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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEIAS DE SEDA / Homar Paczkowski
TEIAS DE SEDA / Homar Paczkowski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TEIAS DE SEDA

 

     Na noite fria a garoa é forte e cortante. Gotas afiadas abrem caminho por entre a neblina que toma todo o complexo aeroportuário do Campo de Marte e imediações. Não há pousos, não há decolagens.

     O Lear Jet está sendo abastecido enquanto pequenos tratores puxam para o seu lado vagonetes com containers que serão suspensos até a porta lateral traseira. Um homem com capa de chuva e capuz dirige outro trator cuja carroceria se trata de uma plataforma elevadiça; sobre esta há outro homem vestido da mesma maneira. O trator pára sob a cauda do avião e a plataforma começa a se elevar, chegando até a extrema traseira do jato executivo, na região das turbinas.

     No alto da plataforma e já tendo a fuselagem do avião ao seu lado, o homem retira de dentro da sua capa um embrulho, o qual ele desfaz rapidamente. Logo se faz revelar em suas mãos uma espécie de engenho do tamanho de uma caixa de sapatos, dotado de um mostrador com números digitais. Ele acopla o aparelho na fuselagem e depois pressiona alguns botões, programando-o. A plataforma desce e o trator sai dali.

     Passageiros embarcam eufóricos. Apesar do tempo é aberta a exceção para a decolagem daquele avião. As turbinas são ligadas produzindo um barulho ensurdecedor, um dos aeroviários sinaliza para que em seguida o jato taxíe impávido.

     Ele corre intrépido cortando a névoa.

     Decola e voa, sumindo por entre a barreira branca acinzentada que o separa do céu estrelado.

     Logo só luzes coloridas ao longe.

     Em instantes nada mais, nem som, nem brilho, só a intempérie...

 

*                     *                     *

 

         Num hangar escuro e quase vazio, o homem que instalou o dispositivo retira a sua capa de chuva na frente de uma moça. Ela vai até ele e o premia com um beijo ardente, ajudando-o não só com a capa, mas com o resto das roupas, despindo-o completamente naquela penumbra. Ela se despe também, enaltecendo com os dedos os contornos bem formados do seu corpo jovem.

        Logo ambos rolam como animais no chão com cheiro de querosene. Os sussurros e bramidos rompem aquele silêncio aterrador...

 

*                     *                     *

 

         Os oito passageiros do Lear Jet teciam comentários animados ao vislumbrarem a paisagem da floresta amazônica, também chamada de "inferno verde". As exclamações eram muitas enquanto que alguns apontavam para coisas outros as tentavam mirar com binóculos. Subitamente houve um estrondo, uma espécie de explosão que fez com que o avião sacolejasse começando a perder a altitude. Foi com o desespero expresso nos olhos que todos notaram que a turbina direita estava em chamas. Chamas estas que se alastravam rapidamente em direção a fuselagem. O avião perdia altitude rapidamente e já estava fora do controle dos dois pilotos. Logo suas asas já batiam nas copas das árvores mais altas, enquanto que seus ocupantes apavorados mantinham as cabeças baixas e encostadas nos acentos à sua frente. As máscaras de ar já haviam se deixado cair, pois a aeronave estava totalmente despressurizada. Partes das asas já se haviam perdido no meio das árvores, quando o nariz do jato executivo chocou-se violentamente com a floresta.

         Uma onda de fogo invadiu a fuselagem transformando-a num inferno e logo esta despedaçou-se por entre árvores e cipós, matando todos os ocupantes carbonizados e estraçalhados.

 

                                                                  

 “ Na grande São Paulo o tempo é estável, no momento a temperatura está na marca dos vinte e três graus e continua em elevação. Nas principais rodovias o tráfego é normal. Na Rodovia dos Imigrantes e na Via Anchieta o fluxo de veículos começa a aumentar devido a proximidade do final de semana. Agora música e mais música para você. E dando início a esse módulo a mais pedida por você que ligou, e o som é de...” - O rádio foi desligado.

     - É, este carro me convenceu, creio que satisfará todas as minhas necessidades, além do mais será um peso a menos na consciência, pois o senhor sabe, que ter um automóvel importado e muito caro é um sufoco! A gente não tem coragem de sair de casa e às vezes torna-se difícil encontrar uma peça sobressalente. Foi por isso que eu optei por um carro nacional... creio que ele não deixe muito a desejar para um importado, e principalmente vai me dar mais segurança... se bem que hoje em dia, mais seguro mesmo seria não sair de casa. - Disse aquela bela moça de cabelos castanho-claros, olhos azuis, traços delicados e muito bem trajada. Aparentava o seus vinte e quatro anos.

     - Então a senhora vai ficar com este aqui mesmo? - Perguntou o vendedor.

     - Não tenho cara de mulher casada, tenho? - O vendedor encarou-a dúbio.

     - N-não, é claro que n...

     - Então me chame de senhorita! - Ordenou ela rigidamente.

     - B-bem, então a...

     - Vamos, fale de uma vez! Eu não tenho o dia todo!

     - A-a senhorita vai ficar com este modelo mesmo?

     - Já disse que sim, mas não com essa cor horrível. Providencie-me o mesmo modelo numa cor mais sóbria, algo como azul marinho ou preto.

     - Como queira, estamos com um modelo preto com detalhes dourados muito bonito. Se a senhorita me acompanhar vou conduzi-la até ele.

     - Ótimo, afinal eu já dispensei o motorista e vou querer levar já o meu novo carro. Espero que esteja tudo em ordem!

     - E está, ele passou por uma boa revisão antes de sair da fábrica, inclusive está com o tanque cheio!

     - Espero que não esteja faltando nenhum acessório.

     - Não, ele está completinho, todo equipado. - Confirmou o vendedor esboçando um largo sorriso, pois não era todo dia que vendia um carro daqueles com pagamento à vista. Por um momento ela se deteve no sorriso do vendedor e correspondeu, mas o fazendo de modo forçado:

     - A documentação também está em ordem? - Perguntou.

     - Tudo aqui, senhorita. Pode ir sossegada e espero que seja feliz com o seu novo automóvel!

     - Muito obrigada. - Disse ela abrindo a porta e jogando sua enorme bolsa no banco do passageiro e sentando-se frente ao volante. Não demorou para dar a ignição e sentir a potência do motor. Afivelou o cinto de segurança e logo já deixava aquela movimentada revendedora.

 

Enquanto isso, no outro extremo daquele grande salão:

     - Você tem certeza que este é o modelo mais sofisticado?    

     - Sim senhora, mais caro só mesmo um importado e dos bons!

     - Me chame de senhorita... ou melhor, de você. Afinal somos ambos bastante jovens para esse tipo de formalidades, não é mesmo? - Questionou aquela bela e loura jovem de olhos azuis celestes, tocando levemente o queixo do vendedor que se mostrou bastante encabulado ante a beleza daquela moça de cabelos longos e ondulados, lábios vermelhos, estatura média e um corpo invejável, ressaltado pela justíssima blusa de cotton e calças jeans básico, também bastante justas. Seu pescoço estava adornado por longas correntes que certamente eram de ouro ou uma réplica perfeita do metal.

     - C-com certeza...

     - Será que você não teria uma cor mais alegre... talvez vermelho, da cor do pecado, heim?

     - Claro, basta que v-você me acompanhe!

     - Ótimo, estou começando a gostar. Espero que você já tenha em mãos toda a documentação do carro, afinal já estarei bastante ocupada com o emplacamento e além do mais essas burocracias me deixam exausta... o tempo foi feito para ser aproveitado com coisas bem mais agradáveis, você não concorda? - Inquiriu a jovem de seus vinte e três anos, lançando um olhar insinuante para o rapaz que apenas concordou fazendo um gesto positivo com a cabeça, tal era o seu embaraço. Meio que atrapalhadamente ele retirou os documentos do automóvel de uma pasta e passou para a jovem:

     - Estão todos em ordem!

     - Gosto de comprar aqui justamente porque vocês providenciam tudo, e porque sabem como agradar os fregueses... à propósito, você bem que poderia dar uma voltinha comigo para fazer com que eu me familiarize mais com meu novo carro, que tal?

     - Eu adoraria, mas infelizmente estou sozinho nesse setor hoje e não posso sair ou...

     - Pssst... - A moça tocou de leve o seu indicador nos lábios do vendedor. - Está bem, não precisa me explicar. Admiro esse seu senso de profissionalismo... mesmo assim, aqui está o número do meu celular, ligue-me a hora que você quiser! - Disse ela, entregando um pequeno cartão para o vendedor.

     - Eu vou fazer isso assim que possa! - Disse ele, guardando o cartão e sorrindo timidamente. Ela olhou o crachá do rapaz:

     - Eu vou ficar esperando Rodrigo, agora acho que vou estrear o meu novo brinquedo! - Ela entrou no carro, colocou o cinto e os óculos escuros e deu a ignição. Numa última olhada para Rodrigo ela lhe soprou um beijo e acenou. Logo veículo e nova proprietária ganhavam as ruas da grande São Paulo.

 

     O sol estava a pino naquelas onze e meia de sexta feira, o trânsito caótico e lento. Na Avenida Paulista, esquina com a Brigadeiro Luiz Antônio o fervilhar de veículos assemelhava-se à uma corrente sangüínea. Já próximo ao semáforo, que estava verde um automóvel azul-marinho se aproximava em alta velocidade. O sinal fechou e nem mesmo a ruidosa freada fê-lo parar a tempo. O sinal da perpendicular ainda nem havia abeto e um carro do mesmo modelo só que de coloração vermelha arrancou imediata e violentamente tentando cruzar a Paulista, mas foi bruscamente interrompido. Apesar da freada o choque foi inevitável, embora leve.

     Ambos os veículos ficaram em meio ao cruzamento e quase provocaram um engavetamento. O trânsito se tornou ainda mais complicado naquele local, enquanto que as respectivas motoristas saltaram dos interiores dos seus novos e já danificados automóveis. Andaram rápido uma em direção à outra, pareciam bastante irritadas. Quando já próximas ambas se entreolharam e exclamaram em uníssono:

     - Tinha que ser você!!!

 

     - Barbeira miserável, estava pensando em homem que não viu que o sinal ainda não havia aberto? - Questionou rispidamente a jovem de cabelos castanhos que trajava uma esvoaçante blusa de seda azul e calças de brim preto, já de bolsa em punho.

     - Uma ova, priminha, você é que deve ser daltônica ou talvez nunca ninguém tenha lhe dito que quando o sinal está vermelho, deve-se parar!!! - Respondeu a loura de cotton preto e jeans desbotados. Ambas tinham como característica em comum a quantidade de jóias e os óculos de lentes negras.

     - Agora pare de falar e tire essa geringonça de mau gosto que você comprou e deixe-me ir para casa! - Ordenou a primeira.

     - Mas como de mau gosto Lisiane, pelo visto nós duas temos mau gosto! - Lisiane olhou para o seu carro e comparou com o de sua prima. Esboçando um olhar psicótico, ela voltou a olhar para o seu carro e logo esbravejou:

     - Por acaso você anda me seguindo? O fato de você me imitar faz parte de mais um daqueles seus planos para me enlouquecer?

   - Mon bijou, eu não te imitei e nem sabia que você também iria às compras hoje e além do mais... as cores são diferentes!

     - O que comprova o seu gosto estragado por coisas chamativas que só uma "da vida" usaria, aliás... creio que a única diferença seja o fato de você não cobrar!

     - O quê?! Hã... Você simplesmente diz isso por puro recalque, por estar em plena estiagem!!

     - Não preciso desse tipo de prazer barato!

     - Não precisar é a desculpa de quem não tem!!!

     - Claudia!!! Tire essa porcaria daí de uma vez, antes que eu seja obrigada a...

     - Aa?

     - A fazer isto! - Bradou Lisiane, desferindo uma bolsada contra o capô do carro de Claudia, amassando-o. Diga-se de passagem que a bolsa de Lisiane era bastante grande e pesada, pois sabe-se Deus o que ela carregava no seu interior. Claudia olhou para aquilo pasma, mas logo tomou providências:

     - Sabe, eu também não aprovo a sua escolha, achei muito fúnebre. Mas para tudo se dá um jeito... Nós podemos dar uma melhorada no visual do seu carro fazendo alguns desenhos diferentes sobre ele! Tenho certeza de que você vai abafar, pois os detalhes são o segredo do negócio! - Disse Claudia, retirando de sua pequena bolsa um alicate de cutículas e com ele passando a desenhar flores e gaivotas sobre a lataria do carro de Lisiane que logo se fez ouvir:

     - Acho que para você enxergar melhor na próxima vez, temos de ampliar o seu campo de visão! - Disse Lisiane, tomando em mãos uma pedra de basalto da calçada e atirando contra o vidro dianteiro do carro da prima. E assim foi... faróis, espelhos retrovisores, pára-brisas, pneus, etc... E os mais inusitados objetos surgiam daquelas bolsas, como um martelo com o qual Lisiane macetou todo o carro de Claudia ou até um lança chamas que tratou de por fim naquela brincadeira, pois uma ateou fogo no carro da outra. Não satisfeitas, ambas se atracaram e rolaram-se pelo asfalto entre brados e tapas ante a multidão espantada que as assistia. Foi necessária a intervenção da polícia para apartá-las.

 

Na delegacia:

     - Então quer dizer que ambas são primas, uma advogada e outra economista, jovens... vinte e quatro e vinte e três anos e ricas... Acho que esse seja o problema, ninguém nunca lhes disse quando parar! Moram na mesma casa? - Perguntou o delegado.

     - Sim. - Responderam as duas, em uníssono.

     - Vocês perturbaram a paz pública e isso é um ato ilícito, como a senhorita deve bem saber, não é senhorita Lisiane?

     - A culpa não foi minha, foi dela! Mesmo assim acho que posso resolver isso pagando as multas e a fiança! - Disse Lisiane, tirando de sua bolsa o talão de cheques. Claudia resolveu fazer o mesmo, só que de modo mais "delicado":

     - Olha, seu delegado, eu concordo com a minha prima, o senhor me diz quanto é e eu pago, pois acho realmente uma injustiça nós, duas delinqüentes, ficarmos aí tomando o seu tempo, afinal o senhor deve ser uma pessoa tão ocupada e deve ter tantas outras coisas mais sérias para resolver do que ficar dando atenção para coisas tão pequenas! - O delegado não soube o que dizer, pois só lhe restava cobrar as multas concernentes ao acontecido e passar o resto para o departamento de trânsito que com certeza após pagas as multas, também as liberaria, pois não havia motivos para penas restritivas de liberdade como detenção, ou restritivas de direitos como a apreensão do veículo ou da carteira de habilitação. Só cabiam mesmo as penas pecuniárias ou multas pois o crime era de baixa conseqüência, podendo também ser chamado de contravenção penal ou crime anão.

                                                                                                                                            

     No bairro do Morumbi, ao final de uma alameda, erguia-se imponentemente, no alto de uma pequena colina, a bela e suntuosa mansão Villas Bhoas, rodeada por muitos jardins e caminhos e ainda mais além por altaneiras e lenhosas árvores que compunham misteriosos bosques.

     Naquela hora os seus simpáticos habitantes se preparavam para jantar e compunham a grande mesa, enquanto os empregados serviam a entrada:

 

     - Eu simplesmente não consigo conceber que as minhas sobrinhas, as quais eu criei e dei todo afeto, possam ter feito uma coisa destas! - Protestou Débora, uma das matriarcas da família. Mulher na faixa dos cinqüenta anos, semblante plácido e traços refinados que lhe davam uma beleza e frescura que a mantinham distante da verdadeira idade.

     - Pois eu fiz! - Disse Lisiane.

     - Eu também, pois essa estúpida mereceu! - Disse Claudia.

     - E vocês não têm vergonha em admitir isso?

     - Ora titia, nem foi tão grave assim... quase ninguém notou! - Tentou acalmá-la Claudia.

     - Isto mesmo, não precisa dramatizar! - Completou Lisiane.

     - Imaginem se ninguém notou! As minhas sobrinhas se pegam no tapa, rolando pelo asfalto em plena Avenida Paulista dando um espetáculo gratuito a todos os transeuntes e vocês ainda têm a audácia de me dizer que ninguém notou nada?!

     - A culpa foi dessa poedeira que bateu no meu carro só para me provocar! - Protestou Lisiane.

     - Áh! Então quer dizer que a culpada fui eu... havia uma porção de testemunhas que podem confirmar que quem furou o sinal foi você!

     - E ainda me dizem que ninguém notou... - Suspirou Débora.

     - Acho melhor encerrarmos essa discussão por aqui, ou então essas duas ainda vão acabar querendo se atracar aqui! - Interveio Hella, a outra matriarca. Também na faixa dos seus quase cinqüenta anos, aquela mulher de pele amorenada e cabelos negros era a cunhada de Débora. Apenas as duas haviam sobrado de uma grande tragédia na família que ceifara a vida dos pais de todos os seus sobrinhos que eram agora como filhos para ambas.

     - Dá mesmo vontade de estrangular e esquartejar essa daí! - Bradou Lisiane.

     - Lisiane, jamais repita uma barbaridade dessas! E não se esqueça de que nós estamos jantando e as refeições são horas sagradas! - Advertiu Débora.

     - Háháháháháhá!!! Eu adoraria ter estado lá e ter filmado tudo para vender para os jornais e para a televisão como uma boa "vídeo cassetada". Duas marmanjas se atracando como dois galos de briga... se bem que no caso, seriam duas "galinhas" de briga! - Riu-se Márcia, outra prima de Lisiane e Claudia. Moça de vinte e dois anos e recém formada no curso de administração de empresas. Tinha os seus cabelos castanho escuros, olhos verdes, lábios vastos e bem delineados. Sobrancelhas largas e cílios longos assim como os cabelos. Expressava na face a serenidade de um anjo.

     - Nossa, a samonga ri! Ué, resolveu acordar da sua eterna hibernação? - Questionou Lisiane, jocosamente.

     - Acho que se ela tivesse estado lá para filmar e fotografar como ela mesma disse, com certeza teria cochilado e pego no sono antes de tudo acontecer! - Completou Claudia.

     - Basta!!! Vocês estão tumultuando justamente esta refeição que fora escolhida por mim e por Hella para fazer-lhes um importante comunicado... - Tentou se interpor Débora, mas logo a discussão se generalizou e todos exceto ela e sua cunhada participavam daquele alarido repleto de gracejos, acusações, gritos e gestos...

A vida naquele monumental "mausoléu" era costumeiramente agitada, devido à convivência de todos aqueles jovens, sobrinhos de Débora Alexandra Nantes Villas Bhoas e Hella Takimba Villas Bhoas, como já anteriormente mencionado, as matriarcas da grande família. Mulheres de fibra, sempre ativas e inovadoras. O bom coração e a meiguice eram as suas principais características... grandes mulheres.

     A família Villas Bhoas foi muito castigada no decorrer dos tempos. Débora era viúva de Joaquim José Bordon Villas Bhoas. Hella vinha a ser irmã de Joaquim, como filha mulher, na época em que foi batizada, era costumeiro adotar-se o sobrenome da mãe, no caso Helvétia Takimba Villas Bhoas. Quanto aos sobrinhos, eram todos filhos dos outros quatro irmãos de Hella, os irmãos Villas Bhoas.

     Os sobrinhos de Débora e Hella, filhos dos quatro irmãos da última, sempre foram muito unidos e apegados com a sobrinha mais velha, a prima e irmã Roselene. Os casais gostavam muito de festas e viagens, assim sendo todos os mais novos ficavam sob os cuidados de Roselene, a qual sempre se demonstrou muito prestativa, além é claro de vários empregados e de Frida, que além de cozinheira sempre foi a sua ama-seca.                      

No início da década de oitenta, a família toda costumava a se reunir para qualquer evento... e foi numa viagem para a Amazônia, na qual Débora e Hella devido a alguns contratempos nas então lojas Villas Bhoas ficaram de embarcar no vôo do dia seguinte com destino a Manaus, que o jato executivo que transportava a família caiu explodiu na floresta. Assim sendo, todos os filhos dos que faleceram ficaram por lei sob a guarda de Débora e Hella. Débora e Joaquim nunca tiveram filhos e Hella nunca se casou, pois nunca mais amou alguém após a morte de seu noivo durante a ditadura militar da década de sessenta. Alguém que sempre se manteve em sigilo uma vez lhe contou que seu noivo havia sido lentamente torturado até a morte. Revelou ainda que a ditadura militar se equiparava à inquisição católica no medievo, pois as formas de extrair confissões não eram muito diferentes e freqüentemente levavam o confidente à morte. É claro que não havia fogueiras e nem chumbo quente e derretido sendo derramado sobre as costas do acusado, mas havia os paus-de-arara¸ os abusos sexuais cometidos pelos detentores do poder nas forças armadas em relação aos seus subalternos, e aqueles que em suas pernas era atada uma pesada pedra e posteriormente eles eram atirados em alto mar do interior de um avião da Força Aérea. Assim morreu o noivo de Hella, pois na época era estudante saliente e com idéias revolucionárias.

     Como dantes dito a casa era muito bem habitada por todos os sobrinhos de Débora e Hella...

     Claudia já dantes apresentada tinha como irmão o jovem Frederico, o qual odiava esse nome, preferindo ser chamado apenas por Fred. Com dezessete anos, preferia as aventuras do que a escola e evidentemente tinha sua namorada, no caso, a jovem Camila. Ambos ainda cursavam o segundo ano do segundo grau.

     Já Lisiane, temperamental e decidida por natureza, tinha como irmão o garoto Alexander ou simplesmente Alex, para os íntimos, que contava com quatorze anos e começava a descobrir a vida. Tinha como irmã a jovem Samanta de quinze anos, cuja pele era clara, os cabelos dourados e encaracolados, semblante sereno, belo e plácido que poderia compará-la a um anjo barroco. Era bastante apegada às suas tias e devotada aos estudos.

     Ainda temos Roselene, a mais velha, contando com vinte e oito anos. Formada em Antropologia Médico Transcendentalista na Universidade de Montpeiller em Paris. Talvez o exemplo da família. Louríssima e elegante, seu porte sempre intimidou todas as outras. Ela era o protótipo de mulher que todo homem queria ter, era por suas tias considerada a mais entendida nos assuntos da vida. Já estava fora do país há quase nove anos, empreendendo o dinheiro da herança dos seus pais em viagens ao redor da Terra. Tinha como irmão temporão Tiago, para os íntimos "Tiaguinho", garoto esperto e espoleta com seus doze anos de idade. Vale salientar que Tiago não tinha ainda completado seus três anos de vida quando seus pais resolveram participar daquela excursão para a Amazônia.

     Márcia era filha única de um dos casais mortos no acidente aéreo. Era uma moça bonita e inteligente que somava um orgulho a mais nas existências de suas tias.

     Débora e Hella conseguiram espantar e apagar o trauma de todos os seus sobrinhos. Eram tias acrescidas da palavra "mãe". Ambas eram herdeiras e proprietárias de uma cadeia de lojas espalhadas por todo país e de algumas outras empresas, como uma tecelagem, uma metalúrgica, uma madeireira e uma empresa de importação e exportação; as quais devido às dificuldades tiveram de pronto as suas portas fechadas. Herdaram também várias fazendas de gado e de produção agrícola, as quais estavam agora quase abandonadas devido à falta de tempo para conduzi-las.

     Devotas ao trabalho honesto logo abriram mais filiais por todo território nacional e em muitas capitais de vários países mundo afora. Houve risco de falência do grande império e elas foram obrigadas a pedir concordata ou seja, como devedor insolvente (aquele que não saldou o débito no prazo pré-fixado no contrato), pedir prazo, concessões e condições melhores... Não conseguiram ao todo. Quase a beira da falência, com o último capital que lhes restava, ambas resolveram franquear o nome Villas Bhoas e também aderiram ao franchising de outros estabelecimentos de renome, no início foram algumas lanchonetes que instaladas como lojas de conveniência proporcionavam aos clientes da Villas Bhoas Sociedade Comercial (contrato realizado por Débora e Hella quando herdaram todo o complexo logístico, no qual ambas estipularam por em comum os seus bens totalmente, para praticar habitualmente os atos de comercio dividindo os lucros e perdas que houvessem) maior comodidade no decorrer de suas compras. Disto surgiu a idéia de transformar algumas das principais lojas em "Shopping Centers". Assim sendo vários deles foram construídos atraindo lojistas do mundo todo. Hoje cada "Villas Bhoas Shopping" tem como âncora uma grande loja de departamentos Villas Bhoas e muitas outras dos mais diversos ramos, no Brasil existem dez "Villas Bhoas Shopping" e mais cinco no exterior, fora as outras sessenta lojas de departamentos espalhadas por todas as cidades do país e algumas das do mundo.

     Os empregados daquela grande morada eram: Antábaro, o mordomo; Frida, a cozinheira; Sótera e Leôncia, as arrumadeiras; Valdívia e Vesúvia, as faxineiras; Jarbas e Clóvis, os motoristas e Lírio do Campo, a jardineira. Naquela casa as hierarquias foram postas de lado e todos, patrões e empregados, formavam uma grande família.

Em meio àquele alarido, Claudia que já não queria mais discutir resolveu interromper tudo voltando sua atenção à tia:

     - O que era mesmo que a senhora queria nos dizer, titia?

   - Finalmente alguém se lembrou que eu e Hella existimos!! Agora eu gostaria que todos prestassem o máximo de atenção... - Ainda havia confusão... - Atenção! -   Desta vez Lisiane olhou e resolveu acabar de vez com a bagunça:

     - Atençããããooo!!!! - Naquela casa realmente não havia um grito mais potente. Assim sendo, com esta intervenção todos se calaram e foram todos ouvidos para Débora:

     - Agora eu gostaria que vocês todos ouvissem a mim e a Hella, pois temos algo muito importante e muito necessário para lhes dizer!

     - Estamos prontos para a sentença! - Disse Márcia em nome de todos.

 

     - Eu e Hella achamos que já está mais do que na hora de vocês se interessarem e participarem dos rumos do patrimônio Villas Bhoas. Principalmente vocês, moças, que já são adultas e formadas em áreas condizentes com a administração de uma empresa. Nós queremos que vocês, em conjunto, tomem as rédeas e passem a decidir os rumos da nossa cadeia de lojas, uma vez que eu e Hella não somos eternas e se faz mister que vocês saibam o que fazer depois que nós desencarnarmos ou tornarmo-nos velhas por demais. Saliento que a sua prima Roselene se juntará a vocês quando ela retornar, o que é pouco provável no momento. É claro que vocês receberão a devida remuneração pelo esforço empreendido e mais tarde depois de tudo avaliado, estamos pensado até em mudar a nossa condição social, passando de Sociedade Comercial para uma Sociedade Por Cotas (A que tem natureza mercantil ou civil em que o capital se divide em partes alíquotas, às quais se restringe a responsabilidade dos sócios, devendo seguir-se à denominação social a palavra "limitada", por extenso ou abreviadamente). Isso aguçou o interesse de cada qual e Lisiane foi a primeira a perguntar:

     - Então quer dizer que quem apresentar um melhor desempenho poderá arrebatar um maior número de ações?!

     - Exatamente. - Confirmou Hella.

     - E quem detiver o maior número de ações, automaticamente tornar-se-á o presidente! - Naquele momento todos se entreolharam. As palavras de Débora foram contundentes. Hella continuou:

     - Segunda feira será o dia "D", tanto para vocês moças, como para vocês, Fred, Samanta e Alex! Vale salientar que como qualquer um hoje em dia a nossa situação não é das melhores, contraímos bastantes dívidas e os nossos débitos são maiores que os nossos créditos. E é tarefa de vocês reverter essa situação, desde que de modos lícitos, honestos, leais e ilibados.

     - Eu e Hella apostamos nos seus trabalhos! - Confirmou Débora.

Estavam todos boquiabertos, pois não esperavam que aquele momento pudesse um dia acontecer. Com o impacto todos de antemão pensaram em repudiar aquela proposta, mas logo a consciência falou mais alto e eles pensaram, repensaram e pensaram novamente... de qualquer modo teriam de obedecer, pois por mais que aquele tipo de trabalho não lhes agradasse, deveriam se inteirar dele, pois era justamente dali que vinha o sustento. Não deixava de ser um aprendizado a mais e além de tudo era uma ordem de suas tias, que como pessoas mais velhas deveriam ser obedecidas. Assim sendo aquele almoço foi encerrado com semblantes pasmos.

  

     Seria aquela tarde de sábado a última predecessora de tantos finais de semana seguidos de semanas inteiras que eram vividas ao bel-prazer, sem nunca se preocupar com alguma obrigação? Lisiane resolveu aproveitar a piscina enquanto que Claudia foi novamente às compras e principalmente comprar de vendedores interessantes, não se importando com a qualidade ou a natureza do produto. Já Márcia, estava enclausurada em seu quarto, maquinando alguma coisa:

     - Se eu fizer isto com certeza arrasarei de cara com o prestígio de minhas primas... Devo fazer, ou não devo? Será a minha primeira cartada neste jogo. Vejamos... só falta achar o número... pronto! E... discar... - Alô! É da coluna da Abigail?... Aqui quem fala é Márcia Bordon Villas Bhoas... Exatamente, não me importo com o custo, mas podem colocar na primeira página do dominical, o acerto de contas público entre Claudia e Lisiane Bordon Villas Bhoas!! Mandarei as fotos... é, eu as consegui de um turista que passava bem na hora!        Logo mais à tarde eu as envio para você, pois agora estão sendo ampliadas... Ora, não tem de que... esta é a minha contribuição para o bem estar da sociedade!... Beijo p'ra você e ciao! - Disse sorridente. - Creio que você goleou o inimigo, Marcinha. - Murmurou ela, ao passo que retornava o fone ao gancho.

     O dia passou rápido e no domingo bem cedo eles resolveram descer para o Guarujá. O dia estava maravilhoso e eles fizeram um segundo café da manhã na casa que possuíam na praia de "Pernambuco". Como era normal os jornais dos país e do estado foram jogados canteiro adentro.

     No interior da casa:

     - M-mas o que significa isso? - Questionou-se Débora.

     - Isso o quê? - Perguntou Márcia, fingindo nada saber.        

Sem que Débora tivesse tempo de dizer algo, sentaram-se à mesa Claudia e Lisiane recém-surgidas, que apenas se entreolharam emitindo uma espécie de grunhido compreensível e audível única e exclusivamente por ambas. Logo depararam com olhar inquisitivo de Débora. Lisiane foi a primeira a se manifestar:

     - O que foi? Nunca viu?

     - Desse jeito nunca. - Disse Débora, jogando por sobre a mesa o jornal. Claudia que no mesmo instante já imaginou do que se tratava, puxou-o para si.

     - Mas deixe eu ver, grossa! - Protestou Lisiane. Ambas cravaram os olhos naquela foto. Lisiane se exaltou:

     - Que ódio, tinha que ser a peçonhenta da Abigail, mas eu vou processá-la, vou processar todos os colunistas, a redação, o jornal, vou ordenar que a censura tome providências!! Vou espicaçar qualquer um que tenha tomado parte neste ato criminoso!

- A vai é?... sei... além do mais é preciso que vocês mantenham a calma, pois poderão receber uma polpuda indenização por danos morais! - Interveio Márcia, esboçando um sorrisinho.

     - Indenização... hã, a Abigail tudo bem, é uma devoradora de roupa suja lavada na feira, mas os redatores, os donos do jornal sempre foram nossos amigos e não fariam uma coisa dessas a não ser que houvesse uma boa propina no meio. - Ponderou Lisiane.

     - Propina?! - Questionou Claudia.

     - Dinheiro, asna. - Respondeu Lisiane, mal-humorada.

     - Talvez um concorrente... um rival, por acaso não foi você, "Marcinha"? - Perguntou Claudia, no intuito de provocar. Márcia deixou a xícara cair sobre o pires devido ao impacto, sujando-se assim de café.

     - E-eu??!

     - É, você. - Afirmou Lisiane.

     - Imaginem se eu iria perder tempo e dinheiro para colocar justamente as caras e os nomes de vocês num jornal de grande circulação como este... até parece piada. - Retrucou Márcia calmamente, a medida em que se limpava auxiliada por um guardanapo. Subitamente todos foram interrompidos por Hella, que surgiu na copa em meio a um alarido:

     - Não sei qual é o motivo da briga, mas acho melhor esquecerem tudo e irmos para a praia a fim de que nos divirtamos! - Hella tinha um comportamento um tanto excêntrico, assim sendo, já estava toda em trajes de banho: uma malha emborrachada de listras azuis e amarelas no melhor estilo dos anos 20, uma touca de borracha das mesmas cores e envolta por uma bóia infantil a qual tinha à sua frente uma cabeça de zebra. Ela não parava de emitir suas gargalhadas agudas. Logo os teenagers da casa já a cercavam devido ao seu carisma e atenção para com eles.

     Foram todos aproveitar o sol, o mar e as areias daquela praia paradisíaca, já que na segunda feira deveriam estar muito bem dispostos para iniciarem a labuta nas Lojas Villas Bhoas.

 

     Na manhã de segunda-feira todos pareciam mais animados, pois sairiam daquele marasmo característico do seu dia-a-dia. A alegria já não era tão grande para os mais novos, pois teriam de ir para a escola no turno matutino. Na mesa o assunto não poderia ser outro:

     - Meninas, comam rápido, atrasarem-se logo no primeiro dia não será um bom começo! - Advertiu Hella.

     - É claro tia, além do mais nós não temos mais dez anos, portanto não somos mais meninas. - Alegou Claudia.

     - Para mim vocês serão sempre minhas crianças.

     - Que raiva de ter que ir para a aula... - Resmungou Fred.

     - Fred, não se esqueça de avisar a turma que a reunião não será mais hoje a tarde! - Alertou Samanta.

     - É verdade, não mais poderemos realizar nossas reuniões de tarde... e agora? - Questionou Fred, pensativo.

     - Poderemos as fazer somente aos sábados! - Sugeriu Alex.

     - É muito pouco, além do mais estamos quase sempre indo para o Guarujá nos fins de semana! - Alegou Samanta.

     - Tia Débora, a senhora quer que trabalhemos, mas não poderemos mais realizar as reuniões do nosso clubinho! - Exclamou Alex, desapontado.

     - Mas é claro que podem!! - Interveio Hella, em meio a um espasmo, o que fez a afirmação ainda mais aguda.

     - Como??? - Perguntaram todos em uníssono.

 

     - A noite! Fica até mais divertido... combinem tudo para hoje a noite!

     - Mas muitos não poderiam vir, a mãe da Poliana, por exemplo, não deixa a filhinha sair de casa depois das seis, já a mãe do Léo, acha que ao invés dele vir aqui, ele vai fazer arruaças na rua e aí por diante. - Explicou Samanta.

Débora permitiu-se a palavra:

     - Não há problema algum, elas são todas nossas amigas, eu naturalmente as contatarei e além do mais, depois das reuniões, Jarbas ou Clóvis poderão levá-los com segurança para casa, ou então, todos poderão passar a noite aqui, afinal a casa é tão grande, você não concorda Hella?

     - Mas é claro que sim!! Eu adoro crianças! Combinem para todos virem passar a noite conosco aqui hoje ou no dia em que quiserem, desde que isto não venha a prejudicar o desempenho de vocês nos seus estudos!! Vocês inclusive podem estudar juntos, vão ver como será muito divertido!

     - Vocês são as melhores tias do mundo! - Exclamou Alex, alegremente.

     - O quê?! Trazer aquele bando de pirralhos barulhentos para posar aqui? Em hipótese alguma! - Protestou Lisiane, indignada.

     - Eu também digo o mesmo, depois é aquela correria madrugada adentro e não se pode conciliar o sono! - Disse Márcia.

     - Você dormiria até ao lado de uma britadeira! - Interveio Fred.

     - Iiiii!! "Nhanho"! - Respondeu Márcia, mostrando a língua e envesgando os olhos.

     - Odeio tomar essa atitude, mas sou obrigada a concordar com vocês, afinal é extremamente constrangedor se chegar de uma festa badaladíssima e ser flagrada por crianças notívagas! - Disse Claudia, ajeitando os seus cabelos. Fred não gostou nada de ter sido chamado de criança e retrucou:

     - Principalmente quando se chega bêbada, rasgada, descabelada, borrada e cheia de "chupões" no pescoço e em outras partes mais!

     - Claudia sentiu a sangue ferver, ainda mais diante das primas, mesmo assim resolveu manter a postura:

         - Frederico, tome o seu café e vá para a aula antes que eu perca a paciência!

- Frederico foi aquele que te tirou a virgindade ou aquele que te levou para um celeiro? - Perguntou Fred, levantando-se aos risos. Claudia por sua vez se afogou com o café e perdeu a compostura atirando a sua xícara atrás de Fred, que saiu correndo para a aula, sendo que nem Débora e nem Hella tiveram tempo de repreendê-lo. O mesmo foi logo seguido por Samanta e por Alex.

     - As senhoras viram só titias? Eu que sempre fui uma moça direita, criada nos padrões suíços, agora tenho que ouvir essas barbaridades do meu próprio irmão! - Lamentou-se Claudia.

     - Isso acontece por você ser burra meu bem, se ele fosse meu irmão, há, iria pisar miudinho! Você não vê o Alex e a Samanta, ai deles se tentarem me enfrentar! - Disse Lisiane, com ar de superioridade. - Além do mais, quem é que me garante que Fred não tem razão? - Lisiane esboçou um sorrisinho malicioso.

     - Nojenta!!!

     Um bom dia com a marca registrada dos Villas Bhoas nunca começa sem uma boa discussão. Meia hora depois eles já chegavam a grande matriz do império Villas Bhoas que se constituía de um gigantesco Villas Bhoas Shopping, composto por mais de trezentos estabelecimentos comerciais que pagavam um condomínio para os Empreendimentos Villas Bhoas e cuja maior loja "âncora" era uma das setenta e cinco Villas Bhoas Sociedade Comercial Lojas de Departamentos, que ocupava completamente o terceiro piso. Por sobre o shopping center erguia-se um edifício de quinze andares o qual tinha nos seus primeiros dez as dependências do Villas Bhoas Excelcior Hotel (hotel de cinco estrelas) e nos últimos cinco situavam-se todos os escritórios pertinentes ao comando de todo aquele patrimônio. No terraço do edifício havia ainda um heliporto.

     - Bem, aqui estamos... no shopping que vocês bem conhecem, só que hoje o nosso destino é o décimo quinto andar onde se encontra toda a administração de alto escalão do nosso patrimônio! - Informou Débora. Vale salientar que aquela edificação contava praticamente com mais de vinte andares, pois só o shopping possuía seis pisos e no terraço, pouco abaixo do heliporto havia uma pequena torre de controle. O edifício fora erguido seguindo os moldes da arquitetura moderna (anos 60 e 70), sua estrutura era toda em aço e concreto armado e coberta por vidros fumé. É claro que os hóspedes do hotel tinham uma entrada exclusiva para o interior deste, evitando assim que eles precisassem passar primeiro pelo shopping antes de chegar ao hotel. Todo o complexo incluindo a área dos estacionamentos e dos postos de gasolina VB abrangiam uma área de mais de trinta mil metros quadrados voltados para a movimentada Avenida dos Bandeirantes e outras transversais.

     Todos embarcaram no elevador, cuja ascensorista com um sorriso forçado se fez pronunciar:

     - Qual o andar, por favor?

     - É evidente que é o da presidência, estúpida! - Disse Lisiane que foi imediatamente repreendida por sua tia Hella:

 

     - Queira imediatamente pedir desculpas para a senhorita Merzúpia, esse tipo de insolência não existe aqui! - Lisiane manteve-se quieta por um momento mas logo resolveu acatar:

     - Queira me desculpar, senhorita "Marsupial", é que... acordar cedo me deixa um pouco mal-humorada.

     - Nem esquente, moça. - Respondeu a ascensorista forçando um novo sorriso.

     - Simpática você. - Disse Lisiane, que ao invés de sorriso protagonizava uma espécie de careta.

     - A gente faz o que pode, moça.

 

     Uma vez tendo chegado no décimo quinto andar:

     - Entrem, cada uma de vocês terá o seu próprio escritório e a nossa secretária é a senhorita Violeta Urogalo! - Apresentou Débora. Violeta era magra, baixa, cabelos negros e pele alva. Suas marcas registradas eram a delicadeza, a timidez, os grandes olhos negros e os óculos enormes com aros em forma de bicicleta, isso sem falar na sua competência. Contava em média com vinte e nove ou trinta anos.

     - Cumprimentem a senhorita Urogalo! - Incentivou Débora:

     - Bom dia, senhorita Urogalo! - Disseram as três primas em uníssono, estampando um sorriso arreganhado e fazendo uma espécie de reverência, aquilo tudo parecia parte de uma coreografia barata. Débora voltou a apoderar-se da palavra:

     - Claudia, o seu escritório é o do fim do corredor. Lisiane, o seu é o da segunda porta à esquerda e o seu Márcia é o da primeira porta à direita, sendo que este último aqui, pertencerá à sua prima Roselene quando ela retornar! - Disse Débora, deixando transparecer um brilho nos seus grandes e úmidos olhos verdes.

     - Bem que o avião dela poderia desaparecer no Triângulo das Bermudas... - Resmungou Lisiane.

     - O que disse, querida? - Perguntou Hella.

     - Áh... eu disse que estamos todos ansiosos pela volta da prima Roselene.

     - Logo chegarão Karina e Carolina, nossos braços direitos... sem elas tudo isto perderia a alma... e isso também inclui você Urogalo, o senhor Ricardo... sem vocês acho que até as plantas secariam...

     - Também não precisa chorar, não é tia? Dar esse tipo de papelão na frente dos empregados pode deixá-los muito confiados! - Alertou Márcia.

     - Aqui, como lá em casa, não existem hierarquias... todos nós formamos uma grande família, todos estão por dentro de tudo e participam de tudo, inclusive no auferimento de lucros! Somos assim uma grande sociedade onde todos têm direitos no patrimônio. Isso é claro, nas suas devidas proporções. Assim sendo aquele que mais produz, ganha mais. - Explicou Débora.

     - Mas a senhora está bem sabendo aplicar esse sistema? Isso é apenas um esboço do que seria a qualidade total! - Interveio Claudia, que era economista.

     - Além do mais, não adianta querermos conseguir a "qualidade total" aqui sem ao menos prepararmos os empregados. Antes de qualquer qualificação em massa, se faz mister que se aplique o que chamamos de "paradigma psicanalítico". Isto é unir o cognitivo, ou seja o conhecimento, ao afetivo, ou seja o amor. Quem faz bem faz com amor... Mas agora não adianta falar, pois os empregados não estão aqui. Falar-lhes-ei em momento propício! - Opinou Márcia, formada em administração.

     - A senhora ainda não percebeu que está dando de comer para uma alcatéia que pelo menor e inexistente motivo poderá levá-la e também a tia Débora ao Ministério do Trabalho?! Estou disposta a esfregar a CLT(codificação das leis trabalhistas) na cara destes parasitas! - Manifestou-se Lisiane, a advogada da família.

     - Alto lá Lise, se nós formularmos um bom modo de administrarmos as nossas lojas e dermos quotas de participação nos lucros para todos os empregados, eu acho que não haverá necessidade de ninguém nos delatar para a justiça trabalhista! - Concluiu Márcia.

     - Para isso precisamos conversar bastante a respeito e elaborar um novo código interno. - Sugeriu Lisiane.

     - Mas antes de tudo se faz mister que eu analise em que pé estamos economicamente, pois não podemos sair por ai aplicando novos planos sem saber do nosso capital! - Interferiu Claudia.

     - É melhor que falemos já, não é mesmo Hella? - Perguntou Débora, expressando um semblante mais tenso.

     - Mas é claro... se eles vão tomar as rédeas é melhor que saibam que estão pegando o ouriço e não a esponja!

     - Com a recessão monetária proporcionada por este novo plano governamental é de fundamental importância que vocês saibam e depois transmitam para os seus irmãos mais novos que os nossos negócios não estão indo de vento em popa, muito pelo contrário, eles estão cursando o sentido inverso. Para mantermos tudo o que possuímos, estamos tirando dinheiro das nossas próprias contas particulares, pois os prejuízos e débitos são bem maiores que os nossos lucros, tanto no Brasil como no exterior! - Explicou Débora.

     - Em suma, nós estamos pagando para que o nosso patrimônio sobreviva, e compete a vocês a reversão desta situação, ou então estaremos fadados a pedir uma concordada e "a posteriori" uma falência e... eu creio que os credores, até os quirografários, não serão nenhum pouco piedosos para conosco! - Explanou Hella.

     - E o que são credores quirografários? - Perguntou Claudia.

     - São aqueles credores que ficam por último, ou que têm pequenos montantes em dívida ativa para saldarem conosco. - Explicou Lisiane.

     - Como assim, darling? - Insistiu Claudia.

     - São aqueles destituídos de qualquer privilégio ou preferência diante da massa falida, retardada.

     - Ai “bombocado”, não precisa falar assim comigo, afinal eu sou uma economista e vocês irão precisar dos meus serviços!!

     - Pois então atenha-se a eles! - Disse Lisiane.

     - Bem, aqui não haverá tempo para brigas e vocês têm muito o que fazer. E que fique bem entendido que tudo estará sendo supervisionado por mim e por Hella que continuamos a ser as sócias proprietárias deste patrimônio! - Disse Débora.

   - Mesmo assim, cabe a vocês "dar um novo trato" para a nossa "nova concepção" em empreendimentos! - Concluiu Hella.

     - Está certo tudo o que disseram... estamos realmente há um passo atrás disso tudo que vocês conhecem, mas ainda não conseguimos fazê-lo... somos mais velhas e talvez isto tudo só funcione com gente nova falando para gente nova! - Disse Débora.

     - Credo tia, até parece que você está prevendo a sua morte!! - Reclamou Claudia.

     - Nada disso, eu e Hella apenas queremos que vocês não tenham problemas posteriormente... além do mais se nós lhes faltarmos não gostaríamos de vê-los desajustados, procurando por uma razão para viver!

     - Iiiii, esse papo não me apetece... ficam aí falando em morte enquanto o mundo gira e gira... - Interferiu Márcia, rodeando-se em torno de si mesma, só para ver sua longa saia transformar-se numa espécie de balão.

     - E vai girar mais ainda quando eu desferir uma bela de uma bolsada na tua testa! Pare com isso, paspalha! - Ralhou Lisiane.

     - Eu heim!! - Exclamou Márcia, medindo Lisiane dos pés à cabeça e estampando no rosto uma expressão de nojo.

     - Bem, eu acho que vocês já estão encaminhadas, logo mais a tarde quando seus primos e irmãos estiverem aqui nós realizaremos uma reunião para apresentar todos vocês para todos os outros funcionários. Agora eu e Hella teremos de descer até Santos para verificar uma mercadoria que está lá retida no porto. - Disse Débora.                

     - Pulso firme neles! - Recomendou Lisiane.              

     - A diplomacia ainda é a melhor forma de negociação. – Salientou Hella.

 

     Na parte da tarde, estavam todos reunidos num auditório que lá havia destinado somente para as reuniões da diretoria e esta estava toda presente. Enquanto Débora e Hella não chegavam a bagunça no recinto era generalizada, em meio à "platéia" aviõezinhos de papel cortavam os ares sendo abatidos por bolas do mesmo material, tal era a eletrizante batalha que travavam Fred, Alex e Samanta. Karina e Carolina que já haviam sido apresentadas para Lisiane, Claudia e Márcia, não paravam de tagarelar futilidades enquanto as outras três não paravam de discutir. Carolina, uma moça bela, de pele alva, cabelos ruivos crespos e de algumas poucas sardas relatava para sua amiga e confidente Karina, moça como Carolina de também seus vinte e poucos anos, só que de cabelos lisos e louros e grandes olhos verdes enquanto que os da primeira eram amendoados, os acontecimentos de uma festa na qual ela havia ido:

     - Áh, mas você não imagina o que aconteceu com a Tusnelda no jantar de aniversário da Judite!

     - Não me deixe curiosa, me conte de uma vez! - Implorou Karina, roendo as unhas.

   - A Tusnelda tentou o suicídio, porque você sabe que a pobrezinha é horrível, Deus que me perdoe... aí, no meio da festa contaram para ela que enquanto ela estava lá, o marido dela, você sabe, o Cornísio, estava na casa da melhor amiga dela, a Cremoseide, que é mais horrível que ela ainda e, você pode imaginar muito bem o que ele estava fazendo lá... mandando ver na outra, daí através de um telefonema anônimo a Tusnelda ficou sabendo e foi direto para lá. É evidente que ela flagrou os dois, e disse que estavam se rolando dentro de um enorme tacho cheio de maionese...

     - Nossa, é mais comum se usar chantilly nessas situações...

     - Pois é, mas eu sei dizer que a Tusnelda voltou para a casa da Judite aos prantos, se trancou no banheiro, encheu a pia d'água e enfiou a cabeça dentro. Depois que arrombaram a porta e impediram que o desastre acontecesse, ela simplesmente olhou para todos e disse: "Se pelo menos ela fosse mais bonita do que eu mas... me trair com uma mulher mais feia ainda"!

     - Háháháháhá... coitadinha. Mas menina você sabe que eu odeio fofocas, mas você não imagina o que as más línguas andam falando da Doralice, aquela da sessão de eletrodomésticos... - E assim o papo corria animado entre as duas enquanto que os outros funcionários também participavam da algazarra, subindo nas cadeiras e dizendo serem Tarzã, já outros corriam atrás de Urogalo tentando erguer a sua saia.

A bagunça só terminou quando todos foram flagrados por Hella e Débora que naturalmente ficaram estupefatas com a confusão e constataram que deveriam se fazer presentes mais freqüentemente no shopping, pois "quando os gatos saem, os ratos fazem a festa". Depois de tudo mais calmo, ambas apresentaram os seus sobrinhos para todo o staff responsável pelo comando daquela grande cadeia de lojas. Novamente explicaram a situação ruim das lojas o que preocupou muito Rafael Monteiro, do setor de finanças:

     - Nós corremos o risco de um pedido de concordata? - Perguntou o rapaz.

     - O que é isso? - Perguntou Alex, interessado.

     - É o benefício concedido por lei ao negociante insolvente e de boa-fé para evitar ou suspender a declaração de sua falência, ficando ele obrigado a liquidar suas dívidas segundo for estipulado pela sentença que concede este benefício. - Explicou calmamente Rafael.

     - E o que é negociante insolvente? - Perguntou Samanta.

     - É aquele que não paga, tapada. E agora vê se deixa o "empregado" terminar a explanação!! - Interveio Lisiane, mal-humorada. Rafael não gostou muito do modo que a nova companheira de trabalho se referiu a ele, afinal por lá ele entendia mais das coisas do que ela, que estava começando naquele dia.       

     - E no nosso caso essa tal de concordata vai servir para evitar ou suspender a nossa falência? - Perguntou Fred, demonstrando preocupação. Quando Rafael fez menção em responder, foi interrompido por Lisiane novamente:

     - É claro que se trata de uma concordata preventiva, pois por milagre ainda não entraram com o pedido da nossa falência. Agora, se as lojas ficarem nas mão destes incompetentes aí sim, será uma concordata suspensiva!

     - Lisiane, você está sendo mal-educada!!! - Advertiu Débora, envergonhada com a conduta da sobrinha.

     - Isso ai só não é mais grosso por falta de espaço! - Interferiu Márcia. Antes que Lisiane pudesse dar a resposta, ela foi surpreendida por Rafael:

     - Senhorita Lisiane, eu bem sei que a senhorita é também uma advogada mas, eu creio que ainda não esteja apta a julgar a conduta e a filosofia de trabalho até então empregada por todos nós, a qual eu lhe garanto trás em seu bojo muito empenho e dedicação. - Disse aquele eloqüente jovem, voltando ao seu lugar.

     - Uau!!! Arrasou!!! - Gritou Claudia, levantando-se da cadeira e agitando os braços. Todos permaneceram em silêncio e dirigiram a ela um olhar de reprovação. Tendo em vista a situação constrangedora das coisas, Hella e Débora acharam por bem dar por encerrada a reunião.

     Já na saída, Rafael dirigiu-se a Márcia, de quem não tinha tirado os olhos durante a reunião apesar de conflituosa:

     - Bastante temperamental a sua prima, não?

     - Lisiane é assim mesmo, explosiva e autoritária!

     - E quanto a você?

     - Áh... eu? Você deve ter tido uma impressão horrível ao meu respeito devido ao meu comportamento também um tanto digamos... inefável durante a reunião. Mas quando você me conhecer melhor vai ver que sou bem diferente! - Respondeu Márcia, toda sorridente.

     - É justamente isso que eu quero fazer, conhecer-lhe melhor. Tem compromisso para hoje a noite? - Antes de responder, Márcia reparou melhor naquela rapaz de pele clara, cabelos negros e ondulados, olhos castanho-escuros, relativamente alto e um porte atlético.

     - Bem, como eu sou uma pessoa requisitadíssima socialmente eu com certeza devo ter algum compromisso, mas não deve ser nada de tão importante e naturalmente eu poderei cancelá-lo, por quê?

     - Quer jantar comigo? Não precisa ser gentil...

     - E à que horas? - Perguntou Márcia, dengosa. Rafael sorriu.

     - Às nove está bem?

     - Ótimo... você escolhe o lugar. Vamos ver se você consegue me surpreender assim como você fez com a minha prima ranzinza... bye! - Disse Márcia, saindo.

     - Pode apostar. - Murmurou ele.

 

     Aquele fora o primeiro dia de trabalho da nova geração dos Villas Bhoas, um tanto tumultuado, mas bastante válido. À noite como fora dantes combinado o "clubinho" dos sobrinhos de Débora e Hella se reuniu, isto é claro sob os protestos das moças e principalmente de Márcia, que não parava de andar de um lado para outro provando uma porção de vestidos. Como se tratava de uma segunda-feira eles não posariam lá, deixando para fazê-lo mais ao final da semana, uma vez que aquela estava sendo uma semana de adaptações para todos.

     Este tão mencionado clubinho era naturalmente formado por Fred, Samanta, Alex e Tiaguinho, ou então ele jamais os deixaria em paz, era uma maneira de fazê-lo ficar quieto e de agradar Débora e Hella. Além deles, participavam Leopoldo(Léo) de dezesseis anos, Camila também com dezesseis anos e Poliana de quatorze.    

 

     Num restaurante sofisticado da cidade:

    - Muito bom gosto, senhor Rafael. Eu não conhecia este restaurante! - Elogiou Márcia.

     - Que tal acabarmos com as formalidades?

     - Deixemo-las então somente para o trabalho, afinal de contas o que as minhas tias e principalmente as minhas primas não iriam pensar se descobrissem que estou saindo com o chefe do departamento financeiro logo no primeiro dia?

     - Hum, então foi por isso que você quis que eu te encontrasse no estacionamento da matriz?

     - Exatamente, Rafael, eu saí com o meu carro e é assim que eu tenho que voltar!

     - Espertinha... mas vamos falar de assuntos mais amenos!

     - Por exemplo?

     - Que tal nós dois?

     - Me soa interessante e... por onde vamos começar?

     - Vamos tirar par ou ímpar, quem ganhar tem o direito de fazer a primeira pergunta! - Sugeriu Rafael.

     - Então vamos lá... par!

     - Ímpar! Um, dois, três e... já!! - Disseram ambos em uníssono.

     - Ganhei!! - Gritou Márcia, colocando em seguida a mão na boca, pois os outros clientes haviam se voltado para a mesa de ambos.

     - Pode perguntar...

     - O que eu quiser? - Perguntou Márcia, esboçando um sorriso malicioso.

     - O que você quiser.

     - Você é casado?

     - Divorciado.

     - Você tem filhos??!

     - Uma pergunta para cada qual, lembra? Agora é a minha vez...

     - Tudo bem, mas não tente me esconder nada!

     - E se eu lhe dissesse que tenho filhos, o que você acharia?

     - B-bem eu... teria pena dos pobrezinhos por não poderem ficar junto com ambos os pais, há...

     - Não minta! - Contestou Rafael, quase cegando Márcia com o olhar.

     - Mas eu não estou mentindo e...

     - E você não gostaria nenhum pouco e provavelmente daria a nossa "amizade" malmente iniciada por encerrada, não é?

     - Não... eu... você está me embaraçando e além do mais eu estou na vez de perguntar!

     - Sinta-se a vontade! - Disse Rafael, em tom jocoso.

     - Quantos filhos você tem? - Perguntou Márcia, preocupada.

     - Háháháháhá!! Nenhum, é claro. O casamento durou tão pouco que nem deu tempo!

     - Ufa!

     - E você, tem namorado? - Questionou Rafael.

     - Ninguém importante... ele dá em cima de mim mas... eu não estou muito afim, eu o acho meio imaturo. Não é ninguém que você conheça! - Adiantou-se Márcia, que estava mentindo. - E você, tem?

     - Não, depois desta relação frustrada e do divórcio, eu fiquei meio traumatizado e resolvi dar um tempo. Você tem alguma coisa contra homens divorciados?

     - Imagina, você está na frente de uma mulher moderna e sem preconceitos!

     - Não me pareceu em relação aos filhos...

     - Eu... esqueça. Está na minha vez de perguntar; Faz muito tempo que vocês estão separados?

     - Quase cinco anos, mas o divórcio só saiu no início deste ano.

     - Afinal quantos anos você tem?

     - Vou fazer vinte e sete.

     - Nossa, e tantas coisas já aconteceram na sua vida e... você é tão inteligente. Realmente você não aparenta a idade que tem.

     - Quantos anos você me deu antes de eu falar?

     - Uns trinta e dois!

     - Engraçadinha... e você tem quantos, vinte e oito?

     - Mas que falta de educação, eu só tenho vinte e dois anos e a maioria das pessoas me dá uns dezenove! - Retrucou Márcia, parecendo um tanto irritada.

     - Além de tudo é convencida! Háháháhá!! Eu só estava brincando!

     - Brincadeira de muito mau gosto, por sinal. Além do mais se você não usasse só estes ternos escuros, poderia no mínimo aparentar a real idade!

     - Sabe de uma coisa, eu estou morrendo de fome. O que você acha de pedirmos?

     - Para mim está bem. - Respondeu Márcia, voltando à serenidade anterior.

     - Gostei do seu jeito! - Disse Rafael, tocando carinhosamente a ponta do indicador na ponta do nariz de Márcia.

     E assim aquele jantar ainda se prolongou por algumas horas mas, de qualquer modo nenhum dos dois poderia se demorar muito, pois teriam de trabalhar logo cedo no dia seguinte.

 

     Na terça feira Lisiane levantou decidida, pois achava que havia sido humilhada na reunião do dia anterior e realmente não tinha superado o fato, portanto queria demonstrar eficiência. Adiantou-se para tomar um reforçado desjejum, o que realmente admirou a cozinheira Frida. Lisiane também queria enfrentar o trânsito paulistano calmamente e ainda chegar no mesmo horário em que chegavam os outros funcionários. Eram pontualmente nove horas quando ela atingiu o décimo quinto andar daquela imponente edificação:

     - Bom dia senhorita "Uropinto", quando a senhorita Karina chegar, por favor avise-a que eu quero lhe falar. - Disse Lisiane, dirigindo-se para o seu escritório.

     - Bom d... mas meu nom... está b... bem. - Urogalo bem que tentou responder todas aquelas perguntas, mas a rapidez de Lisiane a deixou um pouco desconcertada.

Minutos mais tarde, enquanto Lisiane examinava os percentuais de lucro e débitos, o interfone se fez soar:                                                                                                              

     - Pois não... - Disse Lisiane, através do viva voz.

     "Senhorita Lisiane, a senhorita Karina”. - Comunicou Urogalo, do outro lado.

     - Obrigada "Urofrango", peça-lhe para que entre. - Não demorou muito para a porta se abrir:

     - Com licença e bom dia Lisiane. - Disse Karina, ao passo que fechava a porta. - Madrugou hoje, é?

         - Eu estou preocupada com a situação do nosso patrimônio e não posso ainda fazer muita coisa devido ao fato de ser uma novata aqui dentro, como foi ressaltado ontem na reunião e...

     - O Rafael... nem ligue, ele tem aquele jeitão de "fórum", sabe, daqueles que vestem a camisa do advogado e não tiram mais, mas é uma pessoa muito competente... você o conhecerá melhor...                                                                                

     - Áh, ele também é advogado, é?

     - Advogado, e contador superintendente de todo o complexo Villas Bhoas!

     - Então é por isso que ele tem aquele nariz empinado!

     - Nem esquente, como eu disse, basta que vocês se conheçam melhor!

     - Para ouvir mais grosserias... não, prefiro nem chegar perto. Bem, sendo você mais antiga aqui do que eu e também a chefe do departamento comercial, talvez você pudesse me responder quais foram as causas de todos esses prejuízos, e quais ainda estão sendo estas causas uma vez que parece quase impossível que nós superemos esta crise, não?

 

     - Bem, causas atuais eu acredito que não estamos tendo, digo, causas que possam gerar efeitos futuros, justamente porque estamos sofrendo os efeitos das causas pretéritas...

     - Credo, isso até parece coisa de espiritismo... me desculpe, continue!

     - E nesse tipo de situação quase que não se realiza nada de novo, nenhum negócio, portanto estamos no momento totalmente passivos à situação tentando pelo menos equilibrar as coisas para aí então renovarmos o fôlego e prosseguir. Em suma, no momento temos contas e mais contas para pagar, além da folha dos empregados e a manutenção de todas as lojas, principalmente as do exterior, que é caríssima.

     - Mas e a entrada de capital?

     - Graças a Deus ela existe mas, infelizmente ela é bem menor do que a saída do mesmo, principalmente no que concerne à tributação compulsória, o governo parece querer-nos com as portas lacradas e isso não é só aqui; nos países sul e centro americanos onde temos filiais, eu não sei, mas talvez devido aos regimes ditatoriais que adotam, eles nos tornam as coisas ainda mais difíceis. Já nos outros países em que temos filiais as coisas não são tão ruins assim devido ao seu progresso na própria política como arte ou ciência de se bem governar e isso naturalmente facilita a nossa permanência e com o devido respeito que merece um grande complexo logístico como o nosso.

     - Não querendo ser chata, mas afinal o que foi que nos levou a ficar nessa situação?

     - Já vem de algum tempo, e os nossos monstros são os planos econômicos... você sabe: "Plano Cruzado", o "Plano Collor" e por fim o "Plano Real"; e por incrível que pareça o que realmente nos jogou no poço foi o "Plano Real". Isso sem contar com a tragédia que houve com a sua família. Eu ainda não trabalhava aqui neste período mas, segundo o que me consta todo o patrimônio ficou às moscas até que as suas tias se recuperassem. Mas como eu disse antes, a nossa bomba atômica foi o "Plano Real"!

     - Como assim?

     - Bem, logo em seguida à conversão da moeda de "Cruzeiro Real", para "URV"(unidade real de valor) e depois para o "Real", as pessoas ainda alienadas e totalmente por fora do que isso importaria, somente crédulas às propagandas governamentais, passaram a gastar demais, pois não estavam ainda acostumadas que um real, na época, valia mais do que um dólar. Assim sendo, dez, vinte ou cinqüenta reais pareciam valores irrisórios; Por exemplo, uma geladeira que antes custava setenta mil cruzeiros reais, poderia ser vendida até por vinte e seis reais. Claro que todas as lojas como nós, também aproveitamos a ignorância do povo para etiquetar valores menores, mas não tanto. Então passamos a pedir por essa mesma geladeira, cento e vinte reais, por exemplo!

     - Nós fizemos essa cachorrada?!

     - E com toda a razão, pois os fornecedores estavam fazendo o mesmo conosco... era pular da frigideira com óleo fervente para cair na chama. Uma vez notando que os consumidores não estavam se tocando que um real valia duas mil duzentas e quarenta e cinco URVs, nós, apesar de sofrermos um certo arrocho, começamos a comprar e a estocar mercadorias, crentes de que o consumidor iria invadir as lojas para adquiri-las. Nós apostamos numa previsão do Fundo Monetário Internacional de que o Real iria permanecer estável durante no mínimo sete anos. Só que neste momento ninguém pensou que a moda, as tendências e os gostos mudariam, assim como a tecnologia avançaria a passos cada vez mais largos a cada dia. E mesmo se isto acontecesse, poderíamos fazer inúmeras liquidações muito vantajosas, muitas queimas de estoque, nas quais o consumidor acharia que estaria comprando tudo a preço de banana. Assim sendo, muita coisa foi estocada no início, pois era barata para nós comprarmos do fornecedor, e muito mais cara para vendermos para o consumidor o qual, na hora da compra, acharia a mercadoria baratíssima e a levaria aos "borbotões". E... - Suspirou Karina.

     - E não deu certo... o consumo caiu?

     - Quando o povo brasileiro realmente tomou consciência de que estavam lidando com dinheiro "graúdo", todos passaram a perceber que dez reais não eram mixaria e que cem eram praticamente o necessário para se passar um mês; por quanto tempo o salário mínimo foi de cem reais... só agora teve esses ridículos aumentos de vinte ou quinze por cento. Deste modo cada centavo de real passou a ter valor e as pessoas naturalmente passaram a pesquisar e depois pararam de comprar, a não ser aquilo que lhes seja estritamente necessário; pois os dez e os cinqüenta reais se transformaram em dinheiro e não mais são gorjetas. Hoje há uma concorrência danada com os grandes conglomerados, na qual infelizmente eles estão nos vencendo, pois eles são vários unidos em um só, e nós somos apenas um. Destarte é lamentável lhe informar Lisiane, que os nossos estoques estão abarrotados por uma porção de coisas que foram adquiridas no início do Plano Real, não foram vendidas mas foram pagas por nós. Esse dinheiro empregado nunca mais foi reavido, justamente porque ele está armazenado e apodrecendo nos nossos estoques... nos porões. E para completar, depois de tudo o Real ainda teve esta queda, o que piorou tudo. No que compete ao meu departamento, isso é tudo o que eu posso informar. Para obter melhores dados eu recomendo que você fale com o Ricardo, do almoxarifado, importação e "às vezes” exportação e se você agüentar, com o Rafael das finanças! - Sugeriu Karina.

     - Olhando estes gráficos no computador eu já mais ou menos compreendi por que caminhos tortuosos andam as nossas finanças; e o próprio Rafael já nos explicou isso ontem e realmente eu não estou disposta a ouvir o seu discurso novamente. Prefiro falar com o responsável do almoxarifado.

     - Antes de eu ir, eu acho por bem te informar que a concorrência, ou seja, outros empreendimentos nos superaram por completo. Eles têm uma moderníssima dinâmica comercial, enquanto que nós ainda nos postamos há dez anos atrás, justamente pela confiança que dispusemos nestes milhões em produtos encalhados. A nossa política comercial é ainda a mesma que aplicávamos no final dos anos oitenta.

     - Segundo você, existem esperanças?

     - Mas é claro! Afinal isso é só uma fase. Logo estaremos por cima novamente! - Salientou Karina. - Estou dispensada?

     - Claro... desculpe-me, acho que você tem muitas coisas para fazer!

     - Eu tenho de ir até Cumbica para receber investidores japoneses que estão interessados em ser nossos fornecedores!

     - E isso é bom?

     - Dependendo deles, até pode ser... mesmo assim nós estamos convalescendo e tudo tem que ser muito bem estudado, áh, o Rafael vai comigo!

     - Ugh...

     Lisiane por um instante deixou o seu olhar se perder no nada, afinal não seria tão fácil mostrar serviço e levantar as coisas tão rápido. Sentiu-se sonolenta pois não estava acostumada a acordar tão cedo e resolveu tomar um café; resoluta por se tornar bem acordada ela já foi enchendo uma grande xícara. O café estava "pelando". A porta foi aberta de supetão:

 

- Com licença e bom diaaa!!!! - Gritou um rapaz, ao adentrar.

- ÁÁÁÁ!!! - Com aquele grito Lisiane se assustou e derramou o café quente na sua mão e também no seu tayeur cor de gelo. - Quem é você??!! - Bradou ela.

- Seu servo, às suas ordens, é só pedir qu...

- Vamos parar com a comédia, identifique-se!!! Já não basta você ter feito com que eu queimasse as mãos e manchasse a saia do meu tayeur?!

Áh, mas deixe eu ver isso! - Disse ele, indo até Lisiane, tomando as mãos dela nas suas, soprando-as e depois retirando do bolso um lenço, com o qual ele as secou e tentou também remover a mancha da saia de Lisiane. Como ela não saía, ele molhou uma das pontas do lenço na sua saliva e levou até a mancha, o que serviu para propagá-la ainda mais. Lisiane que olhava para tudo aquilo absorta, logo voltou a si e teve um ímpeto:

- Pare com iiisso!!! Você é louco? Fugiu do hospício, entrou aqui, estrangulou a "Uropato" com esse maldito lenço e agora vai fazer o mesmo comigo?!

- Não, eu fugi do almoxarifado mesmo, aquilo lá está um saco hoje!

- Não vá me dizer que você é o almoxarife?!

- Em carne e osso. Mais conhecido como Jack, o conquistador de corações!! - Lisiane deu uma medida no rapaz, que além de ter uma cara de adolescente, vestia jeans, camiseta, um par de tênis e tinha os cabelos lisos acentados com gel.

- Eu realmente não sei como minhas tias puderam contratar um tipo como você!

- Para você ver o sucesso que eu faço com as mulheres!!!

- Há-há-há e há, mal vestido e grosso desse jeito, eu duvido muito... talvez com as faxineiras do depósito.

- Hum! Vejo que temos uma nova chefe bonita, gostosa e muito severa, você seria ideal para funcionários masoquistas!

- Como se atreve? Eu devia te por no olho da rua!

- Uau!! Que voz, que expressão, que boca e... você fica ainda mais sensual quando está furiosa!

- Para mim chega, retire-se imediatamente!

- A Karina deu uma passadinha lá no meu ninho de amor e disse que você estava precisando dos meus serviços, pois eis-me! E olha que eu vou ficar muito curioso e triste se a senhora...

- Senhorita!!!

- ...áh, é senhorita! Estou começando a gostar mais ainda!

- Sente-se!!!

- Você vai usar o chicote ou pingar vela derretida sobre o meu corpo?

- O quê?! Eu vou apresentar você para a Claudia, ela adora tipinhos vulgares e baratos como você...

- Com toda certeza, quem é a...

- Cale-se. Eu tive a infelicidade de te mandar chamar na doce ilusão de que você pudesse me fornecer alguns dados sobre mercadorias encalhadas nos depósitos, pois estou fazendo um levantamento das causas que nos estão levando a um iminente pedido de concordata preventiva... mas vejo que perdi o meu tempo, agora pode sair.

- Karina me falou algo a respeito. O que aconteceu foi que apostamos demais neste novo plano econômico e agora veio a recessão, então a mercadoria começou a sair cada vez mais lentamente até parar de vez. As peças de vestuário saíram de moda, e a maioria das coisas tornou-se antiquada devido à essa aceleração tecnológica na qual estamos vivendo. Para a "senhorita" ter uma idéia, nós estamos com um encalhe monstro de Long Plays de vinil em plena era do Compact Disc. Os supermercados mantidos em alguns dos shopping centers não estão dando lucro enquanto muitos produtos perecíveis apodrecem nos depósitos para depois serem jogados fora. E olha que os fornecedores cobram caro por esses produtos. Existem coisas encalhadas que nem que nós tentássemos vendê-las por um preço muito inferior ao da compra, a clientela compraria, pois preferiria pagar mais e levar algo mais moderno. Eu não posso dizer assim de cabeça tudo o que temos estocado ou encalhado aqui e muito menos nas outras filiais, principalmente nas do exterior. Se a "senhorita" me der alguns dias, eu faço um levantamento geral após entrar em contato com todas as filiais e lhe apresento então um relatório completo e meticuloso.

     - Segunda-feira.

     - O que é que tem?

     - Segunda-feira é o seu prazo, o senhor tem quase uma semana e nenhum dia a mais. Por isso pare com esses seus devaneios pervertidos e trate de trabalhar senhor...

     - Ricardo, não o Coração de Leão!

     - Pois bem senhor Ricardo, o senhor está dispensado e espero nunca mais precisar dos seus serviços.

     - Com a sua licença, "senhorita". - Disse Ricardo, fazendo uma reverência para Lisiane e dirigindo-se até a porta. Quando já estava para sair, ele voltou-se para ela, que estava digitando algo no computador: - Sabe qual é o seu problema?

     - Eu não tenho problemas. - Respondeu ela, sem se voltar para ele.

     - Tem sim: emoções contidas, torpor recolhido... talvez esteja na hora de procurar alguém para lhe satisfazer...

     - Saia!!!

     - Ou você já está procurando mas ninguém te quis?! - Perguntou ele, fechando rapidamente a porta. Irada, Lisiane atirou contra ele a primeira coisa que viu na sua frente, no caso um fichário de acrílico que se despedaçou contra a porta.

     - Mas vejam só o que ele me fez fazer com o meu fichário?! - Disse para si mesma, levantando-se e com uma expressão de choro dirigindo-se até a porta, onde delicadamente se abaixou e começou a juntar os cacos do tal fichário. - Calma Lisiane, não fique triste, "Uroganso" colará ele todinho para você... - Resmungava para si mesma. - "Urobico"!!! - Bradou ela. Urogalo escutou da recepção e veio correndo, abriu a porta e com esta bateu e derrubou Lisiane que estava ainda ali, abaixada:

     - Meu Deus, me desculpe senhorita Lisiane, eu não sabia que...

     - Quer me matar??!! Por acaso isso é um complô contra mim??!

     - Não senhorita, eu não tinha a inten...

     - "Uromilho", veja o que aquele animal do Ricardo me fez fazer... e eu gostaria que você o colasse para mim.

     - Mas senhorita Lisiane, ele está todo moído e...

     - Cole!!! - Ordenou ela.

 

     Nos sábados à tarde quase ninguém da diretoria ia para a loja, que como todas abria normalmente até as dez horas. Assim sendo, no sábado pertinente à semana de início de trabalho dos seus sobrinhos, Débora e Hella resolveram reunir o pessoal em torno da piscina, uma vez que aquele dia estava ensolarado. Alguns dos funcionários que não foram nem de manhã, chegaram na elegante mansão Villas Bhoas logo cedo.

     Vale salientar que a mansão erguia-se num estilo bem aproximado ao gótico e ao medieval numa mistura excêntrica com o art-nouveau, parecendo até um castelo, com algumas torres e tudo. Tomando-se a edificação por si só, ela parecia um tanto sombria e taciturna, mas havia vida no seu interior e no seu derredor. Eram as floreiras em cada janela, se deixar faltar uma sequer; eram os belos jardins que a circundavam seguidos depois pelos profundos bosques, os quais continham focos de mata nativa. Havia nestes bosques inúmeras churrasqueiras e instalações propícias para camping, bem como os jardins estavam pontuados por chafarizes decorados com estátuas réplicas de Fídias, Da Vinci, Michelangelo, Aleijadinho e muitos outros; obras de arte vitalizadas por banharem-se ou por expelirem quantidades abundantes d'água. Os canteiros de flores eram imensos e circundavam os chafarizes. Havia naqueles gramados de um verde intenso, uma porção de animais, como cordeiros, emas, pavões, quatis, faisões e lhamas que ali livremente se locomoviam, principalmente em torno do grande lago que se postava no meio do bosque e estava repleto de peixes, tão bem como as árvores repletas de inúmeras variedades dos mais coloridos pássaros. Naquele recanto a caça e a pesca eram proibidas e tudo mais estava devidamente regularizado pelo IBAMA.

     As árvores estavam repletas de bebedouros para beija-flores, assim como cada         janela da mansão possuía um deles, nem os quartos da criadagem eram dispensados. Estes bebedouros não atraiam somente os colibris, mas também as borboletas, as abelhas e até mesmo os pardais, corruíras, tizius, bem-te-vis e sabiás tão bem como uma porção de outros insetos e pássaros. A fauna e a flora naqueles quase vinte alqueires em plena grande São Paulo, eram o paraíso que todos desejariam ter.

     Havia na mansão cinco piscinas, uma para cada idade, uma decorativa, outra que dava início a um enorme tobogã em forma de caracol e que desembocava na maior das piscinas um pouco mais rasa. A piscina decorativa tinha todo o seu fundo e suas laterais num granito raro, o qual a tornava extremamente brilhante fazendo com que as águas límpidas e tratadas reluzissem como prata polida. Esta piscina era toda tortuosa e tinha numa de suas concavidades uma espécie de alta e verdejante caverna, a qual das suas alturas despejava a água para a piscina, formando assim uma alta cachoeira. Por vezes haviam alguns cisnes, marrecos, gansos e patos que se atreviam a nadar naquela piscina, já se tornando íntimos de todos aqueles que nela entrassem. Os animaizinhos pareciam compreender que aquele não era o lugar deles, mas sim o lago do bosque, portanto quando ali apareciam, estavam sempre en passant e nunca se deixavam poluir tão bela piscina.

     Na tarde de sol forte, estavam todos os convidados reunidos em torno da piscina média, supracitada como a maior de todas. Também envolta por calçadas de mármore Carrara e tendo as suas bordas vestidas de um granito áspero e anti-derrapante, para evitar fortuitas quedas. Seu interior estava todo recoberto também por azulejos reluzentes, os quais proporcionavam uma luz natural à piscina.

     Naquele sábado a tarde o céu estava limpo, espoucando algumas alvas e espumosas nuvens. O sol estava "de rachar", propício para um bronze, um bom banho de piscina e um desfile de belos corpos.

     Aproveitando o ensejo, Fred, Samanta, Alex e mesmo Tiaguinho, resolveram convidar os seus amigos do "clubinho", Léo, Camila e Poliana. Claudia convidou uma porção de jovens bonitos, musculosos e que apreciassem mostrar os seus músculos para uma plêiade feminina:

     - Pouca vergonha! - Exclamou Lisiane, vislumbrando a sua liberalidade. Esta por sua vez não convidara ninguém, mesmo assim se juntou com Karina e Carolina, para juntas tomarem sol e conversar. Márcia desfilava para cá e para lá com Rafael, de quem, já falara a respeito com suas tias e estas haviam aprovado a idéia, uma vez o rapaz havia pedido oficialmente a mão de Márcia em namoro. Logo chegou Violeta Urogalo e Lisiane fez questão que ela viesse se sentar perto dela, de Karina e de Carolina:

     - "Urorgasmo"!! Aqui tem um lugar para você. Venha, pois eu já pedi um vinho gelado para a copeira!! - Aquele grito de Lisiane, com aquele erro crasso em relação ao nome da funcionária, serviu para chamar a atenção de todos e deixar Urogalo que já era tímida, mais encabulada ainda. Elas estavam conversando embaixo de grandes guarda-sóis. Lisiane como suas novas amigas estava "a bordo" de um sensual maiô de duas peças de coloração branca com alguns detalhes em preto, o que evidenciava ainda mais o seu já bronzeado corpo, todas as curvas e formas, seus cabelos castanho-claros estavam soltos ao sabor do vento e seu rosto emoldurado por um belo par de lentes negras amparadas por também negros e sofisticados aros, o que davam a ela um charme especial. A descontração de Lisiane naquele dia a deixou mais natural e unida à sua beleza, serviu para chamar a atenção de vários rapazes, principalmente de Ricardo. E Lisiane continuava falando e gesticulando para Karina, Carolina e Urogalo:

     - ... por que vocês sabem, eu detesto multidões e simplesmente odeio quando as minhas tias resolvem convidar esse batalhão aí, exceto vocês, é claro. O que mais me irrita é de ela deixar o Fred, a Samanta e o Alex trazerem aquele bando, que aliás, vive aqui. É uma bagunça horrível... mas o pior é essa turma do endemoniado do Tiaguinho que... - Lisiane foi interrompida:

     - Nossa, estamos vendo que o papo das moças está animado! - Interferiu Ricardo, acompanhado de mais dois de seus amigos: Giancarlo do centro de processamento de dados e Amadeu da manutenção.                                                                                  

- Será que nós podemos nos sentar com vocês?                                                                

- Perguntou Amadeu.

     - Claro... sempre cabe mais um! - Disse Carolina.

     - Ou mais três! - Completou Karina.

     - Pronto, olhem só, é essa maldita mania das minhas tias convidarem pessoas desclassificadas para virem aqui em casa!

Os três que já estavam por se sentar, subitamente voltaram à posição anterior, de pé. E fizeram menção de se retirar.

     - Amadeu, o que você acha de nós conhecermos o bosque? - Perguntou Carolina.

     - Ótimo, eu ainda não o conheço!

