prosseguiu -, e depois nós as duas podemos conhecer-nos melhor quando eu lhe explicar o programa. Fui eu que o desenvolvi pessoalmente - acrescentou ela, elevando as sobrancelhas para impressionar o Tony.

A expressão dele não se alterou.

- Por aqui - indicou Miss Mallory com a mão. - Pedi à sua companheira de quarto, a Jennifer Longstone, para ficar no quarto esta manhã, em vez de ir às aulas, para vos poder apresentar. Não faço isto com toda a gente. E, claro disse ela voltando-se para mim -, se houver algum problema entre si e a Jennifer, qualquer que seja, não hesite em dizer-me e eu mudá-la-ei de aposentos. - Voltou a sorrir para o Tony e levou-nos através do corredor que ligava os serviços administrativos ao dormitório.

Havia vários quadros de informações ao longo do caminho e, apesar de a maior parte estarem cheios de avisos de clubes e de chamadas de atenção para datas de testes e coisas afins, havia também muitas advertências sobre o regulamento dos dormitórios que proibia o armazenamento de comida nos quartos e álcool, incluindo cerveja e vinho. A hora de estudo era das sete às oito e, depois das oito, as alunas podiam ir para a sala de estar ver televisão ou jogar jogos de mesa ou de cartas até à hora de recolher, mas eram interditos os jogos de azar de qualquer tipo. Nenhuma das alunas podia ter um aparelho de televisão no quarto e também não era permitido ouvir música alta. Claro que era proibido fumar em qualquer lado.

Reparei que cada interdição era acompanhada por ameaças de deméritos. Miss Mallory notou que eu estava a ler os quadros informativos à medida que íamos andando.

- Sim, como vê, temos regras muito rígidas aqui em Winterhaven - explicou ela. - Orgulhamo-nos das nossas raparigas, do procedimento e do comportamento exemplar delas. Uma vez por outra surge um problema, mas resolvemo-lo rapidamente. Se alguma dá provas de ser incorrigível, o sistema de deméritos porá fim à sua frequência.

"Por razões óbvias - prosseguiu ela -, esperamos que a Leigh chegue a horas às salas de aulas, que não se atrase nas suas tarefas e que seja pontual à hora das refeições. Foi-lhe atribuída uma mesa e não é permitido mudar de lugar, a não ser que seja convidada pelas ocupantes de outra mesa. Claro que também pode convidar alguém para a sua mesa. Cada aluna tem de servir à mesa durante uma semana em cada semestre. O serviço é rotativo e a maior parte das alunas não o considera desagradável.

"Mas - acrescentou ela, detendo-se à porta -, tenho a certeza de que uma rapariga da sua classe e educação não terá qualquer dificuldade em adaptar-se. - Dirigiu novo sorriso ao Tony e abriu a porta.

Fiquei surpreendida com a simplicidade do quarto, pois estava à espera que raparigas de famílias tão ricas e tão conhecidas tivessem aposentos luxuosos. E o quarto também era muito mais pequeno do que eu tinha imaginado. O chão era de madeira dura polida, havia tapetes ao comprido, estendidos junto às camas individuais simples com uma estrutura em carvalho de cor clara. Ao centro, entre as camas, havia dois roupeiros iguais; nos cantos, duas secretárias com candeeiros e, sobre elas, ao lado de cada uma, prateleiras de pinho escuro. A meio do tecto estava pendurado um candeeiro em forma de bacia. As paredes eram brancas e os acabamentos trabalhados e escurecidos, tudo igual à entrada do edifício. Por detrás de cada uma das cabeceiras da cama, havia uma janela rectangular com persianas amarelo-pálidas e finas cortinas brancas.

A Jennifer Longstone estava sentada à sua secretária, no canto direito. Levantou-se imediatamente e sorriu. Era pelo menos sete centímetros mais baixa do que eu, tinha um rosto redondo com grandes olhos escuros e, pareceu-me, uma linda cabeleira preta, preta como alcaçuz. Gostei do sorriso dela e da maneira como o seu nariz achatado se contorcia. Vestia uma camisola branca e uma saia azul com sapatos de cabedal e soquetes.

- Jennifer - apresentou Miss Mallory -, a Leigh VanVoreen e o seu padrasto, Mister Anthony Tatterton.

- Prazer em conhecê-los - disse Jennifer, estendendo a mão, primeiro ao Tony e depois a mim, sob o olhar perscrutador de Miss Malory.

- A Jennifer é da sua turma - prosseguiu Miss Mallory.

- Achei que ambas iam gostar disso. Depois de se acomodar, a Jennifer vai dar uma volta consigo para lhe mostrar o lugar, e a seguir apresentar-se-á no meu gabinete para discutirmos o seu horário. Jennifer, depois disso pode retomar as suas tarefas.

- Sim, Miss Mallory - replicou a Jennifer, mas havia um brilho nos seus olhos quando olhou para mim. Gostei logo dela.

- Mister Tatterton - disse Miss Mallory -, espero que tenha ficado satisfeito.

- Bem, a Leigh é que tem de ficar satisfeita - respondeu o Tony, fitando-me com o seu característico sorriso.

- Eu acho bem - afirmei eu.

- Pronto - exclamou Miss Mallory. - Deixamo-las sozinhas para se conhecerem. Logo que acabem a vossa volta pela escola, Leigh, por favor, apresente-se de imediato no meu gabinete.

- Sim, Miss Mallory.

- Até ao fim-de-semana - despediu-se o Tony, - Telefona se precisares de alguma coisa, pois eu vou estar na cidade todos os dias.

- Obrigada, Tony. E mande um beijo ao Troy.

- Mandarei. - Deu-me um beijo rápido na testa e foi atrás de Miss Mallory. A Jeniffer não se mexeu nem disse uma palavra até a porta estar fechada. Depois, explodiu com uma energia que me confundiu e me divertiu.

- Olá. Estou tão contente por ter uma companheira de quarto. Chamas-te Leigh? Eu sou de Hyannis Port. Já alguma vez foste lá? Oh, claro, já deves ter ido, quanto mais não seja, já deves ter passado por lá. Queres ajuda para desfazer as malas? Este é o teu armário, mas se precisares de mais espaço podes utilizar o meu, que ainda tem lugar. Aquele era o teu padrasto? É tão bonito. Quantos anos tem?

Parou para respirar e eu ri-me.

- Oh, estou a falar de mais - acrescentou. - Desculpa. Deves ter um milhão de perguntas para me fazer. Podes começar, desata a perguntar - disse ela, cruzando os braços e recuando.

- Há quanto tempo estás em Winterhaven?

- A vida toda. Não, estou a gozar. Há três anos. É uma escola primária e secundária, sabes. Eu estou condenada a fazer o liceu aqui todo. Em que escola é que andavas?

- Era uma escola oficial em Boston.

- Uma escola oficial! Que sorte... Turmas com rapazes, rapazes nos corredores e no refeitório. Aqui só vemos rapazes quando a madre superiora autoriza que se realize um baile.

- A madre superiora?

- Sim, Miss Malory. Sabes, ela só tem vinte e seis anos, mas a Ellen Stevens contou-me que ouviu dizer que Miss Mallory fez votos, como uma freira, para se dedicar à educação. Nunca se casará. Vive aqui e nunca sai com ninguém!

- A Ellen Stevens?

- Sim. Oh, vais conhecer toda a gente ao almoço. Temos a melhor mesa da ala do secundário. Há a Ellen e a Marie Johnson, cujo pai faz todas aquelas peças para automóveis, e a Betsy Edwards, cujo pai administra a Ópera de Boston, e a Carla Reeve, cujo...

- Aqui toda a gente é conhecida pelo que os pais fazem?

- interrompi eu. Roubei-lhe o vento que soprava as velas da sua excitação.

- Oh, desculpa. Pensei que quisesses saber. Pelo menos, a maior parte das raparigas que vêm para cá querem saber estas coisas.

- Eu não - repliquei, bruscamente. A cara dela descaiu. - Está bem - acedi eu -, o que é que o teu pai faz?

- Era advogado, um dos melhores da Nova Inglaterra disse ela, com orgulho. E depois o seu sorriso tornou-se frágil como vidro da espessura do papel. - Mas morreu o ano passado.

- Oh, que pena.

Acho que é por isso que eu falo dos pais de toda a

gente - Baixou os olhos e depois elevou-os rapidamente quando uma ideia nova lhe passou pela cabeça e lhe restituiu a disposição entusiástica. - Mas porque é que tens um padrasto e ainda por cima tão jovem? - Eu tinha a certeza de que ela pensava que o meu pai também tinha morrido e que tínhamos muito mais coisas em comum, para além da idade e da turma.

- A minha mãe divorciou-se do meu pai - disse eu, abruptamente. Achei que não havia razão para esconder. Mais cedo ou mais tarde, toda a gente iria descobrir. Os olhos dela aumentaram.

- Que triste - lamentou ela. - É difícil conseguires ver o teu pai verdadeiro?

- Sim. Ele trabalha imenso. Dirige um negócio de paquetes de luxo. Mas esta semana vem cá ver-me - acrescentei, sem esconder a minha felicidade e emoção. - Vai levar-me a jantar fora.

- Isso é bom - disse ela. - O meu pai costumava fazer isso comigo - acrescentou melancolicamente.

- Desta vez não, porque há muito tempo que não o vejo, mas talvez da próxima vez eu te leve comigo, se quiseres.

- A sério? Adorava. E não direi nenhuma estupidez nem nada que possa ser embaraçoso. Tu explicas-me o que tenho de fazer e de dizer, E não conto nada a nenhuma das outras raparigas. Prometo, juro, juro a pés juntos - disse ela, juntando os pés. Tive de me rir.

- Está bem, eu conto-te, mas primeiro vamos arrumar as minhas coisas, antes que a madre superiora venha à minha procura.

A Jennifer deu gritinhos de prazer e abraçou-me. Em poucos minutos, ela tinha conseguido afastar os pensamentos inquietos que se haviam instalado nos recantos mais sombrios da minha mente. Sabia que era o princípio de uma grande amizade.

A Jennifer levou-me a dar uma volta pela escola, mostrando-me o refeitório, a sala de reuniões, os túneis subterrâneos e o ginásio. Depois, ensinou-me o caminho mais curto para cada uma das minhas salas de aula.

- Os nossos professores costumam dar muita importância à pontualidade na sala de aula. Portanto, tem cuidado com isso... Se não... - Passou o indicador direito pela base do seu pescoço. - Tens uma reunião com a madre superiora e apanhas com um dos longos sermões dela sobre compostura e sobre a necessidade de disciplina e de ordem. Uh!

- Presumo que já tenhas tido algumas?

- Algumas - confessou -, mas ela tem sido simpática para mim desde que... desde que... - Era suficiente. Eu percebi. - É melhor ires ter com ela agora. Tenho de tentar chegar a tempo à aula de Ciências. Depois vamos almoçar e vais conhecer toda a gente.

- Obrigada, Jennifer. Ela encolheu os ombros.

- Ainda bem que estás cá. És a minha primeira companheira de quarto.

- A sério? Mas pensei que tinhas dito que já cá estavas há três anos.

- É conforme a maré - respondeu ela e foi-se embora para a aula. Era definitivamente o que a avó Jana chamaria de "uma lufada de ar fresco". Apressei-me para o gabinete de Miss Mallory a fim de receber o meu horário e o meu primeiro sermão. Agora que o Tony já não estava presente, notava-se distintamente uma alteração na atitude dela. Era muito mais formal e a expressão perdera a sua suavidade. Através de cálculos rígidos, examinou-me, pesou-me, mediu-me, julgou o meu carácter, as minhas fraquezas, os meus pontos fortes.

- Quando a campainha toca às sete da manhã, deve levantar-se e vestir-se o mais depressa possível. Como o pequeno-almoço é às sete e meia, não se pode perder muito tempo em pinturas e a pentear o cabelo.

"Tenho que a informar que aqui todas são iguais. Terá de ganhar o respeito dos seus professores e das suas colegas de turma.

"Muito importante: em Winterhaven não se exibe a fortuna das famílias. Espero que não se esqueça disso. Como já lhe disse há pouco, tenho muito orgulho nas minhas raparigas, nesta escola e na reputação que ganhou.

"Tenho a certeza de que fará jus ao nome da escola disse, para finalizar. - bom, estou a ver que está mesmo na hora do almoço, portanto é melhor ir directamente para o refeitório. Venha ter comigo se tiver alguma pergunta ou problema. A minha porta estará sempre aberta.

- Obrigada, Miss Mallory - agradeci e saí prontamente.

Mal entrei no refeitório, a Jennifer levantou-se e acenou-me.

A nossa mesa era a mais afastada à direita, perto das janelas grandes. Por isso, tínhamos uma vista para a fachada da frente da escola. Apressei-me até lá. A Jennifer havia guardado o meu lugar mesmo ao lado dela.

- Olá - saudei eu. As raparigas todas examinaram-me cuidadosamente, tal como eu examinaria uma rapariga nova na minha antiga escola... Observaram a minha roupa, o meu aspecto, como é que eu usava o cabelo. Porém, tinha a certeza de que a Jennifer já as tinha posto ao corrente de algumas coisas.

- vou apresentar-te toda a gente - afirmou a Jennifer.

- Leigh, esta é a Ellen Stevens, a Toby Krantz, a Wendy Cooper, a Carla Reeve, a Betsy Edwards e a Marie Johnson.

Todas as raparigas acenaram com a cabeça e disseram "olá". Achei que a Marie Johnson era a mais bonita e percebi que era a líder do grupo.

- Como foi a tua reunião com a madre superiora? perguntou Jennifer.

- Bem - respondi eu. - Deu-me o meu horário. - Tirei-o para fora e a Jennifer confirmou que tínhamos todas as disciplinas juntas. Algumas das outras raparigas também partilhavam algumas disciplinas comigo.

- Ela não te disse quão distinto e respeitável Winterhaven era e como nós todas éramos cidadãs modelo? - perguntou a Marie, pestanejando. As outras raparigas riram-se à socapa. - Bem, nós somos, quando queremos - prosseguiu a Marie, com um ar manhoso.

- Quando nos dá jeito... - Depois, acrescentou: - É melhor ires buscar depressa a tua comida. Não temos muito tempo para almoçar.

Levantei-me e fui para a fila do almoço. A comida era muito melhor do que eu estava habituada na minha antiga escola. Finalmente um indício que reflectia a despesa que os nossos pais tinham com a escola, pensei eu.

- A Jennifer disse-nos o nome do teu padrasto - comunicou a Ellen Stevens, quando voltei para o meu lugar. Ele tem alguma coisa a ver com a Fábrica de Brinquedos Tatterton?

- Ele é a Fábrica de Brinquedos Tatterton - retorqui eu, surpreendida por ter soado tão orgulhosa.

- Eu sabia - disse alegremente a Carla Reeve. A minha mãe conhece-o. Nós temos três peças Tatterton de colecção.

- A sério?

- Ele é tão bonito como a Jennifer diz? - perguntou a Marie, estreitando os olhos. Tinha um ar muito mais maduro do que as outras todas.

- É muito bonito, se não, a mamã não tinha casado com ele - respondi eu, sem intenção de soar tão afectado como soou.

- A mamã? - repetiu a Betsy. A Marie lançou-lhe um olhar incisivo e a Betsy desfez o sorriso de troça. Depois, virou-se para mim.

- Tens sorte - disse ela. - Estás sentada na mesa do melhor grupo de raparigas da ala da escola secundária. Temos o nosso clube especial privado. Estamos sempre juntas. Hoje à noite, depois do recolher, vou dar uma festa no meu quarto. Podes vir também.

- Mas, e o regulamento?

- O que é que tem? Não me digas que acreditaste nas coisas que a madre superiora te disse. Às nove da noite já ela está quase a dormir e quanto a Mistress Thorndyke, a vigilante do nosso dormitório, podíamos explodir uma bomba à porta do quarto dela que não parava de ressonar.

Todas riram.

- Não te preocupes - disse a Jennifer. - Eu levo-te comigo.

Só tive tempo de acabar de comer quando a campainha tocou, e fui para a minha primeira aula. Cedo descobri que a escola era mais ou menos igual em todo o lado. Páginas para ler, perguntas para copiar do quadro. Não estava tão atrasada na matéria como receava. Os professores foram simpáticos comigo: pediram-me para lhes enumerar as disciplinas que tinha tido na minha antiga escola e depois passaram algum tempo comigo para me mostrar o que tinha de estudar e de rever. Como as nossas turmas eram pequenas, os professores dedicavam muito mais atenção a cada uma de nós individualmente do que na escola oficial.

Nessa noite, quando eu e a Jennifer fomos para o refeitório jantar, havia uma rosa sobre a mesa, no meu lugar. Quando chegámos, as raparigas estavam todas a conversar sobre a rosa.

- O que é isso? - perguntou a Jennifer, excitada.

- É para a Leigh - informou a Wendy num tom invejoso.

- Para mim? - Olhei para o cartão, que tinha a certeza já ter sido lido por elas. Dizia: "Boa sorte, Tony." - É do meu padrasto - expliquei eu.

- Que amabilidade! - exclamou a Jennifer.

Que romântico - disse a Marie e olhou para mim,

piscando-me o olho. - Porque é que a assinatura da tua mãe não vem aí também? - As outras viraram-se para ouvir a resposta.

Deduzo que esta ideia lhe tenha vindo à cabeça enquanto estava a trabalhar no escritório, em Boston - respondi eu.

A Marie sorriu para as outras, e todas elas, excepto a Jennifer, deram risadinhas.

- Qual é a piada? - Ninguém disse nada, mas via-as a olharem para a Marie.

- Pensei que ele assinava "Papá" - disse a Marie.

- Mas ele não é o meu pai. O meu pai não morreu. Os meus pais estão divorciados - anunciei eu. Fiquei contente por a Jennifer não ter bisbilhotado sobre o assunto, mas todas as raparigas ficaram a olhar para mim de boca aberta, como se eu fosse uma aparição directa do cemitério do mau gosto. Todas elas provinham de famílias abastadas, da classe alta, famílias preocupadas com as suas linhagens. Algumas tinham provas de que os seus antepassados tinham vindo para a América no Mayflower. Os divórcios não eram aceites.

Quando a Jennifer e eu voltámos com os nossos tabuleiros de comida, a conversa tinha-se tornado mais casual. Percebi pela expressão delas que tinham estado a discutir a minha situação. A recepção calorosa que me haviam feito ao almoço arrefeceu. Iniciaram uma discussão sobre o tipo de maquilhagem que preferiam. Quando comecei a dar a minha opinião, ninguém excepto a Jennifer parecia prestar atenção.

Depois de jantar devíamos todas começar a hora de estudo. Quando as raparigas se levantaram, a Marie inclinou-se na minha direcção.

- vou cancelar a festa hoje à noite - informou ela. Esqueci-me de que tinha um teste de Ciências amanhã.

Eu assenti silenciosamente e vi-a a juntar-se às outras.

- Ela não vai cancelar a festa - observei eu à Jennifer.

- Não se querem é ligar a mim porque os meus pais estão divorciados.

- Não te preocupes - segredou-me a Jennifer, quando nos levantámos e seguimos atrás delas. - Isto passa-lhes.

- Estou-me nas tintas - retorqui eu, mas no meu íntimo

 

1 Nome do barco que trouxe os primeiros colonos para a América. (N. da T.)

 

chorava. Porque é que a mamã quisera mandar-me para uma escola cheia de raparigas de sangue azul, com o nariz tão empinado que até lhes tapava a vista? Nenhuma delas, excepto a Jennifer, iria querer convidar-me para as suas casas, pensei eu. Porque é que eu estava a ser castigada pelas coisas que a mamã fazia? Seria que as pessoas iriam sempre descarregar em cima de mim? Estremeci só de pensar no que estas raparigas fariam se soubessem a verdade sobre o meu nascimento.

Mais do que nunca, queria voltar para a minha casa, em Boston, e voltar para a minha antiga escola, onde as minhas amigas verdadeiras teriam pena de mim em vez de me tratarem como uma leprosa. Agora, numa altura da minha vida em que precisava de mais apoio das minhas amigas, tinham-me atirado para o meio dessa gente mimada e rica. Queria fugir. Até pensei no que faria se fugisse. Iria viver com o papá, apesar de ele estar sempre a viajar. Qualquer coisa era melhor do que isto.

Apesar de tudo, a Jennifer foi amorosa e fez tudo o que pôde para me animar. Fizemos os trabalhos de casa com empenho, mas passámos imenso tempo a falar sobre moda, música e rapazes. Tal como eu, ela nunca tinha tido um namorado a sério, mas gostava de um rapaz que frequentava Allandale, uma escola secundária só para rapazes que às vezes organizava bailes em conjunto com Winterhaven.

Quando deixámos o nosso quarto para ir ver televisão, a hora de recreio já ia bem avançada, mas quando chegámos à sala de estar não encontrámos nenhuma das raparigas da nossa mesa, ou como a Marie tinha dito, do "clube especial".

- Estão todas no quarto dela a fazer a festa. Tu devias ir também. Não quero que arranjes problemas por minha causa, Jennifer - disse eu.

- Não tenho vontade de ir se tu não fores convidada replicou ela. - Além disso, elas estão a ser horríveis. Até estou surpreendida, não que tenham sido sempre simpáticas comigo.

- Detesto hipócritas - afirmei eu e deu-me um arrepio de orgulho na espinha. A Jennifer viu as labaredas de fúria estampadas no meu rosto.

- O que foi? - perguntou ela, sustendo a respiração.

- Vamos - ordenei eu e saí furiosa da sala.

- Aonde? - chamou ela, seguindo-me.

- Ao quarto da Marie - disse eu, abruptamente, sem parar de andar.

Mas... é tão embaraçoso. Não achas que devíamos apenas ignorá-las? Quer dizer...

Jennifer Longstone, estou cansada de ignorar as coisas que me tornam infeliz. Se vou ter de frequentar esta escola, terei de ser aceite por aquilo que sou e não deixarei que nenhuma dessas pretensiosas me faça sofrer.

- Vai à frente - disse a Jennifer. - É o último quarto ao fundo do corredor.

Seguimos em frente. com uma atitude agressiva, decidida a deixar de ser humilde e de estar desamparada, vítima disto ou daquilo, levantei orgulhosamente a cabeça à medida que nos aproximávamos da porta da Marie. Ouvia-se a música Rock Around the Clock. Bati à porta. Baixaram o gira-discos e ouviram-se alguns sussurros. A seguir, a Marie abriu a porta.

- Lembrei-me de passar por cá para te ajudar a estudar para o teste de Ciências - disse eu. Passei por ela. Mal atravessei a porta, fez-se um silêncio de morte, enquanto os cigarros ardiam.

O quarto estava cheio de fumo. A Ellen e a Wendy estavam sentadas no chão, a beber Coca-Cola, e a Carla, a Toby e a Betsy estavam em cima das camas a ver revistas de moda e de sociedade. Durante alguns segundos, ninguém disse nada. Então, voltei-me para a Marie.

- Lamento o que sentem em relação ao facto de os meus pais estarem divorciados, mas é estúpido da vossa parte deitarem as culpas para cima de mim e fazerem a Jennifer sofrer também, só porque é a minha companheira de quarto. Esperava que pudéssemos ser amigas. Tenho a certeza de que ninguém aqui é perfeito ou tem um passado sem antecedentes - declarei eu, a arder de raiva. Depois, calmamente, acrescentei: - De qualquer modo, só queria que soubessem que não enganaram ninguém. Vamos embora, Jennifer.

- Espera - exclamou a Marie. Lançou um olhar rápido às outras raparigas. - Tens razão. Não foi uma atitude simpática.

Olhei para as outras raparigas. Todas elas baixaram os olhos.

- bom, de qualquer modo, estás aqui. Já agora podias ficar - afirmou a Marie, fazendo um sorriso instantâneo.

- Bem, eu...

- Por favor - pediu a Marie. - Queres um cigarro?

- Nunca fumei - disse eu, feita parva, a olhar para elas.

- Qualquer hora é boa para começar - observou a Marie.

- Depressa, Jen, fecha a porta antes que a velha Thorndyke passe por aqui. Ellen, põe o disco outra vez - ordenou ela.

- Sê bem-vinda ao nosso clube especial - desejou a Marie. - De qualquer modo, com o teu temperamento, prefiro que estejas do nosso lado. Não é, meninas? - Riram-se todas. Eu olhei para a Jennifer, que também ria muito.

Ficámos ali quase até às onze da noite, a falar sobre a escola, música e cinema. Ninguém se atreveu a perguntar-me mais nada sobre os meus pais, apesar de a Betsy Edwards ter mencionado que ela e a sua família uma vez tinham feito um cruzeiro num paquete VanVoreen. Contei-lhes da minha viagem à Jamaica e depois esgueirámo-nos todas de volta para os nossos quartos.

A Jennifer e eu ficámos na cama a falar até depois da meia-noite. Contou-me sobre o dia em que o pai dela morrera e de como se tinha sentido vazia e sozinha. Era parecido com o que eu sentira quando soubera que os meus pais se iam divorciar. Por fim, já não conseguia manter os meus olhos abertos.

- Tenho de dormir, Jen.

- Não faz mal. Eu também estou cansada.

- Boa noite, Jennifer.

- Boa noite, Leigh. - E deu um risinho.

- O que foi?

- Foste tão estupenda, a maneira como bateste na porta da Marie e lhes deste aquela descasca. Gostava de já ter arranjado coragem para fazer uma coisa dessas. Como é que consegues ser tão corajosa?

- Eu não sou corajosa - insisti eu.

- Oh, és sim, senhor - afirmou a Jennifer. - És a rapariga mais corajosa que conheço e estou muito feliz por seres a minha companheira de quarto. Bem-vinda a Winterhaven, Leigh.

- Obrigada, Jen. Boa noite - repeti eu e fechei os olhos, exausta da agitação e do esforço que tinha feito para ser feliz e sentir-me segura num mundo que conseguia ser tão cruel e tão frio.

No dia seguinte, Miss Mallory veio até ao refeitório à hora de almoço para falar comigo.

- Mister Tatterton está aqui, minha querida - anunciou ela, sorrindo para mim com firmeza. - Está no meu gabinete e deseja falar consigo.

Aconteceu alguma coisa? - O meu coração começou

a bater furiosamente com medo que tivesse acontecido alguma coisa ao Troy.

Oh, tenho a certeza que não - respondeu ela.

Quando olhei para as outras, estavam todas a sorrir à socapa e a conter os risos.

Obrigada - disse eu, seguindo-a, e saímos do refeitório.

Estejam à vontade, por favor - disse Miss Mallory, já no gabinete. - Fiquem o tempo que desejarem. - E deixou-nos sozinhos. Ele estava sentado na cadeira de cabedal ao lado da secretária e tinha um ar muito distinto, no seu fato azul-escuro assertoado.

- Está tudo bem? - perguntou, fitando-me, com os olhos fixos.

- Sim - respondi eu. - Estou bem. Como está o Troy?

- Está muito, muito melhor. Acho que vamos poder trazê-lo para casa dentro de mais ou menos uma semana.

- Isso é maravilhoso, Tony. - Desviei os olhos por uns momentos, porque ele ainda me estava a fitar com excessiva intensidade. - E a mamã?

- Na mesma - respondeu ele com um suspiro. - Agora decidiu que ia fazer dieta... O almoço dela consiste numas gotas de champanhe e em sanduíches de pepino. Ah, e começou a dedicar-se ao brídege.

- Brídege?

- Sim. Parece que todas as mulheres que ela admira jogam brídege. Contratei uma pessoa para lhe ensinar todas as jogadas importantes - disse ele, enquanto cruzava as pernas e passava os dedos meticulosamente pelo vinco das suas calças. Os seus dedos eram longos e fortes e as suas unhas brilhavam. - Então - prosseguiu ele -, não precisas de nada? Roupa, material escolar, gastar dinheiro...? Alguma coisa?

- Não - respondi eu, mas o que eu realmente queria dizer era: "Sim, preciso que a mamã também demonstre algum interesse com o que se passa comigo."

- Está bem - disse ele, e levantou-se. - Talvez eu passe por cá uma destas noites para te levar a jantar fora antes de voltar para casa. Gostavas?

-Esta semana, não - retorqui eu bruscamente. O papá vai telefonar e levar-me a jantar fora.

- Oh! - Fez um trejeito com a boca. Apesar de estar a tentar manter os seus olhos azuis calmos e indecifráveis, percebi que não estava habituado a ser rejeitado. Um homem rico e poderoso raramente se habituava a isso.

- Talvez para a semana que vem - acrescentei eu, e os seus olhos voltaram a brilhar.

- Óptimo. Em todo o caso, na sexta-feira, por volta das cinco horas, estarei aqui com a limusina para te apanhar. Diverte-te no jantar com o teu pai. - Deu-me um beijo rápido na testa antes de abrir a porta do gabinete para sair.

Quando voltei ao refeitório, encontrei o "clube especial" todo reunido à janela a contemplar o Tony lá fora, que estava de pé, junto à limusina, a falar com Miss Mallory. Estavam todas a exclamar "ohs" e "ahs", enquanto suspiravam e segredavam. Mal me viram, voltaram para a mesa.

- Ele é tão bonito - disse a Ellen. - Desta vez a Jennifer não exagerou.

- Quando é que nos convidas a todas para ir à Mansão Farthinggale? - perguntou a Marie e meteram-se todas na conversa, entusiasmadas. Eu respondi-lhes que, logo que tivesse uma oportunidade, as convidava a todas para um fim-de-semana e fazíamos a Festa do Pijama. De uma hora para a outra, tinha-me tornado a rapariga mais popular de Winterhaven.

O papá telefonou na quarta-feira e veio buscar-me para jantar na quinta-feira. Logo que me vieram dizer que ele tinha chegado, atravessei o corredor a correr, em direcção aos seus braços abertos. Ele riu-se e deu-me um beijo grande. Depois, afastou-me para me mirar.

- Estás a crescer tão depressa que quase nem te reconhecia - observou ele. - Ainda bem que estás numa escola só para raparigas - acrescentou ele, olhando em volta e acenando com a cabeça. - Se não, tinhas tantos rapazes atrás de ti que eu teria que os afastar à bastonada.

- Oh, papá.

- Vamos embora - disse ele, dando-me o braço para eu enfiar o meu. - Quero saber tudo sobre a tua nova escola e sobre as tuas amigas novas, e tudo o que aconteceu contigo desde a última vez que falámos.

Levou-me até ao táxi, que esperava à porta, e fomos jantar a um restaurante chique. Enquanto eu lhe contava as novidades, ele ouvia com atenção, com o olhar fixo em mim, como se estivesse a tentar beber-me, a memorizar o meu rosto. Eu falava e falava, tão excitada por ele estar ali e por estar com ele. A sua expressão não se alterou até eu mencionar a lua-de-mel. Nesse momento, os seus olhos ficaram mais pequenos e cerrou os lábios. Desviou o olhar e ficou muito pensativo por uns momentos.

No meu coração, a campainha do alarme disparou, pois senti que ele tinha alguma coisa para me dizer que me iria fazer infeliz. Os meus dentes desceram sobre o lábio inferior, enquanto esperava pelas palavras dele. Nos últimos meses, a tristeza chovera sobre mim tantas vezes que já me tinha tornado perita a prever quando ela estava prestes a cair de novo. Virou-se finalmente para mim, com um sorriso mais suave, mas menos intenso.

- Eu sei que não és feliz, Leigh, e que a tua mãe te afastou de muitas das coisas que gostavas e te lançou num mundo novo, estranho, cheio de pessoas impessoais e frias, que só se preocupam com o seu próprio conforto e dinheiro. Eu lido com pessoas ricas e influentes no meu dia-a-dia, portanto sei quão insensíveis e egoístas podem ser, se quiserem. O dinheiro cega-as, mantém-nas protegidas e afastadas da realidade, permite-lhes viverem as suas ilusões.

- "Lamento que tudo isto te tenha sucedido enquanto ainda és bastante jovem e impressionável, e numa altura em que eu estou a lutar para manter o meu negócio. Não penses que também não tenho o coração despedaçado por estar longe de ti, quando precisas mais de mim.

"O meu consolo é saber que és inteligente e forte, que provéns de uma raça forte, pois os VanVoreen eram pessoas destemidas, que venceram obstáculos intransponíveis para construir a sua vida. Conhecemos dificuldades e não nos tornámos moles com o sucesso que alcançámos. Pelo menos isso, herdaste tu.

Oh, a luta que eu travei dentro de mim! Uma parte exigia que eu lhe contasse a verdade sobre o que tinha ouvido à avó Jana a dizer à mamã e que a própria mamã tinha admitido; a outra, gritava, pedindo para não o magoar ainda mais. E também receava que a verdade alterasse o seu amor por mim. E se ele deixasse de me considerar sua filha? Deixaria de me amar? Se o fizesse, eu sabia que nunca sobreviveria, que seria a última e a pior desgraça a cair sobre mim ao longo de todos esses meses. Só fui capaz de sorrir, de assentir e de me debruçar sobre a mesa para lhe agarrar a mão e lhe assegurar que era a sua filha, uma VanVoreen pura.

- De qualquer modo - prosseguiu ele, chegando à parte das más notícias -, tenho de te confessar que não poderei ver-te por algum tempo. Estou a abrir um escritório na Europa, para tentar ganhar uma quota do mercado europeu que se encontra em franca ascensão. São pessoas que querem não só viajar até à América, como também fazer as rotas turísticas que eu tenho andado a estabelecer com os meus peritos.

"É um erro, sabes, pensar que só os americanos é que têm dinheiro e oportunidade para fazer férias de luxo.

- O que quer dizer com isso, de não me ver por uns tempos? Quanto tempo?

- O mais cedo que voltarei será no Verão - confessou ele. - Mas logo que esteja de volta, passaremos juntos o tempo que quiseres. Prometo.

Senti um nó na garganta. As lágrimas que guardava nos cantos dos olhos ardiam, exigindo correrem livremente pelas minhas faces abaixo. Como é que eu ia aguentar isto, com o papá, o meu amparo, tanto tempo ausente? com a mamã a tornar-se tão egocêntrica e a inspirar cada vez menos confiança? Quem ficaria cá para me dar conselhos, para me dar amor, para me dar o calor dos abraços e dos beijos? Fiz um esforço sobrenatural para ser a filha forte que ele desejava, a descendente VanVoreen que ele acreditava que eu fosse.

- vou continuar a escrever-te, claro - disse ele rapidamente -, e espero que tu continues a escrever-me.

- Sim, papá.

- E logo que souber a data do meu regresso, tomarei providências para nos encontrarmos. - E acariciou a minha mão.

Voltámos para Winterhaven, sentados, muito juntinhos, no banco de trás do táxi, o papá com o braço à minha volta. Estive a ouvi-lo falar das suas viagens, das coisas que tinha visto, das pessoas que tinha conhecido; porém, não tomava atenção às suas palavras, só ouvia o timbre da sua voz.

Em vez disso, pensava no papá que conhecera quando era menina, no papá que me punha às cavalitas e me levava a passear ao longo do rio Tamisa, quando fôramos a Londres; o papá que me tomava nos seus braços e dançava comigo no salão de baile do barco dele; no papá que me dava a mão e me levava pelos paquetes de luxo fora, me apresentava à sua tripulação, me explicava o funcionamento das coisas, beijando-me, abraçando-me e enrolando o meu cabelo nos seus dedos quando eu me sentava ao colo dele.

Esse papá tinha desaparecido, pensei, quase como o papá da Jennifer Longstone. Não éramos assim tão diferentes, ela e eu, e quando ficávamos acordadas à noite, a contar histórias uma à outra sobre a nossa infância, estávamos ambas a pensar em momentos que nunca mais viveríamos, palavras que nunca mais ouviríamos, beijos e sorrisos tão ténues como o fumo, que percorriam as nossas recordações e se perdiam para sempre no labirinto das nuvens que anunciavam a tempestade e que tinham aparecido para obstruir o céu azul da felicidade que ambas tínhamos conhecido um dia.

Em frente à escola, o papá beijou-me. Deu-me um beijo de adeus e apertou-me nos seus braços e voltou a assegurar-me que iria escrever e pensar em mim o tempo todo. Mas eu sabia que, no momento em que entrasse no táxi e este começasse a andar, a sua mente já estaria às voltas com os problemas do seu negócio. Não o odiei por isso; sabia que ele se enterrava até ao pescoço em trabalho, para esquecer a infelicidade que sentia.

A Jennifer estava à minha espera no nosso quarto. Queria que lhe contasse todos os pormenores maravilhosos do meu jantar com o papá. Eu sabia que ela queria sentir essa felicidade através de mim e talvez recordar os tempos felizes que passara com o seu próprio pai. Portanto, só lhe contei coisas boas. Não parei de falar sobre o restaurante e sobre a comida, contei-lhe as promessas que o papá me tinha feito. Falei-lhe do empregado engraçado que tinha uma pronúncia alemã tão cerrada que eu até pedira a comida errada, mas comendo-a na mesma; e era deliciosa. Não me importara com nada, pois estava ao pé do papá, disse eu. A Jennifer riu-se.

- Obrigada por me contares o que se passou no teu jantar - disse ela. - Boa noite.

- Boa noite.

A Jennifer enrolou-se nos cobertores a recordar momentos felizes e eu virei-me de costas para ela e chorei tão baixinho quanto pude, até o sono me salvar das lágrimas mais fortes.

 

MAIS SURPRESAS

Todas as raparigas do "clube especial" sabiam que o Tony me vinha buscar na sexta-feira. Assim, todas elas me acompanharam até ao terraço, à entrada de Winterhaven, e se reuniram à minha volta como galinhas. Fiquei com tanto medo do que elas podiam fazer ou dizer que desci as escadas antes de o Tony sair do carro e abrir a porta.

- Até domingo à noite, Leigh! - entoou um coro de vozes. Depois, aos risinhos, subiram as escadas numa correria e entraram em Beecham Hall.

- Bem! - O Tony voltou os olhos para mim e sorriu, enquanto o carro arrancava. - Parece que eu tinha razão... Fizeste logo muitas amigas. Como correu o resto da semana?

- Bem, Tony, e gosto imenso da minha companheira de quarto, a Jennifer. Gostava de a convidar para vir a Farthinggale, e às outras raparigas do meu grupo também.

- Sempre que quiseres - respondeu ele. - Desde que a tua mãe aprove - acrescentou, num tom sinistro.

Perguntei-lhe sobre o Troy.

- Está mais forte a cada dia que passa. O médico diz que podemos trazê-lo para casa ou na quarta-feira ou na quinta. Assim, quando voltares a casa no próximo fim-de-semana, ele estará lá - afirmou ele. Estava desejosa de o ver, mas também estava ansiosa por passar um fim-de-semana na escola. O "clube especial" ia ao cinema e às compras e, em alguns fins-de-semana, havia bailes mistos, bailes organizados entre a escola de Winterhaven e as escolas secundárias de rapazes, como Allandale.

Quando chegámos a Farthy e eu entrei na mansão, o seu silêncio impressionou-me de imediato, principalmente porque não se ouvia o pequeno Troy a subir e a descer as escadas, e a entrar pelas portas adentro a chamar por mim ou pelo Tony. Naquelas salas enormes, mal se ouvia o eco dos passos; isto, em contraste com o mundo de onde eu tinha acabado de sair, uma escola cheia de adolescentes a rir e a cantar, a música nos quartos, raparigas a conversar nos átrios, campainhas a tocar, o barulho dos pratos, amigas a chamárem-se umas às outras nos corredores, um mundo pleno de energia, ruído e vida jovem. Mais uma vez, Farthy parecia um museu, uma casa de sussurros.

A tua mãe deve estar no quarto dela - disse o Tony,

olhando para o seu relógio. - Deve ter acabado de chegar de um jogo de brídege.

Subi as escadas a correr para ver a mamã. Dentro de mim havia uma mistura de emoções: estava desejosa de a ver, uma vez que tínhamos estado separadas durante uma semana inteira, ansiosa por lhe contar sobre as minhas amigas e as coisas que tínhamos dito e feito, mas estava também zangada, zangada e magoada por ela não ter telefonado uma única vez para saber como eu estava, e ainda não tinha esquecido que ela não me acompanhara no primeiro dia de escola.

-O Tony tinha razão: a mamã acabara de chegar de um jogo de brídege e estava-se a preparar para ir tomar um duche e arranjar-se para jantar.

- Oh, Leigh - exclamou ela logo que entrei no quarto. Parecia surpreendida. - Esqueci-me que chegavas hoje, que hoje era sexta-feira. Acreditas? É para veres como tenho estado ocupada esta semana. - Ficou ali parada, em combinação, com o cabelo solto. Depois sorriu e estendeu-me os braços, à espera que eu fosse a correr abraçá-la. Houve um momento de embaraço e depois ela baixou rapidamente os braços. - Mas espera - disse -, deixa-me olhar para ti. Tens um ar muito mais maduro, ou será um ar de reprovação? Estás zangada comigo por alguma razão?

- Mamã, como é que foi capaz de nem sequer me telefonar durante toda a semana? Eu telefonei-lhe uma vez e deixei recado ao Curtis. Ele disse que a mamã tinha saído com uns amigos para ir às compras em Boston! Podia ter passado pela escola - queixei-me eu.

- Oh, Leigh, que figura a minha... levar todas aquelas mulheres requintadas comigo para visitar a minha filha, que só estava fora de casa há alguns dias. Iam pensar que eu estava a tratar-te como um bebé. E, além disso, não fazes ideia como é ir passear com aquelas mulheres. Andam sempre a mexericar e falam tanto que mal temos tempo para dizer alguma coisa. Sou eu que estou sempre a dizer: "Por favor, minhas senhoras, vamos continuar ou não chegaremos ali ou aqui." Apesar disso, elas pura e simplesmente adoram-me. Dizem que eu sou a pessoa mais fresca e mais inteligente que conheceram nos últimos tempos.

"Não, não deves ficar zangada comigo - insistiu ela. - Isso não quer dizer que eu não tenha pensado em ti. Pedi ao Tony para passar por lá durante a semana e ele foi, não foi?

- Sim, mas não é a mesma coisa, mamã - protestei eu.

- Oh, meu Deus. Estás a ficar tão enfadonha como o teu pai. São esses genes puritanos dos VanVoreen que tu herdaste - afirmou ela.

Senti-me tão furiosa que quase lhe contei o que sabia, exigindo que parasse de me mentir.

- E além disso, o Tony queria ir. Tornaste-te muito importante para ele, Leigh, o que eu considero excelente. Não fazes ideia de como isso me facilitou a vida. Não fiques zangada, por favor - disse ela, tentando persuadir-me e voltando a estender-me os braços em seguida.

Eu queria resistir; queria falar e falar, até ela perceber como tinha sido cruel para mim; ela, porém, fez aquele sorriso suave que eu tanto adorava ver quando era criança, o sorriso que fazia quando me escovava o cabelo e me contava todas aquelas coisas maravilhosas que me iriam acontecer, os lugares que iria visitar, os príncipes que iria conhecer, o mundo de magia e de amor que me esperava. Ela tinha feito com que os meus sonhos e fantasias de criança girassem em volta de um mundo mágico e tinha-me convencido de que o mundo lá fora era só coisas doces e arco-íris.

Eu abracei-a e deixei que ela me apertasse nos seus braços. Ela aqueceu-me as faces com beijos e afagou-me o cabelo, e uma parte de mim detestava que isso me fizesse feliz, mas fazia mesmo. Em seguida, sentou-me em cima da cama a seu lado para me contar todas as amigas que tinha feito, cada uma mais rica do que a outra, todas elas provenientes de famílias conhecidas, de puro sangue azul.

- Porque é que ainda estás tão triste? - perguntou ela, de súbito. - É por causa do jantar com o teu pai? - Os seus olhos diminuíram, desconfiada. - O Tony contou-me que ele vinha aí e te ia levar a jantar fora.

- Não, mamã. Bem, sim, também é por causa disso confessei eu e contei-lhe os planos que o papá tinha em relação ao escritório que ia abrir na Europa e que isso significava que eu não ia estar muitas vezes com ele.

- Isso não me surpreende nada, Leigh - proferiu ela abruptamente. - E convence-te de que ele teria feito uma coisa parecida, mesmo se não estivéssemos divorciados. Oh, quando penso no tempo precioso que perdi, na juventude que desperdicei!

O rosto dela ardeu de frustração e de ódio, por uns momentos, mas depois viu a sua imagem reflectida no espelho.

Não posso franzir as sobrancelhas - gritou ela, com um desespero tal que eu até dei um salto. - Sabias que um dos melhores especialistas em beleza diz que franzir as sobrancelhas acelera o aparecimento de rugas? - Parecia muito agitada. - Tenho estado a ler um artigo que ele escreveu. As pessoas mais calmas e mais felizes envelhecem muito mais devagar do que as pessoas que estão sempre aborrecidas e preocupadas. O truque é reprimir a fúria e pensar rapidamente em qualquer coisa agradável. Ele disse que era a mesma coisa que deitar água para uma fogueira.

"O fogo arde, consome a tua juventude e a tua beleza se o permitires. Por isso, tens de o acalmar, abafar e extinguir o mais depressa possível. - Abriu-se num sorriso como que para demonstrar o que acabara de dizer. - Agora tenho de tomar um duche quente - acrescentou -, e fazer uma massagem facial antes de jantar. Depois vamo-nos sentar confortavelmente e tu vais contar-me tudo sobre Winterhaven, está bem?

A minha cabeça andava às voltas com todos aqueles temas de conversa diferentes que ela tinha abordado numa questão de minutos.

- Mas eu queria perguntar-lhe uma coisa, mamã. Já perguntei ao Tony e ele disse que, por ele estava tudo bem, se a mamã concordasse.

- O que é? - Entrevi um sorriso amarelo como se ela se estivesse a preparar para ouvir uma pergunta terrível ou um pedido horroroso.

- Eu fiz algumas amigas simpáticas em Winterhaven, principalmente a minha companheira de quarto, a Jennifer Longstone. Gostava de as convidar para virem cá aos fins-de-semana.

- Aos fins-de-semana! Ai, por agora ainda não, Leigh, por favor. Não te posso ter aqui a fazer de guia a grupos de raparigas pela propriedade fora e ocupada com elas. Preciso que me ajudes a distrair o Tony. Ele quer ensinar-te a andar a cavalo e a fazer esqui. Foi ele próprio que me disse e está cheio de vontade de fazer isso aos fins-de-semana.

"Tu prometeste que me ajudavas nisto. Prometeste mesmo, Leigh - recordou-me ela, com o rosto contorcido numa expressão premente. - Tenho a certeza de que o Tony só estava a querer ser delicado quando lhe perguntaste. Ele prefere ter-te só para ele, pelo menos durante algum tempo. E acrescentou - Mais tarde deixamos-te convidar as tuas amiguinhas, uma de cada vez.

- Mas, mamã, há tanto espaço. Podemos cá ter mais do que uma de cada vez! - exclamei eu.

- Veremos. Tenho a certeza de que todas elas são boas raparigas e decentes, se frequentam Winterhaven - acrescentou ela e começou a andar em direcção ao chuveiro. Mas, Leigh, por favor, não me compliques mais as coisas. Estou completamente esgotada - disse ela e desatou a rir.

E assim se iniciou o meu primeiro fim-de-semana em casa, vinda de Winterhaven, igual a todos os fins-de-semana a partir daí. Os nossos jantares de sexta-feira eram todos bastante formais e, a não ser que o Tony e a mamã fossem convidados para jantar em casa de alguém, em geral convidavam alguns amigos para jantar lá em casa. Os casais nunca traziam os seus filhos. Assim, com excepção de mim e do Troy, e este só quando estava suficientemente bem de saúde para descer e vir juntar-se a nós, havia apenas adultos à mesa, e as conversas deles não me interessavam muito.

Por vezes, o Tony passava um filme no pequeno auditório. Um amigo de outro amigo arranjava-lhe um filme qualquer conhecido. Algumas vezes vinha um pianista tocar na sala de música. Nessas ocasiões, o Tony e a mamã convidavam meia dúzia de amigos para o jantar e para assistirem ao concerto privativo. A mamã dizia que não só era chique, como também era uma maneira de ela apoiar as artes e os artistas que precisavam de dinheiro extra para continuar o seu trabalho criativo.

Durante os meses de Inverno, o Tony e eu íamos todos os sábados para uma pista de esqui. Ele contratou um instrutor de esqui particular para me ensinar as bases e, pouco tempo depois, eu já descia atrás dele na pista intermédia. O Tony era um esquiador magnífico e normalmente fazia os percursos mais difíceis. Almoçávamos nas instalações na pista de esqui, sentados à lareira.

A mamã nunca vinha connosco. Enquanto estávamos fora, ela ia jogar brídege a qualquer lado ou convidava as suas amigas a virem a Farthy. Se não estava a jogar brídege, ia às compras ou ao cinema, em Boston.

O Troy, que ainda se encontrava muito fraco devido à forte crise de pneumonia com que tinha estado, ficava quase sempre dentro de casa. Por insistência da mamã, o Tony contratou uma enfermeira a tempo inteiro para tratar dele, apesar de já não se encontrar doente. Em fins de Março, quando o Troy caiu de cama com varicela, seguida de sarampo, a mamã relembrava-nos constantemente, a mim e ao Tony, como tinha sido inteligente da parte dela insistir para que o Troy tivesse assistência médica pessoal a tempo inteiro.

O facto de estar mais vezes doente do que com saúde deixou o pobre Troy muito magro e fraco. Quando chegava a domingo e eu tinha de voltar para Winterhaven, o seu rosto pálido ficava a olhar fixamente para mim através da janela, com os seus grandes olhos tristes e fundos, pois sabia que estava condenado a mais cinco dias de pouca companhia e diversão. A mamã tratava-o como se ele fosse um micróbio andante, evitando-o sempre que possível e, isto descobri eu um fim-de-semana qualquer quando cheguei a casa, obrigava-o a comer a horas diferentes só para não ter de estar à mesa ao mesmo tempo que ele.

Quando chegou a Primavera, o Troy começou a desenvolver novas alergias e tinha de ser levado ao dermatologista e ao alergologista quase todas as semanas. Primeiro, pensaram que seria alergia ao pólen e à tasneirinha; em seguida, relacionaram as alergias com os tecidos do quarto dele e o Tony mandou trocar tudo: tapetes, cortinas, roupa de cama e colcha, o que não resolveu o problema. O Troy continuava a pingar do nariz e a tossir por todos os cantos da casa, mesmo nos dias mais quentes e mais claros. A única esperança era que, eventualmente, as alergias desaparecessem, mas até lá, estava condenado a fortes doses de vários medicamentos, uns que lhe tiravam o apetite e outros que o cansavam. Dormia muito, continuava magro e enfezado e tinha quase sempre um ar fatigado e deprimido.

Como é natural, recolheu-se em si próprio e passava a maior parte do tempo a brincar com os brinquedos que o Tony lhe comprava e a criar os seus próprios brinquedos. Algumas das suas criações eram muito boas e o Tony até aproveitou uma delas para construir um brinquedo Tatterton para crianças da idade do Troy.

Durante os meses de Primavera, o Tony e eu começámos a andar a cavalo. Ele decidiu ensinar-me, ele próprio, a montar. Dávamos passeios na praia e atravessávamos as dunas. O Troy queria desesperadamente vir connosco e montar o Sniffles, o pónei dele, mas o alergologista proibiu terminantemente qualquer contacto com animais. Não podia ter um cachorrinho ou um gatinho, nem sequer um hamster. Era tão triste vê-lo ali, na encosta, de mão dada com a enfermeira a observar-nos, ao Tony e a mim, quando partíamos para um passeio na praia, mas eu não podia fazer nada.

Nesses meses de Inverno e Primavera, a mamã andou feliz da vida. Eu estava a fazer o que ela me tinha pedido: passava quase todos os fins-de-semana com o Tony, o que a deixava livre para desfrutar das suas próprias actividades. Durante a semana, o Tony estava sempre muito ocupado, e, segundo o que percebi pelas suas conversas, muitas vezes passavam dias inteiros sem se verem um ao outro. Perguntei a mim mesma o que teria acontecido àquela paixão avassaladora, àqueles momentos magníficos, em que dava a impressão de que o mundo ia acabar se não conseguissem desmembrar a minha querida família para estarem os dois juntos para sempre.

Os postais e as cartas do papá chegaram regularmente durante os meses de Inverno até meio da Primavera. Depois, em meados de Maio, reparei que a carta estava a demorar muito tempo. Quando pensei que já não viria e comecei a recear que tivesse acontecido alguma coisa ao papá, a carta chegou. Nessa carta, ele mencionava uma pessoa nova, referia-se a ela como se eu a conhecesse desde sempre.

"E hoje", era assim que começava o parágrafo do meio, "a Mildred Pierce e eu almoçámos nos Campos Elísios. O dia estava magnífico e as ruas estavam pejadas de carros, pessoas e turistas provenientes de todo o lado, um verdadeiro desfile de moda. Foi o primeiro dia de férias a sério que eu tirei há muito tempo. Fomos visitar museus e até deixei que ela me convencesse a ir até ao topo da Torre Eiffel. A Mildred é uma excelente companhia."

"Mildred Pierce?", pensei eu. Quem era a Mildred Pierce? Vasculhei todas as cartas que recebera do papá só para me certificar de que ele nunca a tinha mencionado antes. Seria uma secretária, uma parente, uma pessoa conhecida no ramo dos negócios, à qual eu já teria sido apresentada? Era tudo muito confuso, mas houve também alguma coisa na maneira como o papá escrevia "a Mildred é uma excelente companhia" que me sobressaltou.

Que idade teria essa Mildred Pierce? Poderia ser a filha de alguém, alguém da minha idade, talvez, alguém que estava a desviar a atenção dele de mim? Eu também teria adorado ir almoçar com o papá aos Campos Elísios e subir com ele ao topo da Torre Eiffel. Não era justo.

E depois pensei que era terrivelmente egoísta da minha parte estar a dizer mal do papá por causa do dia que ele denominara "o seu primeiro dia de férias a sério desde há muito tempo". Estava desejosa de receber a carta seguinte para ver se ele iria mencioná-la de novo. Não o fez, mas, em contrapartida, escreveu que achava que o seu regresso aos Estados Unidos teria de ser adiado e não referia a razão, mas eu apercebi-me de qualquer coisa nas entrelinhas. A mamã teria chamado a isso intuição feminina. Eu sabia era que, no fundo do meu coração, tinha medo de ser substituída, receava perder o amor do meu distante pai. A partir desse momento, sempre que abria uma carta ou um postal do papá, retinha a respiração.

E então, no fim de Junho, aconteceu. O papá escreveu-me a dizer que iria regressar em meados de Julho. Dizia que estava desejoso de me ver e ansioso por que eu conhecesse a Mildred Pierce.

Eu podia compreender o facto de o meu pai estar contente por ter conhecido alguém que o ajudava a passar o tempo. Porém, quando a mencionava, era com tanto entusiasmo que me preocupou e me magoou.

"A Mildred e eu somos compatíveis. Ela interessa-se pelas mesmas coisas que eu e é uma pessoa amorosa e afável. Tenho a certeza de que vais gostar dela. Estar com ela é como conseguir afastar as nuvens cinzentas e trazer de volta os raios de sol à minha vida."

"Mas, papá", chorava eu no meu íntimo, "pensava que era eu quem trazia os raios de sol à sua vida. É essa a razão por que esteve longe de mim tanto tempo, por que se deixou ficar na Europa? Terá outra pessoa roubado aquela parte do seu coração que eu pensava ser minha?"

"E se essa Mildred Pierce não gostar de mim, se não me quiser ao pé dela, ou pior, se tiver ciúmes de mim? Terá ainda menos a ver comigo do que já tem agora?"

Fiquei a olhar para a fotografia do papá em cima do meu toucador durante muito tempo, antes de pôr a questão mais assustadora: se o papá constituísse uma família nova, qual seria o meu lugar?

Uma noite, em meados de Junho, o Tony anunciou que tencionava ir à Europa em negócios. Ao contrário dos tempos em que o papá fazia a mesma coisa, a mamã não ficou logo infeliz, nem se queixou, fazendo beicinho. Foi muito compreensiva e demonstrou muito interesse em saber o que o levava lá.

- Existe uma empresa na Europa - explicou ele -, de cuja existência soube recentemente, uma empresa muito parecida com a minha, e que produz vários tipos de artigos para as classes sociais mais abastadas da Europa. Uma das coisas que receio é que tencione expandir-se para os Estados Unidos, o que poderá roubar muita da nossa clientela. Quero saber mais sobre eles e ver em primeira mão o que é que me espera em termos de concorrência.

"Porque é que não vens comigo, Jillian? Podíamos fazer uma segunda lua-de-mel. Não tenho de passar o tempo todo a tratar de negócios. Podemos fazer imensas excursões.

- Para a Europa? Agora? - resmungou a mamã. - Está muito calor e o continente está apinhado de turistas. Além disso, já te tinha dito que achava que devíamos pôr a hipótese de redecorar algumas das divisões em Farthy e tu disseste que eu podia avançar e contactar com os decoradores. Tenho de começar a tratar disso.

O Tony não ficou contente, mas partiu sozinho para a Europa, poucos dias mais tarde. A mamã parecia ter ficado aliviada, como se lhe tivessem tirado uma grande responsabilidade dos ombros. Começou imediatamente a tratar da nova decoração da casa, iniciando longas reuniões com os decoradores, enchendo a sala de música de catálogos e mais catálogos de papel de parede, de carpetes e de amostras de tecidos, bem como de fotografias de mobílias. Reuniu os peritos à sua volta, como uma rainha rodeada pela sua corte, e andava de sala em sala a discutir, a ouvir sugestões e a fazê-las. Até os convidou para jantar, onde continuaram a discutir modas, cores e estilos pela noite dentro.

O ano lectivo terminou e todas nós, do "clube especial", despedimo-nos umas das outras, prometendo escrever tantas vezes quanto possível. Sentia-me horrível por nunca ter convidado ninguém, nem mesmo a Jennifer para me visitarem em Farthy. Sempre que elas me perguntavam, eu fora forçada a arranjar boas desculpas, usando e abusando como pretexto dos problemas graves de saúde do Troy. Eu sabia que estavam todas muito desapontadas, principalmente a Jennifer, mas não podia fazer nada. Sempre que falava no assunto, a mamã entrava em pânico e às vezes até tinha ataques de fúria. Era cedo de mais... espera, espera, ESPERA. Cansei-me de perguntar.

No entanto, quase uma semana depois de o Tony ter partido para a Europa, a mamã surpreendeu-me, dizendo-me que eu podia convidar a Jennifer para passar uns dias em Farthy. Telefonei para casa dela e disse-lhe. Ela deu gritos de felicidade. Só tinha passado uma semana desde que a escola acabara, mas já estávamos cheias de saudades uma da outra..-,

Ela ficou muito impressionada com Farthy. Levei-a a passear a cavalo na praia e tomámos banho na piscina todos os dias. Adorou o Troy, que se divertiu a mostrar-lhe a propriedade e a fazer demonstrações dos seus brinquedos. Infelizmente, ainda não tinha autorização para tomar banho. Até se desconfiava que seria alérgico ao cloro.

A Jennifer ficou fascinada com a mamã. Conquistou-a imediatamente quando lhe disse que era difícil acreditar que uma pessoa com um ar tão jovem como ela tivesse uma filha da minha idade. Todas as noites durante o jantar, a mamã fazia-lhe um monte de perguntas sobre a família dela e sobre a sua casa em Hyannis. E depois, a mamã deu-lhe imensos conselhos sobre como devia usar o cabelo, as cores que lhe ficavam melhor, a cor do bâton que devia usar. A Jennifer ouvia com muita atenção, com os olhos abertos, acenando com a cabeça como se estivesse sentada à mesa com uma estrela de cinema. A partir desse momento, só falava sobre a mamã, como ela era bonita e sofisticada.

Todas as noites ficávamos sentadas no meu quarto a conversar até tarde.