     - E você Giancarlo, que tal irmos apreciar as obras de arte dos chafarizes e em seguida mergulharmos naquela piscina que tem a cachoeira? - Perguntou Karina.

     - Com todo o prazer! - Disse Giancarlo, oferecendo o braço para Karina. Quando todos saíram, Lisiane voltou-se para Urogalo:

     - Você viu só? Essas daí não podem sentir cheiro de homem que já estão indo... - Lisiane foi novamente interrompida.

     - Oi Violeta, será que você iria comigo até a copa para pedir um sorvete? Eu estou morrendo de calor.. - Perguntou Júlio, o promotor de vendas.

     - Mas claro, a senhorita me daria licença? - Perguntou Urogalo para Lisiane, já saindo com o rapaz.

     - "U-Urogato", volte aqui!!" - A secretária não ouviu, pois já havia saído com Júlio. Lisiane havia ficado sozinha. Sem dar importância aos acontecimentos, ela resolveu se deitar e aproveitar o sol, assim mesmo os seus ouvidos estavam atentos e captavam a conversa entre duas mulheres divorciadas na base dos seus quarenta anos. Elas faziam parte da turma que Claudia havia convidado para observar os músculos dos outros rapazes:

     - Vocês viram só que gatos esses rapazes? - Perguntou uma delas para as outras.

     - Pena que os outros saíram, mas esse aí que sobrou está no ponto.- Ela estava se referindo a Ricardo, o que de pronto chamou a atenção de Lisiane, que também começou a reparar melhor no moço que se postava de pé ao lado da piscina, enquanto falava alguma coisa para Fred, que estava no interior da mesma junto com Camila.

Enquanto isso as quarentonas continuavam a reparar:

     - ... mas ele é realmente um belo exemplar. Aquela carinha de bebê... o legítimo baby look. - A outra continuou:

     - Essa pele lisinha que ele tem contrasta tanto com a sua sunga negra... - Isto fez com que Lisiane começasse a prestar mais atenção em Ricardo que, vez ou outra lhe dirigia um olhar fulminante com seus olhos verdes azeitonados. O cabelo, como de costume, penteado para trás com alguns fios pendendo sobre a testa. Ele não era muito alto, pouco mais do que ela própria e ao invés de ser o estereótipo do homem belo, aparentava mesmo um adolescente com cara de menino levado. Uma das três "balzaquianas" colocou um dos seus indicadores na boca, abaixou os seus óculos de sol e exclamou:

     - Hoje eu ainda levo esse pedaço de mau caminho para a minha casa!! - Aquilo foi a gota d'água para fazer com que o sangue de Lisiane fervesse:

     - Mas vocês não têm vergonha mesmo, não vêem que o rapaz serve para ser seu filho?! Bando de quarentonas!

     - Credo cabrita, não sabia que o gajo aí era teu "cupincha"! - Disse a mais desbocada das três.

     - E não é!! - Ricardo que não estava distante, pode ouvir a discussão e se aproximou:

     - Obrigado pela defesa. Será que eu poderia me sentar com você?

     - Quanto à "defesa" à qual o senhor está se referindo, não fiz nada além de proteger a reputação do meu patrimônio. E quanto ao senhor se sentar aqui, eu não acho que seria de bom tom eu ser vista sentada com empregados.

     - Em primeiro lugar "senhorita", eu não faço parte do seu patrimônio, em segundo lugar, acho que talvez a companhia das "quarentonas" como a "senhorita" se referiu, provavelmente é muito mais interessante e divertida que a sua. Com licença, "senhorita"!                              

     - E não me chame de senhorita neste tom!!

     - Ué, já casou, "senhora"... como é mesmo o nome do seu novo marido? - Ricardo não deu tempo para Lisiane responder, apenas se retirou dirigindo-se a Alex, Tiaguinho, Léo e Fred. - Aí turma, vamos ver quem dá a "bombinha" mais forte. A fila indiana já havia se formado atrás dele e não deu tempo de ninguém sair; a cada corpo que caia n'água com o impulso dado, esta espirrava em grandes quantidades para fora da piscina. Evidentemente que a primeira a ser atingida foi Lisiane que teve seu enorme chapéu encharcado e por fim colado na sua cabeça, além de seus óculos de sol terem caído e ela com o susto ter derrubado o seu cálice de vinho branco... Dos outros que estavam perto, todos levaram na brincadeira, pois iriam se molhar mesmo, a não ser Lisiane, que irada se levantou dali, atando na cintura a sua saída de banho e a passos largos tentando sair dali. Primeiro ela escorregou e praguejou e depois Ricardo e os outros que já estavam novamente fora da piscina a detiveram:

     - Saiam da minha frente!! - Bradou ela, chamando a atenção de todos que ali se encontravam.

     - Que tal um banhosinho para esfriar a cuca? - Perguntou Ricardo, lançando a furiosa moça piscina adentro. Ricardo e a turma do clubinho tiveram que fugir dali ou então as conseqüências seriam "nefastas"...

 

     Enquanto isso, adentrava aos jardins da suntuosa mansão um táxi, o qual estacionou bem de fronte às escadarias de acesso. Um par de belas pernas vestidas por meias de nylon negras e completadas por um par de sapatos de saltos altos e pontiagudos em camurça saíram do interior do veículo e pisaram na calçada. Logo em seguida a dona dessas pernas se postou em pé e retirou as negras lentes contemplando a fachada da mansão. Usava luvas e um chapéu, todos negros para contrastar com o vestido grafite claro. Seus ombros estavam cobertos por um casaco de "chinchila" da mesma cor. Logo em seguida ela se dirigiu ao chauffeur do táxi que já havia retirado a sua bagagem:

 

     - Pode ficar com o troco. - Deixou a bagagem ali mesmo e ganhou as escadarias encontrando a grande porta de entrada para o salão principal aberta devido àquele sábado festivo. Não havia perigo, pois na entrada havia guardiões que das suas guaritas controlavam quem entrava e quem saia da mansão Villas Bhoas.

No salão principal da grande morada ela murmurou para si:

     - Finalmente em casa... Hum! Esse cheiro de móveis de cerejeira me trás tantas saudades... Olá!! - Arriscou ela. - Onde está todo mundo? - Aquele vestido de seda grafite, um tanto amarrotado evidenciava que ela recém-chegara de viajem. Naquele momento, atraída pelo barulho no grande salão, Sótera, uma das arrumadeiras foi verificar:

     - Quem está aí?... Senhorita Roselene!!! Mas que surpresa maravilhosa!! Dona Hella e dona Débora vão adorar em saber!! Venha, a casa está vazia pois estão todos em torno das piscinas.

     - Sótera querida, como é bom rever você e saber que continua conosco! E os outros, Leôncia, Antábaro, Frida, Jar...

     - Todos aqui, assim como quando a senhorita viajou!!

     - É muito confortante saber disso, afinal foram quase onze anos.

     - Vou chamar suas tias! - Disse Sótera se retirando, enquanto Antábaro foi recolher a bagagem de Roselene que jazera nas escadas. Débora derramou lágrimas de emoção ao ver sua sobrinha:

     - Minha querida, eu não acredito, finalmente você resolveu se lembrar da sua família... pensei que jamais iria voltar!!

     - Desde aquele acidente... a senhora sabe, aquela cerimônia fúnebre com tantas urnas. Eu fui realmente uma fraca, não pude suportar. Fiquei traumatizada e...

     - Não precisa tentar se explicar, nós todos entendemos perfeitamente... mas já é passado. Agora só interessa que você retornou!!

     - Através das cartas eu fiquei bastante preocupada com a situação do nosso patrimônio que a senhora e a tia Hella me relataram. Saibam que eu voltei disposta a ajudar a reerguer isso tudo e a compensar tudo o que eu deixei a desejar, para tanto fiz inclusive alguns cursos e li vários livros sobre administração e empresariado. A senhora sabe que esta não é a minha área, mas eu prometo fazer o possível e o impossível!

     - Eu sei que vai meu bem... agora chega de falarmos sobre águas passadas e venha cumprimentar a todos que estão na piscina. Seus primos vão adorar em revê-la e principalmente o seu irmão que já está um homenzinho!

     - Áh, Tiaguinho... ele ainda era praticamente um bebê quando tudo aconteceu.

Na piscina:

     - Olá meus queridos... Meu Deus, como vocês estão crescidos, todos moços. E você Tiaguinho, meu irmãozinho, mal agüentava de curiosidade em revê-lo!! Fred já está um homem feito, Samanta uma bela moça e Alex um garotão!!! E não é por ser prima coruja, estão todos muito bonitos! - Roselene foi também apresentada para Camila, Léo e Poliana. - Esperem só até eu abrir as minhas malas. Eu não economizei nos presentes para todos vocês! Trouxe souvenirs de todos os lugares que visitei... Tibete, Machu Picchu, Nasca, Cidade do México, Transilvânia, Páscoa e muitos outros! E Claudia, Márcia e Lisiane, onde estão as minhas primas queridas? Eu estou morrendo de saudades!

     - Lisiane deve estar se trocando no quarto e acho que não sai de lá tão cedo! - Explicou Fred aos risos.

Márcia e Claudia também vieram abraçar a sua recém-chegada prima. Márcia apresentou para a prima o seu novo namorado, Rafael e Claudia alguns de seus vários flertes. É claro que houve alguns sorrisos forçados por partes das duas últimas, pois apesar do fato de sempre terem se dado bem com Roselene, a volta dela representava uma "disputa" mais acirrada em relação ao patrimônio dos Villas Bhoas e, uma ameaça também, pois Débora e Hella sempre tiveram em Roselene o exemplo da família, a moça que "tinha a cabeça no lugar" e por isso poderiam dar prioridades e mais liberdade de ação para ela no que dissesse respeito às iniciativas a serem tomadas para um melhor progresso das lojas. Roselene sempre fora mais cautelosa e mais metódica e digamos... não tão "fútil".

     De uma das janelas da mansão, Lisiane observava tudo pasma:

     - Não... não é possível... a cascavel voltou! Dia de cão, como se não bastasse tudo que já me aconteceu ainda mais essa! - Lisiane não tinha nenhuma rixa com Roselene, mas a competência e inteligência da prima a assustava e isso fazia automaticamente de Roselene uma rival. - Hoje não ponho mais o pé para fora do quarto... - Murmurou, enfiando a cabeça no travesseiro.       

     Ainda na piscina, onde Roselene estava sendo apresentada e a todos conquistando com sua simpatia contagiante:

     - Tia Débora, eu não vi tia Hella! - Observou Roselene.

     - Há algum tempo a tia Hella disse que ela ia dar uma volta no seu girocóptero! - Informou Alex.

     - Olhem lá, ela acaba de decolar! - Apontou Samanta. Sim, a excêntrica Hella tinha como seu principal hobbie, pilotar um velho girocóptero ou "autogiro", o qual guardava no pequeno hangar da mansão, que devido à sua extensão territorial, contava com uma pequena pista de pousos e decolagens para aviões de pequeno porte, inclusive o Grullman III, o jatinho executivo da família. Hella adorava sobrevoar as imediações da grande morada, acompanhada por Pafúncio, seu chimpanzé de estimação. E lá estava ela, nas alturas, pois como sempre dizia: adorava ficar rodeada por pássaros mas, naquele dia o bando de andorinhas era deveras numeroso e Hella se perdeu... Em meio à confusão algumas pobres aves acabaram por ser trituradas pelas engrenagens das hélices e a prejudicar o funcionamento das mesmas, além do motor do aparelho que fica exposto. Isto tudo provocou uma pane e entupiu os canos de refrigeração. Todos lá embaixo já haviam percebido o que estava acontecendo e olhavam atônitos:

     - Aposto como esse troço vai cair e matar todo mundo... igual aquela família americana que se reuniu toda para um almoço de domingo no quintal e um "teco-teco" caiu em cima e matou a todos. . - Disse morbidamente Poliana, a gorenta da turma.

     - Vire essa boca para lá, urubu!! - Repreendeu Alex. Mas dito e feito, o aparelho começou a se precipitar e a voar em círculos seguidos de inúmeras piruetas. Hella que tinha certas atitudes de louca, estava achando tudo aquilo nada mais nada menos do que maravilhoso. No momento em que a grande hélice do aparelho parou de vez, este iniciou uma trajetória em "parafuso" rumo ao chão, justamente em direção à mansão como Poliana havia previsto. A correria foi desvairada quando todos perceberam que aquela geringonça descontrolada com uma maluca no comando vinha em suas direções. Tudo terminou com o girocóptero caindo dentro da grande piscina e com uma quantidade exorbitante d'água sendo espirrada para fora da piscina e ensopando a todos. Hella foi retirada do seu "brinquedo" juntamente com o seu chimpanzé em meio à risadas histéricas.

 

     No dia seguinte, domingo, como de costume todos desceram para o Guarujá, exceto Roselene que alegou estar muito cansada devido à viagem. Vale salientar que durante o breakfast Lisiane foi praticamente obrigada a cumprimentar a prima e a mostrar-se gentil, mesmo assim estava começando a se criar uma atmosfera mais pesada por parte de Márcia, Claudia e Lisiane em relação à Roselene.

                                                                    

Na segunda-feira pela manhã, às seis e quarenta e cinco já estavam todos presentes à mesa do café . Foi quando Roselene tomou a palavra:

 

     - Queridas tias, caros primos a quem eu amo tanto e caros criados também, uma vez que vocês já fazem parte da família. E claro, meu irmão Tiago... Márcia, Claudia... ainda que Lisiane não se encontre presente... Eu tenho um pedido para fazer!

     - Diga, e o realizaremos, minha menina! - Respondeu Hella.

     - Hoje de tarde, eu gostaria de convocar todos os chefes de departamento das lojas para ouvirem o meu novo projeto para o crescimento de nossas empresas, assim como todos os outros funcionários responsáveis por cada departamento! E principalmente vocês, é claro!

     - Mas minha querida, você nem ao menos descansou da viagem! - Admirou-se Débora.

     - Já está mais no que na hora de eu deixar de ser uma menina mimada que só fica viajando e voltar as minhas atenções para a minha família. Além do mais, ficar inerte diante de toda essa situação só me faria sentir ainda mais culpada... portanto eu peço por favor, deixem-me pelo menos começar a ajudá-los, não sei ao menos se vou conseguir... - Pediu Roselene, voltando o olhar para todos os que estavam ao redor da mesa. Hella já estava com os olhos marejados, enquanto que Claudia e Márcia se entreolharam surpresas. Foi quando Débora consentiu:

     - Então está bem. Se é bom para você e bom para nós também, eu e Hella convocaremos uma reunião geral, com todo o staff de chefia de todos os departamentos da matriz, tão bem como os principais funcionários... não será difícil!! - Os olhos de Roselene brilharam:

     - Que maravilha e... como eu tenho algumas economias guardadas, eu gostaria que esta reunião não tivesse um tom tão formal, portanto eu mesma pedirei que sejam encomendados alguns comes e bebes... as senhoras sabem, ninguém me conhece lá e eu estou um tanto temerosa. Gostaria de poder agradar a todos!

     - Está certo que a nossa situação não é das melhores, mas ainda temos o suficiente para providenciarmos uns petiscos e um vinhosinho! Pode deixar que eu e Débora também tomaremos conta disso! - Salientou Hella.

     - Não, disso eu faço questão! Sou eu quem vai "patrocinar" esta reunião! Para vocês está bem às dezesseis?

     - Perfeito!! - Exclamaram Débora e Hella, em uníssono. Débora continuou:

     - Para você estar tão animada, eu creio que deva ter aprendido muita coisa interessante lá fora e quer agora transmitir tudo para nós e os nossos funcionários, por isso vou providenciar para que a sua palestra seja também filmada, pois em caso de sucesso, o que temos certeza que haverá, providenciaremos para que ela seja assistida pelos funcionários de todas as nossas filiais!

     - Nossa, não precisa tanto, eu... fico até sem jeito. - Disse Roselene, com a voz embargada enquanto que Claudia e Márcia estavam a ponto de devorar as suas xícaras. Um silêncio "sepulcral" se fez reinar na mesa e novamente foi Roselene quem se fez dona da palavra no intuito de quebrá-lo:

     - E vocês meninos, como estão indo na escola?

     - Mais ou menos... - Respondeu Fred, com ar de preguiça.

     - Eu vou muito bem, obrigada! - Disse Samanta, que realmente tinha as notas mais altas da sua classe.

     - E você Alex?

     - É... dá pro gasto. Prefiro mesmo pegar uma onda!

     - Eu sei que prefere. E quanto ao meu querido irmãozinho? - Perguntou Roselene, acariciando os cabelos de Tiago. - Mas o que é que um rapaz tão novo está fazendo acordado tão cedo? Eu imagino que você estude à tarde...

     - Ele tem aula de piano e francês, logo mais às oito horas. Às dez é a hora da aula de natação. - Explicou Débora.

     - Tudo isso? - Questionou Roselene.

     - Sim, nas segundas e quartas, já nas terças e quintas ele tem computação, inglês e tênis.

     - Mas ele faz isso tudo aqui em casa com professores particulares, não?

     - De jeito nenhum, ele vai para as escolas especializadas assim como outras crianças da sua idade. O contato com o público, com pessoas de idéias diferentes e de diferentes classes também ajuda muito na educação. O único dia que ele tem professor particular é na sexta, quando as matérias do currículo escolar são reforçadas.

     - Pelo menos há o consolo do final de semana, pois...

     - Só depois do almoço de sábado, uma vez que pela manhã ele tem aula de etiqueta e boas maneiras, capoeira e depois judô! - Esclareceu Hella, orgulhosa.

     - E quando é que ele faz os deveres de casa?

     - Logo após chegar da escola, uma vez que as matérias estão ainda frescas na sua mente. Depois do jantar ele tem tempo livre para fazer o que quiser. Nove e meia um bom banho e dez horas, cama! - Explicou Débora. Roselene achou seu irmão uma criança um tanto sobrecarregada, mas ele não parecia se importar. Ela ainda abraçou o irmão e perguntou:

     - E você gosta da escola, meu bem?

     - Só não gosto da "visgo"!

     - Quem?!

     - A "Visgo", ela põe o dedo no nariz e depois passa na gente, além de ter lêndea e cheirar a "cocô". Neste instante todos foram surpreendidos por uma bulha de objetos sendo estraçalhados contra a parede no pavimento superior sendo esta seguida de uma exclamação:

 

     - Essa porcaria tinha que ter pifado de novo!!! - Um rádio-relógio foi projetado janela afora atravessando as vidraças. Logo no alto das escadas surgiu aquele "ser", com os cabelos desgrenhados, ainda vestindo um pegnoir, olhos quase fechados e com profundas olheiras. E continuava a gritar:

     - Friiiida!!!! Ponha o maldito café na mesa!! E rápido pois eu já estou atrasaaaaada!!!!

Aquele com certeza seria um "looongo dia"...

 

     Depois de uma porção de imprevistos, como ser multada por cruzar semáforos vermelhos, ter o pneu do carro furado, não achar vaga no estacionamento e esbarrar o seu em outros carros além de ter o salto do sapato quebrado após uma queda em público, Lisiane entrou no shopping quando os ponteiros marcavam dez e meia. Tudo isso evidentemente pontuado por inúmeras discussões e praguejados. A pobre moça atingiu o décimo quinto andar e logo ao sair do elevador cruzou com uma faxineira que passava um pano úmido no granito, sem olhar onde estava pisando, Lisiane acabou por pisar dentro do balde chegando até a dar alguns passos com ele, mas levando outro "tombo" em seguida em meio à água e espuma. Ainda no chão ela voltou-se e histérica para a mulher:

     - IRRRNN!!! A senhora não olha onde deixa as coisas????!!!

     - M-mas eu...

     - Sem mais nem menos, pode passar no departamento de pessoal e acertar as suas contas!!!

     - Mas eu tenho quinze filhos para alimentar, meu marido me abandonou e...

     - Chega!! Ninguém mandou por tanto filho no mundo! Não tinha coisa melhor para fazer? Rua!! - Neste exato instante Roselene que ouvira parte da discussão, delicadamente resolveu interferir:

     - Me desculpem, mas eu não pude deixar de ouvir e acho que talvez você esteja se precipitando um pouco querida prima.

     - Como se atreve a me desautorizar??!

     - Eu sei... este é o meu primeiro dia aqui e eu não tenho   o direito e nem a capacidade para tomar qualquer atitude mas... escute só um pouquinho o seu coração, prima, olhe para essa pobre mulher. Onde ela iria encontrar outro emprego e... Sei que sou muito...

     - Cale-se!!

     - Pelo amor de Deus, dona Lisiane!! - Clamou a mulher aos prantos.

     - Cale-se você também, imbecil!!

     - Cara prima eu...

     - Pegue essa mulher e "entrouxe"!! - Disse Lisiane, deixando a faxineira nas mãos de Roselene, a qual não a despediu. A funcionária só faltou se ajoelhar para agradecer Roselene.

Lisiane adentrou à recepção a passos largos, toda molhada e calada.

     - B-bom dia, senhorita Lisiane. - Arriscou Urogalo.

     - Se você estiver vendo algo de bom nele me conte o que é! E hoje eu não estou para ninguém, nem mesmo para o diabo!! - Bradou praticamente arrombando a porta do seu escritório e depois batendo-a com força.

 

Alguns minutos depois, o interfone do escritório de Lisiane se fez soar:

     - O que foi?? - Bradou Lisiane, atendendo.

     "Senhorita Lisiane, é o senhor Ricardo quem deseja lhe falar" - Disse Urogalo, do outro lado da linha.

     - Eu já disse que não estou para ninguém, muito menos para es...

     - Com licençaaa e bom diaaa!!! - Disse Ricardo, adentrando alegremente e nem mesmo dando tempo de Lisiane terminar de ter com Urogalo. Esta desligou o "viva-voz" com um movimento brusco.

     - Não hoje!!! - Gritou ela, batendo com ambas as mãos sobre a mesa.

     - Calma patroa, eu só vim trazer os relatórios sobre...

     - Deixe-os aí em cima da mesa e caia fora!!

     - Pelo menos eu fui pontual quanto a data.

     - Qualquer mongolóide seria pontual tendo uma semana de prazo.

     - Os bons trabalhos são sempre lentos, assim como um vinho, quanto mais velho, melhor.

     - Eu não tenho nenhuma opinião acerca dos seus relatórios, pois ainda não verifiquei o conteúdo, assim sendo, o senhor está dispensado.

     - Mas assim, sem mais nem menos. Eu fiz o meu trabalho e eu mereço uma recompensa!

     - O quê?! Você só pode estar brincando... sua recompensa é o seu salário. - Disse Lisiane, ao passo que examinava aqueles relatórios.

     - Que tal pegarmos um boliche e tomarmos algumas cervejas hoje depois do expediente? - Lisiane lançou um olhar irônico:

     - Boliche, cerveja, eu?! Com que tipo de mulher você pensa que está falando?

     - Bonita, pretensiosa, orgulhosa, contida e solitária, acertei?

     - Posso até ser tudo isso, mas creio que você não tenha observado o oceano de diferenças que nos separa.

     - Para isso existem os navios.

     - Senhor Ricardo, acredito que não tenha entendido. Não gosto de jogar boliche e muito menos de beber cerveja. Se o senhor me... deixe para lá...

     - Se eu...?

     - Se "eu" em algum dia da minha vida puser os pés na rua para sair com o senhor, eu realmente desejaria que um poste inteiro viesse a me atingir fatalmente.

     - Se você não gosta de boliche, cerveja e nem de sair, talvez possamos fazer tudo na sua casa mesmo, talvez no seu quarto. Uma pizza, um vinho...

     - Saia ou eu chamo o segurança.

     - Por que é que você não tenta me tirar? - Questionou Ricardo, entoando uma voz baixa e meio rouca. Aquilo irritou Lisiane ainda mais, fazendo com que ela se levantasse munida de uma estatueta de mármore e investisse contra Ricardo:

     - Cuidado com a... - Lisiane não deu ouvidos e o outrora quebrado e pontiagudo salto do seu sapato enroscou num dos fios da extensão telefônica imprudentemente jogada no chão e ela sofreu a sua terceira queda naquele dia. - ... com a extensão. - Murmurou Ricardo, amparando-a em seus braços.

     - Mas viu só o que você fez??! - Esbravejou ela.

     - Calma, foi só um susto.

     - Calma coisa nenhuma e vê se me larga!! - Bradou ela debatendo-se com energia para se livrar dos braços de Ricardo, o que acabou por levar ambos para o chão, sendo que Ricardo caiu por sobre ela. Neste exato momento, Claudia entrou sem bater no escritório da prima:

 

     - Lise, eu estava justamente passando quando resol... Áh, meu Deus!... Desculpem-me... - Disse saindo e fechando a porta.

     - Só me faltava essa... - Disse Lisiane, conseguindo se desvencilhar de Ricardo e postar-se em pé. Ela correu até a porta:

     - Volte aqui sua lambisgóia, não é nada disso que você está pensando!!!! "Urocão", eu já disse que não é para permitir a entrada de ninguém no meu escritório enquanto eu estou resolvendo assuntos de suma importância!!! Claudiaaa!!!!!! Onde está você sua jararaca, venha até aqui!! - Logo Claudia surgiu através da porta do seu escritório e plácida como nunca indagou:

     - O quê? O que houve?... Áh, é você...

     - Não é nada do que você está pensando, nós só...

     - Eu sei, eu sei... bobagem! Eu só acho que antes de qualquer atitude dessas vocês deveriam estar devidamente precavidos com preservativos e tudo mais!

     - Boa idéia!! - Exclamou Ricardo.

     - Arrgh... Senhor Ricardo, agora o assunto é confidencial, portanto saia! - Ordenou Lisiane.

     - Sua ordem é um pedido e não se esqueça,   hoje depois do expediente!

     - Uma ova!! - Bradou Lisiane, batendo a porta atrás de Ricardo.

     - Uau! Como estamos!! Você não perde o tempo e nem o gosto, heim "primoca"? Tudo bem, que ele se pareça uns cinco anos mais novo que você, mas é um gatinho e quem é que não tem as suas crises de "papa-anjo", heim?! - Questionou Claudia, ironicamente cutucando Lisiane com o cotovelo.

     - Faça de conta que eu sou lésbica e esqueça do assunto...

     - Não vá me dizer que... que emoção! Você se apaixonou pela senhorita Urogalo?!

     - Chega!!!! O que é que você queria de mim quando invadiu o meu escritório daquela maneira?

     - Áh, durante o ato... não, como eu dantes disse, eu só estava passando quando resolvi colocar de lado uma pontinha do meu orgulho e da minha mágoa em relação àquele fatídico sábado no qual você destruiu meu carro e...

     - Não se esqueça de que você também destruiu o meu!

     - ... exatamente, aí então preocupadíssima com os destinos do nosso precioso patrimônio, eu resolvi, depois de consultar com Márcia também, lhe fazer um comunicado, uma vez que você esteve impossibilitada de se fazer presente durante o café da manhã, onde a...

     - O que aconteceu?!

     - ... calma “vol-au-vent", eu estou contando... pois é, durante o nosso breakfast, a nossa queridíssima e amicíssima "primoca" Roselene nos convidou toda bondosa, para uma reunião que ela pretende realizar hoje logo mais às dezesseis horas. As nossas titias se propuseram a reunir todos os funcionários mais importantes para ouvi-la. Já ouvi bochinches de que tudo acontecerá no salão de convenções do Villas Bhoas Excelcior com cocktail e tudo, além de uma câmera que estará registrando toda a sua palestra para que depois seja repassada para as demais filiais do Brasil e do mundo, com tradução simultânea e tudo!

     - A minha intuição não falhou. Bem que quando eu vi essa dissimulada chegar toda boazinha, eu senti o cheiro de carniça no ar!

     - Nós não podemos julgá-la sem saber "honey", afinal ela sempre foi muito atenciosa para conosco e praticamente dedicou a maior parte do seu tempo para nos cuidar, enquanto nossos pais só queriam saber de festas e viagens. Evidentemente que eles tinham toda razão mas...

     - É eu sei, mas o tempo faz com que as pessoas mudem. Ela teve muito tempo para pensar e estudar enquanto esteve viajando... e não se esqueça de que ela sempre foi mais inteligente e esperta do que eu, você e a Márcia juntas!! - Afirmou Lisiane.

     - Mas também muito mais digamos... espiritualizada do que nós três juntas!

     - Ela também não é uma santa! Pois bem, mudando de "paramécio para Tiranossauro Rex", eu vou aproveitar que você está aqui e comunicar um resultado bem superficial do levantamento que estou fazendo sobre as causas da nossa provável banca rota. Descobri que além do acidente com a nossa família, devido aos vários planos econômicos governamentais, existe uma quantidade indizível de produtos de toda sorte encalhados nos nossos depósitos. O nosso almoxarife, o senhor Ri...

     - O galantezinho?!

     - ...não me interrompa... como eu dizia, o almoxarife do qual o nome agora não importa ve...

     - Você está vermelha, priminha!!

     - Escute aqui, você quer saber do assunto ou eu vou ter que te expulsar daqui?!

     - Mas dolly, é evidente que eu estou interessadíssima em tudo o que você tem para me dizer, foi só uma observação!

     - Muito indiscreta, por sinal. Como eu estava falando, aquele funcionário me entregou hoje esses relatórios e dando uma olhada por cima eu vi que muitos dos produtos que temos encalhados são peças de vestuário em geral. Como você mesma diz, estão todas por demais demodées, e olhando para você que é a própria personificação da fútil moda, eu pensei aqui com meus botões que se...

     - Nós déssemos uma reformadazinha em todos esses produtos e em seguida os lançássemos como moda primavera verão através de uma monstruosa campanha publicitária, poderíamos vendê-los mesmo que além do preço médio estipulado e ainda dizermos que estamos oferecendo um desconto de uns trinta por cento... seria isso, petite fleur?

     - Agora você falou como uma Villas Bhoas e não como uma anta!!

     - Mas para isso precisaremos urgentemente de um estilista que possa realizar estas mudanças com bastante criatividade, para que ninguém desconfie que estamos liquidando um encalhe! - Aventou Claudia.

     - Além do mais vamos precisar de muita competência do nosso setor publicitário...

     - Pode deixar, é a queridinha da Carolina que está nas rédeas. Além dela, será fundamental uma análise "radiográfica" pelo Winston, responsável pelo departamento de marketing, que aliás, suspiros, pois é um monumento! - Disse Claudia, analisando também o relatório apresentado por Ricardo.

     - Mas ninguém pode deixar que essa idéia vaze para os ouvidos da Roselene, ou então, mesmo que nós façamos, com certeza quem levará o mérito será ela!

     - Pode deixar que eu dou uma palavrinha e um trato no Selmo do Recursos Humanos, ele é bastante persuasivo e influente para com os outros funcionários!

     - Só nos falta agora um estilista...

     - Que tal eu?!

     - Não estou disposta a transformar os nossos ateliers em fontes reprodutoras de devassidão.

     - Credo "saguzinho", também não é assim. Eu até que sei ser séria, pelo menos não fico me deitando no chão com os outros funcionários da loja!

     - Serpente.

 

     Já bem antes das dezesseis horas havia uma incessante movimentação no grandioso e imponente salão de convenções do Villas Bhoas Excelcior Hotel. Mais cadeiras estavam sendo colocadas, enquanto os garçons preparavam as mesas onde seria servido o cocktail logo mais ao fundo. As câmeras filmadoras estavam também sendo estrategicamente dispostas sobre tripés tão bem como as fotográficas. Havia dentre a multidão que aguardava, muitos representantes da imprensa, escrita, falada e televisionada. O grande salão não demorou para começar a ter suas cadeiras ocupadas. Pessoas e mais pessoas fluíam para o seu interior e, isso foi acontecendo até que todos os lugares estivessem já ocupados e houvessem ainda muitas pessoas que se postassem em pé e outras na entrada do salão, tal qual Lisiane, que preferiu ver e ouvir tudo de longe, sem ser percebida.

     Às dezesseis horas pontualmente, Roselene adentrou ao salão sendo ladeada por suas tias. Ela usava um justo e curto vestido negro e tinha seus ombros cobertos por uma espécie de fina capa confeccionada em renda negra com o formato das asas de um morcego. Seus cabelos louríssimos se derramavam soltos por sobre seus ombros. Houve um certo impacto diante dos funcionários que não a conheciam. Roselene estava sorridente e cumprimentava a todos. Não obstante sua beleza e porte, ela se fazia sempre humilde, valorizando mais a pessoa do seu próximo do que a ela própria.

     Uma vez atingindo a mesa no centro do palco, ela primeiramente agradeceu emocionada às suas tias, seus primos e irmãos e em seguida saudou calorosamente todos os ocupantes daquele salão lhes dando as boas vindas e proferindo palavras carinhosas de elogio e incentivo. Em seguida chamou a atenção de todos e nominou todos os chefes e responsáveis de todos os departamentos, logo após fez o mesmo com os membros da sua família. Depois disso, Hella e Débora tomaram um lugar na platéia e Roselene deixou a mesa e foi até o púlpito. Estando todas as formalidades que antecedem uma palestra cumpridas, ela adiantou-se e foi direto ao assunto:

 

- Caras senhoras, caros senhores... como todos sabemos, nossos empreendimentos logísticos encontram-se em situação periclitante e todos sabemos que para o nosso próprio bem devemos zelar pela sua força e estabilidade. Bem sei que isto não tem sido fácil ultimamente, mas nós devemos tentar todas as maneiras e táticas possíveis, para tanto estou aqui para expor as minhas opiniões acerca da observação e julgamento dos senhores. Quero novamente ressaltar que não sou uma expert em marketing, portanto peço desde já as suas desculpas para as minhas eventuais falhas e peço também encarecidamente, uma crítica positiva ou negativa a respeito do tema por mim abordado, pois sejam elas quais forem, desde que honestas, são sempre construtivas. - Roselene foi aplaudida. - Muito obrigada, agora vou-lhes explanar as nove metas primordiais que estabeleci, para que se aceitas, sejam concomitantemente engendradas em prol da ascensão no "nosso" patrimônio, pois se vocês trabalham conosco, isso também é de vocês. Somos uma sociedade privada e portanto vocês são todos sócios, pois se lucrarmos ou ganharmos, vocês lucram também!

     O que... - Ela foi novamente interrompida pelos aplausos. - Obrigada, mas o que eu tenho a propor é muito simples. Em primeiro lugar uma nova política de franchising, ou seja, vamos a princípio evitar a inauguração de novas filiais, pois não temos capital disponível para isso, além do mais já não estamos mais dando conta em administrar tudo o que temos, portanto fica descartada a criação de uma nova filial, pois é melhor sermos reconhecidos pela qualidade do que pela quantidade. Ao contrário disso, todos bem sabemos que temos um nome poderoso no mundo dos negócios e por isso não precisamos investir na instalação de novas "lojas âncoras" ou de novos pontos comerciais e nem mais na manutenção destes que já temos. A proposta é franquear o nosso nome para a criação de novos estabelecimentos e também franquear muitos que já possuímos ao redor do mundo e no Brasil. Estes últimos têm prioridades e assim sendo os franqueadores terão mais facilidades, pois eles já têm ou terão o ponto e a freguesia.

     Basta que cedamos os nossos produtos que se estendem numa vasta escala de quantidade e o principal, a nossa logomarca. E então por que também não franquearmos "filiais âncoras" ou as próprias "filiais carros-chefes" ligadas diretamente a nossa matriz. Esta é uma idéia que começou a ser posta em prática pelas minhas tias Hella e Débora no final da década de oitenta, pois elas descobriram que as franquias eram mais rentáveis que as próprias "lojas âncoras". - Alguém na platéia ergueu a mão e Roselene legou-lhe a palavra:

     - Mas isso não importa em assumirmos riscos? - Perguntou Rafael, do setor financeiro.

     - Boa pergunta senhor. Uma empresa é um conjunto de pessoas que harmonizam capital e trabalho, na procura de lucros, a serviço próprio e da comunidade em que está inserida. Uma empresa como a nossa, assim como uma franquia, é um investimento. Tem de ser lucrativo, mas é um risco. E a decisão de correr o risco é nossa!

     - Explique-nos melhor essa sua idéia de franchising. - Solicitou Winston, do setor de marketing.

     - Com todo prazer. O conceito de franchising que eu adoto é o chamado Business Format Franchising, ou seja, franquia de negócio formatado. Formatar um negócio é definir e identificar as referências e os padrões técnicos, comerciais, administrativos e visuais, que o concretizam, para possibilitar a sua reprodução por terceiros. Já o conceito clássico de franchising, adotado pela maioria é dele ser um sistema de comercialização de produtos e/ou serviços e/ou tecnologias. É baseado em estreita e contínua colaboração entre empresas jurídicas e financeiramente distintas e independentes, através da qual o franqueador concede o direito e impõe a obrigação aos seus franqueados de explorarem uma empresa de acordo com o seu conceito, no nosso caso uma Sociedade Comercial. O direito assim concedido tem por objetivo autorizar e obrigar o franqueado, mediante uma contraprestação financeira direta ou indireta, a utilizar as marcas de serviços, logotipos e insígnias, ou know-how, direitos de propriedade industrial e intelectual e outros direitos autorais, apoiados por uma prestação contínua de assistência comercial e/ou técnica, no âmbito e durante a vigência de um contrato de franquia escrito e celebrado entre as partes para este fim.

     - Em separando o franchising como instituição e a franquia como o contrato propriamente dito, poderia a senhorita, se houver cabimento na minha pergunta, diferenciar o termo "franquia" de tudo o que já foi dito à respeito de franchising? - Perguntou Karina, do setor comercial.

     - Sua pergunta é bastante intrigante e de relevante interesse, pois geralmente há uma "fusão" entre os dois termos. Da minha parte tentarei explicar para a senhorita, a franquia que entendo como um sistema através do qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso da marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e eventualmente , também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta sem que no entanto fique caracterizado o vínculo empregatício. Mais alguma pergunta?

     - Por favor, uma melhor explanação sobre o contrato de franquia. - Desta vez foi Ricardo, do almoxarifado, importação e exportação.

     - Mais do que própria a sua pergunta meu senhor, uma vez que o contrato de franquia é o instrumento através do qual o franqueador que é o titular de uma marca ou patente de indústria, comércio ou serviço e, vale salientar que os empreendimentos Villas Bhoas são titulares dos três... - Novos aplausos. - Novamente obrigada... continuando, quando o franqueador é titular de alguns dos bens dantes mencionados, irá conceder o seu uso para outro empresário que naturalmente é o franqueado, tal como o direito de distribuição, prestando-lhe assistência técnica e administrativa para a viabilização de negócio ou sistema operacional detidos ou desenvolvidos pelo franqueador, mediante o pagamento de uma taxa inicial e/ou percentual sobre o volume dos negócios realizados pelo franqueado.

     - Neste caso, de o mais breve possível franquearmos nossas "filiais âncoras" já estabelecidas, qual seria nosso ganho a ponto de ao menos começarmos a saldar a nossa dívida? - Perguntou Ethan, responsável pelo setor de vendas.

     - Excelente pergunta e melhor ainda de ser respondida. Os nossos primeiros lucros virão de imediato devidos à taxa de filiação, também chamada de taxa inicial, que nada mais é que o primeiro pagamento, em geral de valor fixo, que o franqueado faz ao franqueador pela cessão de uso da marca e de seus símbolos visuais e para ter acesso total àquela franquia. Esta taxa é paga quando da assinatura do contrato. E como estamos prestes a sermos declarados judicialmente devedores insolventes, o que nos levará naturalmente à um novo pedido de concordata preventiva e logo em seguida à própria falência. Para que isso não venha acontecer, uma vez que somos mundialmente "renomados", podemos tranqüilamente exigir dos franqueados uma caução ou mesmo uma fiança. - Houve um burburinho na platéia. E logo o representante do setor de compras, Fabin, fez a sua pergunta:

     - Me desculpe a ignorância, mas estes serão os únicos ganhos que teremos?

     - Não há ignorância em sua pergunta, ela é natural... Além da taxa de filiação e da caução, nós mensalmente passaremos a receber os nossos "royalties" que os franqueados nos pagarão periodicamente pelo uso contínuo da nossa marca: "VB" ou "Villas Bhoas.", pelo apoio permanente que receberão e pelo acesso a melhorias. Em geral, é um percentual fixo sobre o faturamento mensal, ou seja, aquele pago no início do mês seguinte. Esclarecido? - Como não houve manifestações, Roselene continuou:

     - Além do que já mencionei, existem ainda, para esse tipo de contrato as taxas de publicidade e promoção as quais seriam um percentual sobre o faturamento. É com certeza uma das formas que nós temos de custear os nossos gastos com os investimentos em marketing e promoção, como anúncios, comerciais ou out-doors os quais beneficiam toda a franquia. Mais alguma pergunta a respeito de franchising? - Roselene esperou por alguns momentos e como não houve resposta, ela passou adiante:

     - Muito bem senhores, uma vez sem dúvidas sobre franchising, passaremos para a abordagem da "Qualidade Total"... já de antemão quero ressaltar que quando se fala em Qualidade Total, não está se pensando num projeto teórico e cheio de propostas ilusórias e demagogas e que provavelmente ficarão só no papel. Trata-se aqui de um plano bastante simples com princípios claros e que têm o objetivo definido de implantar níveis elevados de qualidade em todos os setores dos empreendimentos Villas Bhoas, e falo isso agora pois "a posteriori os senhores notarão que eu não só estou me referindo às nossas lojas, mas sim às outras empresas que levavam o nome Villas Bhoas e fecharam as suas portas há quase uma década.

     A qualidade total como muitos aqui já sabem está fundada em dez princípios que serão adotados pela empresa que estabeleceu como meta atingir essa qualidade e talvez, por que não, um "ISO-9002"? Essa meta, em resumo visa a satisfação total dos clientes e clientes satisfeitos dão preferência à empresa e não a trocam por outra e isso naturalmente gera lucros. Os clientes nada mais são que a razão da empresa existir. Portanto, tudo deve ser feito para satisfazer os seus interesses. O primeiro passo é conhecê-los. Saber identificar as suas necessidades e o que é preciso para resolver os seus problemas. Estar sempre atualizado sobre os fatores que garantem a sua satisfação. Por isso, quanto mais estreita for a relação com os clientes, melhor será o atendimento. Conquistando essa parceria com a clientela, todo o processo será facilitado e melhorado. Vale ainda salientar que tudo isso deve ser feito sempre no intuito de superar as expectativas, oferecendo-se serviços e vantagens que o cliente nem imaginava.

     Procurar sempre algo mais que vai encantá-lo, afinal a nossa habilidade para satisfazer o cliente, fará o nosso sucesso. Pois um cliente insatisfeito faz mais barulho do que mil clientes bem atendidos. E o cliente satisfeito é a melhor propaganda.

     Em segundo lugar nós temos o princípio da gerência participativa, pois eu estou certa de que o sentido da gestão participativa extrapola as fronteiras da empresa, através de uma interação constante com os clientes, os fornecedores e a comunidade. É por demais importante que o funcionário tenha liberdade para desempenhar o seu papel. Com interesse, inteligência e, sobretudo , com satisfação. As novas idéias devem ser estimuladas e a criatividade deve ser uma máxima dentro da empresa Dessa forma, se faz mister que todos os níveis da administração estejam abertos às críticas e às sugestões. Os donos, gerentes, chefes de departamento e responsáveis pelos demais setores devem informar, debater, motivar, orientar os funcionários e promover o trabalho em equipe. Participar muito mais do que simplesmente dar ordens. O acesso à informação precisa ser garantido para que as decisões sejam as mais democráticas possíveis.

     A idéia é atingir uma composição de forças, onde o "todo", trabalhando junto, tenha mais poder que a soma das partes isoladas. Temos de substituir os chefes por líderes, pois os primeiros se limitam a dar ordens e exigir obediência, já os outros estimulam o trabalho em equipe, motivando e orientando o funcionário. Até aqui, alguma pergunta?   - Os ouvintes permaneceram em silêncio, havia só alguns comentários paralelos admirando a capacidade de Roselene.

     - O próximo princípio é o do desenvolvimento humano que orienta todas as ações que buscam a evolução pessoal e profissional dos funcionários. Ensina, antes de tudo, a ser muito mais. Ser um indivíduo capaz de se autodirigir e se autocontrolar, em todas as situações. Na empresa e na vida. Aprender a aprender é outra prioridade. Buscar o desenvolvimento auto-sustentável.

     O aperfeiçoamento contínuo e a constante atualização dos conhecimentos. Ser, também, um educador. Saber transferir os conhecimentos adquiridos na organização, com uma compreensão ampla do sistema da empresa. O mais importante não é o patrimônio inerte, mas sim os funcionários que são a sua alma e caráter.

     Para chegar à qualidade total, mister se faz uma mudança cultural. Implantando novos valores, eliminando os conceitos ultrapassados. E isso só acontece quando os princípios passam a ser repetidos e reforçados, dia após dia. Por isso, as ações que levam à qualidade total devem ser planejadas. Os dirigentes precisam ter sempre atitudes coerentes com os princípios defendidos. E esse processo vai ter um grande sucesso na medida que conseguir a participação de todos. Fundamental é insistir nas idéias do programa. Outra coisa: pensar tudo em conjunto e a longo prazo, pois um futuro planejado traz resultados mais eficientes. Quando não sabemos que rumo tomar, todos os caminhos levam a lugar nenhum, mas se temos um objetivo é só acreditar que dá!

     Muito antes de pensar em mudanças, é importante entender muito bem o que vai ser mudado, uma vez que não dá para aperfeiçoar o que não se pode medir. Portanto, é fundamental criar indicadores de qualidade e produtividade que retratem a situação inicial. Em cima desses indicadores é que vamos trabalhar. Sempre com a intenção de melhorar os índices, buscando um aperfeiçoamento contínuo. É justamente aí que entra o poder da inovação, da ousadia, da flexibilidade de atuação e da criatividade. Devemos sempre lembrar que a união faz a força e que hoje será melhor do que ontem e que amanhã será melhor do que hoje! - Ela foi novamente aplaudida. Lisiane que estava lá atrás, começou a ficar nervosa com o conteúdo da palestra e se antecipou no cocktail, fazendo uso de alguns cálices de vinho intercalados com alguns doses de whisky para se acalmar. Enquanto isso Roselene continuava:

     - Falaremos agora sobre a "gerência de processos". As organizações Villas Bhoas podem ser vistas como um grande processo que promove o desenvolvimento de inúmeras outras micro ou macro empresas satélites, muitas das quais, ramificações dos nossos empreendimentos. Esse grande processo se divide em subprocessos menores até o nível de uma tarefa individual. Estes processos só se justificam se tiverem a finalidade de atender o cliente externo, direta ou indiretamente, ou seja, quem não estiver atendendo o cliente deve atender a quem está. Gerenciar processos nada mais é que planejar, executar, verificar se há erros e fazer correções, quando for necessário e acompanhar essas fases é função de cada um. O pior cego é aquele que não quer ver que tudo é possível quando se quer. As funções e as responsabilidades não devem permanecer concentradas somente nas mãos dos chefes e gerentes, elas devem ser delegadas para os demais funcionários, uma vez que estes se sentirão mais úteis e importantes para a empresa. Evidentemente que uma vez realizando estas funções com louvor e arcando com estas responsabilidades, o funcionário será devidamente recompensado. Delegar é autorizar o funcionário a representar a empresa. O chefe todo poderoso e polivalente não existe, ele naturalmente precisa do auxílio dos seus funcionários.

   Todos os funcionários, sem exceções devem saber divulgar os produtos e serviços da empresa. Portanto, a informação tem que circular em todos os níveis. A alta administração deve manter contato com o setor de execução, tudo com agilidade e precisão. A comunicação social tem que usar todos os meios disponíveis para levar a informação adiante. E tão importante quanto a rapidez na transmissão é o conteúdo claro e objetivo. A transparência da organização é uma conseqüência natural da disseminação de informações. A informação não é um privilégio, mas é o principal insulo de produção da empresa.

     A qualidade dos produtos e serviços de uma empresa é assegurada pela formalização de processos e pela administração das rotinas. Essas ações garantem que a qualidade dos produtos ou serviços não será alterada com a substituição de pessoas. A garantia de qualidade é muito importante, pois, no setor de serviços, os produtos são consumidos, quase sempre, no momento em que são produzidos. O importante não é só realizar o trabalho e deixar tudo pronto, mas é fundamental demonstrar que se pode produzir com qualidade.

     E como último princípio temos a não aceitação de erros. Este princípio pode parecer um tanto radical, pois errar é humano, mas fazendo certo da primeira vez, não será preciso corrigir. Esse é o princípio de quem não perde tempo, nem produz documentos incorretos. A prevenção contra erros e a visão de aperfeiçoamento fazem parte da filosofia da qualidade total. É claro que isso não significa intolerância ou punição para quem erra. Ao contrário, a empresa estimulará ações inovadoras e criativas, mesmo com um certo grau de risco. Inadmissível é o erro por omissão ou a persistência no erro, pois fazer bem feito é melhor que fazer duas vezes. Errar é humano, admitir o erro é divino e não aceitar erros é fazer certo da primeira vez! Alguma pergunta, senhores?

     - Eu tenho um comentário a fazer. - Disse Selmo, do departamento de recursos humanos, erguendo a mão.

     - Pois não. - Respondeu Roselene, solícita.

     - Não se pode negar que a qualidade total é realmente um ideal para uma empresa, embora me pareça um tanto utópica se a colocarmos na realidade empresarial brasileira. Nós somos uma sociedade selvagemente capitalista e idolatramos o lucro e esse tipo de novidade sempre o beneficia. O que se observa é que a busca de sempre maior produtividade com menores custos resulta no significado de produzir mais com menos mão de obra. O que eu quero ressaltar é que se tomarmos alguns aspectos da qualidade total, como a disseminação de informações, a delegação , a gerência participativa e o aperfeiçoamento contínuo, por exemplo, teremos como resultado funcionários que dantes estavam habilitados a exercer uma só função, mas devido aos princípios citados eles naturalmente tomarão conhecimento e tornar-se-ão aptos para exercer mais do que uma função, podendo assim substituir dois ou três funcionários em troca de um pequeno aumento nos seus salários. E evidentemente esses dois ou três funcionários tornar-se-ão supérfluos para a empresa, que naturalmente visando maiores lucros e querendo livrar-se dos encargos sociais, os demitirá. Além do mais, funcionários muito bem informados causam mais problemas para os patrões do que aqueles que são alheios a tudo e trabalham de boca fechada sempre concordando com as decisões tomadas. Neste caso, ao contrário do anterior, seria mais interessante para a empresa demitir o bem informado e manter o alienado. Será que para uma país como o Brasil a qualidade total não proporcionaria um desemprego em massa, ainda maior do que este que estamos presenciando, uma vez que empresas privadas como a nossa visam a maximização, ou seja, tirar o máximo de proveito, investindo o mínimo possível?

     - Muito inteligente a sua colocação meu senhor. Como já foi adiantado no início, os riscos sempre existem, mas se o nosso lema é de que não há uma boa empresa sem bons funcionários, claro que eles deverão estar mais capacitados para aumentar a qualidade, e isto acontecendo eles não só estarão aptos para exercerem mais funções tão bem como merecerão um considerável aumento nos seus salários.   Quanto às demissões, eu pensei bastante na situação da nossa empresa e creio que não teremos esse tipo de problema, uma vez que pretendo reativar as outras ramificações do nosso grupo que foram outrora fechadas, isto para evitar uma terceirização inútil e, evidentemente para isso nós precisamos de funcionários capacitados e eu não pretendo contratar muitos funcionários novos, mas sim mudar as funções de alguns. Creio que não há com que nos preocuparmos, pois se produzirmos qualidade e vendermos qualidade, seremos naturalmente os preferidos dos nossos clientes e isso nos garante lucros suficientes para pagarmos todos os nossos credores, salários atrasados e demais dívidas. Espero que tenha podido esclarecer a sua dúvida, senhor? - Questionou Roselene, voltando os olhos para Selmo, que moveu a cabeça positivamente.

     - Fico feliz. Bem, outro aspecto ao qual eu gostaria de salientar, que vem a ser o de número três no meu projeto, é que o empenho do funcionário em aperfeiçoar-se e inteirar-se cada vez mais da realidade da nossa empresa lhe é fundamental, pois além de bem qualificado e dentro dos conformes do paradigma da qualidade total, ele poderá realizar os seus afazeres na empresa com muito mais facilidade, qualidade e prazer. Portanto a dedicação é primordial pois, além de um aumento nos salários, o qual não será simbólico, o funcionário estará acumulando cotas. Por mim chamadas cotas de produção, pois eu creio ter elaborado um novo conceito de sociedade por quotas onde cada funcionários receberá tantas quotas quanto maior for a sua dedicação, empenho e trabalhos realizados em prol da empresa. Eu não estou falando de comissão, pois essas quotas transformar-se-ão em ações, podendo assim o funcionário participar diretamente dos lucros da empresa. Se lucrarmos mais ele ganhará mais, de acordo com o seu percentual de quotas transformadas em ações! O que os senhores acham? - Houve um burburinho que se generalizou pelo salão. Claudia e Márcia estavam indignadas:

     - Era justamente isso que tia Débora e tia Hella iriam fazer conosco... só que nós somos herdeiras legítimas! - Reclamou Márcia.

     - Se ela conseguir, nós só teremos que concorrer com um batalhão de funcionários e além... - Claudia foi interrompida por uma pergunta dirigida a Roselene, desta vez formulada por Carolina:

     - Este plano de transformar mão de obra em quotas e quotas em ações se estenderá a todos os funcionários, sem qualquer exceção?

     - Claro, desde os carregadores e faxineiras, até vocês, dos cargos de chefia. - Roselene foi aplaudida. - Muito bem, continuando para não nos delongarmos e tornarmos a reunião por demais extenuante, o próximo item a ser abordado é o que chamamos de "paradigma psicanalítico", pois para que uma empresa progrida baseada no progresso dos funcionários, estes últimos têm de gostar do que fazem, o prazer pela profissão é fundamental para que o trabalho saia bem feito, é aquele famoso "toque de amor", e a empresa deve contribuir para isto, deve tornar a jornada de trabalho o mais agradável e segura possível, oferecendo garantias de saúde e lazer para o funcionário. Assim sendo, a qualidade está intimamente ligada ao quotidiano, ao sujeito. Qualidade é o funcionário como tal e como ser humano, sentir-se bem aqui e agora, pois rompendo-se o afetivo, romper-se-á também o cognitivo, o emotivo, o racional e o volitivo. E isto está mais do que evidente, pois todo aquele que está feliz consigo mesmo, com a sua existência... com a sua vida afetiva e com tudo mais, produzirá muito mais e melhor do que aquele que leva a vida como um fardo, que a tem como uma cruz para carregar. O que tentamos explicar, é que a demasiada racionalidade e o demasiado materialismo têm levado as pessoas à irracionalidade, entorpecendo e alienando estas pessoas. Para tanto contaremos também com um auxílio psicológico para todos os funcionários, no intuito de atingir pelo menos um meio termo, uma síntese, uma valorização da individualidade de cada qual, pois ninguém é igual a ninguém e cada ser tem de ser tratado de forma particular, pois ele é único. Há de se valorizar e por que não, o lado prazeroso da vida, do bom, do belo e até mesmo do irracional, do instintivo. Preparar um funcionário não é só ensiná-lo o trabalho a ser feito e as técnicas a serem utilizadas, mas é ajudá-lo a aproveitar a vida a partir do aqui e do agora. O arcabouço de uma profissão não abrange somente o intelectivo, o produtivo, o trabalho, o raciocínio lógico... mas também a fórmula para se descobrir a beleza e o mistério de tudo aquilo que se faz. A música, o silêncio, a convivência, o espetáculo, o símbolo, o rito, o inefável e o indizível também fazem parte deste arcabouço... mens sana, corpore sano. Se o espírito estiver "saudável", em paz e feliz, o corpo material também o estará. Portanto, o tratamento ao funcionário deve ser apurado e primoroso. O funcionário deve sempre ser ouvido, entendido e compreendido com esmero. - Novos aplausos.

     - E como a senhorita pretende por tudo isso em prática? - Perguntou a secretária Violeta Urogalo:

     - Me chame de "você"... basta que estabeleçamos algumas "pausas remuneradas" durante a jornada de trabalho, voltadas única e exclusivamente para o desenvolvimento e descanso mental e corporal do funcionário, que nesse meio tempo poderá fazer o que mais gosta e ter também algum tempo de atividade de relaxamento orientada por um especialista. Mais perguntas? - Roselene esperou por um momento mas todos permaneceram calados. - Muito bem, como ninguém mais se manifestou, passo para o tópico seguinte, que é algo que se encontra bastante em voga hodiernamente, ou seja, o chamado paradigma da terceirização, o qual costuma distinguir atividades fim e atividades meio. Qual seria a atividade fim de uma empresa como a nossa? A resposta para esta questão depende do "marco referencial" dela, da nossa empresa. Esse marco referencial, nada mais é que a nossa opção de trabalho e nele estão exarados os tipos de pessoas humanas, o público alvo e as camadas sociais que queremos atingir e influenciar com os nossos serviços e produtos. Produzir e comercializar visando o interregno econômico e o poder aquisitivo de todas as classes, pois não podemos monopolizar como nosso público alvo esta ou aquela classe social, temos de atingir a todas. Este é o nosso fim. Tudo mais que nos servirá de suporte e de instrumento para operacionalizar este marco referencial é a atividade "meio". Pode parecer até meio radical, mas devemos usufruir de todo e qualquer meio lícito para que atinjamos um único fim, que é o crescimento da empresa e o nosso crescimento também, pois a empresa ganhando, todos ganham. Mesmo assim, devido à situação corremos o risco de sermos devorados pelo urgente e com certeza não teremos tempo para agir diante do importante. Isso é claro, não pode acontecer!

     A terceirização significa uma busca de reciprocidade e complementaridade através de contratos com outras empresas, como as de segurança, limpeza, catering, etc... Não somos a empresa fac totum, ou seja, aquela que tudo faz, portanto precisamos da "instrumentalidade" de outras empresas que nos ajudem a atingir o objetivo. Mesmo assim, não é por isso que devemos terceirizar todos os serviços, já que muitos serviços necessários, nós mesmos podemos nos fornecer. Se reativarmos nossas empresas fechadas como a tecelagem, a metalúrgica, a olaria, a madeireira, a companhia de importação e exportação e até mesmo as nossas fazendas de gado, de culturas e de hortifrutigranjeiros, nós mesmos poderemos servir de meios ou instrumentos para as nossas empresas, fornecendo para nós mesmos boa parte da matéria prima de que necessitamos. Tomemos como exemplo a nossa rede de supermercados "Villas Bhoas Hiper", que só nos tem trazido prejuízos ultimamente. Com a reativação das fazendas, as carnes, as frutas, as hortaliças, os legumes e outros víveres como arroz, feijão, milho soja, poderão ser produzidos por nós e para nós. Poderemos ter as nossas próprias marcas dos mais diversos cereais, de farinha de trigo, de milho e de mandioca. Através da cultura de uvas produziremos vinhos e vinagres. Teremos a logomarca Villas Bhoas garantindo a qualidade dos ovos, do algodão, dos fiambres e de tudo mais que possamos produzir... assim sendo, não haveria meios de detectar prejuízos nos nossos supermercados!

     O mesmo evidentemente aconteceria com as tecelagens, que produziriam as roupas que vendemos. Poderíamos até criar a nossa própria griffe. Os móveis seriam manufaturados com a nossa madeira e poderíamos vender madeira no atacado e no varejo. Móveis, lâminas, estruturas e tudo mais com o que trabalhamos em metal, poderia ser fornecido pelas nossas próprias metalúrgicas. Parte do material de construção que vendemos e que utilizamos para novas obras, seriam produzidos pelas nossas próprias olarias. A importação e exportação praticamente estariam isentas de tantos impostos e taxas se reativássemos a "VB Export & Import". Até mesmo o catering dos funcionários poderia ser providenciado através dos produtos das nossas fazendas e os seus uniformes confeccionados nas nossas tecelagens. Nós poderíamos construir novas instalações praticamente sozinhos, pois temos madeira, ferro e tijolos!! - Exclamou Roselene. - Desculpem-me, mas acho que me empolguei um pouco... pois bem senhores, é justamente para esse fim que precisamos da qualidade total, pois somos praticamente auto-suficientes!

     - Mas todo esse processo exigiria tempo demais para ser posto em prática, não? - Questionou Rafael, do financeiro.

     - Como eu já disse duas vezes, eu repito pela terceira. Toda e qualquer decisão no mundo empresarial envolve um certo risco e, neste caso o risco seria um empréstimo bancário suficiente para colocar em atividade todas as nossas subsidiárias. Garanto-lhe, meu senhor, que em menos de um ano esse empréstimo e todas as nossas demais dívidas estariam saldados... e estaríamos também já com um considerável montante de capital de giro e algum em dívidas ativas!

     - Se isso der certo... será o fim da crise! - Exclamou Rafael em voz alta. Ele era tido por todos como um dos mais sérios e compenetrados funcionários da empresa. Assim sendo, ao ver a sua confiança em Roselene, ninguém mais perguntou nada.

     No meio do salão, Claudia e Márcia não se conformavam:

     - Essa miserável está propondo a prática justamente do que nós havíamos planejado... você se lembra daquele dia em que falamos sobre qualidade total, terceirização e paradigma psicanalítico para tia Hella e tia Débora? - Questionou Claudia.

     - Claro que me lembro... será que ela tinha algum informante que nos ouviu e passou as nossas idéias para ela?

     - Poderia haver um microfone na sala colocado por um espião...

     - Urogalo poderia ter ouvido e depois contado tudo em troca de dinheiro...

     - Ou então tia Débora e tia Hella simplesmente contaram os nossos planos para ela, achando que trabalharíamos em conjunto! E ela simplesmente deu uma aperfeiçoada em tudo e está aí, "dando uma de boa" para a "vassalagem".

     - Essa hipótese é a mais plausível... precisamos falar com a Lisiane... onde diabos ela se meteu?

     - Para falar a verdade, eu não a vi durante toda a palestra... e... eu estou cansada, com fome, com sede, carente, excitada e preciso de um novo par de meias, pois acabei de desfiar o meu com o salto do meu sapato... também roí a unha do meu polegar esquerdo e agora preciso de uma lixa... eu estou sim...

     - Eu acho que um homem resolveria tudo, não?

     - Com certeza. Escute, ela está dando continuidade! - Alertou Márcia.

     - Muito bem! - Continuou Roselene - Onde, qualidade de produção e vendas significa apropriar-se da moderna tecnologia para tornar tudo mais rápido e mais eficiente, podemos seguramente afirmar que está se fazendo uso do paradigma tecnológico. Quando falamos em paradigma, empresarialmente nos referimos a um padrão, um modelo... Não podemos negar que a tecnologia praticamente invadiu o nosso mundo e, quem detém tecnologia de ponta produz tudo o que há de vanguarda. A presença dessa nova tecnologia é uma necessidade numa empresa, mas como meio ou instrumento, pois uma empresa voltada ao humanitarismo não pode renunciar a sua missão de aperfeiçoar ou despertar a consciência crítica dos funcionários e não ser somente um centro de treinamento para o uso de tecnologias, já que o que delas seria sem a presença do ser humano. Devemos fazer uso da mais moderna tecnologia, mas reduzir a mão de obra ao paradigma tecnológico é retroceder no tempo, atrelando a empresa somente ao setor produtivo e renunciar a mantença, a formação a atenção integral ao funcionário.

     O que eu estou querendo dizer com tudo isso, é que por mais que usemos os mais modernos computadores e robôs, o ser humano é insubstituível, portanto aqui, nas empresas Villas Bhoas, nunca acontecerá a substituição de um funcionário por uma máquina, como vêm acontecendo em países detentores de alta tecnologia, como é o caso do Japão. Em suma, usaremos a mais moderna tecnologia, mas esta jamais substituirá um funcionário! - A última frase de Roselene evitou a formulação de perguntas, pois transmitiu todo o contexto.

     - Volto a salientar que para que tudo isso venha a produzir resultados, precisamos das peças fundamentais, ou seja, nós mesmos. A formação do operário, do trabalhador e de qualquer funcionário, qualquer que seja o grau, ou de qualquer pessoa, depende exclusivamente da estrutura dos seus formadores, sejam eles, a família, a escola, a sociedade, a religião e a política. Instituições estas que podem causar conflitos psicológicos e nefandos em qualquer pessoa. O profissional completo deve primeiramente ter uma visão ampla do lar donde procede e entender a maneira pela qual foi ou está sendo educado por seus genitores ou tutores, situando-os no tempo e no espaço e analisando os "porquês" de ter sido educado desse ou daquele modo, os compreendendo e procurando pensar como ele teria agido em determinadas situações, como pai, mãe ou tutor. O fato de o sujeito não guardar nada de negativo em relação à família já é um grande passo para torná-lo mais "concreto" dentro da sociedade.

     Em segundo lugar, o bom profissional deverá também encontrar uma forma pacífica de viver com a sua sociedade, não se submetendo a ela, mas sim adaptando-se, sabendo separar com ponderação, cautela e sobriedade aquilo que lhe é ou não conveniente. Aquilo que lhe é bom ou mau, belo e feio, moral ou imoral. Se faz também mister que ele conheça todos esses pólos, pois deve-se experimentar do bom e do ruim para poder discerni-los. Quem saberá o que é a alegria sem ter tido ao menos um momento de tristeza? Ninguém achará nada belo sem antes ter estabelecido um paradigma do que é feio. O ideal não seria atribuir conceitos prévios, mas sim tomar os pólos, as teses e as antíteses e de ambas extrair uma síntese, postando-se flexível para declinar para um ou outro lado quando conveniente e, como caule verde, após liberado, voltando à sua posição central... "arracional", "apolítica" e "amoral"...

     Se o profissional, quando novato, passa a tomar para si conceitos preestabelecidos, acabará por formar no seu âmago uma personalidade ambígua, ou seja, dois seres pensantes dentro de um mesmo corpo, que seriam: ele na sua natureza própria e o "outro" formado pelo pragmatismo da sociedade.

     Isto pode acontecer na escola, onde conceitos e mais conceitos, verdadeiros ou falsos são regurgitados pelos professores muitas vezes clássicos, outras técnico-mecanicistas, somente repetindo a mesma coisa que lhes foi ensinada décadas antes. Infelizmente é neste estágio que a personalidade, em sua plena formação, é arrebatada por um furacão de dogmas, conceitos e pragmatismos que tolhem a real capacidade de pensar do profissional ou funcionário. A concorrência é sofista, pois cada representante ou dirigente, disfarçado de parceiro tem a sua própria maneira de pensar e agir. Atribua-se ainda a esta, os conflitos interiores, os complexos, os recalques, os medos, a insegurança e as formas-pensamento inerentes a qualquer ser humano. Ou seja, se mantivermos o controle, não há nada do que temer... A escola é dogmática e pragmática, pois ensina através de axiomas e máximas incontestáveis... Eis o retrato fiel da "roleta-russa": ou o educando em determinado momento desperta o seu senso crítico e dialético, ou será mais um andróide ou clone moldado pela sociedade, a qual tem a escola como sua ferramenta de manipulação. A não ser que por um capricho do destino apareça um educador que faça com que o educando submisso, desperte para o seu verdadeiro potencial. O educando e futuro profissional desperto absorverá para si somente aquilo que lhe está de pleno acordo e contestará aquilo com que não concorda, procurando encontrar um equilíbrio ou síntese entre o seu modo de pensar ou tese e, o modo de pensar do educador, antítese. Assim sendo, ele se sentirá livre para opinar e construir a sua própria estrutura educacional e profissional, que é a ideal, pois concilia o seu ego com a sociedade.

     Não querendo assumir uma postura céptica, eu gostaria de apenas alertar quanto aos cultos religiosos de qualquer espécie, que sempre colocam o ser humano numa posição de inferioridade e de eterno "débito" para com o "Criador". É como uma espécie de "lavagem mental" que lhe é feita, superficialmente atribuindo a este sujeito, por vezes despreparado, culpas que nem ele imaginava ter, tal como, por exemplo, o pecado original, os carmas e resgates de vidas pretéritas, a possessão por entes malignos e a presença destes nos mais diversos modos de comportamento, atribuindo as atitudes deste sujeito a um "espirito"... e não ao seu próprio animismo... essa situação além de absurda chega a ser até certo ponto cômoda... Estes fatos criam então no sujeito, as chamadas "formas-pensamento", que o poluem de medos e inseguranças, inibindo por completo a sua real essência, quando não o conduzem, como acontece com os menos informados, ao fanatismo. Assim sendo, qualquer acontecimento desagradável ou desfavorável, é tomado como "castigo" ou "aviso", e o próprio temor constante nas atitudes mentais pode ainda "cristalizar" acontecimentos piores pois, como prega uma das máximas bíblicas "tudo que temes, te ocorrerá".

     De modo algum toma-se aqui uma posição contrária às religiões mas, que elas deveriam ser melhor interpretadas e que o sujeito da educação religiosa pudesse selecionar aquilo que lhe é válido ou não. É imprescindível que se tenha fé num ser superior, no Absoluto ou, no amor no seu mais puro sentido, que é a melhor definição que podemos dar força criadora, ou mesmo ao cosmo, que nada mais é que um sinônimo de paz e organização e isto tudo naturalmente deriva de um sentimento de amor que o gera.

     O que eu estou combatendo, é a chamada "fé cega" e dogmática. Dogmas tomados por verdades mas sem se saber o por quê e a sua razão de ser. Para que a vida não perca o seu sentido se faz mister que se tenha fé, mas uma fé racionalizada e que explique os porquês de todas as coisas e, ou por que se deve agir assim ou daquela maneira. Todo aquele que tem fé, deve se dar o direito de questioná-la, para que nela possa construir um alicerce sólido, sem medos e sem dúvidas. Além de tudo, ao invés de reduzir o ser humano a uma simples conseqüência da criação, dever-se-ia mostrar a ele o outro lado, ou seja, que ele é peça fundamental no "quebra-cabeça" cósmico, que ele tem uma função específica e por isso é muito importante. Seria esta uma visão mais ampla e de maior altitude, do ser humano, para nós, o profissional bem sucedido.

     Superados estes patamares intrínsecos e extrínsecos e, com eles convivendo em boa paz, estaria já o protótipo transformado em homem, mas há ainda um último obstáculo: a sociedade com a qual ele já se conciliara. Ela transforma-se agora numa sociedade politicamente organizada, ou seja, num Estado, que é regido por normas que formam a sua política, ou ciência de se bem governar que, atualmente está totalmente distorcida pelas múltiplas ideologias e correntes. Assim a política como ciência ou arte, adquire o caráter de ideologia pendida à determinadas facções da sociedade. Estando este "sujeito profissional" inserido na última, ele naturalmente será vitimado pela "politicagem". Temos como bom exemplo a realidade do nosso país.

     A política que é a arte ou ciência de se bem governar um povo, deveria, como prega o seu conceito, estabelecer normas legislativas extrínsecas, que tornassem as noções intrínsecas do sujeito, ou seja, a própria ética, em perfectível, mas não é o que acontece pois, a verdadeira política advinda da "paidéia" grega não existe mais, mas sim somente a politicagem que desvirtua o sentido do "ser" na sua existência, inclinando-o para as ambições econômicas, à corrupção e principalmente ao desrespeito em relação ao seu semelhante, ao meio em que vive e, a si próprio. - Roselene foi novamente aplaudida. A platéia se fez empolgar com aquele discurso.

Lisiane, que já estava ligeiramente "alta", emitiu donde se postava uma vaia. Todos se voltaram para trás:

 

     - O que foi? Por acaso eu estou emporcalhada? - Questionou ela em voz alta, a medida em que cheirava as suas roupas. - É melhor vocês voltarem as suas atenções para a "caranguejeira" que continua falando... Será que ninguém vai desligar essa mulher, meu Deus do céu? É só tirar a pilha que pára!! - Gritou Lisiane, do fundo do salão. Débora se levantou e dirigiu-se até a sobrinha, no intuito de contê-la. Enquanto Roselene ainda falava:

     - É claro que o funcionário ou empresário perfeito não existe, se assim tivesse de ser, ele deveria atender aos quatro princípios básicos estabelecidos pelo filósofo inglês Francis Bacon, ou seja, anular os seus idola specus, ou seja, tudo aquilo que vem do interior, do âmago, tal qual a intuição. São os "ídolos da caverna". Em seguida anular também os idola tribus, ou seja, todas as opiniões, influências e interferências provenientes da sociedade, estes são os "ídolos da sociedade". Posteriormente não se deixar levar pelos idola fori e idola teatri, ou sejam, os "ídolos da retórica e da dramatização", o que significa ser sempre objetivo e sucinto em relação às suas atividades e em hipótese alguma se deixar levar pela emoção. Todos sabemos que o ser humano é sensível por natureza e que mesmo no seu trabalho, deve continuar sendo, acima de tudo, "humano". Por fim...

     - Que a "extraterrestre de Fátima" seja louvada!! - Gritou Lisiane lá de trás, sendo logo dali retirada por Débora. Roselene, após a pausa e o susto, deu continuidade:

   - Para finalizar e já considerando todos vocês e todos os demais funcionários como sócios, eu só gostaria de elencar os dez mandamentos do profissional, funcionário ou empresário de sucesso. O primeiro deles foi o mais polêmico durante a nossa palestra, ou seja, assumir riscos, pois é esta a qualidade mais importante do verdadeiro "empresário", que por definição, tem que assumir riscos se quiser crescer. Seu sucesso depende da sua capacidade de conviver com o risco e sobreviver a ele. Os riscos fazem parte de qualquer atividade humana e se faz mister aprender administrá-los.

     O bom empresário, seja ele quem for ou a classe que ocupe, está sempre atento e é capaz de perceber, no momento certo, as oportunidades de negócio que o mercado oferece. Estejamos constantemente alertas para identificar a variada gama de empreendimentos que se apresenta a todo o momento e em qualquer lugar. Prestemos mais atenção naquilo que os outros não viram e sobre "quem" podemos atuar de forma mais eficaz, rápida e lucrativa! Nunca nos esqueçamos de que a realidade está sempre oferecendo uma oportunidade ao verdadeiro "empreendedor"!

     O conhecimento total do ramo em que o profissional atua é fator primordial para o seu sucesso. Se ele tem grande experiência neste ou naquele setor, ótimo, se não tem, é preciso aprender. Deixar o orgulho de lado e conversar com os companheiros e pedir informações. Ler livros e revistas especializadas, freqüentar cursos em centros de tecnologia e etc...

     Um profissional de verdade tem senso de organização, isto é, capacidade de utilizar os recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis de forma lógica e racional. Quem só consegue "empurrar com a barriga" a sua profissão, em meio a uma permanente confusão de papéis, materiais e compromissos, não sabendo o que resolver primeiro, acaba complicando as coisas. A organização é fundamental, pois facilita o trabalho e economiza tempo e dinheiro.

     Todo bom profissional deve ter a liberdade e ser capaz de tomar decisões corretas no momento exato. Esta qualidade requer muita vontade de vencer obstáculos, iniciativa para agir objetivamente e, sobretudo, confiança em si mesmo. Dominar todo o processo de tomada de decisões, ou seja,        estar bem informado, analisar friamente as situações e avaliar as alternativas para poder escolher a solução mais adequada.

     O funcionário ou profissional bem-sucedido destaca-se dos demais e torna-se antes de mais nada, um líder. Portanto deve saber como definir objetivos, orientar a realização de tarefas, combinar métodos e procedimentos práticos, incentivar os companheiros ao rumo das metas definidas e, produzir condições de relacionamento equilibrado entre a equipe de trabalho em torno da meta a ser atingida. Além disso, o bom profissional deve ter sensibilidade para poder tratar com os diferentes tipos de pessoas ou clientes com os quais ele convive dia-a-dia. Dentro e fora da empresa, há que ter grande habilidade para lidar com clientes, fornecedores e outros profissionais da sua área ou não, mantendo o controle e tratando os problemas com diplomacia. Mas atenção! O bom profissional precisa ser ético, respeitando sua dignidade e seus princípios, o que garante a sua credibilidade.

     O funcionário de sucesso deve se dedicar à empresa na qual trabalha, dispensando todo o seu talento e transformando simples idéias em negócios efetivos. Assim sendo, mister se faz, certa dose de inconformismo diante das atividades rotineiras. O bom profissional nunca se acomoda, mantém-se sempre dinâmico e jamais permite que a “chama gladiadora” que no seu âmago existe, se enfraqueça ou se extinga.

     Diversos funcionários bem-sucedidos, trocaram os seus cômodos cargos pelo risco de assumir uma nova função de mais responsabilidade. Aprenderam, tornaram-se auto-suficientes e bons líderes sem precisar de qualquer tutela ou paternalismo por parte dos patrões. O profissional precisa soltar as amarras e, sozinho determinar seus próprios passos, desvendar os seus próprios horizontes, abrindo picadas na sua selva mental, decidindo assim os rumos da sua vida. Enfim, independente da chefia, ser o seu próprio patrão, como se estivesse trabalhando em regime de parceria com o seu verdadeiro patrão.

     O fato de tudo dar certo é uma simples questão mental, pensamento positivo e a mantença do otimismo. Pensar sempre positivo, ao invés de imaginar e temer possíveis fracassos. O profissional deve enxergar, principalmente os sucessos, sabendo usar do bom senso para perceber a diferença entre uma ameaça real e uma situação contornável. O profissional legítimo e dedicado nunca deixa de ter esperanças de ver seus projetos em prol da empresa realizados, justamente porque é bem informado e conhece como ninguém o chão onde pisa e confia em seu desempenho pessoal e profissional.

     O que muita gente acredita ser um sexto sentido, típico das pessoas bem sucedidas nos negócios, é, na verdade, a combinação de todas as qualidades até então por mim abordadas. Eu creio que cada qual de vocês, assim como todos os outros funcionários, podem se sentir um pouco "donos" e responsáveis pelos empreendimentos Villas Bhoas, assim sendo, vocês não deixam de ser empresários e desta forma, devem ter o tino empresarial e sempre saberem abrir as suas próprias veredas rumo ao sucesso e à materialização de todos os seus sonhos... Acho que isto resume tudo o que eu queria dizer e, por favor, desculpem-me por ter-lhes tomado tanto tempo e paciência. Para compensar todo esse desgaste, há um cocktail às suas disposições no fundo do salão. Cocktail este, que eu compartilharei com vocês com imenso prazer, afinal dentro de uma empresa, somos praticamente e reciprocamente "irmãos"! - Disse Roselene, deixando o estrado e se misturando alegremente com os componentes daquela platéia de funcionários.

     Ela parecia a mais bela e jovem mãe que todos poderiam ter. A grande protetora dos funcionários. Roselene transformou-se na mais simples das pessoas para poder dar atenção a quem solicitasse.

     Claudia e Márcia, saíram resmungando:

     - "Urutu", ela simplesmente tirou da minha boca todos os argumentos que eu ti... acho que... chuif... vou chorar... - Choramingou Márcia.

     - Ora meu bem, não é tão grave assim... Que tal uma vitamina?! - Perguntou Claudia.

     - Vitamina???!!!

     - É, ela vai repor todas as energias gastas durante a reunião. Vai combater o seu stress e o principal, ela não engorda, mas ao contrário, inibe o apetite! - Disse Claudia, oferecendo para Márcia um comprimido, do tamanho de uma moeda de vinte e cinco centavos.

     - Ai, por que você não dá isso p'ro diabo?

     - Credo "avelãzinha", eu só queria ajudar!

     Lisiane por sua vez, após uns bons cafés pretos ingeridos a força, a mando de Débora, já estava se recuperando e não mais havia perigo de que ela desse algum escândalo. Enquanto isso, Roselene se fazia o centro das atenções em meio a todos os convidados que estavam simplesmente encantados com a sua pessoa e já cogitavam uma conversa com Débora e Hella, para torná-la a nova presidente, devido a sua inteligência e ousadia na própria vida e nos negócios.

     No cocktail Roselene foi praticamente assediada por todos os outros funcionários. Rafael, apesar do seu apreço por Márcia, não se conteve e foi parabenizar Roselene:

     - Com licença, eu não sei se você se lembra de mim, sou o namorado da sua prima Márcia e creio que ela nos tenha apresentado no sábado na beira da piscina quando da sua chegada!

     - Claro que eu me lembro, pois costumo prestar bastante atenção nas pessoas! - Disse Roselene, sorridentemente.

     - Eu quero lhe dizer que gostei muito do que você falou e que será um prazer trabalhar ao seu lado e para tanto eu gostaria de frisar que estou inteiramente a sua disposição. Eram pessoas de pulso como você que estavam faltando nesta empresa!

     - Muito obrigada... mas eu acho que não falei nada demais. Além do mais não serei capaz de fazer nada sem a ajuda das minhas tias, meus primos e de vocês todos que formam a "grande família Villas Bhoas"!

     - Você é muito modesta e por isto merece uma taça de champagne! - Disse Rafael, sacando uma taça da bandeja de um dos garçons que por ali passava e posteriormente a oferecendo para Roselene.

     - Nossa, é muita gentileza sua... mas infelizmente eu não bebo. - Revelou Roselene, meio sem jeito. Rafael pareceu não se importar:

     - Então poderemos brindar com um refrigerante!

     - Eu prefiro água, se o senhor não se importar.

     - De jeito nenhum, e vamos deixar de lado as formalidades, me chame de Rafael. Essa sua postura ante ao álcool é louvável!

     - É que eu sou naturista.

     - Então não é só o álcool, mas também qualquer outra droga?

     - Exatamente, cigarros também estão fora da minha vida, além de qualquer tipo de carne ou produto químico. Sou vegetariana e consumo somente aquilo que a natureza nos lega espontaneamente!

     - Um tipo de "dieta Pitagórica"?

     - Mais ou menos, já que também não faço muita questão de grãos e tubérculos, me detenho mais nos vegetais e em alguns legumes. Além é claro das fibras para dar força e energia.

     - Esta maneira de viver me parece exigir bastante força de vontade!

     - Nem tanta, uma vez que sempre fui assim e não... - Roselene foi interrompida por Márcia, que munida da sua taça enganchou o seu braço no de Rafael dirigindo a palavra para ele:

     - Querido, você não acha que já me deixou sozinha por um tempo mais do que suficiente?

     - Q-quem, eu?

     - É, você. E agora vamos, com licença, prima. - Disse Márcia se retirando e com ela levando o namorado.

 

Enquanto isso, na garagem do shopping:

     - Que ódio... se aquele desajustado bancar o tratante eu o coloco no olho da rua... Garanto que está lá paparicando aquela tarântula e se esqueceu de...

     - Falando sozinha?

 

     - Ááh!! Será que até para chegar você tem que assustar os outros? - Gritou Lisiane, sobressaltada.

     - E não é que ela veio!! - Exclamou Ricardo, sorrindo.

     - As pessoas mudam de idéia, ainda mais depois de uma reunião "sacal" como aquela!

     - Nossa, pensei que você tinha gostado, afinal...

     - Eu odiei... Você está atrasado em dez minutos do combinado e que fique explícito desde já que este é apenas um corriqueiro encontro para tratarmos de negócios, afinal eu andei tendo uma idéias novas!

     - Bem, então não percamos tempo! Eu conheço um lugar ótimo que fica logo aqui perto!

     - Ótimo, você vai na frente me guiando e eu vou atrás.

     - Para que toda essa frescura de irmos em carros separados?

     - Quem é que me garante que você não vai bancar o engraçadinho novamente?

     - Nada disso, vamos andando mesmo, a noite está linda e além do mais é mais seguro deixarmos os carros aqui na garagem da loja mesmo!

     - Eu tenho seguro...

     - Mas eu não.

     - E que não me seja longe... e também vê lá onde você me leva!! Nada de boliches e cervejas que...

     - Você não confia nem um pouquinho em mim?

     - Não!

     - Nossa, que secura. Dá um sorrisinho, vai!

     - Você não me deixe nervosa que eu volto já para casa. - Disse Lisiane, tropeçando em seguida.

     - Cuidado! Acho que a bebedeira ainda não passou...

     - O quê??! Você veja como fala... acho melhor eu ir para casa mesmo. Com você não existe um meio civiliza...

     - Desculpe-me, não foi isso que eu quis dizer. Afinal moças frágeis como você são fracas para a bebida, basta uma dosezinha que tu...

     - Está me chamando de bêbada fraca? Pois você ainda não me conhece. E eu não estava “de fogo" só estava um pouco nervosa!!

     - Está bem, você só estava nervosa. Mas por que você estava nervosa?

     - Por causa da maldita reunião. Aliás é justamente sobre isso que eu queria falar com você. Você deve ter notado que a minha maravilhosa prima "anaconda" já está pondo os manguinhas de fora!

     - Eu fiquei simplesmente fascinado com a palestra. Nossa que inteligência, que tino comercial e que tato para tratar com as pessoas! E que "avião" é a Roselene, heim? Material de primeira! - Lisiane parou de andar por alguns minutos e esboçou uma careta de nojo, indignação e ao mesmo tempo de ironia:

     - Volte lá e leve a "satanás" para jogar boliche!!

     - Existem certas coisas que um homem não pode deixar de notar!

     - Mas é muita cara de pau mesmo... você não tem um pingo de compostura para se tocar que é uma falta de educação desmedida ficar elogiando uma outra qualquer perto de uma dama! Eu deveria ter imaginado que sair com você seria u...

     - Antes de você dizer que vai embora, ou o faça de verdade, eu imploro por suas desculpas e juro que vou ouvir você falar e calo essa minha boca impertinente!

     - Eu n...

     - Dá uma última chance, eu prometo que você vai mudar de idéia ao meu respeito. Eu imploro! - Pediu Ricardo, ajoelhando-se na frente de Lisiane.

    - Enlouqueceu... pare já com essa pantomima! Está chamando a atenção das pessoas!!!

     - Por favor!! - Bradou Ricardo, beijando os sapatos de Lisiane. Neste exato momento, deixavam a garagem da loja muitos dos funcionários, que ao ganharem a rua presenciaram aquela cena. Lisiane por sua vez também não deixou de notar que pessoas passavam e do interior dos seus carros acenavam para ela, que com um sorriso amarelo correspondia:

     - Até loguinho... tenha uma boa noite... Ricardo!!! Pare já com isso!!! - Bradou ela, voltando-se para o rapaz.

     - Só se você prometer que não vai me abandonar hoje!

     - Está bem, você venceu! Agora se levante de uma vez antes que sejamos fotografados ou filmados e estejamos em todas as colunas de fofocas amanhã!! - Disse Lisiane, entredentes.

     - Graças a Deus... eu também já estava com vergonha! - Disse Ricardo se postando em pé.

     - Bobalhão... como eu ia dizendo, a "escorpoa" vai começar a trabalhar junto conosco... e resumindo tudo, uma vez que eu já tenho diretrizes traçadas, qualquer contato seu com ela e você está fora do meu staff!

     - Mas pensei que vocês formavam uma família feliz e...

     - E formamos, só que eu não estou disposta a perder essa... digamos... guerra. A partir de amanhã você está autorizado a apenas prestar serviços para a senhorita Claudia, a senhorita Márcia e para mim. Fui clara?

     - Como a luz do sol... E se ela me chamar?

     - Você atende, vê o que ela quer e depois nos informa!

     - Nunca fui espião, mas acho que vai ser emocionante, desde que eu não perca o emprego por causa disso!

     - Não vai perder, eu garanto.

     Conversa vai, conversa vem... e eles já haviam se distanciado consideravelmente da loja e já estavam na Avenida dos Bandeirantes quando um carro que tentava ultrapassar um ônibus pela direita foi violentamente fechado pelo último e após uma rumorosa freada veio a colidir com um poste que se postava metros a frente de Ricardo e Lisiane. Por pouco o cilindro de concreto que veio ao chão não atingiu os dois e principalmente Lisiane, que no momento do susto instintivamente se jogou nos braços de Ricardo que de pronto se lembrou:

       - Lembra-se do que você disse?

       - Disse o quê? - Perguntou Lisiane, ainda assustada.

       - Que você queria que um poste caísse na sua cabeça se você pusesse os pés na rua para sair comigo!

       - Tss... foi só uma coincidência e...

       - E será que coincidências existem? - Perguntou Ricardo, envolvendo Lisiane com o seu braço, do qual ela em seguida ela se desvencilhou.

       Logo uma multidão se aglomerou em torno do veículo e felizmente o motorista deixou o seu interior andando. A pedido de Lisiane os dois não pararam para ver ou socorrer, já que havia pessoas suficientes para fazê-lo.

 

     O cocktail ainda continuava animado no salão de convenções do hotel. Roselene que parecia cansada despistou a todos e saiu "à francesa"...

     Logo mais, num apartamento de um dos milhares de edifícios existentes na maior cidade da América do Sul, o botão da campainha foi pressionado. A porta foi aberta por um rapaz de estatura média, peso proporcional, cabelos e olhos castanhos, na faixa de seus trinta anos. Parecia recém-saído de um banho, pois vestia somente um robe e tinha os cabelos ainda molhados. Ele se assustou:

     - Você??!

     - Surpreso? Existe um ditado que diz que quem é vivo sempre aparece!!

     - Ora, ora, ora, Paulinho, nós não poderíamos passar a vida toda nos escondendo um do outro!

     - Agora você me chama de Paulinho, mas da última vez em que nos vimos você me dispensou dizendo um seco "até logo, senhor Paulo"!

     - Ossos do ofício, afinal a profissão de advogado impõe um certo respeito, não? Além do mais a situação daquela época não nos permitia maiores intimidades ou então seríamos descobertos, lembra-se? Você também participou da "história"!

     - É por isso você está aqui? Para me chantagear novamente... Diga logo o que você quer e vá embora!!

     - Mas que agressividade para com quem você tanto ama... além do mais se descobrirem algo de você, não demorará para que cheguem até mim! - Disse aquela envolvente moça, acariciando cinicamente o rosto do jovem jurista, pois ele era também autor de alguns compêndios nas mais diversas searas do Direito.

     - Você me faz mal... me faz sofrer! - Disse Paulo, ofegante.

     - Tss, tss... pobrezinho. Eu tinha de falar com você antes porque eu marquei uma reunião para esta semana, onde se farão presentes você, como o mais novo advogado contratado pela empresa e um contador e isto evidentemente tirará a nossa intimidade!

   - Vamos, o que você quer?

     - Nada demais, apenas que você me ajude a tomar posse de todo o complexo logístico e financeiro dos Villas Bhoas! - Disse ela, em meio a uma longa tragada na sua longa e cintilante piteira, baforando a fumaça para o alto em pequenos círculos, com um certo porte de altivez.

     - Você ainda não tirou essa idéia obsessiva da cabeça. Lembre-se de que na primeira vez nós falhamos e por pouco não pusemos tudo a perder... isso sem falar na minha paz de espírito que se foi para sempre e me transformou numa pessoa amarga e angustiada.

     - Ora, ora, ora, benzinho... não precisa se exaltar, pois eu creio que você terá muito pouco a fazer... talvez somente simplificar algumas procurações e tentar evitar que elas sejam assinadas na frente de um escrivão. Do resto eu mesma tomo conta. Além do mais teremos de ser convincentes diante do contador, para que este pense tratar-se de um rotineiro balanço. Basta que você ponha a sua cabecinha para funcionar e pense num modo se fazermos tudo sem causar alarde e desapropriá-los só na hora "H". E lembre-se que você não terá nada a perder!

     - Só o resto da minha dignidade... assim como não tenho nada a ganhar...

     - Como não? O que você me diz de uma vida fácil, sem mais preocupações financeiras até o seu último suspiro! Isso não é suficiente?

     - Você sabe que eu não quero dinheiro, eu quero você!

     - Ora, não precipite as coisas. Negócios são negócios.

     - Então não conte comigo...

     - Ajude-me e você me terá.

     - Eu quero me casar com você. Quero te amar e ser amado! Foi tudo o que eu sempre quis desde o momento em que te conheci!

     - Vá com calma, você sabe que eu também... gosto muito de você e...

     - Gostar é pouco.

     - Não me pressione... eu q-quis dizer que... te amo. E agora vamos parar com esse assunto... Muito bem, então está combinado, depois que eu já... que nós já tivermos o patrimônio em mãos, esperamos a poeira acentar e então nos... casaremos... mas por favor, mantenha sigilo até que tudo esteja na sua mais perfeita ordem, ou então o seu envolvimento comigo poderá tornar as coisas muito óbvias levando o meu plano por água abaixo, como aconteceu da última vez. Se bem que não houve culpados, mas sim as circunstâncias nos foram adversas.

     - Pode contar comigo! - Disse Paulo, tomando-a nos braços e tentando beijá-la.

     - Depois querido. - Disse ela, colocando levemente o indicador por sobre os lábios de Paulo e o deixando desapontado.

     - Por que você judia tanto de mim?

     - Não sou eu, é você mesmo quem se judia... - Disse ela, desvencilhando-se rapidamente dele e dirigindo-se a passos largos até a porta.

     - Você vai sair assim, sem mais nem menos, sem um drink, sem um único beijo?

     - Não seja infantil, Paulo. - Num ímpeto ele a agarrou e beijou demoradamente.

     - Espero que você tenha ficado satisfeito, mas por favor, não mais repita tal ato!! - Disse ela ganhando o corredor e em seguida chamando o elevador.

 

Enquanto isso, num dos mais animados e sofisticados bowlings de São Paulo:

     - Strike!!!!! - Foi o berro emitido por Lisiane após ter derrubado todo o conjunto de balizas. Ela já havia ingerido algumas latas de cerveja e já estava novamente alta, portanto para comemorar ela correu em direção de Ricardo e se projetou nos seus braços. O último, meio sem jeito a amparou e ela o abraçou. Por um momento seus olhares se encontraram e naquela posição eles permaneceram por alguns minutos, deixando suas testas se tocarem, ao passo que as bocas foram se aproximando... mas, Lisiane acabou por cair na realidade:

     - N-nossa, eu acho que... eu vou querer mais uma cerveja! - Ricardo ficou olhando para ela meio perdido e depois respondeu:

     - Que tal comermos alguma coisa para contrabalançar o efeito da bebida?

     - Está me chamando de bêbada de novo?

     - De jeito nenhum, só que a bebida no estômago vazio sobe bem mais rápido!

     - Está bem, mas mesmo assim eu quero mais cerveja!

     - E o que você vai querer comer?

     - Sei lá... o que você pedir para mim está bom. - Neste momento Ricardo tirou os olhos do cardápio e os voltou para Lisiane. Uma Lisiane diferente, mais calma, mais simples, mais espontânea.

     - Nunca viu? - Questionou ela, meio embaraçada.

     - Não, nunca vi você tão autêntica quanto hoje...

     - É... que tal deixarmos o lanche para outro dia? Acabo de me lembrar que amanhã é uma terça feira e já está ficando tarde.

     - Então nós fazemos o lanche, tomamos a última cerveja e vamos embora, que tal?

     - Que seja.

 

No dia seguinte o papo estava animado no café da manhã:

     - ... então quer dizer que você saiu com ele ontem a noite mesmo? - Perguntou Claudia para Lisiane, enquanto mordiscava um biscoito.

     - Saí, para tratar de negócios da loja e não tem nada demais, por isso não adianta me olhar com essa cara!

     - Credo, “merenguesinho”, não estou te olhando com cara nenhuma... mas nunca se sabe, se o clima era o mesmo que ontem de manhã no seu escritório...

     - Boca frouxa... mas eu não vou nem responder pois acho que não seja a hora adequada, uma vez que tem gente demais na mesa. - Disse Lisiane, voltando o seu olhar para Roselene, que nem percebeu. Esta estava entretida em findar a sua primeira refeição, que se resumiu num suco puro de laranjas, uma fatia de mamão, uma xícara de chá de uma combinação de ervas orientais, duas torradas de fibra pura e uma colher de sobremesa de mel, também puro. Não demorou para que todos se apressassem com destino ao novo trabalho, enquanto que os mais jovens foram para a escola.

 

No shopping...

     - Bom dia senhorita Urogalo!

     - Bom dia senhorita Claudia. Sua chegada foi em boa hora, pois esta senhorita está esperando pela senhorita, pela senhorita Lisiane e pela senhorita Márcia já há algum tempo...

     - Credo que "senhoritarada"... - Murmurou Claudia, confusa.

     - Ela me contou que veio por ter lido um anúncio no jornal, no qual a senhorita e suas primas pediam por um estilista!

     - Áh, é verdade... eu telefonei para os jornais ontem de tarde. A senhorita foi rápida, não é mesmo, senhorita... "Crêndios"...

 

     - Claudia arregalou os olhos e levou a mão direita até a boca ao deparar com a figura que lá se postava sentada. Tratava-se de um tipo um tanto exótico. Roupas multicoloridas, sendo q8ue o camisão era de cetim, metade verde e metade vermelho, caindo até a altura dos joelhos. As calças pareciam um par de balões, pois eram infláveis, confeccionadas numa espécie de nylon impermeável. Brincos de pingentes tão compridos que passavam da altura dos ombros. Botas de astronauta transparentes e inúmeros penduricalhos. Além de tudo isso, fazia parte daquele traje, ainda um penteado bastante incomum... os cabelos estavam puxados para cima em forma de uma trança dura que apontava para o alto e deixava surgir na sua cúspide uma mecha solta de cabelos lisos que mais parecia um arco-íris, a qual se deixava cair e balançava de um lado para outro com os movimentos daquela peculiar moça.

     Usava também enormes óculos de lentes espelhadas sendo que a armação toda estava cravada de pequenas lâmpadas vermelhas que não paravam de piscar.

     - Úuuaauuu, booom diaaaa!!! My name is Gilka Blanche!!! Mais conhecida como somente Blanche, a turbinada!! Pleased to meet you!!

     - B-bom dia, o pleasure... digo, o prazer é meu. - Disse Claudia, ainda absorta, sem poder tirar os olhos daquela mulher. - Por favor, queira me acompanhar até meu escritório.

     Uma vez ganhando o escritório de Claudia:

     - Uaaauu!! Que escritório mais "chocanty"!!! - Bradou Gilka.

     - Obrigada, aceita um café?

     - Tem gaspacho?

     - N-não... creio que seja meio indigesto para essa hora da manhã.

     - Que nada nega, gaspacho com "sangria" serve pr'a "dá" o maior pique... durante o dia todo!

     - É?!... quero dizer... eu creio que haja um vinho tinto suave aqui que se parece muito com a "sangria", a senhorita aceita?

     - Manda!! - Claudia pediu o vinho pelo interfone.

     - Então a senhorita tem descendência espanhola... pelo menos é o que dá para se notar em relação ao seu gosto pelas... sopas e bebidas daquele país...

     - Que nada "mona", sou da Freguesia do Ó, mesmo!! - Logo Claudia começou a se sentir mais a vontade ante a presença de Blanche e passou a explicar os motivos pelos quais ela a havia mandado chamar. Ambas conversavam animadamente quando a porta foi abruptamente aberta:

     - Mas que diabos significa cybersex???? - Foi Lisiane que entrou descabelada e aos brados.

     - Calma konfiture, isso só significa o ato de se fazer amor via rede, ou via web, termo mais próprio para a Internet. Por quê?

     - Foi a primeira coisa que apareceu no monitor quando eu abri o correio eletrônico!!! Vou matar o responsável por isso!!!!

     - Deixe para lá, "frufruzinho", é só alguém querendo te amar ciberneticamente, e por falar em cibernético, quero que você conheça a nossa nova estilista, a senhorita...

     - Blanche! Gilka Blanche!! A tremendona!! - Antecipou-se a estilista.

     - Quem é a "espécime exótico"?

     - Já disse biscuit, a nossa nova estilista! - Lisiane encarou Blanche e esta a Lisiane:

     - My Gosh!! "Mais tu tá" um lixo!! Olhe só a tua vestimenta, "mona", quem vê pensa que "tu tem" meio século no lombo! "Tu tá" precisando de uma cor, de um batom mais "cor de perva", de um blush... olha só essa cara, cor de burro quando foge!! Debulha menina!!! - Lisiane estava aturdida.

     - N-não, obrigada, eu acho que estou bem assim mesmo!

     - Bem o "zóio", "tu tá" é uma porcaria!!!

     - Escute aqui sua atração circense desequilibrada, como você ousa entrar aqui e...

     - Foi a bacana aí que "pois" um anúncio no jornal... e ela acaba de me contratar! - Disse Blanche, apontando para Claudia.

     - Áh, mas só tinha que ser a asna da família para fazer uma coisa dessas!! Eu devo ter jogado querosene no corpo de Joana D'Arc para merecer isso!

     - Calma “quitute”, eu já expliquei para ela que nós a chamamos para renovar a aparência de uma porção de peças de vestuário da forma mais econômica possível. Eu liguei para a senhorita Urogalo trazer alguns dos exemplares a serem reestilizados! - Antes que Lisiane pudesse responder qualquer coisa, a porta foi aberta e Márcia adentrou munida de um enorme saco de estopa que parecia cheio:

     - Mau dia... eu não sou formiga carregadeira para me fazerem puxar esse saco de porcarias!! - Disse Márcia, despejando o conteúdo daquele saco no meio do escritório de Claudia. Eram pares de sapatos e sandálias, as mais variadas peças de vestuários e muitos acessórios, como bijuterias e até semi-jóias.

     - Mas eu disse para a senhorita Urogalo que era para alguém do depósito trazer!

     - B-bem, é que eu estava justamente no depósito quando Urogalo ligou para lá e aí o carregador atendeu e depois o Rafael apareceu e... vocês entendem, eu creio.

     - Mas muffin, o que você estava fazendo no depósito tão cedo? - Questionou Claudia, lírica e cinematograficamente.

     - U-uma vistoria... O que mais?

     - Uma vistoria no corpo do carregador?! - Perguntou Lisiane, com as mãos na cintura.

     - Quem é a "potranca"?! - Interveio Blanche.

     - É a nossa outra prima! - Explicou Claudia, sorridente.

     - "Pomba, tu tá com cara de quem mandô vê, mona"!!

     - O quêe?! Quem é você? - Perguntou Márcia, ajeitando os seus cabelos.

     - É um exemplar da classe "caterva alienígena" que a "besta humana" da sua prima acaba de contratar para remodelar todos esses trastes que você carregou nas costas. - Explicou Lisiane, expressando um semblante psicótico. - Márcia voltou seus olhos para Blanche:

   - Você é lésbica?

     - "Que qu'é isso"? - Questionou Blanche, cavoucando o nariz.

     - Vamos deixar essas particularidades de lado. O importante é que já temos uma estilista e esperamos que ela possa nos ajudar a remodelar e revender os nossos produtos encalhados! - Interveio Claudia, abafando aquele início de discussão. - E então, senhorita Blanche, acha que pode remodelar todas essas peças para que depois façamos a remodelação em massa nos nossos ateliers"? Acha que poderá toná-las em algo totalmente in? - Blanche deu uma longa olhada em tudo aquilo e logo exclamou:

     - Eu sou a solution!!! Eu “vô dexá” todos esse bagulhos "divinésimos, esplendorésimos, magnificésimos, wonderfulésimos, transadésimos" e mais todos os "ésimos" que vocês possam imaginar!!

     - C-claro que sim, a título de experiência, começaremos por uma remodelação nas... é... - Claudia estava perdida, pois não sabia se podia confiar naquela mulher.

     - Nas sandálias femininas!! - Decidiu Márcia.

     - Então eu vou levar comigo alguns pares!! - Disse Blanche, segurando a goma de mascar entre os dentes e com uma das mãos puxando-a para fora e esticando até quase encostar no nariz de Lisiane, a qual transformou o seu olhar psicótico em estrábico e depois vesgo.

     - Claro, esteja a vontade... e por enquanto a senhorita está dispensada. Creio que já discutimos o seu salário e... se a senhorita obtiver êxito no seu trabalho será naturalmente contratada para trabalhar para os nossos empreendimentos. Volte quando já tiver posto as idéias em prática!! - Recomendou Claudia.

     - Isso vai ser fácil como "dá" mato pr'a bode... All right, então até very, very soon “macacada”! - Disse Blanche, deixando o escritório de Claudia e levando consigo alguns pares de sandálias.

     - Vocês viram só? Ela teve a ousadia em me chamar de lixo!! - Protestou Lisiane.

     - Lixo e porcaria. - Completou Claudia.

 

No dia seguinte, quarta-feira:

     - Minhas queridas tias, eu tive uma idéia e... - Tentou dizer Roselene, pousando suavemente a xícara sobre o pires.

     - É?? - Perguntaram Débora e Hella em uníssono.

     - Bem, como eu disse ontem na reu...

     - Não, não, não... você não precisa falar nada meu bem. Sua explanação ontem foi magnífica e o seu positivismo contagiou a todos. Assim sendo eu e Hella tivemos uma idéia e vamos aproveitar para comunicá-la a você antes que os outros desçam para tomar o café! - Disse Débora.

 

     - Isso mesmo, minha querida. Sem, é claro, menosprezar a capacidade dos seus primos, nós chegamos à conclusão de que você, por ser mais velha e mais experiente... não que você seja velha, mas não é mais uma adolescente e tem muito mais visão das coisas do que os seus primos. Você é bondosa, terna e ao mesmo tempo perspicaz e sabe como tratar as pessoas, afinal todos os funcionários gostaram muito de você e por isso nós decidimos lhe passar o cargo da presidência, uma vez que eu e Débora já não somos tão vivazes para presidir todo o nosso patrimônio. - Explicou Hella.

     - Mas assim? Isso me deixa assustada... - Protestou Roselene.

     - Não, claro que tudo acontecerá gradativamente. Principalmente levando em consideração a reação das suas primas. Ninguém ficará sabendo de nada e por enquanto você apenas começará a por as suas idéias em prática e a tomar pequenas decisões. - Disse Débora.

     - Nossa... isto até me provocou uma dispnéia e uma concomitante taquicardia... - Disse Roselene, tentando recuperar o fôlego.

     - Calma querida, tudo será muito gradativo e sutil. - Falou Hella, acariciando os cabelos de Roselene.

     - Bem... eu não sabia que nada disso iria acontecer e, antes de tudo eu gostaria de agradecer pela confiança, desculpar-me novamente pela minha ausência durante tão prolongado tempo e expressar o meu temor ante toda essa responsabilidade... e...

   - Pode falar, meu bem. - Insistiu Débora.

     - Como eu havia dito, eu estive pensando... Nós estamos pendentes com muitas outras empresas e nunca se sabe, talvez algumas possam querer tirar proveito dessa situação. Assim sendo, antes de qualquer coisa, eu vou verificar toda a nossa situação financeira atual juntamente com o nosso contador e gostaria de pedir a permissão de contratar um advogado para melhor auxiliar meus trabalhos e para estar pronto a entrar em ação caso algumas dessas empresas credoras tente agir de má fé para conosco. - Explicou Roselene.

     - Mas não é necessário querida, uma vez que nós já temos o nosso advogado, o senhor Jupiro Pintassilgo. - Alegou Hella.

     - Bem, eu sei disso e respeito e, quero que ele continue sendo o nosso advogado, mas o problema é que eu sou para ele uma estranha e não tenho nenhuma intimidade, assim sendo não me sentirei a vontade para trabalhar com ele. Foi pensando nisso que me lembrei de um grande amigo dos tempos de faculdade, do primeiro ano daquele curso de Direito que eu somente iniciei e desisti para estudar na Europa. Hoje ele é um advogado e jurista renomado, e o principal é que a nossa amizade não morreu, continuamos tão íntimos e simples um para com o outro como nos tempos de faculdade...

     - Você quer contratá-lo para trabalhar com você? - Perguntou Débora.

     - Eu gostaria... inclusive eu já analisei até o fator do salário e constatei que isso não abalaria a nossa contabilidade de imediato e que com o passar do tempo nós com certeza voltaremos a crescer e então não haverá prejuízos. Isso é claro com a condição de não dispensar o Sr. Jupiro Pintassilgo, que é o advogado de confiança de vocês.

     - E como se chama esse seu amigo, querida? - Perguntou Hella.

     - Paulo, Paulo Rivoredo, titia.

     - Eu já ouvi falar... se não me engano ele é uma revelação como jurista e autor de várias obras técnicas na área do Direito Civil. Ouvi falar dele num chá beneficente. - Comentou Débora.

     - É este mesmo, acho que é uma pessoa de confiança. - Alegou Roselene.

     - Com certeza... será muito bom ter uma pessoa como ele trabalhando para nós. Da minha parte você pode contratá-lo! - Disse Débora, animada.

     - Se é assim, da minha parte também! - Opinou Hella, sorridentemente.

     - Eu só gostaria de pedir que os outros não soubessem por enquanto... acho que eles ainda não se acostumaram com a idéia do meu retorno. - Pediu Roselene.

     - Nós entendemos, querida. Esse assunto morre aqui.- Disse Débora, que foi interrompida por uma entoação lírica no alto das escadas:

     - Bon Jour!!! - Era Claudia que descia para o seu desjejum

     - Mudemos de assunto! - Sugeriu Hella.

 

Logo mais no shopping:

     - Bom dia, senhorita Urogalo!

     - Bom dia, senhorita Roselene. - Respondeu a secretária sorridente.

     - Por favor, senhorita Urogalo, eu gostaria de não ser interrompida esta manhã, pois tenho uma porção de coisas para colocar em dia até as dez horas, quando terei uma reunião com alguns membros da diretoria.

     - Está bem, eu não deixarei que a perturbem.

     - Só realmente se for de extrema importância e de extrema urgência.

     - Pode deixar, procederei como a senhorita pediu.

     - Por enquanto muito obrigada e até mais. - Disse Roselene, sumindo corredor adentro, rumo ao seu escritório. Lá chegando ela entrou e fechou a porta a chave. Abriu a primeira gaveta da sua mesa, a qual também estivera chaviada e dela retirou uma enorme pasta, contendo inúmeros documentos referentes a situação de todos os empreendimentos Villas Bhoas. Ela teria de ser convincente e persuasiva para com Rafael, do departamento financeiro e também contador, uma vez que tudo se daria frente ao advogado, o recém contratado Paulo. Foi pensando nisto que ela se lembrou que ainda não o havia avisado, embora soubesse que nas quartas-feiras pela manhã ele não trabalhava nem no escritório e nem lecionava na universidade, reservando assim esse período para resolver os seus assuntos pessoais ou mesmo para repor as energias com a prática de algum exercício físico ou dando uma prolongada nas suas horas de sono. Como era ainda cedo, ele provavelmente estaria em casa. Ela retirou o fone do gancho e realizou por si só a ligação, diretamente do seu escritório, sem ter de pedir a ligação para o PABX. Logo ouviu o toque da primeira chamada, o da segunda, terceira e sucessivas outras. "Só falta este imbecil ter resolvido sair..." Em meio a este pensamento ela foi surpreendida pelo atendimento da chamada, ela nem ao menos esperou manifestação do outro lado da linha e disse:

     - Por Deus Paulo, pensei que você não estivesse em casa.

 

     "Alô, aqui num é u Paulu, é a Osvardina"! - Disse uma voz estridente, do outro lado da linha.

     - Ah, queira me desculpar, eu devo ter errado o número. - Disse Roselene, secamente.

     "A sinhora num errô, é daqui mermo, eu sô a faxinera!" - Disse a mulher alegremente, antes que Roselene desligasse, esta por sua vez suspirou aliviada:

     - Áh, pois não, e senhora poderia me informar se o senhor Paulo se encontra?

     "Eli tá nu banhu, a sinhora qué que eu vá chamá"?

     - Eu gostaria muito, senhora Osvaldina, se isto, é claro, for possível, já que o meu assunto com ele é breve e um pouco urgente! - Disse Roselene, amavelmente.

     "I a quem eu devo anunciá"?

     - A-ah, a-aqui... é da parte da chefia do departamento de direito da universidade! - Inventou Roselene, que não esperava por aquela pergunta.

     "Um momentinho que eu tô indo" - Disse a mulher, colocando o fone sobre alguma superfície dura, devido ao barulho.

     - Não sei como o Paulo pode contratar gente desse tipo para trabalhar na sua casa... - Murmurou ela, para consigo. Não demorou para que o fone fosse novamente retomado e logo Roselene ouviu a voz de Paulo, que atendeu ofegante, parecia ter saído do banho às pressas:

     "A-alô!!"

     - Como estava o seu banho, prazeroso?

     - Ah, é você...

     - Muito decepcionado? Se for o caso, eu posso ligar noutra hora.

     "Não, não desligue! Eu só fiquei surpreso, pois pensei que realmente houvesse algum problema na universidade!"

     - Mesmo assim, você não me parece muito contente. Acho melhor eu ligar depois mesmo! - Disse Roselene, ameaçando em desligar.

     "Você sabe que eu fico nervoso toda vez que eu falo ou penso em você, que já virou uma espécie de obsessão na minha vida, pois eu vejo o seu fantasma por todos os cantos, a sua sombra inatingível, volátil, que sempre me escapa por entre os vãos dos dedos."

     - Vejo que acordou poético hoje, bebia alguma coisa?

     " Não costumo beber de manhã"...

     - Pois eu estou saboreando um legítimo Don Perignon, suave e borbulhante, antevendo e comemorando desde já o nosso triunfo. - Mentiu Roselene, que não tinha nada além de um lápis na mão. - Além do mais estou te esperando, pois eu marquei a reunião para agora de manhã, às dez horas! Você virá, não?

     "Eu não sei se quero participar desse seu plano... não sei se vale a pena, não s..."

     - Então você não sabe se me ama... muito bem, eu posso procurar por um outro advogado.

     "E-está bem, não precisa me ameaçar, eu faço o que você quiser." - Disse Paulo, submisso.

     - Basta que você seque esse seu corpinho tentador, vista uma roupa bem elegante, já que para isto você tem bom gosto, e depois que você também esborrife um pouco daquele seu delicioso Moods, sai do seu apartamento, toma o elevador indo até a garagem, e por fim a bordo do seu carro, vem para cá. E se você realmente estiver bem bonito, e nós a sós, quem sabe eu não te receba com um ardente beijo?

     " Você é sádica...eu te amo mas..."

     - Mas?

     " Embora eu esteja louco para te ver, eu já estava pensando nesse seu assunto e ele me pareceu bastante complexo, não vai ser fácil transferir tudo para você, assim de um momento para o outro. Mesmo assim, para darmos início a essa loucura, é melhor que eu não apareça nessa reunião hoje."

     - Por que, já está se acovardando?

     "É uma questão de estratégia e..."

     - Justo hoje que eu tinha uma novidade para te contar, o que talvez venha a tornar tudo muito mais fácil!

     "E qual é a novidade?"

     - Não adianta, você não vem mesmo..

     "Não seja tola, se é algo relevante e pode facilitar, então quer dizer que também pode alterar tudo aquilo no que eu pensei!"

     - Hoje, na hora do café da manhã, quando eu justamente inventei um pretexto e ia pedir para contratar um novo advogado para a empresa, uma vez que nós já temos um, elas se anteciparam, elogiaram-me pela palestra que eu proferi ontem e perguntaram se eu não gostaria de assumir a presidência, isso é claro, sem que os meus primos saibam no momento. Eu fingi hesitar e depois aceitei e aproveitei o ensejo para pedir a sua contratação. Elas ficaram empolgadas, pois já ouviram falar ao seu respeito e o seu curriculum vitae não é dos piores, assim sendo elas me permitiram a sua contratação! Satisfeito?

     " Melhor impossível. Mas você deve melhorar esse seu pretexto, alegando que quer contratar um advogado para te acompanhar numa espécie de "tourné" pelas filiais, que são muitas, no intuito de verificar a idoneidade e conferir de perto o gerenciamento que nelas está sendo realizado, ou seja, depois dessa reunião que você terá com o contador, a qual você deverá dizer que foi apenas para fazer um balanço das..."

     - Eu já disse...

     - ..."você vai simplesmente alegar que o contador, e o advogado das lojas, que eu não sei quem são, lhe disseram que podem estar havendo falhas e desvio de dinheiro nessas filiais e, para tanto você acharia melhor ir verificar tudo isso de perto, pois queira você ou não, nós teremos de viajar para transferir os imóveis para o seu nome nas devidas comarcas onde eles estão registrados. Mais tarde eu explico como tudo vai funcionar"...

     - Mas e por que você não pode vir a esta reunião, já que eu tenho carta branca para te contratar?

     "Pelo simples fato de que você não pode me contratar, pois você não tem uma procuração por parte das suas tias que lhe outorguem esse tipo de poder. E já que você desfruta da total confiança de ambas, você alegará que foi impossibilitada de me contratar pela falta dessa procuração, já que você quer que tudo seja feito "clara e limpidamente, dentro dos preceitos da moral e ética jurídicas". Assim sendo, com muito tato e sem ser muito explícita, você pode conseguir que ambas assinem duas procurações lhe outorgando amplos e ilimitados poderes, instrumentos estes particulares, por isso dispensa-se qualquer outro procedimento formal que possa comprometer o ato. Dentre estes poderes, é claro, estarão inclusos os outorgados pela cláusula ad judicia, que te investirão de autoridade para praticar em nome das duas todos os atos processuais, para execução, promoção, etc... Mas como você não é uma advogada, caberá a você contratar um advogado, no caso eu, que através de uma procuração sua, possa realizar todos esses atos em seu nome e no nome delas também. Inclusa estará também a cláusula ad negotia, a qual atinge os atos meramente administrativos em relação ao patrimônio, ou seja, lhe outorgam liberdade e poder para realizar estes atos, além da cláusula ad extra, a qual lhe outorga outros poderes extras que possam defluir das duas anteriores. Além disso, uma procuração desta ordem, pode ainda outorgar outros poderes muito úteis, tais como alienar(vender), quitar, firmar compromissos; abrir, movimentar e fechar contas bancárias; comprar, transigir, contratar ou demitir funcionários, o que também me inclui, etc... Eu elaboro a minuta da procuração, você consegue as assinaturas e depois você me contrata. Aí sim, estará tudo de acordo com a lei!"

     - Estou começando a me orgulhar de você, sabia que você não iria me decepcionar!

     "Caberá a você também, durante esta mesma conversar com suas tias, descobrir como foi feita a partilha do patrimônio, pois desta vez três das suas primas já atingiram a maioridade, eu creio e mesmo os menores assim como você, herdaram as partes do patrimônios que foram deixadas por seus pais. Com isso eu quero dizer que as suas tias podem ser as presidentes ainda, mas elas não detém todo o patrimônio, já que cada membro detém deste, um quinhão."

     - Mas eu não entendo, pelo que eu saiba elas propuseram uma espécie de "aposta" de que quem desempenhasse uma melhor função no gerenciamento dos negócios, adquiriria uma maior parte do patrimônio em forma de ações!"

     " Talvez tenham feito isso para estimular nos sobrinhos o interesse por aquilo de que já são proprietários, ou, como elas devem ser detentoras de uma grande parte desse patrimônio, essa aposta servirá justamente para justificar o testamento que elas farão, dividindo então o que lhes é atualmente pertencente. Você deve investigar isso, pois assim como todos, você também deve ter já a sua parte delimitada, e se assim for, isso ainda nos facilitará mais as coisas até certo ponto e nos dificultará em outro..."

     - E qual é?

     "O simples fato de que para darmos início à grande transação, nós antes teremos que obter uma procuração de cada herdeiro, legando para você os mesmos poderes que lhe serão legados por suas tias, ou seja, várias cópias da mesma procuração que te legam amplos e ilimitados poderes terão de ser assinadas por cada herdeiro e em se tratando dos menores a coisa piora, pois teremos de obter assinaturas dos seus tutores... mesmo assim não vamos esquentar a cabeça desde já, vamos por partes. Passe aqui hoje a noite para que eu te entregue os modelos das procurações e depois tente descobrir qual é a real situação do patrimônio dos Villas Bhoas no que concerne à sua divisão e aos seus herdeiros. Você age com a sua fascinante persuasão, enquanto eu tento emoldurar tudo em conformidade com a lei!”

     - Eu farei tudo como você disse, com minhas tias não será difícil, mas se for como você realmente disse, em relação às minhas primas, aí eu ainda não sei como vou fazer, pois elas podem ser fúteis, mas são espertas e estão empenhadas por demais nessa disputa pela presidência que já me foi oferecida... - Suspirou Roselene.

     " Por falar nisso, quem é o advogado das organizações Villas Bhoas"?

     - É o senhor Jupiro Pintassilgo, o mesmo "daquele tempo" e de mais de vinte anos atrás. Por quê?

     " Não, só curiosidade, pois você disse que eu não o conhecia..."

     - É que eu faço de tudo para esquecer daquele infortúnio...

     "Pela tragédia causada ou pelo motivo de o plano ter fracassado"?

     - Por tudo.

     "Desculpe-me... mas a curiosidade foi só pelo fato de que pelo que eu saiba, vocês têm uma advogada na família, a sua prima Lisiane".

     - Sim, e daí?

     " Daí que em relação ao Jupiro tudo bem, ela era uma menininha quando ele começou a trabalhar para a sua família, mas quanto a mim, não sei o porque de suas tias não terem impedido a minha contratação como novo advogado da firma, já que a mais indicada para isto seria justamente Lisiane, que é da família".

     - Simples! Além de fútil, desinteressada e de ter feito o curso de direito como formação de praxe, portanto não entendendo muito sobre o assunto e incapaz de assumir um cargo de responsabilidade, Lisiane ainda não prestou o exame para a Ordem dos Advogados do Brasil, por isso ela não tem a sua credencial, a famosa "carteirinha" e não pode advogar sem substabelecer, ou seja, pedir para que outro advogado credenciado pela OAB assine, convalidando qualquer peça jurídica. Tendo toda esta triste verdade diante do nariz, as minhas tias não arriscariam o patrimônio e nem Lisiane mesmo estaria disposta a exercer a profissão que ela sempre detestou.

     "Entendo... bem, no momento as normas e diretrizes a serem tomadas são estas. Desejo a você uma ótima reunião. Não se esqueça de convocar o outro advogado... o Jupiro a tempo, isso para tornar as coisas aparentemente “autênticas” e para que não desconfiem das suas intenções e que tudo pareça um procedimento de praxe"! - Disse Paulo, num certo tom "autênticas". Ele continuou: - Áh, supere-se nesse seu dom de dissimulação, para que nem o contador e nem o advogado desconfiem! - Disse jocoso. Roselene captou:

     - Se isto foi uma indireta, a carapuça não me serviu!

     " Talvez tenha ficado pequena demais"!

     - Você está demonstrando tamanha insegurança que não consegue disfarçar que na sua mente se passa a idéia de estar comprando o meu amor através dos serviços que você está começando a me prestar... Se as coisas fossem como a sua mente fantasia, eu poderia muito bem seduzir um outro advogado e usá-lo, pagando a ele somente uma pequena porcentagem. Não sei se adianta dizer, mas as coisas com você são diferentes... você é especial para mim, é a pessoa que me dá segurança quando está perto... Paulo, eu só não digo que te amo porque eu realmente não sei se é isso, mas eu te quero, eu preciso de você...

     "Por que eu sei que você não me ama."

     - Não seja insistente, eu nunca afirmei isso!

     " E nem ao contrário!”

     - Basta você perceber que não há nenhum outro alguém na minha vida...

     " Nisso realmente eu não posso acreditar, pois ultimamente eu não tenho sabido quase nada a respeito da sua vida".

     - Pois então contrate um detetive e veja se você consegue descobrir outro homem desde a minha volta para o Brasil.

     - Mas a sua volta é recente, e antes, mundo afora?

     - Só satanás sabe... háháháháháhá... desculpe, mas essas suas preocupações são infundadas. Eu saí para estudar e, entre um belo corpo masculino aos moldes de Apolo desnudo, eu sempre preferi os museus, as relíquias, os mausoléus... os castelos, as igrejas, as criptas... Onde tudo que adormeceu descansa por vezes tão calmo e por outras tão inconformado... por estar cheio de energia mas, sob a terra... comendo-a, sentindo a sua umidade e... de algum modo com ela fazendo-se deixar entregar o jovem corpo desnudo e ao auxílio das raízes em fazer com que dele jorre a essência vital às sedentas bocas... bocas que têm lábios que dizem e...eu gosto muito de você e te quero integro, totalmente desnudo e passivo!

     " Você falou de mim, mas o que você disse pareceu vir do fundo das suas ânsias... é isso que você quer de mim? O objeto que você amarra na cama, força à inúmeras situações, beija, morde e estapeia ao mesmo tempo?"

     - Talvez, mas com muito amor e, será que você não faria isso se eu te implorasse introduzindo calidamente a minha língua na sua orelha?

     "Você bem sabe que eu já sou o seu escravo há muito tempo".

     - E eu uma "senhora" que vou te tratar muito bem, pois ambos sabemos que a dor e o prazer são frutos de uma mesma raiz emocional... bem, a nossa conversa foi por demais prolongada e só me restam vinte minutos para que eu me prepare espiritualmente para esta reunião, além do mais eu acabo de me lembrar que o Rafael, que é o chefe do departamento financeiro e também o nosso contador, está agora namorando com a minha prima Márcia. Eu só não entendo como aquela "mosca morta" conseguiu fisgar um homem como o Rafael... Mas deixe para lá, afinal eu consegui fisgar você! - Disse Roselene, já orgulhando-se da sua demagogia e da arte de persuadir, conquistar e se fazer amar, o que realmente não era o caso de Paulo, que sempre a amou, mesmo quando ela o maltratava.

     Roselene despediu-se o mais cálida e fingidamente possível, para, é claro, deixar Paulo excitado e ansiado para vê-la e surpreendê-la com uma bela minuta de procuração que pudesse servir para todos os detentores das mais diversas partes do patrimônio, isto é, os seus primos.

     Depois de ter retornado o fone ao gancho e já bastante satisfeita, Roselene tentou se concentrar para a já próxima reunião. Num ímpeto ela ligou para Violeta Urogalo:

     - Senhorita Urogalo, desculpe-me incomodá-la, mas eu preciso que a senhorita comunique urgentemente o senhor Jupiro Pintassilgo, para a reunião da qual eu lhe falei, aliás, eu sei que é de última hora, mas se a senhorita pudesse convocar todo o pessoal da chefia dos diversos departamentos, eu ficaria muito agradecida!

     "Em primeiro lugar, não é nenhum incômodo, já que esta é a minha função... eu só gostaria que a senhorita me certificasse o horário da reunião"!

     - Parabéns pela competência, senhorita Urogalo, eu bem saberei como recompensá-la. Bem, a reunião era para se dar às dez horas de hoje, ou seja, daqui a dez minutos, mas como a maioria dos diretores não foram ainda convocados, podemos deixá-la para as duas da tarde, desde que a senhorita comunique o senhor Rafael que a reunião foi postergada e também comunique todos os outros encarregados de chefia!

     "Os seus familiares também"?

     - Áh, eles? N-não, pode deixar que eu mesma os convoco hoje na hora do almoço!

     "Então está bem, eu começarei a notificar todos os chefes agora e se eu não conseguir terminar, fa-lo-ei diretamente da minha casa, enquanto eu almoço."

     - De jeito nenhum, eu não quero estragar o seu almo...

     "Não tem problema, não sei se a senhorita sabe, mas eu moro sozinha, e quando eu vou para casa me dá um vazio interior... Por isso eu gosto quando tenho algo a fazer nestes momentos, e principalmente conversar com pessoas... Só assim eu me sinto viva, útil e lembrada"!

     - Mas que judiação! Mas você tem família?

     " Sim, todos eles moram numa cidadezinha chamada Sumidouro, no interior do estado. Mas aqui na grande São Paulo, eu não tenho ninguém e me sinto muito sozinha"!

     - Mas como, se eu te conheci durante uma festa na casa das minhas tias e você estava acompanhada de um outro funcionário nosso, do qual eu já não me lembro e o nome?

     " Mas ele quis só o momento, e eu quero e vida toda... Já não sou tão nova e, além de secretária já fiz de tudo um pouco, embora eu tenha a aparência de uma burra, eu até que sou esperta... Já tive outros namorados que sempre queriam fazer outras coisas, mas eu não fui boba, os mandei pastar e é com orgulho que eu digo que até hoje me mantenho invicta, esperando pela minha "alma gêmea"! Mas isto agora não vem ao caso, pois bem sei que a senhorita tem bem mais coisas para fazer e eu não tenho o direito de ficar importunando a senhorita com os meus queixumes".

     - Não há problema algum, às vezes é preciso desabafar mesmo, afinal todos nós temos problemas!

     " A senhorita é muito gentil, muito humana, é bom ter alguém como a senhorita na chefia, não que os outros não sejam bons, afinal Dona Débora e Dona Hella sempre foram como mães para todos nós... bem deixe-me parar com essa conversa mole e fazer o que a senhorita me pediu"!

     - Está bem senhorita Urogalo, qualquer dia destes podemos sair para tomar um suco e conversarmos um pouco... ciao! - Disse Roselene, desligando e já imaginando como seria a reunião no período da tarde...

 

     Roselene ganhou os portões da mansão a bordo do seu alvo e reluzente Rolls Royce Cornish, qual ela deixou perto da entrada principal, para que o garagista se encarregasse de estacioná-lo.

     Roselene entrou em casa cantarolando e foi logo ao encontro de suas tias que terminavam de preparar a mesa para o almoço ajudadas por Frida, Sótera e Leôncia. Era uma tarefa desnecessária, mas ambas, Débora e Hella sentiam prazer ao realizá-la. Roselene adentrou à copa sorridente, indo logo até as matriarcas e legando a cada uma um beijo no rosto.

    - E então querida, como foi a sua manhã? - Perguntou Débora.

     - Bem, normal, mas eu confesso que eu não pude parar de pensar... n-naquele assunto. - Disse Roselene, voltando o olhar para os empregados, os quais poderiam ouvir alguma coisa. Débora e Hella de pronto entenderam, encaminharam resto dos afazeres e depois convidaram Roselene para acompanhá-las até a biblioteca.

 

A porta foi fechada:

     - O que acha de um pouco de brandy para abrir o apetite? - Perguntou Débora, dirigindo-se para Roselene, já com a garrafa e um pequeno cálice em mãos.

     - Obrigada, a senhora sabe que eu não bebo titia.

     - E você não gostaria de alguma outra coisa?

     - N-não, nós já vamos almoçar e afinal de contas não é nada de tão importante...

     - É sobre a nossa proposta, não é? - Perguntou Hella.

     - S-sim, bem... tendo em vista a enorme dívida que eu tenho para com vocês por ter estado tão longe por tão longo tempo, eu me sinto na obri...

     - Nós não queremos obrigá-la a nada! - Adiantou-se Débora.

     - De modo algum, mesmo porque se fosse para assumir a presidência como uma obrigação eu não o faria, já que nada que se faz compulsoriamente fica bem feito... Eu pensei muito e, o meu temor é apenas de não estar na altura, de não ser tudo o que as senhoras estão pensando, ou seja... de não conduzir tudo a contento!

     - Mas ninguém está esperando de você uma atuação cem por cento. Será apenas uma experiência e, como na sua própria reunião você mesma disse: errar é humano! - Disse Hella.

     - Áh, tia Hella, a senhora não imagina como me deixou mais tranqüila... Pois nesta manhã uma porção de idéias se fizeram passar pela minha cabeça. Eu até liguei para o Paulo, aquele advogado que eu iria contratar, mas ele me confundiu ainda mais e eu acabei...

     - ... não o contratando. E nós podemos saber por que você não o fez? - Perguntaram as duas tias em uníssono.

     - Por dois motivos. Primeiro, foi por ele mesmo ter refrescado a minha memória e ter me lembrado de que é um tanto estranho eu estar o contratando enquanto nós temos uma advogada na família, falo de Lisiane!

     - Mas Lisiane ainda não está habilitada, não tem a "carteirinha" da OAB! - Explicou Débora.

     - Além do mais, ela jamais pareceu demonstrar interesse em atuar dentro da sua profissão. - Disse Hella.

     - E se este for o caso, você poderia sugerir sutilmente ou... ao menos perguntar se por ventura ela gostaria de assumir este cargo. Creio que isto tranqüilizaria a sua consciência. Sugeriu Débora.

     - Acho que sim, mas e se ela resolver aceitar? Acho que essa história de presidência às escondidas não vai dar certo, eu não conseguiria disfarçar todo o tempo, isto é, se ela estivesse trabalhando comigo! É melhor abrir o jogo ou desistir da idéia!

   - Se abríssemos o jogo eles não nos compreenderiam... - Ponderou Débora.

     - Se você desistir, talvez demoremos mais a saldar todas as nossas dívidas, devido a essa disputa entre as suas primas que está se tornando por demais acirrada e ao invés de nos fazer crescer, está nos estagnando. Nós precisamos da ajuda de alguém que lute pelo bem da família, sem pensar em simplesmente ficar por cima, em mostrar para os outros que é o melhor e sim dar a mão a todos eles!! Afinal nós só estamos fazendo isto no intuito de manter a família unida! - Alegou Hella.

     - E já estamos cansadas de apartar brigas, encobrir escândalos, pois enquanto nos preocupamos com isso, o nosso patrimônio padece! - Concluiu Débora.

     - Eu entendo como se sentem e quero ajudá-las, mas sem magoar ninguém. - Interveio Roselene.

     - Você não estará magoando, mas sim ajudando. Vamos fazer o seguinte, durante o almoço você pergunta para sua prima e dependendo da resposta que ela der, nós decidiremos o que fazer. Além de tudo, mesmo que ela aceitasse, estaria sempre tendo de substabelecer para que outro advogado assinasse, que seria, no caso, o senhor Jupiro Pintassilgo ou outro qualquer, como é o caso do seu amigo. - Conjeturou Hella.

     - Bem, eu não sei se daria certo, pois se caso eu vier a assumir a presidência, eu pretenderia vistoriar algumas das nossas maiores filiais e em certos casos eu naturalmente precisaria de um advogado completo ao meu lado. - Redargüiu Roselene.

     - Exatamente e creio que isto nem Lisiane e nem o senhor Jupiro, que não pode se ausentar daqui, seriam capazes de fazer, portanto apenas pergunte para a sua prima e depois contrate o seu amigo que deve ser um ótimo advogado! Afirmou positivamente, Débora.

     - Mas é aí que reside o segundo problema!

   - E qual é, céus? - Questionou Débora, impaciente.

     - Simples, eu preciso de uma procuração na qual vocês, que estão na presidência, me outorguem esse direito ou poder de contratar!

     - Mas você também faz parte do patrimônio, portando a contratação seria no nome da família! - Alegou Hella.

     - Paulo me disse que ele poderia intervir só nos casos referentes ao meu quinhão do patrimônio, o que não adiantaria de muita coisa. - Explicou Roselene. - Para poder representá-las em outras comarcas e juntamente com este novo advogado, são-me imprescindíveis, como disse Paulo, os termos das cláusulas Ad Judicia, Ad Negotia e Ad Extra, para que eu possa negociar em seus nomes e realizar ainda outros atos que se fizerem necessários!

     - Vejo que você já se informou de tudo e que está indo pelo caminho certo! - Elogiou Débora.

     - Claro, pois eu quero que tudo seja feito dentro das normas jurídicas, dentro da lei, pois se algo sair errado não quero que venham a dizer que eu estou agindo de má fé!

     - Tem razão, minha sobrinha, assim sendo providencie uma procuração que lhe outorgue os poderes necessários e nós assinaremos, não é mesmo Débora? - Questionou Hella.

     - Claro, vamos ver se assim colocamos o nosso patrimônio para frente. Depois que tudo estiver bem, eles entenderão esse nosso procedimento um tanto quanto escuso. - Concordou Débora.

     - Bem, se é assim, acho que posso providenciar tudo isto até amanhã. Áh! Há uma nova casa de chás que abriu nos Jardins... que tal se realizássemos as assinaturas dos documentos lá, amanhã às cinco horas? - Propôs Roselene.

     - Isso mesmo, é uma ótima idéia, não é mesmo Hella? - Questionou Débora.

Roselene queria um pouco de tempo para reorganizar as idéias e uma oportunidade para falar com Paulo novamente afim de receber dele novas diretrizes e as minutas de procuração.

Logo se fez ouvir um burburinho. Foi justamente quando alguém bateu na porta. Débora foi abrir:

 

     - Dona Débora, o almoço já está pronto, posso mandar servir?

     - Claro Frida, peça que Sótera e Leôncia comuniquem os outros, obrigada. Bem... eu estou morrendo de fome, vamos almoçar? - Convidou Débora. Hella atendeu de pronto ao chamado.

     - Você não vem Roselene? - Perguntou?

     - Daqui uns dois minutinhos, só quero pensar um pouco. - Respondeu Roselene, que deveria tentar convencer Lisiane a trabalhar como advogada, mas justamente de um modo em que ela se sentisse humilhada e negasse o convite. Se o convite não fosse "bem" formulado, Lisiane, apesar de não poder assinar como advogada e de não gostar nenhum pouco da profissão, o aceitaria somente por birra. Roselene teria de ser perspicaz naquele almoço. Um pouco nervosa, Roselene deu um gole diretamente no gargalo da garrafa de Brandy.

 

     Todos pareciam felizes naquele dia e contavam as coisas rotineiras uns para os outros. Os meninos com as novidades da escola. Claudia e Márcia fofocavam entre si e Lisiane apresentava um semblante alegre e ao mesmo tempo abobalhado. Roselene se juntou a eles o mais naturalmente possível, brincando com seu irmão e conversando com seus primos. Logo a farta refeição foi servida. Naquele dia o cardápio era uma italianíssima baccalà mantecata alla polenta(espécie de purê da bacalhau com polenta) e orecchieti alla pecorara(massa com verduras, carnes, peixes e frutos do mar grelhados e ricota seca). O que aguçou ainda mais o paladar e o apetite de todos.

     Claudia foi a primeira a se servir, abastecendo fartamente o seu prato, ante o olhar outrora perdido e embasbacado e agora psicótico, de Lisiane. Claudia logo notou aquela situação:

     - Você não acha que está exagerando? - Questionou Lisiane.

     - Quem, eu?!

     - É, você.

     - Mas meu frisson, por que você pensa assim?

     - Justamente porque eu, ao invés de ficar me empanturrando de polenta e purê, eu estou dando início a uma nova dieta! Vou passar a tomar essas pílulas rejuvenescedoras e emagrecedoras; ingiro-as com água morna ou mesmo com um chá emagrecedor, composto de massanilha, alcachofra, quebra-pedra, camomila, car...

     - Massanilha e camomila não são a mesma coisa? - Questionou Roselene, tentando ser gentil.

     - Mas não me interrompa... bem, é que todo homeopata diz, camomila e massanilha são a mesma planta, mas é aí que eu me lembro de papai, que dizia que as flores da massanilha eram menores e mais achatadas do que as da camomila, e no paladar, o chá da massanilha é pouco mais amargo que o da camomila, assim como também as ramagens da massanilha são mais miúdas, as da camomila são mais graúdas!!!

     - Nossa prima, você está por dentro! - Elogiou Roselene. - E o que mais você põe nesse chá?

     - Carqueja, folhas de figueira, erva-doce e um pouquinho de erva-cidreira que é para evitar irritações devido à não ingestão de alimentos. Depois de ter sido isto ingerido juntamente com pílulas de lecitina de soja, spirulina, guaraná, gelatina e vários outros compostos vegetais alimentícios e emagrecedores, eu dou um espaço de uns quarenta e cinco minutos e completo a minha refeição com um pó batido em água que se transforma num shake quase sem calorias, o qual faz parte do tratamento!

     - Mas você só vai se alimentar disso o dia inteiro?? - Perguntou Fred.

     - É evidente que não, estúpido. Há uma refeição que eu posso fazer completa e esta eu reservei para a noite, uma vez que eu sou meio marsupial e como uma boa notívaga durmo tarde!!

     - E o que é que você come? - Perguntou Roselene, novamente demonstrando-se interessada.

     - Faço uma boa refeição, mas não cometo o pecado de misturar lipídios com carbohidratos, ou é um ou é outro!!!

     - Explique-nos melhor! - Pediu Débora.

     - Bem, lipídios são os produtos derivados dos animais, assim como a própria carne, os ovos, o queijo, o leite, a manteiga, a margarina, etc... Os carbohidratos são os cereais e os tubérculos em geral, assim como o arroz, o feijão, as massas de qualquer espécie, as batatas, o aipim, o açúcar, etc... Estes dois grupos de alimentos jamais podem ser misturados para que não se engorde!

     - M-mas comer carne e ovos puros não é um pouco pesado? - Perguntou Samanta.        

     - Não, tola. Se eles forem devidamente dosados e equilibrados com uma boa quantidade de frutas, verduras e legumes, que é o que eu chamo de alimentos neutros, os quais combinam tanto com carbohidratos quanto com lipídios!

     - Açúcar então, nem pensar? - Perguntou Sótera, que estava interessadíssima na conversa. - Se a senhorita me permite a pergunta... - Completou a subalterna, meio que constrangida.

     - Mas é evidente que eu permito, idiota... açúcar? Mas é claro, já que ele é um carbohidrato, mas deve-se prestar atenção se no doce que formos comer não existem lipídios, como os chocolates e os pudins por exemplo. Neste caso mister se faz que se substitua o açúcar por um aspartame ou stévia... jamais sacarina, pois está comprovado que ela pode gerar câncer!! - Explicou Lisiane, categórica.

Todos na mesa estavam prestando atenção em Lisiane. Foi quando Márcia perguntou:

     - E aquela cervejinha da sexta feira, tem de ser cortada?

     - Aquelas dúzias que você toma? De maneira nenhuma, pois cerveja é um carbohidrato e poderá ser muito bem acompanhada por batatas fritas, polentas fritas, mandiocas fritas, etc... mas nada de carne! - Explicou Lisiane.

     - Tudo bem que você só vai comer uma vez ao dia, mas para quem faz normalmente todas as refeições, qual é o espaço que deve ser dado entre cada qual para se mudar de carbohidratos para lipídios ou vice-versa? Ou se eu me decidir pelos carbohidratos, terei de comê-los durante todo o dia? - Perguntou Fred.

     - De jeito nenhum, basta que você dê o intervalo de no mínimo cinco horas entre cada refeição, aí você pode mudar a vontade!

     - Parabéns prima, acho que ao invés de Direito você deveria ter feito uma faculdade de Nutricionismo! - Disse Roselene, aproveitando a deixa.

     - Ui, isso tudo é muito complicado e cheio de regras! - Disse Claudia.

     - Basta apenas um pouco de força de vontade... - Respondeu Lisiane, voltando a mirar, com uma espécie de sorriso tolo e os olhos fixos num ponto perdido da copa.

     - Mesmo assim Lisiane, eu acho que você deveria comer pelo menos um pouco, afinal você precisa de energias para trabalhar!! - Interveio Hella.

     - Querida prima, não vejo a menor necessidade de você fazer uma dieta. - Disse Roselene, amavelmente. - Você está em plena forma. - Lisiane pareceu não dar atenção.

     - Plena forma lhufas, Lisiane está gorda! - Disse Márcia, ao abocanhar uma garfada de purê acompanhada de um pedaço de bacalhau, deglutindo em seguida uma parcela do refinado Chianti que acompanhava aquela refeição. Os olhos de Lisiane perderam novamente a placidez e se voltaram para Márcia fulminantes:

     - E você? Já se olhou no espelho? Já se deu conta das pelancas, estrias e pneumáticos? Isso sem falar no tamanho do busto e dos teus quadris... até parece que está grávida! - Quando Márcia estava pronta para responder, ambas foram interrompidas por Claudia, que com sua voz melosa, tentou quebrar o gelo:

     - Calma gente, vocês não estão percebendo que Lise quer dar um trato no visual porque ela está amando? Isso só pode ser coisa de mulher apaixonada que quer parecer cada vez mais bela para o homem que ama! Não vão me dizer que vocês não notaram o olhar mongolóide e o sorriso "pamonha" que ela trás estampados no semblante? Isso sem falar neste brilho nos olhos há muito esbugalhados! C'est l'amour... l'amour, toujours l'amour...! Que tal erguermos um toast, um brinde? - Propôs Claudia.

     - Sou eu quem vai brindar você com uma boa "baixelada", fazendo-a engolir toda essa maldita polenta!!! - Bradou Lisiane.

     - Mas... meu "Pato a Tucupi", eu não quer...

     - Cale-se!!! E saibam vocês que eu não estou me sentindo gorda e muito menos estou apaixonada pelo Ricardo!!! - Protestou Lisiane, quase que se engasgando, tal foi a quantidade de pílulas que ela ingeriu.

     - Pelo Ricardo??! - Riu-se Márcia. - Mais alguns anos e ele serviria para ser seu filho!

     - Sua sanguessuga invejosa, ele é um ano mais velho do que eu!! E como coisa que você não andasse de "amores" com aquele asqueroso do Rafael e isso sem falar nos seus passeios matinais pelo depósito durante os quais você costuma atacar um carregador aqui ou outro ali!!! - Disse Lisiane, cuspindo-se de brava ao passo que descontroladamente ingeria mais pílulas.

     - Mas isso é uma calúnia dessa complexada... e olha que eu posso te processar porque difamação é crime tipificado no artigo l39 do Código Penal Brasileiro!! - Contestou Márcia, enquanto que Débora e Hella estavam absortas com toda aquela "lavação" de roupas sujas. Roselene estava simplesmente adorando. Ao passo que Lisiane fungava e ingeria mais pílulas.

     - Mas pare de ficar comendo essas pílulas como se fossem pipocas! Daqui a pouco você estará engatinhando, isso se não voltar a ser um bebê prematuro e raquítico, esquálido, tísico e esquelético!! - Interveio Hella.

     - Que nada, é mais fácil o efeito reverter e ela engordar o quíntuplo, transformando-se numa espécie exótica de peixe-boi, ou quem sabe num belo exemplar fêmea de baleia Jubarte... "tadinho" do Ricardo, terá de despender fortunas para o tratamento de uma esposa de mais de trezentos quilos! - Disse Márcia, que comia com apetite. Antes que Lisiane, que estava a ponto de virar a mesa pudesse responder, Claudia interveio novamente:

     - Por que você não faz como eu gnocchino, coma, se empanturre até não poder mais de tudo o que você quiser, mas faça bom uso da técnica da "Neurolinguística Auto-Sugestiva". É simplesmente uma questão de comer e simplesmente mentalizar e ter certeza que esta comida não vai engordar... posteriormente essa mentalização progredirá para uma certa má vontade de comer, até se transformar em completo repúdio pela comida....

     - Mas daí a “primassa” aí, vai cair numa anorexia e vai morrer definhando de seca! - Alegou Márcia.

     - É mais ou menos assim, o segredo é somente uma questão de pensamento positivo... se você acredita que é uma leoa-marinha, então você a é, por menos que você coma, ou então, nem ao menos coma. Se você acredita que é uma sílfide como eu, você também a é, por mais que você coma até vazar! - Explicou Claudia. Lisiane por sua vez ficou olhando absorta para a prima, que nem ao menos se prestava à polidez de não falar com a boca cheia, tal era a intensidade, a velocidade e a quantidade de alimento que ingeria. Roselene, por sua vez, achou o momento oportuno para intervir:

     - Se você não quiser passar fome, manter o corpo em forma e principalmente o espírito e a mente equilibrados, faça como eu, uma dieta naturista acompanhada de muitos exercícios físicos, os quais mantém o corpo rígido e menos vulnerável a um tropeço ou queda... se a constituição óssea estiver devidamente calcificada e fortalecida, a textura do organismo naturalmente corresponderá a ela. E se de algum modo a fome apertar, passe imediatamente para uma dieta macrobiótica! Assim você deixará de se privar tanto e só se alimentará de coisas saudáveis, desde que...

     - Ótima idéia! - Bradou Lisiane, neuroticamente. Eu preciso de um whisky!!!

     - E o regime?! - Questionou Márcia. - Qual é exatamente o papel das bebidas com fortes graus alcoólicos, neste tipo de dieta??!

     - São somente carbohidratos, mas estes carbohidratos devem andar longe dos lipídios e só ter contato com os legumes e as verduras. - Explicou Lisiane.

     - Que eu saiba bebidas alcoólicas incham porque retém líquido, consequentemente a pessoa acaba engordando, além do mal que ela faz para o organismo, pois não deixa de ser uma droga como outra qualquer! - Disse Márcia, ao destrinchar um marisco e colocá-lo inteiro na boca depois de respingar algumas gotas de limão sobre o mesmo.

     - Aos diabos... onde está o maldito whisky? - Ordenou Lisiane.

     - Vai beber à essa hora do dia? - Questionaram Débora e Hella, indignadas e novamente em uníssono.

     - Para agüentar esse hospício, só desse jeito mesmo!! - Disse Lisiane, que deu de encontro com o olhar estupefato de Leôncia que estava ajudando a servir. - Não me ouviu não, sua porta? Ou será que eu mesma terei de ir lá buscar o que eu pedi??!! Vá lá buscar!! E uma dose tripla!! - Ordenou Lisiane.

     - Não fale assim com ela!!! - Ralhou Débora.

     - A que ponto chegamos. - Disse Hella, já abandonando a sua refeição.

     - É... Love is in love again... - Murmurou Claudia alegremente, enquanto comia e bebia sem parar. Roselene julgou ser aquele o momento certo:

     - B-bem, eu não quero atrapalhar a conversa de vocês mas... eu gostaria de comunicar que hoje às quatorze horas haverá uma reunião de praxe com o pessoal da diretoria e, seria interessante que todos estivessem presentes, pois eu acho que devemos unir os nossos esforços em prol do nosso patrimônio! - Claudia, Márcia e Lisiane, que já bebia o whisky, se entreolharam.

     - Vai ser outra chatice igual a de segunda-feira? - Perguntou Lisiane.

     - É somente uma reunião para analisar o nosso atual status quo financeiro. Uma espécie de balancete, onde cada qual de nós apresentará as suas metas a serem desenvolvidas, isto é claro para o reerguimento do nosso estabelecimento num trabalho em conjunto. - Roselene não poderia ter usado palavras mais certas.

    - Eu já fui a primeira a fazer isto! - Redargüiu Lisiane.

     - B-bem... se eu puder com certeza eu irei, mas tenho que apanhar um solzinho antes, afinal o dia está divino! - Desculpou-se Claudia.

     - E eu tenho algumas compras a fazer antes de ir até a loja, além do mais duas horas é muito cedo. - Alegou Márcia. Na verdade nenhuma delas queria participar, pois não queria ser forçada a revelar aos outros os seus planos. Além do que a idéia de trabalho em conjunto com Roselene lhes causava ojeriza.

    - Bem, eu conto com todos que puderem ir... - Disse Roselene, fingindo um olhar desapontado. Débora e Hella estavam perplexas. - É que eu pensei... - Continuou Roselene. - ... que pelo fato de vocês serem profissionais dentro das áreas do Direito, Administração e Economia, vocês poderiam agir mais maciçamente dentro do nosso patrimônio, já que têm competência e conhecimentos para isso, enquanto que eu sou graduada numa área totalmente diferente e confesso que eu me sinto um tanto desamparada... Não tenho muita intimidade com o restante da diretoria... principalmente agora que tenho assuntos pendentes em relação à minha parte do patrimônio... assim sendo eu       precisaria do apoio jurídico de alguém da família... do seu Lisiane... - Sugeriu Roselene, já antevendo a resposta.

     - Você quer que eu trabalhe para você?

 

     - Para mim não, para nós! Afinal não há razão de ser para contratarmos profissionais de fora se já os temos na família!

     - "Ti vira", você também é uma das patroas e é dona do seu nariz! - Respondeu Lisiane, já um tanto alterada pela bebida.

Enquanto todos tentavam se desvencilhar da tal reunião, a sobremesa estava sendo servida, tratava-se de uma crostata com geleias de frutas e sorvete de kiwi com pedaços da própria fruta.

     - Bem, acho que já não há mais espaço para a sobremesa. Eu vou é aproveitar o sol para embelezar ainda mais esse corpinho que Deus me deu! - Disse Claudia, levantando-se.

     - Eu acho que também vou me adiantar nas compras! - Disse Márcia.

     - E eu, a "vale quanto pesa", quero mais um whisky! - Desta vez foi Lisiane. Débora não pôde mais suportar e antes que as duas saíssem se fez ouvir:

     - Francamente meninas, eu não consigo acreditar no que eu estou vendo e ouvindo. Ao invés de todos se darem as mãos para que nós saiamos do buraco, vocês fazem questão de criar esse clima de disputa! - Em seguida a Débora, foi Hella quem tomou a palavra:

     - A maioria de vocês já é composta por maiores emancipados e está mais do que na hora de colocarem os pés no chão, uma vez que eu e Débora não somos eternas!!

Débora continuou:

     - Além do mais, vocês moças, já estão na idade de pensar nos seus irmãos mais novos!! E se nós morrêssemos agora, o que vocês fariam da tutela do patrimônio a eles pertencente?

     - Vira essa boca p'ra lá tia, ninguém vai morrer, ninguém vai tutelar ninguém e além do mais logo eles atingirão a maioridade e saberão se virar!! E diga-se também de passagem que eu não tenho cabeça e nem idade para ficar me preocupando ou cuidando de crianças órfãs!! - Argumentou Lisiane, visivelmente alterada.

     - Eu também acho! - Disse Márcia, que não tinha nada a ver com aquela discussão, pois ela era filha única.

     - Bye! - Disse Claudia, saindo de fininho ante os olhares pasmos e decepcionados de Débora e Hella. Roselene por sua vez saboreou a sua vitória naquela batalha; bastaria um pouco mais de melodrama e tudo estaria ao seu gosto. Não havia mais dúvidas que ela era a mais indicada para assumir a presidência e principalmente contratar Paulo Rivoredo.

 

     Na reunião vespertina, marcada por Roselene para as quatorze horas, todos os chefes de setores compareceram, inclusive Jupiro Pintassilgo, responsável pelo setor jurídico. Além deles estavam presentes suas tias, Débora e Hella e seus primos mais novos: Fred, Samanta e Alexander, os quais após terem visto e ouvido suas irmãs, estavam muito mais interessados em apoiar a quem com eles se importava e, Roselene já havia dado demonstrações disso. Além do mais os garotos mantinham a constante empolgação em aprender mais no que dissesse respeito aos assuntos das lojas.

     Esta reunião não teve o teor daquelas de grandes novidades, Roselene só queria estreitar as suas relações com o pessoal da chefia e principalmente com Ricardo e Rafael, que mediante qualquer deslize seu poderiam por tudo a perder, delatando-a para suas primas, ou de modo inverso, poderiam ajudá-la... e muito, passando para suas primas as informações que ela bem quisesse.

     Ela basicamente pediu pelas mesmas informações que suas primas outrora fizeram. A situação das filiais, das franqueadas, as dívidas no ativo e no passivo. O que levou os Villas Bhoas a chegarem até tal situação, além da análise de vários documentos, como a contratação de pessoal, contratos de compra e venda, recibos, notas promissórias, folhas de cheque, muitas delas devolvidas pelos bancos, levantamento pró-labore(indicação da remuneração ou ganho que se percebe com a compensação do trabalho realizado, ou da incumbência que é cometida à pessoa) e mais um bom quinhão de outros documentos, muitos deles assinados pelos funcionários e também por Márcia, Claudia e Lisiane, as quais tinham conta conjunta com algumas contas bancárias de suas tias e portanto puderam efetuar algumas compras. Roselene não deixou de dispensar elogios especiais para Ricardo e Rafael, além de incentivar o trabalho realizado por outros chefes e funcionários de relativa importância.

     Deu especial atenção aos seus primos mais novos, explicando-lhes tudo o que fosse possível. Com eles ela estava simplesmente aplicando a "Microfísica do Comportamento"(o que significa que ela só ensinava para eles o que ela queria. Por exemplo: se para uma situação ela tivesse um leque de opções para resolvê-la, ela somente ensinaria um modo de fazê-lo para os seus primos. Assim sendo eles jamais poderiam superá-la no controle das lojas, e num fortuito confronto, ela, com certeza seria a dona da situação por ser detentora do conhecimento de como manejar as coisas de diferentes modos, e eles... só de um, aquele que ela havia os ensinado). No final, alegando falta de tempo hábil para analisar todos aqueles documentos ainda durante a reunião, Roselene pediu permissão para que se tirassem algumas fotocópias de toda aquela documentação e em seguida devolveu os originais para os seus respectivos portadores, fazendo com que tudo parecesse uma simples atitude rotineira. Como não houve objeções, ela chamou Urogalo e pediu para que a funcionária providenciasse aquilo rapidamente. Documentos os quais ela analisaria posteriormente em casa. Ela deu a reunião por encerrada, agradeceu as suas tias e em segredo lhes disse que iria procurar por Paulo para providenciar as minutas de procuração. Pediu para que ambas nada comentassem com os outros funcionários, a respeito da contratação de Paulo como novo advogado, para que eles não pudessem pensar que ela iria fazer esta vistoria em algumas das principais filiais e na matriz justamente por estar desconfiando deles. Débora e Hella concordaram plenamente e tiveram como nobre, o ato da sobrinha.

     Roselene por fim, pediu licença para sair, alegando que deveria providenciar as minutas de procuração com um advogado da sua confiança, ou seja, Paulo. - Débora e Hella a liberaram, pois viam nela uma luz para a resolução de todos os problemas.

 

     Já passavam das dezesseis horas e trinta minutos quando Roselene deixou o "shopping" e dirigiu por um longo tempo até chegar à periferia, mais precisamente no bairro de Itaquera, onde ela saiu da via principal ganhando assim algumas ruelas estreitas onde o seu aristocrático automóvel chamava muito a atenção dos transeuntes. Ela havia erguido a capota e fechado todos os vidros, além de ter travado todas as portas. Um gélido arrepio lhe percorria a espinha a cada olhar com o qual ela se defrontava. Roselene procurava atentamente por um local. Para tanto prestava muita atenção nas placas e na numeração das casas. Sua atenção foi chamada por um simplório e mau acabado sobradinho o qual se erguia numa mau contornada esquina. Sua construção estava incompleta, tendo partes componentes em folhas de compensado, tábuas e algumas paredes erguidas em alvenaria sem reboco. O tal sobradinho abrigava um tosco estabelecimento... um bar. Pequeno, exalando à aguardente e repleto de homens mal-encarados e malcheirosos. Uns sentados ao balcão e, outros jogando bilhar cada qual com seu copo de cachaça ou cerveja, além do taco, numa mesa mais ao fundo.

     Roselene saiu do automóvel e trancou bem a porta. Seus trajes refinados e seu porte de realeza chamaram mais ainda a atenção dos simplórios e maltrapilhos pedestres e transeuntes e muito mais dos freqüentadores daquele sórdido bar. No momento em que nele Roselene adentrou sem retirar os óculos solares negros, houve alguns assobios e gracejos, com os quais ela pareceu não se importar, somente analisando o ambiente e dando-se conta do que se passava à sua volta. Em seguida retirou os óculos num gesto seco e encarou todos aqueles barflies, bêbados de plantão. Seu olhar destemido pareceu intimidá-los e cada qual voltou a cabeça para a sua auto-derrota... seu copo. Os olhos de Roselene detectaram a presença de um homem baixo e barbudo, o qual ao vê-la, tentou despistar, indo justamente em direção à mesa de bilhar. Ela retirou da caríssima bolsa de pelica a sua piteira e ante os olhares atentos dirigiu-se até "o próprio", que não teve como escapar, ficando encurralado entre a mesa de bilhar e o balcão. Os risinhos retornaram e as atenções estavam voltadas para ela. Uma vez postada ao lado do homem, ela inquiriu:

 

     - Por quê tanto medo?

     - "Num tô cum medo, só num quero confusão."

     - Confusão? Eu acho que vim te... - Roselene foi bruscamente interrompida pelo dono do     bar, que com um tapa forte no balcão e em tom debochado de voz perguntou:

     - A "madame" bebe alguma coisa? - Houve uma gargalhada geral. Roselene engoliu em seco e olhando para o lado percebeu que o rapaz com quem ela estava falando bebia cachaça pura. Ela voltou os seus olhos para o dono e encarou-o:

     - O mesmo que ele. - Houve mais risos, meio que decepcionados.

     - A madame vai de "branquinha"?

     - É... é isso aí. - Respondeu Roselene, olhando direto nos olhos do dono do bar e com um tom seco. O homem serviu o líquido num copo específico para aguardente. Estavam todos curiosos e esperando que ela desse o primeiro gole. Notando que os ânimos se exaltavam, Roselene tomou o copo em mãos e virou-o garganta abaixo. Sem fazer careta ela pediu por uma nova dose. Isto acabou com toda a especulação e ela pode retornar à conversa. O homem com quem falava resmungou:

     - "Num sabia que tinha começado a bebê!"

     - Isso não é da sua conta. Eu estou aqui para saber se o senhor ainda faz aquele trabalho?

     - "Farsificação"?

     - E qual é o outro? Que eu me lembre foi este o motivo do nosso "negócio" há quase dez anos... E então?

     - "Hoje tá mais perigoso dona, os tira tão dando mais encima"...

     - Portanto o serviço é mais caro... há... the sordid topic of coin...