- A tua mãe é tão jovem e tão bonita. O teu pai ficou com o coração despedaçado quando se divorciaram? - perguntou ela uma noite.

Recordei o papá naquela manhã no The Jillian, quando veio ao meu quarto contar-me a decisão da mamã.

- Sim, mas ele dizia que a culpa era dele e manteve-se o mais ocupado possível para não ter de se lembrar disso. A mamã dizia sempre que ele estava tão casado com o negócio dele como com ela - acrescentei eu, com tristeza, pois começara a acreditar que, em parte, isso tinha sido verdade.

- O teu pai deve ter querido atirar-se do barco quando soube que ia perdê-la - comentou a Jennifer. Em seguida, o sorriso que acompanhara essa fantasia romântica esmoreceu e ela voltou-se de costas, com os olhos cheios de lágrimas.

- O que foi, Jen?

- É a minha mãe - disse ela, chorando. - Tem andado a encontrar-se com outro homem, um homem que costumava ser o melhor amigo do meu pai. - Voltou-se de costas, com os olhos molhados, mas o rosto a arder de fúria. - Eu disse-lhe que o odiava, que ele nunca seria o meu pai e que a detestava por sair com ele.

- E o que é que ela disse?

- Ela chorou e disse-me que não podia fazer nada, porque se sentia sozinha. Eu e a minha irmã não éramos suficientes. Precisava de um marido.

"Mas eu não quero outro homem a viver na minha casa e a usar as coisas do meu pai! - gritou ela. - Não quero, não quero! - Começou a soluçar. Eu abracei-a, amparei-a nos meus braços e depois contei-lhe a história do papá com a Mildred Pierce. Parou de chorar, ouviu com atenção e então começou ela a ficar com pena de mim.

- Oh, Leigh - disse -, os adultos são tão egoístas. Eu nunca hei-de ser assim quando chegar à idade deles. E tu?

- Não sei, Jen. Espero que não, mas não sei. - Porque é que fazíamos votos e promessas? Podíamos jurar sobre mil bíblias que nunca nos trairíamos uns aos outros ou às pessoas que amávamos, mas às vezes o destino deitava-nos as suas garras e fazia-nos esquecer os nossos sonhos. Estive tentada a contar-lhe a verdade sobre mim, a verdade sobre a mamã e sobre o que ela havia feito, mas tinha demasiada vergonha. Era um segredo que iria arder só no meu coração, independente da dor provocada pelas suas chamas.

Ficámos ambas muito tristes quando chegou a hora de ela voltar para casa. A Jennifer perguntou à mamã se eu podia ir visitá-la.

- Veremos. - respondeu a mamã. - Há muitas coisas para fazer em Farthy neste Verão, querida, e a Leigh tem de ajudar a tomar conta do Troy.

"Ajudar a tomar conta do Troy?" pensei eu. Desde quando é que a mamã se preocupava com o Troy? O que ela queria dizer era que eu tinha de a ajudar a tomar conta do Tony, mas isso ela não podia dizer a ninguém. Oh, mais uma vez o egoísmo da mamã punha os seus desejos à frente dos meus. Era antinatural, pensei eu, pôr-me a entreter o novo marido dela.

Em fins de Junho houve um dia muito quente e eu tinha passado a maior parte da tarde sentada preguiçosamente na piscina a ler. O Troy e a enfermeira haviam-me feito companhia durante algumas horas, uma vez que o médico tinha estabelecido um programa de sol para o Troy por estarmos no pino do Verão. Fiquei na piscina até o Sol começar a desaparecer atrás das árvores e aparecerem sobre o pátio grandes nuvens que cobriram as espreguiçadeiras e a mim, e que trouxeram o frio. Vesti rapidamente o meu roupão, pus a toalha à volta do pescoço e comecei a andar em direcção à casa. Quando entrei, ouvi as vozes da mamã e do Tony que provinham da sala de estar à direita.

- Leigh! - gritou o Tony mal espreitei para dentro da sala - Tive saudades tuas! Olha como ficaste tão queimada em tão pouco tempo.

- Olá, Tony. À viagem foi boa?

- Bastante bem sucedida - respondeu ele e sorriu para a mamã. Ela recostou-se no seu novo cadeirão Carlos II, esculpido e trabalhado, que tinha comprado no âmbito da nova decoração da sala. com os seus brincos de diamantes em forma de pêra a balouçar, o seu cabelo penteado para trás na perfeição, nem um fio de cabelo fora do lugar, e os dedos cobertos de anéis de esmeraldas, diamantes, rubis e safiras, a mamã parecia uma rainha. Vestia um vestido branco de renda com um decote redondo e, assim, o colar de diamantes mais precioso dela pendia suavemente sobre o seu peito rosado.

- - O Tony teve uma ideia nova maravilhosa - anunciou a mamã. - E quer que tu participes nela.

- Eu? - Avancei para dentro da sala.

- Lembras-te de eu ter falado sobre aquela empresa europeia que faz brinquedos parecidos com os da Fábrica Tatterton e que tem mais ou menos os mesmos objectivos que nós em termos de mercado? - perguntou ele, muito rápido. Eu assenti. - Bem, a Europa tem alguns dos melhores artesãos do mundo. Que digo eu? Tem os melhores mesmo. Mas

- acrescentou, piscando o olho primeiro para mim e depois para a mamã -, agora sou eu que tenho alguns.

"Em todo o caso, numa das minhas viagens a uma das fábricas numa pequena vila mesmo à saída de Zurique, descobri que eles andavam a fazer uma coisa chamada "boneca-retrato".

- Boneca-retrato? - Deslizei para cima do sofá para ouvir.

- Sim. Uma ideia brilhante! - disse ele, cerrando as mãos em punhos e levantando-os para acentuar o seu entusiasmo. - Ninguém no mundo é mais apaixonado e obcecado consigo próprio do que as pessoas ricas. Acham que o dinheiro e a posição deles lhes podem comprar imortalidade. Portanto, todos eles mandam pintar o seu retrato pelos melhores artistas e põem os melhores fotógrafos a tirar-lhes fotografias. Vão a qualquer lugar, gastam o dinheiro que for preciso para terem essa satisfação.

- E o que é que isso tem a ver com bonecas? - perguntei eu.

- Tudo. Imagina uma boneca que tem a tua cara e é tua! Toda a gente vai querer uma: mães, filhas, irmãs, tias... Eventualmente, até os homens vão acabar por querer bonecos que reflictam a imagem deles.

"E seremos os primeiros a fazê-lo aqui, na América; portanto, tornar-se-á obrigatório ter uma boneca Tatterton. Será uma coisa especial, preciosa, um artigo de colecção personalizado. É brilhante! - exclamou ele de novo, desta vez batendo com os punhos nos joelhos.

Tive de admitir que o fervor do Tony me tirou a respiração e que a ideia parecia realmente muito boa.

- Mas qual é o meu papel nisso tudo? - perguntei, voltando ao assunto que me tinha feito entrar na sala e na conversa. O Tony fitou a mamã, sorrindo cada vez mais, e ela devolveu-lhe o sorriso, virando-se depois para mim.

- O Tony quer que tu sejas o modelo para a primeira boneca e quer fazer ele próprio a boneca - explicou ela.

- Eu? - Olhei para um e para o outro. A mamã fazia aquele sorriso suave e feliz. Os olhos do Tony estavam fixos em mim, denotando já a intensidade do olhar de um artista.

- Porquê eu?

- Em primeiro lugar - começou o Tony -, quero destinar o conjunto inicial de bonecas a raparigas novas. Não é meninas - acrescentou ele rapidamente -, é raparigas novas, adolescentes. Penso que será o melhor mercado para as bonecas-retratos. As mais pequenas não têm idade suficiente para apreciar o trabalho artístico extra que isso envolve e, ainda mais importante de que isso, não veneram a imagem delas, nem se preocupam tanto com o aspecto exterior como as adolescentes.

- Mas ainda não consegui perceber. Porquê eu? - insisti. O Tony abanou a cabeça.

- Não é espectacular, Jillian, que ela seja tão modesta? A mamã olhou para mim com os olhos a cintilar, como se tivesse entendido que eu estava a ser modesta. Ela tinha-me dito muitas vezes que os homens gostavam quando as mulheres bonitas fingiam modéstia. Dava-lhes oportunidade de as encherem de elogios sem se envergonharem ou terem medo de serem demasiado lisonjeiros, e as mulheres podiam atrair elogio atrás de elogio, desdizendo e corando, e pondo um ar de quem precisa de ser adulada.

No entanto, eu não estava a fazer nada disso. Sinceramente, não conseguia perceber porque é que o Tony me queria como modelo para uma boneca especial. Havia muitas raparigas da minha idade, raparigas muito mais bonitas e que tinham feito cursos de modelos. com o dinheiro e os investimentos que ele tinha, podia contratar as melhores do país, se quisesse. Porquê eu?

- O Tony acha que tu és especial, Leigh, e eu também observou a mamã.

- Tu já tens uma cara de boneca - explicou o Tony. Eu abanei a cabeça. - Sim, tens, Leigh. Podes continuar a ser modesta, se quiseres, mas porque é que eu hei-de ir à procura da expressão ideal, da rapariga ideal, quando tenho a expressão perfeita e a rapariga perfeita a viver debaixo do mesmo tecto que eu?

"vou contratar o melhor fotógrafo da cidade para fotografar a tua cara. Tirar-te-á muitas fotografias até escolhermos a fotografia perfeita e, depois, essa fotografia será colocada ao lado da boneca-retrato, cujo rosto também será o teu- Aí, todas as minhas clientes ricas vão perceber o que é uma boneca-retrato e vão querer uma para elas próprias. A tua fotografia será exposta em todas as montras das minhas lojas... em toda a parte - disse ele.

A ideia acelerou-me as batidas do coração. Qual seria a atitude das minhas amigas do "clube especial"? Eu sabia que ficariam todas com inveja, mas provavelmente o Tony tinha razão: todas iriam querer uma boneca para elas. Recostei-me e, pela primeira vez, comecei a pensar a sério no assunto... Uma boneca com o meu rosto...

- Estou tão orgulhosa por o Tony querer que tu sejas a primeira boneca - comentou a mamã. Fiquei a olhar para ela por uns instantes. Porque é que o Tony não queria usar a cara da mamã? Ainda tinha um aspecto tão jovem e um rosto perfeito, um rosto que toda a gente considerava bonito. O que me intrigava também era o facto de a mamã não estar com ciúmes. Parecia contente.

Depois, cheguei à conclusão que a mamã nunca concordaria em fazer uma coisa dessas. Iria odiar ter de estar sentada horas a fio enquanto o Tony a pintava. Ou haveria mais alguma razão?

- O que é que eu tenho de fazer? O Tony riu-se.

- Só tens de ser tu própria, nada mais, tens de ser a tua pessoa.

- A minha pessoa?

- A boneca tem de ser perfeita - explicou o Tony. A todos os níveis. Não vai ser apenas outra boneca, modelada e produzida numa linha de montagem em série. Vai ser uma obra de arte. É essa a questão. Pensa nela como se fosse uma estátua em miniatura, só que em forma de boneca de crianças.

- O que é que quer dizer com isso tudo? - perguntei num fio de voz, quase num sussurro. O Tony olhou para a mamã, com o sorriso a esmorecer. O olhar dela, suave e feliz, transformou-se rapidamente num olhar furioso.

- Quer dizer que vais ser um modelo, Leigh. Porque é que ficaste tão estúpida, assim, de repente? Um modelo. Um modelo para um artista. Vais posar.

- Mas geralmente os modelos dos artistas não posam... nus? - perguntei eu, receosa.

O Tony riu-se, como se eu tivesse dito o maior disparate.

- Claro que sim - replicou ele com um ar de indiferença. - Qual é o problema? É arte, e como já referi, essa boneca vai ser uma estátua em miniatura.

Engoli em seco. Posar nua, numa sala, num sítio qualquer, enquanto o Tony pintava o meu retrato, um retrato que qualquer pessoa podia ver?

- O Tony não é um estranho - disse a mamã abanando a cabeça e sorrindo. - Ele agora faz parte da família. Não deixaria que ninguém o fizesse, excepto ele - acrescentou ela.

- E será tudo feito com muito profissionalismo - prosseguiu o Tony. - Só porque sou o presidente da empresa não quer dizer que não tenha começado como artista. Todos os Tatterton o fazem. Eu trabalhava como artesão da Fábrica Tatterton quando o meu pai morreu e então tive de tomar conta da parte administrativa do negócio.

"Este trabalho é importante de mais para ser atribuído a um artesão qualquer da minha fábrica e, tal como a Jillian diz, não deixaríamos que nenhum estranho copiasse a tua imagem.

Como eu não disse nada e houve um longo momento de silêncio, Tony prosseguiu.

- Deixa-me explicar-te o processo para que percebas o que tem de ser feito. Primeiro, desenharei um quadro teu. Depois, pintá-lo-ei, tentando captar os tons da pele. A seguir, trabalharei em barro, esculpindo um modelo que capte todas as dimensões e, quando esse modelo estiver pronto, será moldado e duplicado.

"Bem - continuou ele, preenchendo o silêncio que persistia discute o assunto com a Jillian. Tenho de ir fazer uns telefonemas para saber o que se passou na minha ausência e depois vou ver o Troy. Não te preocupes - acrescentou - Vai correr tudo bem e vais acabar por te tornar bastante famosa ao longo deste processo. - Levantou-se, beijou a mamã e deixou-nos a sós.

- Sinceramente, Leigh, estou surpreendida e desapontada contigo. Viste como o Tony estava excitado, eléctrico até, com a nova ideia dele, e percebeste que este vai ser um empreendimento gigantesco e importante para a Fábrica de Brinquedos Tatterton. Ele a querer que tu sejas o centro de tudo isso e tu para ali sentada, com um ar pouco agradecido, indiferente, a choramingar como uma criança imatura: "O que é que eu tenho de fazer?"

- Mas, mamã, posar nua?

- E qual é o problema? Tu ouviste as palavras dele: isto é arte. Olha para o meu museu. O homem que posou para o David do Miguel Angelo estava vestido? E a mulher que posou para a Vénus?

"Quando ele entrou aqui todo excitado e me propôs essa ideia, pensei que fosses delirar e que te sentisses lisonjeada. Pensei que já tivesses amadurecido o suficiente para não teres uma atitude pateta e idiota em relação à arte. Acredita que - assegurou-me ela -, se eu fosse suficientemente jovem, da tua idade, e me aparecesse um homem como o Tony a oferecer-me esta oportunidade, achas que hesitaria, como tu fizeste? Claro que não.

- Mas porque é que não pode ser a mamã a fazer de modelo? É tão bonita e tem um aspecto tão jovem.

A expressão da mamã alterou-se, como se tivesse sido atingida por um raio, tornando-se dura e fria.

- O Tony explicou que quer dirigir o mercado dessas bonecas a raparigas da tua idade - disse ela, de rompante. Estás a imaginar a minha fotografia numa montra ao lado de uma boneca-retrato Tatterton, uma boneca feita para adolescentes? Eu tenho um aspecto jovem, Leigh, mas não tenho ar de adolescente, ou achas que sim? Bem... achas que sim?

- Eu abanei a cabeça, sem força, insegura quanto a aceitar ou não.

- Talvez a mamã possa pintar e fazer a escultura - propus eu, de repente. - É uma artista...

- Eu não tenho tempo para isso, Leigh. Tenho obrigações sociais muito importantes. Além disso eu pinto quadros de fantasia. - E continuou:

- Nem sequer tens de sair daqui para posares. Vai ser tudo feito em Farthy e terás outra coisa com que te ocupar este Verão. O Tony decidiu montar um pequeno estúdio na pequena casa de pedra, e assim tu e ele não serão perturbados.

- Na casa de pedra...?

- Não é uma boa ideia? Eu assenti.

- Então, está tudo bem. Eu digo-lhe que concordas declarou ela pondo-se de pé. - Não é excitante? Mal posso esperar para ver o resultado final - disse e deixou-me.

Fui a correr para os meus aposentos tirar o fato de banho, tomar um duche e vestir-me para o jantar. Sentia-me desorientada e confusa, a minha cabeça estava cheia de contradições, desviando-me ora para um lado ora para o outro, devido ao efeito das diferentes emoções que sentia. Não podia deixar de ficar excitada com a ideia de o meu retrato estar exposto nas montras das Lojas Tatterton ao lado de uma boneca preciosa, criada à minha semelhança, fazendo-me parecer uma deusa. Apostava que a maior parte das minhas amigas, principalmente as do "clube especial", teriam agarrado esta oportunidade com unhas e dentes.

Contudo, o Tony era o novo marido da mamã, jovem e atraente, e ficar nua, durante horas, à frente dele!...

Despi o meu fato de banho, exibi-me em frente do meu espelho de corpo inteiro e observei a minha imagem, estudando cada curva do meu corpo. As veias à volta dos meus seios a despontar estavam próximas da superfície, distendendo-se e crescendo cada dia mais. Iria o Tony concentrar-se num pormenor desses? Havia uma marca de nascença mesmo por debaixo do meu seio direito. Iria aparecer também na boneca? Eu tinha a certeza de que, quando aparecesse nas montras das lojas, a boneca ia estar vestida, mas qualquer um podia despi-la e observar o seu corpo. Não seria a mesma coisa que despir-me na montra central da loja ou no palco para todos verem?

Como é que as mulheres se tornavam modelos de artistas profissionais? Sentar-se-iam ou ficariam de pé num sítio qualquer a pensar em outras coisas, fingindo que não se estava a passar nada?

Vesti o roupão e voltei para a frente do espelho a fingir que estava a posar para o Tony. Imaginei-o à minha frente, com o pincel na mão. A paleta estava pronta e a tela preparada. Nesse momento, ele virava os seus intensos olhos azuis para mim e sorria. Gesticulava com o pincel e eu começava a desapertar o meu roupão. O meu coração começou a bater a acelerar, só de imaginar essa fantasia. Comecei a afastar o roupão do meu corpo e...

LEIGH! - Ouvi o Troy a gritar da minha sala de espera

e apertei o roupão. Entrou a correr, com uma exuberância que eu não via nele há semanas. - O Tony contou-me, o Tony contou-me! Ele vai fazer uma boneca de ti, uma boneca Tatterton, e um dia talvez eu venha a ter uma na minha prateleira!

- Oh, Troy - exclamei eu -, não vais querer ter uma boneca de menina, pois não?

- Não é uma boneca de menina - replicou ele, com firmeza. - É uma boneca da Fábrica de Brinquedos Tatterton e isso é especial, não é? - Ele assentiu com a cabeça, à espera que eu concordasse.

- Suponho que é - disse, e ele sorriu.

- Mas o Tony diz que eu não posso ir com vocês vê-lo a fazer a boneca. Não pode ser perturbado - explicou ele, com tristeza. - Mas posso ser um dos primeiros a vê-la quando estiver pronta.

"Vai ser a melhor boneca do mundo! - proclamou ele. E depois de pensar um bocado, disse: - vou contar ao Rye Whiskey. - Da mesma maneira como apareceu, desapareceu do meu quarto.

Eu voltei a virar-me para a minha imagem no espelho. Seria capaz de fazer uma coisa dessas? Fá-lo-ia? A mamã achava que eu devia, mas a mamã queria que eu fizesse qualquer coisa, desde que fosse para manter o Tony ocupado e poupá-la às constantes exigências e carências afectivas dele.

Que diria o papá?, perguntei a mim mesma.

O papá não iria gostar muito; ele não podia gostar da ideia, o papá, não. Como desejava que ele já estivesse em casa para lhe poder perguntar a sua opinião. Mas ele não estava em casa, ainda estava na Europa, ocupado com o seu negócio e com... a Mildred Pierce.

"Mildred Pierce", pensei eu, zangada. Ele deixara que uma pessoa desviasse a sua atenção e o seu amor, deixara que alguém o afastasse de mim durante mais tempo e talvez para sempre.

Desapertei o meu roupão e deixei que caísse a meus pés. Estava decidido: eu seria uma boneca Tatterton. Até talvez oferecesse uma ao papá no dia do seu novo casamento.

 

EU... MODELO?

O Tony passou a semana que se seguiu com o pessoal do departamento de marketing a planificar a produção e venda das bonecas-retratos. Todas as noites ao jantar ele tinha algo novo e excitante para nos contar sobre o projecto. A mamã estava mais interessada nisso do que alguma vez estivera em qualquer outra coisa feita pelo Tony. Senti-me a ser arrastada pela maré de entusiasmo que nos percorria. Por fim, um dia, anunciou que a pequena casa de pedra tinha sido preparada e que ele estava pronto para começar a trabalhar na manhã seguinte, após o pequeno-almoço. Senti o calor a subir-me às faces e o meu coração a palpitar. A mamã fez um sorriso enorme e o Tony propôs fazermos um brinde ao projecto.

- E à Leigh - disse ele fixando-me com os olhos azul-celestes a brilharem intensamente. - A primeira modelo Tatterton.

- À Leigh - repetiu a mamã, dando em seguida uma gargalhada aguda. Beberam o vinho deles rapidamente, como dois conspiradores acabados de embarcar numa aventura perigosa, sobre a qual tinham jurado nunca voltar atrás.

- O que é que eu tenho de vestir? Como devo pentear o cabelo? - perguntei eu, parecendo um pouco inquieta.

- Sê tu própria - respondeu o Tony. - Não faças nada de especial. Tu já és especial - acrescentou ele. Quando olhei para a mamã, vi que ela o fitava com um sorriso suave, mas de satisfação, nos lábios. Eu sabia porque é que ela estava tão feliz. O Tony estava embrenhado neste empreendimento. Enquanto estivesse, não exigiria nada dela.

Nessa noite eu não conseguia adormecer, a pensar como iria ser posar para o Tony. Queria conversar mais sobre esse assunto com a mamã, mas ela foi a um jogo de brídege e, quando voltou, deixou bem claro que estava exausta e que tinha de ir dormir imediatamente. O Tony ficou tão desapontado quanto eu por causa disso.

Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, ele e eu partimos para a pequena casa. Ele tinha decidido ir pelo caminho que atravessava o labirinto. A manhã estava linda e quente, e as nuvens, tipo bolas de algodão fofinhas, deslizavam preguiçosamente pelo céu azul-turquesa.

- Está um dia maravilhoso para começar um projecto novo e significativo - comentou o Tony. Parecia tão cheio de energia, tão pleno de entusiasmo que eu me senti uma idiota por ainda ter borboletas no estômago. Ele percebeu que eu estava pensativa e nervosa. - Descontrai-te. Isto vai ser fácil. E quando estivermos em plena actividade até vais gostar. Eu sei: já trabalhei com muitos modelos.

- Trabalhou?

- Claro. Fiz muitos cursos de arte na universidade e tive uma formação especial aqui, em Farthy. - Inclinou-se para mim e baixou a voz, como se estivesse a contar um segredo.

- Comecei aos onze anos.

- Aos onze anos? - Aos onze anos ele andava a desenhar e a pintar pessoas nuas?

- Sim, senhor. Por isso, estás a ver, estás nas mãos de um homem com muita experiência.

Ele sorriu, e entrámos no labirinto. O Tony movimentava-se lá dentro com muita segurança, nunca hesitando em curva nenhuma, nunca pondo em causa nenhuma decisão.

- Para as outras pessoas - explicou ele -, estas sebes parecem todas iguais, mas quem cresceu no meio delas, como eu, nota diferenças subtis. Para mim, estes corredores são tão diferentes como a noite do dia. Dentro em breve, vai ser a mesma coisa para ti - assegurou-me ele.

Vista de fora, a pequena casa parecia igual, excepto o facto de terem corrido as persianas em todas as janelas. Lá dentro, o Tony havia montado o seu cavalete com as tintas, os lápis e as canetas. Tinha instalado um estirador comprido de metal para trabalhar. Havia lá material para fazer escultura, tal como todo o tipo de ferramentas para o efeito. A mobília tinha sido afastada, de maneira a proporcionar tanto espaço livre quanto possível. Havia dois grandes focos, um de cada lado do cavalete, cujas lâmpadas estavam dirigidas para o pequeno sofá.

- Vamos começar contigo sentada ali - disse ele, apontando para o sofá. - Descontrai-te e pensa em coisas agradáveis. vou demorar alguns minutos a preparar tudo - acrescentou ele. Começou então a organizar o material. Eu sentei-me no sofá e observei-o a trabalhar, notando na sua expressão os mesmos propósitos criativos e a mesma concentração que muitas vezes vira na expressão do Troy.

Eu estava vestida com uma camisa de manga curta, de algodão branco simples, e uma saia azul-clara. Tinha a franja curta, mas o resto do cabelo estava suficientemente comprido para chegar a meio das omoplatas e caía suavemente ao longo do pescoço e dos ombros. Não tinha posto bâton.

- Pronto - disse o Tony, voltando-se para mim. - vou começar pelo teu rosto. Olha para mim com um leve sorriso nos lábios. Não quero que a boneca tenha um sorriso aberto, tipo palhaço, como têm algumas bonecas de brincar. Quero que esta boneca reflicta a tua beleza natural, a tua expressão suave e adorável.

Eu não sabia que dizer. Seria tudo verdade? Seria eu suave e adorável? Se o Tony me queria para um projecto tão importante, teria certamente de ver essas coisas em mim e não podia estar simplesmente a adular-me para me fazer sentir bem.

Contemplou-me durante algum tempo, observando-me de cima a baixo. Concentrei os meus olhos nele, como me tinha ensinado, e observei como ele media as feições da minha cara e planeava os seus primeiros traços. Comecei a sentir-me realmente como se fizesse parte de algum projecto artístico e, pouco depois, já parara de tremer e o meu coração já estava mais calmo. O Tony olhava para mim, desenhava, olhava para mim, assentia para ele próprio e desenhava. Tentei manter-me imóvel, mas era difícil não me mexer.

- Podes mexer-te um bocadinho - disse ele, sorrindo.

- Não te quero transformar em pedra - acrescentou. Descontrai-te até te sentires confortável. - Eu descontraí-me mesmo. - Sentes-te melhor?

- Sim.

- Eu sabia. Trabalharemos um bocado e depois faremos intervalos. Enchi a cozinha de comida óptima para o almoço

- disse ele, com entusiasmo.

- Quantas horas vamos trabalhar por dia?

- Vamos trabalhar um bocado de manhã, teremos um almoço calmo e depois algumas horas durante a tarde. Sempre que estiveres cansada, apita e faremos um intervalo.

Fiquei surpreendida por a primeira hora ter passado tão depressa. O Tony olhou para o relógio, anunciou que já tínhamos trabalhado uma hora e depois convidou-me a ir ver o que já estava feito. Levantei-me e contemplei a tela. Esboçara os contornos da minha cara, desenhara os meus traços e dera forma aos meus lábios, aos olhos e ao nariz. Estava a começar a desenhar o cabelo e o pescoço. Claro que era demasiado cedo para dar uma opinião, mas depressa decidi que ele tinha mesmo talento.

- Ainda não é nada - comentou ele -, mas acho que comecei bem.

- Oh, sim, está muito bem.

- Fazer arte é uma experiência maravilhosa - disse ele, concentrando-se na tela, com os olhos sombrios e absorvidos por ela. - Dar vida a uma tela vazia proporciona-te uma sensação de realização pessoal. Este desenho é como dar os primeiros passos para fazer um bebé... As sementes da minha imaginação fundem-se com a realidade e ganham forma, da mesma maneira que a semente do homem se prende ao óvulo de uma mulher e inicia a criação de um novo bebé. Tu e eu - disse ele, virando-se para mim -, estamos aqui juntos-a dar à luz uma coisa bonita - acrescentou, com a voz num sussurro.

Eu não sabia que dizer. O modo como olhava para mim, com os olhos pequenos, mas brilhantes como pedra de carvão, a voz tão suave, fazia-me estremecer por dentro. Depressa alterou a sua expressão, voltando ao sorriso firme e divertido, e depois riu-se.

- Pareces aterrorizada. Eu estou a falar metaforicamente, a fazer comparações - disse ele e pendeu depois um pouco a cabeça. - Diz-me, Leigh, tiveste algum namorado enquanto estiveste em Winterhaven?

- Namorado? Como é que eu podia ter um namorado? A mamã queria que eu viesse a casa todos os fins-de-semana. O Tony sabe que passávamos imenso tempo juntos a fazer esqui, a andar a cavalo...

- Sim, sim, mas eu pensei... Os rapazes podem ir lá fazer visitas, não podem? - perguntou ele, inclinando a cabeça para o lado e sorrindo.

- Não. Miss Mallory proibiu a entrada de rapazes no edifício, a não ser que haja um baile convenientemente vigiado. Houve alguns bailes, mas eu não pude ir a nenhum respondi eu, com amargura.

- Estou a ver. Bem, no ano que vem passarás mais fins-de-semana em Winterhaven e terás oportunidade de conhecer rapazes. Agora já te interessas por rapazes, não é? E na tua antiga escola? Tinhas lá um namorado?

- Namorado, não.

- Não tinhas ninguém fixo, hem? Só alguém amigo... disse ele e assentiu com a cabeça, como se eu tivesse concordado. - E que tal uma bebida fresca? Uma Coca-Cola?

- Está bem. - Foi para a cozinha e trouxe dois copos de Coca-Cola. Enquanto bebia, olhava-me fixamente. Pensei que ainda estivesse a pensar como iria desenhar isto ou aquilo, mas estava a pensar noutras coisas.

- Esse rapaz, que não era bem teu namorado - começou ele outra vez -, beijou-te, não beijou?

- Não - retorqui eu. A pergunta dele fez-me corar e ele sorriu.

- Não te preocupes, não direi nada à tua mãe.

- Não há nada que dizer - insisti eu.

- As raparigas beijam os rapazes, não beijam? - perguntou ele a rir. - Ou isso agora vai contra as novas regras? Ou hoje em dia só se dança o rock'n rolW

- Os rapazes ainda beijam as raparigas - repliquei eu, apesar de não estar a falar por experiência própria.

- Alguma vez beijaste à francesa? - Sentou-se no sofá e levantou os olhos para mim, ansioso por ouvir a minha resposta. Eu não sabia o que era um beijo à francesa até me juntar ao "clube especial" em Winterhaven e ter ouvido a Marie Johnson a descrevê-lo.

- Não - respondi eu, com firmeza.

- Mas sabes o que é, não sabes?

- Sim.

- Mas nunca o fizeste. Que maravilha. Tu és mesmo tão inocente como aparentas ser. Quer dizer que não beijaste esse rapaz que não era propriamente um namorado, não comprimiste a tua língua contra a dele e ele não comprimiu a dele contra a tua?

- Já lhe disse que não - repliquei eu. Porque é que ele me estava a provocar tanto?

Ele riu-se.

- Não é tão mau como parece, Leigh, apesar de a tua mãe ter vindo a achar que sim, da mesma maneira que acha que tudo o que isso implica também é mau - acrescentou ele, irritando-se de um momento para o outro.

Fixou o olhar no chão durante bastante tempo e depois aqueles olhos azuis oscilaram na minha direcção, tornando-se de repente vazios de expressão, como se não estivesse a olhar para mim ou a ver-me. Incomodava-me o facto de ele conseguir conferir aos seus olhos uma expressão tão vazia, como se soubesse como ligar e desligar as suas emoções. Depois, pestanejou e focou-me de novo.

- Dás-me a impressão de seres uma jovem muito precoce, Leigh. É por isso que achei que darias uma modelo maravilhosa. Às vezes, tens uma expressão muito viva, uma expressão muito adulta nos teus olhos. Aposto em como és muito mais avançada do que as outras raparigas da tua idade, é verdade?

Eu encolhi os ombros. Por vezes sentia que sim, mas outras vezes, quando as raparigas se juntavam todas e começavam a contar as experiências delas, parecia que tinha vivido num mundo aparte.

- Eu sei que ficaste muito perturbada por os teus pais se terem divorciado - prosseguiu ele -, e que, por uns tempos, me odiaste, não é verdade? Achavas que a culpa era minha? Não tens de responder. Eu percebo. Se eu estivesse no teu lugar, teria sentido a mesma coisa. Espero que os tempos que passámos juntos a esquiar e a andar de cavalo tenham sido bons para ti e que talvez te tenham ajudado a gostares mais de mim - disse ele, com tristeza.

- Eu não o odeio, Tony - anunciei eu. Era mesmo verdade que não o odiava, já não o odiava.

- Não? Que bom, fico feliz. Eu quero que sejamos amigos, que sejamos mais do que amigos. - Fiquei calada. Agora, quando me fixava, havia uma expressão diferente nos seus olhos, diferente da que tinha enquanto me estivera a desenhar. Este olhar era mais profundo e constrangia-me. Permiti que os meus olhos se encontrassem brevemente com os dele. Depois, quando me senti a corar de novo, desviei-os logo em seguida. Bem - disse ele, dando uma palmada nos joelhos -, está na hora de voltarmos ao trabalho.

Levantou-se e voltou para a tela. Eu regressei ao meu lugar no sofá.

- vou desenhar-te de alto a baixo, trabalhando devagar, captando os pormenores - explicou ele. - Ainda bem que vestiste uma camisa desse tipo. Quero ver-te gradualmente. Dá-me a sensação que estás a surgir da tela, a emergir da tela branca, como Vénus a emergir do mar.

"Agora quero fazer um esboço do teu tronco. Levanta-te, por favor, e deixa cair os braços de lado - pediu ele. Eu fiz o que ele disse. - Sim, é isso mesmo - disse, entusiasmado, como se eu tivesse feito alguma coisa importante ou difícil. - Sim, sim...

O traço dele era rápido.

- Agora, desabotoa a tua camisa o suficiente para descobrir os ombros. Vá lá - insistiu ele, quando viu que eu não me mexia. - Não tem mal. Só até aos ombros - repetiu ele num tom de voz ameno.

Levei os meus dedos ao primeiro botão e desabotoei-o.

- Bem. Continua. Óptimo - aliciou-me ele. - Agora outro. - Eu desabotoei outro. - E outro. Continua, mais um. Pronto, agora desce a camisa suavemente até aos ombros. Sim, sim.

Os seus olhos aumentaram e, de cada vez que me olhava, concentrava-se em mim durante mais tempo, antes de se voltar para a tela.

- Outro botão - pediu ele contemplando o seu trabalho até esse momento. Eu desabotoei outro botão. Depois, lançou-me um olhar, olhou para o desenho dele e acenou com a cabeça. - Despe os braços da camisa e segura-a levemente acima dos teus... dos teus seios - disse ele.

Eu percebi e avaliei o que ele tinha dito sobre Vénus a emergir do mar, mas era tão estranho ter de me despir tão devagar. Era quase como se estivesse a fazer striptease.

Tirei os braços para fora e segurei a camisa, impedindo-a de descair. O Tony ficou muito tempo a olhar para mim e depois abanou a cabeça.

- O que foi? - perguntei.

- Não estou a conseguir apanhar bem os teus ombros... Há qualquer coisa... - Aproximou-se e esfregou o queixo com os dedos da mão direita, enquanto me olhava de cima. Depois, inclinou-se para mim e afastou dos meus ombros as finas alças do soutien. Voltou a recuar, contemplou-me por um momento, voltou para a tela, olhou para ela e assentiu silenciosamente. - Dá uma volta - pediu ele.

- Dou uma volta? Completa?

- Sim, por favor.

Eu dei e fiquei à espera.

- Agora, deixa descair a tua camisa. - Eu larguei a camisa e esta caiu aos meus pés. - Sim - disse ele, num murmúrio em voz alta. - As linhas do teu pescoço e dos teus ombros...

- O que é que têm? - perguntei eu de repente.

- Nada de mal - replicou ele, dando uma leve gargalhada. - Por um momento enganaram-me. - Ouvi os passos dele por trás de mim e depois senti as pontas dos seus dedos a traçarem as curvas do meu pescoço e dos meus ombros. Dei um salto quando o senti. - Tenta descontrair sussurrou ele ao meu ouvido. - Às vezes, um artista tem de tocar no objecto da sua arte para poder absorver verdadeiramente as linhas e as curvas. Eu, pelo menos, tenho de o fazer.

- Fez-me cócegas - expliquei eu. Não conseguia vê-lo, mas sentia a sua respiração tão quente e próxima da minha nuca que me dava a impressão de que os seus lábios estavam a milímetros de distância.

- Importas-te que eu agora faça isto? - perguntou. Tinha os seus dedos no fecho do meu soutien. Por momentos, não consegui falar. O meu coração batia contra o peito. A esta altura quero ter uma visão desobstruída das tuas costas, está bem? - voltou ele a perguntar. Eu apenas assenti silenciosamente e senti-o a desapertar-me o fecho, o elástico a dar de si e o soutien a soltar-se. Como as alças já estavam descaídas, o meu soutien caiu, deixando a descoberto os meus seios recém-despontados. Comecei a puxá-lo para cima, mas o Tony segurou-me nos pulsos, inicialmente de repente e com rudeza, suavizando depois de imediato a força que as suas mãos faziam. - Não, deixa os braços descaídos

- pediu ele. Recuou para junto do cavalete.

Eu fiquei de pé, o mais imóvel possível, com o coração a bater tão depressa que me cortava a respiração. Parecia já estar naquela posição há horas, quando ele voltou a falar.

- Está a ficar muito bem - comentou. - Perfeito. Eu não me mexi. O que é que ele ia querer que eu fizesse a seguir? De repente, senti que ele me envolvia os ombros com um lençol branco. Pendurou-o à volta do meu pescoço como se fosse uma capa.

- Eu sei que estás nervosa - disse ele naquele tom de voz pouco mais alto do que um sussurro -, mas eu gosto. Quero tirar vantagem disso, como já te disse, captar-te como captaria Vénus a emergir do mar. Agora, despe-te completamente, mas mantém o lençol à volta. Vais baixando o lençol à medida que avançarmos, está bem? Volto já. Quero ver o que é que há para comer. Está quase na hora do almoço e eu estou a ficar cheio de fome.

Porque é que ele estava a pedir-me para tirar a roupa toda se íamos parar para almoçar dentro em breve?, pensei eu. Talvez achasse que depois seria mais fácil para mim. Apesar de ainda estar bastante nervosa e embaraçada, senti um arrepio quente e agradável passar-me pelo corpo quando despi a saia. No momento em que desci as cuecas e estreitei o lençol fresco contra o meu corpo, senti um calor ondulante a subir-me pelos tornozelos acima; parecia que estava a entrar numa banheira cheia de água morna. Senti que o pequeno vale entre os meus seios tinha enrubescido. Enrolei-me no lençol e esperei que o Tony regressasse.

Ele chamou-me da cozinha. Tinha feito uma travessa de pequenas sanduíches e abrira uma garrafa de vinho. Serviu-me um copo e depois serviu um para ele próprio. Como eu não me mexi, ele puxou uma cadeira, tal qual um empregado de mesa de um restaurante fino.

- Minha senhora.

- Obrigada. - Sentei-me e comecei a comer. Não consegui deixar de achar que estava ridícula, sentada à frente da pequena mesa, vestida apenas com um lençol branco. O Tony, porém, agia como se fosse a coisa mais natural do mundo. Pensei que a sua atitude talvez se devesse à sua experiência artística. Sempre que me mexia, o lençol soltava-se. Por isso, agarrava-o com uma mão enquanto comia e bebia com a outra.

- Achas que as raparigas são mais modestas do que os rapazes? - perguntou, tendo-se obviamente apercebido do meu embaraço.

- Não.

- Já alguma vez viste um rapaz nu?

- Claro que não - retorquiu eu, com brusquidão. Ele riu-se. Eu sabia que ele estava a provocar-me outra vez, mas chegava-me aos nervos.

- Agora não vais dizer-me que as raparigas não dão espreitadelas como os rapazes. Eu sei que quando as raparigas se juntam falam sobre os rapazes que já viram nus, da mesma maneira que eles. Aposto em como as raparigas em Winterhaven fazem a mesma coisa quando estão juntas. Acertei?

Eu não respondi, mas ele tinha razão. Numa das nossas últimas reuniões no quarto da Marie, a Ellen Stevens contara-nos que tinha visto o irmão a tomar duche. Só de me lembrar fiquei corada.

- Não faz mal nenhum - disse o Tony, abanando a cabeça com um sorriso de orelha a orelha. - É natural ser-se curioso em relação ao sexo oposto. - Bebeu o seu vinho.

Eu tomei um pequeno golo. Senti-me a arder. A minha cara ficou mais quente. Ele bebeu o vinho dele e serviu-se rapidamente de outro copo.

- Não há nada de errado em ser-se modesto - continuou ele -, a não ser que isso chegue aos limites do ridículo. - As suas feições tornaram-se duras e os seus olhos frios e sombrios, de repente. - Se estás casado e a tua mulher te fecha a porta na cara sempre que se veste...

Lançou-me um olhar rápido, como se eu fosse discordar de alguma coisa; porém, eu estava tão calada e sossegada que até parecia a estátua que ele queria criar.

- Porque é que uma mulher não há-de querer que o seu marido a veja? - perguntou ele, como se eu é que fosse a mais velha e a mais experiente. - Será que ela tem medo que ele note alguma imperfeição, uma ruga, uma marca de nascimento? Desligavas a luz sempre que fizesses amor com o teu marido? - perguntou ele. Eu não sabia que havia de dizer. - Claro que não. Porque é que farias uma coisa dessas? - Baixou os olhos e murmurou: - Ela está a levar-me à loucura.

Eu sabia que ele estava a referir-se à minha mãe, mas não disse nada. Seria que a mamã achava que, se o Tony a visse nua num quarto iluminado, descobriria a verdadeira idade dela?, perguntei a mim mesma. Ela tinha um corpo tão perfeito. Como é que um corpo daqueles podia revelar a sua idade?

Acabei a minha sanduíche e dei mais um golo no vinho. O Tony parecia estar em transe. De repente, saiu do transe e sorriu.

- Está na hora de voltarmos ao trabalho - anunciou ele e levantou-se da cadeira.

Segui atrás dele para a sala de estar que tinha sido transformada em estúdio e pus-me de pé no lugar onde estivera anteriormente.

- Vejo que o vinho te deu uma corzinha. Gosto disso. Tenho de captar essa cor - disse ele. - Será que esse calor também desceu pelo teu pescoço? - perguntou e chegou-se mais perto, passando com o indicador direito ao longo da linha do meu pescoço, detendo-se na clavícula. - És verdadeiramente delicada - sussurrou ele. - Uma jovem flor a desabrochar. - Os seus olhos penetravam-me, brilhantes. Suspirou e abanou a cabeça. - Que sorte que eu tenho em te ter, Leigh. Isto só vai ser um sucesso porque eu tenho uma modelo tão bonita.

Voltou para o cavalete e começou a desenhar. Depois de algum tempo parou.

- Desfaz o nó do lençol no pescoço e segura-o à cintura

- pediu, casualmente, como ele próprio diria. - Vira a cabeça para a esquerda.

À cintura, pensei eu. Os meus dedos tremiam tanto que, quando tentei desfazer o nó do lençol, não consegui. Ele riu-se.

- Deixa-me ajudar-te - disse, avançando.

Afastou cuidadosamente os meus dedos do nó e desfê-lo. Segurei no lençol contra o meu corpo por uns momentos. Depois, ele descobriu-me os ombros, os braços, os seios, sem tirar nunca os seus olhos dos meus. Sorriu e recuou, a contemplar-me. O meu coração desatou aos pulos.

- Adoro aquela pequena marca de nascimento por baixo do teu peito - exclamou ele. - É o tipo de marca individual que poderei copiar para o modelo para que sejas tu própria. Toda a gente vai procurar alguma coisa que torne a boneca especificamente uma réplica deles próprios, percebes?

- Parecia tão entusiasmado com esta descoberta que eu só conseguia abanar a cabeça de tão espantada. Voltou a correr para o cavalete e continuou a desenhar.

Trabalhou durante mais de uma hora, parando com frequência para me estudar intensamente, suspirando antes de abanar a cabeça e sorrir. De repente, parou e mordeu o lábio com força, sacudindo a cabeça.

- O que foi? - perguntei eu.

- Não estou a conseguir apanhar-te bem. Está desproporcionado, desequilibrado. Não estou a fazer justiça à tua simetria - afirmou.

- Tem de ser assim tão perfeito, Tony?

- Claro - retorquiu ele, enquanto lhe aparecia no rosto uma ruga de contrariedade. - Vai ser a primeira e a mais perfeita. - Olhou para o seu esboço e depois para mim. Voltou a olhar para o esboço e assentiu. Em seguida, deu um passo em frente.

- Espero que não te importes - disse ele -, mas às vezes nós, os artistas, vemos melhor com os olhos fechados.

- Mas como é que podem ver com os olhos fechados? perguntei eu.

- Vemos com os outros sentidos. Um artista que pinta pássaros bonitos tem de ouvi-los cantar e captar as melodias deles para os seus quadros, do mesmo modo que apanha as suas cores e as formas. Quando um artista pinta um campo verde bonito, tem de captar o cheiro da relva e das flores para a sua pintura. Percebes?

Eu concordei. Parecia correcto.

- E, através do tacto - prosseguiu -, um artista traz profundidade, textura, plenitude ao seu trabalho. Será uma vantagem para mim quando transformar o desenho em escultura.

Descontrai-te por uns momentos - pediu ele num sussurro. Levou as suas mãos à minha cintura e fechou os olhos. Em seguida, os seus dedos avançaram pelas minhas costelas detendo-se quando se comprimiam contra os ossos. - Sim dizia ele. - Sim. - Subia com as mãos pelo meu corpo acima e as pontas dos seus dedos tocaram na base dos meus seios. Eu comecei a recuar. - Calma - pediu ele. - Agora estou a ver tudo perfeitamente.

Olhei para o rosto dele. Os seus olhos ainda estavam bem fechados, mas conseguia vê-los a movimentarem-se para a frente e para trás por baixo das pálpebras.

As pontas dos seus dedos subiram, muito devagar, ao lado dos meus seios, detendo-se depois em cima deles. Parou ali durante algum tempo, sustendo a respiração. Eu também sustive a minha.

A sensação de cócegas que eu tinha sentido da primeira vez desaparecera rapidamente, para ser substituída por um arrepio que ia até às profundezas do meu corpo e que explodia por todo o lado. Era como se estivessem em cima de mim uma dúzia de dedos, produzindo a mesma sensação nas pernas, braços e estômago.

A amálgama de sensações era simultaneamente desconcertante, assustadora e emocionante. Sentia-me tão confusa. Devia afastar... afastar as mãos dele do meu corpo? Seria que todas as modelos permitiam que os artistas explorassem o corpo delas desta maneira? Às vezes, quando ele olhava para mim com muita intensidade, parecia que os olhos do Tony me tocavam de verdade; isto, porém, era diferente. Os seus dedos movimentavam-se por baixo do meu peito e por cima dele, como se me estivesse a moldar na sua mente. As minhas pernas enfraqueceram e começaram a tremer.

Por fim, o Tony recuou, tirando as mãos de cima de mim, mas mantendo-as no ar, à altura do meu peito. Deteve-se ali uns instantes, acenou com a cabeça e voltou devagar para o cavalete, abrindo os olhos apenas quando começou a desenhar.

Nessa altura, trabalhava com furor, os lábios cerrados e o maxilar firme. Eu mal me mexia. O meu coração batia com tanta força que pensava que ia explodir para fora do meu peito. Que tinha ele acabado de fazer? Que tinha eu permitido que ele fizesse? Teria a mamã consciência de que isto ia acontecer? Porque não avisara ela?

- Sim - observou o Tony. - Agora sim. Está a funcionar. - Sorriu para mim e continuou a trabalhar. Pouco depois, parou abruptamente, recuou para contemplar o seu trabalho e depois assentiu. - Pronto! - exclamou ele. - Por hoje foi suficiente. Porque é que não te vestes enquanto eu arrumo isto.

Voltei-me de costas para ele e comecei a vestir-me. Quando acabei, ele fez-me sinal para eu ir ver o resultado.

- Então? o que é que achas?

A minha cara estava bastante parecida. Tinha captado com perfeição as formas da minha cabeça e do meu queixo; o meu corpo, contudo, parecia muito mais amadurecido do que era na realidade. O meu corpo parecia mais o corpo da minha mãe.

- Está muito bom, Tony - disse eu -, mas fez-me mais velha.

- Também é assim que eu te vejo, sabes. Isto é uma obra de arte, não é uma fotografia. Metade da obra de arte está na cabeça do artista. Por isso é que também é tão importante que eu te toque. Espero que entendas, Leigh - replicou ele, com uma expressão preocupada.

- Sim, entendo - repliquei eu, mas no fundo não entendia. Também não entendia os meus sentimentos. Sentira-me ao mesmo tempo embaraçada, assustada e emocionada. Era tudo tão confuso. Decidi que ia falar com a minha mãe sobre isso, custasse o que custasse.

Todavia quando eu e o Tony chegámos a casa, ela já havia saído. Tinha deixado um recado explicando que ia jantar fora e ia ao teatro a Boston, com algumas das suas amigas. Foi uma surpresa tão grande para mim como para o Tony.

- Parece que tu e eu vamos jantar outra vez sozinhos murmurou ele por entre dentes e subiu as escadas a correr em direcção à sua suite. Pouco depois de eu ter subido para a minha, o Troy veio ver-me. Os seus ataques de varicela e sarampo, as suas alergias e as gripes, tinham-no deixado tão magro e tão pálido! Mesmo o tempo que passara a apanhar sol não lhe tinha dado cor à pele. Por também ter perdido peso, tinha um aspecto doentio, os olhos cavados e olheiras fundas. Apesar do seu estado, animou-se quando entrou pelo meu quarto adentro para saber como tinha corrido o trabalho da boneca Tatterton.

- Quando é que vai estar pronta? - perguntou ele. Esta semana?

- Não sei, Troy. Hoje só fizemos o esboço do desenho. O Tony tem de pintar e depois começar a esculpir. Já jantaste? - perguntei. Os médicos tinham-no posto num regime de refeições diferente e ele comia mais cedo do que nós. Eu sabia que a situação tinha agradado à minha mãe, mas ele ficava muito infeliz por ter de comer sozinho ou só com a enfermeira.

- Sim. E também tive de beber aquela porcaria outra vez - queixou-se ele.

- Faz-te bem, Troy, e vai tornar-te mais forte para poderes fazer outra vez uma vida normal. Vais ficar melhor e vais poder montar o teu pónei e tomar banho e...

- Não, não vou - lamentou-se ele, com uma expressão assustadoramente segura e madura. Os seus olhos tornaram-se penetrantes e frios, como ficavam os do Tony, às vezes.

- Eu nunca ficarei melhor e não viverei tanto tempo como as pessoas normais - acrescentou ele, com firmeza.

- Troy! - Não deves dizer essas coisas. São coisas horríveis - ralhei eu.

- Eu sei que é verdade. Ouvi o médico a dizer à enfermeira.

- O que é que ele disse? - intimei eu, furiosa com o médico por fazer esses comentários na presença dele.

- Ele disse que eu era delicado como uma flor e, da mesma maneira que uma flor se parte sob a acção de vento forte, eu também me partiria se alguma vez ficasse gravemente doente.

Fitei-o por uns instantes. De um modo estranho, a sua doença tinha-o amadurecido e envelhecido. Nesse momento, o Troy parecia um velho com corpo de menino, os seus olhos denotavam muita sabedoria e experiência de vida. Era como se, para ele, os meses fossem dias, e os dias, horas. Talvez a sabedoria dele lhe abrisse uma janela para o futuro e ele previsse realmente a sua própria morte prematura. Este pensamento fez-me estremecer.

- Troy, ele só queria dizer que, se não melhorares, vais ficar adoentado. Mas tu vais melhorar. És apenas um menino. Tens imenso tempo para cresceres cada vez mais forte. Além disso, se morresses, quem ia ser o meu irmão adoptivo pequenino?

Os seus olhos iluminaram-se.

- Vais querer sempre que eu seja o teu irmão adoptivo pequenino?

- Claro.

- E nunca me deixarás aqui sozinho? - perguntou ele, com o mesmo cepticismo do Tony.

- Para onde é que eu ia? A minha casa agora é aqui, tal como é a tua.

O sorriso apagou a sombra de melancolia que se tinha fixado no seu rosto. Agarrei-lhe o braço, devagar, e puxei-o para mim para o abraçar rapidamente. As lágrimas que se tinham reunido no canto dos meus olhos começaram a descer pelas faces abaixo. Quando recuou e se apercebeu das lágrimas nos meus olhos, fez um ar de surpresa.

- Porque choras, Leigh?

- Só estou... feliz por tu seres o meu irmãozinho para sempre, Troy - disse eu. A sua expressão resplandeceu e todo ele respirava felicidade. Parecia ter ficado mais forte, mais saudável, ali mesmo, à minha frente.

No fundo, o que ele precisava, pensei, era de alguém que o amasse e lhe desse ternura, alguém que o fizesse sentir querido. O Tony amava-o muito, tinha a certeza, mas estava tão envolvido no seu trabalho que não podia ser o pai que o Troy precisava; e a minha mãe... estava tão envolvida em si própria e tão afastada das doenças do Troy que nem sequer o via. Parecia que, quando olhava para ele, olhava através dele; e o Troy, sensível como era, sentia-se certamente invisível e só com tudo o que se passava. Apercebi-me de que ele apenas me tinha a mim.

Em algumas coisas, sentia-me igual a ele. Ultimamente, era cada vez mais frequente a minha mãe olhar através de mim. Só pensava nas suas próprias actividades e preocupações. E o meu pai andava preocupado com o seu novo amor. O Troy e eu éramos dois órfãos, jogados juntos para dentro daquela mansão, rodeados de coisas que as outras crianças e adolescentes sonhavam possuir. Mas as coisas materiais sem amor e sem alguém que nos estime e ao mesmo tempo estime essas coisas tornam-se meros objectos.

- Mais logo vens à minha suite ler para mim, Leigh? perguntou ele.

- Depois de jantar. Prometo.

- Está bem. Tenho de ir ver o Tony - disse ele. - Não te esqueças - acrescentou e saiu a correr da minha suite, com as perninhas cambaleantes.

Tirei a roupa e vesti-me para o jantar. O Tony já se encontrava na sala de jantar quando eu desci.

- Como te sentes, um pouco cansada? - perguntou ele.

- Sim, apesar de não perceber como é que fazer de modelo me pode cansar. Fiquei ali simplesmente de pé - observei eu.

- Não subestimes o que estás a fazer. É trabalho. Também te estás a concentrar e não te esqueças de que hoje estavas nervosa. Isso pode ser esgotante. Amanhã estarás menos nervosa e, à medida que os dias passarem, vai-se tornar cada vez mais fácil.

- Quanto tempo é que vai demorar? - perguntei, uma vez que ele tinha dito "à medida que os dias passarem".

Algum tempo. vou demorar bastante tempo a fazer este quadro. Quero captar os teus tons de pele na perfeição e a tonalidade dos teus olhos e do teu cabelo. E depois há que fazer a escultura. Não podemos apressar o processo - respondeu ele, com um sorriso.

Eu fiquei sem palavras. Aquilo soava como se fosse passar o Verão inteiro comigo nua ali, à frente dele, na pequena casa de pedra. Teria de continuar a tocar-me? Seria eu capaz de me habituar a isso? Então, e o outro trabalho dele... o negócio dele?

- Mas o Tony não tem outras coisas para fazer?

- Eu tenho pessoal muito competente e, como já te disse, este é um dos projectos mais importantes que a Fábrica de Brinquedos Tatterton alguma vez já empreendeu. - Acariciou a minha mão. - Não te preocupes, vais ter tempo livre para fazeres o que quiseres.

Eu assenti silenciosamente. Como é que eu podia explicar-lhe o que me perturbava realmente? A quem poderia eu confiar essas minhas dúvidas? Onde estava a minha mãe quando eu mais precisava dela? Onde estava o meu pai?

Depois de jantar, subi ao quarto do Troy para lhe ler, mas a enfermeira veio-me receber à porta do quarto e disse-me que ele já estava a dormir.

- O medicamento que ele toma cansa-o muito cedo explicou ela. - Ele fez um esforço enorme para ficar acordado à sua espera, mas os seus olhos fecharam-se.

- vou só dar uma olhadela - disse eu e fui à porta do quarto dele.

Parecia sempre minúsculo e frágil na sua cama enorme, concluí eu, mas achei que, pelo menos esta noite, tinha adormecido com uma cor mais saudável nas faces. Decidi que ia tentar passar mais tempo com ele e ajudá-lo a recuperar. Isso far-me-ia esquecer os meus próprios problemas.

Na minha suite, estive a ler e a ouvir rádio e depois tentei dormir. Quando desliguei as luzes e fechei os olhos, só conseguia pensar nas mãos do Tony no meu corpo nu, nos dedos dele a percorrerem os meus seios, nos seus olhos bem fechados, mas a movimentarem-se nervosamente sob as pálpebras, parecendo dois animais minúsculos à procura de uma saída! Como iria ser no dia seguinte?

Quando acordei de manhã, vesti-me e fui rapidamente à suite da mamã; ela tinha a porta do quarto bem fechada. Bati à porta com cuidado.

- Mamã, tenho de falar consigo agora - sussurrei através da porta. Esperei, mas não ouvi resposta. - Mamã? Levantei o tom da voz e esperei. Ainda não foi dessa vez que obtive resposta. Frustrada, mas determinada a falar com ela sobre a minha experiência do dia anterior, abri a porta e deparei-me com uma cama vazia. Chocada e apanhada de surpresa, saí a correr do quarto dela e desci até à sala de jantar, onde encontrei o Tony a ler o Wall Street Journal e a tomar o seu café.

- Onde está a minha mãe? - perguntei. - Parece que não dormiu em casa a noite passada.

- E não dormiu - disse ele, casualmente, e voltou a página.

- Então, onde esteve? - interroguei eu. Baixou o jornal, com um ar aborrecido. Não estava aborrecido comigo; estava aborrecido com ela.

- Telefonou por volta das onze para me dizer que ela e as amigas tinham decidido passar a noite em Boston. Tive de mandar o Miles ao hotel dela para lhe levar roupa para hoje.

- Mas... quando é que ela volta para casa? Ele encolheu os ombros.

- Isso também eu gostava de saber. Talvez até tu saibas mais do que eu. - Os olhos dele lançaram-me um olhar penetrante. Depois, acenou para o Curtis, que estivera de pé, a um canto, como uma estátua, e pediu-lhe que nos trouxesse o pequeno-almoço.

Não sabia que fazer. Não queria voltar para a casa de pedra sem falar primeiro com a minha mãe sobre esse assunto, mas ela não estava ali e o Tony estava ansioso por começar.

- Porque é que esta manhã não vestes uma das tuas camisas compridas e largas de algodão? - sugeriu ele. - Vai ser mais fácil se não tiveres mais nada por baixo - acrescentou. - Hoje está muito calor.

"Mais nada? Não vestir cuecas, nem soutien, só a minha camisa de algodão?"

- Só para ser mais prático - acrescentou ele. Eu concordei. Depois do pequeno-almoço, subi à minha suite e fiz o que ele sugerira. Ao contrário do que o Tony me tinha assegurado, essa manhã não me sentia menos nervosa, apesar de ser a segunda sessão. Ele estava tão animado como no dia anterior, quando atravessámos o labirinto a caminho da pequena casa, talvez até mais animado. Preparou as coisas rapidamente, e, desta vez, não avançou a pouco e pouco.

- Hoje vamos pintar - anunciou. - Estás pronta?

Olhei para as janelas. As persianas estavam todas corridas, mas ele tinha-as aberto uns centímetros para que corresse uma brisa. Voltei a olhar para ele, que tinha uma expressão de expectativa. Senti-me tentada a fugir. Os meus lábios começaram a tremer.

- O que foi? - perguntou ele, apercebendo-se da minha ansiedade.

- Sinto-me...

- Coitadinha. Estou para aqui a despachar isto sem ter os teus sentimentos em consideração. Desculpa, Leigh disse ele e abraçou-me. - Eu sei que isto não é fácil para ti por ser uma experiência totalmente nova, mas ontem trabalhámos tão bem juntos que eu pensei que já tinhas ultrapassado atua timidez inicial. Agora, respira fundo - prosseguiu ele - e pensa nas coisas maravilhosas que estamos a fazer juntos, está bem?

Eu fechei os olhos e respirei fundo, mas o meu coração batia com tanta força que me senti quase a desmaiar. Ele sentiu-me a tremer.

- Pronto - disse ele. - Sabes que mais? Não tens de ficar de pé. Posso começar contigo deitada no sofá.

- No sofá?

- Sim. Eu ajudo-te. Mantém os olhos fechados. Vá lá incentivou ele. Eu fechei os olhos. - Descontrai-te. Isso mesmo. Calma - disse e eu senti os seus dedos agarrarem a minha camisa de algodão abaixo da cintura. Elevou-a devagar, com delicadeza. - Levanta os braços, por favor - sussurrou.

Eu levantei os braços e a camisa subiu suavemente à altura da minha cabeça, com tanta suavidade como se tivesse sido despida por uma brisa dócil. Mantive os olhos fechados, mesmo depois de o Tony passar a camisa pelas minhas mãos erguidas. Pôs a camisa de lado, levou as suas mãos aos meus ombros e guiou-me com delicadeza até ao sofá.

- Deita-te aí. Põe-te confortável - disse ele.

Pousei a minha cabeça na almofada que ele tinha colocado sobre o braço do sofá e abri os olhos. O Tony estava de pé à minha frente, a olhar para baixo e a sorrir.

- Óptimo. Vai ser fácil.

Voltou para o seu cavalete e começou a pintar. O tempo parecia passar mais devagar do que no dia anterior. Só fizemos um intervalo à hora do almoço. Quando me informou que íamos almoçar, estendeu-me o mesmo lençol. Apertei-o e enrolei-o à minha volta. Comemos outra vez sanduíches e bebemos vinho. O Tony contou-me algumas das ideias de marketing que estava a desenvolver para as bonecas-retratos. Quanto mais ele falava, mais eu me acalmava. Surpreendeu-me, porém, quando voltámos ao trabalho.

- Não tens de ficar de pé. Agora preciso de te ver por trás - disse-me.

- O que é que tenho de fazer?

- Deita-te de barriga - pediu ele. - Eu hesitei. - Vá lá. Eu tiro-te o lençol de cima quando estiver pronto para começar.

Fiz o que me pediu. Ele preparou outra tela e depois veio até ao sofá. Primeiro, afagou-me o cabelo.

- Estás bem? - perguntou.

- Sim.

- Óptimo. Então vamos recomeçar - exclamou e meteu as mãos por baixo do meu queixo para desapertar o nó do lençol. Tirou-o de cima de mim e ficou a olhar para baixo.

- Perfeito - murmurou, quase inaudivelmente.

Voltou para o seu cavalete e prosseguiu. Parecia que já ali estava deitada há horas, quando ele gemeu como gemera no dia anterior.

- Não está bem - declarou ele. - Não é nada disto. Eu olhei para ele. Estava a olhar fixamente para mim, a coçar o queixo com os dedos. Então, aproximou-se. - Descontrai-te. - Pousou a palma da sua mão nas minhas costas. Levou a mão até ao pescoço, desceu-a de novo e não parou onde tinha começado, antes prosseguiu até às nádegas. Deteve-se ali, comprimindo os dedos suavemente contra a minha pele. Depois, levantou-se, lançou um suspiro e voltou para a tela.

Trabalhou com renovado furor. Tocar-me era mesmo uma fonte de inspiração para ele. Desta vez, quando parou, parecia realmente exausto. Mal conseguia falar.

- Por hoje, acabámos - afirmou ele.

Vesti a minha camisa de algodão e fui ter com ele ao pé do cavalete. Mais uma vez achei que ele me tinha captado bem, mas o corpo que eu via desenhado e pintado era mais da minha mãe do que meu. Ele percebeu que eu ficara surpreendida.

- É como eu te vejo - explicou ele. - É como te sinto nas pontas dos meus dedos. - A expressão dos seus olhos agitou-me o coração. Deu-me um beijo na testa e disse:

Tu és maravilhosa. Podias fazer de qualquer pessoa um artista.

Fiquei sem fala. As palavras dele embaraçavam-me e lisonjeavam-me ao mesmo tempo, mas quando ele me fitava com tanta intensidade eu estremecia. Por fim, arrumou as suas coisas e deixámos a pequena casa. Segui-o através do labirinto, através das longas sombras e corredores. O meu corpo estava num tumulto, fora apanhado numa tempestade de sentimentos. Quando finalmente saímos do labirinto, senti como se tivesse deixado um mundo de sonho e reentrado na realidade.

Fui a correr para dentro de casa e para a minha suite; nem sequer parei para ver se a minha mãe já tinha voltado de Boston. Tive de fechar rapidamente a porta e respirar fundo. O meu corpo ainda tremia com a recordação dos dedos do Tony a percorrerem-me, transformando-me na mulher que ele queria que eu fosse.

 

O REGRESSO DO PAPÁ

Ouvi a minha mãe a subir as escadas a caminho da sua suite. Falava para uma das suas empregadas e ria-se, bastante excitada. Corri para a porta no momento em que ela estava a passar.

- Mamã - chamei eu. Ela virou-se no mesmo instante.

- Oh, Leigh. Estive mesmo agora lá em baixo a falar com o Tony sobre ti. Ele disse que estava tudo a correr muito bem. Estou tão contente. Dá-me um minuto para tomar duche e mudar de roupa e depois vem à minha suite para eu te poder contar a peça maravilhosa a que assisti em Boston e o fabuloso hotel em que eu e as minhas amigas ficámos instaladas. Era luxo atrás de luxo - disse ela e continuou a andar em direcção à sua suite.

- Mamã - gritei eu, detendo-a. - Quero falar consigo agora.

- Agora? - Abanou a cabeça para mim. - Sinceramente, Leigh, tens de me dar algum tempo para mim, para poder ficar outra vez apresentável. Tu sabes como detesto viajar.

- Mas, mamã...

- Eu mando avisar quando estiver pronta. Não demoro

- prometeu ela e avançou sem me dar hipótese de continuar a protestar.

Passaram cerca de duas horas até ela finalmente me mandar chamar. Tinha primeiro tomado duche, tinha-se vestido, penteado e maquilhado, porque dois colegas de negócios do Tony iam jantar lá em casa com as suas mulheres.

- Então, o que é que é assim tão urgente? - perguntou-me, quando entrei no quarto dela. Estava na mesa do toucador a retocar o cabelo e olhava para mim através do espelho.

- É sobre eu estar a posar para a boneca-retrato - disse eu. Ela parecia não estar a ouvir. Esperei até acabar de brincar com uns fios de cabelo soltos. Por fim, voltou-se para mim.

- O quê?

- Eu não posso continuar, mamã - disse e desatei a chorar. Ela deu um salto e foi a correr fechar a porta.

- O que é isso? Não me vais fazer isso agora! Não vais fazer uma cena! Queres que os empregados te ouçam? E os nossos convidados devem estar a chegar a qualquer momento para o jantar. O que foi? - exclamou ela, muito agitada.

- Oh, mamã, já foi bastante difícil estar ali de pé, enquanto o Tony me desenhava, mas quando ele começou a tocar-me...

- A tocar-te? De que é que estás a falar, Leigh? Pára de choramingar como uma criança e fala decentemente.

Eu limpei logo os olhos e sentei-me em cima da cama, de frente para ela. Depois, expliquei-lhe sucintamente o que o Tony fizera e porquê. Ela ouviu com atenção, a sua expressão praticamente não se alterou. A única coisa que fez foi estreitar um pouco os olhos e contorcer suavemente a boca.

- É só isso? - perguntou, quando terminei. Voltou-se para o toucador.

- Só isso? E não é suficiente? - gritei eu.

- Mas ele não te fez nada, pois não? Tu própria disseste que ele tentava pôr-te sempre à vontade. Parece-me uma atitude muito atenciosa - observou ela e tornou a virar-se para o espelho.

- Mas, mamã, é preciso tocar-me para me pintar e criar o modelo?

- É compreensível - disse ela. - Uma vez li um artigo sobre um cego que esculpia coisas lindas usando apenas o tacto.

- Mas o Tony não é cego! - protestei eu.

- Mesmo assim, ele só está a tentar realçar os sentidos dele - disse ela, a pôr bâton nos lábios. - O que estás a fazer é maravilhoso... para ambos. Ele parece tão embrenhado, tão contente. Para te dizer a verdade, Leigh - disse ela, voltando-se para mim -, antes de o Tony se envolver neste projecto, pensei que ia dar comigo em doida. Vinha à minha porta dia e noite, exigindo a minha atenção. Nunca me tinha apercebido de como era possessivo e de como precisava de estar ocupado. Um homem como o Tony pode cansar uma mulher até à morte! - afirmou. Depois sorriu. - Pensa apenas na boneca e no que isso significa. Vai pôr toda a gente a falar sobre as bonecas e sobre ti.

- Mamã, tenho andado a pensar na boneca e nos quadros que o Tony pintou.

- E então?

- Não estão... não estão bem.

- Não posso acreditar nisso, Leigh. Eu sei que o Tony é um excelente artista. Eu já vi algumas coisas feitas por ele.

- Eu não estou a dizer que ele não é bom artista, mamã. A minha cara está muito bem desenhada e pareço mesmo eu, mas...

- Mas? Mas o quê? Não estás a fazer sentido e temos de acabar de nos arranjar para o jantar - interrompeu ela, furiosa.

- O resto do corpo não parece o meu corpo. Parece o seu! - gritei eu. Ela fitou-me por uns momentos. Um arrepio de alívio percorreu-me. Por fim, percebera porque é que eu estava tão transtornada. Mas, de repente, sorriu.

- Mas isso é maravilhoso - afirmou ela. - Absolutamente maravilhoso.

- O quê?

- Que inteligente! Ele está a combinar-nos às duas nessa maravilhosa nova obra de arte. Bem, acho que já era de esperar... O homem está completamente obcecado por mim. Pensa em mim noite e dia - disse ela, a brincar com o cabelo. Em seguida, virou-se outra vez para mim. - Não o podes culpar por isso, Leigh. Ele não consegue controlar-se. Sorriu e acrescentou: - Agora podes perceber a razão por que às vezes fujo, a razão por que eu preciso de me aliviar, porque ele tem de andar distraído de uma maneira ou de outra. É tão difícil para uma mulher quando um homem literalmente venera o chão que ela pisa. - Soltou um suspiro. Às vezes gostava que ele fosse mais parecido com o teu pai.

Olhou para o seu relógio de diamantes.

- Não vais jantar vestida assim, pois não? Veste qualquer coisa mais formal hoje à noite. Estas pessoas são muito ricas e muito importantes. Quero que causes boa impressão.

- E olhou de novo para a sua imagem no espelho.

- Então acha que está tudo bem? - perguntei-lhe.

- Tudo? Oh, sim, claro. Não tenhas uma atitude infantil em relação a isto, Leigh. Não vai demorar assim tanto tempo até o Tony terminar e, se Deus quiser, continuar a fazer outras coisas que lhe consumam a mesma energia. - Calou-se, olhou para mim e depois levantou-se para ir ao seu guarda-jóias escolher os anéis.

Eu levantei-me devagar e comecei a sair do quarto.

Quando olhei para trás, vi-a abanar a cabeça, descontente com a primeira escolha que tinha feito. A nossa conversa já passara à história.

Afinal, talvez a minha mãe até tivesse comentado a nossa conversa com o Tony pois, quando regressámos à pequena casa de pedra no dia seguinte, ele absteve-se de me tocar. Na verdade, cada dia que passava, ficava mais absorvido pelo seu trabalho e às vezes até me dava impressão de não estar a olhar para mim; estava a ver uma imagem na sua cabeça e apenas olhava na minha direcção. Falávamos pouco até à hora do almoço e, mesmo nessa altura, parecia distraído, levantando-se frequentemente para verificar qualquer coisa na tela, voltando em seguida para a mesa.

Passou quase meio dia a trabalhar nos meus pés e nas minhas mãos, estudando e medindo, falando muitas vezes consigo próprio enquanto contemplava os seus desenhos. Uma tarde, aborreci-me tanto que até adormeci durante alguns minutos. Se ele notou, nada disse. No fim da primeira semana, tinha-me desenhado e pintado de todos os ângulos.

Todas as noites, ao jantar, este trabalho era o tópico principal da conversa, mesmo quando tínhamos convidados; apesar de eu ter notado que o Tony e a minha mãe omitiam o facto de eu posar nua.

Não voltei a queixar-me à minha mãe de nada que estivesse relacionado com isto, mas desejava ardentemente que tudo acabasse depressa. Então, no início da segunda semana, o Tony informou que ia começar a escultura definitiva e criar o modelo para a boneca. Uma vez que os quadros estavam prontos, fiquei intrigada, a pensar para que é que ele precisava de mim.

- Agora vamos passar para o trabalho a três dimensões

- explicou ele. - preciso de ti mais do que nunca.

Pôs os quadros todos numa fila de cavaletes para se referenciar e começou aquilo que prometeu ser a última fase do processo.

Não percebera o que o Tony quisera dizer até iniciar o seu trabalho. E foi então que tudo começou de novo. Aqueles tempos em que ele tocava no meu corpo para reforçar as capacidades de desenhar e de pintar, não eram nada comparado com o que ele fazia agora. Parecia que parava a cada cinco ou dez minutos depois de começar a trabalhar no barro, para poder vir ter comigo e sentir-me ou, como ele dizia, "experienciar-me artisticamente".

Segurava na minha cabeça com ambas as mãos e ficava ali, de pé, com os olhos fechados, a cabeça inclinada para trás, e depois ia a correr para a mesa dele modelar o barro. Percorria as linhas do meu rosto, detinha-se nas minhas orelhas e comprimia delicadamente os seus dedos contra os meus olhos fechados. Sempre que olhava para a sua cara quando me fazia isto, notava uma intensidade e um poder de concentração que, por um lado me fascinava, mas que também me assustava, pois as suas faces ficavam coradas e os olhos enlouquecedoramente grandes.

A figura da boneca começou a emergir do monte de barro sobre a mesa, tal como ele tinha descrito Vénus a emergir do mar. Assisti à figura a ganhar forma e previa cada um dos seus contactos físicos. Depois de terminar os meus ombros, voltou a passar com a mão pela minha clavícula, os seus dedos percorrendo suavemente o meu corpo. Confirmou cada centímetro do meu torso, antes de começar a delineá-lo no molde.

Quando chegou aos meus seios, eu fiquei rígida. Ele deteve-se à minha frente, ainda com os olhos fechados.

- Calma - sussurrou ele. - Está a funcionar. Os meus dedos estão a transportar-te daqui para a escultura e estão a moldar-te, como eu estava à espera que fizessem. - Fazia uma concha com a mão por cima dos meus seios e moldava-os, detendo os seus dedos sobre mim por tempo que eu achava interminável. Não consegui evitar e estremeci outra vez, mas, se ele sentiu o meu tremor, não deu sinal. Por fim, levantou as mãos de cima de mim e voltou para a sua escultura. Depois foi descendo e descendo, usando sempre o mesmo processo. Todas as vezes que voltava para o meu corpo, eu sentia-me como se eu própria estivesse a submergir numa piscina de barro suave e quente, em vez de estar a emergir do barro.

Quase no fim da nossa sessão, já ele estava de joelhos, a percorrer o meu baixo ventre, passando com as palmas das suas mãos pelas minhas ancas, para a frente e para trás, tocando-me como se eu fosse feita de barro e ele me estivesse a dar uma forma nova. Queria protestar, pôr em causa, acabar com aquilo, mas receava que, se fizesse alguma coisa, isso pudesse prolongar o processo. Por isso, fechei os olhos e suportei tudo.

Finalmente, mandou-me vestir.

- Quero apenas dar uns retoques e acabamos isto - disse ele.

Depois de me vestir, fui ver a escultura. Tal como nos desenhos, tinha fortes semelhanças com a minha cara, mas o corpo da boneca era mais parecido com o corpo da minha mãe.

- Agora não vou precisar de ti durante alguns dias - informou, desviando os olhos de mim. - vou fazer o trabalho de precisão a partir dos desenhos e dos quadros e depois vais voltar para uma sessão final para confirmar tudo, está bem?

Os olhos dele viraram-se para a minha cara, afastando-se

depois tão rapidamente como se tinham virado.

Eu assenti silenciosamente. Esse dia deixara-me fatigada, tensa e exausta. Sentia-me confusa, dividida entre a ânsia por qualquer coisa que não conseguia descrever e o desejo de me afastar daquela casa e de nunca mais lá voltar.

O Tony tinha razão quando disse que eu me iria habituar a andar pelo labirinto. Agora corria pelos seus corredores verdes e pelas suas curvas, irrompendo do outro lado do labirinto, sentindo-me como se tivesse acabado de fugir de um louco. Corri para a mansão. No caminho para a escadaria, deparei-me com a mamã, que estava a sair da sala de música ao lado de uma das suas amigas.

- Leigh, como correram as coisas hoje?

Olhei para ela e abanei a cabeça, incapaz de falar, receando que, se começasse, rebentasse em lágrimas e a envergonhasse. Ela reparou na minha expressão e seguiu a pergunta com o seu riso agudo e cristalino. O riso perseguiu-me pelas escadas acima até ao meu quarto, onde despi rapidamente as minhas roupas e pus a correr um banho quente. Só comecei a acalmar e a sentir-me limpa quando já estava encharcada dentro dele há pelo menos quinze minutos. Estava quase a adormecer dentro de água, quando ouvi a minha mãe a entrar. Veio até à porta da minha casa de banho.

- O que é que te aconteceu, para te comportares daquela maneira à frente de Mistress Wainscoat - disse ela, encolerizada, a andar freneticamente para a frente e para trás à minha frente, erguendo as suas mãos. - Tu não imaginas como aquela mulher é mexeriqueira.

Pela primeira vez ignorei a histeria dela.

- Oh, mamã, hoje foi pior do que nunca. O Tony... passou com as mãos pelo meu corpo todo, por todo o meu corpo! - gritei eu. Ela abanou a cabeça e percebi que não estava a ouvir, o QUE É QUE eu tinha de fazer para ela me ouvir, para ela ouvir os meus pedidos de ajuda? - Ele partia do meu corpo para confirmar todas as formas que moldava no barro... Agarrava-me, tocava em mim...às vezes até durante alguns minutos!

A mamã parecia espumar de raiva contra mim.

- Ele apenas me disse que está quase a acabar e que vai precisar de ti só mais uma vez - disse ela. - É verdade?

- É, mas...

- Então pára de chorar como um bebé. Fizeste o que tinhas a fazer e tenho a certeza de que vai ficar maravilhoso.

- Depois, calmamente, prosseguiu: - De qualquer modo, eu não vim cá acima por causa disso. Hoje recebeste um telefonema e tens um encontro marcado para amanhã. O teu pai regressou. Quer almoçar contigo em Boston.

- O papá voltou? - Oh, graças a Deus, pensei eu. Graças a Deus. Agora tinha alguém para me ouvir e para me ajudar. O papá estava em casa.

Estava tão excitada na manhã seguinte que até escolhi a roupa com mais cuidado do que era normal e a seguir estive a mirar a minha figura ao espelho por uns momentos, o que me fez sentir complexos de culpa. Olhei para o espelho, surpreendida por me ver tão parecida com a minha mãe. Seria essa a causa do comportamento do Tony? - Teria tudo acontecido por culpa minha? Por instantes, senti vergonha de pensar assim; depois, decidi que, independentemente da verdadeira causa, a culpa não era minha. O Tony era um adulto... e era o meu padrasto!

Penteei o cabelo, escovando-o até brilhar, e apanhei-o com uma fita cor-de-rosa, como o papá gostava. Pus um pouco de bâton e escolhi uma saia e uma blusa azul-claras, ambas de um tecido bonito e leve. Nas orelhas, pus as pérolas que o papá me tinha trazido das Caraíbas.

Quando me contemplei no espelho, estava na expectativa se ele me iria achar mais crescida ou não. Era importante, pois queria contar-lhe tudo o que tinha acontecido e, principalmente, que estivera a posar para a boneca-retrato. Tinha esperanças secretas que me pedisse para ir com ele desta vez, que talvez contratasse um professor particular e me levasse com ele numa das suas viagens. Se ao menos pudesse mostrar-lhe que já estava suficientemente crescida para ser mais independente. Ele perceberia a necessidade que eu tinha de me afastar da mamã e do Tony. Só tinha pena era de ficar longe do pequeno Troy, mas tinha de me afastar dali. Tinha mesmo.

Quando saímos de Farthy e passámos por baixo do grandioso arco, o meu coração já palpitava. Como estaria o papá? Ainda teria barba? Estava desejosa de sentir a sua loção da barba e cheirar o aroma do seu cachimbo, desejosa que ele me abraçasse e me estreitasse contra o seu casaco de tweed enquanto choviam beijos no meu cabelo e na minha testa. Queria e precisava tanto de o ver que nem uma vez me passou pela cabeça a verdade sobre o nosso parentesco. Nada me parecia mais longe do meu pensamento do que o facto de saber que ele não era o meu pai verdadeiro.

Quando chegámos ao hotel, pedi ao recepcionista para avisar o papá da minha chegada. Tencionava correr para os braços do papá e abraçar-me a ele com toda a força no momento em que ele descesse. Fiquei à espera, a observar o indicador que mostrava em que piso estava o elevador nesse momento. Vi um dos indicadores a descer... cinco, quatro, três, dois... as portas abriram-se e o papá saiu do elevador. Porém, não corri para ele como tinha planeado.

Estava de mão dada com uma mulher. Era uma mulher magra com cabelo grisalho cortado mesmo abaixo das orelhas e era muito alta, tão alta como o meu pai. Vestia um fato de lã azul-escuro e sapatos de saltos grossos. O papá sorriu para mim, mas não largou a mão da mulher. Ela também sorria e começaram ambos a andar na minha direcção. Eu esperei, com o coração a bater. Esta tinha de ser a mulher sobre a qual ele me escrevera nas suas cartas, a mulher que ele dizia que o fazia feliz, a Mildred Pierce.

- Leigh - disse o papá, estendendo finalmente os braços para mim. Abracei-o mas não o estreitei com força. Em vez disso, recuei bruscamente e olhei com mais atenção para a Mildred Pierce. Ao contrário da mamã, tinha uma pele pálida, um rosto duro e ossudo e olhos muito escuros. Os seus lábios finos parecia que podiam estalar como elásticos quando sorria e os esticava. O papá manteve as suas mãos nos meus ombros.

- Pareces mais velha e mais bonita do que nunca - elogiou ele.

- Obrigada, papá - respondi eu. Eram as palavras que eu desejara, esperara ouvir, mas nesse momento quase que não tinham importância. Ainda fitava a mulher que estava ao lado dele.

- Leigh, esta é a Mildred - apresentou o papá.

- Olá, Leigh. Ouvi falar tanto de ti. Estava ansiosa por te conhecer - disse ela e estendeu-me a mão. Tinha dedos longos e finos e as suas mãos eram de longe menos macias e femininas do que as mãos da minha mãe.

- Olá - disse eu. Dei-lhe um aperto de mão rápido.

- Estás com fome? - perguntou o meu pai. - Fiz reservas para nós aqui, no hotel. Achei que era mais cómodo. Na verdade - prosseguiu, tornando a agarrar a mão da Mildred -, foi a Mildred que teve a ideia. É uma magnífica organizadora, o tipo de pessoa a que chamamos uma pessoa de pormenores.

- Oh, Cleave. Eu só faço aquilo que me parece mais eficiente.

- Ela é mesmo assim, tem a mania de depreciar o seu trabalho. A Mildred é contabilista, Leigh, por isso sabe de eficiência.

- Não falemos sobre mim - disse a Mildred pegando na minha mão e conduzindo-nos para o restaurante do hotel. Vamos falar sobre ti. Quero saber tudo sobre ti. Eu também tenho dois filhos, sabes.

- Tem?

- Sim. Estão ambos na casa dos vinte e são ambos casados e com filhos, por isso já não tenho ninguém para mimar.

- Eu também não sou nenhum bebé - respondi eu, bruscamente.

- Claro que não és, querida - retorquiu a Mildred. Piscou o olho ao meu pai. - Qualquer um pode ver que és uma rapariga.

Entrámos no restaurante e o empregado conduziu-nos à nossa mesa reservada. O papá puxou a cadeira da Mildred, e o empregado, a minha. Agora que estávamos sentados, olhei para ele mais de perto. A sua aparência era praticamente igual, apesar de ter um ar muito mais feliz do que da última vez que o vira. A barba estava aparada, as faces rosadas. Achei que tinha o cabelo mais curto; vestia o mesmo fato e gravata, ao qual a mamã, num acto de desespero, se tinha começado a referir como a "farda" dele.

- Então, conta-me, como era a escola que frequentaste?

- perguntou o papá.

- Mais ou menos - respondi eu.

- Só mais ou menos?

- É uma boa escola - confessei eu. - Mas eu gosto mais de estar numa escola oficial, e nenhum dos meus professores é tão bom como Mister Abrams - acrescentei eu, com rapidez.

- Mister Abrams era o professor particular que eu contratava sempre que levávamos a Leigh numa viagem no decorrer do ano lectivo - explicou o papá à Mildred. Ela fez um sinal de aprovação.

- Estou ansiosa para fazer outra viagem - disse eu O papá assentiu, com um sorriso nos olhos, mas não se ofereceu para me levar, como eu tinha esperanças que fizesse no mesmo instante.

- E a tua mãe, está bem? - perguntou ele.

- Está feliz, presumo. Ocupada com o seu brídege, o teatro e as amigas.

- E Mister Tatterton? O negócio dele deve estar a correr bem.

Era a minha oportunidade de falar sobre a boneca-retrato, pensei, mas não o queria fazer em frente daquela mulher que mal conhecia. Decidi que ia esperar até o papá e eu ficarmos a sós.

- Acho que sim. Tive saudades suas, papá - disse eu, de repente. Só queria falar dele e de mim. Mais uma vez, ele assentiu silenciosamente, sem dizer nenhuma das coisas que eu esperara ouvir. Queria que ele me dissesse que tivera muitas saudades minhas e que me desejara muito junto dele. Queria que ele me explicasse como podíamos estar mais vezes juntos e queria que me propusesse fazermos uma viagem, um plano para passarmos mais tempo juntos; mas, em vez disso, ele olhou para a ementa.

- Vamos pedir. Estou a morrer de fome.

Eu não estava preocupada em comer. Não me importava se nunca chegássemos a pedir.

- Ontem comemos o grelhado londrino - disse a Mildred. - Se gostas de grelhados, o daqui é muito bom.

- Estiveram aqui ontem? - perguntei eu bruscamente, com o estômago às voltas de surpresa e desapontamento. Oh... - Ela olhou para o papá.

- Sim, Leigh. Voltámos há pouco mais de uma semana, mas eu não quis telefonar-te até ter tempo para estar contigo. Temos tido tanta coisa para fazer.

Eu estava estupefacta, sem saber que dizer. Como é que podiam estar cá há tanto tempo e não me telefonar? E aquelas palavras que ele me tinha escrito nas suas cartas, pelo menos nas últimas, dizendo que estava cheio de saudades minhas? Onde estavam as promessas e as declarações de amor? Eu nem sequer tentei esconder a minha expressão de mágoa. Eles voltaram a olhar um para o outro.

- Eu estava, como se diz, um bocado atafulhado de trabalho - prosseguiu o papá. - Planeei outro novo cruzeiro maravilhoso. Para dizer a verdade - acrescentou ele, voltando-se para a Mildred e pegando-lhe na mão -, a ideia foi da Mildred, uma ideia espectacular. - Voltou a virar-se para mim. - Vamos fazer cruzeiros ao Alasca. Ao Alasca! Eu sei que vais pensar que as pessoas não vão querer ir ao Alasca por estar um frio de morte, mas os Verões do Alasca são provavelmente os Verões mais bonitos do mundo. A Mildred esteve lá no Verão! - exclamou ele. - Ela pode confirmar-te.

- Estou-me nas tintas para o Alasca - disse eu, ríspidamente. As lágrimas estavam a vir-me aos olhos, mas eu não as deixei sair.

- Então, Leigh, isso não é muito simpático.

- Não faz mal, Cleave. Eu percebo como a Leigh se sente. Devias contar-lhe tudo - disse ela, com uma expressão cerrada e séria.

- Tudo? - Eu olhei para o meu pai. Estava sentado de costas direitas.

- Não foram só os negócios que nos mantiveram ocupados desde o nosso regresso da Europa - disse ele. - Há dois dias atrás, a Mildred e eu casãmo-nos.

Tive vontade de me levantar e de sair a correr do restaurante e do hotel. Queria correr e correr mais, até desmaiar. Sentia-me como se o estômago me tivesse caído aos pés. O meu coração parecia ter encolhido dentro do peito, e o peito parecia ter-se transformado numa câmara vazia, que ecoava com as fracas batidas do meu coração. O papá segurava as mãos da Mildred junto ao seus lábios e olhava para ela com um ar muito amoroso. Em seguida, voltou-se para mim.

- Pensámos que seria melhor para toda a gente se nos casássemos e pronto, sem cerimónia pública, sem recepção, nada de extravagante. A Mildred é tão prática quando se trata destas coisas e, nesse aspecto, é muito parecida comigo disse o meu pai.

Cada palavra que pronunciava parecia afastá-lo mais e mais de mim, como uma folha a ser afastada pela acção do vento, a subir no ar e a cair num mar invisível, arrastada em direcção ao horizonte até quase não se ver, um ponto no céu cinzento.

- Ainda não contámos aos meus filhos - explicou a Mildred. Imaginei que ela achava que aquilo me faria sentir mais importante. Eu tinha sabido do casamento deles antes dos filhos dela; mas isso não me aquecia nem arrefecia.

- Amanhã partimos para Maine - informou o meu pai.

Maine? Amanhã? - As palavras andavam às voltas na minha cabeça. Pareciam irreais.

É onde vivem os filhos da Mildred. Vamos fazer-lhes uma surpresa com as notícias.

- Como me fez a mim - disse eu, com amargura. O papá pestanejou.

- Escrevi-te cartas - disse ele ternamente. - Já devias fazer ideia.

É verdade, pensei, mas não o admitira. Recusara-me a admitir, porque ainda tinha esperanças de viver uma realidade diferente, um mundo que apenas incluísse o papá e eu, um mundo em que eu fosse a coisa mais importante da vida dele, um mundo igual ao mundo feliz em que vivera um dia. Mas esse sonho ténue tinha-se esfumado. Desfizera-se no ar como uma lágrima.

- Eu sei que é difícil para ti, querida - disse a Mildred. Debruçou-se sobre a mesa para colocar a sua mão sobre a minha. - Passaste por bastantes modificações súbitas na tua vida, mas garanto-te que farei tudo o que estiver ao meu alcance para te facilitar a vida e para que esta se torne mais agradável para ti. Espero que penses em mim como uma segunda mãe, alguém a que possas recorrer para te dar conselhos e para te confortar.

Olhei para os olhos dessa estranha, uma mulher tão diferente da minha mãe verdadeira. Parecia tão dura e tão austera. Até o sorriso dela era um movimento eficiente na sua cara. Confiar nela: na mulher que roubara o meu pai de mim, na mulher que o ia levar para outra família? De quem é que ele iria gostar mais agora, dos filhos dela ou da filha dele? com quem iria passar mais tempo?

- Aí está uma coisa que a Mildred faz bem - confidenciou o papá, voltando-se outra vez para ela -, dar conselhos. Nestes últimos meses tem-me dado alguns conselhos maravilhosos. Para te dizer a verdade, não sei o que teria feito sem ela.

"Mas porque é que não sentiu o mesmo em relação a mim, papá?", perguntei eu a mim própria. "Porque é que nunca disse que não saberia o que fazer sem mim? Porque é que me deixou ir embora da sua vida tão facilmente?"

- A Mildred planeou tudo com muito cuidado e com muita inteligência - prosseguiu o papá. - Por isso não terás de te preocupar mais comigo.

"Preocupar-me consigo? E porque é que o papá não está a preocupar-se comigo?", gritei eu em silêncio.

- Depois de visitarmos os filhos da Mildred, vamos fazer uma lua-de-mel no Alasca. Assim, planeamos o cruzeiro e divertimo-nos. Não é eficiente? Depois faremos mais algumas viagens. Partiremos para a Europa, em negócios, e regressaremos a Boston mesmo antes de começar o Inverno. Mas não passaremos o Inverno todo em Boston. Iremos também às Caraíbas. Na Primavera, faremos férias em Maine com a família da Mildred e no próximo Verão...

- Mas, então, e eu? - gritei, por fim.

- Oh, viremos ver-te sempre que pudermos - respondeu o papá. - A Mildred vai tratar de te incluir nos nossos planos.

"A Mildred vai tratar de me incluir nos planos? Por que razão permitira o meu pai que esta mulher tomasse conta da vida dele por completo?"

- É isso mesmo, querida - disse ela. - Estou a estudar a maneira de te podermos levar connosco numa viagem e de poderes ficar em nossa casa. Amanhã levar-te-íamos connosco para Maine, mas...

- Eu não quero ir com vocês para Maine - interrompi eu, bruscamente.

- Então, Leigh... - O papá levantou as sobrancelhas.

- Estou-me nas tintas.

- Mas não devias - ralhou o papá. - Se queres ser tratada como uma jovem senhora, tens de mostrar alguma cortesia - disse ele, com severidade. Os olhos da Mildred fixavam-me com frieza. Olhei para baixo, para a ementa. Sentia o meu peito tão pesado. Era como se o meu peito se estivesse a encher de lágrimas, as lágrimas que se haviam reunido atrás dos meus olhos.

- Pronto - disse o meu pai -, o que é que queres comer, Leigh?

- Devias considerar o grelhado londrino - disse a Mildred.

- Eu detesto grelhado londrino! - exclamei eu, rebentando. - E detesto estar aqui e detesto-a a si.

Não pude evitar. Saiu-me tudo pela boca fora e, uma vez proferidas as palavras, não podia voltar atrás. Levantei-me da mesa, corri para fora da sala de jantar, atravessei a entrada do hotel e saí pela porta principal. O Miles estava a dormir no banco da frente da limusina. Acordei-o quando bati no vidro do carro. Ele sentou-se rapidamente, chocado com as lágrimas que me escorriam pelas faces.

- O que foi? O que aconteceu?

- Leve-me de volta para Farthy - disse eu, entrando no carro - Quero voltar.

- Mas...

Por favor, leve-me para casa.

Ligou o motor. Olhei pela janela lateral e vi o papá nos degraus da entrada à minha procura. Só reparou na limusina quando o Miles fez a manobra para tirar o carro do lugar onde estava estacionado. Então, desceu as escadas a correr.

- Leigh! - chamou ele. O Miles começou a abrandar.

- Continue, Miles - ordenei eu no tom de voz ríspido da minha mãe. Ele obedeceu. O carro patinou e continuou a afastar-se do hotel. Olhei uma vez mais para trás e vi o meu pai em pé, no meio do parque de estacionamento, com as mãos nas ancas. Atrás dele vinha a sua preciosa nova mulher. Desviei os olhos e chorei com tanta força que me ficaram a doer as costelas. Quando chegámos a Farthy, já me sentia esgotada e exausta.

Subi os degraus a correr, entrei na casa, sem parar um segundo, e trepei apressadamente as escadas para a minha suite. Quando lá cheguei, atirei-me para cima da cama. Pensava que já não me restava uma única lágrima, mas voltei a chorar, e chorei uma cascata de lágrimas até adormecer. Senti alguém a abanar-me e a acordar-me e deparei-me com o Troy ao meu lado. Vestia o seu fatinho de marinheiro. Sentei-me e limpei as lágrimas dos olhos. Vi-me ao espelho de relance e reparei que as minhas faces estavam riscadas de lágrimas.

- Não te divertiste com o teu papá? - perguntou o Troy.

- Oh, Troy. - Soltei um gemido e abracei-o.

- O que foi, Leigh? - Ele levantou os seus grandes olhos, curiosos e preocupados, para mim. - Porque é que estiveste a chorar?

- O meu pai já não é o que era, Troy. Tem uma nova mulher.

O Troy pestanejou. Quase que conseguia ouvir os pensamentos dele.

- Tens uma nova mamã?

- Não. Ela não é a minha mãe! NUNCA, NUNCA, NUNCA! O Troy ficou a olhar fixamente para mim. Ele não tinha mãe nem pai. Não era difícil perceber porque é que a minha fúria o confundia. Tinha a certeza de que ele gostaria de ter hipótese de ganhar uma mãe e um pai novos e ali estava eu, a desperdiçar a minha nova mãe como se fosse peixe miúdo.

- O meu papá já não gosta de mim tanto como gostava dantes - expliquei eu. - A nova mulher dele tem a sua própria família e ele também tem filhos novos.

Os olhos do Troy brilharam, por finalmente ter percebido alguma coisa.

- Queres vir brincar com o meu comboio eléctrico? perguntou ele, com esperanças de me animar. Eu sorri e beijei-o. Por muito estranho que parecesse, senti-me de repente esfomeada. O meu tumulto emocional tinha-me esgotado, mas o meu estômago estava às voltas. Ao pequeno-almoço, estava demasiado nervosa para comer muito e, claro saíra a correr do restaurante antes de sermos servidos.

- Eu vou só lá abaixo à cozinha pedir ao Rye que me faça qualquer coisa para o almoço - disse-lhe eu. - Depois, vou brincar contigo.

- Eu vou contigo - ofereceu-se ele. Esperou um pouco enquanto eu lavava a cara e apagava os vestígios das minhas lágrimas e da dor que sentia. Passei com a escova pelo cabelo e estava a sair no momento em que o telefone tocou. Era o meu pai.

- Leigh, por favor não desligues - disse ele rapidamente, prevendo o meu primeiro impulso. - Podes ouvir-me? perguntou ele, quando não obteve resposta.

- Sim, papá, estou a ouvir.

- Desculpa, desculpa por não te termos ido visitar logo que chegámos e por te ter dado a notícia do meu casamento ao almoço daquela maneira. Fui muito insensível e peço desculpa. A Mildred ficou muito transtornada com tudo o que aconteceu. Ela queria tanto que tu ficasses a gostar dela. De verdade. Acreditas nisso, não acreditas? - perguntou ele.

- Sim, papá - disse eu, secamente.

- A Mildred diz que o que te aconteceu neste último ano é uma considerável carga emocional, adicionada à carga emocional normal que os adolescentes carregam hoje em dia. Ela é muito perspicaz no que respeita a essas coisas, percebes. Ela também tem uma filha e um filho. Espero que os conheças em breve.

Como eu não respondi, ele continuou.

- Eu convidava-te para vires connosco para Maine, mas...

- Eu não posso ir para Maine, papá. Estou a posar para um novo brinquedo da Fábrica Tatterton, uma boneca-retrato - repliquei eu -, e estou muito ocupada.

- Oh?

Ter-lhe-ia contado se estivéssemos sozinhos - disse eu, abruptamente.

- Podias ter falado sobre isso ao almoço. A Mildred

agora é a minha mulher e quer ser uma mãe para ti.

- Eu tenho uma mãe.

- Bem, então, quanto mais não seja, uma boa amiga. com que então, estás a posar. Parece excitante. Estás a gostar?

Hesitei. Devia dizer tudo pelo telefone, fazê-lo sentir horrível por não se ter encontrado comigo sozinho? Viria a Farthy imediatamente, entrando de rompante pela casa adentro, exigiria ter uma conversa particular com o Tony e com a minha mãe, vindo depois a repreendê-los e levando-me embora com ele?

Mas eu teria de partir com ele, com a sua nova mulher e os filhos dela, a sua nova família. Iria gostar disso?

- Sim, papá - disse eu. - Estou a gostar. Vai tornar-me muito famosa - prossegui, num tom petulante. Ele ficou calado por algum tempo.

- Bem, fico feliz por ti, Leigh. Gostarias de tentar de novo, de vir jantar connosco, talvez?

- Não, papá. Hoje à noite não posso. Não posso deitar-me tarde, porque amanhã bem cedo vou ter uma sessão e toda eu tenho de estar fresca e bem acordada - disse eu. Pensei que ele fosse perguntar porque teria eu dito "toda eu", mas não o fez.

- Então talvez quando voltarmos de Maine - disse ele.

- Talvez.

- Leigh, por favor, acredita em mim quando digo que te adoro.

- Eu acredito, papá - repliquei prontamente.

- Serás sempre a minha princesinha, aconteça o que acontecer - acrescentou ele naquela voz que me trouxe de volta imensas recordações. Oh, como desejava que ele estivesse agora perto de mim, que me abraçasse e me beijasse daquela maneira que ele fazia muitas vezes quando voltava para casa de um cruzeiro ou de uma viagem de negócios. Mas ele era apenas uma voz fraca e longínqua num telefone.

- Adeus, Leigh. Telefonar-te-emos quando voltarmos.

- Adeus, papá. - Baixei o auscultador devagar. O meu corpo começou a tremer em soluços secos. O Troy veio a correr ter comigo e abraçou-me.

- Não chores, Leigh. Por favor, não chores.

- Não vou chorar, Troy. - Sustive a respiração por um momento e depois sorri. - Eu estou bem. Anda - disse eu -, vamos ver se o Rye Whiskey me pode preparar qualquer coisa.

Tornei a pegar-lhe na mão e saímos.

Mais tarde, a mamã veio à suite do Troy à minha procura, curiosa para saber como tinha corrido o dia com o meu pai. Ficou surpreendida por saber que ele tinha voltado a casar e quis saber tudo sobre a sua nova mulher. Não lhe contei que tinha saído a correr do restaurante, que tinha fugido deles.

- É alta e magra, e o nariz dela é comprido e ossudo disse eu. Ela sorriu quando ouviu isto. - Tem uma pele má, com marcas de varíola na testa, e o cabelo parece que raramente é lavado. Não tem brilho e tem muitos fios grisalhos.

- Nunca deixarei que o meu cabelo se torne grisalho observou logo a mamã. - É tão desnecessário uma mulher ter de passar por isso.

- Não tem curvas - prossegui eu, divertindo-me a deitar abaixo a nova mulher do meu pai -, mas o papá gosta dela porque ela é contabilista e muito eficiente.

- É mesmo o tipo de mulher que o teu pai gosta. Coitadinha, deves ter passado momentos horríveis.

- E tem a sua própria família com filhos crescidos! exclamei eu.

- A sério? Extraordinário! O que é que aconteceu ao primeiro marido dela? - perguntou. Eu não sabia a resposta.

- Não me falaram sobre isso. Ela assentiu, compreensiva.

- Vais vê-los proximamente?

- Não. Eles foram-se embora para visitar a família dela e depois vão fazer uma viagem que combina negócios e lua-de-mel.

A minha mãe desatou a rir. O Troy, que estivera sentado, sossegado, a brincar com os seus comboios e a ouvir-me, até olhou para cima a sorrir, um pouco confuso.

- Não é típico dele? Vai transformar a sua própria lua-de-mel numa dedução para os impostos. - Começou a andar em direcção à saída da suite do Troy e virou-se. - Oh, contaste-lhe que estavas a posar para a boneca-retrato?

Tentou fazer a pergunta casualmente; contudo, pela maneira como o seu corpo se tornara tenso, apercebi-me, de repente, de que a sua curiosidade não era apenas passageira.

- Sim. - Recusei-me a explicar mais. Se tinha tanta vontade de saber o que eu contara ao papá, então que perguntasse!

Não lhe ia facilitar a vida... Ela também não me facilitara a vida a mim.

A mamã estudou-me por uns instantes. Seria imaginação minha, ou os olhos dela tinham-se tornado apreensivos? Estudei-os com mais pormenor. Sim, ela estava realmente apreensiva... e com medo! Observei-a a engolir em seco, mal conseguindo pronunciar as próximas palavras:

- E o que é que ele disse? Eu dirigi-lhe um olhar curioso.

- Ele disse que era maravilhoso. Que mais podia dizer? Um suspiro de alívio passou pelas suas bonitas feições.

Percebeu que eu não tinha contado a verdade ao papá.

- És uma rapariga muito esperta e inteligente para a tua idade, Leigh. Estou orgulhosa de ti. Oh, o Tony e eu vamos jantar fora. Fomos convidados para casa dos Amberson. Sabes quem é Mister Amberson, não sabes? - Não esperou pela minha resposta. - É um milionário, dono de toneladas de fábricas de papel. Tem montes de dinheiro e tudo o que quer. Tudo!

Era só com isso que ela se preocupava? Dinheiro? Posses? O seu amor ao luxo e à riqueza ter-se-ia sobreposto ao seu amor por mim? Cada dia que passava, esta questão vinha-me mais frequentemente à ideia.

- Antes que me esqueça - prosseguiu ela, a caminho da saída da suite do Troy -, o Tony pediu-me para te dizer que amanhã de manhã vai precisar de ti só por um bocado e que, depois disso, o seu trabalho aqui fica terminado. Não é excitante?

Antes de poder responder, já ela se tinha ido embora, em direcção à sua suite para tomar banho e vestir-se para o jantar.

Atirei com a porta da suite do Troy, furiosa como estava. Ele olhou-me, assustado. Como eu queria gritar com a mamã! Uma vez mais, mandara-me fazer uma coisa, sem pensar e sem ter em consideração os meus sentimentos.

A cada dia que passava, a teia que a mamã me armara tornava-se mais fechada. Como iria acabar tudo?, interrogava-me eu, receosa.

O Tony não apareceu para o pequeno-almoço na manhã seguinte. A mamã explicou que ele se tinha levantado cedo e que já tinha ido trabalhar para a pequena casa de pedra. Eu devia ir ter com ele mal acabasse de comer. Comi devagar, enquanto ela descrevia o jantar deles em casa dos Amberson.

Pouco depois, já tinha parado de a ouvir e a sua voz zumbia monotonamente sobre os meus pensamentos. Estava muito mais nervosa para esta sessão final com o Tony do que ficara para as outras. Talvez fosse o resultado das coisas terríveis e dramáticas que me andavam a acontecer.

Por fim, levantei-me da mesa, subi à minha suite para dar uns retoques no cabelo e segui para a casa de pedra. A manhã estava clara e mais quente que o habitual. A brisa do mar soprava com pouca força e as nuvens pareciam firmes no céu azulado. Até os pássaros, normalmente tão activos e barulhentos, estavam tranquilos. Fixavam-me do alto, com olhos de rubi, expectantes. Ouvia o ruído das máquinas de cortar relva nos extremos longínquos dos jardins e captei o grito de uma andorinha-do-mar, mas, para além disso, o mundo parecia uma pintura gigante numa tela gigante.

Tudo isso tornava o sossego e a calma do labirinto ainda mais intensos. As sombras eram mais escuras, mais profundas e mais compridas. Os locais frios ainda estavam mais frios e o perfume das sebes recém-aparadas era acre. Em vez de sentir que estava a movimentar-me através de túneis, sentia como se estivesse a afundar-me cada vez mais num mundo de mistério. Olhei para trás e vi o telhado de Farthy, antes de este desaparecer atrás de uma sebe alta. Sem nenhuma razão aparente, entrei em pânico e percorri o resto do caminho a correr, irrompendo do labirinto ao pé da pequena casa. Parei e retomei o fôlego. Então, sentindo-me tola, limpei o rosto com um lenço, penteei o cabelo para trás, retomei a minha compostura e entrei.

O Tony andava às voltas com o modelo de barro, as suas mãos sobre o modelo como se estivesse prestes a agarrá-lo e a comprimi-lo contra ele. Levantou o olhar bruscamente quando eu entrei e endireitou-se logo.

- Não pude esperar por ti esta manhã - disse ele. Estava desejoso de acabar. Senta-te aí - disse, apontando para o sofá. - Esta manhã só quero dar uns toques finais na cara da boneca. Então - prosseguiu ele, enquanto eu me sentava e o encarava -, ontem foste ver o teu pai. - Começou a trabalhar com uma pequena ferramenta.

- Sim.

- Mas não correu tudo bem, pois não? - perguntou ele. Eu virei bruscamente o olhar para ele. O Tony percebeu que eu estava a tentar imaginar como é que ele sabia. - O Miles contou-me - acrescentou ele, ternamente. - Mas não contei nada à tua mãe. - Piscou-me o olho. - Presumo que, pelo que ela sabe, tu também não.

- Não queria deixá-la preocupada.

- Sim. Então e o que é que aconteceu para tu ficares transtornada? Vira-te um bocadinho para a direita. Mais um pouco. Óptimo.

- O meu pai voltou a casar-se - disse eu.

- E tu não sabias de nada até ao momento?

- É isso mesmo. Ele abanou a cabeça.

- Às vezes, os homens são tão estúpidos. - Sorriu. Não te deste bem com a nova mulher dele?

- Estava demasiado transtornada. Devo ter sido injusta

- acrescentei. Tinha andado a pensar que devia ter dado uma segunda hipótese ao meu pai e à sua mulher, indo jantar com eles. Agora tinham partido para Maine e já não podia fazer nada.

- Não consigo imaginar-te injusta para ninguém, Leigh. Não conheço ninguém mais doce e mais atencioso. Eu vejo como tu és para o Troy - disse ele a sorrir. Eu fiquei calada.

- Sei que sou um fraco substituto - continuou ele -, mas gostava que me considerasses como um pai. Também sei que achas que eu sou novo de mais... Mas tenho muita experiência. A minha fortuna e as responsabilidades que herdei envelheceram-me para além dos anos físicos.

Voltou a sorrir, mudou de posição, estudou-me, trabalhou e depois parou e estudou-me mais um pouco.

- De qualquer modo - disse ele, passado algum tempo -, se alguma vez tiveres problemas que não possas discutir com a tua mãe, espero que venhas ter comigo.

- Obrigada, Tony - disse eu.

- Ia gostar de te ajudar.

Utilizou ferramentas diferentes para raspar, para dar uns retoques delicados, estudando-me, e continuando a trabalhar desse modo por mais de uma hora. Por fim, levantou-se e anunciou que tinha terminado.

- Terminei - disse ele. - A tua tarefa chegou ao fim. Agora tenho de mandar moldar isto. Acho que vou entregar a pintura do modelo a um dos meus melhores artistas.

Eu já não era precisa? Não tinha de posar mais nua? Que dia final tão fácil... Porém, apercebi-me de que ainda não tinha visto a escultura pronta.

- Posso vê-la agora?

- Claro - disse ele, recuando. Fez um gesto na direcção da escultura final. Levantei-me devagar e dei a volta para a ver de frente. No momento em que vi a escultura, a minha cara ficou totalmente vermelha e respirei com dificuldade. A minha cabeça cambaleou. Senti o corpo todo a ferver e depois fiquei fria. A minha cara estava perfeita, mas ele tinha esculpido cada parte do meu corpo com tanto exagero que parecia pornográfico. Todos iam poder ver aquilo... Rapazes... Toda a gente...

- O que foi? - perguntou ele, com os olhos a diminuírem até ficarem duas pequenas fendas azuis.

- Tony, não pode mostrar isso a toda a gente. É embaraçoso. As bonecas não têm... não têm...

- Órgãos genitais? Não, as bonecas não, mas uma boneca-retrato é uma obra de arte, já te tinha dito.

- NÃO! - gritei eu. - Não posso deixar que ponha a minha cara nisso. Não posso - afirmei eu.

- Mas esta boneca vai ser só tua. Ninguém mais terá esta boneca. Cada pessoa vai querer a sua própria boneca.

- Mas vão observar esta para verem como ficarão as suas.

- Estará vestida quando olharem para ela.

- Mas então porque é que fez isso?

Ele olhou para mim e depois para a boneca, como se a resposta estivesse nos lábios dela. Depois, aproximou-se e acariciou a figura de barro. Enquanto o fazia, os seus olhos tornaram-se sonhadores e distantes, uma cena à qual eu já tinha assistido antes.

- Porque... como te disse... é uma obra de arte.

- Não, não vou deixar que ponham a minha fotografia ao lado dela. Não vou deixar - insisti eu. Ele ficou a olhar para mim, embasbacado. Depois, os seus olhos ficaram frios, ainda mais frios do que antes. Perderam a expressão distante e focaram-me com dureza.

- Está bem - cedeu ele, furioso. - vou alterá-la. Agora estás despachada. Podes ir - disse, abruptamente.

Encaminhei-me para a porta. Quando olhei para trás, vi que ele continuava ali, de pé, a olhar fixamente a boneca, fazendo uma expressão tão dura e tão parada como uma escultura. Deixei a pequena casa e apressei-me pelo labirinto fora. Antes de chegar a meio, percorri o resto do caminho a correr, fugindo à imagem de mim própria nua e exposta a toda a gente.

 

ANGEL

Apesar de ter ansiado tanto pelas minhas férias de Verão, fiquei contente quando começaram a chegar ao fim e se aproximou a hora de voltar para Winterhaven. Tinha saudades da Jennifer. Contara-lhe a história da boneca-retrato, mas não lhe confidenciara o facto de ter posado nua. E nunca cheguei a ir visitá-la. Depois de acabar o meu trabalho com a boneca, a mamã foi arranjando desculpas atrás de desculpas para não me deixar ir. Voltei a pedir-lhe semanas antes de voltar para a escola, mas ela retorquiu que faltava pouco tempo para voltar a ver as minhas colegas. Poucos dias mais tarde, decidiu que me queria levar a Nova Iorque, a fim de comprar roupa nova para eu levar para a escola e para ela também. Foi uma viagem relâmpago, pois tínhamos acabado de chegar, quando ela decidiu que estava calor de mais. Ficámos só uma noite em Nova Iorque e fizemos compras em apenas duas lojas. Depois disso, voltámos para Farthy.

Durante a maior parte do mês de Agosto, o Tony viajou muito estabelecendo novos mercados pelo país fora para os seus brinquedos, e, principalmente, para lançar as bonecas-retratos. Eu ainda não tinha visto o produto final. Ele cumprira a sua palavra e tinha entregue o trabalho final a um dos seus melhores artesãos, um homem da Europa, que já tinha trabalhado lá com esse tipo de bonecas. O Tony disse à minha mãe e a mim que só queria que víssemos a boneca quando esta estivesse pronta até à última pestana.

A mudança de temperatura causou o desenvolvimento de novas alergias no Troy. Foi tão grave que, no fim de Agosto, ele teve de ser internado no hospital durante uma semana. Os médicos fizeram-lhe dúzias de testes, tentando encontrar os melhores antídotos para os problemas dele. O Miles levava-me a visitá-lo todos os dias, mas a mamã não foi lá nem uma vez. Tinha sempre outra coisa para fazer, um lugar onde ir, pessoas que devia visitar.

Finalmente chegou o dia em que eu tinha as malas feitas para voltar para Winterhaven. A nossa escola particular começava uma semana antes das escolas oficiais. Tinha sido um dos Verões mais quentes de que havia memória mas, lá para o fim de Agosto, o tempo deu uma reviravolta. O Outono veio, armado de vento e de chuva, transformando as folhas nas cores do arco-íris do Outono, quase do dia para a noite. As temperaturas desceram e o esbatido céu azul passou a ser de um azul mais escuro e mais forte.

Não me importava. Sempre tinha adorado o Outono, as suas cores e as brisas arredias. O ar estava fresco e enchia-me de energia e de esperança. Recebera dois telefonemas do papá, um, quando ele regressara de Maine, mesmo antes de partir para a sua lua-de-mel, e o outro, depois. Das duas vezes desligara com a promessa de me visitar, mas havia sempre um problema com os horários dele ou com os negócios, impossibilitando que tal acontecesse. As coisas ficaram neste pé: que talvez eu fosse passar as férias de Natal com ele e a Mildred.

A mãe da Jennifer também tinha voltado a casar e ela ficara tão infeliz com isso e tão desejosa de voltar para Winterhaven e para o "clube especial" como eu. Estava à minha espera à porta do nosso dormitório quando o Miles encostou o carro. Veio a correr na direcção do carro e abraçámo-nos e beij amo-nos tão depressa e com tanto alarido que ficámos ambas roucas. Ela ajudou-me a desfazer as malas e a arrumar as minhas coisas e depois fomos dar uma volta para ver as outras. Já tinham chegado todas excepto a Marie. Viria um dia mais tarde directamente de Paris.

Nessa primeira noite, a Jennifer e eu ficámos sentadas na cama a conversar até altas horas da noite. Quando lhe descrevi a maneira como me tinha despido da primeira vez e como o Tony me tinha retirado o lençol do corpo gradualmente, ela quase não falou e o seu tom de voz era pouco mais alto do que um sussurro.

- Mas ele tem um ar tão jovem - comentou ela. - Eu não sei se teria conseguido fazer isso. Como é que conseguiste?

- Não sei. A minha mãe convenceu-me - disse-lhe eu.

- sabes, ela é uma artista e os artistas não pensam muito nessas coisas - expliquei.

Não lhe contei o método do Tony, de me tocar antes de começar a pintar e a esculpir. Isso não fui capaz de confessar. Mesmo assim, o que descrevi foi suficiente.

- Tens que me prometer que não vais contar a ninguém do "clube especial", Jennifer. Não quero que as outras saibam os pormenores. Deixa que elas pensem que o corpo da boneca foi uma criação da imaginação do Tony. Vão-se rir na mesma quando a virem.

- Porquê? - perguntou ela com rapidez.

- Porque parece mais velha do que eu, mais madura. Principalmente aqui - disse eu, apontando para o meu peito.

- Porque é que ele fez isso? - perguntou a Jennifer com os olhos muito abertos.

- Não sei. Não percebo os homens, nem o meu pai nem nenhum homem.

A Jennifer calou-se. Pensei que estivesse a lembrar-se do seu próprio pai, mas surpreendeu-me.

- Conheci um rapaz na última semana de férias - confessou ela -, e tivemos dois encontros.

- Jennifer Longstone, não me escreveste uma única palavra sobre isso nas tuas cartas e nem disseste nada quando falámos ao telefone - gritei eu, sentando-me imediatamente na cama. - Que rapaz? Como é ele? Que idade tem?

- Aconteceu tudo tão depressa que nem tive tempo de te contar e, além disso, não quis fazer grande alarido à volta disso até ter a certeza de que ele gostava mesmo de mim. Chama-se William Matthews, tem dezasseis anos e anda em Allandale. Por isso, vai cá estar no baile do próximo fim-de-semana. Vais poder ficar?

- Sim. A minha mãe concordou em deixar-me ficar de vez em quando.

- Oh, isso é óptimo, porque o colega de quarto do William também vem e quando falei de ti ao William, ele disse que tu e o colega de quarto dele se podiam dar muito bem.

- Jennifer, não acredito. O que é que lhe contaste sobre mim?

- Só a verdade... Que és bonita e esperta e divertida.

- Oh, Jennifer!

- Não faz mal. Eu não prometi nada. Não faria isso sem falar primeiro contigo. O colega de quarto do William chama-se Joshua John Bennington. O William diz que ele é muito tímido mas muito bonito, e que é um dos rapazes mais brilhantes de Allandale. E também é muito rico.

- Pareces uma casamenteira. Desde quando é que és tão requintada no que respeita a rapazes, Jennifer Longstone?

- Desde a última semana de férias - sussurrou ela, e depois continuou a narrativa dos dois encontros dela com o William, o segundo dos quais ocorrera na casa dela, onde estiveram os dois sozinhos. - Ele beijou-me, Leigh - confessou ela. - Foi a primeira vez que deixei um rapaz tocar-me. Já alguma vez deixaste um rapaz tocar-te, Leigh? - perguntou ela.

Pensei outra vez no Tony a passar com os seus dedos pelo meu corpo, mas ainda tinha vergonha de lhe contar.

- Não - disse eu bruscamente. - Acho que não conseguia, a não ser que o amasse e que ele me amasse a mim disse eu. A Jennifer assentiu, com ar de quem se sentia um pouco culpada.

- Eu gosto muito dele - admitiu ela. Fez-me pensar que havia mais qualquer coisa na história.