     - O quê?

     - Sempre o vil metal... muito bem, qual é o seu preço?

     - "É assinatura muito difíce"?

     - São várias e... quem vai dizer se são difíceis é você!

     - "Antão eu... primero faço o serviço e dispois dô o preço".

     - Então nada feito. - Disse Roselene, ameaçando evadir-se do local.

     - "Cinco milha"... - Resmungou aquele quasímodo de sotaque nortista.

     - Cinco mil reais?                              

     - "Isso mermo".

     - Fechado. Amanhã nove da noite, para melhor entendedor vinte e uma horas, na praça da República, na banca frente a entrada para a estação de metrô. Esteja lá e eu te passo o material e lhe informo o que deverá ser feito e... espero que eu não esteja jogando dinheiro fora!!

     - "Pode dexá dona, com o tempo a gente aperfeiçoa o metiê".

     - Que assim seja e até amanhã. - Disse ela, deixando sobre o balcão uma nota de dez reais para pagar as bebidas. A passos largos ela se encaminhou para o carro. Quando já estava prestes a entrar, ela foi barrada por um homem alto, vestindo um mau confeccionado summer e um chapéu branco.

     - Onde é que a gata pensa que vai tão cedo?

     - Eu vou estourar os seus miolos se você não tirar as suas mãos sujas da porta do meu carro. - Disse ela serenamente, ao retirar da bolsa um calibre 22 e exibi-lo para o seu interlocutor, o qual se assustou e por fim se afastou. Roselene ganhou o interior do Rolls Royce e partiu acelerando. Ela havia ficado nervosa. Já anoitecia...

 

Logo mais a campainha do apartamento de Paulo se fez ouvir. Não demorou para que a porta fosse aberta:

           - Boa noite meu "douto jurista". - Disse Roselene adentrando, ao passo que legou uma breve carícia aos cabelos de Paulo.

     - Você bebeu?

     - Bebi, por quê?

     - Por nada, eu só senti o odor de...

     - ...aguardente... foram duas doses enquanto eu recontratava aquele nosso velho e conhecido falsário, como é mesmo o nome dele?

     - Anacleto, vulgo "mão de fada"... você teve coragem?

     - Claro, tudo já se encontra muito mais adiantado do que você pensa. Será que você poderia me servir um cocktail de champagne para tirar esse gosto horrível de cachaça da minha boca? - Pediu Roselene, acendendo já uma das extremidades da sua longa e dourada piteira, toda cravada de diamantes, a qual ela adquirira na África do Sul há muito tempo atrás.

     - Adiantado como? - Perguntou Paulo, impaciente.

     - As minhas inocentes e preocupadas tias simplesmente notaram a urgência em te contratar... Lisiane bebeu na hora do almoço e mandou para os ares o cargo de advogada assistente do complexo Villas Bhoas que eu gentilmente ofereci. Claudia e Márcia preferem "pegar um bronze", compras e homens a se preocuparem com os negócios. Quanto aos incapazes e ao relativamente capaz, eles presenciaram toda a querela e até compareceram juntamente com as minhas tias na reunião que eu fiz com a chefia toda hoje de tarde... pobrezinhas, as velhotas estão desoladas com as sobrinhas que têm. Resumindo, eu "puxei o saco" de todos o mais que pude, pedi para verificar alguns documentos já assinados por muitos dos chefes de departamento e principalmente pelas minhas primas. Como ato rotineiro, alegando falta de tempo hábil para analisá-los, eu pedi que eles fossem fotocopiados e amanhã passarei as assinaturas para que o "mão de fada" às coloque embaixo das procurações dos meus primos. Áh! Descobri que cada qual tem o seu quinhão de herança, mas assim mesmo colherei melhores informações amanhã. Logo em seguida protagonizarei uma cena melodramaticamente cinematográfica em público, com a qual certamente obterei as assinaturas das minhas tias para o que eu bem quiser e, principalmente a tutela dos bens dos incapazes e a do relativamente capaz, após uma “chegadinha” no notário público ou como se preferir, tabelionato. Agora, naturalmente eu vim pegar de você as minutas de procuração, uma vez que tia Débora e tia Hella estão "ansiosíssimas" por assiná-las!

     - Só por isso?

 

     - E... para te convidar para um jantar, afinal eu estou com muita fome... Estou te convidando para saborear um medalhão com caviar regado à um legítimo Barolo no Terraço Itália! Que tal?

     - Eu não quero sair...

     - Então eu irei sozinha e... encontrarei outro alguém!

     - Por que é que não podemos pedir uma pizza, bebermos um vinho e ficarmos aqui juntos, como todo mundo faz?

     - Justamente porque eu não sou todo mundo e além do mais é muito monótono.

     - A minha companhia é muito monótona?

     - É. Quando você se torna possessivo e exclusivista!

     - Às vezes eu me acho um palhaço. - Lamentou-se Paulo. Roselene surpreendeu-o com um demorado e forçado beijo na boca, empurrou-lhe para o sofá desabotoando-lhe a camisa até o ponto de enlouquecê-lo...

     - Por que é que nós não jantamos primeiro, depois você me passa os modelos das procurações e para comemorarmos nós nos entregaremos um ao outro? - Propôs Roselene.

     - Eu não queria sair de casa...

     - Mas vai... pode ir se acostumando a ser o marido de uma empresária de sucesso e badaladíssima socialmente.

     Não houve remédio, Paulo teve que trocar de roupa e ir com Roselene até o Terraço Itália. Já devidamente acomodados numa mesa:

     - E então, está gostando? - Perguntou Roselene.

     - Já disse que preferiria estar em casa. - Replicou Paulo.

     - Não seja tão anti-social, afinal a comida e os drinks daqui são ótimos, além do mais é tudo por minha conta!

     - Não é isso... você não entende...

     - Não entendo o quê?

     - Que eu quero ficar só com você! Eu quero você para mim, toda, inteira, completa...

     - ...e submissa na cama... - Disse Roselene, umedecendo os seus lábios com vinho.

     - Onde Deus quiser!

     - Ou onde o diabo tentar... Saiba Paulo, que eu não procuro por sexo... isso eu faço com o homem que eu quiser, pois eu tenho dinheiro... sexo é apenas um acessório e eu procuro pelo principal: amor, afeição, carinho e compreensão e... eu quero acreditar que isso só você é capaz de me dar. E se não for, me faça o favor de passar as procurações, me dê o seu preço e caia fora...

     - Então você não me ama! Às vezes eu preferiria morrer...

     - Algumas lágrimas de dor no coração não são suficientes para matar alguém, ainda mais quando não se é o culpado!

     - Por favor! Aqui está o modelo da procuração! - Disse Paulo, tirando da pequena valise que levara os documentos e depois entregando-os para Roselene. Esta os tomou em mãos, já que eram dois, um para Débora e outro para Hella. Empolgada ela passou a ler em voz alta todo o conteúdo da procuração feita para sua tia Débora. A procuração estava estruturada da seguinte maneira:

 

                       MINUTA DE PROCURAÇÃO

 

     OUTORGANTE: Débora Alexandra Nantes Villas Bhoas, brasileira, viúva; carteira de identidade RG n. 1.153.452-1; cartão de pessoa física(CPF/MF) n. 850632088 55, residente e domiciliada na Alameda das Begônias, nº. 100, Morumbi, São Paulo, capital.

 

     PROCURADORA: Roselene Bordon 2Villas Bhoas, brasileira, solteira; carteira de identidade RG n. 5.744.246-5; CPF/MF n. 465921220 85, Residente e domiciliada na Alameda das Begônias , n. 100, Morumbi, São Paulo, capital.

 

     PODERES: amplos, gerais e ilimitados, contidos da cláusula AD-JUDICIA; AD-EXTRA e AD-NEGOTIA, especialmente para promover o gerenciamento de todo patrimônio da família Villas Bhoas, podendo para tanto, dita procuradora, firmar compromissos e declarações, iniciais e finais, de bens, direitos, obrigações, sucessões, concordar ou não com cálculos e avaliações; abrir, movimentar e fechar contas bancárias, firmar e rescindir toda a espécie de contratos, inclusive os de compra e venda, independente de prestação de contas; conferindo-lhe poderes para ainda representar a outorgante junto à repartições públicas, sejam federais, estaduais e municipais; autarquias, tabelionatos, registros, institutos de previdência social, estabelecimentos bancários, seguradoras; podendo receber, dar quitação, transmitir, receber posse, domínio, direitos e ação; responder pela evicção, assinando documentos, firmando contratos, escrituras públicas ou particulares, requerimentos; enfim tudo o mais que se fizer necessário para o bom e fiel andamento do presente mandato.

     Por ser expressão da verdade, firmam a presente:

Débora Alexandra Nantes Villas Bhoas (assinatura)

Roselene Bordon Villas Bhoas (assinatura)

 

     Roselene parecia feliz e a primeira pergunta em relação à minuta de procuração pareceu boba:

     - O que é evicção?

     - É uma perda, parcial ou total, que sofre o adquirente duma coisa em conseqüência da reivindicação judicial promovida pelo verdadeiro dono ou possuidor.

     - Mas de onde você conseguiu todos esses dados a respeito das minhas tias? - Perguntou Roselene espantada, após o término da leitura.

     - Eu simulei que estava executando as duas e pleiteei por uma cautelar de caráter liminar contra as presidentes das organizações Villas Bhoas. - Respondeu Paulo.

     - E como se faz isto?

     - Basta se pegar um título de crédito, como um cheque por exemplo, que fora extrajudicial e que adquiriu caráter executivo e provar que o devedor insolvente não pagou do prazo estipulado. Por base toma-se o fumus boni juris, ou seja deve haver legitimidade neste tipo de execução, para tanto este termo latino significa "fumaça do bom direito", e a boa fé, a autenticidade do direito pleiteado. Também se faz uso do periculum in mora, que é o perigo na demora, ou seja, demonstra que a dívida não foi paga ou pode não ser paga dentro deste prazo estabelecido... E por fim bastou ir até o tabelionato Linus Taurus da Avenida São João onde todos os componentes da família Villas Bhoas têm cartão de reconhecimento de firma, inclusive você.

     - Eu?!... Áh sim, agora me lembro. - Respondeu Roselene, esboçando um sorriso malicioso.

     - E é justamente neste tabelionato que você vai levar todas as procurações particulares para serem reconhecidas legalmente

     - E quanto às outras procurações?

     - Use o computador e somente "cole" os dados referentes a cada uma de suas primas e depois mande o falsário assinar... Se você tiver sorte os termos de tutela dos menores estão neste mesmo tabelionato, aí basta realizar a transferência das tutelas para você, registrar tudo, pegar os traslados, ou seja, as cópias deste tipo de procuração que é de caráter público e pronto.

     - Cópias?

     - Sim, os originais ficam arquivados no cartório, pois a tutela é pessoal e pública.

     - Ótimo... amanhã, alegando a indefectibilidade dos menores, eu peço para minhas tias novas procurações me outorgando a representação dos seus tutelados. Elas certamente acreditarão na minha boa fé após o meu teatrozinho, é claro que aceitarão e imbuídas por providenciar o melhor para família irão juntamente comigo até o tabelionato, representando os tutelados.

     - Não se esqueça de que o relativamente capaz tem de estar presente, pois ele terá de assinar também!

     - Não será difícil convencer Fred, basta um belo presente antes e pronto... quem sabe eu não dou um computador de última geração para ele e banco a assinatura de alguns sites específicos da Internet, coisa que ele tanto quer!

     - Você deve descobrir por quem ele é assistido, assim como por quem todos os outros são tutelados. Por Débora ou por Hella.

     - Amanhã durante um chá eu farei isso.

     - As procurações particulares das suas tias e suas primas maiores você pode enviar para o mesmo tabelionato, notário público onde se reconhece assinaturas, se faz ou registra escrituras e outros documentos de rotina a serem registrados, até mesmo autenticações de cópias de documentos envelhecidos. Assim todos pensarão que você está se mostrando eficiente e também protegendo o patrimônio da família! - Recomendou Paulo

     - Você parece estar instruindo uma imbecil! Se quer saber eu detenho alguns conhecimentos a respeito de tudo o que você fala e, principalmente eu não sou tão burra quanto as minhas primas!

     - Não foi isso que eu quis dizer! - Redargüiu Paulo

     - Mas foi isso que eu entendi. Você tem as suas turmas de alunos ignorantes para dar aulas de Direito e não a mim! Afinal não sou uma ignorante qualquer e quero ir embora!

 

     - E o resto da nossa noite?

     - Estou por demais estressada para isto... fica para a próxima.

   - E eu, como fico?

     - Do jeito que está.

     - Você não presta mesmo, mas eu te amo!

     - Vou te deixar no teu apartamento e em seguida vou para casa... devo ter sido acometida por uma insolação e portanto sinto dores lancinantes na fronte...

   - Tudo para não ficar comigo!

     - Imagine, eu só iria te chatear com a minha conversa. Se você ainda quiser uma carona, então me acompanhe!

     - Não sei porque eu cheiro algo de falso nisto.

     - É a sua opinião...

     - E se eu não quiser ir?

     - Então fique e divirta-se, pois como eu disse, o que consumimos até agora é por minha conta.

     - Mas você prometeu e...

     - Prometi mas não posso cumprir devido a minha súbita indisposição... - E assim Roselene conseguiu se livrar de Paulo por aquela noite.

 

     No dia seguinte, nos depósitos da loja a confusão era grande, pois Ricardo estava coordenando o descarregamento de mercadorias recém-chegadas. Karina e Carolina estavam lá, exercendo uma função extraordinária, no intuito de vistoriar toda a operação. Mesmo com toda a bagunça reinante a conversa entre os três estava animada:

     - Ricardo Don Juan, heim? O shopping todo está comentando que você conseguiu fisgar o coração da Lisiane! - Disse Carolina, cutucando o rapaz com o cotovelo.

    - O "shopping todo" quem?

     - Áh, as meninas da lanchonete Thrill of the Grill, aquela onde nós sempre comemos, que fica bem na entrada da praça de alimentação! Você sabe, são as gêmeas Meindinfrens e Meidindeiuesei(Made in France e Made in the USA). Tem também o Valdísnei da manutenção, o Maicol Diéquisson do estacionamento 3 e a Bonitailer da charutaria! - Explicou Karina.

     - Vocês estão por dentro de tudo e adoram isso, não é?

     - A gente sabe de umas coisinhas aqui e ali, mas a gente está torcendo por vocês!! Não é mesmo Kari?

     - Isso mesmo Caro! Agora... sem querer ser indiscreta, mas já o sendo, me conte uma coisa Ricardo... você está mesmo gostando dela?

     - Hum... o pior é que é... eu estou mesmo gostando dela só qu...

     - Uaaau, Caro???! Você ouviu só??! Love is in the air!! - Ricardo suspirou e quase cortou Karina:

     - Só que eu acho, ou quase tenho certeza de que não sou correspondido. Ela só sabe falar comigo sobre assuntos profissionais, tomando-me sempre como um funcionário, que na verdade é realmente o que eu sou em relação a ela... só um empregado! - Desabafou Ricardo.

     - Que nada, uma mulher não se engana com outra e ela, evita de pronunciar o seu nome e quando o faz, gagueja, ou enrubesce, ou desvia o olhar para que o brilho nos seus olhos não sejam percebidos!! - Afirmou Carolina.

     - Tenho medo de entrar numa de amor platônico... - Suspirou Ricardo.

     - Quem diria, o destruidor de corações do shopping foi fisgado pela patroa! Está até com cara de quem quer ser um bom menino totalmente dedicado ao seu amor! - Exclamou Karina.

     - Eu tenho medo. - Afirmou Ricardo.

     - Que medo que nada, nós temos que fazer o que o nosso coração manda ou então a vida se torna tão trivial, rotineira e sem sentido que dá até vontade de desaparecer. - Concluiu Carolina.

     - E não se esqueça que eu e Caro estamos aqui para o que der e vier, precisando do nosso apoio, você o tem todo, não é mesmo Caro?

     - Isso mesmo Kari, é como diz a Leididai da bilheteria do Villas-Cine 1, se nós não ajudamos nem aos amigos, então para que prestamos?

     - Eu só gostaria que vocês não comentassem sobre esse assunto pois existem pess... - Ricardo foi interrompido, pois estava sendo chamado no interfone. - Me dêem só um tempinho! - Pediu ele para as duas. Ao atender o interfone, ouviu aquela voz estridente:

     "Pare de ficar dando em cima das minhas funcionárias e suba já aqui"!!!

     - Mas eu...

     "Já"!!!! - Ricardo voltou até as duas e explicou que era justamente Lisiane que o estava chamando e que ela parecia irritadíssima como de costume:

     - Eu acho que preciso subir, é a "patroa"! E está de péssimo humor.

     - Antes de você subir até o escritório dela, passe no Narciso da floricultura e compre um botão de rosa para dar a ela, isso amolece o coração de uma mulher! - Sugeriu Carolina.

     - E quando chegar lá, mesmo que ela esteja histérica como de costume, use palavras doces... elogios!!! Uma mulher gosta que lhe elogiem as roupas, os cabelos, a maquiagem, o perfume, a inteligência... principalmente esta última quando por parte de um homem! - Complementou Karina.

     - Gatinhas vocês são realmente o máximo, conseguiram levantar o meu astral... só que agora daria para vocês duas "segurarem a barra" para mim só até o tempo de eu voltar?

- Claro, nós adoraremos, afinal é um trabalho diferente, não é mesmo Kari?

- Exato Caro... pode ir tranqüilo e demorar o quanto se fizer necessário que a gente dá um jeito Ricardo... beijos e sorte!!!

     Como já foi dantes mencionado, a balbúrdia era generalizada, pois os depósitos já estavam lotados e, mais e mais mercadorias chegavam. Isto fazia parte da estratégia do plano de Lisiane, Claudia e Márcia para levantar as economias do grande complexo logístico. Havia vários caminhões estacionados no pátio de descargas e inúmeras máquinas empilhadeiras realizando o trabalho do descarregamento. As mercadorias que estavam sendo transferidas dos caminhões para o depósito naquele momento eram brinquedos. Caixas e mais caixas de brinquedos que saiam de dentro daqueles containers. Karina e Carolina haviam sido requisitadas para a extraordinária missão de vistoriar e tomar nota de todos os códigos, para que não houvesse mais erros nos computadores e por fim prejuízos. Elas também acabaram por assumir o lugar de Ricardo e já estavam comandando aquela operação e indicando os lugares onde deveriam ser depositadas as mercadorias. Lá estavam as duas, cada qual com um boné de acrílico para proteger na cabeça, orientando as empilhadeiras e onde deveriam depositar as enormes caixas:

     - Pode vir... mais! Mais! Mais para cá! - Orientava e gesticulava para o condutor da empilhadeira, Karina.

   - A senhora tem certeza que dá para ir? - Perguntou o rapaz que conduzia a empilhadeira.

     - Mas é evidente que eu tenho certeza! Afinal tem espaço de sobra... portanto agora venha... Eu disse que pode vir... mais!! Mas venha de uma vez homem!!!! - Houve um estrondo seguido de um estardalhaço de coisas caindo, justamente quando duas das empilhadeiras se chocaram, ambas orientadas por Karina e Carolina. Uma pela primeira e outra pela segunda.

 

     - Áááááh!!!! Meu Deus!! Karina, você viu só o que a sua falta de atenção causou?!... Karina?!!!... K-Karina, onde está você, por Santa Cruz de la Sierra?! - Depois de ter se exasperado e se desesperado, Carolina somente pode distinguir uma espécie de clamor quase que inaudível emitido das profundezas de uma pilha de caixas que desmoronara; era Karina que havia sido "soterrada". Para resgatá-la dali foi um sufoco; depois de mais ou menos vinte minutos conseguiram detectá-la e logo encontraram-na. Lá estava ela toda amarrada por fios de joystiks, com rodas e eixos de carrinhos enroscados nos cabelos, além das mais variadas partes de bonecas que se espalhavam por seu primaveril vestido adentro. Seus pés estavam enterrados num caixote repleto de kits de massa para modelar de secagem rápida. Em ambas as mãos e dentro da boca, ela trazia destroços de bichinhos de pelúcia. Quando a trouxeram à tona, ela estava estática, com os olhos vesgos e um sorriso lunático. Bastou dar uma olhada à sua volta que Karina passou a gargalhar mongoloidemente:

     - Psssshshshsh... aháháháháháháhá!!! Vocês não ach... háháháháháhá... acharam... há...há-há tudo isso uma pantomina divertida??! Caixas e mais caixas, todas despencando na cabeça da boba alegre aqui... háháháháhá-há-há-a...a...a... m-mas no fundo, bem lá no fundinho de tudo isso tem um c-certo cunho triste... muito triste... chuif... melancólico... chuif, chuif... desastroso q-q-que eu a-a-a-ach-cho que v-vou... buááááááá... chorar!! Chuif! Há, mas tudo junto me dá um calor, uma vontade de tirar a roupa e me rolar por este asfalto quente... eu me sinto loucona!!! Curtindo tudo numa boa!!! Mas é deprimente... chuif... buáááááháháháháháháhááááááááááhhhhhh!!!!! Eu quero pinga, maconha, morfina, LSD, crack, heroína, santo-daime, ópio, cocaína...

     - Chiii, eu acho que a pancada afetou a cabeça dela. É melhor removê-la daqui e levá-la até a enfermaria da loja. - Sugeriu Carolina, muito preocupada.

     - ... êxtase, nicotina, baseado, aspirina com whisky, Epofagim, pétalas de lírio, sexo, sexual, sensu... - E assim Karina foi dali removida em meio a gargalhadas histéricas, silvos de excitação, delirium-tremens, choros convulsivos, gritos, soluços, novas gargalhadas, etc... etc... etc...

 

Eram pontualmente cinco horas da tarde quando Débora, Hella e Roselene tomavam lugares naquela nova e já muito bem conceituada casa de chás.

     - Acho que temos de nos servir. - Disse Hella, ao notar as grandes mesas justapostas no centro do salão.

     - Então vamos logo porque eu estou faminta... vou negligenciar a minha dieta hoje! - Afirmou categoricamente Débora. Enquanto as três já se levantavam para tomar o rumo daquelas mesas centrais, um dos garçons colocava por sobre a mesa que elas estavam sentadas um reluzente e alto bule todo em prata contendo chá. Havia também uma espécie de menu(cardápio) dos diversos chás servidos pela casa. Roselene, naturalmente optou por um chá oriental. Ela havia se servido somente de algumas torradas e biscoitos de fibra.

     - Essa sua dieta chega a ser estóica! - Disse Hella.

     - Eu não estou muito acostumada a fazer lanches... ainda mais nesta hora da tarde... São as senhoras mesmo que são hedonistas, típicas do costume cirenaico que consistia em ser a fonte da moral o prazer imediato, e olha que a gula é um dos pecados capitais!

     - Nem tanto querida... digamos que nós só sejamos um pouquinho epicuristas, daquela escola grega de Epicuro que pregava a moral com a obtenção do prazer mediato... a longo prazo!! - Disse Débora, aos risos.

     - Matar a fome é uma decadência aos instintos primários, afinal nós devemos comer para viver e não viver para comer! Já o seu modo de comer, uma vez que não estão passando fome, é o hedonista... a satisfação do prazer imediato, do agora! - Afirmou Roselene, auspiciosa e resoluta, mesmo que esboçando um sorriso jocoso.

   - Está bem, você venceu! Mas agora nos deixe praticar esse divino pecado capital que é comer... óh, divina decadência!! - Riu-se Hella.

     Roselene esperou que suas tias comessem bem, conversou bastante com elas sobre assuntos triviais e já ao fim daquela refeição, ela sobrepôs à mesa uma espécie de dossier, o qual deveria conter as procurações. Assim sendo, ela timidamente se fez dona da palavra:

     - A-antes de tudo, eu não gostaria de relembrar mas, o nosso almoço de ontem me deixou muito preocupada. As senhoras sabem... em relação ao comportamento das queridas primas Lisiane, Claudia e Márcia. Está certo que existe no ar uma espécie de aposta na qual ganhará quem demonstrar melhor desempenho, mas isso não significa que estamos em meio à uma guerra... m-mas é justamente o que isso tudo parece ser, tal é a atmosfera que impregna as paredes da nossa morada. A impressão que se tem é que uns querem excluir os outros e já se esqueceram daquele antigo espírito de cooperativismo e corporativismo... esqueceram-se de que formamos uma família que deve lutar pelo pluriabrangente patrimônio... afinal tudo nos deve pertencer e se nos dispersarmos este "tudo" estará posto a perder! - Concluiu Roselene.

     - Você tem razão querida, eu e Hella também estamos muito preocupadas. Nós só queríamos estimular o interesse de seus primos em relação ao patrimônio do qual já são herdeiros, assim como você também o é. Assim mesmo creio que estejamos usando os termos errados e por isso fomos mal compreendidas! - Desabafou Hella.

     - Bem, agora que já estou por demais engajada para assumir esse cargo da presidência, eu gostaria que me fosse explicado o teor dessa aposta e também que me fossem relatados os quantuns dos quinhões hereditários de cada qual.

     - Nada mais justo. - Disse Débora, tomando a palavra. - E há também uma outra coisa da qual você deve saber: cada um de vocês já têm em seus nomes o quinhão herdado com a morte dos seus respectivos pais. Inclusive você Roselene, cujo montante pecuniário herdado bancou todas as suas viagens pelo mundo, seu mestrado na França e parte de seus outros estudos realizados no exterior, tal como o doutorado que você está prestes a concluir na Escócia... é uma disciplina estranha, qual é mesmo? - Perguntou Débora.

     - Áh, a minha? É... "A Ruptura Interplanetária no Orbe Nu"! - Roselene sentiu o seu sangue ferver.

     - Então a minha parte da herança deve ter sido em muito diminuída, não é verdade? - Perguntou a moça.

     - Sim, a sua parte hoje se encontra bem menor que a das suas primas... pois nós não estávamos podendo arcar com tudo devido à situação ruim do nosso patrimônio. - Explicou Hella. Roselene teve de engolir em seco e se controlar.

     - Espero que você nos compreenda, minha querida. - Pediu Débora, pousando a sua mão sobre a de Roselene, que respirou fundo antes de responder:

     - Claro... e eu acho que vocês fizeram demais em me ajudar com os meus estudos! Além de tudo a "cabeça-dura" da história fui eu, pois ninguém me mandou ficar viajando por aí à torta e à direita.

     - Até onde nós pudemos, nós te ajudamos! - Disse Débora.

     - Mas tem a parte boa... - Interveio Hella. - ...pois vale salientar também que eu e Débora detemos também as nossas partes, as quais a posteriori serão igualmente partilhadas entre todos os sobrinhos. Essa "aposta" de quem conseguir uma melhor performance ante a gestão dos negócios, ganhará mais quotas e portanto poderá aspirar pelo cargo da presidência pertencente ainda à mim e à Débora em conjunto, nada mais é que uma fantasia, uma situação criada para despertar mais interesse nos herdeiros em relação ao seu patrimônio. Você bem sabe e pôde presenciar ontem, que exceto a você mesma, eles na sua maioria são desinteressados ao ponto de nem ao menos saberem que já detém uma das partes do patrimônio cada qual, inclusive e principalmente Lisiane, a advogada da família e que deveria se comportar como tal. A competição é justamente para descobrir quem mais se destaca, para passar para este o cargo da presidência... digo, passar para "esta" o cargo da presidência, uma vez que os homens da família são ainda muito jovens. Claro, agora você já tem ciência de que este cargo é seu! - Afirmou Hella. - Detido, evidentemente, ainda por mim e Débora, sendo que as ações e o valor pecuniário que cada qual herdou permanecerão como sempre, intactos. Vale ainda salientar que os únicos a ainda não terem acesso aos seus quinhões hereditários, são os menores por nós tutelados e Frederico que é ainda relativamente capaz, pois conta somente com dezesseis anos, portanto é assistido.

     - E quem é a tutora de quem? - Perguntou Roselene, já refeita.

     - Eu sou a assistente de Frederico e tutora do seu irmão Tiago, enquanto que Hella é a tutora de Samanta e Alexander. - Explicou Débora.

     - Eu devo confessar que o que eu ouvi naquele almoço me tirou o sono! Graças a Deus Tiaguinho é meu irmão e eu já posso pedir a tutela do patrimônio por ele herdado e também incentivá-lo na administração da nossa cadeia de lojas. Mas quanto aos outros... me corta o coração... o que será deles? É claro que agora as senhoras estão cuidando de tudo, mas como as senhoras mesmas dizem: ninguém é eterno. E se algo acontecer? O que será deles, já que suas próprias irmãs nem ao menos sabem o que é ser tutora de alguém? E o pior, não estão interessadas nisso, não os estão incentivando a nada, parecendo mais infantis que os próprios irmãos. Áh, se eu pudesse... eu tentaria movimentar esse capital deles da melhor forma possível, para que ele gerasse lucros! Eu tentaria faze-los tomar gosto por tudo o que herdaram... sendo sincera, eu vejo nos olhos deles que isto é possível... as senhoras não viram? Eles compareceram à minha reunião e prestaram atenção em tudo. Parece haver uma simbiose, uma afinidade maior entre nós. Eles são só meus primos mas eu os sinto como meus irmãos ou até mesmo meus filhos! - Disse Roselene, enxugando com o guardanapo as lágrimas intencionalmente provocadas que brotavam dos cantos dos seus olhos. - Me desculpem minhas queridas tias, mas acho que me descontrolei. É melhor eu passar as procurações para que vocês assinem e então nós nos iremos.

 

     Débora e Hella estavam penalizadas, tanto é que estavam mais preocupadas em acalmar Roselene do que ler o conteúdo das procurações, assinando-as assim de imediato e repassando-as novamente para a sobrinha. Ambas se entreolharam, pois jamais tinham visto Roselene se emocionar tanto. A sobrinha continuou:

     - E... eu não quero nunca que as senhoras pensem que eu não as considere boas tutoras... longe disso, mas de alguma forma eu quero ajudar a proteger os meus priminhos! - Roselene já forçava um choro convulsivo, mesmo assim discreto, para não chamar a atenção do restante da clientela daquela casa de chás. Débora resolveu falar; apertando forte ambas as mãos de Roselene:

     - Minha querida, nós também ficamos emocionadas ao ver em você esta exacerbada preocupação com os seus primos! - Disse Débora, agora acariciando os louros e macios cabelos da sobrinha.

     - Desculpem-me! - Implorou Roselene, fingindo tentar se recompor.

     - Você tem razão meu bem, o futuro é incerto! - Argumentou Hella e continuou: - Nós ainda podemos viver muito, mas agora, depois do que você nos falou, nós nos demos conta de que não estamos fazendo com que o patrimônio dos nossos tutelados cresça... Você não concorda comigo, Débora?

     - Plenamente e, se nós duas estivermos sintonizadas por pensamento, eu proporia que uma vez que nós já passamos o cargo da presidência para Roselene, se isto a fizer sentir-se mais tranqüila, nós podemos transferir para ela a tutela e assistência dos menores!

     - Era exatamente o que eu iria propor. Isto é, se todas essas responsabilidades não vierem a lhe sobrecarregar! - Disse Hella, dirigindo-se a Roselene.

     - A mim? - Questionou Roselene espantada. - M-mas não foi isso que eu quis dizer, eu só...

     - Não querida, nós estamos sentindo firmeza nas suas propostas, assim como os seus primos mais novos e todos aqueles funcionários também o estão! - Encorajou Débora.

     - M-mas e se eu não corresponder às expectativas? E se eu estiver somente pensando que posso, mas na realidade eu não posso?

     - Como já dissemos, errar é humano, mas nós estamos apostando em você e queremos segurança e resultados rápidos, para tanto vamos amanhã mesmo até o tabelionato Linus Taurus, na Avenida São João, uma vez que eles já nos conhecem e têm os nossos cartões de reconhecimento de firma, onde transferiremos as tutelas dos menores para você, desde que as suas primas, por enquanto, não saibam, mas agora que você está passando a ser a cabeça da família, vamos então experimentar a sua capacidade! - Decidiu Hella.

     - Eu gostaria de agir a contento, mas acho que isso tudo é muita responsabilidade!

     - Para não lhe pressionar, estabeleçamos um tempo de experiência. Um ano para você presidir todo o nosso patrimônio e um ano para você tutelar os menores. Pediremos futuramente que o senhor Jupiro Pintassilgo redija uma espécie de termo de retroação, caso você venha a estar por demais estressada, ou não mais queira assumir tais responsabilidades... assim sendo, elas voltarão automaticamente para mim e para Hella, ou para qualquer uma de suas primas ou mais futuramente qualquer um do primos, desde que esteja apto, preparado e empolgado para assumir todas as responsabilidades e rédeas do nosso patrimônio!     - Explicou Débora.

     "Um ano é mais do que suficiente". - Pensou Roselene, que depois se fez dona da palavra:

     - Bem, se é só uma experiência, eu aceito, já que este fato me deixa muito mais tranqüila.

     - Tudo se resolve na base das tentativas, da experiência... afinal no nosso mundo atual não só vale aquilo que é empírico? - Indagou Hella.

     - No meu não, nós transcendemos e retrocedemos aquém de Kant que não conseguiu explicar se seria possível um juízo sintético a priori. A solução é retroceder até a Grécia antiga para angariar melhores explicações! - Disse Roselene, parecendo mais animada.

     - E existe esse tipo de juízo? - Questionou Débora.

     - Segundo a minha concepção transcendentalista, sim. Basta que nos reportemos aos inatismos!

     - E como você os explica? É meio difícil provar que alguém já experimentou algo antes de nascer! - Redargüiu Hella, enfatizando aquela mudança brusca de assunto para animar Roselene.

     - Para que existem então as encarnações, ou a antiga metempsicose? Adquire-se experiência vivendo, observando, trabalhando e até sofrendo... mas não numa única existência.

     - Ora vejam... e ela ainda se diz céptica! - Disse Débora, levando as mãos até a cintura.

     - Céptica em relação a esses dogmatismos religiosos nos quais vocês crêem... a fé cega. Acho que tudo pode ser explicado a partir da física democritiana da escola atomística da Grécia antiga, combinada à hipostasiação do número de Pitágoras e evoluindo até a física quântica atual. Não existe nada de sobrenatural, apenas organismos compostos por átomos mais ou menos pesados, sutis ou etéreos. Há certamente uma “Norma Fundamental" como dizia Kelsen ou um Logos que é a lei natural de organização ou o verbo, como pregavam os gregos... Mas não um Deus que esteja sempre prestes a nos punir, o qual é pelas religiões concebido como infinitamente bom, mas se ele assim o fosse, não nos "castigaria" vez ou outra, como admitem os religiosos. Além do mais, a religião majoritária não passa de pura ostentação. Quando estive no Vaticano observando todas aquelas obras feitas de puro ouro e cravadas de pedras preciosas, pensei comigo: Será que com toda essa riqueza não poderíamos saciar boa parte da fome no mundo? Será que Deus, se ele existe, não ficaria mais contente com isto? Afinal Jesus foi um homem pobre e seria mediocridade de Deus se ele exigisse templos erigidos em Sua ostentação! - Criticou Roselene.

     - Você sim, é uma epicurista! - Disse Hella.

     - Quem sabe o termo mais adequado não seja realista? Eu não sou uma céptica sofista e muito menos niilista, apenas acredito no racionalmente explicável. Como é o caso das encarnações ou como dizem os gnósticos, recorrências!

     - Você deve se aprofundar ainda mais! - Sugeriu Débora.

     - Findar o doutorado e tentar um "PhD", Philosophycal Doctor, faz parte dos meus planos para o futuro, sem é claro, abandonar a presidência do nosso patrimônio!

     Débora e Hella estavam regozijantes diante do brilho da sobrinha, que de pronto se lembrou:

     - Áh! Se as senhoras estiverem mesmo dispostas em me passar a tutela dos menores, não se esqueçam de que Frederico deverá estar presente para também assinar essa transferência, assim mesmo eu gostaria que ele não soubesse o motivo do ato, já que ele ainda é novo e, mesmo que seja uma distante possibilidade, isso poderá traumatizá-lo. Eu não quero que ninguém pense que eu sou a bruxa malvada que veio para tomar conta de tudo!

Não querida, você é simplesmente a fada madrinha que veio nos dar uma luz... Agora, para finalizar esse agradabilíssimo encontro, ergamos um brinde, mesmo que com xícaras de chá, ao novo futuro dos nossos empreendimentos! - Propôs Débora. Roselene participou daquele ato um tanto constrangida, mas convencida de que os seus caminhos para o domínio do patrimônio estavam abertos. Era essa a novidade que ela tinha de contar para Paulo urgentemente. Além do mais, ela deveria ter muito tato, pois o advogado estava para com ela deveras magoado. Ela também não poderia esquecer do seu encontro com o "mão de fada" às nove da noite na Praça da República. Na mesma pasta em que trouxera as procurações, ela tinha os documentos que continham as assinaturas das duas primas.

 

     Roselene estava ansiosa para contar todas as boas novas para Paulo, mas estava temerosa de que o mesmo viesse e rechaçá-la devido aos acontecimentos da noite anterior. Ela não hesitou e após ter se despedido de suas tias, pois cada qual estava com um carro diferente, ela se dirigiu até a Rua Bela Cintra no intuito de comprar um presente para Paulo. No fim acabou escolhendo um finíssimo conjunto inglês de gravata, lenço de bolso, cachecol, prendedor de gravatas e abotoaduras, todos com o mesmo brasão e o mesmo design. O modelo era importado diretamente da Inglaterra.

     Saindo daquele shopping, onde também fez um lanche mais reforçado, pois junto de suas tias quase não comera, Roselene foi direto para a praça da República. Quando os ponteiros do seu Female Rolex apontaram nove horas, ela deixou o interior do luxuoso veículo e se dirigiu até o local combinado, a banca.

 

     Lá estava o famoso "mão de fada" à sua espera. Roselene, que já tinha separado os papéis foi direta e categórica:

     - Aqui estão os papéis com as assinaturas que eu quero que você copie nesses outros papéis em branco. Dou-lhe dois mil e quinhentos agora e a outra metade quando me entregar o trabalho completo amanhã aqui! - Disse ela, voltando-se para o caminho do carro.

     - "Mais já amanhã"? - Protestou o falsário.

     - E nenhum minuto a mais. Não tente fazer bobagens porque você não sabe do que eu sou capaz. "Pisou" comigo e eu elimino! Se quiser mais dinheiro e não quiser morrer, esteja aqui amanhã às nove horas com tudo pronto. Se você tentar fugir, eu te acho nem que seja no inferno e acabo com a tua vida... e agora vai, sai daqui ou então vai chamar a atenção da polícia!! - Ordenou secamente ela, em seguida adentrando no seu carro e partindo dali rapidamente.

     Durante o trajeto da Praça da República até o apartamento de Paulo, ela se reportou ao Tabelionato Linus Taurus e de como poderia tirar proveito deste já tradicional tabelionato desde o século passado e sito à Avenida São João; sendo sempre o mesmo a reconhecer firma para os Villas Bhoas e relativos. O tabelião sucessor de seu pai, o jovem Luís Heitor Linus, esteve presente na palestra de Roselene na matriz, pois para esta fora especialmente convidado, assim sendo é evidente que ele não tinha a menor dúvida sobre a conduta de Roselene. Luís Heitor havia estudado com ela no primário e no ginásio. Tratava-se de uma paixão antiga da qual Roselene sempre estivera ciente... desde os dez anos de idade e, agora ela saberia o que fazer com esta insólita e fortuita relação; faria dela um bom proveito. Como já foi dantes explicado, neste tabelionato, todos os componentes maiores de idade da família Villas Bhoas tinham o seu cartão de reconhecimento de firma, inclusive Roselene.

     Mergulhada nos seus pensamentos, ela nem notou que já havia chego ao prédio onde morava Paulo. Roselene respirou fundo e tomou o elevador. Chegando ao décimo segundo andar ainda hesitou em pressionar a campainha do apartamento um mil duzentos e dois. Num ímpeto fê-lo e logo a porta foi-lhe aberta... Para a surpresa de Roselene, Paulo estampou um sorriso. Ela, por sua vez, foi logo entrando e abraçando o rapaz:

     - Como é que está o meu advogado preferido?

     - Agora bem, pois pensei que você tinha me dado o fora ontem!

     - Eu é que estava muito chata... desculpe-me! - Apelou Roselene, envolvendo Paulo num abraço e em seguida beijando-o.

   - Nossa... - Murmurou ele, espantado.

     - Sabe, eu sou uma mulher de sorte!

     - Disso eu sei!

     - A cada vez que eu chego aqui, você está sempre recém-saído do seu perfumado banho e infelizmente coberto por este sensual robe!

     - Coincidências acontecem! - Disse Paulo, feliz.

     - Só que hoje não vai ser uma coincidência, pois eu trouxe este presente para você e, também vou fazer isto! - Disse Roselene impositiva, desatando o nó do robe e em seguida fazendo-o vir ao chão e, por fim tendo Paulo completamente nu.

     - Não seja tão cruel! - Pediu ele, meloso.

     - Nem tanto, eu apenas quero provar em você este novo conjunto que eu lhe comprei... ingrato, nem abriu o presente! - Disse Roselene, abrindo o pacote aos rasgos. Tratava-se de uma caixa bem decorada.

     - E você vai querer provar isso em mim nu?

     - Exatamente... depois poderemos nos render a um geladíssimo Valpolicella e então você finalmente poderá se render às minhas carícias!

     - E o que você quer fazer comigo?

     - O que toda mulher faz com um belo corpo de homem! - Respondeu Roselene, cravando as unhas no peito de Paulo e depois o dispondo ao seu bel-prazer. Ele se entregou, realizando todas as loucas fantasias de Roselene, sempre submisso...

     - Você é uma aranha... uma viúv...

     - Isso mesmo. E você é a mosca que se enleou nas minhas teias e agora está pronto para sentir as minhas quelíceras!

 

     No dia seguinte, às quatorze horas pontualmente, Roselene, mais suas tias e mais Frederico estavam presentes no tabelionato Linus Taurus, da Avenida São João:

     - Roselene quer cuidar do seu quinhão, ou seja dos bens que você herdou enquanto você ainda não atingir a sua maioridade. - Explicou Hella.

     - Até então, eu era a sua assistente, mas Roselene, que é mais jovem e disposta, pretende tomar conta... ou seja, cuidar de tudo isto! - Disse Débora.

     - E isso é bom? - Perguntou Fred, mascando um chicle.

     - Claro que sim, afinal a sua prima quer que você progrida! - Argumentou Débora. - Não só você tanto o quanto os seus primos.

     - Com isso as senhoras querem dizer que não gostam mais de nós? - Perguntou ingenuamente, Fred.

     - De jeito nenhum, meu amor! Nós continuaremos sendo as mães postiças. A única coisa que vai mudar é que "Roseleninha" vai assumir a sua assistência e as tutelas dos menores. - Explicou Débora.

     - E por que isso? - Perguntou o adolescente.

     - Porque eu e sua tia Débora não somos eternas, além do que sua irmã ainda é relativamente nova para assumir a sua assistência... assim sendo, Roselene o fez.

     Junto com Fred, que lhe dedicava especial afeto, Roselene fez questão de ver o grande livro do tabelião, onde conferiam as escrituras dos imóveis situados na zona leste da capital paulista. Roselene se sentiu mais empolgada, pois Luís Heitor era também amigo de Paulo e nos tempos de colégio ela seduziu o primeiro. Roselene queria mesmo saber de dados e neles mergulhou fundo, ficando assim ciente da informatização dos livros do tabelionato e descobrindo que todos os registros estão contidos numa porção de outros livros também informatizados, cada qual com no máximo duzentas páginas.

     E assim se realizou naquele momento o ato, através da assinatura de instrumentos(procurações) públicas. Débora e Hella outorgaram para Roselene as representações do assistido Frederico e dos tutelados: Samanta, Alexander e Tiago. Hella, Débora e principalmente Frederico, tiveram de realizar todos estes atos no tabelionato por se tratar de tutela pessoal e pública, assim sendo, a fotocópia do termo ficaria arquivada no cartório.

     Roselene protagonizou mais uma cena emotiva, o que não era à toa, pois ela também havia cursado artes cênicas, no intuito de comover as tias e o próprio tabelião Luiz Heitor, que após a explicação da mesma(Roselene), acrescido de sua antiga paixão por ela, considerou aquele um ato nobre. Vale salientar que algo nele que estava latente, passou a tornar-se mais vívido em relação a Roselene.

     Os atos estavam todos consumados e o patrimônio dos menores estava nas mãos de Roselene, para que ela fizesse dele o que bem entendesse... E ela saberia o que fazer...

 

Enquanto isso, no shopping, as coisas não estavam menos animadas, pois Urogalo foi surpreendida por um grito ensurdecedor:

 

     - Uáááááúuuu!!!! Helloooo!!!

     - AAh... B-bom dia, como tem passado?

     - Sempre no cio, "ócluda"!

     - Eu vou comunicar a senhorita Claudia que a senhorita está aqui. - Disse Urogalo, um tanto nervosa, ligando para o escritório de Claudia. Não demorou para que ela fosse atendida:

     "Roarr, Claudia, a pantera na lin... d-desculpe.. p-pois nã... pára Giancarlo... e-é Claudia falando, pois não"?

     - Desculpe senhorita Claudia, mas é a senhorita... como é mesmo o seu nome, perguntou Urogalo, voltando-se para Gilka.

- Gilka, Gilka Blanche, a personificação "fêmea" de um "forte apache sexual"!!

     - Ela se diz a fêmea de um forte apache!

     "Ah, já sei quem é... pode mandar entrar."

     - A senhorita pode entrar. - Disse Urogalo.

     - "Falô, esquisitona"! - Disse Gilka, dirigindo-se para o escritório de Claudia. Lá chegando, Claudia já a esperava com a porta aberta e logo perguntou:

     - Que prazer... não esperava revê-la tão cedo... como está você? - Perguntou Claudia, estendendo a mão. Neste gesto ela não foi correspondida, ficando com "cara de taxo":

     - Very, very, very well!! Menina, dei um jeitinho nestes modelos de sandálias que ficaram simplesmente "o que há"!! E uma remodelação em massa sairá bem mais barato do que você pensa! I'm wonderful!!

     - Pois então me mostre um dos pares! - Pediu Claudia, ansiosa.

     - "Stay calm jaburu"!

     - O-o quê?

     - Aqui, "gazela tarada"! "The shoe do ano"!!

     - Mas o que foi que você fez nele que ficou tão diferente?

     - Well, estas sandálias eram uns horrores, com aqueles saltos enormes. Eu simplesmente os cerrei, deixando-os mais baixos, mais achatados e muito mais atualizados. Como era para mudar o visual, eu dei um toque com essas fitas coloridas, que aliás, são “baratésimas”... você as encontra até em ovos de páscoa! Then, qual é a sua opinion?

     - Bem, eu gostei. Afinal já temos uma solução para essas sandálias, mas infelizmente, como eu já havia lhe dito antes, o problema não termina aí. O senhor Ricardo do almoxarifado fez um balanço de todos os produtos encalhados em todas as nossas lojas, a pedido da senhorita Lisiane que...

     - ... é a lover dele, não é?

     - Olha, em relação à vida particular das minhas primas, eu não sei de nada. E...

     - Os dois transam?

     - Eu não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe... como eu já disse a vida particular da minha prima não me diz respeito! E agora... grrr... nós poderíamos continuar com a assunto anterior?

     - Sure!

     - Como a senhorita se revelou uma boa profissional através dessas sandálias, apesar de ser um tanto espaventada... ainda mais que eu; eu gostaria de contratá-la definitivamente, desde que a sua capacidade se estenda a toda a sorte de peças de vestuário, tanto masculinas quanto femininas.

     - Of course!! Eu Gilka Blanche, sou uma "rinoceronta tesa", além de eficientíssima, portanto não há nada que eu não mude!!

     - Bem, os requisitos a senhorita já os conhece: O produto em questão deve assumir um caráter atual e atrativo, que é para a população de quinze países, pois a senhorita já deve saber que as nossas filiais estão aí, pelo mundo! Está de acordo?

     - Pois olha, loira lambida... perfectly!!!! “I just want alguns exemplares destes trambiques todos que tem de ser transformados"!

     - Dentro de uma semana eu os já terei em mãos! Justamente aqueles que eu quero que sejam mudados e, por favor não comente nada com ninguém e passe por aqui na próxima segunda-feira!

     - "Well, it's all right!!! Então está tudo right né, "macaca-aranha"?

     - Hã?!

     - "Intão, good bye to the island... See you in Northpoint", esqueça todo aquele céu de Secret Dreams and Forbidden Fire e estampe no focinho um Branigan's smile. E se o coração estiver cortado porque ele não está com as bolas do saco nem aí... Erga a cabeça, respire fundo e siga em ritmo e postura de Bitterblue!!

     - Good bye to... q-quero dizer... passar bem senhorita Blanche! - Desejou Claudia, um tanto aturdida.

     - "Ciao galegona, a genti si vê"! - Disse Gilka, saindo.

 

     Naquela noite, quando já se dirigia para casa, o Rolls Royce Cornish de Roselene estava sendo seguido por um Opala velho, não sabendo do que se tratava, ela deu lado e deixou que ele a ultrapassasse. Roselene se encontrava na Avenida Cásper Líbero, a qual já estava praticamente erma, devido ao avançado da hora.

     Roselene se surpreendeu quando o automóvel fechou violentamente o seu e, mesmo após uma estridente freada, houve uma leve colisão. Enfurecida, ela deixou o seu carro o e motorista do Opala fez o mesmo. Qual não foi a sua surpresa quando ela deparou com o “Mão de Fada” à sua frente. Ele parecia estar embriagado e foi logo falando:

 

-“Aí bacanona, tu me enganô, a grana da primeira parte do pagamento é falsa”! - Disse ele, dirigindo-se até Roselene, trôpego. Ela notou que ele se fazia portar de um punhal. Sua bolsa ficara no carro, portanto ela estava desarmada, mas de qualquer modo tentou argumentar:

- Você bebeu... hã, é claro que o dinheiro é legítimo, eu não sou uma falsária!

   -“Legítimo uma ova, ou tu me paga quanto deve, ou eu boto a boca no trombone e conto tudo que se passô há quase deiz anos atrais”!!

     Roselene engoliu em seco, pensou um pouco e respondeu incisiva:

     - Isso é chantagem, além do mais a sua palavra não tem o mínimo poder contra a minha! Assim mesmo, se você acha que o dinheiro era falso, eu efetuo o pagamento novamente... pago até mais para você manter a sua boca imunda fechada! Mas antes quero as falsificações!

     -“Assim é que se fala dona”! - Disse ele, voltando até o seu carro para tragar um gole cavalar de cachaça e pegando uma pasta.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    - Eu não tenho tempo a perder, venha logo até aqui para resolvermos isso já! - Ordenou Roselene, entrando no seu veículo e tomando em mãos a sua bolsa. Ela fechou a porta e deixou o vidro aberto. “Mão de Fada” aproximou-se e debruçou-se na janela da porta; seu hálito revoltava o estômago de Roselene que revirava a bolsa em busca de sua carteira, quando repentinamente parou por um instante:

     - Vou lhe dar mais dois mil reais e você me entrega essa pasta e some daqui!

     - “Cinco mil pila, ou nada feito”! - Resmungou ele, impositivo.

     - Está bem, cinco mil. - Concordou ela, calmamente retirando a mão do interior de sua bolsa, só que esta não trazia a carteira, mas sim o seu calibre 22, cujo cano ela encostou na testa de “Mão de Fada”.

     - Vai ver se você consegue chantagear o diabo! - Disse ela severamente, disparando dois tiros seguidos, os quais perfuraram o crânio do pobre coitado, que não teve nem tempo e nem como de reagir, sequer com palavras. Roselene abriu a porta do carro e tomou para si a pasta que “Mão de Fada” trazia. Rapidamente ela guardou a arma, fechou o vidro, deu uma ré e saiu dali, cuidando para não atropelar o cadáver do falsário. Por alguns instantes ela se mostrou trêmula, principalmente após notar que o seu banco e parte de sua roupa estavam respingados de sangue. Ela teria de chegar em casa e tratar de limpar tudo aquilo, mesmo que tivesse de jogar fora aquele traje. Ao chegar na morada dos Villas Bhoas, ela tratou de ocultar tudo, adentrando alegou muito cansaço e para suas tias que ainda estavam acordadas. Sem que ninguém visse, ela serviu-se de uma farta dose de whisky. Já mais calma e cm as roupas trocadas, ela foi até a cozinha e pediu que a cozinheira lhe preparasse algumas torradas, as quais comeu acompanhadas de um patê de legumes. Depois subiu, tomou um banho demorado e tentou dormir.

 

     No dia seguinte, Roselene fez questão de retornar ao tabelionato Linus Taurus e agradecer com um pequeno presente(um prendedor de gravatas), o que deixou o já empolgado Luiz Heitor muito feliz. Ela sabia que iria precisar da confiança do rapaz futuramente, ainda mais pelo fato dele ser amigo de Paulo.

     Dali saindo, ela seguiu para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde Paulo certamente estaria naquela hora da manhã. Ela aguardou que o sinal soasse dando um fim naquela aula. Em meio àquela multidão de alunos que saía da aula de Teoria Geral do Processo, foi com um calafrio peculiar daqueles que amam, que Paulo vislumbrou a silhueta elegante de Roselene que o esperava. Ele parecia hipnotizado, pois não tirava os olhos dela enquanto que automatamente se despedia de um e de outro aluno. Realmente Roselene estava mais bela naquele dia; sua pele clara e delicada e seu corpo esguio estavam realçados pelo vestido de veludo carmim com ousados decotes. Foi ela quem se aproximou de Paulo:

     - Surpreso em me ver aqui?... Vejo que sim, pois já está suando! - Disse Roselene, mordendo levemente o queixo de Paulo.

     - Calma, aqui não é um bom lugar para isso, os alunos poderão...                                  

     - ... eles poderão é ficar com inveja de você, seu bobo!

     - Q-que tal sairmos para almoçar?

     - No Restaurante Universitário? Ótimo, seria divertidíssimo, afinal quero recordar os meus tempos de...

     - Não, vamos para um restaurante que fica perto do meu escritório, lá em Pinheiros. Você vai gostar, é bastante sofisticado.

     - Está bem, é você quem manda... vamos? - Sugeriu Roselene, puxando Paulo pela gravata. Ela adorava deixá-lo embaraçado perante os outros.

     Já em Pinheiros, num restaurante japonês, eles saboreavam enguias ao molho agridoce e cogumelos regados a um Beaujoulais da nova safra de sabores frugais.

     - Muito bom este restaurante! - Comentou Roselene.

     - O que há de tão importante para você ter ido até a universidade?                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

   - Bem, já tenho as procurações particulares e os traslados das públicas. O patrimônio está praticamente nas minhas mãos, isso contando ainda com o desinteresse das minhas primas. Eu então pensei que já está na hora de dar a cartada final, já que tenho poderes amplos e ilimitados sobre todo o patrimônio... assim sendo eu estive pensando na possibilidade de uma “auto-doação”!

     - Seria muito fácil, mas o termo “doação” não consta nas procurações e, isto torna as coisas um pouco mais... demoradas, mas não impossíveis!

     - Como assim?

     - Vamos optar por “vendas fictícias”, através das quais, de posse de todas as procurações particulares e dos traslados das públicas, você venderá todo o patrimônio, exceto o seu quinhão para um personagem fictício, que depois de algum tempo o venderá para você novamente... então o patrimônio será realmente seu. Agora em como articular tudo isso, fica ao seu encargo, já que você é mestre em arquitetar planos mirabolantes!

     - Sempre irônico... assim mesmo acho excitante e idéias já começam a fluir... mas tudo ainda é muito novo e eu preciso de algum tempo para pensar... Fale-me mais!

     - Bem, depois de já termos essa personagem, uma vez estando a documentação legal e os poderes devidamente outorgados a você, viajaremos para alguma Comarca, que é uma cidade onde existe um Fórum e onde haja uma filial Villas Bhoas e apresentaremos toda a documentação num dos tabelionatos da cidade em questão. Como basta uma boa quantia de dinheiro e os cartórios autenticam e registram qualquer ato através de alguns carimbos e assinaturas; com sorte você venderá o seu patrimônio para esse personagem fictício sem problemas. Eu entro na história como procurador deste personagem e viajo por todo Brasil e exterior apresentando as procurações e registrando os imóveis no nome do suposto personagem, enquanto você volta para São Paulo e continua a protagonizar a priminha bondosa, interessadíssima em ajudar a reerguer o patrimônio; assim mesmo a sua principal missão será despistar suas primas, pois a coisa vai levar um pouco de tempo e elas não podem desconfiar de nada!

     - Mas eu já avisei minhas tias que viajaria para controlar de perto os trabalhos nas filiais!

     - Serão viagens eventuais nas quais você não se demorará muito! Muito bem, resumindo, no final e após um bom espaço de tempo, você alegará arrependimento em ter realizado a venda devido ao seu zelo pelo patrimônio, isso é claro, para os tabeliães, juízes e outros que desconfiarem da transação. Com esta alegação, nós iremos para uma outra Comarca onde também haja uma filial Villas Bhoas e repetiremos o ato, só que desta vez será você quem irá comprar o patrimônio de volta desta personagem fictícia. Portanto, o primeiro passo concreto a ser dado é criar essa tal personagem... Entendeu?

     - Acho que sim.

     - Bem, depois desta breve explanação eu acho que devo ir para o meu escritório, pois tenho uma pilha de processos me esperando!

     - Você deveria ser menos “caxias” e aproveitar mais a vida... mas eu vou ensinar isso a você depois que nós nos casarmos. - Disse Roselene, levantando-se e beijando Paulo. - Acho que também devo voltar para o shopping para pensar neste plano e anunciar para as minhas tias a minha primeira viagem de vistoria a uma das filiais! Até loguinho! - Ela não esperou que Paulo a acompanhasse. Levantou-se e saiu.

 

     Realmente naquela tarde Roselene chegou cedo ao shopping, praticamente junto com Urogalo. Novamente ela alegou para a secretária que tinha muito a fazer e de que não gostaria de ser incomodada.

     Fechando a porta atrás de si, ela não deixou de esboçar um sorriso devido a perspicácia de Paulo em relação ao plano de vendas fictícias.

     “Quer dizer então que a parte cênica da coisa ficou por minha conta..., Paulo não vai se decepcionar, pois o teatro será de primeira”! - Pensou Roselene, pendurando a sua bolsa pela alça na cadeira. Ela tomou em mãos o jornal e passou rapidamente os olhos na primeira página até chegar ao seu final, onde se deteve na seguinte manchete:

     “Mais Uma Misteriosa Queima de Arquivo”. - Manchete esta que se tratava do crime que ela havia cometido. Sua curiosidade era em relação a possibilidade de haver testemunhas ou qualquer outra evidência que pudesse incriminá-la. Abriu o jornal no caderno policial, onde a reportagem estaria completa e seus olhos ávidos chegaram no ponto que ela queria:

 

     “...testemunhas afirmam ter visto um luxuoso automóvel branco e de capota preta, aparentemente conversível, evadindo-se em alta velocidade do local. A proprietária de um bar sito nas proximidades afirma ter visto, mas não escutado a discussão entre a vítima e uma mulher bem trajada, a qual disparou por duas vezes seguidas contra a primeira se evadindo então do local. Não há registros da placa e nem da marca do automóvel da suposta homicida e muito menos do destino que esta tomou, pois a polícia chegou ao local quase meia hora mais tarde, encontrando só a vítima estendida no asfalto e o seu carro, um velho Opala com a porta dianteira esquerda aberta...”. O jornal também apontava Anacleto Dias como um falsário com várias passagens pela polícia.

     Roselene se preocupou com Paulo; se ele lesse aquilo teria certeza de que a autora fora ela. Mesmo um pouco nervosa Roselene tentou se concentrar e murmurou friamente para si:

     - Tinha de ser feito. Este tal Anacleto poderia abrir a boca a qualquer momento, e agora tal perigo não mais existe. E quanto a Paulo... Paulo me ama, faz o que eu mandar e entende tudo o que eu quiser que ele entenda... - Roselene passou a lembrar do passado... de quando conheceu Paulo:

     Essa obediência de Paulo em relação a ela já vinha de muito tempo, quando Roselene pela primeira vez o comprou, pagando todos os custos do seu curso de Bacharelado em Direito numa faculdade particular e caríssima, além de um muito bem equipado apartamento de três quartos e uma suite. Isso sem falar no seus supostos “amor e vida” por ele. Em troca ela somente pediu que o então jovem, valente e destemido Paulo, pouco mais velho que a garota de dezenove anos, que era Roselene, se disfarçasse de “aeroportuário”, usando um crachá devidamente falsificado pelo também já velho conhecido Anacleto “Mão de Fada” e assim tivesse acesso à aeronave na qual viajaria a sua família e na turbina direita instalasse uma bomba-relógio programada para ser detonada quando o avião estivesse em pleno vôo por sobre a floresta Amazônica. Evidentemente tudo foi meticulosamente calculado anteriormente.

     A bomba, Roselene havia furtado de um terrorista muçulmano que vivia naquela época no Paraguai, o qual ela conhecera durante uma estadia num luxuoso hotel de Foz do Iguaçu, no Paraná. Roselene tivera um caso furtivo com tal terrorista, ganhando assim a sua confiança e tornando as coisas mais fáceis.

     Tudo pareceria um problema no reversor da turbina direita, como realmente aconteceu...

     Roselene novamente esboçou um sorriso, pois com tudo isso ao seu favor, ela teria Paulo sempre ao seu dispor e dele poderia usar e abusar.

     Agora ela só teria de pensar no plano, na criação desse personagem fictício, além de despistar bem as suas primas, que para a sua maior comodidade estavam mais interessadas em futilidades; mas isto poderia estar acontecendo somente aparentemente ou então, elas poderiam mudar de idéia e Roselene deveria estar precavida...

- Primeiro vamos montar e articular este plano, depois eu penso em algo para distrair aquelas tolas... - Murmurou Roselene com seus botões.      

 

     Como sempre, no final de noite Roselene aparecia no apartamento de Paulo. Desta vez ela tentou parecer o mais serena possível e demonstrar empolgação em relação aos personagens que havia criado. Depois de ter se anunciado através do porteiro eletrônico, ela já pressionava a campainha diante da porta de Paulo, que a atendeu de imediato:

     - Como está o mais inteligente dos... - Paulo a puxou brutalmente para dentro. Ela se assustou e antes que pudesse argumentar, Paulo, energicamente se fez ouvir:

     - Você só pode ter ficado mais louca! Já não basta o grande erro que você cometeu no passado?! Será que você é um ser desprovido de consciência?!

     - Não grite comigo, afinal eu nem ao menos sei qual o motivo de toda essa grosseria!!!

     - Áh, não sabe! - Bradou Paulo, atirando o jornal no peito de Roselene. Ela respirou fundo e respondeu calmamente:

     - Ele tentou me chantagear, tentou me agredir e me ameaçou com uma faca porque queria mais dinheiro!  

     - Ou foi porque você pagou a primeira parcela do combinado com dinheiro falso?

     - Ora, e que diferença isso faz? O que importa é que ele continuaria me chantageando e desta maneira, mesmo que drástica, eu cortei o mal pela raiz... e não me arrependo.

     - Escute aqui, se você for descoberta e acusada, não me chame para te defender!                            

     - E você não ouse a me fazer ameaças, pois num estalar de dedos eu posso colocar a tua carreira na latrina... se é que você não se lembra da sua “co-autoria” naquele infeliz acidente com o avião!

     - Você me ludibriou, pois disse que se tratava de um dispositivo que provocaria um pouso forçado do avião, pois os pilotos o detectariam a tempo para isto! Você só queria que a sua família tivesse as atenções desviadas para outra coisa, lhe dando tempo de agir em relação ao patrimônio!

     - Mas infelizmente o dispositivo resolveu explodir e puff! Os pobres coitados foram pelos ares... ás vezes as coisas não saem bem do jeito que planejamos... - Disse Roselene, irônica.  

     - Melhor para você, que com todos mortos seria juridicamente a herdeira de todo patrimônio e tutora de todos os quinhões patrimoniais dos seus primos e irmão... como eu fui tão imbecil que não percebi que aquilo era uma bomba!

     - Tss... Tss... Tss... Quanta ingenuidade. Será que você não se lembra que tia Hella e tia Débora não se encontravam a bordo, de que adiantaria então?

     - Imprevisto com o qual você não contava, porque tinha certeza elas também iriam!

     - Acho que quem está com a saúde mental debilitada é você... com essa imaginação você daria um ótimo romancista. Além do mais, não tente adivinhar o que eu pretendia! Porque se algo acontecer, a culpa não recairá somente sobre mim, pois quem colocou o dispositivo na turbina foi você!

     - E quem provaria isso?

     - Que tal os outros aeroportuários que na época alegaram não te conhecer... as coisas não ficaram bem explicadas até hoje, pois você simplesmente sumiu; e eu me lembro perfeitamente que foi cogitado que se houvesse qualquer hipótese de sabotagem, a culpa seria daquele aeroportuário desconhecido que depois evaporou! Basta que eu reuna aquele pessoal e lhes pergunte se eles te reconhecem. - Disse Roselene, olhando diretamente nos olhos de Paulo.

     - Eu já deveria ter me tocado antes... você me enganou direitinho naquela vez, pois sabia que era uma bomba!

     - Nunca mais repita isso!! - Bradou Roselene.

     - Quem mata pela primeira vez, já nem se importa na segunda! - Roselene desferiu um violento tapa no rosto de Paulo. Este por sua vez não revidou da mesma maneira:

- Vá embora! - Trêmula, Roselene fez menção de passar a mão nos cabelos num gesto

descontrolado, num instante ela mudou radicalmente o seu comportamento:

   - Aham... bem, que tal você nos servir um long drink e então eu poderei lhe contar tudo o que eu planejei durante esta tarde... Hum, eu acho que vou de mint soda! - Paulo se espantou com aquela mudança brusca, mas resolveu não contestar e foi providenciar os drinks. Quando ele os trouxe, Roselene já estava relaxadamente recostada no sofá, sem os sapatos e seu semblante mantinha-se sereno como nunca. Ela estendeu a mão para pegar o copo e logo após o primeiro gole, passou a relatar seu plano para o assustado Paulo:

                                                                                    

   - Eu devo confessar que arquitetar esse planozinho... em criando esse personagem foi para mim uma diversão. E os atores da peça seremos “nós”, ou melhor, a personificação da personagem!                                                                              

   - Mas como, se eu serei o advogado dessa personagem?

   - Calma, espere que eu explique... Na verdade, esta personagem são “dois em um”, ou seja, você, Paulo Rivoredo travestido de mulher e eu mesma, travestida da mesma mulher!                                                    

   - C-como assim?

   - Ora, ora, ora... Haverá vezes em que mister se fará que a compradora do patrimônio apareça acompanhada do seu advogado, no caso você, e em outros da vendedora do patrimônio, no caso, eu Roselene... A personagem fictícia, a qual eu nominei de Pagan Triloney constituirá você como seu advogado num tabelionato de qualquer cidade do interior. Eu tirei na sorte e me caiu Ponta Grossa no Paraná, onde mediante a apresentação de um cartão de visitas de Paulo Rivoredo, no caso você, cartão que se faça constar o seu nome, o número da sua inscrição na OAB, o seu RG, o seu CIC, o seu endereço e tudo mais; Pagan Triloney, ou seja, você travestido, acompanhado da alienante do patrimônio, no caso eu, certificará através do seu cartão, ser ela, Pagan, sua cliente e isso dispensará a sua presença como o advogado Paulo Rivoredo!

- Isso é loucura, não vai dar certo!                                                                                                                                

   - Pagan Triloney é uma descendente de gregos, mulher de trinta e poucos anos, cabelos longos, lisos e negros. Evidentemente que estas serão as perucas que usaremos, ambas iguais. Ela contará também com olhos extremamente azuis, pois nós nos serviremos de lentes de contato... é claro que haverá uma pequena variação de tons, uma vez que os meus olhos já são claros e os seus são castanho-escuros. Pagan Triloney é uma mulher relativamente alta e magra, mais ou menos da nossa estatura, já que você não é muito mais alto do que eu... os saltos altos quebram o galho. Pagan é brasileira, solteira e milionária. Empresária bem sucedida, ela deixa bem claro o seu asco por homens... isso para evitar situações embaraçosas, como o caso de um engraçadinho tentar assediá-la... Creio que você não iria gostar Paulo, iria?

     - É claro que não, eu...

- E isso também serve para evitar maiores aproxímios de Pagan, pois as pessoas ainda têm muito preconceito em relação à gays e lésbicas, no caso, e preferem manter uma certa reserva tratando de se livrar de uma vez da pessoa, o que nos facilitará em muito o andamento das coisas e evitará muitas perguntas mais difíceis de responder sobre esta transação. Elegante e muito bem vestida, ela traz sempre consigo uma moça loura à qual atribui o cargo de secretária pessoal, mas nós devemos nos esforçar para dar a entender que esta moça é a sua amante...

     - E essa, quem vai ser, eu também?

     - Ora, Paulinho, não seja sarcástico... é claro que eu escolherei uma indigente, uma prostituta ou necessitada qualquer que esteja disposta a ganhar dinheiro e simplesmente farei com ela uma metamorfose, deixando-a sensual, provocante mas, com um “que” de vulgar... vai ser muito divertido; e ai de você se desviar os olhos para ela por um instante, você já sabe do que eu sou capaz. Ela servirá apenas para satisfazer a máscula e elegante Pagan Triloney. O seu nome será Hafta e...

     - O quê?!

     - Isso que você acaba de ouvir: Hafta! Pois ela será insistente, chata e manhosa, assim como uma verdadeira afta bucal. Providenciaremos uma documentação falsa para ambas e as transformaremos em cidadãs normais e fictícias além de compradoras de todo o patrimônio Villas Bhoas, exceto... o meu quinhão, é claro! Evidentemente que a compradora será só Pagan, mas com essa lei que aprova a união de pessoas do mesmo sexo que está para ser aprovada, nada impede de fazer delas um autêntico “casal”, pois Pagan poderá muito bem passar algumas coisas para o nome de Hafta, isso supostamente, pois jamais acontecerá!

     - Documentação falsa? Agora que você já exterminou com o “Mão de Fada”!  

     - Encontro outro no mesmo reduto onde eu o encontrei... Áh, e não se esqueça de suspender as suas horinhas de musculação, pois Pagan pode até ser máscula, mas não uma brutamontes! Um regimezinho para perder uns três quilos também iria lhe deixar com mais cara de Pagan e uma cinturinha mais fina!

     - Era só essa que me faltava... - Suspirou Paulo.

     - Ossos do ofício, meu bem... pense no que vem depois, além do mais homens muito truculentos já se tornaram uma coisa ultrapassada, totalmente demodé! Não se preocupe meu amor, eu sei o que estou fazendo!

   - É do que eu tenho mais medo!

   - Até parece que você não confia mais em mim!

   - Deus é testemunha de que eu tento...

   - Você está muito confuso e cansado. Vou deixá-lo repousar. - Disse Roselene, terminando o seu drink, postando-se em pé e apanhando sua bolsa.

   - Você poderia me ajudar a clarear as idéias se...                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          - Não há tempo para isso agora meu bem, afinal amanhã devo me levantar cedo para conseguir essa documentação, os disfarces e alguém para ser a suposta Hafta! Até loguinho, meu amor! - Disse ela, beijando Paulo na testa e se retirando. Ele, como sempre, não teve tempo para argumentar.

   No trajeto de volta para casa, Roselene resolveu dar uma volta, passando pela estação da Luz, Rua Augusta, Largo do Arouche e muitas outras “bocas quentes” da Paulicéia. Dirigia vagarosamente analisando as prostitutas e tomando o máximo de cuidado para não confundi-las com os travestis. Algumas sorriam, outras gesticulavam e bradavam coisas ininteligíveis, devido ao vidro estar fechado e o rádio estar ligado e, outras ainda faziam caretas e gestos obscenos. Roselene ignorava a todas, até que com seus olhos de lince conseguiu detectar, encostada na parede uma moça de cabelos castanho-claros, semi-longos, estatura média-baixa, com uma beleza interiorana... simples. Parecia recém-chegada de alguma pequena cidade do interior ou mesmo de uma colônia rural.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               Roselene deu um sinal de luz e depois estacionou o carro. A moça pareceu hesitar em se aproximar até que Roselene abriu a porta do lado direito, então ela se aproximou e sem entrar já foi adiantando:

 

     - “Não transo com sapatão não, dona”!

     - Muito menos eu. - Disse Roselene, acendendo a sua piteira. - Agora entre, pois o meu negócio é outro. - A moça, mesmo ressabiada, acabou por obedecer.

     - “E o que é que você qué de mim”?

     - Em primeiro lugar, que você não faça muitas perguntas e que esteja a minha espera aqui neste mesmo lugar amanhã às oito horas e sóbria, de preferência!

     - “E o que é que eu vô ganhá com isso”?

     - O que você quer, dinheiro? Agora tome, para provar que eu não estou blefando. - Disse Roselene, passando para a moça uma nota de cem reais. - Apareça no horário marcado e você terá mais a ganhar, agora saia e vá curar esse porre. - A moça saiu e Roselene arrancou rapidamente. Ela foi para casa.

 

     No dia seguinte, depois do rápido café da manhã, Roselene se dirigiu direto para a estação da Luz e lá estava a moça , esperando. Ela apresentava um semblante abatido, trajava roupas simplórias e fumava um cigarro. Roselene repetiu o ato da noite anterior, estacionando o carro e abrindo a porta direita. A moça veio andando vagarosamente, Roselene se impacientou:

- Rápido, eu não tenho o dia todo!

       - “Qual vai ser, heim dona?”

- Entre e você já vai saber.

- “Eu tô cum sono”. - Disse a moça, batendo a porta.

- E mau hálito também... Agora trate de ficar bem acordada, pois o nosso dia será cheio; e por favor, jogue fora esse maldito cigarro!

- “Pô, tu é durona mermo”...

- Qual é o seu nome?

- “Das Dor, e o de trabalho é Aléxia”.

- De agora em diante você vai se chamar Hafta Abdul e terá de dizer que é de origem síria.

- Que nome horrível...

- Você será paga por hora e...

- Quanto?

- Quanto é que você cobra o programa?

- “Áh, sei lá... uns trinta, quarenta... depende do cara...

- Cinqüenta a hora!

- M-mas eu...

- E não se fala mais nisso. Agora trate de não fazer muitas perguntas e nem dar palpites, pois nós já estamos chegando! - Roselene estacionou o carro de fronte à uma sofisticada Maison, uma espécie de instituto de beleza. Ordenou que a moça descesse e as duas adentraram ao estabelecimento. Roselene foi prontamente atendida pelo dono do lugar:

- Meu Deus, os meus sais please, me belisquem e me digam que não é um sonho, uma visão, uma miragem... me belisca vai! Se não é a cliente mais “glamourosa” que essa Maison já teve em sua história!!

- Como é bom revê-lo Crisântemo, também já estava morrendo de saudades! – Disse Roselene abraçando e beijando três vezes as faces do cabeleireiro proprietário da famosa Maison.

- Crisântemo não meu bem, para os íntimos como você, “Christie”!

- Pois bem, Christie, vejo que você está muito bem instalado e parece mais jovem desde a última vez que eu o vi!

       - Imagina, são seus olhos querida... você é que está um arraso. Além de mais linda do que nunca, você está “chiquérrima!!!” Sempre in, heim?

       - Muito bem, eu tenho um grande desafio para você, meu amor! - Disse Roselene.

       - Uau! Adoro desafios! E o que é?!! - Perguntou o cabeleireiro, empolgado.

       - Isto aqui! - Explicou Roselene, indicando Maria das Dores e arrancando da mesma o boné que ela usava. Crisântemo a mediu dos pés a cabeça, mantendo uma das mãos caracteristicamente desmunhecada e a outra na cintura, além de ter deixado cair o queixo, numa expressão mista ante o espanto e o asco.

         - Você quer que eu a empregue, mas...

         - Não, não, não... você não me deixou explicar. Eu quero que você a transforme numa famme fatale. Veja! - Disse Roselene, tomando Das Dores pelo rosto, num gesto bruto. - O rosto dela não é um desastre total e tem belos dentes. - Argumentou, erguendo o lábio superior da interiorana com o polegar, depois limpando o mesmo na camiseta da própria moça. - Nos cabelos você pode tentar um louro claro com reflexos e depois um permanente que a faça parecer um pouco mais velha, não sei... Quem deve saber o que ficará melhor é você..., mas eu imaginei, que pela semelhança dela, você, que ama as cantoras, poderia deixá-la “a la Bonnie Tyler”, versão ano 2000, é claro!

         - Sabe que você tem razão, mona... digo, Roselene! Ela leva todo o jeito daquela “goeluda” da Bonnie e, se fizermos vistas grossas, tem o mesmo tipo de beleza da loirona!

         - Bem Cri... digo, “Christie”, faça dela o que você achar melhor, além de dar um jeito nas unhas das mãos e dos pés, arrumar as sobrancelhas, fazer uma limpeza de pele e... se antes de tudo isso for preciso dar um banho nela... façam-no! Quero-a parecendo uma artista... clássica, mas com um leve toque vulgar, acho que você me entende, não é “Christie”?

         - Claro “Rose”, se é que posso te chamar assim, mas não querendo ser indiscreto e já sendo... O que ela é sua?

         - M-minha... hã... apenas uma recepcionista... hum... você sabe, “isca” para atrair a clientela masculina numa feira que realizaremos nas lojas...

         - Há, você voltou para ficar?

         - ... p-por algum tempo, agora chega de conversa e mande que cuidem dela, enquanto quero ver se você pode...

         - Lindamir!!! - Bradou Crisântemo, ferindo os tímpanos de Roselene. - Comece lavando o cabelo da moça e... ela toda se for preciso e depois corte os cabelos repicando-os um pouco. Tinja-os de louro, faça alguns reflexos e depois... áh... olhe para aquele pôster da Bonnie Tyler ali na parede e a deixe no mínimo... quase igual! - Ordenou Crisântemo, que logo voltou as suas atenções para Roselene: - Me desculpe, mas se eu não falar ninguém faz nada, o que era mesmo que você dizia?

           Roselene expressou um semblante perturbado pela interrupção:

         - ... bem, se você tiver um pouco do seu precioso tempo para me dar atenção, eu gostaria de dar uma olhada na sua sessão de perucas. Se é que você não tenha coisas mais importantes a fazer...

         - De jeito nenhum... sou toda... digo, todo ouvidos!! - Respondeu o cabeleireiro, que sabia da influência de Roselene na sociedade da Paulicéia.

         - Você também tem perucas, não é?

         - De todo jeito que você imaginar, inclusive...

         - Não quero nada de especial, apenas um par de perucas no estilo “Morticia Adams”, mas é claro, sem aquelas mechas brancas. Cabelos pretos e lisos, mas não tão longos.

         - Então é fácil! - Disse Crisântemo. - Dagmar!!! - Bradou ele novamente. - Traga-me aquelas perucas de cabelos negros e naturais... aquelas que são aplicadas no...

         - Não Crisântemo, preciso de algo fácil de por e tirar, pois trata-se de uma brincadeira numa festa de despedida de solteiros... mas se as perucas forem de cabelos naturais... nada mal!

         - Pretos?

         - Azulados de preferência... e muito brilhantes! - Pediu Roselene. - Crisântemo mandou que lhe trouxessem o que havia de melhor naquele estilo. Os seus assistentes, rapazes vestindo shorts de lycra e camisetas regata do mesmo material, não perderam tempo e logo ele já tinha uma peruca do estilo no qual Roselene houvera pedido.

         - Ei-la, meu bem!

         - Hum, vamos, ajude-me colocá-la!

         - Você??!

         - É claro, afinal eu quero ficar morena... apenas por um dia! Como estou? - Perguntou Roselene, já com a peruca na cabeça e olhando para Crisântemo.

         - Exótica, mas...

         - Mas?!

         - Não sei, há algo de errado...

         - Eu vou passar lápis preto ou um link mash mask nas sobrancelhas também!

         - Não é isso... não sei se devo falar, mas...

         - E então?

         - É que você ficou um pouco masculinizada com es...

         - Ótimo!! Quero mais uma igual... idêntica!!

         - Está bem... - Concordou Crisântemo, um tanto estupefato com o comportamento de Roselene. O único problema que esta é a única e você terá de esperar um pouco ate que...

         - Quanto tempo?

         - Nada mais do que meia hora e eles...