- O que é que aconteceu?

- Eu gostei, Leigh. Mas não o deixei continuar quando começou a ir longe de mais - acrescentou rapidamente. Parei mesmo - realçou ela. - É esse o segredo, saber quando se deve parar. Foi o que a Wendy Cooper me disse e ela deve saber. Já namora há quase um ano com o Randolph Hampton e o Randolph tem quase dezassete! - Ficámos ambas caladas por uns momentos e depois a Jennifer acrescentou: - Mas é difícil parar, Leigh. As coisas acontecem dentro de ti e tu tens de te zangar com o teu próprio corpo. Vais ver quando te acontecer - prometeu ela.

Pensei na maneira como tinha tremido com o toque das mãos do Tony, como tinha experimentado sensações que nunca sentira, apesar de me ter sentido muito embaraçada. Fiquei a pensar se iria ser sempre assim, mesmo quando fizesse essas coisas com o homem que viesse a amar.

A Jennifer tinha-me mesmo surpreendido. De todas as raparigas do "clube especial", sempre achara que ela seria a menos provável de fazer essas coisas com um rapaz. Não há maneira de termos certezas sobre as pessoas, pensei, nem sobre a nossa melhor amiga, quanto mais sobre um pai.

Os Verões eram curtos; porém parecia que acontecia tanta coisa durante o Verão. Tudo na minha vida e à volta dela estava a acontecer tão depressa. Sentia-me como se estivesse numa montanha-russa em andamento.

- Oh, Leigh, é tão bom estar outra vez contigo e voltar a ter alguém com quem falar. Agora odeio a minha mãe e já não posso falar com ela sobre nada que seja importante para mim -

Eu desejei-lhe boa noite e virei-me para tentar dormir. No entanto, as confissões da Jennifer tinham reacendido as minhas recordações do Tony, a tocar-me, a estudar o meu corpo com os seus dedos e a afagar-me como se eu fosse o barro para ele moldar. Como era possível a minha mãe achar que não fazia mal permitir que ele me tocasse daquela maneira? Não lhe passaria pela cabeça que eu fosse sentir as coisas que a Jennifer sentira quando o namorado dela lhe tocara, ou seria que ela achava que eu ainda era muito nova?

Olhei para a Jennifer na cama ao lado, que já estava a dormir e provavelmente a sonhar com o William Matthews. As suas primeiras experiências foram excitantes, o tipo de experiências sobre as quais todas nós, raparigas, tínhamos falado e sonhávamos vir a sentir um dia. Eu também queria ter um namorado, alguém que me amasse e me estimasse, como os homens e as mulheres se amam e se estimam uns aos outros em filmes românticos e em romances. Não queria ficar a pensar no Tony Tatterton a olhar para o meu corpo nu, enquanto eu estivera de pé, obedientemente, à frente dele. Que tipo de momento romântico era esse?

Precisei de todo o meu poder de concentração para afastar aquelas imagens da minha mente, de maneira a conseguir estreitar-me nos braços do sono. Por fim, lá consegui.

Na manhã seguinte, os dormitórios de Winterhaven explodiam de vida e energia. Todas nós estávamos excitadas com o início das aulas e do novo ano lectivo. A água dos chuveiros corria continuamente, os secadores trabalhavam por todo o lado, as raparigas gritavam, pedindo roupas, jóias e fitas emprestadas umas às outras. Era bom estar de volta. Não pensei que fosse ficar tão feliz; ali, porém, em Winterhaven, com toda a gente na tagarelice, com os sinos a tocar e as raparigas em correrias para não chegarem atrasadas, eu ia tentar esquecer os momentos tristes e feios que vivera nos últimos meses.

O "clube especial" reuniu-se, como sempre, a caminho das salas de aulas. A Marie Johnson devia aparecer a qualquer momento e nós estávamos à espera da sua chegada. E toda a gente falava no baile com os rapazes de Allandale. Era a maneira tradicional de iniciar o novo ano lectivo social. Estava tão feliz por poder ir ao baile. Claro que o tópico principal da conversa era a roupa. Toda a gente tinha uma opinião a dar.

Começámos a percorrer o corredor. As outras raparigas acenavam-nos e chamavam-nos dos seus quartos à medida que íamos passando. Durante o dia, todas as portas dos quartos nos dormitórios tinham de ficar abertas, para poderem ser inspeccionadas: verificar se as camas estavam feitas e as roupas arrumadas nos armários.

No momento em que chegámos ao átrio, a Marie entrou de rompante, com o motorista atrás, às voltas com a bagagem dela. Nas orelhas, usava uns brincos tão grandes como cubos de gelo e pintara as pálpebras com sombra. Vestia uma camisola de ténis de algodão branco, uma camisa de algodão a condizer e uma saia azul comprida e leve.

- Jeunes filies! - gritou ela. - Comment allez-vous?

- Marie!

Fomos todas a correr cumprimentá-la. Parecia tão mais velha.

- Nem acredito que voltei para este lugar - disse ela, olhando em volta com uma expressão desgostosa. - E olha para vocês todas. Bando de ratos. - Depois riu-se. - Tive saudades de todas vocês.

Abraçou cada uma de nós à vez.

- Tentei organizar as coisas para chegar ontem à noite, mas não foi possível - prosseguiu ela rapidamente e suspirou. - vou ter de descansar um pouco, mas não se preocupem comigo. Miss Mallory foi avisada e eu estou dispensada de todas as aulas da parte da manhã. Hoje à noite estão todas convidadas para o meu quarto. Tenho presentinhos para toda a gente e vou contar-lhes todos os pormenores do meu Verão em Paris... Principalmente, sobre homens.

- Homens! - gritou a Toby.

- Bem, jovens. Au revoir - disse ela e fez um sinal ao motorista para a seguir.

Caminhei em direcção à sala de aula com as minhas amigas... sem deixar perceber que havia uma tempestade a preparar-se dentro de mim. Sabia que havia sonhos e sofrimentos que nunca poderia partilhar com o "clube especial".

De um momento para o outro, só se falava no baile com os rapazes de Allandale. Uma noite, a Jennifer falou com o William ao telefone e chamou-me para ao pé dela para eu poder cumprimentar o colega de quarto do William, o Joshua. Eu não queria, mas ela acenou e voltou a acenar e implorou até eu ceder. Então, passou-me o auscultador. Eu lancei-lhe um olhar furioso.

- Diz olá - instigou ela.

- Olá - disse eu, e respondeu uma voz profunda e suave.

- Olá. - Houve uma pausa longa antes de ele continuar. - Isto é um bocado embaraçoso. O William queria que eu falasse contigo antes do baile e...

- E a Jennifer queria que eu falasse contigo - disse eu, apercebendo-me de que também estava a ser difícil para ele.

- Sim, eu... eu estou com vontade de te conhecer. Segundo o William, a Jennifer fala muito bem de ti.

- A Jennifer é uma exagerada.

- Oh, não penses assim. De qualquer modo, só queria cumprimentar-te e dizer-te que estou com vontade de te ver no baile - acrescentou ele. Achei que a sua voz soava muito adulta.

- Eu também - respondi e detestei o som da minha voz, pois soara muito infantil. Atirei com o telefone para cima da Jennifer, espetando praticamente o auscultador no peitodela. Pegou nele e despediu-se do William. Mal pousou o auscultador, atirei-me a ela.

- Como é que pudeste fazer uma coisa destas? Foi tão embaraçoso tentar manter uma conversa com alguém que nunca vi. Tenho a certeza de que ele agora não vai querer mais nada comigo. Pareço uma idiota a falar ao telefone.

- Não pareces nada.

- Eu gosto de ver a pessoa quando falo com ela pela primeira vez - queixei-me eu, mas a Jennifer ficou para ali a rir que nem uma tola. Durante o resto da noite recordei as palavras do Joshua. Esperava que ele fisicamente fosse tão interessante como o parecia.

Nesse momento, usar o vestido adequado e ficar o mais bonita possível tornara-se muito importante. Só pensava nisso. Por fim, decidi-me pelo meu vestido de chiffon cor-de-rosa com uma faixa à cintura na parte de trás. Hesitei, por o vestido não ter ombros. Ainda achava que os meus ombros eram muito ossudos; decidi então que levaria também um xaile de renda e que, se me sentisse mal, ficava com ele posto.

O baile ia-se realizar em Winterhaven. Lá em baixo, a comissão encarregada da decoração do espaço havia retirado a maior parte das mesas da enorme sala de jantar. Os tapetes encontravam-se enrolados e postos de lado. Tinham pendurado no tecto bandeirolas coloridas e decorações feitas com papéis festivos e, no lugar onde anteriormente estava pendurado um candeeiro mais sóbrio, havia agora uma enorme bola espelhada que rodava sobre si própria. Nunca teria acreditado que uma sala tão cheia de sol e tão clara durante o dia, pois estava virada para leste e para sul, pudesse ser convertida num aceitável salão de baile.

com a Marie à frente, numa tagarelice interminável sobre os bailes a que tinha ido em Paris, o "clube especial" marchou para o salão. Na noite anterior, a Marie tinha-nos dado um sermão sobre os rapazes de Allandale, realçando o facto de serem todos muito ricos e sofisticados. O conselho dela era que falássemos pouco, deixando a conversa para o rapaz, fingirmo-nos muito impressionadas e pestanejarmos. Até fez uma demonstração da maneira como as mulheres chamadas femmes fatales faziam. Contou que elas eram mulheres bonitas, mas perigosas, que normalmente destruíam os corações dos homens que se apaixonavam por elas. A Marie conhecia bem os rapazes de Allandale e proclamava que alguns deles mereciam que lhes destruíssemos os corações. Eu esperava que o Joshua John Bennington não fosse um desses. Nem a Jennifer nem eu tínhamos contado às outras sobre ele e o William Matthews. Queríamos fazer-lhes uma surpresa com o nosso pequeno segredo.

Quando chegámos, a música já estava a tocar; ouvia-se o Rock Around the Clock. Alguns dos balões tinham-se desprendido e flutuavam no meio da pista de dança. Todos os rapazes de Allandale estavam espalhados pela sala como se fossem uma manada, alguns serviam-se de ponche, outros estavam de pé, fitando-nos com olhos frios e sorrisos serenos, cada um deles a decidir a quem iria pedir para dançar.

Os olhos das outras raparigas do nosso clube saltaram das órbitas quando um rapaz alto e louro, de pele clara e olhos azuis, atravessou rapidamente a sala para cumprimentar a Jennifer.

- Leigh - disse a Jennifer, pegando na mão do William e virando-o para mim. - Este é o William Matthews. William, a Leigh VanVoreen.

- Prazer em conhecer-te - disse ele, estendendo a mão. Achei que tinha uma cara agradável, com feições suaves e meigas, e fiquei muito contente pela Jennifer. Atrás de nós, todas as sócias do "clube especial" cochichavam, feitas malucas.

- Prazer em conhecer-te.

- O meu companheiro de quarto está ali ao pé do ponche, aterrorizado - comentou o William.

Oh, William, não gozes com ele - pediu a Jennifer.

- Nem com a Leigh - acrescentou ela com os olhos muito abertos.

- Senhoras - disse o William Matthews, elevando os braços para nos escoltar a ambas até à taça do ponche.

Peguei-lhe no braço esquerdo, dei uma olhadela para trás para o "clube especial", que estava de boca aberta, e atravessei a pista. Um rapaz alto de cabelo preto, com um rosto muito bronzeado e olhos verdes cor de avelã a brilharem, levantou o olhar. Achei que era muito bonito, com um ar de virilidade calma e profunda que me agitou o coração. Havia ternura no seu olhar, mas a maneira como os seus olhos passaram rapidamente por mim, mirando-me de alto a baixo, excitou-me agradavelmente. Senti uma sensação de formigueiro a percorrer-me a espinha.

- Leigh - disse o William, com um pouco mais de intensidade e de volume que o necessário -, este é o meu colega de quarto, o Joshua John Bennington, o famoso conversador de telefone. - A seguir deu uma gargalhada e a Jennifer deu-lhe um murro no ombro.

O Joshua olhou para o tecto e abanou a cabeça.

- Desculpa o meu colega de quarto por ser tão palhaço

- disse ele e estendeu-me a mão. - Prazer em conhecer-te.

- Igualmente - retribuí eu, e quase mordi o lábio para evitar voltar a pronunciar aquela frase infantil. - Quero dizer...

- A Jen e eu vamos dançar enquanto vocês os dois travam conhecimento - disse o William. - Tem cuidado, Leigh, ele tem uma fila de um quilómetro de mulheres abandonadas no rastro dele. Joshua, agora estás entregue a ti próprio - avisou ele e piscou o olho. Em seguida levou a Jennifer para a pista de dança. Observei-os por uns momentos.

- Ele dança bem - observei eu.

- Quase tudo o que o William faz é bem feito. É um daqueles tipos perfeitos que faz com que nós, os outros, nos sintamos inferiores - comentou o Joshua.

- Oh! - exclamei eu prontamente. - Não vejo nenhuma razão para te sentires inferior. - Até eu fiquei surpreendida com a maneira entusiástica com que tinha dito aquilo. Ele abriu os olhos e o sorriso.

- Não acredites naquela história das mulheres abandonadas. Eu nem sequer assisti a nenhum dos bailes no ano passado - confessou ele.

- Não vieste? Eu também não.

- A sério? - Ele sorriu, com uma expressão mais descontraída nos olhos. - Ponche? - ofereceu ele.

- Sim, por favor.

Depois de me servir um copo, fomo-nos sentar num banco a conversar. Contou-me que o pai dele era advogado de propriedades, que tinha dois irmãos e uma irmã e que vivia à saída de Boston. A família dele tinha uma casa na parte oeste de Palm Beach, na Florida, e uma casa de praia em Cape Cod. Quando começou a falar dele próprio, nunca mais parou. De vez em quando, eu espreitava na direcção do "clube especial". Algumas tinham encontrado parceiros e estavam a dançar. A Toby e a Betsy não tinham arranjado par e fitavam-me com um olhar invejoso.

Ele perguntou-me onde eu vivia e eu contei-lhe sobre Farthy. Já tinha ouvido falar na Fábrica de Brinquedos Tatterton, mas a família dele não tinha nenhum. Quando mencionei o Tony, referi-me a ele como "padrasto"; o Joshua não perguntou pelo meu pai verdadeiro ou porque é que a minha mãe tinha voltado a casar. Achei que foi muito delicado da parte dele.

Dançámos, comemos umas comidas leves e voltámos a dançar. A Jennifer e o William estiveram ao pé de nós a maior parte do tempo. Por fim, quando já não conseguia controlar-se, a Jennifer pediu-me para ir com ela à casa de banho. Ainda a porta não estava fechada, já ela tinha desbobinado uma data de perguntas.

- Gostas dele? Estás a divertir-te? Como é ele?

- Sim, gosto dele. É muito simpático e tãããão educado

- disse eu. - Mas eu adoro isso. Faz-me sentir... como uma senhora.

- Fico tão contente - afirmou a Jennifer, e abraçámo-nos e rimos. No entanto, antes que pudéssemos sair da casa de banho, a Marie, seguida das outras, entrou de rompante. Pôs-se à nossa frente, com as mãos nas ancas.

- Vamos lá, vocês as duas, o que é que está a acontecer aqui? Como é que ninguém do "clube especial" sabia que vocês as duas tinham namorados em Allandale - exigiu ela saber.

- Ele não é o meu namorado - disse eu logo. - Só o conheci hoje à noite.

A Marie virou-se para a Jennifer.

- Eu conheci o William no fim do Verão, mas ele não me pediu para namorar com ele nem nada - replicou ela. A Marie mordeu os cantos da boca.

- Vocês deviam-nos ter contado que tinham encontros marcados - avisou ela. - Os membros do "clube especial" não escondem coisas destas umas das outras. Confiamos umas nas outras com o coração. É isso que nos torna especiais - acrescentou ela, com um olhar furioso.

- Mas...

- Sentimo-nos todas umas idiotas, sem saber o que se passava. É uma espécie de traição da confiança - prosseguiu ela, com os braços cruzados por cima do peito.

- Isso é uma estupidez, Marie. Nós já te dissemos...

- Não é estupidez. - Virou-se para as outras. - Há mais alguém aqui que ache isto uma estupidez? - Tinham todas a mesma expressão, igual à da Marie: zangadas, invejosas, rancorosas. - Deviam-nos ter contado - repetiu ela.

- Mas tu és mesmo assim, não gostas de partilhar. Também não convidaste mais ninguém para a tua preciosa propriedade a não ser a Jennifer, não foi? Achas que és melhor do que nós.

- Não acho nada. Já te tinha dito...

- Divirtam-se - disse, irritada, e virou as costas. As outras seguiram atrás da Marie, como se fizessem parte da cauda dela, deixando atrás de si um intenso rastro de inveja.

- Oh, Leigh, desculpa - exclamou a Jennifer. - Meti-te em sarilhos com as outras.

- Eu não estou metida em nenhum sarilho, Jen. Elas estão é com inveja, é só isso. Esquece-as. Vamos fazer exactamente o que a Marie disse. Vamo-nos divertir. Além disso, a culpa é tanto minha como tua. Eu também não lhes contei nada.

A Jennifer assentiu, mas percebi que tinha ficado muito preocupada.

- Anda - insisti eu. - Esquece. - Peguei-lhe na mão e levei-a para fora da casa de banho.

O resto da noite foi um martírio para nós. As outras passaram o tempo todo a lançar-nos olhares rancorosos. Nenhuma delas falava connosco e, antes de o baile acabar, andavam a segredar coisas sobre nós aos ouvidos das outras raparigas e a rir alto.

O Joshua sentiu que estava a acontecer alguma coisa; por isso, contei-lhe.

- É típico de mim - disse ele -, causar problemas a outras pessoas. - Fiquei surpreendida pela rapidez com que ele se culpabilizava.

- Oh, não, a culpa não é tua e elas discutiram connosco e zangaram-se por uma razão muito estúpida. Elas não são nossas amigas de verdade. Se não, não faziam o que fizeram.

- Lancei-lhes um olhar para o outro lado da pista de dança.

- Além disso - prossegui eu -, prefiro que tu sejas meu amigo do que de qualquer uma delas, do chamado "clube especial".

- A sério? - Os olhos do Joshua iluminaram-se.

- Sim. Espero que me telefones e me venhas visitar sempre que tenhas uma oportunidade. - Estava parva com o meu comportamento descarado em relação a ele, mas estava furiosa e gostava mesmo dele.

- Oh, hei-de vir, hei-de vir. - O Joshua irradiava alegria.

Fomos dançar outra vez e mais uma vez e, quando chegou à parte das músicas calmas, ele estreitou-me com firmeza contra o seu corpo e os seus lábios roçaram a minha testa. Levantei os olhos para ele por um momento, e ele, sem desviar o olhar, fixou os seus olhos nos meus. Devíamos parecer muito românticos, pois quando olhei para algumas das outras raparigas que não pertenciam ao "clube especial", vi-as a olhar para o Joshua e para mim com uma expressão distante e sonhadora nos olhos, e suspiros nos lábios.

Miss Mallory anunciou o fim do baile e aconselhou a comissão de limpeza a apresentar-se ao trabalho bem cedo na manhã seguinte. As festas futuras, avisou ela, dependiam do bom trabalho delas.

Os rapazes começaram a sair. A Jennifer e eu acompanhámos o William e o Joshua à saída, cada uma de nós de mão dada com o nosso par. Mal saímos do edifício, o William puxou a Jennifer para um canto escuro para lhe dar um beijo de despedida. O Joshua e eu observámos a cena. Depois, virámo-nos um para o outro. Eu não conseguia controlar os meus sentimentos. Queria que ele me beijasse também. Sem me dar conta, estava a apertar-lhe a mão. Ele ficou um pouco atrapalhado e depois levou-me para outro canto escuro, onde me beijou ternamente nos lábios.

- Boa noite, Leigh. Diverti-me imenso - disse ele.

- Eu também. Boa noite.

Foi ter com o William e foram-se embora com os outros. A Jennifer e eu acenámos até eles desaparecerem. Depois, olhámos uma para a outra e desatámos a rir. Abraçámo-nos, demos as mãos e voltámos a entrar no dormitório.

Quando chegámos ao nosso quarto, encontramos um bilhete pregado na nossa porta, que dizia: MANTENHAM os vossos SEGREDOS E VOCÊS PRÓPRIAS AFASTADOS DE NÓS.

Eu arranquei o bilhete da porta e rasguei-o. A Jennifer foi para a cama dela sentar-se e lamentar-se mas, logo que o fez, saltou com um grito.

- O que foi?

- Olha!

As nossas camas estavam encharcadas. Pelo cheiro, parecia que elas tinham tirado água das sanitas e deitado por cima das camas.

- Uh! - exclamou a Jennifer. Começou a ficar agoniada e foi a correr para a casa de banho.

Quando lhe confessara que não percebia os homens, tinha-me enganado redondamente. Eu não compreendia ninguém, fosse homem ou mulher. Crueldade, egoísmo, inveja, maldade de muitas formas diferentes, presos como uma borbulha sob o coração de toda a gente, provavelmente até do meu próprio coração. Nesse momento, desejava poder castigar cada uma delas, do "clube especial", espetando-lhes pregos e alfinetes.

- Comecei a tirar a roupa da cama. íamos ter de virar os colchões ao contrário.

A Jennifer saiu da casa de banho com lágrimas a escorrerem pela cara. Eu sorri.

- Como é que podes estar feliz depois disto? - perguntou ela.

- Eu não estou a pensar nisso. Estou a pensar nos olhos verdes cor de avelã do Joshua John Bennington - retorqui. Ela ficou uns instantes a olhar para mim, espantada, e depois sorriu também. E então desatámos as duas a rir.

Rimos tão alto e com tanta histeria que algumas das outras raparigas saíram do quarto para ver o que se passava.

- NÃO É NADA - gritei eu do corredor. - É QUE NÓS DIVERTIMO-NOS IMENSO HOJE À NOITE.

Ouvimos atirarem com as portas ao longo do corredor.

A Jennifer e eu olhámos uma para a outra e voltámos a rir. Rimo-nos com tanta vontade e durante tanto tempo que ficámos cansadas de mais para fazermos as camas decentemente, e adormecemos nos colchões com a cama por fazer, os pés ainda a mexer ao som da música e os olhos ainda cheios das luzes do salão de baile.

Aquele ano lectivo foi diferente para nós, uma vez que já não fazíamos parte do "clube especial". Algumas delas, como a Wendy e a Carla, não conseguiram deixar de voltar a ser simpáticas, apesar de nunca sermos convidadas para as festas e para os encontros delas. Não foi tão problemático como receávamos, pois andávamos muito entretidas com o William e o Joshua.

Sempre que eu passava o fim-de-semana em Winterhaven, nós os quatro arranjávamos maneira de nos encontrarmos e fazermos alguma coisa, nem que fosse ir estudar para a biblioteca, íamos ao cinema e fazíamos passeios pelas docas. Quando eu tinha de passar os fins-de-semana em casa, o Joshua telefonava-me duas vezes por dia.

Contei à mamã sobre ele, mas ela não me pareceu muito interessada. Estava mais preocupada com ela própria, pois não conseguia perder dois quilos, independentemente da dieta que iniciara. Até tinha contratado uma dietista para ajudar o Rye a preparar a comida - o que ele não gostou nada -, mas quando isso não lhe trouxe os resultados esperados com a rapidez desejada, a mamã despediu-a.

O Tony andava muito ocupado, pois os negócios estavam a prosperar a muitos níveis. Quando lhe perguntei pela boneca-retrato, ele respondeu que estava quase pronta, mas que tinha decidido esperar até à época do Natal para apresentá-la, pois seria um excelente produto novo para as suas lojas. A minha mãe contou-me que ele estava a guardar a boneca, em segredo, para me dar pelos anos.

As alergias do Troy melhoraram e o Tony contratou um professor particular a tempo inteiro para ele, visto ser muito precoce. O Tony tinha a certeza de que ele ia avançar quando finalmente entrasse para a escola, uma vez que já lia e escrevia.

Um fim-de-semana no início de Outubro, apanhei a mamã num dia em que estava mais bem-disposta. Tinha ido a um jantar no qual se encontrava também um editor da Vogue que lhe tinha dito que ela era suficientemente bonita para aparecer na capa da revista. O editor até ia mandar um fotógrafo lá a casa para tirar umas amostras de fotografias. Aproveitei enquanto ela estava tão bem-humorada e perguntei-lhe se podia dar uma festa de anos e convidar a Jennifer, o William e o Joshua, e umas raparigas com quem tinha travado amizade desde que fora posta de parte pelo "clube especial". Ela concordou e até se ocupou dos preparativos. Os meus anos eram numa segunda-feira, mas decidimos fazer a festa no domingo anterior.

Nesse sábado à noite, o Tony levou-nos a jantar fora para fazermos a nossa celebração particular. Também permitiram que o Troy fosse. Passámos uns momentos muito bons.

O Tony tinha mandado preparar no restaurante um bolo de aniversário especial para mim e foi o cozinheiro-chefe em pessoa que o trouxe à mesa. Os empregados juntaram-se à volta da mesa e cantaram o Parabéns a Você. A mamã e o Tony beijaram-me e depois o pequeno Troy deu-me um presente, do qual estava muito orgulhoso, pois tinha-o escolhido sozinho. Era um medalhão de ouro. E tinha também posto a fotografia dele lá dentro. Na parte de trás mandara gravar: "Para a minha irmã Leigh."

- Oh, que amor - exclamei eu, abraçando-o. - Adoro isto, Troy. vou tentar usá-lo sempre - disse-lhe, e ele pôs um ar muito orgulhoso e importante, no seu blusão desportivo e gravata.

Mais tarde, nessa noite, ainda não tinha passado uma hora desde que chegáramos do restaurante, ouvi alguém bater à minha porta. Era o Tony. Ficou ali de pé, com uma caixa nas mãos, embrulhada em papel cor-de-rosa e azul.

- Quis fazer isto em privado - explicou ele, capturando com os seus olhos azuis os meus, não os desviando por um longo momento. - É demasiado especial para nós partilharmos com mais alguém ao princípio.

- Obrigada, Tony. - Peguei na caixa e sentei-me no canapé para a desembrulhar e ele ficou ali de pé, com as mãos atrás das costas, a observar-me. Sentia os meus dedos desajeitados, pois estava muito excitada. Não deixei que ele percebesse que eu sabia o que a caixa continha, por causa de a mamã mo ter dito.

Levantei a tampa e deparei com a minha boneca-retrato. Achei que era uma verdadeira obra de arte, a cara da boneca tão igual à minha; era como se estivesse a olhar para um espelho que transformava numa miniatura a pessoa que se contemplava nele. A expressão da cara da boneca era amorosa, um sorriso requintado, uns olhos tão brilhantes e vivos que até me dava uma sensação estranha de poder falar comigo.

- O cabelo dela parece tão real - disse eu, num sussurro.

- É cabelo verdadeiro - replicou o Tony, formando um sorriso com os lábios. - É o teu cabelo.

- O quê?

- Lembras-te quando a Jillian te levou ao cabeleireiro dela há dois meses? Eu estava combinado com ele. Guardou cada fio de cabelo que te cortou, deu-mo e eu mandei fazer isto.

- A sério? - Estava impressionada.

A boneca estava vestida com um vestido muito parecido com o que eu tinha vestido no primeiro baile da escola. Cada pedaço da boneca era autêntico, até a minúscula pulseira de ouro e o minúsculo medalhão, uma réplica exacta da que o Troy me tinha oferecido.

- Se olhares para a parte de trás do medalhão com uma lupa vais ver que diz: "com amor, Tony."

Eu virei-o e vi as palavras pequeninas. "Que lindo", pensei.

Tudo na boneca era lindo. Claro que o corpo dela continuava muito mais desenvolvido do que o meu, mas lembrei-me do que a mamã tinha dito sobre o Tony ter combinado nós as duas.

Admirei o trabalho de pormenor nos dedos e nas mãos e tive de virar as palmas das minhas próprias mãos para comparar. Tinha esculpido as mesmas linhas nas palmas das mãos da boneca. Tinha vontade de despi-la e procurar outras coisas, mas não o quis fazer à frente dele.

- É linda, Tony, e é realmente uma obra de arte, tal como disse que ia ser.

- Fico feliz por gostares. Estão a ser feitas cópias para as montras, mas esta, claro, é a original e será tua para sempre. Parabéns, Leigh - disse ele, inclinando-se para me beijar. Eu virei a cara, mas ele deu-me um beijo rápido nos lábios. - Pronto - disse, pondo-se em pé. - Tenho umas coisas para fazer no escritório. Até logo.

- Obrigada, Tony.

A boneca estava nos meus braços quando ele saiu. Em seguida, fui a correr para o meu quarto, fechando a porta atrás de mim. Olhei para o corpo da boneca e soltei um suspiro de alívio. Apesar de o peito ser nítido e até ter aquela marca de nascença por baixo dos seios, ele tinha feito o que eu lhe pedira aos órgãos genitais. Alisei o vestido e saí para mostrar a boneca à mamã.

- Oh, é tão linda, Leigh! - exclamou ela, virando-a e revirando-a nas suas mãos. - E eu sabia que ia ser. O Tony estava tão decidido. Vai ser o grande sucesso da época de Natal: bonecas-retratos da Fábrica Tatterton. Gosto do som, não gostas?

"Um dia talvez lhe peça para fazer uma a partir de mim

- disse ela e suspirou. - Apesar de nunca na vida ser capaz de ficar sentada e sossegada como tu conseguiste. Não tenho paciência para essas coisas. Terá que fazer a boneca de memória ou a partir de fotografias. Logo que perder o excesso de peso, é isso. Não achas que é uma boa ideia, Leigh?

- Sim, mamã - disse eu e deixei-a sonhar com sessões de fotografias.

Pus a boneca ao meu lado na cama e olhei para os olhos dela. Pestanejava como se estivesse mesmo viva e conhecesse alguns segredos profundos, talvez o segredo do meu futuro.

- Gostava tanto que, para além de seres bonita, pudesses falar. Assim serias o meu anjo-da-guarda.

Que nome excelente para a boneca, pensei. Angel.

- É como te vou chamar a partir de agora - disse-lhe eu. Achei que o sorriso dela se abrira, mas claro que se tratava apenas da minha imaginação selvagem, alimentada por esperanças e sonhos.

Aquele aniversário estava a ser tão maravilhoso. Se ao menos o papá estivesse em casa e não se tivesse voltado a casar com outra família...

Foi como se o papá me tivesse ouvido do outro lado do país. O telefone tocou e era ele, a telefonar de São Francisco.

- Queria ter a certeza de que te apanhava, princesa disse ele. - Amanhã vou partir muito cedo. O meu presente chegará aí de manhã. Espero que gostes. A Mildred escolheu-o - acrescentou ele. Fechei os olhos, tentando ignorar aquelas últimas palavras.

- Para onde vai desta vez, papá? - perguntei, sem conseguir esconder o tom crítico e infeliz.

- Estamos a preparar um cruzeiro para as ilhas do Havai. O mercado na costa oeste é receptivo. A Mildred fez imensas pesquisas nesse sentido. Está a tornar-se inestimavelmente valiosa. Oh, a Mildred está a pedir para eu te desejar feliz aniversário em nome dela.

- Diga-lhe: "Obrigada." Volta quando? - perguntei eu, a pensar nas nossas tentativas e planos para passarmos juntos as férias de Natal.

- Receio bem que vá demorar alguns meses. Tem de se abrir sucursais, trabalhar com agências de viagens e cadeias de hotéis, contratar empregados. Mas logo que regressar planearei outras férias para nós todos. Vais fazer uma festa de anos?

- Sim, papá. - Estive quase a dizer: "Gostava que pudesses vir." Porém, retraí-me. Porquê desejar uma coisa que nunca poderia realizar-se?

1 Angel, em português, significa "anjo". (N. da T.)

- Bem, no próximo ano estarei cá nos teus anos. É uma promessa que vou poder cumprir, pois a Mildred decidiu que devíamos planear as nossas actividades com um ano de avanço. Está tudo bem? - perguntou ele, quando viu que eu não respondia.

- Sim, papá.

- Então, parabéns, princesa. vou pensar em ti durante todo o dia de amanhã e mandar-te-ei postais. Boa noite.

- Boa noite, papá - disse eu. Ouvi-o desligar e o clique que produziu viajou milhares de quilómetros, acabando por cair no meu ouvido como uma lágrima de chumbo.

Senti o calor das minhas próprias lágrimas e levei o meu dedo à face. A ponta do dedo brilhava. Levei-a à cara de Angel e toquei na sua face.

Tinha a certeza de que ela também ia querer partilhar as minhas lágrimas.

 

NA PEQUENA CASA DE PEDRA

A mamã excedeu-se com a minha festa de anos. Estava decidida a fazer tudo o que estivesse ao alcance dela para impressionar todos os meus amigos de Winterhaven, apesar de eles não precisarem de nada em especial para ficarem excitados. Quando foram conduzidos através dos colossais arcos e se aproximaram de Farthy, já tinham ficado suficientemente impressionados. A Jennifer e eu decidimos que eu devia convidar a Wendy e a Carla, uma vez que elas tinham continuado a ser simpáticas connosco mesmo depois de a Marie e as outras nos terem excluído. Claro que isso ainda aumentou mais a distância e o muro que havia entre nós e as outras, mas nem a Jennifer nem eu nos importávamos.

Era um lindo domingo de Outono, um pouco mais quente do que o normal. A relva ainda estava bastante verde e espessa, assim como as sebes com as cores de Outono como pano de fundo, o céu azul-cristalino salpicado aqui e ali por nuvens de algodão doce, o dia prometia vir a ser maravilhoso. Eu não fazia ideia de que a minha festa ia ser tão elaborada. Ao fim da manhã, apareceu um conjunto de cinco elementos e instalou-se no salão de baile. O pessoal começou a carregar para dentro da sala compridas mesas para o bufete e mesas para os convidados. Caviar como um dos aperitivos, taças com ponche em prata maciça, decoração concebida por um decorador de Boston, músicos profissionais, lembranças da ocasião para todos os meus convidados, empregados e empregadas por todo o lado, e a passagem de um filme no pequeno auditório, com isto tudo, a minha festa foi verdadeiramente esmagadora e bastante diferente de qualquer festa de anos que alguma vez tive quando vivíamos todos juntos em Boston. Até o Tony foi apanhado de surpresa.

O Troy estava tão excitado que fez o possível e o impossível para tentar escapar à sesta da manhã. Quando se viu sob a ameaça de não poder assistir à festa, concordou, por fim, em ir descansar. A mamã vestiu-se como se fosse uma festa para adultos. Usou os seus valiosos diamantes, pôs um dos seus vestidos pretos mais caros, de design exclusivo, e passou a maior parte da manhã a arranjar o cabelo e a maquilhar-se. Quando os meus convidados chegaram, ela já havia ocupado o seu lugar no enorme átrio de entrada para os cumprimentar. Depois de a cumprimentarem, ou o Troy ou eu íamos acompanhá-los até ao grandioso salão de baile.

Quando o Joshua chegou, dei-lhe a mão para o apresentar à minha mãe e tornar a ocasião importante. O meu coração endureceu quando percebi que ela nem sequer notou que eu o estava a tratar de um modo especial, e então apercebi-me de que ela nunca ouvira uma palavra do que eu lhe contara sobre ele e eu.

- Este é o Joshua Bennington - repeti eu, quando vi que ela o tinha cumprimentado rapidamente e se virara logo em seguida para dar uma ordem a uma das suas empregadas.

- Eu conheço a sua família, Joshua?

- Parece-me que não, Mistress Tatterton - respondeu o Joshua educadamente. Eu suspirei, desapontada, e levei o Joshua a dar uma volta pela mansão, mostrando-lhe a sala de música com os murais, o piano de cauda, as lareiras gigantes e depois esgueirei-me com ele para ver a minha suite.

- É linda - comentou o Joshua. - Nunca estive numa casa assim. É um... um castelo.

- É demasiado grande para ser uma casa - disse eu. Ele assentiu e depois o olhar dele deteve-se quando passou pela Angel. Eu tinha-a encostado a uma almofada que estava sobre a minha cama.

- O que é isto?

- É a Angel. Angel, apresento-te o Joshua Bennington. Lembras-te dele? Tenho falado bastante dele - disse eu. Os olhos do Joshua aumentaram e depois riu-se. Aproximou-se da boneca.

- É igualzinha a ti.

- Sou eu - expliquei. - É o mais recente brinquedo da Fábrica Tatterton, uma boneca-retrato. Eu posei para a primeira.

- É linda. Como tu, Leigh - disse ele e corou com as suas próprias palavras. Era tão bom ouvir alguém, que não fosse o meu pai e o Tony, dizer estas coisas, pensei.

- Obrigada, Joshua. Mais tarde, se te apetecer, tu e eu podemos escapar-nos dos outros e eu mostro-te o labirinto inglês e a pequena casa de pedra onde posei.

- Sim, gostava - disse ele.

Peguei na mão dele e conduzi-o de volta ao andar de baixo, onde a minha festa já estava a decorrer.

O conjunto era muito bom, e tocava músicas actuais. Havia muita comida, e toda a gente achou que a lembrança que a minha mãe tinha desenhado estava muito bem imaginada. Tinha mandado fazer um globo dentro de um cubo de vidro e mandara gravar no cubo: "Leigh, ela é a maior." Aquela estravagância toda embaraçou-me, mas a mamã não parava, saboreando o papel de anfitriã, fazendo perguntas a toda a gente sobre as suas famílias, apresentando o Tony e provocando um grande alarido à volta dos brinquedos Tatterton. Queria certificar-se de que toda a gente levava para casa histórias boas sobre Farthy e a Jillian Tatterton. De alguma maneira, fazia-me lembrar como ela costumava ser quando começara a fazer os cruzeiros do papá e se misturava com os passageiros.

Finalmente anunciou que o filme ia passar na nossa chamada "sala de cinema privativa". Os meus amigos nem acreditavam no que tinham acabado de ouvir. Não sei como, ela tinha arranjado um dos filmes mais recentes, antes mesmo de ser exibido nas salas de cinema.

- Oh, Leigh - exclamou a Jennifer precipitando-se com o William para ao pé de mim -, nunca esquecerei esta festa de anos.

- Nem eu! - exclamou o William.

A mamã mandou o Tony conduzir toda a gente para o auditório. Eu agarrei na mão do Joshua e fiz-lhe sinal para ficarmos os dois sentados numa das filas de trás.

- Quando o filme começar - segredei eu -, saímos sorrateiramente lá para fora para eu te mostrar o labirinto e a casa de pedra. A não ser que queiras ficar.

- Oh, não. Quero ir contigo.

- Óptimo.

A sala de cinema tinha a mesma configuração de uma sala de cinema normal, com assentos almofadados macios e um grande ecrã. Havia duas portas grandes na parte de trás. A mamã até tinha posto as empregadas a andar para a frente e para trás entre as coxias a distribuírem sacos de pipocas. O Joshua e eu sentámo-nos na coxia da última fila. A Jennifer e o William estavam ao pé de nós. Eu já tinha contado à Jennifer a minha intenção de sair à socapa com o Joshua durante um bocado.

Apagaram as luzes e o filme começou. Esperámos uns bons quinze minutos de filme antes de eu dar um toque ao Joshua e sairmos os dois sorrateiramente. Não via o Tony em lado nenhum mas, no fim do longo corredor, ainda podia ouvir-se a mamã a rir na sala de música. Estava a falar com alguém ao telefone. Conduzi o Joshua por uma saída lateral. Deparámo-nos com a claridade da luz do dia e atravessámos rapidamente o jardim em direcção ao labirinto.

- O que é isto?

- Um labirinto inglês. É muito fácil perdermo-nos aqui dentro, mas não te preocupes que eu sei o caminho. Agora até me diverte.

Ele deteve-se, com os olhos maravilhados, quando entrámos no labirinto.

- Tens a certeza de que sabes sair se formos mais para o fundo? - perguntou o Joshua, um pouco céptico. Eu ri-me.

- Tenho. Não te preocupes. Além de que, era assim tão horrível para ti perderes-te na minha companhia? - provoquei-o eu.

- Oh, não, eu...

Ri-me e continuei em frente. O Joshua agarrava a minha mão com firmeza à medida que eu o conduzia, percorrendo os corredores, dando as curvas, virando à direita aqui e à esquerda ali, com destreza e segurança, até sairmos do lado oposto e nos depararmos com a pequena casa de pedra.

- Não parece uma casa dos livros de contos? - perguntei eu, parando para respirar aquilo tudo: o dia quente e bonito, a pequena vedação amorosa e o viçoso relvado verde, tão bonitos, e a própria casa, que parecia terem saído directamente das páginas de um livro de histórias para crianças.

- É tão especial.

- Sim, é verdade - disse o Joshua com suavidade e os olhos plenos de excitação.

- Anda. - Voltei a dar-lhe a mão e conduzi-o até ao portão principal. À medida que nos aproximávamos, eu ia ficando mais surpreendida por observar que as janelas ainda tinham as persianas corridas.

- Vamos dar um pulinho até lá dentro e depois voltamos para trás antes que alguém dê pela nossa falta. As primeiras vezes que via esta casa - expliquei eu -, costumava sonhar vir viver para cá com o homem que viesse a amar, nem que fosse durante os fins-de-semana. Viríamos para cá para fugir do mundo e estarmos completamente sozinhos. - Lancei uma olhadela ao Joshua para ver se ele sentia a mesma coisa que eu. Ele estava a fitar a casa; depois olhou para mim e fez um sorriso caloroso.

Subimos o curto caminho até à porta principal. Quando entrei, fiquei surpreendida por ver que o Tony não tinha retirado nada, nem os materiais, nem as provisões. O estúdio ainda estava montado. Mas já tinha passado tanto tempo desde que acabáramos o nosso trabalho ali, pensei eu. Porque não o desmontara ele?

- Oh - exclamei eu, desapontada -, pensei que já tinha voltado tudo ao que era antes.

O Joshua entrou devagar atrás de mim. Dirigi-me imediatamente para um cavalete. Tinha uma tela, um quadro de mim deitada no sofá, nua. Não fiquei muito tempo a olhar para ele, pois incomodava-me, mas apercebi-me de que havia qualquer coisa de diferente nesse quadro. Não o reconheci como um dos quadros que o Tony havia pintado enquanto eu posara ali; reparei que a minha mãe, que invadira as imagens que o Tony desenhara do meu corpo, predominava também na cara desse retrato. Era autenticamente uma mistura de nós as duas.

- Espera - pedi eu, quando o Joshua começou a aproximar-se. - Não quero que vejas isto.

- O quê? porquê? O que é isso?

- É uma coisa... pessoal - respondi eu e tapei rapidamente o quadro com um lençol branco. - Desculpa.

- Não faz mal - retorquiu ele prontamente, apesar de os seus olhos terem aumentado, por se sentir confuso.

Olhei em volta rapidamente para me certificar de que não havia mais nenhum indício do que se passara ali dentro. Vi algumas telas em cartão à direita, mas estavam empilhadas de maneira a não deixarem transparecer o que continham. Soltando um suspiro de alívio, sentei-me no sofá.

- Então isto foi um estúdio de arte - observou o Joshua olhando à volta. - E foi o próprio Tony Tatterton que criou a boneca-retrato?

- Sim. Pintou-a e esculpiu-a aqui dentro.

- Que homem tão talentoso. - O Joshua estava sentado ao meu lado. - Estou a ver como este sítio deve ser amoroso e muito acolhedor - concordou ele, assentindo. - Um esconderijo.

- Adorava vir aqui. Ainda adoro. Só gostava que o Tony já tivesse desmontado e deixado tudo como estava antes. Não percebo porque é que ainda não o fez.

- Talvez queira fazer mais trabalhos aqui - sugeriu o Joshua. A ideia nunca me ocorrera. Talvez ele conseguisse convencer a minha mãe a vir aqui posar ou quem sabe, pintasse outra rapariga da minha idade.

- Quem sabe. Mas eu gostava de vê-la como era antes... A minha casa a fingir...

- Ainda pode ser a tua casa a fingir - disse o Joshua ternamente. - Tu podes sempre fingir que uma coisa é outra coisa.

- Podemos fingir que somos duas pessoas loucamente apaixonadas que vivem aqui aos fins-de-semana? - perguntei-lhe eu.

- Não temos de fingir - replicou ele, e o desejo escondido por detrás dos seus olhos verdes emergiu à superfície.

Só nos beijáramos meia dúzia de vezes e sempre de fugida, quando nos despedíamos. Mas os nossos lábios nunca se tinham detido muito tempo uns sobre os outros e nunca nos havíamos estreitado nos braços um do outro o tempo suficiente para nos beijarmos mais do que uma vez. O Joshua chegou mais perto e eu também. Nesse momento, os nossos lábios tocaram-se e pôs as suas mãos nos meus ombros para me puxar para si. Eu agarrei-me à cintura dele.

- Feliz aniversário, Leigh - segredou-me ele.

Voltou a beijar-me, desta vez durante mais tempo. Escapou-se-me um gemido dos lábios e o meu corpo estava excitado até à ponta dos pés. Pensei nas descrições que a Jennifer fizera dos seus momentos de amor com o William, como ele a beijava e lhe tocava. Era diferente quando uma pessoa gosta muito de nós e nós gostamos muito dela e deixamos que ela toque em nós, pensei eu, lembrando-me do Tony a tocar em mim nessa mesma sala. Tinha de ser diferente e tinha de nos proporcionar sensações maravilhosas, diferentes e mais fortes.

O Joshua recuou, inseguro por me ter beijado durante tanto tempo e com tanta intensidade. Conseguia ler nos seus olhos que se sentia indeciso e hesitante. Era tão doce e tão tímido, mas, por detrás dessa timidez, encontrava-se uma paixão adormecida. Podia senti-la, pela maneira como os seus lábios tremiam contra os meus e pelo modo como os seus dedos deslizaram pelos meus ombros até tocarem no meu pescoço.

- Eu gosto de ti, Leigh. Nunca gostei tanto de nenhuma rapariga como gosto de ti.

- Eu também gosto de ti, Joshua.

Avançou para mim e eu fechei os olhos. Enquanto me beijava, os seus dedos deslizavam pelos meus braços. Eu tremia ante a expectativa. Estava tão próximo de tocar nos meus seios. Quando começou a retroceder, apercebi-me de que não o faria. Era demasiado inseguro; mas eu tinha de conhecer a sensação, tinha de saber se seria diferente com ele.

Torci os meus ombros e dei-lhe um toque na mão com o meu antebraço, instigando-o. Ele pareceu confuso por uns momentos; depois, levou os dedos ao meu peito, rodeando com eles o meu seio, enquanto a palma da sua mão apenas acariciava os mamilos. Era uma sensação verdadeiramente diferente, pois eu desejava as carícias dele. A excitação subia de intensidade, viajava a uma velocidade eléctrica até ao meu baixo-ventre, onde os dedos do Tony se haviam detido durante tanto tempo e a partir do qual começara a traçar as linhas das minhas coxas, continuando a tocar-me. Exactamente nesse sítio!, pensei eu. Não conseguia parar de pensar naquilo, apesar de querer muito pensar no Joshua. Invadia a minha cabeça, arruinava os meus momentos de amor. Suspirei, desapontada.

O Joshua pensou que eu tinha ficado desapontada com elee afastou rapidamente a mão.

- Não - gritei eu, pegando-lhe no pulso. - Não estou zangada contigo.

- Leigh - segredou ele. Eu vi um desejo tal nos seus olhos, um olhar tão profundo e tão intenso que me deu vontade de agarrá-lo e de beijá-lo. Conduzi a sua mão de novo para o meu peito, mas no momento em que o fiz, a porta abriu-se de rompante. Ambos demos um salto.

Era o Tony!

O QUE É QUE ESTÃO A FAZER AQUI? - griTOU ele. E

NESSE SOFÁ! - acrescentou, como se o sofá fosse uma peça de mobiliário especial. - PORQUE É QUE o TROUXESTE AQUI?

PORQUE É QUE NÃO ESTÁS com OS TEUS CONVIDADOS A VER O FILME?

O Joshua levantou-se rapidamente.

- Nós...

- Eu só vim dar um passeio pelo labirinto com o Joshua

- interrompi eu -, e decidi mostrar-lhe esta casa.

O Tony olhou para ele e depois para mim.

- E o que é que lhe estavas a mostrar nesse sofá? perguntou, estreitando os olhos de tão zangado que estava. Parecia furioso.

- Nada - disse eu, com o coração a bater com força. Ele fitou-me por um momento e depois descontraiu-se.

- Não está certo teres deixado a tua própria festa prosseguiu, com mais calma, mas ainda a arfar. – Ninguém percebeu, nem sequer a tua mãe, mas eu aconselho-te a voltares imediatamente - acrescentou ele, a olhar severamente para o Joshua.

- Sim, senhor - disse o Joshua. Parecia aterrorizado. Voltou-se para mim e eu comecei a contornar o sofá. O Tony recuou enquanto nós nos dirigíamos para a porta.

- Leigh - chamou ele, segurando no meu braço para me reter. Eu levantei os olhos para ele. - Não vou contar o que aconteceu à tua mãe, mas mais tarde quero ter uma conversa contigo.

- Sim, Tony - acedi eu e corri para junto do Joshua. Sem falarmos, apressámos o passo em direcção ao labirinto.

- Desculpa se te arranjei problemas - disse o Joshua.

- Não te preocupes. Não é nada. Ele só está... a tentar ser um pai para mim - expliquei eu. - Ele acha que tem de ser um pai para mim.

O Joshua assentiu silenciosamente, mas ficou muito transtornado. Atravessámos o labirinto a correr e penetrámos em Farthy pela porta lateral. Em seguida, esgueirámo-nos sorrateiramente para a sala de cinema. A Jennifer e o William beijavam-se no escuro. Pararam para olhar para nós, quando nos sentámos.

- Divertiste-te, Romeu? - perguntou o William ao Joshua. Este não respondeu. Enterrou-se na cadeira até o filme acabar e as luzes se acenderem.

Quando o filme acabou, os meus convidados começaram a sair. Os carros deles chegaram, alguns conduzidos por motoristas. Eu fiquei à porta, a agradecer-lhes por terem vindo e pelos seus presentes. O Joshua, o William e a Jennifer foram os últimos a sair.

- Espero que corra tudo bem com o teu padrasto - segredou-me o Joshua.

- Não te preocupes. vou ver se consigo telefonar-te mais tarde - prometi eu.

A Jennifer e eu abraçámo-nos e eles partiram. Mesmo com todos os empregados a andarem de um lado para o outro, atarefados a limparem Farthy e a desmontarem cadeiras e mesas, sentia-se um profundo vazio na mansão. A enfermeira do Troy tinha-o convencido a dormir uma sesta; a minha mãe estava lá em cima no seu quarto a descansar do que ela chamara "prova física" e, tanto quanto sabia, o Tony ainda não regressara da casa de pedra. Perguntei a mim própria o que estaria ele a fazer agora e lembrei-me do quadro que tinha descoberto e tapado no cavalete. Porque estaria ele ainda a pintar esses quadros? Estaria a programar uma boneca diferente?

- Desculpe-me, menina - disse o Curtis, aproximando-se -, mas o serviço de entregas trouxe isto, há pouco mais de uma hora. - Entregou-me um embrulho. Era a minha prenda de anos do papá e da Mildred.

- Obrigada, Curtis - disse. Decidi ir para o meu quarto antes de a abrir.

Quando lá cheguei, sentei-me no canapé da sala de estar e desembrulhei a caixa. Tirei lá de dentro uma bailarina de cerâmica, pintada à mão. Era uma caixinha-de-música. Depois de lhe dar corda e pousá-la em cima da mesa, a bailarina começou a andar à volta, ao som de um excerto de O Quebra-Nozes.

O cartão de parabéns do papá dizia: "A Mildred e eu encontrámos uma prenda bonita para uma bonita jovem. Parabéns."

-Recostei-me e observei a boneca a dançar, enquanto me vinham à lembrança as prendas e os dias de aniversário dos anos anteriores, principalmente o último, quando o papá me oferecera este diário. Era tão feliz nessa altura, estava tão longe de imaginar a tempestade de infelicidade e de tristeza que viria a cair sobre nós em forma de torrente de chuva e de lágrimas.

De repente, o meu devaneio foi interrompido pela presença do Tony à porta da minha sala de estar. Tive a impressão de que ele já estaria ali há algum tempo a olhar para mim.

- O que é isso?

- Uma prenda do meu pai - respondi eu, olhando para ele. Tinha um aspecto diferente. O seu cabelo, em geral impecavelmente penteado, estava desalinhado. A cara estava vermelha, o casaco desabotoado e descaído, a gravata solta. Era como se tivesse regressado da pequena casa de pedra a correr.

- Muito bonita. É importada? - perguntou ele, avançando mais para dentro.

- Acho que sim. - Pegou na boneca e virou-a ao contrário.

- Sim, foi feita na Holanda. Vi muitas iguais durante as minhas viagens. - Voltou a pousá-la. - A tua mãe sabe dar festas excelentes, hem? - disse ele, sorrindo. Percebi que estava a tentar ser amável, a tentar ter uma conversa banal, mas eu ainda estava zangada pela maneira como nos tinha atacado, a mim e ao Joshua.

- Sim - concordei eu. Pus a caixinha-de-música dentro da caixa e levantei-me. - Bem, boa noite. vou guardar a caixa no meu quarto - expliquei eu e entrei no quarto, contando que o Tony se fosse embora. Ele, porém, seguiu-me.

- Leigh, desculpa ter-te assustado na casa pequena, mas eu vi-os a entrar no labirinto e segui-os, curioso, naturalmente, para saber a razão por que tinham abandonado todos os outros convidados.

- Eu só queria mostrar ao Joshua parte dos jardins repliquei eu, ainda de costas para ele.

- É compreensível, mas devias ter esperado para levares também os outros convidados.

- Mas eu não queria levar os outros convidados - disse eu, voltando-me para ele.

- Leigh, eu sei que não sou o teu pai verdadeiro prosseguiu o Tony, aproximando-se -, mas tu és uma rapariga na flor da idade. Até agora, tens sido salvaguardada de alguma maneira, mas os rapazes, bem mais experientes, podem aproveitar-se de uma rapariga como tu. Acredita em mim. Eu conheço essas coisas.

- O Joshua não é assim - disse eu, abruptamente.

- Talvez, mas não é razão para não se ter cuidado e eu não me ia sentir bem, sabendo que... bem, não me sentiria bem se não te desse uns conselhos. Entretanto, como te disse antes, a tua mãe não precisa de saber uma palavra do que se passou. É só entre tu e eu.

Deu uns passos em frente até conseguir pousar as suas mãos nos meus ombros.

- Gostava que houvesse uma relação especial entre nós os dois - prosseguiu ele, bebendo-me com os olhos. Os dedos dele começaram a fazer mais força até que começou mesmo a doer.

- Tony. - Fiz uma careta, mas ele não me largou.

- Efectivamente - sussurrou ele -, a tua mãe quer que eu ajude a tomar conta de ti, espera que eu assuma essa responsabilidade com ela. Sente que é uma responsabilidade muito grande ser mãe de uma filha adolescente. Eu não me importo. Tu és bonita de mais e importante de mais. É preciso tomar conta de ti e proteger-te. Por favor, deixa-me proteger-te, deixa-me tomar conta de ti.

- Eu aprecio o que quer fazer por mim, Tony. Obrigada

- disse eu. Só queria acabar com esta conversa. O olhar dele era fervoroso e os seus dedos apertavam-me cada vez com mais força.

- O que eu quero dizer é que eu sei o que passa pela cabeça de um homem, principalmente de um homem jovem, quando te beija e põe as suas mãos sobre os teus ombros, assim - explicou ele. Os seus dedos distenderam-se e deslizaram pelos meus braços abaixo. Sorriu. - Tu não percebes o tipo de poder que possuis sobre um homem.

Poder? De que é que ele estava a falar agora? Porque é que estava a ser tão exagerado? Fora um incidente. Acabara. Porquê insistir naquilo durante tanto tempo e com tanto fervor?

- Sim, poder. Tu já possuis esse poder, o mesmo tipo de poder que a tua mãe detém. A tua beleza e a beleza dela são hipnotizantes. Qualquer homem que olhe para uma de vocês sente-se fraquejar, sente todo o seu poder de decisão a dissipar-se como fumo. Mas quer continuar a ser escravo da vossa beleza. Sente-se satisfeito pelo simples facto de ser virado e revirado do avesso, de ser estreitado e afagado. Vive para isso - disse ele, tão baixinho que praticamente tive de lhe ler os lábios. - Consegues entender? Percebes?

- Não - respondi eu, abanando a cabeça. Tentei recuar, mas ele segurava nos meus antebraços com demasiada força.

- Quando um homem está tão perto de ti como aquele rapaz na pequena casa de pedra e tu deixas que ele te afague

- murmurou ele, enquanto a sua mão esquerda largava o meu braço e descia sobre o meu peito -, o seu coração transforma-se numa pequena fornalha que distribui calor a latejar por todo o corpo. Pouco depois, já não é capaz de se controlar. A culpa não é dele. Ele torna-se um fantoche, e tu, a sua manipuladora - continuou ele, ainda a acariciar o meu peito com os seus dedos.

Fazia tanta força com a mão direita que eu não conseguia mexer-me. As pequenas veias da sua testa quase rompiam a pele. Ele estava a acariciar-me da mesma maneira que o Joshua fizera.

Quanto tempo teria ele estado a observar-nos antes de decidir interromper? Tinha-nos visto a entrar no labirinto; portanto, tinha-nos seguido, pensei. Porque não teria chamado por nós quando nos viu pela primeira vez, se achava que era assim tão mau da nossa parte abandonarmos os outros convidados?

- Tens de ter consciência dos teus poderes, Leigh, para não fazeres um uso incorrecto deles. - Levou os seus dedos à minha clavícula. - Eu vi como aquele rapaz te beijou e tu o beijaste. Não podes estar à espera que as coisas acabem por ali. É como se estivesses a acender um fósforo numa pilha de feno, pensando que apenas faria uma pequena chama por uns momentos e que depois podias apagá-la.

"Mas uma vez acesa, a chama propaga-se rapidamente, liberta-se, corre sozinha e consome-se tal como consome o feno. Eu quero mostrar-te, abrir-te os olhos, ensinar-te prosseguiu ele. - Não deves nunca ter medo de mim. Tens de confiar em mim e permitir que eu te ajude. Vais fazer isso, Leigh? Vais? - perguntou ele.

Eu não sabia o que dizer. "Mostrar-me? Abrir-me os olhos? Ensinar-me?" O que é que aquilo tudo queria dizer?

- Eu já lhe disse, Tony. Aprecio a sua preocupação.

- Sim - repetiu. - A minha preocupação. Sim - Estreitou-me nos seus braços fortes e beijou-me na cabeça. Minha linda boneca-retrato, minha obra de arte única.

Abraçou-me durante muito tempo e com muita força. Por fim, os seus braços largaram-me e eu recuei. Ele passou com os dedos pelo cabelo.

- Então, voltamos a ser amigos? - perguntou ele.

- Sim, Tony. Somos amigos.

- Óptimo. Nada me entristeceria mais neste momento do que perder a tua amizade e a tua afeição, principalmente depois de termos feito tanto sucesso juntos - disse ele e olhou para a Angel. - Olha para ela, para a maneira como ela olha para nós. Captei uma parte da tua beleza para a cara dela, pintei uma nota da tua delicada melodia e, sempre que olho para a boneca, consigo ouvir essa melodia. A minha obra de arte mais grandiosa. Agora percebo como um artista se pode apaixonar pelas suas próprias criações. Voltou a virar-se para mim e eu lembrei-me do quadro na casa pequena.

- Tony, porque é que está a pintar-me outra vez? Está a planear uma nova boneca? - perguntei eu.

- A pintar-te outra vez?

- Sim, aquele quadro no cavalete, o que eu cobri com o lençol.

- Esse quadro não é novo, Leigh.