         - Quanto tempo aquela... a minha recepcionista vai levar para ficar pronta?

         - Bem, quanto a ela, eu creio que com tudo que você pediu... ela não sairá daqui antes das quatro da tarde.

         - São dez e meia agora... - Pensou alto Roselene, ao olhar o seu relógio. - É melhor que vocês sirvam uma refeição para ela, lá pelo meio dia...

         - E quanto a você? - Perguntou Crisântemo, inquisitivo.

         - E-eu... bem, evidentemente que eu não vou poder esperar que a minha secretária fique pronta, afinal tenho muito mais a fazer... mas enquanto você manda preparar a outra peruca, que tal dar um leve toque nos meus cabelos?

         - Mas eles estão lindos! - Replicou Crisântemo, que tinha um semblante um tanto psicótico, a cada interlocução sua pele avermelhava e ele arregalava os olhos azuis que contrastavam com os cabelos louros e tingidos. Foi ao olhar para esses olhos que Roselene logo se lembrou:

         - Eu vi que você também tem lentes de contato e já ia me esquecendo, pois...

         - Tenho sim!! - Bradou ele, interrompendo Roselene. - Vai querer também?

         - Enquanto você manda que comecem a lavar os meus cabelos, me traga algumas...

         - De que cor?

         - Tem violetas?

         - Iguaizinhas os olhos de Elisabeth Taylor!! - Logo Roselene já provava uma delas:

         - E então?

         - Claro que os seus olhos ao natural já são lindos, mas com essas lentes... você vai arrasar!!

         - Existem diferenças entre esses tons de violeta? Se meus olhos fossem castanho-escuros, por exemplo?

         - Aí eu te sugeriria esta aqui, que é para olhos mais escuros. - Indicou Crisântemo.

         - Ótimo, então eu vou levar um par dessa que eu provei e um par desta que você disse ser para olhos mais escuros!

         - Você não quer fazer um ajuste? Às vezes a curvatura da lente não regula com a da íris e...

         - Não “Christie”, já disse, é tudo para uma noite só. Para aquela festa que eu te falei!

         - E o outro par e a outra peruca, são para o namorado?

         - “Christie”... não seja enxerido... agora vamos falar dos meus cabelos... eu acho que vou querer um channelette, mais curto, que me faça parecer uns cinco anos mais jovem... além do mais os meus cabelos estão precisando de uns reflexos, um brilho a mais!

         - Você já é bela e quer a perfeição, não é?

         - Belos todos somos “Christie”, uns interiormente, outros exteriormente.

         - E existem aqueles que são os dois, assim como você!

         - Eu tenho tido saudades de Paris... e já que está na moda, que tal um channel parisien?

         - Você vai ficar mais in do que nunca... Sabe, adoro trabalhar com você, pois você sabe sempre o que é melhor!!!

         - É, eu sei... e sei o que é mais caro também...

         - O quê?!

         - Nada, eu só espero que a minha recepcionista fique na altura daquilo que eu recomendei!

         - Você sabe que não precisa se preocupar, pois somos os melhores em toda Paulicéia!

         - E os mais caros também!

         - É que a nossa clientela se faz peneirar desta maneira... espero que você não se importe... - Disse o cabeleireiro, um tanto embaraçado.

         - Fui eu quem veio até você, assim sendo eu não tenho o direito de reclamar! O vil metal não é o problema..., - Continuou Roselene, entumecendo a expressão.

         - Então está tudo ótimo, eu vou fa...

         - ...o que importa é a boca fechada... suturada, cauterizada!! - Disse ela, cerrando os dentes e esboçando uma expressão de ódio.

         - Crua em credo!! - Benzeu-se Crisântemo, estranhando aquela mudança de temperamento de Roselene.

         - Isso mesmo, a minha recepcionista não pode deixar que o seu pai saiba que ela veio aqui, ou então ele ainda acaba impetrando com uma ação ridícula e sem fundamentos de aliciamento de menores. E, já que falei nisso, para o seu entendimento “Christie”, a moça... digo, a minha recepcionista, é maior de idade, tem vinte anos e além do mais... eu lhe dou um extra para que você e seus funcionários façam de conta de que nós nunca estivemos aqui!!

         - Não precisa nem de extra, afinal eu não quero que a minha maison seja envolvida em...

         - Pssst... como é de se imaginar, você deve estar sozinho, assim sendo, talvez você prefira um belo jovem para satisfazer todos os desejos!

         - T-também não é assim...

         - Então alguém que te dê carinho, é isso?

         - E que goste de mim como eu sou... e que eu goste dele como ele é... enfim, o amor! Mas isto não se pode arranjar e nem comprar, as coisas tem somente de acontecer e pronto!

         - E quem garante que eu não seja a sua fada madrinha?

         - Senti firmeza, quando o gajo aparecer não deixe de me apresentar! - Enquanto brincava com Crisântemo, Roselene não deixou de escutar alguns trechos da conversa entre a cabeleireira e Das Dores, pois a primeira resolveu puxar assunto:

 

         - Está ficando bonita mas, é você quem vai pagar?

         - Eu não, mas a loura grã-fina aí do lado vai, por quê?

         - Notei mesmo que você não é uma pessoa de posses... - Aquela especulação fez com que o sangue de Roselene fervesse:

         - Moça, será que o seu patrão nunca lhe avisou que é falta de compostura ficar importunando os clientes com perguntas descabidas? - Interveio Roselene.

         - Eu só estava pergun...

         - Faça o seu trabalho e mantenha-se calada Lindamir!! - Ordenou Crisântemo.

         - Mas ela parece realmente não ter dinheiro! - Ainda insistiu Lindamir.

         - Ora vejam só... será que você não sabe que existe agora uma lei que dá cadeia para qualquer tipo de preconceito? Seja em relação à cor, credo, classe social... - Roselene foi interrompida:

         - E orientação sexual!! - Completou Crisântemo, em meio a pulinhos. - E agora Lindamir, trabalhe quieta ou então eu passo a cliente para a Oléssia, e quem vai ficar com a comissão é ela.

         - Não, não para a invejosa da Oléssia...

         - Será que é ela a invejosa... agora si-lên-cio!!! - Ordenou Crisântemo.

Tudo realmente se aquietou, até que Roselene já estivesse pronta :

         - Como é? Estou mais bonita? - Perguntou Roselene, ajeitando os cabelos.

         - Parece uma adolescente!!! Liiiinda!! - Vibrou Crisântemo. - Você é realmente perfeita!!

         - Bem, eu vou acertar tudo com você já e volto às dezesseis horas para apanhar a minha recepcionista. Caso ela estiver pronta antes, você não a deixe sair em hipótese alguma!! - Disse Roselene, assinando o cheque e entregando o mesmo para Crisântemo.

         - Pode deixar, que nós vamos mantê-la a sua espera... cruzes!! - Bradou ele arregalando os olhos ao ver o valor do cheque. - Mas aqui tem muito mais do que o preço real, acho que você errou nas contas meu bem!

         - Isto é para a mantença do sigilo e para tomar muito cuidado para que ela não fique aí de conversinhas com as cabeleireiras!!! - Disse Roselene, em tom impositivo.

         - Confie em mim minha linda, nós todos vamos brincar de “vaca amarela”!! - Roselene não achou graça e se despediu saindo, pois naquele espaço de tempo, entre quinze para meio-dia e quatro da tarde, ela poderia resolver inúmeras coisas. Ela realmente estava aparentando muito mais juventude com aquele cabelo. Foi até a sua casa para almoçar e trocar de roupa. Para variar, ela já encontrou a mesa completa e com uma pequena discussão já bem engendrada, entre, é evidente, suas três primas:

         - Eu realmente não sei onde diabos você estava com a cabeça quando contratou aquela intergaláctica para remodelar os nossos produtos, agora a animal sumiu com eles e nós... - Era Lisiane, que falava alto e gesticulando enquanto devorava tufos de salsas emagrecedoras.

         - Mas meu “amendoim torradinho”, basta que eu ligue para Gigi que... - Claudia tentou explicar.

         - Quem é esta, aquela do filme?!

         - Não minha “baba de anjo”, Gilka Blanche, a estilista! - Completou Claudia.

         - E onde é que nós vamos realizar todas essas modificações em massa nos produtos, na casa daquela fuinha? - Questionou Márcia, apontando uma batata frita para Claudia.

         - Simples, meu “pólen”. Eu já andei dando uma sondada e há um galpão desocupado do outro la... - Claudia parou de falar subitamente.

         - Com licença e bom apetite! - Disse Roselene, tomando o seu lugar na mesa.

         - ... hum... aí então todos aqueles carregadores correram em meu socorro enquanto o meu vestido rasgou e eu acabei por ficar só com aquela lingerie azul turquesa e...

         - Por que você mudou de assunto? Está “emburrecendo” ainda mais? - Perguntou Lisiane, que não havia entendido a tática de Claudia. Márcia lhe deu um pequeno chute para alertá-la.

         - Virou égua agora?! Por que me chutar desse jeito? - Questionou aos brados Lisiane. - Estão todos enlouquecendo e depois a desajustada sociopata sou eu!!!

         - Falavam sobre algo importante? - Perguntou Roselene, só para se fazer de mal entendida, pois ela havia pego a conversa.

 

         - Estávamos falando justamente sobre o gal... - Tentou contar Lisiane, mas foi interrompida:

         - ...sobre o galanteio que Ricardo fez para Lisiane ontem, não é mesmo? - Questionou Claudia.

         - Anda escutando pelas paredes ou fica do outro lado da porta? - Vendo que aquilo iria virar numa discussão séria, Débora resolveu intervir:

         - Lisiane meu bem, acho que estou ouvindo o seu celular no seu quarto!!

         - É?! Deixe que a criadagem atenda!

         - Pode ser o Ricardo! - Disse Claudia.

         - Pois que seja o diabo que... acho melhor eu ir atender!! - Disse Lisiane, abandonando a mesa e ganhando as escadas aos tropeços. Todos puderam nitidamente ouvir uma sessão de estrondos, gritos e praguejados no pavimento superior. Houve um estrondo ainda maior, parecia que um guarda-roupas viera ao chão, logo tudo mais silenciou. Hella, para quebrar o gelo, iniciou um assunto trivial, enquanto que Márcia e Claudia passaram a falar sobre as banalidades de sempre... roupas, fofocas, moda, homens, carros, etc... Novamente no pavimento superior uma porta foi batida, os passos eram largos e decididos. Ganharam as escadas, era Lisiane, que já havia mudado de roupa e tinha em mãos suas pastas e sua bolsa. Ela quase falseou e veio escada abaixo, fazendo com que todos engolissem em seco. Nem bem ela atingiu o pavimento inferior e a copa para Claudia lhe perguntar:

         - Conseguiu pegar o telefone, meu sonho?

         - O maldito do Ricardo não me esperou atender, mas ele vai se ver comigo hoje a tarde!! Vou descontar esse desaforo do seu salário...

         - Onde você vai tão cedo, querida? - Perguntou Hella.

         - Trabalhar, onde mais? - Disse Lisiane, batendo a porta frontal da casa. Logo se pode escutar o seu carro arrancando em meio ao cantar dos pneus.

         - Doida de pedra... - Comentou Márcia. Roselene observou tudo em silêncio, pois era bom que todos estivessem entretidos com outros assuntos, assim ela poderia melhor agir sem ser perturbada. Conversou com suas tias e foi-lhes muito cordial, inventando algumas táticas comerciais que estaria pondo em prática, o que deixou as matriarcas bastante felizes. Logo Claudia e Márcia terminaram de almoçar e Roselene pode conquistar ainda um pouco mais o apreço de suas tias, pois comunicou-lhes que estava pronta para iniciar uma viagem de vistoria pelas filiais das lojas, no intuito de detectar qualquer rombo nas finanças ou mesmo desvio de dinheiro. Como ela mesma disse, seria uma operação pente fino. Suas tias não deixaram de elogiar os seus cabelos.

         Satisfeita, após a leve refeição, Roselene ganhou o seu quarto para trocar de roupa. Ela decidiu caprichar, pois seus cabelos estavam realmente merecendo um belo traje. Usando um justo vestido azul marinho sobreposto por uma capa em ciano a qual estava costurada às mangas, ela ganhou soberba as escadarias da sua casa. Os sapatos traziam a mesma combinação de cores. Ela decidiu que iria até algumas lojas em outros shoppings que não o seu, pois iria providenciar os trajes para “Pagan Triloney”, ou seja, ela e Paulo; assim sendo todas as roupas que escolhesse, teria de levar em duplicata, no seu manequim, 38 ou 40 e outra no de Paulo, 44. Mas para ela seria realmente um prazer fazer aquilo, isto tudo é claro, antes de voltar à maison para apanhar Maria das Dores ou, a futura Hafta Abdul.

 

         Enquanto isso, esbaforida, Lisiane ganhou as escadas rolantes do shopping que estava lotado devido a hora do almoço. Na praça de alimentação não havia lugar e havia uma fila de pessoas aguardando para poder fazer uma refeição. Ela deu uma porção de encontrões com inúmeros clientes, aos quais ela desacatava até atingir o elevador que a conduzisse até o último andar, onde ficava a presidência. Lá chegando ela foi direto para o seu escritório:

         - Boa tarde, Uroporco! - O que ela não reparou é que a secretária ainda não havia retornado do almoço. Ao entrar no escritório, Lisiane sentiu um odor fétido, ao qual ela tentou detectar donde provinha, abrindo gavetas, cheirando até o próprio fone para verificar se não estava vindo via telefone ou via fax, ligou o computador, abriu o correio eletrônico...

         - Talvez tenham me enviado esse fedor via e-mail... Isso só pode ser coisa do Ricardo para me provocar. - Pensou alto. Logo lembrou-se do banheiro privativo do escritório, o qual estava com a porta fechada. Num salto ela já abria a mesma de supetão, pois esta não estava trancada. Foi com um olhar espantado e neurótico que ela flagrou uma das faxineiras usando o seu banheiro. A mulher que ainda estava sentada no vaso chegou a dar um grito de susto:

 

         - Mas o que é isso???? - Bradou Lisiane.

         - Dona Lisiane????

         - Não, o demônio!!!!

         - E-eu posso explicar, eu...

         - Vamos, eu sou toda ouvidos! - Disse Lisiane, adentrando de vez no banheiro e fechando a porta. E a mulher continuava ali, com as calças arriadas.

         - É que eu estava limpando o seu escritório e de repente eu me apurei e...

         - Credo, comeu carniça menina?

         - E-eu...

         - Na tua casa você também faz assim? Você não costuma riscar um ou dois palitos de fósforo para tirar o odor e então em seguida esborrifar um pouco do desodorante barato que você usa?

         - N-não, meu marido não...

         - Áh, você é casada? - Perguntou Lisiane, puxando uma banqueta e se sentando próxima à faxineira, cruzando as pernas e apoiando o queixo num dos braços, cujo cotovelo apoiou sobre o joelho.

         - Sou...

         - A sua graça, qual é?

         - O quê?

         - O nome, paspalha!

         - Iracema.

         - Pois é “Cibalena”, às vezes as coisas não acontecem por acaso... como o fato de eu encontrar você por aqui e principalmente pelo fato de você ser casada. Você sabe, “Obscena”, eu estou namorando faz pouco tempo e acho que estou apaixonada. Claro que durante um namoro, antes de os dois partícipes da relação se encontrarem, existe todo um preparativo. Por exemplo, antes de eu encontrar o Ricardo, eu me arrumo toda, eu tomo banho, coloco roupas transadas, eu me perfumo, escovo os dentes, etc... Ele naturalmente deve fazer quase o mesmo, pois eu nunca o achei fedorento como você aí sentada neste vaso a defecar... E mesmo que nós nos encontremos aqui no trabalho, nenhum de nós estará repugnante o suficiente para causar asco no outro, como você pode notar, eu estou relativamente bem vestida e estava perfumada, evidentemente que agora eu estou fedendo por sua culpa, mas eu sempre trago o meu Nina Ricci na bolsa. Agora o que ninguém pensa, exceto eu, e muito menos esses casaisinhos de namorados que existem por aí, é na vida em comum. Não estou falando em transa, porque até para uma delas, se as pessoas não vivem juntas, elas se preparam da melhor maneira possível, o que eu falo aqui é do dia a dia, a convivência. É ver como o outro é todas as horas do dia... eu não sei se você está me entendendo...

         - Sim senhora.

         - ... é senhorita, e não me interrompa! Por exemplo, quando você acorda de manhã, você tem assim a querência por uma goma de mascar de menta na boca para disfarçar aquele mau hálito matinal que todos nós temos? Ou o teu marido também não faz questão e vocês ambos se beijam fedorentos? Hã? Pelo jeito que você é, você deve ser daquelas que solta “pum” durante a noite. Ele faz também?

         - N-nã...

         - Ele ronca? E você?

         - N-n...

         - Áh, você não se incomoda e também provavelmente acha que ele não tem “bafo”. Você acha que assim por exemplo o Ricardo, meu namorado, é do tipo que solta “pum” na cama, ronca e acorda com um hálito fedorento?

         - N-não senhorita.

         - E como você ousa em saber, por acaso você já dormiu com ele? E você também acha que ao acordar ele é daquele tipo que boceja, levanta e vai para o banheiro pelado sem me dar a mínima? E que depois eu também deverei me levantar e ir até o mesmo banheiro desgrenhada e fedida para compartilhar com ele a pasta, as torneiras, toalhas e talvez uma mera ducha? Você acredita no amor?

         - S-sim eu...

         - E se por acaso eu quiser assim, um príncipe encantado e eu não seja uma princesa e me sinta mais como uma sapa? Mas o Ricardo talvez seja o meu príncipe, só que ele tem um time pelo qual é fanático e nos domingos o maldito time me substitui. É claro que ele também joga o maldito futebol. Será que se um dia eu me casar eu vou ter de pegar em meias sujas, calções de jogador, pares de tênis e cuecas úmidas para mandá-las para lavar? Você já imaginou o cheiro? É evidente que será uma empregada que lavará tudo sem reclamar, ou de modo contrário será demitida! À propósito, como é o seu marido de manhã?

         - Ele é como um animal! Ele me bate todas as...

         - Áh, como um animal... E... ele cheira bem? Ou cheira a sexo vencido?

         - B-bem...

         - A senhora não vai se limpar não, é? Não precisa ter vergonha de mim, ou de outra maneira o seu excremento vai acabar ressecando no seu ânus e aí fica muito mais difícil de limpar! Vamos, se mexa monte!

         - E-eu... - A mulher já estava prestes a começar a chorar.

         - Cale-se. Diga-me uma coisa, o que exatamente a senhora veio fazer aqui no meu escritório?

         - L-limpar os vidros...

         - Ótimo, então vê se a senhora se asseia um pouco e começa a fazer o seu serviço... Áh, quando sair lá para o lado de fora não esqueça de deixar todas as janelas fechadas, afinal não estou disposta a pegar um resfriado devido às correntes de vento!

         - A senhora...

         - Senhorita!

         - Hum... a-a senhorita não precisa se preocupar, afinal eu vou limpar as janelas por dentro e...

         - Está me chamando de porca??! Acha que venho trabalhar e ao invés disso fico comendo guloseimas o tempo todo e depois pegando com a mão melecada nas janelas e deixando sinais??!

         - M-mas eu nunca limpei o lado de fora...

         - Para tudo existe uma primeira vez... além do mais se a senhora sofrer uma queda isso nada mais será que uma boa promoção para as nossas lojas!

         - E se eu morrer?!

         - Eu pago!! Agora, faça o favor de começar!! - A mulher olhou para Lisiane, começou a gritar e saiu correndo, ainda segurando as calças. - Santo Deus, como existe gente louca nesse mundo, eu heim?! - Murmurou Lisiane, ao passo que esborrifava quase todo o conteúdo do seu frasco de perfume no ambiente.

 

         Depois daquele verdadeiro relax e divertimento com as compras para ela e para Paulo, Roselene olhou no relógio e percebeu que já estava na hora de apanhar Maria das Dores na maison de Crisântemo. Lá chegando...

         - Por falanges e mais falanges de potestades!!! - Bradou Crisântemo, correndo em direção a Roselene e se atirando nos seus braços.

 

           - Que bom que você chegou, pois esta maluca está a ponto de atear fogo na minha maison, além de estar empestando todo ambiente com o odor horrível da fumaça desse cigarro barato! - Lamentou Crisântemo. - Aqui ninguém fuma!

           Roselene andou a passos largos em direção à moça, que enquanto fumava um cigarro atrás do outro, mirava-se no espelho, extasiada com o seu novo visual. Com um tapa seco, Roselene a tirou do êxtase:

         - Tire essa porcaria da boca e vamos embora! - Disse, puxando, a agora Hafta Abdul pelo braço para fora do recinto. Dirigindo-se ao descontrolado proprietário, ela apresentou as suas apologias:

         - Desculpe-me Crisântemo, não tornará a acontecer! E... até mais ver. - Ela não esperou que Crisântemo respondesse e já ganhara a rua em direção ao carro, foi quando Das Dores disse sorridente:

         - “Pô dona, com esse visual eu vô faturá uma nota”!

         - Hã, se você está pensando que vai ficar por aí livre, leve e solta, está redondamente enganada. De agora em diante você não dá um suspiro sem que eu saiba, e que fique bem claro que Maria das Dores e Aléxia estão mortas... seu nome é e sempre foi Hafta Abdul... você será bem paga por isso!

         - “Intão tá limpo”!

         - E de agora em diante procure não falar muito perto das outras pessoas, pois esse seu português chulo é enojante. Agora... um passo em falso da sua parte e aí você vai me deixar zangada e... eu não sou nada boazinha quando estou zangada.

         - “Limpeza... e aonde é que a gente tá indo agora”?

         - Comprar roupas decentes para você.

           Roselene se dirigiu a outro shopping center, onde terminou de metamorfosear a moça. Hafta por vezes escolhia coisas que eram do seu agrado, mas era prontamente impedida por Roselene, que escolheu a dedo tudo o que aquela “nova mulher” iria usar. Tratava-se de roupas mais elegantes e modernas. Nada de calças jeans ou jaquetas irreverentes, mas sim tudo dentro das felizes combinações realizadas pelo gosto apurado de Roselene.

         Na sessão de calçados, Das Dores percebeu que seria obrigada a abandonar o velho par de tênis e aprender a andar sobre os saltos de sapatos e sandálias requintados. Algumas bijuterias que imitavam jóias também foram compradas, além de todos os acessórios necessários, como roupas íntimas, bolsas que combinavam com os sapatos, etc...

         Elas não se demoraram muito, pois Roselene ainda queria aproveitar aquele restante de horário comercial. Apressadas e cheias de pacotes, ambas deixaram aquele shopping. Nas ruas, Roselene dirigia ao passo que procurava por algo. Nas cercanias da Praça da Sé, ela encontrou o que tanto procurava:

         - Áh, lá está... agora só preciso de uma vaga para estacionar. - Isto seria um pouco difícil, pois já passava das 17:30 e as pessoas começavam a deixar os seus trabalhos e a formar o característico congestionamento da hora do rush, naqueles dias ainda agravado por uma rachadura na Ponte dos Remédios na Avenida Marginal. Foi por um golpe de muita sorte que após um automóvel deixar a sua vaga, cujo dono com certeza saíra do trabalho, que Roselene, mediante um alarido de buzinas cruzou para a outra faixa e estacionou. Ambas deixaram o automóvel e Roselene pediu que se apressassem. O que ela queria era um desses famosos “fotos rápidos”, os quais tiram fotos para documentos e as revelam em poucos minutos. Hafta estranhou quando ainda dentro do carro, Roselene colocou a peruca negra de cabelos longos e as lentes de contato violetas. As tais fotos eram justamente porque ela deveria providenciar uma nova documentação para que Hafta Abdul passasse a realmente existir legalmente. E também algumas fotos para Pagan Triloney se tornar uma realidade, fora por este motivo que Roselene havia se disfarçado no carro. Havia algumas pessoas na frente mas mesmo assim elas ainda conseguiram obter as fotos. Saindo dali, foi inevitável que ficassem presas por algumas horas no trânsito caótico de São Paulo, ainda mais que começara a garoar após a temperatura ter caído violentamente. Mesmo cansada Roselene estava decidida a ir até Itaquera, naquele mesmo bar onde ela encontrara o já finado “Mão de Fada”.

         Após três horas ela conseguiu o seu intuito, pois já passava das nove da noite quando receosa ela entrou no bar, sendo que Hafta ficou aguardando no carro. A situação da vez anterior se repetiu, mas ela em tom de voz alta perguntou ao dono:

         - O senhor sabe onde eu posso encontrar o Anacleto?

         - Bebe alguma coisa, dona?

         - O de sempre... - Enquanto Roselene aguardava pela resposta, notou que havia alguém no balcão ao seu lado e lhe perguntou:

 

         - “Tá falando do Mão de Fada”?

         - Exato, quem é você?

         - “Mão de Fada tá morto”!

         - O quê? E-eu sinto muito...

         - Será que sente? A última “cliente” dele foi você.

         - Não estou entendendo.

         - E nem é para entender.

         - Eu nem quero entender, agora me responda quem é você! - Exigiu Roselene, em tom autoritário.

         - Alguém que por um bom dinheiro “fecha o bico” e faz o mesmo trabalho que ele fazia! - Disse aquele rapaz alto, com uma aparência boa mas vulgar. Ele sorria muito enquanto sorvia alguns goles de aguardente. - O que você queria dele?

         - Negócios...

         - E não sabia que ele “tava” morto?

         - Se eu estou aqui para falar com ele, é evidente que eu não sabia.

         - Como eu disse... faço o mesmo trabalho que ele fazia.

         - É urgente...

         - “Num tem drama, é só dizê o que que é pra mim fazê”.

         - Aqui não, vamos até lá fora.

         - É a senhora quem manda! - Quando ambos saíram do bar, houve assobios coletivos além de “cantadas” e propostas de baixo calão, pois mesmo cansada Roselene ainda mantinha a bela postura, o belo penteado e o traje em ordem, além de exalar o delicado Fleur Sauvage de Givenchy. - Não ligue para eles, dona “são tudo uns pau d’água”... parece que nunca viram uma mulher bonita e fina!

         - Não importa. Agora eu tenho de ser rápida... Será que você pode me providenciar duas certidões de nascimento, três cédulas de identidade, dois títulos de eleitor, dois documentos comprobatórios de inscrição no cadastro de pessoas físic...

         - O quê?!

         - Dois “CICs”

         - Áh..

         - E uma carteira nacional de habilitação.

         - Depende do...

         - Dou mil agora e mais dois mil amanhã, na hora em que eu apanhar os documentos!

         - “Tá feito... eu só vô precisá de alguns dados, sinão num vai dá pra fazê, a senhora num concorda”?

         - Tome, aqui estão os dados e as fotografias da identidade junto com o dinheiro. - Disse Roselene, entregando um envelope para o rapaz. O último abriu o envelope, conferiu o dinheiro e depois sob a fraca luz daquela rua tentou ler os dados. Roselene tomou aquele papel das suas mãos de passou a lê-lo impacientemente:

         - Hafta Abdul, nascida em vinte e cinco de agosto de l981 em São Paulo, capital, às três e quinze da madrugada, filha de Mohamed e Ráfica Ali Abdul. Isso basta?

         - “Eu vô precisá de assinatura dela... - Roselene foi até o carro e pediu a Hafta que escrevesse o seu novo nome no papel. A moça o fez com dificuldade, depois Roselene fez o mesmo, assinando de uma forma simples “Pagan Triloney”, para que depois Paulo pudesse facilmente imitar aquela assinatura. Roselene voltou até o rapaz:

         - Aqui está, existe mais uma pessoa da qual você fará tudo em duplicata, o nome é Pagan Triloney, nascida em dois de novembro de l958, filha de Armagedon Triloney e Maria Drousoupoulou Triloney. Ela nasceu às dez horas da manhã no Rio de Janeiro... a assinatura está aqui... Você cria os números dos documentos e...

         - “Pode dexá que o resto é por minha conta! Só que tá faltando uma foto”! - Neste instante Roselene se lembrou que deveria tirar uma foto de Paulo travestido de Pagan Triloney, para não criar nenhum embaraço posterior.

         - É verdade, apronte estes, que amanhã eu lhe consigo a foto... Aí é só colá-la no documento e depois plastificar... a propósito, a que horas eu posso lhe encontrar?

         - “A hora que a senhora quisé, mais tem que ser mais pra tarde, pra dá um tempo de eu fazê os documento”.

         - Às quatro aqui?

         - “Na outra esquina, perto da avenida”.

         - Está certo e... me diga uma coisa, se eu trouxer a foto amanhã, você pode mesmo terminar os documentos amanhã?

         - “A senhora diz, terminá na hora”?

         - Isso mesmo.

         - “Da até pra fazê, só que aí é outro preço”!

         - Quanto?

         - “Mais uns mil”... - Roselene não estava disposta a negociar.

         - Fechado, eu trago a foto, o resto do dinheiro, você me entrega os documentos e aí eu espero você terminar o que falta e quando você me entregá-lo eu te dou mais mil.

         - Fechado, agora eu... - O rapaz foi interrompido pelo dono do bar que saiu na porta, que Roselene havia pedido uma dose de aguardente e não havia pago:

         - “Comé que é ô dona, bebe e dá os calóte”? - Roselene tirou uma nota de dez da bolsa e, dirigiu-se ao obeso homem:

         - Fique com o troco, asqueroso. - O homem ficou olhando sem saber o que dizer. Quanto ao rapaz, que tentava fazer algum tipo de convite para Roselene, não teve tempo de falar... - Amanhã às dezesseis pontualmente. - Disse ela, adentrando ao automóvel e rapidamente dando a partida.

         - “Cara bonitão... que que você foi fazê lá? - Perguntou Das Dores.

         - Aprenda uma coisa Hafta... sempre sem perguntas. Faça de conta que você é um vegetal, e você só terá a ganhar com isso.

         - “Tá limpo”! - Dali Roselene se dirigiu para o apartamento de Paulo, o que levou mais um bom tempo pois o trânsito ainda estava congestionado. Eram quase onze horas da noite quando o porteiro que já a conhecia, permitiu a sua entrada. Quando a campainha soou, Paulo já estava se aprontando para ir dormir:

         - Nossa, você?

         - Por que será que você sempre se assusta ao me ver? Estou tão horrorosa ou... você estava esperando por outro alguém?

         - Não, eu já estou até de pijama... Ei, quem é ela?

         - Querido Paulo, apresento-lhe a amiga inseparável de Pagan Triloney, Hafta Abdul!

         - “Oi, pô tu é um gato”! - Disse Hafta.

         - Boa noite. - Disse Paulo, timidamente. Roselene não demonstrou ciúmes diante daquela insinuação. Os olhos de Paulo logo se voltaram para ela:

         - O que foi que você fez que está tão diferente? Tão bonita?

         - Eu estou... ou, eu sou bonita?

         - Você é, mas há algo de especial hoje...

         - Apenas um toque no cabelo, mesmo assim estou tão cansada por ter ficado presa no trânsito que acho que já perdi o encanto. - Disse Roselene, simulando uma expressão triste.

         - De jeito nenhum. Você quer tomar alguma coisa?

         - “Eu quero e tô cum fome tamém”! - Interveio Hafta, acendendo um cigarro, o qual foi imediatamente arrancado da sua boca por Roselene. Logo a última se dirigiu a Paulo:

         - Eu não quero incomodar, mas acho melhor pedirmos algo para comer, pois nós duas não comemos nada durante a tarde toda!

         - “Eu quero pizza”! - Manifestou-se Hafta.

         - Está bem, para mim pode ser uma comida japonesa. - Pediu Roselene. E assim foi, enquanto a comida não chegava Paulo lhes serviu um Bourbon. Roselene sentou-se perto de Paulo e passou a acariciá-lo e logo “soltou a bomba”, começando brandamente:

         - Áh, Paulo, não se esqueça, amanhã pela manhã arranje um tempinho para a gente tirar uma fotografia rápida.

         - Depois das dez, está bem? - Paulo parecia encantado com Roselene, tendo inclusive esquecido o assassinado de “Mão de Fada”.

         - Ótimo, dez horas eu passo aqui, afinal nós...

         - Passe na universidade!

         - Áh, está bem... aí depois viremos para cá, afinal serão necessários alguns preparativos sobre os quais falarei depois...

         - Que preparativos?!

         - É que as fotos serão de “Pagan Triloney”, para os seus documentos pessoais, as minhas eu já tirei e se fazem necessárias as suas, para que não haja problemas posteriores. Paulo já concluiu o que iria acontecer.

         - Essa não... mas é mesmo preciso?

         - Já disse que é, e será também uma maneira de confirmarmos se o disfarce convence ou não... - Roselene não queria falar muito devido à presença de Hafta. - E tem mais duas coisinhas...

         - Mais o quê? - Perguntou Paulo, em meio a um suspiro.

         - Calma amor... - Pediu Roselene, passando levemente o indicador nos lábios do rapaz. - É que eu estou pensando em viajar já no final dessa semana, para realizar a transação e as demais transferências de patrimônio ficarão por sua conta, munido do documento como você mesmo disse e...

         - E?

         - ... e eu acho que você terá de pedir uma licença na universidade e deixar um pouco o seu escritório, os processos e... tudo mais...

         - No final dessa semana?!

         - Exato, quanto antes melhor, agora que já está tudo praticamente pronto...

         - Eu posso faltar na sexta para realizar a transação... aliás onde vai ser mesmo?

         - Ponta Grossa, Paraná... eu tirei na sorte!

         - Então dará certo, afinal há um vôo que sai cedo para lá e o embarque é no Congonhas que é mais perto. Dá para ir e voltar no mesmo dia.

         - Exato...

         - Mas quanto às outras viagens você tem de me dar um prazo para arranjar um substituto na universidade e para que eu possa dar uma adiantada nos processos, afinal eu não sei quanto tempo eu terei de ficar fora!

         - Uns três ou quatro meses se você agir com celeridade, afinal são setenta e poucas lojas e muitas delas no exterior!

         - Os meus clientes vão enlouquecer... vão me matar, eu vou perder os prazos! Os alunos na universidade...

         - Ora, ora, ora... você não vive se queixando dos seus alunos, ou será que é só para fazer drama?

         - Não, realmente lecionar nos dias de hoje não é nada fácil. Os alunos vêm para o terceiro grau muito despreparados e pensam em tudo, menos em estudar. Quantas vezes tenho de chamar atenção e volto para casa deprimido, achando que sou um péssimo professor... isso sem falar no salário, que é péssimo também!

         - Isso mesmo, você pode entrar com um pedido formal de afastamento por motivos de saúde. Eu mesma conheço um médico que pode lhe arranjar um atestado bem convincente, aliás, com uma boa quantia em dinheiro quem não assinaria um documento que ateste que seus nervos estão muito frágeis devido a uma profunda estafa. Quanto a arranjar um professor, eles mesmo na universidade o fazem rapidinho. E... como os alunos não querem nada com nada, vão adorar em ter uns dias de folga das aulas das suas disciplinas. Quanto aos clientes peça uma dilação de prazo por motivos de força maior!

         - O que eu poderia era substabelecer os meus processos para um dos meus colegas do escritório mas...

         - E o que isso significa?

         - Passar os processos para que eles os terminem. Significa simplesmente tirar o corpo fora e morrer de peso na consciência!

         - Então é bem mais fácil do que eu pensava! Isso merece um brinde! - Exaltou-se Roselene, erguendo o seu copo.

         - E a minha reputação?

         - Pense no dinheiro que você vai ganhar. Quem tem dinheiro não precisa de reputação!

         - Santo Deus... eu precisarei pelo menos de uma semana para organizar tudo.

         - Ótimo...

         - Você havia dito que tinham duas coisinhas, o que mais há ainda depois desta bomba atômica que você lançou?

         - Áh, eu já ia me esquecendo... Aquele seu quarto de empregada com banheiro está livre?

         - Está, afinal a Osvaldina é diarista e só vem duas vezes por semana.

         - Então Hafta poderá ocupá-lo pois...

         - Ela, ficar aqui??

         - E o que há demais nisso?

         - O que as pessoas irão dizer... digo, quem vier me visitar e vê-la aqui, até mesmo a própria Osvaldina!

         - Você não é obrigado a dar satisfações, mas se faz questão diga que é uma prima, sua nova concubina, ou mesmo que você contratou uma empregada mensalista que dorme no emprego. Mas eu sei como é chato ficar dando satisfações, então a solução é o uso de chaves, afinal para que elas existem? Você a tranca no quarto, fica com a chave e também se livra do fumacé que ela faz com os malditos cigarros... Hafta já foi instruída para não fazer perguntas e somente obedecer, afinal ela está sendo mais do que bem paga para isto, não é mesmo Hafta?

         - Sim “sinhora”. - Concordou a moça, medindo Paulo dos pés à cabeça e esboçando um sorriso malicioso.

         - E por que ela não fica com você?

         - E onde eu vou colocá-la, lá em casa?

         - Num hotel ou motel, que tal?

         - Para ela dar um jeito e fugir? Esse bicho é arisco e tem de ficar sob as nossas vistas!

         - Mas justamente comigo?

         - É por mim Paulinho... e também por pouquíssimo tempo! Agora que tal mais um drink para brindarmos? - Paulo não teve mais argumentos. Logo mais a comida chegou. Roselene, como sempre, apenas beliscou; Paulo já havia jantado, mas Hafta deu conta do recado. Eles conversaram mais um pouco. Logo, cansada, Roselene tomou a palavra:

         - Hafta, meu bem. No seu quarto há um banheiro onde você poderia tomar um belo de um banho, cuidar bem dos seus cabelos, assim como eles lhe ensinaram lá na maison... - Ela voltou-se para Paulo:

         - Você tem secador Paulo?

         - Tenho. - Respondeu o rapaz, mal-humorado.

         - Paulo vai lhe emprestar o secador. Você também aproveita para provar melhor as roupas novas, fuma quantos cigarros quiser... com a janela aberta, é claro...

         - “Só dá pra hoje”!

         - O quê?

         - O cigarro...

         - Amanhã eu trago já um pacote, de uma marca menos mau cheirosa. Agora vamos, afinal Paulo tem que levantar cedo. - Disse Roselene, acompanhando Hafta até o quarto de empregadas.

         - “É aqui que eu vô ficá”?

         - Exatamente, aposto que é bem mais confortável que a pocilga na qual você dormia... Veja, neste armário estão as roupas de cama e... neste outro as de banho. Abra os seus pacotes, pois se você não se lembra nós compramos um babydoll, um pegnoir e chinelos para você, há também um pijama para as noites mais frias! No banheiro há sabonete e shampoo... cuidado com esses cabelos, heim! Amanhã eu trarei uns cosméticos e perfumes para você. Adeusinho!

         - “Té mais”... - Disse Hafta, se entretendo em abrir os pacotes, os quais rasgava jogando os pedaços de papel pelo chão, também já acendia um novo cigarro. Enquanto isso, Roselene fechou a porta e trancou pelo lado de fora, entregando o molho para Paulo.

         - Mas isto é cárcere privado! - Protestou o advogado.

         - E por acaso ela sabe disso?

         - Não, mas...

         - Há alguém aqui para testemunhar?

         - Também não.

         - Então não há crime... vai ficar com as chaves ou quer que eu as leve comigo?

         - Não, eu fico com elas, no caso de uma emergência!

         - É você quem sabe... muito bem, agora eu estou por demais cansada e acho que vou para casa. Até amanhã Paulo. - Disse Roselene, dirigindo-se para a porta.

         - Mas assim?

         - E você também deve dormir, para estar com uma boa aparência para a foto! Ciao. - Disse, saindo. Paulo ficou pensativo:

           - Ele nem se importou que algo possa acontecer entre mim e Hafta. Ela realmente não sente ciúmes... - Murmurou ele.

 

         No dia seguinte, antes mesmo que Paulo tivesse terminado a sua aula, Roselene já o esperava no corredor. Como de costume, ela estava belamente vestida, desta vez com discreto vestido azul turquesa o qual combinava com a cor dos seus olhos, com seus brincos e gargantilha de ouro branco e safiras. Cada sapato que era da mesma tonalidade do vestido, também estava ornamentado por uma pequena flor de lótus, tendo como miolo uma safira. Ela não passou despercebida por nenhum dos alunos de Paulo, afinal sua aparência e seu perfume, o inconfundível Channel nº 5 de Coco Channel, faziam dela uma presença marcante. Um dos alunos até brincou com Paulo:

         - Sabe escolher, heim professor? Ela é gatíssima! - Paulo apenas sorriu amareladamente, enquanto Roselene dizia o seu sorridente e gentil “bom dia” a todos os alunos e alunas que por ela passavam, até que Paulo viesse ao seu encontro...

         - Precisava vir tão bonita? Talvez esteja querendo conquistar um garotão, um dos meus alunos!

         - Pelo visto você está morrendo de ciúmes... Paulinho meu amor, meus olhos foram feitos para te olhar, meus ouvidos para te ouvir, minha boca para te beijar, meu nariz para sentir o perfume do teu corpo e o meu coração para te amar! Pronto para se transformar em Pagan Triloney e ser fotografado?

         - O que é que eu não faço por você?

         - Não me beija com freqüência...

         - Mas é você que não...

         - Eu nada. - Disse Roselene, beijando Paulo em pleno corredor. Os alunos que aguardavam a próxima aula nos bancos aplaudiram.

         Ambos se dirigiram rapidamente para o apartamento do advogado, professor e jurista. No trajeto, Roselene que dirigia, perguntou:

         - Você destrancou a porta da nossa amiga?

         - Por Deus, sabe que eu acabei perdendo a hora e com a pressa esqueci! - Disse Paulo, levando a mão à testa.

         - Tanto melhor, assim eu mesma abrirei a porta. Ela deve estar faminta e eu lhe prepararei um reforçado café da manhã, além de dar a ela este estojo de maquiagem e essa caixa de cigarros de menta, pelo menos a fumaça não será tão insuportável. Enquanto ela come, fuma e se pinta, eu te travisto de Pagan Triloney. - Disse Roselene. E assim foi...

         Ao chegar ao apartamento de Paulo, Roselene preparou uma enorme bandeja, contendo pães, sucos, frios, patês, frutas, biscoitos, bolos, café, chocolate, leite e água; e a levou para o quarto de Hafta, juntamente com o estojo de maquiagem e a caixa de cigarros. Para a sua surpresa, quando ela abriu a porta, a moça ainda dormia profundamente, pois deveria ter perdido muito tempo em arrumar os cabelos na noite anterior, pois estes estavam razoavelmente bem penteados. Roselene fechou a porta e a trancou novamente, para depois ir cuidar de Paulo. Ao adentrar no quarto do rapaz ela foi direta:

         - Muito bem meu amor... tire toda a roupa!

         - Tudo?!

         - Tudinho, pois primeiro devo perfumá-lo e desodorizá-lo com perfume de mulher e... também aproveitar para acariciar as suas partes mais recônditas... as suas regiões erógenas, quem sabe... - Paulo obedeceu e Roselene passou a borrifar nele o Channel nº 5, usando para as axilas um desodorante da mesma marca. Como fazia um pouco de frio, Paulo se contorcia e gemia a cada borrifada de perfume, seus pelos estavam todos eriçados e sua pele arrepiada, tudo isso para o deleite sádico de Roselene, que não hesitou em beijar, lamber e morder algumas partes desnudas do corpo do rapaz.

         - Você está querendo me enlouquecer... você não sabe que um mero toque seu me deixa em ponto de bala!

         - Seja um bom menino e comporte-se... agora vamos cobrir esta tesa genitália! - Disse Roselene, colocando uma das pernas de Paulo numa calcinha feminina. Estando a peça de roupa no seu devido lugar, Paulo argumentou:

         - Estou ridículo!

         - É claro, você está excitado. Agora vamos para as meias de nylon! - E assim Roselene passou a transformar Paulo, vestindo-lhe também um soutien com enchimentos de espuma para formar os seios, em seguida um vestido azul marinho, similar ao que ela usara no dia anterior, só que mais largo para não salientar as partes íntimas de Paulo. A capa de cor de ciano ela tirou do seu próprio vestido. Com muito cuidado, ela colocou as lentes violetas em Paulo e depois passou para a maquiagem.

         - Sabe seu Paulo, de hoje em diante você terá de andar sempre bem barbeado, assim como hoje e eu... hã, quando chegar a minha vez de me vestir de Pagan Triloney deverei parecer mais gorda por ter de usar vestidos mais largos, tudo por causa desses seus ímpetos de excitação, os quais podem por tudo a perder.

         Pelo fato do rosto de Paulo estar liso, foi fácil transformar aquela face na de uma mulher. Em seguida ela ainda ornamentou o travestido Paulo com delicados brincos e um colar de pérolas, além de algumas pulseiras e anéis. Por último ela lhe colocou a peruca, a qual penteou cuidadosamente. Passou um esmalte rosa salmão nas unhas. O mais difícil foi fazer Paulo aprender a andar sobre saltos altos. Estando uma vez tudo pronto, eles foram ao fotógrafo...

         - Esta é a prova de fogo. Tome estes óculos de sol, caso por algum momento você se sinta inseguro, ou encontre com algum conhecido. Mas, se ninguém te reconhecer e você realmente provar que é uma mulher perante todos, não haverá mais do que temer... Não se esqueça que de agora em diante o seu nome é Pagan Triloney e... se caso você resolver falar, não se esqueça do detalhe de naturalmente afinar a sua voz! - Disse Roselene, que parecia bastante contente. Ao olhar Paulo pela última vez, ela reparou que em suas mãos havia pêlos, os quais decididamente ela resolveu remover com o auxílio de um aparelho de barbas.

         - Se for assim, vou ter de depilar as pernas, as axilas, os poucos pelos do meu peito, etc.. - Disse Paulo.

         - As meias de nylon escondem os pelos das pernas, quanto ao resto, Pagan Triloney não vai andar nua por aí e nem usar roupas muito vaporosas. Agora não mais percamos tempo e nos apressemos para o fotógrafo!

 

         Nas ruas e nem mesmo no fotógrafo, não houve quem desconfiasse que Paulo não fosse uma mulher. Diga-se de passagem que ele estava longe de se parecer com um travesti também. Ele também ficou bastante parecido com Roselene quando travestida da mesma forma, tanto que o fotógrafo perguntou se ele(a) já não estivera ali no dia anterior. Foi Roselene que respondeu por Paulo, respondendo que a sua amiga havia perdido as fotos.

         Roselene levou Paulo de volta ao apartamento. O porteiro estava intrigado e Roselene falou que duas primas de Paulo haviam vindo passar uns tempos com ele, assim sendo o homem não mais desconfiou. Já no apartamento, Roselene pediu que Paulo se trocasse:

         - Deixe tudo organizado para ter de se vestir em caso de emergência... áh, essa maquiagem sai fácil com água e sabão! Eu vou ver como está Hafta...

         A moça tinha justamente acabado de tomar o seu café e fumava calmamente um cigarro. Ao adentrar no quarto, Roselene ficou furiosa:

 

         - Eu ordenei que você abrisse a janela ao fumar!

         - “Esqueci, porra”...

         - E se desacostume de usar esse palavreado de baixo calão!

         - “Tá bom, agora vê si mi mira mais mi erra, pô”!

         - Trate de se pintar, discretamente, e de pentear melhor esse seu cabelo, depois eu trago o seu almoço.

         - “Tô morta de fome”!

         - Não vá me dizer que o café da manhã não bastou?

         - “Foi só aperitivo, bacanona, eu preciso é de sustância”!

         - Entendo... com certeza você deve ter uma sucuri no lugar dos intestinos...

         - “Deve de ser um tubarão, igual aquele do filme, isso sim”!

         - Eu imagino. - Disse Roselene, se retirando do quarto, pois tinha muitas outras coisas para fazer.

         Ela providenciou o almoço o almoço para Hafta, trancando-a novamente no quarto e depois foi até a sua casa para almoçar. Numa conversa em particular com suas tias ela alegou o seguinte:

         - Minhas queridas tias, eu bem tenho estado por dentro do trabalho das minhas queridas primas aqui na loja de São Paulo, elas estão se saindo relativamente bem, por isso eu gostaria de que aquela idéia de eu assumir a presidência ficasse omissa por algum tempo, pois o que eu tenho mais feito é analisar os documentos referentes aos procedimentos das filiais e, eu creio que não adiantaria nós nos preocuparmos somente com a matriz se existe muito mais patrimônio e capital investido nas filiais e se estas não estão obtendo lucros significativos. Para tanto quero lhes comunicar que farei primeiramente uma pequena viagem, visitando algumas das filiais que estão apresentando um déficit maior, pois eu preciso ver isso de perto, isso é claro se as senhoras estiverem de acordo.

         - Você sabe o que faz, minha querida. - Disse Débora.

         - Mas eu não gostaria de nenhum alarde quanto a isso, pois as minhas primas poderiam desconfiar e achar que o meu procedimento em relação às lojas esteja sendo relapso.

         - Não se preocupe, pois nós mesmas diremos a elas que pedimos que você viajasse para visitar alguns novos fornecedores para pedir condições mais suaves para o pagamento de nossas dívidas! - Disse Hella.

         - Vocês são as melhores tias do mundo! Já não sei se vou conseguir nem ao menos viajar sem ter o coração apertado de saudades! - Disse Roselene com a voz embargada, abraçando as duas juntas e em seguida beijando-as. Era mais uma tacada importante, pois ela além de contar com o aval das tias, ainda contaria com a ajuda das mesmas para despistar suas primas.

         - Agora chega de lágrimas minha querida e vamos almoçar. - Sugeriu Débora. Logo cada uma das duas enganchou em cada braço de Roselene e a conduziram até a copa para almoçar.

         Naquela mesma tarde, às dezesseis horas pontualmente Roselene estava estacionada no lugar combinado, quando ouviu alguém bater no vidro da porta do automóvel:

         - “Ta aqui dona, tudo como a senhora pediu”! - Roselene pegou o envelope e retirou o seu conteúdo conferindo o serviço.

         - É, está bom. Aqui está a sua outra parte do dinheiro e a foto também. Quanto tempo vou ter de esperar?

         - Uma meia hora.

         - Ótimo, basta só colar a foto mesmo e depois plastificar... - Roselene ficou ali no carro, deixou a arma ao lado do banco, travou as portas e fechou os vidros. Mentalmente começou a repassar todos os planos de tudo que deveria acontecer nos próximos dias. Havia algumas coisas que ela havia esquecido e deveria perguntar novamente para Paulo. Ela por um instante sentiu um pouco de medo, mas logo rechaçou o sentimento afirmando para si mesma que era uma mulher forte e que sempre conseguia o que queria. Roselene mergulhou de tal modo nos pensamentos que assustou-se quando o rapaz estava batendo no vidro do carro novamente, ela o abriu:

         - “Tudo pronto dona”! - Ela olhou a cédula de identidade falsificada e aprovou.

         - Tome, aqui estão os outros mil prometidos pela rapidez do trabalho. - Secamente fechou o vidro, deu a partida e tomou o caminho do apartamento de Paulo para providenciar mais comida para Hafta. Enquanto isso, Paulo que havia requerido uma reunião extraordinária com a chefia do departamento, expunha o seu problema de saúde. Seus chefes foram compreensivos e apenas pediram um atestado médico para que ele conseguisse uma licença de saúde por tempo necessário para a cura da sua estafa e nervosismo.

         Naquela mesma noite Roselene levou Paulo até o apartamento de um médico que já fora um dia seu namorado e agora era um grande amigo. Paulo nem precisou explicar direito o que sentia e o médico receitou alguns remédios e atestou que Paulo estava impossibilitado de trabalhar e ministrar aulas por tempo indeterminado e que deveria ingressar num spa para se refazer. Este atestado também foi muito útil para que ele pudesse substabelecer os seus processos para os colegas, os quais entenderam perfeitamente. Tanto no seu escritório, quanto na universidade todos foram muito solidários e torciam para a recuperação de Paulo, isso naturalmente fazia a sua consciência gritar, pois estava indo de encontro com os seus princípios.

         No dia seguinte, enquanto Paulo se desvencilhava das suas obrigações, Roselene, travestida de Pagan Triloney, aproveitou, com a sua nova identidade para abrir uma conta bancária em nome, é evidente de Pagan Triloney e depois foi até uma concessionária onde adquiriu um carro, no nome da falsa identidade. Como dentro da própria concessionária havia um despachante que emplacava o carro na hora, tudo ficou mais fácil. É claro que Roselene não deixou de conseguir algumas placas frias, caso houvesse algum problema com a polícia.

         Para que tudo ficasse totalmente em ordem, eles só embarcaram para Ponta Grossa num sábado. Como chegaram cansados, resolveram se preparar para uma das cartadas decisivas na segunda-feira. Aproveitaram o resto do final de semana para fazer turismo, afinal o hotel onde se hospedaram tinha uma van a disposição dos turistas, assim sendo eles puderam conhecer pontos turísticos tais quais Vila Velha, Furnas, Lagoa Dourada, Rio São Jorge, Alagados, Buraco do Padre, Capão da Onça, Capela de Santa Bárbara e no centro a moderníssima Catedral Metropolitana, toda construída em aço e vitrais italianos e de cuja torre pode-se vislumbrar a grandeza da Capital dos Campos Gerais que jaz pacífica e pontilhada por edifícios rodeada pela bucólica paisagem de verdejantes campos entrecortados por pinheiros, eucaliptos e capões de mata virgem. Eis então Ponta Grossa, grande cidade do centro sul do Paraná; nas suas ruas, no seu ar puro, no seu jeito de existir traz ela uma conotação européia, pois os campos e as florestas que a rodeiam, como já afirmaram muitos turistas, não fazem inveja à germânica Floresta Negra.

 

         O sol brilhava naquela segunda-feira amena; Lisiane ganhara o último andar da edificação ligeiramente atrasada, já passava das nove horas da manhã.

         - Bom dia “Urogozo”!

         - Bom dia, senhorita Lisiane.

         - Tomara que seja realmente um bom dia, uma vez que o meu domingo não foi dos melhores...

         - M-mas o que houve, senhorita?

         - Fui literalmente jogada para escanteio, trocada por uma “pelada” que...

         - Uma mulher pelada?

         - Não “Uropúbis”, ainda não cheguei a esse ponto... estou falando de uma daquelas vulgares partidas de futebol no domingo a tarde num campinho qualquer, onde os de camisa jogam contra os sem camisa... depois eles tomam uma grade de cervejas para comemorar, arrotam feito uns porcos, gargalham e falam sobre coisas pornográficas, bizarras e bestiais, entrecortadas por escabrosos palavrões. Isso sem falar nas chacotas e nas particularidades que eles contam sobre as infelizes namoradas... é uma literal troca de informações regada por desdém e gozação... e, o pior... - Lisiane suspirou. - ... é que eu sou uma delas... que “bestas do apocalipse” será que eles não falam ao meu respeito?

         - Que a senhorita é uma moça inteligente, íntegra, esper...

         - Não “Uropênis”, eles devem se urinar de rir da neurótica bêbada, da palhaça gritalhona, da grossa desengonçada... de mim nua, embora o Ricardo nunca tenha me visto dessa maneira, ou mesmo fantasiam comigo pelada sobre um jegue, apenas com um chapéu de vaqueiro e óculos de sol baratos, comprados numa dessas feiras agropecuárias, além de estar fumando um cigarro de palha e ter na outra mão uma garrafa de pinga... e daí por diante...

         - A senhorita está com uma imaginação muito fértil, e se acabar acreditando em coisas assim, elas bem podem se transformar em formas pensamento e acabarem acontecendo na realidade. Vai ver e nem é bem assim, afinal pelo que eu tenho notado, se a senhorita me permite, é que o senhor Ricardo anda meio “abitolado” ultimamente... e quando tudo está bem entre vocês ele anda assobiando melodias de amor pelos corredores, mas quando vocês discutem, ele fica tão cabisbaixo, tão deprimido que dá até dó... e estão aí as senhoritas Karina e Carolina que não me deixam mentir!

         - Vocês andam bisbilhotando a minha vida?!

         - De jeito nenhum, senhorita, só estou falando do que a gente vê e percebe.

         - E depois ficam “tricotando” a respeito... ahã sei! Bem, vou me enclausurar naquele escritório... “Uropinto”! - Disse Lisiane, voltando-se. - ...sou uma... ai-ai... como diria a Claudia, madmoiselle toute seule... - Disse Lisiane, saindo aos suspiros. Ao adentrar no escritório deparou com dois bouquets de rosas cada qual com duas dúzias da flor, um era de rosas vermelhas e brancas e o outro de amarelas e cor-de-rosa. Havia um imenso cartão ao lado, com as seguintes palavras:

         Uma vez um olhar

         Uma vez uma palavra

         Uma vez um inusitado bem estar

         Uma vez um elogio da tua lavra

         Uma vez você...

 

         Uma vez atração

         Uma vez delírio

         Uma vez paixão

         Uma vez martírio

         Uma vez obsessão

         Uma vez amor...

 

         Uma vez tua mão

         Uma vez teus olhos

         Uma vez teu perdão...

 

         Uma vez tua boca

         Uma vez tua aura

         Uma vez teu espírito

         Uma vez tu

         Que és única...

 

         Todos os perdões do mundo, não foi por dolo, mas por culpa. Você não imagina como a minha consciência me martirizou, e o quanto a sua imagem se fez presente em todos os instantes do dia anterior... Creio que o jogo teria sido bem melhor se você lá tivesse estado, mas em espírito pode ter certeza que eu estive todo tempo ao seu lado...

 

                                   Desculpe-me...

                                   Um grande beijo...

                                                          

                                                                    Ricardo.

 

         Lisiane terminou de ler aquele belo cartão emocionada. A estampa do mesmo representava uma espécie de crepúsculo e a silhueta de dois entes etéreos, tocando um, a face do outro. Mesmo assim, ela logo voltou a sua realidade, desmanchando o sorriso tolo e caindo em si:

         - Pulha, mentiroso, demagogo... garanto que eu nem passei pela sua cabeça no dia de ontem e agora ele vem todo cheio de ondas... De qualquer modo as flores são lindas... - Murmurou ela, aspirando profundamente o odor daquelas rosas... - É, de qualquer modo ele pensou em mim e gastou dinheiro por minha causa, além de ter mandado preparar bouquets especiais com esse degradé de cores. - Pensou alto ela, sentando-se na sua grande e confortável cadeira, ainda tendo o cartão em mãos. - É... pior se eu não tivesse ao menos um “diabo-da-tasmânia” que se importasse comigo... Ricardo é um amorzinho, acho que vou reconsiderar... - Ela fechou os olhos e se fez rodopiar sobre a cadeira.

         Repentinamente, para o seu total desconcerto, a porta do banheiro se abriu...

 

         - Surpresa!!! - Foi Ricardo quem surgiu repentinamente, querendo causar impacto.

         - Ááááááh!! - Berrou Lisiane, quase vindo cadeira abaixo.

         - Também não é para tanto!!!

         - O que significa isso?!

         - Ansiedade em te ver!!

         - Quer me matar do coração?? Estava defecando no banheiro sem a minha autorização igual aquela faxineira de nome “Antena”?!

         - Mas eu...

         - Espero que você tenha se dado ao trabalho de ter riscado uns cinco palitos de fósforo e ter borrifado o L’air du Temp de Nina Ricci que eu pus lá! Além de não ter ficado sentado no “trono” pensando na morte da bezerra e te deixado a “substância” ressecar no seu orifício assim como fez a “Melena”... depois precisa molhar o papel higiênico ou tomar banho de acento no “semicúpio” para poder limpar direito! Escute o que eu estou dizendo...

         - Eu não estou te entendendo!

         - Mas como não está?! Se faz límpido e claro que eu estou falando sobre idas ao banheiro que deixam como resquício odores insuportáveis, e olha que eu digo isso por experiência própria, quando eu flagrei a “Esquema” sentada toda alegre e retumbante sobre a latrina e para conversar com ela eu acabei por entrar de vez naquele banheiro, fechar a porta, puxar o banquinho que lá existe e conversar com ela... Posso afirmar convictamente que quase cheguei a perder os sentidos com tamanho mau cheiro!

         - Mas então por que você ficou lá?

         - O assunto estava interessante, tanto quanto o seu futebol deve ter estado na tarde de ontem!

         - Lise, faz pouco tempo que a gente namora e eu estou habituado a encontrar com a turma para jogar uma bolinha e depois tomar umas “cervas”! É difícil mudar...

         - Eu também estava habituada a passar os finais de semana na nossa casa no Guarujá ao invés de ficar às voltas de um telefone que nunca toca, e quando toca são imbecis que se enganaram de número. Sinto-me patética!

         - Eu iria te ligar para a noite a gente sair, mas eu estava tão cansado que...

         - Cansado e alcoolizado com certeza... Eu não sei que graça vocês homens encontram em ficar correndo, se coiceando, se acotovelando, caindo, se sujando e bradando coisas ininteligíveis atrás de uma cretina de uma bola!

         - A gente corre, grita, ri... faz bem para a saúde, põe o corpo em forma... Não vá me dizer que você não gosta de futebol?!

         - Não!! Futebol é esporte para estúpidos e lésbicas!

         - Não vá me dizer que nem numa Copa você se senta na frente da televisão para ver o seu país jogar e por ele torcer?!

         - Prefiro assistir a idiota da “Noviça Rebelde” pela milésima vez!

         - Você me diz isso justamente agora que eu estava pensando em te levar comigo qualquer domingo desses!

         - Para aquela “homarada” desbocada, porca e tarada me propor obscenidades, arrotar cerveja na minha cara e me beliscar no traseiro?! Nunca!!!!

         - Não conhecia esse seu lado despótico e preconceituoso!

         - Não sou preconceituosa... e preconceito agora é crime, sabia?

         - Não parece... você não gosta do esporte de todo brasileiro!

         - Não mesmo... - Disse Lisiane, abrindo algumas pastas e passando a analisar os documentos que nelas havia. - ... futebol é esporte de desocupados, bêbados, ignorantes, depauperados, miseráveis, nomerentos, mal-educados, grossos, fedorentos... por fim é coisa de povo e pela Graça de Deus deste eu não faço parte. - Disse Lisiane, calmamente, servindo-se em seguida de uma xícara de café. Ricardo, por sua vez, estava decepcionado.

         - Será que uma partida de futebol não seria agradável para você mesmo com alguém que a ama sentado ao seu lado, compartilhando uma pipoca e um cobertor num dia frio? Eu posso lhe garantir que eu assistiria a “Noviça Rebelde” mil vezes, se a situação fosse essa!

         - Não faço a mínima idéia... afinal nunca realizei tal experiência e por enquanto creio que nunca fui sinceramente amada. Café senhor Ricardo?

         - Com isso você está me dizendo que eu não significo nada para você...

         - E deveria?

         - Você é louca... se você está querendo terminar, diga isso com todas as letras!

         - Para bom entendedor meia palavra basta, além do mais não vejo necessidade alguma em terminar o que nunca começou.

         - Você acaba de estragar o meu dia, a minha semana, o meu mês, o meu ano!!! - Num ímpeto Ricardo tomou algumas daquelas rosas e jogou-as em Lisiane.

         - Além de tudo você não passa de um... de um cavalo!

         - Tenha um ótimo dia, patroa. - Bradou Ricardo, saindo e batendo a porta com toda a sua força.

         - Estúpido! Droga, tudo por causa do maldito futebol... é o que dá, manter relações com um pobre funcionário... nunca iria dar certo. - Murmurou Lisiane, deixando cair o rosto sobre o braço esquerdo, estendido sobre a mesa. - Que graça vai ter a vida sem ele? - Algumas lágrimas brotaram dos seus olhos... Logo em seguida a porta foi aberta de supetão:

 

         - Licença, “Lisoca” nós es... - Era Claudia.

         - Saia!!!

         - Credo, “açúcar cristal” eu só... Mon Dieu, você está chorando?!

         - Não sua purgante, foi só um cisco que entrou no meu olho.

         - Nos dois, você quer dizer... e essas flores espalhadas pelo chão, essa água derramada?

         - Foi só um furacão repentino que passou por este escritório.

         - Já sei... um furacão chamado Ricardo! Brigou com o pobrezinho de novo?

         - É, e agora vê se me esquece!

         - Não quero ser chata, mas...

         - Já está sendo!

         - ... qual foi o motivo sweet darling?

         - O amaldiçoado futebol!

         - E o que é que tem?

         - Como, o que é que tem? Ele me troca todos os domingos pela maldita pelada, não uma mulher, mas o jogo com os amigos, unido é claro a uma cervejada, um degradante repertório de palavras de baixíssimo calão e finalmente um truco pós jogo!

         - E foi por isso que você brigou com ele?

         - Eu desmanchei com ele!

         - Então quer dizer que não precisou nem de outra, você ficou com ciúmes do futebol?

         - E eu não tenho razão?!

         - Não!

         - O quê?! Vai defender?!

         - Vou sim. Em hipótese alguma, quando gostamos de uma pessoa, podemos tolhê-la do seu lazer ou das coisas que gosta, mas sim devemos nos esforçar para compartilhar isso tudo também! Numa relação, o amor, a liberdade recíproca, a confiança e a sinceridade são basilares, são os pilares de concreto sobre os quais será erguido o edifício!

         - Conversa para boi dormir...

         - Conversa para uma egoísta que ainda não se tocou do que é ser amada, que não sabe amar, não sabe se doar, é desprovida de qualquer instinto de humildade e principalmente que ainda não percebeu que poderá envelhecer sozinha, e depois das rugas minha filha... será tarde demais e o mesmo não acontece com os homens! Principalmente com aqueles que se cuidam, como é o caso do Ricardo!

         - Está me taxando de velha?

         - Não candy, mas que ele aparenta ser mais novo que você, isso é uma verdade!

         - Chega... não quero mais ouvir nada!

         - Se eu fosse você, daria um jeito de me reconciliar e principalmente de entender e apoiar esse lazer dominical do rapaz! Aliás, eu não vejo qual o motivo de você odiar tanto o futebol... afinal somos brasileiros!

         - Você parece o Ricardo, falando e... como eu mesma disse para ele, é esporte de povo!

         - Você faz parte do povo.

         - De jeito nenhum!

         - Então quer dizer que você é, digamos... assim por cima, uma iluminada, uma deusa do Olimpo? Fazes questão de algum tipo de reverência, óh magna prepotente?

         - Por que é que você não vai fazer permanente na medusa, heim?!

         - Porque eu quero ajudar, além do mais o “maldito futebol” como diz você, é um esporte qualquer como o basketball, o volleyball, o handball, o polo, tanto eqüestre quanto aquático, o baseball, o tennis, o golf, o iatis... - Dizia Claudia, carregando do sotaque inglês.

         - Chega!!!

         - Vai que um dia você se casa com alguém que não seja o Ricardo... se ele não praticar algum esporte, certamente vai por algumas horas trocar você por um computador, por um bom livro, pela televisão ou mesmo por uma soneca... e diga-se de passagem que essas pessoas que não despendem energias com esportes são bem mais rabugentas do que aquelas que o fazem... E se no caso você se casar com um esportista amador e ainda alegrão como o Ricardo, é claro que você terá de se acostumar com o estilo de vida dele assim como ele deverá se acostumar ao seu, ou você vai querer me dizer que vai se dedicar inteiramente a um homem e se esquecer de você mesma e das coisas que gosta de fazer? Ambas as partes têm de ceder um pouco... Agora me diga se não seria agradável esperar o “maridão” com uma comidinha improvisada, mandá-lo para um perfumado banho quando ele chegar te premiando com um saudoso e demorado beijo na boca e louco para experimentar os teus quitutes?! Heim?! - Perguntou Claudia, em meio a uma piscadela.

         - Isso aí é para aquelas donas de casa que se orgulham em dizer que são “do lar”!

         - E você vai ser o quê? Dona de bordel?

         - Não! Dona de um shopping, uma empresária, uma advogada e não uma “pilota de fogão”!

         - Se assim é, você teve mesmo razão em ter terminado com o Ricardo e...

         - Paspalha, imagine se eu seria louca ao ponto de me casar com um simples funcionário?

         - Áh, é assim, não é... eu só não entendo o motivo das lágrimas e da voz embargada! Mesmo assim, talvez algum dia pouse sobre a terra uma nave alienígena com um “ET” que irá desposá-la e fazer-lhe todos os gostos e quem sabe ensinar você a amar alguém outro que não seja você mesma, ou... quiçá mais fácil seja você pagar algum garoto de programa para ser o seu cachorrinho de madame!

         - Mas feche essa matraca, que eu já estou ficando zonza!

         - Bem, eu só vim aqui para lhe avisar, Sua Majestade Dona Lisiane, que Gigi se faz presente em nosso estabelecimento para mostrar algumas modificações que ela realizou em outras peças de vestuário.

         - Quem, aquela do filme?

         - Não alouette, Gilka Blanche, a estilista. Eu e Márcia a estamos aguardando no meu escritório. Até mais ver “almôndega de salmão”! - Disse Claudia, saindo e fechando a porta.

         Não demorou para que Lisiane se recompusesse e estivesse no escritório de Claudia. Quando ela entrou, naturalmente foi surpreendida por Gilka, que naquele dia trajava uma espécie de macacão de astronauta, prateado, óculos com aros da mesma tonalidade que formavam em torno dos seus olhos a palavra LOOK; os óculos estavam acesos e piscavam freneticamente.

         - “Hello, jato de insanidade, tudo nos trinks”? Credo!!! Por legiões violetas, por todos os Elohins da Pureza, pelas Luzes de Júpiter e de Juno... pela energia de Mahomet, Ali e Omar, pela misericórdia de Kuan-Yin...

         - Enlouqueceu??! - Questionou Lisiane, visivelmente assustada com aquela abordagem.

         - Ó Grande Irmão Marte, Luz do obediente Daddy, protegei-nos pelos teus raios!!

         - Você saiu do hospício??! - Perguntou Lisiane, com as mãos na cintura.

         - Que o Grande Sol Central nos transporte sobre os Seus Raios!!

         - Eu me recuso a travar um diálogo com essa “orangotanga grogue”!!

         - Envolve-nos em Teu raio rosa, envolve-nos em teu raio amarelo, envolve-nos em teu raio verde!!

         - Mas cale a boca, sua australopitecus fêmea! - Bradou Lisiane, mesmo assim, Gilka que parecia fora de si continuou:

         - Ilumina nossos corações, ilumina as nossas almas, ilumina as nossas auras!!!

         - Por que é que você não deixa o diabo iluminar o teu rabo?!

         - Nós vos agradecemos óh, Mestres adorados, por todo o amor que nos dais!!

         - Onde está a minha camisa de força?

         - Mas meu “olho de sogra”, ela apenas es... - Interveio Claudia.

         - Estou pronta para os choques elétricos!!

         - But my sweet dream, eu...

         - E a lobotomia, quando é que vão realizar?

         - Mas minha “gemada açucarada”, nós estamos aqui para tratar de negócios!!

         - É?!

         - Of Course! Agora se você me deixar falar, eu explico...

         - E está esperando o quê? A segunda vinda de Cristo?

         - Estou aguardando que você...

         - Desembuche!!!

         - “Gilkérrima queridérrima”, deu uma boa mudada nas “roupithas” aqui... e eu e “Marcioca” acha... Márcia!!! - Márcia acordou, pois já havia caído em sono profundo. - Como eu dizia, nós decidimos que já está mais do que na hora de iniciarmos uma produção em massa... Eu já havia dito para vocês que nós poderemos muito bem utilizar aquele depósito desativado do outro lado do estacionamento como atelier, o qual poderemos batizar de uma Maison de Mode... Começaremos pelos sapatos e sandálias. Após as mudanças, organizaremos uma gigantesca promoção, encetada por uma grandiosa campanha publicitária, portanto fondus, tratemos de contratar mais costureiras!

         - E de que infernos vamos tirar dinheiro para financiar isso tudo, do rabo? - Questionou Lisiane, mal-humorada.

         - Vamos ter de apelar para um empréstimo, mas esta será a grande cartada... já diz o ditado que quem não arrisca, não petisca. - Respondeu Márcia, em meio a um bocejo.

         - Vamos é comprar ingressos para o nosso “show falimentar”!

         - Credo “gadelhuda”, que pessimismo... - Interveio Gilka.

         - Quer que eu faça o quê, dance “Tico Tico no Fubá” pelada?

         - O retorno é garantido! - Afirmou Claudia.

         - Se não for eu tasco fogo nesse “diacho” de maison de mode!! Agora se me dão licença eu preciso pensar numa maneira prática de me suicidar, porque hoje o dia está propício! - Disse Lisiane, saindo e batendo a porta.

         - A “gigolôa” brigou com o macho? - Perguntou Gilka, limpando os ouvidos munida de um “cotonete”.

         - Mais ou menos... - Respondeu Claudia, meio sem jeito.

 

Na Segunda feira em Ponta Grossa, Roselene devidamente munida das procurações dos menores, das tias e das primas, procurou certificar-se de qual seria um dos mais conceituados cartórios e tabelionatos; não foi difícil obter boas informações. Sem perda de tempo ela se dirigiu ao centro daquela cidade, que de interiorana, passava pela delicada transição para polo industrial nacional, contando com a considerável população de quase 300.000 habitantes.

Uma vez estando com a documentação legal e os poderes a ela devidamente outorgados, Roselene estava pronta para transferir todo o patrimônio para Pagan Triloney.

Roselene chegou antes ao cartório. Logo em seguida chegaram Paulo, travestido de Pagan Triloney e Hafta, a quem foi dito para não abrir a boca exceto para sorrir. Roselene pediu que chamassem o tabelião responsável a quem expressou a sua vontade de contratar com Pagan Triloney, vendendo para ela uma grande parte do seu patrimônio. Roselene também expressou certa pressa em realizar o negócio, oferecendo uma soma maior do que o pedido para que o ato logo se consumasse. O tabelião pediu toda a documentação do patrimônio e das partes, estranhando toda aquela pressa por parte de Roselene. Após examinar os documentos resolveu ligar para o tabelionato Linus Taurus em São Paulo, onde as procurações foram registradas, para se certificar da veracidade das mesmas. Ele falou com o oficial do registro de imóveis. Repetiu o ato por mais três vezes para cidades onde havia filiais Villas Bhoas e certificou-se também da existência dos imóveis.

Neste átimo, Roselene que percebera os atos do tabelião, forjou uma conversa com Pagan em tom de voz claramente audível, na qual a compradora, Pagan, pedia mais detalhes sobre algumas das fazendas dos Villas Bhoas, pois deixou claro o seu gosto por empreendimentos agropecuários. O tabelião, ouvindo aquela conversa natural, não teve mais dúvidas. Enfim foram expedidas as certidões via fax, confirmando a existência dos imóveis.

O tabelião pediu então que o escrevente juramentado fizesse a escritura de compra e venda, na qual as partes eram: todos os detentores do patrimônio Villas Bhoas (representados por Roselene, exceto ela, que não vendeu o seu quinhão). E a compradora Pagan Triloney. A escritura constava da “coisa”, ou seja, o patrimônio empresarial e imobiliário; do preço, sendo que a vendedora, Roselene, afirmou ter tido este a sua quitação efetivada; e as partes.

           Duas escrituras aconteceram ali, uma referente a venda do patrimônio empresarial e a outra ao patrimônio imobiliário. O patrimônio foi transferido com as devidas certidões no Registro de Imóveis, assim sendo a venda se consumou e o imóvel mais tarde foi registrado no nome de Pagan Triloney, na mesma cidade, no competente registro imobiliário.

           O tabelião, já tendo aceitado a soma acrescida por Roselene, uma espécie de propina, sentiu-se mais relaxado e passou a dialogar com as partes contratantes:

           - É realmente uma grande transação! A senhora é casada, Dona Pagan?

           - Não gosto de homens.

 

           - Me desculpe senhorita... mas pensei que a moça era sua filha... – Disse o tabelião constrangido, referindo-se a Hafta.

- Não, ela é a minha secretária pessoal. – Explicou Pagan, envolvendo Hafta por um abraço e depois beijando-a no rosto. Aquilo serviu para dissuadir o tabelião de levar adiante o diálogo. Roselene, com seu dom nas artes cênicas, ainda aproveitou para passar uma imagem triste e preocupada por estar vendendo o patrimônio. Ela comentou:

- É duro vender um patrimônio construído com sacrifício pela família... mas o que se há de fazer quando os outros herdeiros não mais se interessam e só pensam no dinheiro da venda... – Suspirou ela, em meio a uma furtiva lágrima, a qual fez questão de deixar bem visível ao tabelião. Este por sua vez a tomou pela mártir da família que se propôs a realizar a venda em nome dos outros herdeiros desinteressados.

Ainda no mesmo tabelionato, Pagan Triloney outorgou uma procuração para o advogado Paulo Rivoredo(ele mesmo), mediante a apresentação de um cartão de visitas de Paulo. Para que então – já como Paulo - viesse a ter o poder de fazer tudo o que fosse necessário para proceder a regularização e a legalização dos registros dos imóveis das escrituras lavradas das folhas de número 44 às folhas de número 131 do livro nº 28 do tabelionato Linus Taurus, na Avenida São João em São Paulo, capital. Podendo assim, o advogado Paulo Rivoredo vir a requerer e acompanhar o que necessário fosse junto às circunscrições imobiliárias, prefeituras municipais e demais repartições públicas que se fizessem necessárias.

O tabelião de Ponta Grossa, um pouco embaraçado com o comportamento de Pagan e também querendo fazer o seu melhor diante da quantia apresentada por Roselene, assinou a “procuração por instrumento público” diante da mesma e depois entregou a cópia para Pagan Triloney. Ninguém teria dúvidas ou perguntaria alguma coisa, pois tratava-se de pessoas “idôneas”, conhecidas no momento da realização do ato em cada ofício que Paulo passasse a visitar, pois tratava-se de uma atividade rotineira dos cartórios... uma vez que ultimamente não se costuma ler o que se está autenticando. Roselene sabia muito bem disso e sabia o momento certo de empregar uma boa propina.

Feito isto, não havia mais tempo a perder e eles deixaram Ponta Grossa. Paulo já descaracterizado de Pagan Triloney, advogado renomado e conhecido em muitos cartórios pelo seu irrepreensível trabalho, passou – de posse dos traslados das escrituras - a registrar a venda do patrimônio em todas as circunscrições onde existiam imóveis Villas Bhoas, inclusive no exterior. Efetuando assim o registro da venda realizada. Estes imóveis passavam a pertencer – pela escritura, que era legal – à Pagan Triloney, sendo assim o patrimônio da empresa transferido.

Paulo sempre fez questão de provar que era o procurador de Pagan Triloney apresentando a procuração a ele outorgada pela própria. Vale salientar que as escrituras originais ficaram arquivadas no tabelionato de Ponta Grossa.

Roselene voltou para São Paulo juntamente com Hafta. Aproveitou o sucesso que havia tido em transformar a última numa mulher fatal e por meios escusos adquiriu um pequeno imóvel na beira da estrada em Itapecirica da Serra onde passou a exercer o metier de cafetina, aliciando menores somente para executivos e personalidades vip sob o codinome de Mademoiselle Aracné. Durante a semana ela trabalhava normalmente nas lojas e continuava iludindo as suas tias, irmão e primas, através de presentes caros, como computadores e games de última geração. Fazia uma coisa ou outra para mostrar serviço na loja e ainda sabotava algumas das atitudes postas em prática por suas primas. Nos finais de semana abria as portas da sua casa de tolerância, onde realmente fazia algum dinheiro. Aproveitando-se da ausência de Paulo ela passou a manter contatos mais freqüentes e íntimos com o jovem tabelião Luiz Heitor, proprietário do cartório Linus Taurus, pois precisaria tê-lo na palma da mão diante de tudo o que tinha em mente.

 

Paulo estava viajando pelo Brasil e pelo mundo. Em cada ofício, tendo o documento do registro da venda efetuada, e assim transferindo os patrimônios, empresarial e imobiliário para o domínio da fictícia Pagan Triloney. Em alguns dos países onde existiam filiais Villas Bhoas, para que não houvesse confusão ou dúvidas, fez-se necessária a presença de Pagan Triloney, acompanhando Paulo. Assim sendo, era Roselene quem se travestia, para que não brotassem dúvidas sobre a existência de Pagan.