No entanto, eu tinha a certeza que sim. Eu tinha visto todos os quadros e em nenhum deles se notavam tão nitidamente as feições da mamã.

- Porque é que o estúdio ainda está montado na casa pequena?

- Ainda não passei por lá para desmontá-lo. Para te dizer a verdade, até gosto de ir lá de vez em quando e reviver os momentos que passámos juntos a criar esta maravilhosa obra de arte. Aquela casa tornou-se um lugar muito especial para mim agora. - As feições dele endureceram, os lábios comprimiram-se, os olhos diminuíram. - Por isso é que hoje fiquei tão desapontado por teres lá levado um estranho.

- O Joshua não é um estranho, Tony - disse eu prontamente.

- Mesmo assim, esperava que achasses que aquela casa era um lugar especial. Antes de voltares a levar lá alguém, por favor, pede-me primeiro, está bem? - Eu concordei. Estava cansada e queria acabar aquela estranha conversa. Ele voltou a olhar para a boneca. - Tenho a certeza de que a tua boneca sente a mesma coisa - acrescentou e sorriu. De qualquer modo, o motivo que me trouxe aqui foi desejar-te mais uma vez um feliz aniversário.

- Obrigado, Tony.

Ele tornou a aproximar-se.

- Parabéns, Leigh - murmurou e deu-me um beijo rápido nos lábios. - Dorme bem - acrescentou, virando-se e saindo.

Mal ele se foi embora, fechei a minha porta. O Tony deixara-me agitada e confusa. Não sabia que pensar. Lavei-me e preparei-me para ir dormir, feliz por me enfiar por baixo do meu cobertor macio, ao lado da Angel. Revi os acontecimentos do dia. A festa fora espectacular. Todos os meus amigos se tinham divertido imenso e o Joshua beijara-me e abraçara-me de uma maneira tão romântica, antes de o Tony nos ter interrompido. Eu tinha um namorado real, um namorado especial.

Lembrando-me de que tinha prometido telefonar-lhe, sentei-me na cama e marquei o número.

- Joshua - disse ele. Nunca dizia "olá".

- É a Leigh.

- Está tudo bem?

- Sim. O meu padrasto saiu há bocado. Estava preocupado, mas não vai dar muita importância ao assunto, nem vai contar à minha mãe. Não te preocupes e, de qualquer modo, eu não me importo. Não fizemos nada de mal. Eu queria que tu me beijasses - confessei eu.

- E eu queria beijar-te a ti. Foi uma festa maravilhosa, Leigh. A melhor festa a que eu já assisti.

- Foi maravilhosa porque tu vieste e pudemos estar juntos durante algum tempo. Vais visitar-me à escola no próximo fim-de-semana?

- Claro. O William e eu já estamos a planear o que havemos de fazer.

- Mal posso esperar. Boa noite, Joshua.

- Boa noite, Leigh.

- A Angel também te deseja uma boa noite - acrescentei eu a rir. Levei a minha boneca-retrato ao auscultador, como se ela pudesse realmente ouvi-lo e falar com ele.

- Boa noite, Angel.

O Joshua também se riu.

Depois de pousar o auscultador, abracei a Angel. Desliguei as luzes, na expectativa de recordar os beijos do Joshua e as sensações que me tinha provocado, mas, ao contrário do que esperava, só via o Tony à minha frente, a fixar a minha cara com uns olhos penetrantes, os lábios a brilhar, o sorriso firme. Na minha cabeça, via a mão dele, e não a mão do Joshua, sobre o meu peito.

"Quero mostrar-te, abrir-te os olhos, ensinar-te", dissera ele. Porque me fariam tremer essas palavras? Ele só estava a tentar ser um bom padrasto, não era? Porém, era necessário tocar-me naquele sítio para o demonstrar?

Gostava de poder contar à minha mãe e pedir-lhe a sua opinião. Porém, como podia fazer isso sem lhe contar tudo? Que o Joshua e eu saíramos sorrateiramente da festa e fôramos para a casa pequena beijar-nos e eu permitira que ele me afagasse?

Não, não, pensei eu, o comentário dela seria que o Tony tinha feito o que devia.

Não contaria nada; era melhor esquecer, pura e simplesmente. Ninguém, para além da minha boneca Angel, iria saber que o Tony Tatterton me agarrara, me afagara e me beijara no meu quarto esta noite, mas eu tinha a certeza de que era apenas o início. Iria haver muitos mais segredos entre a minha boneca e eu.

Por fim, adormeci com ela nos meus braços.

Se o Tony alguma vez contou à minha mãe o incidente da casa pequena, ela ou se esqueceu ou não deu muita importância ao assunto, pois nunca o mencionou. O Joshua e eu também deixámos de falar nisso, apesar de não nos termos esquecido do modo como nos beijámos e abraçámos. O meu corpo tremia sempre que sonhava que ele me voltava a abraçar e a beijar daquela maneira. Nós até nos beijávamos quando íamos ao cinema, mas não era a mesma coisa, pois não estávamos sozinhos. Não havia muitas oportunidades para estarmos sozinhos. Os rapazes estavam proibidos de entrar nos quartos em Winterhaven e as raparigas estavam proibidas de estar nos quartos deles em Allandale.

A minha mãe autorizou-me a ficar em Winterhaven muitos mais fins-de-semana do que eu esperava. O Joshua, eu, o William e a Jennifer éramos o tema de conversa da escola. Estávamos sempre a passear e a fazer coisas.

A Marie e o "clube especial" também amansaram connosco. Antes do Natal já falávamos abertamente umas com as outras: convidávamo-las para o nosso quarto e começámos novamente a ser convidadas para os quartos delas. Um dia, a Marie fez-nos um convite formal para voltarmos a pertencer ao clube. Nós aceitámos, mas, para dizer a verdade, não podíamos estar tanto tempo com elas como inicialmente. Passávamos os fins-de-semana inteiros na companhia do Joshua e do William.

A" boneca-retrato tornou-se um artigo de Natal formidável para a Fábrica de Brinquedos Tatterton. O Tony mandou publicar anúncios em revistas e jornais por todo o país. O jornal de Boston escreveu artigos sobre as bonecas e eu deparei comigo em grande plano nas suas páginas. Tal como o Tony tinha previsto, a maior parte das raparigas em Winterhaven também quis possuir a sua boneca-retrato, e pouco tempo depois, já dúzias delas haviam feito a sua encomenda. O Tony andava extasiado e, sempre que eu vinha a Farthy passar o fim-de-semana, ele tinha muitas coisas para me mostrar e para me contar sobre o projecto.

Durante os meses de Inverno, ele fez mais algumas viagens, criando novos mercados para as bonecas no Canadá, França, Inglaterra, Espanha e Itália. Estava contente com o sucesso que tinha alcançado no âmbito da concorrência com as empresas europeias que tinham projectos similares. A mamã apenas foi com ele uma vez, numa viagem que incluía uma semana em St. Moritz no Hotel Palace.

Infelizmente essa era a semana da representação da peça de teatro da escola. Eu tinha um papel importante, mas nem ela nem o Tony puderam assistir. Esperara secretamente que o papá pudesse vir, pois ele escrevera-me dizendo que viria à costa leste em meados de Março para umas reuniões em Nova Iorque e em Boston, mas nunca chegou a responder ao convite que lhe fiz por carta.

Mesmo assim, ainda tinha uma réstia de esperança de que, quando espreitasse por entre as cortinas, o visse a ele e à Mildred a entrarem e a sentarem-se nos lugares da fila da frente; ele, porém, não apareceu. Na semana seguinte, chegou outra carta, cheia de pedidos de desculpa, e eu fiquei a saber que ele não conseguira cumprir o programa e ainda não tinha ido a Nova Iorque. Ainda se encontrava na costa oeste. Dizia que tinha visto um anúncio da boneca-retrato Tatterton e que a achara linda.

Quando a Primavera chegou, as bonecas-retratos tinham-se tornado num negócio multimilionário para o império da Fábrica de Brinquedos Tatterton. O Tony não parava de me agradecer por ter sido a primeira modelo. Contou-me que estava a pôr de parte uma percentagem dos lucros num fundo de garantia em meu nome. A mamã achava isso tudo maravilhoso e comentou como eu tinha sido tola quando hesitara em posar.

- Afinal, o Tony fez de ti uma estrela - disse-me ela.

- Não é sensacional?

Devia ser. Todas as raparigas da escola me invejavam, tinha uma boneca só para mim e agora até estava a fazer a minha própria fortuna devido a isso. Afinal, o Tony era uma pessoa delicada e sincera, pensei, e a opinião negativa que tivera em relação a ele, as coisas que ele me tinha feito e dito, e que me tinham assustado, desapareceram da minha cabeça. O mundo que se tornara cinzento e triste depois do divórcio dos meus pais, voltava a ser claro e alegre. A luz do Sol tinha rompido as nuvens. Tinha amigos, um namorado, uma casa fascinante e tudo o que uma rapariga da minha idade podia desejar: roupas, jóias, discos, tudo.

Para a mamã, era diferente. Apesar da sua enorme fortuna, apesar de agora estar casada com um homem de negócios bonito, inteligente e rico, passava a vida a lamentar-se por tudo e por nada. Ainda estava perturbada com o excesso de peso e com o que ela considerava imperfeições no seu corpo. Por fim, em finais de Maio, anunciou que ia à Suíça fazer uma "cura de águas milagrosa" de que uns amigos ricos lhe tinham falado. Ia lá ficar pelo menos um mês ou "o tempo que fosse preciso". O que me agradou mais foi que ela disse que eu podia ficar em Winterhaven sem vir a casa até ao fim do ano lectivo.

Partiu na última semana de Maio. Duas semanas depois, terminou o meu segundo ano em Winterhaven. O Joshua, o William, a Jennifer e eu fizemos imensos planos para o Verão. Esperava poder fazer metade de tudo o que sonhávamos fazer. Pensei que podia começar por convidá-los para virem a Farthy no primeiro fim-de-semana depois de a escola terminar; porém, quando pedi ao Tony, este disse que achava melhor esperar pelo regresso da minha mãe antes de ir a algum sítio ou de receber visitas.

Foi a nossa primeira discussão e tivemo-la no decorrer do nosso primeiro jantar juntos. Até o pequeno Troy ficou perturbado.

- Eu já não sou uma criança, Tony. Não tenho de obter permissão da minha mãe para tudo e mais alguma coisa queixei-me eu.

- Não, mas já não falta muito tempo para ela chegar e é melhor que seja ela a tomar uma decisão dessas - disse ele, com suavidade.

- Porquê? Não é uma decisão para a minha vida. Só quero convidar alguns amigos para passarem o fim-de-semana. E não há o problema de não haver espaço ou de não podermos arcar com a despesa - insisti eu.

- Claro que temos espaço e podemos perfeitamente ter convidados. Mas tu ainda és menor e os sítios para onde vais e com quem vais são decisões que devem ser tomadas pelos teus encarregados de educação - replicou ele. - Além disso, depois do que aconteceu quando te viste sozinha com um rapaz... Eu teria de passar a vida a tomar conta de ti e...

- Isso não é justo - gritei eu.

- Contudo, é uma grande responsabilidade. Sentir-me-ia muito melhor se esperássemos até a Jillian voltar. Não falta assim tanto tempo e além disso...

- vou morrer de tédio até a mamã chegar a casa! choraminguei eu. Foi quando os olhos do pequeno Troy também se encheram de lágrimas.

- Não vais nada - disse o Tony, sorrindo de repente. Eu vou tirar umas pequenas férias e, com este tempo tão maravilhoso, há-de haver muito para fazer. Vamos andar a cavalo. Eu já comecei a encher e a aquecer a piscina exterior.

- Não é a mesma coisa! - afirmei eu. Atirei com o meu guardanapo para cima do prato da comida. - Sinto-me enganada.

- Então, Leigh, por favor, não vais ter um acesso de fúria. Tem corrido tudo tão bem desde que a tua mãe se foi embora. Eu detestaria que...

- Não me interessa. Não é justo - repeti eu e levantei-me da mesa.

- Leigh! - gritou o Tony.

Saí da sala a correr, subi para o meu quarto e atirei-me para cima da cama. Agarrei na Angel e solucei até não poder mais. Em seguida, sentei-me na cama, limpei os meus olhos e olhei para a minha linda boneca. Ela tinha um ar tão compreensivo e tão triste, também.

- Oh, Angel - disse eu -, porque é que eu não posso ser igual aos outros jovens da minha idade e viver numa casa normal com uma família normal, para poder fazer as coisas que as raparigas da minha idade querem fazer? Estou-me nas tintas para toda esta riqueza. Qual a vantagem de ser rica, se isso não me traz felicidade?

Suspirei. Claro que a minha boneca não podia responder, mas sentia-me melhor quando falava com ela.

Levantei-me com a Angel nos braços e fui até à janela com vista para os jardins da parte da frente da casa.

- Vai ser como estar numa prisão, Angel. Os meus amigos não podem vir aqui e eu não os posso visitar até a mamã voltar. O que é que vou dizer ao Joshua quando ele telefonar? O que é que vou dizer à Jen? Que vergonha!

"Como é que o Tony pode achar que eu me sinto feliz só por estar na companhia dele? É verdade que gosto de andar a cavalo e de tomar banho na piscina. Mas eu gostava de fazer algumas dessas coisas com os meus amigos e não com o marido da minha mãe.

Como se me tivesse ouvido a falar dele, o Tony apareceu subitamente lá em baixo. Descia em passo rápido um atalho no jardim em direcção ao labirinto inglês. Pouco depois, desapareceu lá dentro. Tinha a certeza que ele ia a caminho da pequena casa de pedra. Mas porquê? Porque é que ele tinha mantido o estúdio? Porque é que me tinha mentido sobre o quadro novo, quando lhe perguntara? Dissera que não estava a elaborar uma boneca-retrato nova. Então, o que é que estava a fazer?

Impelida pela curiosidade, assim como pelo aborrecimento ou pela frustração, voltei a pousar a Angel na minha cama e desci as escadas a correr, esgueirando-me por uma porta lateral de Farthy, a fim de o seguir. Não queria que o Troy me visse, nem que me perguntasse onde ia ou o que é que ia fazer. Iria pedir para eu o levar comigo.

Nessa época, a luz do dia ia até mais tarde; mas o Sol, brilhante e alaranjado, na sua descida relutante pela linha do horizonte, parecia um sonho, parecia tão etéreo. Os pássaros já se haviam recolhido; apenas alguns ainda chilreavam. Não se ouviam andorinhas-do-mar a gritar. O céu azul estava a ficar cerrado a leste e achei que tinha visto a primeira estrela distante a cintilar e a romper lentamente a imensa vastidão do espaço.

Atravessei a relva a correr e entrei sorrateiramente, como uma espia, nas sombras longas e grandes projectadas pelas altas sebes. Olhei uma vez para trás para a mansão. Tinha deixado as luzes da minha suite acesas e conseguia ver o papel de parede e as cortinas. Então, voltei-me para o labirinto, pus o ouvido à escuta e entrei.

Nunca esses corredores me tinham parecido tão sossegados e tão escuros. Apercebi-me de que nunca tinha entrado no labirinto àquela hora do dia, nem à noite. Como encontraria o caminho de regresso? Estaria escuro de mais no seu interior, mesmo agora? Hesitei. Como teria o Tony atravessado o labirinto e como regressaria ele?

Ainda impelida por uma curiosidade demasiado forte, prossegui pelo primeiro corredor, voltando rapidamente na primeira e na segunda curva e depois caminhando o mais silenciosamente possível pelo interior do labirinto. Os únicos sons que se ouviam eram as ligeiras pisadas dos meus pés sobre alguns galhos caídos e a minha própria respiração pesada. Por fim, saí do outro lado e defrontei-me com a casa de pedra. As persianas ainda estavam corridas, mas podia-se perceber que as luzes lá dentro estavam acesas. Seria possível que o Tony tivesse uma modelo nova, alguém que ele quisesse manter em segredo? Teria medo que eu ficasse ciumenta? Ou que a mamã ficasse zangada ou com ciúmes? Rondando em torno das sombras, agora projectadas pelas árvores, apressei-me em direcção à pequena vedação e pus-me à escuta. Ouvia-se música suave, mas nenhumas vozes.

Cuidadosamente, atravessei o portão da frente e fui até à primeira janela. Era difícil ver o interior, pois a persiana tinha sido toda corrida. Só conseguia vislumbrar as pernas do cavalete. Fui até à segunda janela. Nesta podia ver muito melhor o que se passava lá dentro, pois a persiana estava pelo menos a um centímetro do fim. Da janela, tinha uma perspectiva da parte de trás da sala. Estava a olhar em direcção à porta da frente, por detrás do cavalete.

Ajoelhei-me devagar e espreitei pelo fundo da janela, através da abertura. O Tony não estava na sala, mas o quadro que eu descobrira quando trouxera o Joshua àqela casa estava lá.

Sobressaltei-me quando reparei naquilo que o Tony lhe tinha acrescentado.

Tinha-se desenhado e pintado a ele próprio deitado, nu, ao lado da figura feminina que combinava tantas características da minha mãe e de mim. Porque é que ele teria feito aquilo? O que é que significava aquilo?

Quando estava para me levantar e ir embora, ele apareceu, vindo da cozinha.

Sobressaltei-me novamente. O Tony estava completamente nu.

Parou abruptamente e olhou na minha direcção. Por momentos, senti o meu pescoço a gelar e não consegui mexer-me. Ter-me-ia visto?

Sem hesitar, dei um salto e deslizei o mais depressa que pude até ao portão principal; abri-o e corri o máximo que os meus pés permitiram, até entrar de rompante no corredor de sebes do labirinto.

 

LIÇÕES DIFÍCEIS

Devido ao facto de estar enervada e de a luminosidade ser escassa, curvei onde não devia e dei comigo às voltas no interior do labirinto. Frenética e encharcada em suor, parei para retomar o fôlego. O meu coração palpitava com tanta força que pensei que fosse despedaçar-se com o esforço e a pressão que estava a sofrer. Respirei fundo e tentei desesperadamente controlar-me para poder pensar com calma e restabelecer o meu sentido de orientação. Como me cheguei demasiado para trás, o cabelo ficou preso nuns galhos e comecei a gritar, pois não sabia o que estava a acontecer. Pensei que alguém me tinha agarrado. Quando percebi, desprendi rapidamente o cabelo e prossegui.

com muita atenção, virei uma vez, e depois outra, obrigando-me a mim própria a percorrer as sebes devagar e com precisão, quando me deparei com a familiar entrada, do lado de Farthy, e saí a correr do labirinto. Parei de novo para tomar fôlego e pôr-me à escuta. Ter-me-ia o Tony visto? Estaria a seguir-me? Não ouvia passos, nada.

Pelo sim, pelo não, voltei para casa a correr e subi para a minha suite. Logo que entrei, fechei a porta e encostei-me a ela. Por detrás das minhas pálpebras fechadas, revi a imagem do último quadro pintado pelo Tony. A mão esquerda do Tony cobria totalmente o meu seio direito, ele sorria para mim e a cor dos seus olhos azul-celestes era tão brilhante que estes pareciam absolutamente iluminados na pintura.

Então, revi a imagem dele a surgir, nu, da cozinha. Deduzi que tirara as suas roupas porque estivera a usar-se a si próprio como modelo. Devia haver um espelho na parede, pensei. Haveria mais alguma razão para se despir enquanto pintava?

Ele não tinha gritado, nem se tinha vestido a correr para me perseguir. Talvez até nem me tivesse visto a espreitar pela janela, afinal. Decidi que não ia falar no assunto. Quando a minha mãe voltasse, contar-lhe-ia. Ela devia saber destas coisas. Era tão estranho.

Descontraí-me, agora que estava a salvo dentro do meu quarto. O meu corpo ainda estava pegajoso do suor, a minha blusa de seda pegava-se aos braços e ao peito, como se tivesse sido colada a mim. Sentia-me maltrapilha e suja, não só devido à fuga através das sebes, mas também pelo que tinha visto. Abanei a cabeça e encolhi os ombros. Em seguida, abracei-me a mim própria como se tivesse sido apanhada por uma tempestade de neve e atravessei a minha suite em passo rápido, em direcção à casa de banho para pôr a correr um banho quente. Deitei lá para dentro alguns sais de banho para fazer espuma, observei a água a ficar esverdeada e senti o seu doce perfume à minha volta, como se fosse fumo.

Fui ao meu roupeiro e escolhi uma camisa de dormir. Depois de a pendurar na porta da casa de banho, sentei-me no toucador e escovei o cabelo. Sobre a mesa caíram alguns galhos e folhas minúsculos. Olhando para o espelho, vi que a minha cara ainda estava bastante corada, as minhas bochechas eram vermelho-vivo, como se tivessem levado um estalo. Reclinei-me por uns momentos, aturdida. Então, lembrei-me do meu banho e levantei-me rapidamente. Despi a roupa o mais depressa possível e deixei-me afundar no líquido calmante, tépido e perfumado. A água envolveu-me, fechei os olhos e recostei-me, gemendo de prazer.

É provável que tenha adormecido dentro de água durante alguns minutos. Não sei; perdi a noção do tempo. De repente, abri os olhos e apercebi-me de que a água do banho tinha arrefecido consideravelmente. Saí de imediato e sequei-me. Em seguida, vesti a minha camisa de dormir e deslizei para debaixo do cobertor macio, à procura da segurança e do calor da minha cama. Só queria adormecer e esquecer esse dia.

Quando olhei pela janela à minha esquerda, vi uma fatia da Lua prateada a brilhar através de algumas nuvens de gaze. Por cima da Lua, cintilava uma estrela sozinha, como se fosse a luz de um barco ancorado de noite, num lugar bem longe, no meio do oceano escuro. A luz da Lua afluiu ao meu quarto, transformando a minha mobília em silhuetas fantasmagóricas, mas os olhos da Angel pestanejavam tranquilizadoramente. Inclinei-me e segurei na mãozinha da boneca. A seguir, fechei os olhos e deixei-me afundar no sono, ansiosa por paz e por escuridão.

De súbito, abri os olhos. Senti que não estava sozinha.

Não me mexi; escutei com atenção e esperei. Ouvia-se distintamente o som da respiração pesada de outra pessoa. Em movimentos milimétricos, fui-me virando gradualmente na cama até estar completamente deitada de costas para baixo, a olhar para cima. À luz prateada da mesma Lua que me tinha acalmado e adormecido, encontrava-se o Tony Tatterton. O seu peito estava nu e brilhava. Eu tremia tanto que pensei que fosse gaguejar quando falasse, mas as palavras saíram-me directas e verdadeiras.

- O que é que quer, Tony? - perguntei eu.

- Oh, Leigh, minha Leigh - sussurrou ele. - Está na hora de dar vida ao meu quadro. Está na hora de fazer o que te prometi: mostrar-te, ensinar-te...

- Que quer dizer com isso? O que é que quer? Agora estou a dormir. Por favor, vá-se embora - implorei eu, mas ele não foi. Estava sentado na minha cama. Tinha medo de baixar os meus olhos, de seguir as linhas do seu corpo, pois podia sentir, sem olhar, que ele estava completamente nu.

- És tão bonita como a tua mãe - disse ele, inclinando-se para afagar o meu cabelo. - Mais bonita. Os homens procurar-te-ão onde quer que estejas, mas tu és como uma obra de arte preciosa. Ninguém te deve tocar nem abusar de ti. És especial de mais, no entanto, tens de saber o que isso é e o que pode acontecer. Tens de estar preparada e ter consciência do que isso é. Eu posso fazê-lo por ti. Sou o único que deve fazer isso por ti, pois, de certo modo, fui eu que te criei.

Levou a sua mão à minha cara. Eu tentei recuar, mas a minha cabeça já estava encostada à almofada.

- Eu fiz-te emergir da tela - prosseguiu -, e, tal como Pigmalião, enchi-te de vida e de beleza. Todos os que regalam os olhos na boneca-retrato, estão a deliciar os seus olhos na tua beleza, beleza essa que eu esculpi com estes mesmos dedos - murmurou ele, passando com as pontas dos dedos na linha do meu maxilar e descendo até ao pescoço.

- Tony, quero que se vá embora já. Por favor, saia daqui agora - pedi eu numa voz trémula. Não consegui evitar. O meu coração martelava e eu estava a engolir o meu próprio fôlego, respirando o ar suficiente para formar palavras e fazer exigências.

Ele agia como se não me ouvisse. Em vez de sair, afastou o cobertor, dobrando-o com cuidado à medida que me ia destapando. Eu inclinei-me para voltar a puxá-lo para cima, mas ele apanhou a minha mão e levou-a aos seus lábios.

- Leigh - suspirava ele. - Minha boneca...

- Tony, saia daqui. O que é que está a fazer?

Ergui a minha cabeça e os ombros e vi que ele estava realmente nu, dos pés à cabeça. Deitou-se na cama ao meu lado, com as mãos nas minhas coxas, forçando a minha camisa de dormir a subir pelo meu corpo acima. Eu queria falar, dizer-lhe que era quase filha dele e que ele não devia estar a fazer aquelas coisas, mas não conseguia respirar. Ele já tinha levantado a camisa de dormir até à cintura.

Empurrei-o, para o manter afastado, fazendo pressão na sua testa; porém, ele era tão forte e estava tão decidido...

- Tony, o que é que pensa que está a fazer? Saia de cima de mim. Por favor, pare!

Ele baixou a cabeça até tocar com os seus lábios no meu pescoço, deixando um rasto à volta da minha garganta, saboreando o sabor e o toque da minha carne. Eu tremia, queria que ele parasse, mas as minhas pequenas mãos e os meus fracos braços não produziam qualquer efeito sobre os seus fortes ombros e peito. Já puxara a minha camisa de dormir até à altura dos braços. Quando comprimiu o seu peito contra os meus seios nus, consegui sentir as batidas regulares do seu coração; parecia que eu fazia parte dele. Entretanto, tinha encostado os seus lábios à minha orelha.

- Tens de experimentar, perceber, conhecer - sussurrava ele. - Vais saber e vais estar preparada. É meu dever, minha responsabilidade, faz parte do processo artístico envolvido na tua criação - continuava ele, tentando convencer-se de que o que estava a fazer estava certo e era necessário.

- NÃO! PARE!

Tentei bater-lhe, socando-lhe os ombros e o pescoço com os meus minúsculos punhos, mas estes eram como moscas na garupa de um cavalo: um incómodo menor. Senti as pernas dele a meterem-se entre as minhas. O meu pânico aumentou. As suas mãos haviam deslizado para baixo e tinham-me abraçado, prendendo com firmeza os meus braços contra o meu corpo. Os lábios dele moviam-se ao longo da minha clavícula e detiveram-se entre os meus seios. Senti o molhado da ponta da sua língua.

- Mostrar-te... ensinar-te...

- TONY!

O meu corpo tremia e arrepiava-se, mas eu quase que não conseguia mexer as mãos, pois os seus braços fortes prendiam-me como tenazes. Ele avançava, encaixando-se com firmeza entre as minhas pernas e usou então as suas coxas para afastar as minhas.

Tens de perceber... Eu sou responsável... Por favor,

não resistas. Deixa-me mostrar-te... Ensinar-te...

- PARE! - gritei eu uma última vez; era, porém, um grito inútil. O Tony forçou-me a fazer o que devia ter sido oferecido por amor. O impulso dele foi vigoroso e preciso, abrindo-me para ele. Senti uma dor quente e seca a vir e a ir. Senti-me tonta e fraca. Talvez até tenha desmaiado por uns momentos. O meu corpo estava inteiramente às suas ordens, movendo-se ao mesmo ritmo do dele. Por um momento, senti-me separada do meu corpo: a minha cabeça caída para trás, sobre a almofada, e o resto de mim por baixo dele. Ele estava a fazer o que queria. Na sua cabeça, estava-me a esculpir de uma maneira diferente.

Os meus gritos eram tão fracos como gritos de boneca. Mordi o lábio inferior e tentei suportar. O calor subia-me pelas pernas e pelo estômago em ondas contínuas e rítmicas, viajando cada vez mais alto até me soterrar. Parecia que estava a afundar-me na cama por baixo dele.

Por fim, soltou-me os braços e o tronco e levou os seus dedos aos meus lábios e ao meu rosto, fazendo em seguida o mesmo com os seus lábios.

- Estás a ver? Sentes e percebes o seu poder? Agora fiz-te uma mulher - proclamou ele. - Completei a minha maior obra de arte, transformei-te numa boneca viva.

Gemi, a engolir os meus gritos. Tinha as faces molhadas das lágrimas. Mantive os olhos fechados, senti os seus lábios a comprimirem-nos com suavidade e a seguir senti o seu beijo nos meus lábios. Depois de um silêncio bastante longo, saiu de cima de mim. Não me atrevia a falar ou a mexer, com medo que ele voltasse. Ouvi-o a dar um suspiro profundo antes de sentir o seu dedo a traçar uma linha pelo meio dos meus seios, prosseguindo até à barriga. Manteve-o ali por momentos.

- Minha boneca... minha boneca-retrato. Dorme bem murmurou por fim.

Ouvi os seus passos a afastarem-se e abri os olhos no momento em que ele atravessava a porta e saía. Mal a porta se fechou, rebentei em lágrimas, e os meus ombros tremiam. Abracei o meu corpo nu e solucei. Por fim, sentei-me. Fixei os olhos na escuridão, incrédula, pondo em causa o que tinha acontecido. Talvez fosse apenas um pesadelo. Queria negar o que tinha acontecido, mas o meu corpo, ainda a tremer pelo efeito dos seus beijos e da sua violação, não me permitia ignorar nem fingir.

Fazer o quê? Ir ter com quem? A mamã ainda estava fora. O meu pai tinha-se ido embora, com a sua nova mulher, para aumentar o seu negócio. Aqui só havia os empregados e o pequeno Troy. Saí da cama e fui para a casa de banho, avançando rente à parede. Liguei a luz e olhei para a minha imagem no espelho de corpo inteiro. A minha cara estava vermelha e riscada de lágrimas. O meu pescoço e os meus ombros tinham marcas dos seus beijos e carícias forçados. A visão de mim própria nesse estado fez-me recordar o que tinha acontecido. Voltei a ficar tonta e tive de me sentar.

Pensei em telefonar à Jennifer ou ao Joshua; porém, tinha demasiada vergonha. Ia-lhes dizer o quê? E, aliás, o que é que qualquer um deles podia fazer? Só me tinha a mim própria. Tinha de ser eu a socorrer-me. Finalmente, depois de respirar fundo uma série de vezes, fui capaz de me levantar outra vez. Desliguei a luz e voltei para a cama. Que mais podia fazer? Não podia desatar a gritar e a delirar pelos corredores de Farthy.

Agarrei a Angel. Parecia chocada, triste. Estreitei-a nos meus braços, procurando obter o conforto que tão desesperadamente precisava. Por ironia, era a boneca que o Tony criara que estava ali para me acalmar, após as coisas terríveis que ele me tinha feito passar. Mas havia mais de mim nessa boneca do que dele, pensei. E agora, ela desprezava-o tanto quanto eu.

- Oh, Angel, só nos temos uma à outra. O Tony tinha razão numa coisa... Somos ambas bonecas-retratos.

Fechei os meus olhos e deixei que o sono me voltasse a abraçar e a levar para longe desse mundo cruel e chocante.

A luz quente do Sol acariciou a minha cara e fez-me abrir os olhos. Pestanejei, tomando consciência de onde estava e do que tinha acontecido nesse quarto na noite anterior. Quando me sentei na cama, não sei como, estava à espera que estivesse tudo de pernas para o ar, estava à espera que o mundo estivesse tão confuso como eu; porém, nada mudara à minha volta. O quarto estava tão limpo e tão arrumado como anteriormente. A luz do Sol raiava alegremente através das suas janelas. Até a Angel tinha um aspecto radioso e renovado.

Fora tudo um pesadelo? Olhei para mim própria como se houvesse no meu corpo alguma prova do sucedido. Os meus braços estavam doridos, no sítio onde o Tony mos prendera contra o corpo com as suas garras imorais, e doíam-me as coxas. No entanto, além dessas sensações, não havia cicatrizes reveladoras nem marcas da sua paixão. Todavia, eu sentia que todas as cicatrizes se encontravam dentro de mim. Não fora um pesadelo.

Levantei-me devagar e sentei-me por momentos em cima da minha cama, pensando no que iria fazer. Fugiria para junto do papá, se soubesse onde ele estava, pensei; mas, nesse momento, ele podia estar a meio caminho do outro lado do mundo, tanto quanto eu sabia. Decidi tomar um duche e vestir-me. Não queria descer e dar de caras com o Tony, mas não podia ficar na minha suite o dia todo. Pensei na hipótese de dizer que estava doente e de mandar servirem-me as refeições no quarto, mas isso trá-lo-ia cá acima também, pensei, e ia ter de enfrentá-lo na mesma.

Além disso, ainda não estava de pé há dez minutos quando ouvi o Troy à minha porta. Tinha vindo para me fazer lembrar das promessas que eu fizera no dia anterior relativamente ao que íamos fazer juntos. Virei a cara enquanto ele falava comigo, com medo de que ele se apercebesse do horror e do terror que transpareciam nos meus olhos e que se assustasse com eles. O Troy estava demasiado excitado ante as perspectivas do dia para notar alguma coisa.

- Disseste que hoje ias comigo à praia, Leigh. Podemos ir logo a seguir ao pequeno-almoço? Vamos? Por favor? Podemos ir procurar conchas.

- Está bem - acedi eu. - Deixa-me só tomar duche e vestir-me. Vai lá para baixo e começa a tomar o pequeno-almoço.

- O Tony já lá está em baixo - disse ele.

- Óptimo. - Pensei que provavelmente o Tony já teria comido e saído quando eu chegasse à sala de jantar. Então, tomei duche e vesti-me calmamente. Parecia que o dia ia ser muito quente; decidi vestir uns calções e uma camisola de manga curta para ir passear para a praia com o Troy.

Infelizmente, quando cheguei à sala de jantar, o Tony ainda estava sentado a ler o Wall Street Journal e a beber café. O meu coração parou quando ele baixou o jornal para olhar para mim. Lancei-lhe um olhar com a fúria toda que consegui reunir, mas ele pareceu não reparar. Fez um sorriso caloroso.

- bom dia, Leigh. Está um dia lindo. O Troy disse que tu e ele vão dar um passeio pela praia. Talvez eu vá também com vocês.

Olhei para o Troy. Estava a perfurar metade de uma uva com o garfo. A enfermeira dizia-lhe para ele não brincar com a comida. Sem proferir uma palavra, sentei-me. A empregada serviu-me logo o meu sumo de laranja. Lancei um olhar ao Tony e reparei que ele ainda estava a sorrir e a olhar para mim. O seu cabelo estava penteado com cuidado e vestia uma camisa de manga curta azul e branca e um par de calças azul-claro. Parecia tão fresco e tão descansado.

Como é que isso era possível?, pensei. Acharia que eu ia simplesmente esquecer o que ele tinha feito? Pensaria que, pelo facto de fingir que estava tudo bem e que nada tinha mudado, poderia sair impune? Devia estar à espera que eu contasse tudo à minha mãe. Ela iria querer o divórcio e sairia dali.

O Tony, porém, não parecia minimamente preocupado. Dobrou o guardanapo com cuidado e bebeu o café de um trago.

- O Troy está a comer um pequeno-almoço substancial esta manhã, pois sabe que precisa de energia para poder fazer todas as coisas que planeou fazer contigo, Leigh - observou ele e piscou o olho. - Não é verdade, Troy?

- Hum, hum - murmurou o Troy, mastigando vigorosamente um bago de uva.

- Pensei que hoje talvez quisesses dar uma volta a cavalo, Leigh. Já pedi ao Curly para depois do almoço preparar o Stormy e o Thunder para nós. O que é que achas?

Olhei para a enfermeira e para o Troy. Estavam ambos ocupados com outras coisas e não estavam a ouvir a conversa. Então, lancei-lhe um olhar indignado.

- Como é que pode sequer sugerir uma coisa dessas? perguntei eu, por entre dentes. Ele encolheu os ombros.

- Pensei que hoje a ideia te fosse agradar. O dia vai estar maravilhoso, ideal para dar um passeio a cavalo. Pensei que adorasses andar a cavalo.

- Eu adoro andar a cavalo. Não é essa a questão - disse eu, abruptamente.

- Então qual é?

- Está à espera que eu vá andar a cavalo consigo depois de... depois do que aconteceu ontem à noite?

A enfermeira levantou nitidamente os olhos. O sorriso do Tony esmoreceu, mas ele substituiu-o rapidamente por um olhar confuso.

- O que é que queres dizer? O que é que aconteceu? Olhei para a enfermeira. A empregada também tinha parado, pondo-se à escuta.

- Não quero falar sobre isso agora - disse eu e bebi o meu sumo.

O Tony recostou-se na cadeira.

- Oh, pronto - disse ele. - Talvez depois de almoço te sintas melhor. Se te sentires, estará tudo pronto. De qualquer modo, eu só poderei dar uma voltinha. Esta manhã apareceram-me uns problemas inesperados no escritório e tenho de ir para Boston hoje à noite.

- Por mim, até podia ir já agora - disse eu prontamente. O Tony não deu resposta. Abanou a cabeça, fez um sorriso afectado e voltou para o seu jornal.

Que cinismo!, pensei. Estaria mesmo à espera de ficar impune? Decidi não continuar a discussão naquele momento pelo Troy e também por mim. Este já estava a divagar sobre o nosso passeio pela praia e sobre as coisas que planeava fazer com as conchas que íamos encontrar juntos. Tive de sorrir e de sentir-me feliz por ele.

O Tony acabou de beber o café e levantou-se.

- - Talvez vá ter com vocês à praia - disse ele. Em seguida, pediu licença e levantou-se da mesa. Acabei de tomar o meu pequeno-almoço e comecei a andar em direcção à praia com o Troy, antes que o Tony pudesse juntar-se a nós.

A conversa animada do Troy manteve-me afastada de pensamentos obscuros, pois cada vez que a minha cabeça revivia os acontecimentos horríveis da noite anterior, o Troy fazia-me perguntas. Nessa manhã estava muito curioso, e a sua energia verbal impediu-me de reflectir.

- O que é que impele as nuvens, Leígh? Estás a ver disse ele, apontando. - Aquela grandalhona estava ali e agora está aqui. Têm asas?

- Não - respondi eu a sorrir. - É o vento que as empurra.

- Porque é que o vento não sopra através delas?

- Suponho que às vezes o vento faz isso. É por essa razão que há nuvens pequenas que são pedaços de outras maiores - respondi eu e passei com os meus dedos pelo seu cabelo macio. O pequeno balde balançava, enquanto ele caminhava, calcando a areia macia com passos determinados.

- Se eu estivesse lá em cima, o vento também me empurrava?

- Se fosses suficientemente leve para flutuar, sim - respondi eu.

- E ia desfazer-me em bocados como faz com uma nuvem?

- Só se fosses feito de ar. O que é que te faz pensar nessas coisas? - perguntei, tentando imaginar o tipo de sonhos que ele tinha. Ele encolheu os ombros.

- O Tony diz que há lugares onde há ventos tão fortes que levantam as pessoas do chão e as fazem rodopiar como as nuvens.

- Oh, Troy - disse eu, parando e ajoelhando-me para o abraçar. - Aqui não. Aqui estás seguro.

- O vento também não te vai soprar para longe? - perguntou ele, céptico.

- Não. Prometo - disse eu, apesar de, no meu coração, sentir que uma espécie horrível de vento me tinha atirado ao ar e rebentado qualquer bolha de felicidade que eu encontrara naquele lugar.

Sorriu e largou a minha mão, correndo em direcção à água.

- Olha! Olha para as conchas azuis! - gritou ele e começou a encher o seu pequeno balde.

Respirei fundo o ar fresco do mar. Parecia que me limpava os pulmões e lavava a ansiedade e a carga que pesava no meu corpo. Olhei para trás para me certificar de que o Tony não nos seguia. Não o vi e deduzi que ele devia ter-se apercebido de que eu não ia suportar a sua presença. Quando me convenci que estávamos sozinhos, fui para ao pé do Troy separar as conchas e encher o balde dele com as mais bonitas.

O Tony não estava em casa à hora que o Troy e eu voltámos. Quando o Troy perguntou por ele, o Curtis comunicou que o Tony fora obrigado a ir para Boston muito mais cedo do que tinha previsto e disse que, apesar disso, deixara uma mensagem para mim: o meu cavalo estaria pronto da parte da tarde, se eu quisesse ir andar nele.

Não fui. Passei o dia a ler e a jogar com o Troy na sua suite. Mesmo antes de jantar, levei-o a dar uma volta pelos jardins. Levámos connosco bocados de pão duro e fomos dar de comer aos pássaros nas fontes.

O Tony não veio jantar, o que me fez feliz. E foi então que o Curtis apareceu e nos informou de que a mamã tinha mandado um telegrama, anunciando que regressaria da sua cura de águas na Europa no dia seguinte ao fim do dia.

Oh, graças a Deus, pensei. Contar-lhe-ia tudo, todos os pormenores, para que ela percebesse o horror por que eu tinha passado e ficasse a conhecer o homem horrível com quem havia casado. Tinha a certeza de que era uma questão de dias e iríamos embora dali. O Tony pagaria pelo que me fizera. Quando a minha mãe se zangava com um homem, conseguia ser uma adversária terrível. Decidi que, nem desculpas, nem promessas, nem presentes caros, nada me levaria a perdoá-lo. Estava à espera que ele viesse implorar perdão quando descobrisse que a minha mãe estava mesmo a chegar.

Quanto mais escuro ficava, mais ansiosa me sentia. Onde quer que estivesse dentro da mansão, mantinha o ouvido atento à porta da frente, prevendo a chegada do Tony. À medida que as horas iam passando, a tensão crescia dentro de mim, batendo como um relógio de sala, à espera daquele momento em que ele entraria e, certamente, me procuraria. Tudo o que fazia para tentar distrair-me e manter-me ocupada, não resultava: ouvir rádio, ver televisão, conversar com o Troy... Nada conseguia afastar o meu pensamento dos acontecimentos da noite anterior.

Finalmente, mais por medo do que por fadiga, retirei-me para a minha suite; mas no momento em que fechei a porta atrás de mim, parecia que tinha caído numa armadilha e senti-me vulnerável. Afinal, fora ali que tudo acontecera e que ele viera procurar-me e seria ali que ele provavelmente voltaria. A suite da minha mãe era a única que tinha fechadura. Ela tinha insistido muito nisso, pois prezava a sua privacidade e, começava eu agora a entender mais do que nunca, era uma oportunidade de manter o seu jovem e exigente marido afastado.

Tive uma ideia. Vesti o roupão, enfiei os pés nos chinelos, peguei na Angel e saí da minha suite. Fui directamente para a suite da minha mãe, fechando a porta e rodando a chave da porta exterior. Senti-me mais segura, não só por a porta estar fechada à chave, mas também por estar no quarto da minha mãe, a cheirar os seus perfumes de jasmim e a ver os seus produtos de maquilhagem. Vesti uma das suas camisas de dormir e pus no pescoço um pouco do seu perfume de jasmim. Então, enfiei-me na cama dela, como costumava fazer quando era pequena, em Boston. Os lençóis, as almofadas e os cobertores dela cheiravam a fresco e a lavado, como ela exigia que estivessem sempre.

- Oh, mamã - lamentei-me eu. - Gostava que estivesses aqui em pessoa. - Encostei a Angel à almofada ao lado da minha e desliguei a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira.

Esta noite, a Lua era maior, a sua luz prateada brilhava mais e era menos perturbada por nuvens passageiras. Um pequeno grupo de estrelas tinha-se reunido aos pés da Lua e eu imaginei um reino nos céus governado por uma linda princesa, a Lua, que tinha dúzias de lindos seguidores à sua disposição, as estrelas. Lá em cima, havia sempre música suave e doce, não havia crueldade nem maldade, não viviam lá crianças cujos pais se desprezavam um ao outro, nem homens desonestos e traiçoeiros, nem mulheres e raparigas invejosas a magoarem-se umas às outras.

- Este é que devia ser o nosso mundo, Angel - sussurrei eu. - O mundo ao qual pertencemos.

Fechei os olhos e tentei sonhar com esse mundo, um mundo de ruas revestidas a doces, com crianças felizes, inteligentes e bonitas como o pequeno Troy, a rirem e a brincarem em segurança; um mundo com lares calorosos e alegres, cheios de famílias carinhosas e papás que vinham a correr depois do trabalho para estarem com as suas mulheres e os seus filhos. Era um mundo onde não havia os ventos agrestes que o Troy tanto temia, um mundo cujo céu não era cinzento, onde todas as raparigas da minha idade tinham caras de boneca e namorados dedicados.

Se eu ao menos pudesse flutuar, elevar-me devagar em direcção à Lua e pertencer àquele mundo...

Adormeci, mas acordei umas horas depois, quando ouvi e vi as luzes da sala de estar ligadas. Sentei-me rapidamente na cama da minha mãe. O Tony estava à porta, com a cara e o corpo na sombra da escuridão. De súbito, deu uma gargalhada. Eu estava sem fala; o meu coração começou a bater com força.

- A fechar a porta à chave outra vez - disse ele e riu-se de novo.

Seria possível que ele pensasse que eu era a minha mãe, que tivesse lido mal o telegrama e que achasse que ela tinha voltado hoje à noite? Segurava uma chave na mão e elevou-a diante da luz.

- Nunca te disse que tinha mandado fazer uma cópia quando finalmente me fartasse das tuas... das tuas atitudes grotescas e ridículas. Fechar a porta à chave, deixar-me a mim, o teu marido, fora do quarto, negando-me os meus direitos conjugais. bom, agora estou farto disso, farto de fazer figura de parvo. Quando nos conhecemos, eu era suficientemente bonito e desejável. Agora que estamos casados e tu me obrigaste a assinar aquele ridículo contrato pré-nupcial, achas que me podes afastar. Bem, eu não vou tolerar isso. Já chega. Vim resgatar o que é meu por direito e o que tu também devias querer por direito.

Aproximou-se.

Tony - disse eu, sussurrando em voz alta. - Eu não sou a mamã. Sou a Leigh.

Ele parou e houve um longo silêncio. Como tinha andado da luz para o escuro, não conseguia ver os seus olhos ou a sua expressão, mas senti que estava confuso.

- Eu é que estou a dormir no quarto da minha mãe hoje à noite. Ela ainda não chegou. Agora, vá-se embora. Já fez o suficiente para que eu o odeie para sempre.

De repente, ele riu-se; desta vez, soltando uma gargalhada fria e aguda.

- Então queres ser a tua mãe - sugeriu ele. - Queres ser igual a ela. Enfias-te na cama dela, vestes a sua camisa de dormir e usas o seu perfume. Afinal, tu até sonhas em ser a Jillian, sonhas que és a minha mulher. É essa a tua fantasia.

- NÃO! Não foi por isso que eu vim para aqui. Eu vim para este quarto para o manter afastado de mim! Saia daqui!

- Tal como a tua mãe, recusas-te a admitir o que no fundo "desejas, o que no fundo precisas. Eu percebo. É uma característica da família - acrescentou ele e riu-se.

- Saia daqui - implorei eu, desesperada.

- Fechas a porta à chave, tal como ela - prosseguiu, abruptamente. - Não está certo. Não admito. - Aproximou-se e, quando já estava mais perto, senti o seu hálito a uísque, o que ainda me assustou mais. Aninhei-me, puxando o cobertor contra o meu corpo.

- Por favor, vá-se embora, Tony. Tenho medo de si e não suporto o que me fez. Fico doente só de pensar nisso. Por favor, vá-se embora.

- Oh não deves sentir-te assim. Tens de lutar contra esses medos. É essa a razão por que fechas a porta à chave e arranjas desculpas atrás de desculpas para estares longe de mim? - perguntou ele, voltando a confundir-me com a minha mãe.

- Não, Tony. Eu não sou a Jillian. Eu sou a Leigh. Não percebe? Não ouve?

- Apesar de tudo, estás furiosa, mas a fúria é sinal de paixão. Não percebes? Estás cheia de desejo, de ânsia e de sensualidade. Não podes ignorar essa voz dentro de ti - insistiu ele e sentou-se rapidamente na cama.

Eu afastei-me, pensando que poderia saltar da cama pelo outro lado e fugir dele; mas ele foi mais rápido, prevendo o que eu ia fazer para fugir. Inclinou-se e agarrou no meu pulso, torcendo-o até eu deixar de conseguir segurar o cobertor com as mãos. Gritei de dor e ele soltou-me; inclinou-se sobre as minhas pernas e a minha cintura.

- Está uma noite linda, uma noite romântica, a noite com que os amantes sonham.

- Nós não somos amantes, Tony - gemi eu, por entre lágrimas.

- Claro que somos. Estarei ligado a ti através do meu trabalho para todo o sempre.

- AFASTE-SE DE MIM! - gritei eu, quando ele pôs a mão na minha coxa. - A minha mãe vai saber disto, de tudo. Vai saber o que me fez na noite passada, vai odiá-lo para sempre e vai deixá-lo - disse eu, proferindo as palavras, encolarizada. Sentir raiva era melhor do que sentir medo.

Ele voltou a rir-se.

- Vais contar à tua mãe? Contar-lhe o quê? O que ela já sabe, ou melhor, o que ela espera que seja verdade? Quem é que achas que me empurrou para ti, me incentivou, me encorajou? Quem achas que sugeriu que eu te usasse como modelo, que posasses nua? Eu não sou estúpido. Eu sei porque é que ela fez isto. Mas aceitei, até o desejei. Tu és bonita e vais ser ainda mais bonita do que ela é. Achas que ela também não percebe isso, achas que isso não a consome?

- Não - gritei eu. - É tudo mentira.

- Mentira? - Riu-se. - Ela pensa que tu e eu fizemos amor na casa pequena e tolerou isso.

- Mentiroso! - Atirei-me a ele, mas ele apanhou o meu minúsculo pulso no ar e segurou-o.

- Nós não temos segredos um para o outro. Tentei que ela sentisse ciúmes, que ela me desejasse mais, por isso contei-lhe. Contei-lhe como tu tinhas ficado excitada e que exigiste que eu fizesse amor contigo, quando posaste e eu te toquei. Sabes qual foi o comentário dela? Disse que pelo menos tu aprendeste com um mestre, com um amante consumado. Oh, eu sabia que ela só estava a querer adular-me, mas não ficou propriamente transtornada.

- Ela nunca diria isso! - exclamei eu, abanando a cabeça. - Nunca diria isso! - Dei um safanão para soltar o meu pulso. - Nem sequer a conhece! Diz que não têm segredos um para o outro, mas ela escondeu-lhe um segredo bem grande - disse eu, o mais furiosa possível. - Nem sequer sabe a verdadeira idade dela. Pensa que ela é anos e anos mais nova do que é na realidade. Ela nunca teria confiança total em si.

- Oh, eu sei a verdadeira idade dela, minha querida - disse ele calmamente, com tanta calma que o coração me caiu aos pés. - Vasculhei todo o seu passado. Infelizmente, o meu amor por ela cegou-me e eu esperei até depois do casamento para o fazer. Ela nunca saberá como me senti traído... por esconder uma coisa dessas de mim... DE MIM, que venerava o chão que ela pisava. Agora deixo-a viver no seu mundo de sonhos. Qual é o mal?

- Não. Está a mentir outra vez. Afaste-se, saia daqui! Empurrei-o, mas desta vez ele controlou os meus dois pulsos e puxou-me para ele, beijando-me com aspereza nos lábios. Lutei para me libertar; ele, porém, era forte de mais. A minha boca ficou com o sabor do uísque da boca dele, o que me enjoou.

Pôs-se de joelhos para se inclinar por cima de mim e prender as minhas mãos contra a almofada.

- Agora, tu és mais bonita, pois és pura e muito mais inocente. Tens razão: tu não és uma fraude. És mesmo a boneca-retrato - acrescentou ele e levou os seus lábios ao meu pescoço.

Mais uma vez, contorci-me e revirei-me sob o seu corpo e, mais uma vez, ele ajustou-se entre as minhas pernas, possuindo-me do mesmo modo. Era como um pesadelo a reaparecer. Gritei, pedi, implorei, mas os seus ouvidos estavam fechados a todas as vozes que não fossem as que ele ouvia dentro de si, vozes de desejo e de sexo que não lhe seriam negados.

Durante todo o tempo que me forçou a fazer amor com ele, confundiu-me com a minha mãe, chamando-me alternadamente "Jillian" e gemendo "Leigh". Fechei os olhos e afastei a cabeça dele para fingir que não estava a acontecer nada, que ele não estava a fazer-me aquilo. O meu corpo ia e vinha sob o dele. Não conseguia pará-lo de maneira alguma.

Antes de ele acabar, abri os olhos e via a Angel, na almofada ao meu lado. Lutei para libertar a minha mão direita da sua e consegui-o suficiente para agarrar a minha preciosa boneca e lhe virar a cabeça para o outro lado, pois, nos seus olhos, eu via o meu próprio terror e a minha própria dor.

Em seguida, cerrei as minhas pálpebras e esperei que tudo acabasse.

Depois de se esgotar, ficou deitado em cima de mim por algum tempo, antes de se levantar como um sonâmbulo e de me deixar. Não me mexi. Doíam-me os pulsos e sentia as minhas faces como se ele as tivesse esfregado com uma lixa. Chorei até pensar que o meu coração se partia. Por fim, depois de ter chorado cascatas de lágrimas, fechei os olhos e puxei o cobertor para me tapar a mim e à Angel. Então, virei-me, enterrei a cara na almofada macia e esperei pelo sono.

De manhã, levantei-me com os primeiros raios de sol, saí sorrateiramente da suite da minha mãe e voltei para a minha, onde me enfiei na cama. O Troy veio à minha procura, mas eu disse-lhe que não estava a sentir-me bem. Saiu a correr para dizer ao Tony e aos empregados. Pouco depois, Mrs. Cárter, uma das nossas empregadas mais antigas, apareceu para ver o que se estava a passar. Só lhe disse que não estava a sentir-me bem. Ela ofereceu-se para trazer o pequeno-almoço cá acima.

- Quer que chame Mister Tatterton para a ver?

- Não - gritei eu, prontamente. - Não quero ver ninguém até a minha mãe chegar.

- Nem o médico?

- Ninguém, por favor - pedi eu.

- Está bem. vou trazer-lhe qualquer coisa quente para beber e para comer. Talvez isso a faça sentir melhor - disse ela.

Sentir-me melhor? Comida alguma, médico algum, nem uma sala de amigos poderia fazer com que me sentisse melhor, era o que eu queria dizer-lhe; mas, em vez disso, virei-me e puxei o cobertor até ao queixo. O Troy veio ver-me outra vez, desapontado por eu não sair da minha suite e não ir brincar com ele ou dar um passeio. Comi um bocado da papa de aveia que Mrs. Cárter me trouxe e sorvi um pouco de chá doce.

O Tony não veio à minha suite. Estava preparada para o expulsar, para gritar e ter um ataque de histerismo, chamando a atenção de todos os empregados, se fosse necessário. Talvez ele tivesse previsto essa situação e manteve-se afastado.

Mrs. Cárter voltou com o almoço. Voltei a comer que nem um passarinho, mordiscando uma sanduíche e bebendo uns golos de sumo. Ao fim da tarde, ela voltou e perguntou-me se eu não queria que chamasse o médico.

- Não, o médico não pode ajudar-me - repliquei eu. Peça apenas à minha mãe quando chegar para vir ter comigo.

- Muito bem - disse Mrs. Cárter, abanando a cabeça.

Levou o tabuleiro com os pratos e a comida. Dormitei algumas vezes durante a tarde. Por fim, ouvi alguma agitação no corredor que dava para a minha suite e percebi que a mamã chegara da Europa. Esperava-a com grande ansiedade, pois tinha a certeza de que os empregados já lhe haviam dito que eu não saíra da suite o dia todo e que não comera quase nada.

A porta exterior abriu-se de rompante e a mamã entrou impetuosamente para o meu quarto e sentou-se na minha cama como uma lufada de ar fresco. Baixei o cobertor e olhei para ela. O cabelo estava penteado ao alto num carrapito à moda e vestia um fato de seda azul-escuro, em que o casaco abotoava à volta da cintura, caindo-lhe muito bem. Tinha um ar elegante, a pele estava clara e macia, os olhos brilhantes e felizes. Dos seus lóbulos pendiam pequenos brincos em forma de pingentes de gelo. Captavam a luz à sua volta e cintilavam.

- Leigh VanVoreen - afirmou ela, com as mãos nas ancas -, como é que te atreves a estar doente no dia em que eu chego. Então, o que é que tens? É Verão. As pessoas não se constipam no Verão.

- Oh mamã - disse eu, começando a chorar. - Mamã.

- Tirei o cobertor de cima de mim e sentei-me. - Aconteceu uma coisa horrível. E duas vezes.

- Que disparate é esse, Leigh? Pensei que estivesses doente. Mal entrei pela porta da frente, aquela Mistress Cárter veio a correr cumprimentar-me, apertava as mãos e choramingava, dizendo que tu estavas muito doente, que não a deixaste chamar o médico e que te recusaste a ver pessoas. Fazes ideia da canseira que é viajar para a Europa e voltar? De como estou cansada?

"Tem sido uma provação, sabes - continuou, contorcendo-se e virando-se para poder ver a sua imagem no espelho do meu toucador -, perder peso e tirar as imperfeições do meu corpo. Mas já acabou e foi um sucesso. É o que todos dizem. O que é que achas? - Voltou-se para mim com um ar de expectativa, pronta para ser adulada. Mas hoje não ia haver sessão de elogios... Só de verdades amargas. Não ia permitir que a mamã continuasse a fugir à verdade!

- Mamã, passei por provações muito mais terríveis, aqui mesmo, em Farthy. O Tony veio duas vezes ao meu quarto e... violou-me - gritei eu. - Ele... ele... - Porque é que ela me deixava continuar? Teria de lhe contar todos os pormenores horríveis? Olhei para ela com as lágrimas nos olhos, à espera que viesse a correr para o meu lado, que me estreitasse e me consolasse com os seus abraços e beijos calorosos... que prometesse que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para que eu me sentisse melhor... mais segura... como era dantes.

Veio para o meu lado num acesso de velocidade espantoso. Até que enfim que conseguia captar a sua atenção! Finalmente ela iria ouvir-me! Mas reparei nos olhos dela... Sempre os olhos dela! Já estavam a diminuir, já estavam a tornar-se perigosamente rasgados, a brilhar de frieza. Oh, como fiquei assustada! As minhas lágrimas pararam imediatamente e o meu estômago ficou como gelo, com as suas borboletas a esvoaçar com toda a força. Ela não acreditava em mim! Os olhos da mamã revelavam sempre as suas emoções verdadeiras.

- O quê? - perguntou ela, incrédula. - Que história ridícula é essa? Violou-te? Sinceramente, Leigh. Eu ouvi dizer que os adolescentes imaginam coisas, mas não achas que isto é de mais?

Abanei a cabeça, furiosa.

- Não, mamã. Isto não é uma fantasia. Aconteceu. Aconteceu mesmo. - Agora que tinha captado a sua atenção, não podia perdê-la. Tinha de fazer com que ela ouvisse!

- Deixe-me contar-lhe tudo, por favor. Ouça, por favor.

- Estou a ouvir - disse ela, contorcendo o rosto, contrariada.

- Há duas noites atrás, eu segui-o pelo labirinto até à casa de pedra.

- Seguiste-o? Porquê?

- Fiquei curiosa para saber porque é que ele ainda estava a trabalhar lá, porque é que ele tinha mantido o estúdio montado.

- Não devias andar a segui-lo dessa maneira, Leigh disse ela, condenando-me por ser indiscreta sem ouvir o resto da história. Ignorei-a e continuei.

- Quando cheguei lá, espreitei por uma janela e vi que ele tinha pintado outro quadro de mim... de nós as duas... Só que se tinha incluído a ele próprio... nu!