Como Roselene, ficticiamente, foi a única a deter uma ínfima parte do patrimônio Villas Bhoas – o seu próprio quinhão hereditário – ela declarou a sua inconformidade com a venda precipitada e o seu zelo pela adorada família. Com este álibi, ela readquiriu o patrimônio. Desta vez a transação foi feita de Pagan Triloney, como outorgante para Roselene Bordon Villas Bhoas, como outorgada. Isso aconteceu um mês depois de Paulo ter completado a total transferência de todo patrimônio para Pagan Triloney. Para a realização do ato foi novamente sorteada uma cidade do interior, desta vez Campina Grande na Paraíba, onde havia uma filial Villas Bhoas. Para facilitar, ambas as partes, Roselene e Pagan – constituíram Paulo Rivoredo como advogado - para novamente repetir a ciranda por todos os ofícios e cartórios do Brasil e exterior, realizando a nova transação de compra, por parte de Roselene, e venda por Pagan Triloney, onde quer que existissem filiais ou imóveis Villas Bhoas.

O tabelião de Campina Grande também suspeitou e ligou para alguns outros cartórios e dentre eles o Linus Taurus, obtendo naturalmente boas referências de Roselene Bordon Villas Bhoas e de seu advogado Paulo Rivoredo, pois havia falado com Luiz Heitor, que havia se tornado amante de Roselene e era, de longa data, amigo de Paulo.

Nestas novas transferências, deveria acontecer uma escritura para cada imóvel, uma vez que o tabelionato de uma cidade não toma conhecimento do que se passa em outra. Não houve problemas, pois eram atos corriqueiros, além do que os tabeliães e escreventes juramentados estão sempre por demais “ocupados” para prestar atenção em detalhes.

Para que este ato fosse possível, Roselene foi a única que não assinou uma procuração, outorgando a ela mesma amplos poderes, pois ela seria naturalmente a nova compradora. Quando abordada quanto ao fato, ela alegava sua afeição pelo patrimônio e pela família e que quando realizou a venda estava por demais nervosa e pensou primeiro nos seus familiares. Ela admitiu ter agido precipitadamente e que estava arrependida querendo legar para a família tudo aquilo a que eles tinham direito, uma vez que nenhum dos componentes da família Villas Bhoas se contentaria com dinheiro, mas sim somente com aquilo que fora construído por seus antepassados.

 

         O tempo foi passando... Roselene continuava enganando a família que não tinha idéia do que estava acontecendo. Continuava aliciando menores para nunca precisar recorrer ao dinheiro do patrimônio Villas Bhoas, pelo menos não enquanto Paulo viajava, agora passando tudo para o nome dela.

         Nas lojas, Claudia tocava a idéia de remodelar os produtos encalhados, sempre auxiliada por Lisiane e Márcia, além da irriquieta Gilka Blanche...

       - Boa tarde “Uro” meu bem! – Disse Claudia ao adentrar, ainda tendo os olhos azuis cobertos por negras lentes.

           - Boa tarde senhorita Claudia... elegante como sempre, heim?

           - Obrigada meu “favônio”... m-mas o que você está lendo?! – Perguntou Claudia, deixando os seus óculos de sol escorregarem até a metade do nariz... em seguida ela se deteve no título: “Terra, Contagem Regressiva para o Fim”.

                 - Desculpe-me por ler em serviço senhorita... m-mas este livro é tão interessante que...

                - É isto que me preocupa... como é que você pode achar interessante um livro que fala sobre o apocalipse?! Credo, isso parece praga! – Questionou Claudia, com as mãos na cintura.

                 - Mas é que...

- Nani-nani-nani... Lisiane comprou um livro destes há algum tempo e por causa dele quase pôs fogo na casa... simplesmente histérica, a base de calmantes de tarja preta. Eu, por minha vez, dei uma olhadela no livro e até pensei em esperar o tal apocalipse e o tal planeta que vai causar tudo isso de braços cruzados, pois aí nem trabalhar adiantaria... nem amar... nem esperar pelo príncipe encantado... nem ajudar àqueles que podem menos... enfim, nada já que tudo vai acabar mesmo. Aí eu parei, puxei os meus próprios cabelos e disse para mim mesma: “Claudinha sua sílfide idiota”... será que você não percebe que essa história de pregar o apocalipse é coisa de gente recalcada, que não venceu na vida, que não se gosta e nem gosta dos outros? Coisa de gente mal amada que quer que tudo acabe de uma vez e principalmente... quer que aquelas pessoas das quais ela tem inveja sofram, penem e morram! E que não deixa de ser uma pessoa egoísta que nem sabe direito que “Deusinho queridinho lá no céu”, é Pai de infinita bondade e que jamais usaria estes meios estapafúrdios para fazer com que a Terra evoluísse... De um jeito ou de outro, as coisas já estão mudando e realmente, elas precisam mudar... mas tudo está acontecendo sutilmente!

- Acho que a senhorita tem razão... vou me desfazer deste livro. – Disse Urogalo, fechando o livro imediatamente.

- Queime-o! – Disse Claudia, saindo em direção ao seu escritório.

Minutos mais tarde:

- Good Afternoon! – Exclamou Gilka, passando diretamente por Urogalo e dirigindo-se ao escritório de Claudia. Urogalo não teve nem tempo de avisar e Gilka entrou sem bater. Claudia estava deitada sobre a sua mesa tendo suspensa uma das pernas, ela cantarolava algo enquanto o musculoso funcionário desabotoava a camisa:

 

- “Gosh!! Dexa eu participá?”

- Meu Deus! – Exaltou-se Claudia, logo se recompondo. – Ahaam... pois bem senhor Apolo, eu quero que o senhor me resolva este problema imediatamente!

           - Que problema? – Perguntou o rapaz, que não entendeu.

           - Problema... áh, esse problema sobre o qual nós acabamos de discutir!

- Mas nós iríamos...

- Esse mesmo. Agora o senhor está dispensado! – Ela se voltou para Gilka. – Gilka querida!! Que bons ventos a trazem? – Perguntou Claudia, enquanto o funcionário deixava o escritório. – A-do-rei o seu traje! – Gilka vestia uma curtíssima mini-saia pink, acompanhada de uma enorme jaqueta de vinil alaranjada cheia de penduricalhos. Seus cabelos formavam um enorme coque no meio do qual estava instalada uma turbina que ninguém sabia dizer para que servia, mas todos constatavam que quando ela se locomovia a turbina expelia fortes jatos de ar quente e emitia um ensurdecedor ruído. Ela arrastava no chão um enorme saco de estopa que estava carregado. Não demorou para que o conteúdo fosse despejado no meio do escritório.

- “Well potranca”, aqui estão mais peças de vestuário remodeladas!

- Meu Deus! O que foi que você fez com elas? – Perguntou Claudia, tomando em mãos uma camiseta. – Estão tão diferentes!

- A gente conta o milagre mas não conta o santo! Agora “tu” só precisa é de uma boa propaganda!

- Você tem razão, pois existem muitos produtos no estoque e para vendê-los temos que atrair o público... o problema é que existem coisas que não podem ser remodeladas, pois não são somente as peças de vestuário que estão quase todas demodées, é a nossa cadeia de supermercados que não está dando lucro, são brinquedos que não interessam mais às crianças, é a não procura da nossa rede de hotéis. São equipamentos de informática antiquados, principalmente os softwares. Isso sem contar que é bem menor o número de pessoas que procuram as lojas hoje do que há alguns anos. No exterior, por exemplo, os concorrentes são mais modernos e mais baratos.

- Então a solution é entrar de cabeça na “pobrarada”!

- Você quer dizer, almejar o público de baixa renda?

- Exactly! Com feirões de produtos a preços baixos! Afinal é melhor vendê-los do que “levá” um prejuízo ainda maior, “né terneiruda”?

- Novamente você tem toda razão, Gilka... mas como tornar os produtos atrativos, só baixando-lhes os preços?

- “Nein, nein”, os preços nem precisam ser tão reduzidos... o que interessa é a propaganda! - Wow, por que não a criação de uma nova logomarca? – Claudia olhou incrédula para Gilka, abrindo a sua gaveta em busca de uma lixa de unhas. – Gilka a observava.

- Você só pode estar sonhando... marca, e qual seria o nome desta marca, “Otárius”?!

- ...gaveta... sonhar... sonhos na gaveta... sonhar com suruba na gaveta... sonhar com engavetamento... maracujá de gaveta... gaveta sonhadora... sonho... rêve... Traum... sogno... dream... drawer... sueño...

- Mas afinal sobre o que você está falando? Ou é algum efeito colateral de overdose?

- Calma pessoa, “tô” pensando na marca... “Dream Gaveta”... gaveta... Schublade... cassetto... drawer... tiroir, “tiroir dream”... cajón... não, não... – Enquanto Gilka pensava em voz alta, Claudia acabou por se inclinar sobre a cadeira, deixando-a sobre duas pernas e colocando as suas pernas em cima da mesa enquanto lixava as unhas. -...”Schublade Dream”... “Drawer Dream”... “Drawer a Dream!!!” – Exclamou Gilka em meio a um berro e um jato de fumaça foi produzido pela turbina que tinha no coque. Claudia se assustou e a cadeira virou, ela veio ao chão de costas. Ainda com a lixa nas mãos e as pernas voltadas para o ar, ela interrogou:

- Você quer dizer: “Gaveta um Sonho”?! Não fica meio estranho para o nome de uma marca famosa?

- Você não acha que soa bem? Além do mais, quem precisa traduzir? Para essas coisas não existe tradução. Drawer a Dream significa Drawer a Dream!! Então “sapa”, o que é que “tu me diz”?

- Não sei... mas vamos apostar nessa sua marca maluca! Vou marcar uma reunião com minhas primas e os outros funcionários.

- “Pode botá o galpão lá do estacionamento pra funcioná a todo vapor, pois vamos produzir e vender como nunca! Tá me compreendendo, franga albina?”

- C-claro... – Mesmo aturdida Claudia acabou por se animar.

Era esta a rotina de todos na loja matriz. O astral estava se erguendo cada vez mais e eles já conseguiam vislumbrar uma saída para aquela situação financeira crítica.

 

- O que é que você quer? – Perguntou Lisiane, ao arrombar a porta do escritório de Claudia.

- Calma “patê de figo sobre a mesa”, espere somente os outros chegarem e eu lhes relatarei a minha nova perspectiva em “marketing”!

- Não seja uma...

- Mas “meu mimo floral” , por que eu haveria de ser...

- Porque simplesmente você é idiota demais!

- Eu? Mas meu “canutilho”, eu...

- Moças, é hora de se comportar! – Disse Ricardo, que adentrou na sala naquele momento.

- Saia! – Ordenou Lisiane. O rapaz se assustou e obedeceu.

- Mas minha “miçanga”, por que tratar assim o moço?

- Não tenho mais nada a ver com ele.

- Você não, mas as lojas têm! Eu vou “rechamá-lo”!

Logo o escritório de Claudia estava repleto das pessoas que compunham os mais altos escalões das lojas. Uma vez que o escritório não era muito grande, Claudia espalhou dezenas de almofadas pelo chão e assim, o seu escritório pôde acomodar a todos. Exceto Roselene, que não fora convidada.

- Muito bem, meus “bibelots de porcelana”, agora que já estão todos presentes, vou lhes dizer o porque de se fazer mister as suas distintas presenças aqui, no meu aconchegante studio! – Explicava Claudia.

- Espero que não demore muito. – Murmurou Lisiane.

- Isso certamente não acontecerá, mon coeur du lumière e...

- Márcia já dorme profundamente e deve estar sonhando com legiões de homens truculentos e nus, prontos para currá-la! – Alertou Lisiane, mal humorada.

- Creio que o subconsciente dela sorverá tudo o que eu tenho a dizer... Pois bem, meus “fios de ovos”, como vocês já devem estar sabendo, ããããh... nossos produtos... ããããããh, digamos assim por alto, reformados, não é mesmo? Bem! O que eu quero dizer é exatamente que... que nós, ou seja, as lojas e os seus devidos produtos reformados tenham uma boa aceitabilidade pelo público. E Nós!! - Bradou Claudia, em meio a um espasmo. - ...Desculpem-me pela ligeira exaltação, mas... Áh!!! O que era mesmo que eu estava falando?! – Perguntou Claudia, para todos.

- Tá no cio, é? Você estava falando sobre fios de ovos, patês, produtos reformados e nada além das suas taras! – Interveio Lisiane.

- ...e-exato, taras! Taras... como vocês bem podem notar, o sexo animal e bizarro é uma reação absolu...

- Que tal os produtos reformados? – Interveio novamente Lisiane.

- Ãããããh... Produtos??! Mas é claro!! M-mas por quê?

- Porque era sobre isto que você estava falando, sua pateta!! – Bradou Lisiane.

- “Vai mona, isquéci da homarada e vumita a nossa idéia”! – Interveio Gilka Blanche.

- Ááááh! Como eu poderia me esquecer? Os produtos, Gilka e vocês todos... ham... Nós, ou seja, as lojas... como eu sou burra, nós somos as lojas, não é mesmo...

- Fale!! – Bradou Lisiane.

- ... estou falando petite poi... bem, as lojas, ou nós... estamos prontos para lançar no mercado uma nova... ããããh... quintessência de produtos... hum, exatamente aqueles reformados e encalhados, mas... para tudo ficar mais fácil e controlado... a nossa “estilíssima” Gilka Blanche, criou uma nova marca! Senhores, eu lhes apresento Drawer a Dream!! E é evidente que eu vou pedir o endosso de todos vocês para essa nova proposta!

- Marca?! – Perguntaram todos em uníssono.

- Sim, marca. Tudo começou quando a senhorita Gilka Blanche veio até mim e se propôs a mudar alguns dos produtos encalhados. Pospostamente ela veio mostrar o serviço, trazendo algumas peças já modificadas. O trabalho dela foi simplesmente ótimo e se estendeu pelos mais variados produtos. Mas como nem tudo pode ser modificado, e para melhor promover os produtos reformados, ela sugeriu que criássemos uma nova marca e fizéssemos muita propaganda para atrair principalmente o público menos provido, pois os preços serão módicos. Assim ela criou Drawer a Dream e eu tomei a liberdade de contratar dezenas de costureiros e operários em geral para uma modificação em massa em tudo que for possível... não só em peças de vestuário mas em qualquer produto... claro, não modificaremos produtos fungíveis, mas...

- Mas isto não pode vir a figurar como má fé em relação ao consumidor? – Perguntou Rafael.

- Não, pois as pessoas têm olhos de ver e só vão comprar se quiserem... A não ser que sejam burras ao ponto de comprar uma televisão por alguns trocados e depois vir reclamar que ela é preta e branca!

- Temos que tomar cuidado, pois o código do consumidor está aí, e propaganda enganosa é crime!– Alertou Rafael.

- Você tem sempre um porém... fica se preocupando com minúcias. Se o povo não for idiota o suficiente para comprar e nos dar dinheiro, você também não recebe o seu salário do final do mês! – Disse Lisiane para Rafael. Claudia deu continuidade:

- Bem, agora que todos já estão a par dos acontecimentos, não é mesmo, eu vou dar continuidade a esta breve palestra propondo uma coisa... Uma vez que esta nova marca está aí, nós precisamos colocá-la na boca do povo... e como fazer isso? Com muita propaganda, é evidente... Vocês me diriam então que a mídia se faz caríssima e que nós não estamos em condições de bancar tal façanha, não estou certa? Pois bem, a propaganda é extremamente necessária e, para barateá-la ainda mais, eu pensei aqui com os meus botões... Por que esta propaganda não pode sair daqui de dentro mesmo? Todos nós bem sabemos que há uma franquia de estúdio fotográfico aqui mesmo e, diga-se de passagem, ela é famosíssima em todo país e no exterior. Neste mesmo estúdio há uma porção de câmeras filmadoras “super VHS” e “Beta”, além de equipamentos e mais equipamentos de iluminação e som, e... o melhor de tudo: uma ilha de edição e pessoal capacitado e especializado para operar todo esse equipamento! Assim sendo, eu tricotei com o meu reflexo no espelho... por que sim... por que não... e... ENTÃO... ham, desculpem-me, e-eu tive a idéia de nós nos usarmos como modelos fotográficos, televisivos, cinematográficos para os nossos próprios produtos... afinal não há nada de mal em colocar pessoas bonitas, como nós, não é mesmo... ããããh, frente ao público!

Naturalmente que eu, que estou lançando a idéia já me imaginei num out-door, aparecendo seminua, toda provocante e sensual para “propagandear”, não é mesmo, a nova coleção de maiôs, biquínis e cangas Drawer a Dream. Evidentemente que Giancarlo, que é todo gostoso, musculoso, suculento e lindo, poderia contracenar comigo, mostrando as minúsculas sungas Drawer a Dream e passando o bronzeador Drawer a Dream no meu corpo todo enquanto eu seria acometida de uma porção de espasmos de prazer, não é mesmo? Pois bem, Rafael que é inteligente, seria um modelo perfeito para as armações de óculos Drawer a Dream, para as camisas de manga longa e ternos em geral. Já Ricardo, que é todo engraçadinho e, diga-se de passagem, gostosinho, faria propaganda dos preservativos Drawer a Dream, aparecendo na televisão, no cinema, nas revistas, jornais e out-doors completamente nu, tendo a sua genitália coberta apenas pelas mãos. E... por falar em Ricardo, isto me lembra a minha caríssima prima “Lisoca”, que acaba de romper o seu tórrido romance com o Ricardinho aqui... pois bem, como eu já pude constatar, ela, quando entra embaixo do chuveiro ou se deixa mergulhar numa banheira de hidromassagem passa a entoar estranhas canções... assim sendo, ela poderia ser a estrela dos comerciais de stereos, radio-gravadores, CDs, discos de vinil, fitas cassete e CDVs da gravadora Drawer a Dream e aproveitar também para se lançar como cantora também... Aproveitando esta fase de rompimento com o Ricardo, ela poderia surgir do nada com o singelo pseudônimo de “Patativa Canora Entristecida”. Já a senhorita Urogalo, poderia fa...

- Chega!!! Não vou mais ouvir esta bobagem! – Bradou Lisiane, já se levantando para se retirar.

- Mas meu “paraíso tropical”, se você se deu por ofendida nós podemos substituir o seu papel e colocá-la como a doublé de um gorila pronto pa...

- Arrrgh! Cale essa boca! - Esbravejou Lisiane.

- Isso mesmo, com esse bramido você ficará perfeita. Veja, por exemplo, Márcia, ela não precisará mover uma palha, basta que ela apareça dormindo para fazer o anúncio das camisolas, pijamas e soníferos Drawer a Dream!

Claudia ainda sugeriu que Violeta Urogalo mergulhasse num pântano de óculos, para provar a resistência das lentes Drawer a Dream e que Carolina e Karina se lançassem do terraço para promover as camas elásticas Drawer a Dream. Foi em meio ao alarido da reunião que o telefone de Claudia se fez soar:

- Escritório da tigresa! – Disse Claudia, atendendo. - ... áh, é você... sei... está bem, eu aviso... ciao...

- O que houve? – Perguntou Lisiane, ao perceber que Claudia murchara.

- Sinto meus quitutes, mas a vampiresca da Roselene está convocando a nós todos para uma reunião no salão de convenções do Villas Bhoas Excelsior, às 15:30... Para não dar muito na cara, é melhor encerrarmos essa reunião imediatamente!

 

No seu escritório, Roselene estava ao telefone:

       - ... exatamente, eu quero garçons... cinco garçons. Quanto ao menu, vamos repassá-lo: Champagne... claro que é da francesa... pode ser Möet Chandon. Canapés de caviar, salmão, lagosta e escargot... Seria bom um vinho branco... Beaujoulais Frutal, safra de 96 talvez... não, nada de cerveja e refrigerantes... apenas champagne, vinho e água mineral francesa ou italiana... pode ser Perrier ou Vulcan com e sem gás... Docinhos miúdos... espelhados, de tâmaras, damascos, nêsperas... certo, bem, ficam por sua conta. Ótimo, tem de estar tudo pronto para às 15:00 em ponto, pois eu iniciarei a reunião às 15:30 e não quero deslizes, pois eles serão imperdoáveis! Até logo.

Todos os funcionários com cargos de responsabilidade nas organizações Villas Bhoas haviam sido avisados. Roselene convocara também os gerentes das filiais dias antes e muitos deles já estavam hospedados no Villas Bhoas Excelsior Hotel. Ela fez questão de convocar pessoalmente o advogado principal das Organizações Villas Bhoas, Jupiro Pintassilgo, pois precisaria dele. Agora ela só teria de ir rapidamente até o cartório Linus Taurus, onde todos os documentos referentes à transação haviam sido deixados por Paulo para que fossem devidamente reconhecidos e autenticados. Roselene não perdeu tempo, foi até lá, pois a venda dos imóveis referentes àquela circunscrição imobiliária havia sido reconhecida por aquele cartório e ela ainda pediu um aval extra de Luiz Heitor, agora ela tinha de ter certeza de que ninguém lhe perguntaria nada antes que ela levasse seu plano à cabo. Chegando ao cartório, ela pediu para ser levada diretamente até Luiz Heitor e pediu a este que falassem em particular:

- E então, já deu uma olhada nos documentos? – Perguntou Roselene, envolvendo Luiz Heitor por um abraço.

- Na verdade eu não tive tempo... mas o que é que você está aprontando?

- Apenas procedimentos de praxe para tentar salvar o nosso patrimônio da falência... você sabe, o que eu não faço pela minha família! Nada que você não faria...

- Adoraria ter você como esposa... quando é que você vai falar com o Paulo? Afinal eu não quero magoá-lo, pois somos amigos de longa data e eu me sinto culpado em o estar traindo...

- Tudo a seu tempo... falando em Paulo, eu preciso desses documentos que ele deixou aqui para já!

- Eles estão prontos, como eram muitos e eu não dispunha de tempo pedi que uma das escrivãs juramentadas carimbasse e reconhecesse cada lauda. Está tudo legalizado!

- M-mas havia documentos que já estavam reconhecidos, ahããm... referentes a algumas transações em outras cidades...

- Não importa, eles receberam apenas mais um aval de credibilidade! O que eu não faço por você... você me deixa louco! – Sussurrou Luiz Heitor, envolvendo Roselene por um sôfrego abraço e a beijando vorazmente. Ela não teve tempo de rechaçar. Depois de algum tempo ela conseguiu se livrar dos braços do rapaz:

- Calma... teremos tempo para isso logo mais à noite, agora eu tenho que ir. - Luiz Heitor tentou beijar o pescoço de Roselene, mas esta abriu a porta antes que ele o fizesse, o rapaz ainda a deteve pela mão, enquanto Roselene, olhando para frente exclamou surpreendida:

- Paulo?! V-você aqui? – Paulo estava justamente por entrar no escritório de Luiz Heitor quando Roselene abriu a porta e ainda flagrou o amigo segurando a mão de sua namorada.

 

- O que está acontecendo aqui? – Perguntou Paulo, visivelmente perturbado.

- Eu só vim apanhar os documentos que você deixou aqui e... – Tentou explicar Roselene.

- E por que vocês dois estavam fechados aí dentro?

- Nada, é que lá fora tem muito barulho. – Disse Luiz Heitor, envergonhado.

- É, e eu estava por derrubar todas estas pastas quando Luiz Heitor me ajudou segurá-las. – Explicou Roselene.

- É melhor nós irmos embora. – Disse Paulo, secamente puxando Roselene pelo braço.

- Na verdade Paulo, eu e Roselene nos amamos e estamos tendo um caso! Você saberia disto mais cedo ou mais tarde. – Disse Luiz Heitor seriamente. Por um instante Paulo congelou, Roselene tentou remendar:

- Isso é uma mentira, Luiz Heitor, eu nunca disse que...

- Não adianta Roselene, Paulo é meu amigo e eu prefiro ser transparente! – Mal Luiz Heitor terminou de falar e foi atingido por um soco desferido por Paulo, que o fez vir ao chão chamando a atenção de todos os outros funcionários. Roselene, vendo que as coisas poderiam piorar, tratou de tirar Paulo dali, deixando Luiz Heitor para ser socorrido pelos seus funcionários. Já na rua:

- Eu esperava tudo de você... menos essa traição depois de todas as coisas que eu fiz por você! – Disse Paulo, quase chorando.

- Você quer se acalmar e me ouvir? Eu detesto cenas de ciúmes...

- Cenas de ciúmes?! A mulher que eu amo me troca por outro e...

- Eu não troquei você por ninguém!! Você sabia da paixão platônica que Luiz Heitor sempre alimentou por mim... pois bem, eu tive de usá-la como ferramenta para que as coisas fossem agilizadas e para que ele fizesse vistas grossas em relação a todos esses documentos... agora que tudo já esta por terminar eu vou despachá-lo e depois me casar com você! – Roselene suspirou, enquanto Paulo deixava que algumas lágrimas lhe brotassem nos olhos. Ela esboçou um sorriso de misericórdia: - Paulinho meu amor, você sabe que eu te amo e que tudo que estou fazendo é para o nosso bem... – Disse ela, acariciando o rosto do rapaz.

- Eu tenho muitas dúvidas...

- Agora não é hora para dúvidas, são quase três da tarde e eu tenho que tirar toda aquela gente do meu shopping e da minha casa!

- O que você quer dizer com isso?

- O que você ouviu, já estou cansada desses parasitas e vou escorraçá-los!!

- Mas é a sua família... você não havia me dito que isto fazia parte dos seus planos, eu só achei que...

- Vai dar uma de bonzinho agora? Não se esqueça de que você já me ajudou matar boa parte da minha família... deixá-los na miséria agora não acrescenta tanto assim para o nosso currículo! Vamos!

- Eu não vou... não quero ver essa cena... não vou conseguir encará-los!

- Covarde. Se está preocupado com a sua maldita carreira, saiba que depois de hoje, eles todos serão cartas fora do baralho!

- Eu não vou.

- Pois então eu faço isso sozinha. – Disse Roselene, entrando no seu carro e deixando Paulo parado ao lado, ele estava perplexo e seu semblante expressava muita agonia. Ela deu a ignição e se foi. Paulo estava desolado.

 

Já a caminho da reunião marcada por Roselene, Ricardo que seguia a passos rápidos,

esbarrou com Claudia, que saíra de supetão do seu escritório:

           - Aaaai... nossa... até me faltou ar!

           - Desculpe-me Claudia, eu estava desatento! – Disse Ricardo, atrapalhadamente.

           - Não foi nada... Meu Deus!

           - O que foi? – Perguntou o rapaz, preocupado.

           - Ricardinho, meu origami, você está com uma cara horrível...

           - Acho que é o cansaço, tenho trabalhado muito e não tenho dormido bem.

           - Sei... e certamente isso vem acontecendo desde que você e Lisiane romperam, não é mesmo?

           - Você é inteligente Claudia, eu não te enganaria nem que quisesse!

           - Não seja bobo, não dê a sua relação com Lisiane por finda de uma hora para outra... eu não deveria mas vou dizer que ela também não anda lá essas coisas. Afinal Lisiane é louca e uma louca age precipitadamente... E isso também serve para você, “suspiro”. Agora ao invés de ficar pensando com o coração, pense com a cabeça, use o raciocínio. Às vezes o amor se torna um jogo onde quem vence é sempre o mais inteligente... Está na hora de começar a usar táticas mais estratégicas, isto é, se é que você queira realmente ficar com Lisiane...

           - Acho que quero... ou seja, não penso em outra coisa.

           - Então meu “algodão doce”, bota de lado esta tromba e parte para cima!

          - Mas como? Eu também não vou ficar implorando para que a Lisiane faça a caridade de voltar comigo se foi ela mesma quem desmanchou e ainda por cima me disse que nós nunca tivemos nada um com o outro! Além do mais, eu já estou cansado de correr atrás dela!

           - Nâna, nina, nani, na não... você não vai correr atrás dela... você vai é jogar seu charme, que diga-se de passagem, você tem de sobra...

           - Ela vivia implicando com o meu jeito de vestir e...

           - Por que é que só para provocar a “doida de asilo” você não vem trabalhar todo “engomadinho” um dia e principalmente... fingindo ser o mais feliz dos homens!! Não que eu ache que você deva mudar o seu jeito de vestir... mas para provocá-la!

           - Ela sabe que eu não estou feliz, isso não vai colar!

           - Nessas horas, meu tutti-frutti, mesmo que o estômago esteja querendo sair pela boca em meio a convulsões e dores, mesmo que o coração dispare nos fazendo perder a fala, mesmo que aquele calafrio nos vare a espinha o nos “desmonte” ao simples olhar da pessoa amada... temos de aprender a nos controlar... Como? Respirando fundo e engolindo tudo isso, fingindo que nada demais está acontecendo!

           - Mas isso é muito difícil, já que Lisiane tem a capacidade de...

           - Tss, tss, tss... se ela tem, você também tem, além do mais, não há o que não se aprenda com a prática... Quando alguém briga conosco, principalmente sem um motivo justo e ainda gosta de nós, a nossa felicidade incomoda esta pessoa! Por isso esteja sempre de bom humor, principalmente perto dela, trate-a cordialmente e só. Mostre apenas que você é polido. Seja solícito, mas profissional. Tente passar a imagem de que ela não é o foco principal dos seus pensamentos... se quiser dar a entender que existe outra pessoa, faça isso!

           - Mas isso não vai afastá-la ainda mais de mim?

           - Se ela gostar de verdade, isso vai perturbá-la... caso ela não dê importância, é sinal que o barco está furado e está na hora de pular fora... mas aqui para os nossos botões, se eu bem conheço a minha prima “diabo da tasmânia”, não é o que vai acontecer... Você pode até voltar a falar com ela, mas não amoleça! Mesmo que ela fique boazinha, você pode até ficar bonzinho também, mas nada de estar sempre à disposição, valorize-se... mostre que você é um rapaz requisitado e que não dispõe de todo tempo do mundo para ela... isso a fará morder-se de ciúmes... pode deixar que do lado dela eu dou o meu empurrão!!

           - Então você acha que eu não devo perder as esperanças?

           - Mas de jeito nenhum!! – Cantarolou Claudia, liricamente. – Além do mais eu amo bancar a “cupida”... fico me imaginando, assim loura, com os cabelos todos encaracolados, vestindo uma “mini túnica” estilo “tomara que caia” vermelha e tendo em mãos aquele arco e aquela flecha... pronta para alvejar corações desatentos e uni-los... não é lindo? Principalmente se depois de tudo a minha túnica escorregar e...

           - Vocês não vão para a reunião??! – Claudia foi interrompida pelo brado de Lisiane, que vinha em direção aos dois a passos largos.

           - Não esqueça Ricardo, ar despreocupado, sorriso na boca e cordialidade... larilari-roró-raraaraááá... hum, como disse prima?

           - Perguntei se não vão na reunião!

           - Áh... estávamos indo, é que Ricardo estava justamente me contando as suas aventuras do último fim de semana e... – Ricardo passou a seguir os conselhos de Claudia, agindo naturalmente com Lisiane, mas sendo estritamente profissional.

 

Roselene esperou que todos chegassem e passassem a tomar os seus lugares. Ela pediu

que os garçons começassem a servir imediatamente, pois sabia que não haveria clima para cocktail no final. Todos os funcionários das lojas estranharam aquela atitude. Débora e Hella pareciam ser as mais animadas, pois sentiam-se orgulhosas da sobrinha. Após um pequeno atraso, quando eram pontualmente 16:00, Roselene dirigiu-se à pequena tribuna, onde se fez dona da palavra:

           - Senhoras, senhores, peço alguns minutos da sua atenção para transmitir-lhes um comunicado que diz respeito a algumas mudanças imediatas que ocorrerão neste estabelecimento. Tendo em vista um maior progresso no nosso complexo logístico em relação a situação precária em que se encontra devido a uma má gestão dos negócios realizada até então, eu resolvi intervir, já que a mim foram concedidos amplos poderes para tal. – Todos começaram a se entreolhar e Lisiane interveio de imediato:

           - Poderes da onde? Do espírito santo?

           - Na verdade, cara prima, procurações que me foram passadas por tia Débora e tia Hella, dando-me amplos poderes para gerir os negócios, fazendo-me praticamente a presidente do complexo Villas Bhoas. Poderes de guarda sobre os bens dos menores que também me foram outorgados, assim sendo as suas partes encontram-se sobre minha responsabilidade. Poderes que vocês mesmas me outorgaram assinando procurações as quais passavam os seus quinhões hereditários para o meu nome, resumindo, ninguém aqui tem mais nada, pois até então não haviam feito nada!

           - Mas da onde foi que você tirou essa idéia, ou está dando passividade para o demônio? – Perguntou Lisiane, indignada. Havia conversas paralelas e ninguém estava entendendo a situação. Débora se manifestou espantada:

          - Roselene, você pode me explicar o que está acontecendo?

           - O que está acontecendo é que eu estou cansada porque a vida toda eu lidei com gente velha... e o que foi que eu ganhei, senão urnas funerárias? Está aí uma coisa que a família fez bem... morrer bem... gostam da produção dos enterros... amam e cultuam porcaria... imundície igual a vocês!

           - Roselene, minha filha, você enlouqueceu, veja lá como fala com sua tia Débora, você deveria pensar antes de falar!! – Desta vez foi a vez de Hella advertir.

           - Como eu devo, como eu não devo... já estou cansada disso... para vocês eu sempre fiz o que deveria, sempre para manter as aparências... E o que foi que eu ganhei? Tive de sair e viajar para não enlouquecer com o seu culto à velhice e à morte... dores daqui, remédios dali... Vocês ficaram cultuando gente morta e a própria desgraça, enquanto eu queria a beleza, a vida, a glória! Sim... sou perecível, vou morrer e cheirar mal um dia... mas antes eu quero a benesse de me sentir viva e não quero mais me importar com os que estão morrendo, como vocês duas! Não quero mais dar atenção para a decadência!

           - Você está atingindo a moral da nossa família! – Levantou-se Débora.

           - A pseudo-moral, você quer dizer...

           - E não me trata por “você” garota, pois eu...

           - Faz o quê, heim? O que sempre soube fazer? Derramar-se em lágrimas falsas por bobagem? Ora, chega de pieguice!

           - Não fale assim com sua tia! – Interveio Hella.

           - E você deveria calar a boca também, pois ao invés de invocar a sua moral e bons costumes, por que não invocou o dinheiro? Por que não trabalharam com mais afinco para conseguir manter o nosso patrimônio? Hã... minha família parece uma diarréia, pois ninguém fez nada e só contrataram gente que não sabe fazer nada. Nada vezes nada! É por isso que serei obrigada a demitir a todos!

         - Você não sabe o que está falando, como assim demitir? – Perguntou Rafael.

         - Isso só pode ser “barato” de LSD... - Murmurou Claudia.

         - Como eu não mais quero pobreza e desgraça, miséria e lamentação; vou optar por gente nova que ainda não esteja contaminada pelo maldito vírus dos Villas Bhoas!

         - Roselene, agora você está indo longe demais!! Será que você não percebe que eu e Hella já estamos velhas e que acima de tudo você está indo contra a memória dos seus antepassados? – Questionou Débora.

         - Isto, isto mesmo... palmas... este é o genuíno discurso de um Villas Bhoas... velhice, doença, culto aos antepassados... coisas que enferrujam e que puxam para trás. Não me falem mais em desgraça!! Vou tampar os meus ouvidos, pois não agüento mais lamentações... Débora e Hella, vocês vivem o passado... estão doentes e parecem gostar disso. Saibam vocês que eu tenho nojo de gente velha... é, nojo!!!

         - Cadela!! Você vai ficar velha um dia, e eu não sei se ao menos eu vou sentir nojo de você, pois uma criatura como você não é digna de nenhum sentimento a não ser a indiferença!! – Bradou Lisiane.

         - E você vai calar a tua boca quando souber que está pobre e que o teu namorado não vai mais abrir as tuas pernas porque está demitido!!

         - Quem foi que te falou essas mentiras? A Claudia? - Perguntou Lisiane, indignada.

         - Claudia não precisou mover nenhum dos seus dedos obscenos... o pessoalzinho sabe... Aqueles funcionários que gostam de ninharias e hipocrisia, gentalha a quem eu também faço questão de demitir, não é mesmo senhorita Karina e senhorita Carolina?!

         - Quem é obscena aqui? - Manifestou-se Claudia.

         - Você, sua porca! Ou será que você ainda não percebeu que está gastando o dinheiro da família Villas Bhoas em putaria?

         - Eu terminantemente proíbo esse tipo de vocabulário!! – Gritou Hella.

         - Eu é que não estou disposta e ficar ouvindo desaforos de uma mal-amada... Vocês vão me dar licença, mas eu tenho mais o que fazer! – Disse Claudia, apanhando as suas coisas.

         - Tem mais perversão para fazer... vai sem-vergonha, você também está fora, na rua!! Quero ver da onde você vai tirar dinheiro para pagar os teus homens! – Disse Roselene.

         - Quer briga coisa louca? Pois então “plaft, plaft”!! – Inquiriu Claudia, aproximando-se de Roselene e desferindo dois tapas no ar. – Eu é que não vou sujar as minhas puríssimas mãos, ainda mais numa coisa como você!

         - Daqui para frente você vai ter que sujar as suas mãos pegando no pesado, e vai ser muito pesado, mundana. - Lisiane tentava acordar Márcia:

         - Márcia, sua samonga, acorde!!! A bruxa está nos demitindo e você fica aí, sonhando com sacanagem?!

         - É bom que vocês fiquem bem quietas aí, e vejam no que resultou o culto de Débora e Hella aos antepassados, a histeria de Lisiane, a depravação de Claudia e a preguiça de Márcia, além da incompetência de todos os outros funcionários!! Senhor Jupiro Pintassilgo, antes que o senhor também ganhe o olho da rua, por favor, queira examinar esses documentos e explicar para esse bando de ignorantes o que eles significam! – Pediu Roselene, entregando para Jupiro o dossiê que continha todos os documentos referentes à transação. – Enquanto isso, por que é que vocês não se servem de mais champagne e canapés, afinal esta festa foi organizada especialmente para vocês! Temos docinhos miúdos também! – Riu-se Roselene.

Passados alguns minutos, e vendo que Jupiro não parava de suspirar e passar a mão na testa, Débora não agüentou e perguntou:

- Então senhor Jupiro, o que significa tudo isso?

- B-bem... eu acho que vocês passaram toda a responsabilidade do patrimônio para Roselene através de procurações, e ela, representando vocês com os amplos poderes que lhe foram outorgados, o vendeu para uma terceira pessoa, exceto ao quinhão dela, e depois comprou tudo novamente, passando assim a ser não só a presidente mas a proprietária interina de todo o patrimônio Villas Bhoas!

           - Eu não assinei nada para essa vagabunda!!! – Bradou novamente Lisiane, totalmente alterada.

           - Infelizmente, ao que parece está tudo devidamente registrado em cartório. – Afirmou Jupiro, perplexo.

           - Isso não está certo, nós temos de recorrer, temos de provar o contrário! – Argumentou Hella.

           - Vocês podem até tentar, o problema é conseguir provar... seu Jupiro que o diga, não é mesmo senhor Jupiro? – Perguntou Roselene, desdenhando.

           - Vou impetrar com uma liminar contra você... e se a justiça lhe der ganho de causa entro com um mandado de segurança ou o diabo que for!! – Bradou Lisiane.

           - Hóhóhóhóhóhó... antes de tudo meu bem, consiga a sua credencial da OAB, para que você ao menos possa assinar e se responsabilizar pelas burradas que fará na prática forense! – Debochou Roselene. – Para encurtar essa conversa eu vou dar a todos os funcionários o aviso prévio... para que esteja tudo dentro dos conformes legais, vocês estão todos demitidos e têm trinta dias para procurar outro emprego! As lojas Villas Bhoas em seguida fecharão até a contratação e preparo dos novos funcionários e em seguida reabrirão provavelmente com outro nome, uma marca de fantasia!

           - Você não pode nos demitir sem uma justa causa! Impetraremos com uma ação no Ministério do Trabalho! - Alegou Rafael.

           - O fato da empresa estar operando no vermelho há tempos é a justa causa... mas faça como quiser! E quanto à vocês, meus queridos relativos, eu quero a mansão desocupada dentro de dois dias... pouco me importa para onde vocês vão, como vão, o que vão fazer e com que dinheiro. Não me importa. Só quero vocês longe de mim! Peguem os seus trastes pessoais e deixem a casa como ela está! Eu já entrei com uma ação de despejo muito bem provida de argumentos e provas, portanto não adianta vocês quererem provar o contrário. Se não saírem por bem, sairão à força. Também não adianta apelar para nada, pois caso haja algum problema com a justiça eu apresentarei o “salvo-conduto” que obtive, através de um Habeas Corpus preventivo, isso caso eu venha a ser ameaçada de qualquer maneira no que diz respeito ao meu direito de ir e vir!

          - Quem foi que ajudou você a fazer tudo isso? Foi aquele advogado, não foi? – Perguntou Débora.

           - Isso agora não vem ao caso, vocês devem agora se preocupar em sair rápido!

           - A sua consciência não pesa nem pelos mais novos, pelo seu irmão? – Perguntou Hella.

           - Não seja ridícula Hella, acho que isso foi a última coisa em que eu pensei, se é que pensei... mande-os para um orfanato, oras. Quanto ao meu irmão, a guarda dos “bens” dele eu a tenho, mas dele, eu quero distância! – Fred, Samanta e Alex também estavam presentes naquela reunião, mas como quase todos, mantiveram-se quietos e assustados. – Alguém tem mais alguma pergunta? Porque se não tiverem, vão me dar licença que tenho muito mais o que fazer e... aproveitem a festa, pois como eu já disse, ela é para vocês!

           - Eu vou te dar festa! – Disse Lisiane se levantando e indo em direção a Roselene. – Então quer dizer que você passa quase dez anos fazendo não se sabe o que no exterior, depois volta, dá uma de bozinha e engana as velhas pamonhas que confiaram em você, nos dá um belo de um golpe, nos deixa na rua e ainda nos manda fazer festa?!

           - Isso mesmo prima, alguma objeção?

           - Irrrnrnrnrnn!! Ordinária sem vergonha, eu vou te mostrar! – Bradou Lisiane, que ao chegar frente a Roselene a empurrou contra a parede e passou a desferir tapas violentos no seu rosto. Ricardo correu no intuito de apartar. Débora perdeu os sentidos e a confusão se generalizou naquele salão. Até que Roselene bradou a toda voz:

           - Segurança, por favor!! – Cinco homens truculentos e uniformizados adentraram imediatamente ao salão e num único gesto tiraram Lisiane de perto de Roselene. Lisiane não parou de se debater e de se espernear. Ela foi amparada por Ricardo. Roselene já estava saindo, protegida pelos seus homens, quando Márcia que havia acordado com a confusão, foi até ela acompanhada de Rafael:

           - Se você pensa que acabou com a nossa família, está na hora de você ver que as coisas não são sempre como você quer. Rafael me disse que um mês é mais que o suficiente até que a situação seja revertida. Neste país ainda existe justiça e você não irá longe com essa loucura, sua imunda! – Márcia tentou agredir Roselene com um soco, mas foi de pronto impedida brutalmente por um dos homens de Roselene. Rafael tentou defendê-la e foi agredido violentamente no estômago, vindo ao chão e se contorcendo de dores. Ao ver aquilo, os outros funcionários mantiveram-se longe. Outros seguravam Lisiane, que estava sendo acometida por um ataque histérico, os menores rodeavam Débora que ainda estava desacordada e Claudia que retornara, consolava Urogalo, que fora acometida por uma crise de choro. Roselene deixou aquela pasta de cópias autenticadas dos documentos com Jupiro Pintassilgo e finalmente se retirou.

 

Enquanto isso Paulo chegava ao seu apartamento, totalmente abatido. Ele fechou a

porta tendo em mãos a correspondência que havia pego na portaria. Atirou-se desanimadamente no sofá, enquanto foi abrindo os envelopes. Muitos deles eram as propagandas de sempre e outras coisas sem importância. Até que um deles lhe revelou o timbre de uma entidade cultural, a qual o parabenizava e o convidava para uma solenidade onde ele receberia a láurea de personalidade jurídica daquele ano, pelos relevantes trabalhos prestados à sociedade na seara do Direito. Um nó se fez subir e se instalar na sua garganta, nó que quase o fez perder o fôlego quando numa outra carta que abriu, leu o convite que lhe fora feito para presidir uma chapa que se formava para as futuras eleições daquela subseção da Ordem dos Advogados do Brasil. Ele, presidente de subseção? Advogado premiado pelos seus serviços à sociedade? Como poderia enfrentar novamente os seus alunos depois de tudo que havia feito? A cabeça de Paulo começou a ser povoada por pensamentos acusatórios, sua consciência o estava deixando tonto e fazendo com que aquele sentimento de culpa se tornasse insuportável.

Para tentar aliviar aquela horrível tensão, ou mesmo para fugir, Paulo foi até o pequeno

bar que havia no fundo da sua sala de estar e praticamente encheu um copo com whisky cowboy (whisky puro e sem gelo), em meio a uma careta ele ingeriu todo conteúdo aos goles. A ânsia foi tal que ele teve de correr até a pia mais próxima, para regurgitar. Não satisfeito, voltou até o whisky e colocou mais no copo, passando a deglutir mais vagarosamente. A bebida o havia esquentado e ele já estava sentindo o seu torpor, mas os pensamentos incriminadores não paravam de lhe perturbar. Não havia lugar que lhe servisse naquele apartamento... aquilo tudo parecia uma cadeia povoada por fantasmas, que eram os seus próprios pensamentos.

O que Roselene teria dito à sua família? Teria ela coragem de deixar as suas tias numa

situação ruim? A Roselene que ele tanto amava, e que estava tendo um caso com um de seus melhores amigos, Luiz Heitor. A mesma Roselene que matara quase toda a família provocando uma pane no avião... crime do qual ele era co-autor... ele havia matado uma família inteira!!! Que espécie de advogado ele era? Que espécie de pessoa ele era?

Paulo iniciara um vaivém que parecia não ter fim. Seus olhos procuravam algum conforto

em algum lugar... nas janelas, na mobília, nas paredes... foi quando ele deparou com o enorme e decorado painel que preenchia uma das paredes quase na sua totalidade. Painel este que além de uma bela estampa, trazia transcritos em letras garrafais, os dez mandamentos do advogado, também chamado de decálogo do advogado, obra de Eduardo Couture. Seus olhos correram rápidos e pararam no quarto mandamento:

Luta: Teu dever é lutar pelo direito; porém, quando encontrares o direito em conflito

com a justiça, luta pela justiça. Será que ele estava lutando pela justiça? Será que estava sendo justo com as pessoas? Consigo mesmo? Com Deus? Não, ele agira de modo contrário, estava usando o direito em detrimento de si mesmo porque amava Roselene, mas também para prejudicar pessoas inocentes, para matá-las! Ele deveria lutar consigo mesmo... que dignidade, que moral poderia ele ter? Atormentado, Paulo deglutiu mais uma parcela do seu whisky e seus olhos desceram até o quinto mandamento:

Sê Leal: Leal para com teu cliente, a quem não deves abandonar, a não ser que

percebas que é indigno o teu patrocínio. Leal para com o adversário, ainda quando ele seja desleal contigo. Leal para com o juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes; e que, mesmo quanto ao direito, às vezes tem de confiar no que tu lhe invocas. Lealdade... Paulo procurava desesperado em que esquina da vida havia perdido a sua lealdade... foi quando precisou do dinheiro de Roselene para estudar? Foi quando se apaixonou por ela? Sentia-se como a própria personificação da deslealdade para com o mundo... Quem havia tecido aquelas teias? Ele mesmo? Ou Roselene o havia emaranhado e aprisionado nas suas teias de seda? E a deslealdade ao poder maior e absoluto de Deus, que era a verdadeira justiça? Onde estava? A quem ele estava querendo enganar? Paulo sempre soube e sentiu que há uma Justiça Maior, cujos olhos vigiliantes vêem e sabem de tudo... cada intenção, cada ato, cada pensamento... Ele queria afugentar aqueles pensamentos, aquelas acusações, por isso afogava-se na bebida. Assim mesmo seus olhos não conseguiam se desviar daqueles dez mandamentos e como que uma resposta ao seu pedido de socorro, seus olhos descansaram um pouco sobre o oitavo mandamento:

Tem Fé: Tem fé no direito como o melhor instrumento para a convivência humana, na justiça como destino normal do direito; na paz, como substantivo benevolente da justiça; e, sobretudo, tem fé na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz. A justiça, destino normal do direito...ele teria de fazer alguma justiça, teria de lutar pela justiça nem que tivesse de pagar o seu preço sozinho, pois precisava de paz... e como ter a maldita fé de que tudo pudesse se arrumar? Será que algum ser, ou alguma força do universo o estava ouvindo e vendo naquele momento e poderia dar-lhe um pouco de alento? Será que alguém lhe estenderia a mão? Não, se Deus existe, Ele está dentro de cada um e qualquer mudança que se faça necessária tem de vir do interior para o exterior... Paulo sentia-se sozinho, desamparado e cada vez mais desesperado, parecia ser a última das criaturas que rastejavam sobre a Terra... Ele teria de mudar alguma coisa, teria de tomar uma atitude! Imediatamente os olhos do jovem advogado desceram até o dêcimo mandamento:

Ama Tua Profissão: Procura cansiderar a advocacia de tal maneira que, no dia em que teu filho te peça conselho sobre seu futuro, consideres uma honra para ti aconselha-­lo que se torne advogado. Paulo começou a chorar como uma criança. Filho... quando teria um? O que poderia dizer a ele sobre sua vida? Que conselhos poderia dar? E acima de tudo, que exemplo poderia dar? Filhos... com Roselene? Que foi capaz de arquitetar a morte dos próprios pais? Logo um pensamento pareceu gritar nos bastidores do seu subconsciente: Roselene eliminaria qualquer obstáculo que a pudesse atrapalhar na conquista dos seus objetivos. Ela poderia elimina-lo se ele se tornasse um empecílio... ela não o amava mesmo, só estava tirando proveito dos seus serviços. Ela amava a Luiz Heitor, ela se sentia atraída por ele e se entregaria para ele!!! Paulo já não podia agüentar... pareciam que vozes jocosas o incriminavam e o atormentavam colocando cenas desesperadoras em sua mente.

Deglutiu mais do whisky e já tonto, dirigiu-se para o seu quarto, estava resoluto... sentou-se na cama, abriu a gaveta do criado mudo e dali, após remover um fundo falso, retirou um velho Calibre 38 que pertencera a seu avô, a arma estava carregada. Bebeu mais whisky e posicionou o cano do revólver sobre uma das têmporas, colocou o indicador no gatilho...

 

Um brado ensurdecedor do seu subconsciente fê-lo estremecer: Todo suicida é um fraco. Mas o que era ele, senão um fraco? Um doente? Um louco? E a justiça? Ele se refugiaria nos braços da morte covarde enquanto tantos outros ficariam a penar nas mãos de Roselene? Ele teria de fazer algo antes da sua fuga... teria que pelo menos tentar fazer um pouco de justiça... e depois ir embora... era a única solução encontrada por aquela mente perturbada.

Foi até a sala onde reabasteceu o copo de whisky, caminhou trôpego até a biblioteca de seu apartamento, sentou-se na escrivaninha, pegou uma folha de papel com o seu timbre e com a mão trêmula passou a redigir uma carta, uma espécie de carta testamento. Parecia que uma força sobre-humana o instigava a fazer aquilo. Só se deu por satisfeito quanto terminou. Tentou ss levantar em busca de mais whisky, mas o álcool já o havia dominado e Paulo caiu ainda com o copo na mão, a queda fez com que o copo se estilhaçasse e os cacos se cravassem na sua pele. Paulo murmurava coisas inintelegíveis enquanto ia adormecendo. Logo entrou em profundo coma alcoólico.

 

Na matriz do complexo Villas Bhoas as coisas não estavam diferentes... Roselene parecia ter ido embora, enquanto todos continuaram no salão de convenções. Débora já havia voltado a si e Lisiane ainda estava nervosa e não parava de praguejar Roselene. Claudia respirou fundo e foi até a tribuna:

- Meus queridos "quindins”, talvez vocês queiram me matar, mas acho que ficarmos nervosos não vai adiantar de nada, só vai piorar a situação. A primeira coisa que devemos fazer é clarear a cabeça e pensarmos: Estamos com a consciência tranqüila, pois embora os muitos erros, tudo que fazemos é para o bem de todos e o nosso próprio, quem agiu de má fé foi ahãã.... "aquela de lá", portanto se há uma Justiça Divina, ela está ao nosso lado! Em se...

- Não querida, eu e Hella somos as culpadas, não deveriamos ter confiado tanto em Roselene e ter assinado para ela aquelas procurações! E o pior... pensamos em pedir para que ela assinasse um “termo de retroação” depois que a fizemos presidente, mas confiamos nela e não o fizemos. - Recriminou-se Débora.

- O que é este termo? - Perguntou Samanta.

- Um documento que, se assinado por ela, faria com que a presidência do patrimônio voltasse automaticamente para mim e para Débora depois de deteminado tempo. - Explicou Hella. - Realmente... eu e Débora fomos imprudentes. - Lamentou-se.

- Isso mesmo, foram imprudentes, negligentes e imperitas! Se vocês confiassem um pouco mais em nós... mas não, ela sempre foi a melhor, a mais sensata, a mais serena, a mais inteligente e as duas asnas caíram na "lábia" da cascavel! Está aí... e dizer bem feito é pouco!! - Disse Lisiane. Débora abaixou a cabeça.

- “Lise”, minha "batata sauté”, tia Débora e tia Hella erraram, mas isto serviu para elas verem que nós, apesar de todos os nossos defeitos e outros atributos não muito bem-vindos, estamos aqui, ao lado delas e o principal: somos honestas! - Argumentou Claudia.

- Eu não sei como é que você pode ficar aí na frente dando uma de gostosa enquanto nós estamos na mais absoluta miséria!!

- Mas “Lise”, temos de parar de nos deixar levar pelos impulsos ou pelo desespero, e devemos pensar com as nossas cabeças, aproveitando que elas estão aqui, todas reunidas! E como diz o ditado, várias cabeças pensam muito melhor do que uma! Vamos primeiro perguntar ao senhor Jupiro Pintassilgo se a "naja cuspideira” realmente conseguiu o seu intento... e quanto nos levará para provar que ela nos aplicou um golpe... por favor seu "Jupi" ! - Jupiro Pintassilgo foi até a tribuna:

- Muito bem, certamente ela foi amparada por um profissional de gabarito para aplicar este golpe. Ela usou o artifício das "vendas fictícias" ao que tudo indica, ou, realmente vendeu o patrimônio para um terceiro e o readquiriu, daí conclui-se que eles formam uma espécie de quadrilha. A princípio tudo o que temos de fazer é lermos e analisarmos todas estas pastas de documentos fotocopiados e autenticados que ela nos deixou e principalmente fazer um esforço para ver se vocês se lembram de ter realmente os assinado... quem sabe ela os tenha incluído em meio a uma porção de outros papéis que vocês teriam de assinar e vocês o fizeram por pura distração ou pressa, e ...

- Está nos chamando de negligentes?! - Questionou Lisiane, ainda irritada. - ­Imaginem se eu assinaria alguma coisa sem ler antes? Eu posso ser uma neurótica, grossa, histérica, gritalhona e ranzinza, mas eu sou responsável e apesar dos meus atos mostrarem o contrário, o meu caráter é bem diferente... eu só quero o bem de todos e que tudo dê certo... droga! - Disse Lisiane se sentando, pela primeira vez a viram com uma expressão de choro e a voz embargada. Algumas lágrimas brotaram dos seus olhos azuis. Ricardo não resistiu, aproximou-se e sussurrou:

- Todos sabemos de que você é uma pessoa transparente e de boas intenções... deixa eu ficar do teu lado e te ajudar? - Perguntou Ricardo, envolvendo Lisiane por um abraço carinhoso. Ela, por sua vez, não respondeu nada, mas deixou-se abraçar. Enquanto isso Jupiro deu continuidade:

- Bem, aqui ninguém está acusando ninguém por negligência ou imprudência... se realmente ninguém assinou esses documentos, isso nos leva a considerar a hipótese de Roselene ter falsificado as assinaturas; podemos inclusive submetê-las a exames grafotécnicos.

Temos de verificar como estão os lucros referentes à parte dos tutelados... Podemos dizer que esses são os nossos pontos de partida para provarmos o contrário. Agora dependemos de sorte para que possamos agir rápido, mesmo assim eu vou dizer uma coisa que todos sabem: a justiça é morosa... - Naquele momento Rafael pediu a palavra e se encaminhou para a tribuna:

- Ela nos deu o aviso prévio, assim sendo temos trinta dias para procurar outro emprego ou para provar o contrário e tentar não alterar em muito a rotina das coisas. Destarte eu gostaria de convocar a todos os meus colegas para que nestes trinta dias continuemos a trabalhar normalmente, pedindo a Deus para que se prove o contrário e se reverta a situação. Pois por mais que ela seja a nova presidente, nós temos o direito de permanecer aqui por mais trinta dias e ela certamente não se sentirá muito à vontade em nos ver. Por outro lado ainda podemos tocar as coisas do nosso jeito... segurando a barra. Quem aceita a proposta que levante a mão! - Houve silêncio e inércia. Até que a voz de Ricardo se fez ouvir:

- Estou com o Rafael e não abro!! Além do que dona Débora e dona Hella são como uma segunda família para mim!

- A lambisgóia é só uma e nós somos vários, não é mesmo “Caro”? - Perguntou Karina.

- Isso mesmo “Kari”, vocês podem contar conosco para o que der e vier, não é mesmo Kari? - Urogalo, se levantou e gritou enquanto se derramava em lágrimas:

- Eu também não vou deixar que façam isso... vou ficar e lutar até o fim! - E assim todos foram se levantando e expressando solidariedade. Débora e Hella se emocionaram quando viram que todos sem exceções as apoiavam e estavam dispostos a lutar. Giancarlo foi até a tribuna:

- Se não lutarmos, inevitavelmente perderemos os nossos empregos. Se lutarmos, continuaremos aqui, trabalhando como o Ricardo disse: em família! E além de tudo nós sabemos muito bem, que quando há um crescimento nas lojas, nós também crescemos! !

- Apoiado!! - Gritaram todos em uníssono. Desta vez Márcia resolveu falar. Ao parar diante do microfone ela bocejou demoradamente e depois fez uso da palavra:

- Gostaria de agradecer a todos de antemão, em meu nome e em nome de toda família... uááááh... desculpem... Eu estive pensando, agora que tudo isso já aconteceu mesmo, a melhor tática a ser usada é deixar a "urutu" comemorar a vitória e achar que é a “rainha da bananada seca”, enquanto que por debaixo dos panos nós vamos trabalhando para reverter a situação. Assim sendo, faremos como o Rafael disse, todos continuam trabalhando normalmente nestes trinta dias, mas eu creio que nós da família não devemos vir ao shopping, para que ela não se sinta ameaçada e relaxe a guarda! - Jupiro concordou imediatamente com Márcia:

- Márcia tem toda razão. É melhor que a princípio vocês finjam aceitar tudo e até com um certo medo, para que possamos ganhar tempo.

- Então o senhor acha também que devemos sair da nossa casa? - Perguntou Hella.

- Se isso fosse possível... - Tentou dizer Jupiro.

- E nós vamos morar onde, no inferno? - Questionou Lisiane, indignada. Débora se levantou resoluta:

- Eu tenho um sítio nas imediações de Guarulhos. Herança de meu irmão que faleceu há alguns anos, portanto este sítio não faz parte do patrimônio Villas Bhoas, uma vez que é de origem patriarcal. Sou herdeira legítima, pois sempre gostei daquele lugar e meu saudoso irmão, que sempre soube disso, deixou-o em testamento para mim. A casa sede do sítio é um grande solar e creio que cômodo o suficiente para nos abrigar até que toda esta confusão passe. Não está abandonado, pois há um caseiro responsável pela sua manutenção.

- Ótimo, eu não mais me lembrava do "Sítio das Figueiras... é um lugar muito bom... inclusive com uma bela granja... por enquanto podemos até comercializar galinhas e ovos para que nos mantenhamos... - Apoiou Hella

           - Eu não vou morar no mato! - Replicou Lisiane.

           - A vida rural deve fazer um bem enorme para a pele, para as unhas, cabelos e... - Claudia foi interrompida por Lisiane:

- É... e tem cavalos também, para você transar com eles!

- Credo "almíscar'', eu não sou zoófila! Bate na madeira três vezes!

- Deve ser ótimo para dormir... uáááh... - Animou-se Márcia.

- Eu tenho algumas economias em moeda americana, as quais eu guardava em casa... creio que sejam suficientes para nos manter por algum tempo! - Disse Hella. Logo aquela reunião assumiu um caráter descontraído e eles já estavam até rindo da desgraça. Muitos se ofereceram para ajudar na mudança da família Villas Bhoas. Por fim, Claudia se fez dona da palavra novamente:

- Viram só meus "amorecos"? É conversando que a gente se entende... agora vamos aproveitar que estes canapés foram deixados aqui e comê-los, pois a lacraia caprichou e seria um desperdício abrir mão destas delícias... - Claudia tomou uma das bandejas ali deixadas pelos garçons e passou a servir.

- Só espero que não estejam envenenados! - Argumentou Lisiane, abocanhando três canapés de uma só vez.

 

Roselene, que estava com o carro estacionado nas proximidades do shopping, retirou os fones de ouvido e pensou alto:

- Então quer dizer que há um sítio... e que eles estão se unindo contra mim... pois me fingirei de boba e entrarei no jogo. Eles não perdem por esperar. - Ela deu a partida.

 

Na manhã do dia seguinte a dor de cabeça de Paulo era insuportável. Ele já regurgitara por várias vezes. Seus movimentos eram lentos. Sem fome, ele só tinha um objetivo. Para se encorajar ele apelou novamente para a bebida. Seu organismo já não mais aceitava aquele líquido asqueroso, mas ele fez força e engoliu. Se arrumou um pouco, pegou a longa carta que havia escrito e dirigiu-se para a garagem. Dirigir por São Paulo naquele dia de sol forte e quente foi infernal. Ele finalmente chegou ao cartório Linus Taurus e pediu pata falar com Luiz Heitor. O último atendeu Paulo com receio, e se espantou com a aparência do amigo:

- Paulo, você está péssimo, o que aconteceu?

- Nada. Eu tenho uma carta testamento... testamento cerrado. Quero que tudo seja feito nos conformes do artigo 1638 do Código Civil. E que não seja aberto... só até a minha ordem ou depois da minha morte. - Luiz Heitor se assustou ainda mais:

- Paulo, o que está acontecendo? Deixe-me ajudá-lo, deixe-me reparar o erro que cometi em me apaixonar por Roselene... eu fui injusto com você!

- Você me ajudará se apurar com isso!

- Mas o que você escreveu aqui?

- Já disse, é um testamento cerrado. Por favor Luiz Heitor, sem perguntas.

- Você trouxe as testemunhas?

- Você será minha testemunha e quanto às outras, pegue mais quatro dos seus funcionários e peça para que eles assinem. - Luiz Heitor chamou alguns de seus funcionários que conheciam Paulo e estes não hesitaram em contribuir com a assinatura. Paulo agradeceu e antes de sair voltou-se para Luiz Heitor:

- Eu não te condeno... Roselene conquista quem ela quiser. Apenas tenha cuidado para não se machucar como eu me machuquei. A hemorragia não estanca nunca...

- Paulo eu... - Paulo não deu atenção e saiu. Luiz Heitor preocupado, passou a mão no telefone:

- Roselene, oi amor, sou eu... não quero tomar o seu tempo, mas é a respeito de Paulo, ele veio aqui e me entregou um testamento cerrado!

"E o que diz nele?"

- Não posso abrir... é contra a ética, mas Paulo me deixou muito preocupado.

"Ora, meu amor, você não vai abrir e ler para mim? Quem sabe Paulo esteja pensando em fazer alguma besteira e nós poderemos impedir!" - Diante daquilo que Roselene falou Luiz Heitor não sabia o que fazer:

- É contra os nossos princípios me...

"Ora, deixe para lá os seus princípios e abra isso de uma vez!" - Luiz Heitor estranhou o tom de voz de Roselene.

- S-são muitos papéis, há muita coisa dentro do envelope!

"Vou passar aí depois do expediente... guarde esse envelope com você.." - Ao desligar, Roselene se tocou... Paulo podia estar querendo contar alguma coisa para Luiz Heitor e se o último visse o conteúdo, que poderia ser comprometedor, voltar-se-ia contra ela. Ela teria de impedir.

 

No seu escritório, Luiz Heitor estava prestes a abrir a envelope quando sua porta foi aberta de supetão. Era Paulo:

- Paulo?!

- Deus mostrou para mim que nem tudo está perdido... e me ocorreu que você poderia abrir ou então entregar isto para Roselene! Eu quero esse envelope de volta!! - Disse Paulo rispidamente, arrancando o envelope das mão de Luiz Heitor.

- É que eu e a Roselene estamos preocupados!

- Eu sabia... você até já ligou para ela, não foi?!

- E-eu...

- Você está enfeitiçado, como eu estava... - Disse Paulo, saindo e batendo a porta. Ele precisava beber mais...

 

Na colossal mansão Villas Bhoas o clima era de tristeza. Eles começaram a juntar as roupas e objetos pessoais. Assim mesmo, os adolescentes e as moças estavam cabisbaixos. Débora e Hella não estavam perdendo tempo com a mudança:

- Muito mais difícil do que está sendo para vocês, está sendo para mim e Hella.. ­Disse Débora, enquanto a maioria havia se largado sobre os confortáveis estofados da sala de estar. - Esta situação é efêmera, não vai demorar muito para que tudo se esclareça e retornemos, por isso levem só as coisas pessoais e o que acharem necessário!

- Exatamente. - Interveio Hella. - Roselene conseguiu tudo muito facilmente e o perderá do mesmo modo. Como o senhor Jupiro nos disse, se obtivermos provas de que tudo não passa de um engano, reverteremos a situação e todos os atos realizados por Roselene serão anulados imediatamente!

- Engano é o seu nariz! - Manifestou-se Lisiane. - Engano é quando alguma coisa acontece acidentalmente. O que a "caninana" fez é negociata, falcatrua da pesada, jogo sujo, golpe baixo! E pelo que eu vi naqueles papéis, não será assim tão fácil de provar! Agora, que houve falsidade ideológica, áh isso houve porque eu não assinei aquelas malditas procurações!

- Lisiane meu bem, não use de palavras tão pesadas, elas atraem coisas negativas... mesmo que às vezes você sinta vontade de praguejar, tente abençoar... isso neutraliza a força do inimigo! - ­Aconselhou Débora.

- Quer que eu abençoe a "belzebu"?! Pois sim... eu quero mais que ela afunde nos charcos infernais e passe o resto da eternidade sendo currada por Lúcifer!!

- Mas que horror menina, é por isso que as coisas não vão muito bem para você!

- Horror foi vocês terem assinado tudo que a "pestilenta" pediu, e depois a culpada sou eu! Se eu sou tão negativa, neurótica, gorenta e nomerenta quanto vocês dizem, quero dizer que esse é o meu jeito de ser! E se ele afeta a vocês eu sinto muito. Eu sinto muito!!! - Mal Lisiane terminou de gritar e Claudia, que não estava na sala, surgiu no alto das escadas trazendo dois cabides cada qual com um vestido. Lá de cima ela se manifestou:

- Alguém pode me dar uma opinião? Não sei se uso o vermelho ou o rosa para a mudança? - Perguntou ela, encostando um vestido de cada vez no seu corpo. - Não sei... não quero parecer velha para os carregadores... - Lisiane perdeu a paciência:

- Irnrnrnrnrnrnrnrn... Se mude pelada!!! - Bradou, tomando em mãos um cinzeiro de cristal que havia sobre um dos consoles e atirou contra Claudia que rapidamente desviou.

 

Roselene estava fechando o escritório ansiosa para encontrar com Luiz Heitor e saber o conteúdo daquele envelope. Ela não poderia esperar até as seis horas. Chegando até a recepção Urogalo lhe alertou:

- Eu iria mesmo avisar a senhorita que esta moça deseja lhe falar. - Roselene sentiu um calafrio quando deparou com Hafta parada na sua frente.

        - Áh... obrigada senhorita Urogalo, eu a atendo no meu escritório. - Hafta vestia roupas extravagantes e mal combinadas, além de mascar uma goma e fumar. Ao adentrarem no escritório de Roselene, a última voltou-se furiosa:

- O que você está fazendo aqui, sua vagabunda? Eu já não te disse que você nunca deveria me procurar aqui?

- “Pô, tu não tá mais aparecendo lá na boate, e eu...”

- Pobre é uma desgraça mesmo, não é? Reclama que não tem dinheiro e que quer trabalhar, mas quando lhe é dado o trabalho não quer ou não sabe fazê-lo... por isso eu sempre digo que pobre é pobre porque é preguiçoso, porque está acostumado que todo mundo lhe dê tudo de mão beijada e porque nunca se preocupa em fazer nada bem feito... é sempre pela lei do mínimo esforço e do máximo ganho! Pois saiba que comigo não vai ser assim Hafta... eu já imagino que você veio até aqui para me pedir dinheiro e para dizer que não está conseguindo administrar o estabelecimento do qual eu deixei você encarregada, não é?

- “É, a freguesia tá baxando e quase num tem grana no caxa... e tá precisando comprá mais umas bebida, e eu tamém tô sem grana”. - Disse Hafta, observando que Roselene tomara em mãos a sua bolsa abrindo-a lentamente.

- Pessoas incapazes de serem úteis não deveriam existir, pois desperdiçam o ar que respiram e ocupam muito espaço... Além de atrapalharem aqueles que querem trabalhar, por isso eu acho que deveria existir uma lei que as eliminasse! - Disse calmamente Roselene, começando a retirar a mão de sua pequena bolsa. - Hafta arregalou os olhos.

 

Roselene encarou a moça e retirou da bolsa algumas notas de dinheiro, as quais jogou por sobre esta em sinal de desprezo. Depois, com tom enérgico falou:

- Tome isto, volte lá e se arranje! Nós temos gente o suficiente para fazer programas suficientes que nos darão dinheiro mais do que suficiente! Eu já trabalhei muito para conseguir garotas e garotos menores de idade que possam satisfazer a clientela e te ensinei tudo! Pegue esse dinheiro, pague o que tem que pagar, compre o que tiver que comprar e não me apareça nunca mais me pedindo ajuda, pois eu já te dei a faca e o queijo! - Hafta juntava rapidamente as notas do chão.

- “Mais” é que...

- Pare. Eu não quero ouvir! E é bom você fazer o que eu estou mandando bem direitinho, pois eu te tenho nas mãos! Basta um deslize que eu acabo com você e você sabe disso! Áh... e não se esqueça de depositar 50 % do faturamento do mês nesta conta bancária.. - Disse Roselene entregando um cartão com o número da conta anotado para Hafta. - A conta está no nome de Hafta Abdul mas isso não significa que o dinheiro que houver lá é seu, eu também tenho acesso a ela pois tenho cópias da sua documentação como Hafta, e estarei fiscalizando cada passo seu! - Disse Roselene, aproximando-se de Hafta, que retrocedia alguns passos.

- Pode “dexá” que eu... - Roselene tomou Hafta pelo braço com força e a sacolejou.

- É bom você fazer tudo bem certo, porque uma hora ou outra eu vou precisar desse dinheiro e Deus te livre se ele não estive lá! - Roselene aproximou o seu Rosto do de Hafta que tremia:

- Eu “vô movimentá” a casa, “vô fazê” a freguesia “triplicá”! “Tamém vô fazê mais programa e aumentá os preço! - Disse Hafta, assustada.

- Assim é que se fala garota... eu não vou demorar para aparecer por lá... só alguns dias. E não se esqueça... - Sussurrou Roselene, aproximando a sua boca da de Hafta. - ... a clientela sempre tem razão e... - Roselene passou a sua língua por sobre os lábios de Hafta. - ... você sabe muito bem como satisfaze-los e como ensinar todas aquelas crianças a satisfaze-los também. - Roselene, num ato seco e insano, agarrou Hafta pelos cabelos, na região da nuca e desferiu-lhe uma violenta mordida nos lábios, fazendo com que estes sangrassem. Hafta gritou:

- “Tá ficando lôca”? - Bradou, tentando se desvencilhar das mãos de Roselene e não conseguindo. Roselene em seguida lhe desferiu um violento tapa no rosto.

- Cale essa boca! Não há motivos para gritar, afinal, como eu sempre digo, a dor e o prazer são apenas os pólos opostos de uma mesma emoção... Agora caia fora por que eu tenho mais o que fazer!! - Disse Roselene a dentes cerrados, empurrando Hafta para longe e quase fazendo com que esta viesse ao chão. Hafta juntou suas coisas e já ia saindo do escritório quando Roselene a advertiu ainda mais uma vez: - E lembre-se, sem deslizes!

 

Roselene saiu do seu escritório e já não mais encontrou Urogalo ali, pois já passava das seis horas. Logo ela ganhava as ruas rumo ao tabelionato Linus Taurus. Enquanto dirigia pensava em como agir diante do que Luiz Heitor lhe diria a respeito do tal testamento de Paulo. Ela tentava imaginar todas as hipóteses para não ser apanhada desprevenida. Devido ao rush, Roselene levou mais de uma hora até chegar na Avenida São João. Entrando no tabelionato ela foi logo ao encontro de Luiz Heitor e tentou parecer o mais natural possível. Ambos se fecharam no escritório do rapaz:

- Áh, meu amor... - Disse Roselene melosamente, tomando Luiz Heitor pelo queixo e lhe beijando na boca ardentemente. - Não sei, mas hoje senti tantas saudades de você... - Ela passou a beijar e a morder o pescoço do rapaz e depois subiu para a orelha, introduzindo a língua do interior da mesma. Luiz Heitor estava estupefato:

- Nossa... o que foi que deu em você? - Perguntou ele, enquanto passava com sofreguidão as suas mãos pelo corpo de Roselene, envolvendo por sobre o vestido os seus seios e descendo para o ventre. De súbito Roselene empurrou Luiz Heitor e fez com que ele caísse sentado por sobre uma cadeira. Imediatamente ela ergueu a sua justa saia e montou no colo dele, passando a desfazer o nó da sua gravata e logo em seguida abrindo a sua camisa. Roselene passou a acariciar o peito do rapaz com a língua, mordiscando-o e provocando-o. Luiz Heitor inclinou a cabeça para trás e parecia estar em êxtase, tal era a intensidade com que Roselene o excitava. Repentinamente ela parou e saiu de cima do colo de Luiz Heitor:

- Eu estou pegando fogo... você tem algo para beber?

- Deve ter uma garrafa de vinho nessa geladeira... eu vou pegá-la... - Disse Luiz Heitor, fazendo menção de se levantar.

- Tss, tss, tss... você fica sentadinho aí, pode deixar que eu mesma pego. - Disse Roselene, abrindo a porta do frigobar do escritório de Luiz Heitor e retirando dali uma garrafa do francês Chablet. De imediato ela pôs os olhos num saca-rolhas que havia por sobre a geladeira e dele muniu-se. Ela retirou o lacre e depois apenas pediu que Luiz Heitor segurasse para ela a garrafa, enquanto ela com facilidade e demonstrando muita prática, removeu a rolha. Roselene voltou a montar no colo de Luiz Heitor, segurando com uma das mãos a garrafa e com a outra abrindo por completo a camisa do rapaz, em seguida, num ato inesperado ela derramou o vinho gelado por sobre o peito de Luiz Heitor e passou a sorvê-lo com a boca, enlouquecendo-o em meio a gemidos e espasmos. Roselene deu uma pausa e levou a garrafa à sua boca, primeiramente passando obscenamente a língua em torno do gargalo e depois dando um gole cavalar. Em seguida ela levou a garrafa até a boca de Luiz Heitor, passando a acariciar os seus lábios com o gargalo e depois deixando-lhe finalmente beber do vinho. Enquanto Luiz Heitor bebia, Roselene desceu com uma das mãos por entre as suas pernas e apertou a genitália do rapaz que gemeu, derramando-se com o vinho que ainda bebia.

- Você vai acabar se arrependendo, pois logo já não mais conseguirei responder pelos meus atos... - Murmurou Luiz Heitor, extasiado. Roselene novamente se levantou, fazendo uma observação:

- Está tão quente aqui... - Disse ela, passando a abrir o seu vestido, logo livrando-se dele e se voltando para Luiz Heitor só com a lingerie negra que usava, a qual contrastava com o seu corpo claro e bem formado e com os cabelos louros. Roselene parou diante de Luiz Heitor e vagarosamente desabotoou o seu soutien, pondo a mostra o seu perfeito par de seios.

 

- Você gosta dos meus seios, hã? Veja como eles são bonitos... como são rosados os mamilos... - Roselene tomou uma das mãos de Luiz Heitor e levou-a até um dos seus seios. - Sinta como eles são macios e ao mesmo tempo rijos... Imagine o quão deleitoso deve ser sugá-los... - Luiz Heitor fez menção de levar a boca até um dos seios de Roselene, quando foi por ela impedido delicadamente. - Ainda não. - Disse ela.

- Você quer mesmo me enlouquecer, não é?

- Sabe... eu sou um pouco fetichista e acho que esta hora combina e em muito com o fato de você me contar o que está escrito no testamento de Paulo... - Roselene voltou a massagear as partes pudendas de Luiz Heitor.

- E-eu não li o... - Tentou completar o ofegante rapaz.

- Ora, então vamos ler juntos... você me diz onde está, eu vou lá, pego, trago aqui e lemos juntos enquanto continuamos esse reconhecimento dos nossos corpos. - Disse Roselene, agora levando a mão de Luiz Heitor para o meio das suas pernas e a pressionando com ambas as macias coxas.

- Vamos deixar esse assunto chato pr’a depois. - Murmurou Luiz Heitor, deslizando a outra mão por sobre o ventre de Roselene.

- Eu disse que eu quero ver agora. - Disse ela, desvencilhando-se das mãos de Luiz Heitor e levantando-se abruptamente.

- Áh, vem cá...

- Só vou com o testamento...

- Depois que eu te liguei Paulo voltou até aqui e pegou o testamento devolta. Disse que não confiava mais em mim. - Explicou Luiz Heitor. Roselene mudou radicalmente a sua feição:

- Você está mentindo para mim!

- É a mais pura verdade, ele voltou aqui e...

- Ora meu amor, não há porque você me esconder isso, não há mais ninguém aqui e nós nos amamos, além do mais é para o bem de Paulo! - Ela suavizou o tom de voz.

- Olha, se eu estivesse mesmo em posse de tal testamento cerrado eu já o teria entregado a você! - Roselene voltou a fechar o cenho:

- E você tinha de ser tão idiota e tê-lo devolvido para o Paulo?

- Mas eu não tive como evitar!

- Vocês homens são todos iguais, no final sempre se unem. Mas a mim vocês não enganam, eu... - Num ímpeto Luiz Heitor se levantou e agarrou Roselene, levando uma das mãos por entre as pernas dela.

- Deixe isso pr’a lá e vem cá! - Num gesto rápido e de muita força ela empurrou Luiz Heitor devolta para a cadeira.

- Tire suas mãos sujas de mim!

- Mas o que houve? Não quer mais... eu estou mesmo estranhando esse seu interesse no testamento de Paulo, aliás, estou estranhando o fato dele ter feito este testamento. O que há de tão forte entre vocês? Afinal, desde que nos reencontramos você e Paulo andam realizando negócios, registrando papéis... estão armando alguma coisa? Eu não queria pensar assim mas, estou começando a desconfiar de você... não é porque amo você que não posso verificar melhor todas aquelas certidões que você registrou. Vou acabar já com isso! Vou ligar para o Paulo e perguntar o que está acontecendo! - Disse Luiz Heitor resoluto, levantando-se em seguida. Roselene sentiu o seu sangue ferver e furtivamente se fez munir do saca-rolhas que estava por sobre a geladeira Ela voltou-se para Luiz Heitor infinitamente calma:

- Sim, meu amor, você pode ligar para o Paulo e esclarecer tudo, mas não sem antes concluir o que começamos. Por que você não se senta novamente? - Roselene foi abaixando vagarosamente a sua calcinha, enquanto Luiz Heitor recuou alguns passos e voltou a se sentar. Ela caminhou até ele e novamente montou por sobre o seu colo passando a beijar e lamber o seu rosto e pescoço. Luiz Heitor voltou a se entregar e fechou os olhos. - Então quer dizer que você quer ver melhor que certidões são aquelas, não? - Num gesto rápido Roselene cravou o saca-rolhas no olho esquerdo de Luiz Heitor. Este se assustou e quando se acercou dos fatos começou a gritar:

- O-o que vo... Sua loucaaaa!! - Roselene não deu tempo para que ele continuasse e repetiu o mesmo ato, cravando o saca-rolhas no olho direito de Luiz Heitor. O rapaz gritava em pânico mantendo as duas mãos sobre o rosto, numa tentativa de conter o sangue que jorrava aos borbotões. Luiz Heitor gritava e se debatia e por fim veio ao chão.