- A sério? - perguntou ela.

- Pouco depois, apareceu ele, nu.

- Estava sozinho? - perguntou prontamente.

- Sim, mas... de qualquer modo, eu assustei-me e fugi a correr para casa. Quando me vim deitar, ele entrou aqui... nu, e atacou-me, forçando-me a fazer amor com ele.

Ela fitou-me, ainda com uma expressão céptica.

- Fez isso, sim! - insisti. - E depois, ontem à noite... eu fui para o teu quarto para me fechar à chave em segurança lá dentro, e ele voltou. Tinha uma chave. Violou-me outra vez. Oh, mamã, foi horrível. Eu não conseguia lutar contra ele. - A expressão dela não se alterou. - Mamã, não está a ouvir o que eu estou a dizer?

Ela baixou os ombros e abanou a cabeça.

- Estava a pensar falar contigo sobre o que se está a passar, depois de estar instalada - declarou. - Tinha esperança de que isso pudesse esperar até eu recuperar as minhas forças.

- Falar comigo sobre este assunto? Mas como é que sabia?

- O Tony foi buscar-me ao aeroporto, Leigh. Ele contou-me o comportamento que tens tido ultimamente. Não me contou que tu o seguiste até à casa pequena, mas contou-me que tu lhe pediste para ele vir à tua suite e que, quando ele chegou, te encontrou toda nua na cama.

- O quê?! Ele está a mentir!

- Ele disse que tu lhe pegaste no pulso e que o puxaste para cima de ti, implorando para que ele fizesse amor contigo, mas que ele se soltou, repreendeu-te e foi-se embora.

- Mamã, ouça-me...

- Ele também me contou que tu foste à minha suite fingir que eras eu para que ele não te recusasse uma segunda vez. Disse que tu até puseste uma camisa de dormir minha e o meu perfume. - Olhou para mim, triunfante, a cheirar o ar. - Essa camisa de dormir é minha, não é? E estás a usar o meu perfume.

- Oh, mamã, eu só fiz isso para estar perto de si. Estava com tanto medo.

Quando ela voltou a fixar o meu rosto, percebi que não acreditava em mim. Nem sequer tentava esconder! Nesse momento, passou-me um rasgo de ódio pelo sangue. Nunca na minha vida tinha sentido ódio em relação à mamã. Nunca! Mas porque não? Ela não acreditava em mim! Tinha escolhido ser indiferente às palavras da sua própria filha e acreditar nas palavras de um homem com o qual nem há um ano estava casada! Só se interessava pelo Tony... o repugnantemente rico Tony... o seu marido jovem e repelente.

Fitei a mamã com um olhar cínico. Oh, sim, estava a ver tudo. A mamã não estava disposta a pôr em perigo a sua posição como senhora da mansão Farthinggale. O que é que interessava ter conseguido que o Tony assinasse um contrato pré-nupcial que a habilitava a metade da sua fortuna? Sem o nome dele, ela não era nada... NADA! Se ela escolhesse acreditar em mim e divorciar-se do Tony, perderia o respeito e os privilégios que tinha sob o nome de Mrs. Tony Tatterton. Deixariam de aparecer convites. A sociedade de Boston fecharia as suas portas na cara dela e seria reduzida à condição de pobre rapariga do Texas, autorizada a olhar para essa sociedade apenas pelo lado de fora. Por mais que desejasse que a mamã fosse feliz, porque lá no fundo, uma parte de mim ainda gostava muito dela... porque eu sabia que ela precisava de um homem na sua vida para lhe proporcionar um objectivo... não podia deixar que o Tony saísse impune do que me fizera. Não podia. Tentei uma última vez.

- Mamã, estou a dizer a verdade.

- Francamente, Leigh. A tua história é tão revoltante. Estás à espera que eu acredite em quê?

- Estou à espera que acredite em mim, não nele! Ele é

louco.

- Ele disse-me que tu tentaste tudo para que ele fizesse amor contigo e... quando viste que nada funcionava... traíste-me. Disseste-lhe a minha idade - concluiu ela. Parecia mais magoada do que zangada.

- Mamã, eu... não, eu disse isso porque...

- Como é que pudeste fazer isso? Não havia ninguém em quem eu confiasse mais do que na minha própria filha.

- Mamã, ele já sabia. Ele não se importava. Ela abanou a cabeça.

- Sinceramente, Leigh, tens de te controlar. Eu também fui uma adolescente. Sei o que é que estás a passar. O teu corpo está a desenvolver-se com rapidez. Do dia para a noite, tornaste-te numa mulher, tens os desejos de uma mulher e eis que te aparece à frente o atraente Tony Tatterton, para o qual tu posaste nua. É compreensível e, em parte, eu também tenho a culpa por não me ter dado conta de que já eras tão madura, mas tens de aprender a controlar as tuas fantasias e os teus impulsos.

"Tu já viste que eu consigo fazer isso muito bem. Lembra-te do que eu te falei sobre os homens nos usarem e do que eu te disse sobre o que é ser uma boa rapariga.

"Tenho a certeza que daqui a um dia ou dois, vão-se dar bem como antigamente. O Tony não alberga quaisquer ressentimentos contra ti. É muito compreensivo no que respeita a essas coisas. É por isso que o nosso casamento vai tão bem.

Sorriu e acrescentou:

- Estou desejosa de me meter dentro de um banho quente.

- Mamã, tem de acreditar em mim... por favor...

- Então, Leigh - disse ela, abruptamente. - Exijo que pares de falar nesse assunto. Uma coisa leva a outra e, não tarda nada, já os empregados estarão a falar disso, espalhando rumores terríveis.

- Não são rumores. Eu não estou a fantasiar nem a mentir.

- Leigh - disse ela, com os olhos pequenos -, estás à espera que eu acredite que o meu marido se virava para a minha filha, uma rapariga acabada de se tornar mulher, quando me tem a mim? Francamente - afirmou ela. Agora, controla-te. Quero tomar banho, vestir-me e descer para o jantar.

- Mas, mamã...

- Insisto e acabou. Além disso - acrescentou ela com um sorriso -, tenho tantas coisas bonitas que comprei na Europa para te mostrar e quero contar-te como foi lá nas termas e as pessoas que conheci.

De repente, o sorriso dela evaporou-se.

- Fiquei muito transtornada quando o Tony me contou que lhe revelaste a minha verdadeira idade, Leigh, mas posso perdoar-te, pois parece não ter grande importância para ele, como eu receava. Ele é mesmo um homem maravilhoso. Mas não poderei perdoar-te se continuares a fazer estas... sessões de teatro. Por isso, por favor, controla-te e desce para o jantar.

Tornou a descontrair-se e soltou um suspiro profundo. Eu estava atónita!

- Ah, não há nada como voltar para casa depois de uma longa viagem - entoou ela e deixou-me.

Casa? Tinha acabado de se referir à mansão Farthinggale como casa? Inferno, era a palavra mais adequada! Fiquei a olhar fixamente para o lugar que a mamã deixara livre. Passara-se alguma coisa? Estaria eu a sonhar? Teria caído na armadilha de outro pesadelo? A mamã RECUSARA-SE a acreditar em mim. Em vez de me ajudar, escondeu-se por trás das paredes de espelho do seu mundo inútil e vazio, obcecada consigo própria. CONSIGO PRÓPRIA! A mamã, de quem eu sempre gostara, que eu sempre adorara, já não existia e fora substituída pela estranha do meu pesadelo. Virei-me para a minha boneca.

- Oh, Angel - chorei eu. - Se ao menos pudesses falar. És a única testemunha.

Mas, pensei, mesmo que a Angel pudesse falar, a mamã ia arranjar maneira de não acreditar nela.

Ou não queria acreditar, ou para ela não tinha importância. Para mim, era pura e simplesmente a mesma coisa.

 

CONFRONTOS

Levantei-me e vesti-me para descer e ir jantar. Apesar de ter comido muito pouco durante todo o dia, não tinha apetite, mas esperava estupidamente, de algum modo, ainda conseguir que a mamã visse a verdade. Tudo o que ela tinha de fazer era olhar bem para a minha cara, pensei. Estava pouco entusiasmada quando chegou a hora de escovar o cabelo. Reflectia os meus sentimentos interiores, com um aspecto apagado, castanho-claro e sem brilho. Reparei na fadiga e na exaustão emocional que transpareciam nos meus olhos. Cabisbaixa, saí da minha suite e desci a escadaria.

Para minha surpresa, a mamã já estava à mesa com o Tony. Ouviam-se as gargalhadas deles enquanto me aproximava da sala de jantar. Logo que entrei, pararam e viraram-se para mim. O Tony lançou um olhar para a minha mãe e depois sorriu para mim.

- Leigh, sentes-te melhor? - perguntou ele, pondo uma máscara de preocupação paternal na cara.

Eu não respondi. Fui para o meu lugar e pus o guardanapo no colo, sentindo o peso dos olhos deles sobre mim. - Estava agora mesmo a contar ao Tony - começou a minha mãe, com uma voz frívola e animada -, sobre os gémeos Walston. Tenho a certeza de que te lembras deles. Já os mencionei anteriormente. São de Boston e o pai deles Rambém tem aquela propriedade em Hyannis. Uma perna deles equivale ao meu corpo inteiro. Os gémeos Walrus, era como nós todos nas termas lhes chamávamos. Vê-los na sala de vapor quando estavam juntos! - disse ela, atirando a cabeça para trás a rir. - Quer dizer, todas as mulheres que ali

 

1 Walrus, em inglês, significa o nome de um animal gordo e pesado, a norsa. (N. da T.)

 

estavam sentiam-se dez quilos mais magras mal olhavam para eles.

"De qualquer modo, a parte mais engraçada disso tudo foi que, quando chegou a hora de se irem embora, descobriu-se que ambos tinham engordado dois quilos em vez de perderem peso. Parece que andavam a fazer contrabando de bolos e bombons de uma vila ali ao pé. Estão a imaginar uma pessoa a gastar aquele dinheiro todo para engordar dois quilos?

O Tony abanou a cabeça e riu-se com ela. Até custava a acreditar como pareciam felizes. Nada do que eu contara à mamã fora tido em consideração. O resto da noite continuou da mesma maneira. A mamã contava histórias atrás de histórias sobre as mulheres ricas nas termas. O Tony era o espectador ideal, rindo a cada coisa que ela dizia que era suposto ser engraçado, ficando sério quando ela também ficava.

Quando ela acabou de criticar os seus companheiros de dieta, o Tony começou a falar sobre o sucesso das bonecas-retratos e nunca mais parou. De vez em quando, a mamã virava-se para mim e abria os olhos para expressar o seu espanto e tentar sacar de mim alguma expressão de apreço. Mas eu recusei-me a ceder aos desejos dela. Por uma vez, os meus desejos e as minhas necessidades tinham de vir em primeiro lugar. Eu sabia que o que me tinha acontecido era importante, era corrosivo. Partia-me o coração o facto de ela conseguir ignorar tão facilmente a minha dor.

- Gostava que visses algumas das coisas que comprei na Suíça, Leigh - afirmou a mamã, depois de o café ter sido servido. - Estão no quarto azul. Também te trouxe um presente caro.

Levantou-se para dizer qualquer coisa ao Curtis enquanto saía da sala de jantar e o Tony levantou-se a seguir. A caminho da saída da sala, o Tony agarrou-me o braço direito no cotovelo para me reter, de modo a que ela não pudesse ouvir o que ele tinha para me dizer.

- Só quero que saibas, Leigh, que eu não guardo nenhum ressentimento pelo que contaste à Jillian. Ela e eu percebemos o que acontece quando uma jovem está literalmente a explodir como mulher. - Sorriu, com uns olhos azuis amorosos e indulgentes. O tom de voz casual dele era enlouquecedor. Por um momento, senti um nó na garganta. Engoli em seco e mordi a minha língua ainda com mais força.

- Vens, Leigh? - chamou a mamã.

- Sim - respondi e então dei meia volta e virei-me para ele, furiosa. Deixei que os meus olhos encontrassem os dele, lançando fogo e ódio. Passou-me pelo peito uma chama de raiva. Proferi palavras geladas:

- Por agora, pode tê-la enganado, mas com o tempo, ela vai acreditar em mim, pois uma pessoa como o Tony, não consegue esconder para sempre o que é na realidade.

Ele abanou a cabeça com uma expressão de pena, que só me enfureceu ainda mais.

- Esperava que, agora que a Jillian voltou, tivesses uma atitude diferente, mas estou a ver que tudo o que as pessoas dizem sobre educar adolescentes hoje em dia é verdade. Contudo, quero que saibas que serei sempre compreensivo e complacente e que nunca te exporei ao ridículo.

- É desprezível - disse eu entre dentes. Ele continuou a sorrir. Em seguida, tentou pegar-me no braço para me acompanhar à saída, mas eu afastei-o. - Não me toque. Nunca mais na vida tente tocar-me.

Ele assentiu e fez um sinal em direcção ao átrio de entrada. Fui a correr ter com a minha mãe. O Tony não nos seguiu até ao quarto azul, onde a mamã tinha empilhado as suas compras. Sentei-me no sofá e observei-a a desembrulhar as camisolas, as blusas, as saias e os cintos de cabedal. Tinha comprado obras de arte, pequenas esculturas, estojos de jóias e espelhos de mão de marfim. Ofereceu-me um relógio elegante de ouro e diamantes. Cada peça trazia uma história consigo, como tinha sido descoberta, como era a loja, o que as outras mulheres acharam quando ela comprara a peça. Vangloriava-se de as outras mulheres a seguirem por todo o lado, de fazerem o que ela fazia, de comprarem igual ao que ela comprava.

- Senti-me, de repente, no papel de guia - gabava-se ela. - Estás a imaginar? Todas aquelas mulheres terrivelmente ricas e viajadas dependerem de mim para lhes dizer o que era chique, o que era arte verdadeira e o que era uma boa compra. Sinceramente, eu devia ter pedido uma comissão.

Parou e olhou para mim, como se fosse a primeira vez que olhava para mim com olhos de ver.

- Pareces mesmo um pouco cansada, Leigh. Amanhã devias apanhar sol. Não devias trancar-te na tua suite dessa maneira. Não é saudável. O ar pode estar abafado e viciado e este tipo de ar pode causar danos inacreditáveis à tua pele. Tive longas conversas com especialistas naquelas termas maravilhosas - referiu ela, prontamente, antes que eu pudesse interromper. - Já alguma vez notaste que as mulheres suíças têm uma pele perfeita? Em parte, é o resultado das suas dietas - prosseguiu, como se eu fosse uma aluna numa sala de aula - e também dos exercícios que fazem, do ar fresco, dos banhos de vapor e dos banhos de lama. - Depois acrescentou, como conclusão: - Já pedi ao Tony para mandar construir uma banheira a vapor na minha casa de banho.

- Mamã, eu tenho este aspecto porque passei por uma experiência terrível. Se me ouvir, se me ouvir com atenção...

- Não vais começar tudo outra vez, pois não, Leigh perguntou ela, fazendo beicinho. - Eu não aguento. Não sei como ainda estou de pé, depois de ter dormido e descansado tão pouco desde que saí da Suíça. Obriguei-me a mim própria a estar cheia de energia para ti e para o Tony, mas agora estou cansada e vou subir.

- Mamã...

- Boa noite, Leigh. Espero que gostes do teu relógio. E deixou-me ali, sentada, rodeada por todas aquelas caixas e embrulhos abertos. Voltei a pôr o meu relógio dentro da caixa. O que é que me interessava o relógio? O que é que as coisas preciosas e caras significavam num momento desses? Será que ela achava que o ouro, a prata e os diamantes solucionavam qualquer tipo de problema?

Senti-me tão frustrada, parecia uma pobre muda, incapaz de exteriorizar os seus pensamentos e os seus sentimentos; os seus gritos presos nos seus próprios ouvidos; todas as portas que davam para a sua mente fechadas a sete chaves. Podia até ser invisível, pensei. A mamã não olhava para mim, não me ouvia, não via a verdade. Estava cega pelo brilho e pelo encanto da sua própria vida.

A partir desse dia foi sempre a mesma cena, cada vez que eu tentava puxar o assunto dessa coisa horrível que me tinha acontecido. Ela, ou não ouvia, ou então mudava imediatamente o tema da conversa. Por fim, desisti. A maior parte do tempo, passava-o sozinha, a passear na praia ou a andar a cavalo. O ar do mar, o som do mar e a visão hipnótica e meditativa das ondas a virem e a irem, acalmavam-me. Lia e escrevia neste diário, ouvia os meus discos e passava tempo com o Troy.

A Jennifer telefonou-me várias vezes, mas eu não lhe telefonei a ela nem ao Joshua. O Joshua tinha-me telefonado no fim de Junho dizendo-me que ia passar férias com a família e que ia estar fora quase um mês. Esperava poder ver-me antes de partir, mas eu simplesmente não consegui. Se ele olhasse para a minha cara, eu sabia que ia perceber o que acontecera e que ia detestar-me por isso. Encontrei consolo e conforto na minha solidão. A Natureza provou ser a mãe e o pai que eu já não tinha, acalmando as minhas feridas, afagando-me com as suas brisas quentes e enchendo-me com a sensação de segurança que eu não conseguia recuperar dentro da mansão com os seus cantos escuros e as suas salas gigantescas.

Sempre que ia passear com o Troy, seguia atrás dele a ouvir a sua tagarelice infantil, prestando pouca atenção às suas palavras, para ouvir o som da sua voz inocente e feliz. Aqueles pequenos ritmos eram melodiosos e deliciosos. Adorava sentar-me com ele a olhar para o mar e responder às suas perguntas enquanto afagava o seu cabelo macio. De certa maneira, queria regressar ao mundo dele, um mundo de crianças, o mundo das bonecas e dos brinquedos e das guloseimas, um mundo sem verdades difíceis e realidades desagradáveis. Todos os papões podiam ser escorraçados com um abraço caloroso, um beijo terno e tranquilizador, uma promessa para o dia seguinte.

A mamã voltou a afundar-se na sua vida social: comparecia às suas tardes de brídege, assistia a espectáculos e ia às compras em Boston, recebia para jantar conhecidos abastados e ia aos jantares oferecidos por eles. Tentou em várias ocasiões que eu os acompanhasse, a ela e ao Tony, quando iam jantar a uma propriedade de gente abastada. Dizia que queria que eu conhecesse os filhos e as filhas das classes altas, mas eu recusava sempre.

O Tony manteve distância, mal falando comigo, e até evitava olhar para mim, principalmente quando estava com a minha mãe. Quando me encontrava sozinha e o via dentro de casa, ia por outro lado. Felizmente a casa era tão grande que era possível perder-me sempre que queria. E podia passear pelos jardins, ir para a piscina exterior, dar uma volta a cavalo e ficar fora de casa a tarde inteira, fazer uma das minhas caminhadas pela praia e evitar qualquer contacto com ele.

Então, no início da terceira semana de Junho, ele anunciou que ia à Europa fazer uma curta viagem de negócios. A mamã deu-lhe uma lista de lojas e de artigos para ele lhe comprar. Comentou também que ia procurar alguma coisa especial para mim, mas eu não lhe dei resposta.

Poucos dias mais tarde, o papá telefonou de Houston, do Texas. Estava de regresso à costa leste e queria tomar providências para me ver. Eu tinha-lhe escrito continuamente, tentando que ele telefonasse ou me escrevesse, mas ele não respondera até agora.

- Andei a viajar muito, princesa - explicou ele. - Todas as tuas cartas devem ter chegado um dia depois de eu partir. Está tudo bem?

- Não, papá, tenho de falar consigo - disse eu, desesperada. Do outro lado da linha, ele ficou calado por momentos.

- O que é? - perguntou.

- Não posso falar deste assunto ao telefone, mas preciso de falar consigo. Preciso mesmo - realcei eu.

- A tua mãe não te pode ajudar?

- Ela... não, ela não me pode ajudar - repliquei eu. A minha voz era seca, sem emoção, terrivelmente honesta.

- Está bem. Telefono-te logo que chegue a Boston e encontramo-nos todos para jantar. Devo chegar depois de amanhã.

- Papá, tente vir sozinho - implorei eu.

- Leigh, eu agora estou casado e a Mildred faz parte de tudo o que faço. Ela gosta assim. Fica muito perturbada se eu a excluo de alguma coisa e ela quer tanto conhecer-te. Não consegues esquecer que nos casámos tão rapidamente e dar-lhe uma oportunidade? - pediu ele.

- Desta vez não se trata disso, papá. Eu... tenho assuntos muito íntimos para falar consigo.

- A Mildred faz parte da minha vida pessoal, Leigh insistiu ele. Mais uma vez o papá era um pedaço de barro nas mãos de uma mulher, pensei eu.

- Está bem, papá. Telefone-me logo que chegar - acedi eu. Não tinha hipótese, nem mais ninguém com quem falar.

- Bem. Até breve, princesa - disse ele e desligou.

O facto de saber que o papá chegava daí a dois dias deu-me força. Quando lhe contasse o que acontecera, tinha a certeza de que ele exigiria que eu ficasse com ele. Nem sequer permitiria que eu voltasse nessa noite para Farthy e diria à minha mãe que estaria disposto a ir até ao fim do mundo para ganhar a minha custódia legal. Não sabia se a minha vida ia ser melhor, mas pelo menos estaria longe de Farthy e do Tony.

Estava alegre e enérgica pela primeira vez desde que o Tony me violara. Nadei na piscina, fui andar a cavalo e levei o Troy comigo para darmos uma grande volta pela praia e apanharmos conchas. Há semanas que não tinha tanto apetite; pedi para repetir o prato e comi sobremesa. A mamã notou a mudança, mas eu não lhe contei da chegada iminente do papá.

Na manhã do regresso do papá a Boston acordei cedo. Planeei que ia pedir ao Miles para me levar à cidade mal o papá telefonasse. Já estava vestida, já tinha tomado o pequeno-almoço e já tinha ido dar uma voltinha pela praia com o Troy quando a minha mãe desceu. À tarde ia receber uns amigos para jogarem brídege e eu sabia que isso significava que ia passar horas a arranjar-se.

Pouco depois da hora de almoço, o Curtis chamou-me para atender uma chamada. Eu estava lá fora com o Troy a observar os jardineiros a trabalharem.

- É o meu pai? - perguntei eu, ansiosa.

- Ele disse simplesmente que estava a telefonar em nome de Mister VanVoreen - replicou o Curtis na sua maneira característica de falar indefinível. Corri para casa e atendi o telefone mais próximo, que estava na sala de estar.

-Estou - disse eu. - Fala a Leigh.

- Miss VanVoreen. O meu nome é Chester Goodman. Trabalho para o seu pai e ele pediu-me para lhe telefonar.

- Sim? - disse eu, impaciente com as formalidades. Estava-me nas tintas para o nome dele. Só queria ouvir os pormenores.

- Ele manda pedir desculpa. Não poderá vê-la hoje.

- O quê? - Senti que as cores me desapareciam da cara, senti o meu peito tão frio e tão vazio e tive a certeza de que o meu coração havia parado de bater. - Porquê? Eu tenho de o ver. Tenho mesmo! - insisti eu. - Por favor, diga-lhe, ponha-o ao telefone. Exijo falar com ele.

- Tenho muita pena, Miss VanVoreen, mas ele já cá não está. Um dos paquetes VanVoreen que estava em viagem pelo Pacífico teve um grave problema. Está a decorrer uma operação de salvamento e ele teve de voar até lá de emergência.

- Oh, não!

- Ele pediu para lhe dizer que telefonará na primeira oportunidade. Miss VanVoreen?

Eu não respondi. Pousei o auscultador e recostei-me na cadeira ao lado do telefone, confusa. O papá não teria ouvido o desespero na minha voz? Porque é que não arranjara maneira de se encontrar primeiro comigo ou porque é que simplesmente não me levara com ele? Podíamos ter falado no avião. Porque é que o negócio dele era mais importante do que a filha?

Um pensamento assustador ocorreu-me de súbito. Talvez ele soubesse... Talvez ele sempre tivesse sabido que eu não era filha dele e talvez fosse essa a razão por que não me punha em primeiro lugar na lista das coisas mais importantes para ele.

Enterrei a minha cara nas mãos.

- Leigh?

Era o Troy que estava à porta.

- Voltas lá para fora? Levantei os olhos para ele.

- Não - disse eu. - Não estou a sentir-me bem. Tenho de subir e deitar-me um bocado.

Ficou desiludido.

- E mais tarde?

- Não sei, Troy. Desculpa - disse e caminhei em direcção à escadaria. Não olhei para trás. Não conseguia olhar para mais nada que tivesse a ver com tristeza.

Pareceu-me ter demorado uma eternidade a subir as escadas. Movimentava-me com uma letargia tal que não me apercebi de que já tinha chegado à minha suite. De repente, dei comigo no quarto. Fui para a cama e deitei-me com a cabeça na almofada. Começara a doer-me a cabeça e tinha uma sensação esquisita no estômago. Parecia que havia lá dúzias de borboletas, todas a tentarem encontrar a saída. As asas delas faziam comichão, enquanto batiam freneticamente.

Sentia-me apanhada numa armadilha. Seria possível sentir-me ainda pior do que me sentia?, pensei.

No entanto, foi o que se passou e logo na manhã seguinte. Tinha aberto os olhos há poucos segundos quando aconteceu: uma náusea. Os enjoos foram crescendo até que tive de me levantar a correr para ir à casa de banho vomitar. Senti-me tão agoniada que parecia que ia morrer. Finalmente parei de vomitar e consegui voltar para a cama a fim de descansar, até ter força suficiente para me levantar outra vez.

O que seria aquilo? Alguma coisa que tinha comido? E porque é que ia e vinha daquela maneira?, perguntei a mim própria.

E então fez-se luz. Havia-me esquecido completamente, pois tinha estado tão ocupada com outras coisas nesse último mês e meio...

O meu período estava atrasado.

E enjoos matinais!

"Oh, não", pensei. "Estou grávida!"

Esperei três dias até contar à minha mãe, com esperança e rezando para que os meus receios fossem infundados, mas as náuseas apareciam-me todas as manhãs e por vezes até voltavam durante a tarde. Também não havia hipótese de erro de calendário. Por mais voltas que lhe desse, era sempre confrontada com o mesmo facto: o meu período estava muito atrasado e eu nunca tinha sido irregular antes.

Finalmente apercebi-me de que não podia evitar. Por mais estranho que parecesse, quando me imaginei a contar à minha mamã, o meu primeiro pensamento foi que este facto ia confirmar agora o que ela se recusara a acreditar: o Tony tinha-me violado. Não podia ter engravidado sozinha. Claro que preferia que ela continuasse a duvidar de mim do que obter esta prova, mas uma vez que acontecera, não havia necessidade de não usar a minha gravidez para lhe fazer ver a verdade de uma vez por todas.

Ela estava a preparar-se para um cocktail de caridade que ia dar em Farthy, durante a tarde. Encontrei-a sentada no toucador a estudar um penteado novo para o cabelo. Não me ligou quando entrei nem me ouviu quando a chamei.

-Mamã, por favor! - exclamei eu. Pestanejou e virou-se para mim.

- O que foi, Leigh? Não estás a ver que estou a arranjar-me para receber os meus convidados? Não tenho tempo para disparates - ralhou ela.

- Isto não é um disparate, mamã - afirmei eu, num tom de voz duro e frio. Ela percebeu que eu estava a falar a sério e pousou a escova.

- Muito bem, o que foi agora? - Pestanejou e olhou para o tecto, mal tolerando a minha presença. - Sempre que eu estou no meio de uma coisa importante tu tens uma espécie de crise emocional. Não sei o que se passa com as adolescentes hoje em dia. Talvez andes a comer demasiado açúcar - concluiu ela.

- MAMÃ, FAZ o FAVOR DE ME OUVIR? - Tive vontade de saltar para cima dela e de agarrar nas madeixas do seu precioso cabelo para a obrigar a olhar para mim e a ouvir-me.

- Pára de gritar. Estou a ouvir-te. Mas, por amor de Deus, faz-me o favor de seres rápida.

Engoli os nós que sentia na garganta e respirei fundo.

- Quando lhe contei pela primeira vez o que o Tony tinha feito, a mamã não acreditou em mim. Não quer acreditar em mim! - disse eu. Não consegui evitar que a minha voz subisse de tom e que os meus olhos se abrissem. Quanto mais falava, mais furiosa ficava. A expressão aborrecida e impaciente da mamã atiçava o carvão da minha fúria, transformando-a em pequenas brasas. - Tentei explicar-lhe, dia após dia, tentei que percebesse que não era nenhuma fantasia de adolescente, mas a mamã não me ouvia...

- E continuo a não querer ouvir. Já te disse que eu...

- MAMÃ! - berrei eu. - ESTOU GRÁVIDA!

Quando as palavras saíram da minha boca, surpreenderam-me; mas ali estavam elas. Ficámos ambas em silêncio, confrontadas com a verdade. Ia haver um bebé. O acto perverso do Tony ia ter consequências e, agora, Deus ia-nos fazer pagar a todos pela luxúria de um louco.

À mamã ficou simplesmente a olhar para mim por uns instantes e então um sorriso cerrado e pequeno surgiu no seu rosto. Como eu queria apagar aquele sorriso! Recostou-se na sua cadeira e cruzou os braços no colo.

- O que é que disseste?

As lágrimas escorriam-me pelas faces e desta vez estava desamparada, não as conseguia engolir.

- O meu período está muito atrasado e, nos últimos dias, tenho tido enjoos matinais. Ele engravidou-me. - Ela ficou calada; olhava para mim como se eu tivesse acabado de falar numa língua estrangeira e estivesse à espera da tradução. - Não entende o que lhe estou a dizer, mamã? Tudo o que eu lhe contei era verdade e agora vou ter um bebé, um bebé do Tony! - gritei eu, fazendo-a ver a verdade com o máximo de firmeza que conseguia.

- Tens a certeza? Tens a certeza absoluta em relação às datas?

- Sim. Sabe que eu estou sempre a par disso - respondi eu, com firmeza. Não havia necessidade de fingir que o que estava a acontecer não era verdade. Não ia fazer como a minha mãe: não ia viver num mundo de ilusões só para me sentir feliz.

Ela abanou a cabeça, os olhos diminuíram e encheram-se de ódio.

- A culpa é tua, minha parva - uivou ela com veemência.

- O quê? - Não estava a acreditar no que ouvia. Ela encostou-se à cadeira, assentindo silenciosamente, a confirmar os seus próprios pensamentos.

- Andaste-te a exibir, a tentá-lo, a atormentá-lo com o teu corpo jovem a desabrochar. E agora estás a sofrer as consequências, consequências horríveis, embaraçosas, terríveis.

- Eu não andei a exibir-me! A mamã sabe...

- Sim, eu sei. Não penses que o Tony não vinha ter comigo a toda a hora, queixando-se de que tu te andavas a atirar a ele. E depois, enquanto eu estava fora, convidaste-o para a tua suite. O que é que estavas à espera que ele fizesse, contigo ali deitada, nua, a tentá-lo, a convidá-lo, exigindo que ele fizesse amor contigo, se não... tu... tu inventavas histórias sobre ele.

- O quê? Ele contou-lhe uma mentira dessas? Como é que pode acreditar nessa história? - perguntei eu.

- E agora vê o que fizeste - continuou ela, sem me ouvir. Parecia uma actriz que tinha ensaiado e voltado a ensaiar aquelas frases e se recusava a fazer mais alguma coisa a não ser recitá-las. - E se isto sair daqui? Pensa só no que me vai acontecer, no que os meus amigos vão pensar. Nunca mais seremos convidados para um único jantar. Seremos excluídos da sociedade... e tudo porque a minha filha é uma promíscua, uma tarada sexual, uma egoísta, uma irreflectida... uma ciumenta. Sim, é isso que tu és - afirmou ela, obviamente muito satisfeita com a explicação que arranjara. - E é isso que tens sido. Tens ciúmes de mim, da minha beleza e do facto de eu ter casado com um homem tão jovem e tão atraente, em vez de ficar atrelada ao teu pai, um velho que não me merecia.

- Isso não é verdade!

- Claro que é verdade. Ele contou-me como tu te comportavas na casa pequena, como tentaste seduzi-lo durante as sessões em que fizeste de modelo.

- Mentira, é tudo mentira! - gritei eu. Porque é que ela estava a fazer-me aquilo? O que é que tinha acontecido à nossa relação entre mãe e filha? - Eu não queria posar. Não se lembra? A mamã obrigou-me. E depois, quando vim ter consigo...

- Sim, vieste ter comigo para tentar que eu deixasse de gostar do Tony. Tentaste fazer-me ciúmes. Foi isso que vieste fazer - concluiu ela, com os olhos a luzirem. - Achaste que se inventasses essas histórias sobre ele tocar em ti...

- Ele tocou, mamã! Isso não eram histórias!

- Ele tocou em ti, mas não da maneira que tu me querias fazer acreditar. E como nada disso deu resultado, atraíste-o ao teu quarto e, quando ele resistiu, cuspiste-lhe a verdade sobre a minha idade, tentando cavar um fosso entre ele e eu!

Percebi que ela nunca iria perdoar-me aquele facto. Nunca acreditaria que o Tony já sabia a verdade antes de eu lhe dizer.

- E ele - prosseguiu -, como é apenas um homem, sucumbiu, e agora olha para o que fizeste, olha para o resultado. bom, espero que estejas orgulhosa de ti própria, princesinha! - disse ela, quase histérica. Nunca me tinha parecido tão repugnante.

- Mamã, nada disso é verdade. Não é possível que acredite mesmo em tudo isso.

- Depois de me ter esforçado tanto para te educar correctamente, tentando que percebesses a relação que as mulheres e os homens devem ter, que uma mulher deve manter a sua virtude para ganhar o respeito e a admiração dos homens. Eu DISSE-TE - berrou ela. - AS RAPARIGAS DECENTES NÃO VÃO ATÉ Ao FIM!

O seu grito vibrou dentro de mim, destruindo quaisquer sentimentos de amor ou de respeito por ela que ainda me restassem. Partiram-se, despedaçaram-se e desintegraram-se, como um prato de porcelana fina, cujos pedaços me vinham à memória... Fragmentos de conversas carinhosas entre nós, recortes de imagens, fotografias de tempos felizes, o som de sinos a tocarem e da música de caixinhas de música preciosas, gargalhadas intermináveis, meios sorrisos, beijinhos nas minhas bochechas e na testa, as nossas mãos a separarem-se.

Não aguentava mais. Não era eu quem tinha ciúmes; era ela. Não era eu quem mentia e traía. Eu não era egoísta nem cega em relação a tudo quanto não me agradava; ela era. E agora, para manter o seu pequeno mundo como desejava, pintava-me como uma criatura reles. Era eu a culpada, apesar de ter sido eu a violada.

- SUA MENTIROSA! - gritei-lhe. - Hipócrita, sentada aí, a condenar-me por ser promíscua e por ir até ao fim. Eu sei a verdade sobre si. Eu ouvi a conversa que teve com a avó Jana mesmo antes de casar com o Tony e sei que o papá não é o meu pai verdadeiro. Sei que dormiu com outro homem, que engravidou e que se casou com o papá sem lhe dizer a verdade para que ele pensasse que eu era filha dele. Eu soube, mas mantive segredo, enterrei-o no fundo do meu coração, apesar de arder e de doer.

- Mas isso é... - Encostou-se com uma expressão confusa.

- Isto é verdade - interrompi eu. - Tudo verdade. Mas a sua mãe ajudou-a a encontrar um marido, um homem que a amasse e respeitasse.

Isso é ridículo - exclamou ela, emergindo da sua apatia e olhando em volta, como se tivéssemos de convencer alguma testemunha. - Que boato é esse que queres começar a espalhar agora sobre mim? É outra maneira de tentares tirar-me o Tony?

- PARE com ISSO! PARE DE MENTIR!

- Como é que te atreves a gritar comigo dessa maneira! Eu sou a tua mãe.

- Não, não é - afirmei eu, abanando a cabeça e afastando-me dela. - Não, não é. Eu não tenho mãe e não tenho pai. - Permiti-me a mim própria proferir palavras tão repugnantes como as dela. - Pensava que conseguia tudo o que queria, não era? Só do melhor! - proferi eu, encolerizada. - Um marido jovem e bem-parecido, uma propriedade luxuosa, um guarda-roupa desenhado pelos melhores estilistas e uma AMANTE ESPECIALMENTE SELECCIONADA PARA o SEU PRÓPRIO MARIDO! - Baixei o tom de voz até ronronar, como a mamã fizera em várias ocasiões. - Diga-me, mamã, quando é que a ideia lhe veio à cabeça? Na vossa lua-de-mel? Quando voltou para Farthy? - As minhas perguntas tornaram-se enlouquecedoras e eu não deixava que a mamã respondesse, tal como ela tinha feito comigo tantas vezes. - Quando é que se apercebeu de que a sua beleza não ia durar para sempre e que ia começar a MURCHAR! - Ri-me na cara dela. É isso mesmo, a murchar! A cada dia que passa, vai ficando mais velha, mamã. Mas sempre soube isso, no fundo do seu coração! NÃO A SUPORTO MAIS! Não se preocupa com nada que não seja você própria e o seu precioso rosto. Agora, deixe-me dizer-lhe uma coisa, Jillian Tatterton, ACABOU! Vai ser avó! Isso fá-la sentir-se jovem? Mesmo que tenha um aspecto muito jovem, nunca vai poder escapar ao facto de ser AVÓ e a única pessoa que pode culpar é VOCÊ PRÓPRIA! - Virei-me e fugi a correr da suite dela, fugi das suas mentiras e dos seus olhos hipócritas, fugi de uma mulher que eu já não reconhecia nem amava. Fechei violentamente a porta do meu quarto atrás de mim, mas não chorei. Não ia voltar a chorar neste lugar malvado. Detestava este sítio, detestava o que acontecera aqui, detestava a pessoa na qual este lugar me tinha transformado. Só sabia que tinha de me ir embora, tinha de fugir aos seus pecados, às suas mentiras e aos seus falsos sorrisos.

Abri a porta do meu armário e agarrei numa mala. Sem planear a roupa que iria precisar, apanhei uma coisa aqui, outra coisa ali, atirando com as peças de roupa à toa para dentro da mala. Ignorei as minhas lindas roupas e as minhas jóias valiosas; estava-me nas tintas para as fotografias e para as lembranças. Só queria fugir o mais depressa possível.

Fechei a minha mala e dirigi-me para a saída do quarto, mas parei à porta e virei-me, como se alguém tivesse chamado por mim. Angel fitava-me do outro lado da sala. Parecia tão triste e tão perdida como eu. Como é que podia deixá-la para trás? Amparei-a nos meus braços e saí da suite com a mala na mão. A minha mãe não tinha vindo atrás de mim, nem estava no corredor. Apressei-me no caminho para a escadaria.

Só quando cheguei ao fundo das escadas é que parei para me perguntar a mim própria o que estava a fazer e para onde me estava a dirigir. Não podia simplesmente abandonar Farthy. Estava a quilómetros de qualquer sítio.

"A avó Jana", pensei. Ia ter com ela. Ela perceberia. Ela sabia quem era realmente a mamã. Contar-lhe-ia tudo o que acontecera. Ela teria pena de mim. Tinha de me dirigir para sul e perfazer a viagem até casa dela, mas para isso precisava de dinheiro. Procurei dinheiro na minha carteira e descobri que não tinha sequer vinte dólares, o que não era suficiente para financiar a minha viagem para o Texas. Lembrei-me do sítio no escritório onde o Tony guardava algum dinheiro e fui buscá-lo. "Porque não?", pensei. Se alguém devia pagar, esse alguém era o Tony.

Havia quase duzentos dólares na gaveta da secretária. Não era uma fortuna, mas era suficiente para me pôr a caminho. Enfiei o dinheiro na mala, endireitei-me e olhei para o espelho. Dei um jeito ao cabelo, limpei o rosto com um lenço e respirei fundo. Não queria parecer tão desesperada como me sentia. Tinha intenções de sair e pedir casualmente ao Miles para me conduzir a Boston. Se ele desconfiasse de alguma coisa, podia voltar a casa e perguntar primeiro à minha mãe.

Saí do escritório, fechando a porta devagar. A casa estava em silêncio. Espreitei pelas escadas para o segundo andar e não vi ninguém. A minha mãe provavelmente tinha continuado a arranjar-se para a festa. Afinal, primeiro que tudo estava a sua beleza, e ela ia receber os seus amigos ricos, pessoas que ela tinha de impressionar. O Curtis apareceu, vindo da sala de música e parou a olhar para mim com uma expressão de curiosidade estampada na cara, pois viu-me ali de pé de mala na mão. Eu sorri, tentando que tudo parecesse casual e ele acenou com a cabeça, continuando o seu caminho até à cozinha.

Em seguida, saí pela porta da frente. A luz brilhante do Sol ofuscou-me; pus a mão por cima dos olhos para fazer sombra. Estava muito calor e havia nuvens grandes e altas espalhadas pelo céu azul. Uma brisa fraca e suave acariciou-me o rosto. O mundo dava-me as boas-vindas, encorajava-me a sair deste reino sombrio e encantado chamado Farthinggale. Quando aqui chegara, pensei que esse lugar fosse como num livro de contos. Agora conhecia a verdade: que era um pesadelo tornado realidade!

Por sorte, o Miles estava na parte da frente da casa a polir o carro. Não tinha de ir à procura dele e atrair desse modo a atenção dos empregados que trabalhavam no jardim. O Miles levantou os olhos bruscamente, quando comecei a andar na direcção dele.

- Não estou adiantada - disse eu, e sorri. Olhei para o meu relógio e depois mostrei-lho para ele ver as horas.

- Hum? - Pousou o pano de polir e olhou para mim com uma expressão confusa. - Era suposto levá-la a algum sítio esta tarde?

- À estação de comboios, Miles. Não me diga que a minha mãe se esqueceu de o avisar hoje de manhã.

- Não, ela não me disse nada. Eu...

- É típico dela, quando organiza uma das suas festas de caridade. Fica tão excitada e tão agitada que se esquece de tudo o resto - comentei eu. Eu sabia que ele acreditava naquilo. - vou visitar a minha avó. Já está tudo tratado. Receio bem que tenhamos de partir imediatamente, se não, perco o meu comboio.

- Mas... - Ele olhou para cima na direcção da casa.

- Miles? - Levantei a minha mala para indicar que ele devia pegar nela.

- Oh. - Pegou na mala a correr e pô-la no porta-bagagens da limusina. - Não percebo porque é que o Curtis não me disse nada. Ele vem sempre relembrar-me quando alguém está para viajar.

- Talvez a mamã também não se tenha lembrado de lhe dizer - observei eu. - Vamos?

- O quê? Oh, sim. - Abriu-me a porta e eu entrei rapidamente. Em seguida, entrou também e pôs o motor a trabalhar. Observei a porta da frente, meio à espera que a minha mãe aparecesse de repente e começasse a gritar, exigindo saber o que se estava a passar. Mas ela não surgiu e o Miles começou a descer pela estrada longa e tortuosa. Olhei pela janela lateral e, de súbito, vi o pequeno Troy e a sua enfermeira que regressavam de um passeio à praia. No estado de excitação e de fúria em que me encontrava, tinha-me esquecido completamente dele e do que a minha partida iria significar para aquela criança.

- Oh, não - murmurei por entre dentes. - Troy! Miles

- gritei eu. - Por favor, pare um momento. Esqueci-me de dizer adeus ao Troy.

Mal ele parou o carro, desci e chamei o Troy, acenando-lhe. Ele parou e veio a correr na minha direcção com o seu pequeno balde a balouçar na mão.

- Leigh, apanhei a maior concha que alguma vez viste

- gritava ele. - Olha. - Parou à minha frente, sem fôlego, e pousou o balde. Tinha posto um búzio cor-de-rosa e branco no topo de uma variedade de pequenas conchas.

- Essa é grande.

- E consegue-se ouvir o som do mar. - Pegou nele e entregou-mo. - Ouve.

Pus o búzio no ouvido e assenti, a sorrir.

- Parece que vai sair cá para fora e molhar-me toda comentei eu, afastando o búzio do ouvido, como se estivesse realmente com medo. Ele riu-se.

- Não está aí dentro. - Voltou a pegar no búzio e colocou-o no balde. Foi então que reparou na limusina. - Onde vais, Leigh?

- Tenho de me ir embora por uns tempos, Troy. - Peguei na mãozinha dele e agachei-me, para poder olhar para os seus olhos. - Porta-te bem e tenta descansar e comer enquanto eu estiver fora, está bem?

- Mas quando é que voltas?

- vou demorar uns tempos, Troy.

- Muito tempo? - Eu assenti. - Então quero ir contigo.

- Não podes, Troy. Tens de ficar aqui onde há pessoas que podem tratar de ti.

- Mas para onde vais? - perguntou, de novo, já com lágrimas nos olhos.

- vou ver a minha avó.

- E porque é que nunca foste ver a tua avó antes? perguntou ele, desenvolvendo rapidamente um certo cepticismo na sua cabecinha inteligente.

- Estava sempre demasiado ocupada - menti eu. Ele inclinou levemente a cabeça. Percebeu que eu estava a mentir, pensei eu, mas tinha de ser.

- Não vais mesmo voltar, Leigh? - perguntou, com brandura.

Claro que vou - respondi eu. Sorri e reprimi as gordas lágrimas que estavam prestes a explodir.

Não, não vais - disse ele, afastando-se de mim. -

Vais deixar-me a mim e a Farthy. Não vais voltar; não vais.

Volto, Troy. Prometo. Não sei como, nem de que modo, mas voltarei para ti.

- Prometes?

- Juro. Vem, dá-me um beijo de despedida. Por favor

pedi. - Se não, vou fazer uma viagem horrível. - Fiz uma careta, como se já estivesse a passar um grande tormento.

Ele enterneceu-se e pôs os seus bracinhos à volta do meu pescoço. Beijei-lhe a face e abracei-o com força. A seguir, ele bicou a minha face, como um passarinho, e afastou-se. Levantei-me, sorri para ele e voltei para o carro.

- Leigh! - chamou ele. - Espera.

Detive-me à porta do carro. Ele enfiou a mão no balde e tirou lá de dentro o búzio.

-"Leva isto contigo - ofereceu-me.

- Oh, não, Troy. Guarda o búzio aqui.

- Não - afirmou ele, abanando a cabeça vigorosamente. - Leva-o contigo e não te esquecerás de mim.

- Eu não posso esquecer-te, Troy. Não precisas de te preocupar com isso - disse eu, mas ele ficou ali, obstinado, de mão estendida, a segurar no búzio. Peguei nele. - Está bem. Obrigada.

- Se puseres o búzio no ouvido, vais ouvir o mar e vais ouvir-me a mim - prometeu ele. Voltou-se e foi a correr ter com a enfermeira. Observei-o por uns momentos e depois entrei dentro do carro.

- Por favor, Miles, vamos - disse eu. - O mais depressa possível.

O Miles esboçou um sorriso, ainda um pouco desconfiado, mas depois arrancou. Avançámos pela estrada e passámos o portão principal atravessando o grandioso arco, mas eu não olhei para trás. Em vez disso, pus o búzio no ouvido e pus-me a ouvir o som do mar e o choro do Troy.

Ele chamava-me.

- Leigh... Leigh...

Então, tirei o búzio do ouvido, fechei os olhos e Farthinggale ficou para trás, vacilante como uma vela moribunda.

 

UMA VISITA A UM CIRCO

Nunca tinha viajado para lugar nenhum sozinha, mas não queria que o Miles se apercebesse dos meus receios, nem das minhas indecisões. Logo após a nossa chegada à estação de comboios, ele tirou a minha mala do porta-bagagens e esperou pelas minhas ordens.

- Eu levo a mala a partir daqui, Miles - afirmei.

- Oh, não, Miss Leigh. Eu entrego a mala ao bagageiro. Para onde vai?

- Deixe estar, Miles. Eu quero ficar por minha conta. Gosto da ideia de viajar sozinha - expliquei eu e fiz um sorriso caloroso, para que ele não se apercebesse do meu nervosismo. O Miles hesitou por uns momentos e depois pousou a mala.

- bom, faça boa viagem, Miss Leigh - disse.

- Obrigada, Miles. - Peguei rapidamente na minha mala e entrei na estação, parando para lhe acenar e para lhe dizer adeus mais uma vez. Seria a última vez? Ele deixou-se ficar ali a olhar para mim, mas não me seguiu para ter a certeza de que eu ficava em segurança dentro do comboio.

Voltei-me e olhei em volta. Por todo o lado havia pessoas apressadas e ouviam-se avisos relativos aos diferentes comboios e destinos. A azáfama era excitante, mas também me assustava. Vi um polícia alto e ruivo ao lado de um quiosque a falar com o empregado da caixa registadora. Tinha um ar jovem e uma cara simpática; por isso, dirigi-me a ele.

- Desculpe - disse eu -, mas podia dar-me uma informação? Onde é que se pode comprar um bilhete para o Texas?

- Para o Texas? - perguntou ele a sorrir. - O Texas é um estado muito grande. - O empregado do quiosque riu-se. - Sabe para que sítio do Texas quer ir?

- Sei, sim, senhor.

Então - explicou ele -, vire à direita neste primeiro corredor e no fim do corredor vai encontrar a bilheteira.

- Obrigada - disse eu.

- Olhe cá, a boneca que leva aí é bonita, tão bonita como a menina - observou ele. Esquecera-me que estava a agarrar na Angel com tanta força. Sorri e comecei a andar. Não está a fugir de casa pois não? - gritou-me ele.

- Oh, não, senhor.

Ele e o empregado do quiosque voltaram a rir-se. Quando cheguei à bilheteira, pedi um bilhete para Fullerton, no Texas. No fundo, era tudo o que sabia da morada da avó Jana. Pensei que quando lá chegasse podia telefonar-lhe para ela me vir buscar.

O cobrador esboçou um sorriso.

- Fullerton, no Texas? - Estudou os seus mapas de horários. - Não há nenhum comboio que pare aí, menina. É próximo de quê?

- Oh, não tenho a certeza. Acho...

- Houston? Dallas? El Paso?

Comecei a entrar em pânico. Se não escolhesse uma estação, ele ia certamente pensar que eu estava a fugir de casa. Talvez até fizesse sinal ao polícia, e nada seria mais horrível, mais embaraçoso e mais degradante do que ser levada de volta para Farthy num carro da Polícia mesmo no meio da festa de beneficência da mamã.

- Dallas - disse eu, prontamente. Só queria ir para o Texas. Quando lá chegasse, telefonaria à avó Jana. Tinha a certeza de que ela tomaria providências para que eu fosse levada para sua casa, mesmo que fosse muito longe.

- Pronto, Dallas. bom - disse ele -, o melhor que posso fazer por si é mandá-la para o nosso terminal em Atlanta. No entanto, vai ter de esperar muitas horas pela ligação. A não ser que volte e parta amanhã de manhã bem cedo.

- Não, não me importo de esperar - balbuciei eu.

- Estou a ver. Ida e volta, presumo?

- Não - disse eu prontamente. - Só ida.

- Geral, carruagem, carruagem-cama?

- Carruagem - afirmei eu.

Ele assentiu e começou a preparar o meu bilhete.

- São cento e sessenta e dois dólares.

Cento e sessenta e dois! Ficava com muito pouco dinheiro para o resto. Talvez devesse ter escolhido um lugar geral, pensei, mas não hesitei. Não queria que o cobrador percebesse que não tinha muito dinheiro para viajar. Contei o dinheiro depressa e ele deu-me o bilhete.

- Vai partir da plataforma C dentro de cerca de quinze minutos. É ali em baixo à direita. Está bem assinalado.

- Obrigada. - Peguei no bilhete e afastei-me.

Nesse momento já tinha o bilhete na mão e dirigia-me para a gare do comboio, e foi então que tive consciência da realidade. O meu coração batia com tanta força que pensei que desmaiava e fazia uma cena. Imaginei um aglomerado de pessoas à minha volta e o jovem polícia a manter toda a gente à distância. Ainda fiquei mais assustada; apressei-me em direcção à plataforma indicada e sentei-me no primeiro lugar vago que encontrei num banco. Não havia muita gente, pois ainda faltava algum tempo para a partida do comboio. Reparei numa mulher com duas meninas, dois bancos a seguir a mim. Estava a ler-lhes um livro de histórias infantis para as manter ocupadas. Não consegui evitar as lembranças de quando a mamã lia para mim.

Como o mundo era diferente quando era pequena e vivíamos todos na nossa casa de Boston, pensei. Observar aquela mãe e as suas filhas desviou-me o pensamento para o bebé que carregava. Seria menino ou menina? Quando desse à luz, devia ficar com a criança ou entregá-la para adopção? Qual seria o conselho da avó Jana? Conseguiria afastar-me da criança quando a tivesse nos meus braços? Mas não era eu demasiado jovem para ser mãe e, se viesse a ser, que tipo de mãe seria?

De uma coisa tinha a certeza, nunca viria a ser uma mãe como a minha. Preferia que a criança fosse adoptada do que ser uma mãe assim, pensei. Sentei a Angel ao meu lado e fechei os olhos. O ruído surdo e prolongado dos comboios a aproximarem-se e a partirem das outras plataformas fazia tremer o chão. Pouco depois, começaram a chegar mais e mais pessoas. Quando um homem de fato e gravata veio sentar-se ao meu lado, apertei a Angel nos meus braços. O homem sorriu, mas logo a seguir abriu um jornal e começou a ler.

O meu coração começou outra vez a palpitar. Estava a aproximar-se a hora da partida. Olhei para trás. Estaria a tomar a decisão certa? Era fácil mudar de ideias. Era só telefonar e pedir ao Miles para me vir buscar. Dentro em breve, ele próprio estaria a chegar a Farthy, e das duas uma: ou mencionava que me tinha levado à estação ou alguém lhe perguntava onde tinha ido. A mamã descobriria a minha manobra e mandá-lo-ia de volta para me vir buscar, mas ele não chegaria a tempo.

Não voltaria atrás, pensei, e, quando o comboio entrou a ribombar na gare, levantei-me de imediato, para subir logo que as portas se abrissem. Encontrei rapidamente a minha carruagem e sentei-me à janela. Em seguida, arrumei a minha mala por cima da cabeça, instalei a Angel com todo o conforto ao meu lado e esperei ansiosamente. Havia espaço para pelo menos mais três pessoas; porém, a única pessoa que entrou no compartimento foi um senhor mais velho. Acenou com a cabeça, sentou-se e começou imediatamente a ler o seu jornal.

Por fim, o comboio começou a andar. O meu coração batia ao ritmo do som das rodas do comboio que regressavam aos seus carris. A estação desapareceu atrás de nós e disparámos em direcção à penumbra, em direcção ao Sul, afastando-nos do único mundo que eu alguma vez conhecera.

- O bilhete, menina? - pediu o revisor. Eu tinha o bilhete na mão e entreguei-lho prontamente. Ele picou o bilhete e sorriu.

Recostei-me e olhei pela janela enquanto o comboio avançava a serpentear, levando-me por túneis escuros e sobre montes, em direcção a novos horizontes. Parecia que estávamos a caminhar para a noite que se aproximava, enquanto a escuridão se arrastava na nossa direcção. Vi de relance estrelas a espreitarem por entre as nuvens. Nunca me tinham parecido tão longínquas como nesse momento.

O comboio continuava, embalado. De vez em quando, viam-se as luzes de outras cidades ou de casas, à distância, cujas janelas eram de um amarelo caloroso. No interior dessas casas, as famílias sentavam-se juntas à volta da mesa, a jantar. Aquelas crianças sentiam-se em segurança e a salvo junto dos pais que as amavam. Não eram tão ricas como eu; as suas casas cabiam num canto da Mansão Farthinggale e perdiam-se lá dentro, mas nessa noite dormiriam nas suas próprias camas e os pais delas dar-lhes-iam um beijo de boas-noites. As mães aconchegariam os seus filhos nas camas. Os papás beijá-los-iam na face e na testa e prometer-lhes-iam um amanhã ainda mais animado e feliz.

Eu não tinha ninguém que me prometesse um amanhã mais feliz ou mais animado; só a Angel. Ela e eu encontrávamo-nos sentadas como duas crianças a serem empurradas para o desconhecido. Estávamos cansadas e com fome e já nos sentíamos muito sozinhas. Apesar de o senhor que estava sentado à minha frente me ter observado com curiosidade quando coloquei a Angel com firmeza no colo, deixei-a ficar, abraçando-a com força, enquanto o comboio avançava. Estava determinada a não voltar atrás, nem agora, nem nunca. Pouco depois, o ritmo monótono das rodas do comboio adormeceu-me.

Acordei a meio da noite com o som de um sinal de partida. Dentro da carruagem estava escuro, mas havia luzes no exterior do comboio e nos corredores. Assim, depois da confusão inicial, lembrei-me com precisão de onde estava e do que tinha feito. O senhor à minha frente estava a dormir com o jornal aberto no colo. O corpo dele balançava de um lado para o outro ao ritmo do movimento do comboio. Aninhei-me novamente e fechei os olhos. Pouco depois já estava a dormir outra vez.

Acordei com a primeira luz da manhã e olhei lá para fora para as quintas e para os campos planos. O senhor mais velho já estava acordado.

- Para onde vai, menina? - perguntou ele.

- Atlanta.

- Eu saio na próxima paragem. Ainda tem umas boas cinco horas pela frente. Pode ir comer qualquer coisa à carruagem-restaurante. Tem uma boneca muito bonita - observou ele acenando na direcção da Angel. - Acho que nunca vi uma tão bonita - acrescentou ele com um sorriso de admiração.

- Obrigada.

- Vai para casa?

- Sim - respondi eu. Achei que era melhor dizer que sim. De certa maneira, até podia estar a caminho de casa, raciocinei eu.

Ele esticou-se.

- Eu também - disse ele. - Já ando na estrada há quase um mês. Sou vendedor, grossista, de calçado.

- Deve ser difícil para si estar tanto tempo afastado da família.

- Isso é verdade. Não há nada como ir para casa. Claro que todos os meus filhos são adultos, por isso somos só eu e a mulher. Mesmo assim é bom. Temos cinco netos - acrescentou ele, sorrindo de orgulho.

Eu devolvi-lhe o sorriso e depois comecei a pensar que, dentro em breve, a mamã também ia ter um neto, só que ela nunca seria capaz de estimar o seu neto da maneira que este homem estimava os seus, pois o pai do neto dela era o seu próprio marido. O mundo sinuoso e sombrio de Farthy ia perseguir o meu filho para sempre, concluí eu. Era quase razão suficiente para não o ter.

No entanto, talvez eu conseguisse encontrar outro mundo, um mundo muito diferente de Farthy, e criar o meu filho nesse mundo. Se conseguisse, se conseguisse, se conseguisse... Entoava aquelas palavras como se estivesse a pregar ao ritmo das rodas do comboio. Nesse momento, o meu estômago roncou de fome.

- Acho que vou tomar o pequeno-almoço - disse eu, pondo-me de pé.

- Eu tomo conta da sua boneca - ofereceu-se o senhor.

- Oh, não. Ela vai a todo o lado comigo - afirmei eu.

- E, além disso, ela tem tanta fome como eu.

Ele riu-se e eu saí para procurar a carruagem-restaurante.

Parámos na estação dele enquanto eu estava a comer; portanto, já lá não estava quando regressei. Passei as três horas e meia seguintes sozinha, a olhar pela janela. Quando ouvi anunciarem a chegada a Atlanta, o meu coração começou novamente a bater. A primeira parte da minha longa e triste viagem tinha terminado. Estava muito longe de Farthy e, a esta hora, a mamã estaria certamente agitada e zangada. Comecei a imaginar como é que ela iria lidar com aquela situação. Chamaria a Polícia ou teria medo do escândalo? Tentaria contactar o Tony na Europa?

De uma coisa tinha a certeza, pensei. Não deixara que o sucedido interferisse com a sua festa de beneficência em Farthy. Ninguém que por lá tivesse passado seria capaz de dizer que alguma coisa estava errada só por olhar para a cara dela, e ela daria ordens ao pessoal, principalmente ao Miles e ao Curtis, para não mencionarem uma palavra sobre o assunto a ninguém.