- Ora, mas pare com esse escândalo, isso me irrita! - Disse Roselene, tomando em mãos a sua calcinha e fazendo dela uma bola, a qual enfiou na boca de Luiz Heitor, impedindo que ele se fizesse ouvir. - Vocês homens só pensam em sexo... é isso que você quer, não? - Perguntou ela, debruçando-se sobre Luiz Heitor e abrindo as suas calças. - Vocês gostam que a sua virilidade seja sugada, não é mesmo? - Perguntou, procedendo com tal ato. Roselene passou a morder violentamente o rapaz, não só na sua sexualidade mas pelo resto do corpo. Ela trazia no rosto uma expressão doentia de prazer, enquanto que ensandecida rasgava a pele do moço com os dentes. Luiz Heitor se livrou da calcinha e passou a gritar apavorado. Roselene tomou a garrafa de vinho e com ela bateu violentamente na cabeça de Luiz Heitor, que caiu desacordado.

Ela parou, olhou-o por alguns instantes e levantou-se passando a se vestir. Já recomposta ela tomou a calcinha e o saca-rolhas e jogou-os no interior de sua bolsa.

- Ninguém vai saber quem foi que pôs um fim em você, meu amor. - Murmurou, ajeitando os cabelos. Ela foi até uma das estantes onde havia notado uma garrafa de álcool. Sem muito pensar ela despejou o conteúdo sobre o corpo de Luiz Heitor, que com a ardência recobrou os sentidos e passou a se debater. - Ninguém me viu entrar e ninguém vai me ver sair... ninguém vai saber de nada... - Ela riscou um palito de fósforo. - Ninguém mesmo! - Afirmou, jogando o palito incandescente por sobre Luiz Heitor que em fração de segundos se transformou em uma tocha. O rapaz se debateu e gritou até a morte, enquanto o fogo se espalhava pelo escritório. Roselene saiu calmamente e fechou a porta. Ela passou pelo resto do tabelionato vazio e ganhou a porta da rua, fechando-a também. Logo o alarme contra incêndio disparou e não demorou para que o corpo de bombeiros se fizesse presente em tempo de impedir que as labaredas devorassem o tabelionato todo.

Roselene seguiu diretamente para o flat em que se hospedara no dia anterior.

No dia seguinte, havia um caminhão de mudanças na frente da mansão. No seu interior a correria era grande, várias malas e caixas na sala principal. Eles só levariam suas roupas e objetos de estimação, pois toda a mobília ficaria na mansão. Os funcionários da companhia de mudanças já carregavam para o caminhão os últimos volumes. Quanto aos Villas Bhoas, uns ainda apressados verificavam se não estavam esquecendo de nada, outros já estavam na sala, dando a última olhada na casa. Quanto aos empregados, Roselene os despedira todos, praticamente os expulsou, quando lá esteve pela última vez. Todos eles se ofereceram para ir com Débora e Hella, mas estas, na situação em que se encontravam, tiveram de recusar tais pedidos. No entanto todos prometeram que se um dia elas precisassem de seus serviços, eles estariam à disposição, mesmo que já tivessem encontrado outros empregos. Todos sentiram, afinal foram mais de vinte anos, trabalhando juntos naquela que um dia foi uma casa feliz. Havia muitas lágrimas na despedida, mas todos foram surpreendidos por Roselene que adentrou à mansão de supetão, seguida por três seguranças, caso alguém não quisesse deixar a casa. Não olhou e nem falou com ninguém, subindo direto para o pavimento superior, onde ficavam os quartos, no intuito de verificar se eles tinham mesmo levado tudo. Depois desta vistoria, ela voltou, parando no alto das escadas e olhando com desprezo para todos, depois falou:

                 - Gostei de ver! Vocês souberam desinfetar o ambiente bastante rápido! Espero não encontrar vestígios seus aqui.

Roselene, você está achando que está por cima, mas isto é agora! Pois ri melhor, quem ri por último! Eu não vou descansar enquanto não vê-la numa situação muito pior que esta que você nos deixou! – Bradou Lisiane.

       - Verdade? Olha, eu acho que vou esperar deitada, por que se me sentar acho que vou me cansar por demais! Agora andem com isso, mexam-se!

       - Sua malvada!! - Gritou Claudia, personificando Shirley Valentine. - Você é pior que o próprio demônio! Mas você não perde por esperar, pois eu... - Claudia gesticulava teatralmente.

       - Já chega!! A festa acabou, peguem suas trouxas e caiam fora, vocês não são mais bem-vindos aqui! – Disse Roselene, com energia.

       - A sua consciência será a sua maior punição, minha garota! - Disse Débora

             - Não seja piegas Débora, tenho muito mais em que pensar do que na sua desgraça... E agora “chô”! Fora! Não adianta ficarem me olhando com essa cara de “tenha piedade”, eu jamais vou voltar atrás! – Disse Roselene para todos.

     Márcia tomou em mãos um castiçal em bronze, o qual como ato derradeiro, ela atirou contra Roselene que ainda postava-se no alto das escadas. Roselene assustou-se, mas desviou a tempo. Márcia imprimiu tanta força no objeto, que este provocou um sulco ao bater contra a parede.

             - Seguranças, providenciem para que essa gente saia da casa o mais rápido possível, e se precisarem, ajam com rigidez! – Bradou Roselene, ainda assustada.

 

Eram quase seis horas da tarde, quando eles pareciam ter organizado, pelo menos um pouco, a grande casa sede ao Sítio das Figueiras.

       - Custou, mas parece que terminamos! – Exclamou Débora.

     - É, a coisa sem empregados fica um pouco pesada! Ainda bem que os meninos Ricardo, Rafael, Giancarlo, Karina e Carolina se propuseram a vir hoje cedo, e já haviam varrido e desempoeirado toda a casa! – Disse Hella.

     - Como quem trabalha merece, eu acho que está na hora de nós tomarmos um bom café! – Interveio Karina.

       - É, mas para isso é preciso alguém fazer o café! – Disse Lisiane.

       - E o que é que você acha que eu e a Karina fizemos? – Exclamou Carolina. – Vamos, lavem as mãos e venham até a varanda, pois como está quente o café estará sendo servido lá dentro de cinco minutos!

       - Moças de ouro! – Exclamou Hella.

     - Ai! Coitadinhas das minhas mãos! Eu estraguei todas lidando com soda cáustica para desencardir o piso da cozinha! – Lamentou-se Márcia.

       - Mas você é idiota mesmo! Por que não usou luvas? – Indagou Claudia.

       - Eu bem que tentei, mas o serviço não rendia! Tudo que eu pegava escorregava, além do mais de nada adiantaram, pois elas deixavam penetrar qualquer líquido e corriam o perigo de ser corroídas!

         - Mas que tipo de luvas você usou? Não eram de borracha? - Perguntou Lisiane.

         - Eram de camurça, aquelas que eu comprei em New York.

Haja burrice! – Exclamou Claudia.

Venham todos!! Eu já vou tirar o bolo do forno, o bolo que eu mesma fiz!! – Exclamou Karina.

     Todos já haviam se sentado quando da cozinha ressoou uma tremenda explosão, a qual deixou a todos com o coração nas mãos. Segundos depois, na porta que dava da cozinha para a varanda, em meio a uma nuvem de fumaça que se dissipava, surgiu uma moça, com o rosto coberto de fuligem, trazendo na cabeça uma bandeja, ou melhor, um pedaço de ferro contorcido e vestígios de massa por todo o corpo.

 

O que houve Karina????!!!! – Indagou Débora, assustada.

Eu estava tirando o bolo, aí... chuif... eu senti um forte cheiro de gás... e... chuif, aí, então eu quis verificar e acendi um palito de fósforo...chuif... aí, bum... Buáááhãhãhãhã...

Calma querida! Você se machucou? Vamos, mostre onde dói? – Indagou Débora preocupada.

Eu acho melhor levá-la para cama! – Sugeriu Ricardo.

Por que? Você quer transar com ela assim, cheia de massa? - Perguntou Lisiane, atônita.

Talvez seja melhor levá-la para um hospital! – Opinou Giancarlo.

Vocês não acham melhor chamar o bombeiro? – Indagou Carolina, abobadamente.    

Enquanto todos davam suas opiniões, aquela moça, naquele estado crítico, continuava parada naquela porta.

Ela está em estado de choque!! É melhor chamarmos uma ambulância! Karina! Karina, você está bem?? – Indagou Hella, abanando a moça.

Háháháháháhá!!!! Vocês não acharam engraçado? A débil mental aqui fez o bolo e ele explodiu! Háháháháháhá!! Mas, chuif..., ao mesmo tempo é tão triste, chuif! Pobrezinho do bolo, achou que ia ser comido... ele nem imaginava, chuif, que iria ter uma morte tão trágica... buááááááááááá!!! Mas ao mesmo tempo é tão divertido, contudo o pobrezinho estava tão gostoso... – Dizia Karina, tomando os restos de bolo que havia em seu corpo e devorando-os.

Calma gente! Isso é normal, quando ela leva um susto muito grande isto acontece! Foi igualzinho quando uma empilhadeira derrubou um pilha de brinquedos sobre ela lá no shopping! Tudo que ela precisa é de uma boa ducha fria. – Disse Carolina, calmamente.

     Infelizmente aquele café ficou sem bolo. Quando todos já terminavam, isso após Karina ter tomado um banho frio e um calmante, Débora deu por falta de seus sobrinhos:

Onde é será que eles se meteram? Devem estar aprontando alguma! E o pior que o Tiaguinho vai junto e eles não atendem bem dele! Como essas crianças me preocupam! – Disse Débora, indo até a escada, que dava da varanda para o pátio e gritando pelo nome dos quatro.

Dona Débora, não há nenhum caseiro, cuidando desse sítio? – Indagou Ricardo.

É claro que há, mas ele mora separado, naquela casa, perto daquelas árvores. Foi por isso que encontramos a casa tão suja! Eu nunca poderia deixar essa propriedade abandonada, pois o caseiro e sua família cuidam de toda a criação, das galinhas, do gado, dos porcos, dos cavalos e dos carneiros! Vai ser com esse sítio que nós vamos tocar a vida para frente, pois venderemos hortifrutigranjeiros e carne! – Afirmou Débora, animada. – Além do mais é bom, porque ele fica perto de São Paulo! Basta você ver que esses aviões que passam por aqui a todo instante vão aterrizar no aeroporto de Guarulhos!

Ei! Parece que seus sobrinhos vêm voltando! – Disse Rafael, avistando os quatro garotos que corriam em direção à casa. A medida que eles se aproximavam, começava-se a escutar seus gritos. Quando já estavam a alguns metros da grande casa, esses gritos tornaram-se mais audíveis:

Socorro! Há um touro atrás de nós! Socooorrooo!!!

O que eles estão dizendo, Rafael? - Perguntou Hella.

Não sei, parece que eles estão gritando que há algo atrás deles, eu não sei o que ... ei! Entendi! Eles estão dizendo que há um touro atrás deles! Hã!

Crianças, sempre inventando novas brincadeiras! – Disse Débora rindo e voltando-se para o outro lado.

Dona Débora, parece-me que eles não estão brincando! – Exclamou Ricardo, ao ver o bravio animal de pêlo pardo surgir de trás do belo monjolo que havia naquele sítio.

O quê??? – Voltou-se Débora, assustada.

Há um touro atrás deles, e como eles vêm em nossa direção, o touro com certeza o fará também! Eu acho melhor nós entrarmos! – Disse Ricardo.

Foi o maior alvoroço, para completar aquele tarde. Pois Fred, Samanta, Alex e Tiago, adentraram à varanda sem saber onde estavam pisando. Só deu tempo de fechar a porta, pois o touro já estava ali, quando a porta foi fechada e nesta passada a tranca, só se pode ouvir o forte soco dado sobre ela, no momento em que o touro a chifrou. Foi por Deus que o animal não arrombou a porta. A mesa do café, especialmente preparada por Karina e Carolina foi destruída pelo touro, que com os chifres tratou de virar tudo de pernas para o ar. Somente depois de uma hora, foi que o caseiro de nome Leôncio percebeu o que estava acontecendo. Este por sua vez, atraiu a atenção do touro para o seu lado, deixando livres, por fim, os novos moradores do sítio e seus ajudantes que ali estavam confinados. Para o primeiro dia naquele belo recanto, foi aquele razoavelmente movimentado.

 

Já passava das oito horas da noite, quando Ricardo, Rafael e Giancarlo se despediam, juntamente com Carolina e Karina:

Vocês têm certeza que não querem passar a noite aqui? – Insistiu Hella.

Não dona Hella, é melhor vocês descansarem, pois este foi um longo dia! – Disse Carolina.

O que nós podemos fazer no momento é só agradecer! Sem vocês nem metade do que fizemos teria sido feito! Muito obrigado, quando tivermos como agradecer, o faremos! A única coisa que posso adiantar é que vocês não precisam mais comprar ovos, nem verduras e nem carnes, pois eu e Hella fazemos questão de dar a vocês! Não é mesmo, Hella? - Perguntou Débora.

Mas é evidente, Débora!

Muito obrigado dona Débora e dona Hella! Mas realmente nós só fizemos isso porque gostamos muito de vocês! Não é pessoal? – Perguntou Ricardo.

Claro que sim, a senhora não nos precisa pagar nada! – Respondeu Giancarlo.

Exatamente fizemos tudo por amizade e consideração! – Disse Karina, para a surpresa de todos, pois ela ainda não havia se manifestado depois daquela explosão.

Vocês vão todos juntos? – Indagou Hella.

Sim, vamos todos como o Ricardo, pois viemos com ele! – Disse Rafael.

Karina, você está se sentindo bem? – Perguntou Débora.

Claro, estou melhor do que nunca!! – Disse Karina, dando dois passos e vindo ao chão. Todos ficaram olhando aturdidos.

Não se preocupem, nós a levaremos para casa e a colocaremos para dormir! É tudo o que ela precisa. - Tranqüilizou-os Carolina.

 

Nem bem tudo havia acontecido, todos haviam partido e a grande mansão já parecia um cemitério, um mausoléu erguido à impotência de deuses ocultos, subestimando-os. Lá agora só estavam Roselene e duas novas criadas as quais ela naquele mesmo dia contratara. Como as novas empregadas não tinham nenhuma intimidade com Roselene, esta sentia-se praticamente sozinha, já que o quarto das mesmas ficava no pavimento subterrâneo. As batidas do seu coração foram aceleradas por um ruído de passos no corredor. Roselene que se deixava relaxar na banheira de hidromassagem da sua suíte, levantou-se e foi verificar... os novos empregados haviam se recolhido logo cedo. Solidão... os passos que ela agora ouvia pareciam agora descer as infindas escadarias. Enrolada numa toalha, Roselene sem hesitar deixou a banheira e correu para lá, mas nada encontrou além de corredores e salões vazios. Apesar de sempre ter sido corajosa, algo naquela grande casa erma a assustava, talvez a sua própria consciência. Por vez ou outra ela parecia ouvir nitidamente vozes, ruídos, passos e ecos. As estatuetas, as armaduras e os bustos que decoravam os cantos e recantos daquela casa, pareciam sempre segui-la com seus olhos petrificados. Por um instante o seu olhar se deteve numa estátua de nu feminino em tamanho natural; Roselene cerrou fortemente os olhos não querendo acreditar quando denotou que uma lágrima se deixou escorrer por sobre aquela gélida face de mármore Carrara. Para onde quer que ela fosse havia olhos. Os quadros, estes sim pareciam querer transmitir... bradar um apelo provindo das entranhas daquelas antigas paredes. Isto tudo imprimia algo de horrível na consciência da jovem. Roselene estava sendo vampirizada pelo sentimento de culpa.

Rapidamente e aos tropeços ela retornou à sua suite, trocou de roupa e se evadiu daquela casa que estava por enlouquecê-la. Já no interior do seu Rolls Royce Cornish, ela dispensou a piteira e acendeu um cigarro, tragou-o profundamente e deglutiu todo o conteúdo de uma pequena garrafa de metal que continha whisky. Deu a ignição... Luzes de São Paulo...

 

Quando os ponteiros já se aproximavam da vigésima segunda hora, a campainha do apartamento de Paulo soou, após o porteiro ter-lhe alertado através do interfone de que Roselene estava subindo. Antes disso ele pediu que ela levasse a correspondência e os jornais que Paulo não recolhia já há alguns dias. Antes de sair do elevador Roselene jogou tudo no vão que havia entre este e o corredor. Todas aquelas cartas e jornais se perderam no vazio do negro poço. Quando Paulo abriu a porta foi surpreendido por um longo beijo por parte de Roselene:

- Eu sei que é um pouco tarde, mas eu me senti terrivelmente sozinha e amedrontada! - Roselene notou que Paulo havia se abandonado, pois estava com a barba por fazer e vestia uma espécie de pijama. Paulo tomou-a nos braços:

- Calma... agora você está aqui comigo e nada, nada de mal pode lhe atingir. Eu vou te proteger sempre... eu te amo... muito.

- Eu estava com medo, pois achei que você es...

- ...que eu estava te traindo! Isso não é verdade. Como eu poderia fazer uma coisa dessas com a pessoa a quem eu mais amo? - Paulo a beijou ardentemente.

- Mas você estava lá no...

- Pssst.. - Paulo surpreendeu Roselene com um novo beijo que se prolongou até que ambos perdessem o fôlego. - Roselene sentiu-se mais aliviada e notou que ele nada sabia sobre a morte de Luiz Heitor. Ela começou a excitar Paulo.

- Eu te quero agora! - Sussurrou o advogado.

- Agora... mas eu quero fantasiar... você sabe que eu gosto da luxúria. Vamos brincar de cabra-cega, até que nós nos achemos um ao outro. Quem tocar primeiro merece uma taça de Veuve Cliquot! - Propôs Roselene.

- Só isso? - Perguntou Paulo.

- Isso e o outro... totalmente submisso, com gosto de champagne na pele e de uvas frescas nos lábios. Pele... desnuda, eriçada e rija de prazer... as nossas peles. O meu e o teu corpo... - Roselene começou a passar a língua no pescoço de Paulo.

- Você está me enlouquecendo. - Disse ele, subindo com as mãos por entre as pernas de Roselene.

- É isso que eu quero, vamos enlouquecer! - Disse Roselene, retirando da bolsa um pequeno estojo e abrindo-o, passando em seguida cocaína nas narinas de Paulo, ao passo que passava o pó nas suas gengivas e também aspirava-o.

- O que é que você está fazendo? - Perguntou Paulo, desconcertado.

- Estou te amando! E também... vendando os teus olhos... e os meus... que tal apagarmos um pouco dessas luzes e nos separarmos? - Propôs Roselene, terminando de vendar Paulo e dele se afastando. Ela apagou a luz principal, acendendo somente o abajur.

- É você quem manda, pois vai ter de beber do champagne e ainda pagar por um castigo extra!

- Então vamos e veremos! - Disse Roselene com voz sedutora, vendando-se também. Já na penumbra ela espiou e percebeu que Paulo fugiu para a cozinha, assim sendo, ela sabia exatamente para onde ir. Paulo se manteve em silêncio mas isto de nada adiantou, pois Roselene, que trapaceara, além de encontrá-lo ainda assustou-o. Paulo gritou e Roselene dedilhou o seu tórax por entre as aberturas da camisa do pijama.

- Eu me rendo, cócegas não... por favor! - Paulo se encolheu e foi tentando se livrar daquela tortura até ficar sentado no chão.

- Cócegas sim... pois você agora está submisso a mim... lembra-se das regras?

- Lembro-me... - Disse Paulo aos risos, batendo com ambas as mãos no chão. - Mas não me maltrate tanto! - Implorou.

- Vamos por partes... eu pergunto e você entrega cada parte do seu corpo se não tiver a resposta... Será que você tem o champagne?

- Você sabe que sim... está na geladeira!

- Então estoure-a em nossa homenagem! - Roselene e Paulo foram para o quarto e abriram o champagne, servindo-o em taças de fino cristal Baccara. Ela se despiu por completo ante os olhos atônitos e famintos do advogado, depois a base de unhas, arrancou o pijama de Paulo e fê-lo deitar-se sobre a cama. Ela rasgou o resto do pijama e transformou-o em tiras de pano, com as quais amarrou os pulsos de Paulo nos canos de ferro da cabeceira e depois os seus tornozelos a cada pé da cama, deixando-o totalmente vulnerável. Ela vendou-o novamente e sentou-se ao seu lado.

- Você está me sodomizando... - Murmurou Paulo.

- E por que não? Afinal você é uma pessoa ideal para se fazê-lo! - Disse Roselene, em seguida mordendo o tórax de Paulo e fazendo-o gemer.

- Eu pensei que iam ser só cócegas... eu... - Roselene mordia cada centímetro de pele, pausando ela argumentou:

- Estou sendo má com você porque você foi mau comigo... você tem coisas a esconder de mim e deu a entender que o Luiz Heitor seria mais confiável do que eu! - Ela passava as unhas nas coxas de Paulo.

- Você está falando do testamento? - A pergunta foi entrecortada pelos gemidos de Paulo.

- E do que mais? Eu quero sabe o que havia nele... senão te mato de tanto prazer!! - Ela agora subia com as compridas unhas para o escroto de Paulo e provocava-o, deixando Paulo louco.

- Então nunca vou contar... quero morrer de tanto prazer nos teus braços!

- Tem certeza? - Perguntou Roselene, apertando com força o escroto de Paulo.

- Está bem!! Está bem... Eu sabia que você iria querer mesmo saber... eu estava desesperado quando escrevi e me senti confuso, achando que queria me suicidar! Eu estava me sentindo o mais infeliz dos homens por você ter me trocado pelo Luiz Heitor... e aquela carta testamento nada mais era que um desabafo, onde eu declarava todo o meu amor por você! Queria que você a lesse depois que eu estivesse morto!

- Melodramático e cinematográfico! - Disse Roselene, descendo com os dedos e indo até as solas dos pés de Paulo, provocando-as com as unhas. Paulo se contorceu e explodiu em gargalhadas. - Eu quero ver essa tal carta testamento!! - Ordenou ela, enquanto continuava com a tortura. Paulo mal podia falar:

- E-está na primeira gaveta da minha... áááh... escrivaninha, num humm... envelope amarelo lacrado!! Pare ou você me mata!! - Roselene deu um descanso para Paulo e foi até o escritório. Não demorou para que ela voltasse com o envelope e se aproximasse de Paulo, tirando-lhe a venda. Em pé ao lado da cama, ela rasgou o envelope deixando-o cair e ficando nas mãos só com o conteúdo. Ela sentou-se ao lado de Paulo na cama e passou a lê-lo.

 

Sua expressão foi adquirindo traços de decepção, ela continuou por mais alguns instantes e depois, seguido de um suspiro ela encarou Paulo, que permanecia deitado e com os olhos fechados:

- Isto está mais para uma carta de amor do que para um testamento... aqui você só diz que resolveu deixar esta vida porque eu não mais queria o seu amor! É... se você tivesse realmente feito uma besteira iria me deixar com peso na consciência para o resto da vida!

- Não só a você mas também ao Luiz Heitor, por isso eu fiz menção de entregar a carta para ele... o que foi, você parece decepcionada?

- Eu estou aliviada... você sabe, eu não agi certo com você, então achei que você poderia ter escrito um testamento contando toda a verdade sobre nós e tudo o que nós fizemos... ou melhor, que eu induzi você a fazer; para que depois você se matasse e depois a culpa viesse a recair toda sobre mim! - Roselene simulou um início de choro. Paulo a olhou ternamente:

- O amor vence qualquer barreira... eu morreria mas jamais faria uma coisa assim, pois fizemos tudo juntos e eu teria de assumir a culpa também! Eu queria mesmo dar a você a minha maior prova de amor... a morte! Para então ficar te esperando num lugar além onde poderíamos ficar juntos para sempre! - A voz de Paulo estava embargada.

- Eu jamais te perdoaria, pois a Terra é o lugar onde ficaremos juntos até o fim dos nossos dias! Outras vidas são coisas incertas.

- Agora você acredita no meu amor?

- Sempre acreditei...

- Então me beije... um beijo para calar a voz do mundo! - Pediu Paulo. Roselene se debruçou por sobre ele e o beijou sofregamente. Ela sentiu algo em sua boca e recuou, cuspindo na palma da mão aquele pequeno objeto intruso que proviera da boca de Paulo. Espantada Roselene deparou com um solitário em ouro branco cuja pedra de diamante ofuscava-lhe a visão, tal era o brilho.

- Nossa... há quanto tempo você estava com isto na boca? Como foi que você não engoliu e se afogou enquanto eu estava te...

- Quer casar comigo?

- Na Europa... numa igreja medieval!

           - No fim do mundo! Você pode desatar as minhas mãos? Ou se não quiser apenas verifique o que há dentro de uma delas!

- Já chega de covardias com você, não vou mais te judiar! - Disse Roselene, desamarrando as mãos de Paulo da cabeceira da cama e foi com um certo ar de confusão que ela abriu uma das mãos e encontrou dentro ela um par de alianças. Roselene ficou em silêncio por alguns instantes, olhando para Paulo que desvencilhava-se do resto das amarras.

- E então, você não vai dizer sim?

- C-claro, claro que sim... - Roselene passou a ajudar Paulo com as amaras. - ...sim, por toda a minha vida sim! E agora vamos brindar! - Disse ela, oferecendo para Paulo a taça de champagne. Os dois entrelaçaram-se as mãos, brindaram e beberam. Paulo colocou mais na sua taça e bebeu a cavalares goles. A mistura do champagne com a cocaína lhe produziu um efeito eufórico, pois seu organismo estava debilitado devido à negligência na alimentação durante vários dias. Paulo se levantou, tomou Roselene nos seus braços e começou a beijá-la selvagemente por todo o seu corpo desnudo. Ele a apalpava insanamente, violando todas as partes mais sensíveis, erógenas e secretas de Roselene, que gemia em sinal de aprovação. Paulo virou Roselene de costas para si e a imprensou contra a parede. Ela a penetrou por trás enquanto que com a mão abria caminho nos recônditos da sua sexualidade. Com a boca Paulo mordia vorazmente o pescoço de Roselene, deixando marcas na pele clara, macia e sensível, enquanto a outra mão friccionava e bolinava os seios daquela bela jovem, que deixava lágrimas escorrerem por sua face suada, tal era a intensidade do momento. Roselene mordia os seus lábios e lambia a parede enquanto gemia. Paulo parecia estar arrebentando-a por dentro, mas ela gostava do que sentia. Houve um espasmo seguido de um grito.

 

Paulo parou, recuando trôpego e levando a sua mão para a garganta e depois para o peito. Roselene se voltou para trás e ficou observando indiferente. Paulo veio ao chão enquanto era acometido por uma porção de espasmos. Com ambas as mãos no pescoço ele implorava para Roselene:

- Á-água... p-por favor...

- Só serviria ainda mais para espalhar o veneno meu amor. - Roselene se abaixou e sentou-se por sobre as pernas de Paulo, aproximando a sua boca da dele. - Fico imaginando... que gosto será que tem o ácido cianídrico, gosto de morte? E como é o gosto da morte, doce? Acre? Amargo? Quem sabe se eu te beijar... eu possa sentir um pouco. - Roselene começou a passar a sua língua nos lábios de Paulo enquanto este agonizava. Ela o olhou nos olhos. - Calma meu bem, não vai demorar muito... primeiro o veneno vai ao intestino, onde é absorvido sobretudo pelo sistema da veia porta. Dessa veia caminhará através do fígado, e depois, pela veia cava inferior, será levado ao coração direito, que o lançará nos pulmões, de onde segue para o coração esquerdo e aorta, que o encaminhará ao sistema capilar. Aí a substância tóxica existente no sangue agirá sobre os elementos celulares e destrui-los-á, acarretando na sua morte... - Roselene beijou Paulo longamente. - Acho que o nosso casamento será adiado, peça perdão aos anjos por mim, meu amor. - Uma lágrima deixou-se escorrer pela face de Roselene, que largou de Paulo deixando que o seu tórax batesse secamente no chão. Paulo já perdera os sentidos. Já em pé, Roselene foi até a garrafa de champagne e tomou-a em mãos, ingerindo desta uma grande quantidade pelo gargalo. Ela murmurou:

- Áh Paulinho, Paulinho... você deveria ter reparado melhor no fundo da sua taça.. - Ela passou a juntar as suas roupas e logo já ganhava o corredor e chamava pelo elevador. Estava ainda seminua e foi se vestindo aos poucos dentro do elevador. Roselene estava entorpecida e agia com movimentos lentos. Ela ainda estava com o vestido semi-aberto quando o elevador chegou ao térreo. Antes mesmo que ela abrisse a porta para sair, foi surpreendida:

 

- Boa noite! - Disse o jovem porteiro do turno da noite, ao puxar a porta. Roselene se assustou e ele mais ainda, ao ver o estado dela, que num minuto voltou a si e agiu com serenidade:

- Você é novo aqui, não?

- Comecei nesta semana, o outro porteiro do turno da meia-noite às seis dormia no serviço e eles o trocaram por mim. - O rapaz não tirava os olhos de Roselene, que já ia saindo pelo hall de entrada do edifício.

- Você... não acha que é um pouco jovem para este tipo de trabalho?

- Talvez, mas preciso do emprego para pagar a faculdade. A senhora está vindo do apartamento do senhor Paulo Rivoredo, não? - Roselene estacou a sentir um calafrio varar a sua espinha. Ela se voltou calmamente para o rapaz:

- Sim, algum problema?

- N-não, é que...

- É que eu ainda não me recompus... será que você pode ajudar com o zíper do meu vestido?

- C-claro, é... - Roselene o encarou:

- Que mãos macias... mãos de estudante mesmo. Você tem olhos profundos também, são verdes ou azuis?

- V-verdes, m-mas às vezes ficam azuis. - O porteiro estava se embaraçando com o zíper.

- E o que será que você acha que eu e o doutor Paulo fazemos, hein?

- Não tenho que achar nada e...

- Quem sabe você gostaria de fazer o mesmo. - Roselene agarrou o rapaz por entre as pernas e apertou com força. Ele esboçou uma careta, num misto de dor ou prazer. Roselene se livrou das suas mãos e seguiu para o elevador novamente. - Você vem?

Não demorou para que ambos estivessem no interior do elevador que rumava para o terraço do edifício ao comando de Roselene. Ambos eram um emaranhado de braços e pernas. O porteiro segurava Roselene presa a sua cintura enquanto a penetrava avidamente. Devido ao prazer e à dor, ela cravou as suas unhas na jaqueta do rapaz que também se curvava para beijar e morder o seu colo. O elevador chegou ao último andar. Roselene empurrou o porteiro com vigor e saiu, sendo seguida por ele, que tentava agarrá-la. Roselene voltou para o elevador e colocou dentro dele só meio corpo, pressionando um botão.

- O que você está fazendo? - Perguntou o porteiro.

- Mandando o elevador lá para baixo... não acha que eu quero que alguém nos perturbe, acha? - Ela encostou a porta esperando o elevador se fechar e descer, logo que isto aconteceu, ela que não havia deixado a porta tocar na trava, a abriu violentamente, tendo a sua frente somente o buraco do poço do elevador. Estava muito escuro.

- Por que isso? - Perguntou o jovem porteiro.

- Sempre tive a curiosidade... por que você não tira a roupa? - Perguntou ela, voltando-se para ele, ainda segurando a porta.

- Por quê? Você gosta de ver homens tirando a roupa?

- Adoro... e bem devagar!

- Uma espécie de show?

- Digamos que a conquista desse prêmio! - Disse Roselene, baixando o seu decote e deixando os seios a mostra. Sem perder tempo, o porteiro passou a se livrar das vestes, começando pela jaqueta e indo para a camisa.

- Assim está bom? - Perguntou ele, com um olhar jocoso.

- Ótimo... isso... - Roselene levou a sua mão até o meio das pernas e começou a se massagear. - Acaricie-se também, passe as mãos no seu peito forte... boline os seus próprios mamilos... sinta-se! - Ordenou ela. O porteiro obedeceu.

- Você quer que eu massageie só o meu peito?

- A sua barriga também e abaixo dela. - O porteiro obedeceu e logo já abaixava as calças.

- É isso que você quer? - Perguntou ele, passando a mão por sobre o volume sob a cueca.

- Eu quero tudo... tire os sapatos e as meias, quero você como veio ao mundo. - Roselene tirou a sua mão do meio das suas pernas e passou a remexer na sua bolsa, enquanto o porteiro se livrava dos sapatos, meias e depois das calças.

- Pronto. - Disse ele, voltando os olhos para ela. - Estou à sua disposição!

- Falta o principal... a cueca! - Ele obedeceu e liberou a sua virilidade excitada ante os olhos de Roselene. - Vem, quero senti-lo! - Pediu ela.

- Sou todo seu... faça de mim o que quiser! - Disse ele, se aproximando de Roselene. Esta, ainda segurando a porta do elevador com as costas, tirou a mão do interior da sua bolsa.

 

- Você é tão macio... - Ela o beijou. - Feche os olhos, mantenha os braços suspensos e apenas sinta. - Roselene começou a descer com a boca, lambendo, sugando e mordendo cada centímetro de pele. Passando pelo pescoço, pelas axilas, pelo peito, pelo abdômen. Ela introduziu a sua língua no umbigo do porteiro, que gemia com os olhos fechados e a cabeça jogada para trás. Ali ela se deteve por alguns segundos, sempre segurando a porta do elevador com as costas. Com uma das mãos ela depositou os seus pertences no chão e com a outra ela abriu caminho por entre as nádegas do porteiro, introduzindo o seu dedo indicador no ânus do mesmo. Ele gemeu mais forte e voltou os olhos escancarados para baixo. Antes mesmo que ele falasse, Roselene subiu rapidamente com a sua língua e a introduziu na boca do porteiro, que segundos após pode sentir um objeto frio tocar o seu ventre. - Será que você tem medo do escuro? - Perguntou Roselene, rapidamente puxando-o e fazendo-o ficar de costas para a porta do elevador. Assustado ele detectou o revolver encostado na região do seu estômago.

- Ei, o que...

- Pssst... ou você vai acordar os moradores. - Antes que ele apresentasse qualquer reação, Roselene beijou-o novamente e fez com que ele recuasse uns três passos. - Com este corpo atraente você dará um bom repasto para os vermes. - Roselene o empurrou no poço negro do elevador. O grito apavorado ecoou pelos andares enquanto Roselene levou novamente a mão para o meio das suas pernas e lá a friccionou. Poucos segundos mais tarde houve um baque abafado nas profundezas daquele buraco. Roselene se contorceu em meio a um espasmo orgástico. - Você deveria ter se segurado nas cordas, meu amor. - Balbuciou ofegante. Ela tirou novamente as suas roupas e vestiu as do porteiro. Roselene chamou o elevador, que na sua parte superior externa trazia o cadáver do porteiro. Logo ela deixava o prédio.

 

                 Parcos raios de sol que abriam caminho por entre as cinzentas nuvens, invadiam a sala do apartamento de Paulo através das frestas da cortina da sala. A porta principal foi aberta e Osvaldina, que trazia consigo a chave, entrou cantando como de costume. Ela foi logo abrindo as cortinas e as janelas. Em seguida foi até a área de serviço onde trocou de roupa. Logo, aquela mulher de pele mulata, cabelos grisalhos, um pouco obesa e usando óculos de grossas lentes ligou o rádio numa estação AM e começou a recolher as roupas espalhadas pela sala:

                 - “Áh, essi seu Paulu”, cada dia “tá mais baguncero”... “Será que eli miorô e foi trabaiá hoji”? - Murmurou ela, voltando os olhos cobertos pelas grossas lentes de grau para a porta do quarto de Paulo, encontrando-a aberta. Ela se dirigiu para lá no intuito de colocar as roupas de Paulo no guarda-roupa, certamente pensando que ele já tinha saído, afinal já passava das nove horas. - “Ué, saiu cedo hoji”... - Murmurou novamente, ao passou que entrava no quarto. Osvaldina deixou as roupas virem ao chão e estacou estarrecida. - “Santu Deus Credimcruis, seu Paulu”!!! - Osvaldina deparou com Paulo caído no chão, nu e com uma espuma amarelada saindo pela boca. Em estado de choque ela se aproximou em passos lentos. Já parada diante do corpo de Paulo ela começou a chorar convulsivamente ao reparar nos sinais de queimaduras internas em torno da boca do rapaz e também na região do seu esôfago.

                 - “Áh, seu Paulu, o que é que o sinhô foi aprontá dessa veiz? Qué que eu faço agora? - Em meio ao prato, Osvaldina sentiu algo agarrar no seu pé.

        

               - “Ai Jesuis Maria Jusé!!!” - Berrou ela, pulando para trás e logo deparando com a mão de Paulo agarrando-lhe no pé. Levou alguns instantes para Osvaldina perceber que aquilo ainda não era um morto-vivo, mas Paulo que ainda estava vivo. - “U sinhô tá vivo??? Ai meu Deus do céu, eu vô ligá pr’hospitá!!! - Paulo continuava segurando o pé de Osvaldina e tentava dizer algo. Com dificuldade ele puxou a barra da saia dela. Osvaldina se abaixou e num ímpeto maternal segurou a cabeça de Paulo. Ela continuava a chorar descontroladamente e teve de prender o choro para escutar Paulo:

                 - L-ligue para o meu escritório e avise os m-meus... - Paulo perdeu os sentidos, mas continuou respirando. Mais do que rápido Osvaldina se levantou, cobriu o rapaz com um edredon e foi até o telefone. Nervosa, discou o único número de hospital que sabia, o do Hospital das Clínicas, onde esteve muitas vezes para internar o seu marido que sofreu de câncer até a morte. Depois de alguma dificuldade em explicar o que estava acontecendo ela conseguiu se fazer entender. Osvaldina era semi-analfabeta e tinha o número do escritório de Paulo marcado por uma cor, numa lista de números de telefone necessários que ele havia deixado para ela. Novamente ela se atrapalhou toda em contar o ocorrido, que ela não sabia ao certo, para os sócios de Paulo. Já um pouco mais calma por ter conseguido chamar uma ambulância e por ter avisado os sócios de Paulo, Osvaldina voltou para o quarto para verificar se Paulo ainda estava respirando. Ao constatar que sim, ela apanhou um travesseiro para colocar embaixo da cabeça do rapaz. Foi aí que ela notou a garrafa de champagne e as taças, além de toda a bagunça no quarto. Ela se sentou no chão e delicadamente pousou a cabeça de Paulo no seu colo, enquanto balbuciava palavras entrecortadas pelo pranto:

                 - “U qui foi que fizéro cô sinhô?? O sinhô sabi que eu li quero como um fío... Deus há de sê bom e li sarvá!!” - A ambulância não tardou em chegar e os enfermeiros subiram acompanhados pelo porteiro. Os sócios de Paulo chegaram em seguida e pediram para que Osvaldina não tocasse em nada, chamando em seguida a polícia. Mais do que rapidamente Osvaldina preparou um pijama para Paulo levar, ele voltou a acordar e não saiu do apartamento antes que Osvaldina e os seus sócios lhe entregassem um blazer de couro que estava guardada numa mala embaixo da cama. Ninguém entendeu o porque daquele desejo, mas ele foi prontamente atendido e Paulo conduzido às pressas para o hospital.

 

                 Depois de mais um dia de arrumações no Sítio das Figueiras, os componentes da família Villas Bhoas estavam reunidos diante da mesa para jantar. Naquela noite eles tinham como convidados Rafael e Ricardo, que passariam a noite lá. Ambos vieram para expor algumas medidas que tomariam nas lojas antes do vencimento dos seus avisos prévios, mas a discussão tomava outros rumos:

                 - Galinha de novo, tia Hella?

                 - Há mais de vinte e quatro horas que não comemos outra coisa a não ser galinha! - Reclamou Claudia.

                 - É por isso que a minha pele está ficando áspera e escamosa... é o couro de galinha que está tomando o lugar da minha cútis! - Observou Lisiane.

                 - Mais um pouco e vamos criar penas de tanto comer esse bicho. - Disse Márcia, ao acordar de uma cochilada que quase a fez cair com o rosto sobre o prato.

                 - É bom vocês se contentarem com o que temos, pois os frangos são os mais fáceis de matar de preparar, pois acredito que mesmo que eu quisesse fazer um outro tipo de carne, ninguém se habilitaria a matar um porco ou um boi! - Redargüiu Hella.

                 - É só ordenar para que o caseiro o faça! - Disse Márcia com empáfia.

                 - Pois então a senhorita levanta amanhã bem cedo, vai falar com o caseiro e se propõe também a ajudá-lo, já que para se “carnear” um boi ou um porco uma só pessoa não basta. Além do mais o processo de limpeza é muito trabalhoso o animal deve ser morto um dia antes para que possa dormir mergulhado no tempero.

                 - Ai, tá bom tia, não precisa fazer todo esse drama... depois eu decido o que fazer! - Disse Márcia, esquivando-se da possível obrigação.

                 - Eu já consigo imaginar, o caseiro tentando matar o pobre do boi e Márcia usando o traseiro do animal para uma nova soneca. - Ironizou Fred.

                 - Isso se ela não for parar na cama do próprio caseiro e acabar fazendo um ménage a trois com o caseiro e com o boi! - Complementou Claudia.

                 - Bando de complexados, vocês... - Márcia foi interrompida por Débora.

                 - Basta!! Por favor, não vamos trasformar mais esse jantar e briga... já chega pelo que temos passado!

                 - Isso mesmo, é uma hora em que temos de nos manter unidos! Agora, vamos mudar de assunto! - Propôs Hella.

                 - Pois mudando de “orgasmo para menopausa”, eu quero dizer que na noite passada quase fui devorada viva por aqueles malditos pernilongos! - Manifestou-se Lisiane. - Isso fora a orquestra em “si menor” que tive de ouvir a noite toda! Eu bem que tentei dialogar com eles, mas eles não me deram ouvidos e se aproveitaram das minhas partes pudendas! - Disse a moça, chupando um osso de galinha.

                 - Borrife um pouco de inseticida, oras... ou então use daqueles de colocar na tomada! - Sugeriu Márcia.

                 - E você quer que eu morra junto com eles? Sabem de uma coisa? Vou comer só mais um pedacinho desta galinha, que está uma delícia e vou para o meu quarto, pois faço questão de matar um a um! - Disse Lisiane.

                 - Cuidado para não ter pesadelos com galinhas, ou melhor... galos! - Provocou Claudia.

                 - A “bestializada” vai passar a noite toda matando pernilongos... faça o favor de não fazer muito barulho pois eu tenho o sono leve! - Alertou Márcia.

                 - É? E eu sou um babuíno macho no cio!

                 - Pois você sabe que até que combina! - Interveio Fred.

                 - Durmam com o diabo! - Disse Lisiane, levantando-se e mostrando a língua para Claudia, Márcia e Fred.

                 - Olhe os modos, menina! - Advertiu Débora.

                 Logo mais todos puderam ouvir um estardalhaço de gritos, conversas estranhas, gargalhadas e objetos sendo atirados contra as paredes, todos provindos do quarto de Lisiane, que parecia se divertir em matar os pernilongos.

 

As horas passaram e logo todos já preparavam para dormir. Quando Lisiane saía do banheiro em direção ao seu quarto, após ter realizado nele uma operação de extermínio de pernilongos, ela que caminhava na penumbra do corredor, sentiu um calafrio varar a sua espinha quando uma mão pousou por sobre o seu ombro. Aquilo a fez gelar. Mas logo o medo virou raiva, pois ela sem hesitar voltou-se para o dono daquele membro superior e constatou que era Márcia:

Mas o que, que tinha que me ter assustado desse jeito! Parece uma visagem “lobisomando” pela casa!

Desculpe, eu não sabia que você era tão medrosa assim. Mas resolvi interceptá-la agora para lhe comunicar que eu estou disposta a impedir que Roselene continue com essa palhaçada! E... eu andei pensando que eu você e Claudia poderíamos nos unir, sem que ninguém soubesse de nada, é claro! Claudia me disse que já têm em mente algumas idéias de como podemos agir!

Ééh! Assim é que se fala prima! Nós sempre nos demos bem, quando a sua cabecinha tem esses lapsos de lucidez! Falaremos melhor a respeito disso amanhã, durante uma caminhada pelo campo, afinal a única opção que temos para impedir que Roselene continue com esse plano, é raptá-la e chantageá-la! Mesmo assim é bom saber que você está disposta a agir!

Obrigada. E não se esqueça de tomar cuidado, pois hoje temos hóspedes! Imagine só se ao invés de mim fosse o Ricardo que te pegasse por trás? Só que eu tenho certeza que o seu ombro seria o último lugar em que ele colocaria a mão!

Despudorada! Tome cuidado para que o seu marionete, chamado Rafael, não a impeça de tomar qualquer atitude em relação àquela “célula cancerosa”, por motivos ... digamos... maternais.

Eu sei me cuidar amoreco! Pelo menos eu ainda não fui vista rolando com um homem no chão do meu escritório!

Aquela “maria-mijona” da Claudia tinha que ter contado...

Não querida, foi a dona Cremozeide, a faxineira do depósito que me contou. Você sabe... coisas assim correm de boca em boca! E agora ciao! Durma com os anjinhos, todos com carinhas de “Ricardinhos!”

Tomara que você sonhe com o capeta! – Disse Lisiane, entrando no seu quarto e batendo a porta.

Aproveitando aquele momento de solitude, Lisiane ainda brava, retirou seu pegnoir e postou-se em frente ao espelho. Gradativamente foi se acalmando, pois a sua imagem refletida lhe agradava. Estava só com uma curta e quase transparente camisola. Ficava satisfeita e orgulhosa a medida que admirava suas pernas bem torneadas, seu belo corpo e seus protuberantes e bem moldados seios. Seus longos e dourados cabelos roçavam os ombros nus, a medida que ela acariciava seu corpo. Seus olhos azuis fecharam-se levando-a ao mundo da imaginação. Podia ver Ricardo entrando pela porta, aproximando-se dela e depois de um demorado beijo no pescoço, retirando-lhe a camisola. Sentia arrepios ao imaginar o seu toque, estava inebriada pelo perfume do amor, sentia todo seu ser vibrar... quando em meio as suas divagações com um gesto descuidado e inconsciente, acabou por derrubar um dos porta-jóias de sua penteadeira. Quando deu por si, viu-se completamente nua frente ao espelho:

Lisiane! Mas que pouca vergonha! – Advertiu a si mesma em voz alta. – Eu jamais fui de fazer essas coisas... é melhor eu dormir, o cansaço leva as pessoas à loucura! – Murmurou ela, vestindo-se e deitando-se. Em seguida apagou o abajur e foi abraçada pelo sono.

Minutos mais tarde, um estrondo na porta da frente da casa ressoou na mansão. Lisiane acordou sobressaltada, quando ouviu um alarido no pavimento inferior. Parecia que todos estavam em pânico. Ela rapidamente tomou seu pegnoir e ganhou o corredor. Ao chegar na beira da escada encontrou com Claudia, que a alertou:

Você não devia ter saído do seu quarto, volte para lá e proteja-se!

 

M-mas, proteger-me do quê?

Das galinhas, nós fomos invadidos pelo império dos galináceos! - Explicou Claudia, correndo em seguida para o seu quarto. Lisiane desceu alguns degraus e pode ver a sala de estar invadida por uma porção de frangos gigantes, todos munidos de arpões e escudos, com o qual rendiam as vítimas, ou qualquer um que os tentasse enfrentar.

Não, isso só pode ser um sonho... galinhas gigantes! – Questionava-se Lisiane, interiormente. Logo acabou por irritar-se com toda aquela confusão na sala e desceu as escadas tentando intervir:

Mas escutem aqui! Vocês estão pensando que estão na casa da mãe Joana? Pois estão muito enganados! Fora, fora daqui, seus piolhentos! – Berrou Lisiane, em meio a contenda.

Capturem aquela humana! – Gritou uma espécie de garnisé com penas brancas, dirigindo-se para Lisiane. Prontamente mais três iguais ao primeiro trataram de render Lisiane. Estes a seguraram fortemente entre suas asas, quando o comandante daquela operação ordenou que eles a levassem até a presença de sua rainha.

Sendo assim, Lisiane foi conduzida para fora de casa, foi arrastada até o portão do galinheiro do sítio, o qual, com um toque de trombetas abriu-se, como que se houvesse um mecanismo para fazê-lo. Ao transpor o portão, Lisiane conheceu um lado do galinheiro que jamais havia visto. Uma espécie de cidade. Ali os poleiros e ninhos já eram uma coisa ultrapassada. No lugar destes havia construções ovais, que com certeza serviam de habitação para aquele estranho povo.

Lisiane estava estagnada com tudo aquilo, tanto que nem percebeu que no final de uma via daquela bizarra cidade, um grande portal se abriu dando passagem a ela e aos seus capturadores. Pois tratava-se do portal de acesso ao palácio real, onde os traços marcantes eram o luxo e a extravagância.

Lisiane retomou a perfeita consciência dos acontecimentos e logo deduziu onde ela deveria estar. A medida que as coisas iam se aclarando, ela pode perceber que encontrava-se em um grande salão e podia divisar que no final daquele tapete vermelho sobre o qual se postava, havia um ninho dourado com a rainha sentada sobre este. Essa rainha chamou muito a atenção de Lisiane, pois para ela a rainha não passava de uma Roselene coberta de penas e sentada sobre o ninho, agindo despoticamente. Foi em meio a essa observação de Lisiane, que sua majestade interveio pela primeira vez:

Ajoelhem-se perante a rainha! – Disse com voz autoritária, alongando e contraindo o seu pescoço de forma bizarra, tal qual uma serpente armando o bote. Sendo que a ordem foi acatada por todos naquele salão, exceto por Lisiane:

Eu não vou me ajoelhar coisa alguma!

Ninguém jamais ousou desobedecer a rainha, faça logo o que ela disse, ou poderá ter sérios problemas! – Disse uma franga carijó que estava ao lado de Lisiane.

Pois eu ouso desobedecer! Imagine seu eu vou me ajoelhar para uma galinha! Pois sim!

Alguém pode me dizer de onde esse espécime foi trazido? – Perguntou a rainha, armando as suas asas em forma de leques.

Ela é uma humana, majestade. Nós achamos que talvez ela nos fosse útil cientificamente. – Explicou o frango capturador.

Espécime! Eu? Como ousam a me...

Cale-se! Se eu fosse você manteria o bico fechado! Eu não tolero rebeldes... tipo esquisito você, hein! – Observou a rainha examinando melhor Lisiane, munida de um pince-nez. Seu pescoço se movia incessantemente, formando curvilíneos desenhos.

E então majestade? O que fazemos com ela? – Perguntou o frango, que após uma melhor olhada de Lisiane fê-la notar sua semelhança com o primo Fred.

Chamem a conselheira, não estou em condições de tomar decisões hoje! – Ordenou a rainha, eriçando a sua crista na forma de um serrote.

A conselheira foi chamada e ao adentrar no salão, esta de cara chamou a atenção de Lisiane. Pois era uma galinha branca como todas as outras, mas sobre a cabeça usava uma espécie de cabeleira dourada e tinha as extremidades do bico pintadas de vermelho.

Às suas ordens, majestade! – Ao ouvir a voz sensual da galinha Lisiane não teve dúvidas:

Claudia, é você? - Disparou Lisiane.

Silêncio, animal estranho! - Ordenou a rainha.

Diga-me, conselheira, se devemos ou não nos livrar desse espécime? - Perguntou a rainha, em seguida estendendo a sua língua métrica e afiada.

Hum... – Voltou-se a galinha para Lisiane em meio a uma pose, observando-a por alguns segundos. – Qual é a raça deste animal? A que ninho pertence?

Segundo os capturadores, é uma fêmea humana, capturada no interior de seu próprio habitat. – Explicou a rainha.

Animais são vocês! Eu juro que quando eu voltar para casa eu mandarei que incinerem esse maldito galinheiro! E com vocês junto! – Bradou Lisiane.

Exemplar com comportamento selvagem, não! Certamente é a falta de cruzamentos regulares com machos da sua espécie. – Concluiu a galinha conselheira, examinando Lisiane, a qual estava a ponto de explodir.

E então, o que me diz, conselheira? – Perguntou a rainha, deixando que uma codorna subalterna lhe lixasse as unhas dos pés em forma de garras.

Eu creio que ainda não temos está espécie no zoológico municipal. Além do mais, antes de servir como atração ao público, ela seria bastante útil no campo das ciências. Não acredito que tenhamos fontes de estudos sobre esse tipo de criatura. O Ministério das Ciências do Império Galináceo ficará agradecido por estes bravios frangos terem realizado tal descoberta. – Disse a conselheira, olhando para Lisiane e soprando-lhe um beijo.

Na minha opinião, este animal exótico não terá validade alguma e devíamos deixá-la ir. Mas como não estou em condições de tomar decisões hoje detenham-na. E removam-na daqui o quanto antes. - Ordenou a rainha, ao passo que empreendia uma porção de rápidos botes para devorar os grãos de milho que lhe eram lançados ao ar pela codorna subalterna.

Queira me acompanhar! – Disse a conselheira, piscando maliciosamente para Lisiane.

Escute aqui, por acaso o teu nome não é Claudia? – Perguntou Lisiane.

Para os íntimos talvez. Mas como você sabe “arroz doce”?

Problema meu. - Respondeu Lisiane, incrédula.

Agora chega de perguntas, vamos, acompanhe-me “algodão doce”!

Eu não vou a lugar nenhum com você! Imaginem só, eu recebendo ordens de uma galinha... ainda mais uma galinha como você! Ordinária!

Uau! Quanta rebeldia! Você está falando com a maior mente do Império Galináceo!

Áh é! Mente pervertida, você quer dizer? Você sempre é a maior em tudo! Primeiro a maior sem-vergonha, agora a celebridade do galinheiro! De qualquer modo, tem tudo a ver...

E além de tudo isso sou um dos rostos mais belos! – Disse agora a conselheira Claudia, agitando as madeixas louras.

Háháháhá!! Não me faça rir!

Se você quiser saber, “cajuzinho”, eu já fui Miss Transilvânia! É claro que eu tive que eliminar as outras concorrentes, mas mesmo assim eu fiquei com o título:

Não, só pode ser um sonho meu! Uma galinha ser miss Transilvânia... por acaso lá não existem galos vampiros não?

Não seja engraçadinha, você pode rir, mas o meu cargo de conselheira espelha o meu talento, sou bela, inteligente e uma grande poedeira, uma genuína Leghorn! Agora vamos!

Não vou!

Parem com essa discussão imbecil, vocês me deixam com dor na crista! Guardas removam a alienígena para onde a conselheira mandar. – Ordenou a rainha.

Mas tirem essas asas de mim, vocês não sabem com quem estão mexendo, esperem só até eu... blá... blá... blá... - E lá foi Lisiane, passando por corredores e mais corredores, sendo que os guardas que a levavam, seguiam os passos da conselheira. Eles acabaram por sair do palácio e depois entraram em outro prédio. Lisiane foi levada até uma espécie de laboratório e ali deixada sob os olhares atentos das galinhas que ali trabalhavam. A conselheira explicou a todos do que se tratava.

E então conselheira, que experiência devemos fazer com ela inicialmente? – Perguntou uma galinha amarela vestida de branco, muito semelhante com sua prima Márcia.

Eu proponho que façamos uma experiência genética! Uma inseminação por parte de um dos nossos!

O quê?!?! Eu enseminada, servindo de cobaia?! Nunca!!! – Berrou Lisiane, tentando sair dali imediatamente, mas sendo logo detida pelos galos da segurança. Com isto a pobre moça foi acometida por um súbito ataque histerismo, debatendo-se, berrando, mordendo e arranhando os seguranças!

Com a cobaia nesse estado não poderemos trabalhar! Amarrem-na e sedem-na, para que possamos prosseguir! – Disse aquela galinha de branco. Alguns segundos depois de um líquido ter sido passado embaixo de suas narinas, Lisiane não viu mais nada.

Quando voltou a si, pensou que ia acordar em seu quarto, mas foi decepcionada, pois se encontrava sobre um aconchegante ninho cheio de palha, ainda tinha os braços atados, mas sentia um grande relaxamento muscular, estava com o corpo todo amolecido e o pior, estava nua perante o olhar de todos aqueles cientistas galiformes. Quando a galinha amarela vestida de branco deu mais uma de suas ordens:

Façam entrar o galo enseminador!

De uma espécie de porta ao lado surgiu um enorme galo, de penas vermelhas, sendo que estas eram grandes e azuladas na cauda. Lisiane fez um esforço e vagarosamente moveu a cabeça para ver de quem se tratava, a visão ainda estava um tanto embaralhada, mas ao poder ver com mais nitidez a entidade que adentrou ao recinto, Lisiane sentiu-se mal como nunca, pois o galo era um Ricardo com bico, crista e penas.

Façam com que a experiência entre em andamento! – Ordenou a conselheira, que também estava presente. O galo começou a se aproximar a medida que Lisiane entrava em pânico, pois não conseguia nem ao menos gritar. Fazia esforços sobre-humanos para conseguir mover um músculo. Tentava gritar, e o galo já estava se acocando por sobre ela. Foi quando uma energia interior muito grande permitiu que ela, com um brusco movimento se movesse e depois gritasse:

Não!! Eu não quero ser enseminada!!! – Gritou rolando por sobre a cama e caindo no chão, sendo que os raios solares que entravam pela janela batiam contra o seu rosto. – Ufa! Pensei que jamais acabaria! - Seus olhos procuraram logo pelo relógio. - Oito e dez da manhã! Essa droga de pesadelo durou a noite inteira! – Ao se levantar, Lisiane percebeu que estava novamente nua. – Mas o que está acontecendo comigo?! Eu não posso ficar inconsciente que já vou tirando a roupa? Deus me livre se eu tiver que dividir o quarto com alguém... – Em meio a esse pensamento, Lisiane foi interrompida com batidas na porta. Era Hella:

Lisiane querida, você está bem? Eu tive a impressão que você gritou, não?

Não tia, deve ter sido o cachorro!

O café está na mesa!

Está bem, em quinze minutos eu me farei presente!

Logo Lisiane já descia as escadas, já estavam todos à mesa.

Perdeu a hora hoje, querida? – Perguntou Débora.

É, eu não tive uma noite muito boa! Só pesadelos.

Por acaso alguém queria inseminar você num desses pesadelos? – Perguntou Claudia, indiscretamente.

O quê?

Foi isso que eu ouvi você gritando, quando passava pela porta do sue quarto, a caminho da escada. Você gritou: “Não, eu não quero ser enseminada”!

Claudinha, querida, quem dormiu mal fui eu, mas quem não está muito lúcida hoje é você! Eu acho que você tem tanta vontade que alguém faça isso com você, que fica ouvindo coisas... o que temos para o café hoje? – Perguntou Lisiane, interrompendo a resposta que Claudia daria.

Ora, hoje temos ovos, um patê de galinha delicioso, que eu mesma fiz e eu também fritei uns petiscozinhos de galinha que o Tiaguinho me fez comprar no mercado. Como é mesmo o nome, querido? – Perguntou Hella.

“Franguitos Divertidos”, tia!

Lisiane não sabia se virava a mesa ou se saia dela para se jogar no poço.

Então querida, o que vai querer?

Salsas, acabo de iniciar um novo regime!

Mas no café da manhã?

Sim.

Vai querer café ou suco de laranja?

Somente salsas. - Logo Lisiane devorava animalescamente tufos e mais tufos de salsas, segundo ela emagrecedoras.

 

Márcia! Você já matou a galinha?? – Gritou Hella, para Márcia que estava nos fundos da casa.

Ai tia! É melhor a senhora fazer isso, eu bem que tentei, mas a pobrezinha me olhou de um jeito que me cortou o coração...

Mas minha filha, o almoço já está quase todo pronto, só falta a galinha!

Por que ao invés de galinha, não fazemos camarão ao molho pardo?

Simplesmente porque não temos camarão, agora não somos mais pessoas que comem camarão todos os dias! Rápido que o vinho já está fervendo!

Bem, Deus é testemunha! Os assassinos são os que vão comer a carne da vítima! Eu estou apenas cumprindo ordens! Adeus querida galinha! – Disse Márcia, tomando o pobre galiforme pelo pescoço, segurando-o firmemente e impulsionando o corpo da galinha para que este desse um giro de 360º graus. A pobre ave se debateu, em meio a bruscos movimentos pelo chão de terra, o que deixou Márcia apavorada, sendo que a mesma abandonou a moribunda galinácea em meio a histéricos gritos, correndo em direção à cozinha.

Pronto! Eu já matei aquele ser! Sou uma carrasca!

Pois então agora, pegue esta chaleira de água quente, coloque a água numa bacia e depene-a! E não se esqueça que depois de depenada você deve sapecar o corpo da galinha para que não restem penas ou penugens! – Disse Hella.

Eu acho que a senhora me detesta tia Hella!

 

Enquanto Márcia depenava a galinha, ela foi surpreendida por dois rapazes de boa aparência que chamaram a sua atenção:

- Bom dia moça! É aqui que mora a senhora Débora Bordon Villas Bhoas? - Gritou o primeiro, de cabelos castanho claros e olhos verdes, próximo ao portão do pátio. Márcia se assustou com a interpelação e respondeu irônica:

- Não, aqui é somente uma das casas de campo dela!

- Mas ela está aí? - Perguntou o segundo, de corpo esguio, pele negra e cabelos negros.

- Sim, está! - Respondeu Márcia, com as mãos na cintura.

- Então chame-a, por favor! - Pediu o primeiro.

- Como chame-a? Chame-a você! - Protestou a moça indignada.

- Essas empregadas de hoje em dia... – Murmurou o rapaz que falava com Márcia para o negro, que sorriu maliciosamente.

- Empregada uma ova!!! Eu sou a sobrinha e uma das herdeiras dela! Márcia Bordon Villas Bhoas!! - Enfatizou Márcia.

- É difícil encontrar uma herdeira que saiba depenar galinhas! - Alegou o rapaz negro, em meio a risos.

- IRRN!... É.. hãhã.. cóf... este é o meu hobbie favorito, eu adoro matar galinhas e esquartejá-las!

- Sádica, heim?

- Eu adoro sangue, adoro ver a expressão de morte dos seres vivos quando eu os mato, através de mortes dolorosas! – Vociferou Márcia.

 

Logo os rapazes já adentravam na bela casa de construção rústica onde logo conseguiram falar com Débora, que de costume, sempre atende a todos muito gentilmente:

Em que posso ajudá-los, rapazes?

Sou Hélcio Medeiros e este é Norton Teixeira. Nós estamos aqui em nome do advogado de Roselene Bordon Villas Bhoas, que acreditamos ser a sua sobrinha! Mantemos com Paulo Rivoredo uma sociedade em um escritório de advocacia. - Ambos estenderam a mão para cumprimentar Débora que os correspondeu sorridente.

Sim, eu já ouvi falar muito dele, embora creio não conhecê-lo pessoalmente. Do que se trata?

Bem, tudo o que sabemos é que a empregada dele o encontrou muito mal no apartamento ontem pela manhã e chamou uma ambulância. No hospital foi apontado envenenamento por ácido cianídrico.

Envenenamento? Mas quem faria isso?

Acredita-se ter sido uma tentativa de suicídio. Uma tentativa frustrada, pois agora ele encontra-se em um estado de saúde muito delicado e nos poucos momentos de lucidez que tem, ele pede para falar com a senhora e sua cunhada.

Será que tem a ver com Roselene?

Sinceramente nós não sabemos, pois fomos avisados pela empregada dele e ao chegarmos no hospital mal pudemos ouvi-lo pronunciar o seu pedido, tal é o estado em que se encontra. Sentimos muito por não sermos mais precisos.

Óh, não se preocupem! Eu acho que ele deve ter algo muito importante para nos dizer. Creio que logo depois do almoço poderemos estar no Hospital das Clínicas! Pobre rapaz...

Muito obrigado dona Débora! Nós sabíamos que poderíamos contar com a sua compreensão! Bem, acho que era só isso e nós já vamos indo. – Disse Norton.

Não há de que... - Disse Débora, pensativa. Os olhos que pareciam perdidos no nada subitamente se voltaram para os dois: Obrigado pelo empenho em virem até aqui, e eu só posso agradece-los pedindo para que almocem aqui! Eu faço questão!

Não dona Débora, isso não é justo, além do mais não fica bem pois nós nem ao menos conhecemos a sua família, e...

Por favor, vocês são meus convidados, meus e de Hella! Não é Hella? – Gritou Débora, em direção à cozinha. Logo uma cabeça um pouco despenteada surgiu na porta com um sorriso lunático estampado no rosto. Logo mais abaixo surgiu também a cabeça de Pafúncio(o chimpanzé de estimação), o qual devorava uma banana:

Mas é claro!! Eu adoro uma mesa cheia!! Ainda mais uma mesa que experimente a minha comida!

Vocês viram só? Vocês almoçam conosco e depois nos levam até o Hospital das Clínicas!

Bem, se a senhora acha melhor assim nós...

Eu acho ótimo assim!

Os dois rapazes almoçaram no sítio. Apesar do atraso foi um almoço bastante apetitoso.

 

Mais tarde, quando, já passavam das três da tarde, Débora e Hella chegaram ao hospital e dirigiram-se rapidamente para o quarto em que Paulo estava:

Aqui estão as senhoras Débora e Hella Bordon Villas Bhoas! – Disse Norton, anunciando aquelas duas mulheres já conhecidas de Paulo. Quando Paulo percebeu a presença das duas, seu semblante pareceu se iluminar e mesmo com a sonda introduzida na sua garganta ele tentou esboçar um sorriso.

Com um gesto lento, Paulo pediu que todos o deixassem à sós com Débora e Hella. Mal as enfermeiras e seus amigos saíram e ele indicou para elas o guarda-roupa do quarto. Ambas olharam e ele continuava apontando para lá.

 

- Você quer alguma coisa lá de dentro? - Perguntou Hella. Paulo moveu a cabeça positivamente. Imediatamente Débora foi até o móvel e abriu suas portas. Paulo indicou o blazer de couro negro. Débora o tomou em mãos e o levou até Paulo, que com alguma dificuldade por causa do soro, puxou um zíper na parte interna que escondia um compartimento secreto. Dali ele tirou um envelope de conteúdo espesso e fez menção para que uma das matriarcas pegasse.

- Você quer que fiquemos com isso? - Perguntou Débora. Paulo novamente moveu a cabeça positivamente. Quando Débora tocou no envelope, Paulo segurou a sua mão. Com a mão livre, ele pediu para que Hella se aproximasse. Esta o fez e ele tomou também a sua mão, reunindo-a com a de Débora que segurava o envelope. Ele apertou as mãos de ambas e começou a chorar soluçadamente. Parecendo já entender o que se passava, Débora se aproximou mais e passou a acariciar a testa do rapaz.

- Por favor menino, não se emocione, você não está em condições. - Pediu Hella, já em lágrimas também. Ainda muito emocionado, Paulo fez menção para que Débora escondesse o envelope e as fez entender a importância do mesmo. Não demorou para que a enfermeira entrasse no quarto. Débora, já com o envelope escondido pelo casaco, ajeitou o travesseiro para Paulo e aproximou a sua boca do ouvido do rapaz:

- Tudo vai ficar bem. - Cochichou ela. Hella, por sua vez, aproximou-se ainda mais e beijou Paulo na testa. Logo as duas já deixavam o quarto quando Hella se voltou para a enfermeira:

- Façam todo o possível para que ele fique bom e... não deixem que qualquer pessoa entre neste quarto. - Ambas agradeceram a enfermeira e depois, no corredor, a Hélcio e Norton, que se propuseram em levar ambas para casa, mas, como elas sabiam que os dois estavam perdendo um dia de trabalho, insistiram em pegar um táxi.

 

Quase uma hora mais tarde, o táxi chegava até a casa sede do Sítio das Figueiras. Hella pagou um preço elevado pela corrida e ainda antes do motorista iniciar a viagem de retorno para São Paulo, Débora lhe ofereceu um chá gelado para aliviá-lo do calor que fazia naquela tarde ensolarada.

Aproveitando que encontraram a casa vazia, Débora e Hella trocaram de roupa e prepararam uma pequena cesta com sanduíches e sucos: - Unamos o útil ao agradável... enquanto lemos estes documentos que o pobre rapaz nos passou, aproveitamos para darmos um passeio, refestelarmo-nos e fazermos um picnic! - Disse Débora empolgada.

- E vamos tratar de encontrar um lugar no qual ninguém nos ache... onde será que se meteram todos?

- Não vamos nem querer procurar saber, ou acabaremos por nos preocuparmos... logo mais à noite, quando a fome apertar, eles voltam, afinal aqui não há restaurantes ou shopping-centers próximos! Agora não percamos mais tempo!

As duas deixaram a casa e caminharam por algum tempo, sempre procurando pelas sombras. Admiravam a bela propriedade enquanto sentiam a brisa fresca e perfumada que vinha dos campos e lhes acariciava o rosto. Apesar no avançado da hora, o crepúsculo ainda tardaria devido ao horário de verão. Débora e Hella adentraram pelo bosque e logo a frente encontraram um córrego que metros adiante se transformava numa pequena cachoeira, ao lado da qual fora erguido um banco em madeira tosca. Já estava tomado pelo limo e pela umidade, mas ainda guardava um bom lugar à sombra daquelas altaneiras árvores. As duas se sentaram, depositaram a cesta ao lado do banco e tomaram o envelope. Débora tomou a iniciativa de abri-lo. O que elas encontraram no seu interior foi uma porção de papéis e fotocópias. Havia, acima daquele calhamaço, várias folhas manuscritas e também fotocopiadas. Tudo indicava ser aquela letra a de Paulo e foi por ali que elas começaram. Débora segurava os papéis enquanto ambas liam. Aos poucos, suas feições plácidas foram entumecendo e passaram para lívidas. As lágrimas já eram difíceis de ser contidas, tampouco a expressão de espanto, indignação e até mesmo horror. Por um momento Débora interrompeu a leitura e se levantou. Caminhou claudicando até encontrar apoio numa árvore. Hella, não menos chocada, tomou da cesta a garrafa com suco e serviu um pouco do líquido em um copo, levando-o para Débora, que após o primeiro gole desandou a falar:

- Eu estou enjoada... eu nunca pensei que...

- Calma. Isso pode ser uma mentira, afinal já no início da carta pode-se denotar que este rapaz sente uma grande mágoa em relação a Roselene... pode ser uma vingança!

- Vingança do quê, agora que ele está agonizando naquela cama de hospital? Ele revela coisas que fazem sentido perfeitamente... eu não consigo conceber que a nossa sobrinha, sangue do nosso sangue, tenha tido a coragem de sabotar o avião da família toda, onde estavam os seus pais, p-por... - Débora tentava conter um pranto de indignação. - ... por ganância... por querer ser a única proprietária de um patrimônio! Interromper tantas vidas e de entes queridos em troca de dinheiro?! - Débora começou a chorar soluçado.

- Bem... acho que tudo só não saiu como ela queria porque nós acabamos não indo de última hora... Estragamos tudo, mas não por muito tempo, já que ela voltou e realizou o seu intento: ficar com o patrimônio só para si a qualquer custo. Veja Débora, há um carimbo de autenticação feito em cartório, isso indica que os originais devem estar neste cartório... o nome é... Lex et Jus. - Hella tentava desviar um pouco a sua própria atenção daquela triste realidade, como que tapando o sol com a peneira.

- Que inferno será se passa na cabeça atormentada de uma pessoa como Roselene? - Indagou-se Débora. - Como pode uma pessoa tão inteligente quanto ela, deixar-se levar por tamanha ambição, por essa desmedida cobiça? - Questionou, como que para todas aquelas árvores. Hella se aproximou e amparou Débora, tocando-a nos seus ombros:

       - Ela parece não perceber a impermanentabilidade das coisas. Tudo é efêmero e passa tão depressa. O apego aos bens materiais só causa mais e mais sofrimentos. Infelizmente a única certeza que temos é a de que vamos um dia morrer, assim como todos os que nos rodeiam e a quem tanto amamos... Por que então não aproveitar esses momentos para dar e receber amor, para viver cada momento da existência como se único fosse? - Hella voltou os seus olhos para os poucos pedaços de horizonte que apareciam por entre os troncos daquelas árvores.

       - Bem, agora ela tem tudo o que queria... Será que ela está feliz? Não poupou esforços e praticamente conduziu o homem que a amava ao suicídio...

       - Isso se não foi ela mesma quem o envenenou... o coitado não pode nem contar a verdade e corre perigo, pois no momento em que Roselene descobrir que ele nos entregou este envelope, quererá eliminá-lo... coisa que já deve ter desejado para evitar que ele abrisse a boca. - Disse Hella.

         - Eu só gostaria de saber que sentido faz? Tudo bem, o dinheiro é vital nos dias de hoje, ainda mais nesta época de recessão desenfreada, mas... Que sentido faz lutar tão desonestamente por uma coisa temporária? Que sentido faz trocar vidas por um capricho de querer se ter somente para si? - Débora tentava inutilmente encontrar uma explicação.

         - Ao seu tempo, a consciência de Roselene terá todas estas respostas... Justamente no momento em que ela perceber que não é eterna, que a cada dia que passa deteriora-se rumando para uma inevitável viagem na qual ela não poderá levar toda a sua fortuna e nem mesmo aqueles a quem comprou. Uma viagem na qual toda a bagagem que podemos levar é tudo aquilo que aprendemos, que experimentamos e que praticamos. Todo amor que demos, todas as amizades que fizemos, todos os corações que cativamos e conquistamos... - Hella deixava que as palavras que lhe vinham do âmago brotassem.

           - É... assim como também todo o ódio que disseminamos, o mal que praticamos e as lágrimas que fizemos brotar. É com este “enxoval” que montaremos a nossa morada na eternidade. E não há meios de fugir, de tentar escapar desta realidade! - Débora conseguiu finalmente conter os soluços.

           - Pobre Roselene... triste será o momento em que ela se olhar no espelho e notar que a única companhia que tem é a de um monstro, a sua própria. Bem, a nós foi dada uma oportunidade de reparar o erro que cometemos em sermos tão displicentes. Temos que devolver aos nossos sobrinhos tudo aquilo que lhes pertencia por direito. Vamos nos sentar novamente e terminar de ler esta carta, para que possamos então tomar providências. - Hella tomou Débora pelo braço e ambas se dirigiram para o banco e novamente se sentaram. Já mais calmas elas abriram os seus sanduíches, beberam do suco e leram toda aquela documentação por completo.

           - Quanta criatividade usada para o mal! - Admirou-se Hella. - Então foi através das “vendas fictícias” que ela conseguiu tudo? Pagou um falsário para imitar as assinaturas nos nossos sobrinhos e as nossas... nós as demos de mão beijada, eu vou me recriminar por isto pelo resto da minha vida!

           - Errar é humano, reconhecer o erro é divino... não esqueçamos que não estamos sós neste erro, pois o advogado Paulo Rivoredo também reconheceu que errou... só espero que para ele não seja tarde! - Disse Débora, já mais conformada.

           - Veja, aqui no final ele escreve que todos estes atos podem ser anulados... desde que confessados perante um juiz por um dos réus... no caso ele, pobre coitado. Escreve ainda que devemos nos dirigir até esse cartório Lex et Jus e procurarmos por um testamento cerrado... que na certa deve conter os originais destas cópias! Débora, acho que temos de tomar providências rápidas, antes que Roselene chegue primeiro!

           - Creio que seria prudente não comentar com os nossos sobrinhos por enquanto, pois eles podem agir precipitadamente. Vamos mostrar isso para o senhor Jupiro Pintassilgo e para o Rafael, certamente eles ficarão muito felizes em dar uma olhada nestes papéis!

             - Vamos voltar e tentar marcar uma reunião para amanhã, logo cedo! - Disse Hella, mais animada. As duas permaneceram ali por mais alguns minutos e logo já iniciavam o seu trajeto de volta. O sol já ia se aproximando das colinas verdejantes que emolduravam o horizonte.

 

Lisiane, Claudia e Márcia caminhavam por uma pequena estrada de terra que cortava um campo pontilhado de florinhas multicoloridas. Tal estrada ficava logo atrás da casa do sítio e conduzia até o galinheiro, o estábulo e o curral que ficavam mais abaixo, numa espécie de vale. Na sua margem direita, no meio de um campo florido, encontrava-se um lago de águas límpidas que era alimentado pelo riacho que cortava o bosque mais afrente. Do lado esquerdo da estrada havia um galpão com uma espécie de oficina e um celeiro.

Naquele fim de tarde quente era gostoso caminhar e deixar-se apanhar pela brisa fresca. As três vinham conversando e gesticulando:

- Não é possível que vocês tenham me feito perder uma tarde de sono pesado para eu ficar me torrando neste sol e me enchendo de poeira!

- Pense no bronze e no glamour dos chapéus, querida! – Animou Claudia, cujo chapéu tinha a aba com quase dois metros de circunferência e uma pluma de pavão que apontava para o alto.

- Não viemos aqui para nos bronzearmos e muito menos para usarmos chapéus ridículos! Além do mais não era você mesma que queria por em prática algum plano para deter Roselene? – Perguntou Lisiane, voltando-se para Márcia.

- Foi Claudia que me disse isso. – Márcia olhou para Claudia.

- Diga-nos então o que você disse! – Ordenou Lisiane.

- E o que é que eu disse, “clara em neve”? – Perguntou Claudia, alheia.

- Mas como o que você disse, toupeira inútil? Você deve ter dito para a Márcia que tínhamos de arranjar um jeito de deter a pestilenta da Roselene!

- Foi é? – Claudia estava perdida.

- Pois daí eu fiquei pensando... deter a “vampira” de que jeito, matando? – Perguntou Márcia.

- Eu não sei. – Disse Lisiane. – Não foi Claudia quem teve a idéia?

- Um ser como Claudia não tem idéias, somente orgasmos. - Disse Márcia, em meio a um bocejo que quase engoliu Lisiane que ficou olhando perplexa.

- Como sou estúpida! – Condenou-se Lisiane. – Só agora estou me dando conta da minha burrice em ter vindo aqui para escutar uma idéia de Claudia! Báh! – Bradou.

- Pois bem, meus “marzipãs”... – Cantarolou Claudia. – Eu fui ter com a passarada, interpelando toutinegras e piscos de peito ruivo... Interroguei o sol, propus às árvores, ouvi as libélulas e as borboletas, pedi a opinião das tanajuras e aí... após dedicar tudo à lua, eu cheguei a uma conclusão! – Sobressaltou-se.

- E qual foi? De que a grama é verde e o céu é azul? – Debochou Márcia.

- Não, “pistilo”. Os elementais, os devas, os anjos e todos os espíritos da natureza me disseram... – Claudia esboçou um ar de comoção e elevação espiritual, cerrando os olhos e respirando fundo. - ...eles me disseram que não há outro meio de deter Roselene, a não ser seqüestrando-a e aprisionando-a num esconderijo onde a forçaremos a assinar um documento onde ela confesse que armou todo o golpe e que está arrependida e nos quer devolver tudo! – Claudia abraçou uma árvore.

- Áh... então quer dizer que os devas e os anjos te disseram isso, é? – Questionou Lisiane, dúbia. – E por acaso eles também não te contaram que isso é crime? – Perguntou.

- Óh céus! Longe de mim... de nós... mas eles me disseram que não haveria crime algum, já que foi Roselene quem agiu de má fé conosco por primeiro. E que se por acaso ela resolvesse nos delatar, seria uma ótima oportunidade para colocarmos ela cara a cara com a justiça! – Explicou Claudia, acariciando uma folhagem.

- Mas tu és tapada mesmo... – Redargüiu Lisiane. – É evidente que se ela já aplicou este golpe, ela também deve ter argumentos convincentes o suficiente para se defender na justiça!

- Pois eu aposto que ela iria se embananar toda numa certa altura do campeonato! – Admitiu Márcia.

- Além do mais “sushis”, o fato dela nos delatar é só uma hipótese! Eu intuo aqui com os meus botões de madrepérola de que se agirmos com rigidez, conseguiremos fazer ela voltar atrás! – Disse Claudia convicta, enquanto que abelhas voavam em torno da sua cabeça e ela zumbia para elas.

- Acho que só mesmo encostando um revólver na cabeça dela... – Resmungou Lisiane.

- Credo, quanta violência... que esta seja idéia só sua. – Esquivou-se Claudia.

- Os espíritos da natureza também te disseram como seqüestrá-la? Onde? Para onde leva-la, isto é, onde será o cativeiro? – Perguntou Márcia.

- Segui-la-emos por um dia todo, estando sempre preparadas... aí, num lugar onde ela estiver distraída e não houver ninguém... “crau”... – Bradou Claudia, batendo uma palma e assustando Lisiane e Márcia que acompanhavam seus movimentos. – ...nós pegamos ela!! Depois a trazemos aqui para o sítio e a confinamos num casebre abandonado que há numa clareira no meio da mata! – Explicou Claudia, deixando que uma borboleta pousasse na ponta do seu nariz.

- E como você sabe que tem isso aqui? – Perguntou Lisiane, com as mãos na cintura.

- Durval, o capataz, levou-me para um passeio e me mostrou... – Contou Claudia, com cara de safada, levando o indicador à boca e voltando os olhos para cima.

- Sei... e por acaso esse casebre tem condições de abrigar alguém? – Perguntou Márcia, com um olhar malicioso.

- Bem, há muito feno lá dentro onde eu e o Dur... aham... d-digo, deve haver feno. E não precisa de mais nada mesmo, pois a falta de conforto e de comida também farão com que ela assine logo o documento que redigiremos. – Explicou Claudia, inclinando-se para cheirar as flores.

- Idéias bem violentas, essas que os gnomos e as fadas te deram, heim? – Perguntou Lisiane.

- Amor com amor se paga, “romã”! – Claudia soprava beijos para uma formiga.

- E se ela se recusar? – Perguntou Márcia, cruzando os braços.

- Usaremos de meios mais persuasivos. Podemos torturá-la, o que vocês acham? – Perguntou Claudia, deixando que um pardal pousasse sobre o seu indicador e passando a gorjear para ele. – Roselene não é tão forte assim! E... se por um descuido ela acabar morrendo, o patrimônio volta todo para nós que somos todos seus herdeiros! – Completou Claudia, colocando uma flor por entre os lábios e deixando que os colibris sugassem o seu néctar.

- Isso se a serpente já não passou tudo no nome do macho dela... – Resmungou Lisiane.

- E quando faríamos isso, ou seja, quando a raptaríamos?

- Basta redigirmos o tal documento, que aliás, pode ser uma procuração nos legando amplos poderes e depois basta estipularmos o dia... que tal depois de amanhã? – Perguntou Claudia, acenando para os esquilos. – Vejam!! – Exclamou ela, apontando para algum lugar às costas de Lisiane e Márcia que novamente se assustaram.

 

- O quê??! – Berraram as duas em uníssono, voltando-se.

- É Durval... Dudu querido, aqui!! – Acenou Claudia, munida de um lenço branco, para um rapaz que vinha montado numa carroça puxada por um cavalo. A carroça estava cheia de feno.

- E quem diabos é esse? – Perguntou Lisiane.

- O capataz de quem eu acabei de lhes falar!

- Aquele que te currou no casebre? – Perguntou Márcia. Claudia não deu importância e segurando o seu imenso chapéu, correu em direção ao rapaz fazendo com que a longa, rodada e florida saia do seu vestido de camponesa esvoaçasse.

- Venham... vamos dar uma volta! – Gritou para as primas que se aproximaram. Claudia já havia subido e segurava nos ombros do forte e jovem capataz:

- Áh Dudu... você é tão forte! – Exclamou, acariciando os músculos do rapaz que estava sem camisa. – Subam minhas “lantejoulas”, vamos dar uma volta até o bosque, para comemorarmos o nosso plano!

- “Uáááááh!” – Deve ser bom de dormir nesse feno todo. – Disse Márcia, subindo e bocejando.

- Eu não vou subir nisso, sabe-se Deus para onde esse troglodita vai nos levar... além do mais tenho alergia a feno! – Alegou Lisiane.

- Dudu é inofensivo, não faria mal a uma lesma, não é “tutti”? – Perguntou Claudia, cutucando de leve as costas do capataz. – Agora deixe de ser boba e suba... seja bem vinda a bordo! – Pediu. Lisiane acabou aceitando e subiu, mas seu impulso foi muito fraco e ela se desequilibrou para trás. Márcia, no intuito de ajudar, a puxou para dentro. Em meio a um grito histérico Lisiane caiu dentro da carroça por sobre o feno. O grito e o baque assustaram o cavalo que relinchou empinando e fazendo com que Márcia perdesse o equilíbrio e se segurasse em Claudia, que para não cair apoiou-se no capataz Durval que na tentativa de conter o cavalo também perdeu o equilíbrio. Os três vieram para o chão enquanto que o cavalo, ainda mais assustado, disparou estrada afrente tendo Lisiane caída atrás. A corrida tresloucada do eqüino impulsionou e sacolejou a carroça fazendo com que ela viesse a se soltar dele, que saiu em disparada. A carroça sem rumo, ganhou a estrada em declive atingindo uma considerável velocidade. Lisiane levantou a cabeça e olhou para frente. Para os que ficara para trás, tudo o que se podia ver era aquela cabeça com os cabelos balançando freneticamente. Já na primeira curva, a carroça saiu para fora do leito da estrada e ganhou o campo coberto pelas flores campestres, indo de encontro com a cerca do galinheiro a qual arrombou quebrando as tábuas e entrando com tudo em meio aos poleiros. Houve um estardalhaço de cacarejos, cocoricos, cocorocós e penas voando para todos os lados. Logo os brados de Lisiane puderam ser ouvidos do interior do galinheiro:

- Tirem esses olhos galiformes de cima de mim!! O que foi?! Acham que vão me raptar de novo? Pois desta vez eu juro que faço croquetes de todos vocês se tentarem me inseminar com aquele galo asqueroso! Eu não vou ser inseminada, não vou!!! – Bradava ela enquanto o sol ia se pondo...

  

No dia seguinte logo cedo, Débora e Hella já estavam reunidas com Rafael e Jupiro Pintassilgo no escritório do último, que terminava de analisar todos aqueles documentos:

- E então senhor Jupiro, o que tem a nos dizer? - Perguntou Débora, ansiosa.

- Mas isto é uma bomba! Digo, se tudo isto for mesmo verdadeiro nós então teremos a faca e o queijo nas mãos e poderemos reverter toda a situação a nosso favor! - Disse Jupiro empolgado.

- Se Paulo Rivoredo redigiu esta carta testamento, é porque já desconfiava que Roselene estava apenas o usando e partindo disso podemos presumir que o conteúdo destes documentos é verdadeiro, além do mais que interesse ele teria para se acusar também? Já que em todos os momentos ele se declara cúmplice e assume toda a autoria intelectual do crime.- Concluiu Rafael.

- Não quero parecer redundante, mas o despeito pode fazer destas coisas. Ele amava muito Roselene, descobriu que ela o usou, assim, não podendo tê-la, resolveu acabar com a vida de ambos, a dele com o suicídio e a dela entregando-a para a polícia! - Disse Jupiro.

- Concordo com o senhor, mas para a nossa sorte, Paulo não morreu e se declarar a idoneidade desses documentos perante um juiz, poderemos então levar Roselene ao banco dos réus mais rápido do que pensamos! - Argumentou Rafael, animado.

- E... os senhores já pensaram na possibilidade de Roselene ter tentado matar Paulo por envenenamento, após perceber que ele estava desconfiando dela e poderia por tudo a perder? - Perguntou Débora.

- Esta é uma pergunta que só Paulo poderá responder e diante de um juiz! - Respondeu Jupiro. - Vejam, há uma observação no rodapé da página... aqui Paulo diz que esta é uma cópia de um testamento cerrado de acordo com o artigo 1638 do Código Civil Brasileiro e que este testamento se encontra no cartório Lex et Jus. Paulo fez tudo premeditadamente, pois esse tipo de testamento requer cinco testemunhas que assinem desconhecendo o conteúdo do documento e tudo mais, portanto as possibilidades de tudo isto ser verdade são muito grandes! - Disse Jupiro.

- E quais seriam os próximos passos a serem dados? - Perguntou Hella.

- A primeira coisa a ser feita seria ir até o hospital acompanhados de um juiz, para quem Paulo poderia reafirmar a veracidade de todos estes fatos e também autorizar que o testamento cerrado com a documentação original seja entregue para o mesmo juiz, uma vez que este tipo de testamento geralmente só pode ser aberto depois da morte do autor. - Explicou Rafael.

- E será que Paulo se disporia a fazer tudo isso? Ou seja... será que ele está em condições? - Preocupou-se Débora.

- Se ele requisitou as suas presenças para lhes entregar esse envelope, é sinal que ele está mais do que em condições de colocar um ponto final em tudo isso! O rapaz caiu na realidade e quer limpar a sua consciência. É nosso dever ir até lá e ajudá-lo com isso! - Alegou Rafael.

- E depois, como fazer para deter Roselene? - perguntou Débora.

- Teríamos de confirmar a veracidade dos fatos constatando que os tutelados não têm recebido nada em relação às suas partes vendidas. Seria necessária a feitura de exames grafotécnicos em relação às assinaturas das procurações e o fato destas não condizerem com as reais, importando, portanto, na falsificação das mesmas. Aí então poderíamos partir para a impetração de ações de anulação de todos os atos realizados por Roselene, pois os verdadeiros donos do patrimônio voltariam, no início, a serem somente proprietários de fato, sendo que teria de se esperar a anulação de todos os atos, um por um, para que voltassem a ser proprietários de direito. - Explicou Jupiro Pintassilgo.

- E isto demoraria muito? - Inquiriu Hella.

- Temo que sim. - Respondeu o advogado.

- Então com isto o senhor quer dizer que durante todo esse processo nós não poderíamos voltar a assumir as rédeas do patrimônio? - Perguntou Débora.

- Ainda não sei dizer, mas acho que através de uma liminar o juiz nomearia um síndico para esse patrimônio e vocês poderiam voltar a geri-lo como administradores de fato. - Respondeu Jupiro, um tanto dúbio.

- Eu acho melhor nós aguardarmos até que a poeira acente, para depois voltarmos a administrar tudo. - Interveio Hella.

- Mas neste ínterim nós podemos perder tudo, pois o patrimônio já se encontra numa situação delicada, e sabe-se lá também o que Roselene está fazendo com o pouco dinheiro que resta! - Alegou Débora.

- De antemão, eu recomendo que vocês ainda permaneçam por mais algum tempo no sítio, que é de origem familiar e patriarcal, não tendo nada a ver com o contexto patrimonial das Organizações Villas Bhoas, isto para evitar qualquer atitude inesperada por parte de Roselene, atitude esta que só faria com que tudo demorasse ainda mais! - Recomendou Jupiro.

- Eu estive pensando... - Interveio Rafael. - Tenho alguns amigos juízes e creio que depois de expor-lhes toda a situação, acho que algum deles se proporia a nos acompanhar até o hospital, mesmo que extrajudicialmente, pois isto só nos facilitaria todo o procedimento. Só não sei como ficaria a questão da distribuição em cartório... - Disse o rapaz.

- Creio que ela seria automática para o juiz que se propuser a ir até lá, ou mesmo desnecessária. - Argumentou Jupiro.

- Então acho que não temos mais tempo a perder, eu vou providenciar tudo isto para o mais breve possível! Para adiantar ainda mais as coisas, eu acho que se as senhoras me passarem o número do quarto de Paulo no hospital, eu posso dar uma passada lá e pedir-lhe que assine uma autorização, para que o seu testamento cerrado possa ser retirado do cartório! - Disse Rafael, levantando-se da sua cadeira.

- Sem problemas, meu filho. Eu gostaria de desde já agradecer-lhes por tudo que têm feito! - Disse Hella.

- Pena que esta união esteja acontecendo por um motivo tão triste para a nossa família. Ainda não consigo conceber que Roselene tenha sido capaz de tudo isso. - Disse Débora, comovida.

 

Rafael não perdeu tempo e também não encontrou nenhuma dificuldade em expor os fatos para o seu amigo Armando Silveira Cristo, juiz de direito da vara cível. Assim sendo, este se propôs em acompanhá-los até o hospital para ouvir o depoimento de Paulo Rivoredo, o que foi agendado para dois dias depois.

 

Débora e Hella nada mencionaram para os sobrinhos e acompanhadas por Jupiro Pintassilgo, Rafael e o juiz Armando Silveira Cristo, ganharam o hall de entrada do Hospital das Clinicas e seguiram direto para o local do quarto onde estava internado Paulo. Lá chegando, depararam com os corredores tomados por populares que se aglomeravam nas laterais, alguns praticamente caídos, outros sentados e outros ainda por sobre macas. Havia no local uma atmosfera pesada e um odor forte de clorofórmio. O quarto que deveria ser de Paulo havia dado lugar a uma espécie de enfermaria que encontrava-se lotada. O ar ali estava saturado devido às janelas estarem fechadas com aquele calor. Havia gemidos e o odor de clorofórmio havia se tornado mais forte. Rafael recuou para conferir o número na porta do quarto. Eles não haviam se enganado. Hella, intrigada, saiu para o corredor e abordou o primeiro enfermeiro que por ali passava:

- Por favor meu rapaz, nós estamos procurando por um paciente que até anteontem estava internado neste quarto e... – O enfermeiro se adiantou em responder:

- Os pacientes que estavam internados aqui foram transferidos para uma ala nova, já que tivemos de adaptar esta para atender às emergências devido a um surto de cólera... A senhora vê? Nós não mais temos como atender as pessoas. – Explicou o enfermeiro, lançando um olhar desolado para todas aquelas pessoas.

- Entendo... – Disse Hella, constrangida. – E será que você poderia nos informar onde fica esta nova ala?

- Sinto muito, mas creio que seja mais fácil a senhora voltar para o hall de entrada e se dirigir ao balcão de informações. Eles certamente lhe conduzirão para o lugar certo. Desculpe-me mais uma vez. – Disse o rapaz.

- Óh não, não se preocupe... eu entendo a gravidade da situação. – Logo os cinco já se retiravam daquele local abrindo caminho pelo meio de toda aquela gente, quando Débora foi abordada por um menino que se interpôs na sua frente:

- Tia! – Choramingou o garoto. – Eu “tô” com muita dor... minha mãe dormiu e o meu irmãozinho não para de gritar, me ajude! – Débora voltou os olhos para o lado e deparou com uma mulher caída, com os lábios roxos e os olhos semicerrados. Ela estava morta e ao seu lado um menino de seus três anos agonizava num pranto gritado. Sem saber o que fazer devido à pressa, Débora retirou da bolsa um dinheiro da bolsa e se inclinou olhando o garoto nos seus olhos grandes e castanhos. Ele era magro, aparentava uns dez anos e tinha o semblante lívido e ceráceo. Os cabelos eram também castanhos e lisos:

- Qual é o seu nome? – Perguntou Débora.

- É Júnior... – Respondeu o garoto, estampando um sorriso triste.

- Só Júnior?

- Antônio Carlos dos Santos Júnior.

- Muito bem Júnior, por enquanto fique com isto e tente providenciar algo para você e o seu irmão comerem. Depois eu verei o que posso fazer. – Débora beijou o menino na testa e seguiu em direção aos outros que lhe aguardavam na porta do elevador. O garoto ficou observando ela deixar o local com os olhos marejados. Logo os cinco retornavam ao hall de entrada do hospital. Foram direto para o balcão de informações perguntar pela localização no novo quarto de Paulo. A recepcionista os olhou com indiferença, e passou a verificar uma planilha que tinha à mão. Depois voltou-se para um computador que passou a operar. Quatro minutos mais tarde ela lhes deu a resposta:

- É o quarto 532-C que fica no quinto andar da ala 2-B. para chegar lá basta que vocês tomem o oitavo corredor à direita e depois o décimo primeiro à esquerda, aí vocês sobem um lance de escadas que também estará voltado para a esquerda. Então vocês terão encontrado o elevador. Tomem-no e vão até o terceiro andar, desçam a sétima rampa, sigam pela direita do corredor até o seu final, virem para a direita de novo, desçam mais dois lances de escada e tomem o outro elevador que os levará para o quinto andar. Depois é só andar mais alguns cem metros pelo corredor da esquerda até chegar na ala 2, então vocês dobram à direita e sobem mais três degraus, caminhando outros sessenta metros, aí vocês estarão para parte B da ala 2. Então basta procurar pelo quarto 532-C que é adjacente ao 532-B, que por sua vez é adjacente ao 532-A. Boa sorte. – A recepcionista estourou uma bola de goma de mascar e voltou-se para o seu micro, sem alterar a sua expressão de autômata.

Os cinco seguiram em frente sem entender muito e logo tiveram de perguntar novamente para uma jovem e simpática enfermeira a qual lhes explicou paciente e detalhadamente que caminho tomar. Para que não houvesse erros ela os convidou a se aproximarem de um balcão próximo onde ela lhes desenhou um pequeno mapa. Agradecidos, os cinco retomaram o caminho.

A enfermeira foi pela direção oposta rumo aos seus afazeres. Ainda sorrindo por ter podido ajudar aquelas cinco pessoas, ela foi abordada por uma moça ruiva e de pele clara que vestia um sobretudo negro e óculos de sol também negros. A enfermeira estranhou, pois era aquela uma manhã de calor:

- Por favor, senhorita! – Interpelou a moça ruiva.

- Pois não. – Respondeu a enfermeira solícita. Ela era uma bela mulata de olhos verdes, corpo bem formado e cabelos lisos. Aparentava não mais do que 25 anos.

- E-eu estou apavorada, recebi um telefonema através do qual me comunicaram que o meu irmão havia sido internado em estado grave...

- Sinto muito. – Disse a enfermeira tomando nas suas ambas as mãos da moça e a conduzindo para que se sentasse em um dos muitos bancos daquele corredor. A moça ruiva continuou:

- Q-quando cheguei aqui e depois de ter pedido por uma informação, fui até o quarto onde estaria o meu irmão, deparei com o leito vazio, sendo arrumado e... – A moça ruiva tentava conter as lágrimas. - ...então eu perguntei por ele e a enfermeira que realizava a arrumação me informou que ele acabara de falecer e havia sido transferido para o necrotério do hospital... estou desesperada! Gostaria de ver o meu irmão... talvez ele me ouça como sempre fez... mas eu não sei onde fica o necrotério. A enfermeira me explicou mas... estou muito nervosa e não consegui assimilar nada. – A moça ruiva retirou da bolsa um lenço com o qual secou as lágrimas por debaixo das lentes negras dos seus óculos. A enfermeira se levantou e foi apanhar um copo d’água num bebedouro próximo. Ao retornar e entregar o copo para a moça ruiva, ela se sentou e lhe dirigiu algumas palavras:

- Eu imagino o quanto esteja sendo difícil... não sei se lhe serve de consolo, mas o que mais me conforta nestas situações é o fato de eu acreditar que tudo nesta vida não passa de uma espécie de sonho confuso e que o “outro lado” é a verdadeira vida, a realidade e não o sonho. É um lugar onde certamente os laços amorosos que unem as pessoas se tornam mais fortes e se eternizam. É um lugar onde nos reencontramos com os entes amados e onde partilharemos das suas companhias por toda a eternidade.

- Gostaria de ter a mesma certeza que você tem... mas por enquanto me confortaria um pouco mais poder ver o meu irmão, quem sabe os médicos tenham se enganado e ele ainda esteja vivo... eu estaria lhe atrapalhando se lhe pedisse para me acompanhar? – Perguntou a moça ruiva, quase que suplicando. A enfermeira olhou para o seu relógio e voltou-se amavelmente:

- Eu posso dar um jeitinho. Agora venha comigo. – Ela tomou a moça ruiva pela mão e passou a conduzi-la através dos corredores, rumo ao necrotério.

 

Débora, Hella, Jupiro, Rafael e o juiz Armando Silveira Cristo, finalmente atingiram o quarto 532-C da ala 2-B, onde estaria Paulo. Bateram na porta e não obtiveram resposta. Bateram novamente e nada. Rafael então resolveu abrir a porta. O leito estava vazio. Imediatamente eles passaram a procurar por um enfermeiro para que lhes informasse sobre o paradeiro de Paulo, mas o corredor estava ermo. Parecia não haver ninguém naquela ala.

- Eu acho que vi uma espécie de balcão de informações no pavimento inferior. Aguardem-me aqui que eu vou lá perguntar! – Disse Rafael, saindo rapidamente rumo às escadas.

 

A enfermeira e a moça ruiva, depois de quilômetros de corredores, escadas e elevadores, finalmente atingiram o necrotério. Havia lá um pequeno balcão próximo à entrada, atrás de qual postava-se um senhor de idade. A enfermeira falou para a moça ruiva:

- Venha, teremos de descobrir em que gaveta o seu irmão está. – Disse constrangida. As duas se postaram frente ao balcão. O homem idoso, já sabendo do que se tratava, perguntou solícito:

- Qual é o nome do morto? – A enfermeira voltou o olhar para a moça ruiva que logo se manifestou:

- É... João... – Ela explodiu numa crise de choro compulsivo e foi amparada pela enfermeira. Compreensivo, o senhor idoso foi logo verificando no computador a lista de “Joãos” que ali haviam dado entrada naquele dia:

- João Alceu Alves? – Perguntou o ancião, ao vislumbrar o primeiro nome da lista.

- Sim! É... este mesmo. – Respondeu a moça ruiva, com a voz embargada. Ela finalmente obteve a confirmação de que o seu irmão estava realmente morto.

- Ele está na gaveta de número sessenta e cinco. – Informou o velho, que logo lhes permitia a entrada naquele local frio e desolado.

- É só pressionarem a campainha quando quiserem sair. – Explicou o homem, fechando a porta atrás delas, que se viram envoltas pelas centenas de gavetas metálicas que compunham as quatro paredes daquela grande e gélida sala.

 

Rafael finalmente atingiu o balcão de informações ao qual se referira. Ele se dirigiu à enfermeira que ali estava:

- Por favor...

- Pois não? – Respondeu prontamente a enfermeira.

- Será que a senhorita poderia me informar onde está internado o paciente Paulo Rivoredo?

- Ele está nesta ala?

- Foi o que me informaram na entrada do hospital. – Rafael estava ansioso.

- Um momento. – Disse enfermeira, verificando no computador. – Áh, sim! Está aqui, ele está internado no quarto 532-C... foi transferido para lá ontem!

- Mas eu acabo de vir deste quarto e ele não está lá! O quarto está vazio!

- Calma senhor, eu vou verificar... queira aguardar mais um momento. – Pediu a enfermeira, voltando a operar o computador.

 

A enfermeira já estava prestes a abrir a gaveta de número sessenta e cinco, quando foi impedida pela moça ruiva:

- Espere! – Ordenou. A enfermeira se voltou:

- Não quer que eu abra? – Perguntou.

- Fico imaginando como deve ser a sensação de se estar dentro de uma destas gavetas... talvez se queira abrir os olhos, mas as pálpebras congelam por sobre os globos oculares e impedem... mesmo que não o fizessem tudo o que se veria seria o negro ao som do trincar dos ossos... da pele encarquilhada e roxa a rachar dando vazão a filetes de sangue congelado. – Disse a moça ruiva, com uma voz monocórdica e mantendo um olhar fixo e alheio sobre a gaveta. A enfermeira ficou olhando confusa:

- Talvez não seja uma boa idéia abrirmos essa gaveta agora. Não seria melhor a senhora se acalmar para dep... – A enfermeira foi bruscamente interrompida pela moça ruiva:

- Você já parou para pensar em como seria a sensação de se sentir vivo dentro de um corpo de cadáver? Creio que... no mínimo intrigante... observar enquanto lhe velam , enquanto lhe sepultam e você não pode dizer uma só palavra, fazer um só movimento sequer... apenas observar com os olhos inquietos da alma e depois sentir o corpo se deteriorar ante a avidez de milhares de vermes famintos de carniça... Não... eu creio que você nunca parou para pensar nisso... – A moça ruiva apertava a bolsa com uma das mãos e com a outra amarrotava violentamente um dos bolsos do seu sobretudo. A enfermeira começou a mostrar-se inquieta:

- Acho melhor sairmos daqui, já que... – A enfermeira foi novamente interrompida:

- Carne morta... peso morto... Isso é o que todos vocês vão se tornar! Não eu, pois sei exatamente qual é a sensação de se estar ebulindo por dentro, mas tendo sempre de se manter calada, tal qual o espírito inteligente e intrépido aprisionado num pedaço de carne podre. A sensação de se estar entrando numa erupção de idéias maravilhosas, mas de nunca se ser ouvido e ter de calar-se! Uma vida inteira até que se os faça calarem, mas mesmo assim... – O tom de voz da moça ruiva se alterava e oscilava entre o embargado e o histérico. - ...mesmo assim ainda resta bocas para reprovar e ouvidos para se fazerem moucos à toda genialidade, contaminando e levando à ruína todo o esforço. É quando surge a necessidade de se sumir! Aí, parece que todos os desequilibrados dão por falta e imploram para que se retorne. Isto acontece e eles estão dispostos a ouvir, só que é tarde demais e eles merecem uma lição! Pessoas cretinas e irresponsáveis não podem ficar no comando de coisas... na verdade elas ficam bem melhores assim... imóveis, mortas! Vamos, abra a gaveta! – Ordenou a moça ruiva. A enfermeira tentou argumentar:

- Não creio que seja uma boa idéia, eu...

- Então, depois de um trabalho árduo, aquele que se diz amigo se acovarda lhe apunhala pelas costas, mas antes que ele abra a boca você tenta fechá-la para sempre... Só que o infeliz não morre!! – Bradou a moça ruiva, desconcertada. – Tal qual uma peste para contaminar o resto, para abrir a sua boca imunda e deixar que todos os loucos voltem ao poder! Malditos!!! – Bradou a moça ruiva. A enfermeira se aproximou no intuito de conte-la, segurando-a pelos ombros:

- Calma senhora, eu...

- Tire as suas mãos sujas de mim! – Bradou a moça ruiva, livrando-se das mãos da enfermeira. Com o gesto brusco os seus óculos escuros vieram ao chão e sua cabeleira ruiva “entortou”. Irritada, ela arrancou a peruca ruiva e a lançou ao chão.

Seus cabelos eram na verdade louros, ela era na verdade Roselene, que imediatamente revolveu a bolsa e se apossou do seu revólver, apontado-o para a enfermeira, que arregalou os olhos e começou a recuar:

- Por favor senhora, vamos conversar...

- Só que infelizmente eu li nos jornais que ele sobreviveu e vim aqui para terminar o meu serviço! Agora abra essa maldita gaveta! – Ordenou Roselene, histérica.

 

Rafael já roía as unhas devido à demora da enfermeira em lhe dar a resposta:

- Se estiver muito difícil, eu posso perguntar para outro alguém e...

- Tenha calma senhor, estamos tendo dificuldades na organização devido ao surto de cólera. Dê-me mais um minuto. – Pediu a enfermeira, ela parecia até então impassível, mas logo voltou-se para Rafael com um sorriso:

- O paciente Paulo Rivoredo... – Ela olhou para o seu relógio de pulso e depois voltou-se para Paulo:

- ...ele tinha uma lavagem estomacal marcada para as dez horas destas manhã, a qual já deve estar terminando. Basta que o senhor aguarde um pouco e então, poderá vê-lo, pois ele deverá estar devolta ao quarto dentro de mais alguns minutos. – Rafael suspirou aliviado:

- Muito obrigado, eu vou aguardar... desculpe-me se fui impertinente!

- Não há do que, senhor. Nós estamos aqui para isso. – Disse a enfermeira, estampado um largo sorriso.

- Obrigado mesmo! – Disse Rafael, sumindo pelo corredor.

 

No necrotério, a enfermeira já havia aberto a gaveta e olhava apavorada para Roselene:

- É... e-é esse o seu irmão, senhora? – Balbuciou a enfermeira ante a mira do revólver.

- Tão meu quanto seu... – Roselene se aproximou da enfermeira, encostando o revólver na sua testa. Com a outra mão ela passou a desfazer o penteado da moça e acariciar com sofreguidão o seu rosto. – Um movimento seu e a sua massa encefálica estará espalhada por essas paredes... nossa, que cabelos perfumados! Será que você também recende a este perfume pelo resto do seu corpo? – Roselene apertou os seios da enfermeira e vislumbrou o seu crachá. – Muito bem, Carla, agora eu quero que você tire as suas roupas!

- C-como? – Perguntou Carla, confusa.

- Não se faça de tola, você ouviu muito bem! Ande com isso! – Carla começou a desabotoar a blusa do seu uniforme, enquanto Roselene se afastou e passou a admirá-la com um olhar ensandecido. Logo Carla vestia somente as roupas íntimas:

- Toda a roupa! – Ordenou Roselene. – Hum... bem que você poderia rebolar um pouco, iria bem com a sua cara de vagabunda. – Carla, constrangida, obedeceu e logo estava completamente nua na frente de Roselene, que novamente se aproximou e começou a passar a ponta do cano do revólver no corpo da moça. Sua pele jamba e aveludada era acometida por espasmos ao experimentar o contato com o frio metal.

- Você gosta disso? – Perguntou Roselene. – Aposto que sim... – Ela desfilava o cano do revólver por entre as nádegas de Carla e depois por entre as suas pernas, tentando introduzi-la. – A enfermeira estava petrificada. – Eu fiz uma pergunta! – Bradou Roselene. Carla estremeceu:

- N-não... – Balbuciou.

- Cadela mentirosa. Tipos vulgares como você adoram emoções diferentes, principalmente quando se trata de sexo... Sei que você gosta, não precisa ter vergonha. – Roselene lambia e mordia os próprios lábios ao passo que subia com o cano do revólver, passando pelo ventre e indo até os seios da moça. – Uma genuína beleza como a sua deve ser conservada por muitos e muitos anos... Descubra o cadáver!! – Ordenou histérica.

 

Aos soluços a enfermeira retirou de cima do morto o plástico que o cobria. O rapaz que ali estava parecia ter perecido de morte dolorosa, tal era o seu semblante de agonia ressaltado ainda pelos olhos arregalados. Roselene continuava falando em tom de gozação:

- Tss... tss... tss... pobre coitado! Que dores ele não sentiu, heim? Retire o plástico de todo o corpo! – Carla obedeceu e deixou revelar um cadáver com o corpo mutilado e cheio de sangue coagulado. Ela começou a entrar em pânico:

- Pelo amor de Deus, pare com isso!!

- Cale-se piranha, agora monte na gaveta e deite-se sobre ele, tal como se você o estivesse amando...

- Não, por favor!

- Calada! – Roselene bradou e bateu violentamente com o revólver no ombro da enfermeira. – Eu quero que você se deite sobre ele e sinta-o, beije-o... faça amor com ele! – Quando Carla se deitou por sobre o cadáver, sentiu que este tinha os ossos moídos. Aquilo estava a fazendo não mais conseguir conter o choro que expressava compulsivamente. Tendo Carla já deitada sobre o cadáver, Roselene puxou o plástico sobre ambos e os cobriu, fechando o zíper que havia encima. – Não esqueçam do preservativo, pombinhos! – Num gesto seco, Roselene se afastou e empurrou a gaveta, trancando-a em seguida. Os clamores por socorro de Carla se faziam praticamente inaudíveis devido a espessura do metal, tanto quanto as suas batidas desesperadas.

Roselene juntou do chão a calcinha de Carla e a levou até o nariz, aspirando profundamente o seu odor.

 

Depois de enfrentar um violento tombo nas escadas, no qual também envolveu um outro enfermeiro fazendo com que uma bandeja de medicamentos fosse pelos ares, Rafael chegou ainda trôpego no corredor onde ficava o quarto de Paulo. Ele se sobressaltou por não encontrar Débora, Hella, Jupiro e Armando ali. O corredor estava completamente vazio e a porta do quarto de Paulo, como dantes, fechada:

- Onde será que eles se meteram agora? – Murmurou Paulo, batendo com a mão na parede. Rafael parou um pouco para respirar e ofegante sentiu um leve toque no seu ombro direito.

 

Ele se voltou rapidamente e deparou com uma enfermeira loura que delicadamente lhe perguntou:

- O senhor está se sentindo bem?

- E-eu? Áh... acho que sim... de onde foi que você apareceu? Digo...

- Desculpe-me se o assustei. Posso lhe ser útil?

- Bem... eu estou procurando por quatro pessoas, dois homens e duas mulheres que deveriam estar aqui neste corredor, aguardando que o paciente que deveria estar neste quarto assim que voltasse de uma lavagem estomacal. Eu os deixei bem aqui quando fui até o balcão de informações no andar inferior perguntar se o tal paciente estava mesmo internado neste quarto. Aí me disseram que ele estava e enquanto eu retornava me choquei com um enfermeiro na escada e ambos caímos e eu o fiz quebrar tudo e então eu chego aqui e não encontro ninguém! E eu... acho que você não entendeu nada!

- Entendi sim, o senhor deve estar se referindo ao paciente Paulo Rivoredo, não?

- Nossa, como foi que você adivinhou?

- Bem, eu estou indo justamente para o quarto dele, para lhe ministrar o soro.

- Mas como, se ele não está lá e...

- Não só ele está, mas também os seus quatro amigos. Faz parte do regulamento do hospital que se mantenham as portas fechadas.

- É? – Perguntou Rafael, embaraçado.

- O senhor quer me acompanhar? – Propôs a enfermeira, sorrindo.

- C-claro... como sou idiota. Eu dev...

- Não precisa se justificar, o dia a dia tumultuado nos faz agir assim de vez em quando. – Disse a enfermeira, conduzindo Rafael para dentro do quarto.

- É verdade, a culpa é do cotidiano. – Disse Rafael, sem jeito. Quando ambos realmente ganharam o interior do quarto, encontraram Paulo na cama ladeado por Débora e Hella, enquanto o médico lhe retirava uma sonda. Armando e Jupiro estavam sentados num sofá ao lado da cama. O médico terminou o seu trabalho e lhes fez uma recomendação:

- Entendo a importância do trabalho que vocês têm de realizar, mas peço-lhes que evitem de despertar qualquer alteração emocional no paciente e principalmente evitem que ele fale. Eu retirei esta sonda para lhe dar um pouco de descanso, desde que ele não se agite e não fale, pois o estado do seu aparelho digestivo é muito delicado e qualquer movimento lhe causará muita dor, já que acaba de retornar de uma lavagem estomacal e a sonda lhe foi retirada. O efeito da anestesia local já deve ter passado. – Diante disto, o juiz Armando Silveira Cristo se manifestou:

- Não se preocupe doutor, o que preciso dele é apenas uma confirmação, a qual poderá ser perfeitamente realizada gestualmente e através de uma assinatura. – Explicou o juiz.

           - E certamente tal confirmação o fará se restabelecer muito mais rápido, pois a sua consciência

o certificará de ter realizado a sua parte. – Disse Hella, acariciando a mão de Paulo. O médico interveio:

            - Bem, vou deixá-los, mesmo assim, insisto que sejam breves e que quando terminarem chamem a enfermeira Sara para terminar os seus afazeres. – Disse, apontando para a enfermeira loura que terminava de colocar o soro. – Ela estará por perto, no mais lhes desejo boa sorte. – Disse o médico, saindo acompanhado da enfermeira. Armando se levantou e se aproximou do leito de Paulo, tomando a palavra:

             - Paulo, meu nome é Armando Silveira Cristo, eu sou juiz e examinei o seu testamento depois de tomar conhecimento de toda a situação. Não estou aqui para julgá-lo e bem sei que às vezes agimos com o coração e tomamos atitudes precipitadas. Portanto, tendo em vista que você já explicou tudo detalhadamente na sua carta testamento, cujo original que estava no cartório Lex et Jus está agora em minha posse devido à sua autorização, eu serei o mais sucinto possível lhe fazendo apenas duas perguntas as quais você poderá responder movendo a cabeça positiva ou negativamente. O conteúdo das perguntas se refere a este pequeno documento que elaborei, uma espécie de confirmação de tudo que você disse na carta testamento, ao qual você poderá assinar agora ou depois que eu lhe formular as perguntas. Você concorda? – Perguntou Armando, amavelmente.

             Paulo fixou os olhos no juiz e depois voltou-os para Débora e Hella que o ladeavam. Ele moveu a cabeça positivamente enquanto lágrimas deixaram-se rolar pelo seu rosto. Ele estendeu a mão no intuito de pegar o documento que Armando tinha em mãos.

              - Por favor meu querido, o médico pediu para você não se emocionar. Tente se controlar, para o seu próprio bem! – Alertou Débora, afagando os seus cabelos. Emocionado, Paulo lia o documento.

               - É isto mesmo Paulo, sabemos o quanto está sendo difícil para você, por isso queremos ser breves e evitar que coisas piores venham a acontecer! – Disse Armando. Rafael se levantou e se dirigiu para Paulo:

               - Coragem amigo. – Disse. Jupiro apenas sorriu complacente do sofá, como que também incentivando. Paulo deu a entender que queria uma caneta. Foi quando Armando disparou a primeira pergunta:

                 - Paulo, na presença da Lei por mim personificada, na presença destas testemunhas e na presença de Deus, representado por este crucifixo que está na parede acima da sua cabeça, eu quero saber se você confirma ser todo o conteúdo desta carta testamento a sua legítima expressão da verdade? – Paulo começou a ofegar e não conseguiu conter os soluços ao passo que com os olhos banhados por lágrimas movia a cabeça positivamente. Armando assentiu, enquanto Débora e Hella sorriam emocionadas. Rafael entregou uma caneta para Paulo.

                 - Muito bem Paulo. Mas por favor, não se descontrole! – Pediu Armando.

                 - Tudo isso é para a sua própria segurança. Nós faremos questão de cuidar muito bem de você e de passar uma borracha em tudo depois que tiver terminado. – Desta vez foi Jupiro quem tentou acalmar Paulo que não conseguia conter a emoção e suava muito, mesmo assim, um pouco de mal jeito ele assinou o documento. Toda aquela agitação estava lhe causando dor.

                 - Meu Deus, acho que ele está passando mal. – Observou Débora. A porta do quarto foi subitamente aberta, dando passagem para uma enfermeira de cabelos negros cuja franja se deixava cair por sobre as grossas lentes dos óculos de grau. Ela fechou a porta em seguida e trazia um carrinho repleto de frascos de álcool e desinfetantes.

                   - Que bom que tenha vindo. – Disse Hella. – Acho que o paciente não está passando bem! – A enfermeira, sem dirigir o olhar para nenhum deles, foi logo tomando um frasco de álcool e se munindo de um pano enquanto lhes respondeu em tom de voz baixo:

                   - Estou realizando um trabalho de profilaxia devido ao surto de cólera, mas se deixarem o quarto poderei cuidar do paciente ou chamar a enfermeira responsável. – Disse, ao passo que começou a desinfetar as laterais da cama.

                   - É melhor deixarmos ele aos cuidados dela. – Decidiu Débora.

                   - Só tenho mais uma pergunta. – Disse Armando, meio constrangido pela presença da enfermeira. – Eu quero saber se o motivo de você estar aqui foi uma tentativa de suicídio? – Paulo, um pouco mais controlado moveu a cabeça negativamente. A enfermeira se levantou e permaneceu de costas. Armando continuou:

                     - Alguém tentou lhe matar? – Paulo se agitou e arregalou os seus olhos, movendo a cabeça positivamente. Num gesto desesperado ele estendeu a mão com o documento para que Armando o pegasse, tentando se mover e falar algo. Débora e Hella o seguraram. Paulo parecia estar em pânico. Percebendo que havia algo de errado, Armando foi mais do que rápido em pegar o documento da mão de Paulo, formulando-lhe a última pergunta:

                     - Por acaso a pessoa que tentou lhe matar foi Roselene Bordon Villas Bhoas? – Perguntou Armando, em tom alto de voz. A enfermeira deixou que o frasco de álcool se derramasse por cima da cama e de Paulo.

 

- Áh Deus, tenha cuidado! – Bradou Débora. A enfermeira se voltou, o nome que levava no crachá era “Carla”. Paulo desprendeu o seu braço da mangueira de soro e apontou para a enfermeira, gritando:

- F-foi ela!! – A enfermeira se lançou por sobre ele, cravando as suas unhas no seu pescoço violentamente.

Traidor maldito!!! – Bradou histérica. Devido à força do golpe ela conseguiu cravar uma das unhas na jugular de Paulo, que se debatia já sangrando aos borbotões.

Roselene!!! – Bradou Débora. Armando se projetou contra a enfermeira, ora Roselene, sendo de imediato seguido por Rafael e Jupiro. Roselene lhe respondeu com uma rápida e violenta cotovelada no ventre que o fez recuar. Ela se voltou para todos, tendo na mão um isqueiro:

- Um só movimento de qualquer um de vocês e eu transformo este miserável numa tocha humana. Além de estar queimando por dentro, ele o fará também por fora! – Bradou, referindo-se a Paulo.

- De nada vai adiantar, agora já está terminado! – Bradou Hella. – Roselene rapidamente tomou o frasco que ainda continha um pouco de álcool:

- Cale-se, bruxa ordinária! – Bradou, jogando o álcool nos olhos de Hella, que em meio a um grito levou as mãos ao rosto, caindo para trás. Possessa, Roselene tomou outro frasco que havia no carrinho perto de si e lançou o seu conteúdo sobre Armando, que recuou mas não pôde evitar. Ela passou a estilhaçar os outros frascos contra o chão de ladrilhos. Estavam todos imóveis e perplexos devido a ameaça dela atear fogo em tudo. Paulo já não mais se debatia e seus movimentos eram letárgicos. O sangue continuava a jorrar. Roselene acendeu o isqueiro, como que exibindo a sua chama e com uma voz jocosa ordenou:

- Eu sugiro que peguem mais álcool e joguem por suas roupas, ou então queimaremos juntos!! Andem! – Ordenou, arremessando os frascos vítreos na direção de Rafael e Jupiro. Eles não reagiram e os frascos depois de atingi-los, vieram ao chão, espalhando-se ainda mais pelo chão depois de ter respingado os seus ternos. – E a senhora titia? – Perguntou, abrindo o último frasco e jogando o seu conteúdo sobre Débora, que não conseguia conter o choro e o desespero. Ainda restaram sobre o carrinho alguns frascos de outros desinfetantes, que poderiam ser também substâncias inflamáveis. – Nenhum movimento e nenhum som, ou então vocês não saem daqui vivos! Agora afastem-se! – Ordenou ela, reascendendo a chama do isqueiro. Todos se afastaram lentamente para perto da janela, que estava fechada. Paulo estava imóvel sobre a cama e Roselene, sem tirar os olhos deles foi se dirigindo vagarosamente para a porta. A indignação nos olhos de Rafael o fazia lacrimejar, ante a impossibilidade de reagir. Já ao lado da porta e com a mão no trinco, acendendo e apagando a chama do isqueiro, ela se dirigiu novamente para eles, com o semblante transfigurado:

- Sabem, eu não sei qual foi a promessa absurda que eu fiz antes de ter de reencarnar neste planeta imundo! Não sei que malditos desígnios me reservaram uma convivência com seres tão mesquinhos quanto vocês! – Ela esboçou uma cara de nojo. – Vocês para mim são escória, são nada... são lixo! E lixo deve ser queimado! – Bradou. Logo o seu semblante se transformou do histérico para o infinitamente plácido e ela, ainda com o isqueiro numa das mãos, revolveu com a outra o bolso do seu uniforme, sem tirar os olhos deles. Muito calma ela lhes perguntou:

Alguém aqui fuma? – Ao passo que levou a sua piteira à boca. – Débora bradou instintivamente:

- Por favor, não!!! – Roselene esboçou um sorriso maquiavélico e continuou:

Eu não deveria nem mais estar perdendo o meu tempo com vocês, pois basta uma só chispa e vocês vão arder!

– E eu... – Roselene riu-se novamente. - ...eu chego a sentir arrepios de prazer só de imaginar as sensações que vocês estarão sentindo dentro de poucos instantes... Ouvi dizer que algumas pessoas demoram mais do que as outras para queimarem, o que vocês acham? Será que é verdade? Não, eu imagino que um bando de semoventes como vocês não devam saber... mas terão agora a chance única de experimentar na prática! – Hella continuava a se debater com as mãos segurando os olhos, Roselene se voltou para ela irônica:

                       - Mas pare de fazer cena, você mais parece o seu chimpanzé agindo desta maneira! – Paulo parecia já não respirar e tinha o pijama e as partes do lençol próximas ao pescoço empapados de s

angue. Débora, antevendo o que estava por vir, engoliu em seco e tentou argumentar calmamente:

                         - Minha filha... pense bem. Tudo isso por dinheiro? Se é dinheiro que você quer, nós lhe daremos a quantia que você quiser! Você está acabando com a sua vida por dinheiro!

                         - É, talvez... – Respondeu Roselene. - ...mas não vou parar agora que está tão fácil. Basta que eu acenda o cigarro e deixe a primeira brasa entrar em atrito com o álcool e vocês todos já serão passado. Sairei sem ser vista, pois trago comigo uma bolsa de disfarces que está guardada no necrotério. O socorro virá, mas será deveras tarde! Vocês, os empecilhos da minha vida, estarão mortos e eu finalmente realizada, vingada e livre!!

                         - Vingada do quê? Por que você faz isto? – Débora reparou no descontrole mental de sua sobrinha e estava tentando ganhar tempo.

                         - Por puro prazer, não sou do tipo que tem uma história traumática para contar. Não há um motivo especial, mas sim só o fato de eu ter nascido dentre esta humanidade animalizada e ainda ter de aturar vermes como vocês! Basta?

     - A sua consciência nunca te deixará em paz! – Disse Rafael, contendo o seu nervosismo.

                         - Pelo contrário, eu levarei esse momento como uma vitória contra a podridão e a mesquinharia que contaminam este pobre orbe e impedem que genialidades como a minha se expressem! A minha missão é evitar que o mundo seja dominado pelos fracos, néscios e ignorantes! Agora, se me dão licença, eu preciso fumar! – Roselene ascendeu o isqueiro e passou a conduzi-lo vagarosamente até a piteira. Houve um estrondo do lado de fora.

 

A porta veio abaixo empurrado Roselene para frente. Com o impacto o isqueiro veio ao chão. Rafael não perdeu tempo e se lançou por sobre ela. Na porta surgiu Lisiane, que bradava com alguém lá fora:

                         - ...mas como não posso? Tanto posso que já entrei!!! Que diabos está havendo aqui??! – Bradou, ao vislumbrar a situação. Rafael lutava com Roselene no chão e foi logo auxiliado por Jupiro e Armando. Lisiane foi sucedida por Claudia, que a empurrou e adentrou:

                         - Santa Castidade! O que é isso, sexo grupal? – Perguntou, protagonizando uma pose de pasmaceira. Logo surgiu Márcia, que ao ver tudo aquilo bocejou longamente. Atrás delas veio a enfermeira Sara que as tentava impedir que entrassem.

                         - Graças a Deus! – Bradou Débora, correndo ao socorro de Hella. – Por favor, ajudem aqui! Chamem também os médicos, Paulo perdeu muito sangue!! – Rafael, Jupiro e Armando, após uma árdua luta, conseguiram dominar Roselene, que ofegante sorria de modo estranho. Não demorou para que os seguranças do hospital tomassem conta dela até a chegada da polícia.

 

                           Depois de Hella ter sido medicada e Roselene ter sido levada para a cadeia, todos ainda aguardavam por notícias de Paulo que havia sido levado às pressas para a UTI do hospital. Eles estavam se refazendo do choque numa sala reservada que os mantinha longe de qualquer repórter que pudesse aparecer repentinamente:

                           - Eu deveria ter mandado filmar e fotografar toda essa pantomima para depois vender para todas as revistas, jornais e tablóides de fofocas a preço de ouro. Talvez assim eu pudesse tirar os nossos pés da lama! – Disse Lisiane, esmurrando o bebedouro para que ele liberasse a água.

                           - Não brinque com uma coisa dessas menina, já basta o que temos passado! – Repreendeu Débora, com a voz arrastada devido ao forte sedativo que lhe havia sido ministrado, tal era o seu estado de nervos quando tudo terminou. – Como estão os seus olhos, Hella? – Perguntou.

                           - Acho que ainda posso enxergar. – Disse Hella, pingando nos olhos uma espécie de colírio. Ela também estava sob o efeito de calmantes.

                           - Lisiane tem razão! – Interveio Claudia, que estava escarrapachada num dos sofás tendo as pernas apoiadas na parede. - A cena foi o must, principalmente na hora em que todos aqueles guardas belíssimos chegaram e levaram Roselene toda descabelada e com aquele uniforme de enfermeira chiquérrimo, que aqui para nós, ela é víbora mas arrasa nos modelitos! Eu fiquei imaginando se Roselene conseguisse se soltar dos braços fortes daqueles policiais e investisse selvagemente contra mim, rasgando-me todinha para que depois eu fosse salva, apenas com os fiapos da roupa, por todos aqueles homens truculentos ao mesmo tempo, que sairiam pelas escadas do hall de entrada comigo nos braços fazendo o “V” da vitória! Garanto que seria manchete em to...

                             - Chega! – Interrompeu Lisiane. – Se você quer ser manchete saia daqui nua pelos corredores afora bradando que você é zoófila! – Sugeriu.

                             - Credo “broa de mel”, não precisa falar desse jeito, pois até a Márcia... Márcia?!! – Interpelou Claudia, com um ar frustrado.

                               - Deixe-a, ela dorme e deve estar em meio a uma viagem astral por um clube de mulheres! – Disse Lisiane, referindo-se a Márcia, que dormia em pé e encostada na parede.

                                 - E como ronca ela, não? – Observou Claudia, cutucando com a ponta da unha do indicador um dos vãos entre os dentes.

                                 - Como vocês souberam que estaríamos aqui? – Perguntou Débora, para as sobrinhas. Ela tentava se mostrar mais forte do que era e despistava o seu estado tentando conversar.

                                 - Foi por acaso, já que há alguns dias realizamos entre nós uma reunião, que diga-se de passagem foi um tanto tumultuada e chegamos a conclusão que estávamos sendo passivos demais em relação a Roselene e que se conseguíssemos raptá-la, encostá-la na parede e enche-la de pancadas, ela certamente voltaria atrás e assinaria um documento que nós mesmas preparamos, onde confessaria a falsidade de todas as falcatruas que praticou... – Lisiane foi interrompida.

                                 - E você acha que seria tão simples assim? – Interveio Rafael, que redigia alguma coisa em outro dos sofás.

                                 - Ora, lá vem você! Ela assinaria sim, mesmo que fosse ante a mira de um revólver! – Respondeu Lisiane, irritada. – Certamente não iríamos ficar esperando ela limpar os pés encima de nós e por no ralo o pouco de dinheiro e patrimônio que nos restava!

                                   - Chega de tanta violência! – Repreendeu Hella.

                                   - O revólver foi idéia de Lisiane. – Interveio Claudia.

                                   - E foi mesmo, o resto foi idéia de Claudia. Tínhamos de tomar alguma providência enquanto vocês agiam como lesmas! Aí, estipulamos o dia de hoje para raptá-la. Começamos a segui-la desde o início da manhã, até ela chegar a este hospital e entrar num banheiro. Não contamos com o fato de que ela sairia dele disfarçada e só fomos nos dar conta depois, daí concluímos que ela poderia estar procurando por alguém. Perguntamos para a “besta humana” da recepção para que quarto a mulher ruiva e vestida de preto seguiu, pois foi a única mulher que saiu do banheiro após Roselene ter entrado e quando fomos lá verificar o banheiro estava vazio. Depois nós... onde foi que eu parei mesmo?

                                  - Na “besta humana” da recepção. – Ajudou Claudia.

                                   - Ela então nos revelou que a tal mulher ruiva procurava pelo quarto de Paulo Rivoredo, então não tivemos mais dúvidas. Perdemo-nos umas mil malditas vezes até chegarmos lá e... – Lisiane foi interrompida novamente.

                                   - E depois de Lisiane ter agredido duas enfermeiras e um segurança; além de vários escândalos e ataques histéricos, dela, é claro... conseguimos encontrar o quarto do pobrezinho do Paulo e deparamos com a “cena do século”! – Completou Claudia.

                                   - Foi pura coincidência. – Disse Lisiane.

                                   - Coincidências não existem. – Disse Jupiro, que também escrevia algo.

                                   - Mas o que é que os dois danadinhos tanto escrevem, heim? – Perguntou Claudia, referindo-se a Jupiro e Rafael.

                                     - Estamos fazendo a parte do escrivão e relatando tudo o que aconteceu para ser juntado com a carta testamento de Paulo e com o documento que ele assinou no quarto antes que tudo acontecesse. Ainda bem que conseguimos salvar o tal papel, pois isso facilitará as coisas para o Armando. – Explicou Rafael. Claudia voltou os olhos para Armando, que estivera até então alheio ao assunto.

                                     - E quem é ele? – Perguntou Claudia.

                                     - Um juiz de direito, gosma loura. – Interveio Lisiane.

                                      - Nossa, tão novo e juiz? Você é casado?

                                     - Claudia, não seja oferecida! – Ralhou Débora. – E o senhor, meritíssimo, o que acha que acontecerá com Roselene? – Perguntou, arrependendo-se em seguida por temer a resposta.

                                       - Depois de ler a carta testamento e admitindo as possibilidades de Roselene ter assassinado o falsário conhecido como “Mão de Fada”, o tabelião Luiz Heitor Linus e também a Paulo Rivoredo, tendo envenenado o seu champagne; além do aliciamento da menor conhecida por “Hafta Abdul”, descrita no testamento, eu elenquei alguns dos delitos e suas penas equivalentes, vocês gostariam mesmo de saber? – Perguntou Armando.

   - É evidente, afinal sou também uma advogada e não uma leiga tapada! – Interveio novamente, Lisiane.

   - Muito bem. – Disse Armando, depois de ter lançado um olhar de reprovação para Lisiane. – Espero que não se importem pelo fato dos crimes estarem fora de ordem cronológica e hierárquica.

- Não somos retardados, agora ande com isso. – Ordenou Lisiane. Desta vez Armando preferiu ignorar:

- Ao enganar para pegar as assinaturas em procuração, Roselene teria, em princípio, competido o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal Brasileiro, uma vez que utilizou-se de artifícios mendazes para induzir as tias em erro, com a finalidade de tirar proveito ilícito. Com evidente prejuízo às outorgantes em proveito próprio. A pena para este tipo de crime é a reclusão de 01 a 05 anos e multa. Neste crime há a co-autoria de Paulo Rivoredo. No caso do falsário Anacleto dias, vulgo “Mão de Fada”, o homicídio foi por motivo torpe tipificado no artigo 121, parágrafo 2º, inciso I do Código Penal. A pena varia de 12 a 30 anos, pelo fato de ser um crime hediondo a pena deverá ser cumprida inteiramente em regime fechado. – Armando deu uma pausa, corrigiu alguma coisa com a caneta e continuou:

- A falsificação de documentos, no que diz respeito a assinatura, está configurada no artigo 298 do Código Penal e a pena pode variar de 01 a 05 anos. Já quando nos referimos à co-autoria nas falsificações, ao contratar o falsário “Mão de Fada” que pode também ser enquadrado como co-autor, temos de enquadrar Roselene nos artigos 296, ou 297, ou 298 que tipifica a falsificação em documento público ou particular, como também a falsificação ou adulteração; combinando ainda, os anteriores, com o artigo 29 do Código Penal. A pena é a mesma dos crimes do falsário, sendo de 01 a 05 ou de 02 a 06 anos de reclusão mais a multa, podendo haver o concurso da matéria, ou seja, a sua afluência, com o artigo 69 do Código Penal, com a soma destas penas. Temos ainda o crime de falsa identidade quando Roselene se travestiu de Pagan Triloney para passar pela mesma, embora fictícia. Este crime está tipificado pelo artigo 307 do Código Penal e a pena é a detenção de 03 meses a 01 ano. Em todos estes crimes Paulo Rivoredo pode ser enquadrado como co-autor.

- Credo, como a endemoniada aprontou... Eu nem sabia da metade. – Resmungou Claudia.

   - É, e eu ainda nem falei do pior. – Disse Armando.

               - Então continue, “Army”, my darling! – Pediu Claudia, acocorando-se no sofá.

               - Se admitirmos a possibilidade de Roselene ter assassinado Luiz Heitor Linus, temos então um homicídio qualificado por meios cruéis, ao torturar e assassinar. Isto está configurado no artigo 121, parágrafo 2º, inciso III do Código Penal e a pena varia entre de 12 a 30 anos de reclusão em regime fechado. Agora, temos o pior de todos eles... a bomba no avião, onde há a co-autoria de Paulo Rivoredo e certamente outras pessoas que não sabemos quem é.

               - Bomba no avião??! – Perguntou Lisiane, pasma.

               - Sim, é uma história que as suas tias lhes contarão com mais calma. Roselene agiu com dolo geral e abrangente, nas mortes dos passageiros que foram cometidas com características de terrorismo, por isto o crime é hediondo. Apesar de ser concurso formal, aplica-se a última parte do artigo 70 do Código Penal, isto é: as penas são somadas, para cada homicídio, como se fosse concurso material entre os artigos 121, parágrafo 2º, combinado com o artigo 69, segunda parte e 29 do Código Penal. Como eu já disse trata-se de crime hediondo, insuscetível de anistia, graça ou liberdade provisória, devendo a pena ser cumprida inteiramente em regime fechado. Pena esta que é de até 30 anos para cada homicídio, no caso os oito passageiros e os dois pilotos.

- Ui... esta chegou a me arrepiar! – Disse Lisiane, esfregando os ombros com as mãos e mantendo a boca torta. Débora e Hella se mantinham quietas, aquilo tudo era muito difícil de ouvir novamente. Era como que uma mórbida confirmação de algo em que elas não quiseram acreditar anteriormente. – O que me conforta nessa história toda é que às vezes eu me condeno por ser grossa, histérica e briguenta, mas a Roselene me dá de dez, hã... Ainda tem mais alguma coisa que ela fez? – Perguntou Lisiane.

- Ainda tem a indução da menor conhecida como Hafta Abdul e a do próprio Frederico Bordon Villas Bhoas. Estes delitos também contam com a co-autoria de Paulo Rivoredo e se enquadram nos crimes de corrupção de menores previstos na Lei 2.252 de 1954 e a pena é a reclusão de 01 a 04 anos e multa.

- Ainda não sei do que se trata, mas no que se refere ao Fred, aposto que houve o dedo de tia Débora e tia Hella que confiavam cegamente naquela pústula! – Disparou Lisiane. Débora e Hella apenas abaixaram a cabeça. Armando, para evitar maiores constrangimentos, retomou a palavra:

- E para finalizar, se admitirmos a hipótese do envenenamento do champagne que Paulo Rivoredo ingeriu, isto figurará em homicídio qualificado, tipificado pelo artigo 121, parágrafo 2º, inciso III do Código Penal Brasileiro. A pena varia de 12 a 30 anos, pois este é também um crime hediondo. E... é isto. – Terminou Armando.

- Isto se não tiver mais coisas que não sabemos. – Resmungou Lisiane. – Débora, que já estava arrasada diante dos fatos, acabou por perder a paciência com a sobrinha:

- Mas pare de ficar ironizando o tempo todo, você até parece que está gostando de toda essa tragédia!

- E estou... estou adorando ver como vocês “deram com os burros n’água” de terem confiado tanto na sua sobrinha queridinha, enquanto que eu, a asna da Claudia e a pateta da Márcia fomos sempre as ovelhas negras... bobas, fúteis, ingênuas e inexperientes! Deu no que deu, não é?

- Muito bem, se é isso que você quer ouvir de novo, nós erramos!! – Bradou Hella. – Talvez você queira uma indenização em dinheiro, quer? – Lisiane olhou perplexa. Claudia, interferiu para abafar aquela discussão:

- Eu estava aqui, fazendo umas continhas... parece que se for condenada por tudo isso, a pobrezinha da Rose poderá passar o resto da vida na cadeia, não?

- Você também, Claudia? – Ralhou Hella. Armando tomou novamente a palavra.

- Bem, para cada homicídio qualificado, a pena vai até 30 anos de reclusão em regime fechado. Todas as penas deverão ser somadas como no concurso material, pois partiram de ações dolosas com desígnios autônomos e com finalidade definida. Isso não quer dizer que Roselene passará o resto da vida na cadeia, pois por maior que seja a pena, aqui no Brasil, o máximo que se cumpre é 30 anos, ou seja, a pena máxima é de 30 anos e a soma das penas é simplesmente formal. – Explicou Armando.

- Mesmo assim, 30 anos são uma vida... – Lamentou Débora.

- Eu ainda não sei ao certo, mas quando se der o julgamento, a promotoria poderá se valer da sanidade mental de Roselene como atenuante, tendo em vista o seu comportamento...

- O senhor acha que existe essa possibilidade? Ou seja... quem sabe se internarmos Roselene numa clínica e... – Débora se exaltou um pouco, tentando ver uma luz no fim do túnel.

               - A justiça é relativa... mas já adianto que não vale a pena se animar muito, pois Roselene é uma pessoa extremamente perigosa e deve ser retirada do convívio social, seja para uma penitenciária, seja para um sanatório. Tudo dependerá dos pontos de vista e dos argumentos. De qualquer modo ela será detida e aguardará pelo julgamento, Até ver-se-á o que se pode fazer. – Salientou Armando.

- Tudo dependerá do dinheiro que cair na mão do juiz... sei como essas coisas funcionam nesse país. – Interveio Lisiane. Armando engoliu em seco e respirou fundo, controlando-se para ainda não piorar mais a situação. Ele argumentou:

- Bem, tudo o que eu fiz foi uma análise superficial do caso, para fins de uma escorreita classificação típica, a seqüência dos fatos e a sua obscuridade trazem certa dificuldade, podendo por isso, não estar cem por cento correta esta minha classificação. De qualquer modo, acho que todo bom argumento é válido.

- Ao invés de ficarmos adivinhando o futuro da cascavel, por que não pensamos no que vamos fazer da nossa vida, do nosso patrimônio? O que o senhor diz, senhor Armando? – Perguntou Lisiane.

- Bem, só lhes resta agora propor a anulação de todos os atos para que retomem o seu patrimônio. – Respondeu Armando.

- E isso demora, “chuchu”? – Perguntou Claudia.

- Os atos devem ser anulados um por um, portanto deve levar algum tempo até que tudo volte ao normal. – Explicou o juiz.

- Quanto a isso o senhor Jupiro e Rafael já nos esclareceram como proceder, pois voltaremos a conduzir os empreendimentos Villas Bhoas como administradores de fato! E o mais rápido possível! – Regozijou-se Hella. – Agora temos de pensar somente nas coisas boas! – Completou.

- E por falar em coisas boas, eu ainda preciso saber mais sobre aquele menino que me abordou já hoje... o Júnior! – Lembrou-se Débora. – Pobrezinho, está com cólera e a mãe faleceu e ele ainda pensava que ela estava dormindo! Cortou-me o coração! – Lamentou-se Débora.

                 - O quê... que Júnior? Não nos arranje mais sarna para nos coçarmos, porque eu... – Lisiane foi interrompida por uma enfermeira e um médico que entraram na sala. Todos se levantaram, pois ambos deveriam ter notícias de Paulo.

- Como ele está doutor? – Perguntou Débora, ansiosa.

- Ele perdeu muito sangue. Quando chegou na Unidade de Terapia Intensiva ele

já estava clinicamente morto. Fizemos o possível mas não conseguimos trazê-lo devolta. Eu lamento. - Disse o médico, abaixando a cabeça.                

- Óh não... mais isso. – Disse Débora, ela não conseguiu evitar o choro.

De certa forma foi até melhor para ele. – Conformou-se Hella.

- Não sei se ele iria superar todo o trauma e se readaptar à vida tão facilmente. Às vezes Deus faz a coisa certa. – Disse Rafael.

- É... a víbora conseguiu fechar a boca do namorado delator, deste ela está livre... – Resmungou Lisiane. O médico ainda continuou ali e se manifestou novamente:

- Bem, sei que a hora não é própria, mas sinto-me na obrigação de lhes comunicar que provavelmente esta moça, Roselene, fez mais duas vítimas aqui no hospital: uma enfermeira que foi encontrada morta por asfixia e congelada dentro de uma das gavetas do necrotério e o atendente do mesmo, um senhor já idoso que morreu estrangulado com uma echarpe negra que tinha o mesmo perfume encontrado nas roupas que ficaram jogadas no chão do necrotério. Quanto à enfermeira, Roselene a matou para poder usar o seu uniforme e ter livre acesso ao almoxarifado do hospital donde pegou vários frascos de álcool e outros desinfetantes e, livre acesso aos quartos, é claro. O nome da enfermeira era Carla. O atendente ela certamente liqüidou para que ele não a delatasse para ninguém. E-eu sinto muito, agora se me derem licença, eu preciso me retirar. – Disse o médico, deixando o recinto acompanhado da enfermeira. Todos apenas se entreolharam perplexos.

 

Os clamores provinham de todos os lados. Eram gritos de dor, loucura e deboche. Roselene, ladeada por duas guardas sisudas, caminhava por entre os corredores frios da ala feminina da casa de detenção. Havia odor de mofo, esgoto e umidade. Sem palavras, ela foi remetida para uma cela que ficava praticamente no porão, a qual era destinada para as detentas mais perigosas.

Ao chegarem, depararam com um cubículo lotado de mulheres mal-encaradas e mal vestidas. Houve um burburinho quando viram Roselene. Comentários, deboches, risos. A promiscuidade naquele local era imperativa. Antes de Roselene ser lançada para atrás das grades, uma das guardas se manifestou, jocosa:

- Por enquanto você fica aqui, até que decidam para onde você vai. Elas são gente igual a você, da pior espécie! – Disse. Roselene foi empurrada para o interior. Ela se manteve calada, enquanto que as outras detentas, num número de quinze, formaram um círculo em torno dela. Uma delas, que parecia ser a líder, se fez dona da palavra:

- Carne nova... e parece ser da boa. – Ela era uma mulher musculosa e de cabelos louros oxigenados e maltratados. Vestia um macacão e usava uma faixa vermelha na testa. Fumava um cachimbo. – “Vamo vê se ela pode ficá aqui”? – Ela se voltou para as companheiras e fez um gesto com a cabeça dizendo:

- Vão em frente e aproveitem! – Disse, tragando o cachimbo. Roselene manteve-se calada. As outras detentas riram e se aproximaram. Roselene foi recuando e elas avançando, até que a grade fosse o limite.

As guardas que ainda observavam, sorriram maliciosamente e se retiraram.

Imprensada entre as grades e as detentas, Roselene deu para elas as costas e manteve sua cabeça encostada nas grades, olhando para fora. Sem nenhuma cerimônia, todas se amontoaram por sobre Roselene e passaram a apalpá-la libidinosamente. Ela não ofereceu resistência. As detentas agora já iam despindo Roselene, sem nenhum cuidado, rasgando algumas partes daquela roupa, que ainda era da enfermeira Carla, tal era a avidez com que a desejavam.

         Roselene cerrou os olhos, passou a língua por sobre os lábios e em seguida já lambia as barras de ferro, enquanto que aquelas dezenas de mãos a violavam por todas as partes do corpo, de maneira indelicada e rude. Em meio àquele deleite, Roselene abriu os olhos e deixou que seu olhar se perdesse num ponto indeterminado, como que se estivesse imaginando algo. As detentas não usavam agora somente as mãos, mas também suas bocas, que violavam Roselene nas suas partes mais íntimas, enquanto ela cedia de uma forma masoquista... E Roselene sorriu, da mesma maneira estranha que o fizera no hospital quando foi dominada. Ela sorriu e se voltou para o interior da cela, ficando de frente para as detentas. Já seminua, ela ergueu os braços e se entregou completamente. Logo, todas aquelas mulheres formaram um emaranhado de braços e pernas a pulsar por sobre Roselene.

 

           Os segundos originaram minutos... que formaram horas que se agruparam em dias... e os dias passaram, navegando suavemente nos ventos da mudança, nas notas musicais do efêmero, do impermanente...

           A casa sede do sítio estava iluminada, por dentro e em seu derredor, pois havia uma lona branca que cobria a parte do gramado que ia da casa até as proximidades da estrada em que Lisiane outro dia sofrera aquele inusitado acidente.

           Pela primeira vez, depois de tudo o que aconteceu, os Villas Bhoas abriam as portas da sua casa, desta vez no sítio, para receber os seus funcionários e brindar por um novo começo. Claudia, anfitriã por excelência, usava um dos seus extravagantes modelos vermelhos, falava e não parava de gesticular no meio de um círculo formado por grande parte dos funcionários e principalmente pelo juiz Armando Silveira Cristo, que passara a ser seu admirador:

           - Estou animadíssima com esse novo começo! – Dizia ela sorridente. – Estou doida para botar a marca Drawer a Dream para frente. Até já falei com Gilka, que aliás, falou que estaria aqui e não sei porque ainda não deu as caras! Vou por em prática aquela campanha publicitária sobre a qual eu lhes falei aquele dia no meu escritório. Inclusive tive idéias novas tais como a de atearmos fogo no terraço da matriz comigo lá em cima, vestida de “ninfa das selvas”, ou seja, usando um sumário “duas peças” feito com folhas de bananeira naturais. Aí, viria aquele helicóptero todo reluzente, com um enorme giroflex azul ligado e jogaria uma corda para que eu, toda indefesa e assustada em meio às chamas me agarrasse e subisse! Mas como sou uma pobre e delicada donzela, eu não conseguiria, sendo necessário que soldados do corpo de bombeiros descessem do helicóptero e amarrassem a corda em mim...

        - Soldados truculentos, lindos e musculosos, diga-se de passagem. – Disse Márcia, que estava ao lado, abraçada por Rafael.

         - E de preferência só com os capacetes, as botas, os apetrechos de bombeiro e uma sunga vermelha! – Completou Claudia.

         - Isto está mais para um videoclip gay do que para uma campanha publicitária, mas que seja. – Interveio Fred, que estava próximo, acompanhado de Samanta, Alex e Poliana. Claudia continuou:

           - Então, depois de eu estar devidamente enrodilhada por aquela corda grossa e pontilhada de flores silvestres, além de ter presa em mim uma echarpe quilométrica de tonalidade verde limão e com faíscas douradas; eu seria içada pelo helicóptero, protagonizando uma pose estilo Greta Garbo em “A Dama das Camélias”, depois eu atravessaria a cidade de ponta a ponta sendo que nisto surgiria um avião sendo pilotado pela senhorita Urogalo e desenharia um gigantesco coração de fumaça cor-de-rosa em torno de mim e do helicóptero e depois escreveria nos céus as palavras “Drawer a Dream”! E quando a câmera se aproximasse de mim que estaria bem no centro, pois estaria tudo sendo devidamente filmado e fotografado, eu sopraria um beijo e despencaria lá de cima para cair numa piscina envolta por águas dançantes, bobulhantes e multicoloridas sendo esguichadas, daí eu surgiria das profundezas tal qual Esther Williams e emergiria toda molhada e vestindo somente um gigantesco cocar de conchas douradas que não parariam de piscar! Então eu ergueria os meus braços, seria acompanhada por um coro de milhares de crianças que cantariam as palavras “Drawer a Dream” e eu viria subindo, subindo com os braços lá em cima e a orquestra chegaria ao clímax, encerrando com um primeiríssimo plano da minha cara sorridente e arreganhada, distribuindo beijos, é claro!! Não é lindo??! – Perguntou Claudia, empolgada.

         - Acho que neste final você deveria atear fogo em si mesma. – Resmungou Lisiane, que também estava ali, abraçada a Ricardo.

         - Mas senhorita Claudia, eu não sei pilotar aviões! – Reclamou Urogalo.

         - Áh, isso é de menos, a senhorita faz de conta... é efeito especial, truque de cinema!! E depois... – Claudia foi interrompida quando todos tiveram as suas atenções chamadas para um estranho borbulhar que começou a acontecer no centro do lago. Curiosas, as pessoas formaram um círculo em torno do mesmo, ao passo que aquele borbulhar, que vinha do fundo, ia aumentando e logo já dava lugar para uma plataforma que suportava uma criatura que usava um escafandro. Pelos gritos abafados e gestos ainda lentos daquela entidade que emergia, pôde-se logo perceber de quem se tratava:

         - Eu sabia que ela não iria faltar!! – Bradou Claudia, alvoroçando a sua cabeleira loura, naquela dia solta e lisa, num penteado estilo hippie. – Gilka, meu “rissole de camarão”, seja bem-vinda!! – Aquele escafandro se partiu pelo meio e do seu interior surgiu aquela peculiar mulher que vestia, desta vez, uma roupa de “Monstro da Lagoa Negra”. Ela deixou a plataforma e saiu do lago a nado. Já em terra firme, saltitantemente e sem ao menos cumprimentar ninguém, ela correu para o meio daquele salão improvisado embaixo da lona, tomou pelas mãos Pafúncio, o chimpanzé de Hella e passou a dançar loucamente com ele ante a pasmaceira de todos. A música era La Cucaracha.

 

         Minutos mais tarde, todos foram convidados a saborear o jantar, que tinha como prato principal um ragoût de galinha, especialidade de Hella que consistia numa espécie de cozido que levava frango, batata e uma porção de outros legumes. Além deste prato, havia também muito frango assado, empadão de galinha, frango a passarinho, frango ao molho pardo, risoto, salpicão e uma infinidade de iguarias a base da mesma carne, para o desespero de Claudia, Márcia e Lisiane.

         Logo depois que todos já haviam jantado, Débora resolveu apresentar os dois meninos que havia adotado. Tratava-se de Júnior a quem ela conhecera no hospital e do seu irmão menor Hugo. A mãe de ambos falecera de cólera deixando-os órfãos. Depois desta apresentação, Débora dirigiu algumas palavras para os seus funcionários:

         - Sempre os considerei como filhos e confiei não só na sua competência, como também na sua lealdade. E agora digo com conhecimento de causa, que não me arrependo, que estou orgulhosa de poder tê-los ao meu lado e seguir colocando a casa em ordem depois da tempestade. Os ventos fortes, a névoa cegante e a chuva inundadora passaram pelo nosso lar, levaram o que vieram para levar, balançaram os nossos laços, mas não os romperam, pois eles são fortes! E aqui estamos juntos e fortes nesta caminhada que nos ensina a cada dia que nada, nada nesta vida é para sempre, nem mesmo ela própria... nada fica para além do seu tempo. Tudo é efêmero, é impermanente e por isso nada pode ser alvo de apegos. Pelo contrário, a vida é uma constante mudança onde temos de aprender a mudar também e sem sofrer, fazendo da dor de um adeus ou de qualquer perda um motivo a mais para continuarmos cada vez melhores, cada vez mais flexíveis para percorrer as curvas da espiral do infinito “vir-a-ser”, aprendendo a ganhar e a perder, porque nada permanece, exceto o amor... Amor que damos, amor que recebemos, amor nas suas mais variadas formas... trabalho, bondade, caridade, confiança, dedicação, perseverança, fé... amor de um carinho, de um abraço, de um beijo... enfim amor. Esta é a única bagagem que levaremos conosco para toda a eternidade! Obrigada. – Débora foi aplaudida e ovacionada.

         - Tia Débora é a mais nova candidata à presidência da “Confederação de Planetas”. – Debochou Lisiane, que estava enganchada em Ricardo, um pouco mais ao longe.

         - O quê?! – Perguntou o rapaz confuso.

         - É, tia Débora sempre teve uma postura meio extraterrestre ou meio de santa perante os acontecimentos da vida, ela praticamente nunca se abala, aliás, nem ela e nem tia Hella. Elas podem chorar ali no momento, mas logo já estão prontas para outra, para segurarem todas as barras e consolar todo mundo. Está aí o exemplo... tomaram na cabeça até dizer chega com a sobrinha querida e no final ainda me adotam dois pirralhos! Eu tenho que admitir que são tias maravilhosas. – Afirmou a moça. Lisiane e Ricardo iam caminhando em direção ao lago que refletia naquele momento a luz da lua cheia que dava uma certa magia àquela noite.

         - E a sobrinha dessas tias? – Perguntou Ricardo.

         - Qual delas?

         - Esta que está agora ao meu lado! – Ricardo postou-se na frente de Lisiane.

         - O que é que tem?

         - Como ela está?

         - Ela é uma louca que aprendeu muito com a história toda, acho que ela deixou de ser uma dondoca fútil para se tornar uma mulher.

         - E será que no amor também? – Perguntou Ricardo, olhando no fundo dos olhos de Lisiane.

         - E não é que a louca tem ingressos para o clássico decisivo de futebol no domingo... para ela e para o namorado, mas ela não sabe se ele vai aceitar em acompanhá-la. A louca também comprou um uniforme de jogadora com chuteira e tudo. É claro que quando ela se olhou no espelho, ela se sentiu um tanto quanto deformada e masculinizada, mas enfim, ela está decidida a acompanhar o namorado nas tais peladas, para conferir se lá não há mulheres peladas também, e mais, ela quer participar das partidas, pois ela já se matriculou numa escola de futebol para mulheres! E como se ainda não bastasse, há mais um detalhe... – Lisiane deu uma pausa e falou dengosa: - Caso o namorado queira ir a essas partidas sozinho, para conversar em paz com os amigos e se encharcar de cerveja, a louca vai dar o maior incentivo! Desde, é claro, que não haja outras fulanas na parada e que o seu namorado não acabe virando gay e a troque por outro! Por que essa história de ficar todo mundo pelado no mesmo vestiário, não sei não! – Ricardo envolveu Lisiane por um abraço e encostou a sua testa na dela:

         - Se essa louca não existisse, o louco teria de inventá-la. Ela é a melhor louca do mundo e é por isso que o louco aqui, é completamente louco por ela! – Os dois uniram os lábios, formando uma bela silhueta diante do lago e sob a luz do luar.

 

Um escarcel de gritos apavorados cortou o silêncio funesto da ala feminina do complexo penitenciário. Eles provinham de baixo... dos porões que abrigavam as celas daquelas detentas tidas como mais perigosas e que lá aguardavam o julgamento. As guardas de plantão se deslocaram rapidamente para lá, imaginando de que se tratasse de mais uma costumeira rebelião ou de uma briga corriqueira. Ao chegarem diante da cela donde se originava toda a balbúrdia, elas constataram algo totalmente diferente e bizarro. A cela tinha todas as detentas agrilhoadas num canto, elas estampavam o pavor no rosto. Uma delas, ao divisar a presença das guardas, gritou:

         - Por favor, tirem essa coisa daqui!

         - Ou então tire a gente daqui, porque com essa criatura a gente não vai ficar! – Gritou outra detenta, apontando para o outro canto da cela. – Ela começou a falar e a fazer coisas estranhas. Queria nos atacar de um jeito que dava medo! De uma hora para outra ela ficou forte, parecia que estava possuída. E agora está assim! – Disse aos pratos a detenta, apontando para Roselene, que tal qual um réptil rastejava pelo chão da cela de uma forma ágil e horripilante...

 

                 Aparentemente

                 A lei pode estar mancomunada

                 Ao que pode mais

                 E o que pode mais se faz invisível

                 Vem e nos cega

                 Para que não o vejamos

                 E nem a nada mais

 

                 Para que não percebamos

                 Nunca...

                 Quais são as nossas reais fraquezas

                 Aquelas que vão além do consciente

                 Que nos tornam vulneráveis

                 Para sermos covardemente atacados

                 Quando menos esperamos

                 Para que não saibamos ler os símbolos

                 Que a vida nos escreve

 

                   É quando o tapete é puxado

                   E caímos

                   Para nos levantarmos

                   E novamente cairmos

                   São os ciclos que têm de ser observados

                   Eles são também uma lei

 

                   Lei que nos parece então injusta

                   Não a entendemos

                   Não percebemos os sinais

                   Não intuímos que aquele

                   Que parece poder mais

                   E nos abusa

                   E nos fere

                   Só o faz porque permitimos

                   Ação e reação

                   Porque um dia quebramos a harmonia

                   E tem de haver um reequilíbrio

                   Lei da compensação

                   O nosso reequilíbrio

                   Para que voltemos a enxergar

                   Muito além do invisível

                   E lutemos

                   Por aquilo que julgamos justo

 

                   Seremos então vitoriosos

                 Se a nossa lei

                   For análoga e harmônica

                   À Lei Única

                   Que é inexorável

                   Perfeita

                   Amor incondicional

                   Abrangendo em seu contexto Uno

                   O positivo e o negativo

                   O espírito e a matéria

                   O bem e o mal

                   A luz e a treva

 

                   E não há ninguém e nem nada

                   Em lugar algum

                   Para nos ensinar o que é justo

                   Mas sim somente

                   Para nos ajudar a lembrar

                   Daquilo que sempre soubemos

 

                                                                                Homar Paczkowski  

 

                      

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