Estava mesmo a imaginar a mamã a dizer para si própria:

- Ela volta quando lhe passar.

- Não, não voltarei, mamã - garanti eu. - Não, não voltarei.

Fiquei parada na gare durante alguns minutos a ler todos os quadros que informavam os passageiros dos pontos de partida para os diferentes destinos. O terminal de Atlanta era maior que o de Boston e parecia que havia o dobro, não, o triplo das pessoas a andarem de um lado para o outro. Encontrei um balcão de informações no gigantesco átrio e mostrei o meu bilhete à rapariga que lá estava.

- Tem de descer o corredor ali à direita e virar na primeira à direita. Vai ver os horários, mas este comboio só parte às oito da noite. Não tem sítio para ficar até essa hora? São horas e horas.

- Não - respondi eu. - Não faz mal.

- Faça como quiser - disse ela e voltou-se para outra pessoa. Comprei uma revista e, depois de seguir as instruções dela, cheguei à minha gare. Era muito mais larga e muito mais comprida do que a outra em Boston. Havia uma pequena sala de espera à direita; por isso, dirigi-me para lá e sentei-me num banco ao fundo. Em seguida, contei o dinheiro que tinha. Não sobrava muito e eu esperava que fosse suficiente para almoçar e para jantar.

- Aposto em como consigo transformar a tua nota de um dólar numa nota de cinco dólares - disse alguém, e eu levantei os olhos para deparar com os olhos negros mais radiosos que alguma vez vira. O rapaz que estava à minha frente tinha cabelo preto-azeviche e pele cor de bronze. Era alto e bonito, com uns ombros fortes que deformavam as costuras da sua fina camisa de manga curta.

- O quê?

- Confia-me uma dessas notas de um dólar por um momento e eu mostro-te - disse ele, sentando-se ao meu lado.

Não sei porque é que o fiz, mas entreguei àquele estranho um dos meus preciosos dólares. Eu sabia que viajantes ingénuos, principalmente raparigas como eu, eram os alvos preferidos dos aldrabões em toda a parte. Mas ele disse que transformava a minha nota de um dólar numa de cinco e não ao contrário, e agradava-me olhar para ele.

Pelo que podia ver, não tinha nada nas mãos e, como é óbvio, também não tinha mangas onde pudesse guardar alguma coisa. Dobrou a minha nota de dólar com muito cuidado sobre a palma da mão, perante os meus olhos. Dobrou-a até ficar o mais pequena possível. Então, virou a mão de maneira a que eu pudesse ver apenas a parte de cima do punho fechado. Estendeu-me o braço e sorriu.

- Pronto, agora toca na minha mão - disse. Os olhos dele cintilavam.

- Toco na tua mão? - Ele assentiu. Pus o meu dedo no nó do seu dedo do meio e retirei-o rapidamente. Ele riu-se.

- Não dói. Mas está bem, já é suficiente - afirmou ele e virou a mão, ficando de novo com a palma para cima. Depois, ante os meus olhos atónitos, desdobrou a nota e ali estava ela: uma nota de cinco dólares!

- Como é que fizeste isso? - perguntei eu, com os olhos arregalados.

Ele encolheu os ombros.

- Magia, que mais pode ser? De qualquer modo, aqui tens, cinco dólares - disse ele, entregando-me a nota. Pela maneira como estavas a contar o teu dinheiro parece que precisas destes quatro dólares a mais. - Depois, acrescentou: - É verdade?

Fiquei vermelha.

- Bem, eu não costumo aceitar dinheiro de estranhos, mesmo que seja dinheiro mágico - repliquei eu, devolvendo-lhe a nota de cinco dólares.

- Está bem. Então, vou deixar de ser um estranho disse ele encostando-se e virando as palmas das mãos para cima. - O meu nome é Thomas Luke Casteel, mas quase toda a gente me trata por Luke. E tu quem és? - Estendeu-me a mão.

Olhei para ele, sem saber se devia rir ou levantar-me e ir-me-embora. Ele era bonito de mais para ser aldrabão, pensei eu; aliás, esperava eu.

- Leigh VanVoreen. - Apertei-lhe a mão.

- Pronto, agora já não somos estranhos e tu podes guardar o dinheiro mágico.

- Eu não preciso dele, de verdade. Tenho o suficiente para chegar ao meu destino. Desculpa, mas tenho de insistir para que troques a nota outra vez.

Ele riu-se.

- Não sei o truque para voltar a trocar a nota. Desculpa.

- Estás a ser muito tolo, a desperdiçar dinheiro desta maneira.

Ele encolheu os ombros.

- O dinheiro aparece tão depressa como desaparece. Além disso, ver a tua cara quando fiz o meu truque valeu mais do que quatro dólares - disse ele, olhando-me, olhos nos olhos.

Senti-me a corar.

- És mágico?

- Não. Estou a trabalhar num circo aqui ao pé e aprendi uma data de coisas com os feirantes.

- Feirantes?

- Os artistas de circo. É uma gente espectacular. São como unha com carne, estão sempre juntos e ajudam-se uns aos outros. Alguns deles até já viajaram pelo mundo inteiro e conhecem muitas coisas. Aprendo imenso só de me sentar ao pé deles e de os ouvir falar. Ficavas surpreendida se soubesses as coisas que eu já sei, e o conhecimento e a experiência é o que nos torna mais adultos - acrescentou ele, com orgulho.

- Não pareces assim muito velho.

- Tenho dezassete. Tu também não tens ar de ser muito velha.

- Tenho quase catorze anos.

- Bem, não somos muito mais velhos do que o Romeu e a Julieta, sabes - disse ele. - A Duquesa contou-me a história deles. Ela era uma actriz profissional na Europa. Agora faz o número das facas, com o marido.

- Queres dizer que ela está ali de pé, enquanto o marido atira facas à volta dela?

- Sim.

- Eu nunca conseguiria fazer isso. E se o marido se zanga com ela?

O Luke voltou a rir-se.

- Isso é uma das grandes piadas que se contam nas tendas. Não é tão perigoso como parece. Há uma técnica para fazer isso, tal como existe uma técnica para a maior parte das coisas que se fazem no circo, mas é isso que eu adoro no circo: as ilusões, o mundo do "faz de conta", a excitação.

- Parece divertido. O que é que tu fazes?

- Eu arranjei um trabalho em part-time por uns tempos, só para andar com o circo. Um dia quero ser um grande mestre-de-cerimónias do circo. Estás a ver, o homem que chama as pessoas. - Levantou-se de um pulo e gritou. Venham, venham todos, venham ver o maior espectáculo à face da terra. Temos gigantes de um só olho, uma mulher-cobra, o homem mais pequeno do mundo, a mulher de barbas, Boris, o domador de leões, o melhor grupo de trapezistas voadores! - recitou ele, como se estivesse sobre uma plataforma. As pessoas que estavam ali ao pé voltaram-se para nós, mas ele parecia não se importar por estar a atrair a atenção de toda a gente.

- Fui bem?

- Muito bem.

- Obrigado. Estou sempre a praticar, mas é difícil, pois de onde eu venho as pessoas não sabem muito sobre circos. Não sabem muito de nada - disse ele, com tristeza.

- De onde é que vens?

- De um lugar na Virgínia Ocidental conhecido por Willies. Fica nas montanhas, sobre a cidade de Winnerrow - explicou ele, e eu percebi que, apesar do que tinha dito sobre as pessoas, tinha um sentimento muito caloroso pela sua terra.

- Porque é que lhe chamam Willies ? - perguntei eu. Parecia um nome estranho para uma terra.

- Oh, viver nos montes é o suficiente para qualquer pessoa apanhar um cagaço... principalmente quando os lobos uivam como o vento e os linces guincham. Lá em cima, as criaturas selvagens vagueiam à sua vontade. Temos de tomar conta dos nossos cachorros - acrescentou ele e riu-se.

- Pelo que dizes não parece ser um lugar muito agradável. Não é de admirar que te tenhas vindo embora para trabalhar no circo.

- Não, eu só estou a brincar. Não é assim tão mau. No fundo, até tenho saudades da paz e do sossego das florestas. A maior parte do tempo só se ouvem os pássaros a cantar e o murmúrio cristalino de um regato situado ali ao pé. E tenho saudades dos cheiros: das folhas verdes no Verão, das pinhas, das flores selvagens. É fabuloso poder olhar, olhos nos olhos, para os esquilos e outros animais do género e, quando o Sol se levanta de manhã e a sua cabeça aparece por detrás dos montes ou espreita através das árvores, uma pessoa sente-se... não sei... viva, acho.

- Nessa perspectiva parece que é maravilhoso - disse eu. - Afinal como é, de facto?

- É os dois. Então, para onde é que tu vais?

- vou para o Texas - disse eu. - Fullerton, no Texas. vou viver com a minha avó.

- Oh? És donde?

- De Boston e de Cape Cod.

- Como é que podes ser de dois sítios? - perguntou ele. Eu ri-me, mas ele não pareceu magoado. Percebi que era um rapaz muito sensível e não queria que ele pensasse que eu era estúpida ou frívola.

- A minha família tem várias casas - informei eu. Cresci em Boston, mas tenho vivido numa casa nos arredores de Boston - expliquei eu.

Ele assentiu silenciosamente.

- Parece que tinhas razão.

- O que é que queres dizer com isso?

1 Give the Willies é uma expressão utilizada em calão, que significa mais ou menos "apanhar um cagaço". (N. da T.)

- Não precisavas que eu te trocasse a nota de um dólar por uma de cinco - disse ele, taciturno.

- Sim, precisava - confessei eu. Os olhos dele abriram-se de curiosidade.

- Hem?

- Eu não trouxe muito dinheiro comigo quando me vim embora e não fazia ideia do preço das coisas - acrescentei. Ele assentiu, pensativo.

- Parece que saíste a correr, foi? - perguntou ele, mas eu desviei o olhar. - Olha lá, o que é isso que estás a agarrar com tanta força? - Inclinou-se para poder observar melhor a Angel. - Uma boneca! - exclamou ele, espantado. Os meus olhos flamejaram.

- Não é uma boneca qualquer. É uma boneca especial, uma boneca para coleccionadores. É uma obra de arte e chama-se uma boneca-retrato - disse eu, bruscamente.

- Ah, estou a ver. Desculpa. Bem, posso vê-la melhor? Prometo que tenho cuidado.

Olhei para os olhos dele. Parecia sincero. Então, passei-lhe a Angel. Ele segurou nela cuidadosamente e observou a cara e os traços do seu rosto. Depois, assobiou por entre dentes.

- Tens razão. Isto é mesmo uma obra de arte. Nunca vi uma boneca tão perfeita. - Baixou-a e olhou para mim. A seguir, voltou a olhar para ela. - Espera aí. Esta boneca é muito parecida contigo.

- É para ser - disse eu, voltando a pegar na Angel com cuidado. - Já te disse - é uma boneca-retrato. Eu... eu posei para ela.

- Ah! Ena, grande pinta, e essas roupas? Também parecem especiais.

- É são.

- Pronto, isso explica porque é que estás a agarrar na boneca como se a tua vida dependesse dela.

- Eu não estou a agarrar na boneca como se a minha vida dependesse dela - retorqui eu, bruscamente. Ele riu-se de novo. Quando sorria, os olhos dele brilhavam, calorosos. Não havia sinais de falsidade ou de aldrabice no seu sorriso; não tinha nada a ver com o sorriso de escárnio do Tony. O sorriso do Luke dava-me uma sensação de calor e de segurança.

- Estou só a brincar contigo. Então para onde é que tens de ir?

- Texas. Dallas, no Texas.

- Isso é longe. Quando é que parte o teu comboio?

- Só lá para as oito da noite.

- Oito da noite! Faltam horas. Não podes ficar aí sentada o tempo todo. Aqui é poeirento, sujo e barulhento. Não conheces ninguém em Atlanta? - Abanei a cabeça e ele ficou pensativo por uns momentos. - Bem, então deixa-me fazer-te uma pergunta. Gostavas de ir ver o circo? Posso levar-te à borla e o tempo passava mais depressa. Depois, trago-te de novo à estação.

- Não sei. Eu...

- Já foste ao circo alguma vez?

Pus-me a pensar. Tinha ido a um circo na Europa quando era muito pequena, mas não me lembrava de nada.

- Não - respondi.

- Pronto, então está decidido - declarou o Luke batendo as palmas das mãos. - Anda. - Pegou na minha mala. Eu continuei sentada. - Anda, não te vai acontecer nada e ainda por cima vais divertir-te.

Pensei na proposta dele. Eu tinha realmente de esperar muito tempo, e ele era tão bonito e tão simpático. Porque não? Decidi-me a ir e pus-me de pé.

- Óptimo - reagiu ele. - Eu vim trazer um amigo à estação e estava de regresso - explicou enquanto me conduzia para a saída. - O circo não é longe daqui. Só vai cá ficar mais dois dias e depois parte para Jacksonville.

- Parece que viajam muito - comentei eu.

Ele caminhava tão direito e com tanta segurança pela estação! Admirei-o por ser tão seguro com aquela idade. Era diferente dos rapazes que eu conhecia, até do Joshua; o Luke era maduro. Deduzi que tinha crescido mais depressa, pois vivia sozinho.

Quando saímos da estação, ele dirigiu-se para o parque de estacionamento e indicou-me uma carrinha de cargas e descargas castanho-clara.

- Este é o meu Rolls-Royce - disse ele. - Não é grande coisa, mas leva-me onde é preciso. Aposto em como estás habituada a andar em carros mais finos - acrescentou, piscando o olho. Eu não respondi. Abriu-me a porta e entrei na carrinha. Havia três garrafas vazias de cerveja no chão. Ele apanhou-as depressa e meteu-as no porta-bagagens. O banco estava rasgado e havia fios suspensos no painel. Entrou rapidamente e ligou o motor, que arrancou e foi-se abaixo. - Vá lá, Lulu Belle, devias dar boa impressão à nossa passageira e não te armares em teimosa. Tal como a maior parte das mulheres - comentou ele -, a Lulu Belle é de humores.

- Os homens também são tal e qual - retorqui eu. Ele riu-se. A carrinha arrancou e começámos a nossa viagem a caminho do circo.

- A tua família também está metida no circo? - perguntei-lhe eu.

- A minha família? - Ele voltou a rir-se. - Não, que ideia. O meu pai tem sido uma espécie de agricultor e de moonshiner durante a maior parte da vida. A mãe é uma mulher trabalhadora. Educou seis de nós e receio bem que se tenha ressentido - disse ele, ficando com uma expressão carinhosa e triste. - Conheces o ditado: não é a distância que conta, mas se a estrada é tortuosa...

- Seis filhos é muita criança para criar. Quantos rapazes e quantas raparigas?

- Tudo rapazes, o que deve ter tornado as coisas mais difíceis. Nunca teve uma filha para a ajudar nos trabalhos de casa.

- Onde estão os teus irmãos?

- Estão espalhados por aí. Dois deles já se deram mal. Antes de eu sair dos Willies ouvimos dizer que o Jeff e o Landon já estavam na cadeia por assaltos a lojas.

- Lamento - disse eu. Nunca conhecera ninguém cujos irmãos ou familiares mais próximos fossem criminosos. Não consegui deixar de ficar com medo e pensar se não teria cometido um erro ao entrar na carrinha com ele.

- Sim, a mãe está a sofrer muito - disse ele, abanando a cabeça.

- O que é um moon... moon...

- Um moonshiner Ena, parece que vives separada do mundo por muros altos e espessos. Os moonshiners são fabricantes clandestinos de uísque, uísque de contrabando. Têm as suas próprias destilarias caseiras, produzem um uísque barato e vendem-no por todo o lado. A maior parte do tempo ninguém os chateia, mas de vez em quando os agentes federais aparecem. A mãe não gosta que o pai faça aquilo; por isso ele agora já não faz tanto. Ultimamente tem andado a fazer trabalhos esquisitos, biscates. É um bom carpinteiro. Falando em bonecas e coisas parecidas, devias ver as figuras que ele esculpe quando está para aí virado. Olha, consegue ficar sentado no alpendre durante horas e horas a trabalhar um bocado de madeira, transformando-o num coelho ou num esquilo que parecem tão reais que ficas à espera que te saltem para a mão.

Eu ri-me. Tinha uma maneira tão descritiva de falar, porém soava verdadeiro, terra a terra, honesto. Não consegui deixar de gostar dele e, de certo modo, invejá-lo pela vida simples que vivia e pelo mundo simples em que tinha sido criado.

Deu algumas curvas e pouco depois deparámos com a tenda cor de laranja do circo. Havia multidões de pessoas a irem e a virem. O Luke acenou para um homem que dirigia o tráfico e virou para entrar por uma abertura que havia no meio das barreiras constituídas por cordas e paus. Atravessámos o descampado aos saltos, passámos pelos elefantes que nos olharam com pouco interesse e depois parámos atrás de uma tenda mais pequena.

- Eu trabalho aqui - explicou o Luke. - Trato dos animais, dou-lhes de comer, lavo-os. Não é muito, mas mantém-me perto do circo. Anda. Podemos pôr a tua mala e a boneca dentro da tenda. Eu tenho um colchão a um canto. É o meu cantinho. Ninguém vai lá. - Ele viu a minha expressão hesitante e acrescentou: - Há uma característica nas pessoas do circo, nunca roubam nada uns aos outros. É isso que me agrada neles: o seu código moral. Muito melhor do que o mundo exterior.

Eu saí do carro e segui-o para dentro da tenda. Viam-se baldes e equipamento de limpeza, sacas de ração, cordas e outros utensílios armazenados. Ao fundo, havia uma cama de feno com um colchão antigo por cima que formavam uma espécie de cama de campanha.

- Eu durmo aqui - explicou ele. - Estas são as minhas coisas. - Apontou para uma saca de serapilheira. - Se quiseres, põe a tua boneca dentro da mala e deixa a mala ali ao lado da minha saca.

Eu assenti e abri a minha mala. Ele ficou ao meu lado a observar-me enquanto eu embrulhava cuidadosamente a Angel e a colocava dentro da mala.

- Pronto - declarou. - Agora, vamos divertir-nos. Neste momento, não tenho de trabalhar - disse ele. Segui-o para fora da tenda em direcção à área da feira, onde havia carroceis, jogos e barracas para comer. Estava um dia fabuloso para ir ao circo e à feira. Havia nuvens suficientes para impedir que o sol batesse de chapa; contudo, estava calor e corria uma leve brisa. Toda a gente conhecia o Luke e, pelo modo como acenavam e o cumprimentavam, pareceu-me que gostavam muito dele.

Mal entrámos na área da feira, convenceu-me a dar uma volta na roda gigante. Apesar de não ser muito alta, quando se chegava lá acima, tinha-se uma vista espectacular sobre Atlanta. O banco balançava para a frente e para trás, tirando-me a respiração. Eu gemia de prazer e o Luke ria-se, pondo-me o braço à volta para me dar segurança. Senti-me mesmo segura sob os seus fortes braços.

- Queres uma cerveja? - perguntou ele depois de saírmos. - Posso arranjar à borla - disse acenando com a mão e com a cabeça para o rapaz da tenda da cerveja.

- Não, obrigada - respondi eu. Ele comprou-me um refrigerante.

Depois disso, foi tentar a sua sorte aos dados. Ficou muito irritado por não ter ganho nada, mas eu disse-lhe para não gastar mais dinheiro naquele jogo.

- Tenta outro jogo, se quiseres - aconselhei. - O meu pai costumava dizer-me que, quando alguma coisa não está a correr bem, devemos pô-la de parte por uns tempos e fazer outra coisa diferente.

Ele assentiu pensativamente.

- Tens razão, Leigh. Às vezes, torno-me teimoso e estúpido e perco tudo com a raiva. É bom estar ao pé de uma pessoa sensível - disse ele, com ternura nos olhos.

Quando ele olhava para mim daquela maneira, com tanta intensidade e sinceridade, todos os sons que me rodeavam esmoreciam. Era como se tivéssemos sido arrastados para o nosso mundo íntimo, como se nos tivéssemos elevado acima da multidão, tal como tínhamos feito na roda gigante.

- Anda - chamou ele, pegando na minha mão, entusiasmado e arrastando-me atrás dele. Parámos na tenda do jogo de basebol. O objectivo era conseguir derrubar três garrafas de leite de um cesto. Vinte e cinco cêntimos dava direito a duas bolas. O Luke pegou nas bolas e preparou-se para as atirar. Então, parou.

- Toca na bola para dar sorte - disse ele, passando-me a bola.

- Eu não costumo dar sorte - observei eu.

- Vais dar-me a mim - insistiu ele. Fez-me sentir bem comigo própria. Segurei na bola por uns instantes e depois ele pôs-se outra vez em posição e lançou a bola. Acertou nas garrafas mesmo no meio, as três garrafas chocaram umas com as outras e caíram do cesto.

- VENCEDOR! - gritou o homem atrás do balcão, tirando em seguida um felpudo ursinho de pelúcia preto da prateleira e entregando-o ao Luke.

- Para ti - disse o Luke, entregando-me o ursinho. Não é tão bonito como a tua boneca, mas dá sorte.

- É muito bonito e muito fofinho - afirmei eu, esfregando o ursinho na cara. - Adoro. Obrigada, Luke.

Ele sorriu e levou-me dali. Comprou um cachorro-quente de meio metro e mandou pôr todos os tipos de molhos. Começámos a comer o cachorro. Divertimo-nos a comê-lo de ambos os lados. Os nossos narizes chocaram quando chegámos a meio e partimo-nos a rir.

- Tenho de ir dar de comer aos elefantes - disse ele. E depois podemos ir ver o espectáculo dos palhaços e dos acrobatas e todos os números do circo. Está bem?

- Claro. - Segui-o de regresso para a área de trabalho. Ele encontrou uma caixa de madeira para eu me sentar enquanto o observava a trabalhar. Tirou a camisa e pegou na forquilha. As suas costas lisas e musculosas reflectiam a luz do Sol. Os seus ombros largos distendiam-se e ostentavam a sua força enquanto ele juntava largos molhos de feno e os punha à frente dos consideráveis elefantes. Trabalhava no meio deles, ao lado das suas enormes pernas, qualquer uma delas com capacidade de esmagar um homem até à morte, e encontrava-se a centímetros das suas trombas grossas e musculadas, mas parecia não ter medo, e os elefantes tinham cuidado para não lhe tocar. Depois de lhes dar o feno para comer, o Luke encheu os enormes baldes com água e colocou-os em frente de cada elefante. Estes mergulharam logo as suas trombas nos baldes. Era divertido ver aquilo e eu não consegui deixar de rir.

- Não são umas criaturas bonitas? - perguntou-me o Luke quando acabou o que estava a fazer. - São tão grandes e tão fortes, mas tão mansos. Se as pessoas tivessem a força que eles têm, andavam por aí à pancada umas com as outras o tempo todo - acrescentou ele com amargura. Bem, deixa-me dar uma lavadela a isto e depois vamos ver o espectáculo. Estás bem?

- Sim, estou óptima - disse eu, ainda a abraçar o meu fofinho urso de pelúcia.

- Podes deixar isso ao pé da tua mala - sugeriu ele. Se quiseres.

- Está bem. - Entrei na tenda e pus o ursinho ao pé da minha mala. Quando voltei a sair, vi o Luke com uma mangueira na mão a passar com a água por cima da sua cabeça e sobre o tronco. Limpou-se vigorosamente e depois voltou.

- Deixa-me só pentear o cabelo - pediu ele. - Não posso andar por aí com mau aspecto quando estou acompanhado por uma mulher tão bonita - acrescentou. Apesar de ter acompanhado as suas palavras com um sorriso, senti que estava a ser sincero e fiquei com o coração aos pulos. Entrou na tenda e depois apareceu bem penteado. Tinha um cabelo preto abundante e macio. Tive vontade de passar a minha mão pelo cabelo dele.

- Está pronta, minha senhora? - perguntou ele, oferecendo-me o seu braço.

- Sim, estou pronta. - Enfiei o meu braço no dele e fomos até à tenda onde decorria o espectáculo. Ouvia-se o mestre-de-cerimónias a chamar a multidão para o próximo espectáculo, e os olhos do Luke iluminaram-se. Enquanto nos juntávamos à multidão que se movimentava em direcção à entrada principal, fui-me sentindo cada vez mais excitada. Tinha a sensação de que estávamos prestes a ver o maior espectáculo à face da terra. As crianças riam-se, excitadas, mas até os pais delas pareciam corados e felizes ante a expectativa.

O homem que recebia os bilhetes acenou com a cabeça para o Luke e entrámos sem pagar. Ele apressou-se em direcção ao que ele proclamava serem os melhores lugares da casa. Quando nos sentámos, comprou sacos de amendoins para ambos, um refrigerante para mim e uma cerveja para ele.

- Como é que consegues beber tanta cerveja, Luke? perguntei-lhe eu. - Não ficas embriagado?

- Embriagado? - Ele riu-se. - Não! Isto não é nada comparado com o uísque caseiro que eu cresci a beber - replicou, mas eu reparei que a cerveja estava a fazê-lo ficar corado.

Ele notou a minha expressão preocupada.

- Mas provavelmente também tens razão em relação a isso - disse, levantando o copo de cerveja. - Hoje não bebo mais.

As suas palavras fizeram-me sentir melhor e virei-me para o espectáculo. A música começou, e os palhaços entraram a correr, batendo-se e caindo uns por cima dos outros, esguichando água uns para os outros com pistolas de água e rebentando balões cheios de água sobre a cabeça uns dos outros.

Enquanto decorria o espectáculo dos palhaços, uma rapariga, que certamente não era mais velha do que eu e vestia um fato de lantejoulas de várias cores, fazia acrobacias em cima de um cavalo: dava saltos mortais, equilibrava-se ora com as mãos ora com a cabeça, dava pinotes assim e assado, tirando a respiração ao público. O mestre-de-cerimónias anunciava um número atrás do outro: malabaristas, mágicos, acrobatas.

Um rufar de tambores anunciou a entrada dos trapezistas voadores: dois homens bem-parecidos e uma mulher muito bonita entraram a correr e dirigiram-se para o centro da tenda, fazendo vénias e agradecendo ao público, para em seguida começarem a trepar as cordas. O meu coração estava aos pulos, só perante a expectativa. Havia sempre alguma coisa a acontecer para onde quer que virasse os meus olhos. Quando me voltei para o Luke, reparei que tinha estado a observar-me com um leve sorriso ternurento nos lábios e os olhos a brilharem de apreço.

- É emocionante, não é? - comentou ele. - Estás a ver porque é que eu adoro o circo?

- Oh, sim. Nunca tinha dado conta... É um espectáculo maravilhoso.

- E isto é só o início - disse ele. - Vamos ver o espectáculo todo.

Mesmo sob o efeito de toda aquela excitação, apercebi-me de que o Luke tinha entrelaçado os seus dedos nos meus para me dar a mão suavemente, mas eu não me importei: até gostei. A música e as gargalhadas, as actuações espectaculares e as brincadeiras constantes nos vários números, os aplausos e o ambiente de emoção, tudo isto fez com que as horas parecessem minutos e os minutos, segundos. Perdi a noção de tempo e de lugar. Enquanto estive no circo nem sequer me lembrei da situação em que me encontrava e de que tinha fugido de casa. Era como se o mundo tivesse parado no tempo.

Fomos comer mais uma vez, hamburgers e pacotes de batatas fritas. O Luke pediu outra cerveja mas, quando viu a cara que eu fiz, parou a meio e bebeu também um refrigerante. A seguir fomos comer cones de gelado e pedaços de rebuçados. O Luke pagou tudo avidamente, apesar de eu me ter oferecido para pagar algumas coisas com o meu dinheiro.

- O teu dinheiro é mágico - disse ele. - Não é justo, pois no momento em que o entregares aos vendedores, o dinheiro desaparece nas mãos deles.

- Luke, não te posso deixar pagar tudo. Trabalhas tanto para ganhar o teu dinheiro.

- Eu não me importo. Não tenho muitas coisas em que gastar dinheiro e nunca tenho uma oportunidade de o fazer com uma pessoa tão bonita e tão boa como tu, Leigh - disse ele.

Estávamos novamente de mãos dadas. Por uns momentos, não consegui falar. Apesar de nos encontrarmos dentro da tenda, rodeados por centenas de pessoas, senti-me como se não houvesse ninguém à nossa volta. Antes que eu me apercebesse do que estava a acontecer, ele avançou e deu-me um beijo rápido nos lábios.

- Desculpa - pediu ele. - Fiquei tão entusiasmado que... que... não consegui controlar-me - balbuciou.

- Não faz mal. - Virei-me outra vez para assistir ao espectáculo, mas o meu coração batia com tanta força que pensei que ia sobrepor-se ao som dos risos e das aclamações à nossa volta. O Luke ficou calado; porém, de vez em quando olhávamos um para o outro e sorríamos.

Só quando terminou a última actuação é que pensei nas horas. Olhei para o meu relógio e dei um grito.

- Luke, olha para as horas! vou perder o meu comboio!

- Não te preocupes - disse ele, mas via-se pela sua cara que ficara preocupado. Tentámos sair rapidamente; havia muita gente e todas as saídas estavam bloqueadas por aglomerados de pessoas. Frustrados, esperámos pela nossa vez. Mal saímos, desatámos a correr pelos campos até à tenda. O Luke disparou lá para dentro e saiu com a minha mala e o ursinho nas mãos. Em seguida, entrámos na carrinha dele.

A carrinha não pegava. O Luke tentou várias vezes. Deu murros no tablier, furioso, e saiu para levantar o capot e mexer no motor. Demorou algum tempo, mas, por fim, conseguiu que a carrinha pegasse e partimos para a estação. Nenhum de nós falou muito; estávamos os dois preocupados com as horas e com o caminho que ainda tínhamos de percorrer. Como o espectáculo do circo tinha acabado, o tráfico era intenso e a confusão na auto-estrada era mais do que muita. O Luke irritava-se constantemente e pedia desculpa em seguida. Eu tentava acalmá-lo. Fez o melhor que pôde, serpenteando de faixa em faixa, mas demorámos quase o dobro do tempo para voltar à estação do que na viagem de ida.

Quando chegámos ao parque de estacionamento, eu tinha menos de cinco minutos. O Luke não conseguia encontrar lugar para estacionar o carro; parecia que todos os lugares estavam ocupados. Por fim, decidiu-se a parar no meio da estrada.

- Estou-me nas tintas para a multa - disse ele. - Anda. Pegou na minha mala, ajudou-me a sair da carrinha e corremos para a estação. Parecia que havia o triplo das pessoas no átrio de entrada do que quando chegara a primeira vez. Era hora de ponta. Percorremos o corredor a correr, mas quando chegámos à gare, o comboio estava a partir.

- Oh, não - gritei eu.

Ficámos ali a olhar para o comboio a afastar-se. Eu ficara encalhada em Atlanta. O Luke virou-se para mim.

- Desculpa - disse. - Devia ter prestado atenção às horas.

- A culpa é só minha. - Tirei-lhe a mala da mão e olhei para a sala de espera com os seus bancos duros.

- Espera - exclamou ele, agarrando-me no braço. Eu voltei-me para trás. - Não te posso deixar aí sentada a noite toda. Não tenho grande coisa para te oferecer, só um colchão sobre um monte de palha, mas...

- O quê? - Não compreendi o que ele estava a dizer de imediato. Ainda estava apática.

- Claro que eu vou dormir noutra cama. Não podes ficar aqui - implorou ele.

Que mais me podia acontecer?, pensei. Senti-me como uma folha, à mercê do vento, arremessada e atirada para um lado e para o outro, uma folha solitária que já fora arrastada para tão longe do sítio onde florescera e crescera.

O Luke pegou na minha mala e deu-me a mão. Eu não disse nada. Deixei que ele me levasse para fora dali, de volta para a noite.

 

ALGUÉM PARA TOMAR CONTA DE MIM

Ainda confusa, segui o Luke até à sua carrinha. Ele abriu a porta, ajudou-me a entrar e iniciámos a viagem de regresso ao circo. Eu estava ali sentada, a segurar na minha mala com o braço esquerdo e a apertar a Angel contra mim com o direito.

- Não te preocupes, Leigh - disse o Luke, confiante.

- Garanto que amanhã te trago a tempo para apanhares o comboio. Há uma bomba de gasolina ali à frente e ao lado há uma cabina telefónica. Queres que encoste o carro para telefonares à tua avó e avisares que vais chegar um dia mais tarde?

Eu não respondi. Mal ouvia a sua voz. Sentia-me como se estivesse encalhada num carrocel, a andar às voltas, sem sair do mesmo lugar.

- Leigh, não achas que devias telefonar-lhe - insistiu ele -, para ela não ficar preocupada quando não te vir chegar no comboio?

- Oh, Luke - disse eu, incapaz de reter as lágrimas que procuravam correr livremente pelas minhas faces. - A minha avó não sabe que eu estou a caminho. Eu fugi de casa!

- O quê? - Abrandou o carro. - Fugiste de casa? Meteu a carrinha por um caminho lateral para fugir ao trânsito e parou. - Então era por isso que não tinhas muito dinheiro para a viagem. Bem, então por que é que estás a fugir de casa, Leigh? Pelo que eu percebi, parece que lá em Nova Inglaterra vivias à grande, não é verdade?

Comecei a chorar ainda mais. Ele deslizou para mais perto de mim e abraçou-me com ternura.

- Eh, tem calma. Não faz mal. Se uma rapariga tão doce e amorosa como tu fugiu de casa, deve haver uma boa razão para isso.

Não conseguia controlar os meus soluços. Parecia que tinham vontade própria, obrigando-me a abanar e a estremecer nos braços dele. Fiquei cheia de frio e com os dentes a bater. O Luke estreitou-me com mais força e esfregou o meu braço com a palma da sua mão para me aquecer.

- Calma - disse ele, beijando-me com ternura na testa, levando depois os lábios às minhas faces para me limpar as lágrimas com beijos. Comecei a respirar lentamente e engoli em seco. - Eu também já fugi de casa centenas de vezes. Que diabo, de certo modo estou a fugir de casa neste momento, mas arranjo sempre maneira de encontrar o caminho de regresso. Tu também vais conseguir, vais ver - acrescentou ele, encorajando-me.

- Eu não quero encontrar o caminho de regresso - disse eu bruscamente. Ele assentiu.

- Ena, deve ter sido grave.

- Foi mesmo grave - afirmei eu.

Respirei fundo, recostei-me e contei-lhe tudo: o divórcio dos meus pais, o que eu descobrira sobre a vida da minha mãe quando ouvira a conversa dela com a avó Jankins, descrevi-lhe o Tony Tatterton e Farthy, o que se tinha passado nas sessões em que posara para o Tony pintar a boneca-retrato. Depois, desatei a chorar novamente e contei-lhe como o Tony me tinha violado e que a minha mãe não acreditou em mim quando lhe contara.

- E quando descobri que estava grávida, fui a correr ter com ela, pensando que agora seria obrigada a acreditar em mim, mas, em vez de me ajudar, acusou-me de ser a culpada de tudo. Eu! - lamentei-me, por entre lágrimas.

O Luke desligara entretanto o motor e encostara-se na porta da carrinha, escutando-me, calado que nem um rato de sacristia. Era de noite e o céu estava carregado, o que tornava o interior da carrinha muito escuro. Estávamos afastados dos faróis dos outros carros e da iluminação da rua. Ele estava ali sentado, como uma silhueta negra, mas eu senti-o sombrio e pensativo quando me calei.

- Pensava que esse tipo de coisas só acontecia entre as pessoas rústicas, as pessoas que vivem nos Willies. Quer dizer então que ser rico não é o que a gente pensa - observou ele. A sua voz tornou-se firme. - Gostava de ter esse Tony Tatterton à minha frente. Torcia-lhe a cabeça até o pescoço vibrar como uma corda de guitarra partida.

Ri-me. Não consegui evitar. Ele tinha uma imaginação tão fértil.

- Estás a ver? Eu sabia que conseguia fazer-te rir. De qualquer modo, desculpa ter-te dado aquelas porcarias todas para comer no circo. Não estás em condições. Vou-te levar a uma casa de pasto que conheço a caminho do circo. É só comida caseira igual à que as mães fazem. Aliás, o lugar até se chama Casa de Pasto da Mãe.

- Oh, agora não tenho fome, Luke. Estou apenas muito cansada.

- Claro. É compreensível. Já sei - disse ele estalando os dedos. - vou alugar-te um quarto num motel para ficares confortável. Uma cama de feno numa tenda de circo não é lugar para uma rapariga grávida - declarou ele, com firmeza, e inclinou-se para pôr o carro a trabalhar.

- Oh Luke, não posso permitir que gastes o teu dinheiro desta maneira. Eu sei que te esforçaste muito para ganhá-lo.

- Não tens voto na matéria - replicou ele e pôs a carrinha a trabalhar. Apercebi-me de que não havia margem para discussão. Quando o Thomas Luke Casteel punha uma coisa na cabeça, era teimoso e determinado. - Precisas de uma boa noite de sono num quarto com casa de banho e todas as comodidades. Alguns destes quartos também têm televisão

- acrescentou ele e dirigiu a carrinha de novo para a auto-estrada.

Pediu-me para lhe falar mais sobre Farthy. Então, descrevi-lhe o tamanho dos quartos, o labirinto, a piscina tipo olímpica e os campos de ténis, as cavalariças e a praia privativa. Ele assobiava entre dentes e abanava a cabeça.

- Eu sabia que havia gente rica, mas nunca pensei que fossem tão ricos. Parece que esse Tony Tatterton é dono do seu próprio país.

- É quase.

- E ele ganha esse dinheiro todo a fazer brinquedos para as pessoas ricas? - perguntou o Luke, incrédulo.

- Sim - respondi. - Mas são brinquedos muito caros.

- Como a tua boneca, imagino. Porque é que trouxeste a boneca contigo, se foi ele que a fez? - perguntou o Luke.

- Não podia deixar a Angel Foi abraçada a ela que chorei e foi abraçada a ela que ri. Ela está a par dos meus pensamentos íntimos, dos meus sonhos secretos e de todas as coisas horríveis que me aconteceram. O Tony Tatterton fê-la, mas ela tem mais de mim do que dele - expliquei eu.

- Angell

- É o nome que eu lhe dei. O meu anjo-da-guarda disse eu com brandura, à espera que ele se risse do delicado e frágil mundo de "faz de conta" de uma rapariga. Era o que faria a maior parte dos rapazes da idade dele, mas ele não se riu. Sorriu.

- É bonito - disse ele. - É lindo. Como tu. Sabes que mais? - acrescentou ele, virando-se para mim. - É como te vou chamar a partir de agora... Angel. Assenta-te melhor do que Leigh.

O meu coração que se tinha afundado e esfriado, acendeu-se de novo no meu peito. Senti-me corar. Depois, funguei uma última lágrima.

- Então, por que é que estás a chorar?

- Estou a chorar porque tive a sorte de encontrar uma pessoa como tu, uma pessoa simpática. A maior parte das raparigas da minha idade têm medo de viajar sozinhas, pois há tantas pessoas más por aí à espera para se aproveitarem delas em vez de as ajudarem. Tenho a certeza de que isso também me poderia ter acontecido se não te tivesse conhecido.

- Sim, mas se não me tivesses conhecido, tinhas apanhado o comboio - lembrou-me ele. - Quando me apanho no meio do circo...

- Mas eu queria ir ver o circo contigo, e diverti-me imenso lá, Luke. - E divertira-me mesmo, pois fizera-me esquecer todas as minhas preocupações por algum tempo.

- Divertiste-te? Fico feliz. Eu também me diverti imenso. Desta vez, quando voltei a ver o espectáculo contigo, foi como se estivesse a ver tudo pela primeira vez. Tens uma maneira pura e límpida de olhar para as coisas, Angel. Faz-me sentir a modos que... não sei bem... Faz-me sentir mais importante, maior, quando estou contigo - disse ele, assentindo em seguida.

Eu desviei o olhar. Não queria que ele visse a minha cara, pois tinha vergonha de lhe mostrar como gostava dele e como as suas palavras simples mas doces me tinham feito sentir. Ele não tinha muita educação; não era rico, nem se vestia bem, como os rapazes de Allandale, mas tinha um domínio do mundo que eu admirava. Sentia-me segura com ele, pois era capaz de lidar com as dificuldades e com a crise. O Luke Casteel só tinha dezassete anos, mas era um homem.

Conduziu a carrinha até um motel. O letreiro de néon azul iluminava a palavra "Livre".

- Não tens de fazer isto, Luke - disse eu, pondo a minha mão na sua.

- Eu sei. Eu não estou a fazer isto porque tenho de fazer. Estou a fazê-lo porque quero. Agora, deixa-te ficar aí sentada com a Angel e tem paciência. Eu volto num instantinho com a chave do teu quarto - disse e entrou na recepção do motel.

Recostei-me e fechei os olhos. Ele tinha razão: eu estava tão cansada que precisava mesmo de uma boa noite de descanso. A emoção da viagem, o dia passado no circo e o choque de ter perdido o comboio, tudo isso me deixara exausta. Cheguei mesmo a passar pelas brasas enquanto ele estava na recepção a alugar um quarto. Acordei estremunhada, quando o Luke abriu a porta da carrinha com um estrondo e saltou lá para dentro.

- 4 C - anunciou ele, acenando com a chave do quarto.

- Um quarto acolhedor com duas camas duplas e um aparelho de televisão.

- Acho que não consigo ficar de olhos abertos para ver televisão. Devias ter arranjado um quarto mais barato.

- Aqui têm todos o mesmo preço - explicou ele, estacionando o carro em frente da porta do quarto. Tirou a minha mala da carrinha e abriu a porta. Abraçada a Angel, segui-o.

Era um quarto pequeno com paredes cinzentas, pintadas de castanho-claro, e cortinas verde-claras com um aspecto poeirento. Tinha duas camas de casal com uma mesa de madeira carcomida no meio e duas mesinhas-de-cabeceira, uma de cada lado. Em cima de cada uma delas havia um pequeno candeeiro com uns quebra-luzes amarelos, manchados e poeirentos. Havia armários em Farthy que tinham o dobro do tamanho do quarto, mas eu não me importei. O colchão macio tinha um ar muito convidativo. O Luke pousou a minha mala e foi até à casa de banho, ligando as luzes e inspeccionando tudo.

- Parece que está tudo a funcionar. Tens a certeza que não queres nada para comer? E que tal uma chávena de chá? Há um restaurante a um quilómetro, seguindo por esta estrada. Não demorava mais de cinco minutos e trazia-te qualquer coisa quente para beber. E talvez um muffin, hem? Tens de te alimentar - disse ele, com um ar preocupado.

- Está bem - acedi eu. - vou lavar-me e meter-me na cama.

- Estarei de volta num instante. - Bateu com as palmas das mãos uma na outra e saiu a correr.

1 Bolo redondo, chato e muito fofo, cheio de manteiga e tostado, comido enquanto quente. (N. da T.)

O seu entusiasmo fez-me sorrir novamente. Queria fazer coisas por mim e estava a ser sincero. Tinha-me metido a mim própria numa complicação, mas encontrara um verdadeiro anjo-da-guarda. Talvez afinal até tivesse tudo a ver com magia. Talvez pelo facto de ter fugido do mundo perverso de Farthy, eu tivesse escapado do feitiço malévolo que caíra sobre mim.

Tomei um duche e vesti uma das minhas macias camisas de dormir de seda e soltei o cabelo. Ficara feio e sujo por causa da viagem, mas eu estava demasiado cansada para o lavar e pentear. Prometi a mim própria que o faria de manhã. Em seguida, com a Angel ao meu lado, deitei-me sob os cobertores de uma das camas de casal. Cheirava a goma e os lençóis eram tesos, mas eu estava cansada de mais para me importar com isso. O Luke bateu à porta suavemente e depois entrou com o meu chá quente, um muffin de milho e doce e uma garrafa de cerveja para ele. Colocou tudo sobre a mesinha-de-cabeceira ao lado da cama, puxou a única cadeira que havia para ao pé da cama para se sentar e sorveu a sua cerveja enquanto me observava a beber e a comer. Tinha um ar preocupado, como teria se fosse ele o verdadeiro futuro pai. Os seus olhos negros brilhavam ternamente, amorosos.

- Não tens fome, Luke? De certeza que uma cerveja não é suficiente.

- Não, ainda estou muito excitado, acho. Às vezes a cerveja acalma-me. - Sorriu e apontou para a Angel. - Essa boneca é mesmo parecida contigo. Têm as duas um cabelo tão bonito - disse ele, afagando o cabelo da Angel com ternura.

- O cabelo da Angel é o meu cabelo verdadeiro.

- Estás a gozar? - Eu abanei a cabeça e os olhos dele abriram-se muito. Em seguida, inclinou-se para mim. Nunca vi um quadro tão perfeito e tão amoroso como vocês as duas aí deitadas - disse ele suavemente.

- Obrigada, Luke. És muito simpático. - Ficou a olhar para mim durante uns momentos e depois levantou-se.

- Vais ficar bem? - perguntou ele.

- Porquê? Onde vais?

- vou voltar para a minha tenda.

- E porque é que não podes ficar aqui? Há outra cama e foste tu que pagaste o quarto, Luke. Não devias voltar para a cama de feno. - Eu sabia que o meu tom de voz soara um pouco desesperado, mas nunca tinha dormido num motel, e muito menos sozinha.

- De certeza que não te importas?

- Claro que não me importo.

- Nesse caso, tudo bem. Acho que consigo acordar suficientemente cedo para ir dar água e comida aos animais.

- Podes ver televisão, se ainda não estiveres muito cansado - disse eu, baixando a cabeça. Agora que sabia que ele ia ficar comigo, podia descontrair-me. - Não me vai... incomodar...

Adormeci logo, mas acordei estremunhada a meio da noite, esquecendo-me de onde estava. Não consegui controlar-me e gritei de medo. Segundos depois, senti o Luke ao meu lado no escuro.

- Angel, Angel - dizia ele, afagando-me o cabelo. - Está tudo bem. Estás em segurança. É o Luke. Estou aqui contigo. Não te preocupes com nada. Não quero que voltes a preocupar-te com mais nada - acrescentou ele, num sussurro.

Apercebi-me do sítio onde estava, mas ainda me sentia tão ensonada que apenas dei pelos seus lábios na minha face e ouvi as suas palavras vagamente. De qualquer modo, parecia que as palavras faziam parte de um sonho, que eram palavras sussurradas pelo meu anjo-da-guarda.

- Quero tomar conta de ti a partir de agora, quero proteger-te, amar-te. Nunca mais na vida deixarei que ninguém te magoe, mesmo que seja muito rico e poderoso. Levar-te-ei para um mundo onde nenhuma pessoa perversa poderá chegar a ti, um mundo onde estarás rodeada apenas por coisas suaves, felizes e naturais, onde a música são os pássaros a cantar, onde os diamantes são estrelas, onde o ouro é a luz do Sol e as folhas de Outono. Vens comigo, minha Angel? Vens?

- Sim - murmurei eu. - Oh, sim, sim - repeti e voltei a adormecer logo em seguida.

Acordei de manhã e encontrei o Luke ao meu lado, na cama. Eu adormecera nos seus braços e nunca me tinha sentido tão segura ou tão feliz. Os olhos dele pestanejaram e abriram-se e olharam para mim durante uns momentos antes de sorrir. Depois, beijou-me ternamente nos lábios.

- bom dia - disse ele. - Como te sentes?

- Muito melhor. Mas porque é que...

- Porque é que eu vim para a tua cama? Tiveste um sonho, acho eu, e acordaste a gritar. Eu acalmei-te e adormeci ao teu lado. Não te lembras de nada? - perguntou ele, um pouco desapontado. - Do que eu te disse e tu a mim?

- Acho que sim, apesar de haver palavras a bailar na minha cabeça que parecem palavras do sonho.

- Não eram palavras do sonho. Eram minhas e eram verdadeiras - disse ele, de novo com uma expressão firme, de determinação. - Eu disse-te que queria tomar conta de ti, que queria proteger-te, sempre e para sempre, e é verdade.

- O que é que estás a dizer, Luke? - Sentei-me na cama, puxando o cobertor para mim, pois estava vestida com a minha fina camisa de dormir de seda. Ele sentou-se também.

- Eu sei que carregas o filho do teu padrasto, mas mais ninguém tem de saber disso. Deixa que todos pensem que é o meu filho. Quero que ele seja meu, porque quero que tu sejas minha.

- O que é que queres dizer com isso? - Eu percebera, mas tinha de ouvir da boca dele.

- Quero dizer que quero casar contigo, que quero que sejas o meu anjo para toda a vida. Oh, eu sei que a vida no circo-não é uma vida boa para dois jovens começarem, principalmente se estão à espera de um bebé. Mas eu pensei em tudo - continuou ele, entusiasmado. - Quero levar-te para os Willies comigo, começar uma vida nova. Tenho planos e ideias. Quero ganhar dinheiro suficiente para começar a minha própria quinta e posso fazê-lo, Angel.

"Oh, não digo que não seja difícil, de início - continuou ele antes que eu pudesse interromper -, difícil mesmo. Tínhamos de ficar em casa dos meus pais por uma temporada, mas eu trabalharia dia e noite e juntaríamos dinheiro suficiente para começarmos a construir a nossa casa.

"Vais adorar o sítio, Angel. Juro que vais. Não é o que estás habituada, nem nada que se pareça, claro - prosseguiu ele, falando muito depressa -, mas é uma vida pura e livre, uma vida junto da Natureza, uma vida longe da corrupção e das pessoas que gostam mais delas próprias do que dos seus entes queridos.

- Luke, tu queres ser o pai do meu filho? Tu queres isso? - perguntei eu, ainda sem acreditar.

- Desde que isso signifique que te terei a ti também, Angel. Não vás para casa da tua avó - implorou ele. - De qualquer modo, não me parece que possas ser muito feliz lá. Tu mal a conheces e ela é velha, tem as suas manias. Aliás

- disse ele, atingindo em cheio um receio que eu tinha escondido no fundo do meu coração -, e se ela não acreditar em ti? E se ela pensar que és igualzinha à filha dela? Pode mandar-te embora, para casa. - Em seguida, concluiu, com firmeza: - Eu nunca te mandarei embora...

- Mas tu não podes voltar a trabalhar nos Willies. Tu adoras o circo, Luke - gritei eu. Eu tinha visto aquele amor nos seus olhos.

- Nem metade do que te adoro a ti, Angel. Nunca na minha vida me tinha aparecido uma coisa tão especial ou tão doce e importante. Sinto-me tão realizado quando estou contigo, tão cheio de esperanças. Não duvido que conseguirei atingir todos os meus sonhos desde que te tenha a ti. Tu fazes-me sentir importante, tão importante como outra pessoa qualquer. Por ti, trabalhava até me doerem os ossos. Diz que sim? Por favor.

Eu fiquei sem fala por uns momentos. Há quase catorze anos atrás, a minha mãe ficara grávida de mim com mais ou menos a mesma idade que eu tinha agora e depois enganara o homem que eu pensava ser o meu pai, conseguindo que ele se casasse com ela, sem nunca lhe dizer a verdade. Teria ele querido casar com ela, como o Luke agora me queria a mim, se soubesse a verdade? Teria a minha vida sido muito diferente no início? Iria ser diferente para o meu filho... ter um pai que sabia e aceitava a verdade? Eu acreditava realmente que o amor do Luke era tão forte e tão pleno que haveria amor suficiente para mim e para acolher também o meu bebé.

Senti a esperança a varrer todo o medo e a ansiedade que sentia. Aquele jovem bonito e terno queria-me de qualquer maneira, queria-me, apesar de ter ouvido a minha história e de saber o estado em que me encontrava. Amava-me tanto que estava disposto a considerar o meu filho seu filho e a desistir dos seus sonhos só para me agradar.

Nunca na minha vida vira tanto altruísmo junto. Porque é que o meu pai não conseguira sentir nem metade do amor que o Luke tinha por mim, e não estivera disposto a sacrificar alguns dos interesses do negócio dele para me ajudar e proteger? Porque é que a minha mãe não conseguira interessar-se mais por mim do que por ela própria? Os meus pais diziam que me amavam, mas não me amavam como o Luke. O amor dele era mais honesto e mais sincero, pois estava disposto a sacrificar-se por mim.

E então, comecei a pensar que amar não significava apenas uma pessoa sacrificar-se, mas querer sacrificar-se, tirar prazer do facto de se entregar ao seu ente amado mais do que a si próprio. Tive tanta sorte em encontrar alguém que me amava dessa maneira.

Olhei para a Angel. Parecia estar a sorrir. Talvez afinal ela até fosse o meu anjo-da-guarda; talvez ela tivesse trazido o Luke para a minha vida ou eu para a vida dele. E agora, o Luke queria ser esse mesmo anjo-da-guarda.

O Luke reparou no modo como eu olhava para a Angel.

- O que é que ela está a dizer-te? - perguntou ele com brandura e com esperança.

- Ela está a dizer-me para aceitar, Luke - sussurrei eu, mais para mim do que para ele. Os seus olhos negros iluminaram-se. Que sorriso tão bonito que ele tinha, Era o tipo de rapaz que só ficaria mais bonito com o passar dos anos e ia ser o meu marido. - Ela está a dizer-me para eu aceitar repeti eu, olhando para aqueles lindos olhos.

O Luke abraçou-me e beijámo-nos.

Uma viagem que se iniciara por raiva, receio e desespero transformara-se de repente numa viagem onde reinava o amor e a esperança. As minhas lágrimas eram diferentes. Eram lágrimas de felicidade e eram mais quentes. Estreitei-me com mais força contra o Thomas Luke Casteel. O meu coração palpitava de felicidade. Havia magia no ar.

A administração do circo não ficou zangada com a partida abrupta do Luke, pois ele explicou-lhes que ia casar-se comigo e começar uma nova vida na sua cidade natal. Disse-lhes que agora tinha obrigações e responsabilidades, e a novidade espalhou-se rapidamente pela população do circo. Quando voltámos para a tenda para reunir as coisas dele, já se tinha juntado uma multidão de pessoas para nos desejar boa sorte. Era uma multidão bastante fora do comum, para não dizer outra coisa. Dei comigo a ser apresentada à mulher de barbas, aos gémeos siameses, a anões, ao homem mais gordo do mundo, ao homem mais alto do mundo e ao homem mais forte do mundo, bem como aos malabaristas, aos comedores de fogo, aos trapezistas e ao atirador de facas mais a sua mulher; todos eles me deram os parabéns. Então, o mágico, o Fabuloso Mandello, apareceu com a sua encantadora assistente e pediu-me para eu lhe dar a mão. Olhei para o Luke, que acenou com a cabeça; depois dei-lhe a mão e, de súbito, senti um anel na palma da minha mão.

Abri a mão e vi um anel de imitação de diamante muito bonito.

- Um presente do Fabuloso Mandello - anunciou ele.

- O vosso anel de casamento. - A audiência que entretanto se reunira à nossa volta proferiu uns "ohs" e uns "ahs",

como se ele me tivesse oferecido alguma coisa verdadeiramente valiosa. Eles viviam mesmo num mundo de ilusão, mas eu não me importei. Senti como se tivesse entrado nesse mundo, um mundo de irrealidades cor-de-rosa.

- Oh, obrigada. É lindo.

Em Farthy eu tinha anéis, pulseiras e colares de diamantes verdadeiros, mas aqui, no circo do Luke, no meio de toda essa gente afável e feliz, achei que este anel era a prenda mais importante e maravilhosa que alguma vez recebera. Todos eles gostavam muito do Luke e desejavam-lhe as maiores felicidades.

- Quando sairmos daqui, vamos passar pelo juiz de paz ali ao fim da rua - anunciou o Luke. Houve um murmúrio de excitação. Alguém disse: "Vamos." E todos os artistas do circo seguiram-nos até à casa do juiz de paz. Seria certamente um casamento que ele e a sua mulher nunca esqueceriam.

O juiz não pôde conduzir o casamento no seu escritório. Os nossos convidados encheram a sua considerável sala de estar e ainda se espalharam pelo alpendre. Os gémeos siameses, dois homens na casa dos vinte ligados pela cintura, tocavam piano. Encolheram-se para caberem no banco do piano e começaram a tocar um trecho da Marcha Nupcial. Olhei à minha volta, para os olhos da mulher de barbas, para os rostos sorridentes dos malabaristas, dos anões e dos acrobatas, e lembrei-me do casamento da mamã.

Parecia que tinham passado cem anos; lembrava-me de me ter sentido nervosa e desconfortável a descer a grandiosa escadaria, atrás daquelas damas de honor vestidas a primor. Recordei o mar de rostos lá em baixo... todas aquelas pessoas abastadas, os smokings caríssimos dos homens, os vestidos de noite das mulheres, desenhados por estilistas, e as jóias preciosas que as cobriam, cada qual a tentar superar a ostentação da outra.

A minha mãe tinha-me prometido um casamento igual ao dela, com uma recepção sumptuosa, mas aqui estava eu, na casa de um juiz de paz comum, a casar com um jovem que tinha acabado de conhecer, rodeada por artistas de circo. Era de mais para a imaginação da minha mãe, por maior que fosse, pensei eu.

E, contudo, isso não me incomodava nada. Não me importava de não ter pessoas famosas e da alta sociedade à minha volta; não me incomodava com o facto de estar vestida com um dos meus fatos de Verão simples, em vez de um vestido de noiva de encomenda e que, mal acabasse a cerimónia, partíssemos sem qualquer recepção, música, baile ou iguarias de luxo.

No entanto, eu sabia que nenhuma fortuna, nem cem pessoas ricas a mais ou uma montanha de comida, poderiam transformar o casamento da mamã num casamento mais feliz, nem a sua vida numa vida melhor. Os convidados do casamento da mamã não olharam para ela e para o Tony com tanto carinho como os amigos do circo do Luke estavam a olhar para nós. Os desejos de felicidade que a mamã recebera não foram, de longe, tão sinceros. Eu sentia um verdadeiro derreter de corações. Quando aquela gente me beijou e abraçou, foi com sinceridade. Eram um grupo especial, feliz, muitos dos quais tinham superado as suas singularidades e tinham feito com que essas singularidades tivessem uma função na vida deles. Eram artistas que viviam para dar prazer às outras pessoas, viviam para causar espanto e divertir. De algum modo, eles viviam mesmo num mundo mágico, a magia dos sorrisos e das gargalhadas, a magia das luzes e da música. Não era de admirar que o Luke tivesse vivido tão confortavelmente entre eles, pensei eu.

- bom, então - disse o juiz, quando ocupou o seu lugar à nossa frente e olhou em volta -, acho que podemos começar.

O juiz era um homem alto e magro com bigode ruivo e olhos cor de avelã. Eu sabia que nunca esqueceria o seu rosto, pois ele estava prestes a proferir as palavras e a pronunciar os votos que me ligariam para sempre ao Thomas Luke Casteel. O futuro do Luke ia ser o meu futuro; a sua dor, a minha dor; a sua felicidade, a minha felicidade. Num sentido real, as nossas vidas assemelhavam-se a dois comboios que se haviam aproximado um do outro, provenientes de ângulos diferentes e que se tinham unido para continuar a viagem. O facto de nos termos conhecido numa estação ferroviária era significativo.

A mulher do juiz, uma senhora pequena e rechonchuda, com uma expressão jovial, estava ao lado dele com os olhos muito abertos, atónita.

O juiz deu início à cerimónia e, quando chegou àquela parte em que me perguntava se eu aceitava Thomas Luke Casteel como marido, para amar e respeitar até que a morte nos separe, eu fechei os olhos e pensei no meu pai, comigo nos braços, quando eu não teria mais de oito ou nove anos, prometendo que construiria uma mansão quando eu me casasse, "um castelo numa montanha para ti e para o teu príncipe".

Ouvi os devaneios ininterruptos da minha mãe sobre o dia do meu casamento, o que eu devia vestir, o que eu tinha de fazer, quem tinha de convidar. Parecia que estava a rever a minha vida toda em segundos, as palavras, as imagens, os sorrisos e as lágrimas, desvanecendo-se tudo até começar a ouvir apenas o bater emocionado do meu coração.

- Sim - disse eu, voltando-me para o Luke e olhando para os seus olhos escuros e profundos e vendo neles a promessa de amor -, aceito.

- E tu, Thomas Luke Casteel, prometes receber Leigh Diane VanVoreen como tua mulher, para amar e respeitar até que a morte vos separe?

- Sim - disse ele, com uma firmeza máscula que quase me tirou a respiração. Parecia disposto a lutar até à morte para me fazer feliz.

- Então, pelo poder que me foi conferido, declaro-vos marido e mulher. Pode beijar a noiva.

Beij amo-nos como dois amantes acabados de atravessar um campo enorme só para caírem nos braços um do outro e ficarem juntos até à eternidade. A gente do circo aplaudiu e rodeou-nos. Tive de me ajoelhar para os anões me poderem dar um beijo de boa sorte. Os trapezistas tinham localizado o arroz e passaram mãos-cheias de arroz uns para os outros para poderem fazer chover o arroz sobre nós enquanto saíamos da casa do juiz.

Entrámos na carrinha e acenámos-lhes. Estavam todos no relvado em frente da casa a acenar, a sorrir e a mandar beijos, excepto uma mulher que usava um vestido púrpura e um lenço estampado da mesma cor na cabeça. Das suas orelhas pendiam longos brincos de prata em forma de folha, a tez dela era escura e tinha olhos pretos, ainda mais escuros que os do Luke. Tinha um ar sério, sombrio, e recuara, afastando-se da multidão.

- Quem é aquela mulher, Luke - perguntei eu e apontei para ela.

- Oh, é a Gittle, a vidente húngara.

- Tem um ar tão sério, tão preocupado - disse eu, com um arrepio.

- É normal - explicou o Luke. - É o trabalho dela. Assim, as pessoas levam-na a sério. Não te preocupes. Não quer dizer nada, Angel.

- Espero que não, Luke - murmurei eu, enquanto nos afastávamos. - Espero que não. - Olhei para trás e acenei com a mão enquanto percorríamos aos solavancos a estrada de acesso à casa do juiz e virávamos para a estrada principal. Em pouco tempo, tínhamos ultrapassado tudo e a Angel e eu estávamos a caminho de outra vida, de outro mundo, que, tinha esperança, seria muito mais feliz do que o mundo que conhecêramos em Farthy, do que a vida que deixáramos para trás e para sempre.

Olhei para trás mais uma vez. Havia nuvens a anunciar tempestade no horizonte, mas nós estávamos a afastar-nos delas, precipitando-nos pela estrada como se estivéssemos a fugir da ameaça da chuva, do vento e do frio. Lá ao longe, à nossa frente, o céu era azul-claro, caloroso e convidativo. De certeza que isso significava que tudo o que era triste e feio ficara para trás de nós. Cada lembrança da expressão sombria da vidente não conseguiria sobreviver à incandescência de calor que emanava da promessa espalhada pelo sol que nos dava as boas-vindas.

Apertei a Angel contra mim.

- Estás feliz? - perguntou o Luke. - Oh, sim, Luke. Muito.

- Eu também. Estou tão feliz como um porco no...

- No quê?

- Não interessa. Tenho de tomar cuidado com as palavras a partir de agora. Quero ser uma pessoa melhor, e tudo porque te tenho a ti.

- Oh, Luke, não me faças sentir como se eu fizesse parte da realeza. Eu sou apenas outra pessoa a tentar ser feliz num mundo que às vezes pode ser muito difícil de suportar.

- Não, não és. És o meu anjo e os anjos vêm do céu. Olha cá - acrescentou ele a sorrir. - Se tivermos uma rapariga, talvez este não seja um nome mau para ela: Heaven. O que é que achas?

Adorei-o por dizer: "Se TIVERMOS uma rapariga..."

- Oh, sim, Luke. Heaven assentava-lhe mesmo bem.

- Ena, e dávamos-lhe o teu nome também. Então, podemos chamá-la Heaven Leigh Casteel - disse ele.

Riu-se e continuámos o nosso caminho em direcção à luz do Sol e às promessas.

1 Heaven significa "céu", daí a alusão ao céu como um nome adequado. (N. da T.)

 

OS WILLIES

A viagem para Winnerrow e para os Willies na carrinha velha do Luke foi comprida e árdua. Pouco depois de termos arrancado, o motor aqueceu de mais e ele teve de andar mais de um quilómetro e meio para conseguir um pouco de água numa bomba de gasolina. Não parava de me pedir desculpa por me ter feito esperar dentro da carrinha num dia tão quente. Eu dizia-lhe que não fazia mal e que agora nada neste mundo me poderia fazer infeliz. Mesmo assim, ele insistiu que parássemos num pequeno restaurante à saída de Atlanta para eu beber qualquer coisa fresca e ele uma cerveja. O Luke sorveu a cerveja rapidamente e pediu outra.

- Não te preocupa beberes demasiada cerveja, Luke? perguntei-lhe eu.

Ele parou, como se essa ideia nunca lhe tivesse ocorrido.

- Não sei. De onde eu venho é natural beber uísque e cerveja. Nós raramente pensamos nisso.

- Talvez por beberem tanto é que não conseguem pensar nisso - sugeri eu, com ternura.

- Deves ter razão. - Ele abriu-se num sorriso. - Já estás a tomar conta de mim - disse ele. - Gosto disso, Angel. Sei que vou tornar-me uma pessoa melhor por tua causa.

- Também tem de ser por causa de ti próprio, Luke.

- Eu sei - disse ele. - Prometo-te uma coisa, Angel. Farei tudo o que conseguir para te fazer feliz e se alguma coisa te fizer infeliz mesmo assim, então não hesites em deitar cá para fora. Além disso, quando me repreendes, eu sinto-me bem - acrescentou ele e deu-me um beijo na cara. Ouvir um rapaz como o Luke dizer que queria que eu tomasse conta dele dava-me uma sensação de formigueiro, aquecia-me por dentro. Sentia como se ele e eu estivéssemos a crescer anos com a passagem dos minutos.

Enquanto estivemos no restaurante, vi uns postais no balcão e decidi comprar um para mandar à minha mãe. Provavelmente seriam as últimas palavras que lhe iria escrever por muito tempo, portanto pensei cuidadosamente e só depois escrevi.

Querida mamã,

Lamento ter fugido de casa, mas a mamã não ouvia o que eu tinha para lhe dizer. Durante a minha viagem conheci um rapaz maravilhoso chamado Luke. Ele é bonito, meigo, muito afectuoso e decidiu casar comigo e ser o pai da minha criança.

O Luke e eu estamos a caminho da casa dele, onde pretendemos refazer as nossas vidas.

Mesmo depois das coisas que me disse e fez, eu ainda lhe desejo as maiores felicidades, e espero que encontre lugar no seu coração para me desejar o mesmo.

com amor, Leigh

Colei um selo e deitei o postal na caixa de correio à saída do restaurante. Em seguida, pusemo-nos de novo a caminho.

O Luke guiou o dia todo e a noite toda. Eu estava sempre a perguntar-lhe se não estava cansado, mas ele dizia que tinha mais energia agora do que alguma vez tivera na vida e que estava tão ansioso por chegar a Winnerrow que não queria parar, a não ser para meter gasolina, comer e ir à casa de banho. Percorremos quilómetros e quilómetros e eu adormeci várias vezes. Quando o primeiro raio de luz da manhã espreitou pela linha do horizonte, já nos encontrávamos na região dos montes, a subir as encostas com segurança, forçando a carrinha a perfazer curvas atrás de curvas. Pequenas construções de má qualidade e por pintar anunciavam a chegada de mais uma aldeia fora do caminho de terra batida, até que também as deixámos para trás. Reparei que as bombas de gasolina apareciam cada vez mais espaçadas umas das outras e que os recém-construídos motéis eram substituídos por pequenas cabanas escondidas em florestas sombrias e densas.

Começámos a descer novamente os montes e chegámos a um vale. Aqui situavam-se os extensos campos verdes da periferia de Winnerrow, quintas bem organizadas com campos cultivados durante o Verão, cujas colheitas seriam feitas dentro em breve.

- Depois destas quintas - explicou o Luke -, vais ver as casas das pessoas mais pobres do vale, aqueles que não têm uma situação muito melhor do que os pastores. Lá em cima - apontou para os montes à nossa frente -, são as casotas dos mineiros e as cabanas dos moonshiners.

Levantei o olhar para os montes, excitada. As pequenas casinhas salpicavam a encosta dos montes e pareciam tão pacíficas e recuadas, quase como se tivessem crescido ali e fizessem parte do ambiente natural.

- Aqui também há pessoas ricas e abastadas - explicou o Luke, acenando para a parte mais funda do vale. - Estás a ver para onde são arrastadas as lamas mais férteis dos montes pelas chuvas torrenciais da Primavera? Vai tudo parar aos jardins das famílias de Winnerrow, produzindo um solo fértil para aqueles que menos precisam. Têm todos aqueles jardins floridos espectaculares e plantam as melhores tulipas, narcisos amarelos, íris, rosas e tudo o que os seus coraçõezinhos ricos desejam - acrescentou ele, com amargura.

- Não gostas muito das pessoas da cidade, pois não, Luke? - perguntei eu. Ele ficou silencioso por uns momentos e depois falou por entre dentes.

- Vamos passar pela rua principal e vais ver que é aí que vivem todos os vencedores. Deve ser por isso que chamam a este lugar Winnerrow.

- Vencedores?

- Os proprietários das minas de carvão construíram as suas casas grandes aqui, nas traseiras dos vencidos: os mineiros que ainda continuam a morrer com pulmões pretos e coisas do género. Também encontras aqui os donos das máquinas de algodão que produzem os tecidos para as roupas de cama e toalhas de mesa, e os donos das fábricas de algodão, com o seu linho invisível que é transportado pelo ar e que se instala nos pulmões dos trabalhadores. E nunca ninguém pôs um processo em cima dos proprietários por danos causados

- acrescentou ele, furioso.

- Algum de vocês já trabalhou nas minas ou nas fábricas, Luke? - perguntei eu.

- Os meus irmãos, por uns tempos, quando eram mais novos, mas não conseguiam aguentar nenhum tipo de trabalho

 

1 A palavra Winnerrow é composta pelos substantivos winner, que significa "vencedor", e row, que quer dizer "fila/fileira; poderia ser traduzida por "rua de vencedores" no sentido em que Luke a utiliza. (N. da T.)

 

por muito tempo e partiram por conta própria. O meu pai nunca faria esse tipo de trabalho. Prefere as migalhas que a terra lhe dá, fazer biscatos aqui e ali ou vender uísque caseiro. E eu não o posso criticar.

"Devo avisar-te já de uma coisa, Angel: as pessoas da cidade não gostam muito de nós, o povo dos Willies. Obrigam-nos a sentar nos bancos de trás da igreja e mantêm os filhos deles afastados dos nossos.

- Oh, isso é horrível, Luke. Porque é que envolvem as pobres crianças nisso? - perguntei eu, pensando como elas deviam sentir-se magoadas. Agora também eu compreendia a amargura das palavras do Luke quando se referia às pessoas da cidade. - Ninguém deve sentir-se superior aos outros.

- Sim, bem, vai dizer isso ao presidente da Câmara de Winnerrow - disse ele, sorrindo. - Aposto em como conseguias. Estou desejoso de me vestir e levar-te comigo à missa, Angel. Estou desejoso - disse ele, abanando a cabeça.

Chegámos a um cruzamento e o Luke virou à direita, onde acabava a estrada de macadame e começava um caminho de terra batida e areia grossa, que continuava por dentro da floresta, transformando-se por fim num caminho de terra com buracos e socalcos, fazendo com que a carrinha andasse aos trambolhões e nos sacudisse com tanta força que eu tive de me agarrar ao manípulo da porta. No caminho, as minhas narinas foram inundadas pelos cheiros de madressilva, morangos silvestres e framboesas. Aqui, nos montes da Virgínia ocidental, estava frio e o ar era fresco e puro, e isso fazia-me sentir mais viva. Era como se o ar dos montes afastasse todo o ar poluído que eu tinha andado a inspirar nas salas bafientas, frias e lúgubres de Farthy; era assim que me lembrava delas nesse momento.

- Estamos quase a chegar, Angel. Aguenta. Espera até a mãe te ver.

Retive a respiração. Onde viveria a família dele? Como é que podiam viver tão escondidos na floresta? Como é que a casa poderia estar ligada a um sistema de esgotos ou de água canalizada? E onde estavam os fios de electricidade e do telefone? Eu só via árvores e arbustos.

De repente, pareceu-me ouvir o som de alguém a tocar banjo. O Luke abriu-se num sorriso.

- O pai está no alpendre a arranhar o banjo - disse ele. Contornámos uma mata de árvores espessas e parámos.

Ali estava ela, a casa do Luke. Não consegui controlar um sobressalto de surpresa. Dois pequenos cães de caça que estavam estatelados numa piscina de luz do Sol saltaram e começaram a ladrar excitadamente.

- É o Kasey e o Brutus - disse o Luke. - São os meus cães. E este é o meu lar, doce lar.

"Lar, doce lar!", pensei eu. A cabana fora construída com madeiras velhas nodosas. Parecia que nunca tinha conhecido tinta de qualquer espécie. O telhado era de lata ferrugenta que chorara um milhão de lágrimas para manchar a velha madeira prateada. A cabana tinha tubos de escoamento e barris para a chuva e eu deduzi que serviam para apanhar a água.

À frente da cabana havia um alpendre meio descaído e em mau estado, sobre o qual se encontravam duas cadeiras de baloiço. Um homem que eu facilmente reconheci como o pai do Luke estava sentado com o banjo ao colo. Tinha o mesmo cabelo da cor do carvão e a mesma tez escura e, apesar de ter aspecto de quem passara por muita coisa na vida, os seus traços fisionómicos ainda eram bonitos: um nariz direito tipo romano, maçãs do rosto e linha de maxilar vincadas. Tinha um ar soturno mas, quando viu o Luke, fez um sorriso brando e afável.

A mulher que estava sentada ao lado dele a fazer croché tinha um ar muito mais severo. O seu cabelo comprido estava apanhado num rabo-de-cavalo que ia até quase à cintura. Quando se levantou, parecia ter mais ou menos a idade da minha mãe; porém, depois de descer do alpendre e aproximar-se da carrinha, a cara dela acrescentava anos à minha primeira estimativa. Reparei que não tinha alguns dentes e que havia rugas à volta dos olhos e têmporas, produzidas pelo desgaste do clima. As linhas na sua testa eram mais vincadas, mais ásperas do que as linhas do rosto da minha mãe.

No entanto, a mãe do Luke devia ter sido uma mulher muito bonita. Tinha os olhos negros do Luke e, apesar de o seu cabelo ter manchas de fios grisalhos, parecia que lavá-lo na água da chuva o mantinha saudável e forte como sempre fora. Tinha uma expressão orgulhosa e firme, orgulhosa como uma índia, com maçãs do rosto salientes, e era quase tão alta como o Luke. Reparei nas mãos dela, que podiam ter sido tão macias e delicadas como as da minha mãe; eram ásperas e pareciam mãos de homem, pois as unhas estavam curtas e tinha calos.

- Mãe! - exclamou o Luke e saltou da carrinha. Ela abraçou-o com ardor, vendo-se o orgulho e o prazer de mãe a brilharem nos seus olhos e a sua expressão desconfiada a suavizar-se. O pai do Luke pousou o seu banjo sobre a cadeira de baloiço e desceu rapidamente os degraus do alpendre para saudar e dar um abraço ao filho.

- Como estás, Luke - disse o pai. - Não estava à espera que voltasses tão cedo desta vez. O que é que te fez mudar de ideias? - perguntou ele, com o braço ainda em volta dos ombros do Luke.

- Foi a Angel - respondeu o Luke.

- A Angel?

O pai e a mãe do Luke viraram-se na minha direcção.

- Angel, anda até aqui e vem conhecer a mãe e o pai. Mãe - prosseguiu o Luke enquanto eu saía da carrinha -, quero que conheças a minha mulher, a Angel.

- A tua mulher! - exclamou a mãe dele. Observou-me dos pés à cabeça enquanto eu me aproximava, transformando a sua expressão incrédula numa expressão de desapontamento. - Não é um bocadinho nova e frágil para uma mulher dos Willies? - perguntou ela a si própria, em voz alta. Eu estava à frente deles à espera de uma apresentação formal.

- Angel, quero apresentar-te a minha mãe, Annie, e o meu pai, Toby Casteel. Mãe, esta é a minha Angel. O nome verdadeiro dela é Leigh, mas para mim ela é mais um anjo...

- Ai é? - comentou a mãe dele, ainda a fitar-me, incrédula.

- Bem-vinda ao nosso lar - disse o pai e abraçou-me.

- Quando é que fizeram isto, Luke? - perguntou a mãe, a olhar ainda fixamente para mim.

- Ontem, em Atlanta. Conhecemo-nos e apaixonámo-nos em três dias e o juiz de paz casou-nos. Tudo como deve ser. E tivemos o maior e melhor grupo de convidados de casamento que alguma vez viram: todos os meus amigos do circo. Não é verdade, Angel?

- Sim - confirmei eu. Sentia-me tão constrangida sob o persistente olhar da mãe do Luke. Qualquer mãe ficaria desconfiada e observaria criticamente a mulher que o seu filho trouxesse para casa, pensei; contudo, a mãe do Luke estava chocada e desapontada.

- Que idade tens? - perguntou-me ela.

- Quase catorze - respondi eu. Senti os meus olhos a ficarem molhados. Até aqui, na parte mais pobre do mundo, as pessoas me censuravam.

- Bem, a tua idade não é problema - observou a mãe do Luke -, mas é preciso muita força de vontade para viver nos Willies, filha. Deixa-me ver as tuas mãos - exigiu ela e inclinou-se, agarrando-me nos dedos e virando a palma da minha mão. Passou com os seus dedos calejados pela minha palma macia e abanou a cabeça. - Nunca viste um dia de trabalho em toda a tua vida, pois não, rapariga? Eu tirei as minhas mãos das dela com um puxão.

- Eu posso trabalhar tão arduamente como qualquer outra pessoa - repliquei eu. - Tenho a certeza de que as suas mãos já foram tão macias como as minhas.

Houve um momento de silêncio pesado, e depois ela sorriu.

- Ora, és orgulhosa como uma Casteel. Eu sabia que tinha de haver uma razão para o meu filho te escolher. - Voltou-se para o Luke, que estava de pé, radiante de prazer. Bem-vindo a casa, filho. Quais são os teus planos agora?

- A Angel e eu vamos viver contigo e com o pai por uns tempos, mãe. vou arranjar trabalho com Mister Morrison em Winnerrow e aprender carpintaria. Ele andava sempre atrás de mim para eu trabalhar para ele. A seguir, vou construir uma bela casa para nós, talvez no vale, para trabalhar a terra, criar vacas, porcos e cavalos e fazer uma vida honesta e decente para nós. vou construir uma casa suficientemente grande para todos, e tu e o pai podem descer destes montes e viver como pessoas - acrescentou ele.

A mãe dele endireitou-se e o sorriso evaporou-se do seu rosto.

- Nós não somos nem inferiores nem piores que aquela gente do vale, Luke. Dantes, nunca dizias mal da vida nos Willies. Nasceste aqui e foste educado aqui, e não és pior nem melhor do que os outros.

- Eu não disse que era, mãe. É que eu agora quero fazer coisas grandes - disse ele, dando-me a mão. - Tenho responsabilidades.

A mãe dele continuava a olhar para mim com um ar desconfiado.

- bom, então - disse o pai Casteel -, temos de festejar. Não é verdade, Annie? Vamos cozinhar esses coelhos.

- Os coelhos são para domingo - replicou ela.

- Eu vou caçar mais.

- Já demoraste muito a ir caçar estes - disse ela, bruscamente. Ele, porém, não se deixou intimidar.

- Eu estou cá, mãe - disse o Luke. - Vai voltar a haver muita carne na mesa.

- Hum - proferiu ela, céptica. - Está bem, é melhor trazeres as tuas coisas para dentro, Angel - disse-me ela.

- Ela só trouxe esta mala - observou o Luke.

- Uma mala? - Os olhos da Annie Casteel abriram-se, com interesse renovado. - Ela tem ar de quem traria uma camioneta cheia de coisas. Bem, então vem cá para dentro ver-me a fazer o guisado de coelho e contas-me tudo sobre ti.

- Eu vou abrir a garrafa de sidra de maçã, Luke - disse o pai atrás de nós.

- Agora não te vás para aí encharcar e embebedar mais o Luke com essa bebida malvada, Toby Casteel - avisou ela. O pai do Luke riu-se. O Luke e ele seguiram-nos.

Subimos as escadas pouco sólidas e entrámos na cabana. A minha expectativa descera consideravelmente no momento em que pusera os olhos na cabana, mas ainda não estava preparada para o que iria encontrar lá dentro.

A cabana consistia em duas pequenas divisões, com um cortinado esfarrapado e desbotado ao meio, formando uma espécie de porta que dava para o que eu supus ser o quarto. Havia um fogão de ferro fundido no centro da divisão grande. Ao lado do fogão estava um armário de cozinha antigo equipado com latas de metal para farinha, açúcar, café e chá.

- Como podes ver - começou a Annie -, isto não é um castelo, mas temos um telhado sobre as nossas cabeças. A nossa vaca dá leite fresco e temos ovos frescos, quando as nossas galinhas decidem pô-los. Os porcos andam por aí à vontade e, à noite, deitam-se confortavelmente por baixo do alpendre. Hás-de ouvi-los a grunhir junto com os cães e os gatos e outro animal qualquer que decida fazer a sua cama ali em baixo - disse ela, apontando em direcção ao chão.

Acreditei que ela não estava a exagerar. O chão da cabana tinha pelo menos um centímetro de espaço entre cada tábua meia curva do soalho. Enquanto olhava em volta, apercebi-me de que não havia casa de banho. Onde é que eles iam à casa de banho? Como é que eles tomavam duche ou banho?, interroguei-me. A mãe do Luke leu os meus pensamentos. Sorriu ante o meu olhar curioso.

- Se estás a pensar onde é a sanha, é lá fora.

- Lá fora?

- Não me diga que nunca tiveste um anexo, filha?

- Um anexo? - Voltei a olhar para o Luke.

- Não fiques preocupada, Angel. A primeira coisa que vou construir é o teu anexo privativo. Começo logo que voltar da cidade amanhã.

- O que é um anexo? - perguntei eu, com brandura. A mãe do Luke riu-se.

- Tinhas mesmo de arranjar uma rapariga da cidade, não é, Luke? Um anexo é uma casa de banho, Angel. Quando a natureza chama por ti, vais lá fora àquele pequeno telheiro e sentas-te numa tábua com dois buracos.

Eu devo ter empalidecido um pouco. Não sei. A mãe do Luke parou de sorrir e lançou-lhe um olhar de censura. Ele pousou a mala e abraçou-me.

- Vou-te construir uma bem bonita, Angel. Vais ver. E não vai demorar assim tanto. Em pouco tempo, vou conseguir juntar dinheiro suficiente para começar a construir uma casa no vale.

- Sabes alguma coisa de como se faz um guisado de coelho? - perguntou a Annie Casteel. Eu levantei os olhos e vi-a pegar em dois coelhos mortos e tirá-los pelas orelhas de uma pequena caixa de gelo. Suspirei e engoli em seco. Bem, depois de os esfolar, mostro-te como se faz a receita da minha mãe.

- A mãe faz o melhor coelho que alguma vez provaste

- elogiou o Luke.

- Eu nunca comi coelho, Luke - disse eu, engolindo os meus suspiros.

- Então é agora que vais experimentar - replicou ele. Eu assenti, com esperança, respirei fundo e olhei em volta.

O pai e a mãe do Luke eram as pessoas mais pobres que eu alguma vez vira; porém, quando olhei para o Toby Casteel, vi um sorriso radioso e feliz nos seus lábios e, quando olhei para a mãe do Luke, vi orgulho e força. Estava confusa, cansada e assustada. A vida tinha-me lançado outro desafio, quando eu pensava que estava a iniciar uma vida mágica de felicidade. No entanto, percebi que ali não havia nem tempo nem lugar para lágrimas. Só havia trabalho e luta pela sobrevivência. Talvez me fosse fazer bem. Talvez eu me tornasse mais forte, mais decidida e mais dura, conseguindo desse modo enfrentar a maldade do mundo de onde tínhamos acabado de sair.

- Alguém tem de descascar essas batatas - disse a Annie Casteel e apontou para um monte de batatas no chão.

- Eu faço isso - ofereci-me, apesar de nunca ter descascado batatas na vida. Ela lançou-me um olhar céptico, o que ainda me provocou mais. - Onde está o descascador de batatas? - perguntei eu.

A mãe do Luke sorriu.

- Nós não temos utensílios de luxo, Angel. Usa essa navalha aí e não cortes de mais. - Depois disse para o filho:.- Luke, vai pôr as coisas da Angel atrás da cortina.

- Atrás da cortina? E onde é que tu e o pai vão dormir?.- perguntou o Luke com um ar preocupado.

- Nós ficamos bem em cima dos colchões de palha no chão. Já dormimos neles antes, não foi, Toby?

- Não é mentira nenhuma - confirmou o pai.

- Mas...

- Bem, agora não comeces a discutir, Luke. Se bem te conheço, vais já começar a trabalhar para um bebé. Desconfio até que já começaste - disse ela, olhando para mim, como tivesse poderes para ver a gravidez na minha cara. - Todos os Casteel são feitos na cama - acrescentou. - Espero e rezo para que isso seja sempre uma verdade.

- Está bem, mãe. - O Luke afastou a cortina, revelando uma grande cama de ferro com um colchão velho e desbotado sobre molas em espiral. Que diferença entre aquilo e até mesmo a cama no motel barato onde dormíramos a noite passada, pensei; mas ia ser a nossa primeira cama de casados. Teria de servir.

Não podia haver mundos mais diferentes do que o mundo da mansão Farthinggale e o mundo dos Willies. Tinha decidido fugir de Farthy e tinha vindo para tão longe, que parecia que a minha mãe, o Tony e tudo o que deixara para trás se encontravam num planeta distante, noutro sistema solar. Estava em estado de choque e tinha medo; porém, sentia-me decidida a não regressar.

Apesar da sua maneira dura de falar e dos seus olhos críticos, descobri que era fácil falar com a Annie Casteel. Ela ouvia o que eu dizia, absorvendo a história da minha vida, com uma expressão interessada e de espanto. Claro que não lhe contei que o Tony me tinha violado. O Luke queria que eu mantivesse segredo sobre a minha gravidez, até dos seus pais. A Annie queria saber porque é que eu fugira e eu expliquei-lhe que o novo marido da minha mãe tentara meter-se comigo e que a minha mãe me deitava as culpas para cima.

- com um pai que não se preocupava comigo e uma mãe que não acreditava em mim, senti-me perdida e sozinha e decidi vir-me embora. Estava a caminho da casa da minha avó quando conheci o Luke e me apaixonei - expliquei eu.

Ela assentiu e depois passou-me as cenouras para eu raspar e lavar. Porém, quando lhe falei sobre as bonecas-retratos e sobre a Angel, insistiu comigo para que eu parasse de trabalhar e tirasse a Angel da mala para ela poder ver uma coisa tão delicada e tão cara. Os olhos dela iluminaram-se de prazer.

- Quando eu era pequena, o meu pai teve de me talhar uma boneca de um tronco espesso. Nunca tive nada que fosse gracioso ou amoroso e nunca vi nada parecido com isto, nem sequer nas montras das lojas lá em baixo, em Winnerrow. E depois de casar não havia razão para comprar uma, pois tive seis rapazes e nenhuma rapariga. Depois de algum tempo, desisti de tentar ter uma rapariga.

"Espero que, quando tu e Luke tiverem um bebé, seja uma rapariga - disse ela e eu percebi que esta mulher dura e forte dos Willies podia ser tão doce e carinhosa como qualquer outra mulher que eu conhecera. Senti pena dela, pena por a sua vida ser tão dura e por ter tão poucas oportunidades de ser uma mulher, de se arranjar e ficar bonita, de manter a sua pele macia e deixar as unhas crescer.

- Eu também, Annie - disse eu. Ela fitou-me por uns momentos e depois ripostou.

- Podes chamar-me mãe - disse ela, e sorriu. - Agora vamos pôr este guisado a fazer. Se bem conheço estes dois, vão estar a zurrar como mulas e a pedir de comer mais cedo do que imaginamos.

- Sim, mãe.

Usei um anexo pela primeira vez na minha vida, sentei-me na pequena mesa de jantar feita de tábuas grossas e comi uma coisa que nunca sonhara comer. Mas estava delicioso. Depois de jantar, o pai tocou o seu banjo e o Luke e ele cantaram velhas canções dos montes e beberam uísque caseiro. Percebi que estavam ambos a ficar levemente tocados. O pai convenceu o Luke a fazer uma dança e depois ele também dançou. Passado algum tempo, a mãe ralhou com eles por estarem a fazer figura de parvos. O Luke lançou-me um olhar e eu abanei a cabeça. Foi o suficiente para ele ficar sóbrio.

Mesmo antes de nos irmos deitar, o Luke e eu sentámo-nos no alpendre e ficámos a ouvir os sons da floresta: os mochos a piar, os coiotes a uivar, e as rãs a coaxar nos pântanos. Tinha uma autêntica sensação de paz e segurança, sentada ali com o Luke, de mão dada com ele e a olhar para as estrelas no céu, apesar de estar a quilómetros da civilização que eu conhecera e de estar a viver numa cabana.

Quando nos enfiámos juntos por baixo da colcha, eu abracei e beijei o Luke ternamente. Ele estava agitado, mas não me possuiu da maneira como um marido deve possuir a sua mulher.

- Não, Angel - sussurrou ele. - Vamos esperar até tu teres o bebé e eu te ter dado uma casa decente, para podermos dormir e fazer amor longe dos ouvidos das outras pessoas.

Eu sabia o que ele queria dizer. As velhas molas rangiam mesmo quando nos virávamos na cama. Do outro lado da cortina, o pai ressonava e, sob as tábuas do soalho, tal como a mãe avisara, os porcos grunhiam e os cães ganiam. Alguma coisa arranhava as paredes de madeira. Ouvi um gato a assanhar-se e depois ficou tudo tão sossegado quanto possível; apenas se ouvia o vento a assobiar através das árvores e os ruídos secos do soalho e das paredes da pequena cabana. O uísque caseiro do pai pôs o Luke a dormir muito depressa. Eu demorei mais um pouco, mas por fim fechei os olhos e dormi a minha primeira noite nos Willies.

De manhã, o Luke levantou-se cedo, bem desperto, e foi até Winnerrow tentar arranjar aquele emprego de carpinteiro. O pai andava a trabalhar com um agricultor qualquer chamado Burl, a construir um celeiro novo com ele e a ganhar algum dinheiro. Depois do pequeno-almoço, a mãe sentou-se para continuar o seu croché. Decidi pegar num esfregão, num balde e em detergente e limpar a cabana o melhor possível. A mãe parecia divertida com o meu esforço mas, quando entrou na cabana e viu como eu tinha lavado os vidros e polido os objectos todos da casa, assentiu de aprovação.

Em seguida, levou-me até ao seu pequeno jardim e eu ajudei-a a arrancar as ervas daninhas enquanto ela falava do seu passado, como tinha sido a sua vida por ter crescido nos Willies. Falou-me dos seus outros filhos, os irmãos do Luke, e eu notei como ela ficara transtornada por dois deles estarem na prisão.

- Nós somos pobres e nunca nos armámos em grandes

- dizia ela -, mas sempre fomos gente honesta. Excepto, claro, em relação ao uísque caseiro que o pai faz, mas, de qualquer maneira, isso não tem nada a ver com o Governo. Todos aqueles impostos são só para tentar proteger aqueles grandes homens de negócios que fazem uísque e o vendem por preços altíssimos. As pessoas aqui da zona nunca conseguiriam pagar esse preço pelo uísque e não beberiam nada se não houvesse moonshiners.

"Não quer dizer que eu aprove a bebida, atenção. Foi a bebida que meteu os meus outros rapazes em apuros. Eu apenas detesto ver os pobres homens dos Willies a serem perseguidos por fazerem o seu próprio uísque. Percebes, Angel?

- Sim, mãe.

- Hum - proferiu ela, observando-me a trabalhar. Afinal, até és capaz de acabar por te tornar uma mulher dos Willies. Pelo menos não te importas de sujar as mãos.

Teve piada como aquela observação me fez sentir orgulhosa. Pensei na expressão da minha mãe se ela me pudesse ver naquele momento. A mamã morreria se tocasse em alguma coisa com pó em Farthy, mas ali estava eu, com os dedos enfiados na terra macia e fresca. E não me sentia assim muito mal, pensei. Mas o que queria mesmo era parecer bonita aos olhos do Luke, quando ele voltasse do seu primeiro dia de trabalho em Winnerrow.

- Mas não faz mal mais logo ir lavar as mãos e talvez pôr um pouco daquele creme que eu trouxe comigo, pois não, mãe?

Como ela se riu!

- Claro que não, filha. Raios, não achas que eu também gostava de ter o aspecto daquelas mulheres chiques e ricas de Winnerrow?

- Bem, talvez eu possa ajudar a fazer isso, mãe - disse eu. - Mais logo, deixe-me escovar o seu cabelo e pode usar um pouco do meu creme para as mãos.

Ela olhou para mim com um ar de quem achava aquilo estranho.

- Hum - disse ela. - Talvez.

Parecia ter medo da ideia, mas deixou-me tratar dela; deixou-me escovar o seu cabelo e enfeitá-lo um pouco. Depois, fomos buscar o seu melhor vestido e um dos meus mais bonitos e arranjamo-nos o melhor possível para recebermos o Luke e o pai quando estes regressassem do trabalho. O pai chegou primeiro a casa.

- O que é isto? - disse ele, quando nos viu no alpendre tão embonecadas. - Não é domingo, pois não?

- Então, Toby Casteel, não tem de ser domingo para eu ter um aspecto decente, pois não? - disse a mãe bruscamente. Ele ficou com um ar aflito e confuso, voltando-se para mim para tentar perceber o que tinha dito que a fizera zangar-se tão depressa. - Não te faria mal nenhum ires lavar-te e vestires umas roupas decentes para jantar, de vez em quando. Ainda és um homem atraente.

- Sou? Bem, então deve ser verdade - disse ele, piscando-me o olho.

- Oh, é sim, pai - afirmei eu, e o seu rosto iluminou-se. Foi para as traseiras da cabana, tomou um banho com a água da chuva e depois vestiu-se com um dos seus melhores fatos, o seu fato de domingo. Ficámos os três sentados no alpendre à espera que o Luke chegasse.

Pouco depois, ouvimos o barulho da carrinha dele a calcorrear o árduo caminho através dos montes. De vez em quando, ele apitava.

- Eh lá! - exclamou a mãe e lançou-me um olhar de aviso. O meu coração começou a bater. O que seria? O que é que ela quereria dizer?

O Luke entrou no pátio da frente a toda a velocidade e a buzinar. Depois, saltou da carrinha sem fechar a porta. Segurava numa grade de seis cervejas contra o estômago, três delas já vazias.

- Temos de festejar - gritou ele e riu-se. -Mas que raio... - disse o pai.

- Que vá para o diabo - lançou a mãe.

O Luke caminhava aos tropeções com um sorriso estúpido nos lábios. Então, os seus olhos focaram-nos aos três e ele viu que estávamos todos arranjados.

- Mas que... - Apontou para nós, como se houvesse alguém ao lado dele. - Olha para eles... mas que... oh, vocês também estão a festejar?

- Luke Casteel - afirmei eu, pondo-me em pé, com as mãos nas ancas. - Como é que te atreves a vir para casa nesse estado? Primeiro, podias ter caído por uma ribanceira abaixo ou qualquer coisa do género, e depois estás com um ar tão parvo que até me dá vontade de chorar.

- Hem?

- Diz-lhe das boas - incitou a mãe.

- Aqui estamos nós, a tentar começar uma vida nova, a tentar sermos felizes e tu vens para casa bêbedo. - Dei meia volta com lágrimas a correrem-me pelas faces e entrei na cabana.

- Hem? - repetiu o Luke.

Atirei-me para cima da cama e desatei a chorar. Pouco depois, um Luke Casteel muito mais sóbrio seguiu-me. Ajoelhou-se ao meu lado e afagou-me o cabelo.

- Oh, Angel - dizia ele. - Eu só estava a festejar por nós. Consegui o emprego e descobri que podia comprar madeira com desconto quando estiver pronto para começar a nossa casa nova.

- Não me interessa, Luke. Se tens alguma coisa que festejar, devias esperar para festejarmos juntos. Eu disse-te que estava preocupada por beberes tanto e tu prometeste parar de beber. Agora acontece isto.

- Eu sei, eu sei. Oh, desculpa - pediu ele. - vou levar as garrafas que sobraram e atirá-las pela ribanceira abaixo prometeu ele. - E se não me perdoares, atiro-me atrás delas.

- Luke Casteel - gritei eu, virando-me para ele. Nunca mais fales dessa maneira. Nunca mais! - Os meus olhos flamejavam. Percebi como ele ficara surpreendido.

- Ena! Como és bonita quando te zangas a sério - disse ele. - Nunca te tinha visto assim, mas não quero que fiques zangada. Prometo - afirmou ele, erguendo a mão. - Não beberei mais quando guiar. Dás-me outra oportunidade?

- Oh, Luke Casteel, tu sabes que sim - disse eu, e abraçámo-nos e beijamo-nos.

- Tenho madeira na carrinha - disse ele. - E vou começar a fazer a tua casa de banho agora mesmo.

Segui-o para fora da cabana e observei-o a descarregar. A mãe lançou-me um olhar de aprovação por o ter posto sóbrio tão depressa. Depois, voltou-se para o Luke.

- Para que é a madeira? - perguntou-lhe ela.

- Para o anexo da Angel - disse ele, o que fez a mãe e o pai desatarem a rir.

- Continuem, divirtam-se à minha custa - disse o Luke -, mas, quando o virem, vão parar de rir.

O Luke pôs todo o amor que tinha por mim no seu trabalho e construiu um anexo tão bonito quanto possível. Em seguida, pintou-o de branco e insistiu para que lhe chamássemos casa de banho em vez de anexo. A mãe gozava com ele sempre que tinha oportunidade.

- vou ao meu anexo, quero dizer, casa de banho - dizia ela e o Luke rodava os olhos e abanava a cabeça.

Passou o Verão e veio o Outono. O Luke fez mais alguns melhoramentos na cabana, experimentando algumas habilidades de carpintaria que tinha aprendido entretanto. Construiu alguns armários e prateleiras para a mãe e reforçou o alpendre e os degraus de acesso. Fechou algumas das fendas entre as tábuas das paredes e do soalho; porém, o trabalho dele na cidade começou a tomar-lhe cada vez mais tempo. Pouco depois, já estava a chegar a casa depois do anoitecer e tão estafado que quase nem conseguia jantar. Às vezes o seu hálito cheirava a uísque. Sempre que eu fazia um comentário a isso, ele dizia que precisava de dar um golo ou dois para aguentar até ao fim do dia.

- Ele está a tentar que eu faça o trabalho de dois homens, Angel - confessou-me o Luke uma noite, depois de jantar. Estávamos a passear por um caminho através da floresta que nos levava a uma clareira num cume que dava para o vale. Era uma vista fora de série. Conseguíamos ver as luzes de casas a quilómetros de distância. - Todos os empresários de Winnerrow, mais cedo ou mais tarde, acabam por se aproveitar da gente dos Willies - explicou o Luke. - Eu estou a controlar-me porque quero começar a construir a nossa casa o mais cedo possível, mas está a tornar-se cada vez mais difícil.

- Não gosto de te ver a afogar problemas e frustrações em bebida, Luke. Não podes arranjar um emprego diferente?

- Não há assim muitos empregos para nós, a gente dos montes. Foi por isso que eu me fui embora dos Willies tantas vezes.

- Tenho andado a pensar, Luke. Talvez eu devesse entrar em contacto com o meu pai. Ele é dono de uma companhia de navios e tenho a certeza de que ele te arranjaria um bom emprego.

- Que tipo de trabalho? Trabalhar na casa das máquinas de um paquete e estar longe de ti a maior parte do tempo?

- Tenho a certeza de que ele te arranjava um emprego no escritório, Luke.

- Eu? Um emprego no escritório? Havia de me sentir como um esquilo numa gaiola. Não, senhor, eu não. Preciso de andar ao ar livre ou da excitação do circo, que é uma vida ainda mais livre.

- Queres voltar para o circo depois de o bebé nascer, Luke? perguntei eu. - Eu vou contigo, se quiseres.

- Não. A vida no circo é dura e estamos sempre a viajar. Eu aguento isto até chegar a nossa vez - disse ele.

- Eu podia escrever ao meu pai e pedir-lhe para nos mandar parte do meu dinheiro. Também há dinheiro num fundo de garantia lá em Farthy.

- Não queremos nem um tostão desse dinheiro - disse o Luke bruscamente. Era a primeira vez que ele se zangava comigo. Mesmo estando escuro e apesar de termos apenas a luz das estrelas, percebi como os olhos dele arderam de vergonha. - Eu consigo sustentar a minha família.

- Eu não quis dizer que não conseguias, Luke.

Ele assentiu e sentiu-se logo mal por ter levantado o tom de voz comigo.

- Desculpa ter-te falado daquela maneira, Angel. Estou apenas cansado.

- A mãe tem razão, Luke. Devias tirar um dia de folga. Mesmo quando não estás a trabalhar na cidade, fazes trabalhos aqui por casa. Este domingo vamo-nos arranjar todos para irmos à missa, está bem? Por favor, Luke.

- Bem, está bem - cedeu ele.

A mãe ficou contente por irmos à missa, mas quando lá chegámos no domingo seguinte, percebi o que o Luke quisera dizer sobre as pessoas da cidade olharem de revés para a gente dos Willies. Mal entrámos na igreja, podia-se cortar o ar com uma faca. As pessoas chiques da cidade viraram-se todas para trás e lançaram-nos um olhar irritado e feroz, como que para nos avisar que devíamos permanecer nos nossos lugares. A mãe e o pai Casteel sentaram-se imediatamente junto de outras pessoas que eu reconheci dos Willies, mas eu não disse nada.

O Luke olhou para mim, curioso. Era tão bonito, vestido com o seu fato e gravata, o cabelo penteado para trás, e eu, mesmo estando no meu sexto mês de gravidez, achei que estava tão bonita como qualquer uma dessas mulheres ou raparigas de Winnerrow. O meu vestido era tão caro, se não mais caro, do que a maior parte dos vestidos delas, e nenhuma delas tinha um cabelo tão macio como o meu. A água da chuva tinha tornado o meu cabelo ainda mais volumoso do que era quando cheguei aos Willies.

Vi dois lugares livres à frente e empurrei o Luke nessa direcção. Ele retraiu-se um pouco e depois olhou para o meu rosto.

- Pensava que querias que eu repreendesse o presidente da Câmara de Winnerrow na primeira oportunidade - disse eu. Ele abriu-se num sorriso.

- Se quero! - exclamou ele e seguiu-me até aos lugares da frente. As pessoas que estavam sentadas nos bancos do estrado recostaram-se, como se uma lufada de vento tivesse entrado na igreja e passado por elas. Estavam todas com os olhos muito abertos, numa mistura de curiosidade e afronta, mas eu fitei-os insolentemente até baixarem os olhos e se descontraírem. O padre ocupou o seu lugar no púlpito e fez um bonito sermão sobre amor fraternal, o que eu achei que era adequado a esse dia.

Mais tarde, a mãe veio ter comigo.

- Eu tinha razão quando te vi pela primeira vez, Angel disse-me ela. - Tens a garra de uma Casteel. Estou orgulhosa de ti.

- Obrigada, mãe.

Ao domingo, depois da missa, a população dos Willies juntava-se. Tocavam violino, dançavam e comiam a comida com a qual cada família contribuía. Eu ajudei a servir e depois sentei-me a ver o Luke e o pai a cantarem e a tocarem banjo. Os homens dançavam e as mulheres batiam palmas.

Há mil anos atrás, eu tivera uma festa de anos em Farthy. A minha mãe contratara uma pequena orquestra caríssima e uma empresa de serviços. Os meus colegas de escola estavam todos vestidos a preceito e provinham das melhores e mais ricas famílias da zona. Víramos um filme na nossa sala de cinema privativa. Nessa época, achei que tinha sido a melhor festa a que alguma vez assistira.

No entanto, em Winnerrow, com esta gente simples dos montes a cantar os seus sonhos ou canções engraçadas sobre a herança que os montes lhes legaram, senti-me ainda mais feliz. Ninguém era superior ou inferior. Senti-me em casa, à vontade, confortável.

Claro que reparei que as raparigas dos montes lançavam olhares amorosos na direcção do Luke, pois, arranjado e bem vestido, ele era tão atraente como uma estrela de cinema. Uma das raparigas, a Sarah Williams, fisgou-me com os seus olhos verdes, quando conseguiu que ele dançasse com ela e passou o tempo todo a olhar para mim e a sorrir. A Sarah tinha cabelo ruivo cor de fogo e era quase tão alta como o Luke. Colava-se muito a ele e eu não consegui deixar de sentir ciúmes, pois era uma rapariga bonita, com um corpo elegante e sem uma barriga espetada como a minha. Mal a dança acabou, ele voltou para ao pé de mim, literalmente libertando-se das garras da Sarah.

- A Sarah é uma rapariga bonita, Luke - comentei eu, olhando para o lado.

- Talvez, Angel, mas eu só tenho olhos para ti - disse ele e virou-me a cara, para que eu pudesse olhar para os seus olhos negros, olhos plenos de amor, esperança e orgulho. -

Eu não a devia ter deixado arrastar-me para a pista de dança - acrescentou ele, censurando-se a ele próprio. - É o monoonshine a subir-me à cabeça, tal como me lembraste. - Eu não quero parecer uma velha rezingona, Luke. - Não o és. Nunca na vida. - Abanou a cabeça, quando outra das raparigas o veio chamar.

- Oh, Luke. Eu sinto que te estou a roubar, por vezes, por te fazer o pai do meu filho.

- Não digas mais nada - sussurrou ele, pondo o dedo nos seus lábios. - Essa criança é nossa e tu não estás a afastar-me de nada de que eu próprio não queira ser afastado. Estás com um ar cansado, Angel - acrescentou ele. - Vamos para casa. Eu já comi e bebi o suficiente.

- Mas tu estás a divertir-te tanto, Luke.

- Prefiro estar em casa sozinho contigo, Angel - disse ele.

O meu coração voltou a encher-se. Quando voltámos para a cabana nessa noite, estivemos a rir e a conversar animadamente até irmos dormir. O Luke e eu enfiámo-nos por baixo da nossa colcha e abraçámo-nos. Nunca me sentira tão segura e tão feliz. De vez em quando, o bebé dava um pontapé, e o Luke, que estava colado a mim, também sentia.

- Não sei se é rapaz ou rapariga - observou ele -, mas seja o que for, tem o teu orgulho e a tua coragem, Angel prosseguiu o Luke. - Nunca me esquecerei da maneira insolente como deitaste abaixo aquela gente rica hoje.

- E eu nunca me hei-de esquecer de como estavas atraente e das raparigas todas que te fizeram olhinhos, Luke Casteel.

- Oh, não digas isso. - Como a sua bochecha estava encostada à minha, senti-o corar.

- Parece que vamos ter muitas coisas para contar ao nosso filho, quando ele ou ela tiverem idade suficiente para ouvir e perceber, hem, Luke?

- Oh, de certeza - concordou ele. Beijou-me e estreitou-me e ambos fechámos os olhos e deixámo-nos dormir.

No fim de Novembro começou a nevar nos Willies. com a noite, o frio macio veio instalar-se nos montes como um cobertor de gelo. Às vezes, o vento soprava implacavelmente através da cabana e eu enrolava-me na nossa colcha e sentava-me ao lado do Velho Fumegante, o fogão a carvão. Quando o Luke chegava a casa à noite, abraçava-me e esfregava-me, amaldiçoando o frio. A mãe e eu fizemos novas colchas de croché e o Luke comprou-me umas jardineiras compridas para eu vestir. Eu parecia um susto, com a barriga espetada, e ainda demos umas boas gargalhadas à conta disso.

Na véspera de Natal, tivemos a melhor refeição possível. O pai comprara um peru a Simon Burl, que lhe custara um dia de trabalho, mas estava todo orgulhoso do peru. A mãe e eu tínhamos tricotado luvas e camisolas para o pai e para o Luke, e o Luke trouxera presentes para toda a gente: pentes novos para a mãe, um cachimbo feito de carolo de milho verdadeiro para o pai e uma prenda para mim tão especial que ele quis que eu a desembrulhasse atrás da cortina esfarrapada que servia de parede para o nosso quarto.

Sentei-me na cama e tirei a fita com cuidado. Depois, levantei a tampa da caixa e afastei o papel de seda. Lá dentro estavam as roupas de boneca mais lindas que eu vira na vida, roupas para a Angel. O Luke tinha-lhe comprado um fato de noiva: um véu de noiva com um tecido transparente a pender de uma capinha cintilante, um vestido comprido feito de renda branca, bordado sumptuosamente com pérolas minúsculas e contas reluzentes, sapatos brancos forrados a renda e cetim branco e até meias de seda presas a um minúsculo cinto de ligas.

- Oh, Luke, é tão lindo. Estou desejosa de vesti-la gritei eu.

- Tu nunca tiveste um casamento decente, vestida de noiva, mas pensei que pelo menos a Angel devia ter um casamento a sério - disse ele.

- Que querido, Luke! - Vesti a Angel com o seu novo adorno e reparei no medalhão à volta do pescoço dela. Arranquei-o e atirei-o pela janela fora, tão longe quanto possível. Em seguida, fomos mostrá-la à mãe ao pai.

Mais tarde, enquanto a mãe e eu estávamos a lavar a loiça, ela inclinou-se e segredou-me.

- Nunca pensei que o meu Luke viesse a ser assim, Angel. Sempre tive medo que ele fosse igual aos irmãos, pois gosta da sua pinga, mas tu fazes com que ele não vá longe de mais. Quando te magoa, ele próprio sofre imenso. Enquanto te tiver a ti, nunca irá meter-se em sarilhos a sério. Acho que quando ele te encontrou, foi o seu dia de sorte.

- Obrigada, mãe - disse eu, com lágrimas nos olhos. Ela sorriu e abraçou-me, abraçou-me a sério pela primeira vez.

De alguma maneira, e apesar de sermos tão pobres e de vivermos numa cabana do tamanho de uma das casas de banho de Farthy, eu sentia-me feliz. Até achava que tinha sido o melhor Natal da minha vida. Os olhos da Angel cintilavam à luz do candeeiro a óleo. Ela também estava feliz.

O mês seguinte foi um mês difícil para nós. Nevou quase todos os dias e estava um frio de rachar. O Velho Fumegante deitava para fora quase tanto fumo como calor, mas tivemos de o manter aceso continuamente. Todas as noites, o Luke pedia-me desculpa pelo tempo e passava horas a esfregar-me os dedos dos pés e das mãos, mas o que é certo é que sobrevivemos, e entrámos no degelo em princípios de Fevereiro. Os dias passavam, o céu não tinha nuvens e o Sol irradiava calor, fundindo o gelo dos ramos das árvores. À noite, a neve derretida e o gelo brilhavam como diamantes, transformando a floresta que nos rodeava num cintilante país das maravilhas.

Fazendo os cálculos à minha gravidez, estava apenas a semanas de dar à luz. A mãe era tão eficiente como uma parteira, pois trouxera ao mundo dezenas de bebés dos Willies, bem como seis dela própria. O Luke queria levar-me à cidade para ir ao médico, mas eu sentia-me segura com a mãe e achava que não havia razão para o Luke gastar quase dois meses de ordenado para pagar a um médico que iria fazer a mesma coisa que a mãe, quando chegasse a hora.

O bebé era activo e eu dei comigo com falta de respiração de vez em quando. Doíam-me os rins. Queria fazer a minha parte do trabalho, mas a mãe insistia para que eu descansasse mais. Contudo, encorajava-me a andar o mais possível.

Quando o clima aqueceu um pouco e o Inverno abrandou as suas garras sobre a floresta, o Luke e eu começámos a dar os nossos passeios nocturnos até ao cume que tinha vista sobre o vale. Da perspectiva do cimo dos montes, o céu nocturno de Inverno desobstruído era espectacular.

De todas as minhas recordações, suponho que esta noite de Fevereiro me ficaria na memória mais do que todas as outras. Eu estava muito bem agasalhada. Apesar de não estar tanto frio como estivera em Janeiro, o Luke insistira para que eu vestisse as camisolas, o casaco, o gorro que a mãe me tricotara e as luvas que eu própria fizera depois de ela me ensinar a fazer malha. Porém, quando chegámos ao cume, eu descalcei as minhas luvas de lã para lhe poder dar a mão e sentir o calor dos seus dedos.

Ficámos ali silenciosos por uns momentos, ambos fascinados pelos milhares de estrelas espalhadas à nossa frente pela noite escura. As casas por baixo de nós salpicavam o vale, as suas janelas estavam iluminadas e elas próprias pareciam estrelas. Cintilavam com o calor que emanava das famílias sentadas em volta das lareiras. Quase que se conseguia ouvir os risos deles, a música e as conversas calmas.

- Um dia - disse o Luke -, um dia, em breve, uma daquelas casas lá em baixo no vale vai ser a nossa. Juro, Angel.

- Eu sei que sim, Luke. Acredito em ti.

- Vamos estar sentados na nossa sala, eu com os pés apoiados, a fumar o meu cachimbo, tu a tricotar ou a fazer croché, e o nosso bebé a brincar no chão, entre nós os dois, os três quentinhos e em segurança. - Depois, acrescentou:

- É tudo o que eu quero na vida, Angel. Achas que estou a sonhar alto de mais?

- Acho que não, Luke.

- A mãe e o pai acham que é um sonho tão distante como aquelas casas lá em baixo - disse ele, com tristeza.

- É só porque foi assim com eles, mas não vai ser assim connosco, Luke.

Ele assentiu e abraçou-me, estreitando-me contra ele. Ficámos ali de pé, com as estrelas por cima de nós e à nossa frente; duas pessoas, sozinhas, numa noite de Inverno, a sussurrarem o seu amor um pelo outro. O meu bebé deu um pontapé.

- Sentes, Luke? - perguntei eu, pondo a mão dele na minha barriga. Ele sorriu.

- Acho que é uma rapariga, Luke.

- Talvez. Amo-te, Angel. - Virou-se para mim. Amo-te mais do que algum homem amou uma mulher.

O meu bebé deu outro pontapé e doeu-me o ventre. Tive mais dores essa noite do que alguma vez tinha tido. Nos últimos dias, eu andava a acordar com dores a meio da noite e até de manhã, mas não me queixava pois não queria que o Luke se preocupasse e ficasse em casa em vez de ir trabalhar. Talvez a dor significasse apenas que estava próximo, pensava eu, apesar de a mãe não parecer muito feliz com esse facto.

- Acho que o bebé quer sair e vir ter connosco, Luke. Está a chegar a hora.

- Bem, a altura não podia ser melhor - comentou ele.

- com os céus a brilharem e todas estas estrelas, é uma boa noite para o bebé nascer, principalmente se for uma rapariga e nós lhe chamarmos Heaven.

Uma dor aguda quase me pôs de joelhos, mas eu fiz uma careta e suportei-a, para que o Luke não percebesse e ficasse preocupado. Ele estava tão feliz e tão cheio de esperanças, não queria fazer nada que lhe alterasse a disposição. No entanto, não conseguia evitar sentir-me um pouco assustada, apesar de imaginar que era natural uma mulher ter medo antes de dar à luz o seu primeiro filho, principalmente uma mulher tão jovem como eu.

- Oh, Luke, leva-me para a cabana e abraça-me, abraça-me com mais força do que nunca - pedi eu. Ele beijou-me e começámos a perfazer o caminho de regresso.

- Espera - disse eu, detendo-o.

Voltei-me para trás para lançar um último olhar às estrelas.

- O que foi, Angel? - perguntou o Luke.

- Quando fechar os olhos, hoje à noite, quero que todas aquelas estrelas apareçam por detrás das minhas pálpebras. Quero sentir-me como se estivesse a adormecer no céu.

Ele riu-se e em seguida demos a curva para entrarmos na floresta, e as estrelas desapareceram.

 

Viro a página, mas não tem nada escrito, nem na página seguinte, nem na outra. Finalmente, encontro uma folha de papel dobrada entre a última página do diário e a capa. Abro-a com cuidado, pois é tão antiga que, se eu fosse demasiado brusca, podia desfazer-se entre os meus dedos. É uma carta de uma agência de detectives.

Exmo. Mister Tatterton,

Como o senhor já foi informado, localizei a sua enteada numa zona montanhosa da Virgínia Ocidental. No meu último relatório, descrevi as condições em que ela estava a viver e também que estava grávida.

Receio ser portador de más notícias. Ontem, o meu assistente, a quem entreguei o caso, telefonou a informar que soube da notícia da morte da sua filha. Aparentemente morreu de parto. Comunicou-me que ela não recebeu cuidados médicos e deu à luz na sua cabana nos montes Willies. Lamento.

O meu assistente informou também que a criança está viva e é uma menina.

Espero novas ordens.

Atenciosamente,

Stanford Banning,

Investigador Privado

Por uns momentos, fiquei sem respiração. O ar é tão bafiento e tão abafado nesta suite velha e poeirenta.

- ANNIE!

É o Luke que está a chamar-me.

- Estou aqui, Luke.

Pouco depois já ele está à porta.

- Todas as pessoas que vinham ao enterro já chegaram, Annie. E estão todos a perguntar por ti. Está na hora - diz o Luke. Eu concordo silenciosamente. - O que é que tens estado a fazer?

- Tenho estado aqui sentada a ler.

- A ler o quê? - Ele avança para dentro da suite.

- Uma história, uma história estranha e triste, mas muito bonita, a história da vida da minha avó. - Retenho as minhas lágrimas, mas o Luke vê-as nos meus olhos.

- Annie, vamos embora. Este lugar está assombrado pela tristeza e pela dor. Tu não pertences aqui.

- Sim. - Sorrio. Como o Luke era bonito, tão bonito como o seu avô devia ter sido. Ele aproxima-se de mim, eu pego na mão dele e levanto-me. Começamos a andar e eu detenho-me.

- O que foi?

- Nada - respondo eu. - Só quero repor isto no seu lugar. Sinto que pertence aqui, no meio de todas as outras recordações. - Volto a pôr o diário na bolsa de pano e devolvo-o à gaveta. Depois, olho uma vez mais à minha volta e apresso-me a ir ter com o Luke.

Descemos a enorme escadaria. Eu detenho-me. Parecia-me ter ouvido o riso de um rapazinho. Até acho que o ouvi chamar: "Leigh! Leigh!"

Sorrio.

- O que foi? - pergunta o Luke.

- Estava a imaginar o meu pai em menino a chamar a minha avó para ela ir brincar com ele.

O Luke abana a cabeça.

Continuamos a descer as escadas e passamos pelo grandioso átrio de entrada. Será música que eu ouço atrás de mim? A festa de anos de Angel? Um concerto de piano para convidados ricos? O meu pai a praticar o seu Chopin? Ou será apenas o vento a descobrir o seu caminho para o interior da mansão? Talvez seja tudo isso junto.

Saio com o Luke e fecho a grande porta atrás de mim, deixando em aberto a pergunta e a resposta, junto com todas as outras, dentro da grande Mansão Farthinggale.

 

                                                                                            V. C. Andrews  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades