Criar uma Loja Virtual Grátis
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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEMPEST / Julie Cross
TEMPEST / Julie Cross

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

T E M P E S T

 

                   Sábado, 11 de abril de 2009            

Ok, então é verdade. Eu posso viajar no tempo. Mas não é tão emocionante quanto parece. Não posso voltar no tempo e matar Hitler. Não posso ir para o futuro e ver quem vai vencer o campeonato de beisebol de 2038. Até agora, o máximo que já fiz foi voltar seis horas no tempo. Coisa de super-herói, certo?    

Esta noite, finalmente contei a outra pessoa o meu segredo. Alguém cujo QI está anos-luz à frente do meu, por isso teoricamente ele pode ser capaz de me entender. Adam só insistiu para que eu documentasse tudo. Para que fizesse um registro de praticamente todos os momentos daqui em diante. Na verdade, ele queria que eu registrasse os meus 18 anos de vida, mas eu disse para ele esquecer — por enquanto. Embora eu tenha concordado com essa ideia do diário, isso não significa que ela me agrade. Não é como se o mundo fosse acabar porque eu posso saltar no tempo. Ou como se eu fosse cumprir algum propósito maior, como salvar a raça humana da extinção. Mas, como disse Adam, devo viajar no tempo por algum motivo e cabe a nós descobrir por quê...    

 

 

                   TERÇA-FEIRA, 4 DE AGOSTO DE 2009, 12:15

– Quantos minutos eu devo voltar? – perguntei a Adam.    

Mantínhamos uma boa distância entre nós e a longa fila de crianças que se amontoavam em volta das instalações dos ursos polares.    

– Trinta minutos? – Adam sugeriu.    

– Ei, me dá isso aqui! – Holly agarrou o saquinho de balas que uma das crianças tinha surrupiado de um carrinho de bebê e me lançou um olhar exasperado. – Seria muito bom se você vigiasse o seu grupo de crianças.     – Foi mal, Hol. – Peguei Hunter no colo antes que seus impulsos cleptomaníacos piorassem. – Segure essa mão aí! – eu disse a ele.    

O garotinho deu um sorriso banguela e abriu as mãos gorduchas em frente ao meu rosto.    

– Pode olhar. Não tem nada.    

– Então continue assim, está bem? Você não precisa ficar pegando as coisas dos outros. – Coloquei-o de volta no chão e empurrei-o de leve na direção das outras crianças, que corriam na direção de uma larga faixa de grama reservada para os piqueniques dos campistas.

– Holly Flynn! – chamei, pegando a mão dela e entrelaçando seus dedos nos meus.    

Ela se virou para me olhar.    

– Você tem um fraco pelo garotinho cleptomaníaco, não tem?  

Eu sorri para ela e dei de ombros.    

– Pode ser.    

Seu rosto relaxou e ela puxou a parte da frente da minha camiseta, fazendo eu me aproximar antes de me beijar na bochecha.  

– Então... o que vai fazer esta noite?    

– Hum... tenho planos com esta loirinha linda. Só não consigo lembrar o que tínhamos planejado. É uma... surpresa.    

– Nada disso! – ela riu e balançou a cabeça. – Não acredito que esqueceu sua promessa de passar uma noite inteira comigo recitando Shakespeare... em francês... de trás pra frente. Depois íamos assistir Titanic e Um Lugar Chamado Notting Hill.    

– Eu devia estar bêbado quando disse isso. – Olhei por sobre o     ombro de Holly antes de beijá-la rapidamente na boca. – Mas vou concordar com Notting Hill.    

Ela revirou os olhos.

– Na verdade, a gente ia ver aquela banda com seus amigos, lembra?     Uma garotinha do grupo de Holly puxou o braço dela e apontou para o banheiro. Fui atrás dela para que pudéssemos discutir a minha incapacidade de fazer planos com duas semanas de antecedência e me lembrar deles duas semanas depois.    

– Ei, Jackson, vem cá! – chamou Adam, acenando com a cabeça na direção de uma árvore.    

Intervalo para planejamento preciso e exato de viagem no tempo.    

– Você vai com a gente ver aquela banda hoje à noite? – perguntei     a ele.    

O que eu queria saber mesmo era se ele se lembrava.    

– Hum... vejamos. Passar a noite toda com seus amigos do colegial que, segundo ouvi, são uma versão da vida real de Gossip Girl? Sem mencionar o salário inteiro gasto com uma porçãozinha e algumas bebidas? – Ele balançou a cabeça e sorriu. – O que acha?    

– Já entendi. Que tal irmos então a algum lugar perto da casa de vocês, amanhã?    

– Parece bom.

– Então, tudo bem, vamos nessa. Não consigo comer nada fedendo a camelo desse jeito, então podemos fazer a experiência agora mesmo.    

Adam jogou o diário no meu colo e atirou a caneta em cima.    

– Escreva aí o seu objetivo, porque viajar no tempo sem um objetivo é simplesmente...    

– ...imprudência – eu disse, terminando a frase para ele e tentando não suspirar.    

– A loja de lembranças está bem atrás de nós. Eu observei a loja durante a última hora e a mesma garota ficou no caixa o tempo todo.    

– De olho na garota, hein?    

Adam revirou os olhos e tirou o cabelo preto da testa.    

– Ok, agora programe o seu cronômetro e depois volte trinta minutos no tempo. Vá à loja de lembranças e faça o que for preciso para que ela se lembre do seu nome.    

– Isso se chama “flertar” – eu disse baixinho, para que ninguém escutasse. Depois me concentrei em fazer minhas anotações antes que Holly voltasse do banheiro.

 

Objetivo: Testar teoria com alguém que não tenha conhecimento do experimento.    

Teoria: Acontecimentos e ocorrências, inclusive interação humana, durante viagem ao passado, NÃO afetam o presente.

 

Traduzindo: eu salto trinta minutos no tempo, passo uma cantada na garota da loja, volto para o presente, entro na loja de novo e vejo se ela me reconhece.    

Ela não vai me reconhecer.    

Mas Adam Silverman, primeiro lugar na Feira Nacional de Ciências de 2009 e futuro aluno do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, não confirmará essa conclusão até que eu a tenha testado de Todos. Os. Ângulos. Possíveis. Sinceramente, eu não me importo. Às vezes é divertido e, até alguns meses atrás, apenas eu sabia do que era capaz de fazer. Agora que esse número dobrou, eu me sinto um pouquinho menos estranho.    

E um pouquinho menos solitário.    

Mas eu nunca tinha feito amizade com um gênio da ciência. Embora Adam seja mais do tipo hacker que invade sites do governo. O que é bem mais maneiro, na minha opinião.    

– Você tem certeza de que pode saltar exatos trinta minutos? – Adam perguntou.    

Dei de ombros.    

– Sim, provavelmente.

– Só não deixe de anotar o horário. Eu vou registrar os segundos que você vai ficar aqui, vegetando – disse Adam, colocando o cronômetro na minha mão.    

– É assim que eu fico quando salto no tempo? Quantos segundos acha que vou ficar “vegetando”? – perguntei.    

– Acho que uma excursão de vinte minutos, voltando trinta minutos no passado, vai deixá-lo catatônico no presente durante uns dois segundos.    

– Onde eu estava trinta minutos atrás, pra que não dê de cara comigo mesmo?     Adam ligou e desligou o cronômetro umas dez vezes antes de me responder. Esse cara é totalmente obsessivo-compulsivo...    

– Você estava lá dentro, olhando os pinguins.  

– Tudo bem, vou tentar não acabar lá dentro.    

– Nós dois sabemos que você pode escolher sua localização se realmente se concentrar, por isso não me venha com essa história de “não sei onde vou acabar...” – zombou Adam.    

Talvez ele estivesse certo, mas é duro não pensar em nada além de um único lugar. Basta pensar por meio segundo em outro que não seja o lugar planejado e acabo indo parar lá.

– Ah, sim, claro. Então vá você, se acha assim tão fácil.    

– Bem que eu gostaria.    

Eu entendo por que alguém como Adam é tão fascinado pelo que eu faço, mas não encaro a capacidade de viajar no tempo exatamente como um superpoder. Só uma espécie de aberração da natureza. Uma aberração assustadora, a propósito.    

Olhei o relógio, 12:25, então fechei os olhos e me concentrei em trinta minutos no passado e no ponto exato em que queria estar, embora eu na verdade não tivesse a mínima ideia de como fazer isso.    

A primeira vez que saltei no tempo tinha sido oito meses antes, durante o meu primeiro semestre da faculdade. Eu estava sentado na carteira, no meio da aula de poesia francesa. Cochilei por alguns minutos e acordei com uma brisa fria e uma porta batendo na minha cara. Eu estava na frente do meu dormitório. Antes que tivesse chance de entrar em pânico, já estava de volta à sala de aula.    

Aí entrei em pânico.

Agora é divertido, na maioria das vezes. Embora eu ainda não faça ideia do dia ou do tempo para o qual saltei aquela primeira vez. Desde os primeiros registros até hoje, minhas viagens progrediram de seis para 48 horas no passado. Saltar para o futuro ainda não consigo, mas não vou parar de tentar.    

A sensação conhecida de me partir ao meio toma conta de mim. Eu seguro a respiração e espero que passe. Nunca é agradável, mas a gente acaba se acostumando.

 

                   TERÇA-FEIRA, 4 DE AGOSTO DE 2009, 11:57

Quando abri os olhos novamente, Adam tinha sumido, assim como o restante das crianças e os meus colegas de trabalho. A horrível sensação de ser dividido ao meio tinha passado e sido substituída pela leveza que eu sempre sentia durante um salto no tempo. Como se eu pudesse correr quilômetros sem sentir nem uma dorzinha nas pernas.    

Olhei em volta. Eu estava com sorte. Todo mundo parecia ocupado demais, admirando os animais, para reparar em mim, materializando-me do nada. Felizmente até hoje não tive que explicar isso a ninguém.    

Apertei o botão para disparar o cronômetro e olhei para o grande relógio sobre a entrada do zoológico.    

11:57. Quase no alvo. Andei na direção da loja e entrei. A garota do caixa parecia ter a minha idade, talvez um pouquinho mais velha. Estava com os cotovelos no balcão e a cabeça apoiada nas mãos, olhando a parede.    

Sempre que fazíamos esses pequenos experimentos, eu tinha que me lembrar constantemente de um fato muito importante: quando se trata de viagens no tempo, Hollywood entendeu tudo errado.

Estou falando sério.    

Aqui vai a parte mais estranha dessa história. A garota do outro lado do balcão poderia me dar um soco no nariz, talvez até quebrá-lo, e quando eu saltasse para o presente meu nariz estaria roxo ou dolorido, mas não quebrado. A razão de ele não estar quebrado é uma outra história, totalmente diferente (e inexplicável), mas a questão é... eu vou me lembrar de ter levado um soco.    

Se eu quebrar o nariz dela, então, quando eu voltar para o presente, ela estará intacta e não se lembrará de coisa alguma. Evidentemente, eu deveria provar essa teoria exatamente agora (mais uma vez). Bem... exceto pela parte de dar um soco nela. De qualquer maneira, o resultado seria o mesmo.    

– Oi – cumprimentei-a. – Você tem... filtro solar?    

Ela nem fez contato visual comigo, só apontou para a parede à esquerda. Eu fui até lá, peguei quatro frascos diferentes e depois voltei para o balcão.    

– Então... você estuda na NYU ou na...?

– Sabe que pode comprar esses mesmos filtros em qualquer outro lugar por, tipo, a metade do preço, né?    

– Obrigado pela dica, mas estou precisando deles agora. – Eu me curvei sobre o balcão, bem na frente dela.    

Ela endireitou as costas e começou a passar a minha compra na registradora.    

– Quatro frascos? Sério?  

Tudo bem... era um pouco demais só pra cantar uma garota.    

– Ok, vou levar um só. Aposto que você não ganha comissão.    

– Você é monitor do acampamento? – ela perguntou de um jeito desdenhoso, olhando minha camiseta verde do uniforme.    

– Sou.    

A garota deu uma risadinha abafada e pegou o cartão de crédito da minha mão.    

– Você não se lembra mesmo de mim?    

Eu tive que fazer uma pausa para processar as palavras dela.

– Hum...    

– Karen... eu me sentei atrás de você na aula de economia durante todo o semestre. O professor Larson o chamava de desajustado e dizia que você precisava começar a entender um pouco melhor como é a realidade financeira de um aluno universitário. – Ela revirou os olhos para mim. – É por isso que você arranjou um emprego?    

– Não. – Era a mais pura verdade. Eu não tinha salário. Era voluntário, mas não ia dizer isso a ela. Ela obviamente já tinha uma opinião formada sobre a minha pessoa. – Bem... foi bom te ver, Karen.    

– Até mais – ela murmurou.    

Saí da loja rapidamente. Saltar para o presente não exigia o mesmo nível de concentração, principalmente porque eu sempre tinha que voltar ao presente antes de poder fazer outro salto no tempo. Adam chamava o presente de minha “base principal”, como no beisebol. Ele é mestre na arte de simplificar as coisas para que eu entenda. E as analogias com o beisebol são as minhas favoritas. Com um pouco de sorte, eu não voltaria do meu estado catatônico com um bando de estranhos me encarando.

 

                    TERÇA-FEIRA, 4 DE AGOSTO DE 2009, 12:25

Quando abri os olhos outra vez, Adam estava inclinado sobre mim, me olhando.    

– Jackson?    

– Cara, você precisa de uma bala de menta – murmurei, empurrando-o para o lado.    

– Você ficou como um zumbi por 1,8 segundo. Eu estava quase certo. Muito em breve terei dados suficientes para fazer cálculos exatos. Você não sofreu nada desta vez, não é?    

– Não.    

Eu sabia muito bem por que ele estava perguntando. Na semana anterior, saltei duas horas no tempo, perdi a concentração e, em vez de aparecer dentro do meu apartamento, fui parar no meio da rua. Um caminhão me acertou em cheio na perna. Quando voltei para a base principal, senti uma pontada forte na coxa e depois a dor sumiu. Aquele caminhão devia ter estraçalhado a minha perna, mas só um leve hematoma apareceu, e nada mais.    

Eu fiquei ali em pé, batendo a mão na parte de trás da calça para tirar o pó.

– Aparentemente, fazíamos uma matéria juntos – expliquei para Adam. – Mas acho que agora ela deve estar meio brava comigo, porque não a reconheci. Quer dizer, no passado. Você sabe o que quero dizer. Então, se a teoria estiver errada e eu de fato mudar alguma coisa, ela não vai gostar muito de me ver novamente.  

– Vamos descobrir. – Adam acenou para Holly. – Ei, Hol, já estamos de volta.    

Eu peguei Hunter, que estava saindo lentamente do gramado e andando na direção de uma pilha de mochilas abandonadas, sem dúvida em busca de algumas moedas escondidas nos bolsos.    

– Vem cá, vem fazer compras conosco, tampinha.    

Nós três atravessamos a porta da loja quando a balconista despejava uma caixa de chaveiros num recipiente de plástico. Parei e olhei para ela, me fazendo de desentendido.    

– Você não está... na minha classe de economia?     Os olhos dela se iluminaram e ela sorriu um pouco.    

– Estou... do professor Larson.    

Ding, ding, dois pontos para Jackson Meyer. Ela não se lembrava de que estava brava comigo. Justamente como eu disse. Nada mudou em resultado do meu salto de trinta minutos ao passado.

– Karen, certo? – perguntei.    

Ela levantou as sobrancelhas.    

– E você é Jackson, que faz poesia francesa, certo?    

Adam resmungou e me empurrou ao passar.    

– Aqui não tem nada que eu quero. Vamos embora.    

Ignorei Adam e coloquei Hunter sentado no balcão.    

– Literatura inglesa também. Tenho duas básicas.    

Embora minhas pequenas excursões ao passado não mudem nada na minha base principal, elas me dão algumas vantagens, como informações extras. Por isso, a meu ver, teoricamente, a viagem no tempo na verdade causa, sim, mudanças.    

Ela causa mudanças em mim.    

Adam, Hunter e eu saímos da loja e paramos do lado de fora ao dar de cara com Holly. Ela tinha um monte de lixo nas mãos e os jogava num latão do lado de fora da loja. Eu peguei a mão dela e puxei-a para baixo de uma árvore que nos manteria fora da visão de todos.    

– Adam tem uma queda pela garota da loja. Eu estava tentando ajudá-lo.    

Holly riu e eu a empurrei com o dedo até que encostasse na árvore.

– Hunter roubou alguma coisa? – ela murmurou, mas meus lábios já cobriam os dela, impedindo que falasse claramente.    

– Não que eu saiba. – Eu a beijei de novo e senti um pingo na minha bochecha. Nós nos separamos e olhamos para cima, justamente quando o céu pareceu se abrir e começou um temporal.    

– Droga! Pensei que faria tempo bom o dia inteiro – reclamou Holly.     Saímos de debaixo da nossa árvore e corremos para o gramado, onde Adam e os outros monitores já organizavam a fila de crianças.    

Alguns pequenos gritaram quando ouviram o estrondo alto de um trovão através do zoológico.    

– Estamos indo para o ônibus? – perguntei a Adam.    

– Estamos – ele gritou de volta, tentando se fazer ouvir sobre o barulho da tempestade repentina.    

As crianças começaram a correr em ziguezague, protegendo a cabeça com a mochila. Holly e Adam corriam na frente da fila e eu fiquei por último para apressar os retardatários, enquanto trotávamos rumo à saída.

Por sorte, o ônibus estava estacionado bem na frente da entrada. A essa altura, minhas roupas e meu tênis já estavam completamente encharcados. Justo quando eu ergui a última criança e a depositei nos degraus do ônibus, vi uma garotinha de cabelo ruivo, de uns 10 ou 11 anos de idade, parada do lado de fora, sozinha. Ela estava de costas para mim e tudo o que eu podia ver era o cabelo dela e a calça jeans, sob a camiseta de mangas compridas. A água pingava da sua longa trança.    

Senti o coração martelando nos ouvidos enquanto as teorias davam voltas na minha cabeça.    

Não podia ser ela.    

Mas e se fosse?    

Andei na direção da garota e ouvi Holly gritar através da chuva:    

– Jackson, aonde você vai?    

– Aquela garota não está conosco – gritou Adam. – Anda. Vamos nessa!    

Meus passos ficaram mais longos e rápidos até eu finalmente chegar onde ela estava. Bati no ombro dela e a garota se virou instantaneamente. Os olhos se arregalaram por um segundo e depois sua expressão se suavizou num sorriso. Se, por acaso, fosse ela, será que me reconheceria?

A chuva golpeava o piso de asfalto e um raio iluminou o céu agora escuro.    

– Jackson! – gritou Holly outra vez.    

Meu coração ficou apertado. Os olhos da garotinha eram azuis. Não verdes. Foi um alívio e ao mesmo tempo uma grande decepção.    

– Hã... desculpe. Pensei que fosse outra pessoa.    

Virei as costas e corri de volta para o ônibus. Dúzias de cabecinhas me observavam da janela. Galguei os degraus e sacudi as gotas de chuva do cabelo. Todos os olhos tinham se transferido da janela para mim, agora em pé no meio do corredor do ônibus. O olhar de Holly se fixou em mim por um segundo, mas eu passei por ela e deslizei para o assento ao lado de Adam.     Senti uma pontada de culpa quando Holly se sentou sozinha numa poltrona vazia, sem fazer nenhuma pergunta. E eu sabia que ela queria fazer. Do jeito como todo mundo estava me olhando, deveria ter sido uma cena e tanto.    

– Por que você foi atrás daquela menina? – perguntou Adam.    

Eu tive que desviar o olhar.    

– Por nada... ela só se parecia com alguém. Alarme falso. Nada de mais.

Adam chegou mais perto e falou outra vez, depois de um minuto de silêncio.    

– Ela se parecia com Courtney, não é?    

Eu suspirei, mas por fim assenti com a cabeça.    

– É idiotice, eu sei.    

– Não é idiotice. Acontece com as pessoas o tempo todo. – Ele sorveu uma golfada rápida de ar antes de sussurrar. – Ei... você não acha que... hum... é uma teoria interessante, mas haveria muitos problemas logísticos.    

– Esqueça – eu disse, antes que ele começasse a me encher de perguntas. – Por favor.    

Não havia escapatória. Minha irmã gêmea estava morta. Já tinham se passado quatro anos e aquilo ainda me assombrava. Ela ainda me     assombrava. Principalmente porque me fazia muita falta.    

Quando estávamos enfileirados para sair do ônibus, Holly esperou por mim e bloqueou a minha passagem.    

– Tudo bem com você?    

Eu a olhei nos olhos, cheios de preocupação, depois dei de ombros.    

– Tudo, por quê?

Sua expressão desmoronou um pouco e ela se virou de costas para mim.    

– Nada... deixa pra lá.    

Tenho que admitir, eu me saio muito mal com essa coisa de ser pessoal, de ter uma namorada. Holly nunca chegou e disse isso, mas eu sabia o que ela pensava.    

Tirei dos ombros dela a mochila encharcada e atirei-a sobre as minhas costas.    

– Então... você não quer dar uma passada em casa... talvez se secar antes de irmos a algum lugar...    

Ela saltou o último degrau e subiu na calçada antes de olhar para mim e sorrir.    

– Claro.    

Envolvi com a mão seu rabo de cavalo loiro e espremi a água dos seus cabelos.    

– Acho que você vai precisar de um secador.    

Ela colocou as mãos no meu rosto, os olhos azuis-claros ficando     sérios, como os de Adam alguns minutos antes.    

– Tem certeza de que está bem? O que você estava fazendo...    

– Só sou meio esquisito às vezes. Só isso. – Forcei um sorriso e virei os ombros dela na direção das portas da ACM, para que pudéssemos sair da chuva.

 

                   SEXTA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2009, 18:00

Esta noite, eu e meu parceiro vamos colocar em prática um plano que estamos bolando faz um tempo: roubar os registros médicos do consultório do dr. Melvin. Adam está convencido de que podemos descobrir algo nesses registros que explique por que eu sou uma aberração da natureza. Mas, sério, será que ele acha que vai estar escrito do lado de fora do meu arquivo: “Viajante no tempo Pirado”?    

Passei os últimos dois dias observando os horários confusos e extremamente inconstantes do dr. Melvin. Basicamente, ele trabalha o tempo todo. Com exceção de duas noites atrás. Este experimento envolve um salto de dois dias no tempo (meu atual recorde) e algumas manobras muito científicas e tortuosas.

Adam está voltando do MIT agora e está provavelmente arrancando os cabelos, tentando pensar em todas as fórmulas de antemão. Eu fiz a minha parte, tomando nota do meu objetivo e agora só tenho que refazer meus planos com Holly. As idas de Adam à minha casa têm sido tão de última hora desde que as aulas começaram que eu vivo cancelando meus encontros com Holly. Mas ela também vive ocupada com suas aulas e uma espécie de grupo de dança. Provavelmente vai ficar aliviada. Além disso, ainda posso levá-la para jantar, só não vai dar para ir ao cinema... Falando em jantar, putz! Já estou quinze minutos atrasado.    

Continuo os registros mais tarde.

 

                   29 DE OUTUBRO DE 2009, 21:30    

Admito, talvez Holly não tenha encarado a mudança de planos tão numa boa quanto pensei.    

– Anda, Holly, abre a porta.    

Duas garotas passaram de roupão de banho, dando risadinhas.    

Eu me virei para Lydia.    

– Ela não quer ver você – a garota zombou. – É justamente por causa disso que não quero homem nenhum na minha vida. Faz quase um mês que digo a Holly que ela precisa fazer o mesmo.    

Tive que lutar contra o ímpeto de mandar a colega de quarto eternamente furiosa de Holly calar a boca. Os braços dela estavam abertos em frente à porta, bloqueando a minha passagem, como se eu pudesse tentar derrubá-la ou coisa assim.    

– Lydia, você não tem uma reunião do fã-clube da Sylvia Plath pra ir?    

Uma música começou a tocar do outro lado da porta.

– Você é tão engraçadinho, Jackson. Mas eu não vou te dar a minha chave.    

Bati a cabeça de leve na parede ao lado da porta.    

– Por favor, me deixe entrar – gritei para Holly.    

– Não desculpe o Jackson! Ele vive te enrolando! O tempo todo! – Lydia gritou para ela.    

Ok, acho que vou estrangular essa garota...    

Uma porta se abriu de repente atrás de nós e eu me virei para ver a garota de pé ali, com um livro volumoso nos braços.    

– Jackson, eu sinto muito, mas tenho que estudar. E, Lydia, por favor, cale essa boca. Ninguém está nem aí com as suas pregações cheias de ira, incitando o ódio contra os homens.    

A música que vinha do quarto de Holly ficou ainda mais alta. Eu me virei para Lydia e gritei para que ela me ouvisse apesar do barulho:    

– Eu te dou cem pratas se me emprestar a sua chave e desaparecer esta noite.    

Fiquei à espera do seu sermão sobre a violação das regras dos dormitórios ou alguma outra merda sobre mulheres que desistem das suas “chaves” metafóricas na vida.    

Para minha surpresa, ela levantou as sobrancelhas escuras e disse:

– Faço por duzentos.    

Eu abri a carteira, tirei dali um cartão de crédito e o coloquei na mão dela.    

– Some daqui.    

Ela jogou a chave no chão à minha frente e saiu andando pelo corredor. Suspirei, aliviado.    

– Obrigada! – a garota exclamou atrás de mim.    

Peguei a chave do chão e segurei-a na posição, com a mão na maçaneta.    

– Hol, por favor, fale comigo.    

A única resposta que tive foi o refrão de uma música da Pink. Enfiei a chave na fechadura e abri a porta devagar, esperando ver Holly em pé do outro lado do dormitório, esperando por mim. Ela podia roubar a minha chave e me pôr para fora dali.    

Um sapato vermelho voou através do cômodo e bateu na parede acima da janela. Eu entrei e fechei a porta, antes de dar uma olhada no quarto. Os pés de Holly estavam à mostra no vão da porta do armário, junto com a barra do seu roupão de banho azul.

Eu não tinha certeza se ela tinha me ouvido entrar, mas, pensando bem, o sapato atirado devia ser para mim. Não seria a primeira vez que uma garota atirava um sapato em mim, mas partindo de Holly isso me surpreendia um pouco.    

Tive que me desviar de uma sandália marrom, quando atravessei o quarto para desligar o aparelho de som. Tão logo a música parou, ela desistiu de atirar coisas em mim, saiu do armário e ficou parada na minha frente.    

– Tenho boas notícias! – eu disse, tentando sorrir, embora não me sentisse muito no clima. – Lydia concordou em fechar aquela matraca cheia de ira pelo preço certo. Ela só vai voltar amanhã.    

– Sério? Você pagou a minha colega de quarto pra passar a noite fora?     Não havia nem um pingo de divertimento no rosto dela. Um nó se formou no meu estômago.    

– Me diga qual é o problema. O que eu fiz? – Ao dizer isso eu tinha admitido que sabia que ela não estava zangada só porque o cinema tinha furado. Pouco inteligente da minha parte. Estendi a mão, mas ela continuou de braços cruzados.    

– Você está sempre escondendo as coisas de mim, correndo por aí com o Adam, como duas crianças.

– Está com ciúme? Eu sei que você fez amizade com ele primeiro, mas talvez a gente possa revezar os encontros. – Ruim. Muito ruim. Com certeza, a coisa errada para se dizer. Eu me encolhi, esperando que ela gritasse ou agarrasse outro sapato para atirar na minha direção.    

Ela se virou de costas, andou até a escrivaninha e mexeu numa pilha de papéis.    

– Tudo bem. Você está certo. Isso não é grande coisa.    

Não seria possível acrescentar mais uma gota de sarcasmo na sua voz. E ele me atingiu como uma lufada de ar glacial. Corri os dedos pelos cabelos e tentei pensar em alguma coisa decente para dizer. Ou decidir se devia correr dali. Em vez disso, resolvi mudar de assunto.    

– Você perdeu... alguma coisa? Estava vasculhando o armário.    

– Perdi. Um dos meus cartões de memória. – Ela atirou um livro sobre a escrivaninha com força, ainda de costas para mim. – Eu realmente preciso estudar, ok?    

Eu apanhei dois sapatos do chão e atirei-os de volta no armário.    

– Bom... talvez eu possa ajudar...

– Não – ela disse rápido, antes de apertar o botão para ligar o monitor do computador. Expirou o ar dos pulmões e seus ombros relaxaram. – Sério, Jackson, vá embora para que eu possa fazer alguma coisa. Por favor.    

Já não havia sarcasmo em sua voz. Só um tom exausto e levemente exasperado. Ela estava me deixando uma saída fácil para escapar da briga, mas a curiosidade levou a melhor sobre mim e eu abri a boca outra vez.    

– Hol, por que está tão furiosa?    

Ela balançou levemente a cabeça.    

– Não estou... furiosa com você.    

Eu soltei um suspiro de frustração.    

– Então o que...?    

O que quer de mim?, eu ia começar a dizer, porque realmente não sabia. Mas as palavras ficaram presas na minha garganta quando vi uma lágrima molhar a folha de papel em frente a ela. Dei dois passos na direção dela e ela se virou para mim, me dando a chance de ver suas lágrimas por um segundo antes de encostar a cabeça no meu peito e esconder o rosto.

– Você nunca me diz nada... é... é como se você tivesse outra vida e eu não pudesse fazer parte dela.    

Ouvir sua voz trêmula com o choro me abalou mais do que eu esperava. Eu devia ter corrido dali enquanto havia tempo. Mas passei os braços em torno dela e apertei seus ombros.    

– Não tive intenção de te deixar de lado. Eu... eu sinto muito.    

Holly se esquivou do meu abraço e se deixou cair pesadamente na cama, o cabelo loiro esparramado em volta dela. Ela grunhiu alto.    

– Que droga! Detesto não conseguir ficar furiosa com você!    

Eu soltei o ar que nem tinha reparado que estava prendendo e me deitei ao lado dela, enterrando o rosto em seu pescoço.    

– Achei que tinha ouvido você dizer que não estava furiosa comigo.     Ela cobriu os olhos com as mãos e pressionou-os.    

– Eu estava. Não estou mais.    

– Isso significa que vamos transar para fazer as pazes?    

Ela abriu um sorriso, depois sua boca formou uma linha fina outra vez.

Ela abriu um sorriso, depois sua boca formou uma linha fina outra vez.    

– Só se prometer não ter mais segredos... nunca mais.    

Impossível. De jeito nenhum.    

Ela se sentou na cama e eu passei a mão pelas costas dela.    

– Você vai acabar concordando de qualquer jeito...    

Ela se virou e ergueu as sobrancelhas.    

– Experimente...    

– Tudo bem, eu prometo.    

– Mentiroso. – Ela riu e tirou a minha camiseta, atirando-a sobre o abajur. – Lydia vai estar insuportável amanhã.    

Eu a fiz se deitar novamente e afrouxei o nó do roupão.    

– Ela pelo menos vai estar com duzentas pratas no bolso, então não vai ter do que reclamar. E, me diga, quando é que ela não está insuportável?    

– Nunca. Mas obrigada por me dar uma noite livre de sermões feministas.    

Eu me curvei sobre ela e sussurrei:

– É a sua recompensa por fazermos as pazes.    

Ela sacudiu os ombros para se livrar do roupão.    

– Vou ganhar mais alguma coisa?    

– Tipo um carro novo?    

– Não.    

– Uma barra daqueles chocolates caríssimos sem lactose?    

Ela beijou a extensão do meu pescoço.    

– Você sabe o que eu quero.    

Eu gemi alto.    

– Sem chance.    

– Por favor...    

– Você está me transformando numa completa aberração. Ou pior –numa aberração sentimental. – Cometi o erro de virar a cabeça e olhar para ela. Vestígios de lágrimas ainda eram visíveis em suas bochechas e eu desmoronei. – Se você contar para alguém, vou chutar esse seu lindo traseiro, entendeu?    

Ela fez que fechava a boca com um zíper depois se aconchegou a mim.    

– Você acha que consegue imitar um sotaque britânico desta vez?    

Eu ri e a beijei na testa.

– Vou tentar. – Adam e meus registros médicos poderiam esperar.    

– Tudo bem. Vamos lá.    

Revirei os olhos, depois soltei um longo suspiro.    

– Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. Era a idade da sabedoria. Era a idade da insensatez...    

Minha professora de inglês do nono ano sempre nos fazia recitar Dickens de pé, na frente da classe. Eu odiava. Para Holly, eu não me importava de recitar, mas nunca disse isso a ela.    

– Você acha que ele fez a coisa certa? – Holly perguntou, depois que recitei as primeiras páginas de Um Conto de Duas Cidades.    

– Está falando de Sydney? Ir para a guilhotina para que a mulher que ele amava pudesse ser feliz com outro homem?    

Holly riu e seus lábios vibraram contra o meu peito.    

– É.    

– Não, acho que ele é um completo idiota. – Eu beijei o canto da sua boca e ela sorriu para mim.    

– Está mentindo.    

Eu a puxei para mais perto e a beijei novamente, pondo um fim à discussão que inevitavelmente me levaria a contar mais segredos do que eu estava disposto a dividir com ela.

– Você não estava mirando aqueles sapatos em ninguém, estava? – perguntei a ela, entre beijos.    

Ela se inclinou sobre mim, seus cabelos formando uma cortina dourada à nossa volta.    

– Eu nem sabia que você tinha entrado.    

– Tudo bem, melhor assim, porque o sapato vermelho tinha um salto bem pontudo. Você podia ter acertado o olho de alguém com ele.    

Ela riu alto e depois me beijou outra vez, antes de sussurrar na minha orelha:    

– Vou reservá-lo para os meus outros namorados.

 

Acordei cedo na manhã seguinte com o alarme do despertador de Holly buzinando na minha orelha. Os cabelos loiros dela fazendo cócegas no meu nariz e um tufo deles na minha boca. Ela bateu o pulso no botão de soneca antes de murmurar:    

– Liguei o alarme pra você não perder o laboratório às oito.    

– Posso dar uma escapada hoje. – Tirei o cabelo dela do meu rosto e beijei a parte de trás do seu pescoço. – Volte a dormir.    

Ela passou o braço à minha volta e me apertou, depois murmurou algo incoerente, mas que soou como:    

– Me conte um segredo.    

Esse era o jogo preferido de Holly. Eu geralmente respondia com uma frase idiota, escolhida ao acaso, como “Tive uma paixonite pela Hilary Duff”. Mas depois da briga da noite anterior, ela não merecia aquilo.    

Toquei com os lábios a orelha dela e sussurrei:    

– Sou louco por você.    

Eu praticamente pude ouvi-la sorrindo um pouco antes de nós dois cairmos no sono outra vez.

 

Meus olhos se abriram duas horas depois. Desta vez por causa do barulho de alguém batendo na porta. Estendi o braço para pegar meu jeans e enfiei a camiseta pela cabeça antes de sacudir Holly.    

– Acho que a Lydia está de volta.    

Ela gemeu, pegou o roupão no chão e foi abrir a porta. Dois homens a empurraram para abrir passagem e irromperam no quarto.    

– O que...? – reclamou Holly, fechando com as mãos o roupão e apertando o nó do cinto.    

Um dos homens, o mais baixo, de cabelos ruivos, bateu a porta para fechá-la.    

– É ele – disse para o outro homem.    

– O que está acontecendo? – perguntei.    

O mais baixo olhou direto para mim.    

– Você é o filho de Kevin Meyer?    

Meu coração disparou. Algo tinha acontecido... Quando tinha sido a última vez que vi meu pai...? Dois dias antes, eu me lembrava. Ele estava fora do país desde então.    

– Ele... está bem?

Holly respirou fundo e se aproximou de mim, apertando minha mão. Eu podia adivinhar as teorias rodopiando na cabeça dela: o avião da companhia bateu numa montanha em algum lugar, deixando o filho único do presidente sem um único parente vivo. Uma gota de suor escorreu pela minha nuca.    

O mais alto dos dois enfiou a mão dentro da jaqueta e me mostrou uma insígnia, rápido demais para que eu pudesse ler.    

– Você precisa vir conosco.    

Tiras... talvez do FBI? Repórteres investigativos? Ou talvez a companhia farmacêutica do meu pai tivesse sendo acusada de lavagem de dinheiro ou algum outro escândalo. Meu pai e seu conselho me instruíram, em muitas ocasiões, sobre até que ponto os repórteres podiam chegar para conseguir informações para uma boa história. E a visão rápida da insígnia, sem que me deixassem ver de fato o que estava escrito...    

Balancei a cabeça.    

– Não vou a lugar nenhum.    

– Jackson, talvez você devesse...    

Antes de voltar os olhos para o homem, levantei a mão pedindo que ela ficasse calada.    

– De que jornal vocês são?    

Os dois homens se entreolharam e o mais alto deu de ombros antes de responder com hesitação:

– Jornal?    

Levantei o braço e apontei para a porta atrás de mim.    

– Saiam. Vocês dois.  

Holly se afastou lentamente do lugar onde estava, perto da porta, e ficou atrás de mim, sem dar as costas para os intrusos.    

Com o canto do olho, vi quando ela deu um passinho para trás, na direção da penteadeira, e pegar alguma coisa. Um celular? Um spray de pimenta?    

– Você atualmente está envolvido com alguma agência do governo? – o mais baixo perguntou. – Eles abordaram você com alguma informação?    

Os caras realmente estavam me deixando irritado. Eu passei os olhos rapidamente pelo quarto, procurando algo que pudesse servir de arma e lentamente estendi o braço na direção de uma luminária de chão.

Antes que eu pudesse abrir a boca para falar alguma coisa, um dos sapatos de Holly voou pelo quarto e atingiu o baixinho na lateral do rosto. A cabeça dele se virou na direção dela. Pude ver a marca vermelha deixada pelo salto acima do olho do sujeito. Senti o sangue afluindo para o meu rosto e o coração martelando no peito. Como um jogador de beisebol, peguei a luminária como se pegasse o bastão. A cúpula de vidro bateu em cheio na cabeça do indivíduo, sobre a marca do salto. O homem desabou para trás e seu corpo bateu com tudo contra a porta. Um caco de vidro tinha feito um corte de bom tamanho acima do olho esquerdo dele.    

De joelhos, com os braços abertos, ele mergulhou para agarrar as minhas pernas. Instantaneamente meus pés perderam o chão e eu caí de cara no piso de ladrilho.    

O outro homem passou por cima do nosso emaranhado de corpos e avançou na direção de Holly. Ela deu um passo para trás com a mão direita nas costas.    

– É só cooperar e ninguém vai machucar vocês – o homem disse a Holly enquanto avançava.    

Antes que ele pudesse acabar a frase, ela tirou das costas a mão direita. Seu punho fechado apareceu em meio a um certeiro jato de spray de pimenta.    

– Saia do meu quarto!

– Que droga é essa! – ele gritou, curvando-se e esfregando os olhos.     Holly desviou-se dele e correu para a porta.    

O baixinho e eu lutávamos para ficar de pé. Enquanto ele estava distraído com os gritos do parceiro, eu segui Holly para a porta.     Atrás de mim, ouvi alguém dizer:    

– Parados! Não se mexam!    

Eu me virei a tempo de ver o baixinho enfiando a mão dentro da jaqueta com o zíper meio aberto. Sua mão apareceu segurando uma pistola semiautomática. Ele apontou direto para a minha cabeça, mirando com um olho só, a visão obscurecida pelo sangue que escorria do corte.    

Segurei a respiração, sabendo que estava encrencado. Vencido. As mãos de Holly congelaram na maçaneta, as costas pressionadas contra a porta.    

O cara alto levantou a mão e manteve a outra sobre os olhos.

– Não... ainda não. Só se ele saltar.    

Saltar para onde? Agora meu coração estava prestes a sair pela boca. Seria possível que eles soubessem sobre... o salto no tempo?    

Dei um passo largo para trás, mas a luminária caída no chão ficou no meio do caminho e prendeu meu calcanhar. Mais uma vez, perdi o equilíbrio.     Um som de tiro atingiu meus ouvidos, seguido por um grito de Holly. Então tudo pareceu parar – meu coração, minha respiração... o tempo.    

Holly caiu no chão e eu quis gritar, me atirar ao lado dela, mas no segundo em que o sangue vermelho começou a aparecer através do tecido do roupão, saltei no tempo. Desta vez parecia que eu não estava no controle.     Mas um pouco antes de tudo escurecer, eu vi. O peito dela subiu e depois desceu novamente. Ela estava viva e eu tinha acabado de deixá-la ali sozinha.

 

Cuspi da boca um punhado de algo parecido com grama e percebi que estava deitado de bruços num gramado. Em algum lugar. Em algum tempo. Meu coração martelava. Nem parecia que tinha sido um salto no tempo.    

O sol aquecia a minha nuca. Eu não devia estar sentindo com tanta intensidade o calor. Esse salto era diferente de um salto normal. Alguma coisa estava diferente.    

Devia ser um sonho... ou talvez eu tivesse batido a cabeça. Quem sabe nem tivesse brigado ainda com Holly? Talvez nada daquilo tivesse acontecido. Senti o estômago embrulhar só de pensar na imagem repugnante da minha namorada desmoronando no chão.    

Eu me levantei da grama e tropecei em algo que me fez cair de cara no chão outra vez. Senti o impacto doloroso do meu corpo colidindo com o solo. Com base no quanto aquilo doeu, concluí que com certeza eu estava na minha base principal. Minha mochila preta estava caída aos meus pés. Ela devia ter sido arrastada comigo.

Depois de forçar os olhos a recuperar o foco, percebi que estava no Central Park. Bem perto do meu prédio. Minhas pernas pesavam como chumbo quando me aproximei da calçada. Tirei o celular do bolso e o inclinei para poder ver as horas. A tela estava em branco. Depois de batê-lo na coxa algumas vezes, desisti e perguntei as horas para uma mulher que passava:    

– Você sabe que horas são?    

– Já passa um pouco das seis – ela respondeu, enquanto fazia sua corrida.    

A dor no meu corpo todo era tão intensa que tive de parar e me sentar num banco.    

– Você está bem? – perguntou um senhor idoso ao meu lado.    

– Estou, obrigado – respondi, jogando a cabeça para trás. Só precisava descansar um minuto. Um pouco antes de fechar os olhos, o jornal do velho entrou no meu foco de visão e me sobressaltei ao ler a data.    

9 de setembro de 2007.

Mas que piração é essa?    

– Este jornal é... hã... de hoje? – perguntei.    

– É, sim – disse o homem, antes de voltar a assobiar, descontraído.    

Não. Não podia ser. Devia ser apenas um maluco qualquer lendo um jornal de dois anos atrás. Fiquei mais alguns segundos olhando para o jornal. Um grande pingo de chuva caiu sobre a data, no alto da página. Nós dois olhamos para o céu e vimos nuvens escuras se acumulando. O homem dobrou o jornal e se levantou.    

– Aqui não dizia que ia chover hoje – ele comentou, se afastando.    

Tudo bem, até agora tudo o que eu tinha era um jornal dizendo que eu estava exatamente dois anos no passado. Bem... pelo menos para mim era passado.    

Corri para a calçada enquanto a chuva engrossava. Localizei um policial embaixo de uma árvore e corri até ele, sem me importar em ficar encharcado.    

– Com licença, seu guarda. Sabe que dia é hoje?    

– Dia nove – ele murmurou, sem nem me olhar nos olhos.    

– De setembro?

Ele soltou uma risada anasalada.    

– Isso mesmo.    

– De 2009, certo?    

Ele revirou os olhos e me empurrou.    

– Esses moleques... 2009?!    

O pânico que causaram as palavras dele parecia cafeína injetada nas minhas veias. Eu usei a barra da camiseta para secar os olhos dos pingos de chuva e buscar uma terceira fonte.    

Henry, um dos porteiros do meu prédio, seria perfeito, mas e se houvesse um outro eu andando por ali, em algum lugar? Eu não podia arriscar. Segui na direção oposta ao meu prédio, rumo à cafeteria.    

As gotas de chuva eram frias como gelo e eu batia os dentes quando abri a porta da Starbucks. A garota atrás do balcão se endireitou e sorriu.    

– Não vejo você faz um tempo.    

Dei uma olhada nas mesas à procura de um jornal abandonado.

– Hã... é verdade. Estava ocupado. Sabe, estudando.    

Ela riu e eu me virei para olhar para ela. A garota parecia levemente familiar, mas podia ser só o uniforme.    

– Ah, qual é, você passou o verão todo na Europa...    

Passei?    

– Bem, foi só uma semana na Alemanha.    

Ela começou a atender a um pedido, embora eu não soubesse de quem era. Não havia mais ninguém na fila.    

– E o resto do verão?    

– Andei trabalhando um bocado – eu disse em meio ao barulho da máquina que batia o leite.    

– Trabalhando? – Ela balançou a cabeça e então parou um pouco de bater o leite. – Espera aí, você não disse que ia ficar na Espanha até dezembro?    

– Hã... mudança de planos e...    

– Então por que não vi você na aula semana passada? Eles deram seu armário pra algum calouro. – Ela deslizou uma xícara na minha direção.    

Eu não conseguia mover um músculo. Só fiquei ali parado, olhando a xícara sobre a superfície de mármore preto, enquanto tentava juntar as peças. Armários, que significava... ensino médio. Europa... que significava último ano... primeiro semestre na Espanha, último ano.

Último ano... significava 2007.    

– Que loucura é essa? – murmurei para mim mesmo.    

Antes eu não conseguia dar nem um salto de três dias e agora estava ali, numa data dois anos recuada no tempo? Gotas de suor começaram a se formar na minha testa. E eu de fato me lembrava daquela garota. Ela era uma das poucas bolsistas da Loyola Academy.    

Loyola Academy significava... meu colégio. Onde eu me formei. Em 2008.    

O que, aparentemente, não tinha acontecido ainda.    

– Jackson? Você está bem? – a garota perguntou.    

Ela sabia meu nome. Conhecia meu rosto. Eu costumava ir à cafeteria todos os dias – no colegial – e pagar com cartão de crédito. Com o meu nome nele. Então, sim. Fazia todo sentido. Todo o resto não fazia. Ou fazia, mas não deveria fazer. Meu eu de 19 anos não deveria estar no ano do meu eu de 17.    

Tive que me inclinar para a frente para não desmaiar. Como é que eu tinha ido parar ali?    

– Desculpe, tenho que ir... só passei para dar um alô.

Irrompi pela porta e me encostei nela para recuperar o fôlego. Então 2009 ainda nem tinha acontecido? Nunca, em todos os meus experimentos com viagens no tempo eu tinha me sentido tão desnorteado. Na verdade, esse salto no tempo, esse momento, parecia tão real como o que eu tinha deixado. Começando pelas dores, as gotas de chuva frias, o peso nas pernas, meu coração martelando.    

Se eu ao menos conseguisse voltar, será que conseguiria consertar tudo? As imagens pipocavam na minha mente – Holly em pânico, Holly sangrando e caindo no chão... Holly ainda respirando.    

Mas por quanto tempo? E era culpa minha. Tudo culpa minha.     Apertei os olhos e me forcei a reprimir as lágrimas. A única coisa que eu podia fazer para não entrar em pânico era tentar voltar.    

Voltar para 30 de outubro de 2009. Que era oficialmente o pior ano da minha vida. Com as costas pressionadas contra a porta e a chuva golpeando meu rosto, fechei os olhos e me obriguei a pensar em 2009.    

No mesmo instante, senti a sensação de ser rasgado ao meio e perdi o foco. Mas era tarde demais. Eu já tinha partido rumo ao desconhecido.

 

Meus olhos ainda estavam fechados quando inspirei o aroma de cerejeira e de lustra-móveis com aroma de limão. Nada de chuva. Nenhum barulho de pessoas. Nem de caminhões prestes a esmigalhar as minhas pernas. Por fim, olhei ao redor e imediatamente reconheci o local.    

O escritório do meu pai.    

Através da janela de vidro transparente que circundava o amplo escritório de esquina, pude ver o tráfego da Quinta Avenida. Ou era de manhã bem cedo ou estava anoitecendo. E era dia da semana, provavelmente. Adam sempre me alertava para a minha falta de direção durante o salto no tempo.    

Quem pode saber em que merda você vai acabar caindo?, ele disse uma vez.    

Sacudi a cabeça para afastar o pensamento, lembrando-me da próxima tarefa importante: descobrir o dia e a hora dessa localização. Então fui até o computador e liguei o monitor. Estava bloqueado, exigindo uma impressão digital para permitir o acesso.    

O fone perto do teclado tinha números sobre a telinha minúscula. Justo quando me inclinei para examiná-los mais de perto, uma sequência de bipes começou a soar do lado de fora da porta. Como uma fechadura que se abre quando se digita uma senha ou algo assim. Eu não me lembrava de ter visto o escritório do meu pai com esse tipo de acesso por senha. Todo o edifício era seguro.

Mas e seu eu estivesse no futuro? E seu eu tivesse ido além de 30 de outubro de 2009?    

Não tive tempo de pensar numa resposta para essa última pergunta, porque de repente me ocorreu que, se a porta se abrisse e meu pai ou outra pessoa entrasse, havia o risco de que surtassem ao ver uma versão de mim mesmo que não deveria estar ali. Ou nesse dia. Ou nesse ano. Fosse qual fosse o ano.    

Entrei no armário de casacos à esquerda da escrivaninha, bem no momento em que a porta se abriu. Passos ecoaram e de repente um braço passou raspando pelo meu rosto. Pressionei as costas contra a lateral do armário, prendendo a respiração, e vi meu pai com seu longo casaco de inverno na mão.    

Dica número um: estava frio lá fora.    

Pude eliminar alguns meses. A porta se fechou, mas não completamente. Uma réstia de luz passava pela fresta, permitindo que eu visse meu pai andando por ali, em volta da sua mesa.    

Um zumbido alto atravessou o escritório em silêncio e eu quase tive um ataque do coração, pensando que alguém soubesse que eu estava ali.    

– Sim? – respondeu meu pai.    

O telefone. Dãã.    

– Tudo saiu conforme o planejado – uma voz masculina levemente abafada soou no viva-voz.    

– Relatório completo, por favor, agente Freeman.

Agente?    

Ouvi um barulho como se a pessoa do outro lado da linha bufasse. Então meu pai ordenou:    

– Agora!    

– Tudo bem, tudo bem, desculpe. Os dois sujeitos, do sexo masculino e feminino, chegaram ao destino planejado ilesos.    

– Não acho que você entenda a definição de relatório completo, agente Freeman. Devo tirar alguns pontos do seu exame de capacitação? – perguntou meu pai num tom ameaçador.    

– Muito bem. Trovão saiu com os amigos de sempre e chegou a tempo para o ensaio da banda de jazz, às sete e dois da manhã. E Relâmpago chegou ao local planejado exatamente às sete e cinquenta e oito. Dois minutos antes de bater o sinal da aula na sala de estudos. Poderia ter sido mais cedo, mas ela sentiu vontade de parar para tomar um chocolate quente.    

Ele deve estar falando de mim e Courtney.    

Mas Trovão e Relâmpago? Codinomes?    

Courtney. Minha irmã que morreu em 15 de abril de 2005.    

Eu não tinha como anotar aquilo por escrito. Não ali. Então fechei os olhos, pressionei as costas ainda mais contra a lateral do armário e me obriguei a recapitular os fatos várias vezes. Estou num ano anterior a 2005. Aparentemente algum tipo de agente nos seguiu até o colégio e depois relatou tudo para o meu pai.

Tudo bem, tenho que admitir que meu pai é um cara de alta visibilidade, por ser o presidente de uma grande indústria farmacêutica. Mas colocar um investigador atrás de nós, ou seja lá quem fosse o sujeito do telefone, me pareceu um pouco demais.    

– Ela estava sozinha? – perguntou meu pai, arrancando-me dos meus devaneios.    

– Estava, sim, senhor.    

Pude ouvir meu pai andando pela sala.    

– E a garota que mora dois andares acima? Peyton.    

– Uma fonte me disse que ela está gripada.    

– E você não viu necessidade de me dar essa informação? Se eu soubesse, eu a teria acompanhado...    

– Passei seis meses em missões arriscadas para a CIA no meio do deserto. Posso dar conta de duas crianças de 12 anos indo a pé para a escola. – Havia um tom de irritação em sua voz.    

A CIA nos seguindo até a escola? Ou será que meu pai tinha contratado um agente aposentado da CIA para nos seguir?    

Meu pai suspirou.    

– Queira me desculpar. Agradeço o seu relatório. Essa é a primeira vez que não os sigo pessoalmente. Não sabia que delegar essa tarefa seria tão difícil pra mim.

O quê?!    

– Pare de se preocupar. Você mantém metade da CIA em constante vigilância. Esses garotos não estariam mais seguros se andassem por aí numa bolha à prova de balas.    

– Agente Freeman, eu não quero que facilite em nenhuma situação. Mesmo que se trate de duas crianças indo para a escola. E você compreendeu minha regra mais importante?    

– Nunca interfira a não ser que não haja outra saída – o agente Freeman recitou. – Vi Trovão e alguns amigos jogando ovos da janela no carro de um homem russo outro dia. Eu não disse uma palavra.    

Meu pai deu uma risadinha.    

– Foi dois dias atrás, não foi?    

– Sim, senhor, 11 de janeiro.    

Onze de janeiro. E eu tinha 12 anos. Bem... não eu, meu outro eu. Meu outro eu tinha 12 anos. Fiz um cálculo rápido de cabeça e concluí que era 13 de janeiro de 2003.    

2003?! Santo Deus!

– Eu cuido disso. Só pra registrar, o cara russo é um filho da mãe, mas eu certamente não aprovo que se atirem objetos da janela de uma altura de vinte andares. Principalmente levando-se em conta que isso é ilegal em Nova York. Isso é tudo de que preciso. Aguardo atualizações de hora em hora.    

Eu nem sequer ouvi os passos de papai ou qualquer outro som indicando que ele se aproximava, mas com um só movimento a porta se abriu, uma mão tampou a minha boca e ele me puxou do armário pela frente da camiseta.    

Um segundo depois, meu pai me jogava contra a parede, pressionando minha garganta com o antebraço. Ele jogou todo o seu peso para a frente, não me dando chance de escapar.    

Na verdade, eu tinha um ótimo jeito de escapar. Viagem no tempo. Mas ver o rosto de meu pai, composto e confiante, quase sete anos mais jovem, não me ajudava em nada a me concentrar e saltar para fora desse ano.    

– Você é mais jovem do que os outros – disse ele, sem emoção na voz. – Como é que conseguiu entrar aqui?    

Que outros?

Seu braço ainda pressionava minha garganta e eu não conseguia respirar, muito menos responder. Naquele momento eu estava sete anos mais velho do que a criança com que ele provavelmente tinha tomado café naquela manhã. Era compreensível que não me reconhecesse.    

A expressão calma continuava em seu rosto, mas os olhos faiscavam de raiva. Talvez até de ódio. Um calafrio percorreu minha espinha ao ver meu pai olhando para mim daquele jeito.    

– Como você prefere? – ele perguntou. – Revólver? Veneno? Injeção letal?    

Eu estava literalmente paralisado de medo. Ele afrouxou a pressão do braço, só para apertar ainda mais a minha garganta com os dedos.    

– Ou poderia matá-lo com as minhas próprias mãos – acrescentou.    

Eu quase podia sentir os vasos sanguíneos rompendo nos meus olhos. Antes de escurecer totalmente, minha vista foi se estreitando até se reduzir a uma janela estreita, por onde eu só conseguia ver seu rosto. Não sabia se ele podia me matar enquanto eu estava saltando no tempo, mas só a ameaça já era razão suficiente para eu sair de 2003 imediatamente. Então simplesmente desapareci sem dizer uma palavra ao meu pai. Um homem que aparentemente era capaz de matar alguém com as próprias mãos.    

Quem. Afinal. Era. Ele?

 

                   9 DE SETEMBRO DE 2007, 6:15

A chuva molhava o meu rosto novamente, caindo na minha boca aberta. Eu me sentia zonzo, enjoado... estranho. Meu pai tinha acabado de tentar me matar.    

Como num filme de terror. Com as próprias mãos.    

Obviamente ele não sabia que era seu filho. E tinha posto a CIA atrás do meu eu mais jovem justamente para evitar a minha morte. A insanidade desse único fato já era demais para eu processar no momento. Alguém bateu de leve na parte de trás da minha cabeça e eu dei um pulo, sobressaltado.    

Foi só então que percebi que estava encostado na porta da Starbucks. Mais uma vez.    

Em 2007. Exatamente de onde eu tinha partido.    

A garota atrás do balcão, bolsista do meu colégio, pôs a cabeça para fora da porta e estendeu algo em frente ao meu rosto.    

– Você deixou o celular no balcão.    

Peguei o aparelho da mão dela e a fitei por alguns instantes.    

– Estamos em 2007, certo? Último ano?

O pânico em minha voz contrastava com as pessoas à minha volta, andando calmamente pelas ruas de Manhattan num domingo de manhã. Será que elas não viam que o mundo tinha acabado de virar de cabeça para baixo? Ou que ele podia acabar por causa de alguma catástrofe que me impedisse de um dia voltar para o futuro?    

Claro que não. Só o meu mundo tinha virado de cabeça para baixo. O de mais ninguém.    

– É isso aí, 2007 – confirmou a garota com um sorriso espantado.    

Obviamente ela acha que eu tenho um parafuso a menos.    

– E esse telefone é bem maneiro. Onde comprou? Nunca vi esse modelo por aí e a minha irmã trabalha com...    

– É só um protótipo. Tenho alguns contatos. Não devia nem sair com ele na rua. – Meti o telefone no bolso. – Hã... Vejo você depois.    

A chuva tinha diminuído e agora era uma leve garoa, por isso atravessei correndo a rua e segui na direção do parque. Nada do que havia acontecido nas últimas horas parecia normal. A única atividade que podia me impedir de entrar em pânico era fazer anotações no meu diário. Assim como eu tinha prometido a Adam.    

Adam. Se pelo menos eu pudesse vê-lo. Ou Holly...

Caminhei por algumas trilhas do parque até encontrar uma árvore para me sentar embaixo dela e peguei meu diário, esperando que isso me acalmasse. Mas só de pensar naqueles dois nomes já tinha feito meu coração disparar. Especialmente o último. Tentei não pensar nela... tentei me concentrar nos detalhes. Nos fatos científicos. Mas a verdade era que, desde o primeiro dia em que vi Holly, quando ela trombou comigo, derrubando todo o seu smoothie nos meus sapatos, eu não parava de pensar nela. Algo que nunca tinha me ocorrido e eu nunca tinha admitido.    

A princípio, Holly era só uma garota que eu não podia ter. Ela não só tinha um namorado muito devotado, como fazia um milhão de comentários sarcásticos sobre as crianças ricas e privilegiadas das quais éramos monitores. Pelo menos até ela descobrir que eu era uma delas. Aquilo fez com que ela se calasse por um tempo.    

As pessoas sempre querem o que não podem ou não devem ter. Isso parecia suficiente para nos atrair como dois ímãs. E eu sabia que não era só eu que gravitava em torno dela. A recíproca era verdadeira.    

Eu tinha que voltar para 2009. Meus olhos se fecharam e eu me obriguei a focar toda a minha energia no lugar e no ano em que eu precisava estar.

 

Algumas horas depois, lá estava eu de volta ao mesmo lugar, embaixo da árvore, anotando tudo de que conseguia me lembrar. Era uma tentativa desesperada de ficar antenado, com os pés no chão, ligado à realidade. Além do mais, desse modo haveria uma explicação escrita das minhas recentes aventuras para Adam, ou o futuro Adam, ler, caso alguém me encontrasse morto em algum lugar.            

Domingo, 9 de setembro de 2007, 18:30.            

Nas últimas 48 horas, fiz dezessete tentativas de voltar (ou avançar, na verdade) para 30 de outubro de 2009, e todas elas falharam. A segunda tentativa me levou de volta para fevereiro de 2006, em meio a uma nevasca. Quase congelei. Está tudo misturado na minha cabeça. Às vezes eu me sinto vivo e outras vezes me convenço de que isso é só um purgatório bizarro. São tantas datas para lembrar, tantos tempos diferentes... Será que eu ainda existo em algum lugar? Será que ainda sou alguém se não tenho uma base principal?

Em todas as tentativas, acabei caindo em alguma data aleatória do passado. Então volto para cá. Como se não houvesse mais nada no futuro. Como se 9 de setembro de 2007 fosse o FIM DO MUNDO. Neste momento, estou tão exausto que não consigo nem pensar em viagem no tempo. Talvez se eu só fechasse os olhos por alguns minutos...          

 

– Ei, garoto, levanta daí.    

Alguém sacudiu meus ombros, depois cutucou meu peito com o dedo.     Levantei-me, de um salto, do lugar em que estava na grama e quase trombei com dois policiais parados em pé na minha frente. O sol tinha se posto enquanto eu dormia.    

– Você não pode dormir aqui – um deles me disse.    

– Desculpe. – Peguei minha mochila preta da grama e comecei a andar na direção da calçada. Queria poder jogar aquela mochila estúpida no rio Hudson. Era como se ela simbolizasse o meu egoísmo. Meu estômago se contraiu de novo. Era o meu castigo por querer me safar. Por deixar Holly ali sozinha para morrer. Pressionei as mãos sobre os olhos e me obriguei a me concentrar. Manter a sanidade. Ficar ali, dois anos no passado, chafurdando na culpa, não ia me ajudar a salvar Holly. Ou a descobrir que lance estava se passando com meu pai e aquela viagem estranhíssima a 2003.

Atravessei a rua e entrei num restaurante. Cada passo era um sacrifício. Alguma coisa devia ter acontecido, para me deixar naquele estado de absoluta exaustão. E dor. Como facas me espetando todo o corpo.    

Comida. Eu precisava ingerir alguma coisa para me manter em pé, embora comer fosse a última coisa que eu quisesse naquele momento. Era como uma gripe forte, um estado febril e delirante que tomava conta da minha mente. Um esgotamento tanto físico quanto emocional, e eu não sabia qual era pior.    

– Mesa para um? – a garçonete perguntou.    

Assenti com a cabeça e a segui até uma mesa perto da porta. Eu repassava o pesadelo mentalmente outra vez. Não a loucura que se seguiu depois que deixei 2009, mas o que tinha acontecido um pouco antes. Aquele era o meu pesadelo e ainda estava bem nítido na minha cabeça.    

Quem eram aqueles homens que invadiram o quarto de Holly? Por que perguntaram do meu pai? E se alguém do governo tinha me abordado?    

“É ele”, tinha dito um deles. Será que de algum modo sabiam o que eu posso fazer?

– Algo pra beber? – a garçonete perguntou.    

– Café, por favor. Ah, onde é o banheiro?    

Ela apontou para a esquerda. Fui aos tropeços para o banheiro, me encostei na porta e fechei os olhos.    

Por favor, faça com que funcione desta vez.

 

O cheiro de fumaça de escapamento encheu minhas narinas, buzinas soaram à minha volta. Abri os olhos e dei de cara com o para-lama de um reluzente táxi amarelo.    

– Que porra é essa? – alguém gritou.    

Dei um salto para fora da rua.    

– Foi mal... Tropecei...    

– Idiota! Você podia ter morrido.    

Só em Nova York alguém pode se materializar do nada e arrancar dos motoristas apenas as reações iradas de sempre.    

Corri para a segurança da calçada abarrotada, protegendo os olhos do sol escaldante de verão. Não é nada fácil manter a cabeça no lugar quando você está exausto e acabou de chegar de uma noite fria e escura.    

Eu me encostei num poste para recuperar o fôlego. Ainda tinha diante dos olhos o rosto de Holly quando a bala a atingiu. A imagem na qual eu tinha tentado tanto me concentrar. Obviamente não tinha funcionado. Mais uma vez.

Aguenta firme e tenta de novo, Jackson.    

Finalmente olhei em volta e reconheci as ruas de Manhattan. Eu sabia onde estava, só não sabia quando. O quiosque do lado de fora do meu prédio não tinha clientes, então parei para fazer uma compra, com os olhos colados na porta giratória que o meu pai quase sempre usava.    

O porteiro, Henry, olhou na minha direção, apertando os olhos por causa do sol. Eu peguei um boné do Mets da arara e coloquei-o na cabeça, puxando a aba para baixo, para cobrir o rosto.    

– Vou levar este boné e o The New York Times. – Estendi para o homem uma nota meio molhada de 50 dólares que tirei da carteira.    

– Fã do Mets, hein? Tudo bem, vou perdoar você. – Ele explodiu numa risada, e deve ter abafado o barulho dos passos de outra pessoa que se aproximava.    

– Wall Street Journal, por favor – alguém disse atrás de mim, numa voz muito familiar.

Eu virei de costas para o meu pai tão rápido quanto pude, depois voltei os olhos para o jornal apertado entre os meus dedos.    

1o de julho de 2004.    

É isso aí, ele me reconheceria. Uau, Jackson, acabei de ver você alguns minutos atrás. De onde tirou essa barba e esses dez centímetros a mais de altura? Aquilo ia acabar muito bem. E, santo Deus, por que eu tinha voltado tanto no tempo outra vez?    

– Ei, você esqueceu seu troco! – Por sorte, ele não correu atrás de mim.    

Era mais seguro pegar o caminho mais longo, que contornava o Central Park, do que ir direto para o meu lugar de sempre. A viagem no tempo já estava me deixando exausto e eu tinha que descansar. Embora estivesse me sentindo bem agora, a segunda vez em que saltei de volta para 2007 tinha sido um horror. Foi como se eu tivesse alguma doença contagiosa ou a gripe suína.    

O vislumbre de um cabelo vermelho surgiu atrás de uma árvore. Pernas longas e magras se esticando. Meus pés se movimentaram duas vezes mais rápido. Era como buscar água no meio de deserto. Como se ela fosse desaparecer se eu não fosse rápido o suficiente.    

– Courtney? – chamei, mas a minha voz parecia presa na garganta.

Ela chutou para longe o tênis cor-de-rosa e verde e recostou-se na árvore, com um livro descansando no colo.    

– Courtney! – chamei novamente, mais alto desta vez.    

A cabeça dela apareceu atrás da árvore e ela apertou os olhos por causa do sol, provavelmente tentando focalizar meu rosto. Depois jogou o livro na grama e se levantou devagar.    

– Sim?    

Eu congelei no lugar, olhando para ela, assombrado. Ela estava realmente ali. Viva. Mas a ironia da situação era desnorteante.    

Minha namorada, que deveria estar viva, estava morta (ou morrendo) em 2009, e minha irmã, que eu já tinha perdido uma vez, estava sentada na grama aqui em 2004, tomando banho de sol, entretida no último livro do Harry Potter. Ela nem estava doente ainda.    

Quando cheguei mais perto, a vozinha que vinha da minha cabeça falou um pouco mais alto. A voz de Adam, discorrendo sobre os prós e contras da minha decisão de falar com a versão mais jovem da minha irmã. Será que isso era algo com potencial para provocar o fim do mundo?    

A essa altura eu já tinha perdido a capacidade de pensar racionalmente e tudo o que eu queria era me agarrar a algo real e familiar. Por isso fiz, provavelmente, a coisa mais idiota possível.

Com algumas passadas largas, eliminei a distância entre nós e puxei-a para um abraço apertado, espremendo-a em meus braços, para ter certeza de que ela era mesmo feita de matéria sólida. Estava absorto no meu momento especial quando o grito alto e agudo que ela deu penetrou no meu ouvido. Então ela ergueu o joelho e me deu uma joelhada entre as pernas, antes de se livrar do meu abraço e recuar lentamente.    

– Calma aí, Courtney – falei ofegante, levantando as mãos no ar. Eu podia dizer, ao ver os olhos dela buscando freneticamente uma saída, que estava prestes a correr. – Por favor... não vai embora. Me dê um minuto.     Seus olhos verdes estavam arregalados.    

– Me deixe em paz. Meu pai... meu pai está chegando... a qualquer minuto. – Ela apontou para um ponto atrás de mim. – Olhe lá, lá vem ele!    

Caí como um pato no blefe dela e olhei por sobre o ombro. Ela começou a correr, mas eu a agarrei pelo pulso quando passou por mim. Eu precisava dizer a alguém. Fazê-la acreditar em mim.    

– Prometo que não vou machucar você – eu disse, no ouvido dela. Então puxei minha carteira e a coloquei bem na frente do rosto dela. – Tome. Veja isso. Vou soltar você e me sentar embaixo da árvore. Combinado?

Todo o corpo dela ficou tenso, mas ela não lutou comigo. Então eu me lembrei de que o tal agente Freeman nos seguia até a escola em 2003. Será que ele estava vigiando minha irmã naquele momento? Talvez ele fosse negligente em seu trabalho.    

– Sei que guardou cada centavo da sua mesada nos últimos três anos embaixo do colchão apesar de eu ter te falado que todo esse dinheiro vai queimar se houver um incêndio e papai nunca vai deixar você comprar uma motocicleta quando tiver 16 anos, mesmo que você a pague com o seu dinheiro.    

Ela prendeu a respiração por um segundo, mas não disse nada. Tentei outra coisa, apontando para uma árvore ali perto.    

– Você me viu caindo daquela árvore e quebrar o braço oito anos atrás.     Eu soltei o braço dela e dei alguns passos para trás lentamente antes de me sentar na grama, sob a árvore. Ela se virou para olhar o meu rosto.    

– Jackson?    

– É – respondi. Então atirei a carteira na direção dela e fiquei observando enquanto ela a vasculhava e tirava dali a minha identidade, meus cartões de crédito, fotos.    

Os olhos dela se voltaram para a grama e se encontraram com os meus novamente.    

– Ai, meu Deus, você está... alto... e...

– Eu posso... viajar no tempo – consegui balbuciar, sabendo da reação que aquilo causaria.    

Para minha agradável surpresa, os pés dela ficaram plantados no chão, mesmo quando eu me levantei. Passei os trinta minutos seguintes explicando exatamente como eu tinha chegado lá, mas deixei de fora alguns detalhes. Como o que aconteceu com Holly e aquela parte com meu pai e o misterioso agente da CIA. Courtney ficou simplesmente ali de pé, com os olhos arregalados, me ouvindo, até que eu finalmente parei de falar.    

– Eu caí no sono, não foi? – ela perguntou.    

Eu sorri pela primeira vez no que parecia uma eternidade.    

– Não, juro que isso é real.    

Ela se aproximou um passo, o nariz franzido enquanto examinava o meu rosto.    

– Você... parece o meu irmão. Só que... mais velho.    

Eu ri.    

– Achei que você ia sair correndo agora.    

– Não descartei essa possibilidade – murmurou Courtney.    

Ela tocou minha bochecha e bateu nela de leve.    

– Droga, é você mesmo. Tem que ser.

– Qual foi a última vez que você me viu? O meu eu mais jovem?    

– Quatro dias atrás. Você devia estar num acampamento de beisebol no Colorado. – Ela estendeu o braço para tocar a parte de cima do meu boné e arrancar dali uma etiqueta.    

– O papai estava na banca de jornal bem ao meu lado, tive que esconder um pouco o rosto.    

– Então você pode mesmo viajar no tempo?    

Assenti.    

Nós dois ficamos nos olhando por um minuto inteiro até que ela finalmente falou:    

– Você não vai explicar um pouco mais, tipo a parte científica? Isso é uma loucura e tanto, você sabe.    

– Tá, tudo bem. Vou fazer o melhor que posso.    

Nós dois nos sentamos embaixo da árvore, de frente um para o outro. Courtney se sentou sobre as pernas, parecendo muito mais calma do que eu esperava que estivesse.    

– Bem, 2009 é meu ano atual, ok?    

– Ok – ela respondeu.

– Por alguma razão, não consigo voltar pra lá. Como se o universo tivesse se desviado e voltado dois anos no passado. Faz dois dias que fico indo e voltando para 2007.    

Os olhos dela se arregalaram.    

– Por quê? Como isso funcionava antes de o universo se mover ou sei lá o quê?    

Eu fitei a grama e arranquei da terra alguns pedacinhos.    

– Não sei por quê. Mas antes eu só saltava uma hora ou duas, às vezes alguns dias. Depois acabava voltando para o mesmo lugar, como se nunca tivesse saído de lá.    

– Como você sabe que tempo é o seu? – ela perguntou.    

– Basicamente, tenho uma base principal. E a parte do salto é como atirar um bumerangue. Eu sou catapultado para algum lugar e depois simplesmente faço a volta e retorno. Quando estou num desses anos, como neste aqui, eu me sinto como uma sombra de mim mesmo. E nada que faço durante um salto muda alguma coisa na minha base principal.    

– Nada?    

Neguei com a cabeça.    

– Até agora, não.

Ela desviou o olhar para um homem andando de bicicleta.    

– Então, se você tivesse uma arma e matasse um cara, ele ainda estaria vivo daqui a três anos, no futuro?    

– Acho que sim, mas não vou experimentar.    

– Como em Feitiço do Tempo – ela disse, olhando sobre o meu ombro.    

– O quê?    

– Sabe, o filme em que ele fica vivendo o mesmo dia várias e várias vezes. Tenta se matar jogando uma torradeira na banheira, depois acorda outra vez no mesmo dia.    

– Não tinha pensado nisso desse jeito, mas, sim, é uma boa comparação.    

– Você pode ir daqui para outro ano, como 1991 ou coisa assim?    

– Não, eu tenho que tocar antes.    

– Tocar?    

– Como, no beisebol, quando o outro time pega a bola em voo e você tem que “tocar”, quer dizer, tocar uma base, antes de correr para a próxima. Se eu tentasse voltar cinco anos agora, abriria os olhos e estaria de volta ao banheiro daquele restaurante em 2007.    

Ela soltou a respiração e balançou a cabeça.

– Que coisa mais estranha!    

– Nem me diga... – Minha mente mergulhou no “modo analítico”. Influência de Adam. – Quer saber o que é mais estranho?    

– O quê? – Courtney perguntou.    

– Quando saltei de 2009, foi diferente. Como se eu fosse leve como o ar. Normalmente é como se eu tivesse sendo rasgado ao meio. E, em todas as tentativas que fiz de avançar no tempo desde que fiquei preso em 2007, sinto essa mesma sensação de ser rasgado ao meio.    

– Então foi só naquela vez que você sentiu essa diferença e agora o seu universo se desviou. – Ela franziu a testa e eu podia apostar que estava elaborando suas teorias. Por fim, sacudiu a cabeça e sorriu. – É uma piração e tanto... Você tem algum tipo de prova do futuro?    

Revirei os olhos.    

– O quê, como o resultado da loteria de amanhã? Acha mesmo que precisamos de mais dinheiro? Além do mais, você já viu a minha carteira. Tudo que tem lá é do futuro.    

– Certo, me esqueci disso. – Ela pegou a carteira que tinha jogado na grama e começou a examiná-la outra vez.

Observei cada movimento que ela fez, estudei-os, memorizei-os. Esperando que ela desaparecesse.    

– Você está encarando tudo isso muito bem.    

– Talvez só esteja em choque – ela disse, pegando minha carta de motorista e aproximando-a dos olhos. – Uau! Então temos, tipo, 19 anos? Como é que eu estou? Por favor, diga que meus peitos ficaram um pouco maiores!    

Eu engoli o bolo que se formou na minha garganta. Não diga a ela. Melhor ainda, nem pense a respeito. Ela está aqui agora. Concentre-se nisso. Minhas mãos estavam tremendo, mas eu mantive o semblante e a voz o mais calmos possível.    

Ela olhou para mim depois do meu longo silêncio.    

– O que foi? Sou gorda, não sou?    

Forcei um sorriso tenso e desviei os olhos dela.    

– Você é linda e nem um pouco gorda.    

– Você é da família, tem que dizer isso.    

– Talvez, mas ainda assim é verdade.

– Me diga algo sobre o futuro, algo realmente legal. – A expressão dela era ansiosa, como uma colunista de fofocas em busca de um escândalo.    

Eu sabia exatamente o que ela queria saber.    

– Tenho uma namorada.    

Como previ, sua expressão se iluminou, cheia de interesse.    

– Qual o nome dela?    

– Holly – respondi, encostando a cabeça na árvore. Ao dizer o nome dela em voz alta pela primeira vez depois que a deixei, eu me senti como se tivesse sido nocauteado. Mas sabia que isso distrairia Courtney da curiosidade sobre si mesma. Eu tinha que distraí-la com outro assunto, mesmo que esse assunto doesse em mim.    

– Como ela é?    

– Loira... e linda. Olhos azuis.    

– É, consigo ver você com uma garota loira com cara de modelo. Provavelmente trabalhando em Paris, fazendo carreira.    

Eu ri.    

– Ela é de Jersey e muito baixinha para ser modelo... e quase não usa maquiagem.    

Courtney deu um sorrisinho.    

– Já gosto dela.

– Eu também. – Envolvi minha irmã em meus braços e apertei seus ombros. Ela não protestou desta vez.    

– Jackson?    

– Que foi?    

– Tenho que te contar um segredo. – Ela virou o rosto e o pressionou contra a minha camisa. – Beijei Stewart Collins na festa de aniversário da Peyton na semana passada.    

– Eu sabia! Vocês ficaram um tempão na cozinha e depois ele apareceu com aquele sorrisinho idiota na cara. Eu queria ter dado um soco nele.    

Ela soltou uma risada.    

– Exatamente por isso que não te contei.    

Meus braços a apertaram um pouco mais.    

– Sinto tanto a sua falta.    

Isso foi algo que eu nunca teria dito em 2004, mas na realidade fazia quatro anos que eu não falava com a minha irmã. A dor oprimia o meu peito. Eu tinha que me afastar. Era muito duro. Duro demais. Nada mudaria.    

Eu a apertei pela última vez e sussurrei:    

– Adeus, Courtney.

Então saltei para fora de 2004 e voltei para a minha própria versão de purgatório. Nove de setembro de 2007. Mais uma vez.

 

Meus olhos se abriram e eu vi três gotas de sangue caírem dentro de uma pia de porcelana. Uma mão se estendeu, pegou uma toalha de papel e enfiou-a embaixo do meu nariz. O nariz sangrando era outra prova de que esse instante era o meu novo presente. Minha nova base principal.    

Mas alguma coisa estava diferente. Eu estava sozinho no banheiro quando saltei no tempo. Se eu soubesse a fórmula de Adam, seria capaz de saber exatamente quanto tempo tinha ficado encostado na parede desse banheiro, em estado catatônico.    

– Vamos, filho. Você precisa apertar as narinas – falou uma voz grave bem perto do meu ouvido direito.    

Um homem alto, calvo e de pele morena estava em pé ao meu lado.    

– Obrigado – agradeci, e por um segundo ele olhou para mim como se talvez me reconhecesse, mas tudo estava uma confusão na minha cabeça e ele foi embora sem que eu tivesse tempo de pensar mais a respeito.    

Meu nariz só sangrou por um minuto, e depois de lavar as mãos saí do banheiro.    

A garçonete serviu meu café na mesa. A mesma que tinha me atendido antes de eu ir ao banheiro. Droga. O mesmo lugar. O mesmo dia.    

Ela sorriu quando me sentei.

– Pronto para fazer o seu pedido?    

Apontei para o primeiro prato do lado esquerdo do cardápio, sem nem me importar em saber o que era.    

– Quero isto.    

– Salmão grelhado com legumes?    

Dei de ombros e disse que sim. Só quando ela começou a se virar, eu me lembrei de uma coisa.    

– Espere... esqueci de perguntar... você tem o jornal de hoje? – Seria inútil, mas eu tinha que verificar.    

– Claro, já trago pra você.    

Tamborilei os dedos na mesa, esperando pela resposta que já conhecia. Ela depositou o jornal na minha frente e eu gemi tão logo li a data no alto da página. Setembro. 2007.    

A data de sempre. Tinham sido dezoito tentativas até agora. Eram oito e meia da noite. Alguns minutos tinham se passado, e isso era tudo. Mas eu tinha ficado no passado por um tempo maior dessa vez.    

– Está tudo bem? – a garçonete perguntou.    

– Está, só estou desapontado com a apresentação final de... – Relanceei os olhos pelas manchetes. – O musical Annie foi cancelado. Adoro aquela música, “It’s the Hard-Knock Life”.

A garçonete enrolou uma mecha solta de cabelo no dedo e transferiu o peso para a outra perna.    

– É... hã... trago seu jantar daqui uns minutinhos.    

Eu peguei o diário da minha mochila, porque a voz de Adam soou na minha cabeça novamente. Isso costumava ser divertido. Como uma aventura. Mas a cada tentativa frustrada de salvar Holly, as palavras de Adam adquiriam um significado mais profundo.    

“Você precisa documentar tudo, a cada minuto.”    

“Por quê?”    

“Em primeiro lugar, porque assim você vai saber quantos anos você realmente tem. Em segundo lugar, porque vai saber se você mudou alguma coisa. E terceiro, em caso de você esquecer.”    

Eu não mudava nada. Nunca. Mas ainda registrava tudo, seguindo o plano genial de Adam Silverman. Ri alto na primeira vez em que ele fez a lista de prioridades por escrito, despreocupadamente, como se estivesse fazendo uma lista do que levar a um acampamento de verão. Mas o problema era que a maior parte dessas prioridades não se aplicava nem aos meus registros anteriores de um salto de dois dias. Era por isso que eu nunca tinha levado aquilo a sério. Agora eu levava.

 

LISTA DE PRIORIDADES DA VIAGEM NO TEMPO          

1º Passo: identificar data/horário atual    

9 de setembro de 2007, 20:30    

2º Passo: minutos passados no tempo anterior    

(1º de julho de 2004)    

165 minutos          

3º Passo: identificar idade, nesse ano, de EAF    

(eu mesmo, amigos, familiares)    

Jackson Meyer (meu eu mais jovem): 17 anos    

Kevin Meyer: 42 anos    

Adam Silverman: 16 anos    

Holly Flynn: 17 anos    

Courtney Meyer: falecida

4º Passo: Criar disfarce ou identidade atual    

(mudar quando necessário)    

Meu eu mais jovem deve ficar na Espanha até dezembro. Por hora, vou assumir a identidade do meu eu de 17 anos, visto que não parece que vou topar comigo mesmo. Só se necessário enquanto interajo com alguém que conheço.          

5º Passo: Relembrar o básico    

(acontecimentos atuais, tecnologia...)    

Pânico geral pode ocorrer se eu mencionar que Jon e Kate vão se separar, pondo um fim, portanto, no programa Jon e Kate   8. Manter o telefone celular sempre escondido.      

 

Repassei tudo o que tinha acontecido mais de uma vez para ter uma lembrança clara dos fatos. Depois que saltei de 2009, fui parar em 9 de setembro de 2007, por volta das seis da manhã. Agora são quase nove da noite, mas todas as minhas tentativas de avançar no tempo totalizam quase três dias. Transcorreu muito pouco tempo na minha base principal enquanto eu saltava no tempo. Mas a sensação de que estou morrendo de gripe suína ou algo assim é completamente nova. E eu me sinto péssimo neste ano. Provavelmente porque odeio estar preso aqui. Karma. Ou talvez todos esses saltos no tempo fizeram com que eu me sentisse assim. Fritando meus miolos ou alguma merda dessas.    

– Jackson Meyer! É você mesmo? – uma voz soou nos meus ouvidos, tirando-me da minha nebulosa depressão.    

Olhei para cima e vi minha professora de espanhol favorita do colegial.    

– Senhorita Ramsey, como vai?    

– Muito bem, mas achei que você ia passar este semestre na Espanha.    

Essa era a parte em que eu tinha que me lembrar de quem eu era.

IDENTIDADE ATUAL: estudante de 17 anos que deveria estar passando o semestre estudando na Espanha, mas está sentado num restaurante em Manhattan, sozinho, numa noite em que deveria estar na aula.    

– Voltei mais cedo.    

Ela se sentou na cadeira à minha frente.    

– Nem posso acreditar em como você parece mais velho depois de um verão!    

Eu ri de nervoso.    

– Culpa de Ibiza... Como se diz por aí, ela faz de você um homem.     Ela deu uma gargalhada e seus óculos fundo de garrafa desceram um pouco no nariz.    

– Espero que tenha provado todos aqueles ótimos vinhos espanhóis.    

– Claro, uma garrafa por dia mantém sua saúde em dia.    

Ela riu outra vez.    

– Isso pode ser bem verdade. Então... logo vejo você nas aulas...?    

Reprimi o olhar de repulsa que estava prestes a se formar no meu rosto. Não volto para aquele colégio nem morto!

– Provavelmente, não. Estou pensando em tirar o meu GED[1]. Estou meio de saco cheio dessa coisa de ensino médio. – A garçonete trouxe meu jantar e eu peguei o garfo e espetei um aspargo. – Na verdade, dei ao meu pai um ultimato. Ou escola pública ou GED. Ele está preferindo o GED.    

– Escola pública não é tão ruim assim. Estudei numa delas e olhe o que me tornei – ela disse.    

– Foi o que eu disse a ele. – Baixei os olhos para o prato à minha frente.    

– Você parece um pouco abatido. Está tudo bem?  

Assenti com a cabeça.    

– Cansaço por causa da mudança de fuso horário. Voltei há algumas horas e, para mim, ainda são duas da manhã.    

Isso não estava muito longe da verdade. Em termos do tempo atual, eu não tinha dormido muito nos últimos dois dias. Claro, só algumas horas tinham se passado nesse ano.    

Nessa droga de ano bizarro...    

– Ah, entendo... Bem... é melhor eu voltar para a minha mesa.    

Ela acenou com a cabeça na direção de um homem sentado sozinho numa mesa, usando uma colher para examinar os dentes. Ela chegou mais perto para cochichar:

– Esta é a última vez que marco um encontro através de um site de relacionamentos da Internet.    

– Sempre se pode fingir uma dor de estômago... ou uma intoxicação alimentar.    

Ela sorriu antes de se afastar.    

– Se cuide, Jackson.    

Eu sorri até ela virar as costas para mim, depois baixei os olhos para o diário embaixo da mesa. Comecei a anotar os detalhes da minha última excursão e fiquei tão absorto em outros anos que nem percebi a garçonete ao meu lado, batendo o pé no chão.    

– Desculpe, você disse alguma coisa?    

– Está tudo bem com a refeição?    

Olhei para o salmão agora frio. O cheiro de peixe me embrulhava o estômago.    

– Está, sim. Poderia trazer a conta?    

Ela ficou na minha frente.    

– Você quer que eu embrulhe o que sobrou pra viagem?    

– Hã... não, obrigado.

O prato desapareceu, junto com a garçonete. A ideia de levar as sobras da refeição comigo adquiriu um novo significado à luz de todas as teorias de viagem no tempo que davam voltas na minha cabeça. Essa era uma bobagem que Adam e eu discutimos enquanto jogávamos Guitar Hero e bebíamos uma dose de uísque. Eu a trouxe à baila e Adam a levou uns vinte passos mais à frente do que o meu cérebro podia acompanhar.    

Perguntas como, “se eu de fato voltasse a 2009 levando a minha embalagem para viagem, o salmão ainda estaria lá dois anos depois?” Ou “se eu fosse para o passado novamente, o peixe ainda estaria na embalagem?” Tecnicamente, ele nem teria nascido ainda. Uma coisa viva podia viajar no tempo antes de ter nascido?    

Na época, se pudéssemos, teríamos testado tudo isso.    

Tentar fazer planos sem que Holly ou meu pai desconfiassem de nada era difícil. Holly sempre sabia quando não estávamos contando toda a verdade ou quando eu estava contando a ela uma grande cascata. Neste instante eu daria tudo para poder voltar. Mesmo que isso significasse ouvi-la gritando comigo novamente ou ficar preso do lado de fora do quarto dela por horas.

A garçonete estava voltando, então peguei minha carteira e joguei o cartão de crédito sobre a mesa. Folheei as páginas do meu diário, procurando algo que me ajudasse a pensar num plano. Qualquer plano. Meus dedos congelaram na página em que estava escrito no alto: 13 de janeiro de 2003.    

O cartão de crédito foi levado da mesa e a garçonete se afastou enquanto eu continuava a olhar as palavras que eu tinha escrito.    

ACHO QUE MEU PAI TRABALHA PARA A CIA!

 

Pensar no meu pai com as mãos em volta do meu pescoço, a raiva endurecendo seus olhos, era o suficiente para despertar os meus músculos, com um intenso fluxo de adrenalina. Ele nunca disse que era da CIA. Mas naquele momento certamente agiu como se fosse. Não que eu soubesse mais sobre a Central Intelligence Agency do que Hollywood tinha me mostrado. Mesmo assim, eu sabia alguma coisa. Um agente da CIA (ou ex-agente) tinha seguido a mim e à minha irmã na manhã do dia 13 de janeiro de 2003. Eu não sabia por que esse era o foco da minha atenção, mas a ideia de que eu me lembrava do rosto a que pertencia a voz no telefone parecia uma boa razão. Sinceramente, a maioria das minhas ações nos últimos dias tinha sido impulsionada por qualquer coisa, menos pela lógica. Era só um monte de tropeços ao longo do tempo (literalmente), em busca de algo concreto a que me agarrar. Algo real. Fatos. Respostas. Fechei os olhos e me concentrei na data quatro anos atrás.

 

                   SEGUNDA-FEIRA, 13 DE JANEIRO DE 2003, 7:35.

O sol ofuscou meus olhos de novo, mas dessa vez uma brisa gelada passou por mim, aferroando a ponta das minhas orelhas. Eu estava parado do lado de fora da cafeteria, a poucas quadras do meu prédio. A porta abriu e uma convidativa lufada de ar quente saiu por ela. Entrei e peguei o jornal da manhã de uma mesa vazia.    

Confirmei a data e senti uma pontada de satisfação. Era bom saber quando eu ia fazer uma mudança.    

Minhas pernas pareciam tão leves, como se fossem de borracha. Afundei numa cadeira e descansei a cabeça na mesa. Depois de algumas respirações profundas, ergui os olhos e olhei em volta.

O único problema era que... eu não sabia o que estava procurando. Que importância tinha se meu pai trabalhava para a CIA? No entanto... pensando bem... isso podia explicar os sujeitos armados furiosos que invadiram o dormitório de Holly. A ideia de que meu pai tinha participação no que havia acontecido a Holly embrulhava o meu estômago. Assim como eu queria que a culpa não fosse minha, odiava a ideia de que tudo fosse culpa dele. Ainda assim, se eu lançasse mão do meu raciocínio lógico (da minha sanidade) por um minuto, saberia que só algumas suposições poderiam explicar tudo. Obriguei-me a me sentar e repassá-las mentalmente, antes de fazer qualquer loucura, ser impulsivo... embora aquilo na verdade não importasse, pois eu não estava na minha base principal. Afastei esse pensamento da cabeça e deixei-o de lado... por ora. Peguei uma folha de papel e uma caneta para anotar essas teorias, embora não pudesse levar nada de volta comigo. Não nesse tipo de salto. Mas ver as palavras no papel nesse momento ajudaria.

 

  1. Meu pai, o CEO, é secretamente treinado na arte de matar em legítima defesa, e é paranoico com relação à segurança dos filhos, a ponto de contratar, não sei, talvez um ex-agente da CIA aposentado para nos seguir a todo lugar. Mas isso não explica a capacidade dele de nos seguir sem que nem eu nem Courtney percebêssemos!    
  2. Meu pai de fato trabalha para a CIA e seu trabalho durante o dia é um disfarce, mas ele é um bom sujeito e não é culpa dele que dois caras armados tenham decidido ameaçar o único membro vivo da sua família, porque meu pai se recusou a passar uma senha secreta do governo que, nas mãos erradas, poderia ativar bombas nucleares por todo o planeta. Ele só se esqueceu de me dizer para tomar cuidado com esses caras. Ou talvez eles o tenham pegado primeiro... em 2009... Ou seja, como vou saber se não voltar?
  3. Meu pai de fato trabalha para a CIA como espião e descobriu que eu viajo no tempo em 2009 e decidiu que eu e qualquer pessoa associada a mim somos uma ameaça à segurança da nação (ou do mundo) e devo ser preso (ou morto) para evitar que o mundo seja destruído.    
  4. Novamente, ele é um agente de verdade e sabia que seu próprio filho era uma aberração e devia ser estudado com várias tomografias do cérebro várias vezes por ano e, por fim, usado como cobaia pelo governo. Ou vendido para espiões russos.

 

Admito, algumas dessas teorias pareciam tão fantasiosas quanto um filme de Hollywood, mas, sério... algum agente da CIA (ou talvez ele seja um ex-agente da CIA aposentado por invalidez) estava seguindo meu eu de 12 anos e a versão de 12 anos da minha irmã gêmea. Portanto, de fato, minhas teorias tinham muito fundamento. E embora as opções de 2 a 4 tenham menos de um por cento de chance de serem possíveis, elas excluiriam a solução que seria simplesmente perguntar ao meu pai, em 2007, o que ele realmente fazia para viver. No entanto, tirei da cabeça a ideia de confrontá-lo antes dessa lista, depois do incidente do quase estrangulamento.    

Eu tinha me arrastado penosamente até o balcão para comprar um café e acabado com um plano para espionar o cara que meu pai tinha contratado para seguir Courtney e meu eu mais jovem.    

– Um café puro grande, por favor.    

O homem assentiu e pegou meu dinheiro, depois me virei para esperar.    

– Um chocolate quente pequeno com leite espumante e chantilly extra.

Levantei a cabeça quando ouvi aquela voz. O balconista me passou o meu café e eu peguei a conta, me virando rapidamente. Soube, tão logo ouvi sua voz, que meus planos de seguir o aparentemente invisível agente Freeman não iriam se realizar. Não agora que eu queria tão desesperadamente falar com a minha irmã novamente.    

Como eu poderia fazer isso? Atraí-la para algum lugar sem que o agente Freeman me visse? E se eu a atraísse para algum lugar e ele nos seguisse? Então eu poderia dar uma olhada nele e, como esse salto não mudaria nada..., quem se importaria se ele me visse, se eu pudesse falar com Courtney a sós por um minuto?    

Então tive um estalo. A senha idiota que o papai nos deu! Courtney e eu revirávamos os olhos sempre que ele a mencionava e fizemos com que desistisse dela no colegial. “Nunca acompanhem a lugar nenhum   alguém que não tenha a senha”, ele recitava todo dia desde que Courtney e eu começamos o jardim de infância.    

Era como um anúncio de utilidade pública. Não saía do ar nunca. Outro exemplo do que, até agora, era considerado só paranoia de um superprotetor. Mas hoje bem que poderia ser útil.

Eu me virei para trás e olhei a versão de 12 anos de idade da minha irmã: gorro verde berrante e luvas combinando, jaqueta de esqui branca, saia do uniforme aparecendo por baixo da jaqueta, bochechas rosadas de frio, ainda saudáveis e cheias de viço. Quando ela estendeu o cartão de crédito para o caixa, passei por ela e murmurei “Vá pescar”.    

Ela deu um pulo e derrubou a carteira sobre o balcão antes de olhar o meu rosto. Nós recebíamos instruções cuidadosas (e exaustivas) para ouvir qualquer pessoa com esse código. Mas nenhum estranho jamais tinha se aproximado de nós e dito “a senha”. O meu eu mais jovem provavelmente acharia que era alguma piada. Courtney levava a coisa um pouco mais a sério. Ainda achava constrangedor contar às amigas, mas ainda assim era mais responsável.    

Deslizei para mais perto dela, ainda olhando para a frente.    

– Eu pareço pelo menos um pouco familiar pra você?    

Eu podia sentir seus olhos colados na lateral do meu rosto, então ela cochichou:    

– Você parece um pouco o meu irmão.    

Não pude deixar de sorrir.    

– Quer ouvir uma história muito louca?    

– Tudo bem – ela disse devagar.

– Não posso acreditar – murmurou ela, provavelmente pela vigésima vez. – Então você já falou comigo antes? Quantas vezes?    

– Só uma. – Depois que Courtney conseguiu fugir da escola durante o intervalo das aulas, fomos até uma pequena livraria na esquina da sua escola. Contei-lhe a mesma versão que tinha contado da primeira vez. Ela estava certa. Aquilo era mesmo como Feitiço do Tempo.    

E eu não conseguia parar de olhar ao redor, esperando ver de relance o furtivo espião, o agente Freeman, mas até o momento ele não tinha dado as caras.    

– Se você sabia para onde ia saltar, por que não pensou em vestir um casaco? – ela perguntou.    

Revirei os olhos.    

– Muito engraçado. Não tive tempo de fazer as malas.    

Ela balançou para trás sobre os calcanhares e depois se apoiou numa das estantes.    

– Quanto tempo faz que você deixou o futuro? O futuro de 2009?    

– Não sei exatamente quanto tempo, mas parece que faz uma eternidade. Você quer ir pra outro lugar comigo? – Um lugar onde o agente Freeman “possa” nos seguir?

– Claro, mas seria bom conseguirmos um casaco pra você antes. Sair por aí de manga curta num frio desses não é o melhor jeito de passar despercebido.    

Eu sorri.    

– Uma garota de 12 anos com um cartão de crédito. Que perigo!    

Ela deu uma risada e então saímos da livraria na direção do ar gelado da rua.    

Courtney aos 12 anos era diferente do que eu me lembrava. Eu sempre me dei bem com minha irmã, mas ela parecia ainda mais vibrante e adorável para mim agora! Madura, mas ainda uma garotinha cheia de imaginação. Exatamente por isso que eu pude lhe contar a minha história mirabolante e bizarra, e ela tinha acreditado. As crianças são muito mais abertas do que os adultos. Mesmo assim, há um limite para o que uma criança acredita. Mas era como se Courtney pudesse ver através de mim, ela sabia que eu não estava mentindo.    

Courtney usou o cartão de crédito para comprar um casaco novo numa loja de departamentos, antes de planejarmos a nossa próxima aventura.

 

– Como você faz isso, a coisa toda do salto no tempo? – ela perguntou.     Estávamos no Metropolitan Museum, em meio aos turistas.    

– Eu não sei explicar a parte do salto propriamente dito. Como se explica a respiração?    

– Você acha que eu posso fazer isso também?    

Eu desviei os olhos do rosto dela.    

– Boa pergunta. Vá em frente e experimente.    

Ela sorriu e balançou a cabeça.    

– Por que você não pode apenas me dizer se o meu eu mais velho tem superpoderes? Eu preciso me preparar mentalmente para algo como isso.    

Eu hesitei, sentindo a dor se abater sobre mim como tinha acontecido da última vez, mas me esforcei e continuei olhando para a frente antes de responder. Esse encontro não duraria muito. Alguém viria procurá-la em breve.    

– Desculpe. Não posso quebrar o código de ética da viagem no tempo. Eu seria expulso do clube.

Suspirei de alívio quando ela não pareceu notar que eu tinha me recusado a responder à pergunta.    

– Droga. Deve ser por causa da mamãe, né? – Ela disse isso como se fosse algo de conhecimento geral. – O papai não é um viajante no tempo. E superpoderes só podem vir de superpais.    

– Ou de um tonel de lixo tóxico – acrescentei.    

Courtney deu uma risadinha e sacudiu a cabeça.    

– Duvido.

Adam e eu tínhamos de fato considerado o fato genético apenas numas duas ocasiões em nossas teorias. Uma delas foi na época em que pensei ter visto uma versão mais nova da minha irmã perambulando pelo jardim zoológico. Nós nunca nem mesmo chegamos perto de uma teoria concreta, quanto mais de uma conclusão. Traçamos um plano bem elaborado para roubar registros médicos que nunca colocamos em prática, porque eu acabei saltando para 2007. Mas eram os meus registros que estávamos tentando roubar, não os de minha mãe. Courtney e eu nunca conhecemos a nossa mãe. Ela morreu de complicações de parto, poucos dias depois do nosso nascimento. Meu pai nunca quis falar sobre ela e, depois que fiz 7 ou 8 anos, parei de fazer perguntas. É difícil sentir falta de uma mãe quando você nunca teve uma. Eu não via nenhuma diferença entre ter mãe ou não.    

Eu parei e Courtney virou o rosto para mim.

– Você acha que é por causa da mamãe? – perguntei.    

Mesmo se eu quisesse me apossar dos registros dela, onde iria procurar? Ela tinha morrido há tanto tempo! Além disso, registros médicos não são uma coisa muito fácil de roubar.    

Courtney deu de ombros.    

– Pode ser por isso que o dr. Melvin sempre fez tomografias do nosso cérebro.    

Eu não sei se foi a revelação de Courtney ou apenas a falta de sono e comida, mas fiquei tonto de repente, sentindo-me ainda mais leve do que algumas horas antes.    

– Eu preciso me sentar.    

Ela me arrastou pela mão até um banco.    

– Você está muito pálido. Está se sentindo bem?    

Gotas de suor formaram-se na parte de trás do meu pescoço e escorreram pela camisa.    

– Só estou... cansado.

Eu me deitei no banco e fechei os olhos. Courtney passou a mão na minha testa, secando o suor frio. Eu precisava voltar para 2007 antes de desmaiar no passado ou algo pior, que pudesse exigir atendimento médico. Isso seria interessante. E onde, pelo amor de Deus, estava o espião? A viagem toda seria inútil se eu não conseguisse vê-lo.    

Abri os olhos e coloquei a mão no rosto dela.    

– Eu não acho que vou poder ficar aqui por muito mais tempo, ok?    

Seus olhos estavam marejados.    

– Eu não vou me lembrar disso, não é? Como quando você voltou em 2007, este eu não vai se lembrar disso.    

Minha garganta apertou e tive de forçar as palavras a sair e reprimir as lágrimas.    

– Acho que não.    

Ela balançou a cabeça.    

– É como sonhar acordado, não é?    

– Exatamente. Algo que você faz quando não quer enfrentar o mundo real.    

Fiquei de pé mais uma vez, muito lentamente, e ela colocou os braços ao redor da minha cintura.

– Eu te amo, Courtney.    

– Eu também te amo, mesmo que nunca diga – ela sussurrou.    

Eu podia me sentir voltando, mas não por vontade própria. Num segundo ela estava em meus braços e, num piscar de olhos, o ar frio substituiu o calor do seu corpo.    

Courtney nunca teria deixado Holly ali morrendo. Ela era a mais corajosa de nós dois. Sempre fazia a coisa certa. E se a nobreza contasse para alguma coisa, seria eu quem estaria enterrado embaixo da terra, não minha irmã. Mas eu não só ainda estava vivo, como era o irmão gêmeo dotado de superpoderes para viajar no tempo.    

Justo quando a escuridão tomou conta de mim, um homem baixo e atarracado mais ou menos da minha idade veio correndo de trás de Courtney, seguido pelo meu pai. Tentei o melhor que pude memorizar o rosto dele. Me concentrei nisso durante todo o tempo que o meu corpo me permitiu.    

– Lá está ela! – ouvi o homem gritando.    

– Não atire nele! – Courtney gritou. Mas, então, tinham todos desaparecido. Ou eu tinha ido embora. De volta ao purgatório.

 

                   SÁBADO, 9 DE SETEMBRO, 2007, 21:20.

– Ei! Está tudo bem com você? – uma voz masculina gritou no meu ouvido.    

– Ele ia embora sem pagar, então simplesmente desmaiou – explicou a garçonete.    

– Quanto tempo ficou inconsciente? – alguém perguntou.    

– Uns dez minutos – disse a garçonete.    

Que maravilha... Eu nunca mais poderia mostrar a minha cara ali novamente. Olhei para o teto, reunindo forças para me levantar do chão. Foi um processo lento, mas finalmente consegui ficar de pé, com a ajuda do gerente.    

– Desculpe, é só um pouco de tontura... hã... baixo nível de açúcar no sangue – resmunguei.    

O gerente parou na minha frente.    

– Talvez devêssemos ter chamado uma ambulância em vez da polícia...    

Polícia? Droga!

A garçonete estava batendo o pé novamente, segurando a minha carteira.    

– Seu cartão de crédito foi recusado. Eu acho que é falso ou uma cópia de algum tipo.    

Ai, não...    

– Tenho outro cartão e um pouco de dinheiro.    

– É, 2 dólares. E já tentei os outros cartões. Nenhum passou – a garçonete disse.    

Olhei sobre o ombro dela, procurando pela minha professora de espanhol, a senhorita Ramsey. Ela ia me tirar daquele apuro. Mas um casal de idosos estava sentando à mesa onde ela tinha estado. Já devia ter se passado algum tempo.    

– Só preciso ligar... para o meu pai.    

Um policial já estava entrando no restaurante com outro atrás dele. Ele pegou a carteira da mão da garçonete e puxou a minha carteira de motorista.    

– Emitida em 2008? Interessante. E estes cartões parecem até de verdade. Coisa de profissional.    

Parecem de verdade porque são de verdade. E quando é que eu fiquei sem dinheiro?    

O policial que segurava a minha carteira me encarou, depois olhou para o gerente.

– Vamos cuidar disso. Provavelmente drogas.    

– Geralmente é isso – confirmou o gerente, balançando a cabeça.    

– E pela aparência desta carteira cheia de documentos falsos, eu diria que é viciado e traficante – completou o policial.    

O olhar de desprezo no rosto dele realmente me irritava e eu abri a boca novamente.    

– É, porque os traficantes de drogas acham muito útil fazer documentos falsos que só serão válidos daqui a um ano.    

– Engraçadinho... – murmurou entre os dentes.    

Tentei me afastar deles, mas o policial que não estava segurando minha carteira bloqueou meu caminho, enquanto o outro pegou meus braços e colocou algemas em torno dos meus pulsos. A raiva borbulhou em mim e comecei a me debater para me soltar.    

Não piore as coisas, disse a mim mesmo. E nem pense em saltar no tempo. Eu tinha acabado de voltar e meu estado catatônico provavelmente contribuiria ainda mais para me fazer parecer um viciado.    

Os outros clientes ficaram me olhando enquanto eu era levado para fora do restaurante e posto na parte traseira de uma viatura. Minha vida poderia ficar ainda pior?    

Sim, poderia. Agora eu teria que chamar meu pai para me tirar da cadeia. Meu pai, que quase me matou em 2003. Aquilo estava virando uma verdadeira piada de humor negro.

– Ei, Meyer, tem alguém aqui que quer te ver – avisou o policial.     Esfreguei os olhos para espantar o sono e me sentei no banco em que tinha desabado na cela. Minha cela. Porque eu era um criminoso filho da mãe. Ou um viajante no tempo realmente irresponsável, que não andava por aí com documentação apropriada e autêntica.    

Passos ecoaram pelo corredor, cada vez mais altos. Senti um frio na barriga. Eu não sabia como iria reagir ao ver meu pai novamente. Mesmo sem a coisa da CIA e o fato de ele ter tentado me matar, eu ficaria nervoso ao ver Kevin Meyer, o CEO, vindo me tirar da cadeia. Principalmente porque ele não iria encontrar a minha versão certa. Será que perceberia diferença?    

– Se está tudo certo, eu gostaria de ter uma palavrinha com o garoto antes de soltá-lo – soou uma voz feminina do corredor.    

Não era o meu pai. Com certeza.    

– Como quiser – disse o policial, que então se aproximou e destrancou a porta.

A primeira coisa que vi da mulher foram as botas. Botas pretas de salto alto, subindo pelas pernas até quase os joelhos. Ela vestia um vestido curto preto e sua pele era cor de caramelo. Talvez fosse advogada. Só que não parecia muito mais velha do que eu. Muito jovem para ser advogada.    

Ela não sorriu nem me fez nenhum tipo de saudação amigável enquanto suas botas marchavam para dentro da minha cela. Só ficou na minha frente, de braços cruzados, esperando o policial se afastar.    

– Escute aqui, júnior. Eis o plano. Vou tirar você daqui e depois vamos voltar para o seu apartamento, onde você vai explicar o seu comportamento recente. Eu tenho uma longa lista de perguntas. Mas nem uma palavra enquanto estivermos neste lugar, entendido?    

– Hã... quem é você? – perguntei.    

– Senhorita Stewart – disse ela com uma expressão presunçosa.    

– Senhorita Stewart? Quantos anos você tem, tipo, uns 20? – Ela nem sequer parecia ter 20 ainda. Dezoito ou 19 anos, talvez. Alguma coisa estava errada e eu não tinha por que confiar em alguém naquele momento. Mesmo que isso significasse permanecer naquele banco de cadeia. Como se aquilo importasse. 2007 já era uma prisão.

– Eu não gosto de dizer às pessoas o meu primeiro nome.    

– Onde está meu pai? Deixei uma mensagem pra ele.    

Ela vasculhou a bolsa e tirou dali um pedaço de papel, então o entregou a mim. Era um fax, mas reconheci imediatamente a caligrafia do meu pai.            

 

           Jackson,    

Por favor, faça exatamente o que a senhorita Stewart disser ou só vai piorar as coisas. Ela trabalha para mim e sabe muito bem lidar com situações confidenciais sem deixar que nada vaze ou a mídia se envolva. Nós nos falamos mais tarde.    

                                    Papai            

 

Enfiei o bilhete na minha mochila, mas ela o arrancou dali na mesma hora.    

– O que você faz para o meu pai? – perguntei.    

– Secretária – disse ela.

– Sério? – Balancei a cabeça e me levantei. – Que seja.    

Ela saiu da cela e nem sequer esperou para ver se eu a seguia. Como se simplesmente soubesse que qualquer sujeito com um pouco de juízo a seguiria para qualquer lugar. Azar dela, porque eu estava longe de ser um cara ajuizado. Mas não podia ignorar o bilhete do meu pai.    

Suspirei e fui me arrastando pelo corredor, atrás dos saltos barulhentos, sentindo o chumbo nas minhas pernas junto com a dor na boca do estômago. Um dos policiais acenou com a cabeça e inclinou o quepe para mim enquanto passávamos na recepção.    

– Lamento muito pelo mal-entendido, sr. Meyer – disse ele.    

Eu abri a boca para dar uma resposta educada, mas a senhorita Stewart sibilou no meu ouvido:    

– Não responda. – Então foi pisando duro em direção à porta e falou por cima do ombro: – Ele vai ficar esperando uma carta formal de desculpas. Quanto às outras condições, discutiremos.    

Outras condições?    

Eu comecei a me virar para dizer algo gentil para os policiais, mas a “secretária” do meu pai agarrou meu braço e me puxou para fora, na direção do ar fresco da noite.

– Isso foi bem rude. Eles estavam apenas tentando...    

Ela levantou uma mão na frente do meu rosto.    

– Eu não lhe dei instruções muito específicas?    

Revirei os olhos e segui na direção de um carro estacionado fora da delegacia. Meu carro. Bem, o carro que Cal, nosso motorista, usava. Assim que nos aproximamos da porta do carro, pensei em correr dessa mulher, mas depois decidi que não seria muito sensato fazer isso bem na frente da delegacia, depois de ser tirado dali. Nenhum de nós disse uma palavra durante todo o trajeto até a minha casa.    

Eu estava distraído demais com a ideia de que estava realmente indo para casa. Quer dizer, uma versão de 2007 da minha casa. Na realidade, eu não estava realmente no meu apartamento aquele dia, da primeira vez em que vivi em 2007. Eu estava na Espanha. Eu ainda estava na Espanha. Meu outro eu. Só que estava aqui também.    

Ser esse eu mais jovem era totalmente estranho. O Jackson na Espanha não era nem maior de idade ainda. Ele não podia votar, não sabia ao certo que faculdade ia cursar. Essa era uma experiência completamente diferente. E até agora, não muito agradável.    

Mas o conceito mais difícil de entender era o fato de que eu poderia ficar aqui por um bom tempo.

Quando chegamos ao meu apartamento, a senhorita “Secretária Mocreia” saiu do carro atrás de mim e eu me virei para encará-la. Aquela situação já era esquisita o suficiente sem aquela garota estranha atrás de mim.    

– Eu não preciso que você me acompanhe. Vou esperar o meu pai chegar em casa. Agradeço pela ajuda.    

– Você não é mesmo uma gracinha?... – Ela me empurrou ao passar na minha frente. – Desculpe, estou seguindo ordens. Além disso, seu pai vai demorar várias horas.    

Ordens? Como agentes da CIA lhe dizendo o que fazer? Ou só um CEO mandão? E ele vai demorar? Eram onze horas da noite. Que situação, numa empresa farmacêutica, não podia esperar alguns minutos, ao menos para uma ligação telefônica?    

Eu flagrei Henry, o porteiro, me encarando ao se aproximar para abrir a porta.    

– Sr. Meyer, não estávamos esperando o senhor hoje. Está tudo bem? – Henry me olhou com atenção, em seguida olhou para a senhorita Stewart.     Forcei um sorriso.    

– Sim, vim pra casa mais cedo. Da Espanha...    

Ele abriu a porta para mim.

– É bom vê-lo novamente.    

A senhorita Stewart agarrou meu braço e me puxou para dentro do edifício.    

– Vamos, júnior. Você não tem hora para dormir? Ou um toque de recolher?    

Eu puxei meu braço dos dedos dela e disparei na frente, esperando entrar no elevador antes dela. Talvez fechá-lo na cara dela.    

Mas, é claro, o ascensorista ouviu suas botas se aproximando a quilômetros de distância e se virou para mim antes de dizer:    

– Será que não devemos esperar a senhorita?    

– Tá – murmurei.    

Tenho que admitir, ver o interior da minha casa, a mobília conhecida, me causou uma leve sensação de conforto. Eu desmaiei no sofá, desejando estar em melhores condições para brigar. A senhorita Stewart sentou-se na grande poltrona e levantou as longas pernas até descansá-las no apoio para os pés.    

– Então, como você fez isso?    

– O quê? Ser preso? – perguntei.    

Ela deu de ombros.    

– Claro, vamos começar com isso e depois passar para questões mais importantes.

Quebrei a cabeça para encontrar uma desculpa. O que eu precisava era representar um papel, e o melhor era geralmente o do garoto rico e mimado, arrogante e sem consideração por ninguém. Pousei os pés sobre a mesa de centro e tirei os tênis antes de arremessá-los através da sala, em direção ao capacho na frente da porta.  

– Bem... Eu tenho um amigo que tem um pequeno negócio paralelo e me fez algumas identidades falsas, cartões de crédito, esse tipo de coisa, só de brincadeira. Todos os anos foram trocados de propósito, e ele deve ter enfiado tudo na minha carteira.    

– Você está envolvido com drogas? – ela me perguntou.    

Eu não tinha certeza de como responder a essa pergunta sem acabar numa clínica de reabilitação ou desperdiçar uma boa desculpa, negando.    

– Talvez sim... talvez não.    

– A polícia parece achar que você está. Disseram que mentiu que era diabético para se safar.    

– Eu não vou dizer a você nada que não disse a eles.    

Ela se inclinou para a frente, voltando a pôr os pés no chão, e olhou diretamente para mim.

– Como, pelo amor de Deus, você saiu de um país estrangeiro sem bagagem, sem passaporte, sem dinheiro e praticamente sem identificação?    

Eu respirei e segurei o ar por vários segundos. Talvez o meu outro eu não esteja mais lá. Na Espanha. Continue firme, lembrei a mim mesmo. Não deixe que ela veja você suando de nervoso.    

– Não sei do que está falando.    

A expressão dela endureceu.    

– Sabe, sim. O gerente do seu apartamento na Espanha disse que você desapareceu ontem de manhã cedo, sem levar nenhum dos seus pertences. Ele pensou que você estivesse morto. E o seu pai também. Estava doente de preocupação. Até que você ligou da delegacia de polícia.    

Eu raramente ia a qualquer lugar na Europa sem falar com alguém, pedindo permissão. Era conhecido em 2009 por inventar histórias mirabolantes para encobrir minhas experiências de viagem no tempo e mentir para Holly, mas esta teria que ser a história do século. A coisa do passaporte seria realmente muito difícil de explicar.

– Meu amigo, na Espanha, o que faz identidades falsas...    

– Ele é americano? – ela interrompeu.    

Eu balancei a cabeça.    

– Não... hã... inglês.    

Ela franziu a testa.    

– Eu não tenho conhecimento de nenhum aluno de intercâmbio do Reino Unido dentro de um raio de 30 quilômetros de sua localização.    

Ok, aquilo era mesmo estranho.    

– Ele não é estudante... só um cara que conheci. Na verdade, acho que foi deportado do país dele. Seu visto provavelmente nem é legal.    

Ela relaxou na poltrona outra vez.    

– Pelo jeito você anda em muito boas companhias...    

– Eu me esforço. Enfim, me ofereci para testar um dos produtos dele. Um passaporte da UE falso. Para que eu pudesse entrar na fila dos cidadãos europeus no aeroporto. É muito mais rápido que a outra fila. – Olhei para o rosto de pedra à minha frente e parei um pouco antes de continuar a minha história. – Um passaporte da União Europeia, sabe? Um passaporte apenas para cidadãos europeus.

– Eu sei o que é um passaporte da UE – ela retrucou. – Se você não era cidadão americano, o que era, então?    

– Francês – eu disse.    

Ela soltou uma risada sem humor.    

– Ninguém teria acreditado em você.    

Eu sorri para ela e recitei a declaração francesa dos direitos do homem com o meu melhor sotaque francês. Aquela era outra coisa que eu tive que aprender no colegial e que de fato foi útil.    

Seus olhos se estreitaram para mim.    

– Nada mal. Continue.    

– Então, eu e meu amigo, vou chamá-lo de Sam, fomos para Londres com seu passaporte falso. Passamos a noite num pub, enchendo a cara, e eu disse a ele que poderia pegar um avião para casa sem um passaporte americano. Como Pierre, o estudante de intercâmbio francês. Ele apostou 10 mil dólares. Eu não estava bem certo se ia conseguir viajar nesse esquema, mas felizmente tinha acabado de conhecer umas garotas que trabalhavam para a Delta. Perguntei se elas podiam me dar uma passagem grátis para Nova York.

– E funcionou? – perguntou ela. – Você realmente entrou nos Estados Unidos como um cidadão francês?  

– Obviamente – eu disse, cruzando os braços.    

– Onde está esse passaporte francês? – perguntou ela.    

– Queimei depois de passar pela alfândega.    

– Então, você está querendo me dizer que um estudante que só tira boas notas, com uma pontuação altíssima em seus SATs[2], uma instrução suficientemente esmerada para ser fluente em duas línguas estrangeiras, sem antecedentes criminais, nem sequer uma multa de trânsito, decide ficar bêbado e não apenas violar algumas leis federais, mas algumas estrangeiras também. Em alguns países, você poderia ir para a cadeia por causa do que fez.    

– Que exagero – eu disse.    

Ela se inclinou para a frente novamente.    

– Quer apostar? Vou lhe enviar uma lista de todos os países que colocariam sua cabeça a prêmio, literalmente, por causa de uma infração como essa. Vou até mesmo incluir as cláusulas exatas que descreveriam sua morte iminente.

– Você é muito esperta para uma secretária. – Esperei um segundo para ver se arrancava dela algum tipo de reação, mas a moça nem sequer piscou. – Acredite se quiser, eu realmente não dou a mínima. Eu estava lá e agora estou aqui. Como num passe de mágica.    

Ela suspirou e se levantou antes de caminhar pelo cômodo em passos largos.    

– Adolescentes arrogantes... – murmurou.    

– Funcionários de escritórios não deveriam ser educados? Bom atendimento ao cliente e aquela história toda? – Sorri para ela e percebi que não agradei.    

Ela me fulminou com tamanha intensidade que senti como se feixes de laser me atravessassem.    

– Você devia pensar em tomar um banho antes de seu pai voltar. Está fedendo mais do que os mendigos do lado de fora deste prédio.    

Eu não tinha dúvida de que ela estava dizendo a verdade. Tinha tomado chuva várias vezes e usava a mesma roupa por um período equivalente a três dias. Sem um banho sequer.    

Eu me levantei e fui para o meu quarto sem olhar para ela novamente. Assim que fechei a porta, encostei-me contra ela, dando um tempo para me refazer e voltar ao normal. Eu tinha um palpite de que teria de fazer isso muitas vezes ainda se continuasse preso em 2007, e eu não parecia ter muita escolha.

Com base nos fatos extraídos da conversa que tínhamos acabado de travar, parecia que o meu eu mais jovem tinha desaparecido completamente por volta da época em que aterrissei em 2007. Nada daquilo fazia sentido. Nada daquilo batia com os dados que eu e Adam tínhamos colhido. Saber que o outro eu tinha evaporado fazia eu me sentir como se estivesse afundando cada vez mais nesse ano, nessa base principal, como areia movediça.    

Meu quarto parecia quase o mesmo que em 2009, mas todos os meus jeans estavam cinco centímetros mais curtos. As únicas roupas que serviam eram um short de ginástica e uma camiseta.    

Depois do banho, voltei para a sala. A senhorita Stewart estava ao telefone, mas parou de falar tão logo me viu.    

– Seu pai gostaria de falar com você. – Ela colocou o telefone na minha mão.    

Eu tentei encenar o papel de adolescente rebelde que não se importava com o que os pais pensavam, mas minhas pernas já estavam bambas.    

– Oi, pai.    

– Que diabos você estava pensando, Jackson?!    

Afastei o telefone um pouco do ouvido e virei de costas para a senhorita Stewart.    

– Hã... bem.

– Você faz ideia de quantas leis violou?! Ou do malabarismo que eu tive que fazer pra livrar você dessa enrascada?    

Ele não esperou eu responder, em vez disso continuou a falar por pelo menos cinco minutos e depois ficou em silêncio, esperando a minha grande desculpa.    

– Sinto muito, eu só...    

Eu só quero saber se você está nessa droga de CIA. E se vai me trancar numa jaula.    

– Sabe o que mais, Jackson?... Eu não posso discutir isso agora – disse ele, e eu podia ouvi-lo soltando um suspiro irritado. – Estou substituindo os seus documentos perdidos enquanto nos falamos. A senhorita Stewart deve conseguir colocá-lo num voo de volta para Madri amanhã à tarde. Supondo-se que você vá se comportar.    

Não era realmente a resposta que eu estava querendo.    

– Hã... na verdade, eu não quero voltar pra Espanha.    

– E por que não?    

Olhei para Miss Stewart, que agora estava sentada novamente e lixava as unhas.    

– Razões pessoais que prefiro não discutir na frente da companhia que você me impôs.    

– Ah... tudo bem – disse ele, lentamente. – Eu vou ligar para o seu colégio pela manhã.

Eu estava resignado a ficar preso em 2007 até descobrir um jeito de voltar para 2009, mas não estava disposto a ir para o colegial novamente.    

– Eu vou ficar o semestre sem ir à aula, se não se importar.    

– Falaremos sobre isso mais tarde. Estarei em casa amanhã.    

– Onde você está? – Em algum lugar supersecreto?    

– Houston – disse ele. – Viagem a negócios.    

– Tudo bem. Vejo você amanhã. – Eu desliguei o telefone e o devolvi para a garota que invadia a minha privacidade. – Obrigado. Você pode ir agora.     Ela se levantou e pegou a bolsa do braço da cadeira.    

– Legal bater um papinho com você, júnior.    

Tomei uma decisão rápida de tentar arrancar alguma informação da única fonte que eu tinha.    

– Sabe, meu pai me disse o que você realmente faz, que não é secretária dele. Você não precisa mais fingir. Na verdade, acho muito legal que esteja... tão envolvida.

Ela deu uma gargalhada.     – Bem, você tem esse direito. Se quer saber sobre corrupção e segredos de uma grande corporação, pergunte à pessoa que atende ao telefone. Ela sabe de tudo.    

– Até mesmo informações detalhadas sobre política externa. Estou impressionado! – Cheguei alguns passos mais perto e levantei uma sobrancelha.    

– Somos muito internacionais, mas acho que você já sabe disso.    

Ela tirou um cartão da bolsa e o entregou a mim.    

– Me ligue a qualquer hora se mudar de ideia sobre voltar pra Europa. Ou... se quiser discutir política externa um pouco mais.    

Eu simplesmente olhei para ela com descrença. Estava flertando comigo? Eu não conhecia ninguém que mudasse de humor com tanta rapidez. Não uma pessoa sincera, pelo menos.    

Desabei no sofá novamente no segundo em que ela saiu. O sono não devia demorar. Deus sabe o quanto eu precisava, mas toda aquela coisa de o meu pai ser agente secreto estava realmente me assustando, e o encontro com Courtney e o fato de ser preso tinham me distraído de buscar pistas.

Eu quase esperava aqueles homens armados saltarem de trás da porta. Revirei-me no sofá por horas, sentindo a culpa, o peso de tudo que tinha deixado para trás em 2009, me oprimindo. Será que eu conseguiria simplesmente começar de novo? Talvez essa fosse a resposta. Ver Holly ou falar com ela, neste ano. Só para saber se ela estava bem. Era possível que o pesadelo de 2009 parasse de me assombrar se eu soubesse que ela estava segura. Aqui. Agora. Talvez eu pudesse mudar as coisas dessa maneira.     Estendi o braço atrás de mim e peguei o telefone da mesa de canto. Ela talvez tivesse o mesmo número de celular que tinha em 2009. Faltavam cinco minutos para as seis e era manhã de segunda-feira. Holly provavelmente estava de pé. Meu coração batia forte, quando disquei o número dela de memória.    

Depois de três toques, ouvi o barulho de papéis sendo amassados e depois uma música em volume alto, seguida da voz que eu mais precisava ouvir no momento.    

– Alô?    

Não consegui falar nem me mexer.    

– Alô? – ela repetiu.

– Ah... hã... desculpe... foi engano – consegui gaguejar.    

Eu a ouvi rindo um pouco.    

– Tudo bem, sem problema.    

Soltei o maior suspiro de alívio da minha vida, mas sabia no segundo em que desliguei o telefone que não tinha sido o suficiente. Eu queria vê-la. Enquanto cambaleava em direção ao meu quarto, mais cansado do que jamais me sentira na vida, comecei a bolar um plano para me infiltrar não só na vida de Holly, mas na de Adam também.

 

Dormi algumas horas e depois peguei meu diário e anotei tudo o que tinha acontecido até então. Se eu não conseguisse fazer amizade com o Adam mais jovem, ele precisaria de todas essas páginas de anotações. Eu o conhecia suficientemente bem para saber disso.  

        

Segunda-feira, 10 de setembro de 2007.            

Hoje é o meu primeiro dia oficial no papel do meu eu de 17 anos. Droga, é um porre! Já defini alguns objetivos, embora seja de manhã bem cedo. (1) Evitar cursar mais uma vez qualquer tipo de ensino médio. (2) Descobrir o que Adam e Holly estão fazendo este ano. Eu realmente preciso vê-los. Os dois. Mesmo que não me conheçam.            

 

Alguém bateu na porta do meu quarto, com força. Devia ser meu pai, e ele provavelmente ainda estava furioso comigo por causa da noite anterior.     – Você precisa lembrar que eu estava em outro fuso horário desde maio – eu disse, enquanto metia o diário embaixo do travesseiro.    

– É quase meio-dia, você já dormiu bastante. Fiz algo pra você comer – ele gritou do outro lado da porta.

Tomei um banho e me vesti sem pressa, pensando numa história que explicasse por que um aluno exemplar como eu de repente tinha decidido não cursar o último ano do ensino médio.    

Meu pai estava esperando por mim à mesa da cozinha com ovos e café, de terno e gravata como sempre, o cabelo castanho penteado com esmero.    

Uma parte de mim queria contar tudo a ele, principalmente que eu tinha visto Courtney e conversado com ela. Ele sentia falta dela tanto quanto eu. Talvez mais. Não que já tivéssemos conversado a respeito. Mas eu tinha dado a mim mesmo um ultimato: Não confie em nada que ele disser.    

– Jackson – ele me cumprimentou, com um breve aceno de cabeça.    

– Pai.    

– Quero falar sobre essa história de desistir do último ano. Entendo que tenha suas razões para voltar da Espanha, mas pelo menos considere a possibilidade de voltar para a Loyola.    

– Não, obrigado. – Não ia passar por aquele tormento outra vez. – Está indo trabalhar?    

Ele abriu o jornal, escondendo o rosto.    

– Estou.

Peguei o copo de suco de laranja e tomei um longo gole.    

– O que foi fazer em Houston?    

Matar pessoas com as próprias mãos?    

– Nada interessante, só algumas reuniões com políticos. Neutralizando a FDA antes que venham pra cima de nós com novas regulamentações. Todas aquelas coisas que alguém que desiste do ensino médio nunca poderá fazer.     Eu gemi e enfiei uma garfada de ovos na boca.    

– Não estou interessado em voltar pra uma escola cheia de adolescentes esnobes.    

Ele dobrou o jornal e olhou para mim.    

– Hum... A Europa deixou você diferente. Não posso dizer que não concorde com isso... mas a sua educação não deve ser prejudicada. É só mais um ano e depois você pode ir pra faculdade que quiser.    

Mais um ano. Que droga isso significava para alguém como eu?

– Depois te aviso o que decidi – resmunguei.    

Ele me deixou sozinho na cozinha e foi para o trabalho. Várias perguntas passaram pela minha cabeça, tipo... será que ele arranca o terno e se transforma num espião no segundo em que sai pela porta? Mas se ele realmente trabalha para a CIA, não havia maneira de segui-lo sem ser pego.    

Meu pai nunca me pareceu o tipo de homem que trabalhava para o governo, mas ele não costumava falar muito do passado recente. Eu achava que era por causa de Courtney. Muitas vezes achei que ele preferia que eu tivesse morrido em vez dela.    

Não que eu o culpasse por isso, principalmente agora que eu estava representando o papel de delinquente juvenil babaca, mimado demais para acabar o ensino médio.    

A campainha tocou e eu me forcei a sair da cadeira e marchar para a porta. Henry estava parado do outro lado, segurando um envelope pardo grande.  

– Entrega pra você.    

Peguei o envelope das mãos dele.    

– Obrigado. Você checou se tinha explosivos?    

Os olhos dele se arregalaram.    

– Ah... Não, eu não sabia...

– Brincadeira, Henry.    

Dei um tapinha no ombro dele antes de fechar a porta e voltei a me sentar na minha cadeira. Esvaziei o conteúdo do envelope e encontrei um novo telefone celular, passaporte, carteira de motorista, cartões de crédito, algumas centenas de dólares em dinheiro e um bilhete.      

  

             Júnior,    

Espero que isso o ajude a andar por aí sem problemas hoje. Sei como vocês, adolescentes privilegiados, podem se sentir desamparados. Na verdade, até programei meu número no seu telefone. Vou estar de olho em você. Ordens do seu pai.    

                   – Senhorita Stewart            

P.S. Já coloquei todo o pessoal da segurança internacional no aeroporto JFK à procura de Pierre, o estudante de intercâmbio francês, por isso nem sequer pense em tentar aquela idiotice de novo.            

 

Forcei-me a fazer uma refeição completa, esperando que meu nível de energia voltasse ao normal. Eu precisava conseguir algumas informações de Holly e Adam neste ano. De preferência sem salto no tempo, porque eu estava apenas saltando para trás. Conhecia um cara que poderia me ajudar, mas não seria uma experiência agradável.

Percorri o corredor vazio de um dos dormitórios da Universidade de Nova York e bati na última porta. Uma música encheu o corredor quando um cara gordo, com cabelo ensebado e resto de comida entre os dentes, abriu a porta, agarrou a frente da minha camisa e me puxou para dentro.    

– Não diga uma palavra!    

– Hã... tudo bem. – Olhei ao redor do pequeno cômodo. Estava coberto de embalagens abertas, roupas sujas e em algum lugar havia uma cama. Eu acho.    

Ele apertou o cinto surrado do roupão azul-marinho.    

– Como ouviu falar de mim?    

– Um amigo da sua classe de sociologia.    

Leon Porcão (o único nome que eu sabia que ele tinha) era um veterano da Universidade de Nova York quando eu era calouro. O cara que conseguia respostas. Aparentemente, era capaz de consegui-las sentado no sofá, comendo sanduíches de frios e frascos inteiros de picles.    

Ele levantou uma sobrancelha, mas balançou a cabeça.    

– Legal. Você é um de nós agora.    

Santo Deus, espero que não!

– Então..., me diga, como isso funciona...    

Leon Porcão teve que atirar algumas cuecas sujas no chão para poder se sentar em frente ao computador.    

– Bem, basicamente, esta é uma transação comercial.

Confidencialidade é uma necessidade absoluta, mas nunca tive problema com um cliente que me dedasse.    

– Por causa do seu charme?    

– Recebo alguns pedidos muito arriscados para obter informações. Alguns que poderiam mandar um monte de gente pra cadeia. Agora me diga do que você precisa.    

– Só encontrar uma pessoa. Eu tenho informações básicas, endereço e escola...    

Ele balançou a cabeça.    

– Uma garota, e você precisa saber um pouco mais sobre a vida dela. Isso é fichinha, a menos que ela seja funcionária do governo ou tenha passado recentemente por uma cirurgia de mudança de sexo.    

– Nenhuma das duas coisas.    

Eu lhe dei as informações e esperei alguns minutos, encostado na porta, porque não estava disposto a me sentar em lugar nenhum daquele quarto e correr o risco de ter algum contato físico com as cuecas de Leon.

– De acordo com a Receita Federal, ela tem um emprego – disse ele, ainda olhando para a tela do computador.    

Ok, aquilo era impressionante.     – Onde ela trabalha?    

– Em algum lugar chamado Aero Twisters, em Newark.    

– É, tipo, um lugar onde vendem smoothies ou coisa assim?    

Ele digitou por alguns segundos e uma foto de Holly apareceu na tela.    

– Instrutora de ginástica recreativa e pré-escolar. Acho que você é velho demais para participar de uma das aulas dela.    

A futura Holly mencionara que tinha sido professora de ginástica, mas eu nunca soube onde.    

Olhei para a tela e meu rosto se abriu num sorriso.    

– Eles estão contratando.    

– Alguém para limpeza e manutenção. Acha que dá conta disso?    

Provavelmente não.    

– Talvez, se eu achasse que poderia impressioná-la.

Leon olhou para a parede acima da minha cabeça.    

– Depende do ângulo que você vê a coisa. Sujeito trabalhador, sem medo de sujar as mãos... Acho que tem tudo pra dar certo.    

– É, tem sim. – Se eu conseguir que me contratem.    

Ele se virou novamente para o computador.    

– De acordo com um e-mail do dono da academia, ele teve um problema de encanamento nesta manhã que o deixou, como ele mesmo diz, “com vontade de arrancar os cabelos”. Parece que você vai precisar cuidar disso imediatamente.    

– Obrigado. Dá pra preparar um currículo falso rapidinho? – perguntei.    

Ele sorriu, exibindo pedaços verdes de picles presos nos dentes.    

– Eu vou fazer você parecer o melhor cara de limpeza e manutenção de todo o estado de New Jersey. Por mais cinquenta pratas    

– Ótimo. Você pode me mandar por e-mail.

Paguei Leon em dinheiro, anotei meu e-mail e dei no pé, antes que as bactérias que rastejavam nas paredes do quarto se aproximassem de mim.     Esse seria um bom começo, e depois eu poderia pensar na melhor maneira de abordar Adam. Mesmo que ele tivesse me dito para encontrá-lo se alguma coisa como essa acontecesse, parecia uma completa loucura procurá-lo para dizer:    

– Oi, eu sou do futuro!    

Conseguir esse emprego seria o primeiro passo para bolar um plano.     Se eu conseguisse ser contratado.            

 

– Você é o primeiro candidato em duas semanas que realmente tem experiência em manutenção – disse Mike Steinman, sentado à sua escrivaninha.    

– Sorte a minha!

Eu tinha acabado de passar os últimos trinta minutos inventando mais mentiras do que podia acompanhar e, felizmente, ele estava engolindo. Eu não via nenhuma outra maneira de entrar na vida de Holly. Nós não íamos para a escola juntos. Nossos caminhos nunca se cruzariam a ponto de ela confiar em mim – eu, um cara que mora em Manhattan e que esbarra “acidentalmente” nela em Jersey. Ou eu conseguia aquele emprego ou me matricularia na escola dela. Eu deixaria essa segunda opção para o plano B. Mas ia evitar a todo custo o plano B, porque envolvia o ensino médio. E, admito, embora eu nunca tivesse estudado numa grande escola pública como a de Holly, as regras básicas das escolas de ensino médio eram praticamente as mesmas em toda parte. Não era fácil entrar no círculo social de alguém sem frequentar os mesmos lugares.    

– Tudo bem, são vinte horas por semana. Você é quem vai fechar a academia todas as noites. Temos quase mil crianças passando por aqui a cada semana, de modo que nada nunca é igual; esteja pronto para surpresas.    

– Eu não sou de me chocar facilmente.

Não mais.    

– Ótimo, você pode começar hoje?    

Levei um segundo para responder.    

– Sério? Estou contratado?    

Ele se levantou e caminhou em direção à porta do escritório.    

– É, eu já estou desesperado. Acabou de queimar uma lâmpada sobre as barras assimétricas e a lista de consertos está crescendo a cada dia.    

– Obrigado, sr. Steinman. O senhor não faz ideia do quanto preciso deste trabalho – admiti.    

Ele abriu a porta.    

– Parece que nós dois vamos sair ganhando. E todos por aqui me chamam de Mike.    

– Certo.    

– Venha, vou lhe mostrar o vestiário dos funcionários e o armário da manutenção.    

Meu pulso já estava acelerando. Ela estava ali, em algum lugar. Mas não era a minha Holly. Pelo menos, ainda não.

Eu segui Mike por todo piso acarpetado da academia de ginástica e entre as traves de equilíbrio. Minhas pernas tremiam e eu mal ouvi quando ele abriu um armário vazio e me passou instruções e horários de limpeza.    

No final, me deu um tapinha nas costas.    

– Nunca tive um encarregado da manutenção, sempre precisei contratar empresas terceirizadas. Ou tentar consertar eu mesmo. É uma amolação. Engoli em seco e resmunguei um agradecimento. Esperava não me matar tentando trocar a lâmpada.    

– Este lugar fica lotado entre as quatro e as sete, de modo que você precisa se certificar de que não vai atrapalhar as aulas, enquanto está trabalhando.    

Mike me jogou uma camisa polo preta, com as palavras AERO TWISTERS, INC. bordadas na frente.    

Vesti a camiseta e segui Mike para fora da sala dos armários, em direção ao saguão e à meia parede que separava a área em que os pais ficavam assistindo às aulas da academia de ginástica. Ele apontou para uma garota de cabelo castanho e um cara baixinho encostado à meia parede.    

– Esses são Jana e Toby. Eles são da nossa equipe de ginástica. Dão aulas quando os horários se encaixam com a rotina de treino.    

– Oi – disseram juntos.

Eu havia encontrado a futura Jana em 2009 várias vezes, e só me lembrava vagamente de ter conhecido Toby.    

– Ei, Holly, vem cá – gritou Mike.    

Seu longo rabo de cavalo loiro apareceu debaixo de uma mesa.    

– Sim, Mike?    

Ela se arrastou para fora, segurando uma caneta que devia ter caído no chão, e ficou na nossa frente, ao lado dos outros dois. Minha respiração ficou presa na garganta, em seguida minhas pernas ficaram bambas. Ela estava tão perto. Tão real. Quanto tempo se passara desde que a vira pela última vez? Cinco dias. Pareciam meses.    

– Jackson é o nosso novo cara da limpeza e da manutenção – disse Mike.    

– Não acredito que você contratou alguém para consertar as coisas neste lugar! – Holly brincou.    

Seu riso alegre entrou nos meus ouvidos e eu tive a súbita vontade de jogá-la sobre o ombro e sair correndo com ela dali. Certificar-me de que nada de ruim tinha acontecido a ela. Respirei fundo e tentei me concentrar apesar da dor que estava sentindo por dentro. Ela não tinha me reconhecido. Eu sabia que não iria me reconhecer, mas mesmo assim isso era um soco no estômago.

Eu fiz um gesto com a cabeça, então forcei um sorriso e dei um olá antes de caminhar em outra direção. Com exceção de assistir à versão mais velha de Holly levar um tiro, essa era a coisa mais assustadora pela qual eu já tinha passado em toda a minha vida.    

E eu ainda tinha que trocar uma lâmpada – outro pensamento assustador.

 

A escada tremeu quando estiquei o braço em direção à lâmpada gigante pendurada perto do conjunto de barras assimétricas. Consegui trocar a lâmpada sem me eletrocutar e estava descendo os degraus da escada quando tive um vislumbre de Holly distribuindo adesivos para sua classe, enquanto as meninas saíam da aula.    

Desci lentamente o último degrau. Altura nunca foi o meu forte.    

Uma mecha solta de cabelo loiro caiu sobre os olhos dela e eu fiquei ali olhando, reprimindo a vontade de ir lá, estender a mão e colocá-la atrás da orelha. Para ver se ela sentia o mesmo. Se ela era realmente real.    

Todos os músculos do meu corpo doíam com o desejo de tocá-la, arrastá-la porta afora e lhe contar tudo. Talvez ela acreditasse em mim, mas ainda assim não me reconheceria.    

Não seja idiota, Jackson! Ela nunca acreditaria e provavelmente sairia correndo de medo. Quem não correria? Qualquer um que não fosse Courtney... e Adam. Eu me recompus e comecei a dobrar a escada.

Justo quando Holly acabou de distribuir os adesivos, Toby se aproximou.    

– Ei, Hol, essa foi a sua última aula? – perguntou ele.    

Eu mantive os olhos na parede branca que tinha acabado de esfregar com um pano sujo.    

– Foi – respondeu ela.    

– Quer ir comer alguma coisa, talvez um hambúrguer? – perguntou ele.     Eu ri baixinho e balancei a cabeça.    

– Não posso. Tenho que...    

Ele riu e puxou o rabo de cavalo dela.    

– Tudo bem.    

– Sério, Toby. Tenho duas matérias a mais este semestre.    

Toby levantou a mão para impedi-la de continuar e depois olhou na minha direção.    

– É Jackson o seu nome, não é? – ele me perguntou.    

Levantei-me e cheguei mais perto deles.

– É.    

Toby se encostou na parede, com os olhos fixos em Holly.    

– Jackson, o que significa quando uma garota recusa seus convites cinco vezes em duas semanas?    

Eu me esforcei para fazer minha voz sair. Não precisava que pensassem que eu não sabia nem falar direito.    

– Talvez ela não coma carne.    

Holly abriu um sorriso.    

– Ela come carne de mentira – disse Jana, se aproximando por trás de mim. – Você vai para a Universidade de Washington?    

– Não.    

Os três ficaram me olhando, esperando eu falar. Recapitulei mentalmente quem eu era. Desta vez.    

– Não estou frequentando a escola.    

– Está estudando em casa? – Toby perguntou.    

– Não, eu saí... sabe... para prestar o GED.    

– Então você está na faculdade? – Jana perguntou.    

– Você é tão esnobe! Acha que todo mundo tem que ir pra faculdade – Toby disse a Jana.

– Eu poderia ir. Ainda não decidi – eu disse.    

– Então você já tem 18? – Jana perguntou.    

– Dá um tempo pra ele antes de cair em cima – disse Toby.    

– Tenho 17 – respondi.    

– Holly também – disse Jana. – Fez aniversário há poucos dias.     Holly revirou os olhos e puxou Jana pelo braço.    

– Vamos sair da área da pré-escola. Dar espaço pro cara novo respirar. Mike saiu do seu escritório e eu voltei a esfregar a parede.    

– Jackson, eu vou te mostrar como trancar a academia. Tenho que ir embora daqui a alguns minutos.    

– Eu posso fazer isso, Mike – Holly gritou do outro lado do ginásio. – Eu mostro pra ele... assim ele pode trancar amanhã.    

Mike deu de ombros.    

– Legal.

No segundo em que ele saiu pela porta, Holly, Toby e Jana subiram ao andar de cima, onde estava o equipamento de musculação. Antes de voltar ao meu trabalho eu vi Holly indo para uma das esteiras.    

A lista de tarefas da noite era enorme e eu ia precisar de um bom tempo para concluí-la, provavelmente por causa da minha falta de experiência em limpeza. Eu estava arrumando minhas coisas quando Holly e Jana desceram ao andar de baixo e pegaram garrafas de água em suas mochilas. Holly tirou a polo preta, revelando um top esportivo rosa brilhante. Seu rabo de cavalo roçou o meu rosto e eu senti o cheiro de xampu de melancia.    

Eu o conhecia bem.    

Toby e Holly voltaram ao andar de cima, para uma batalha contra a esteira, a toda velocidade.    

– Eles fazem isso o tempo todo – disse Jana, sentando-se ao meu lado. – Eu odeio correr.    

– Estou sem fôlego só de assistir – eu disse.    

Quando um deles aumentava a velocidade, o outro fazia o mesmo. Isso continuou por pelo menos uns vinte minutos até que Toby pulou para fora da esteira.    

– Finalmente ganhei! – exclamou Holly, enquanto desciam ao andar de baixo.

– Que seja – murmurou Toby. – Estou indo tomar um banho.    

– Alguém aqui não sabe perder! – Jana cantarolou.    

– Tudo bem, Holly. Admito a derrota. – Toby fez uma reverência elegante na frente da porta do vestiário.    

Holly riu e se sentou ao lado da sua mochila, bem perto de mim.    

– Ele já foi? – ela sussurrou.    

Parecia que minha língua estava coberta de serragem. Tudo o que eu pude fazer foi concordar com a cabeça. Eu me amaldiçoei silenciosamente por ser tão idiota. Diga alguma coisa!    

Ela caiu de costas no tatame.    

– Não vou conseguir me mexer até de manhã. E se você contar isso a ele...    

Eu me aproximei dela e tentei reunir um pouco de autoconfiança.    

– O que vai acontecer? Você vai me despedir? Tirar os parafusos da escada?    

O riso sacudiu o corpo dela.

– Não, não vou fazer nada. Foi só uma tentativa patética de intimidar você.    

Estendi a mão para ajudá-la a se levantar e ela hesitou antes de pegá-la. Larguei-a assim que ela ficou de pé. Tocá-la era uma lembrança forte demais.    

– É melhor eu ir. Você trabalha amanhã?    

– Sim, estou aqui praticamente todos os dias.    

Depois que Holly me mostrou como trancar as portas da frente, andei ao lado dela vários quarteirões até a estação ferroviária, detestando mais a distância entre nós a cada passo que dava.

 

                   SEGUNDA, 10 DE SETEMBRO DE 2007.

Entrei no meu apartamento e imediatamente reconheci a voz do meu pai, mas ele não estava falando inglês. Seria algo como russo, talvez?     Debrucei-me contra a parede que dava para a cozinha e o ouvi vociferar por um minuto ou dois antes de desligar o telefone.    

– Jackson, é você?    

Lá se foi a minha chance de escutar a conversa.    

– Sim, pai?    

Ele me encontrou no corredor.    

– Onde você estava?    

– Ah... é, eu estava apenas com..., sabe, com a galera.    

Ele franziu o cenho.    

– É tarde. Seria bom se você telefonasse.    

– Desculpe – murmurei, antes de mudar de assunto. – Você estava falando russo?

Ele virou de costas para mim.    

– Turco, na verdade. Nós estamos fazendo um estudo com novas drogas na Turquia. Prefiro me comunicar sem um intérprete sempre que possível.    

Assuntos confidenciais da CIA.    

De repente eu me lembrei de um outro incidente suspeito. Algo que tinha acontecido no futuro. Na época, eu sinceramente pensei que meu pai estava apenas sendo esnobe com relação ao fato de eu namorar uma menina de classe média. Eram meados de julho de 2009. Holly e eu tínhamos acabado de voltar do jantar e estávamos entrando no meu prédio. Ela pulou nas minhas costas e nós dois saudamos Henry na porta. Ele riu e balançou a cabeça.    

– Tenha uma boa noite, Sr. Meyer. Sra. Flynn.    

– Por que eles nunca nos chamam pelo primeiro nome? – Holly perguntou.    

– Eles se recusam. Acredite, já tentei.    

Ela já estava beijando a minha nuca antes que a porta do apartamento se abrisse. Nós dois tínhamos ficado fora da cidade por todo um fim de semana prolongado. Cinco dias sem nos ver e estávamos prontos para pular um sobre o outro... bem... ou pelo menos para começar a dar uns amassos. De qualquer maneira, ir jantar primeiro tinha sido uma péssima ideia.

– Quer tomar alguma coisa? – perguntei a ela, abrindo a geladeira do bar na sala de estar.    

– Eu gosto mesmo é daquele vinho frutado. Tem aí?    

Peguei uma garrafa na geladeira e decidi não usar copos.    

Desde que tínhamos planejado nosso jantar, tudo o que eu queria era me entregar novamente ao turbilhão de emoções que tínhamos vivido na semana anterior.    

– Vamos ficar totalmente destruídos esta noite.    

– O que estamos celebrando? – Holly perguntou quando entramos no meu quarto e se sentou na beirada da cama.    

Nada... ainda, pensei enquanto tirava a rolha e entregava a garrafa a ela. – Nós dois, é claro. As duas pessoas mais legais do mundo.    

Ela tomou um gole do vinho frutado, como ela o chamava.    

– Eu não posso acreditar que você nem pegou copos. Quanto é uma garrafa disso?    

Examinei o rótulo.    

– Não sei... talvez uns 100 dólares.     Holly engasgou com o último gole.

– Cem dólares! A gente pode se embebedar com uma garrafa de uísque de 10 dólares.    

Eu ri.    

– A escolha foi sua. Além disso, você poderia ficar bêbada com duas ou três cervejas.    

Ela revirou os olhos, então sorriu de novo.    

– Conte-me sobre a Europa. Adam não conseguia parar de falar sobre ver os Alpes e o povo da Bavária com suspensórios e calções de couro.    

– Você primeiro, o que fez em Indiana? – perguntei, ganhando tempo para que pudesse editar mentalmente minha história um pouco.    

– Jackson, é o Centro-Oeste. Um verdadeiro tédio. Assei um monte de biscoitos com a minha avó e tomei conta dos meus primos pequenos.    

Fiz um resumo da minha viagem para a Alemanha e a Itália, com Adam – só não contando a parte da viagem no tempo. A essa altura já tínhamos acabado com a garrafa de vinho e Holly estava dando uma olhada nas minhas músicas.    

Ela finalmente fez uma seleção e depois deslizou para a cama, ao meu lado.

– Então, eu sei que estamos aqui, num clima casual e descontraído, mas é legal dizer que senti sua falta? Só um pouco, quando fiquei realmente entediada. Como quando assistir o milho crescer era o único entretenimento.    

– Tudo bem, tem a minha permissão. – E eu acabei de decidir que vamos ficar completamente nus hoje à noite. É isso aí. Tracei um plano.    

Agora tudo o que eu tinha que fazer era convencer Holly.    

Nós dois tínhamos ficado muito pouco tempo a sós e até o momento eu não tinha feito muita pressão com respeito a tirar a roupa. Não que eu a pressionaria. Mas era mais como uma tentativa de persuasão ou de passar uma lábia nela. Ela ficou de costas e eu levantei sua blusa, deixando à mostra a barriga. Então me inclinei e toquei os lábios um pouco acima do umbigo.    

Observei o rosto dela com atenção enquanto desabotoava seu jeans; e, quando os puxei pelas pernas, arrastando-a com ele para os pés da cama, ela riu muito, eliminando um pouco da tensão que pairava no ar.    

– Muito bonito, Jackson.    

Deitei-me ao lado dela novamente e beijei sua bochecha.    

– Está rindo da minha cara? – perguntei.

– Estou. – Ela encostou os lábios no meu pescoço e deslizou a mão sob a minha camiseta.    

Um pouco mais tarde, a maioria das nossas roupas estava no chão e Holly, deitada em cima de mim, com minhas mãos passeando pelo corpo dela, quando ouvimos alguém tossindo alto. Nós dois levantamos a cabeça e vimos o meu pai de pé, na porta, de braços cruzados.    

– Ai, meu Deus! – exclamou Holly, mergulhando embaixo das cobertas e puxando o edredom por sobre a cabeça.    

– Pai, o que você está fazendo em casa? Pensei que estivesse na África do Sul.    

– América do Sul. Vista-se, Jackson. Preciso falar com você. Em particular. – Ele saiu e bateu a porta atrás de si.    

Puxei o edredom da cabeça de Holly. As mãos dela cobriam o rosto, mas eu podia ver a pele rosada entre seus dedos.    

– Não posso acreditar no que aconteceu – ela gemeu.    

Eu ri e puxei-a para cima dos travesseiros.    

– Está tudo bem. Ele não se importa nem um pouco com o que estamos fazendo aqui, pode ter certeza.

– Jackson, seu pai me viu só de calcinha e sutiã. Eu tenho o direito de me sentir um pouco humilhada. – Ela se virou de barriga para baixo e cobriu a cabeça de novo. – Vai logo!    

Sorri para ela, embora ela não estivesse vendo.    

– Eu vou, só preciso de um minuto antes de ficar me exibindo por aí.     O corpo dela tremeu de tanto rir.    

– Da próxima vez, você vai trancar a porta mesmo se achar que seu pai está na Antártida.    

– Você é tão bonitinha. – Beijei seu rosto. – Não vai a lugar nenhum, ok?     – Sério? Porque eu tinha grandes planos de mostrar a minha calcinha para o cara do elevador – ela murmurou no travesseiro.    

– Ele ia adorar. – Eu vesti meu jeans e entrei na cozinha, onde o meu pai me esperava, encostado no balcão.    

– O que estava acontecendo lá dentro? – perguntou.

Abri a geladeira, peguei o leite e bebi direto da embalagem, só para irritá-lo.    

– Bem, lembra-se da conversa que tivemos quando eu tinha 12 anos?    

– Chega de gracinha, Jackson. Quem é ela? E por que você continua vendo essa garota?    

– O nome dela é Holly, lembra? Você já a conheceu. E eu continuo vendo essa garota, porque gosto dela. Qual é o problema, pai?    

Ele se aproximou e se inclinou para a frente.    

– Você não sabe nada sobre ela. Ela teve acesso a informações confidenciais durante semanas. Você dorme com uma estranha em nossa casa. Quem sabe o que ela está fazendo?    

Apontei um dedo para ele e concordei com a cabeça.    

– Eu acho que você descobriu! Uma garota de Jersey que faz espionagem industrial. Bem que eu notei que o diário dela estava ficando mais grosso recentemente. Espere aqui enquanto vou buscá-la para conseguirmos mais provas.    

– Muito maduro da sua parte, Jackson.

Deixei escapar um suspiro.    

– Sabe de uma coisa, pai? Eu gosto da Holly. Nós dois somos adultos e o que fazemos é só da nossa conta.    

Fui embora sem olhar para trás. Eu estava parecendo muito seguro, mas por dentro estava tremendo como uma criança de 10 anos.    

Deslizei para a cama ao lado de Holly e tentei descobrir o que, afinal, estava acontecendo com meu pai. Ele nunca tinha demonstrado nenhum interesse ou preocupação com as garotas com quem eu namorava ou trazia para casa.    

– Está tudo bem? – Holly perguntou.    

– Tá, tá tudo bem. Você não é espiã, é?    

Ela riu.    

– Não, mas eu sempre quis ser, desde pequena.

 

Pensar sobre mim e Holly, tão descontraídos e felizes em 2009, era difícil. Meu principal objetivo agora, enquanto estava preso em 2007, era ter certeza de que o ocorrido em 30 de outubro de 2009 nunca se repetiria. Se isso acontecesse, seria culpa minha, porque eu sabia o que estava para acontecer.    

Eu tentava relembrar os detalhes daquela noite, em 2009, quando meu pai agiu um pouco demais como um agente secreto, quando adormeci no meu novo presente, em 2007. Pensando bem, ele tinha ficado três semanas sem aparecer e, no entanto, parece que sabia que Holly tinha estado em casa em várias ocasiões. Ele sabia muito mais do que um pai normal saberia.    

Tudo voltava para a pergunta real que eu estava com muito medo de fazer... No final das contas, era possível que aqueles homens que tinham disparado contra Holly trabalhassem para o meu pai ou ao lado dele? A essa altura, eu não poderia descartar essa possibilidade. Não poderia descartar nada.

 

Sexta-feira, 14 setembro de 2007.

Ok, então eu tenho um emprego agora. Em Jersey. Como zelador. Se meu pai soubesse, me daria um chute na bunda. Ou apenas gritaria comigo por largar uma escola caríssima para trocar lâmpadas. Uma semana se passou no meu novo emprego e eu ainda não me matei. No entanto, os meus colegas de trabalho têm sido simpáticos comigo a ponto de esconder algumas das trapalhadas que eu faço tarde da noite, depois que Mike vai embora. Jana, Toby ou Holly nunca disseram isso em voz alta, mas acho que concordamos extraoficialmente em fazer um voto de silêncio. Eles sempre ficam até mais tarde e brincam com os equipamentos, apesar da constante ladainha de Mike sobre a prevenção de lesões e responsabilidade.

 

– Algo desagradável aconteceu no banheiro. Você pode verificar? – Mike perguntou enquanto passava por mim a caminho do grupo que estava treinando.    

Eu gemi baixinho e peguei um par de luvas de borracha. Não poderia ser muito diferente de limpar o banheiro de um dormitório. Eu tinha sido designado para limpar o banheiro a cada duas semanas, durante o meu primeiro ano de faculdade, quando dividia o banheiro com dois outros caras.    

Quando entrei no banheiro masculino e dei uma olhada rápida na privada entupida e transbordante, saí do banheiro no mesmo instante e fui procurar Mike.    

– Eu acho que você vai precisar de um encanador.    

Ele riu.    

– O encanador não seria você?    

– É... claro! Só estou brincando... – Em outras palavras, eu estava numa baita enrascada.    

Holly me observava por cima do ombro. Estava sentada no chão, com várias folhas de papel espalhados e um grampeador na frente dela.    

– Você precisa de ajuda?

– Não, está tudo bem. Eu me viro.    

Ela se levantou e me seguiu de qualquer maneira.    

– Eu não me importo.    

– Ok, mas você vai precisar disso. – Entreguei a ela uma máscara de cirurgião que estava no carrinho de limpeza, antes de abrir a porta.    

Nós amarramos as máscaras e ficamos na frente do vaso sanitário entupido.    

– Isto está um nojo! – ela murmurou.    

– Os homens são uns porcos, Holly.    

– Eu não sabia. Nunca vivi com um.    

– Então você tem sorte.    

Ela apontou para o desentupidor ao lado do vaso sanitário.

– Talvez você devesse usar isso.    

Eu levantei uma sobrancelha.    

– Você já fez isso antes?    

– Muitas vezes. Você já?    

Dei de ombros.    

– Claro, todos os dias.    

Ela riu, enquanto eu tentava desentupir o vaso sanitário. Aquilo não era exatamente o que eu tinha em mente com relação à nossa mais longa conversa de 2007 até então, mas pelo menos era alguma coisa.    

Holly estendeu o braço por cima de mim e segurou a tampa do vaso, encostando-o na parede. Então enfiou a mão dentro do vaso. Totalmente sem frescura essa garota.    

– Está vendo esse trocinho? Eu não sei como se chama, mas supostamente deve ficar para cima e é por isso que não está dando descarga.    

Ela tirou o braço do vaso e a descarga funcionou imediatamente.

– Ótimo! – eu disse.    

Ela tirou a máscara e sorriu.    

– Você acha que dá pra respirar?    

Peguei o frasco de desinfetante do carrinho de limpeza e comecei a borrifar cada centímetro do banheiro.    

– Vai dar num minuto.    

Holly pegou outro par de luvas e uma esponja e me ajudou a limpar tudo. Quando nós dois saímos do banheiro, demos de cara com Jana.    

– No banheiro dos meninos com o cara novo, estou impressionada! – ela brincou.    

– Deveria mesmo ficar. Estávamos fazendo coisas realmente nojentas – disse Holly.    

Holly foi embora, deixando-me ao lado de Jana, vestida com um collant e coberta até os cotovelos de giz.    

– Ela provavelmente não vai sair com você. Só pra você saber.    

– Só estávamos limpando o banheiro, juro.    

Jana riu baixinho.

– Eu sei. Mas alguém precisa te avisar antes que você fique muito envolvido.    

Tarde demais.    

– Ela tem namorado?    

– Não. E você, tem namorada?    

– Hum... meio que... bem, não, não na verdade.    

Toby se aproximou e enfiou a cabeça entre nós dois.    

– Mike está indo embora mais cedo esta noite e ficará fora todo o fim de semana. Estou pensando se devemos fazer alguma coisa.    

– Noite do pôquer – Jana sugeriu, com um sorriso diabólico.    

– Exatamente. Você topa, Jackson? Você é quem fica com a chave agora, então precisamos de você aqui.    

– Você quer que eu ponha em risco o emprego que acabei de arranjar para que vocês possam jogar pôquer e ficar zoando por aí?    

Toby riu baixinho.

– Tudo bem, o que você quer em troca?    

Eu balancei a cabeça na direção de Holly.    

– Eu vou concordar se você convencê-la a vir, mas não pode me usar como desculpa.    

– Você está dando em cima da minha garota?    

– Toby, isso se chama amor não correspondido. Desista, homem – disse Jana, batendo na cabeça dela como na de um cachorrinho.    

– Estou só curioso, só isso. Além disso, vivemos um momento especial – eu disse.    

Jana revirou os olhos.    

– Eles limparam o banheiro juntos.    

– Que romântico! – comentou Toby.    

– Jackson! – Mike chamou. – Preciso de você para limpar o assoalho da pré-escola. Uma das crianças passou mal.    

Que maravilha. Era bom saber que as centenas de milhares de dólares gastos numa escola particular estavam sendo bem utilizadas.

Assim que acabei de remover o vômito de uma pilha de tapetes, Toby se aproximou de mim.    

– Ok, trato feito.    

– Como você conseguiu?    

Ele sorriu.    

– Não posso revelar meus métodos, mas envolve toque, muito suor e, possivelmente, a exploração de toda amplitude de movimentos das articulações dela.    

Eu dei um soco de leve no ombro dele.    

– Bem que você queria.      

 

Toby e Jana foram embora antes que Mike saísse e voltaram cerca de dez minutos depois que o carro do patrão saiu do estacionamento. Eu estava limpando o saguão da entrada quando a porta se abriu e eles entraram com os braços carregados. Dois outros caras vinham logo atrás e eu deixei cair o esfregão no chão com estardalhaço logo que vi o moreno de óculos escuros.    

– Adam!    

Epa!...    

Ele parou e se virou para mim.    

– Eu te conheço?    

Ai, droga, pense em algo, rápido.    

– A Feira de Ciências Estadual do ano passado, não estava nela? – perguntei sem muita convicção.    

– Sim, eu e cerca de mais mil pessoas.    

Todos os quatro me olharam. Deixei escapar outra mentira pouco convincente.    

– Seu projeto foi muito legal. Toda aquela...

– Teoria da relatividade – ele concluiu para mim.    

– Exatamente.    

Toby revirou os olhos.    

– Ok, temos aqui outro gênio da ciência. É melhor que você não conte as cartas como Silverman.    

Holly se juntou a nós, parando em frente ao cara que estava ao lado de Adam. Foi quando eu percebi quem ele era. David Newman. O futuro namorado de Holly.    

Ele sorriu e deu a ela o saco de papel pardo que estava segurando.    

– Foram 7 dólares. E devo acrescentar que tive que esperar vinte minutos para me darem uma porção fresca de guacamole.    

Ela colocou algumas notas na mão dele.    

– Eu te amo, David.    

– Ela nunca diz isso pra mim – resmungou Toby.    

Holly se inclinou para mais perto dele.    

– É porque você não me quer. Admita. Essas três palavras assustam você.

Eu consigo entender perfeitamente.    

Ele riu e aproximou o rosto do dela. Ela recuou de imediato.    

– Amar talvez, mas fazer amor não me assusta.    

David riu e Holly empurrou-o para fora do caminho, então se afastou com Jana, murmurando:    

– Moleques...    

– Bem sutil, Toby – disse David.    

– Não me diga que você nunca fez uma gracinha para tentar romper aquela fachada de rainha do gelo? – Toby disse a David.    

– Eu me recuso a responder a isso – disse David, mas ele estava rindo.     – Mas já pensou em beijá-la?    

Olhei para Adam, que, como eu, estava ouvindo em silêncio.    

– Não muito – respondeu David.    

– Bem, eu já – disse Toby, sem constrangimento. – Principalmente quando queria que ela ficasse quieta.    

Todos riram alto o suficiente para Holly e Jana nos lançarem um olhar fulminante.

Voltei para o esfregão enquanto o jogo começava na mesa arrumada na sala de ginástica. Quando era óbvio que eu não tinha mais nenhum trabalho a fazer, Toby me chamou.    

– Você não vem jogar? – perguntou.    

– Claro, eu poderia usar uma graninha extra. – Sentei-me ao lado de Adam e em frente a Holly.    

Eu realmente queria falar com ele. Mas agora precisava ir com calma. Entrar no personagem e bancar o novato misterioso.    

David distribuiu as cartas.    

– Jackson, onde você estudava antes de desistir da escola? Em Jersey?     Concordei e disse o nome de outro colégio.    

– É por isso que nunca te vimos – disse Jana.    

– Vocês estão no ensino médio? – eu perguntei.    

– Estamos.    

– Por que você abandonou a escola? – Toby perguntou.

Jana deu uma cotovelada nele, mas eu acenei para ela como se dissesse que não me importava.    

– Só cansei de lá. Meu pai queria que eu trabalhasse.    

– Eu mal posso esperar para acabar o ensino médio – disse Holly, jogando duas cartas na pilha de cartas descartadas e pegando novas. – As aulas de inglês são de matar. Eu sabia que seria difícil, mas um novo livro de ficção a cada duas semanas e uma dissertação de cinco páginas a cada dois dias é um pouco demais.    

– O que você está lendo? – perguntei a Holly.    

– Acabamos de ler Um Conto de Duas Cidades.    

Aha, uma porta acaba de se abrir.    

Toby e Adam gemeram.    

– Não suporto Dickens – lamuriou Adam.    

David jogou suas cartas na pilha.    

– Sério? O senhor GPA perfeito? Estou surpreso.

– Literatura é muito diferente de matemática e ciências – explicou Adam.     – Então você também não gosta de literatura? – perguntei a Holly.    

– Gosto, mas não estou conseguindo escrever minha dissertação. Começo e depois empaco.    

– Tudo o que você precisa dizer é: Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, “fim” – disse Toby com um sotaque britânico muito ruim. – Quem vai nesta rodada?    

– Eu não tenho nada – disse Jana, jogando as suas cartas na mesa.     David fez o mesmo.    

– Toby, estou começando a ver por que você tem tantos problemas com as mulheres – brincou Holly. – Obviamente não consegue ver o romantismo numa história como essa. Amor não correspondido e sacrifício pessoal sem nada em troca.    

Ele voltou o olhar para ela.    

– Você fica incrivelmente sexy quando fala em linguagem de literatura.     Holly balançou a cabeça e olhou para mim.

Holly balançou a cabeça e olhou para mim.    

– Vê o que eu quero dizer? Ele nem sabe do que estou falando.    

Eu joguei outra ficha na pilha.    

– Iluminai-nos, então, visto que você é uma mulher sábia. Salve outras pobres garotas dos nossos modos tão pouco românticos.    

Ela se atrapalhou com as cartas nas mãos e quase deixou cair uma.     – Hum... Eu provavelmente não sou a melhor pessoa para responder. Jana, o que você acha?    

Jana se remexeu na cadeira.    

– Ok, vou tentar. Bem, Toby não compartilha interesses com as garotas. Talvez seja esse o problema. Ela adora ler, por isso o seu futuro namorado deve gostar de ler, também. Pessoalmente, prefiro música punk e ska, então vou procurar alguém que tenha o mesmo amor que eu por bandas que ninguém ouviu falar.    

– Tudo bem, você não me tirou da parada ainda. Isso não pode ser tudo – eu disse.    

– Eu não poderia namorar um cara que, pelo menos, não aprecia esportes. A ginástica ocupa mais da metade da minha vida, então isso é obviamente verdade.    

– Bem, e quanto a Toby? Ele é ginasta.

Jana levantou as sobrancelhas para mim.    

– Ele também é meu primo.    

Como é que eu não sabia disso?    

– Ok, isso não vai funcionar.    

– Você acha? – Toby disse, balançando a cabeça. – Vamos lá, Holly, deixe a gente dar uma espiada na sua cabeça.    

Sim, por favor. A verdade era que... eu não conhecia muito bem a Holly de 17 anos.    

– Eu não sei o que quero. Talvez eu descubra um dia, mas por enquanto me contento com a escola, o trabalho e poupar dinheiro para a faculdade – Holly disse.    

– Que téééédioooo – Jana cantava.    

Holly jogou um punhado de pipocas nela por sobre a mesa.    

– Tudo bem, Jana, eu quero um cara que já tenha lido além das     primeiras palavras de um romance de Charles Dickens e possa citar belas linhas de literatura enquanto dançamos num salão de baile ao som de... humm...    

Jana descansou o queixo sobre as mãos e suspirou.

– Que tal “Come Away with Me”, de Norah Jones? Teria de ser uma valsa.    

– Esse é o cara, certo? – David perguntou.    

Toby reprimiu uma risada.    

– Você deve estar brincando, Flynn. Você é a última garota que ficaria impressionada com essa merda.    

– Não é nenhuma merda se for de verdade – contestou Jana.    

– Exatamente – respondeu Holly e depois jogou as cartas na mesa. – Full House.    

– Droga! – Adam murmurou.    

Todos descartaram e eu olhei para Jana.    

– Você acha que ela está blefando?    

Jana me olhou, perplexa.    

– Blefando? Ela já mostrou as cartas!    

– Não, eu quero dizer sobre o cara perfeito. O cara que recita Shakespeare e sabe dançar um tango.    

Holly se recostou na cadeira e cruzou os braços.

– Valsa, não tango, e eu não estou blefando. Mas ele não pode ser gay.    

– Bem, espero que se divirta procurando esse cara – disse David.    

– Talvez ele esteja sentado na sua frente – eu disse.    

Uma centelha de nervosismo brilhou no rosto dela, mas ela o substituiu rapidamente por um sorriso confiante.    

– Sem chance.    

Eu peguei o baralho e comecei a dar as cartas.    

– É, você provavelmente está certa. Além disso, prefiro uma garota menos exigente.    

– Eu não sou exigente.    

David pegou um refrigerante da pilha de latas no chão.    

– Holly, você quer um cara fantasioso que dança valsa de meia-calça, sussurrando Romeu e Julieta em seu ouvido. Isso é ser exigente. Para os caras da nossa idade, você tem sorte se conseguir fazer um cara parar de cuspir e coçar o saco quando você estiver por perto.

Holly sorriu e apertou a bochecha dele.    

– Você é tão encantador, David. E eu nunca disse nada sobre meias-calças.    

Toby gemeu.    

– Bem, o resto já é ruim o suficiente. Quem está enchendo a sua cabeça com essa merda toda? É por isso que nunca saímos juntos.    

– São mulheres escrevendo romances protagonizados por homens que não existem. Isso cria expectativas irreais – explicou Adam.    

Holly concordou com a cabeça.    

– Muito bem colocado, Adam. Isso pode ser verdade, mas não é por isso que vamos deixar de querer.    

Jana me cutucou no ombro.    

– Eu acho que o Jackson vai tentar, não vai?    

– Ah, tá bom... – murmurou Holly, estendendo o braço sobre a mesa e tomando o baralho das minhas mãos. – Estamos jogando pôquer ou não?    

Os olhos de Toby se desviaram para nós dois, então ele apontou um dedo para Holly.

– Você está morrendo de medo que ele possa te agradar. Apenas admita.    

– Essa eu tenho que ver – disse David.    

Holly assumiu sua expressão fria e competitiva de jogadora de pôquer.      

– Tudo bem, pode tentar, Jackson.    

Eu balancei a cabeça.    

– Não, tudo bem, na verdade não estou muito a fim de dançar. Além disso, você já tem essa opinião formada sobre todos os homens serem iguais. É óbvio que não tem uma mente muito aberta.    

Fiquei me lembrando de pegar leve com ela, irritá-la só se fosse preciso. Bajulação nunca funciona com uma garota um tanto inteligente.    

Um brilho de raiva cintilou nos olhos dela e eu lutei para reprimir um sorriso.    

– Ok, se você estiver certo e tiver as qualidades do meu cara perfeito imaginário, eu topo sair com você.    

Eu zombei dela.

– O que faz você pensar que eu quero sair com você? Não estou vendo o que eu vou ganhar com isso.    

O rosto dela ficou corado e ela baixou os olhos para a mesa, mas levantou-os rapidamente.    

– Sinto muito, não foi isso o que eu quis dizer – disse ela. –Vou pagar o seu jantar amanhã à noite e limpar os banheiros pra você depois do trabalho. Mas você tem que concordar com uma coisa, se eu estiver certa.    

– Jackson, se eu fosse você aceitava esse trato do banheiro. Depois de três festas de aniversário e aulas durante a manhã toda, limpar aqueles banheiros não vai ser fácil – admitiu Toby.    

– E se eu estiver certa, você tem que vir mais cedo e me ajudar com aquelas três festas de aniversário, com crianças gritando, bolo e papéis de presente até os cotovelos – acrescentou Holly.    

– Feito – concordei.    

– Isso está muito mais divertido do que ficar bêbado – disse David.    

– Podemos fazer isso mais tarde – acrescentou Toby.    

– Vou escolher a música – Adam disse, puxando um iPod do bolso.

– Não, vamos ver o que Holly tem aí – eu disse a ela com um sorriso.     Ela estendeu seu iPod a contragosto e dei uma olhada na sua lista de reprodução rapidamente, esperando poder encontrar a canção perfeita. Encontrei. Depois de escolher “You Don’t Know Me” de Jann Arden, entreguei-o de volta para Holly, que passou para Jana.    

Eu me levantei da mesa, enquanto Jana ligou a música plugando o iPod no aparelho de som. Eu estendi a mão para Holly.    

Ela revirou os olhos.    

– Um garoto de Jersey que limpa banheiros sabe valsar?    

Eu balancei a cabeça.    

– A questão é, você sabe?    

Eu não estava mentindo para ela. Aprendi a dançar frequentando muitas festas extravagantes e optando por folclore e dança de salão no meu primeiro semestre da faculdade, porque era o caminho mais fácil para preencher os créditos de artes aplicadas de que eu precisava.    

– Um pouco. Só o que sei das aulas de ginástica – disse ela.

Assim que eu coloquei meu braço em volta da cintura dela, soube que ia ser difícil, mas eu queria uma desculpa para tocá-la, mesmo que fosse apenas por alguns minutos. Ela colocou a mão na minha e eu pude sentir o nervosismo dela. Seu corpo estava rígido e tenso, à espera que eu fizesse o primeiro movimento.    

– Relaxe – sussurrei.    

Seus ombros se soltaram um pouco, quando eu a puxei para mais perto de mim. Dei um passo para trás e ela me acompanhou. Os passos dela seguiram os meus e deixei meu nariz tocar em seu cabelo.    

Paramos de dançar na extremidade do salão, quando a música terminou, e ela olhou para mim, esperando por algo.    

Instintivamente eu me inclinei, aproximando-me dos seus lábios, então me lembrei do que ela estava esperando. Não era um beijo. Rapidamente desviei meus lábios para o seu ouvido e repeti uma citação do romance de Dickens, que vinha bem depois da primeira página:    

– Quando vir a sua própria beleza resplandecente surgir renovada aos seus pés, pense de vez em quando que há um homem que daria a própria vida para manter uma vida que você ama ao seu lado.

Quando levantei a cabeça, ela virou a dela na direção da minha, levando sua boca a roçar levemente na minha bochecha. Congelei quando seus lábios ficaram a centímetros dos meus.    

Não a beije. Era muito cedo. Ela provavelmente vai se assustar. Os olhos dela se fecharam e eu imediatamente deixei cair o braço e dei um passo atrás, com um sorriso confiante.    

– Você ia beijá-lo! – Toby acusou-a.    

– Não, eu não ia! – disse Holly.    

– Parece que alguém vai limpar os banheiros... – Toby cantarolava. – Jackson, eu não fazia ideia que você era tão bom em seduzir garotas. Você tem um manual que ensine isso tudo?    

Eu sorri para ele e, em seguida, olhei para Holly. Seu rosto estava vermelho brilhante e ela se virou rapidamente, se afastando de mim.    

– Você ganhou, vou limpar os banheiros.    

– Holly, sério, eu não quero que você...    

Ela levantou a mão.

– Ei, você jogou pra ganhar. Eu faria o mesmo se a situação se invertesse.    

– Você não teria que fazer nada – eu soltei sem pensar.    

Ela soltou um suspiro.    

– Você pode parar de bancar o sedutor. Eu entendi, você ganhou.    

Era óbvio que ela estava com raiva, e ninguém sabia o que dizer, inclusive eu. Esfreguei as têmporas com os dedos.  

– Tenho que ir pra casa – ela disse. – Minha mãe vai ter um ataque se eu me atrasar.    

Ela pegou a bolsa e caminhou para a porta.    

David olhou para mim, então correu atrás dela.    

– Você quer que eu a acompanhe?    

– Não, estou cansada e tenho que trabalhar o dia todo amanhã.    

– Você está ok? – ele perguntou.

– Estou ótima, David. Por que não estaria? Encontrei o cara perfeito! – Ela estava tentando fazer piada daquilo, mas o sarcasmo e a mágoa eram evidentes em sua voz.    

Afundei na cadeira e encostei a cabeça nas mãos.    

– Droga!    

– Cara, o que você fez? – Toby perguntou.  

– Não é óbvio? – Jana disse.    

Todos nós olhamos para ela, esperando que se explicasse. Estávamos boiando.    

– Ela praticamente convidou você pra sair e agora acha que você só bancou o garanhão pra cima dela. O que você fez não pareceu de verdade, você acabou de conhecer a garota a semana passada.    

– Que simpático, Jana! – Toby disse, sarcasticamente.    

– Eu não quis dizer que ele é um garanhão, estou dizendo que, provavelmente, é assim que Holly o vê.    

Eu levantei a cabeça e abri um sorriso amarelo.

– Que ótimo!      

– Eu não acho que convidar um cara pra sair seja algo que Holly faça com frequência – Adam acrescentou.    

– Não, não é – David disse, voltando para a mesa.    

– Eu sou um idiota! – murmurei.    

– Na verdade, acho que você é um gênio. O que disse a ela, afinal? – Toby perguntou.    

– Não importa. Vocês estão de saída?    

– Eu acho que sim, se você estiver – disse Jana.    

– Sim, eu estou.    

A noite tinha sido um completo fiasco. Eu podia realmente ter causado mais estragos do que benefícios. Saí da academia e fui para a estação. Soube assim que me sentei no trem que tentaria outra vez voltar para 2009. Ser uma parte dessa vida de Holly era muito difícil. E eu realmente tinha estragado tudo.

 

                   SÁBADO, 15 DE SETEMBRO DE 2007, 00:05.

Alguns segundos antes de eu tentar outro salto de volta para 2009, alguém se sentou no banco ao meu lado.    

– Oi, Jackson.    

Eu me virei e me deparei com o meu próprio reflexo nos óculos de Adam.    

– Você me seguiu?    

Ele cruzou os braços, enquanto me encarava.    

– O que você está fazendo num trem para Nova York depois da meia-noite?    

– Meu pai trabalha à noite na cidade e eu normalmente dou uma mão pra ele.    

– Onde?    

– Na Loyola Academy. Ele é zelador.      

– Tal pai, tal filho.     – É isso aí.    

– Mentira. Como você sabia o meu nome? Antes de alguém te dizer?    

– Eu sou do futuro e somos amigos em 2009.    

Ele ignorou o que tomou como uma piada.

– Sabe o que eu acho?    

Encostei a cabeça na janela do trem e fechei os olhos.    

– Qual é a sua teoria, Adam?    

– Agente do governo.    

Eu não, mas posso ser filho de um.    

– Entendo. Então, não sou alguém que viaja no tempo, mas sim um agente estudando seu projeto de ciências, porque o governo quer roubar as suas teorias e usá-las para fazer armas.    

– Bem... não armas...    

Eu ri e me sentei direito para olhar para ele.    

– Eu não trabalho para o governo. Juro. Não tenho a mínima intenção de roubar o seu projeto ou dedá-lo por ser um hacker.    

A expressão dele ficou tensa.    

– Eu não disse nada sobre ser um hacker.    

– Ah... certo.    

– Então, você realmente trabalha para o governo?    

– Adam, quero te dizer a verdade, mas você provavelmente não vai acreditar.    

Ele se recostou no banco.

– Tente.    

Eu respirei fundo, pronto para tentar uma arriscada e drástica mudança de identidade.    

– Então vamos devagar. Não quero que você tenha um ataque do coração. Em primeiro lugar, eu moro em Manhattan.    

– Tudo bem.    

– Você quer vir à minha casa? Te conto o resto lá.    

Ele assentiu com a cabeça, lentamente.    

– Então, como você sabe... eu tenho amigos que sabem exatamente onde estou, no caso de eu não aparecer mais tarde.    

Eu revirei os olhos.     – Claro que tem...            

 

Adam olhou para o prédio com os olhos arregalados.    

– Você mora aqui?    

– É.    

Pegamos o elevador para o meu andar. Durante a subida, Adam torcia as mãos e olhava para todos os lados, como se a polícia dos hackers fosse saltar em cima dele a qualquer segundo.    

– Quem é o seu amigo? – meu pai perguntou quando passamos por ele na sala.    

– Esse é Adam Silverman. Adam, este é o meu pai.

Adam apertou a mão dele.    

– Prazer em conhecê-lo, senhor.    

– Jackson, vou ficar fora da cidade por alguns dias.    

– Por quê?    

– Negócios na Coreia do Sul. Deixei uma mensagem mais cedo, mas você não retornou a ligação. Alguém vem me pegar em cinco minutos. Você vai ficar bem?    

– Desde quando você tem negócios na Coreia do Sul?    

As sobrancelhas dele se ergueram como se dissesse que não discutiria esse tipo de assunto na presença de estranhos.    

– Vejo você em alguns dias.    

Eu atravessei o saguão com Adam nos meus calcanhares. Deixei-o entrar no meu quarto e fechei a porta antes de apontar o sofá no canto do cômodo. Ele andou até lá e se sentou, observando mais de perto quando tirei um cofre prateado da gaveta da escrivaninha. Depois de examinar uma pilha de fotografias, passei algumas pra ele. Eu tinha acabado de revelar algumas do meu cartão de memória de 2009 no dia anterior, achando que elas poderiam parecer mais reais desse jeito.    

– São fotos de...    

– Holly – completei.

Ele olhou a foto e o verso também, depois um grande sorriso brotou no rosto dele.    

– Legal. É um trabalho bem elaborado. E é, tipo, obra de gênio o jeito como você relacionou ao meu projeto de ciências. A maioria das pessoas sabe a parte da teoria da relatividade, mas ir além e vir com essa história de viagem no tempo... é muito criativo.    

– Então... você não acredita na sua própria pesquisa? – Eu sabia que algumas fotos não seriam suficientes...    

– Claro que acredito, na teoria. Como você conseguiu essas fotos minhas? Do computador dos meus pais, talvez?    

– Eu mesmo as tirei. E o que você quer dizer com “na teoria”? Ou você acredita ou não.    

– Acredito que a viagem no tempo seja possível, mas com muito mais pesquisa e provavelmente uma tecnologia que não existe ainda.    

– Você está errado – eu disse sem rodeios.    

– Não é possível?    

– É tão possível que eu posso viajar no tempo.    

Ele riu e balançou a cabeça.    

– Tudo bem, prove.

– O que eu posso fazer que não me faça parecer uma cartomante de feira esotérica? É o futuro. Você entrou no MIT e conseguiu 2300 nos seus SATs.    

– Nada mal. O que mais? – Ele se reclinou no sofá e colocou as mãos atrás da cabeça.    

Eu me sentei na minha cama e tirei o diário da minha mochila antes de folheá-lo.    

– É possível que eu tenha esquecido o que você me falou pra dizer.    

– Não devia ser importante.    

– Não é como se eu realmente pensasse que ia ficar preso no passado.

– Eu me sentei e sorri para ele antes de apontar para o seu peito. – O seu cachorro acabou de morrer, não foi? Uns dias atrás?    

– Obrigado por me lembrar – ele resmungou. – Mas isso não prova nada. Jana e eu estávamos falando sobre isso hoje à noite. Você deve ter ouvido a conversa.    

– Desculpe.    

– Como você me conheceu, no futuro?    

– Trabalhávamos juntos num acampamento. Holly também. – Eu observei o rosto dele cuidadosamente, em busca de algum sinal de que estava acreditando em mim, mas ele estava totalmente calmo e tranquilo.

– Mas você, em algum momento, deve ter provado que podia viajar no tempo, não é?    

Eu assenti com a cabeça.    

– É, começamos uma conversa como esta. Só que estávamos supervisionando um acampamento durante a noite. As crianças estavam dormindo e estávamos só nós dois. Você propôs um experimento e me fez saltar para o passado e voltar. – Eu abri a carteira e dei a ele o cartão de memória. – Aqui tem um monte de dados sobre os experimentos.    

Ele pegou o cartão entre os dedos, enquanto eu voltava para o diário, tentando encontrar a página com minha descrição desse primeiro experimento.    

– Isso foi suficiente pra me enganar? O meu eu mais velho deve ser um idiota.    

– Não, você me obrigou a refazer essa experiência dez vezes. – Alguns rabiscos feitos à mão em 11 de abril de 2009 chamaram a minha atenção. – Aqui, dá uma olhada nisto! Você mesmo escreveu uma nota.    

Ele pegou o caderno da minha mão. Eu vi quando todas as cores fugiram do seu rosto e ele voltou a afundar no sofá.    

– Como você conseguiu isso?

– Você mesmo escreveu. Eu nem sei o que diz. É latim?    

– É... é latim. – Os dedos dele congelaram no canto da página.    

– O que diz?    

Depois de um longo silêncio, ele voltou a se mexer e folheou freneticamente as páginas, depois finalmente disse, sem tirar os olhos do diário:    

– Nada importante. Esqueça.    

Eu fitei o teto, esperando pacientemente pelas perguntas que inevitavelmente viriam. Claro que Adam sabia exatamente o que deveria dizer a si mesmo. Algo de que ele nunca duvidaria. Eu também não deveria ter duvidado dele.      

 

– Jackson, acorda! – Adam estava em cima de mim, sacudindo meus ombros.    

Estava tão claro no quarto que eu mal consegui abrir os olhos. Ele devia ter ligado todas as luzes do cômodo.    

– Que horas são?    

– Quatro.    

Com todas as minhas excursões a diferentes anos, dizer que eram quatro horas não dizia nada para mim. Eu fui até a janela e vi que ainda estava escuro lá fora. Foi então que tropecei em partes de computador empilhadas no chão. Peças estranhas estavam espalhadas por todo o quarto e agora havia dois monitores sobre a escrivaninha.    

– Que droga é...    

– Desculpe, eu peguei dois outros computadores da casa para coletar os dados mais recentes. O hard drive não era grande o suficiente e não funcionou com o cartão de memória que você me deu, então eu meio que... fiz meu próprio computador. – Ele andou pelo quarto, pegando algumas peças soltas e juntando-as à pilha, mais rápido do que eu jamais tinha visto ele se mexer.

Estudei seu estado mais atentamente. O cabelo preto espetado em todas as direções, pupilas dilatadas como as de um viciado em crack, e fazendo aquela coisa de estalar os dedos. Eu já o tinha visto assim antes, uma vez, depois de seis latas de Red Bull. Ele provavelmente seria declarado demente nesse estado.    

– Você tomou muita cafeína?    

Ele estava segurando um calhamaço de papéis.    

– Fiz algumas anotações para examinar com você.    

– Vamos comer primeiro. Foi Red Bull ou café? – Dei um empurrãozinho nele em direção à porta. Ele não se opôs, mas segurou os papéis contra o peito, provavelmente para que eu não pudesse pegá-los.  

– Pronto para o item número um da minha lista de perguntas? – indagou, sentando-se à mesa da cozinha.    

Eu peguei algumas fatias de peito de peru da geladeira e um pão de forma, e coloquei sobre a mesa.    

– Tudo bem, mas coma enquanto fala. Pra rebater toda essa cafeína.    

Ele enfiou um pedaço de pão na boca e mastigou rápido.

– Espere... então, em 2009, você tem 19 anos e Holly também, e vocês dois são calouros da NYU?    

– Não, eu estou no segundo ano. Holly é caloura.    

– Holly está no ensino médio – ele repetiu e em seguida balançou a cabeça. – Esta Holly é uma colegial e a outra está na faculdade... entendi. Como você nos conheceu em março de 2009? Nós ainda estávamos estudando juntos, certo? Ou nos formamos mais cedo?!    

– Não, vocês não se formaram mais cedo... Começamos o treinamento para sermos monitores no acampamento em março... foram só algumas sessões antes que o verão começasse oficialmente.    

– Cara... isso é meio que um tabu, sabia? Um universitário namorando uma garota do ensino médio. Ah, peraí... acho que é o que você está tentando fazer agora... só que agora é pior.    

Eu suspirei, lutando contra a vontade de rastejar para a cama outra vez. Tudo isso fazia sentido na minha cabeça.    

– Não é tabu. É que Holly é só quatro meses mais nova que eu. Ela é uma das mais velhas da classe dela e eu sou um dos mais novos da minha... É só isso. Isso é realmente importante? E você já não deveria saber disso? Você conhece Holly há quanto tempo?

– Dois anos... e meu cérebro está indo rápido demais para captar todos esses detalhes. Além do mais, ela nasceu em 90 e eu em 91... e isso me confunde. Tudo bem, então você costuma ir daqui para a universidade? E Holly mora no dormitório da faculdade? Que dormitório? Será que a gente não devia examinar isso mais a fundo?...    

– Você está me deixando realmente exausto... – eu reclamei. – Não vou daqui para a faculdade. Eu morei num dormitório tanto no primeiro quanto no segundo ano... um dormitório diferente do de Holly. Mas você já esteve aqui, neste apartamento, antes... o seu eu mais velho... Eu passo em casa o verão e os intervalos das aulas. Holly já esteve aqui também... e no meu dormitório. Algo mais? Precisa saber também o nome de todos os meus professores ou o caminho que eu faço para chegar à minha classe todos os dias?    

Adam ficou em silêncio por um bom tempo, olhando os papéis à sua frente, então finalmente falou:    

– Não... pelo menos não agora.    

– Próxima pergunta? – perguntei, esfregando as têmporas.

– Então, o que acontece se você... por exemplo... voltar trinta minutos no tempo, depois ficar no passado durante 31 minutos? Tecnicamente, você estaria no...    

– Futuro – completei. – Eu nunca viajo além do meu período de vida.    

Ele assentiu.    

– Foi o que eu imaginei. Você já foi obrigado a saltar de volta? Porque acabou ficando mais tempo no passado, até a hora em que saltou?    

Era muito estranho que eu tivesse que explicar aquela coisa toda para Adam.    

– Lamento, mas faltam algumas páginas no diário; fizemos esse experimento bem no início. Eu simplesmente volto automaticamente. Lembre que é diferente quando estou no meio de um salto. Eu me sinto como se não estivesse lá por inteiro, como se eu estivesse mais leve, e não sinto muito frio ou calor. E nada do que eu faço durante meus saltos normais afeta minha base principal.    

– Certo – ele disse, enfiando mais um pedaço de pão na boca. – Todos aqueles saltos regulares são como uma espécie de linha do tempo sombra. Ou uma linha do tempo espelho.

– Isso, é como assistir ao mesmo filme várias e várias vezes, esperando que um dia a personagem que você não quer que morra consiga, de algum jeito, se salvar. Ou talvez, se você gritar para avisá-la, isso mude alguma coisa, mas nunca adianta – concluí. – Mas como, pelo amor de Deus, eu vim parar aqui, em 2007? Não como... uma sombra... mas o meu eu de verdade?    

– E como o seu outro eu simplesmente desapareceu? – Adam perguntou, balançando a cabeça. Então ele olhou para mim com seus olhos esbugalhados de viciado em cafeína. – Eu na verdade tenho uma teoria.     Descansei os cotovelos na mesa, tentando me concentrar, sabendo, porém, que provavelmente seria demais para a minha cabeça.    

– Ok, vamos ouvi-la.    

– Bem, em primeiro lugar, é óbvio que existe apenas uma versão de você em qualquer base principal.    

– Sim, mas, tecnicamente, eu estou no passado agora.    

Ele se inclinou para a frente, sobre seus papéis, e bateu o punho na mesa.    

– E se este é outro universo!?

Eu quase caí da cadeira.    

– Agora, você definitivamente perdeu o juízo.    

Ele zombou de mim e balançou a cabeça.    

– Sério? Toda essa piração que aconteceu com você e você acha que o louco aqui sou eu, porque estou cogitando um universo paralelo?    

Eu ri, sem nem pensar a respeito. Ele estava certo. Que droga eu sabia, afinal?    

0–1 Vamos deixar isso de lado para análise futura. Qual é a próxima pergunta da sua lista?    

– Algumas vezes você teve a impressão de que estava sendo forçado a voltar. Eu vou descobrir uma fórmula para isso, mas pelo jeito você não pode viver de fato no passado.    

Deixei escapar um suspiro.    

– Aparentemente eu posso... se mudar a minha base principal.    

– Exatamente. Se ao menos soubéssemos como você fez isso... Mas não entendo por que você não consegue voltar para 2009. Ou para esse outro universo, se vamos prosseguir com essa teoria. Nenhum dos experimentos indicou a menor possibilidade de você ficar preso no passado. Embora, obviamente, eu tenha feito planos para isso, só para o caso de acontecer. Escrevendo a nota. Meu eu mais velho, quer dizer.

Sentei em frente a ele e coloquei a mão sobre os papéis.    

– Então você realmente acredita em mim? Que eu vim do futuro?    

Eu precisava ter certeza de que não era só o efeito da cafeína e que ele não voltaria a pensar de maneira lógica e racional dali a algumas horas.    

– Sim, na minha cabeça não há nenhuma dúvida. Mas você deixou 2009 porque pensou que os caras armados iam te matar?    

– Você leu essa parte do diário?    

Ele confirmou com a cabeça e respirei fundo antes de revelar algo que não tinha dito a ninguém ainda, nem do futuro nem do passado.    

– Sinceramente, nem me lembro de ter decidido ir embora, mas sei que ficar teria sido muito difícil... Você leu sobre minha irmã, não leu?    

– Câncer, tumores no cérebro, morreu em abril de 2005 – ele repetiu de memória, com base nas suas anotações.    

– Eu não estava lá quando ela morreu – admiti.    

Adam levantou os olhos, fitando-me intensamente.    

– Eu pensei que as viagens no tempo só tinham começado muitos anos depois disso.

– Quero dizer, eu simplesmente não estava lá. Tipo, no quarto com ela. – Engoli o bolo que ameaçava se formar na minha garganta. – Sabe quando as pessoas dizem que gostariam de estar presentes na hora da morte, para dizer adeus ou qualquer coisa assim?    

Ele empurrou as anotações para o lado e apoiou os braços na mesa.    

– Sim...    

– Bem, eu não queria estar lá. Eu estava com muito medo. Não tanto de falar com ela, ou de ficar triste, mas de observar alguém indo embora desta vida para... não viver mais. Eu vi isso na minha cabeça tantas vezes, o peito dela subindo e descendo, ela respirando fundo, e de repente...    

– ...para de respirar – Adam concluiu para mim.    

– E, então, eu estava pensando em todas essas coisas, tipo... quando ela vai parar de nos ouvir? É depois de seu último suspiro? Porque as pessoas seguram a respiração o tempo todo, talvez ela ainda nos ouvisse ou tivesse pensamentos. – Esfreguei os olhos, secando as lágrimas que embaçavam minha visão. – É idiotice... Eu sei.

– Não é idiotice – disse Adam suavemente. – Mas eu não entendi qual é sua teoria... O que isso tem algo a ver com deixar 2009?    

– Bem... Holly estava respirando e eu não queria vê-la... parar. E provavelmente é por isso que estou preso aqui... que não consigo voltar.    

Ele franziu a testa.    

– Eu ainda não estou entendendo.    

– Karma. Castigo... por deixá-la sozinha. – Peguei a fatia de peru na minha frente, mantendo os olhos na mesa. – Mas se eu conseguisse superar isso...     Ele fez um gesto com a mão para me interromper.    

– Não, isso é legal. Eu só precisava entender a sua teoria.    

– Tenho certeza de que essa é a razão. As pessoas não deveriam ter uma segunda chance para fazer a coisa certa. E o karma vai provavelmente continuar me perseguindo e Holly nunca vai querer nada comigo. Como na noite passada.    

– É, você detonou as suas chances. – Ele se concentrou no sanduíche que estava fazendo.

– Eu sou um completo idiota. E ela vai ter que aguentar caras como Toby convidando-a para sair o tempo todo.    

– Bem, os caras não convidam Holly pra sair com tanta frequência. Ela não dá margem pra isso. É assim que funciona. E Toby não é capaz de olhar pra uma garota sem ter algum tipo de fantasia sexual com ela. – Ele mordeu um pedaço do sanduíche. – Sério, ele é muito aberto quanto ao que se passa na cabeça dele e eu não acho que saiba como funciona essa coisa de ser “amigo” de uma garota. Por isso fica dando em cima. Além disso, sabe que ela vai dizer não.    

Eu descansei a cabeça nas mãos, tentando absorver melhor a ideia desse dia... desse ano... como a minha nova vida. Quando eu ia parar de querer estar em outro lugar... em outro tempo? E o que era menos egoísta? Ficar aqui ou continuar tentando voltar? E será que um dia eu ia conseguir salvar Holly?    

– Você não precisa responder a mais nenhuma pergunta por ora. Sei que é duro pra você – disse Adam, tirando-me dos meus devaneios.     Eu ergui a cabeça e sorri para ele.

– Sério, você pode me perguntar tudo o que estiver na lista. Esse interrogatório pode durar pra sempre, contanto que eu possa falar com alguém sobre isso. Sem mentiras ou pretextos.    

Ele tentou esconder a empolgação em seu rosto, mas não me deixei enganar. Talvez não fosse tão divertido quanto era em 2009..., mas pelo menos eu não estava sozinho.    

– Acho que de uma coisa podemos ter certeza – disse Adam, depois de juntar as anotações em frente a ele novamente.    

– Do quê?    

– Você definitivamente mudou de base principal, mas eu não sei como conseguiu fazer isso.    

– Além de saltar para outro universo – eu disse, sorrindo. – Conhecendo você, sei que não vai desistir até descobrir.

 

                   SÁBADO, 15 DE SETEMBRO DE 2007, 8:00.

Cheguei à academia por volta das oito horas da manhã para acabar minhas tarefas mais cedo e poder ajudar Holly com as festas. Achei que essa seria uma simpática oferta de paz, visto que agora ela me odiava. Quando abri a porta, as luzes já estavam acesas e duas pessoas estavam na academia: Holly e Toby.    

Ela estava balançando nas barras assimétricas e Toby estava de pé sobre um bloco, embaixo dela.    

Então era esse o toque e o suor que ele tinha mencionado no dia anterior.    

Toby a ajudou a dar impulso e eu quase tive um ataque cardíaco quando ela largou a barra e girou no ar duas vezes antes de aterrissar sobre o tatame azul com um baque alto.    

– Bom! – exclamou Toby.    

– Isso foi assustador! – comentei.    

Os dois se sobressaltaram e depois relaxaram quando me viram, mas o rosto de Holly endureceu no mesmo instante.    

Droga, ela ainda está furiosa.    

Holly foi para o vestiário se trocar. Eu peguei meus apetrechos e comecei a limpar as janelas da frente. Passado um tempo, Toby se aproximou.

– Acho que ela ainda está irritada.    

Meu estômago se contraiu de preocupação, mas eu forcei um sorriso.    

– Você provavelmente está comemorando.    

Ele riu e pegou outra flanela para limpar uma mancha na janela ao meu lado.    

– Talvez, mas não vou ficar arrasado porque Holly Flynn se recusou a sair comigo.    

– Ah, claro.    

– Sério, só gosto de zoar com ela. Não me leve a mal. Holly é bem legal. Mas uma garota como ela é um pouco demais para mim.    

– Como assim?    

– Muito esperta... eu não ia conseguir enganá-la. É como se ela visse através de mim. – Ele fez uma pausa na limpeza da janela e inclinou um pouco a cabeça. – Mas eu ia gostar de dar uns beijos nela.    

– Por que Holly não está na equipe de ginástica artística, como você e Jana? Ela parece muito boa.    

– Ela não competiu nos últimos três anos, desde que veio de Indiana. Acho que é por causa de alguma lesão e por causa da grana.    

– Grana?

– Ela não vem de uma família pobre nem nada. Mas é um esporte caro.    

– Ela é boa o suficiente para competir?    

– Ah, pode apostar, aquela garota é mais talentosa do que qualquer um da equipe. Mas nunca acreditaria em mim, por isso nunca vou dizer a ela.    

– Ela acharia que só está dizendo para convencê-la a sair com você.    

Ele riu.    

– Bom, pelo menos não sou eu o sedutor profissional. Além disso, conheci uma garota noite passada na festa de um amigo. É supergostosa e não tem nada na cabeça.    

– Exatamente o seu tipo, hein?    

– É, mas só se for mesmo cabeça oca. Não estiver só se fingindo de burra. Senão, é certeza que vai dar o bote mais tarde. Além disso, adoro zoar com pessoas que não se tocam.    

Eu tive que me segurar para não dizer a Toby o quanto a sua filosofia sobre romances era rasa.    

– Ela parece divertida.

Nós dois paramos de falar quando vimos Holly sair do vestiário, usando shorts e uma camiseta do uniforme da academia. O cabelo molhado estava preso numa trança. Na frente da camiseta ela tinha fixado um botton enorme escrito monitora de festas.    

Eu a segui até o salão de festas. Ela estava colocando os copos sobre a mesa, um em frente a cada cadeira. Eu peguei um saco de pratos descartáveis e comecei a colocar um para cada copo. Ela me ignorou por alguns minutos, então finalmente parou e olhou para mim.    

– O que está fazendo?    

– Só estou ajudando. Você obviamente está brava comigo e estou tentando fazer as pazes.    

Ela colocou as mãos nos quadris.    

– Por quê?    

Tentei responder, mas enrolei a língua, reprimindo as palavras que eu não poderia dizer. O que a minha Holly me diria para fazer?    

Jackson, deixe de ser bundão e querer me passar a perna.    

– Eu digo por quê, se você me disser por que está tão furiosa.    

Ela voltou a arrumar a mesa, acrescentando colheres e garfos coloridos.

– Não estou brava... só não estou... interessada.    

Essa doeu.    

– Por que não?    

– Porque conheço o seu tipo.    

– E qual é?    

Ela pegou um rolo de barbante e uma tesoura e começou a cortar longos pedaços para amarrar a boca dos balões.    

– Você sabe... o tipo que é todo sedutor só para conseguir transar com uma garota.    

Eu tentei parecer ofendido.    

– Primeiro você conclui que eu quero sair com você e agora está supondo que quero transar com você.    

O que na verdade eu quero e consegui.    

Ela corou novamente, como na noite anterior.    

– Não, não foi isso o que eu quis dizer...    

– Se tem tanta certeza, então me diga cinco coisas que sabe sobre mim – eu disse.    

– Você trabalha aqui, essa é uma.

Revirei os olhos.    

– Tá, que mais?    

– Você leu Um Conto de Duas Cidades e sabe dançar, apesar de ter abandonado os estudos em Jersey.    

– Alguém aqui tem o hábito de julgar as pessoas. Admita que você não sabe quase nada sobre mim para fazer suposições tão duras com relação ao meu suposto papel de sedutor.    

– E o que você sugere que façamos a respeito disso?    

– Você me deve um jantar.    

– Tudo bem, às cinco. Vamos com o meu carro comer comida tailandesa – ela disse.    

– Parece bom.

 

A última festa acabou por volta das cinco e, às quinze para as seis, Holly estava esperando na porta por mim, usando uma saia de sarja e um top azul. Seu cabelo estava solto e as pontas cacheadas.    

– Está bonita – comentei.    

Ela deu de ombros.    

– Fui pra casa trocar de roupa enquanto você consertava aquela ducha no vestiário masculino.    

Depois de apagar as luzes e fazer uma última inspeção pela academia, tranquei as portas e a segui até o carro.    

Ela tinha uma dúzia de livros da biblioteca empilhados no banco do passageiro. Eu os transferi cuidadosamente para o banco de trás.    

– Este carro impressiona.    

– É um Honda acabado de quinze anos atrás e um ar-condicionado que nunca funciona.    

– Os clássicos sempre arrasam.    

Nós dois ficamos em silêncio durante todo o trajeto, mas na frente do restaurante ela se virou para mim e desligou o motor.    

– Como sabe, eu não tenho permissão para ter encontros. Não que isso seja um encontro... mas para a minha mãe é. Por isso convidei alguns amigos.    

– Acompanhantes?

– Exatamente.    

– Quem você convidou?    

– David e Adam. Você os conheceu ontem.    

Eu concordei com a cabeça.    

– E Jana.    

– Ótimo.    

Um pouco antes de entrarmos no restaurante, ela se virou e ficou a apenas alguns centímetros do meu rosto.    

– Concluí que você estava certo. Eu julguei você precipitadamente.    

– Está se desculpando?    

– Não, mas estou te dando a oportunidade de provar que estou errada. Não que eu ache que você precisa me impressionar, mas só para salvar a sua reputação.    

Eu dei de ombros.    

– Tá, que seja.    

Ela sorriu.    

– Ótimo, então tenho certeza de que você não vai se importar de responder a algumas perguntinhas durante o jantar. Como você disse, eu não poderia listar cinco coisas que sei sobre você.    

– Tudo bem – eu disse, incapaz de esconder o nervosismo crescente em minha voz.    

– Jackson?    

– Sim?    

– Não vai ser fácil.

Meu coração estava quase saindo pela boca. Era muito difícil mentir para Holly. Eu sabia. Já tinha mentido nem sei quantas vezes.    

– O que os seus pais fazem? – ela me perguntou tão logo nos sentamos à mesa.    

– Meu pai trabalha numa escola em Manhattan.    

– Ele é professor? – Jana me perguntou, sentada do outro lado.    

– Não, é zelador.    

Ela assentiu, mas não disse nada. Eu voltei a olhar para Holly.    

– Irmãos? – ela perguntou.    

Eu bebi um grande gole de água do copo à minha frente antes de responder.    

– Uma irmã.    

– Mais nova ou mais velha? – ela perguntou.    

– Gêmeos, na verdade, mas ela morreu há alguns anos.    

Seus olhos desviaram-se para as mãos e ela murmurou.    

– Sinto muito.    

Por sorte, as perguntas sobre a família tinham acabado. Os olhos de David se alternavam entre nós dois, deixando o clima meio desconfortável.    

O garçom se aproximou e anotou os pedidos, e então David e Jana começaram uma análise profunda sobre como o time de futebol daquele ano era patético. Holly ficou em silêncio, girando nas mãos a pequena tigela de molho agridoce no centro da mesa.

– Já acabaram as perguntas? – perguntei.    

Ela ergueu os olhos para encontrar os meus e deu um meio sorriso.    

– Não cheguei nem à metade. Qual é o seu livro favorito?    

– Humm... Um Estranho numa Terra Estranha, de Robert A. Heinlein – respondi.    

– Ainda não li. É bom?    

– É, é muito bom. Um ser humano é criado em Marte e depois volta à Terra.    

– Parece interessante. Música favorita?    

– Humm... é difícil dizer uma. Vou falar as minhas cinco favoritas numa ordem aleatória. “Somewhere Only We Know”, de Keane; “Pictures of You, do The Cure; “Falling Slowly”, de Glen Hansard; “Mad World”, a versão de Gary Jules e “Beast of Burden”, do Rolling Stones.    

Eu tive que pensar rapidamente para selecionar não apenas músicas mais antigas, mas algumas que evocassem lembranças vívidas de mim e Holly.    

– Não sei se já ouvi alguma dessas – ela disse.    

– Tenho certeza de que reconheceria algumas se ouvisse.    

– Filme favorito?

Eu optei por um bem antigo outra vez, só por segurança.    

– De Volta para o Futuro.    

Adam engasgou com a água, borrifando um pouco em mim.    

Holly riu dele.    

– Tudo bem, escolha estranha.    

– Aposto que o seu favorito é algum filme meloso dos anos 80, com uma garota chorona no papel principal.    

Algo como... Gatinhas e Gatões.    

Holly revirou os olhos enquanto o garçom trazia os nossos jantares.    

– Não chegou nem perto.    

– É um interrogatório, Hol? – David perguntou.    

Ela pegou o garfo e enrolou macarrão nele.    

– Estou fazendo novas amizades.    

– Interessante – disse David, com um ar contrariado.

Quando os outros estavam distraídos conversando, Holly começou novamente.    

– Qual era o nome da sua irmã?    

– Courtney – eu disse, baixando a voz. Pode-se pensar que, depois de tanto tempo, era mais fácil pronunciar o nome dela, mas não era. – Agora eu posso perguntar uma coisa a você?    

– Pode.    

– Por que você treina de manhã cedo se obviamente aposentou a malha de ginasta?    

– É divertido. Por nenhuma outra razão, sério.    

– Só por amor ao esporte. Isso é inspirador.    

Ela riu, pegou o guardanapo da mesa e atirou em mim.    

– Vai, pode continuar zoando. Mas salte numa cama elástica durante uns cinco minutos e veja se não fica viciado.    

– Algum outro vício que eu deva saber antes de entrar no seu carro de novo?    

– Só cafeína.    

– Eu também.    

– Então você não se importa de andar por aí com garotos que ainda estão na escola?

– Lá vem você outra vez, me julgando mal. Nem todo mundo é CDF como você. Além disso, passei num exame equivalente ao ensino médio. Por isso, tecnicamente, já me formei no ensino médio.    

– O teste é difícil? – ela perguntou.    

– Não saberia dizer. Paguei alguém pra fazer pra mim.    

Adam quase sufocou outra vez, desta vez com um pedaço de frango. Eu bati nas costas dele enquanto ele tossia.    

– Engraçado. Tudo bem, e o que me diz... do seu lugar favorito em Nova York? – Ela deu uma garfada no pad thai enquanto esperava pacientemente pela minha resposta.    

– Central Park.    

Ela estreitou os olhos para mim.    

– Bem, temos alguma coisa em comum.    

– Isso significa que vai me dar o seu telefone?    

Por alguma razão, as outras conversas à mesa pareceram parar uma fração de segundo antes de eu dizer isso. De fato não foi o melhor momento para dizer aquilo. Todo mundo parou por um segundo e então voltou a comer de novo. Holly manteve os olhos nos meus e eu esperei até ela beber um longo gole de água.    

– Vou te dar o meu e-mail.    

– Já está bom.

– Quando vamos parar com essa coisa de fazer barganhas?    

Eu dei de ombros.    

– Pessoalmente estou achando divertido.    

Um sorriso iluminou o rosto dela.    

– Eu também.    

Obviamente, eu já tinha o número do telefone dela, mas queria que ela me desse.            

 

Eu disse a Holly para ir direto para a casa dela, pois dali eu andaria até a estação de trem e, para a minha surpresa, ela não fez nenhuma objeção. Mas nós paramos em frente à casa dela justamente quando a mãe estacionava na garagem. A mulher loira andou até onde estávamos quando saímos do carro.    

– Ei, Holly, quem é o seu amigo?    

Ela não estava exatamente sorrindo para mim, mas eu estendi a mão para cumprimentá-la.    

– Sou Jackson.    

A futura Katherine não gostava muito de mim mesmo, por isso eu não estava esperando uma recepção muito calorosa.

– Ele trabalha na academia comigo. – Holly passou pela mãe e puxou a parte da frente da minha camisa, me arrastando para que eu fosse atrás dela.    

– Prazer em conhecê-la, sra. Flynn.    

– Bajulador... – Holly murmurou.    

Eu ri e a segui até a porta da frente.    

– Vou anotar meu e-mail e você pode me mandar um primeiro, ok? – perguntei.    

Ela me passou um papel e uma caneta na mesa da cozinha e eu anotei meu e-mail.    

– Vejo você na segunda?    

Ela assentiu e eu peguei minha mochila antes que Katherine pudesse me fazer mais perguntas.    

Quando cheguei em casa, Holly já tinha me mandado um e-mail, mas só tinha escrito uma frase. Um convite para uma breve conversa on-line.      

 

Quer ouvir uma história engraçada?

          

Eu abri a janela de bate-papo e digitei minha resposta ali, porque ela já estava on-line.

 

EU: Tem a ver com as vezes em que quebrei coisas na academia ou caí da escada?    

HOLLY: Você já caiu da escada?      

EU: Ainda não.    

HOLLY: Tudo bem, aí vai: minha mãe passou vinte minutos me bombardeando com perguntas sobre você. Ela surta só de ver um garoto conversando comigo. Acho que deve ser por causa da obsessão que teve a vida inteira por cinema.    

EU: Quer dizer que ela suspeita que eu possa ser um ladrão de banco/ assassino/ trapaceiro?    

HOLLY: Não se esqueça de sequestrador e viciado em pornografia na Internet.    

EU: LOL! Nada a declarar.    

HOLLY: Só ouço babaquices como: “Holly, lembra o que aconteceu naquele filme em que aquela mulher estava falando com um cara simpático pelo computador e decidiu encontrá-lo em Aruba, só para ser raptada e mantida como refém pela máfia caribenha?”    

EU: Ouvi dizer que a máfia caribenha VIVE vindo pra Jersey.    

HOLLY: Eu sei. Com certeza. Será que existem mesmo gangues de mafiosos em Aruba?      

 

Meu novo celular tocou e eu vi que era Adam.    

– E aí?    

– O seu pai não é seu pai – ele despejou pelo telefone.    

Eu me recostei rápido demais na cadeira e quase caí, deixando o laptop escorregar da escrivaninha.    

– O quê?!    

– Eu roubei algumas amostras de cabelo dele e elas simplesmente não batem com as suas. A menos que outro homem esteja dormindo na cama do seu pai.    

– Como você sabe? Quer dizer...    

– Tenho uns contatos num laboratório que faz testes de DNA – ele disse em voz baixa. – Mas isso é só entre nós dois.    

Meu coração estava a mil por hora.    

– Esses testes devem falhar às vezes.    

– Você pode ter um falso positivo no teste de paternidade, mas um negativo é sempre um negativo.    

Eu fiquei em silêncio por tanto tempo que tenho certeza de que Adam começou a ficar preocupado.    

– Você topa fazer um experimento?    

Minha mão tremia tanto que eu mal conseguia segurar o telefone.    

– Com certeza. E acho que talvez... a minha irmã estivesse certa. Preciso saber mais sobre a minha mãe.

– É exatamente isso que eu estava pensando. Mas espere por mim. Tenho que ver isso com os meus próprios olhos. Quer dizer... Sei que já vi, mas... não de fato... hã... porque...    

– Já entendi, Adam, eu te espero.    

Fechei o celular e joguei-o sobre a escrivaninha.    

Depois de alguns minutos andando para lá e para cá no quarto, depois sentado num silêncio atordoado, lembrei-me de que eu tinha deixado Holly esperando no MSN. Peguei o computador do chão e tentei me recompor antes de responder.

 

EU: Desculpe, problemas com a Internet. Eu teria ligado, mas...    

HOLLY: Muito sutil, Jackson. Vamos fazer o seguinte: você me dá o seu número e então, se eu perder contato com você e ficar preocupada com a possibilidade de você ter engasgado com um amendoim ou algo assim, eu posso te ligar e verificar se ainda está vivo.    

EU: E seu eu ficar preocupado com a possibilidade de você ter engasgado?    

HOLLY: Tudo bem! Vou te dar meu número.    

EU: Juro que só vou usá-lo em situações de vida ou morte.    

HOLLY: Combinado.

 

Eu tinha que pôr um fim na conversa, porque Adam tinha ligado de novo e decidido que eu precisava ir à casa dele, só para o caso de a CIA ter instalado uma escuta no meu apartamento. Não só concordei com ele, como prometi a mim mesmo que nunca mais caçoaria do que eu costumava chamar de “paranoia do Adam”.            

 

Adam abriu a porta segundos depois de eu bater. Eu o segui pela sala na penumbra, onde os pais dele pareciam estar enrodilhados no sofá, assistindo TV.    

– Você já esteve aqui antes, né? – ele perguntou, quando chegamos mais perto da porta do seu quarto.  

– Já. Agora posso perguntar o que te levou a pensar em fazer um teste de paternidade?    

Ele estava tirando alguns objetos da gaveta da escrivaninha.    

– Foi depois daqueles comprimidos de cafeína que eu tomo pra ficar acordado. Pensei em praticamente tudo. O que eu mais queria saber é se havia similaridades no DNA de vocês.    

– Por que isso era importante?

– Isso responde algumas perguntas que você fez no seu diário. Se ele trabalha pra CIA, um agente que viaja no tempo não seria útil para ele? Eu posso pensar num milhão de coisas que o governo poderia fazer com essa sua capacidade.    

– Você achou que talvez ele também fosse capaz de viajar no tempo? – Essa era outra teoria para a qual não tínhamos achado uma explicação antes, mas Adam tinha lido todas as anotações do seu eu futuro. Agora estava dando o próximo passo lógico em seu insano processo de raciocínio.    

Ele deu de ombros.    

– Não sei. Mas isso explicaria como ele faz toda a coisa de CEO e CIA. Mas não há por que continuar investigando isso se o teste de DNA deu negativo. Você já sabe que data vai usar?    

– Bom, você e eu tínhamos um plano... no futuro, de roubar os meus registros médicos. Eu ainda acho que podíamos fazer isso, mas e quanto aos registros da minha mãe? Talvez seja por causa dela que eu sou assim... Será que eles guardam os registros de pessoas que já morreram?    

O rosto de Adam assumiu uma expressão de profunda concentração e eu podia apostar que tinha lhe dado uma ideia.    

– Se você conseguir voltar no tempo o suficiente... esse tipo de informação era guardado com muito menos segurança.

– Você quer dizer simplesmente entrar no hospital, levar na conversa uma enfermeira para fazê-la deixar seu posto e então fuçar no computador dela? – Eu só estava brincando, mas é claro que Adam levou o plano a sério.     Ele afundou na cama e me encarou.    

– Muito bem... então, você e a sua irmã nasceram no Centro Médico da Universidade de Nova York. O que significa que a sua mãe biológica morreu lá, certo?    

– Certo – eu disse lentamente, absorvendo todo o peso daquela conclusão. Eu não tinha pensado muito nisso antes. Apesar de todas as vezes em que tinha estado naquele hospital... nunca tinha me ocorrido que a minha mãe e Courtney tinham morrido naquele edifício. Mais da metade da minha família. Talvez toda a minha família, visto que o meu pai e eu não tínhamos laços de sangue.    

– Jackson...? – chamou Adam, movendo a mão na frente do meu rosto. – O que precisamos é de uma data em que você esteve lá... no passado... de preferência há muito tempo.    

– Eu visitei Courtney algumas vezes.    

Ele balançou a cabeça.

– Não, alguma vez em que você foi paciente. Ou que foi atendido no pronto-socorro ou foi fazer um checkup com o dr. Melvin. Se voltar bastante no tempo, até uma época em que eles ainda guardavam os registros médicos em arquivos físicos e não num computador... você poderia dar uma espiada.     Deve ter sido o choque de descobrir que meu pai não era meu pai, mas idealizei o plano perfeito. Eu sabia de uma data muito recuada no tempo que serviria. E havia algo que eu precisava ver.    

– 24 de dezembro de 1996 – eu disse a Adam.    

– Ótimo, e eu acho que você deveria tentar dar uma olhada na ficha da sua mãe, se conseguir descobrir como. Pelo menos tente enquanto estiver lá. – Ele me passou um cronômetro e uma caderneta. – É tão estranho que você possa levar objetos com você, mas não trazer nada de lá. É como se tivesse algum campo de força à sua volta quando você salta. Presumindo que suas anotações sejam precisas.    

– Bom, você está prestes a conseguir suas próprias evidências para registrar. – Eu liguei e desliguei o cronômetro várias vezes como o Adam mais velho sempre fazia. – Você acha que eu conseguiria saltar se estivesse tocando outra pessoa?

– Não tenho certeza, mas não quero ser a sua cobaia pra provar isso.    

– Tem razão, é muito perigoso.    

– Precisamos ter certeza de que o tempo que vai ficar no passado é preciso. Prenda o cronômetro no cinto. Tão logo chegar lá, ligue-o. – Ele abriu o armário e pegou uma jaqueta de esqui preta e depois colocou um boné azul na minha cabeça.    

Eu não sabia quase nada da minha mãe. O nome que constava na minha certidão de nascimento era Eileen Meyer. Mas eu não sabia qual era a cor do cabelo dela ou dos olhos. Nunca tinha visto uma foto e de repente quis ter visto. Fechei os olhos e me concentrei na data mais remota para a qual eu já tinha viajado.

 

                   TERÇA-FEIRA, 24 DE DEZEMBRO DE 1996.

A primeira coisa que notei... depois de acordar sobre uma pilha de neve e ligar o cronômetro... foram as Torres Gêmeas à distância. Como se algum gigante no céu tivesse recolocado as duas no lugar. Reprimi um arrepio ao vê-las e me levantei.    

Fechei o zíper da jaqueta de Adam e fui até a calçada. Eu me lembrava muito bem dessa véspera de Natal. Havia pelo menos quinze centímetros de neve no chão e Courtney e eu estávamos em casa com papai, observando a neve cair enquanto embrulhávamos presentes para a festa que os nossos vizinhos dariam à meia-noite. Aquele era o Natal mais emocionante dos meus seis anos de vida. Todo dinheiro do mundo não compraria uma nevasca perfeita na véspera de Natal. Adam provavelmente me chamaria de imprudente depois, mas eu tinha que ver isso de novo. Reviver esse momento. Depois eu voltaria a me concentrar no plano de recuperar os registros médicos. Na verdade, esse acontecimento me levaria diretamente para a fonte.

Tudo estava branco. O brilho da neve era tão forte que quase ofuscava os olhos. Eu andei pelo parque até um campo de beisebol. Só tive que esperar uns quinze minutos até ver dois garotinhos, parecendo dois marshmallows, arrastando o pai pela mão. Eu me recostei à cerca do campo de beisebol, dando as costas para eles, e depois enterrei o boné na cabeça até cobrir as orelhas e coloquei os óculos escuros. Havia poucas pessoas por perto, por isso procurei não chamar muita atenção.    

– Jackson, por que não começa pela cabeça? – meu pai sugeriu.    

Foi difícil não reagir quando ele disse meu nome, mas continuei olhando para a frente.    

– Não, vou fazer a parte de baixo primeiro. Este boneco vai ser bem grandão – disse meu eu mais jovem.    

– Você nunca faz o que o papai fala. O Papai Noel não vai trazer nada pra você – disse Courtney, com seu jeito de quem sabe tudo.    

– Ele me trouxe um monte de presentes o ano passado.    

– Deixe que ele comece pela parte de baixo, Courtney. Alguém tem que fazer isso.    

Depois de um instante, dei uma olhada na direção dos três e vi o boneco de neve ganhando vida.

– Vamos fazer três olhos que nem um alienígena – disse meu eu mais jovem.    

– Credo! Ele tem que ter chapéu e parecer um homem – disse Courtney.    

– Tá bom, então eu vou fazer o meu próprio boneco de neve.    

Ouvi meu pai rindo, mas ele não tentou me obrigar a aceitar a versão de Courtney.    

– Pai, por que o Papai Noel traz presentes pequenos para os pobres? – Courtney perguntou.    

– Dãã, porque a casa deles é pequena – explicou o meu eu de 6 anos de idade.    

– Quem lhe disse isso, Courtney? – perguntou meu pai.    

– Silvia.    

A babá de Porto Rico. Ela sempre ficava conosco quando meu pai estava fora da cidade.    

– O que ela disse?    

– Bom, ela disse que a família dela sempre ganhava frutas no Natal e o Papai Noel trazia frutas porque eles não tinham dinheiro para comprar outros presentes – disse Courtney.    

Com o canto do olho, eu a vi enrolando o cachecol no pescoço do boneco.    

– Silvia é de outro país. Cada povo tem seus costumes – explicou meu pai.    

– Vou dar metade dos meus presentes pra ela – anunciou Courtney.

– Ah, claro, ela vai querer mesmo o seu carrinho da Barbie – disse meu pequeno eu. – Silvia deve ter uns 100 anos. Ela não vai poder dirigir um carrinho de brinquedo motorizado. Ela pode ficar com algumas das minhas coisas.    

– Se o Papai Noel te trouxer outra coisa além de carvão... – disse Courtney    

– Não ligo se ganhar carvão. Os diamantes são feitos de carvão. Né, pai?    

– Isso mesmo... e ninguém precisa dar os seus presentes. Podemos comprar um presente pra Silvia.    

– Podemos tirar uma foto do boneco de neve pra mostrar pra ela? – perguntei.    

Minha voz foi ficando cada vez mais distante e eu sabia o que ia acontecer. Segurei a respiração e esperei.    

– O que está fazendo aí? – perguntou meu pai.    

– Vou pegar os braços do meu boneco de neve.    

Eu me virei, mesmo sabendo que estava correndo o risco de ser visto. Eu tinha que olhar. Meu eu mais jovem começou a escalar a árvore, saltando para alcançar um galho mais alto.    

Meu pai correu na direção da árvore.    

– Jackson! Não puxe esse galho!

Eu quase gritei para mim mesmo. Minha versão de 6 anos de idade ficou paralisada de medo sobre um galho mais baixo da árvore, observando o galho acima da sua cabecinha se curvar sob o peso imenso da neve e graças ao puxão de um garotinho que só tinha tentado quebrar um pequeno pedaço.    

Meu pai disparou na minha direção e agarrou meu pequeno eu pela cintura quando ele caiu, cobrindo a cabeça de ambos com os braços. Uma das minhas mãos estava esticada para alcançar o galho e bateu no chão coberto de gelo, que a árvore gigantesca tinha abrigado da neve. Eu me encolhi e segurei a respiração. Mesmo à distância, pude ouvir o estalo do osso ao se quebrar. Ou talvez eu só tenha me lembrado do barulho como se fosse hoje. Ele só não foi mais alto que o grito de Courtney. Ela correu até o galho partido e parou ao meu lado. Suas mãos cobriam o rosto.    

– O braço dele caiu!    

Foi quando meu pequeno eu decidiu que era hora de entrar em pânico e começar a chorar.

– Só está quebrado, meu bem – meu pai explicou a Courtney antes de me erguer do chão cuidadosamente. Então ele tirou meu braço da manga do casaco e vi seu rosto ficar mais sério. Courtney deu uma olhada no osso saindo através da pele e se virou, vomitando o biscoito que tinha comido mais cedo.    

– Não quero morrer – eu me ouvi choramingar. – Chama o dr. Melvin, por favor, papai.    

– Só precisamos ir para o hospital. Você vai ficar bem, eu prometo.    

À distância, vi meu pai virar a cabeça para a manga do seu casaco e dizer:     – Edwards, onde é que você se meteu?    

Segundos depois, um homem passou correndo por mim.    

– Desculpe, senhor, precisa de ajuda? – ele perguntou ao meu pai.    

– Sim, meu filho machucou o braço.    

O homem pegou no colo minha irmã, que tinha acabado de vomitar e agora estava choramingando desculpas para o caso de eu, de fato, estar morrendo.    

– Não quis dizer aquilo sobre... o Papai Noel, Jackson. Ele vai te trazer um monte de presentes. Desculpa...    

– É uma fratura exposta. Vai precisar de cirurgia – falou o homem chamado Edwards.

O meu eu mais jovem segurava seu braço deformado na frente do corpo e continuava a chorar, mas muito mais baixo do que as lamúrias histéricas de Courtney. Papai me carregou pela neve, andando rápido. Eu fiquei ali observando enquanto a silhueta deles ia ficando cada vez menor.    

Aquele Edwards definitivamente era algum tipo de agente. Eu me lembrei do homem, mas achava que ele só tinha vindo ajudar. Mas meu pai nunca deixaria que um estranho pegasse minha irmã no colo. Isso tinha me passado despercebido na época, por causa da dor aguda que estava sentindo no braço e do fato de provavelmente ser jovem demais para me lembrar dos detalhes.    

Eu tirei o braço da manga da jaqueta do Adam e corri os dedos pelas cicatrizes da minha cirurgia na véspera de Natal, cuja lembrança estava esmaecida depois de tantos anos.

Peguei um táxi até o hospital, para onde eu sabia que meu pai tinha me levado. Depois de reviver aquele dia, concluí que meu pai não parecia alguém que apenas fingia ser pai. A preocupação dele era genuína. Era possível que nem ele mesmo soubesse que não era nosso pai biológico. Ou que ele fosse apenas um daqueles pais adotivos que decidem manter a adoção em segredo.     Ou talvez fosse algo completamente diferente.    

Quando o táxi chegou ao hospital, tive que vasculhar a carteira para encontrar uma das minhas notas mais velhas de dólar. Por sorte, eu colecionava dinheiro antigo. Só para o caso de precisar.    

Cruzei as portas do pronto-socorro, esperando poder dar uma olhada melhor no homem que meu pai tinha chamado de Edwards. Eles não estavam em nenhum lugar à vista e, pelo que eu conseguia me lembrar daquela noite, só fiquei acordado por um breve período, antes que me levassem numa maca até a sala de cirurgia e colocassem parafusos no meu braço. Eu só precisava de alguém que me desse acesso às portas fechadas do PS.    

– Posso ajudar? – perguntou uma mulher na recepção em frente ao pronto-socorro.

– Hãã... pode, estou aqui para ver meu... irmão, Jackson Meyer, ele acabou de chegar com meu pai. Machucou o braço.    

– Nome, por favor – ela pediu, tirando os olhos de alguns papéis à sua frente, provavelmente porque eu olhava para ela como se ela tivesse acabado de falar em japonês. – O seu nome, não o dele – ela acrescentou.    

Oops, eu não tinha pensado nessa questão menor.    

– Hã... Peter... Peter Meyer.    

Ela digitou alguma coisa no computador. Era um daqueles monitores grossos com tela verde e preta. Algo que eu não via há muitos anos. Até o penteado das enfermeiras que eu tinha visto era muito diferente. Eu teria rido se a situação fosse outra.    

– Posso ver a sua identidade? – ela perguntou.    

Opa, hora de dar o fora.    

– Bom... eu... hã... deixei no táxi. Acabei de ligar e o motorista está voltando. Na verdade, eu preciso descer e me encontrar com ele agora. Volto num instante. – Dei meia-volta e quase me choquei com um homem de terno azul. Ele tinha mais de um metro e oitenta, a cabeça raspada e a pele morena. Parecia familiar. Muito familiar.    

– Acho que posso ajudá-lo – ele disse numa voz grave e poderosa. O modo de falar arrastado do sul do país.    

– Pode?

Ele assentiu com a cabeça.    

– Por que não vem comigo?    

Não era bem uma pergunta. Eu fui atrás dele, totalmente apavorado, mas também morto de curiosidade para descobrir como todas aquelas pessoas e acontecimentos estavam ligados. Além do mais, eu não parecia ter outra saída.    

Tive que me esforçar para acompanhar os passos largos do homem. Ele segurou a porta do elevador aberta para mim e eu entrei. Meteu um cartão numa fenda e uma portinha de correr grande o suficiente apenas para passar um punho se abriu. Eu estiquei o pescoço, para ter uma visão melhor do que havia ali dentro. Era algum tipo de escâner digital.    

Esse era um equipamento de segurança normal num hospital? Especialmente em 1996? E por que estávamos nos afastando tanto do pronto-socorro?    

Ele manteve os olhos fixos à sua frente, mas respondeu à pergunta que dava voltas na minha cabeça.    

– Só o pessoal autorizado tem acesso à ala do governo deste hospital, mas tenho certeza de que você já sabe disso.    

– Hã... não.    

Minha voz era a de uma criança assustada, mas o homem continuava calmo e sereno. Como se ele levasse pessoas o tempo todo a essa ala acessada apenas por escâner digital.

Senti o elevador descendo, mas o painel digital que normalmente mostra o andar estava apagado. Quando a porta se abriu, perdi o fôlego. Quatro homens armados estavam do lado de fora, esperando por nós. Todos eles levantaram as armas e apontaram para nós. Congelei no lugar, sem conseguir decidir se devia ou não apertar outro botão.    

– Você não vai conseguir voltar a subir sem autorização – disse o homem misterioso.    

Foi naquele momento que tentei me concentrar e dar o fora dali, voltando para Adam em 2007. É claro que, como no dia em que eu estava no escritório do meu pai com as mãos dele em volta do pescoço, eu estava apavorado demais para fazer isso. Um dos homens armados me agarrou e começou a apalpar minhas roupas, desde as calças até a camisa.    

– Está limpo. Nenhuma arma.    

– Obrigado. Siga-me.    

Consegui pôr um pé na frente do outro e observar os arredores. Era algum tipo de túnel subterrâneo. O homem abriu uma porta e me empurrou para dentro de uma sala. Outro homem me forçou a me sentar numa cadeira, parecida com as usadas nos consultórios odontológicos. Prendeu meus braços com tiras. Pensei em lutar para me libertar, mas decidi que seria inútil se os homens estivessem armados.

– Sou o Comandante Marshall – disse o homem que me trouxera até ali. – Quem é você? Nós dois sabemos que Jackson Meyer não tem nenhum irmão.    

Eu não respondi e o Comandante Marshall fez um sinal com a cabeça para o outro homem.    

– Faça um exame de sangue.    

Aquilo estava realmente assustador. Fechei os olhos e tentei fazer a sala desaparecer. Me mandar dali o quanto antes. Evitar o experimento que Adam e eu não poderíamos realizar.    

De fato, mergulhar no passado era como Feitiço do Tempo. E o leve sentimento que eu sempre tinha durante o salto (exceto naquela vez em 30 de setembro de 2009) mantinha a dor no nível mínimo. Em outras palavras, se eu me machucasse durante o salto, quando voltasse ao presente teria um galo na cabeça ou qualquer coisa assim, mas nada mais grave.    

Mas, mesmo assim, e se eles me matassem neste ano? Um ano que não era a minha base principal? Eu não tinha ideia do que poderia acontecer. Se eu fosse realmente morto.    

Eu mal senti a picada no braço, e segundos depois ouvi passos se afastando.    

– Como já sabe, você não pode sair daqui – disse o Comandante.    

Meus olhos se abriram.    

– Você já me disse isso.

– Eu quis dizer que não pode sair por meio de nenhum método. Isso graças ao novo equipamento de segurança criado pelo dr. Melvin. Um pulso eletromagnético.    

De que diabos ele estava falando?! E ele conhecia o dr. Melvin. Talvez Courtney estivesse certa sobre a ligação. Será que o dr. Melvin estava tentando me manter preso ali, ou quem quer que fosse levado àquela sala, por meio de eletroímãs? Mas só o Comandante Marshall estava presente, junto com o outro sujeito.    

– Vamos, me diga o seu nome – exigiu o Comandante Marshall numa voz grave, enquanto se sentava numa cadeira à minha frente, com os braços cruzados sobre o peito. – Como conhece Jackson Meyer?    

Fiquei em silêncio, olhando por sobre o ombro dele, tentando me acalmar.    

– Ele não é um Inimigo – disse o outro homem.    

– Tem certeza? – perguntou o Comandante.    

– Tenho. – O homem se aproximou e olhou meu rosto bem de perto, depois tirou meu boné com um puxão.    

– Um Inimigo? – perguntei por fim.    

– Não se deixe enganar – disse o Comandante. – Vê a semelhança? – ele perguntou ao outro homem, com uma agulha na mão. – Com os outros.    

Que outros?

O outro homem se aproximou tanto do meu rosto que pude sentir seu hálito cheirando a alho.  

– É. Tem razão. Mas não poderia ser... não é?    

Pela primeira vez, o rosto do Comandante perdeu seu ar sereno e controlado. Ele apertou um botão na parede e gritou:    

– Edwards, venha cá!    

Segundos depois, o homem que tinha passado por mim no campo de beisebol entrou na sala.    

– O que foi, Comandante?    

– Traga o Agente Meyer aqui agora mesmo – ordenou o Comandante.    

Cara, aquilo estava ficando muito surreal.    

– Desculpe, senhor, ele está com o garoto.    

– Tudo bem. Melvin, então.    

– Também está com o garoto no pronto-socorro – explicou Edwards.     O Comandante se virou lentamente para Edwards antes de dizer:    

– Eu também estou.    

Edwards abriu a boca, mas logo em seguida a fechou sem dizer nada.

– Está querendo dizer que ele pode... quer dizer, não ainda, mas um dia...    

Eu não quis ouvir o resto. Só de pensar na ideia de o meu pai vindo me ver, mais velho, depois do que tinha acontecido no escritório dele em 2003, foi suficiente para eu me concentrar na minha fuga. A última coisa que vi foi o rosto do Comandante Marshall examinando o meu. Eu não sei o que me assustou mais... olhar nos olhos dele ou o sorriso cheio de cobiça que havia no seu rosto quando saltei para longe de 1996.

 

                   DOMINGO, 16 DE SETEMBRO DE 2007, 00:30.

– Jackson! – Adam gritou no meu ouvido.    

Eu estava deitando no chão do quarto dele, olhando para o teto.    

– Em que ano estamos?    

– 2007 – ele disse devagar.    

O quarto girava e, quando me sentei e olhei o modelo gigante de DNA de Adam sobre a escrivaninha, os balões azuis e vermelhos que o compunham giravam como pássaros de desenho animado, ao redor da cabeça de um personagem. Agarrei Adam pela frente da camisa e o sacudi.    

– Eu tenho que ligar para o meu pai. Tipo... agora.    

– Tudo bem. – Ele me levantou do chão e eu desabei sobre ele.    

– Não estou sentindo as pernas – murmurei antes de despencar na cama dele. Ergui a mão em frente ao rosto, virei-a ao contrário, esperando que ela se desvanecesse ou ficasse transparente.    

Então os balões azuis e vermelhos girando ficaram pretos, junto com tudo o mais.

 

A primeira coisa que notei, ao acordar na manhã seguinte, foi a massa informe ao meu lado, ressonando. Rolei de lado e fiquei de pé, feliz ao sentir minhas pernas. Mas elas estavam fracas e minha cabeça latejava, como se eu estivesse com uma forte ressaca.    

Os olhos de Adam se abriram devagar.    

– Você está de pé.    

– Nem sei como. – Apertei as laterais do meu corpo, pressionando o lugar onde uma dor aguda atravessava as minhas costelas.    

Adam vestiu uma camiseta e abriu a porta do quarto.    

– Vamos comer alguma coisa.    

Comida era a última coisa em que eu pensava, mas minha falta de apetite na última semana tinha me feito perder pelo menos dois quilos. Muito em breve eu ia de fato desaparecer.    

– Bom dia, mãe – disse Adam para a senhora que virava panquecas na frigideira.    

– Acordou cedo hoje. Não sabia que estava com um amigo. – A sra. Silverman virou as costas para o fogão e sorriu para mim.

Tentei não rir, porque os pais de Adam eram uma grande piada para mim em 2009. Eu os chamava de “Paul e Judy”, porque eles me lembravam os livros de Dick e Jane[3] que eu lia na pré-escola. Aqueles da década de 1950. Eles não faziam nenhuma ideia do que o filho fazia ou era capaz de fazer. Para eles a vida era sombra e água fresca.    

– Prazer, Jackson – cumprimentei.    

Adam e eu nos sentamos à mesa e ele colocou meu diário na minha frente.    

– Anote o que se lembra.    

– Quanto tempo se passou no meu cronômetro? – perguntei.    

– Um pouco mais de duas horas.    

– E no seu cronômetro?    

– Quatro minutos – ele respondeu.    

Embora eu tivesse feito aquilo muitas vezes com o Adam mais velho, ainda era esquisito ficar tanto tempo no passado e depois voltar e descobrir que só tinham se passado alguns minutos. Normalmente, segundos.    

– Como eu fiquei?    

– Como das outras vezes que você registrou comi... com o outro cara. Ficou olhando pro nada, totalmente sem reação. – Ele deu uma batidinha com o dedo no diário outra vez. – Escreva.

Minha memória estava fragmentada e confusa, mas à medida que comecei a fazer uma lista e Adam a me bombardear com perguntas, a maioria das lembranças começou a voltar.    

– Uau! Parece que você saltou pra data certa. Então, agora sabemos que ele é definitivamente algum tipo de agente – disse Adam.    

A sra. Silverman colocou um prato gigantesco de panquecas na frente de cada um de nós.    

– Quem é agente, querido?    

Adam deu de ombros.    

– É só um seriado de TV.    

Ela sorriu para ele.    

– Alguém aqui quer suco de laranja?    

– Claro – respondeu Adam.    

– Não, obrigado – eu disse.    

– Tudo bem – continuou Adam. – Então, você se parece com essas outras pessoas misteriosas... ou será que ele estava falando que você se parecia com o seu eu mais jovem? Não seria nenhuma surpresa se fosse isso.      

– Ele só disse: “Vê a semelhança?” Depois disse algo sobre eu parecer com os outros... ou talvez ele tenha dito “com o outro”... com o outro eu.    

Ainda enjoado com a louca aventura da noite anterior, afastei o prato, mas Adam o empurrou de volta para mim.

– Coma.    

Só consegui engolir alguns pedaços antes de correr para o banheiro e vomitar tudo. Enquanto escovava os dentes, ouvi Adam falando para a mãe.    

– Provavelmente sushi estragado.    

– Trouxe um antiácido – ouvi a mãe de Adam dizer, do outro lado da porta do banheiro.    

Quando saí do banheiro, Adam estava esperando por mim, com um frasco de antiácido na mão. Dei uma golada diretamente do frasco enquanto voltava para o quarto dele, onde desabei na cama. Ele fechou a porta atrás de mim, equilibrando seu prato de panquecas.    

– É a viagem no tempo que está deixando você enjoado. Se levarmos em conta as anotações do seu diário e o seu último enjoo, isso fica óbvio.    

– Tem certeza de que não é psicossomático? A culpa não pode se manifestar em forma de doença? Nunca aconteceu antes de Holly levar o tiro. – Puxei as cobertas até o queixo, encolhendo-me na cama como uma bola, com o corpo todo trêmulo.

– Alguém aqui andou estudando psicologia... – Adam se sentou na cadeira da escrivaninha, ainda devorando as panquecas. – Acho que tudo é relativo. Antes de voltar a 2007, o máximo que você tinha saltado foram alguns dias. É uma fórmula baseada no número de anos que você volta no tempo, e em quanto tempo fica no passado. Você já sabe disso, porque as fórmulas estavam no seu diário.    

Concordei com a cabeça.    

– Mas por que não fico enjoado o tempo todo agora, em 2007? Tecnicamente, é passado pra mim.    

Ele deu de ombros.    

– Acho que é porque esta é a sua base principal agora. Qualquer outro ano que não seja 2007 é um ano em que você não deveria estar, portanto, coisas ruins acontecem a você quando salta para períodos de tempo que não são a sua base principal. E quanto mais você fica fora da sua base principal, piores são os sintomas. É como se o corpo fosse puxado em duas direções contrárias e você não pudesse ser esticado tanto.    

– Parece que faz sentido. Só não sei por quê.

– Acho que posso dizer com certeza que ainda existe uma tonelada de coisas que ainda não entendemos.    

– Concordo. Mas... eu realmente preciso ligar pro meu pai. Só preciso perguntar se ele é agente do governo. Dizer a ele que ouvi por acaso uma conversa ou coisa assim. Isso não quer dizer que ele seja mau sujeito, quer?    

Adam ergueu uma sobrancelha.    

– Será que não? Só porque ele correu com você pro hospital quando quebrou o braço? Grande coisa. E mesmo que ele seja do bem... E se isso não tiver importância e ele tiver que atacar você no momento em que perceber que você descobriu tudo? Como a viagem no tempo está te fazendo mal, acho que você tem que limitar os seus saltos às tarefas mais importantes. Você precisa se recuperar, cara. Por hora, acho que é melhor fingir pro seu pai que não sabe de nada. Vai ser mais fácil conseguir informações. Pelo que parece, aqueles caras no subterrâneo do hospital não ficaram nem um pouco felizes de ver você, e eles conhecem o seu pai... é como se estivessem do mesmo lado. – Ele parou um minuto e eu podia apostar que sua mente estava a mil por hora.    

Eu me sentei e me reclinei na cabeceira de madeira da cama.

– Droga... Eu me sinto podre, e estava pensando em convidar Holly pra sair hoje. Ela me deu o número do telefone dela ontem à noite.    

Adam virou de costas para mim e se debruçou sobre alguns papéis na escrivaninha.    

– Ela está ocupada.    

– Está?    

– Eu disse que ia ajudá-la a estudar pra prova de cálculo.    

– Ótimo! Então eu tenho uma desculpa pra ir vê-la. Eu posso ir com você e participar dessa pequena sessão de estudo. Diga a ela que estávamos juntos.    

Ele pegou uma calça jeans do armário e vestiu-a, ainda sem olhar para mim.    

– Não acho que seja uma boa ideia. Ela está realmente preocupada com a prova...    

– Adam, o que você não está querendo dizer? Ela te falou alguma coisa?    

Ele finalmente olhou para mim, então suspirou.    

– Eu não ia tocar nesse assunto hoje, mas obviamente não tenho outra escolha. Depois de ler todas as suas anotações, percebi que... é como se você e Holly estivessem simplesmente se divertindo. Não tinham nada sério.    

– Você está se referindo a Holly 007 ou à outra?

– Holly 007?    

– É, soa melhor do que Holly 2007.    

Ele balançou a cabeça e riu.    

– Um jeito interessante de criptografar. Mas eu me referi à outra. A de 2009. De qualquer maneira... a não ser pela culpa por deixá-la morrer... tem alguma coisa diferente entre agora e o futuro?    

Eu fiquei olhando para ele, sem saber muito bem como responder, sentindo meu rosto afogueado de raiva mesmo sem querer.    

– Olha, Jackson, eu não tenho nada contra você. Você está lidando com essa piração toda, e o fato de você querer mantê-la viva, ter certeza de que ela está em segurança, prova que você é um cara decente. Mas você não acha que é um pouquinho arriscado se aproximar dela... por várias razões? Holly é minha amiga e eu não quero que ela se magoe.    

– Você acha que só estou tentando me aproximar dela porque sinto culpa? – perguntei, porque na verdade eu não tinha certeza. Aquele era um terreno desconhecido para mim. Na verdade, nenhum tipo de relacionamento era terreno conhecido para mim.    

– É, parece que sim... mas talvez eu esteja errado. Em todo caso, você precisa parar de se sentir culpado.

Adam se virou para o computador e eu me deitei de bruços, examinando a estampa do lençol e tentando absorver a dica perspicaz de Adam. Será que eu estava querendo me aproximar de Holly só pela culpa ou simplesmente pela emoção de seduzi-la novamente?    

Então, mais uma vez, eu pensei que poderia ter ido embora aquela última noite, em 2009, em que ficamos juntos. Eu estava uma hora atrasado para o jantar e depois disse a ela que não tinha conseguido chegar a tempo para o cinema, por causa de algumas coisas que tinha de resolver com Adam.    

Ela tinha se levantado da cadeira, pegado a bolsa e dito calmamente:    

– Bem, eu poderia estar fazendo outras coisas também, então vou sair e fazê-las agora.    

Eu sabia que ela estava furiosa, embora não tivesse começado a gritar comigo até eu sair atrás dela. Mas eu saí atrás dela. Aquilo tinha que significar alguma coisa. Eu nunca tinha saído com nenhuma garota da minha escola ou com alguém que soubesse muito sobre a minha vida pessoal. Ou com alguém que tivesse conhecido a minha irmã antes de ela morrer. Na faculdade foi mais fácil. Por algum motivo acabei contando a Holly quase tudo sobre mim... mas eu era a única fonte. Ela não tinha ouvido nenhuma fofoca ou boato na escola.

O que tornava tão fácil a conversa com Holly era que eu podia contar a ela apenas metade do que gostaria de dizer e ela preenchia as lacunas. Ela sabia o que eu estava pensando. Como da primeira vez em que a beijei...     Foi no meu aniversário de 19 anos. 20 de junho de 2009. Meu pai estava ignorando meu aniversário, assim como fazia todos os anos depois da morte de Courtney. Holly tinha acabado de romper o namoro com David e concordado de má vontade em ir a uma balada com os colegas do acampamento. Claro, eu estava ansioso por uma oportunidade para ficar a sós com ela, mas dava para ver que ela estava infeliz e tentando passar a impressão de que estava se divertindo.    

Desisti do meu plano de atraí-la para a pista de dança.    

– Quer sair daqui? – perguntei.    

Ela assentiu.    

– Está com fome? – perguntou.    

– Faminto.    

– Eu também. – Os dedos dela encostaram na palma da minha mão e eu os enlacei, arrastando-a para o ar morno de verão.    

Larguei a mão dela antes de começarmos a descer a rua a pé.    

– Você não come pizza, né?

Ela balançou a cabeça.    

– Não, intolerância a laticínios.    

– Conheço um restaurante muito bom do outro lado da cidade. Eles têm vários pratos sem laticínios no cardápio.    

– Parece bom.    

Nós paramos um táxi e demos o fora da balada. O restaurante estava quase vazio e selecionamos sem pressa um prato quase totalmente vegetariano do cardápio, depois espalhamos nosso banquete pela maior mesa do lugar.    

– Quanto tempo faz que você parou de comer carne?    

Ela mergulhou um pedaço de pão sírio no hommus antes de responder.      

– Só alguns anos. Eu poderia comer carne se gostasse do sabor, mas não gosto.    

– Então não é porque quer salvar as vacas.    

– Não, exatamente. – Ela sorriu e tomou um gole de chá gelado. – Posso te perguntar uma coisa?    

– Claro.

– Isso estava nos seus planos? Ficar a sós comigo esta noite? Ouvi dizer que você... faz muito isso.    

Fiquei sem fala por um minuto. A resposta corriqueira não parecia correta. Cruzei as mãos sobre a mesa e olhei nos olhos dela. Ela parou de mastigar.    

– Pra ser sincero, eu estava observando você dançar com Brook – eu disse. – E sabia que estava se sentindo culpada por estar se divertindo esta noite. Temos isso em comum.    

Essa era a verdade. Eu só queria ficar com ela, mas não sabia exatamente por quê. Aquilo ainda me assustava um pouco.    

Ela olhou para baixo e pegou o garfo de uma tigela de frutas. Ela sabia exatamente do que eu estava falando.     – É, temos mesmo.    

– Ok, então sabe o que faremos para aliviar a culpa? – Eu endireitei as costas na cadeira e observei os olhos dela se erguerem. – Só coisas normais, do dia a dia, são permitidas esta noite. Como comer, beber e dormir.    

Sua boca se repuxou num meio sorriso.    

– Parece bom. Só coisas corriqueiras são permitidas.    

– E conversar? – sugeri.

– Sr. Meyer, como tem passado? – uma voz soou atrás de mim.    

Eu me virei na cadeira e vi meu pai se aproximando do balcão.    

– Pai, o que está fazendo aqui?    

Meu pai me olhou e acenou com a cabeça.    

– Vou trabalhar até tarde. Vim só pegar alguma coisa pra viagem e voltar pro escritório.    

– Não é a sua secretária que geralmente faz isso?    

Ele deu de ombros.      

– Mandei-a pra casa.    

Ele queria ficar sozinho pela mesma razão que eu não queria. Eu me remexi na cadeira e olhei para Holly, depois me virei de novo para o meu pai.    

– Esta é Holly Flynn. Trabalhamos juntos.    

Meu pai estendeu a mão para cumprimentá-la.    

– Kevin Meyer.

– Prazer em conhecê-lo – disse Holly.    

Meu pai pegou uma sacola que um homem no balcão lhe trouxe e voltou a se virar para nós.    

– Você estuda em Nova York? – ele perguntou.    

– Vou para a NYU em setembro.    

– Ela é caloura – expliquei ao meu pai.    

Ele assentiu com a cabeça antes de cruzar a porta.    

– Então você tem um veterano para lhe mostrar tudo por lá. Jackson é muito bom nisso.    

Decidi fazer um último esforço.    

– Provavelmente vou pra casa bem tarde, tudo bem...?    

Meu pai nem sequer me olhou por cima do ombro.    

– Tudo bem.    

Eu respirei fundo e corri os dedos pelos cabelos.    

– Isso foi estranho – Holly disse.    

Ergui a cabeça para olhar para ela.

– Ele trabalha no prédio do outro lado da rua. Na verdade foi ele quem me falou sobre esse lugar.    

– Não foi isso o que eu quis dizer. Estou falando de... hã...    

Baixei os olhos.    

– Já entendi.    

Ela deve ter compreendido a minha necessidade de mudar de assunto.    

– Então, sobre o que vamos conversar? – disse ela.    

– O que aconteceu com Daniel ou Donny? Seja qual for o nome dele.     Ela escondeu um sorriso.    

– David, mas você já sabe o que aconteceu. E será que é uma boa ideia falar de ex-namorados durante um encontro?    

– Bem, isso não é um encontro, por isso você não vai estar quebrando nenhuma regra – eu expliquei.    

Normalmente eu não pedia detalhes sobre esse tipo de coisa, mas era muito difícil entender Holly sem saber com que tipo de cara ela poderia sair durante um ano inteiro. Eu não conseguia nem imaginar como seria namorar alguém por tanto tempo na nossa idade. Meu relacionamento mais longo tinha durado apenas um mês e a garota tinha passado duas semanas fora do país durante esse período.

– Nada de emocionante. É a típica história da garota que amadureceu mais do que o namorado do colegial.    

– E ele... aceitou numa boa o fim do namoro?      

Ela deu um sorrisinho.    

– Aceitou; David é um cara legal. Só não sei se ele disse que tudo bem pra eu não me sentir mal.    

Mudamos de assunto e conversamos por pelo menos uma hora antes de ir embora. Eu tentei conversar apenas sobre assuntos amenos e esperei que ela tivesse acreditado em mim com relação a não ter “grandes planos” para a nossa noite.    

– E agora? – perguntei.    

– Acho melhor eu ir para casa.    

Não, não, não.    

– Podemos dar uma volta a pé primeiro? Exercícios certamente são permitidos. Não tem nada de divertido nisso.    

– Claro – ela concordou.    

A tensão que tinha diminuído durante o jantar começou a aumentar novamente. Holly obviamente sentiu também, e talvez quisesse que alguma coisa acontecesse, ou talvez fosse justamente o contrário – quisesse eliminar essa possibilidade o mais rápido possível.    

– Descobriu algo de bom nessa sua recém-descoberta liberdade? – perguntei.

– Tudo. Acho que é por isso que me sinto culpada.    

– Faz sentido. – Dobrei a esquina, sem dar a mínima para onde estávamos indo, contanto que não chegássemos nunca.    

A mão de Holly encontrou a minha e ela parou no meio da calçada. Quando voltei o rosto para ela, ela me olhou nos olhos e eu percebi que o clima de pura descontração tinha acabado.    

Ela se aproximou mais de mim.    

– Tenho que te dizer uma coisa.    

Epa. Aí vem a história do “apenas bons amigos”.    

– Tem?    

Os olhos azuis-claros dela se fixaram nos meus.    

– Feliz aniversário, Jackson.    

Eu abri a boca para responder, mas nenhum som saiu. Tudo o que eu queria naquele dia era que meu pai tivesse me dito aquilo. Nada de presentes ou festas. Só um “feliz aniversário”. Talvez até algo como, “Eu sei que Courtney se foi, mas ela ia gostar de vê-lo feliz hoje”. Isso já teria sido mais do que suficiente.    

Holly franziu a testa e largou minha mão.

– Desculpe. Acho que foi a coisa errada a dizer, não foi? Só pensei, depois que seu pai foi embora, que...    

Meu cérebro entrou no modo de alta velocidade e se focou numa única coisa. Eu a empurrei gentilmente para trás, até seus ombros tocarem a parede atrás de nós. Os olhos dela estavam arregalados e as bochechas, vermelhas. Eu nem mesmo hesitei, com receio de que ela me detivesse. Inclinei-me e beijei-a, pressionando meu corpo contra o dela. Ela tinha um gosto muito bom, como morangos e hortelã.    

Ela ergueu os braços e enlaçou meu pescoço, puxando-me mais para perto. Os dedos estavam nos meus cabelos, os lábios se movendo, o coração pulsando forte. Minha vontade era arrancar as nossas roupas e agarrá-la.     Então as mãos dela estavam no meu peito, me empurrando para trás. Eu me afastei no mesmo instante e a fitei, enquanto ela se encostava à parede em busca de apoio, o peito subindo e descendo rapidamente, as pálpebras trêmulas. Comecei a ficar nervoso. Será que eu tinha interpretado mal seus sinais?    

Então os lábios dela se abriram num sorriso.    

– Uau!    

Eu suspirei de alívio e me aproximei o suficiente para envolver sua cintura.    

– Fazia muito tempo que eu queria fazer isso...

Ela abriu os olhos e olhou para mim.    

– Sei o que quer dizer...    

Claro, aquela não era a Holly 007 e aquele beijo tinha sido ardente.    

A futura Holly me entendia. E mais ninguém parecia ser capaz disso. Talvez isso me assustasse um pouco, ficar tão exposto a uma pessoa. Eu a deixei um pouco de lado depois que as aulas na faculdade começaram e nós dois vivíamos muito ocupados. Era mais fácil dar desculpas do que admitir para ela (e para mim mesmo) como eu me sentia. Acho que a minha vida era muito simples naquela época. Não havia nenhuma necessidade de definir claramente coisas como relacionamentos, porque tínhamos muito tempo pela frente para fazer isso.    

Até que o tempo acabou.    

De volta ao presente, vi que Adam continuava a digitar no computador, dando-me um pouco de privacidade para pensar e descansar. Talvez a melhor coisa a fazer em 2007, com esta Holly, fosse deixar que ela me conhecesse. Não fazer mais nada. Nada de joguinhos. Só ser eu mesmo.    

Quer dizer, tirando a parte do “eu sou do futuro”. Se aquilo não fosse suficiente para nenhum de nós dois, então eu poderia me afastar e só garantir que ela estivesse segura à distância.    

– Ei, Adam?

Eu me sentei quando ouvi a cadeira dele se virando.    

– Pensei que estivesse dormindo – ele disse.    

– Não. Só pensando no que você disse. Eu não tenho mesmo uma resposta, mas prometo que terei cuidado com ela.    

– Beleza. Fico feliz em ouvir isso, cara. – Adam apontou a escrivaninha. – Escrevi uma coisa no seu diário, no verso da capa de trás.    

Eu ergui os olhos.    

– Mais latim?    

– Hum... em termos. – Ele me olhou novamente. – Agora, isso é importante. Se um dia você precisar me dizer alguma coisa e não possa fazer isso na sua base principal porque é muito arriscado ou não está sozinho, você sempre pode saltar um dia ou dois e eu vou te ensinar um jeito de nos comunicarmos sem que ninguém mais entenda. Então você pode saltar pra frente e usar isso.    

– Do que você está falando? Não pode me dizer agora?    

Ele balançou a cabeça.

– É uma coisa que nem a CIA será capaz de decifrar e eu não posso correr o risco de contar a você na base principal, quando ela realmente trará consequências.    

Eu assenti e enfiei o diário na minha mochila.    

– Agora vou pra casa deixar você pôr em prática seus planos para a tarde.    

– Se quiser vir comigo, tudo bem. Sério, tenho certeza de que a Holly não vai se importar.  

– Não, espero até amanhã para vê-la.          

 

Fiquei realmente surpreso quando voltei para o meu computador de casa e vi que Holly tinha me enviado uma mensagem. Achei que ela ia dar um tempo, mesmo que estivesse interessada. Holly tinha mais paciência do que qualquer garota que eu conhecia. Isso era extremamente irritante às vezes.

 

Holly: Ouvi dizer que você começou a andar com meu amigo Adam. Você também é um gênio da ciência?    

Eu: Eu até que gostaria de ser um gênio da ciência. Mas não sou tão esperto assim. Só tento parecer que sou.    

Holly: Então, basicamente, você é um impostor.    

Eu: É, mas estou tentando não ser. Talvez até procure um grupo de apoio.    

Holly: Qual é a sua maior fraqueza?    

Eu: Um filé. Eu morro por um bife suculento, com aquela gordurinha crocante nas bordas.    

Holly: LOL! Eca! Mas não foi isso o que eu quis dizer. Que tipo de babaquice você costuma dizer pras pessoas?    

Eu: Você tem um jeito tão delicado de se expressar..., mas sou obrigado a dizer que é citar sonetos de Shakespeare em francês para impressionar uma garota. Preciso de terapia para melhorar nisso também. Mas geralmente funciona.    

Holly: Hum... adoraria dizer que eu não me impressionaria, mas acho que não seria verdade. Claro que agora você arruinou a surpresa.    

Eu: Sem dúvida.    

Holly: Adam acabou de chegar. Hora de estudar para a prova de cálculo. Até mais tarde.

 

Veja só. Esse foi o começo da sinceridade e um pouquinho de mim exposto. Não foi tão ruim. Ainda. Caí no sono no sofá, anotando todos os momentos com a Holly 009 que eu consegui lembrar. Só para o caso de esquecer. Havia muitos que eu nunca tinha me preocupado em registrar. Sempre achei que haveria tempo para isso.            

Quando acordei, estava escuro e eu tinha dormido a maior parte do dia. Passei quase uma hora ocupado, fazendo algumas coisas, enquanto tentava decidir se seria uma má ideia ligar ou escrever para Holly novamente. Justo quando eu estava pronto para ceder e mandar para ela uma notinha rápida, vi que ela já tinha me enviado um e-mail. Será que a Holly de 17 anos era um pouquinho menos paciente?

 

Holly: Sei que é uma idiotice te mandar outro e-mail apenas seis horas depois do primeiro, mas só queria saber se você teria algumas dicas boas para quem está estudando para os SATs.            

 

Eu abri a janela do bate-papo em vez de responder por e-mail.            

 

Eu: Sim, tenho várias. Mas o que eu ganho com isso?    

Holly: O que você quer?    

Eu: Posso ligar pra você agora?    

Holly: Por que não tenta e vê se eu atendo?

 

Eu deveria saber que ela diria aquilo. Deitei na cama e apaguei o abajur antes de discar o número dela.    

– Oi! – ela disse.    

– Oi!    

– Então...    

– Então... me diga algo interessante sobre o mundo do ensino médio. Parece que faz uma eternidade que estive lá.    

Mais uma vez uma afirmação verdadeira. Até agora, eu estava indo bem.    

– Bem... estou fazendo um novo projeto de inglês e é bem legal. Temos um diário de letras de música que representam nosso humor ao longo do dia, durante uma semana inteira.    

– Qual a sua música agora?    

– “Vacations” das Go-Go’s. Conhece? – ela perguntou.    

Cantei o primeiro verso.    

– Parece que não consigo tirar você da cabeça...    

– É meio brega?    

– Não, eu adoro.    

– Me diga a sua.    

O tom de voz dela relaxou e eu fechei os olhos, e a imaginei enrolada no seu cobertor branco, com a cabeça numa almofada fofa azul-clara.    

– Hum... “All Mixed Up”.    

– Nunca ouvi.

– É de uma banda chamada 311.    

– Você sabe um bocado sobre música, hein?    

– É, sou um gênio da música.    

– Gosto de umas meio esquisitas. Algumas tenho até vergonha de dizer que gosto.    

– Como o quê?    

– Tem aquela do Billy Joel chamada “Don’t Ask Me Why”.    

Cantei o primeiro verso pelo telefone.    

– Não acredito que você conhece essa música!    

– Sei tocar no violão.    

– Ah, para com isso!  

– Sério. Mostro pra você um dia desses.    

– Legal.    

Tudo bem, menti um pouco a respeito de música, mas não pude resistir, porque eu sabia que era a preferida dela e eu já tinha até tocado essa música no violão para impressionar a Holly 009.    

Fui dormir aquela noite me sentindo mais como eu mesmo do que me sentia há um bom tempo. Deixei Adam ocupar seu cérebro muito mais desenvolvido com as novas informações e fiz o que ele disse, fingindo que acreditava no meu pai. Por hora, eu estava preso naquele estranho purgatório, esperando que algo ou alguém me dissesse o que fazer.

 

Domingo, 7 de outubro de 2007.

Sei que não devia fazer viagens no tempo por um período. Considerando que ainda me sinto podre mesmo depois de passados vários dias desde o último salto, as ordens de Adam precisavam ser obedecidas. Mas esta manhã, acordei pensando em Courtney... coisas que eu gostaria de consertar... como o sétimo ano. Como não éramos apenas irmãos, mas também colegas de classe, eu sabia tudo o que se passava com ela. Muita coisa eu não queria saber.    

Como seu problema digestivo de fundo emocional. Sempre que ela tinha uma prova ou uma audição para uma banda, tinha diarreia e gases. Eu a via correr para o banheiro e sabia exatamente por quê. Eu não pensava muito nisso e nunca comentei a respeito até o dia em que meu melhor amigo, que tinha uma quedinha óbvia e não correspondida por Courtney, a viu sair correndo da quadra um pouco antes da sua apresentação na Feira de Ciências. Ele me perguntou se ela estava doente e, sem nem pensar, eu despejei: “Não. Só não gosta de ‘soltar gases’ na frente das pessoas”.

Assim que vi meu amigo dando uma risadinha maliciosa, percebi o que tinha feito e pensei em dizer que era mentira. Ou retirar o que disse. Mas não fiz isso. Só ri com ele e por várias semanas Courtney teve que ouvir todo mundo chamando-a de “Cagona”. Foi horrível.    

É difícil acreditar que, depois de tudo o que aconteceu com ela e comigo, uma piadinha idiota sobre gases na escola estava fazendo eu me sentir o cara mais insensível do mundo. Mas a pior parte é que eu nunca disse a ela que fui eu quem começou aquilo tudo sem querer. Nunca conversamos a respeito. Quase como se ela soubesse que eu não era corajoso o suficiente para defender minha irmã dos meus amigos. Como se ela entendesse. Mas ela não devia entender e eu não devia ter sido tão covarde.

 

Tentei colocar a chave na fechadura da porta da academia, mas tudo girava à minha volta e eu não consegui. Depois de algumas semanas de descanso na minha base principal, desobedeci às regras de Adam e passei algumas horas em 2003 com minha irmã. Agora eu estava pagando por isso. Tinha planejado ficar apenas alguns minutos, mas simplesmente não consegui ir embora. Adam também tinha prescrito exercícios físicos diários para me fortalecer no caso de eu sentir os efeitos colaterais das viagens. Eu provavelmente pus a perder as três semanas de corrida e de dieta para ganhar peso na minha excursão de quatro horas. Pelo menos era o que eu sentia.     A porta pareceu abrir sozinha e eu cambaleei para dentro, enquanto ouvia uma voz conhecida.    

– Jackson, o que você tem, cara? – perguntou Toby.    

– Está tudo bem? Você está tão... pálido. – A voz de Holly parecia vir de longe.    

Os dois rostos giraram na minha frente e eu simplesmente fechei os olhos e desabei no chão.

 

– Você tem outros sapatos pra ir pra casa? – ouvi Toby perguntando.    

– Não, mas posso dirigir descalça – Holly respondeu.    

Comecei a abrir os olhos, vi os armários cinza do vestiário dos funcionários e percebi que estava deitando no sofá.    

– Olha, ele está acordando. Ressaca, cara? – Toby perguntou.    

– Não tem bafo de quem está de ressaca. Deve ser essa gripe que está no ar. Eu a peguei há algumas semanas e vomitei, tipo, a cada quinze minutos durante seis horas inteiras.    

– Já que está consciente agora, vou me mandar.    

– Vejo você mais tarde, Toby – disse Holly.    

Senti um pano molhado na minha testa.    

– Que ano é?    

Holly riu e se sentou ao meu lado no sofá.    

– Você quer dizer que horas são?

– É, isso também.    

– Cinco da tarde.    

Tentei me sentar, mas ela me empurrou de volta para o sofá.    

– Não se levante ainda. Você só vai cair outra vez e eu não sou tão forte quanto Toby.    

– Tenho que fazer meu trabalho.    

– A gente já cuidou disso.    

– Sério? Ei, vocês não tinham que fazer isso...    

– Você devia ter ligado e dito que estava doente.    

Não, eu devia ter deixado a viagem no tempo para quando estivesse de folga.    

– É, acho que sim. Como eu vim parar aqui?    

Holly sorriu e arrumou o pano da minha testa.    

– Bem, você desabou em cima do Toby e ele pegou você antes que batesse a cabeça no chão. Então ele te levantou e você vomitou nos meus sapatos.    

Eu cobri o rosto e gemi.    

– Foi mal.    

– Deixa pra lá. Como eu disse, já fiz a mesma coisa. Com todas essas crianças da academia espalhando vírus por aí, você estava sujeito a pegar um.    

– Ainda bem que vocês estavam aqui. Senão eu teria desmaiado na porta. E provavelmente ficado com um grande galo na cabeça.

Ela riu e passou os dedos pelo meu braço. Um toquezinho dela e eu ficava arrepiado. Três semanas trocando e-mails, a maioria falando sobre nada – piadas ou histórias sobre as “mães malucas da academia” com que Holly tinha que lidar –, mas não tínhamos nos visto fora do trabalho. Eu não tinha planejado exatamente isso, mas as palavras de Adam não saíam da minha cabeça e eu tinha medo de ficar sozinho com ela – e começar algo que fosse além da simples amizade com uma colega de trabalho. Além disso, a Holly 007 tinha apenas 17 anos. Em 2009, eu nunca, de jeito nenhum, pensaria em sair com uma garota de 17 anos.    

Ela passou os dedos pela minha cicatriz.    

– O que aconteceu?    

– Caí de uma árvore quando tinha 6 anos. – Estendi a mão para tocá-la sob o queixo. – E você? Como conseguiu essa cicatriz?    

– Saltando de paraquedas do balcão da cozinha. Oito pontos. – Ela pegou meus dedos e segurou-os. – Suas mãos estão geladas.    

O olhar dela era intenso. Eu conhecia aquele olhar e, por mais que eu quisesse que ela me olhasse daquele jeito, eu não tinha certeza se ela deveria.

– Você provavelmente já está pronta pra ir pra casa.    

– É, minha última festa já terminou há uma hora. Mas e você? Vai ficar bem?    

– Vou ligar pro Adam. Ele me dá uma carona.    

– Eu posso te levar pra casa. Onde você mora?    

Bem longe daqui.    

– Não precisa. Adam e eu já tínhamos combinado de nos encontrar.     Tirei o celular do bolso para ligar para ele. Holly pegou as coisas dela e se sentou ao meu lado outra vez. Então ela fez algo que me deixou completamente chocado. Tirou o pano molhado da minha testa e se inclinou para a frente, apenas roçando os lábios na minha testa.    

– Você não tem febre. Isso é bom sinal.    

Eu não sei se foi só um gesto de amizade, mas não me importei. Meus braços a envolveram. Aninhei a cabeça em seus cabelos e a abracei forte.     Ela virou a cabeça e eu senti seu hálito em meu pescoço. Então ela riu baixinho e disse:

– O que está fazendo?    

Eu afastei os braços e me reclinei no sofá outra vez.    

– Só agradecendo. Nada mais. Minha família gosta de abraços.    

Ela ficou de pé e sorriu.    

– De nada. E espero que você melhore.    

Holly caminhou até a porta com um passo hesitante, como se estivesse meio zonza ou sem equilíbrio. Adam apareceu alguns minutos depois com um Gatorade na mão.    

– Não acredito que você fez isso sem mim!    

Eu peguei o Gatorade da mão dele e o destampei.    

– Foi mal. Só se passaram algumas semanas e eu tive um momento de fraqueza. Obviamente estou sofrendo as consequências agora.    

Ele fez um gesto com a mão na minha frente.    

– Esqueça. Eu bolei um plano incrível. Bom, é mais uma oportunidade para ir atrás daqueles registros médicos. E, se não funcionar... talvez pelo menos você consiga alguma informação com a pessoa que está fazendo todas as anotações na sua ficha.

– Isso requer um salto no tempo? Porque eu estou meio detonado.    

– E de quem é a culpa? Mas, não, nada de saltos por hora. No entanto, você vai ter que deixar seu pai saber do seu emprego secreto, supondo que o pessoal da CIA não tenha vigiado você esse tempo todo. Ele provavelmente vai se sentar e prestar atenção se você mencionar certos sintomas.    

Eu sabia exatamente onde ele queria chegar com aquilo e estava satisfeito ao ver que ele estava evitando mencionar a questão diretamente. Principalmente depois de eu ter acabado de passar várias horas com Courtney. Ele queria que eu fingisse que estava com alguns sintomas de câncer no cérebro. Algo que realmente tinha assustado meu pai nos últimos anos.    

– Ok, qual é o plano?

 

Meu pai estava sozinho quando chegou apressado à academia e Adam o recebeu na porta.    

– Ele simplesmente desmaiou e disse que a cabeça estava doendo muito – explicou Adam.    

Eu estava deitado no sofá, com os olhos meio fechados.    

– Pai, é você?    

– Sou eu, Jackson. Vamos indo. Já liguei para o dr. Melvin. Ele está nos esperando no consultório.    

– Sério? Num domingo? – murmurei enquanto Adam me ajudava a levantar do sofá.    

– Você é um paciente especial – explicou meu pai.    

De costas para o meu pai, Adam ergueu uma sobrancelha para mim, como se dissesse, “Eu disse que tinha algo importante naqueles registros”.     Eu fiquei ligeiramente chocado quando descobri que meu pai tinha ido até a academia dirigindo, ele mesmo, meu BMW M6. Com sorte, eu não vomitaria todo o Gatorade dentro dele. Afivelei o cinto de segurança e ele arrancou a toda velocidade.    

– Não acha que devia ir mais devagar?

– Não se preocupe. Tenho muitos amigos na polícia de New Jersey.    

Sim, tenho certeza que tem, agente Meyer.    

– Vamos discutir sobre esse seu novo emprego mais tarde. Deve ser por isso que abandonou a escola, presumo.    

– Achei que íamos discutir sobre isso mais tarde.    

Ele murmurou uma sequência de imprecações para si mesmo, antes de fazer uma curva fechada à direita, quase me fazendo voar pela janela.    

– É porque temos dinheiro? Você quer se sentir normal pra variar? – ele perguntou.    

– Na verdade, não. Só quero ter uma chance com uma garota que nunca sairia com um playboy de Manhattan.    

Ele me olhou de lado.    

– O quê?    

– Brincadeira, pai.

Ficamos em silêncio pelo resto do trajeto, em grande parte porque sua direção enlouquecida de agente secreto estava me deixando apavorado. Ele devia ter imunidade diplomática ou coisa assim. Ou sabia que podia deixar a polícia pra trás com um pé nas costas. Seria culpa de Adam se eu acabasse nos noticiários de TV, em alguma perseguição maluca com a polícia e helicópteros nos sobrevoando.    

Ele cantou pneu ao brecar na frente do hospital.    

– Espere lá dentro enquanto estaciono.    

Meu pai voltou em tempo recorde e fomos para o elevador. Ele balançava para a frente e para trás, sobre os saltos dos sapatos, enquanto eu apertava o botão do andar do dr. Melvin.    

– Achei que houvesse um andar abaixo do térreo. Não vejo nada assim no mapa. Sabe, andares subterrâneos...    

Eu estava fazendo isso há algumas semanas. Jogando pequenas iscas e testando as reações dele. Até agora, não tinha conseguido nada de útil. Ele era bom em ocultar coisas. Muito bom.    

– Não faço ideia. Você pode perguntar no balcão de informações se realmente precisar saber.

O médico barrigudo e de cabelos grisalhos rebeldes estava à nossa espera do lado de fora do elevador.    

– Como vai, Jackson?  

– Não muito bem, dr. Melvin.    

– Vamos direto fazer uma radiografia para ver o que está causando essas dores de cabeça... e os desmaios.    

A voz dele tinha o tom amigável de sempre, como um avô ou um tio favorito. Courtney e eu adorávamos vir vê-lo. Toda vez ganhávamos balas e presentes.    

– Eu preferia que você fizesse uma ressonância magnética de corpo inteiro – disse meu pai.    

– Tudo bem, podemos fazer isso.    

As máquinas da radiologia não eram nenhuma novidade para mim. Nem o túnel da ressonância me assustava mais. Deitei-me ali pacientemente enquanto a máquina emitia ruídos parecidos com batidas em intervalos regulares. Quando acabou, eu me vesti na sala de ressonância. Através do vidro, pude ver Melvin e meu pai na área de observação. Assim que vesti a camisa, vi Melvin deixar cair a prancheta que tinha na mão.

Meu pai a pegou do chão, a expressão carregada revelava preocupação. Virei a cabeça quando olharam na minha direção e depois esperei uns bons cinco minutos até Melvin finalmente entrar na sala e pedir que eu o acompanhasse à sala de exames. Um silêncio mortal pairava no ar. Muitos segredos que provavelmente não me contariam, mas, se eu conseguisse pelo menos algumas informações, o plano de Adam talvez valesse a pena.    

Eu me sentei na maca da sala de exames e observei enquanto Melvin mostrava as imagens da minha ressonância numa grande tela plana de computador.    

– Alguma coisa está errada. Vi vocês na sala de observação – eu disse.    

Melvin virou-se para mim e fingiu um sorriso.    

– Nada sério. Nenhum tumor nem contusões.    

– Então por que você parecia tão abalado?    

Meu pai andava de um lado para o outro, então parou para olhar as imagens.    

– Não sabemos muito bem o que está errado.

Melvin havia colocado o aparelho de pressão no meu braço e tinha um estetoscópio nos ouvidos.    

– A sua pressão está baixa e você está desidratado.    

– Por isso você ficou tão nervoso? – Eu queria respostas para todas as minhas perguntas (e as de Adam), mas no momento eles estavam realmente me assustando.    

Melvin enfiou o estetoscópio no bolso do avental e olhou de relance para o meu pai, que assentiu levemente.    

– Preciso fazer algumas perguntas antes de dar um diagnóstico.    

– Tudo bem – eu disse lentamente.    

Ele apontou para o canto direito da primeira imagem do meu cérebro.    

– Esta seção mostrou atividade durante a ressonância. Isso pode indicar... que talvez...    

– O quê? – perguntei, ansioso para ouvir o que ele tinha a dizer.    

– Bem, é incomum e pode explicar alguns dos seus sintomas.    

Como ficar preso dois anos no passado? Isso é considerado um sintoma médico?

– Incomum, tipo... diferente das outras imagens que você tem do meu cérebro?    

– É – respondeu meu pai.    

– Talvez seja porque estou mais velho. – Tipo... bem mais velho.    

– Você teve algum... lapso de memória? – Ele pareceu escolher aquelas três palavras com muito cuidado. – Por exemplo, acordar num lugar e não saber muito bem como chegou lá?    

– Ei, agora vocês estão me assustando.    

– E quanto à memória fotográfica? Você consegue se lembrar das páginas de um livro, palavra por palavra, ou talvez mapas ou direções? – Melvin perguntou.    

– Eu devia ser capaz de fazer isso?    

– É possível com a sua genética...    

Meu pai limpou a garganta ruidosamente.    

– Desculpe, quer dizer, é possível com essa seção do seu cérebro mostrando atividade – Melvin corrigiu.    

Seria bem legal se eu estivesse completamente calmo e conseguisse escolher com cuidado as palavras, mas isso simplesmente não era possível naquele momento.

– Que parte do meu cérebro é essa? Eu não sou um completo idiota. Estudei anatomia e fisiologia.    

– Quando? – ambos perguntaram.    

Opa, na faculdade.    

– Ah..., na verdade, foi mais um seminário. Um curso de um dia... quer dizer, só fiz para me safar de uma prova de álgebra...    

Meu pai se virou para me olhar e sua expressão era intensa.    

– Jackson... você... foi adotado. Courtney também, é claro. Desculpe nunca ter dito nada, mas nunca houve realmente uma razão para isso. Até agora.    

Fingir esse tipo de choque não era nada fácil e eu tinha quase certeza de que ele havia jogado essa bomba só para distrair minha atenção do pequeno deslize de Melvin quanto à minha genética. Ele era realmente bom nessa história de ocultar coisas e provavelmente saberia que eu estava mentindo. Decidi seguir outro curso de ação, em vez de fingir que estava chocado.    

– Hã... bem, pai... eu meio que desconfiava disso há muito tempo.    

– Desconfiava? – perguntou Melvin.    

– Bem... não nos parecemos nem um pouco e... – Eu não conseguia pensar numa boa desculpa porque outra questão dominava os meus pensamentos. – Então, aquela história sobre minha mãe ter morrido quando nascemos... nem é verdade?

Meu pai balançou a cabeça.    

– Não exatamente. Desculpe nunca ter contado.    

Nesse momento eu me sentia como se tivesse retrocedido ainda mais. Eu já sabia que meu pai não era meu pai e, agora, pelo que parecia, eu na verdade sabia menos sobre a minha mãe do que pensava.    

Melvin sentou-se ao meu lado na maca e passou o braço pelos meus ombros como se eu fosse uma criancinha ressentida. Quase esperei que ele abrisse sua gaveta de pirulitos e me desse um.    

– Jackson, o que você precisa entender é que... não temos o histórico da sua família. Como médico, eu preciso me basear no histórico dos membros da família quando faço um diagnóstico.    

Ouvir Melvin dizer em voz alta que eu não tinha uma família de verdade foi duro. Será que havia no mundo alguém que pudesse fazer o que eu fazia? Ou será que eu era algum mutante maluco, encontrado na beira da estrada?    

– Então... você acha que meus pais, seja lá quem forem, tinham essa mesma atividade cerebral estranha que eu tenho?    

– Não exatamente como você, mas algo parecido.    

Para minha surpresa, meu pai saiu um pouco da sua postura reservada e olhou para Melvin; então disse:

– Não, ele não é nem um pouco como os outros. Eu tenho dito isso há anos.    

Ele saiu pela porta e bateu-a atrás dele com estrondo. Melvin ficou olhando na direção da porta por um minuto e depois voltou para mim os olhos arregalados.    

– Ele conhece meus verdadeiros pais? – perguntei.    

Melvin negou com a cabeça.    

– Só está aborrecido por causa... da sua irmã. Foi culpa minha trazer à tona lembranças tão tristes. O câncer dela foi muito agressivo e raro e, com seus verdadeiros pais mortos, nenhum histórico familiar, a possibilidade de você ter o mesmo gene do câncer não pode ser ignorada.    

Que história perfeita. Pena que algo estava faltando. Se o pessoal do subterrâneo me conhecia, meu pai e Melvin não se encaixavam em nenhuma parte do roteiro que estavam querendo me fazer engolir. O que os dois tinham acabado de fazer era algo que eu mesmo já tinha feito muitas vezes. Por exemplo, quando eu era acusado de fazer algo realmente ruim na escola ou em casa, eu admitia um crime menor para desviar a atenção da acusação original. Sempre funcionava, como num passe de mágica.    

– Meus pais biológicos estão mortos?    

O dr. Melvin assentiu com veemência.

– Estão, sinto muito. Não temos nenhuma outra informação que não seja o fato de que já são falecidos.    

– Mas quando... quando eles morreram? Logo depois que eu e Courtney nascemos? Há quanto tempo fomos adotados? Chegamos a morar com eles? – Eu o crivava de perguntas, incapaz de me reprimir.    

O dr. Melvin olhou nervosamente para a porta outra vez, não sei se esperando que meu pai voltasse ou torcendo para que ele se demorasse mais, para que pudesse me dizer alguma coisa. Por fim, respirou fundo e disse:    

– Tudo o que eu sei é que vocês moram com seu pai desde que tinham 11 meses de idade.    

Onze meses. Então, por quase um ano da minha vida, o primeiro ano da minha vida, outra pessoa me criou. Aquilo não mudava nada na verdade, mas era como se pudesse mudar.    

Minha cabeça girava com milhões de perguntas e de repente tive que me deitar.    

– Não estou me sentindo muito bem.    

Melvin encheu um cálice com água e me deu.

– Nenhum pirulito?    

Ele sorriu e tirou um pirulito vermelho da gaveta.    

– Por que não descansa aqui um pouco enquanto eu converso com seu pai?    

– Claro.    

No segundo em que ele fechou a porta, peguei meu celular e comecei a mandar uma mensagem de texto para Adam.

 

Mais tarde, quando meu pai e eu voltávamos para casa, suas defesas já estavam de volta e ele se desculpava.    

– Eu lamento que o fato de serem adotados tenha vindo à tona desse jeito. Eu reagi exageradamente. O dr. Melvin às vezes vai fundo demais nos detalhes científicos, acho que ele esquece que está lidando com pessoas de verdade. De qualquer maneira, foi mais por causa da sua irmã do que de você.    

– Sempre é – eu disse, sem perceber o quanto eu tinha falado como meu eu de 17 anos.    

Ele me lançou um olhar longo e penetrante antes de sair do carro e passar as chaves para Henry.    

– Tem razão, Jackson. Courtney pode ter partido, mas você não. Às vezes é difícil pra mim começar de onde paramos sem sentir essa dor. Mas eu vou tentar com mais empenho. Prometo.    

Essa seria outra tática? Fingir essa compreensão toda só para eu parar de fazer perguntas e confiar no homem que mentiu para mim a vida inteira?    

– Tudo bem, pai.

– Então me conte sobre essa garota que você está tentando impressionar. Tenho quase certeza de que você não está mentindo sobre isso.     A segurança de Holly e a mensagem de Adam sobre não querer que ela fosse envolvida naquela confusão toda passaram pela minha cabeça, monopolizando meus pensamentos. Passei pela porta a passos largos, dando as costas para o meu pai.    

– Você não ia gostar dela, pode acreditar. E, não é nada, na verdade. Eu só gosto de ter um emprego.    

– Se é o que diz...    

Em outras palavras, ele não acreditou.    

Meu telefone tocou e era Adam, claro. Fui para o meu quarto e fechei a porta antes de atender.    

– Ei, e aí?    

Passei a ele todas as informações sobre a atitude compreensiva do meu pai.    

– Você pode entrar nesse joguinho também, Jackson. Faça com que ele se sinta culpado pelo que está escondendo, seja isso o que for.    

– É um plano inteligente. Quem sabe... isso faça ele abrir o bico.

– Tudo bem, me diga o que era tão importante que fez você quebrar a única regra que eu te dei.    

Eu não estava exatamente envergonhado de querer visitar Courtney, mas sabia que era errado por vários motivos e não quis entrar em detalhes com Adam.    

– Em primeiro lugar, você me deu muito mais do que uma única regra. E, segundo, não foi nada importante, na verdade. Só uma breve visita a uma pessoa; depois perdi a noção do tempo.    

Ele gemeu no telefone.    

– Sério, você precisa ser mais responsável. Só não deixe acontecer     de novo. Vou digitar uma nova lista de teorias com base nas informações de hoje.    

– Tudo bem.    

– Ah... e Holly perguntou como você está – ele disse, enquanto eu o ouvia digitando em ritmo veloz. – Ela ligou faz mais ou menos uma hora e mais uma vez há cinco minutos.    

Por alguns segundos, toda a questão da minha vida maluca e confusa se dissipou e era só eu, Jackson Meyer. Um cara normal, orgulhoso porque a garota de que ele gostava talvez estivesse de fato interessada nele. Embora eu quisesse ter cuidado com Holly, sem me aproximar demais, ainda assim era bom ouvir aquilo. Me deixou feliz... e no momento aquilo não era tarefa fácil.

 

                   SEXTA-FEIRA, 12 DE OUTUBRO DE 2007, 10:00.

Uma multidão passava por mim enquanto eu esperava em frente aos vitrais do Metropolitan Museum of Art. Estava começando a ficar mais do que ligeiramente irritado com Adam. Afinal de contas, ele tinha me acordado com uma mensagem de texto às três da manhã dizendo, “Me encontre no Met às 9:30 da manhã... Grande Experimento de Física... Supersecreto... Ordem dos Aficionados em Ciência!”    

– Sabe o quanto é difícil achar você quando está usando boné?    

Eu dei meia-volta e fiquei frente a frente com alguém que definitivamente não era Adam.    

– Holly? O que está fazendo aqui?    

– Trabalho de campo – ela disse com um sorriso, e em seguida seus olhos varreram o imenso espaço aberto. – Mas estou fugindo, e você é meu cúmplice.    

Eu devia estar com uma expressão totalmente confusa, porque ela riu.    

– Eu não posso... vim encontrar Adam.    

Holly balançou a cabeça.    

– Adam a esta hora deve estar tirando um cochilo na aula de trigonometria.

– Eu disse a ela que ia dormir na casa da Jana. Além disso, estávamos apenas estudando. E minha mãe nunca me deixaria vir a Nova York sozinha. Esta é minha única chance. Você está a fim ou não?    

Eu a vi se dirigindo para a saída e sorri.    

– Estou.    

Ela olhou para mim por sobre o ombro e sorriu outra vez.    

– Eu tinha certeza que você ia perceber que a mensagem era minha.    

Eu ri.    

– A parte do “ordem dos aficionados em ciências” me deixou intrigado... mas achei que ele estava bêbado.    

Holly girou o corpo para me olhar de frente, andando de costas pela calçada.    

– Isso é tão irado! Nem posso acreditar que consegui. Toby está me cobrindo na academia e o sr. Orman nem vai voltar conosco no ônibus. Tenho praticamente o dia inteiro.    

– Você deveria ser espiã ou detetive – brinquei.    

Ela suspirou.

– Bem que eu queria. Mas minhas habilidades em língua estrangeira precisariam melhorar se eu quiser entrar para o mundo da espionagem.     Contornamos o museu e passamos sob a ponte que leva ao Central Park. Eu tirei a mochila do ombro dela e atirei-a sobre o meu.    

– Esta mochila está um chumbo. O que você carrega aqui?    

– Uma manta e três livros... só para o caso de eu decidir me deitar ao sol e ler durante algumas horas. Ah! E um monte de petiscos.    

– Parece que você realmente planejou isso. Como consegui o papel de cúmplice?    

Ela riu, mas manteve os olhos nas árvores à nossa frente.    

– Bem... achei que, se ia mesmo arrastar alguém comigo, então seria melhor escolher alguém que não estaria matando aula.    

– Ah... então não foi o meu estilo bad boy rebelde?    

Ela me lançou um sorriso.    

– Isso também, claro.    

Descobrimos um lugar perfeito no gramado perto de um parquinho. Holly abriu a manta no chão, bem ao lado dos balanços.    

– Eu tinha um balanço como esse no meu quintal, mas raramente usava como balanço.    

– Você usava pra quê?

– Olha só. – Ela escalou a barra lateral de metal vermelho e balançou o corpo até chegar ao outro lado da barra superior. Então ergueu o queixo acima da barra e ficou de cabeça para baixo. E de repente a cabeça dela estava acima da barra e as pernas, balançando embaixo.    

– Legal! Vou tentar também.    

– Vai lá.    

Eu dei um impulso assim como ela fez e então virei o corpo por sobre a trave.    

– Não foi tão ruim quanto eu pensei.    

– Você é muito bom. Devia deixar Toby te ensinar algumas manobras nas barras.    

Eu pulei na grama e esperei que Holly fizesse o mesmo. Em vez disso, ela balançou uma perna e colocou-a sobre a barra de cima do balanço e ficou em pé na barra.    

– Holly, não acho que você devia...    

– Relaxe, faço isso desde os 5 anos. – Ela se virou com facilidade e começou a andar pela barra do balanço, os dedos dos pés agarrando-se à barra. Tudo o que eu conseguia pensar era na cabeça dela batendo no chão duro.    

– Ei, você está me deixando apavorado. Será que pode descer, por favor? – supliquei.

– A primeira vez que fiz isso, a minha mãe estava na cozinha, lavando louça. Quando ela olhou pela janela e me viu, correu para fora, gritando para eu descer. Eu desci, mas passei a noite de castigo. – Ela voltou a se pendurar na barra e balançou o corpo algumas vezes, depois deu uma cambalhota no ar e aterrissou no chão suavemente.    

Soltei um suspiro de alívio e ela achou graça.    

– Você quase me fez ter um ataque do coração. Parecia um macaco da selva. – Ela se aproximou e, tão logo chegou perto o suficiente peguei sua mão e puxei-a para a manta.    

– Sente-se, por favor.    

Ela revirou os olhos, mas se sentou mesmo assim. Eu me estiquei sobre a manta e fiquei olhando as nuvens através das árvores. Holly se deitou ao meu lado.    

– Está se sentindo melhor? – perguntou. – Essas viroses são um saco.    

– Estou sim, muito melhor. Mas fiquei bem mal aquele dia. – Virei-me de lado para olhá-la. – Posso perguntar uma coisa?    

– Pode.

– O que você faria se tivesse uma segunda chance de viver um momento? Tipo... uma ocasião em que fez algo muito ruim ou talvez só para reviver uma lembrança boa. O que você faria?    

Ela virou o rosto para mim.    

– De onde você tirou isso? É uma pergunta muito vaga, por isso é difícil responder.    

Eu me apoiei num cotovelo.    

– Eu tive esse sonho uma noite dessas. Era sobre um dia em que fui um babaca com a minha irmã.    

– O que você fez?    

– Contei a um amigo uma história embaraçosa sobre ela e ele contou pra escola toda. Acho que tínhamos uns 12 anos e eu queria impressionar os caras.    

– Que tipo de história embaraçosa? Era, tipo, algo como... contar que ela molhou a cama quando tinha 3 anos... isso não é grande coisa.    

Eu franzi o nariz.    

– Era algo que envolvia gases e era bem recente... tinha acontecido alguns dias antes.    

Holly cobriu a boca.    

– Puxa! Isso é bem ruim.    

Eu sorri para ela.    

– Eu sei. De qualquer maneira, no meu sonho, eu estava lá como estou aqui agora, nesta idade. Eu sabia que poderia ter evitado que aquilo acontecesse, mas na época não fiz nada, nem no dia, nem no dia seguinte.

– A sua irmã não sabia que você tinha se arrependido?    

– Não.    

– Mas você tinha se arrependido?    

– Tinha.    

Holly ficou em silêncio por um minuto antes de responder.    

– Acho que existe uma certa nobreza em querer consertar as coisas.    

– Eu não consertei de verdade.    

– Mas fazer a coisa certa é difícil às vezes. Quanto mais prática você tem, mais fácil fica. Mesmo que tenha sido só um sonho.    

Eu me deitei de costas outra vez.    

– Acho que você pode estar certa.    

Ela se aconchegou mais a mim, mas depois começou a torcer as mãos como se estivesse nervosa.    

Eu continuei fitando as nuvens, mas estiquei o braço e afastei as mãos dela uma da outra. Coloquei uma entre nós e deixei a minha bem perto da dela. Segundos depois, os dedos dela roçaram a palma da minha mão. Eu os apertei e fechei os olhos.    

– Hol?      

– Hum?    

– Relaxa, tá? Só estar aqui com você... é mais do que o suficiente. Não tenho outros planos.    

E era verdade. Meu polegar fez pequenos círculos nas costas da mão dela enquanto eu respirava o aroma de folhas de outono no ar, combinado com madeira queimada.

– Você é tão diferente do que eu pensava... – ela disse baixinho.    

Eu sorri para mim mesmo.    

– Você é exatamente como eu pensava.    

Ela encostou a cabeça em meu ombro. Eu senti seus lábios tocando meu rosto e um calor se espalhou pelo meu corpo todo. Eu estiquei a outra mão dela e pousei a palma em sua bochecha. Podia ficar assim para sempre. Não importava em que ano estivesse.    

Foi como na primeira vez em que dormimos juntos (claro, isso foi com a Holly 009, quando ela já era maior de idade). Eu já tinha essas ideias malucas na cabeça bem antes que acontecesse, alguns planos bem ousados. Mas o que eu me lembro de ter gostado mais não teve nada a ver com o acontecimento principal.    

Era meados de julho de 2009. Alguns dias depois de sermos flagrados no quarto por meu pai.    

Por fim, ficamos sozinhos no meu apartamento. Com a porta do quarto trancada. A música perfeita tocando. Nada nos impedindo de fazer o que quiséssemos.    

Holly tirou o vestido pela cabeça, depois rastejou pela cama de joelhos. Eu toquei o elástico da calcinha rosa dela e comecei a tirá-la. Minha boca seguiu minhas mãos.

Os dedos dela corriam pelos meus cabelos e, então, ela sussurrou:    

– Eu nunca fiz isso antes.    

Meus lábios congelaram um pouco acima dos seus quadris. Havia muitas maneiras de interpretar o que ela disse.    

– Nunca fez o quê?    

– Sexo.    

Não era o que eu esperava ouvir. Acho que, em nenhuma das minhas fantasias, imaginei que Holly fosse virgem. Ajoelhei-me na cama e olhei nos olhos dela.    

– Nunca?    

Ela balançou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.    

– Eu devia ter dito antes.    

– Holly, tudo bem. Não temos que...    

– Não, eu quero... – Ela baixou os braços e se virou de costas, o rosto contra o travesseiro. – Não acredito que acabei de dizer isso.    

Eu me deitei ao lado dela, e pousei a mão em suas costas.    

– Tudo bem.    

– Se eu te contar uma coisa, você promete que não vai rir de mim?    

Eu ergui minha mão direita.    

– Palavra de escoteiro.

Ela sorriu e então se sentou na cama, com as pernas cruzadas.    

– Eu quase fiz, uma vez. David e eu tínhamos esse grande plano, tipo, nos livrarmos do Grande V na noite do baile de formatura.    

Eu tentei não sorrir e Holly revirou os olhos.    

– Eu sei, não é muito original. De qualquer maneira, reservamos um quarto de hotel e tudo mais, mas David teve um probleminha e rasgou todas as camisinhas que tinha trazido.    

– Achei que você tinha dito que nunca...    

– Não, ele rasgou antes até de eu tirar a roupa. Vou poupar você dos detalhes.    

Eu ri alto, mas fechei a boca, quando ela ficou me encarando.    

– Enfim, decidimos ir até a farmácia e comprar outra caixa de camisinhas.    

– Maiores, dessa vez.    

Ela riu e concordou.

– O tempo todo em que ficamos na farmácia, nós dois ficamos vigiando os corredores, para ter certeza de que não víamos ninguém que conhecíamos. Mas, quando chegamos no caixa para pagar, David percebeu que estava sem a carteira. Eu não tinha levado a minha bolsa, por isso tivemos que pedir à moça que cancelasse a venda. Mas ela foi até o microfone e chamou o gerente. A essa altura, eu e David só queríamos dar o fora dali, enquanto ela tentava convencer o gerente a nos dar as camisinhas de graça.    

Eu caí na risada e Holly se juntou a mim.    

– Tudo bem, e aí? O que aconteceu?    

– Eu simplesmente disse, “Não precisa, obrigada” e arrastei David dali e disse a ele que aquele era um sinal de que não deveríamos fazer aquilo. Pelo menos não naquela noite.    

– Então, vocês voltaram e riram da coisa toda.    

Ela voltou a se deitar ao meu lado.    

– Não, exatamente. O ego de David ficou meio ferido. Ele caiu no sono tão logo chegamos ao hotel, ou fingiu que dormiu para não conversarmos.    

– E nunca tentaram de novo?    

Ela balançou a cabeça.

– Não. E não porque ele se atrapalhou com a coisa toda da camisinha, mas mais porque aquela noite tudo o que eu pensava era... David é realmente o cara com quem eu quero ficar? E eu não tinha certeza daquilo e depois as dúvidas começaram a se acumular. Sabendo que íamos tomar caminhos tão diferentes, aquilo não parecia ser a coisa certa a fazer.    

Eu passei os braços pela cintura dela e puxei-a para mais perto.    

– Tudo é tão profundo com você, não é?    

Ela descansou a cabeça no meu peito.    

– Você é profundo também. Só não reconhece isso. E toda aquela literatura clássica que você lê escondido?    

– Aquilo era para a escola.    

– Mas foi você quem escolheu sua matéria básica. E, sabe, Jackson?    

– O quê?    

– Eu realmente quero fazer isso.    

Eu toquei seu ombro com os lábios e fechei os olhos, sem responder. Eu sabia que tinha sido difícil para ela admitir, mas eu também tinha as minhas preocupações.    

– Jackson?

Eu suspirei alto e então descansei a cabeça no travesseiro.    

– Talvez outro dia.    

– Que seja mais perfeito do que hoje? – Ela desfez seu abraço e começou a se afastar.    

– Eu só não quero machucar você – eu disse, num sussurro.    

A ideia de que ela podia não gostar estava me fazendo desistir da ideia. Eu não me lembrava da última vez em que tinha ficado com uma garota virgem, nem que fosse só para me divertir. Talvez nunca.    

Ela começou a beijar cada centímetro do meu corpo, enquanto eu estava absorto em pensamentos. Suas mãos estavam fazendo coisas que faziam meu cérebro perder toda a lógica. Eu gemi e cobri o rosto.    

– Holly, o que está fazendo?    

– Pense nisso da seguinte maneira, Jackson. Você está me dizendo que prefere que eu encontre outro cara? – A voz dela era descontraída e risonha.    

– Não.    

– Então você quer me trocar por uma garota mais fácil...    

– Claro que não.    

– Eu não vejo outra saída, então, a menos que seja a favor do celibato.    

– Claro que não sou.

Ela riu e então segurou meu rosto entre as mãos. Sua testa tocou a minha.    

– Eu quero que seja com você.    

– Por quê?    

Ela beijou meus lábios.    

– Porque... quero, ok?    

Eu tinha uma boa ideia do que ela quase disse. As três palavras que nenhum de nós dois tinha dito ainda.    

– Você tem que me dizer se eu te machucar. Você jura?    

Minhas mãos já estavam tremendo. Ela pegou uma delas e a colocou sobre o coração.    

– Eu juro.    

– Tudo bem.    

Ela me beijou no rosto.    

– Acho que nunca vi você tão nervoso.    

Eu estava nervoso. E nunca fiz nada tão devagar na minha vida. Ela caçoou de mim, dizendo que eu era especialista em pôr camisinhas, então eu contei que tinha praticado quando era mais novo, o que era verdade quando eu tinha, tipo, 14 anos. De algum modo, Holly e eu fizemos com que um momento delicado e assustador se tornasse incrivelmente divertido.

Quanto ao sexo propriamente dito, foi demais. Acho que principalmente porque Holly nunca finge. E ela tem esse jeito de fazer com que eu me sinta parte de algo importante. Como se estivéssemos sempre deixando uma lembrança para o futuro. Uma lembrança que nunca se apagaria. Quanto a mim, sou puro impulso. Seja o que for que eu me sinta levado a fazer, eu faço. Mas tenho a sensação de que Holly já tinha imaginado essa noite e a encenado na cabeça há muito tempo. O fato de ela estar disposta a me incluir era simplesmente bom demais.    

Fomos para o chuveiro juntos, mais tarde, e ela ficou na ponta dos pés e enroscou os braços no meu pescoço, me abraçando forte. Seu rosto estava enterrado em meu peito, a água correndo sobre nós, e eu achei que ela podia estar chorando, pelo jeito como escondeu o rosto. Mas eu fiquei com receio de perguntar. Ficamos desse jeito, abraçados, por um tempo. Então ela finalmente sussurrou:    

– Obrigada.    

Essa foi a primeira vez que eu pensei em dizer... eu te amo. Seria perfeito, se encaixaria de modo especial ao momento. Não seria exagerado. Mas minha língua travou e eu só pensei em dizer, porque não sabia se era verdade ou não. Então eu disse:    

– Sabia que você tem uma sarda na...    

Ela colocou a mão na minha boca.    

– Sabia.

Então começamos a rir de novo e foi esse o tom de toda a noite. Holly sentou-se no balcão da cozinha, enquanto ouvia minhas piadas e me observava fazendo ovos mexidos. Ela estava linda, embrulhada no meu roupão, com o cabelo molhado e as bochechas ainda rosadas.    

Pensando nisso agora, sinto que eu poderia ter eternizado aquele momento por semanas e me sentido completamente satisfeito. Talvez até por meses.    

Nada tinha acontecido da maneira mais correta. E, mesmo assim, tinha sido perfeito.            

 

Eu estava tão entretido nas minhas lembranças da Holly 009 que nem notei que a Holly 007 estava respirando profundamente e babando no meu moletom. Eu soltei a mão dela e passei o braço pelos seus ombros, trazendo-a mais para perto, de modo que sua cabeça não ficasse no chão duro. Ela se agitou por um instante e depois levantou a cabeça.    

– Cochilei, não foi?    

Eu sorri quando ela limpou a baba da boca com a manga da blusa.    

– A gente pode muito bem tirar um cochilo enquanto está matando aula, não pode? – eu disse.    

Ela se sentou ereta e suas bochechas ficaram vermelhas.

– Foi mal. Sou uma daquelas pessoas que conseguem dormir no meio do trânsito, com buzinas tocando e tudo mais.    

– Muita lição de casa à noite, aposto.    

– É, e estudando para os SATs. Vou fazer os exames daqui a algumas semanas.    

Eu me sentei na frente dela.    

– Eu não fui tão mal nos meus. Estou até disposto a ajudar você.    

– Defina “não fui tão mal”.    

– Fiz 1970.    

Ela ergueu as sobrancelhas.    

– Essa é uma pontuação muito boa, mesmo. Eu preciso de 1900 para entrar na NYU e queria fazer uma pontuação ainda mais alta para, quem sabe, ganhar uma bolsa de estudos.    

– Tenho certeza que você irá muito bem. Na verdade, tenho certeza absoluta.    

– Mas uma ajudinha extra não ia fazer mal – ela disse com um sorriso.

Ela começou a se inclinar para a frente como se fosse me beijar e eu senti vontade de mergulhar de cabeça, mas algo dentro de mim me deixou tenso. Algo que não tinha a ver com o aviso de Adam. Seria possível trair Holly com a própria Holly? Ela era muito jovem para beijar alguém da minha idade? Isso seria o mesmo que beijar a minha Holly?    

Fiquei com medo de tomar a iniciativa e beijá-la, então me levantei e estendi a mão para ela.    

– Vamos dar uma volta. Talvez isso faça você acordar.    

Ela se levantou do chão depois de jogar a manta na mochila.    

– Aonde vamos?    

Eu sorri quando ela não largou a minha mão. Na verdade, segurou-a ainda mais forte enquanto caminhávamos.    

– Você já esteve no Shakeaspeare’s Garden?    

– Não.    

– Não é longe daqui.    

Quando chegamos, Holly se aproximou da primeira placa para ler a inscrição e, quando fui até ela, um homem baixo, de cabelo ruivo, passou por mim e disse em voz baixa:

– Bom ver você outra vez, Jackson.    

Eu prendi a respiração, tentando me concentrar apesar do coração martelando no peito, enquanto ele virava o rosto devagar na minha direção. Era ele, com a mesma aparência de dois anos depois, quando invadiu o dormitório de Holly. Ele não parou. Afastou-se a passos largos e rápidos e, sem nem pensar a respeito, eu fui atrás dele.    

Instintivamente, procurei no bolso o meu canivete e segurei-o, firme, na mão. Sua caminhada rápida logo virou uma corrida lenta e eu corri atrás dele, sem dizer uma palavra enquanto o seguia para fora da trilha, na direção de uma parte diferente do parque, com muitas árvores.    

Minha pulsação acelerou, acompanhando o ritmo dos meus passos. Sem nenhuma indicação de que tinha notado minha presença atrás dele, ele parou bem na frente de uma árvore e ergueu as mãos no ar, como se estivesse se rendendo.    

– Eu estava esperando que me seguisse.

Eu dei mais um passo. Talvez fosse uma armadilha e ele tivesse uma arma melhor do que o meu velho canivete, mas eu estava furioso demais para me importar. Quando ele se virou, observei seu rosto atentamente e quase tive um ataque do coração quando vi um corte sobre o olho esquerdo, de onde um filete de sangue ainda escorria. E a marca vermelha. Uma marca de sapato. O sapato de Holly.    

A marca do sapato da Holly 009.    

Não poderia ser coincidência. Podia?    

– Como você... eu não...    

Minha voz falhou quando o homem sustentou meu olhar com uma expressão muito mais serena do que as minhas emoções tumultuadas me permitiam.      

– Jackson... o que está... fazendo? – Holly perguntou atrás de mim, com a voz entrecortada, provavelmente por ter corrido até ali.    

Olhei para ela rapidamente sobre o ombro e depois me voltei para o homem, tentando descobrir um jeito de formular minha pergunta.    

– Como você... chegou aqui? De onde veio?    

Ele ergueu as sobrancelhas e lentamente um sorriso se espalhou pelo seu rosto.    

– Interessante. Por que não me conta como você chegou aqui?

Eu queria desmanchar aquele sorrisinho com um soco, mas nesse momento Holly ofegou atrás de mim e me virei a tempo de ver uma mulher alta e loura apertando o pescoço de Holly com uma chave de braço.    

A cena me causou náuseas. Deus, isso não pode estar acontecendo outra vez. E de onde, afinal, tinha vindo aquela mulher?    

– Rena, pensei que chegaria aqui mais cedo – disse o homem, como se ela estivesse atrasada para um jantar ou para uma consulta ao dentista.    

– As coisas foram um pouco diferentes do que eu esperava – ela explicou.    

Meus olhos voaram de um para o outro e depois se fixaram em Holly. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas o pânico em seus olhos, enquanto ela se debatia para se livrar do aperto de Rena, era demais para mim. Ela chutou a mulher na tentativa de se libertar. Eu tinha que fazer alguma coisa.    

Saquei o canivete aberto no mesmo instante em que o homem atrás de mim gritou:    

– Cuidado, Rena!

Mas não era comigo que ele estava preocupado. Do nada, um homem saltou dos arbustos e aterrissou sobre as costas de Rena, agarrando-a do mesmo modo que ela agarrara Holly. De repente os olhos de Rena rolaram nas órbitas e ela desabou no chão, levando com ela sua vítima e seu atacante. Holly conseguiu se libertar e ficou de pé. Ela suspirou, aliviada, e depois se curvou para a frente, descansando as mãos nos joelhos.    

– Nem pense em tentar um dos seus truquezinhos – alertou uma voz feminina atrás de mim e de Holly.    

Nós dois nos viramos e fiquei boquiaberto ao ver a secretária do meu pai, a senhorita Stewart, executando um chute circular perfeito. Sua bota de salto alto golpeou o rosto do sujeito ruivo, fazendo-o desabar em meio aos arbustos. Placar? Calçados femininos da moda: 2. Homem ruivo: 0.    

Ela saiu correndo na direção dele.    

Eu me voltei para o outro lado. Holly correu para mim e meus braços imediatamente a envolveram. Ela parecia tão atônita e confusa quanto eu. Meu pai estava levantando do chão e eu rapidamente recuperei o raciocínio e percebi que era ele o homem que tinha acabado de salvar a vida de Holly. Entrara em ação com tamanha rapidez que eu mal vi seu rosto.

– Mas que merda é... – comecei a dizer ao meu pai, mas ele murmurou alguma coisa em outra língua com a boca próxima à manga da camisa.     Então pôs a mão sobre o ombro de Holly.    

– Você está bem?    

Os olhos dela estavam arregalados quando ela se afastou dele, dando um passo para trás. Uma mão ainda estava fechada sobre o peito, mas a outra ela enfiou no bolso e puxou dali o spray de pimenta que sempre carregava com ela.    

Meu pai levantou as mãos.    

– Não vou machucar você – ele disse.    

Eu não sabia mais em quem acreditar e tive o súbito impulso de arrancar o spray de pimenta da mão dela e esvaziá-lo na cara dele, só por precaução.    

– Você está bem, Jackson? – ele perguntou para mim.    

Olhei para a mulher caída no chão e depois para Holly, que parecia ter juntado as peças e chegado à conclusão de que eu conhecia aquelas pessoas e, portanto, estava envolvido. Ela levantou o spray de pimenta e apontou na minha direção.    

– Calma aí, Holly. Estou tão perdido quanto você – expliquei. Ela baixou o spray.

A senhorita Stewart voltou, ao lado de um homem mais ou menos da idade do meu pai.    

– O alvo escapou – disse o homem.    

– Ele não deve ter fugido correndo... Que vamos fazer se ele simplesmente... – começou a dizer a senhorita Stewart.    

Meu pai levantou a mão para silenciá-la e depois apertou o dedo no ouvido, ficando totalmente imóvel por uns dez segundos.    

– Cuide da nossa amiguinha loira que apagou – ele disse para o cara que tinha acabado de aparecer.    

O sujeito colocou a mulher sobre o ombro e se afastou.    

– Não se mexa, mocinha – meu pai disse para Holly, que estava se afastando também, numa tentativa de fuga.    

Mais lágrimas escorreram pelo seu rosto e ela pareceu mais assustada do que eu jamais tinha visto. Seus dedos se moveram sobre o teclado do celular.    

– Stewart, limpe a área. Nos encontramos no local combinado – meu pai disse à secretária. No segundo em que ela saiu de vista, ele tirou o celular e o spray de pimenta das mãos de Holly. – Tenho certeza de que você tem muitas perguntas sobre o que acabou de ver, mas não podemos discutir isso aqui, em público.

Meu pai colocou as mãos sobre os ombros dela e girou seu corpo, virando-a na direção de uma trilha que levava até a rua.    

– O que está fazendo? – perguntei a ele. Eu não queria que ele a tocasse.    

– Só garantindo que chegue em casa sã e salva. – Ele continuou a conduzi-la até a calçada. – Já causamos algazarra demais aqui e não quero que aconteça mais nenhum deslize.    

Ela cooperou por alguns segundos, depois pisou no pé dele com força e o golpeou bem na virilha com o cotovelo. Meu pai nem sequer estremeceu. Segurou-a ainda mais firme pelos ombros e a conduziu até um carro estacionado no meio-fio.    

– Por favor, me deixe ir e eu não vou... não vou dizer nada... por favor – ela implorou em voz baixa.    

– Prometo, ninguém vai machucar você – disse meu pai. Então ele tirou a carteira do bolso, abriu-a e mostrou um distintivo com sua foto e as letras CIA gravados ali. – Vou explicar tudo em um minuto.    

Chegamos ao longo carro preto e eu me perguntei se devia agarrar Holly e sair correndo com ela dali, mas era o nosso carro, com o nosso motorista, Cal, que tinha me levado ao Met, pela manhã.

– Ai, Deus – murmurou Holly quando meu pai abriu a porta. – Por favor, só me deixe ir embora.    

– Tudo vai ficar muito mais fácil se você cooperar – meu pai disse. – Confie em mim.    

– Por que ela tem que entrar no carro? – perguntei, desesperado.    

Ele me lançou um olhar penetrante, que basicamente me dizia para ficar quieto. Então fiz exatamente isso, porque não via outra saída.    

Os lábios de Holly tremeram um pouco, mas ela secou as lágrimas discretamente e entrou no carro. Os dois bancos de trás eram de frente um para o outro e meu pai se sentou em frente a Holly. Eu me sentei ao lado dela e o som do meu coração martelando no peito parecia duas vezes mais alto naquele espaço fechado.    

– Quem são vocês? – Holly conseguiu articular.    

Obviamente ela não tinha se deixado convencer pelo distintivo da CIA e parecia achar que meu pai e eu éramos membros da mesma quadrilha em vez de pai e filho.    

– Este é meu pai – eu disse a Holly.    

– Ok – ela disse, devagar.    

Ele hesitou um segundo, com os olhos nos meus.

– E de fato trabalho para a CIA.    

Holly balançou a cabeça e afundou no banco com um suspiro de derrota.    

– Isso está ficando cada vez mais assustador... vocês nunca vão me deixar ir, vão?... Vou morrer ou ser uma daquelas garotas desaparecidas de que ouvimos falar nos noticiários.    

– Pare – ordenou meu pai, apontando para a janela do carro. – Olhe onde estamos.    

Eu dei uma olhada pela janela ao mesmo tempo que Holly e vi que estávamos parados bem atrás de um ônibus escolar amarelo, na frente do mesmo museu de onde tínhamos saído algumas horas antes.    

– Como pode ver, exatamente como eu prometi. Vou devolvê-la sã e salva.    

– Mas... quem são aquelas pessoas... e...    

– Aquelas pessoas que estávamos perseguindo são terroristas.    

– Terroristas?! – Holly exclamou.    

– Olhe, acho que seria melhor se conversássemos com a sua família, só para colocá-los a par da situação de hoje – disse meu pai numa voz suave, que provavelmente acalmaria uma pessoa até em meio a uma zona de guerra.

Holly balançou a cabeça vigorosamente.    

– Não acho uma boa ideia... minha mãe não tem a mente muito aberta com relação a essas coisas... ela ia surtar. Nunca mais me deixaria sair de casa outra vez.    

– Se você prefere assim.    

Eu suspeitei de que era exatamente aquilo que meu pai queria. Ele parecia saber como Holly reagiria. O que mais ele saberia sobre ela?    

– É, é melhor assim. – Ela olhou pela janela, como se estivesse ansiosa para sair dali. – Posso ir agora?    

Meu pai assentiu e colocou a mão na maçaneta da porta, preparando-se para abri-la.    

– Holly, os agentes quase nunca revelam sua identidade. Quando revelamos, isso é documentado e, se alguma coisa vaza, sabemos exatamente quem foi. Pode acreditar.    

– Entendi – ela sussurrou, mas sua respiração estava presa na garganta.    

– Ótimo.    

Eu detestei o jeito como ela estava olhando para mim. Como se não me conhecesse outra vez.    

– Eu levo você, Hol.

– Não, não precisa, sério... eu só... quero ir sozinha.    

– Vou ver você no trabalho mais tarde?    

– Ah, sim... no trabalho – ela disse um pouco antes de sair do carro e bater a porta.    

Eu fiquei sentado ali, observando-a se afastar, até o carro entrar em movimento; então olhei para o meu pai:    

– Se alguma coisa acontecer a ela...    

– Nada vai acontecer. Você tem a minha palavra – ele disse. – Mas eu tenho que perguntar... quantos anos você tem agora, Jackson?    

Ele sabia. Por causa das minhas dicas? Dos exames médicos?    

Meu coração palpitava mais do que nunca. Mas eu mantive o foco, sabendo que qualquer informação que eu fornecesse poderia ser usada contra mim.    

– Você conhece meus verdadeiros pais? – perguntei a ele, esperando que a rápida mudança de assunto o pegasse de guarda baixa.    

Ele balançou a cabeça.

– Não, exatamente... Não.    

– Com quem Courtney e eu moramos até os 11 meses de idade? O dr. Melvin me contou essa parte.    

Ele voltou os olhos para a janela, mas sua expressão continuou insondável.    

– Com alguém que simplesmente não pôde mais continuar criando duas crianças. Isso é tudo o que eu sei.    

Tudo bem, obviamente ele não ia me contar esses detalhes.    

– Por que eu sou assim?    

Ele desviou os olhos da janela e olhou para mim, o rosto com uma expressão pragmática.    

– Não posso responder a essa pergunta sem fazer algumas também. Os seus poderes... suspeito que possa usá-los como quiser?    

Eu queria muito pular no pescoço dele. Ele tinha mentido descaradamente no outro dia, com Melvin. Como eu podia acreditar numa palavra que ele dissesse? Eu me afundei no banco enquanto uma ideia tomava forma na minha cabeça.    

– Pai, eu não vou contar todos os segredos que você quer saber sem ganhar alguma coisa em troca.

– Como o quê? Você tem tudo.    

– Em primeiro lugar, mais nenhuma menção ao colegial, e não vou desistir do meu emprego.    

Ele balançou a cabeça e olhou para mim por um minuto antes de falar.    

– A parte do emprego é por causa de Holly? Porque isso me parece extremo demais para alguém da sua idade.    

– E que idade seria essa? – suspirei, sabendo que teria que revelar alguma coisa. – Algo vai acontecer a Holly daqui a dois anos. Ela é minha namorada no futuro. Agora eu estou preso aqui e não vou deixar que aquilo aconteça novamente. Mas eu não sei como impedir, como você provavelmente sabe. Quero aprender tudo o que os seus colegas agentes secretos sabem. Essa é minha segunda condição. Você tem que me ensinar tudo sobre essa coisa de espionagem.    

– O que aconteceu, Jackson? Você pode me contar – ele disse.    

Parte de mim ainda o via como meu pai e não como alguém de quem eu tinha que viver escondendo as coisas. E eu realmente queria saber como aquele sujeito de cabelo vermelho tinha aparecido no futuro, dois anos à frente, mas também agora, em 2007, com o mesmo corte no rosto. Com a marca da sola de sapato. Como se tivesse acabado de acontecer.

– Não agora – eu disse.    

Ele soltou um suspiro, mas concordou.    

– Ok. Eu tenho muitas ideias para iniciantes e também alguns manuais que você pode ler. Na verdade, estou treinando um grupo de agentes agora.     Eu ri um pouco apesar do clima de tensão que ainda pairava no ar.    

– Você está se referindo à sua secretária?    

Meu pai deu um sorriso.    

– É, ela é um deles.    

– Quantos anos ela tem? – perguntei. Estava curioso para saber aquilo desde o momento em que ela me disse para chamá-la de senhorita Stewart.    

– 19.    

– A CIA recruta adolescentes?    

– Em certos casos extraordinários, sim – ele esclareceu, escolhendo bem as palavras. – Jenni Stewart é bem nova. Se você topar com ela novamente, não pode contar sua idade verdadeira ou como chegou aqui.    

Eu achei graça, porque sabia que ela não queria que eu soubesse seu primeiro nome.    

– Não vou contar a ninguém. Não sou idiota.    

– Então não contou nem a Holly? – ele perguntou.

– O que acha? – eu disse, revirando os olhos. – Ela pensa que sou um cara de Jersey que acabou de abandonar os estudos.    

O primeiro sinal de preocupação cruzou o rosto de meu pai.    

– Ela não pensa mais. Eu já pedi à agente Stewart para investigá-la e... convidá-la para uma festa da empresa em casa.    

Eu esfreguei os olhos e gemi:    

– Ótimo. Agora ela está apavorada e vai me odiar por ter mentido... Está falando sério? Uma festa da empresa? Isso parece bem interessante.    

– Desculpe, pensei que isso pudesse amenizar um pouco as coisas – ele disse com um suspiro. – Se ela visse que somos só pessoais normais...    

– Mesmo sem a CIA, ela nunca acharia que somos pessoas normais. – Eu mudei de assunto para não acabar discutindo com ele. – E o que me diz do seu escritório na presidência, onde eu o visitei milhares de vezes?    

– É uma empresa do governo feita para parecer uma empresa normal. Meu envolvimento nas operações do dia a dia é limitado.    

Só ouvi-lo dizer aquilo de maneira tão casual já me deixava furioso.

– Tudo bem, então. Primeiro eu descubro que você não é meu verdadeiro pai e agora que você é da CIA e tudo o que eu sei sobre a sua vida profissional é uma farsa. Só mentiras. O que eu realmente sei sobre você?    

– É complicado, Jackson. Pessoas poderiam morrer se agentes como eu não tomarem precauções para ocultar o que fazem.    

Eu me reclinei no banco e cruzei os braços, olhando bem nos olhos dele.     – Então me diga o que você faz, exatamente. Luta contra criminosos que podem saltar dois anos no futuro e depois estar aqui, usando as mesmas roupas, com o mesmo corte no rosto?    

– Acho que deveríamos conversar com o dr. Melvin – ele sugeriu.    

– Ainda não. Você pode me levar até lá, mas eu não vou contar mais nada a você. – Voltei os olhos para a janela e vi grandes gotas de chuva batendo na calçada num ritmo crescente. – Tenho que ir trabalhar mais tarde e saber o quanto Holly me odeia.    

Ela provavelmente me odiava mais do que eu podia remediar, o que fez com que eu me sentisse mais solitário do que nunca.

 

                   SEXTA-FEIRA, 12 DE OUTUBRO DE 2007, 14:30.

Quando cheguei à academia naquele dia, mais tarde, eu tinha na cabeça várias versões da conversa que teria com Holly, para que ela não me odiasse, mas Mike tinha outros planos para mim.    

– Quero que você retoque a tinta vermelha das letras da parede de trás da academia de ginástica. Como sexta-feira não é um dia tão cheio, acho que pode fazer isso agora. – Ele estava de pé, olhando para a parede dos fundos da academia, apontando para a palavra “Twisters”, pintada de vermelho na parede branca. A tinta vermelha estava lascada e descascando em alguns lugares.    

Quando eu já tinha coberto o carpete com um plástico e subido na escada com pincel e tinta, Holly e Jana chegaram para dar aula. Eu desci da escada num salto, no segundo em que a vi e fui até ela.    

– Ei, Jackson, como vão as coisas? – cumprimentou Jana com um sorriso amigável. Era um bom sinal; Holly não tinha contado nada a ela.    

– Tudo bem, e você? Feliz por ser sexta-feira? – perguntei, fingindo descontração.

– Com certeza. – Com o cotovelo, ela cutucou Holly, que finalmente olhou para mim.    

– Hã... é, sexta-feira... bom. – Ela estava roendo a unha do polegar e transferindo o peso do corpo de um pé para o outro.    

Jana olhou para mim, depois para Holly e balançou a cabeça enquanto se afastava, percebendo que precisávamos de privacidade. Holly olhou rapidamente para Jana, dando a impressão de que poderia sair correndo atrás dela, mas eu estendi o braço, impedindo sua passagem.    

– Eu lamento o que aconteceu esta manhã. Não fazia ideia de que algo como aquilo podia acontecer.    

Ela fitou os meus dedos, que agora apertavam o braço dela. Todo o seu corpo estava tenso.    

– Está tudo bem, sério, não foi nada... Não vou contar a ninguém, eu juro.    

Ela passou por baixo do meu braço e se afastou antes que eu pudesse dizer alguma coisa. Mike saiu do escritório nesse momento e bateu duas palmas ruidosamente.    

– Pintando, Jackson! Não vejo a hora de ver o fim dessa bagunça.

Eu não tinha escolha a não ser voltar ao trabalho. O tempo todo em que Holly deu aula, fiquei de olho nela e podia apostar que estava uma pilha de nervos. Eu só queria estar deitado com ela na grama outra vez, sentindo-me relaxado como há muito tempo não me sentia. Pelo resto da tarde, meus olhos ficaram colados na parede à minha frente.    

– Ei, Holly, você quer ir à festa dos meus pais hoje à noite? – Jane gritou do outro lado da academia quando elas estavam guardando os tatames, no fim da noite. – Pode vir também, Jackson.    

Eu comecei a descer as escadas para poder responder.    

– Desculpe, mas ainda demoro um pouco pra acabar aqui e estou detonado. Provavelmente vou pra casa e cair na cama. Mas obrigado pelo convite.    

– Eu posso ir – disse Holly, quando Jana se aproximou dela.    

Jana pegou a bolsa e tirou suas chaves de lá.    

– Que ótimo! Então podemos ir quando estiver pronta.    

– Está indo agora? – Holly perguntou, com uma ponta de pânico na voz. – Ainda tenho que preencher uns formulários. Prometi a Mike que deixaria tudo na mesa dele.

Jane já tinha dado as costas para nós e estava com o celular encostado na orelha.    

– Então acabe e vá. Eu tenho que ir agora. Minha mãe já está nervosa porque não estou em casa ainda.    

No segundo em que Jana nos deixou sozinhos no prédio, Holly cruzou a academia correndo e se sentou sob as barras assimétricas, escrevendo furiosamente no topo de uma grossa pilha de papéis.    

Eu suspirei, antes de voltar a subir a escada. Voltar a ser amigo de Holly não seria tarefa fácil. Basicamente, eu tinha mentido para ela sobre quase tudo.    

Eu olhei para ela de relance por sobre o ombro, enquanto estendia o braço para pegar a grande lata de tinta vermelha, pendurada na lateral da escada. Mas quase todo o meu peso se deslocou para um só lado da escada e num segundo eu estava estatelado no chão. Caí de costas com a escada sobre a barriga e a lata de tinta vermelha aos meus pés, com tinta espalhada por todo lado.    

– Ai, meu Deus! – ouvi Holly exclamar e logo em seguida ela estava ao meu lado, erguendo a escada novamente. – Você está bem?    

Eu assenti, mas a escada tinha me nocauteado no estômago e eu mal conseguia falar.

Ela se curvou para chegar mais perto e analisar meu rosto.    

– Consegue se sentar?    

Bem lentamente, eu comecei a me recuperar, tentando respirar superficialmente.    

– Todo mundo sabia que eu ia acabar caindo dessa escada, certo?     Ela deu um sorriso, antes de olhar à minha volta e franzir a testa.    

– Mike vai ter um ataque do coração.    

Eu usei a barra da minha camiseta para limpar a tinta salpicada em meu rosto e poder avaliar o prejuízo. Parecia que eu estava em meio a um massacre sangrento.    

– Putz, você tem razão. Ainda bem que cobri o carpete com o plástico.    

Holly se levantou.

– Vou pegar papel-toalha no armário. Um fardo de papel-toalha.    

Nós dois trabalhamos em silêncio por pelo menos meia hora, esfregando as paredes, enrolando o plástico e cobrindo o carpete com outro, limpo. Pelo menos ela se dispôs a ficar a menos de um metro de mim. Era um leve progresso.    

– Obrigado pela ajuda, Holly – eu disse, depois de um tempo.    

Ela secou o suor da testa com o braço e acabou ficando com uma faixa vermelha no rosto.    

– Não é culpa sua que seja péssimo neste trabalho.    

– O que quer dizer com péssimo?    

– Aquela garota que chutou aquele cara maluco no rosto... ela conversou comigo depois que seu pai me deixou em frente ao museu. Me contou sobre as suas horas de serviço comunitário – Holly disse, encolhendo os ombros. – Por ter sido preso ou... algo assim. O que você fez, afinal?      

Então Jenni Stewart tinha inventado uma história para mim. Que gentileza a dela, exceto que agora eu era o “playboyzinho mimado e contraventor da lei”, o que era muito pior do que ser apenas o “playboyzinho mimado”.

– Isso – eu disse com uma risada, pegando o pincel pequeno e erguendo-o até a bochecha dela. Então, antes que ela pudesse me impedir, eu pintei o rosto dela.    

Seus olhos se fecharam imediatamente.    

– Você não fez isso.    

– O que vai fazer a respeito? – provoquei.    

Ela abriu os olhos e olhou à minha volta, mergulhando para pegar um grande rolo de pintura. Então o segurou no alto, pronta para atacar.    

– Venha, chegue mais perto, Jackson.    

Eu levantei as mãos.    

– Tudo bem, eu me rendo.    

– Melhor assim. – Ela baixou o rolo e pendurou-o ao seu lado.    

No instante em que estendi o braço para pegar o rolo de papel-toalha, senti o grosso rolo molhado correndo pelas minhas costas. O pincel ainda estava na minha mão. Eu estendi o braço bem devagar e fiquei frente a frente com ela, rindo da sua expressão presunçosa. Eu rapidamente passei o pincel da testa ao nariz dela. Ela se enfiou sob o meu braço e pressionou o rolo pelo meu cabelo.

Essa luta durou alguns minutos até que, finalmente, depois de     estarmos ambos cobertos de tinta, desabei sobre o plástico que cobria o carpete.    

– Preciso de um tempo.    

Holly riu e se sentou ao meu lado.    

– Trégua?    

– Trégua – concordei.    

Depois de alguns segundos de silêncio, ela pareceu apreensiva outra vez, dobrou os joelhos, encostando-os no peito, e começou a roer as unhas. Eu brinquei com a tornozeleira em torno da perna dela, testando sua reação. Quando vi que ela não pulou nem se retraiu, dei o próximo passo.    

– Só pra você saber, eu na verdade nunca me envolvi em nenhum crime. Foi só um rolo idiota com um cartão de crédito e uma falsa identidade.     Ela assentiu e então descansou o rosto nos joelhos.    

– Então... você na verdade mora em Manhattan?    

– Moro.    

Ela ergueu as sobrancelhas.    

– Deixe eu ver sua carta de motorista.

Eu puxei o braço dela até que ela se deitasse ao meu lado. Então lhe passei minha carteira. Ela a abriu e tirou dali minha carta.    

– Você nasceu em 1990, como eu. Mas estaria no último ano, se não tivesse largado os estudos.    

– É, faço aniversário no verão. Comecei a estudar cedo.    

– E onde você estudava?    

– Numa escola particular muito esnobe em Upper East Side – respondi com um suspiro.    

Holly franziu o nariz.    

– Eca!    

– Nem me diga... – Eu virei o rosto e olhei para ela. – Eu gosto de trabalhar aqui. Longe de toda aquela frescura com que eu tinha que lidar no colegial. E, juro, eu não tinha ideia do que ia acontecer hoje. Fiquei apavorado!    

– Mas você lidou com isso a vida inteira, não é?    

Eu tirei um pouco de tinta de debaixo do olho esquerdo dela.    

– Na verdade, acabei de descobrir sobre o verdadeiro trabalho do meu pai. Alguns meses atrás, na verdade. Ainda estou me acostumando com a ideia.    

– É difícil acreditar que ele faz coisas como aquela todos os dias. Acho que nunca fiquei tão assustada em toda a minha vida – ela admitiu.    

Senti a culpa se revolvendo dentro de mim.

– Eu lamento muito e, se ajuda alguma coisa, minhas pernas ainda estão tremendo. Deve ser por isso que caí da escada.    

Ela sorriu um pouco antes de se sentar.    

– Não é melhor acabarmos de limpar tudo?    

Eu me levantei com relutância do meu confortável lugar no chão. Nós dois levamos as bandejas e pincéis para o vestiário masculino.    

– Talvez seja melhor deixá-los sob água quente e voltar daqui a alguns minutos – sugeri.    

– É, acho que é melhor. – Holly tirou o tênis e enrolou a barrada calça antes de abrir um dos chuveiros. – Espero que essa tinta saia do meu cabelo – ela disse ao jogar a bandeja de tinta no chão, sob o jato de água quente do chuveiro.    

– Acho que ficou muito bom assim – brinquei. O braço dela estava ao alcance do meu e eu não pude resistir à tentação. Agarrei o pincel na mão dela e puxei-o com força suficiente para arrastá-la para baixo do chuveiro. O jato de água pegou em cheio em sua cabeça.    

– Não acredito que você fez isso! – ela gaguejou.

– Achei que você queria lavar o cabelo antes que a tinta secasse... – Entrei embaixo do chuveiro junto com ela e ela olhou para mim e sorriu, como se tivesse se esquecido de tudo o que tinha acontecido pela manhã, embora eu soubesse que não tinha. Eu sabia que ainda estava assustada. E, no entanto, estava ali. Naquele momento.    

E, então, antes até que eu pudesse impedi-la, Holly ficou na ponta dos pés e me beijou levemente na boca. Eu instantaneamente tirei da mente o debate moral que havia travado mais cedo, naquele dia. Só o pensamento de nossos corpos mais próximos fazia meu coração bater mais rápido, trazendo-me à vida. No instante em que seus lábios tocaram os meus, nós dois nos aconchegamos mais, com as mãos buscando alguma parte do corpo do outro para agarrar. Minhas mãos estavam no rosto dela, sua boca se movendo na minha, os dedos dela na minha nuca, o jato de água do chuveiro caindo pelos nossos corpos como uma cachoeira.    

Foi exatamente como na nossa primeira vez... alguns anos adiante no futuro.    

A água de repente passou de fumegante para gelada e nós dois demos um pulo para trás. Eu estendi o braço até a torneira e fechei o chuveiro. Holly estava tremendo, encharcada. Eu peguei algumas toalhas de uma prateleira sobre a pia e a embrulhei com elas.

– Você ainda tem tinta no cabelo.    

Ela riu mais uma vez, um riso nervoso, e então passou por mim, sentando-se em frente a um dos armários.    

– Queria saber se Toby teria uma camiseta extra no armário.    

Eu peguei a bandeja de tinta outra vez e joguei-a sob o chuveiro, enquanto observava Holly forçar a fechadura.    

– Droga, está trancado.    

De repente, uma imagem atravessou minha mente num flash: Toby girando a fechadura aquele dia mais cedo, enquanto eu lavava as mãos na pia.    

– Vinte e dois, dezesseis, cinco – eu disse, sem pensar. Então me dei conta: o dr. Melvin tinha me dito alguma coisa sobre memória fotográfica... Mas quando eu tinha começado a me lembrar de coisas como essa e o que isso significava?    

Ela seguiu minhas instruções e a fechadura se abriu com um estalido.    

– Espero que não tenha nada aqui que eu não queira ver.

Ela não me pareceu nem um pouco preocupada que eu soubesse a combinação, embora não fosse exatamente um cofre cheio de dinheiro. Era um armário de vestiário, provavelmente abarrotado de meias fedorentas e desodorantes. Eu deixei a questão de lado e acrescentei-a à minha lista para Adam, quando finalmente eu tivesse chance de colocá-lo a par de tudo.    

– Você não vai... hã... contar pra ninguém, vai? – Holly perguntou, com metade da cabeça enfiada dentro do armário.    

Eu supus que ela estivesse se referindo ao nosso beijo, não ao incidente com as tintas. Ou talvez a ambos...    

– Se você não quiser, não – eu disse.    

Ela suspirou e se sentou no banco que ficava encostado à parede.    

– Só estou imaginando como Toby e David vão me encher por causa disso.    

– Sobre a guerra de tinta? – perguntei, sentando-me ao lado dela e recostando na parede também.    

– Não sobre a tinta. – As bochechas dela ficaram rosadas.    

– Seus amigos estão te zoando por minha causa? – perguntei.    

Ela concordou com a cabeça.    

– Desde o jogo de pôquer... E zoar é pouco...

Você não tem que dizer nada a eles. Pode ser o nosso segredo.    

Holly sorriu e enlaçou os dedos nos meus.    

– Bem... então temos que ter um ponto de encontro secreto, que ninguém mais conheça.    

Por um minuto, eu fitei o rosto dela, que tinha uma expressão jovial e sonhadora. A Holly 007 era diferente da mais velha. A garota que conheci em 2009 era inteligente e analítica como essa, mas muito mais séria e realista. Ela não passava seu tempo livre escalando as coisas e fazendo malabarismos. Nem de perto, corria tantos riscos. Era quase como se tivéssemos trocado de posição.    

Eu a beijei de novo, depois passei o braço pelos seus ombros.    

– Vamos ver... bem... há um local muito bom na escola onde fiz o ensino médio, embaixo da escada de incêndio do terceiro andar. Muitos escândalos aconteceram ali.    

– Jackson? – alguém chamou de fora do vestiário.    

Holly e eu pulamos do banco e fomos até a porta que dava para o piso da academia. Meu pai estava andando a esmo por ali, olhando a bagunça que tínhamos feito com a tinta.

– O que está fazendo aqui? – perguntei a ele.    

Eu pude sentir Holly ficando tensa e recuando atrás de mim.    

– Que diabos aconteceu aqui? – meu pai perguntou.    

– Eu caí da escada – expliquei.    

Ele tirou o celular do bolso e apertou uma série de botões.    

– Temos alguns... negócios de família pra tratar agora.    

– Agora? E a academia? – perguntei.    

– Eu posso limpar tudo – disse Holly, quase num sussurro.    

Meu pai balançou a cabeça.    

– Vou mandar alguém aqui. Daqui a algumas horas estará tudo em ordem.    

– Então, acho que vou indo... – comentou Holly, indo para o vestiário dos funcionários.    

Eu a segui e peguei as minhas coisas também.    

– Obrigado, mais uma vez... por ficar. Você não precisava.

Ela olhou de lado para o meu pai, através da porta aberta do vestiário dos funcionários, então de volta para mim, antes de me beijar rapidamente na boca.    

– Ah! E Jackson, a minha escola não tem uma boa escada de incêndio e você não vai poder entrar sem a carteirinha de estudante. Por isso vou ter que contar para os meus amigos a verdade.    

– Você que sabe – eu disse, sorrindo para ela.    

Eu tinha certeza de que ela tinha acabado de se declarar minha namorada. Mais uma vez.    

– Espero por você lá fora – gritou meu pai, andando na direção da porta da frente.    

Holly sorriu para mim novamente e inclinou os ombros até encostar na parede.    

– Ele é um pouquinho assustador, tenho que admitir.    

– E eu, sou?      

Ela deu um passo para trás e estendeu o braço para pegar a minha mão.    

– Na maior parte do tempo, você me deixa meio nervosa, mas de um jeito bom.    

Eu beijei sua testa e depois movi a boca pela sua bochecha, quase até os lábios. Meu celular, apertado na minha mão, começou a vibrar. Eu gemi antes de abri-lo e li a mensagem de meu pai: Aqui fora, agora!

– Tenho que ir. Vejo você amanhã? – Eu coloquei a minha jaqueta nos ombros dela, para que não congelasse a caminho de casa e corri para fora.      Meu pai estava esperando por mim na calçada.    

– Entre no carro. – Ele apontou para um carro preto estacionado na rua.    

Deslizei para o banco de trás e, no instante em que vi o homem alto ao meu lado, em meio à escuridão, o medo que senti naquela manhã voltou. Era o sujeito de terno azul que encaminhava as pessoas para a ala subterrânea do hospital, passando pelo escâner digital. Eu estendi o braço para abrir a porta e dar o fora dali, mas meu pai já estava arrancando a toda velocidade.    

– O que esse cara está fazendo aqui? – Durante todo o trajeto, mantive a mão na maçaneta da porta.    

– Você conhece o Comandante Marshall? – meu pai perguntou.    

– É, já nos encontramos. – Eu mal tive tempo de acabar de responder quando o sujeito pressionou uma toalha contra o meu rosto.    

Mal sinal. Eu desmoronei contra a janela fria e tudo se desvaneceu.

 

                   13 DE OUTUBRO DE 2007, 2:00.

A primeira coisa que eu notei, ao abrir os olhos, foi o médico idoso inclinado sobre mim, me examinando com uma pequena lanterna. O cheiro da substância química que tinham usado para me dopar devia ter ficado impregnado nas minhas narinas.    

Eu estava deitado num sofá, no que parecia uma sala de estar comum. Bloqueei a luz com a mão.    

– Dr. Melvin? O que está fazendo aqui? Onde estou?    

Meu pai surgiu de algum lugar atrás de mim e acendeu um abajur na mesinha lateral.    

– Este local é confidencial. É por isso que tivemos que dopá-lo.    

– Confidencial, assim ninguém vai encontrar meu cadáver em decomposição? – Melvin começou a me examinar com a lanterna outra vez e eu a afastei com a mão. – Apaga isso.    

– Ele está só checando seus sinais vitais – soou uma voz grave do outro lado da sala.

Ele estava ali. Eu nem tinha imaginado. E o que exatamente havia por trás daquele título, “comandante”? Meu pai era só o agente Meyer, portanto o Comandante Marshall devia estar no comando de... alguma coisa.    

Eu não sabia em quem mais acreditar àquela altura. Precisava de um plano e talvez de uma grande ajuda, na forma dos conselhos de Adam. Eu me curvei para a frente, segurando a barriga com as mãos, e gemi:    

– Banheiro, rápido!    

Meu pai apontou o corredor à minha esquerda.    

– Segunda porta à direita.    

Eu olhei na direção do Comandante Marshall por um segundo, antes de correr para o corredor. Ele parecia calmo e compenetrado, assim como naquele dia, em 1996.    

Eu tranquei a porta do banheiro e tentei me lembrar do que estava fazendo dois dias antes e, mais importante, o que Adam estava fazendo. Fechei os olhos e saltei no tempo, para 48 horas no passado. Esse era o plano que tínhamos combinado. Encontrar um meio de comunicação durante o salto no tempo, de modo que ninguém, na base principal, tivesse conhecimento dele.

 

                   10 DE OUTUBRO DE 2007, 16:32.

Quando dei por mim, estava sentado no estacionamento da academia. Estava ali porque provavelmente não tinha me concentrado direito no meu destino ideal, mas a minha precisão tinha melhorado muito desde o dia em que deixei 2009. Felizmente, a casa de Adam não era muito longe do meu trabalho. Corri ao longo de todo o trajeto e estava um tanto ofegante quando toquei a campainha. Só tive que esperar alguns segundos antes que a senhora Silverman abrisse a porta para mim.    

– Oi, Jackson, como vai você?    

– Hã... tudo bem. Adam está em casa?    

– Está, sim, entre. Ele está no quarto.    

Eu cruzei o corredor e bati na porta.    

– Mãe, já disse que não estou com fome!    

– Sou eu, Jackson! – gritei, do lado de fora da porta.    

Ele escancarou a porta e ficou me encarando, sem entender por que eu estava com as roupas meio molhadas e salpicadas de tinta.    

– O que aconteceu?    

– Lembra quando você me disse para te perguntar sobre a frase em latim ou qualquer coisa assim?    

Adam me fez entrar no quarto e bateu a porta.    

– Fala de uma vez.

– Preciso te mostrar a mensagem outra vez?  

– Sei do que você está falando. O problema é que você saltou no tempo antes de eu fazer a anotação.    

Eu fiquei andando de um lado para o outro, no quarto, contando tudo a ele, a começar pelo incidente no parque.    

– Isso é tão estranho! – ele murmurou. – Você é do futuro e esta não é a sua base principal, então isso significa que eu não vou me lembrar de nada. Talvez isso tenha acontecido milhares de vezes... Claro, eu não saberia nem você, se é o seu eu futuro que está saltando no tempo para me ver. – Ele girou o corpo e olhou para mim, com os olhos arregalados. – Eu queria saber quantas vezes já tivemos esta mesmo conversa!    

– Foco, Adam! Os malucos da CIA estão esperando que eu saia do banheiro há dois dias da data de hoje!     Ele balançou a cabeça como um nadador emergindo da piscina.    

– Desculpe. A mensagem é só um código. Um código que eu fiz anos atrás e que ninguém será capaz de decifrar. Eu posso ensinar a você.    

Eu concordei com a cabeça, lentamente.

– Desse modo, no meu presente, eu posso dizer a você o que está acontecendo sem que meu pai ou seus colegas desconfiem.    

Ele sorriu.    

– Exatamente. E, Jackson, eu nunca contei sobre esse código a ninguém. Só escrevi mensagens em código duas vezes. A primeira vez será a quase dois anos, por isso não aconteceu ainda... e a segunda vez foi há duas semanas. Eu criei todo o sistema na minha cabeça. Eles não vão descobrir tão fácil assim.    

– Acho que a verdadeira questão é... será que eu consigo entendê-lo? E rápido?    

Ele assentiu com a cabeça.    

– Acho que sim.    

Em seguida, mergulhamos numa aula intensiva de estudo do código. Adam estava certo. Sua linguagem de espionagem era muito difícil de decodificar.    

– Tudo bem, e agora? – Eu voltei a andar de um lado para outro, no quarto. – Não sei com quem eu deveria estar mais preocupado... com a CIA ou com as pessoas que eles estavam tentando capturar hoje... o ruivo de 2009... ele não parecia ter boas intenções em 2009 nem hoje, e meu pai e sua equipe estavam atrás dele. Isso fazia com que a CIA estivesse do lado do bem?    

Adam franziu o nariz.

– Eles simplesmente doparam você sem a sua permissão. Esse não é exatamente o comportamento de quem está do lado do bem...    

– Você acha que eles querem me matar?    

O silêncio momentâneo de Adam refletiu muitas das hipóteses que passavam pela minha cabeça e a resposta de Adam era a mesma que a minha.    

– Já teriam feito isso. Claro, se você der a eles tudo de que precisam, então pode ser...    

– Qual será meu plano para quando eu voltar? Meu pai já sabe que eu vim de dois anos no futuro. Então esse segredo provavelmente já não é mais segredo.    

Adam se remexeu na cadeira.    

– Ok... diga a eles que você só saltou uma vez. – Ele fez uma pausa. – Não, assim vai ser óbvio demais que você está mentindo... diga que saltou três vezes e a última vez fez com que você acabasse aqui, em 2007, e não consegue mais saltar.    

Concordei com a cabeça.    

– Isso até que é verdade. Não consigo voltar para 2009.    

– Exatamente, e como seu pai sabe que algo aconteceu a Holly 009, então ele sabe também que você não está perambulando por 2007 só pra se divertir. Você está realmente preso aqui.

Eu fiquei aliviado quando ele disse isso, porque dar ao meu pai essa informação tinha sido uma decisão baseada no impulso e eu estava preocupado que não fosse a melhor.    

– Que bom que fiz alguma coisa certa.    

– Acho que isto deve ajudar – disse Adam. – Já li toneladas de documentos do governo... só por diversão. Quanto mais verdadeiras as respostas, melhor. Os agentes da CIA são incrivelmente bem treinados para identificar mentiras. Dê a eles alguns detalhes reais e veja se você consegue fazer com que o dr. Melvin deixe escapar alguma coisa, como ele fez com a coisa da genética, e ajude a preencher algumas lacunas que estão faltando nessa história.    

– Eu sem querer deixei escapar que já vi o Comandante Marshall antes – me lembrei.

– É... mas nenhum deles sabe como ou quando. Não conte a eles sobre aquele mergulho no passado. Aquele na ala secreta do hospital. Mas se você fizer muito segredo ou se negar a contar alguma coisa, eles vão saber que você está escondendo informações. – Ele olhou para mim e ergueu uma sobrancelha. – Tenho certeza de que o seu pai e o resto do pessoal da CIA acham que você está apavorado com a descoberta de que pode viajar no tempo e com a tal atividade anormal do seu cérebro. Você fingiu muito bem com o seu pai e o médico outro dia.    

Eu respirei fundo e assenti.    

– Não vai ser fácil enganar esses caras.    

– Boa sorte.    

Eu não perdi mais tempo na minha breve excursão. Saltei outra vez, esperando que tudo desse certo. O Comandante Marshall era um sujeito que me intimidava.

 

                   13 DE OUTUBRO DE 2007, 2:07.

Eu me inclinei sobre a pia e abri a torneira para lavar o rosto. Esperei mais alguns minutos antes de deixar o banheiro e voltar para a sala de estar.    

– Tudo bem? – perguntou meu pai.    

Eu afundei no sofá.    

– Tudo. Alarme falso.    

O Comandante Marshall estava sentado numa poltrona do outro lado da sala.    

– Você me reconheceu, noite passada, dentro do carro.    

Eu olhei rapidamente para o meu pai e Melvin, reclinando-me no sofá antes de responder. Então, num estalar de dedos, uma imagem surgiu na minha cabeça, como tinha acontecido com o armário de Toby.    

– Você estava num banheiro... num restaurante e me passou papel-toalha, não é?    

Por que eu tinha conseguido me lembrar daquilo agora e não quando voltei para 1996?    

– Isso mesmo. Eu estava vigiando você depois de ter desaparecido na Espanha. Essa foi a única vez em que me viu? – O olhar dele era como raio laser, como se pudesse ler meus pensamentos.

– Bem... não exatamente. – Simplesmente invente alguma coisa. – Você foi na minha casa uma vez. No futuro. Eu cheguei em casa e você estava sentado à mesa com meu pai. Lembro-me de ter achado que já o conhecia, mas não disse nada.    

– Jackson, quando foi que viajou pela primeira vez no tempo? Você se lembra da data? – Melvin perguntou.    

Eu me voltei na direção dele. Essa era uma oportunidade de dizer a verdade.    

– Doze de dezembro de 2008. Eu tinha 18 anos. Simplesmente aconteceu... no meio da aula de poesia francesa. Num instante eu estava cochilando na carteira e no outro estava do lado de fora do meu dormitório. Levei um tempo para entender o que tinha acontecido.    

E para me convencer de que não estava ficando louco.    

Melvin balançou a cabeça.    

– Maravilhoso.    

– O que há de maravilhoso em ficar preso dois anos no passado? – perguntei.    

– Não essa parte, mas essas capacidades que você tem, e você nem sequer...    

Meu pai deu uma leve cutucada no médico.    

– Não vamos sobrecarregá-lo ainda mais esta noite.    

– Como você sabia o que faço? A parte da viagem no tempo? – perguntei ao meu pai.

Melvin e meu pai trocaram um longo olhar e depois o médico respondeu por ele.    

– Você carrega um gene recessivo. O gene Tempus. Ele é conhecido por produzir certos sintomas e capacidades.    

– O que você quer dizer com “é conhecido”? Existem outras pessoas com esse gene?    

Como o homem no parque hoje? Uma das últimas pessoas que eu vi em 2009.    

– As pessoas capazes de viajar no tempo têm sido investigadas ao longo da história, há séculos. Mas isso tem sido mantido em segredo – explicou Marshall.    

Eles esperaram que eu respondesse, provavelmente achando que eu estava em choque. E, pode acreditar, eu estava, mas ainda precisava medir minhas palavras cuidadosamente.    

– Então, aquele cara no parque e aquela mulher... eles são viajantes no tempo também? Podem fazer isso sempre que querem?    

– Isso depende da pessoa – esclareceu o dr. Melvin. – Com base nas informações que obtivemos, os níveis de capacidade variam. Que tipo de controle você tem sobre essa capacidade?    

– Não consigo saltar mais... aconteceu duas vezes antes desse meu último salto... mas aqueles foram muito diferentes.    

O dr. Melvin se empertigou e caminhou rapidamente até onde eu estava, sentando-se na mesinha de centro à minha frente.

– Você disse que está preso dois anos no passado, certo? Mas e quanto a esses outros saltos? Por que não ficou preso nesses saltos também?    

Expliquei os detalhes dos saltos, até o ponto em que encalhei em 2007. Tentei incluir o maior número possível de detalhes reais ao contar sobre esses saltos.    

– Você já viu a si mesmo durante algum desses saltos para o passado? – Melvin perguntou. Seu olhar tinha uma intensidade que eu nunca vira antes.     – Uma vez. No segundo salto... Dei de cara comigo mesmo no trabalho.    

Por algum motivo, essa revelação abalou Marshall e meu pai. Marshall levantou-se da poltrona e sentou-se ao lado de Melvin. Então meu pai disse:    

– Não seria uma alucinação? A memória atual colidindo com o mergulho no passado?    

– Talvez, mas por que eu não tenho outro eu aqui? Meu outro eu simplesmente desapareceu na Espanha.    

– Ele não está fazendo saltos completos! – Melvin exclamou de repente. Ele tinha a mesma expressão empolgada que vi no homem chamado Edwards em 1996. – A ironia é simplesmente inacreditável. Meios-sangues fazem meios-saltos...

– Melvin! – meu pai advertiu com aspereza.    

– Meios-sangues? – perguntei. – Meios-saltos?    

Meu pai ficou em silêncio. Então ele e Melvin começaram a falar ao mesmo tempo.    

– Bom... o gene não é idêntico aos outros – Melvin gaguejou.    

– Não é idêntico? Puxa, isso está ficando cada vez mais estranho.    

– Na história documentada. Melvin sabe um pouco...    

– Basta! – gritou Marshall antes de olhar diretamente para mim. – O dr. Melvin é especialista em genes recessivos. Provavelmente é mais versado no assunto do que qualquer outra pessoa no mundo. A CIA não tem outra escolha a não ser monitorar qualquer um que carregue o gene Tempus. Acho que só estamos lidamos com uma simples questão de evolução. É por isso que você é diferente dos outros casos documentados. Ocorrem mudanças com o passar do tempo.    

Certo. Mais lacunas. Melvin cometeu um deslize ao fazer o comentário sobre o “meio-sangue” e depois eu me lembrei do deslize do meu pai, quando saiu furioso do escritório.    

Ele não é nem um pouco como os outros.

Talvez ele estivesse apenas querendo dizer que eu não usaria minhas capacidades para destruir o mundo. Mas outras pessoas usariam? Todas exceto eu?    

– Tecnicamente, ele fez um salto completo uma vez – disse Melvin, olhando sobre por meu ombro. – Ele provavelmente poderia...    

– Dr. Melvin, acho que, por ora, já é o bastante para a cabeça de Jackson. – Meu pai olhou para ele e era como se seus olhos estivessem implorando para que Melvin parasse. – Ele é só uma criança. Você ouviu o que ele disse, não consegue saltar mais.    

Eu disfarcei a minha reação ao que Melvin tinha acabado de dizer, como se não tivesse nem sequer entendido. Mas eu tinha. Ele estava falando sobre o que eu tinha feito quando deixei Holly.    

Um salto completo. Que mudou minha base principal. É por isso que era diferente.    

– Então a CIA está vigiando todas essas outras pessoas que viajam no tempo? E elas são todas... do mal? Do tipo que querem destruir o mundo?    

– É complicado – disse meu pai. – Os que conhecemos estão todos trabalhando contra nós. Nós os chamamos de “IDTs”.    

– IDTs?    

– Inimigos do Tempo.

Então os caras do mal tinham um apelido.    

– O que faz com que sejam tão maus?    

– É difícil explicar em poucas palavras, mas é basicamente uma luta de poder que travamos constantemente – explicou Marshall. – Algo que um cidadão comum como você não deveria saber, e nunca entenderia o que poderia acontecer se acontecimentos do passado forem alterados. Ou se acontecimentos futuros forem revelados.    

Eles podem ir para o futuro? Podem alterar as coisas?    

– Acho que já estabelecemos que eu não sou um cidadão comum – eu disse.    

– Mas também não é um agente altamente treinado da CIA – Marshall acrescentou.    

Se o Comandante Marshall estava tentando me convencer de que a CIA era do bem, ele estava muito enganado.    

– Muito bem, se vocês não vão me contar mais nada sobre a razão por que sou uma aberração da natureza, então estou pronto para ir pra casa.    

– Não há muito mais pra contar – disse meu pai, tentando usar o discurso de bom moço comigo. – Talvez se soubéssemos mais sobre você e se o dr. Melvin pudesse...

Foi como Adam disse. Eles tentaram obter o máximo de informações que conseguiram. Esse era um jogo que eu conhecia e que sabia jogar muito bem. Eu tinha passado quase um ano viajando no tempo e escondendo isso de quase todo mundo. Inventando histórias. Claro que enganar Holly 009 era um pouco mais fácil do que enganar esses sujeitos. Mas eu tinha escondido do meu pai em 2009 também.    

– Pra mim chega de conversa esta noite – eu disse.    

– Tudo bem – concordou Marshall.    

Melvin me deu um pequeno comprimido vermelho e um copo com água.     – Isso vai ajudá-lo a dormir – ele me disse, como se eu fosse uma criança que estava prestes a arrancar um dente.    

– O quê? Nem um pano com formol?! – perguntei com sarcasmo.  

– Este local só é conhecido por mim e pelo agente Meyer. Até o dr. Melvin pediu para não saber de nada. Para a sua própria segurança – explicou Marshall.    

Sim, porque ele é um médico velhinho e rechonchudo, com uma gaveta cheia de pirulitos. Não exatamente alguém que possa estrangular alguém com as próprias mãos.

– Para qualquer pessoa fora desta sala, você é Jackson Meyer, um garoto de 17 anos cujo pai é presidente de uma indústria farmacêutica, entendeu? – perguntou Marshall.    

– Tá, entendi.    

Eu olhei para a cápsula vermelha e me lembrei de que, se eles quisessem me matar, já teriam feito isso e provavelmente teriam usado um método muito mais emocionante do que um comprimido.    

Mais trinta segundos nesse lugar é tudo de que me lembro.    

Minha mente caiu num estado de total prostração. E pela primeira vez em semanas eu realmente quis voltar para a minha antiga base principal. 2009. Meu verdadeiro presente. Fingir que eu era esse outro eu, talvez para sempre, era muito chato.

 

                   13 DE OUTUBRO DE 2007, 9:00.

Acordei no sábado pela manhã são e salvo na minha cama. O único estrago provocado pela noite anterior era uma latejante dor de cabeça. Depois de tomar banho e me vestir, peguei meu diário e comecei a anotar todos os detalhes de que me lembrava do dia anterior. Eu tinha sido um pouco relapso ao fazer meus registros nas últimas semanas, mas as coisas agora eram um pouco diferentes.          

 

Aparentemente sou uma aberração genética da natureza. Não só tenho um gene misterioso que me permite viajar no tempo, como ele evoluiu tanto que meu método de viajar, por ser tão estranho, deixa até o dr. Melvin embasbacado. Basicamente: meios-saltos não mudam nada, saltos completos ou mudam o passado ou mandam você para um universo alternativo no passado. Presumindo que a teoria de Adam esteja correta. Ou para o futuro? Presumindo que Marshall e o dr. Melvin estejam corretos. Que beleza...    

Se meu pai e Melvin sabiam sobre o meu cérebro e genética anormais, então por que simplesmente não me disseram o que poderia acontecer para que eu estivesse preparado? Será possível que meu pai soubesse de tudo em 2009 e não tenha me dito nada? Os chamados Inimigos do Tempo sabiam em 2009, pois acabaram invadindo o dormitório de Holly. E eu achei muito interessante que meu pai por acaso trabalhe para pessoas que combatem viajantes no tempo mal-intencionados e que ele, também por acaso, tenha adotado uma criança capaz de viajar no tempo. Coincidência? Duvido.    

Se eu conseguir arrancar mais informações do dr. Melvin, então talvez consiga encontrar um jeito de voltar para 2009 e de fato mudar as coisas.  

 

Saí do meu quarto e vaguei até a cozinha. Jenni Stewart estava sentada no sofá da sala, com um laptop no colo e uma pilha de papéis espalhados pela mesinha de centro.    

– Esse é o seu novo escritório? – perguntei.    

Ela continuou olhando para a tela do computador.    

– Mandaram que eu ficasse de olho em você, para ter certeza de que a coisa com que te doparam ontem não causará nenhum efeito colateral muito ruim.    

Ela estava falando com um forte sotaque sulista, algo que eu não tinha notado antes.    

– Que sotaque é esse? Ou será que é assim que você é de verdade?     – Você tem que me conhecer muito bem para saber quem eu sou de verdade – ela disse. – Sou especializada em operações de disfarce.    

Naquilo eu acreditava. Eu já tinha visto a agente mudar totalmente num ritmo que mal consegui acompanhar.    

– Então meu pai não está em casa?    

– Vai voltar mais tarde, acho.    

Eu me aproximei dela e me inclinei para olhar a tela do computador.    

– Isso é algo supersecreto em que está trabalhando?

Ela revirou os olhos.    

– É um trabalho de dez páginas sobre doenças nos países africanos. É para a aula de antropologia.    

– Você é universitária?    

Ela deu de ombros.    

– Às vezes. É um disfarce que eu uso muito bem.    

– Provavelmente não tão bem quanto o de secretária durona – eu disse, e ela abriu um sorriso. – Tem viajantes no tempo malvados na sua classe de antropologia, ou algo assim?    

Aquela era uma tentativa de iniciar um diálogo casual em que eu pudesse fazer perguntas. Mas seus dedos congelaram sobre o teclado e ela se reclinou no sofá, antes de voltar os olhos para mim.    

– Não acredito que contaram a você sobre o Tempest!    

– O que é Tempest?    

Sua expressão era confusa.    

– Essa é a minha divisão... na CIA... e do seu pai também. É como se fôssemos a camada de baixo. As pessoas sabem a nosso respeito, ouvem falar do nome Tempest, mas a menos que sejam da divisão não sabem o que fazemos. Nem mesmo os agentes dos níveis mais elevados.

Será que eu não deveria ter contado a ela que eu sabia? O Comandante Marshall e meu pai não tiveram escolha a não ser me contar. Obviamente, eu já sabia sobre as viagens no tempo. Mas como eu podia justificar aquilo para Jenni Stewart sem contar a ela sobre mim?    

– Eu vi um deles... os Inimigos do Tempo ou coisa assim... vi um desaparecer.    

– Nossa! – ela exclamou. – Ainda estou surpresa que não tenham usado em você alguma droga de alteração de memória ou algo assim. A segurança é levada muito a sério no nosso departamento.    

As perguntas começaram a fluir aos borbotões, porque Jenni não era, nem de longe, tão intimidante quanto o Comandante Marshall e eu conseguia me concentrar no que realmente precisava saber.    

– O cara ruivo que você chutou no rosto... ele evaporou, não é?    

– É. O nome dele é Raymond e é um pé no saco.    

– E a mulher loira que desmaiou? O que fizeram com ela?    

Jenni balançou a cabeça.    

– Não sei. Imagino que tenham tentado extrair mais informações dela, para a lista.    

– A lista?

– A lista de Marshall. – Ela pegou uma almofada e colocou atrás das costas, antes de esticar as pernas sobre o sofá. – Eles extraem deles informações sobre o futuro, como pessoas que a oposição possa tentar assassinar, então eles podem se prevenir. Na maioria são políticos ou cientistas. Às vezes é só um acontecimento que precisam impedir.    

– É uma piração que pessoas possam viajar no tempo e ir para o futuro – eu disse, mas, quanto mais eu pensava naquilo, mais vaga a ideia me parecia. O que era exatamente o futuro? Para mim era qualquer data além de 30 de outubro de 2009. Mas, se um dos outros viajantes no tempo tivesse nascido depois de mim ou antes... só pensar no tempo dessa maneira fazia a minha cabeça começar a rodar.    

– Marshall e o dr. Melvin acham que é possível que alguns deles possam viajar além da extensão das suas próprias vidas, mas é claro que...    

– Não se sabe quantos anos isso envolve – eu terminei para ela. O jeito como ela tinha explicado aquilo, chamando de “extensão das suas próprias vidas”, era muito mais fácil de entender do que passado, presente e futuro. – Se os viajantes no tempo existirem há séculos, como Marshall disse, talvez eles venham de um passado remoto.

– É difícil dizer. Nós só nos apresentamos quando somos convocados – ela disse. – Pelo menos isso é o que eu faço..., mas, como você sabe, eu sou nova.    

– Então é isso que faz o Tempest... seguir a lista de Marshall. – eu me afundei ainda mais no sofá, mergulhado em pensamentos. – Mas como vocês lutam contra pessoas que vivem aparecendo e sumindo daquele jeito?    

Ela se inclinou um pouco para a frente e baixou a voz.    

– Eu já li toda a pesquisa do dr. Melvin. É uma loucura. Mas, basicamente, a viagem no tempo não funciona como a gente pensa.    

 

Eu não tinha certeza se ela ia me dar mais informações ou não.    

– O que quer dizer? Acha que eles mudam as coisas o tempo todo?    

– Não é provável.    

– Por quê?    

– Basicamente, antes de saltarem pela primeira vez...    

– Pela primeira vez na vida? Quantos anos eles têm quando fazem isso?

– Melvin diz que a maioria salta lá pelos 7 ou 8 anos, mas por um tempo não tem controle sobre os saltos, o que significa que não sabe o que está fazendo ou para onde vai. Isso muda, dependendo da pessoa. Alguns são melhores. Outros nem tanto. Como em tudo mais.    

Nossa! Sete ou oito. Eu não conseguia nem imaginar como era ser esquisito por tanto tempo. E esses pequenos viajantes no tempo, IDTs juniores, apareciam em locais aleatórios?    

– Enfim – continuou Jenni –, antes desse primeiro salto, pense na vida deles como um galho de árvore longo e grosso. Quando um salto acontece, um pedaço do galho se quebra e começa a crescer em outra direção.    

– E eles podem ficar nesse outro galho... podem viver lá, certo? – Isso é o que eu tinha feito. É o que eu estava fazendo ali. Meu salto de 2009 para 2007 tinha feito meu galho se partir e um novo galho começar a crescer. Os outros saltos aparentemente não tiveram o mesmo efeito.    

– É, isso mesmo – disse Jenni. – É tipo um universo paralelo.

Isso de novo, não... Adam ainda insistia com essa teoria do universo paralelo, e eu a detestava. Ela fazia o mundo parecer menos precioso. Mais solitário.    

– Será que eles conseguem voltar para a sua linha do tempo original depois que um novo galho começa a crescer?    

– Alguns conseguem – ela explicou. – A maioria dos viajantes que conhecemos consegue. Mas uma coisa que muito poucos conseguem fazer é saltar para a frente ou para trás no tempo dentro do mesmo galho ou linha do tempo.    

– É por isso que eles não conseguem bagunçar muito o nosso mundo – acrescentei. – A menos que saltem para outra linha do tempo e saltem de volta para o nosso mundo, eles não poderiam causar mudanças?    

– Não sabemos com certeza, mas achamos que ocorrem alguns tipos de repercussão física quando fazem saltos demais no tempo.    

É, pode crer.    

– Sério?... não sabia.    

– É, e não achamos que eles queiram criar essas outras linhas do tempo, mas quando tentam saltar ao longo da mesma linha isso simplesmente acontece.    

– Mas por que não iam querer? – perguntei com sarcasmo. – São mais escolhas. Como ter uma casa de veraneio em Aspen e outra na Florida e um apartamento em Manhattan.    

Ela sorriu.

– Você quer ouvir a teoria mais maluca do dr. Melvin? Só sei porque eu, tipo,... invadi o computador dele.  

– Quero.    

– Ele acha que, se continuarem a criar todos esses novos brotos no mesmo galho, podem acabar colidindo, e isso pode causar o fim do mundo... ou simplesmente fazer com que o cérebro dos IDTs exploda.    

– Uau!... acho que isso já é demais pro meu cérebro absorver por ora... – eu disse, meio sério, meio brincando.    

– É, gosto mais dessa hipótese da explosão do cérebro.    

– Então, se cada viajante tem um nível diferente de capacidade, não existe uma maneira de se prever o que vai acontecer ou se preparar para isso? – perguntei.    

– Agentes em treinamento não fazem suposições sobre ninguém. As mesmas regras se aplicam a todos os viajantes no tempo mal-intencionados.    

– É possível que um deles possa simplesmente saltar por acidente quando criança e depois ficar preso em outro tempo?    

– É.

Eu parei de fazer perguntas. A última tinha sido muito difícil de engolir e eu precisava de tempo para digeri-la. Talvez fosse por isso que 2009 ainda parecia o meu lar. Ou talvez fosse a culpa que me fizesse pensar em voltar. Culpa por ter partido e culpa por qualquer felicidade que eu tivesse nesta linha do tempo.    

E eu queria ficar frente a frente com aqueles homens no dormitório de Holly. Descobrir quem eles eram. Eu conseguia visualizar perfeitamente o cara ruivo, com a marca de sapato na cara, mas o outro, mais alto, não conseguia me lembrar como ele era.    

– Batendo um papinho?    

Jenni e eu nos viramos ao mesmo tempo e vimos meu pai encostado na moldura da lareira. Ele olhava diretamente para ela, com uma sobrancelha erguida. Jenni arrumou a almofada do sofá e voltou para o seu computador.    

– Posso falar em particular com a senhorita, agente Stewart? – perguntou meu pai.    

O rosto dela no mesmo instante ficou tenso de medo.    

– Sim, senhor.    

Eu quase me senti mal por ela, e até teria me sentido se ela não tivesse sido tão antipática da primeira vez em que nos encontramos. Voltei-me para o computador largado sobre a mesa de centro.

A tentação era forte demais para eu resistir, mas no segundo em que apertei uma tecla para fazer voltar à imagem à tela ela estava atrás de mim, como um fantasma.    

– Eu não tocaria nele se fosse você.    

Eu tirei a mão rápido do teclado.    

– Foi mal.    

Ela ficou de pé na minha frente, com os braços cruzados e cara de quem está propondo um jogo.    

– Que tal fazermos um trato? Você redige meu trabalho de espanhol e eu ensino você a chutar traseiros como um agente de verdade.    

– Foi meu pai quem propôs isso? – perguntei, e ela assentiu. – Quantas páginas tem que ter seu trabalho?    

– Dez.    

Achei que meu pai estava disposto a cumprir sua promessa de me ensinar alguma coisa sobre espionagem.    

– Espaço duplo ou simples?    

– Duplo – ela disse com um sorriso.    

– Feito.    

Ela se sentou em frente ao computador novamente.

– Seu pai quer que eu te mostre os diagramas de defesa silenciosa.    

– Defesa silenciosa? – Cheguei mais perto para ver melhor a tela. Eu não tinha percebido ainda o quanto queria aprender aquilo, até a oportunidade se apresentar. O quanto eu podia ganhar se não precisasse de tanta gente me ajudando. Me dizendo de que lado ficar.    

– Isso significa a maior quantidade de força possível com a menor reação possível. Nenhum som, economia de movimentos – ela explicou.    

Observei cuidadosamente enquanto ela clicava nas imagens que mostravam diagramas de um ataque básico.      

– Só vamos olhar as figuras?     Ela deu de ombros.    

– Estou só seguindo ordens. Seu pai parece achar que os diagramas podem ajudar. Pessoalmente, eu preferia um método mais prático.    

Eu ri.    

– Talvez ele não ache que estou pronto para isso.    

Ou talvez soubesse que eu me lembraria desses diagramas. Como me lembrei da combinação do armário de Toby. Não foi isso que Melvin disse em seu consultório aquele dia?

E quanto à memória fotográfica? Você consegue se lembrar das páginas de um livro, palavra por palavra, ou talvez mapas ou direções?    

Detestava a ideia de que meu pai e o dr. Melvin sabiam mais do que eu mesmo o que havia dentro da minha cabeça, mas se eu pudesse usar essa memória fotográfica para me manter vivo, para manter Holly segura, então eu não tinha razão para reclamar da minha estranha capacidade recém-adquirida.    

– Sinceramente, fico surpresa de ele não ter te ensinado pelo menos o básico da autodefesa, levando em conta a posição dele e tudo mais. Acho que ontem foi um toque de despertar. Não era difícil prever que alguém poderia usar você como alvo. Uma maneira de chegar ao seu pai.    

Será que sempre fui um alvo? Será que era por isso que os IDTs invadiram o dormitório de Holly aquele dia?    

Eu ri de nervoso.    

– Definitivamente foi um toque de despertar para mim. Se eles não tivessem me dopado, duvido que teria conseguido dormir a noite toda.    

– Seu banana... – ela murmurou. – E o que você estava planejando fazer com aquele canivete de bolso?

– Não faço ideia. Exatamente por isso que temos de começar já.    

Ela concordou com a cabeça e voltou a explicar todos os diagramas em detalhes. E eu ouvi, como se daquelas informações dependesse a minha vida. E dependia.    

– O que você tem que ter em mente é... não se trata de força – meu pai disse, andando até nós. – Use a agente Stewart como exemplo. Ela superou todo mundo no último treinamento. Seus passos são leves e ela foi capaz de reduzir seu nível de ruído muito mais do que os outros. Cumprir uma missão sem que ninguém o ouça é uma grande vantagem. E ajuda você a nunca perder a oportunidade exata de ataque. Se fizer isso direito, com precisão de centímetros, a força não importa.    

Jenni Stewart parecia completamente maravilhada com o elogio do meu pai, mas eu procurei não demonstrar minha admiração.    

– Dê mais uma olhada nesta figura e depois vamos tentar.

Eu estudei o homem na tela golpeando o adversário atrás do joelho e apertando sua garganta ao mesmo tempo. O peso do atacante estava apoiado num dos pés, o que reduzia o barulho, e o aperto na garganta impedia o outro de gritar ou falar.    

Depois de afastarmos a mesinha de centro, consegui reproduzir o golpe com perfeição na segunda tentativa.    

– No final das contas, Júnior é um agente secreto nato! – comentou Jenni.    

– É só um meio de sobrevivência – disse meu pai a ela. – Coisas que todo adolescente precisa saber, certo?    

– Claro – ela disse.    

– Por que não treina o mesmo movimento comigo? – perguntou meu pai para mim.    

Eu hesitei por tempo suficiente para que Jenni começasse a rir, o que me fez decidir que venceria meu pai de qualquer jeito.    

– Tudo bem.

Eu me concentrei no rosto dele, imaginando que Holly estava de pé ali atrás, ou Courtney, e depois na frustração ao pensar em quantos segredos ele não tinha me contado, em quanto tinha mentido. Fingido. Tudo isso fez com que eu me inflamasse e alguma coisa simplesmente se encaixou. Segundos depois, ele estava deitado de costas no carpete, ofegando.    

– Nada mal, Jackson. Nada mal mesmo. – A expressão dele mostrava que estava impressionado, mas pude ver a mágoa brilhando em seus olhos, só por um segundo.    

Eu estendi a mão e o ajudei a se levantar.    

– Vamos tentar de novo?    

Meu pai concordou e na vez seguinte ele me jogou no chão antes que eu pudesse reagir. Ficamos treinando durante uma hora. Ele ganhava, depois eu ganhava, até repassarmos várias vezes todos os métodos de ataque mostrados nos diagramas.    

– O que mais eu tenho que aprender? – perguntei.    

Meu pai sorriu um pouco.    

– Posso te ensinar como encontrar equipamentos de escuta.    

– Tudo bem – eu disse, seguindo-o para a cozinha.

– Não se esqueça da festa de hoje à noite – Jenni gritou para nós. – A sua namorada já confirmou que vem.    

Eu parei e me virei para ela.    

– Holly vem aqui? Hoje à noite?    

– Esse é o plano.    

– Pensei que você só estava brincando – eu disse ao meu pai.    

Ele estava vasculhando uma gaveta da cozinha.    

– Ver alguns agentes da CIA informalmente, jantando como pessoas normais, ajudará a diminuir qualquer preocupação que ela possa ter. Tudo o que fizemos até agora foi expô-la a um ataque terrorista e depois enfiá-la num carro e dizer para não contar nada a ninguém.    

– Estou surpreso que vocês não tenham modificado a memória dela ou algo assim – eu disse com amargura, quando a lembrança do pano cheio de formal me ocorreu.    

– Achei que você não ia querer que fizéssemos isso.    

– Não ia mesmo! – eu disse, tentando deixar claro o que sentia.    

Meu pai assentiu.

– Tudo bem, e vamos deixar Adam Silverman em paz, enquanto ele continuar quietinho.    

Meu estômago se contraiu. Eles sabiam sobre Adam.    

– Hã... ele é completamente inofensivo. Sério, não é culpa dele que eu tenha contado sobre toda essa merda de...    

Meu pai ergueu a mão.    

– Eu disse que vamos deixá-lo em paz. Mas é possível que ele possa ser um ótimo recurso pra você, se quiser aprender mais algumas habilidades. É só uma ideia.    

É, Adam podia me ensinar todo tipo de coisa sobre como ser um gênio da ciência. Eu só precisava conseguir um minuto a sós com ele para que pudesse ouvir toda a história, desde o dia anterior até agora.    

Meu pai colocou uma pequena lanterna na minha mão e abriu o gabinete sob a pia da cozinha.

– A CIA tem um milhão de equipamentos para ajudar a encontrar escutas, mas eu gosto de começar pelos mais tradicionais. Finja que você está em algum lugar apenas com o que um indivíduo comum carrega no bolso.    

– Sério?    

Ele enfiou a cabeça embaixo da pia e eu fiz o mesmo.    

– Sua recente experiência como encanador e encarregado da manutenção vem bem a calhar. Eu uma vez descobri um explosivo dentro de um cano no hotel Plaza, quando fui designado para averiguar a suíte do presidente. Ou um dos agentes do Serviço Secreto o plantou lá ou eu achei algo que eles não viram.    

Tudo bem, meu pai era oficialmente muito mais maneiro do que eu imaginava. Mesmo que fosse um grande mentiroso.

 

Holly não só veio para a festa, como trouxe Adam junto.    

– Eu realmente não esperava que viesse – sussurrei no ouvido dela depois de pegar seu casaco. – Achei que meu pai tinha deixado você apavorada.    

Ela sorriu, mas ainda parecia um pouco nervosa.    

– A gente pode ficar apavorada e curiosa ao mesmo tempo.    

– E eu não sei?... – Adam murmurou baixinho.    

Quando consegui alguns minutos sozinho naquela tarde, escrevi um e-mail para Adam, anexando várias páginas escaneadas do código escrito à mão, explicando como eu aprendi seu método extremamente seguro de comunicação. Levou um tempo até eu contar a ele tudo o que tinha acontecido sem errar o código e dizer algo completamente errado. É possível que ele tenha ficado mais apavorado do que Holly, depois de ouvir os detalhes que eu não pude contar a ela.    

– Não acredito que você mora aqui – disse Holly, olhando cada detalhe do vestíbulo. – Vou ganhar um tour?

– Claro! – Peguei a mão dela e levei-a até a sala de estar, onde havia pelo menos vinte pessoas, bebendo vinho e coquetéis. Os únicos convidados que eu conhecia eram o dr. Melvin, o Comandante Mashall e Jenni Stewart. Eu não fazia ideia de quem eram as outras pessoas.    

– Cara, eles são todos agentes? – Adam perguntou baixinho, para que ninguém ouvisse.    

Eu dei de ombros e continuei a andar com Holly pela casa, enquanto Adam entabulou uma conversa com o dr. Melvin.    

Deixei meu quarto por último, em dúvida se ela se sentiria à vontade entrando lá.    

– Quer ver meu quarto? – perguntei, por via das dúvidas.    

– Ah, claro! – ela disse com um sorriso. – Estou supercuriosa para conhecer o quarto de um adolescente rico delinquente.    

Eu ri e abri a porta do quarto.    

– Eu já te disse que não sou nenhum criminoso.    

Só um cara que já viu você nua no futuro. Não há nada de mais nisso.

– Eu sei. Só estou zoando. – Ela deu uma olhada em volta do quarto, antes de se virar para mim. – Não há nada muito emocionante aqui.      

– Claro que não. Eu deixo todos os meus equipamentos de psicopata em outro quarto. – Peguei a mão dela e enlacei seus dedos. Ela corou um pouco e deu um passo para trás, afastando-se de mim. – Só estava brincando.    

Ela sorriu.    

– Eu sei, não é isso. É... outra coisa.    

– O quê?    

– Tudo bem – ela disse, desviando o olhar. – Jana tem uma teoria... Ela acha que o segundo beijo é mais estranho que o primeiro, porque... você espera por ele, mas ainda não se sente muito à vontade com a pessoa.     Eu tentei não rir, mas não consegui. Esse era o problema de Holly? Ela me empurrou de leve e eu ri mais ainda.    

– Desculpe, Hol. Eu só imaginei que você estava preocupada com algo muito pior do que isso. Fico feliz que seja algo tão simples.    

– Simples pra você, talvez? – ela disse num tom de brincadeira.

Vou tornar simples pra você também, Holly. Eu não espero nada. Faça qualquer coisa que quiser porque você quer fazer. Não por outra razão.    

– Você poderia só... me beijar agora e acabar com isso? – ela disse baixinho. Insegura.    

Eu dei de ombros.    

– Não. Desculpe. Intimidação não é o meu estilo. Sua vez, parceira – eu disse, imitando o sotaque sulista de Jenni Stewart, que durante a festa tinha se transformado num sotaque britânico.    

As bochechas de Holly ficaram mais vermelhas ainda e ela me puxou para a porta.    

– Vamos ver o que Adam está fazendo.    

– Então você não tem medo de balançar numa trave a três metros do chão, mas tem medo de me beijar? – brinquei.    

A ideia toda me divertia e me fazia pensar em quanto ela tinha mudado entre 2007 e 2009.    

– Mais tarde – ela disse com um sorriso.    

– Como eu disse, só se você realmente quiser.    

Ela virou as costas e se dirigiu para o corredor.    

– Eu quero.

 

– Que hora você precisa chegar em casa? – perguntei a ela depois que o último convidado da festa se despediu. Estávamos sozinhos na sala de TV. Adam tinha bebido champanhe demais e Holly o levara para o meu quarto e feito com que se deitasse na minha cama.    

Ela corou um pouco.    

– Eu, bem,... disse à minha mãe que ia dormir na casa da Jana. Achei melhor, quando vi que Adam tinha praticamente desmaiado...    

– Então... você quer ficar aqui esta noite? – perguntei, erguendo uma sobrancelha.    

– Desculpe. Acho que me antecipei. Posso ir pra

– Ou... você pode ficar.    

– Não tem problema? – Ela pousou a mão no meu rosto. Eu só tive um instante para assentir antes de ela me beijar, inclinando-se para a frente e me forçando a me deitar no sofá.

Minha mente ficou completamente em branco por alguns minutos, até que fiz uma pausa para respirar. Holly estava deitada sobre o meu corpo, os dedos no meu cabelo, os lábios no meu pescoço e minha mão, sob o seu vestido. Foi quando eu me obriguei a me lembrar que aquela era a Holly 007. Não a garota de 19 anos responsável demais para fazer alguma coisa só por impulso. Em outras palavras, eu nunca conseguia convencê-la a fazer uma coisa de que ela não estivesse cem por cento segura. Mas a Holly 007... era uma história muito diferente.    

O que eu fiz em seguida exigiu de mim mais esforço do que todas as técnicas de defesa que meu pai tinha me ensinado aquele dia. Eu me esgueirei para fora do sofá e fiquei de pé.    

– Vou pegar alguma coisa pra beber, você quer?    

Ela se sentou e baixou um pouco o vestido, até que ele ficasse só um pouco acima dos joelhos.    

– Água.    

Meu pai estava na cozinha, com a porta da geladeira aberta, espiando o que havia ali dentro.

– Se divertindo?    

Eu estiquei o braço, sobre o ombro dele, e peguei duas garrafinhas de água.    

– Sim. Pode me fazer um favor?    

– O quê?    

Eu pronunciei as palavras com relutância.    

– Encontre uma desculpa para entrar na sala de TV daqui a uns cinco minutos.    

Meu pai tirou da geladeira uma caixa de leite, depois fechou a porta.    

– Por quê?    

Eu gemi para mim mesmo.    

– Porque aparentemente eu me tornei um cara decente que se sente culpado por ir longe demais com uma garota de 17 anos.    

Ele sorriu um pouco.    

– Mas ela não era tão jovem quando vocês saíam em 2009...    

– Exatamente. Não é como... antes... no futuro... por mais que eu queira.

– Eu comecei a me afastar, então me virei subitamente. – Talvez dez minutos, ok?    

Ele riu.

– Pode deixar.    

Holly estava em frente à estante, olhando os títulos dos filmes, quando eu voltei. Ela puxou a alça do vestido e arrumou o sutiã.    

– Quer fazer outra coisa? – perguntei, procurando uma desculpa para não ficar mais a sós com ela na sala de TV e cobrir um pouco mais a sua pele.    

– Eu devia ter trazido a bolsa com as minhas roupas. Saí com pressa depois do trabalho. – Ela pegou a garrafa da minha mão.    

Eu fiz um sinal com a cabeça para a porta e Holly me seguiu pelo corredor. Minha mão hesitou na maçaneta, antes de entrar no quarto de Courtney. Os passos de Holly eram bem mais lentos que os meus ao entrar no closet. Meu pai ainda não tinha se desfeito das coisas dela. O quarto estava intacto – não havia nem poeira, nada. A faxineira limpava o quarto todo dia e passava aspirador, sacudia a colcha lilás sobre a cama, tirava o pó dos objetos sobre a penteadeira.    

Holly correu o dedo indicador pela superfície da penteadeira branca. Ela tocava tudo com delicadeza, como se tivesse receio de quebrar alguma coisa ou sentisse o impacto de olhar um quarto cheio de coisas que nunca mais seriam tocadas pela sua dona.

Eu entrei no closet e dei uma olhada nas prateleiras, me demorando um pouco mais nas roupas de Courtney. Localizei um tênis rosa e verde que minha irmã estava usando da primeira vez em que conversei com ela, durante o salto de 2004, depois que ela me deu a primeira “aula de autodefesa”.    

Quando finalmente saí do closet com uma calça de agasalho e uma camiseta de mangas compridas, Holly estava olhando um cartão, caído sobre a penteadeira. Havia pelo menos duas dúzias de cartões com votos de recuperação ali. Eu parei atrás dela e olhei sobre seu ombro. Meu estômago se contraiu no momento em que vi que cartão ela estava lendo.    

Em dezembro de 2008, meu pai tinha finalmente criado coragem para se desfazer das coisas de Courtney – algo que ele precisava fazer. Eu tinha vindo para casa passar as festas de fim de ano e o quarto estava vazio. Tudo tinha ido embora, e esse cartão era uma das coisas que eu queria muito ter guardado. Não só em casa, mas aqui, no quarto dela. Eu não tinha nem pensado em vir ao quarto dela este ano, dar uma olhada nele.    

Olhei para a minha própria caligrafia, sentindo a dor me consumir. Não por causa das palavras em si, mas porque minha irmã nunca chegou a lê-las.      

 

               Courtney,    

Para a minha irmã favorita, que é muito mais legal do que eu jamais quis admitir. Na verdade, eu fiz uma lista de mais alguns segredos que guardei de você. Mostre isso para qualquer um e eu pego as fotos de você pelada, quando bebê, e as faço circular pela escola.    

TUDO O QUE EU NUNCA DISSE À MINHA IRMÃ (bem, talvez não tudo), por Jackson Meyer.            

  1. Você na verdade não cheira mal.    
  2. Fui eu quem grudou chiclete no seu cabelo no ano passado, quando você teve que cortá-lo no ombro só para poder tirá-lo.    
  3. Eu menti quando disse que ia mostrar uma foto sua de aparelho para os meus amigos. Só disse aquilo porque você disse que ia contar para o papai sobre aqueles filmes que encontrou embaixo da minha cama (e, não, eles não eram meus e eu nunca os assisti).    
  4. Achei legal quando você ajudou a senhorita Ramsey a ensinar músicas em espanhol para aquelas criancinhas no hospital.    
  5. Eu ODEIO quando os caras falam que a minha irmã é “uma gata”... mas, apesar do que eu te disse, você não é feia.    
  6. Embora eu sempre faça piada disso, acho bonitinho você chorar no final doTitanic (Toda. Vez. Que. Assiste).
  7. Às vezes eu fico em casa nos fins de semana e te falo que os meus amigos estão ocupados, mesmo que não estejam, só porque quero ficar com a minha irmã boboca.    
  8. Tenho medo de ser diferente quando você não estiver aqui. Eu não vou ser tão legal.    
  9. Às vezes, não consigo dormir à noite porque morro de medo que você tenha partido quando eu acordar. Como se, enquanto eu continuar em movimento, você também continuará.    
  10. Não consigo parar de pensar que deveria ser eu e não consigo parar de pensar... e se você pensar a mesma coisa? E se o papai pensar? E se todo mundo olhar para mim e disser, “Você teve sorte” ou “A sua irmã era bem melhor que você”.    
  11. Meu maior medo é dizer... eu te amo. Mesmo que seja verdade. Tenho medo de dizer porque é tão definitivo... É como um adeus. Mas eu não estou me despedindo. Não vou fazer isso nunca.            

Talvez você possa tentar ficar mais um pouco, por mim. Porque não sei ser eu sem você.          

Com amor, sempre, Jackson.

 

Eu estiquei o braço, ao lado de Holly, e peguei o cartão. Ela pulou como se eu a tivesse assustado, então cobriu os olhos com a mão.    

– Desculpe. Eu não pretendia ler...    

– Tudo bem. – Eu dobrei o cartão e o segurei entre os dedos.    

– O que estão fazendo aqui?    

Nós dois olhamos para o meu pai, parado na porta. Ele sorriu um pouquinho.    

– Holly, pegue o que quiser aqui. Preciso mesmo doar essas coisas... só não consegui ainda.    

Os olhos de Holly passaram do meu pai para mim. Eu dei as roupas de Courtney para ela.    

– Acho que estas devem servir.    

Seu olhar se fixou em mim.    

– Me desculpe. Eu não devia ter olhado...    

– Não se preocupe com isso. – Eu me curvei e beijei o topo da cabeça dela. Ela me deu um último olhar rápido, antes de sair pelo corredor, em direção ao banheiro.    

Eu comecei a me afastar, mas meu pai pegou o cartão gentilmente da minha mão, então o abriu para ler.    

– Eu costumava olhar para este cartão toda noite depois que você ia dormir – ele disse.

– Sério?    

Ele assentiu.    

– Vou conseguir doar tudo isso... no futuro?    

Essa foi uma das primeiras perguntas pessoais que ele me fez sobre 2009.    

– Vai, sim. Você vai se livrar de tudo isso. Incluindo este cartão.    

Ele sorriu e o devolveu para mim.    

– Bem, agora você pode guardá-lo.    

Eu o girei nos dedos.    

– Nunca cheguei a dar pra ela. Eu queria ter...    

Meu pai pôs a mão no meu ombro.    

– Ela sabia. Sei que sabia.    

Mas eu não tinha tanta certeza quanto ele. Ergui os olhos para encontrar os dele.    

– Eu a vi, pai. Não ia te contar, mas...    

Os olhos dele se encheram de dor e fascínio.    

– Quando? Quero dizer... em que ano?

– Em ocasiões diferentes. Conversei com Courtney quando ela tinha 14 anos e depois quando tinha 12. Ela cabulou aula e passamos o dia juntos.     Merda! Eu tinha acabado de contradizer a história que tinha contado ao Comandante Marshall e ao meu pai no dia anterior. A parte em que eu disse que tinha saltado só duas vezes apenas por breves períodos. Basicamente, nenhum ano próximo de 2003. Olhei para meu pai, esperando a reação dele. Não havia como voltar atrás agora.    

Sua boca se entreabriu, mas ele conseguiu fechá-la, depois disse:    

– Você falou com ela? Ela sabia sobre...    

Tudo bem, talvez eu tenha conseguido distraí-lo falando de Courtney. Mas era pouco provável.    

– Eu expliquei tudo e ela acreditou em mim. Surtou no início, mas... depois simplesmente aceitou.    

Meu pai encostou a cabeça no batente da porta e fechou os olhos.    

– Sinto tanta falta dela...    

– Eu sei.    

Seus olhos se abriram e ele ergueu o braço para me impedir de me afastar.

– Não é verdade, Jackson... o que você escreveu. Eu não preferia que fosse você. Nunca conseguiria escolher entre vocês dois. Sabe disso, não é?     Eu dei uma batidinha no ombro dele.    

– Agora eu sei.    

Enquanto eu voltava para a sala de TV, não pude deixar de pensar que talvez eu tivesse presenciado a maior encenação que uma agente da CIA jamais fez... ou talvez... só talvez... eu tenha visto meu pai realmente sair da sua “concha” de agente pela primeira vez em anos.    

Holly sobressaltou-se quando abri a porta. Tudo o que eu pude ver foram as costas dela, em frente à estante outra vez, mas não deixei de notar que ela secou o rosto rápida e discretamente com a manga da blusa de Courtney. Eu cruzei a sala a passos largos e peguei as mãos dela para que olhasse para mim.    

– Hol, não estou chateado com você, juro.    

Toquei as bochechas dela com as duas mãos e ela fechou os olhos e assentiu.    

– Eu sei... É só que... aquela era... uma carta muito bonita...

Eu sequei seu rosto com os dedos, lembrando o efeito que as lágrimas dela tiveram sobre mim em 2009, depois da nossa última grande briga. Eu estava tão acostumado com a postura de rocha sólida da Holly 009... que ver a Holly 007 se desmanchar em lágrimas daquele jeito... era como ver o mundo de cabeça para baixo.    

– Eu não queria que ficasse triste – eu disse a ela.    

Ela segurou a minha mão e me puxou para o sofá, depois se sentou ao meu lado. Tocou meus lábios com os dela, e fechei os olhos e suspirei. Ela pressionou o corpo contra o meu, depois sussurrou:    

– Eu não me importo de ouvir seus segredos, mesmo que sejam tristes.    

Eu me aproximei para beijá-la outra vez, deslizando a mão pelas suas costas, sob a camiseta, esperando que meu pai se lembrasse da promessa de entrar na sala antes que eu me empolgasse demais. Antes que eu me esquecesse de que Holly eu estava beijando.    

Justo quando eu passava os lábios na frente do seu pescoço, meu pai entrou na sala de repente.    

– Desculpe, esqueci que estavam aqui.

Como eu previ, Holly ficou vermelha no mesmo instante e concordou quando perguntei se ela queria ver um filme. Ela caiu no sono com os pés no meu colo quinze minutos depois. Eu a cobri com uma manta e a deixei na sala. O peso daquela noite oprimia meu peito e eu sabia que seria difícil dormir sem uma ajuda.    

Fui direto para o bar, na sala de estar. Assim que me servi de uma dose de uísque, meu pai entrou.    

Escondi a garrafa embaixo do balcão, mas percebi que ele já tinha visto.    

– Eu só estava...    

Ele assentiu antes de eu terminar a frase.    

– Pode me servir uma também.    

Em silêncio, eu lhe servi uma dose de uísque. Ele se sentou num dos banquinhos do bar e tomou sua dose num único gole.    

– Pai, posso perguntar uma coisa?    

– Claro.    

Eu tomei um longo gole do meu copo, esperando que isso me desse coragem.    

– Como você acabou adotando alguém como eu? Quero dizer, considerando que você por acaso trabalha para esse esquadrão secreto, que sabe tudo sobre aberrações da natureza como eu.

– Achei que não demoraria para você me perguntar isso.    

– Foi pura coincidência?    

Meu pai balançou a cabeça.    

– Você e a sua irmã eram a minha missão.    

– Sua missão?    

– Sim. Uma missão para a qual eu me apresentei como voluntário e que fiquei muito feliz de cumprir indefinidamente.    

– Então, você nunca quis ter filhos... quer dizer, não planejou nada disso.    

– Não, na verdade, não. Mas tenho certeza que você pode entender por quê. Um trabalho como o meu não deixa muito espaço para a vida pessoal. – Ele ficou de pé e sorriu. – A menos que a sua vida pessoal se torne seu trabalho... ou seus filhos se tornem seu trabalho...    

– E o agente Edwards? – perguntei quando ele já se afastava. – Ele nos protegia ou algo assim?    

Meu pai ficou imóvel, mas não se voltou para mim.    

– Como você conhece o agente Edwards?

A mudança no seu tom de voz me convenceu a contar a verdade.    

– Eu o vi... no passado.    

– Você voltou tanto tempo assim?    

Em outras palavras, ele já não estava mais vivo.    

– O que aconteceu com ele?    

Meu pai se aproximou alguns passos.    

– Foi assassinado... dez anos atrás.    

Senti um nó no estômago.    

– Como?    

– Pelos outros... os IDTs. – Ele balançou a cabeça.    

Ele se afastou antes que eu pudesse fazer mais perguntas. Será que já tinha me contado mais do que pretendia? Ou será que tinha voltado às suas evasivas de agente secreto? Não havia como negar que eu queria confiar no meu pai. Queria tanto que podia estar ignorando os sinais apontando em outra direção.

  

                   14 DE OUTUBRO DE 2007, 5:00.

Acordei de repente, sem nenhum motivo a não ser um mau pressentimento ou talvez um sonho ruim de que não conseguia me lembrar. A cadeira reclinável quase virou quando me levantei, os olhos perscrutando a escuridão. Holly ainda estava enrodilhada no sofá, onde eu a deixara horas atrás. Eu puxei a manta sobre os seus ombros e cruzei o corredor na direção do meu quarto.    

Adam dormia atravessado na minha cama, provavelmente já sentindo os primeiros sintomas de uma ressaca, depois de todo o champanhe que tinha bebido na festa. No segundo em que fechei a porta do quarto e dei alguns passos no corredor, ouvi vozes na cozinha.    

– Eu não vejo nenhuma razão para pressioná-lo – dizia meu pai.     Andei o mais silenciosamente possível na direção da cozinha. A porta do armário do vestíbulo estava entreaberta e eu me esgueirei pela fresta e me escondi atrás dela.    

– Ele está mentindo para nós. Que razão teria para mentir se não foi recrutado pelo lado adversário?

Aquela voz pertencia ao Comandante Marshall. Era impossível não reconhecer o seu tom grave e autoritário. Será que me pai tinha contado a ele sobre os meus deslizes da noite anterior? Quando mencionei que tinha visitado Courtney várias vezes e visto o agente Edwards nos meus saltos no tempo? Por que ele não contaria ao Comandante Marshall?... Já tinha contado todo o resto...    

– Passamos anos deixando que você bancasse o pai para que ele confiasse em você, e o que adiantou? Ele nem confiou em você o bastante para procurá-lo quando descobriu suas capacidades.    

Todo o meu corpo congelou, esperando para saber se a coisa ainda ia piorar.    

– Ele veio de outra linha do tempo – meu pai disse. – Você não pode me responsabilizar por acontecimentos de outra linha do tempo ou do futuro.    

– Todos nós somos responsáveis por acontecimentos futuros – Marshall gritou.    

– É possível que só esteja assustado – soou a voz do dr. Melvin. – De repente seu mundo deixa de ser algo pequeno e insignificante e se transforma em algo muito maior.

Por que eles não estavam preocupados que eu ouvisse tudo?    

– O seu trabalho é encontrar a falha e consertá-la, Melvin – despejou Marshall. – Eu não quero esta agência perdendo tempo analisando os sentimentos do pobre garoto. Nós podíamos estar usando a capacidade dele agora.    

Usando a minha capacidade? Senti o estômago embrulhar.    

– Espere um minuto, Comandante – se opôs meu pai. – Nunca concordamos com missões específicas.    

– Isso porque tudo que tínhamos para trabalhar era um experimento malsucedido ao qual o dr. Melvin se dedicou metade da vida. As coisas são um pouco diferentes agora – disse Marshall.    

Experimento malsucedido? Aquilo estava ficando pior a cada segundo.    

– Só dê um tempo a ele... se visse como ele responde rápido à estimulação planejada... – meu pai disse. – Hoje está fora de questão.    

Hoje? Fiquei literalmente enjoado tentando absorver tudo o que diziam. Então simplesmente não aguentei mais. Meus pés se moveram por conta própria, em direção à cozinha. Os três homens estavam sentados em volta da mesa, com canecas de café na mão, quando entrei.    

– De que experimento estão falando? – perguntei, sem demora.

Os três olharam para mim e, por fim, meu pai falou.    

– Estamos discutindo um projeto confidencial. Nada com que precise se preocupar.    

Sério? Será que eles achavam que eu tinha 5 anos de idade ou era um completo idiota?    

– Vocês deveriam ter essa conversinha de adultos em outro lugar, se não queriam que eu ouvisse.    

– O que exatamente você ouviu? – perguntou Marshall.    

Meus punhos se fecharam.    

– A conversa toda... e alguém precisa me explicar que experimento é esse. Agora.    

O dr. Melvin pulou da cadeira e andou até onde eu estava, olhando nos meus olhos como se eu tivesse batido a cabeça ou coisa assim.    

– Você entende o que estou dizendo?    

Olhei por cima do ombro do médico, para meu pai e Marshall.    

– Está tudo bem com ele?

– Ele está bem, só um pouco surpreso por você ter entendido a     nossa conversa, visto que estávamos conversando em persa – explicou Marshall.    

– O quê? – perguntei, voltando-me para Melvin. – Persa?    

– Funcionou numa noite! Isso é incrível! – exclamou o dr. Melvin.     Marshall ergueu as sobrancelhas na direção do meu pai.    

– Finalmente. Milhões de dólares gastos em Axelle e podemos de fato nos beneficiar desse investimento.    

Axelle?    

Dessa vez ouvi a diferença no som. Eles não estavam falando inglês. As palmas das minhas mãos começaram a suar e eu tive que limpá-las na calça social que vestia desde a noite anterior.    

– Que porra é essa que vocês fizeram comigo? Alguma merda eletromagnética que está fritando meu cérebro?    

O dr. Melvin remexeu uma gaveta e tirou dali uma pinça. Ele se aproximou de mim, apontando a pinça na minha direção.    

– Fique imóvel um instante.

Eu congelei no lugar e ele enfiou a pinça no meu ouvido e tirou dali um objeto minúsculo de metal. Eu fiquei olhando como se ele tivesse acabo de tirar uma barata do meu ouvido. Eu me senti sujo. Corrompido.    

– Isso emite sons no seu ouvido enquanto você dorme. Eu programei para dar aulas de língua estrangeira. Nada mais do que um dispositivo de áudio. – O dr. Melvin disse isso na mesma voz calma que eu ouvia desde criança. – São como os desenhos dos diagramas que você viu hoje... a memória fotográfica... só que nesse caso é a auditiva.    

– Mas... como eu posso entender uma língua que nunca aprendi? Não sei falar nada em persa. Nem percebi que os sons eram diferentes até você me dizer. – Corri os dedos pelo cabelo, tentando me concentrar em obter informações. Absorver agora, processar depois. Pânico mais tarde.    

– Você não pode falar a língua porque falar é uma habilidade motora. Você tem que praticar a formação de palavras assim como praticou beisebol ou andar de bicicleta quando tinha 6 anos – disse Melvin.

– Isso simplesmente significa que você pode absorver informações como uma esponja. Não pode aprender coisas que não lhe foram ensinadas. Tem uma inteligência acima da média, mas não tem um QI de gênio – meu pai acrescentou. – Há uma diferença.    

– Isso é um alívio – murmurei. – Então é esse o experimento... Axelle ou seja como for que o chamem... vocês simplesmente tocam essa coisa no meu ouvido?    

Melvin olhou para o meu pai, que estava fitando Marshall, que consultou o relógio antes de dizer:    

– Não temos tempo para isso agora. Vamos observar e ver se ele consegue resolver essa situação.    

– Quem? Eu? – perguntei. – Que situação?    

Meu pai pulou da cadeira.    

– Ouvi algo vindo do corredor.    

Eu corri antes que alguém tivesse chance de se mexer, mas ouvi vários passos atrás de mim. Holly veio cambaleando da sala de TV, esfregando os olhos.    

– Ah... eu só vim ver onde você estava – ela me disse.    

Algo em sua expressão revelava que havia algo errado. Ela estava com a mão erguida, à procura de um apoio, até que encontrou uma parede e descansou a testa nela. Coloquei as mãos em seus ombros.

– Holly, você está bem?    

– Hã? – ela murmurou.    

– São as drogas – esclareceu Melvin.    

– Que drogas? – exclamei, tentando me virar para ele, mas Holly titubeou e eu tive que segurá-la no lugar.    

– É só um protocolo para a proteção dela – disse Marshall.    

– Eu não dou a mínima se é protocolo ou não! – gritei, olhando direto para o meu pai. – Eu não acredito que deixou eles fazerem isso!    

Eu sustentei Holly, para que ela não caísse no chão. Seus olhos mal se abriam e ela ainda procurava apoio nas paredes. Os seus dedos roçaram o meu rosto e pressionaram minha bochecha.    

Eu virei as costas para eles e a levei de volta para a sala de TV.    

– Ela é o próximo nome, Jackson – meu pai disse em voz tão baixa que eu mal ouvi. – O próximo nome da lista de Marshall.    

Senti como se tivesse sido nocauteado. Lentamente, me virei para ele.    

– Alguém quer feri-la? Por que Holly?

– Só descobrimos agora... era o que estávamos discutindo quando você entrou na cozinha – disse meu pai.    

Marshall falou primeiro.    

– A garota é só um meio de chegar até você. Um deles. Tenho certeza de que existirão outros. Minha teoria é que você os alertou em 2009. Um dos seus saltos no tempo revelou suas capacidades. Antes disso, tínhamos convencido os IDTs de que você tinha se tornado alguém completamente insignificante... normal.    

Minhas pernas viraram geleia e eu cambaleei até o sofá para deitar Holly ali antes que a derrubasse. Ela murmurou alguma coisa e então se encolheu com o rosto contra as almofadas.    

Eu desabei no chão, ao lado da cabeça dela. Era culpa minha. O fato de ter ficado preso. Tudo o que tinha acontecido a Holly. Não era karma, mas uma razão concreta e factual. Se eu não tivesse feito aqueles experimentos idiotas com Adam, se tivesse contado a alguém... eu mal conseguia falar, mas me forcei a pronunciar as palavras.    

– Por que eles me pediram para ir com eles... se ninguém do governo tinha me abordado...?    

Eu parei de falar e olhei para Marshall, que ainda estava calmo, embora assentisse com a cabeça, como se soubesse que eu tinha acabado de responder à minha própria pergunta.

– Eles me queriam do lado deles – gemi. – Os Inimigos do Tempo.     Meu pai falou em seguida.    

– Sim, mas não vamos deixar que nada aconteça a você, Jackson... ou a Holly. Agora que sabemos o que está acontecendo.    

Os olhos de Melvin se arregalaram de repente e meu pai e Marshall sacaram suas armas ao mesmo tempo e as apontaram para trás do sofá. Eu pulei do chão e fiquei cara a cara com uma mulher. A primeira coisa que notei foi o seu cabelo.    

Vermelho-fogo... como os de Courtney. Ela era como uma versão mais velha da minha irmã. Por um segundo, perdi a noção do que estava acontecendo, do perigo, e quase disse o nome de Courtney em voz alta. Será que ela também viajava no tempo?    

Então eu tive que me lembrar de que Courtney nem chegou a fazer 15 anos.    

Eu afastei o pensamento da minha mente e vi o homem à direita dela. O cara da marca do sapato. E um homem alto, de cabelo castanho, estava do outro lado da mulher.    

Nenhum deles tinha armas, como meu pai e Marshall.

– Não viemos para lutar – disse a mulher, mostrando as mãos abertas. – É só uma mensagem de Thomas.    

O dr. Melvin me puxou pela parte de trás da camisa, fazendo eu me aproximar mais dele e me afastar das cinco pessoas que se enfrentavam. Marshall e meu pai contornaram o sofá, forçando os três intrusos a recuar para o canto mais afastado da sala.    

– Você tem cinco segundos, Cassidy – disse Marshall.    

Cassidy. Tentei memorizar o nome e o rosto dela, para não me esquecer.    

– Estamos aqui para levar o garoto de volta, para o ano de que ele veio – falou o cara da marca do sapato.    

– Isso não está acontecendo... – meu pai respondeu.    

– Ele se desviou do seu caminho principal e Thomas acha que isso pode ser prejudicial para todos nós – disse Cassidy.    

Quem afinal era Thomas? O chefe dos Inimigos do Tempo?    

Pela primeira vez, vi o rosto de Marshall demonstrar um pouco de nervosismo. Medo. Ele acreditou neles. A teoria que Jenni Stewart tinha me contado sobre as linhas do tempo se fundindo e o mundo acabando ou cérebros explodindo veio à tona na minha cabeça. Por algum motivo, eu duvidava que Marshall estivesse muito preocupado com a possibilidade de meu cérebro explodir. Mas a outra opção fazia meu coração começar a bater na garganta.    

E será que eles realmente podiam me levar de volta? Para 2009? Sem pensar no que estava fazendo, apontei para o sujeito da marca do sapato.    

– O que você estava fazendo lá... no dormitório de Holly? Por que você... quer dizer, aquele outro cara...    

Eu não consegui dizer em voz alta o que tinha acontecido. O cara da marca do sapato acenou com a cabeça, do outro lado da sala.    

– Todos nós tínhamos a impressão de que você era uma ameaça. Percebemos agora que a morte dela foi um erro. Que você não sabia da nossa existência.    

A sala tinha caído num silêncio tão profundo que ouvi o dedo do meu pai se mover sobre o gatilho.    

– Agente Meyer, você só agirá sob as minhas ordens – disse Marshall em voz baixa, mas firme.

O cara da marca do sapato pegou algo do bolso lentamente, sem tirar os olhos de mim. Eu cheguei mais perto dele e vi uma foto de Holly e eu, de roupas de banho, sentados na piscina do acampamento.    

Eu e Holly 009.    

– Onde conseguiu isso? – perguntei.    

– Eu mesmo que tirei – disse o homem. – Achei que você talvez precisasse de um lembrete. É a este lugar que você pertence.    

Me assustou saber que ele queria o mesmo que eu. Como se estivéssemos do mesmo lado. Mas, sinceramente, eu não sabia de que lado queria estar. Talvez não houvesse um lado bom e um lado ruim, apenas uma grande faixa cinzenta. Como gangues lutando contra gangues.    

– Mas... – comecei a falar, antes que o homem me interrompesse.    

– Não acredite em tudo que ouviu de nós. Não somos tão ruins assim. Achei que talvez você quisesse vir dar uma olhada por si mesmo, mas aposto que o pequeno Frankenstein do dr. Melvin só sabe o que foi programado em seu cérebro.

Eu cheguei mais perto dele e tentei arrancar a foto da sua mão. Por algum motivo, detestava a ideia de que esse sujeito tivesse uma foto nossa. Ele bloqueou meu ataque tão rápido que nem o vi se aproximar.    

– Eles não querem que você saiba como saltar de verdade. Isso seria uma ameaça. Eu posso mostrar a você como saltar a hora que quiser. Posso te dizer quando e onde você pode estar com ela, em segurança, sem que nenhum dos dois corra riscos – ele disse, enfiando a foto de Holly embaixo do meu nariz.    

Ele provavelmente era tão capaz quanto meu pai e Marshall, se não mais, de matar alguém com rapidez e facilidade. Mas não estava ameaçando ninguém. Só fazendo uma oferta.    

– Creio que tenho o direito de dar minha opinião sobre o bem-estar dele, dadas as circunstâncias – disse Cassidy, voltando o olhar para meu pai. – Muito mais do que você.    

O rosto do meu pai se crispou de raiva, mas o homem de cabelo castanho, que não tinha falado ainda, se adiantou e arrancou a arma da mão de meu pai e jogou-o no chão. Eu no mesmo instante pulei sobre o sofá e aterrissei sobre Holly, protegendo-a com meu corpo. Ergui a cabeça por um segundo e vi Cassidy e o cara da marca do sapato desaparecerem.

Não consegui respirar nem pensar durante alguns segundos, ao perceber o que tinham acabado de fazer. Marshall disparou a arma no espaço vazio onde eles estavam antes, mas a bala ficou cravada na parede. Eu pressionei ainda mais meu corpo contra o de Holly e ouvi outro disparo, seguido de um grito de dor.    

– Maldição! – gritou Marshall.    

Eu me afastei um pouco de Holly, sem saber se ia conseguir me levantar. O som da arma era familiar demais. Dr. Melvin se ergueu devagar do chão e meu pai ficou de pé sobre o homem de cabelo castanho, com a arma apontada para o seu peito. O homem misterioso tinha levado um tiro na perna. O sangue gotejava através do tecido da calça e seu rosto estava pálido, enquanto ele gemia de dor.    

O pensamento que girava na minha cabeça era, Por que ele não     saltou? Então eu me lembrei daquela vez em 1996. Eu estava assustado demais para me concentrar em alguma coisa. Presumi que a dor tinha feito o mesmo com ele.    

Meu estômago embrulhou quando cheguei mais perto do homem e da sua perna ensanguentada. Marshall olhou para nós e fez um gesto com a cabeça.    

– Agente Meyer, pode por favor interrogar a testemunha?    

Meu pai chutou o homem no estômago, forçando-o a se virar de costas.

Eu fiquei simplesmente parado ali, os braços largados ao longo do corpo.    

Meu pai se curvou sobre o homem e gritou:    

– De que ano você veio?    

Nenhuma resposta.    

– Qual é o seu nome? – ele perguntou.    

– O nome dele é Harold – respondeu Marshall. – Uma das crias do dr. Ludwig.    

Quem seria esse dr. Ludwig?    

– Tudo bem, Harold, de que linha do tempo você saltou? Nos dê um acontecimento principal.    

O homem soltou uma risada insana e perversa.    

– Vocês estão todos mortos. Todos vocês. Mas eu não vou contar de quando eu vim. – Ele ergueu a cabeça e olhou para mim. – Exceto você, Jackson, você não está morto. Pense sobre isso. Não ouça o que eles dizem.     Meu corpo todo ficou paralisado. O que ele quis dizer com aquilo?

Marshall soltou um suspiro exasperado.    

– Ele não tem utilidade. Já terminei com ele. Agente Meyer?    

Meu pai levantou a arma e disparou dois tiros no peito do homem. Eu cobri o rosto com o braço quando o sangue respingou em todos nós. Meu instinto de sobrevivência me fez entrar em ação quando vi o peito do homem ainda se movendo. Me joguei no chão ao lado dele.    

Aquele sujeito nem tinha uma arma! Ele não tinha feito nada errado a não ser tentado tirar a arma do meu pai. Talvez para impedir que ele atirasse em alguém. Agora estava morrendo. Bem na nossa frente.    

Eu arranquei o meu moletom e pressionei contra o peito dele. Meus dedos buscaram sua jugular e senti sua pulsação enfraquecida.    

– Dr. Melvin! Me ajude! Ele ainda está respirando!    

O dr. Melvin não se mexeu.    

– Não tenho certeza se devemos...    

– O que há de errado com você? Você é médico. Ele não está morto! – Pressionei com mais força a blusa, que já estava encharcada de sangue. Toda a cena me trouxe de volta as imagens de Holly em 2009.    

– Jackson – meu pai disse. – Afaste-se... agora.

Eu não consegui olhar para o meu pai. Como ele pôde fazer aquilo? Como se não fosse nada de mais? Ele agarrou meu braço e me puxou para longe do homem.    

– Não toque em mim!    

Instantes depois, Marshall estava me forçando contra a parede. Ele se inclinou na minha direção; o rosto, desfigurado pela raiva incontida.    

– Estou tentando te dar a chance de provar ao seu pai o que você e eu sabemos que é capaz de fazer. Eu não só não consegui provar que tenho razão, como deixei de matar dois Inimigos muito importantes.    

Eu sabia que meu pai tinha dito algo a Marshall, mas não consegui identificar o quê. O sangue bombeado para os meus ouvidos abafava todo o som. As imagens do computador surgiram na minha mente e, em três movimentos rápidos, eu o derrubei de costas no chão, ao lado do homem ferido.    

– Conte-me sobre Axelle!    

Marshall saltou do chão e, num só movimento, girou o corpo e fechou as mãos em torno do meu pescoço.    

– Talvez, se eu ameaçar a sua vida, você prove que está mentindo sobre o que pode... e não... pode fazer.

Pelo canto do olho, vi meu pai se movendo atrás de Marshall. Não podia olhar para ele, só para Holly no sofá, indefesa, e então para Marshall novamente. Seu rosto frio, impassível, a poucos centímetros do meu, as mãos impedindo o ar de entrar nos meus pulmões. Lutei para me libertar das mãos dele, que apertavam meu pescoço, mas foi inútil. Meu olhar cruzou com o do dr. Melvin. O homem que tinha todas as respostas, o cérebro por trás do misterioso projeto Axelle, e provavelmente o único na sala que não chutaria o meu traseiro. Se eu ao menos pudesse ficar a sós com ele...    

Um plano me ocorreu na mesma hora. Se eu conseguisse finalmente fazer isso. Um salto completo para 2009. Para a mesma linha do tempo que tinha deixado. Eu evitaria que Holly fosse ferida. Conseguiria toda informação de que precisava sobre esse suposto experimento do insuspeito dr. Melvin.    

Eu não ia ser usado como um tipo de arma. Pelo menos disso eu tinha certeza. Mas quando tentei saltar, os gritos de meu pai e Melvin me distraíram e eu tive a sensação de ser dividido. Um meio-salto. Mas e se Marshall continuasse me estrangulando enquanto eu ficasse ali, catatônico, em minha base principal?    

Agora era tarde demais.

 

Agitei braços e pernas, aliviado por estar livre das mãos de Marshall, antes de olhar ao redor, para saber onde estava. No meu apartamento. Em casa. Eu tinha aparecido, num passe de mágica, no mesmo lugar de onde tinha partido, mas ele parecia diferente. Os móveis da sala de estar tinham mudado completamente. Esse não era um salto completo, e também não era 2009. A realidade me atingiu em cheio. E, neste mesmo instante, Holly 007 estava desmaiada numa sala cheia de gente em quem eu não confiava e eu estava lá, em estado catatônico, provavelmente sendo estrangulado ou baleado... Mas o tempo passaria mais lentamente ali e, se eu pudesse apenas bolar um plano antes de saltar de volta... algo melhor do que outro salto fracassado para 2009...    

Dei uma olhada no relógio do aparelho de TV a cabo: 7:05.    

Não havia nenhuma luz vindo da janela, atrás do sofá. Noite. Mas de que dia? De que ano? Um som de passos no assoalho de madeira veio do corredor. Pressionei as costas contra a parede e coloquei metade da cabeça para fora da porta. Era eu. Uma versão mais jovem de mim mesmo, andando na direção do quarto de Courtney.

No segundo em que meus olhos pousaram na mão dele, eu soube exatamente que dia era. Meu coração martelou no peito e a sensação de náusea me dominou. Eu tinha evitado essa data em todos os meus saltos no tempo. E quando cheguei pela primeira vez em 2007 e tentei inutilmente vários saltos para 2009, tive uma sensação opressiva de que acabaria justamente saltando para esse dia. O dia de hoje.    

O jovem Jackson entrou no quarto e eu me aproximei lentamente da porta. Era o meu eu de 14 anos.    

No dia em que a minha irmã morreu.    

Eu tinha uma visão parcial do quarto, suficiente para observar meu jovem eu pegar o cartão e colocá-lo de pé sobre a penteadeira dela. Eu não precisava nem olhar, a lembrança estava nítida na minha cabeça, mesmo depois de todos aqueles anos, e eu sabia exatamente o que ele ia fazer em seguida.    

Na verdade, eu tinha me esquecido um pouco disso até encontrar Holly 009. Uma conversa que tivemos uma vez surgiu na minha cabeça.    

 

“É como se você não tivesse coisas normais de família sobre o que conversar, como uma tia alcoólatra e pirada que a gente tem que aturar ou que salada vai levar na próxima reunião em família”, disse Holly, zoando comigo.    

Eu ri.

“Só porque eu não sou da classe média como você isso não significa     que eu não tenha problemas normais de família que o dinheiro não pode resolver...”    

Holly sorriu para mim.    

“Então tá. Me fale um segredo de família que todo mundo tem e você não consiga resolver com dinheiro e eu prometo que nunca mais vou falar isso de novo.”    

Eu desencavei a história perfeita para provar que ela estava errada.    

“Tudo bem, eu tenho uma... Courtney morria de medo de trovões. No segundo em que ela via um raio, corria para o corredor e me arrancava da cama e me fazia dormir no chão, ao lado da cama dela.”    

“E você encarava isso numa boa?”, Holly perguntou.    

Eu dei de ombros.    

“Era o único jeito de fazer com que ela ficasse quieta.”    

“Isso é bem típico de um irmão dizer. Desculpe eu ter duvidado.”

 

No dia em que Courtney morreu, nesse dia, eu tive um pressentimento de que aquilo ia acontecer. Foi como se algo dentro de mim estivesse se apagando. E, sem nem pensar, fui direto para o quarto dela e me deitei no chão. Lembro-me de ter pressionado o rosto contra o carpete, sentido o cheiro da fibra e me dado conta de que ela nunca mais pediria para eu ficar com ela de novo. Nunca mais me acordaria às duas da manhã, pedindo para eu deixar a minha cama confortável e dormir no chão duro e frio. E acho que posso ter decidido, aos 14 anos, que nunca mais eu ia querer ficar sozinho, com o rosto enterrado no carpete de mais ninguém.    

Eu dei uma batidinha no bolso da frente da calça. Minha própria cópia do cartão estava dobrada na minha carteira. Duas cópias e nenhuma delas tinha chegado às mãos da destinatária.    

Meu coração quase saiu pela boca quando uma canção dos Beatles começou a tocar no celular do meu eu mais jovem. Ele pulou de susto também, depois deu uma olhada no número no visor. Então virou-se, correu para o corredor e fechou a porta com um chute.

Era meu pai ligando, e o quarto da minha irmã era o último lugar em que ele teria procurado por mim. Eu queria me esconder dele. Me esconder de todo mundo.    

Eu me encostei à parede, apertando os olhos e lutando contra o impulso de saltar de volta. Não era coincidência eu ter acabado ali, e essa era a minha chance de fazer a coisa certa, mesmo que isso não fizesse mais nenhuma diferença. Não fosse mudar o futuro.    

Por sorte, os porteiros me ignoraram quando saí pela porta da frente e peguei um táxi para o hospital. No trajeto, tirei do bolso um pequeno recorte de jornal, amassado e amarelo, de cinco anos atrás. Havia ali uma informação de que eu não me lembrava.          

 

EM MEMÓRIA DE COURTNEY LYNN MEYER

         Courtney Meyer, 14 anos, de Manhattan, faleceu no dia 15 de abril de 2005 às 22:05, depois de uma batalha de três meses contra o câncer.            

22:05. Dali a menos de três horas. Eu ainda me lembrava do andar e do número do quarto. Eu a visitara várias vezes, mas só no início da doença. Não sabia como ela ia reagir, me vendo quatro anos mais velho, ou se ainda estava consciente.    

Passei rapidamente pelo posto da enfermagem quando não havia ninguém olhando, mas o som da voz do meu pai me deteve. Eu me escondi atrás de uma enorme lixeira e ouvi seus passos vindo na minha direção, enquanto falava ao telefone.    

– Jackson, onde diabos você se meteu? – Ele parou bem na frente da lixeira e eu segurei a respiração. – Desculpe... eu não quis gritar... só, por favor, me ligue, para eu saber se está bem.

Observei-o saindo às pressas e percebi, pela primeira vez, que, como eu, ele talvez não estivesse presente na hora da morte. Ela estava sozinha. Eu me levantei e me esgueirei para o quarto de Courtney, sem que nenhum dos funcionários do hospital me visse. Era o maior quarto do hospital e o lugar todo estava cheio de flores, cartões e presentes. Eu fechei a porta atrás de mim e já senti o impulso de sair correndo. Como eu sabia o que ia acontecer, senti um grande peso me oprimindo, como se houvesse um caminhão sobre o meu peito.    

Courtney estava deitada de lado, encolhida na cama, e muito pálida. Se não fosse pelo cabelo vermelho, ela estaria da mesma cor que os estéreis lençóis brancos. O monitor acima de sua cabeça tiquetaqueava como um relógio, contando os minutos.    

De algum modo, consegui colocar um pé na frente do outro e chegar à cadeira perto da cama. A mesma cadeira que certamente meu pai tinha deixado para ir me procurar. Os olhos dela se abriram e depois se apertaram como se ela estivesse tentando focar meu rosto.    

– Jackson?    

Tudo o que consegui fazer foi assentir com a cabeça, reprimindo as lágrimas.    

– Você está tão diferente... deve ser a morfina – ela disse.

Só ouvir a voz dela, ver aquele minúsculo fiapo de vida ainda se agarrando ao seu corpo, já era demais para mim. Eu comecei a me levantar, mas ela deslizou os dedos frios pela cama, até que ficassem embaixo dos meus.    

– Por favor, não vá. Eu não te vejo há tanto tempo...    

Eu me inclinei na cadeira, para chegar mais perto dela, e apertei sua mão.    

– Eu não vou.    

Ela sorriu e seus olhos se fecharam por um instante, mas ela se forçou a abri-los.    

– Eu também detesto este lugar. Não admira que nunca queira vir.     Foi então que perdi o controle. Eu me inclinei mais para a frente e pressionei a testa contra o frio lençol branco e observei as lágrimas escorreram do meu nariz para a cama.    

– Desculpe, Courtney. Eu lamento muito.    

Os dedos frios dela correram pelo meu cabelo, acariciando minha cabeça.    

– Não, não foi isso que eu quis dizer. – Ela deu uma batidinha no espaço vazio ao lado dela. – Vem aqui comigo, estou congelando.    

Eu sequei os olhos na manga do moletom e pousei a cabeça no travesseiro. Courtney se aconchegou a mim e meu coração disparou. Foi quase como ver um fantasma.

Ela levantou a mão e a pousou na minha bochecha.    

– Você está tão quente... e apavorado por estar aqui, não está?    

Eu fitei seus olhos verdes, que ainda tinham o mesmo brilho.    

– É, mas não vou embora. Prometo.    

– Feche os olhos – ela sussurrou. – Isso me ajuda quando quero imaginar que estou em outro lugar. Agora me conte alguma coisa bem legal, nada de hospital, gente doente ou remédios e tratamentos.    

Fechei os olhos e forcei minha voz a sair para falar a mesma coisa que eu disse a ela em 2004.    

– Tenho uma namorada agora.    

– Não brinca! – ela disse num sussurro fraco. – Quem?    

– Ela é de outra escola. – Coloquei a mão nas costas dela e a massageei suavemente.    

– Como você a conheceu?  

– É uma ótima história. Quer ouvir?

Ela levantou a mão e a pousou na minha bochecha.    

– Você está tão quente... e apavorado por estar aqui, não está?    

Eu fitei seus olhos verdes, que ainda tinham o mesmo brilho.    

– É, mas não vou embora. Prometo.    

– Feche os olhos – ela sussurrou. – Isso me ajuda quando quero imaginar que estou em outro lugar. Agora me conte alguma coisa bem legal, nada de hospital, gente doente ou remédios e tratamentos.    

Fechei os olhos e forcei minha voz a sair para falar a mesma coisa que eu disse a ela em 2004.  

– Tenho uma namorada agora.    

– Não brinca! – ela disse num sussurro fraco. – Quem?    

– Ela é de outra escola. – Coloquei a mão nas costas dela e a massageei suavemente.    

– Como você a conheceu?    

– É uma ótima história. Quer ouvir?

– Eu escrevo – Courtney sussurrou. – E o que aconteceu depois?    

– Bom... eu dei o livro a ela e ela sorriu pra mim. E tudo o que eu consegui pensar foi em como eu queria beijá-la. Só para saber como seria. Não sei como, mas eu sabia que seria diferente com Holly. Tudo seria diferente.    

– Meu irmão apaixonado... nunca pensei que ouviria isso – ela murmurou com um sorriso.    

Toquei a testa dela com os lábios.    

– Você está tão fria...    

– Jackson, me promete uma coisa, ok?    

– Qualquer coisa.    

– Case-se com a garota do smoothie e tenha um monte de filhos. Pelo menos seis. E você pode dar a um deles o nome de Courtney e a outro o nome de Lily. Eu sempre adorei esse nome.    

– Eu sei. Você deu esse nome a, tipo, umas cinco bonecas. Mas eu só tenho 19 anos, sou muito novo pra casar...    

Ela arregalou os olhos e eu pude ver seu cérebro repassando as teorias e o pânico tomando conta dela. Ela ofegou antes de dizer:    

– Você não é o Jackson de verdade, é?

Eu cheguei mais perto, envolvendo-a em meus braços.    

– Shhh, está tudo bem. Sou eu de verdade, só que mais velho.    

– Mas nós nunca nos encontramos aqui. Geralmente sou eu que vou ver você.    

– É... eu sei – concordei, embora ela não estivesse falando coisa com coisa. Detestei vê-la tão calma depois do que eu tinha acabado de revelar por acidente. Nada de empurrões ou gritos no meio de cafeterias. Isso significava que ela estava cheia de morfina. E estava por um fio.    

Ela bocejou e relaxou os músculos outra vez.    

– Estou tão... cansada.    

Dei uma olhada no relógio do quarto. Eram só 20:45. Vê-la fechando os olhos de novo, sabendo que logo partiria, fez com que eu entrasse em pânico. Embora eu soubesse o que ia acontecer. Que dizer, eu já tinha visto a minha irmã deitada no caixão... mas, mesmo assim, queria impedir que aquilo acontecesse. Pelo menos retardar a morte dela. Dar a ela um pouco mais de tempo.    

– Courtney! Fique acordada... por favor. Por favor! – Eu sacudi os ombros dela levemente, depois pressionei a testa contra o seu cabelo. – Só um pouquinho mais.

Ela tocou meu rosto e secou as minhas lágrimas.    

– Você tem barba... está pinicando.    

Eu ri.    

– Amo você. Sabe disso, não sabe?    

– Amo você também. – A mão dela deslizou para o meu pescoço, como se não tivesse força para segurá-la. – Você ainda não prometeu... casar com a garota do smoothie, ter seis filhos e talvez um cachorro.    

– Prometo – sussurrei no ouvido dela, para ter certeza de que ela tinha ouvido. Ela abriu um grande sorriso. – Qual será a música do meu casamento?    

– Humm...    

– Eu sei o que vai escolher – brinquei, antes de cantar o primeiro verso da canção preferida dela, “I see the bad moon arising...”    

– Isso mesmo – ela confirmou. – Não é bem uma música de casamento, mas...    

Eu já podia sentir sua respiração enfraquecendo. Queria ser corajoso. Continuar falando e segurando as pontas por ela, mas não consegui. Ela estava seguindo para algum lugar longe de mim e me senti mais sozinho do que nunca.    

Limpei o nariz na manga e ergui o queixo dela para ter certeza de que seus olhos ainda estavam abertos.    

– Courtney, está com dor? Em algum lugar?    

– Estou bem.

Ela estava mentindo. Pude ver isso em seu rosto.    

– Courtney, diga a verdade.    

Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela finalmente assentiu.    

– Sim... dói... o corpo todo... e quando tento ficar... dói ainda mais. É como segurar na beira de um penhasco e sentir os dedos escorregando.    

Foi por isso que ela aguentou mais duas horas da primeira vez. Estava esperando por nós. Por alguém. Eu apertei a mão dela mais forte e senti as lágrimas duas vezes mais rápidas.    

– Desculpe. Devia ser eu. Devia ser eu.    

– Não, Jackson. Nunca diga isso. – A voz dela soou mais forte do que em todo o tempo em que estive ali.    

Eu dei um suspiro trêmulo e me forcei a parar de chorar.    

– Tudo bem, Courtney. Você pode dormir agora. Tudo bem. Chega de dor.    

– Obrigada – ela sussurrou.    

E eu quase pude ver, uma imagem clara na minha cabeça: os nós brancos dos seus dedos, segurando uma pedra, e depois o alívio instantâneo no momento em que ela partiu. Em queda livre, não sentindo nada além do ar, sem nenhum peso. Sem dor.

Eu passei os dedos pelos seus cabelos e a observei com lágrimas silenciosas até sua respiração ficar superficial e depois simplesmente... parar.     Os bipes se tornaram um longo bipe. Vários passos soaram no chão de ladrilhos do corredor. Eu sussurrei um adeus e fechei os olhos, tentando pensar apenas em Holly, caída no chão do seu dormitório, sangrando, sozinha. Era para lá que eu precisava ir.    

Ouvi a voz do dr. Melvin um pouco antes de saltar quando ele perguntou, num tom confuso:    

– Jackson?            

 

Eu nem mesmo abri os olhos quando aterrissei em 2007. Senti como se algo me puxasse de volta. As mãos do Comandante Marshall tinham soltado a minha garganta. Nada além do ar me rodeava, mas eu tinha certeza de que eles ainda estavam por perto, prontos para agir. Ouvi a voz do meu pai um pouco antes de tentar um salto completo para 30 de outubro de 2009. Outra vez. Rezei para que desta vez desse certo.

 

Senti água gelada no rosto. Tossi e cuspi, sentindo gosto de cloro. O ar estava mais espesso e úmido, dissipando o calafrio que senti no hospital.     E nesse salto eu não senti nada. Nenhuma sensação de estar me dividindo. Um salto completo. Eu finalmente tinha conseguido. Mas onde eu estava? Estava quente demais para ser 30 de outubro.    

– Talvez ele esteja bêbado – disse uma voz.    

– Não, é gripe suína, eu conheço – disse outra voz.    

Eu abri um olho e o sol quase me cegou. Havia seis ou mais pares de olhinhos me olhando de perto.    

– Por que você está com roupa de inverno?    

Eu me levantei e todas as crianças se afastaram.    

– Ai, não.    

– Jackson? Está tudo bem? – perguntou uma garotinha.    

Eu me levantei da cadeira onde estava e quase caí numa piscina ao dar um passo para trás.    

– Hã... que ano estamos?

Todas as crianças riram e então uma falou:    

– 2009. É. Ele está bêbado.    

  1. Eu tinha conseguido. Tinha conseguido voltar. Bem... pelo menos eu esperava que fosse a mesma linha do tempo que deixei.    

– Hunter, não tem ninguém bêbado aqui – uma voz conhecida falou atrás de mim.    

Eu me virei e fiquei cara a cara com Holly. Apertei os ombros dela.    

– Em que ano estamos?    

Ela franziu a testa e olhou para mim de cima a baixo.    

– Que é isso que você está usando? Quando trocou de roupa?    

– Não sei – respondi lentamente.    

Eu ainda estava usando o grosso suéter e as calças sociais que tinha vestido para a falsa festa do meu pai em 2007. Já conseguia sentir o suor escorrendo pelas minhas costas. A temperatura estava pelo menos uns 30 graus. Adam se aproximou por trás de Holly e seus olhos se arregalaram.

– Opa!    

– Adam, graças a Deus. Em que ano estamos? Há quanto tempo você me conhece?    

Holly riu, mas senti uma ponta de nervosismo em sua voz.    

– Ele está bem?    

– Hã... deve ser o calor. – Ele agarrou meu braço. – Vamos para a sombra. E é agosto de 2009. Você me conhece desde... março.    

Tudo bem, é a linha do tempo certa. Ele não se lembra de ter me encontrado em 2007. É o ano certo também. Só não é o mês certo... ou o dia..., mas, se isso funcionava como aconteceu quando saltei para 2007, o meu eu ligeiramente mais jovem tinha desaparecido. O que significava que eu teria tempo para consertar as coisas. Ou, mais importante ainda, para impedir que coisas acontecessem.    

Eu o segui para longe da piscina e para baixo da sombra de uma árvore. Desabei na grama e me deitei, olhando os longos galhos que balançavam. Holly ajoelhou-se do meu lado e pressionou a mão na minha testa.    

– Quer água?    

Eu agarrei a frente da camisa de Adam.    

– Eu não sei se realmente estou aqui na... você sabe... na base principal.

Eu o ouvi segurando a respiração.    

– Mas você está suando... pode sentir calor ... tem que ser...    

– Eu sei.    

– Acho que devíamos pedir ajuda – Holly disse, com o pânico crescendo em sua voz.    

– Não! São só... as vitaminas que eu fiz com as ervas da estufa. Jackson se ofereceu para testá-las. Acho que elas causam alucinações.    

– Muitas alucinações. O equivalente a semanas de alucinações... – eu disse.    

– Droga! – murmurou Adam, baixinho.    

Holly empurrou o ombro dele com força.    

– Você está louco? Não pode simplesmente ir fazendo essas coisas e dando pras pessoas. E se tiver envenenado Jackson?    

Adam me ajudou a levantar e eu fiquei de pé.    

– Ele provavelmente vai ficar bem. São só ingredientes naturais. Talvez a gente deva ir ao pronto-socorro só por precaução.    

Ele estava me afastando de Holly, mas eu não conseguia suportar a ideia de não tê-la no meu campo de visão.    

– Espere! Só preciso...

– Você precisa vir comigo agora! – disse Adam, com autoridade.    

Eu o empurrei do meu caminho e caí de joelhos em frente a Holly, que ainda estava sentada na grama. Eu a envolvi nos meus braços e a apertei, forte.    

– Senti tanto a sua falta!    

– Sério, Adam, o que você deu pra ele? Ele está muito confuso.    

Eu a soltei e segurei seu rosto com as duas mãos, depois toquei os lábios dela com os meus.    

– Lamento ter te deixado.    

Ela tirou gentilmente minhas mãos do rosto dela e ficou de pé, olhando para Adam.    

– Vou dar uma olhada nas crianças. Ajude-o, ok? Use o carro do sr. Wellborn.    

Eu me deixei cair na grama e fechei os olhos. Um minuto depois, Adam sacudiu os meus ombros.    

– Ela está indo embora.    

– Eu não fazia ideia de que você era tão franzino aos 16 anos. – Disparei a falar, como louco. Sobre o meu plano... o experimento Dr. Melvin. – Temos que fazer alguma coisa... ir a algum lugar.

Naquele mesmo instante, nessa linha do tempo, ninguém da CIA sabia sobre Jackson, o viajante no tempo. Eles não tinham nenhuma suspeita e eu tinha que agir antes que isso mudasse.    

Rapidamente coloquei Adam a par do comentário de Marshall sobre o experimento, que a meu ver o fascinaria. No entanto, ele não poderia driblar os agentes da CIA e ficar preso em 2007 para fazer as perguntas mais importantes.    

– Eu não acredito que o seu outro eu simplesmente desapareceu em 2007. Isso é demais! Nunca, em nenhuma pesquisa sobre viagem no tempo, eu esperava ouvir isso – ele disse.    

– A parte mais estranha é que eles surtaram quando eu disse que vi meu outro eu... no meio-salto, ou seja o que for. Era como se eles nunca tivessem ouvido falar nisso, e o dr. Melvin é uma espécie de especialista nesse gene maluco.    

Adam balançou a cabeça em descrença e depois soltou um suspiro, como se ele estivesse segurando o ar há alguns minutos.    

– É melhor a gente ir – eu o lembrei.    

– Tenho um short e uma camiseta extras que você pode vestir. Vai morrer de insolação com essas roupas – disse Adam, já andando na direção do escritório do acampamento.

– Espere – eu pedi. – Onde estava o meu outro eu... antes de eu aparecer? Temos que ter certeza de que ele realmente se foi... E se o salto para a frente ou para os lados, sei lá, for diferente? Não pode haver dois de mim andando por aí...    

Adam parou e olhou para mim.    

– Você estava ao lado da piscina olhando o seu grupo de crianças durante a aula de natação.    

Só para ter certeza, Adam entrou em contato, pelo rádio, com todos os conselheiros do acampamento, para saber se tinham visto meu outro eu, aquele que estava de uniforme de trabalho... e para um clima de verão. Eu não poderia arriscar sair por aí sem ter certeza, mas sabia que nunca deixaria meu grupo de crianças sozinho durante a aula de natação. Além disso, a mochila do meu outro eu, onde eu guardava minha carteira, estava abandonada perto da piscina. Outra coisa que eu não faria.    

Depois de convencermos o diretor do acampamento de que eu precisava de um médico, mas não de uma ambulância, fomos para o consultório do dr. Melvin no hospital e eu finalmente expliquei as coisas para Adam com mais detalhes.    

Quando ouviu a minha história, ele se mostrou muito menos chocado do que a maioria das pessoas ficaria, mas aquele era o Adam que eu conhecia.

– E agora, olha só o que estou pensando – eu disse, quando meu plano já estava mais elaborado. – Sabendo que o dr. Melvin fez algum tipo de experimento maluco em que estou envolvido, e digamos que os dados estejam guardados no computador dele em algum lugar, você poderia encontrá-los? Copiá-los ou fazer o que qualquer hacker genial como você faria? Eu gostaria de fazer isso sem que fosse preciso um salto no tempo, se for possível evitar. Não quero correr o risco de revelar minha capacidade de viajar no tempo.    

Presumindo que já não tenha feito isso.    

– Se estiverem no computador, consigo pegá-los. Consigo invadir praticamente qualquer rede – ele disse.    

– A CIA ia adorar pôr as mãos em você – eu disse, rindo, e então me lembrei da parte mais importante. – Eles chamaram o experimento de Axelle... não sei se o arquivo tem esse nome ou não, mas o dr. Melvin provavelmente já fez mais de um experimento na vida.    

– Entendi – ele disse com um aceno de cabeça. – Acho que a verdadeira pergunta é: consigo fazer isso sem que alguém me mate?

– E sem meus superpoderes? – Pensei na questão por um minuto antes de responder. – Preciso fingir um ferimento.    

– Você poderia ter batido a cabeça num poste e feito um galo na cabeça – ele sugeriu.    

– Não, nada que possa precisar de exames na cabeça ou coisas do tipo.    

– Tem razão... esqueça isso. Qual foi a última vez que fez uma ressonância magnética?      

Eu soltei o ar.    

– Junho. Um pouco antes do meu aniversário.    

– Então... você acha... que ele sabe?    

Olhei pela janela. Isso era algo em que pensei muito em 2007.    

– Ele sabe alguma coisa. Tem que saber. Não que isso signifique que tenha feito algo ruim com a informação, mas os sinais apontam nessa direção.    

– Então, basicamente, você não tem nenhuma ideia de quem é do bem e de quem pode estar querendo matar você? – Adam concluiu.    

– É isso aí – confirmei. – De agora em diante, estou do meu próprio lado.     Adam assentiu e sua expressão se encheu de compreensão.

– Acho que você sempre deve ficar do seu próprio lado.    

Ele disse isso com a maior boa intenção. Eu tenho certeza disso, mas para mim suas palavras só reiteraram o fato de que eu estava sozinho no meu próprio universo. Na minha própria linha do tempo.    

O trajeto de elevador até o consultório do dr. Melvin foi como naquele dia em 2007, quando meu pai e eu fomos consultá-lo. Eu decidi que iria fingir um mau jeito nas costas, porque muitas pessoas têm dores nas costas sem que o médico consiga ver fisicamente alguma coisa.    

Melvin logo saiu do seu consultório para me ver.    

– O que aconteceu, Jackson?    

– Ele caiu... hã... de um trampolim – disse Adam.    

– Na verdade, eu caí sobre o trampolim – acrescentei.    

O dr. Melvin correu comigo para uma sala de exames.    

– Você ainda está andando, isso é bom sinal.    

– Você se importa se meu amigo esperar no seu consultório? – perguntei.

– Não, de jeito nenhum – respondeu Melvin.    

Eu acenei com a cabeça para Adam, que entrou no consultório do médico e fechou a porta.      

 

– Então, como você descobriu que arquivo era...? – Meu estômago gelou só de pensar no resto da minha pergunta. – Ou você já leu o arquivo?     Estávamos indo para o meu apartamento no carro do sr. Wellborn e Adam estava rindo à toa com a grande peça que tínhamos pregado no médico. Antes de deixar 2009, eu também teria pensado que aquela era uma grande proeza, mas depois das muitas experiências de vida ou morte por que passei em 2007, enganar Melvin era, para mim, como tirar um doce de criança.    

– Eu consegui entrar no computador dele e encontrar um monte de arquivos criptografados. De acordo com o computador, eles não eram acessados há pelo menos um mês. Eu copiei os arquivos para um pen drive. Posso descriptografá-los assim que chegar em casa.    

Ele parou o carro em frente ao meu prédio e me olhou nos olhos, a empolgação evidente em seu rosto.    

– Eu sei que você quer ir atrás do seu pai e tentar conseguir respostas ou coisa assim, mas acho que precisa ter cuidado. Me dê um tempo para descriptografar esses arquivos e, enquanto isso, tire Holly da cidade, vá a algum lugar com ela e fiquem lá até descobrirmos algo. É meio assustador que os IDTs tenham em 2007 a foto dela de 2009.    

Eu dei um profundo suspiro e concordei.

– Agora só preciso convencê-la disso.    

– Ela irá, tenho certeza. – Ele olhou o relógio de pulso. – Você tem que ir, tipo, dez minutos antes do ônibus do acampamento voltar para a ACM, porque logo depois ela vai para casa. É melhor você pegá-la agora.    

Eu saltei do carro com a minha mochila deste ano. Aquela que não tinha saltado comigo para 2007. Mas pelo menos eu tinha um celular e cartões de crédito deste ano. Eu não precisaria repetir a mesma prisão de 2007. Na carteira que tinha trazido comigo para 2009, eu também tinha o distintivo falso do FBI e da CIA que Adam 007 tinha feito para mim. Para mim, ele parecia bem autêntico. Pelo menos o suficiente para enganar uma pessoa ou um policial comum.    

O porteiro me cumprimentou depois que Adam partiu com o carro.    

– Pode pegar a chave reserva do meu carro? Vou dar uma saída.    

– Claro, senhor – ele disse, me passando a chave que ficava com ele.     Holly estava descendo do ônibus quando cheguei à ACM. Deixei o motor ligado e fui esperá-la na porta. Assim que ela chegou onde eu estava, puxei-a para um abraço.    

– Desculpe.    

– Você está... bem?

– Acho que sim... ouça, Hol... podemos sair daqui?     Os olhos dela se desviaram para as crianças que saíam do ônibus e entravam no prédio.    

– E a entrega das crianças?    

– Adam vai nos cobrir. Ele está estacionando o carro do sr. Wellborn neste instante. – Eu rocei os dedos na bochecha dela e sorri. – Por favor?     Ela assentiu, mas ainda havia uma dúvida em sua expressão. Eu peguei a mão dela e levei-a até o lado do passageiro.    

– Você dirigiu até aqui?    

– Acabei de pegar o carro para vir buscá-la.    

– Nunca vi você dirigindo. Você consegue dirigir, certo? – ela perguntou.     Nós dois entramos no carro.    

– Eu me viro, não se preocupe.    

– Você acha que consegue operar uma máquina pesada depois que Adam tentou envenenar você?    

Eu tinha me esquecido de que Holly 009 não confiava na minha capacidade de fazer alguma coisa responsável. Peguei a mão dela e segurei-a no meu colo.    

– Eu estou bem, juro.    

– Aonde vamos?

Eu sorri para ela enquanto pegava a saída para fora da cidade de Nova York.    

– Para algum lugar distante. Você tem passaporte?    

Ela riu.     – Você alguma vez já falou sério?    

– Tudo bem, talvez um lugar onde possamos ir de carro. Cinco horas é muito?    

– Quando vamos voltar?    

– Humm... domingo à noite?    

O ar divertido desapareceu do rosto dela. Agora ela estava acreditando em mim.    

– Como uma viagem de fim de semana?    

– É, só você e eu. Sem distrações.    

Ela balançou a cabeça.

– Isso é loucura!    

– Exatamente por isso que devemos ir, Hol – eu disse, jogando sobre ela toda a potência do meu olhar.    

– Tudo bem... vamos nessa – ela concordou com um sorriso. – Tenho que pensar em algo pra dizer à minha mãe.    

Ela encostou a cabeça no meu ombro e eu apertei a mão dela.    

– Tire um cochilo e eu chamo você quando chegarmos.    

Holly não caiu no sono. Em vez disso, me encheu de perguntas sobre aonde estávamos indo.    

– À ilha Martha’s Vineyard? – ela perguntou, depois de eu ter lhe dado pelo menos umas vinte dicas.    

– Correto. Sei que você gosta de praia e há um resort maravilhoso lá onde eu e meu pai ficamos alguns anos atrás nas férias.

 

Depois de fazermos o check-in no hotel, dei a ela uma das chaves do quarto. Ela pressionou as mãos contra as têmporas, massageando-as.    

– Não acredito que estou fazendo isso.    

– Eu levo você pra casa cedo, se quiser – eu disse, levando-a na direção do nosso quarto.    

Antes que pusesse a chave na porta, ela se virou para mim.    

– Me diga o que está acontecendo. Você está fugindo de alguma coisa ou algo assim?    

Essa era uma oportunidade de contar a verdade... ou algo semelhante. Eu respirei fundo e assenti.    

– Estou. Tive uma discussão com o meu pai. Precisava sair um pouco de casa e não queria ficar sozinho.    

Tudo bem, dizer que foi uma “discussão” talvez fosse atenuar muito a verdade sobre o que tinha acontecido em outro ano e linha do tempo, mas era verdade que eu não confiava em meu pai e estar no mesmo cômodo que ele neste momento não me parecia uma boa ideia.    

Ela ficou na ponta dos pés e beijou minha testa.

– Da próxima vez, apenas me conte e pra eu não ficar tão paranoica. Já tive que fugir da minha mãe também. Embora no meu caso, eu só tenha passado o fim de semana na casa de Jana... não foi uma fuga tão bem elaborada...    

– Tirando isso, é basicamente a mesma coisa, não é?    

Ela concordou com a cabeça e finalmente abriu a porta.    

– Teria sido muito bom ter trazido uma mala.    

Eu a cutuquei para que entrasse no quarto.    

– Quando se é um garoto mimado como eu, fugindo de casa, faz parte da rebeldia gastar uma fortuna no cartão de crédito dos pais. Se precisarmos de algo, compramos.    

A porta se fechou atrás de nós e Holly entrou na imensa suíte.    

– Bem caro, hein?    

Meu telefone tocou e, quando vi que era Adam, atendi.    

– Como está indo?    

– Estou perto de decifrar os arquivos. Só queria ter certeza de que está tudo bem com você – ele disse. – Está se sentindo bem, não é?    

– Claro, estou ótimo, Adam. Ligo pra você se algo mudar. – Desliguei o telefone e Holly chutou os sapatos para longe e se jogou na cama. – Quer ir ver a praia? Talvez dar uma volta? – perguntei.

– Acabei de tirar os sapatos! – ela disse.    

Peguei a mão dela e puxei-a da cama, depois peguei-a no colo.    

– Nem vai precisar dos sapatos.    

Ela riu e colocou os braços em torno do meu pescoço.    

– Só vou fingir que isso é real.    

– Sei exatamente o que quer dizer. – Eu virei a cabeça e beijei o braço dela. – Às vezes tenho dificuldade para separar a realidade... do resto.    

Eu só a coloquei no chão novamente quando estávamos na areia. Era lindo ali. Se eu tivesse tempo de planejar de fato um fim de semana especial com Holly, é possível que tivesse escolhido exatamente aquele lugar.    

– Adoro a praia à noite – ela disse.    

– Eu também. – Eu não queria ir muito longe da área bem iluminada do hotel, onde havia pessoas circulando, por isso parei depois de alguns minutos de caminhada e me sentei na areia.    

– Obrigada por me incluir no seu estranho ato de rebeldia.    

Eu me virei de frente para ela.    

– Você ficou furiosa comigo hoje, não ficou? Quando estávamos na piscina.    

Ela balançou a cabeça.

– Não... não furiosa.    

Segurei as mãos dela.    

– Só me diga o que estava aborrecendo você.    

– Você disse algo antes do almoço, quando estava chapado por causa das drogas de Adam... não é nada de mais.    

Eu não sabia o que tinha dito para ela antes de aterrissar neste ano, mas sabia que estávamos mais ou menos na época em que eu estava começando a mentir para ela para fazer cada vez mais experimentos relacionados à viagem no tempo.    

Eu ergui as mãos dela, segurei-as no meu rosto e respirei fundo.    

– Eu não sei como dizer isso sem te assustar...    

O rosto dela se encheu de alarme.    

– Tarde demais. Você não pode me dizer uma coisa dessas e esperar que eu não me assuste.    

– Eu amo você. – As palavras brotaram na minha boca no segundo em que ela parou de falar. Eu não fiz nada a não ser ficar absolutamente imóvel e observar a expressão dela passar de medo para choque.    

Seus olhos ficaram marejados e ela se virou para o mar.    

– Você não precisa dizer isso... Estou feliz só de estar aqui com você.    

– Holly, olhe pra mim.

Ela não se mexeu, por isso eu virei o rosto dela para mim. Lágrimas corriam pelas suas faces. Ela as secou rapidamente com a mão. Depois fechou os olhos, para não precisar olhar para mim.    

– Eu lamento – ela sussurrou.    

– Pelo quê, Hol?    

– Por fazer você se sentir como se tivesse de dizer isso. Eu preferia não ligar para o que você pensa, queria poder só... em vez de querer mais...    

– Eu amo você – repeti, aproximando mais meu rosto do dela.    

– Pare – ela sussurrou. – É culpa minha você...    

Eu toquei os lábios dela com o dedo, para que ela parasse de falar.    

– Amo você demais e nunca disse isso porque tudo é sempre tão bom quando estamos juntos... e não sei se a gente consegue realmente dizer isso até que as coisas... não estejam bem.    

Os olhos dela se abriram mais e percebi que ela talvez estivesse acreditando em mim desta vez.  

– Está falando sério?    

Eu ri.

– Estou. Estou seriamente, completamente apaixonado por você.     Seus braços envolveram meu pescoço.    

– Eu também... quer dizer... eu amo você também.    

Eu a empurrei até fazê-la se deitar na areia, junto comigo, e beijei cada centímetro do seu rosto.    

– Ei! – uma voz soou atrás de nós.    

Holly se afastou de mim e nós dois vimos duas criancinhas correndo dos pais. Ela riu e beijou minha bochecha.    

– Detesto quando você me faz chorar.    

– Chore o quanto quiser, contanto que ainda fique feliz.    

– Estou feliz – ela disse.    

E eu também estava. Apesar de tudo.

 

Eu saí do chuveiro e enrolei uma toalha em torno dos quadris. Quando voltei para o quarto, Holly estava deitada de bruços no meio da cama, em sono profundo. O roupão branco do hotel tinha descido um pouco, deixando à mostra a letra japonesa que ela tinha tatuado nas costas. Eu realmente não tinha dúvida de qual Holly estava deitada ali. Mesmo assim, foi bom ver a tatuagem. Talvez eu a convencesse de tatuar 009 um pouco mais abaixo.     Ela tinha cochilado nos seis ou sete minutos que eu tinha demorado no chuveiro, mas era quase meia-noite. Sacudi a areia das minhas roupas e as vesti antes de me curvar sobre Holly.    

– Vou até a loja do hotel. Precisa de alguma coisa?    

Os olhos dela se entreabriram e depois se fecharam outra vez.    

– Estou acordada. Vou com você.    

Puxei o cobertor e a cobri até os ombros.    

– Durma.    

– Roupa de baixo... – ela murmurou.    

Eu dei uma olhada no maiô de natação laranja caído no chão. É claro que ela colocava o maiô por baixo do uniforme.

– Acho que estávamos mesmo despreparados. Vou ver o que consigo encontrar. Holly?    

– Hã?    

– Tenho a minha chave, então não abra a porta pra ninguém, ok?    

Ela assentiu e eu saí do quarto em silêncio. A loja do hotel, no saguão, ficava aberta 24 horas. Holly e eu estávamos prestes a nos tornar garotos propaganda do hotel, porque quase tudo o que havia ali tinha o logotipo dele. A moça atrás do balcão, que cochilava na cadeira, pulou quando me viu entrar na loja.    

– Posso ajudar?      

– Hã... sim. A companhia aérea extraviou a mala da minha namorada. Ela precisa de algumas roupas, roupa de baixo e essas coisas... – Dei uma olhada numa pilha de camisetas e tirei dali uma pequena e uma média.    

– Que tamanho? – ela perguntou.      

Com o canto do olho, vi uma pessoa de estatura baixa e cabelos vermelhos pegando um cartão de visitas no balcão da recepção, em frente à loja.    

– Hã... não tenho certeza. Me dê uma de cada tamanho – eu disse à moça. – Já volto.

Fui rapidamente até o balcão da recepção. A criança se virou e foi direto para o saguão à direita. Ou eu estava ficando louco ou essa era a mesma garotinha que eu tinha visto no zoológico naquele outro dia, em junho desse mesmo ano. Mas a criança parecia menor. Alguns anos mais nova. Ela entrou numa salinha onde havia uma máquina automática. Eu me encostei à parede, esperando que ela saísse. Já era mais de meia-noite. O que uma criancinha estava fazendo sozinha ali aquela hora da noite?    

Esperei mais um minuto e não ouvi mais nenhum som, então dei uma olhada na salinha. Havia uma máquina de refrigerante e outra de gelo. Mas não havia nenhuma menininha. Ela não poderia ter saído dali sem passar por mim.     Eu saí da salinha, balançando a cabeça. Dormir. Eu precisava dormir ou fazer algo normal. Um dia normal para dar um tempo naqueles pensamentos insanos..., porque àquela altura eu obviamente já estava vendo coisas.    

O homem na recepção, que andava de um lado para o outro, usando um uniforme do hotel, me deu uma olhada quando me aproximei da loja de presentes outra vez.

– Como vai, senhor? – o homem perguntou.    

O nome no crachá era John.    

– Você acabou de ver uma menininha de cabelos ruivos no saguão?     – Não, está procurando alguém?    

Balancei a cabeça e tentei parecer calmo.    

– Não, só achei estranho ver uma criança andando por aqui sozinha a esta hora. Você é o gerente?    

Ele sorriu.    

– Subgerente, mas estou cobrindo o plantonista.    

Eu tirei o distintivo falso do FBI e coloquei-o na frente dos olhos dele por um instante antes de guardá-lo outra vez. Só um dia de treinamento de agente secreto com meu pai e Jenni Stewart tinham me dado uma boa ideia dos métodos de proteção e, mais importante, de prevenção. Ou talvez eu sempre tenha sido bom em disfarces... bom em esconder coisas.    

– Ouça, John, vou precisar que você me arranje uma planta do hotel e uma lista dos hóspedes, atualizada de hora em hora, se possível.    

– Está... tudo bem? – ele gaguejou.

– Por enquanto, está. E vamos garantir que fique assim. Eu estarei na loja esperando pela planta. E, lembre-se, estou disfarçado, por isso nunca tivemos essa conversa. Entendeu? – eu disse, incorporando uma versão hollywoodiana bem clichê do discurso intimidador dos agentes secretos.    

Ele assentiu e virou as costas para mim, entrando rapidamente atrás do balcão da recepção. Eu voltei para a balconista da loja, que estava segurando vários cabides numa mão e verificando uma arara de vestidos com a outra.    

– Alguma ideia do tamanho do sutiã que ela precisa?    

Eu dei uma olhada numa das etiquetas.    

– Hã... eles têm letras e números?    

– Ok, é melhor levar um de cada, então – ela disse, com um sorriso.    

Eu peguei escovas de dentes, pasta de dente, fio dental, desodorantes e um par de sandálias para Holly. Empilhei tudo sobre o balcão, acrescentei algumas coisas para mim e finalmente John voltou, estendendo-me um maço de papéis.

– Essas são todas as plantas que consegui encontrar. Vou deixar um bilhete para o gerente de plantão pela manhã lhe entregar a lista de hóspedes atualizada.    

Eu estudei a planta do primeiro andar e olhei para ele novamente. Eu não sabia ao certo quem estava procurando na lista, mas achei que era bom pedi-la.    

– Obrigado, John. Quarto 312, ok? Coloque-a embaixo da porta.    

– Gostaria que eu colocasse os itens da loja na sua conta? – a balconista perguntou.    

– Sim, por favor. – Eu peguei vários livros e acrescentei-os à minha já generosa compra. – Estes também.    

Eu tinha seis sacolas cheias para carregar até meu quarto enquanto testava os perímetros da minha memória fotográfica. Tentei seguir as rotas do primeiro andar exclusivas para os funcionários do hotel, e que levavam ao terceiro. Eu já sabia que havia doze saídas diferentes. Métodos de evasão rápida pareciam uma boa coisa para memorizar.    

Holly ainda estava dormindo quando eu me deitei na cama ao lado dela. Peguei um dos livros e o abri, mantendo o abajur ao lado da cama aceso. Só olhei para o livro durante uns trinta minutos, antes que Holly rolasse na cama e se enroscasse nas minhas pernas.

– Achou a roupa de baixo?    

– Achei, mas você vai andar por aí com o nome do hotel escrito no seu traseiro.    

– Não faz mal. – Ela passou o braço pela minha cintura e descansou a cabeça no meu ombro antes de fechar os olhos outra vez.    

Coloquei o livro de lado e observei sua respiração regular. Eu sabia agora que faria qualquer coisa para ter certeza de que aquele ritmo perfeito nunca cessasse. Essa era a única coisa que eu queria. Eu não estava nem aí para o Tempest ou para os Inimigos do Tempo. Nenhum deles podia me dar algo mais valioso para defender ou pelo que lutar.    

Observei Holly dormindo até não conseguir mais manter os olhos abertos.

 

                     14 DE AGOSTO DE 2009, 6:30.

Acordei na manhã seguinte sentindo dedos acariciando meus cabelos. Quando abri os olhos, Holly estava apoiada num dos cotovelos, totalmente desperta, com a boca perto da minha.     Eu levantei a cabeça só o suficiente para beijá-la.    

– Será que você podia fazer isso toda manhã?    

E então, só por um segundo, sua expressão desmoronou, mas logo em seguida ela se recompôs e sorriu.    

– Eu já dei uma olhada pela janela e está um lindo dia lá fora.    

– Hol, o que eu disse a você ontem, na piscina da ACM? – Tentei sorrir. – Antes de trocar de roupa.    

Ela balançou a cabeça.    

– Nada, pode acreditar. Foi besteira tocar no assunto.    

A expressão dela contradizia suas palavras e eu comecei a ficar preocupado e um pouco chateado com meu eu ligeiramente mais jovem por ele ser um completo idiota. Eu massageei sua nuca com a ponta dos dedos.

– Pode me dizer. Tudo bem.    

Os olhos dela se desviaram para o meu peito e ela roçou um dedo, bem devagar, na minha pele.    

– Sabe quando fui conhecer minha colega de quarto no fim de semana passado?    

A pavorosa Lydia.    

– Sei, lembro.    

– Bem... tinha um cara da minha escola no andar acima do meu. – Ela começou a falar rápido, talvez esperando que eu não entendesse tudo. – Não conheço esse cara direito, mas o colega de quarto dele mudou de dormitório na última hora e, se ele não encontrasse um substituto, teria que pagar pelo quarto sozinho e... eu só pensei... como o seu dormitório é tão longe do meu...    

– Você queria que eu me mudasse para lá... para o seu prédio?    

Não era nada que eu esperasse, e eu não conseguia nem me lembrar de quando ela me pediu para mudar.    

– Era só uma ideia. Quer dizer... Por que você ia querer se mudar se já tinha um lugar pra ficar e muito maior? – Ela descansou a cabeça no travesseiro.

– Agora a pergunta realmente importante é: o que eu te disse?    

– Você disse que detestava aquele prédio e... que eu ia ficar enjoada de te ver toda manhã.    

– Mas você achou que, na verdade, eu queria dizer outra coisa? Que eu ia ficar enjoado de você?    

– É – ela disse, quase num sussurro.    

– Sem chance. – Eu sorri e a beijei antes de me levantar. – Eu me mudo para onde você quiser. Mas acho que você precisa de uma nova colega de quarto.    

– Você nem a conhece... – disse Holly.    

– É, mas eu conheço o tipo. – Peguei algumas sacolas, despejei o conteúdo na cama e comecei a procurar algumas roupas.    

– O que é isso? – Holly perguntou, pegando uma calcinha tão grande que cobria toda a cabeça dela.    

Eu comecei a rir.    

– Poderíamos velejar com essa calcinha. Ou usar como paraquedas...     Ela ainda estava rindo quando pegou um sutiã.    

– Sério? Um sutiã número 48?

– Vá tomar banho enquanto eu encontro alguns menores. – Peguei-a pelos braços e tirei-a da cama, depois aproximei minha boca do ouvido dela. – Eu ainda amaria você mesmo que coubesse nessas calcinhas gigantes.    

– Vou me esforçar para isso. Começando pelo café da manhã – ela disse com uma risada, enquanto fechava a porta do banheiro.    

Eu liguei para Adam enquanto procurava uma calcinha menor.    

– Oi, Adam. Teve sorte com o projeto?    

– Cara, fui pra cama há uns dez minutos... – ele murmurou, com a voz sonolenta. – Mas não consegui ainda.    

Eu suspirei, depois passei a falar em francês em vez de inglês, para que Holly não entendesse no caso de estar ouvindo a minha conversa.    

– Ok, bem, então, pelo que vejo, tenho algumas opções. Se consegui saltar agora para uma data anterior a que expus minhas capacidades, então não vou fazer mais nenhum salto e só vou continuar buscando informações.    

– E se alguém souber?    

Encontrei uma lâmina e um creme de barbear na pilha de mercadorias que trouxe da loja e coloquei-os de lado.    

– Aí eu tenho que escolher um lado.

– Cruzes! Então é quase como se tivesse que escolher um lado ou morrer – disse Adam.    

Essas palavras não me abalaram tanto quanto eu pensava. Acho que parte de mim sabia que acabaria chegando a isso.    

– É, imagino que sim.    

Eu pude ouvir Adam prendendo a respiração do outro lado da linha. Então, finalmente falou outra vez:    

– Só porque você escolhe um lado isso não significa que esteja desse lado... Entende o que eu quero dizer?    

Ele estava certo. Havia alguns furos nesse jogo. Alguns eu podia usar em meu benefício.    

– Bem pensado. Vamos apenas torcer para que o plano A dê certo. Minha vida seria muito mais fácil se eu conseguisse manter tudo em segredo daquelas pessoas do Tempest.    

– Alguém pôs a cabeça no lugar... – disse Adam. – O que aconteceu com você?    

– Muita coisa. Muita coisa mesmo. – A porta do banheiro se abriu, por isso voltei a falar em inglês. – Falo com você mais tarde, Adam.    

Joguei o telefone na cama e me virei. Holly segurava a toalha com uma mão e a outra estava estendida para mim.

– Conseguiu achar alguma coisa, ou vou ter que arranjar uns alfinetes de segurança para prender minha calcinha?    

– Ainda bem que você tem senso de humor. – Apontei uma pilha de roupas que não eram tamanho GG e ela a remexeu.    

– Vocês estavam falando outra vez em francês sobre mim, não estavam? – ela perguntou, erguendo uma sobrancelha com um ar de suspeita.    

– Talvez... mas só falamos coisas boas.

 

John ainda estava no saguão do hotel quando descemos para o café da manhã. Quando Holly avançou alguns passos na minha frente, eu me virei e o cumprimentei. Ele acenou levemente com a cabeça. Só pude supor que logo estaria fora de serviço e eu poderia ficar nas mãos de alguém um pouco mais desconfiado. Alguém não tão fácil de manipular. Pelo menos eu já tinha as plantas memorizadas.    

Depois do café, fomos fazer compras e encontramos algumas roupas que não tinham o logotipo do hotel. Ao voltarmos, vestimos roupas de banho e descemos para a piscina, sentando-nos na borda, com os pés dentro d’água. Estava bem agradável, visto que eu não tinha feito nada nem remotamente relaxante nas últimas semanas. Não que eu não estivesse com os olhos bem abertos para qualquer tipo de problema.    

– Por que este lugar está tão deserto? – perguntou Holly.    

– É sexta-feira. Muitas pessoas chegam na sexta à noite, para o fim de semana.    

Eu escorreguei para dentro da piscina. Ela entrou na água atrás de mim e sentou-se nos degraus da piscina ao meu lado.    

– Você falou sério mesmo com relação à troca de dormitórios? Não precisa fazer isso. O seu quarto é muito mais bonito. Eu fiz um tour pelo seu prédio antes de me matricular.

Meus braços envolveram a cintura dela e puxei-a até que se sentasse no meu colo.    

– Sim, estava falando sério. Se é isso o que você quer.    

– Bem... vejamos... nenhuma Katherine Flynn por perto, reclamando cada vez que fechamos a porta do quarto. Nenhum porteiro escrevendo tudo naqueles livros secretos de espionagem. – Ela tocou os lados do meu pescoço.     Eu me inclinei e a beijei. Justamente quando estava pensando em convencer Holly a ir para o quarto de novo, vi de relance um homem muito conhecido de terno azul e óculos de sol pretos andando na nossa direção.    

O que ele sabia? Só que deixamos a cidade sem ligar para ninguém? Ou algo mais... Eu gemi e encostei os lábios no pescoço de Holly.    

– Quanto tempo você consegue segurar a respiração debaixo d’água?     Não dei tempo para que respondesse; puxei sua cabeça para dentro d’água e a segurei ali por uns cinco segundos. Ela estava rindo quando viemos à tona. Meu pai estava na beira da piscina, braços cruzados, óculos de sol na ponta do nariz.

Os olhos de Holly se arregalaram. Ela ficou novamente de pé na piscina e foi andando na direção dos degraus.    

– Eu vou... hã... pegar uma bebida no bar.    

– Teria sido muita gentileza sua se tivesse me avisado sobre as suas pequenas férias – disse meu pai.    

– Desculpe, esqueci de ligar. – Eu saí da piscina e peguei uma toalha na cadeira, com os olhos pregados em Holly. – O que está fazendo aqui?    

– Eu estava preocupado... O que está fazendo com essa garota? – ele perguntou.    

– O nome dela é Holly. – Eu sequei o cabelo com uma toalha.    

– Eu sei o nome dela...    

– Então, talvez pudesse tentar usá-lo... – sugeri, tentando parecer um adolescente mimado e de mau humor.    

Outro homem usando terno sentou-se discretamente numa cadeira perto de onde Holly estava, no bar. Não consegui ver seu rosto, só o cabelo castanho e o corpo atarracado. O barman colocou dois copos com gelo no balcão e os encheu com chá gelado até o topo.

Holly olhou por sobre o ombro ao ouvir um barulho à distância. Foi o suficiente para que o homem derramasse algo em seu copo. Antes de todos os acontecimentos ameaçadores pelos quais eu tinha passado recentemente, eu nunca notaria isso, e esse pensamento me deixou realmente assustado.    

Eu corri até eles, ouvindo os passos de meu pai atrás de mim. Cheguei por trás de Holly e cobri o copo dela com a mão, depois sussurrei no seu ouvido.    

– Vamos nos mandar daqui. Podemos tomar alguma coisa em outro lugar.    

– Hã... tá.    

Eu reprimi a todo custo o medo que crescia dentro de mim. Era óbvio que a intenção deles não era boa. Eu agarrei Holly pela mão e comecei a me afastar do meu pai, rápido.    

– Jackson! Aonde você vai? – ele gritou para mim.    

Holly olhou por sobre o ombro e começou a andar mais devagar.    

– Não é melhor falar com ele?    

Eu balancei a cabeça e a puxei ainda mais, para que andasse mais rápido. Fomos direto para a parte de trás do prédio, longe dos outros hóspedes do hotel.

Não cheguei a ver ninguém quando passamos correndo pelas lixeiras, mas de repente senti alguém me dando uma chave de braço e meu cérebro passou automaticamente para o modo de defesa. Meu coração nem acelerou. Nem gritei. Nenhum sinal de que eu estava nem ligeiramente sobressaltado. Só uma perfeita defesa silenciosa vinda de algum recôndito obscuro do meu cérebro.    

Holly deu um pulo para trás e em poucos segundos o atacante estava deitado de costas no chão, olhando para o cano da própria arma. Era o homem que estava no bar. Eu finalmente vi o rosto dele. Já o vira antes, por uma fração de segundo, enquanto saltava, na ocasião em que Courtney cabulou aula para me encontrar, em 2003.    

Agora eu estava ofegante, tremendo um pouco, tentando descobrir o que fazer em seguida. Meu pai correu até mim e assumiu o controle da situação.    

– Freeman, o que diabos aconteceu aqui?    

– Alguém vai me dizer o que está acontecendo? – gritou Holly, enquanto fitava o meu atacante, que ainda estava deitado no chão. – Jackson... como você fez... aquilo?

Eu não tive tempo de responder. O sujeito chamado Freeman enganchou o pé na minha perna e me passou uma rasteira para me fazer cair. Eu cambaleei um pouco, intencionalmente, para fazê-lo ficar onde estava, depois o forcei a ficar de cara no chão e os braços presos atrás das costas. Eu tinha feito essa manobra muitas vezes com meu pai em 2007. Pressionei o pé contra a coluna dele, para ter certeza de que não conseguiria se mover, então tirei a arma dele e coloquei no cós do meu short. Eu não sabia como usá-la, mas também não queria que ele usasse.    

– Tudo bem... como você fez isso? – Holly perguntou.    

O plano A estava oficialmente fora de questão. Não daria mais para esconder agora. Mas quem era o verdadeiro inimigo?    

– Só uma manobra básica de autodefesa – eu disse a Holly antes de me virar para o meu pai. – Que droga você quer aqui?    

Meu pai conseguiu esconder o choque no rosto e manteve distância enquanto Freeman se debatia sob o meu pé.    

– Pegamos seu amigo... sabemos o que ele está fazendo.    

Eu olhei adiante e vi um Adam Silverman muito pálido sendo escoltado pelo dr. Melvin.

É, sem dúvida não adiantava mais fingir, tinham descoberto tudo.    

– Adam? – exclamou Holly. – O que está fazendo aqui?    

Adam não respondeu. Seus olhos passaram de Freeman para mim e depois para Holly.    

– O sr. Silverman roubou documentos confidenciais da CIA e o dr. Melvin acredita que você o tenha ajudado – disse o meu pai, erguendo uma sobrancelha para mim. – Sabemos o que você pode fazer, onde você esteve e quando esteve. Sabemos muita coisa.    

Eu olhei para Adam e sua expressão fatigada foi suficiente para responder à minha pergunta. Eu odiava simplesmente pensar no que tinham feito com ele para que falasse. Eu nunca deveria tê-lo arrastado comigo ao consultório do dr. Melvin no dia anterior. Ainda bem que não tinha contado tudo a ele.    

– Espere um minuto... CIA? – Holly perguntou.    

Eu finalmente olhei para ela e percebi que teria que lhe contar alguma coisa. Lembrei que a agente Stewart em 2007 tinha apenas 19 anos. Holly poderia acreditar nessa mentira.    

– Estou treinando... para ser agente. Como meu pai... na verdade, eu e Adam estamos treinando.    

– É por isso que vocês dois estão sempre juntos... quando estão agindo como idiotas?

– Adam e eu gostamos de fazer projetos de pesquisa meio diferentes... só estamos começando essa coisa de treinamento. Ele em geral só invade computadores.    

– Obviamente – ela disse. – Isso é verdade? – perguntou ao meu pai.     Mal pude acreditar que ela acreditava mais no meu pai do que   em mim.    

– É, é verdade – ele disse, sem pestanejar. Talvez tenha achado que o problema seria solucionado com mais rapidez se ele confirmasse a minha mentira. Evidentemente, teríamos que ter inventado uma história para Holly de qualquer jeito. Eu não poderia contar a ela sobre as minhas viagens no tempo.    

Olhei para o meu pai e coloquei o máximo de intensidade na voz:    

– Como você impediu Adam de conseguir as informações, terá que me dá-las você mesmo. Estou cansado de mentiras e papo furado. Seja o que for, eu quero saber.    

– Não tenho certeza se isso é uma boa ideia, Jackson – disse meu pai em voz baixa.    

– Muito bem. – Soltei Freeman e estendi a mão para pegar a de Holly outra vez.

Ela a agarrou no mesmo instante, o que me surpreendeu um pouco, considerando o que tinha acabado de descobrir. Peguei o braço de Adam e comecei a arrastá-lo comigo também. Depois de darmos alguns passos, eu gritei por cima do ombro:    

– Pelo visto, vou fazer isso do meu jeito. Espero que saibam no que se meteram. Adam nunca vai contar tudo pra vocês... principalmente porque nem ele sabe de tudo.    

Meu pai ficou na minha frente numa fração de segundo.    

– Espere um minuto... tudo bem... você ganhou. Talvez possamos contar a você. Eu não percebi o quanto você mesmo já tinha... adivinhado.    

– Ótimo, só eu e o dr. Melvin. – Eu me virei para Adam. – O que acha de você e Holly voltarem para a piscina e você orientá-la sobre... as regras?    

– As regras? – Adam perguntou, parecendo intrigado.    

– É, você sabe... sobre conhecer a identidade de um agente... lembra? – perguntei.    

– Ah!... essas regras. – Ele pegou Holly pelo braço e ela me olhou por sobre o ombro.

– Eu já volto, prometo. – Ficamos olhando Adam e Holly se afastarem, depois eu me voltei para o meu pai. – É melhor você garantir que nada aconteça a eles. E impeça esse cretino de colocar coisas na bebida das pessoas.    

– O que diabos está acontecendo aqui? – Freeman perguntou ao meu pai.    

– Eu explico mais tarde.    

– Vamos, dr. Melvin. – Apontei para uma porta mais afastada do hotel e depois fomos em silêncio até o meu quarto.    

Enquanto eu me vestia, o dr. Melvin sentou-se no sofá da saleta da frente e esperou até que eu falasse primeiro.    

– Jenni Stewart ainda está viva? – perguntei. – Ela ainda é agente e tudo mais?    

Melvin gaguejou um pouco, mas depois respondeu.

– Sim, ela está em Nova York.    

Eu puxei a cadeira da escrivaninha e me sentei bem de frente para ele, depois tirei a arma de Freeman do cós e segurei-a nas mãos.    

– Agora me conte sobre Axelle.    

– Por que você não me diz o quanto já sabe e talvez eu possa preencher as lacunas? – ele disse, falando comigo como se eu tivesse 5 anos.    

Eu tive que rir, mas depois levantei a arma um pouco, embora nunca tivesse usado uma. Mas o dr. Melvin não sabia disso.    

– Bela tentativa. Eu visitei um lugar realmente interessante uma vez. A ala subterrânea do hospital, e estou curioso para saber exatamente o que fazem lá embaixo.    

Seus olhos ficaram do tamanho de uma bola de golfe e então ele assentiu e afundou um pouco mais no sofá.    

– Tudo bem, vou explicar... Axelle é um projeto cujo propósito é usar uma combinação da minha pesquisa sobre o gene Tempus e avanços tecnológicos futuros que obtivemos de varias fontes. A aplicação efetiva do Axelle começou em 1989, quando conseguimos implantar um óvulo fertilizado numa mãe substituta. Minha equipe usou óvulos de uma das IDTs.    

– Espere aí, então você roubou os óvulos de uma IDT? – perguntei. – É por isso que eles estão tão furiosos?

– Eles não estão felizes com o experimento, se é isso o que você quer dizer. E, sim, nos apropriamos dos óvulos da mulher. Mas usamos o     esperma de um homem normal. Um doador anônimo.    

– Vocês a mataram? – perguntei. – A mulher IDT.    

Melvin balançou a cabeça.    

– Não, ela fugiu.    

Meu coração começou a bater duas vezes mais rápido.    

– O nome dela é Cassidy?    

– Como sabe?    

Se eu estivesse de pé, teria caído. A mulher que tentou me levar de volta para esta linha do tempo era biologicamente a minha mãe. Não me surpreende que se parecesse com Courtney. E o que ela tinha dito ao meu pai? Creio que tenho direito de dar minha opinião sobre o bem-estar dele, dadas as circunstâncias. Muito mais do que você.    

Já era demais para mim e eu quase disse para Melvin parar, mas me esconder da verdade já não era algo que me atraísse tanto quanto costumava atrair.    

– Podemos ter nos cruzado... Continue a história.

– O objetivo de Axelle era combinar a genética dos viajantes no tempo com a de seres humanos normais para ver se algumas capacidades se desenvolveriam e, e se fosse esse o caso, até que ponto elas seriam diferentes das outras.    

Eu me senti como se tivesse levado um soco. Outra peça do quebra-cabeça se encaixou.    

– Meios-sangues... Frankenstein – murmurei baixinho. Isso fazia todo o sentido agora. – Por que você queria criar mais viajantes no tempo?    

– Sinceramente, Jackson, eu não fazia ideia de que você um dia seria capaz de viajar no tempo. Claro, esperávamos que fosse. Mas só pretendíamos trazer a este mundo alguém com uma atividade cerebral parecida. A capacidade que eles têm de guardar informações é fascinante. Eu tenho muito mais interesse nisso do que na capacidade de viajar no tempo.     Ah, isso fazia com que eu me sentisse muito melhor.    

– Por que o experimento do meio mutante? Por que não buscar a coisa completa?    

Ele assentiu devagar    

– Essa é a parte mais difícil de entender. É a principal razão por que o Tempest tem que travar essa batalha constante e às vezes quase impossível. Eu posso certamente tentar explicar, mas você pode perder a confiança na nossa organização.

– Humm... é um pouco tarde pra isso – eu disse. – Você pode contar tudo. Eu duvido que a minha impressão do Tempest possa ficar pior.    

A expressão dele desmoronou, mas só por um segundo.    

– Os IDTs não têm emoções normais. A capacidade de apreender conceitos como medo, amor e pesar.    

Eu gemi e tentei refrear a minha vontade de revirar os olhos com sarcasmo.    

– Você está certo, essa é uma explicação bem falha. Então, basicamente, os Inimigos do Tempo são sociopatas cruéis e os agentes do Tempest são o equivalente à Madre Teresa de Calcutá. Não é muito original.     Ele suspirou e tentou ajeitar com a mão o cabelo grisalho rebelde.

– Eu nunca disse que são cruéis. Isso é completamente diferente. Talvez lhes faltem emoções porque eles não veem permanência no tempo. Para mim e para a maioria das pessoas, perder alguém que amamos é devastador porque essa pessoa parte e não podemos voltar no tempo, para a época em que ela ainda vivia. Se pudéssemos, talvez a morte não tivesse o mesmo impacto na nossa vida. O fato de eles poderem saltar no tempo e potencialmente recriar a história é perigoso. E também é perigoso para você fazer experimentos com viagens no tempo. Mas a maior ameaça não é o que eles podem fazer, é a falta de humanidade por trás das suas decisões.    

Bem... eu podia voltar e ver Courtney sempre que quisesse e mesmo assim a morte dela ainda tinha o mesmo impacto sobre mim. Talvez até mais. Eu estava tão entretido com a explicação do dr. Melvin que me esqueci da arma e do fato de que estava praticamente fazendo-o de refém.    

– Nenhum deles parece cruel. Eles até se desculparam por... bem, por algo que ainda não aconteceu... algo que não acontecerá novamente – eu disse com firmeza.

Até a postura do dr. Melvin tinha mudado. Eu era o aluno e ele era o professor.    

– É por isso que é tão difícil explicar. Vivemos num mundo com pessoas como eles. Nenhum IDT, de fato, mas pessoas que tomam todas as decisões com base na lógica e no risco calculado.    

– Ainda assim, não parece tão ruim.    

O dr. Melvin ergueu uma sobrancelha.    

– Não mesmo? Então pense na guerra. Em todos os países alguém está sempre no comando. Um homem ou uma mulher tem que tomar a decisão de mandar soldados para lutar. Jovens que têm entes queridos que precisam deles, homens e mulheres com crianças esperando em casa. Quem quer que dê as ordens para arriscar a vida dessas pessoas está tomando uma decisão calculada. Pesando os benefícios de perder algumas vidas na esperança de salvar outras. Precisamos, sim, de pessoas como essas em nosso mundo, mas imagine se todo mundo fosse assim.    

Meus ombros afundaram sob o peso das palavras dele.    

– Você acha que posso ficar como eles? Eu era normal até fazer 18 anos. E seu eu simplesmente começar a mudar e acabar como eles?    

Melvin sorriu um pouco.

– Eu conheço você desde antes de nascer, Jackson. Você nunca seria uma dessas pessoas que mandam outras para a morte, não importa quantas outras seriam salvas. Os métodos deles são matemáticos e os seus vêm do coração, embora sejam impulsivos às vezes. É uma qualidade maravilhosa. Mas é também uma fraqueza.    

– Eles a veem como uma fraqueza ou você a vê assim?    

– As duas coisas – ele disse sem hesitar. – Os médicos travam a mesma batalha interior. Há momentos em que, pelo bem do paciente, temos que deixar a compaixão de lado e só considerar os fatos médicos para dar um diagnóstico ou indicar um tratamento. Outras vezes, a conexão emocional com um paciente traz benefícios incríveis, mas frequentemente é difícil se desligar no momento certo.    

Eu não deixei de perceber a tristeza que surgiu no rosto dele.    

– Como com Courtney? Você tentou mantê-la viva por mais tempo do que deveria?

– Ela sentia muita dor. Eu sabia disso e ainda assim não queria desistir. – Os olhos dele estavam enevoados, mas nenhuma lágrima caiu. – Eu não sei se era certo ou errado. Para ela, acho que a mudança começou mais cedo do que para você. Num mês, tudo estava bem, e, no outro, seu cérebro estava cheio de tumores inoperáveis. Não havia como prever que isso aconteceria. – Ele suspirou e focou o olhar acima do meu ombro. – Tínhamos os melhores neurocirurgiões e oncologistas do mundo estudando o caso. Mas a medicina moderna não poderia mudar o que aconteceu a ela.    

– Então, é possível que ela pudesse ser como eu... se não tivesse ficado doente?    

– Sim – ele disse. – Só não tenho certeza se dizer tudo isso a você não servirá apenas para deixá-lo ainda mais arrasado.    

– Eu queria saber. – Balancei a cabeça e olhei para as mãos. – Mas agora é um pouco difícil sentir uma ligação com alguma coisa... com meu pai, quando sei que sou só um experimento.    

As palavras saíram antes que eu pudesse detê-las. Ainda bem que só Melvin estava presente. Meu pai tinha me dito em 2007 que Courtney e eu éramos sua missão, seu trabalho. Mas eu queria ser seu filho.

– Eu não sei como convencer você do contrário, mas posso lhe dizer com certeza que o lado do seu pai é o certo.    

Eu me lembrei de algo que Marshall dissera em 2007, quando estávamos de pé na frente do corpo de Harold. Ele é uma das crias do dr. Ludwig.    

– Quem é o dr. Ludwig? – perguntei.    

Melvin ergueu as sobrancelhas.    

– Um cientista, como eu. Alguém com um fascínio parecido pela mente dos viajantes no tempo. Só que seus produtos são puros-sangues, mas não originais. São cópias.    

– Está falando de clonagem?    

– Algo parecido. Mutações genéticas também.    

Minha mente imaginou fileiras de Harolds, Cassidys e do cara com a marca de sapato no rosto, todos alinhados em incubadoras gigantescas. Era de arrepiar.    

– Espere... eu não sou um clone... sou?    

Melvin balançou a cabeça vigorosamente.    

– De jeito nenhum. Você e a sua irmã foram criados da mesma maneira que muitas crianças são trazidas ao mundo. Não é diferente de uma mulher que tem dificuldade para engravidar.

Eu suspirei, aliviado. Ser um experimento da ciência já era ruim o bastante, mas ser criado por uma máquina ou coisa assim era muito mais do que eu podia suportar sem perder a sanidade.    

– Então onde está esse Ludwig? A CIA vai tirá-lo de cena ou detê-lo ou coisa assim?... Quer dizer, ele não pode continuar com essa coisa de fazer pessoas... Espere!... Ele não está do lado da CIA, como você, está?    

– Não, ele não está do lado do Tempest – Melvin respondeu com firmeza. – E nem está mais vivo.    

– Alguém já o pegou?    

– Algo assim.    

Ele tinha me dado as informações que eu queria. Elas preencheram as lacunas perfeitamente e, ainda assim, eu não conseguia confiar no meu pai ou nos IDTs. Talvez eles estivessem revoltados porque Melvin roubou os óvulos da mulher. Fazia sentido.    

Eu acreditava que o dr. Melvin se preocupasse comigo e com Courtney. Eu agora era bom o suficiente em interpretar expressões faciais para saber disso, mas não era ele quem dava as cartas. Era o Comandante Marshall, o que significava que eu não podia contar muito com o dr. Melvin.

Eu parei de pensar nisso porque o médico começou a me olhar tão intensamente que fiquei preocupado com a possibilidade de ele estar lendo meus pensamentos. Adam tinha me dado a resposta de que eu precisava naquele dia. Eu podia escolher um lado sem vender minha alma.    

– Tudo bem, me diga a verdade. O Comandante Marshall está aqui, na espreita, em algum lugar? Eu gostaria de falar com ele a sós.    

O rosto do dr. Melvin endureceu, mas ele assentiu e pegou o telefone.    

– Eu vou dar uma olhada nos meus amigos. Ele pode me encontrar lá quando estiver pronto – eu disse, enquanto andava em direção à porta.     Quando eu estava voltando para a área da piscina, Adam me mandou uma mensagem pelo celular dizendo, “Você pode me agradecer mais tarde”.    

Eu não fazia ideia do que ele queria dizer, mas no segundo em que os localizei sentados nas espreguiçadeiras um ao lado do outro, Holly pulou da cadeira e me abraçou. Ela tinha colocado um vestido sobre o maiô; e eu de fato não esperava vê-la nadando e se divertindo enquanto eu tinha uma conversa crucial com o dr. Melvin.    

– Lamento muito – ela sussurrou. – Adam me contou tudo.

Meus braços a envolveram e eu olhei para Adam por sobre o ombro dela, tentando entender o que tinha acontecido. Ele ergueu as sobrancelhas como se dissesse, “Apenas continue fingindo”.    

Eu comecei a formular teorias na cabeça sobre o que ele poderia ter dito a ela, e então elegi algumas; meu pai não ser meu pai era a mais provável, pois era um motivo para eu querer fugir no fim de semana. Ele podia ter dito que essa informação estava no computador do dr. Melvin. Isso era meio forçado, mas era possível que ela acreditasse.    

– Como você aceitou tão bem essa coisa do governo? – perguntou.    

Ela riu um pouco e nós dois nos sentamos, cada um numa espreguiçadeira.    

– Prometa que não vai mais ficar furioso comigo se eu disser uma coisa?    

Eu sorri para ela.    

– Duvido que algum dia eu vá conseguir ficar furioso com você.    

– Eu tenho um diário cheio de teorias sobre você e a maioria delas era muito mais maluca do que ser um agente da CIA.    

– Como o quê? – Adam e eu perguntamos juntos.

Isso era novidade para mim.    

– Hum... bem... eu pensei em desvio de dinheiro. Achei que talvez Adam estivesse ajudando você a hackear computadores de bancos estrangeiros. Então você seria membro de uma quadrilha, claro.    

– Claro – eu disse. – E como Adam estava envolvido?    

Ela se aproximou mais de mim e eu me senti sinceramente intimidado pela empolgação no rosto dela. Aparentemente o fascínio que ela sentia quando criança pela espionagem não tinha diminuído.    

– Adam podia ser o seu fornecedor de identificações falsas, caso você quisesse, por exemplo, contratar imigrantes ilegais para o seu negócio e precisasse de documentação. Ele arranjaria documentos falsos.    

E distintivos da CIA falsos.  

– Holly, como você continuava namorando o Jackson? – Adam perguntou.    

Ela balançou a cabeça e sorriu.    

– Deus, você não faz ideia de quantas vezes eu mesma me fiz essa pergunta!    

Eu me inclinei e toquei os lábios dela com os meus.    

– Não culpo você.

– O negócio de desvio de dinheiro não é má ideia – disse Adam. – Poderíamos pensar em pôr isso em prática...    

Holly começou a rir.    

– Adam ser da CIA me surpreendeu muito menos do que você ser um agente secreto. Não existe um só aluno da nossa classe que não ache que Adam será um superprogramador de software importante ou algum tipo de especialista em decifrar códigos. Pessoalmente, eu achava que ele já estava trabalhando para alguém, fazendo de conta que era um aluno normal do secundário durante o dia, e à noite...    

Adam soltou uma risada maligna para pontuar a história de Holly.    

– Eu só queria saber chutar alguns traseiros, como Jackson. Ia ser bom demais.    

– Eu te ensino um dia desses.    

– E você vai me ensinar também ou eu conto pra todo mundo os seus segredos. – Holly se levantou e pegou sua bolsa no chão. – Vou pegar uns petiscos pra nós.    

Esperei até ela chegar ao bar, onde meu pai e Freeman estavam sentados, nos observando, antes de falar com Adam.    

– O que você disse a ela?    

– Além do nosso recrutamento pela CIA? Só a história de que seu pai não é seu pai de verdade. Eu imaginei que ela ia engolir, principalmente se eu fizesse o seu pai parecer um filho da mãe.    

– Então... você conseguiu dar uma olhada nos arquivos sobre o Axelle? – perguntei. Ele baixou os olhos e assentiu. – Assustador, né?    

– É – ele disse com um suspiro.    

– Lamento ter envolvido você... O que fizeram pra fazer você falar?     Adam empalideceu.    

– Uma combinação de ameaças contra a maior parte da minha família, contra você, contra Holly, e no final seu pai acabou com o interrogatório e disse que me traria junto para ter certeza de que nada aconteceria a vocês dois. Ele não foi exatamente simpático, mas pelo menos não me ameaçou, como os outros caras.    

Holly voltou com petiscos para todos nós, e eu vi o Comandante Marshall andando na direção do meu pai.

– Guarde alguns nachos pra mim, ok? Tenho outro... encontro.    

Holly assentiu e eu senti os olhos dela me seguindo enquanto eu me aproximava do homem que, da última vez que vi, quase me estrangulou até a morte. Aquilo ia ser interessante.    

Eu parei na frente dele e certifiquei-me de que estava pronto para começar o jogo. Eu tive que levantar um pouco o pescoço para fazer contato visual com ele.    

– Importa-se se conversarmos um minuto?    

O rosto dele manteve-se frio e distante, como sempre.    

– Não, claro.    

Meu pai começou a nos seguir, mas eu me virei e estendi o braço.    

– Isso é só entre mim e o Comandante Marshall.    

Meu pai deu a impressão de que ia se opor, mas logo voltou atrás, o que só aumentou as minhas suspeitas. Eu me virei para Marshall.    

– Nada de escutas ou aparelhos de comunicação.    

Ele hesitou, mas removeu a pequena peça de plástico do ouvido e jogou-a no chão antes de esmigalhá-la sob o sapato. Então tirou o relógio e o passou para o meu pai.

Eu o levei para os fundos do edifício. Meu quarto provavelmente já tinha sido grampeado pelo meu pai ou pelo tal Freeman. Tomei fôlego e procurei parecer o mais seguro possível.    

– Quero que você me torne um agente.    

 

Como eu esperava, seu rosto não se alterou.    

– Por quê? Para convencer sua namorada? Acho que Adam Silverman poderia fazer um distintivo suficientemente autêntico para convencê-la. Você não precisa da minha ajuda.    

– Estou falando de um treinamento de verdade. – Eu falei entredentes, tentando controlar a raiva. O Comandante Marshall não era exatamente a minha pessoa favorita. – Sei sobre Jenni Stewart. Você a aceitou quando ela tinha 19 anos.    

– Não acho que o seu pai vá ficar muito feliz comigo.    

– Ele não é meu pai e por que você acha que eu o deixei de fora dessa conversa? – Corri os dedos pelo cabelo, tentando pensar em algo que fosse mais convincente. – Sei que a agente Stewart só tem alguns meses de treinamento. Você poderia me colocar no grupo dela.

– Como um viajante no tempo, certo? Essa seria a sua contribuição? – Ele me lançou o mesmo olhar ganancioso de 2007. – Você poderia acrescentar mais alguns ativos à lista, visto que já esteve em outubro deste ano. Deve saber mais sobre os próximos meses.    

Ele devia ter feito interrogatórios rápidos, pois parecia saber cada detalhe.    

Eu balancei a cabeça.    

– Não, você não vai me usar pra isso. Não quero que ninguém saiba. Tenho certeza de que a minha ligação familiar será suficientemente convincente.    

Ele cruzou os braços e eu pude perceber que ideias e teorias davam voltas em sua cabeça.    

– Só vou concordar se souber a sua motivação.    

Eu engoli uma risada.    

– Querer matar alguns IDTs não é suficiente pra você?    

– Não, se for mentira.    

Soltei um suspiro exasperado.    

– Tudo bem, a razão é simples. Eu tenho que escolher um lado. Essa é a minha única motivação agora.

Ele assentiu, estendeu a mão e eu a apertei.    

– Exatamente o que eu queria ouvir. Vou falar com o seu pai, mas você está consciente que tudo na sua vida está prestes a mudar, certo?    

– Já não mudou? – eu disse, dando de ombros.    

Eu o deixei e voltei para Holly e Adam. Intencionalmente, evitei fazer contato visual com o meu pai.    

– Estou podre. Fiquei de pé a noite toda – disse Adam um pouco depois, quando o sol começou a se pôr. – O seu pai já conseguiu um quarto pra mim, então eu vou nessa.    

– Vejo você mais tarde, Adam – eu disse.    

Holly acenou com a cabeça na direção do bar da piscina, onde Freeman e meu pai ainda estavam sentados.    

– Então, ainda está furioso com ele?    

– É complicado.    

Ela franziu a testa.    

– Explique, então... ele ainda é o homem que criou você, não é? Isso deve valer alguma coisa.    

Ela esperou pacientemente pela minha resposta e eu tive a impressão de que esse era o tipo de informação que ela mais queria de mim. Mais do que os segredos da CIA.

– É, vale... mas ainda não tenho certeza se posso confiar nele.    

– Talvez você confie... um dia. Vocês não vão ter tantos segredos agora.    

– Espero que não. – Eu acariciei o rosto dela e olhei em seus olhos. Queria tantas coisas naquele momento. Coisas que nunca quis antes. Mas, principalmente, não queria que a lembrança desse momento se apagasse. Ou que ela se esquecesse.    

– Quer ir para o quarto?    

Ela sorriu.    

– Quero!    

Deixamos o bar e voltamos rapidamente para a nossa suíte. No segundo em que tranquei a porta, Holly estava na minha frente, desabotoando a minha camisa.    

– Olha quem está sem paciência hoje... – brinquei.    

Apesar da pouca luz, eu pude ver suas bochechas ficando coradas. Eu adorava ainda ser capaz de fazê-la corar.    

Meus dedos encontraram o zíper nas costas do vestido dela e lentamente o abri e abaixei as alças até fazê-lo cair no chão ao lado da minha camisa.    

– Como você sabe... não faço isso há um bom tempo. – Eu a levantei do chão e ela entrelaçou as pernas na minha cintura.

Ela riu alto, quando eu a derrubei na cama.    

– Sério? Em que mundo louco você vive? Só se passaram...    

Eu toquei seus lábios com o dedo, impedindo-a de falar.    

– Vamos fingir que faz muito tempo... semanas.    

– Como se você tivesse se perdido no mar?    

– Exato.

 

Por volta da meia-noite, o toque do meu celular me fez acordar num sobressalto. Holly estava enrodilhada ao meu lado, mas quase não se mexeu quando estendi o braço para pegar o telefone debaixo do travesseiro.    

– Pai?    

– Desculpe se acordei você. Achei que podia vir me encontrar aqui embaixo, no bar.    

Nada de me esconder agora. Se eu não fosse, era capaz de ele vir até o meu quarto e colocar um pano cheio de formol no meu nariz ou algo assim.    

– Me dá cinco minutos.    

– Não precisa se apressar.    

Eu sacudi o ombro de Holly de leve e virei de lado para olhá-la.    

– Hol? Holly?    

Os olhos dela se entreabriram.    

– Hã?    

– Meu pai quer que eu me encontre com ele no bar, ok? Quer conversar ou algo assim.    

Ela se virou para o outro lado e puxou as cobertas até o queixo.

– Claro.    

– Não demoro. – Eu tirei seu cabelo do rosto e a beijei na bochecha. – Amo você.    

Ela pousou a ponta dos dedos no meu rosto e sorriu.    

– Eu também.    

Eu me vesti rapidamente, sem me esquecer de pegar a arma de Freeman.    

Quando cheguei ao bar, ele estava completamente vazio, com exceção do meu pai e do barman, que ria de algo que meu pai tinha acabado de dizer.    

– Está sozinho? – perguntei a ele.    

Ele se virou para o barman.    

– Vamos levar nossas bebidas para um reservado, ok?    

– Claro.    

Eu o segui pelo bar vazio até um reservado. Ele colocou uma cerveja na minha frente e eu pude perceber, olhando na cara dele, que já tinha bebido algumas. Isso não era típico de um agente em serviço.    

– Estou sozinho – ele respondeu. – Freeman e Melvin estão... numa missão.    

– Ok – eu disse, devagar.

– Melvin me contou tudo o que conversaram. Olhe, Jackson, estou pensando nisso já há algumas horas e acho que você não deveria se obrigar a seguir essa vida só porque pensa que não existe outro jeito.    

– Você quis me ensinar aqueles golpes em 2007 – sublinhei.    

Ele tomou o resto da cerveja, depois balançou a cabeça.    

– Não sei. Talvez eu achasse que você estaria mais seguro sob a nossa vigilância ou que precisasse de treinamento.    

– E agora?    

– Não tenho certeza se você está ciente do sacrifício necessário para dedicar a sua vida a algo que não pode contar a ninguém. Nem mesmo aos seus próprios filhos.    

Durante alguns segundos, ele deteve toda a minha atenção. A intensidade dos seus olhos. Eu queria acreditar em cada palavra que ele dizia, falar que o amava, mas não estava totalmente certo de que ele não estava fazendo mais um dos seus joguinhos.    

– Não posso ajudar pessoas em quem não confio. Não quero ser enganado ou feito de bobo.    

Ele se recostou no banco e deu um longo suspiro.

– Estávamos apenas tentando proteger você. Era coisa demais para aceitar de uma só vez.    

– Eu sei disso. Mas agora cheguei a um ponto em que prefiro que simplesmente que me digam tudo. Não importa o quanto seja ruim. Matar pessoas e essa coisa toda. – A terrível lembrança do Comandante Marshall dando ao meu pai a ordem de atirar em Harold veio à tona. – Como você faz isso... matar pessoas e continuar seguindo em frente, sem sentir nenhuma culpa? É tudo só trabalho pra você? Até ser pai? Era só uma missão, certo?     Eu esperava que ele ficasse com raiva, como sempre acontecia. Mas só assentiu e olhou para as próprias mãos antes de me olhar nos olhos.    

– Tem uma coisa que eu gostaria que você visse. Algo no passado. Mas você só tem que olhar, não há nenhum truque nisso. Isso vai responder a muitas das suas perguntas. Basta que dê um meio-salto. Aquele que não afeta a história.    

– Adam te falou sobre os meios-saltos...? – perguntei, e ele assentiu com a cabeça. – Para quando eu tenho que saltar? Qual data?    

– Dois de outubro de 1992 – ele disse. – Em torno das três da tarde.

– Nunca voltei tanto assim. Vai me fazer ficar bem mal. Bem mal mesmo. E eu não sei quanto tempo vou conseguir ficar.    

– Eu sei. Você é quem decide se quer tentar ou não.    

Tudo o que eu via em seu rosto era tristeza e exaustão. Não era a energia de empolgação que Marshall, Melvin e meu pai 007 tinham quando eu lhes contei sobre o passado ou o futuro. Ele tirou uma caneta do bolso e desenhou um pequeno mapa do Central Park e circulou um antigo parquinho. Então me passou um aparelho que parecia um MP3, mas eu sabia que era um amplificador de sons à distância. Jenni Sterwart tinha me mostrado o dela aquele dia, quando fiz seu trabalho de espanhol em troca de alguns segredos.    

Eu fechei os olhos e deixei que o ar morno do bar se desvanecesse.

 

                    2 DE OUTUBRO DE 1992, 15:00.

Eu estava de pé no meio de um campo de beisebol, não muito longe da árvore de onde eu cairia e quebraria o braço dali a quatro anos. À distância, eu podia ver um dos parquinhos onde eu me lembrava de ter passado muitas horas quando criança. Com meu pai ou com uma das babás que tivemos na época.    

Quando cheguei mais perto, vi um homem da altura do meu pai empurrando uma criança com um suéter rosa-choque no balanço. Um garotinho de cabelo castanho tentava escalar o escorregador, enquanto uma mulher de cabelo castanho-claro o empurrava para cima cada vez que ele deslizava para baixo.    

Courtney e eu tínhamos em torno de 2 anos de idade nesse dia... tinha que ser a gente. Eu me sentei numa mesa de piquenique e liguei o aparelhinho que meu pai tinha me dado. Então coloquei os fones de ouvido.

Meu pai era com certeza o homem que empurrava Courtney no balanço, mas parecia muito mais jovem. Talvez tivesse 24 ou 25 anos. O mapa que ele tinha me dado estava dobrado no meu bolso de trás. Eu o peguei e o abri sobre a mesa para parecer que o estava estudando.    

Ele tirou a garotinha de cabelos ruivos do balanço e carregou-a no colo até a caixa de areia. Então a mulher pegou o meu jovem eu e também me levou para lá. Era tão estranho ver a mim mesmo, ainda de fraldas, andando por ali aos tropeços e tentando escalar um escorregador como o Homem-Aranha.    

Meu pai se sentou na borda da caixa de areia, com Courtney aos seus pés. Eu podia ouvi-la cantando. Parecia que só balbuciava a princípio, mas depois percebi que estava cantando em francês enquanto brincava com uma pá coberta de areia.    

A voz da mulher se uniu à de Courtney e me pareceu conhecida. Ou talvez tão agradável que parecia conhecida. Ela devia ser uma babá ou baby-sitter. Era quase tão jovem quanto uma colegial. Talvez trabalhasse para o meu pai enquanto cursava o ensino médio.

Ela se sentou num banco perto da caixa de areia. Meu eu de 2 anos de idade pulou na caixa e continuou pulando até chegar à outra extremidade.    

– Quer um baldinho? – meu pai perguntou a Courtney.    

Ela disse que sim com a cabeça, sacudindo as marias-chiquinhas e continuando a cantar. Meu pai colocou um balde azul na frente de Courtney e então olhou para a mulher e sorriu. Não foi o tipo de olhar que se dá para uma empregada ou colega de trabalho.    

Era algo mais.    

O meu pequeno eu pulou até ficar atrás de Courtney, pegou um punhado de areia e começou a polvilhá-la sobre a cabeça da minha irmã.    

– Está chovendo, chovendo...    

Ela cobriu o rosto com as mãozinhas gorduchas e gritou:    

– Não!    

Por um instante fiquei fascinado com a capacidade que o meu eu de 2 anos tinha para fazer o olhar mais inocente e desonesto que eu já vi. Era como se eu adorasse fazer Courtney gritar assim.

– Não, Jackson! – disse meu pai.    

Courtney se virou e empurrou meu rosto com as duas mãos.    

– Para!    

Ela me empurrou com tanta força que eu caí sentado. Então me levantei no mesmo instante e peguei um caminhãozinho e comecei a brincar com ele sobre os montes de areia.    

– Vamos fazer um castelo para a princesa Courtney? – meu pai     perguntou.    

Eu revirei os olhos. Então foi assim que tudo começou. Toda a minha infância, sempre foi assim. Eu sou a princesa, por isso eu é que mando. Papai que disse.    

Meu pai encheu o balde de areia, usando a pá de Courtney, mas eu pude vê-lo sondando as árvores em torno do parque, à procura de alguma coisa. Estava trabalhando. Courtney pegou vários punhados de areia e jogou dentro do balde. Depois deu batidinhas na areia do balde, apontou para o meu pai e disse.    

– Kevin.    

Só que soou como “Kebin”. Então ela não o chamava de pai. Mas eu não tive chance de pensar sobre isso porque a mulher no banco se levantou e se sentou na areia.    

– Jackson, você pode fazer chover em mim. Eu não me importo.

Ela tinha um sotaque escocês. O meu pequeno eu encheu a mão de areia e começou a salpicá-la na cabeça da mulher. Ela só ria e jogava a cabeça para trás, com os olhos fechados. Eu podia ver seu rosto nitidamente agora, de onde estava sentado. Era muito bonita, de certo modo radiante, mas de uma beleza singela. Talvez só estivesse muito feliz. Feliz com o garotinho jogando areia sobre a sua cabeça.    

A mulher pegou meu pequeno eu nos braços e começou a enchê-lo de beijos no rosto, enquanto dava uma risada alta que retiniu nos meus ouvidos.    

– Podemos fazer anjos de areia! – ela disse.    

Eu observei, fascinado, quando ela se deitou na areia, perto do meu pequeno eu, abriu os braços e começou a agitá-los como se esperasse sair voando. Courtney levantou os olhos do castelo e riu, depois se deitou ao meu lado para fazer seu próprio anjo de areia.    

– Você vai ter que tirar areia do cabelo deles por vários dias – meu pai disse, virando o baldinho de Courtney. – Isso é como a pintura com os dedos, que nunca é feita no papel.    

A voz dele estava cheia de afeição, não aborrecimento.    

– Mas daqui a dez anos, só vão se lembrar desta parte. Não da areia que vamos ter que tirar da cama deles por uma semana – a mulher disse.

Então ela se sentou de repente e puxou meu pai pela camisa, fazendo-o se deitar ao lado dela.    

– Vem cá, deita aqui.    

Meu pai riu alto, mas não se opôs.    

– Eileen!    

Eileen. O nome que estava na minha certidão de nascimento. A mulher que eu achava ser minha mãe.    

Ele estendeu o braço e pegou a mão dela, fazendo-a deslizar para baixo da perna dele e escondendo seus dedos entrelaçados. De quem ele estava escondendo aquilo? Com certeza não era das crianças de 2 anos de idade que tomavam banho de areia, alheias a tudo. E que grande foto aquela cena daria: quatro pessoas deitadas numa caixa de areia, como num enorme colchão d’água.    

– Você fica tão diferente quando ri – a mulher chamada Eileen disse para o meu pai. Ela virou a cabeça só o suficiente para que sua testa encostasse na bochecha dele e eu vi os lábios dela tocando levemente seu rosto e ele sorrindo.    

– Jackson – disse meu pai. – Conte à sua mãe a piada engraçada que eu te ensinei.    

– Toc, toc – disse meu pequeno eu, ainda agitando os braços na areia.

Eileen riu.    

– Quem é?    

– Toc, toc – meu eu repetiu.    

– Só chegamos até aí – meu pai disse.    

Então os dois riram.    

A atividade na caixa de areia não era o único barulho que o meu aparelho estava captando. O som de passos sobre folhas secas era audível nas árvores à distância. Meu pai devia ser mais observador do que eu pensava, porque se levantou de repente e ficou olhando para as árvores. Courtney se sentou também e meu pequeno eu ficou de pé e começou a sapatear sobre o anjo de areia da irmã.    

Eu ouvi um clique familiar de um disparo antes mesmo de poder divisar o homem escondido entre as árvores. O tiro fez um barulho alto, mas tudo o que eu vi foi meu pai mergulhando sobre Eileen e me agarrando com um braço e colocando Courtney sob o corpo dele, com o outro. O meu pequeno eu bateu as costas com tudo no chão e imediatamente começou a chorar.

Meu pai gritou com alguém, mas não consegui ver outro agente ou qualquer outra pessoa, a não ser o homem atrás da árvore. Meu pai puxou a arma do bolso de trás da calça e disparou na direção do homem. Ele estava cobrindo com seu corpo as duas crianças, o que lhe dava pouca chance de acertar o tiro. O homem escondido correu para trás de outra árvore e foi então que eu vi seu rosto e seu cabelo ruivo.    

O sujeito da marca do sapato.    

Eu não sei o que me levou a pensar em fazer o que fiz em seguida. Foi como um instinto enterrado dentro de mim. Meu coração parou de martelar, voltando ao ritmo normal, e imagens surgiram na minha cabeça rapidamente – a área, a distância entre mim e o cara ruivo – e eu consegui ver tudo com muita clareza. Então puxei a arma do agente Freeman e atirei. Eu nunca tinha disparado uma arma até aquele dia, mas sabia sem sombra de dúvida que a bala o atingira no peito.    

E noventa por cento do meu cérebro queria que eu tivesse errado o tiro.

Ele caiu no chão e eu comecei a correr em sua direção. Diminuí o passo ao me aproximar do corpo. Ele estava caído de costas, olhando na direção das árvores, com os olhos ainda abertos, mas com o peito imóvel. Eu me abaixei ao lado dele e pressionei as mãos sobre o sangue que escorria através do seu suéter.    

Lutando para respirar, deixei a arma cair sobre o peito do homem e não consegui pegá-la outra vez.    

Pude ver meu pai de onde eu estava sentado. Ele estava abraçando forte meu pequeno eu e murmurando:    

– Está tudo bem.    

Duas outras pessoas apareceram correndo, um homem e uma mulher. Deviam ser agentes, porque papai fez sinal para eles e a mulher pegou Courtney e o meu pai me passou para o outro cara, e eles se afastaram depressa. Meu pai tirou a areia das costas e Eileen se curvou sobre ele com as mãos cobrindo a boca.    

– Meu Deus, Kevin, você foi baleado!    

Então o corpo dele estremeceu com uma risada e ele estendeu o braço e a puxou para baixo, aproximando o rosto dela do dele.    

– Foi só o ombro, estou bem.    

Ela encostou a cabeça no peito dele e eu pude ouvir os soluços altos dela, mesmo sem a ajuda do aparelho.    

– Eles podiam ter matado você.

– Chh, está tudo bem. Não se preocupe comigo. Já fui baleado antes.    

– E as crianças? Onde elas estão?    

– Relaxe. Já estão no carro blindado. Que é onde você devia estar agora. Eu podia matar Freeman por ter me feito levar esse susto. Onde diabos ele estava? – meu pai perguntou.    

Eileen levantou a cabeça, pegou o rosto dele com as mãos e o beijou, como se aproveitasse o fato de um dos braços dele estar imobilizado. Ele usou o braço intacto para acariciar os cabelos dela, mas alguns segundos depois ele a afastou, só um pouco.    

– Marshall vem vindo – ele sussurrou.    

Ela assentiu, mas beijou o rosto dele novamente, então disse rapidamente:    

– Amo você.    

– Não se mexa! – disse o Comandante Marshall com sua voz grave, atrás de mim.    

Eu fechei os olhos e saltei antes que Marshall tivesse chance de pôr as mãos em mim novamente.

 

                  15 DE AGOSTO DE 2009, 1:20.

– Jackson!    

Minha testa estava pressionada contra o tampo da mesa de madeira.    

– Hã?    

Eu nunca tinha me sentido tão mal depois de um salto. Era como se estivesse com uma febre de 40 graus.    

– Vou tirar você daqui – meu pai disse.    

Ele me levantou do reservado e colocou um dos meus braços sobre os seus ombros. Fez com que eu fosse para o saguão do hotel e tomasse o elevador com ele, depois me levou para o seu quarto. Eu caí no sofá e fechei os olhos, incapaz de mexer um único músculo.    

– Droga, você está mal – ele murmurou. – Do que você precisa? Comida? Água?    

– Não – gemi. – Só ia me fazer vomitar.    

Ele acendeu um abajur.    

– O que foi? Por que está olhando as mãos?    

Eu não tinha percebido que estava olhando para as minhas próprias mãos até ele dizer. Elas estavam limpas, mas era como se eu ainda pudesse sentir o sangue espesso entre os dedos.

– Toquei o ferimento. O homem estava sangrando... Não acredito que fiz isso...    

– Que homem?    

– O homem em quem eu atirei. Ele está morto. Na verdade, não está realmente morto, mas eu atirei, assim mesmo.    

– Mas... você viu o que aconteceu? Com... ela? – Ele gaguejou as últimas duas palavras e baixou os olhos.    

– O que devia ter acontecido? Quando eu não estava lá? – Aquilo me abalou. Eu não tinha nenhuma lembrança de Eileen e meu pai me perguntou se eu tinha visto o que aconteceu com ela. – Ela foi morta? No ano de 1992 real?    

Meu pai assentiu lentamente e soltou as minhas mãos, deslizando até se sentar no chão.    

Então, quando aquilo realmente aconteceu, quando eu não estava lá, o homem ruivo não tinha ninguém para detê-lo e impedir que atirasse nela.    

– Pai, era o mesmo cara... um dos caras que estavam lá quando Holly levou o tiro. – Eu não conseguia parar de olhar minhas mãos... De onde o sangue do homem tinha desaparecido. Não era real, mas eu sentia que era. – Lamento... eu não podia deixá-lo vivo e não...    

– Fazer alguma coisa? – ele perguntou antes de se levantar e se sentar numa cadeira na minha frente.

– Fui um idiota. Não mudei nada. – Eu afastei o pensamento da minha cabeça e fiz outra pergunta. – Quem era ela? Eileen.    

Ele ficou em silêncio por um minuto, refazendo-se.    

– Uma cientista. Absolutamente brilhante. Trabalhava com o dr. Melvin. Ela também foi a mulher que carregou no ventre você e Courtney. Embora não tivessem laços de sangue, ela sempre se considerou mãe de vocês.    

– Eu ouvi isso. Mas éramos só um projeto para ela? Uma missão? O dr. Melvin explicou sobre a mãe substituta do experimento.    

Ele balançou a cabeça.    

– Talvez a princípio, mas no instante em que sentiu vocês chutando na barriga dela... e, depois, quando os segurou nos braços... ela os viu como filhos dela. Dois bebezinhos maravilhosos que mudariam o mundo com suas mentes brilhantes. Era isso que ela queria do experimento.    

– Qual era o seu trabalho? Protegê-la?    

– Meu trabalho era proteger você e a sua irmã. O agente Freeman – não o que você atacou hoje, mas o pai dele – estava designado para proteger Eileen. Eu me juntei ao projeto quando você e Courtney estavam começando a andar... deviam ter uns 11 meses de idade.

– Depois que eu baleei aquele homem, você ficou furioso com o agente Freeman... disse que não sabia onde diabos ele tinha se metido.    

Meu pai empalideceu.    

– Não era isso que eu pretendia que você fizesse. Só queria que você visse o que aconteceu, para saber por que eu faço o que faço.    

– Você não tem que explicar. – Eu levantei as mãos, embora o sangue tivesse desaparecido, e ele assentiu. – Você a amava, não é?    

– Sim. – A voz dele falhou e ele voltou os olhos para a TV. – Se eu pudesse mudar alguma coisa, seria aquele dia. Mais quinze segundos e eu poderia tê-la protegido.    

– Você quase conseguiu, mas protegeu a mim e a Courtney, em vez disso – eu disse, num sussurro.

– Eu sei o que está pensando. Não é bem assim, Jackson. As pessoas vivem falando de ressentimento, como se acontecesse o tempo todo. Se eu tivesse salvado Eileen e deixado algo acontecer a você ou a Courtney, ela nunca teria me perdoado. Nunca. – Ele sorriu um pouco, mas era um sorriso cheio de dor. – Para mim, ela deixou uma coisa que amou. Duas coisas. Uma parte dela que eu pude manter comigo. Eu queria ser pai de vocês antes de ela morrer. Casar-me com ela e ter uma família. Era preocupante, é claro, mas essa era uma barreira que eu estava disposto a transpor, depois de descobrir o melhor jeito de contar sobre nós para os meus superiores.    

– Lamento muito, pai – eu disse, suspirando. – Eu me perguntava quem tinha me criado antes de você entrar em cena. Agora eu sei.    

– Sei que você não quer confiar em mim, mas eu já perdi a única mulher que amei na vida e a minha filha. Não quero perder você também.    

– E perdeu o seu parceiro?    

Ele assentiu.

– O agente Freeman, o pai, era meu mentor. Ele era brilhante. Morreu no mesmo dia que Eileen. E ter o filho dele como agente também, sabendo que perdeu o pai nesse trabalho... não é fácil. Mas existe uma razão para os agentes serem tão jovens no Tempest. A maioria não dura muito tempo...    

– Eles desistem?    

– Não, ninguém desiste. Nunca – ele disse, mudando de assunto. – Essa é a questão, Jackson. Existem maneiras de burlar esse sistema se você é bom, e eu felizmente sou. Escondi algumas coisas de Marshall e do Tempest para proteger você e Courtney. Você não tem que desistir da sua vida por isso.     Eu ainda estava tentando entender meu último mergulho no passado.    

– Mas... por que o nome dela está na minha certidão de nascimento? Com o seu sobrenome?    

– Ela era a pessoa mais próxima que vocês tinham do papel de mãe e, usar o meu sobrenome ajudava a confirmar a história que eu contei a você e a Courtney sobre a sua mãe ter morrido quando vocês nasceram.    

– Qual era o sobrenome verdadeiro dela?

– Covington. A família dela era muito rica... eram escoceses. Tenho certeza que você adivinhou isso pelo sotaque dela. É da família de Eileen que vem o nosso dinheiro. Ela deixou toda a herança dela para você e Courtney. Moramos no apartamento dela. Dei a vocês a vida que achei que ela gostaria que vocês tivessem. Que é muito diferente da vida que eu mesmo tive na infância.    

– Como foi a sua infância?    

Meu pai bateu no meu ombro.    

– Essa é uma história para outro dia. Lembre-se do que eu disse a você... Marshall sabe do que sou capaz e está sempre vigilante. É pouco provável que ele deixe que eu me envolva muito no seu treinamento.    

– Por quê?    

– Ele sabe quem eu realmente quero proteger. – Ele riu. – Além disso, quer que você seja bom, mas não tão bom a ponto de trabalhar sozinho.    

– Ou contra a CIA – acrescentei.    

Um tinido alto veio do rádio no balcão da pia do banheiro e meu pai se virou rápido nessa direção.    

– Merda!    

– O que foi?    

– O sensor que eu pus no seu quarto. – Ele girou o segredo do cofre e tirou dali uma arma. – Alguém pode ter entrado lá.

Embora alguns minutos antes eu mal conseguisse andar, pulei do sofá e corri para a porta. Nós dois disparamos pelo corredor e subimos pela escada de emergência. Virei no corredor do meu andar e trombei com Holly, que estava do lado de fora do quarto.    

Holly levou um susto, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. Eu estava fraco demais para me segurar e desabei no carpete. Ela deve ter demorado um instante para se dar conta de que era eu estendido no chão. Toda aquela coisa de CIA provavelmente a tinha deixado um pouco fora de órbita.    

– Deus, Jackson, você quase me matou de susto! – ela disse. – Eu estava indo procurar você... O que você tem?    

Meu pai estendeu uma mão e me ajudou a levantar.    

– Ele está meio enjoado. Talvez seja intoxicação alimentar.    

– Você está bem pálido – disse Holly, antes de colocar um dos meus braços sobre seus ombros. Ela abriu a porta do nosso quarto e me deitou na cama.    

– Vou pegar um copo d’água – disse meu pai.    

Holly desamarrou meus sapatos e os tirou antes de se sentar na cama e se recostar à cabeceira.    

– Chegue mais perto e podemos dividir o cobertor.

Eu cheguei um pouco mais perto dela e descansei a cabeça em seu colo. Ela jogou o cobertor sobre mim e passou os dedos pelo meu cabelo.    

– Valeu, Hol.    

– Precisa de mais alguma coisa? – ela perguntou.    

Eu balancei a cabeça um pouco antes de cair no sono.          

– Eu sei, a primeira vez que eu disse para os meus aluninhos do primeiro ano que eu ia pra casa de metrô, um deles começou a chorar – Holly contou, rindo.    

– O número de crimes no metrô ou em qualquer transporte público é muito menor do que as pessoas pensam – meu pai disse.    

– A culpa é de Hollywood. São filmes demais com ônibus explodindo e bandidos sendo perseguidos no metrô – explicou Holly.    

– Não é estranho pra você? Cuidar de crianças que vivem cercadas de empregados e não conhecem outros tipos de vida? – meu pai perguntou.    

Holly riu novamente.

– No começo, sim. Quando eu dava aulas de ginástica, costumava subornar as crianças com moedas para que tentassem uma nova manobra. Depois do primeiro dia no acampamento, descobri que não iria conseguir nada com moedas. Mas acho que toda criança é protegida de algo.    

– Sim, isso provavelmente é verdade – concordou meu pai.    

Eu finalmente abri os olhos. Meu pai estava sentado numa cadeira em frente à cama. Eu me virei e olhei para Holly.    

– Quanto tempo eu dormi?    

– Algumas horas. – Ela pôs a mão no meu rosto. – Como se sente?    

– Melhor. – Eu me sentei lentamente e me encostei na cabeceira da cama, perto de Holly. – Pai, você ainda está aqui?    

Ele ficou de pé e me estendeu uma garrafa de água.    

– Só queria ter certeza de que você estava bem. E Holly é uma boa companhia. Nem percebi que se passaram duas horas.    

– Ela é uma ótima companhia. – Coloquei meu braço em torno dela e a puxei para mais perto. – Mas, seja o que for que ele tenha te contado, não é verdade.    

Holly riu e balançou a cabeça.

– Então você na verdade não saiu com uma das garotas do musical Legalmente Loira?    

– Tudo bem, isso é verdade, mas foi só por duas semanas.    

– Foi a garota mais detestável que já conheci – comentou meu pai.    

Eu assenti.    

– Concordo.    

Meu pai se levantou e andou em direção à porta.    

– Acho que vou dormir algumas horas antes de fazer planos para hoje.    

– Pai?    

– Sim?    

Eu olhei de lado para Holly e depois para ele.    

– Eu ainda estou decidido a me dedicar aos negócios da família.    

Sua expressão desmoronou. Então ele acenou para a porta, indicando que queria falar comigo em particular. Holly percebeu também e me cutucou para que eu me levantasse da cama. Depois que estávamos do lado de fora do quarto, meu pai olhou ao redor do corredor várias vezes e finalmente falou em voz baixa:

– Vamos falar mais sobre isso amanhã... mas não aqui. Segurança é um problema num prédio deste tamanho. Não é possível verificar todos os cantos.    

– Tudo bem.    

– Podemos ir velejar... Freeman pode ficar de olho nos seus amigos.     Eu discordei na hora.    

– Sem chance. Quer dizer, eu posso ir, mas Adam e Holly vão conosco. E eu quero que você me conte tudo, mas já dei minha palavra a Marshall e não vou mudar de ideia.    

Ele suspirou.    

– Tem certeza que é isso o que quer?    

Assenti.    

– Não vou deixar que a história se repita.    

– Sei o que quer dizer. Mas ainda temos que conversar antes que outra pessoa tenha chance de glorificar esse trabalho... encher sua cabeça com ideias grandiosas...    

Meu pai suspirou outra vez e se afastou, em direção às escadas. No momento ele era a única pessoa que sabia de quantas maneiras aquela afirmação podia ser interpretada. O dia 30 de outubro de 2009 podia ser o futuro nessa linha do tempo, mas para mim era história. E o que aconteceu a Eileen não ia acontecer a Holly. Eu estava determinado a fazer qualquer coisa para me certificar disso.

Enquanto eu me arrastava de volta para a cama, a realidade me atingiu em cheio: eu estava oficialmente na CIA. Não era só uma história inventada.     Eu puxei Holly para que ela ficasse deitada ao meu lado, depois me curvei sobre ela e a beijei.    

– Você é tão linda... Posso te contar um segredo?    

– Pode. Adoro segredos. Especialmente os seus.    

– Eu quis beijar você desde a primeira vez que a vi.    

– Verdade? – Ela levantou a cabeça e me beijou no nariz. – Me conte outro segredo.    

– Prometi à minha irmã que me casaria com você.    

Holly riu.    

– Essa é uma das suas alucinações induzidas pelo projeto especial de ciências de Adam?    

Eu abaixei a cabeça e a beijei um pouco abaixo da clavícula.    

– É, exatamente. Ah... e vamos ter seis filhos...

– Seis!?    

– É isso aí... então é melhor guardar essas calcinhas gigantes, porque você vai precisar delas.    

Holly riu tanto que chegou a ficar com lágrimas nos olhos. Então seu sorriso desapareceu e ela ficou ali, simplesmente me olhando por um minuto, com um olhar solidário.    

– Foi isso o que você quis dizer quando falou...    

Eu sabia onde ela queria chegar.    

– ...que era difícil ter certeza até as coisas ficarem difíceis?    

As mãos dela envolveram meu rosto.    

– O que aconteceu?    

– Só um sonho muito ruim.    

– Você pode me contar.    

Descansei a cabeça no travesseiro dela.    

– Você já presenciou a morte de alguém?    

– Não – ela respondeu, virando-se para mim, até os nossos rostos ficarem a centímetros de distância. – Nunca.    

Toda a história sobre visitar Courtney no hospital simplesmente saiu aos borbotões, mas eu disse a ela que tinha sido um sonho ou uma alucinação.    

– Por muito tempo achei que meu pai se ressentia comigo por eu estar saudável... por estar vivo.

– Não acho que isso seja verdade – disse Holly, e no instante em que ela disse isso, lágrimas brotaram em seus olhos, molhando o travesseiro. Ela as secou rapidamente.    

– Desculpe. Eu não devia estar despejando isso tudo em cima de você.    

– Não, tudo bem. Você pode me contar o que quiser. Estou falando sério. – Ela pegou a minha mão e levou até os lábios. – Eu só queria saber como ela era.    

– Mas você a viu... – Eu me detive, lembrando que a Holly 009 só tinha visto um quarto vazio e algumas fotos minhas pelo apartamento. – Quer dizer... você quer ver uma foto dela? Eu tenho uma.    

Ela confirmou com a cabeça e eu estendi o braço e peguei minha carteira, tirando dali o cartão que nunca cheguei a dar a Courtney, com a nossa foto no Central Park, na véspera de Natal, só um mês ou dois antes de ela ficar doente. Os olhos de Holly passaram da foto para as palavras escritas no verso. Eu deixei que as lesse, porque a Holly 007 já tinha lido e eu achei justo.    

Ela secou as lágrimas e me passou o cartão, parecendo determinada a manter o controle.

– Eu também não conseguiria fazer isso. Ver alguém que eu amo morrendo. Ficaria apavorada.    

– Sei que você conseguiria, Holly. – Acariciei a bochecha dela com os dedos.    

– Agora, talvez, mas quando eu tinha 14 anos... de jeito nenhum.    

Eu sorri do rosto lacrimoso dela.    

– Chega de tristeza. Não vou te torturar com coisas tão tristes.    

– Chega de falar que vai ter seis filhos comigo, também. Só falar sobre isso já me dá vontade de cruzar as pernas e mantê-las assim.    

Isso foi exatamente o que eu precisava para me tirar daquele clima de melancolia.    

– Adoro saber que você não se importa em dizer uma besteira dessas pra mim... E você? Pode me contar um segredo? Na verdade, é mais uma pergunta.    

– Talvez...    

– Como foi namorar com um cara como David Newman?    

– O que há de errado com David?    

– Nada, mas o que te atraiu nele? Como tudo começou? – perguntei.    

Ela ergueu uma sobrancelha.

– Quer mesmo ouvir isso?    

– Só estou curioso.    

– Uma noite tomamos um porre e ficamos juntos numa festa em frente a um monte de gente e, como já éramos amigos, eles simplesmente concluíram... que era o nosso momento especial. David estava tão bêbado que nem se lembrava disso. Nem se lembra ainda.    

– Isso é tudo?    

Ela deu de ombros.    

– Acho que quando eu era mais nova imaginava que existia um cara perfeito em algum lugar e um dia eu ia simplesmente decidir...    

– Sossegar?    

Ela riu, encabulada.    

– É, mas não é como se eu já soubesse disso. Eu não conhecia nada diferente.    

Eu me aproximei dela e passei as mãos em torno da sua cintura.    

– Sei o que quer dizer.    

– Por um tempo, odiei você por me fazer ter uma dúvida a respeito do que eu já tinha decidido. Com David, eu não sentia... ele não...    

– Acendia o seu fogo? – perguntei com um sorriso.

– Não, não acendia. – Ela me beijou e rolou o corpo até ficar em cima do meu, entrelaçando os dedos nos meus cabelos, depois se afastou para bocejar. – Desculpe.    

Pressionei levemente sua nuca até ela deitar a cabeça em meu peito.     – Durma. Você parece exausta.    

– Quer que eu saia daqui? – ela perguntou, rindo um pouco.    

Eu apertei os braços em torno dela.    

– Não, fique aqui. É gostoso.    

Ela levantou a cabeça.    

– Você sempre foi bom nisso.    

– No quê?    

– Sempre segura a minha mão no momento certo e me beija exatamente quando é pra beijar. É como se esse fosse o seu jeito de dizer o que não consegue dizer. Sei que as palavras acabariam vindo. – Ela pressionou a bochecha contra o meu peito novamente.    

– Lamento ter um dia duvidado da sua paciência.

Não consegui dormir o resto da noite. Só fiquei deitado ali, sentindo o calor da presença de Holly sobre o meu corpo, e pensei no meu pai e em tudo o que ele tinha perdido. Ele não me trairia. Mesmo que nos proteger fosse o trabalho dele. Eu sabia disso agora.    

Eu já tinha visto a cicatriz antes, em seu ombro, do tiro que ele levara por mim 17 anos atrás, mas não sabia como tinha acontecido. Como eu podia ficar ali sentado em 2007, me queixando por ter de ver uma Holly mais jovem, que não me conhecia, quando meu pai não tivera nenhuma chance de ver Eileen viva outra vez? Nunca mais?    

E, ao ouvir que ela era como uma mãe para mim, tive vontade de saber muito mais sobre ela. Tudo sobre ela. Se eu ao menos pudesse voltar tanto no tempo... Vi quando o sol começou a sair por trás das cortinas e soube que as coisas nunca mais seriam tão fáceis quanto eram naquele momento. Mas eu não ficaria pensando nisso. Ainda não.

 

                     15 DE AGOSTO DE 2009, 12:00.

– Uau! – exclamou Holly, olhando para o gigantesco veleiro branco. – Temos um capitão para pilotar este monstro?    

Meu pai andava atrás de nós.    

– O capitão sou eu.    

– Sabe, acho que talvez... eu fique por aqui, tome um sol na praia ou algo assim – disse Adam, olhando com inveja para os banhistas estendidos na areia da praia.    

Meu pai bateu nas costas de Adam, com um pouco de força demais.    

– Nada disso, você vai vir conosco. Não podemos deixar você em terra com todo esse acesso à tecnologia. Não sem a minha vigilância.    

Eu tive a impressão de que meu pai estava brincando, mas a expressão de Adam era de medo. Ele chegou mais perto de mim e sussurrou:    

– As quadrilhas de criminosos usam essa técnica o tempo todo. Levam os suspeitos num barco, atiram neles, depois jogam os corpos no mar. Quando aparecem em algum país estrangeiro ou numa ilha do Caribe, as provas já eram.

Holly ouviu Adam e revirou os olhos.    

– Sério? Acho que há maneiras muito melhores de se apagar provas.    

Meu pai ajudou Holly a subir no barco e eu cochichei para Adam:    

– O que aconteceu com a Holly Flynn de verdade?    

Adam sorriu para mim.      

– Ela não é muito diferente de você. Holly nunca quis ser comum.    

Ele tinha razão. Não é que Holly não fosse ela mesma quando estava perto de mim; é que ela se continha muito porque não achava que eu fosse aguentar. Planos para o futuro... paixão... compromisso, tudo isso teria me feito correr quilômetros.    

Empurrei Adam para o barco.    

– Eu protejo sua retaguarda. Além disso, a maioria dos crimes acontece em barcos a motor.

Meu pai estava com dificuldade para desamarrar o barco. Então embarquei para ajudá-lo, enquanto Adam e Holly se sentaram no banco da proa e ficaram observando.    

– Velejar faz parte do treinamento pra ser agente? – perguntou Holly. – Vocês dão a impressão de que sabem muito bem o que estão fazendo.     Eu olhei para o meu pai e sorri.    

– Não, na verdade, faz parte das nossas viagens de férias em família. Algo absolutamente normal.    

– E não é sempre que podemos dizer isso, não é mesmo? – perguntou meu pai.    

Depois de alguns minutos, estávamos velejando rumo a mar aberto. Eu imediatamente senti uma sensação de alívio, ao me distanciar de um hotel cheio de gente. Pude entender, então, por que meu pai quis se afastar dali.    

– Então, quando vamos discutir os segredos da espionagem?

– Quando estivermos fora do raio de alcance – ele disse em voz baixa. – Já aprendeu a identificar aparelhos de escuta?    

– Já, você me mostrou. – Iniciei a minha busca, começando pelo nível inferior do barco, depois verificando todo o convés cuidadosamente. Enquanto isso meu pai travava uma conversa sussurrada com Adam e eu não pude deixar de ouvir.    

– Existe uma divisão em que iniciei anos atrás, quando tinha mais ou menos a sua idade. Enfim, o quartel-general era no porão de uma biblioteca pública de Nova York e quase não havia riscos. Em sua maior parte, trata-se apenas de ler livros, programas de computador e websites, e procurar códigos de espionagem – explicou meu pai. – Posso inscrever você?    

– Maneiro! – disse Adam.    

Eles mergulharam numa conversa mais profunda sobre esse departamento em particular da CIA. Deixei os dois sozinhos e me sentei do lado oposto do barco. O senso de urgência que o meu pai tinha na noite anterior parecia ter acabado. Talvez ele só quisesse passar algum tempo conosco, agora que não tínhamos mais segredos.

Holly voltou do deck inferior, me passou uma bebida e depois se sentou entre as minhas pernas, encostando-se em mim.    

– Esta é a primeira vez que eu passeio de veleiro – ela me disse.    

– Velejar sempre foi a minha parte preferida das nossas férias.    

O sol estava sobre nós, mas o borrifo das ondas do mar era perfeito. Eu envolvi sua cintura e descansei o queixo no topo da cabeça dela. Nós dois ficamos ali sentados em silêncio por um tempo, depois senti os olhos dela em mim e, quando olhei para baixo, ela estava me olhando. Seu rosto era intenso.    

– O que foi? – perguntei.    

Ela balançou a cabeça.    

– Nada... é só que...    

Eu baixei a cabeça um pouco mais.    

– O que é, Hol?

Os lábios dela tocaram a lateral do meu pescoço, depois ela disse em voz baixa, no meu ouvido.    

– Amo você. É sério. Não é como na ocasião em que eu disse isso ao David. É muito mais.    

Eu a apertei um pouco mais, sentindo-me apaixonado. Não sei o que me fez dizer o que eu disse em seguida. Talvez fosse a intensidade dos olhos dela ou a culpa por ter me contido durante tanto tempo. Ou talvez eu quisesse dizer porque sabia que meu pai nunca entenderia.    

Eu olhei para o meu pai, mas rocei os lábios no ouvido de Holly e sussurrei:    

– Case comigo.    

Eu imediatamente senti o sobressalto dela e abracei-a, mas não olhei para ela. Não precisava. Eu só queria dizer isso. O resto não era importante... ainda.    

Ela virou o meu rosto de modo que pude olhar para ela, então disse:    

– Sim... um dia... prometo.    

– Você não tem que prometer. Eu só quis pedir.

– Eu prometo – ela repetiu com um sorriso.    

Eu só queria dar um desfecho perfeito a este momento, mas tinha acontecido tanta coisa comigo que minha mente não conseguia relaxar. Estávamos no dia 15 de agosto. Será que Holly estaria em perigo em 30 de outubro? Ou antes disso?    

A preocupação no rosto do meu pai enquanto pilotava o barco fez com que eu ficasse de sobreaviso.    

– Algo errado? – perguntei.    

Ele apontou para um ponto atrás de mim e eu me virei rápido. Nuvens pesadas de chuva vinham na nossa direção, contrastando com o resto do céu.    

– Que droga! – exclamou Adam, levantando-se para enxergar melhor.    

Eu me levantei e fui até o meu pai.

– Então temos que dar a volta, só isso, certo? Elas provavelmente vão avançar bem rápido.    

– Certo – ele disse.    

Meu pai e eu começamos a correr de um lado para o outro, verificando as velas, estudando nossas coordenadas para o caso de perdermos a visibilidade. Dez minutos depois o céu estava completamente negro, com as espessas nuvens escuras flutuando sobre nós.    

Um raio cruzou o céu, deixando tudo cor-de-rosa por um segundo, depois a chuva começou a cair torrencialmente.    

– Coletes salva-vidas! – gritou meu pai, tentando se fazer ouvir em meio ao ribombar dos trovões. – E saiam do convés!    

Holly e eu abrimos a parte de cima do banco e tiramos dali nossos coletes salva-vidas. Eu joguei um para Adam e passei o outro pela cabeça de Holly, amarrando com força. A chuva ficou ainda mais forte e eu mal podia ver o rosto dela, mas ouvi o grito que deixou escapar ao olhar sobre o meu ombro. Eu me virei rápido.

Um homem de cabelo castanho e uma longa capa de chuva preta estava parado na frente do barco. Meu Deus, isso não está acontecendo agora. Meu primeiro impulso foi gritar para Holly descer para o andar inferior, mas se alguém tinha aparecido ali...    

– Como ele chegou aqui? – ela exclamou.    

E quem ele está procurando?    

O som do meu coração martelando nos ouvidos era mais alto que a chuva. O homem agarrou Adam pelo pescoço justo quando o barco se inclinou com uma onda, atirando Holly sobre a balaustrada. O homem que segurava Adam oscilou um pouco e eu usei o cotovelo para golpear a lateral da sua cabeça, forçando-o a soltar Adam.    

Adam caiu para a frente, depois se levantou num pulo e agarrou Holly, puxando-a da balaustrada na direção da outra extremidade do barco.    

Um instante depois, fui atirado de costas sobre o convés. Quando me levantei, o homem agarrou meu pescoço com as duas mãos e me pressionou contra o mastro central do barco. Eu não reconheci seu rosto, mas pude ver a raiva estampada nele. Agarrei seus pulsos, tentando fazer com que soltasse o meu pescoço. Não conseguia respirar. Pontos pretos começaram a aparecer diante dos meus olhos.

– Você a matou! – ele vociferou para mim.    

Matei quem?    

– Holly! – ouvi Adam gritar.    

Tentei chutar o homem, mas minhas pernas viraram geleia. Ouvi passos rápidos em torno de mim. Ou talvez fosse o sangue bombeando na minha cabeça. Uma figura indistinta apareceu atrás do homem e ouvi em seguida um barulho alto; no mesmo instante o homem soltou meu pescoço e caiu. Eu sorvi o ar com dificuldade e os pontos pretos desapareceram. Holly estava de pé na minha frente, com um extintor de incêndio nas mãos.    

Ela pulou para trás quando o homem se levantou e tentou se equilibrar com dificuldade no barco, que balançava com as ondas. Era como se ele não conseguisse enxergar. Outro raio riscou o céu, revelando a confusão em seu rosto. Então se ouviram dois tiros e o homem caiu por sobre a balaustrada e afundou no mar.    

Eu apertei o peito e me virei para ver meu pai em pé na outra extremidade do barco, segurando uma arma. Pontaria perfeita. Ele correu até mim e pôs as mãos no meu rosto.

– Você está bem?    

Tudo o que eu pude fazer foi arquejar e confirmar com a cabeça.    

– Lamento, eu tinha deixado todas as armas no andar de baixo – ele gritou, depois colocou uma pistola na minha mão.    

Olhei para ela por um segundo e depois a enfiei no cós da calça, embora detestasse a ideia de usá-la.    

– Alguém precisa explicar... isto, agora! – disse Holly, apontando na direção do corpo flutuando.    

O trovão foi tão alto que nenhum de nós conseguiu se fazer ouvir. Por fim, consegui falar e gritei para o meu pai:    

– O que foi aquilo, afinal? Você conhecia aquele cara? É o próximo item da lista de Marshall? Por que nos trouxe aqui se sabia que podiam nos atacar?    

– Se eu soubesse, acha mesmo que eu teria deixado minha arma tão longe? Nunca vi esse homem na vida e já conheci quase todos eles.    

O barco sacudiu ainda mais para os lados, jogando todos nós contra a balaustrada. Segurei Holly pela cintura e cobri a cabeça dela com o braço quando nos chocamos contra o barco.

Meu pai deu um passo desequilibrado para trás e gritou para Adam, que estava tentando pilotar o barco.    

– Jackson, me diga! – exigiu Holly, enquanto lutávamos para ficar de pé.

– De onde ele veio? O cara apareceu do nada!    

Eu ignorei a pergunta e me virei para gritar para o meu pai:    

– Será que não é melhor irmos para o andar de baixo?    

Meu pai conseguiu se aproximar de nós.    

– Não, Freeman está vindo. Em dois minutos estará aqui.    

Eu saquei a arma e comecei a examinar o mar, procurando outro barco.    

– Jackson? – Holly disse novamente.

Eu podia perceber a mágoa em sua voz, como naquele dia, no zoológico, quando ela sabia que havia algo errado e eu não quis lhe dizer o que era. Olhei para o meu pai e ele assentiu, antes de ir para junto de Adam.     Quando eu me virei, Holly estava perdendo o equilíbrio outra vez. Eu agarrei as laterais do seu salva-vidas e abaixei meu rosto até o dela.    

– Me diga! – ela repetiu.    

Eu tirei o cabelo molhado grudado no rosto dela.    

– Ele é um viajante no tempo.    

– O quê?    

– Alguém que viaja no tempo – repeti.    

– Mas... mas... como ele simplesmente apareceu...    

O vento estava tão forte que era suficiente para levar alguém do tamanho de Holly. Eu a abracei mais forte com uma mão e segurei no parapeito com a outra.    

– Apague tudo o que você já ouviu sobre viagem no tempo, porque isso só vai confundir você.    

– Ah, isso ajudou muito.    

Aquela pequena dose de sarcasmo de Holly, quando estávamos nos agarrando a um barco em perigo de afundar, foi o suficiente para me dar confiança para lhe contar o resto.

– Posso fazer isso também.    

– Fazer o quê?    

– Viajar no tempo. – Nenhuma resposta, por isso acrescentei à minha explicação. – Quando você me viu terça-feira, com roupas diferentes, eu tinha ficado fora deste tempo por semanas.    

Mais raios. Iluminação suficiente para que eu pudesse ver o choque no rosto dela.    

– O quê? Você não me viu por semanas?    

Será que eu deveria dizer a ela?    

– Eu te vi, mas você era mais nova.    

– Isso não pode ser verdade... Por que eu não me lembro? – ela perguntou, e ambos nos viramos ao ouvir o barulho do motor do barco de Freeman. Ele também tinha um holofote voltado para nós.    

– O que eu disse a você, Holly? Apague tudo o que sabe sobre viagens no tempo.    

– Vamos embora! – gritou meu pai.    

Ele agarrou o colete salva-vidas de Holly e a levantou por cima da balaustrada.    

– Eu vou primeiro e ajudo você a saltar.

As luzes do barco de Freeman brilharam sobre o rosto dela e eu pude ver a mistura de confusão e mágoa, e mais alguma coisa... Como se ela realmente quisesse acreditar em mim.    

O outro barco estava navegando ao lado do nosso, mas ainda havia uma distância entre os dois. Holly balançou a cabeça quando meu pai ofereceu ajuda e saltou antes que qualquer pessoa pudesse ajudá-la. Ela rolou de lado para amortecer a queda quando bateu no casco do outro barco, depois ficou de pé com elegância.    

– Silverman, você é o próximo – meu pai gritou.    

Adam escalou o parapeito e pulou como Holly, exceto que aterrissou no convés duro de joelhos. Eu sabia que ia ficar dolorido. As ondas, vindas de todas as direções, batiam na lateral do barco a motor, borrifando água.    

Meu pai e eu ficamos ambos sobre o parapeito e pulamos ao mesmo tempo, aterrissando de pé.    

– Quem era? – Freeman gritou para o meu pai.    

– Nunca o vi antes.      

– Ele disse que matei alguém... uma mulher – eu gritei, antes de puxar Holly para se sentar comigo num banco.

Freeman e meu pai olharam ambos para mim e então Freeman disse:    

– Talvez isso não tenha acontecido ainda.    

– Eu sei que não aconteceu ainda. – Eu não tinha matado ninguém, com exceção do homem com a marca de sapato na cara. Mas aquele foi um meio-salto, portanto ele não estava realmente morto.    

– Se você viaja no tempo, então por que não pode simplesmente voltar algumas horas e fazer com que a gente não entre naquele barco? – Holly perguntou.    

– Você contou a ela? – Adam perguntou, do outro lado.    

– Não funciona assim, Hol. – Eu peguei a mão dela e a apertei. – Às vezes eu queria que fosse tão fácil.    

De repente, Holly saltou do banco e agarrou o ombro de Freeman.    

– Pare! Tem alguém ali!    

Adam, meu pai e eu em segundos estávamos encostados à proa do barco, tentando ver através da chuva. Vimos com clareza uma figura pequena numa plataforma de mergulho perto da praia.    

– Parece uma criança – disse Freeman, virando o barco.

Todos hesitamos, até meu pai. Ele era um funcionário do governo que combatia viajantes no tempo mal-intencionados, não alguém que resgatava crianças em tempestades. Mesmo assim, nenhum de nós queria simplesmente ir embora. Olhei para a praia. Não havia nenhum casal acenando freneticamente da praia, gritando pelo filho. Provavelmente eles já tinham ido buscar ajuda.    

– Fica na direção oposta ao píer – Freeman gritou, mas já estava começando a virar o barco na direção da plataforma.    

Uma onda gigante se chocou contra o casco do barco, jogando água sobre mim, Adam e Holly. Um rangido veio do motor e Adam e eu nos entreolhamos, esperando ver fumaça saindo do motor.    

– A droga do barco não quer virar – disse Freeman.    

– Vou nadar até lá – eu gritei para que todos pudessem me ouvir. – Vão sem mim. – Eu pulei do barco antes que pudessem me deter. As ondas cobriam minha cabeça enquanto eu nadava. Quando cheguei à plataforma, pude ver que era uma garotinha, talvez de 9 ou 10 anos, abraçada a um mastro, no centro da plataforma. Mas não consegui entender por que ela estava totalmente vestida: jeans, camiseta de manga comprida e tênis.

Eu icei meu corpo até a plataforma e cheguei mais perto dela. A luz do barco à distância brilhou em seu rosto e nos seus longos cabelos ruivos.    

– Eu... conheço você?    

Ela fez que sim com a cabeça e se agarrou ainda mais ao mastro.    

– Você está bem?    

– Sim – ela disse. – Você vai vir comigo?    

Eu me ajoelhei ao lado dela.    

– Para onde? Para a praia?    

Ela balançou a cabeça novamente e um arrepio me transpassou. Eu estava começando a me lembrar de onde eu a conhecia quando ela soltou o mastro e pegou na minha mão. Eu imediatamente tive a sensação de que estava me partindo ao meio e percebi que estava saltando no tempo. Nós dois. Um meio-salto. Mas para onde?

 

A primeira coisa que notei foi o silêncio. Nenhum barulho de chuva ou trovão. Abri os olhos e olhei em volta.    

– Isto é... uma estação de metrô? – perguntei.  

– É, não há ninguém aqui – a garota falou num tom formal e adulto.     Eu me ajoelhei na frente dela outra vez, examinando-a. Ela era magra, frágil, e parecia-se muito com Courtney. Levantou a cabeça e olhou para mim. Seus olhos eram azuis... não verdes.    

– Espere um minuto... Eu vi você, não vi? No zoológico?    

Água pingou da ponta do seu nariz e ela secou.    

– Sim.    

– Quem é você? – perguntei.    

– Sou como você.    

– Qual o seu nome? – Olhei em torno, para a estação vazia, quase esperando ver um trem chegar a qualquer minuto.    

– Emily.    

– Você é exatamente como eu?

Ela balançou a cabeça.    

– Quase, mas não exatamente.    

– Então, você é como os outros? – Eu me afastei dela um pouco, lembrando-me da criança que eu tinha visto no hotel outra noite, vagando sozinha pelo saguão. Ela parecia uns dois anos mais nova que Emily.    

– Quase, mas não exatamente – ela repetiu, sorrindo um pouco.    

Eu balancei a cabeça em descrença.    

– Eu caí no sono, não é? Ou bati a cabeça? Você é a cara da minha irmã.    

– Nós todos nos parecemos. A maioria de nós. DNA parecido, entende?    

– Não sei... acho que sim – eu disse.    

Emily me deu sua mão pequenina.    

– Venha comigo.    

– Por quê? – perguntei, pegando a mão dela assim mesmo.    

– Tenho que te mostrar uma coisa.

Ela me levou na direção de uma escadaria, que provavelmente dava na rua. Com a mão livre eu tirei a arma do cós.    

– O que você sabe?    

Ela balançou a cabeça.    

– Não vou machucar você.    

– Não é com você que estou preocupado. É com quem mandou você me encontrar.    

– Ninguém me mandou. – Então ela se virou para mim e sorriu. – Na verdade, você me disse.    

Nesse instante parei em frente aos degraus e fiquei paralisado por um segundo, depois me abaixei e fiquei no nível dos olhos dela. Esqueci o que ia perguntar quando olhei para os seus olhos azuis com um padrão em espiral.    

– Você tem os meus olhos...    

Ela sorriu outra vez.    

– É.    

– Por quê? Como?    

Ela franziu a testa e balançou a cabeça.    

– Não posso contar isso a você. Por favor, deixe eu te mostrar uma coisa.

Mas antes que desse o primeiro passo, ela se virou para mim outra vez.    

– Eu quase esqueci. – Ela tirou algo do bolso, depois colocou a mão sobre a minha e pôs algo ali. – Tenho que te dar isso.    

Olhei para o pequenino objeto na palma da minha mão. O brilho de um diamante refletiu contra as luzes piscantes do teto. Eu girei o anel na mão, achando que ele devia ter algum significado, além do que eu tinha acabado de perguntar a Holly. De todo jeito, essa outra versão de mim mesmo não sabia muito bem a hora certa de fazer as coisas. Pelo visto, tinha sido preciso me arrastar para uma estação de metrô em algum outro tempo para me darem um anel, especialmente no meio de uma tempestade que quase nos matou.     Segui Emily escadas acima e pude ver uma luz no topo. Era dia.    

– É Nova York?    

– É.    

Quando chegamos ao topo da escada, esperei ouvir os sons típicos da cidade, como buzinas tocando, motores roncando, pessoas falando nos celulares. Mas tudo estava em silêncio. Saímos do buraco do metrô e tudo o que eu pude fazer foi contemplar a vista boquiaberto.    

Era Nova York, mas como eu nunca tinha visto. Alguns prédios continuavam de pé, mas estavam cobertos por um pó cor de areia, provavelmente por causa do desabamento dos outros prédios em volta.

Minhas pernas ficaram bambas e eu mal conseguia ficar de pé. Esse era o meu lar. O lugar onde eu tinha crescido. Mas não havia ninguém naquele lugar. Eu girei lentamente em círculo e vi a rua tão coberta de entulho que mal dava para ver o asfalto.    

Voltei a cair em mim quando ouvi Emily tossindo atrás de mim e percebi que eu estava tossindo também. Tudo acima do chão estava coberto de entulho cor de areia. Não admira que estivéssemos quase sufocando.    

– Emily... isto é... o futuro? – perguntei. Não poderia ser o passado... Pelo menos não o passado que eu tinha estudado nas aulas de história.    

– É – ela respondeu ainda tossindo.    

– O que aconteceu? Que ano é este?    

– Não posso dizer a você.    

– Mas como isso aconteceu... é uma guerra... ou outra coisa?    

– Tudo o que eu posso dizer é que... algumas pessoas estão lutando para evitar que isso aconteça e outras estão... fazendo com que aconteça.    

Eu olhei bem fundo nos olhos dela e vi a verdade dentro deles. Então não eram só gangues brigando contra gangues. Esse lugar, esse ano, era muito ruim. Alguém precisava impedir essa destruição.

– Eu... nunca tinha saltado para além do meu próprio período de vida.    

– É porque você está comigo – ela disse, ainda tossindo.    

– Você é diferente de mim, eu percebi isso. Mas em que sentido é diferente deles?    

Ela cobriu o rosto com as mãos, tentando limpar a poeira.    

– Eu tenho tudo o que eles gostariam de ter.    

Ela não parecia feliz com isso.    

Ouvi latidos ao longe. O primeiro som que ouvi desde que tínhamos chegado. Segundos depois, uma matilha de cães marrons virou a esquina correndo, arreganhando os dentes para nós. Emily e eu retrocedemos na direção de um prédio e ela agarrou a minha mão. Eu esperava que voltássemos, mas ela simplesmente ficou parada ali, imóvel.    

– Emily, a gente precisa se mandar!    

Os olhos dela se fecharam por um segundo e eu pude ver que estava tentando, mas nada aconteceu.    

– Ai, não... fiz alguma coisa errada. Eles não deveriam estar aqui.

Os olhos dela se arregalaram, mas os cães de repente viraram a cabeça e partiram em outra direção, voltando por onde vieram. Eu tive meio segundo para suspirar de alívio antes que três homens virassem a mesma esquina de onde os cães tinham surgido.    

Pelo menos acho que eram homens. Todos tinham a cabeça raspada e feições indistintas. Seus olhos eram quase brancos e a pele, praticamente transparente. As veias azuis e rosa sob a pele eram totalmente visíveis, como se faltassem camadas de pele.    

– Ele estava certo! Nem acredito! – um deles gritou, triunfante.    

Eu podia praticamente sentir a raiva e o espírito de vingança emanando dos três homens e percebi que não estavam ali para uma conversinha amigável.    

Emily ainda estava imóvel e, por alguma razão, correr foi o meu primeiro impulso. Peguei a mão dela e puxei-a comigo enquanto corríamos ao longo dos prédios em ruínas. Nunca senti tamanho pânico e não havia chance de meu pai aparecer ali para me resgatar, como tinha acontecido no barco.    

O som dos meus passos na calçada estava em sincronia com as batidas do meu coração. O cabelo de Emily se agitava enquanto ela corria e mais poeira levantava do solo, entrando nos meus olhos e na minha boca.    

Ela olhou freneticamente para mim por sobre o ombro.

– Jackson, correr não adianta... temos que...    

Nós dois quase gritamos, quando os três homens apareceram como num passe de mágica na nossa frente.    

– Estou chocado ao ver que vocês dois ainda pensam em correr – um dos homens disse com sarcasmo. – Por que correr, se vocês podem saltar?    

Emily retrocedeu e eu a coloquei atrás de mim, encostada num edifício. Seu peito arfava tão rápido que seu medo era evidente. Provavelmente porque ela não conseguia nos tirar dali.    

Os diagramas de Jenni Stewart me vieram à cabeça, um depois do outro, e foi como se o resto do meu corpo soubesse o que fazer, sem nem pensar a respeito.    

Um dos atacantes avançou para cima de Emily e, quando ele estava prestes a agarrá-la, eu o chutei com toda a força na barriga, fazendo-o voar para trás. A parte de trás de sua cabeça bateu na calçada. Eu golpeei o segundo homem, que tinha se aproximado pelo outro lado, dando uma cotovelada em seu rosto. Ele deu dois passos desequilibrados para trás, enquanto Emily deslizou pela parede, como se suas pernas fraquejassem.

– Posso fazer isso? – perguntei a ela, em desespero. – Eu posso fazer nós dois saltarmos para o passado daqui do futuro?    

Seus olhos arregalados buscaram os meus e ela abriu a boca para responder, mas um grito saiu de seus lábios.    

– Jackson, cuidado!    

O terceiro homem, que estava atrás de mim, passou um braço pelo meu pescoço. Eu joguei todo o peso do meu corpo sobre ele e o prensei no chão. Ele gemeu de dor e eu rapidamente peguei Emily nos braços e a levantei do chão. Ela me abraçou forte e pressionou o rosto contra a minha camisa. Estava tentando bloquear tudo em volta. Para nos tirar daquele inferno. Eu nunca antes me senti tão feliz ao perceber a sensação estranha de um meio-salto.

 

                   15 DE AGOSTO DE 2009, 15:30.

A tempestade tinha piorado ainda mais, o que eu não pensava ser possível. As gotas de chuva açoitavam meu rosto. Emily ainda estava agarrada a mim, com a face escondida, mas eu podia senti-la tremer. Eu também tremia. Tentei fazê-la se afastar um pouco, mas ela não queria me soltar e seu tremor se transformou em soluços. Eu a abracei também, supondo que ela devia se sentir à vontade ao meu lado, no futuro, seja de que ano tivesse vindo.    

Por fim, ela me soltou e deu um profundo suspiro.    

– Eu não sabia que... seria assim.    

– Você está bem? – perguntei.    

Ela assentiu e então estendeu o braço na direção do mastro central da plataforma outra vez, agarrando-se a ele.    

– Eu não planejei esse salto muito bem, não é?    

– Você planejava acabar numa plataforma de mergulho no meio de uma tempestade gigante?    

– Não, mas as coisas mudam... Às vezes é difícil acertar.

O vento agitou a plataforma, fazendo-a balançar. Meu estômago embrulhou e eu agarrei o mastro também, segurando-o sobre a mão dela e tentando focar o olhar no barco agora distante.    

– Tenho que nadar de volta – disse a Emily, apontando para a praia.    

– Eu também... – Ela se encolheu quando o estrondo de outro trovão a interrompeu.    

– Você não pode simplesmente saltar no tempo? Como no outro dia?    

Ela balançou a cabeça, espirrando água para todos os lados.    

– Não, deixe que nos vejam nadando para a praia e depois eu salto. Você não pode contar a ninguém sobre mim. Sobre o que eu posso fazer. Sou só uma criança que você resgatou da tempestade, ok?    

Foi por isso que ela fez um meio-salto, para que todos continuássemos aqui, embora eu duvidasse que a visibilidade permitisse.    

– O que vai acontecer?    

– Você precisa me deixar ir, não importa o que aconteça, ok? – Raios rosa e azuis brilhavam no rosto dela e eu pude ver que ela já duvidava da minha capacidade de acatar ordens de uma garotinha.

– Você me levou para o futuro... então quer dizer que... não nasceu ainda? – perguntei.    

– Não posso te contar.    

Eu me ajoelhei em frente a ela e olhei direto em seus olhos.    

– Quantos anos você tem?    

– Onze.    

– Conhece o dr. Melvin?    

Ela não se intimidou diante do meu olhar.    

– Eu ouvi falar dele.    

– Então ele não é a razão de você existir.    

Suas defesas vieram abaixo e ela deu um passo para trás.    

– Temos que ir!    

Eu agarrei a mão dela.    

– Ainda não.

– Você me disse para não responder a nenhuma pergunta. Não muitas, pelo menos – ela gritou por sobre o trovão.    

– Esse foi o meu outro eu. Ele é, tipo, bem velho, né? Ninguém escuta o que ele diz.    

– Ah, é? Então você não deve confiar no seu eu mais velho, embora ele obviamente saiba mais que você?    

Eu sabia que ela estava certa. Era irresponsável forçá-la a fazer qualquer coisa.    

– Desculpe... é que... neste momento há uma coisa que pode acontecer e eu quero ter certeza de que não acontecerá. É difícil pensar em qualquer outra coisa.    

– Eu sei que você se sente como se tivesse que mudar tudo ou consertar isso, mas não pense demais. Confie que fará a escolha certa. Não é tão difícil quanto parece. – Ela apontou para a praia. – Precisamos ir.    

Nós dois pulamos na água e eu ajudei Emily a nadar até a areia. As ondas varriam nossas cabeças, mas finalmente chegamos e andamos o resto do caminho pela praia. Eu acenei para o hotel.    

– Só corra nesta direção e eu vou dizer que você encontrou seus pais, ok?

Ela começou a se virar e depois hesitou por um segundo. Manteve os olhos baixos, mas abraçou minha cintura e me apertou.    

– Adeus, Jackson. Boa sorte.    

Eu a observei correr em direção a uma das portas laterais e senti um grande fardo sobre os meus ombros. E não dizia respeito a salvar Holly apenas. Era mais do que isso. Muito mais. Não me admira que meu pai quisesse me deixar fora disso tudo.    

Mas já era tarde demais.    

Eu me virei e corri na direção do píer. Adam, Holly e Freeman já estavam vindo na minha direção.    

– Está tudo bem com a garota? – Adam perguntou.    

– Está, ela foi lá pra dentro – eu disse, fazendo um gesto com a mão, como que para pôr um ponto final nas perguntas e mudar de assunto. – E o meu pai? – perguntei a Freeman.    

– Entrou pela porta da frente.    

Holly envolveu minha cintura e me deu um abraço rápido, depois apontou para o hotel.    

– Não é melhor entrarmos?

Todos nós corremos para dentro. Meu pai veio ao nosso encontro e o ar gelado do ar-condicionado nos causou um arrepio no momento em que entramos no saguão. Estávamos todos encharcados, os sapatos deixando poças no chão de mármore e, mesmo assim, todos à nossa volta pareciam muito calmos. Eu precisei de todo o meu autocontrole para não anunciar o fim do mundo ao hotel inteiro. Não podia contar nem ao Tempest o que eu tinha visto sem falar sobre Emily.    

Meu pai acenou com a cabeça para o corredor à nossa esquerda e nós o seguimos. Eu ofeguei quando o vi sacando a arma. Freeman fez o mesmo.    

– O que está acontecendo? – perguntou Holly.    

– Eles estão aqui – disse Freeman.    

– O que eles querem? – Adam perguntou, em desespero.    

– Jackson – meu pai respondeu. – Pelo menos é isso o que Melvin pensa. Possivelmente replicar o experimento. Nós os mantivemos longe por alguns meses. Eu os deixei se aproximar, indo contra as ordens de Marshall, dois anos atrás, para que pudessem ver que você não tinha nenhuma capacidade.    

– Por que eles simplesmente não me mataram? – perguntei.

– Eles não matam ninguém sem necessidade. Só para ter mais poder – explicou Freeman, colocando a cabeça na quina da parede, para olhar o corredor, antes de nos conduzir por ele.    

– Poder para quê? – Holly perguntou.    

– Eles acham que o mundo seria melhor se fôssemos todos como eles – explicou meu pai. – Mas o Tempest acredita que, se a população em massa viajasse no tempo, seria um absoluto caos.    

– Com certeza! – concordou Adam.    

– O dr. Ludwig está contra nós – eu acrescentei. – Com todos os seus clones, ou seja lá o que for.    

– Acham que Melvin está criando um exército – disse meu pai, voltando-se para mim. – Não faça nenhuma bobagem, Jackson. Só procure ficar por perto e manter distância deles. Freeman e eu já fizemos isso muitas vezes. Podemos lidar com a situação.    

Freeman ficou imóvel no meio do corredor. Então, a alguns metros de nós, no corredor, uma mulher loira e o homem chamado Raymond apareceram do nada.    

O homem que matou Eileen. Eu não podia nem imaginar o que meu pai sentia cada vez que via esse homem.

– Droga, isto é loucura! – murmurou Holly. – Eu nem acreditava nessa coisa de viagem no tempo... Acredito totalmente em você agora.    

Meu pai imediatamente se colocou na minha frente e eu fiz o mesmo com Holly.    

– Mas o que vamos fazer se eles simplesmente aparecem e desaparecem? – Adam perguntou, a voz traindo seu medo crescente.    

– Eles não podem tanto assim, acredite – meu pai disse.    

– Exceto Thomas – murmurou Freeman.    

Thomas outra vez. Esse nome sempre era mencionado nos momentos mais importantes.    

Holly gritou quando Freeman atirou neles. Eles revidaram e eu a empurrei para trás de mim, usando meu corpo como escudo. Se eles podiam aparecer e desaparecer, ela não iria a lugar algum longe dos meus olhos.

Adam gritou quando outro homem apareceu bem atrás de nós.    

Os primeiros dois IDTs saíram correndo, afastando-se de nós, e eu puxei Holly para que ficasse à minha frente, enquanto corríamos do homem atrás de nós e em direção aos outros dois, mais à frente. Freeman os seguiu, atravessando portas duplas que davam para uma imensa sala de jantar. A sala estava cheia de pessoas vestidas para um casamento. No segundo em que irrompemos pelas portas com nossas armas, gritos ecoaram na sala e todos começaram a correr para fora.    

Todo o lugar estava cheio de testemunhas inocentes. Elas precisavam sair dali. Rápido. Eu corri os olhos pelas paredes e encontrei algo que ajudaria a evacuar o prédio.    

– Ligue o alarme de incêndio! – gritei para Holly.    

Ela correu até a parede atrás de nós e quebrou a caixa de acrílico com o cotovelo. O alarme soou e a água começou a espirrar dos sprinklers do teto. Mais gritos. A sala se esvaziou em trinta segundos. Havia copos de cristal sobre as mesas. Um grande piano de calda no centro da pista de dança. Não era exatamente o lugar ideal para uma troca de tiros.

O cara da marca do sapato, chamado Raymond, saltou por sobre o piano e apontou a pistola diretamente para Freeman. Holly arfou quando nós dois vimos Freeman largar a arma no chão e levantar os braços. A rendição durou dois segundos, porque meu pai saltou de trás do piano e se atirou sobre as costas de Raymond e chutou-o com tanta violência que ele caiu sobre uma mesa atrás do piano e dali deslizou para o chão, lançando louça e prataria para todos os lados.    

O outro homem, que estava atrás de mim, de repente cruzou o espaço de uns trinta passos e apareceu na minha frente. Eu me desviei para o lado e agarrei uma cadeira de uma das mesas e atirei em seu caminho. Ele tropeçou e caiu.    

A mulher loura atirou para o teto e Holly gritou outra vez, quando um imenso lustre de cristal se estilhaçou no chão. Ela mergulhou embaixo de uma das mesas, enquanto pedaços de cristal voavam para todos os lados. Eu saltei para o lado dela e puxei-a para junto de mim. Eu podia sentir seu coração martelando no peito ainda mais do que o meu.    

– Fique comigo, ok? – pedi. – Não corra nem nada.    

Ela concordou.

Os pés do meu pai passaram por mim e então a mulher o seguiu. Eu apontei a arma para atirar na perna dela, mas estava perto demais do meu pai e não quis arriscar. Holly esticou o braço e agarrou o tornozelo da mulher, fazendo com que ela caísse de cara no chão. A adrenalina corria nas minhas veias e eu rolei para fora da mesa, fiquei de pé e então dei um passo na direção das costas da mulher, apontando a arma para a sua cabeça.    

– Não, Jackson! Não a toque! – gritou meu pai, sem que eu entendesse por quê.    

A última coisa que eu vi foi meu pai puxando Adam para o chão, quando um tiro passou zunindo pelas cabeças deles.    

O cômodo se dissolveu e eu não fazia ideia de para onde eu estava indo.

 

Um salto completo. Tínhamos acabado de fazer um salto completo. Dãã... Era por isso que eu não podia tocar nela.    

Apesar da situação de vida ou morte e do fato de eu e a IDT loira estarmos armados, o primeiro pensamento que cruzou a minha cabeça quando abri os olhos foi: Holly acabou de me ver desaparecer!    

Se antes ela não acreditava que eu era um viajante no tempo, agora com certeza acreditava. Ouvi várias pessoas ofegando e virei a cabeça a tempo de ver um grupo de adolescentes paradas na calçada, vestindo saia xadrez e meias até os joelhos. Como Jackie Kennedy ou algo assim. Foi nesse instante que percebi o que elas estavam olhando. Meu pé sobre as costas da mulher, apontando o revólver para ela e nós dois molhados de chuva. E esse dia estava claro e ensolarado.    

Eu logo enfiei o revólver no cós da calça e olhei a rua. Cadillacs modelo antigo estavam estacionados ao longo da Quinta Avenida, só que não eram velhos. A maioria deles parecia novinho em folha. Ônibus estranhos, meio hippies, estavam alinhados na calçada e eu quase esperei ver o elenco de Hairspray desembarcar deles cantando “Bem-vindo aos anos 60”.

A IDT me empurrou e eu caí de costas, sobre os sapatos de uma das garotas de uniforme. Todas elas, umas cinco ou seis, gritaram tão alto quanto podiam e eu me levantei do chão, para correr atrás da mulher loura.    

Se ela saltasse, será que eu seria capaz de voltar? E essa seria a mesma linha do tempo que deixamos, mas no passado? Meu palpite era que não, pois eu sabia o quanto era difícil saltar para a mesma linha do tempo. Eu podia ver a cabeça dela sacudindo de leve, enquanto corria, e eu empurrava as pessoas do meu caminho para chegar mais perto.    

Minha nova habilidade de observação não diminuiu enquanto eu corria; eu via tudo, desde o cara hippie cantando uma canção do Bob Dylan do lado de fora de uma loja, até os prédios que estavam faltando na paisagem que eu conhecia.    

Por fim, alcancei a mulher e agarrei a parte de trás da blusa dela. Meus braços a envolveram e eu a apertei, firme.    

– É melhor você conseguir nos levar de volta. Exatamente para onde estávamos.    

Ela me golpeou o estômago com o cotovelo, mas eu a senti nos levando de volta. Ou para algum outro lugar. Aparentemente, não parecia necessário acertar a base principal nos saltos completos.

 

                     15 DE AGOSTO DE 2009, 16:30.    

Meus pés escorregaram e eu me senti caindo numa superfície inclinada. Chuva. Trovões. Outra vez. Meus olhos se abriram e eu quase gritei ao ver que estava no telhado do hotel. Eu me deitei de barriga para baixo e finquei os dedos nas telhas finas. A mulher IDT soltou uma risada debochada. Ela tinha rastejado facilmente até chegar a um metro de mim. Eu queria dar um soco nos dentes dela e teria feito isso se não estivesse apavorado demais para soltar as telhas.    

– Droga! Errei por alguns minutos! Mas talvez eles tenham tempo de matar o seu pai agora – ela disse. – Ele é realmente bom em se esquivar.     Uma raiva imensa pulsava dentro de mim, dando-me coragem para soltar uma mão e pegar minha arma. A mulher ainda tentava ficar de pé... Ela nem mesmo viu quando saquei a arma. Mas eu não consegui atirar.    

]Justamente quando meus dedos se moveram para apertar o gatilho e se posicionaram no lugar, um estrondo veio de baixo, quase me derrubando do telhado. Um raio explodiu no céu ao mesmo tempo em que uma bala atravessou o peito da mulher. Mas quem tinha atirado?

Eu a olhei horrorizado, incapaz de fazer qualquer coisa quando a mulher caiu sobre o telhado, depois foi rolando pelas telhas até cair lá embaixo, no chão, com um baque surdo. Eu ouvi gritos vindos lá de baixo e sirenes se aproximando de algum lugar. Me virei para ficar de costas no telhado e tentei me arrastar mais para cima. Tentei visualizar os mapas do hotel na minha cabeça. Havia uma porta de acesso ao telhado um pouco mais para cima.     Quando cheguei ao topo, comecei a ficar de pé e cometi o erro de olhar para o chão lá embaixo. Meu estômago deu uma pirueta e senti uma tontura que me obrigou a deitar de costas no telhado outra vez, arquejando e tentando afastar o medo. Eu tinha certeza de que eles não aceitariam pessoas com medo de altura na CIA.    

Ouvi uma porta se abrindo com um estrondo e vozes.    

– Só me diga o que aconteceu a ele! – disse Holly. – Ele pode voltar se... se evaporou no ar?    

Eu suspirei de alívio. Ela estava bem. Mas com quem estava conversando? Eu ainda não queria me distrair, não até sair dali em segurança.    

– Tenho o palpite de que vai voltar logo, agora que você está aqui – disse outra voz.

Uma voz muito conhecida. Uma voz que eu tinha ouvido no pior dia da minha vida. Eu tinha visto seu rosto... O outro homem que estava no dormitório de Holly.    

Bem devagar, eu fiquei de pé e forcei meus olhos a olhar para o céu e não para o chão.    

O homem mantinha Holly pressionada contra um poste. Era o mesmo homem que tinha atirado nela em 30 de outubro de 2009. Não tinha acontecido ainda, eu me obriguei a me lembrar.    

– Jackson! Justamente a pessoa que eu estava procurando! – ele disse. – Não tenho certeza se fomos oficialmente apresentados. Sou Thomas.    

– Thomas – eu disse, entredentes. Claro que era Thomas. O IDT que poderia continuar fazendo aquilo várias e várias vezes até que a luta se transformasse exatamente no que ele queria. Talvez eu tivesse que dar a ele o que ele queria naquele momento, para que não tentasse de novo. Tudo o que eu tinha que fazer era fingir que estava do lado dele.    

Fácil, certo?    

Eu não poderia olhar para Holly, caso contrário me desviaria do meu plano. Iria tudo por água abaixo. Mas eu podia sentir os olhos dela fixos no meu rosto.    

– Por acaso foi Rena que voou do telhado? – perguntou Thomas com descontração.    

– Hã... Quem? A loira?

– É, ela. – Ele olhou para mim. – Não estou aqui para fazer mal a você, Jackson. Essa nunca foi a minha intenção. Ficaríamos felizes em deixar seu pai em paz se ele não tivesse matado tantos de nós.    

Eu arquejei e tentei me acalmar. Meu pai era um sobrevivente. Ele conseguiu ficar vivo todo esse tempo, repeti para mim mesmo.    

– O que você quer de mim, Thomas?    

Ele se inclinou para mais perto de mim, ainda segurando Holly, e eu pude ver uma leve semelhança entre mim e ele. Era provavelmente uns quinze anos mais velho, mas, ainda assim, éramos parecidos.    

– Só quero que você me ouça. Você foi influenciado pelos outros. Outros que não são como você... Eles não nos entendem. Quero que você veja o que poderia ter. A vida perfeita. Tentamos pegar você sozinho e agora a única solução parece ser ameaçar a vida desta garota. Lembre como você descobriu as suas capacidades quando ela foi baleada. Foi um progresso incrível!    

Eu podia sentir meu rosto fervendo de raiva quando ele mencionou o que tinha acontecido a Holly... mas o outro sujeito... Raymond, disse que tinha sido um erro. O que ele queria dizer com isso?    

– Do que ele está falando? – perguntou Holly.    

Thomas olhou para ela.

– Só do futuro, querida, nada com que precise se preocupar. O futuro está sempre mudando.    

– É, ele já está mudando – eu disse, colocando o meu plano em prática antes que me distraísse. – Muito tempo se passou desde aquele dia. Para mim, pelo menos. Quanto mais eu uso a minha capacidade, mais quero aprender. Nada mais é tão importante.    

Um sorriso se espalhou pelo rosto dele.    

– Ora, era exatamente isso o que eu queria ouvir.    

– Como Rena. Você não se importa que alguém a tenha matado, porque ela está viva em algum outro lugar. Em outra linha do tempo, não é?    

– Ah... Vejo que você não aprendeu tudo. Quando alguém como eu... – Ele apontou para mim. – Ou como você é morto, deixamos de existir em qualquer outro lugar, para sempre. Não no passado. Em todos os lugares. Mas esta mocinha, e as pessoas comuns em geral, podem ficar perfeitamente bem quando criamos outra linha do tempo. Essa é uma razão por que somos contra a experiência do dr. Melvin.    

– Não entendo – eu disse. Pelo canto do olho, eu podia ver o peito de Holly subindo e descendo enquanto ela ofegava, apavorada.

A chuva estava diminuindo e tinha se transformado numa leve garoa, mas o céu ainda estava escuro como se estivéssemos no meio da noite. Eu estava totalmente focado na cena à minha frente, ignorando o tumulto que sabia que devia estar acontecendo mais abaixo.    

– Bem... criar múltiplas linhas do tempo pode levar à destruição do mundo. Viajantes no tempo conduzidos por emoções nunca vão deixar de salvar seus entes queridos. Você agirá como um completo idiota, independentemente do poder que tenha. Isso não vai importar pra você e, em pouco tempo, bem..., o mundo será destruído.    

Como o que Emily tinha me mostrado? Será que eu posso ter causado aquilo no futuro? Ou talvez outro viajante no tempo?    

– E se eu consertar as coisas sem criar uma nova linha do tempo? – perguntei.    

Ele sorriu seu sorriso condescendente.

– Sim, isso seria excelente pra você, mas só eu posso fazer isso. Outros tentaram. Tanto que deterioraram a própria mente e morreram. Além disso, mudar acontecimentos muitas vezes provoca uma reação em cadeia e, se você não tiver levado em conta cada alteração cuidadosamente, se agir impulsivamente, o resultado pode ser desastroso. É uma responsabilidade que poucos podem ter.    

– Entendi. Bem... eu faço isso agora, de qualquer jeito. Agora que sou mais experiente – eu disse, imitando Jenni Stewart e sua capacidade de entrar completamente num papel. Fingir. – Então me diga... me conte o que tem pra contar.    

Ele sorriu e soltou Holly, depois apertou os dedos em volta do meu braço. Nós saltamos. Juntos.

 

Eu sacudi o braço, para me livrar da mão de Thomas, no segundo em que senti o chão sob os meus pés.    

– É a Times Square – disse Thomas. – O que você acha?    

Os prédios que eu conhecia tão bem me cercavam. A única diferença era que estavam pintados em cores terrosas, refletindo perfeitamente os raios do sol.    

E essa versão de Nova York tinha pessoas andando por todos os lados. Suas roupas combinavam com os tons terrosos dos prédios. Uma mulher que caminhava ao nosso lado sorriu, depois disse olá. Meus olhos baixaram para o chão. Ele era coberto de um tipo de tijolo marrom esverdeado, que se estendia por todos os lugares. Não havia uma linha divisória entre a calçada e a rua.    

– Onde estão todos os carros? – perguntei.    

– Não há carros. Só equipamentos de teletransporte para viajarmos de um lugar ao outro – explicou Thomas. – Repare no ar. É perfeito! Sempre limpo, e nunca está muito quente nem muito frio.

Não era como o ar da Nova York destruída de Emily. Eu não teria sobrevivido um dia inteiro lá. O que ela estava tentando me dizer com aquilo? Algumas pessoas estão lutando para evitar que isso aconteça e outras estão... fazendo com que aconteça.    

– É desse lugar que você veio? – perguntei a Thomas.    

– Você não quis dizer de “quando” eu vim? – ele perguntou, depois riu. – Essa é a maravilha de ser um de nós, você pode chamar qualquer lugar de lar... em qualquer tempo. Por que não escolher um mundo que faça mais sentido?  

Tudo bem, então obviamente ele não vai me dizer em que ano nasceu. Não que eu esperasse isso dele.    

Atrás de mim havia crianças brincando num parquinho. Pelo menos eu acho que era um parquinho. Mas elas estavam quase em silêncio. Não eram como as crianças do meu grupo de acampamento. Todos os brinquedos pareciam se mover ou ser eletrônicos. Um raio era emitido entre dois postes e se movia de um lado para o outro e as crianças andavam sobre ele enquanto o raio se movia.    

A pequena parede de escalada levava a uma estrutura principal que girava, de modo que as crianças simplesmente escalavam no próprio lugar. Todas elas pareciam pequenos Homens-Aranha, praticamente saltando prédios altos.

– Tudo movido a energia solar – disse Thomas, virando o rosto para olhar o parquinho. – Aqui, no futuro, não fazemos nada que prejudique o planeta.    

Mas alguém de fato prejudicou o planeta no futuro. Ou pelo menos Nova York. Eu vi com meus próprios olhos. Ou talvez aquilo já tenha acontecido e eles tenham consertado? Ou... será que era só outra linha do tempo?    

Ele começou a se aproximar de um prédio marrom-claro e eu o segui.    

– Nós melhoramos a qualidade de vida além do que qualquer pessoa poderia imaginar. Eliminamos a obesidade, melhoramos os suplementos vitamínicos, aumentamos a função cerebral.    

Vitaminas que dão às pessoas uma força sobre-humana? Isso explicaria as incríveis crianças alpinistas.    

– Quando isso vai acontecer?

Mais importante, que tipo de medidas drásticas exigirão para que se chegue a esse tipo de sucesso?    

– Isso eu não posso dizer. – Ele falou num tom formal, mas sereno, como se fosse um guia turístico me levando num tour de quatro horas pelo futuro perfeito.    

Eu continuei a perambular pelos arredores, e tudo era realmente muito bonito. Nada de lixo, nada fora do lugar. O esquema de cores era brilhante. Como se a cidade e o país se fundissem. Incrivelmente perfeito... exatamente por isso que eu não confiava muito. Emily tinha me mostrado o outro futuro por alguma razão. Eu precisava das datas. De ambos os mundos.    

– O tempo acabou – disse Thomas, pegando meu braço e me levando de volta.

 

                   15 DE AGOSTO DE 2009, 17:00.

Thomas era de fato habilidoso. Estávamos exatamente no mesmo lugar de onde tínhamos partido. Eu me inclinei para a frente, ofegando e tentando me orientar. Obviamente, a viagem no tempo tinha um efeito diferente quando era feita na companhia de outro viajante. Saltar dois anos no passado tinha me enfraquecido um pouco e o meio-salto para 1992 tinha acabado comigo. Mas eu me sentia bem agora.    

– Então, ficou impressionado? – Thomas perguntou.    

– Sim, foi... incrível – respondi.     Ele andou na direção de Holly, que devia ter ficado ali só por um segundo ou dois, pois ainda estava parada no mesmo lugar. Ele a agarrou pelo cotovelo e a empurrou para mais perto da borda do telhado.    

– O que está fazendo? – perguntei, sem ter certeza se eu já devia fazer algum movimento.    

– Seu discurso de agora há pouco sobre itens que não são tão importantes foi muito convincente, sabendo o que você passou recentemente, mas, infelizmente, sou esperto demais para me deixar enganar.

– Você não acredita em mim? – perguntei, mantendo a voz inalterada.    

– Isso é irrelevante. Fatos. Provas tangíveis. É nisso que confio.    

Thomas passou os braços em torno de Holly, impedindo-a de escapar. Eu podia ver o rosto dela se contorcendo de raiva, enquanto ela tentava se libertar do abraço apertado de Thomas.    

Eu continuei com meu disfarce, esperando para ver até onde ele iria com aquela pequena diversão.    

– Pensei muito em você, Jackson – disse Thomas calmamente, enquanto Holly tentava se libertar. – Recentemente aprendi a expressão matar dois coelhos com uma cajadada só. Não dizemos isso de onde eu vim. Existe um jeito de eu descobrir se você está mentindo com relação a deixar de lado os apegos emocionais e descobrir o quanto você pode ser valioso para a minha equipe.  

– E o que é? – perguntei, ouvindo o nervosismo em minha voz.

– É um plano bem pensado, e, como eu já disse, isso é muito importante para pessoas como nós. O único problema é que, se você de fato mostrar um incrível talento, também mostrará que está mentindo para mim. Que você não é capaz de assumir as responsabilidades que acompanham esse poder que tem nas mãos. – Os olhos dele encontraram os meus e eu quase pude ver remorso neles. Ou decepção. – Nenhum de nós quer machucar você... ou impedir que viva a sua vida... mas talvez não tenhamos escolha. Não se você for um risco muito grande. Podemos aceitar que você fique do outro lado, mas não se for descuidado e impulsivo. Podemos considerar o Tempest nossa oposição, mas não podemos negar o quanto seu líder é cuidadoso com relação a lidar com o tempo. Entendeu?    

Eu podia sentir o suor escorrendo pela minha nuca. Meu coração batia como um trem desgovernado. Ele estava olhando para mim e interpretando minhas feições.    

– Do que você... do que você está falando?    

Ele pressionou os braços de Holly contra os lados do corpo dela e a aproximou ainda mais da beira do telhado. Eu finalmente olhei para o rosto dela e vi o pânico em seus olhos. Ela supôs o mesmo que eu.

Thomas pôs o braço na cintura dela e a ergueu do chão, aproximando seu tronco da borda do telhado. Eu ofeguei quando ele a inclinou um pouco mais.    

– Espere! Não faça isso! – gritei, mas não adiantou.    

Thomas levantou-a ainda mais alto e, com uma incrível força, atirou-a por sobre a aba do telhado. O grito agudo dela foi ensurdecedor e meu cérebro entrou no piloto automático quando saltei. Não foi através do tempo, mas um salto real.    

Do telhado.    

Na fração de segundo em que senti uma parte de Holly entre meus dedos, forcei minha mente a se concentrar em nós dois livres da queda. Pense no lugar onde quer estar, disse a mim mesmo. Lindo, maravilhoso. Lugares sólidos.

 

Um segundo antes, eu tinha sentido o pulso de Holly entre meus dedos. Agora eu podia sentir o peso do corpo dela sobre mim. Grama macia entre nós. Seu coração batendo contra o meu.    

– Holly? – murmurei. Meus olhos ainda estavam apertados com força.     Nós dois estávamos ofegantes, o pânico ainda presente.    

– Deus, estamos mortos?    

Eu fitei os olhos azuis-claros dela e vi o sol refletido neles. Sol, não chuva.    

– Não, não estamos mortos... droga... não sei o que acabei de fazer.    

Ela olhou para mim por um segundo e depois estava me beijando, ardentemente, lágrimas brotando dos seus olhos e molhando meu rosto. Eu a apertei nos meus braços tão forte que não sei como ela continuou respirando.    Quando fiquei sem ar, eu a soltei e deixei meus braços caírem na grama.    

– Holly?    

– Sim?

– Eu acabei mesmo de saltar de um telhado?    

– Sim. – Ela pressionou o rosto contra o meu peito e começou a soluçar.    

Eu rolei nós dois até ficarmos de lado, de modo que eu pudesse ver melhor o rosto dela.    

– Tudo bem, Hol. Você está bem.    

Ela finalmente levantou a cabeça e secou as lágrimas do rosto.    

– Você pode viajar no tempo com pessoas normais?    

– Pelo jeito, posso... Mas eu não fazia ideia. Sinceramente, esse pensamento nunca me ocorreu... Vi você caindo e eu simplesmente... segui meus instintos. Nem pensei. – Toquei a testa dela com a minha e fechei os olhos. – Eu nunca deveria ter deixado que a situação chegasse àquele ponto. Eu não sabia o que ele estava planejando e...    

– Está tudo bem... Eu sabia que você estava tentando ganhar tempo. Eu teria feito a mesma coisa. – Ela segurou meu rosto com as mãos e me beijou outra vez. – Este é o Central Park?

Eu por fim olhei ao redor pela primeira vez, sem nem mesmo pensar no fato de que tínhamos acabado de aparecer do nada, como num passe de mágica. Ninguém tinha gritado nem nada... esse era definitivamente um bom sinal. Reconheci o local em segundos. Estávamos no gramado principal do Central Park, perto de um dos campos de beisebol. Duas garotas tomavam sol a uns cinco metros de nós. Elas estavam de viseira e alheias a todos em volta. As outras pessoas estavam bem mais distantes.    

– É, o Central Park – respondi, antes de ajudá-la a se levantar da grama. – A pior parte para mim normalmente não é saber onde estou, mas quando.    

– Você não sabe quando é? – Holly perguntou.    

Eu sorri ao ver sua expressão chocada.    

– Só temos que encontrar uma fonte.    

Antes de começarmos a andar, eu a envolvi em meus braços mais uma vez, relutante em largá-la. Com o rosto enterrado em seu cabelo, eu respirei fundo, tentando me recompor.

– Depois que descobrirmos que droga acabamos de fazer, posso arrastar você para alguma ilha a uma centena de anos no passado...    

 

– E eu vou ter que deixar – ela murmurou.    

Andamos rapidamente em direção a um banco, onde uma jovem lia um jornal, enquanto um garotinho chutava uma bola de futebol na frente dela. Andamos em sua direção e eu e Holly demos uma olhada no jornal por cima do ombro dela.    

12 de agosto de 2009.    

– Três dias no passado – murmurei para mim mesmo. – Mas de que linha do tempo?    

– Do que você está falando? – perguntou Holly.    

– Lá está! – alguém gritou.    

Nós dois nos viramos ao mesmo tempo. Raymond e Cassidy, a mulher com o mesmo DNA que eu, estavam em pé a uns dez metros de distância, com armas apontando para nós. Eu quase caí quando vi quem estava escondido atrás de Raymond.    

Holly. Outra Holly?    

Seria uma Holly de outra linha do tempo? A minha Holly não devia ter feito essa outra desaparecer?

Eu não tinha tempo para pensar nisso. Não enquanto minha Holly 009 estava encarando outra versão de si mesma.    

– Santo Deus! – ela exclamou ao meu lado.    

As duas Hollys olharam uma para a outra, completamente chocadas.    

– Jackson? – a outra Holly disse.    

– Temos que voltar – eu disse para a Holly ao meu lado. – Agora!    

– Não brinca! – ela sussurrou antes de enterrar o rosto no meu ombro.    

– Vou tentar mirar o chão desta vez – murmurei antes de saltar.

 

                     15 DE AGOSTO DE 2009, 17:30.

Tudo bem, então, talvez eu não tenha atingido o alvo perfeito.    

– Merda! – exclamou Holly no meu ouvido.    

Ela estava em cima de mim e eu estava deslizando pela parte inclinada do telhado. Outra vez. Ela se agarrou a uma telha como eu fizera antes, depois agarrou meu pulso. Eu me virei rápido e comecei a escalar o telhado.    

– Achava que subir escadas era ruim... mas ficar me equilibrando num telhado inclinado... a uma altura de oito andares... é muito pior. – Eu pude sentir meu peito apertado e sabia que era bem possível que eu desmaiasse bem ali, no telhado.    

Holly beijou minha bochecha de leve.    

– Jackson! Olhe pra mim.    

Eu ergui a cabeça e olhei para ela através da chuva.    

– Não posso fazer isso. Só preciso...

– Você pode, sei que pode. – Ela colocou a mão sob o meu braço e me empurrou para que eu continuasse a escalar.    

– Desculpe se eu não ando sobre traves de balanços como você. Você é uma acrobata de circo maluca – murmurei, ligeiramente incomodado por precisar da ajuda dela.    

– Ei, quando você me viu andar por traves de balanços?    

– Foi você no passado. A Holly 007.    

– Ah, claro. Faz todo sentido... Eu já gostava de você em 2007? – ela perguntou.    

– Não, depois sim, depois não outra vez e depois sim.    

– Então é exatamente como neste ano? – ela brincou.    

– Acho que é possível que estivéssemos olhando para aquela Holly, só que um pouquinho mais velha talvez – eu disse, ainda sem acreditar.    

– Estou tentando não pensar no que acabamos de ver, mas tenho a impressão de que vou ter que fazer terapia no futuro... – ela disse.    

Percebi, então, que tínhamos chegado ao topo do telhado, perto da parte plana. Holly tinha criativamente me distraído, para que eu não pensasse na altura.    

– Você acha que aquele cara maligno ainda está por aqui? – ela perguntou.

– Aposto que já vamos descobrir. – Naquele momento a raiva se sobrepunha ao medo e eu estava com uma vontade imensa de dar um chute no traseiro de Thomas.    

Subimos pela borda do telhado e Thomas de fato estava ali. A cabeça voltada na nossa direção e um sorriso no rosto.    

– Talvez seja melhor pularmos do telhado outra vez – Holly disse, atrás de mim.    

Eu balancei a cabeça.    

– Ele não vai tocar você, prometo.    

– Impressionante! As suas habilidades excedem em noventa por cento as de outros viajantes no tempo! – ele falou, encantado.    

Não havia sarcasmo nem raiva em seu rosto, só pura admiração. O que não significava que ele não poderia nos matar.    

Cerrei os punhos quando me aproximei dele.    

– Achei que vocês não acreditavam em homicídio por negligência. E se eu não conseguisse saltar?    

– É, pobre garota. Mas ela é descartável. Ela é sempre descartável – Thomas disse num tom neutro.

Eu travei o maxilar e me obriguei a manter o foco. A única coisa que eu realmente queria fazer era atirá-lo daquela droga de telhado e assistir seus ossos se quebrando em milhões de pedaços.    

Holly ofegou quando Thomas levantou a pistola e apontou para nós.    

– Acho muito arriscado deixar você ir a qualquer lugar sozinho. Talvez pessoas como você sejam o perigo real. – Thomas olhou meu rosto como uma criança curiosa olhando alguém de cadeira de rodas. As emoções eram uma espécie de deformação. Era assim que ele pensava.    

Com um golpe eu tirei a arma da mão de Thomas antes que ele pudesse pensar em reagir. A adrenalina correu nas minhas veias depois que ouvi o som da arma batendo no chão duro e deslizando até sair do alcance dele.    

Pelo canto do olho, vi Holly mergulhando para trás do poste contra o qual ele a pressionara.    

Eu agarrei a frente da camisa dele.    

– Você não vai a lugar nenhum sem mim. Anda, tente se quiser.

Thomas golpeou meu rosto com o braço e eu senti uma onda de dor percorrendo meu corpo. Ele deu um soco rápido no meu estômago, me nocauteando. No segundo em que me curvei para a frente, ele estava livre outra vez. Livre para saltar para o futuro e planejar seu próximo movimento. Eu saltei para a frente e abracei as pernas dele. Ele devia ter caído de cara no chão, mas girou o corpo no ar e caiu de pé.    

Meus dedos só tocaram o pulso dele. Eu só precisava me segurar a ele, de modo que ele não pudesse saltar sem mim. Eu usei toda a minha força para puxar seu braço e fazê-lo cair, segurando-o firme o suficiente para impedi-lo de escapar.    

Eu o prendi firme no telhado e estava olhando bem para a cara dele, mas não tinha ideia do que fazer em seguida. Pegar a arma e atirar nele? Não sabia se conseguiria... mas a imagem de Holly sendo atirada do telhado surgiu na minha mente e meus dedos já estavam buscando a pistola caída no telhado.    

– Muito bem, faremos isso do seu jeito – ele disse, com um sorriso cruel. – Espero que você não se importe com a intensidade que o meu tipo de salto pode provocar. Sua cabeça vai parecer que está prestes a explodir. Tanto que vai preferir estar morto.

– Jackson, deixe ele ir... por favor – Holly disse, atrás de mim.    

Eu balancei a cabeça para ela e olhei para Thomas outra vez.    

– Não vou largar.    

Num só movimento, ele bateu a cabeça na minha. Eu fechei os olhos quando senti a visão turva. Meus dedos o soltaram e ele ergueu a perna o suficiente para me chutar no estômago. Holly gritou quando eu caí para trás e bati cabeça no poste de metal.    

Thomas se curvou sobre mim e agarrou minha camisa.    

– Você pediu por isso – ele disse.    

Eu estremeci, me preparando para a dor que ele tinha descrito de maneira tão vívida.    

A confiança em meu rosto se desvaneceu.    

– O que está... fazendo?    

Eu? Eu não estava fazendo nada além de esperar a dor intensa.    

Os dedos dele apertaram mais minha camisa, mas ele fechou os olhos e franziu o rosto. Foi nesse momento que algo me ocorreu: talvez ele não conseguisse saltar se eu não quisesse... ou se eu quisesse ficar ali, no presente.

Eu só hesitei um segundo antes de concentrar toda a minha energia para jogá-lo do telhado.    

Ele deixou escapar um grito de dor, embora eu não estivesse fazendo nada além de segurá-lo.    

Eu me sentei sobre ele quando ele caiu de lado, ofegante. O cano da pistola agora estava pressionada contra a cabeça dele.    

– Espere! Não atire! – ele disse com uma voz cansada.    

Pressionei ainda mais o cano contra a cabeça dele, sentindo minha raiva aumentar.    

– Por que não deveria atirar?    

Nesse momento meu pai irrompeu pela porta de acesso ao telhado, aflito.    

– Jackson, graças a Deus!    

Eu virei a cabeça por um segundo e Thomas conseguiu esticar o braço e agarrar meu cabelo. Eu me esquivei da mão dele.    

– Sério? Eu estou com uma arma apontada pra sua cabeça e você puxa o meu cabelo?    

– Este é o plano B. – Um sorriso lento se espalhou pelo rosto dele quando eu vi os fios de cabelo castanho na sua mão.    

Merda. DNA.

Os passos do meu pai me distraíram por um instante, me impedindo de juntar várias peças adquiridas nas últimas 24 horas.    

– Jackson, levante-se. Eu faço isso – disse meu pai.    

– Você sabe, não é? – Thomas me disse, erguendo uma sobrancelha. – Jackson! Levante-se! – meu pai gritou novamente.    

Mas tudo o que eu pude fazer foi olhar para o meu cabelo nas mãos daquele homem horrível. Eles não estavam tentando me clonar. Eles queriam fazer algo completamente diferente. Algo ainda melhor. Que tivesse tudo o que eles sempre quiseram.    

Emily.    

Minhas mãos começaram a suar, fazendo meu dedo indicador deslizar pelo gatilho. Eu não podia matá-lo. Ele não poderia morrer. Ou ela não existiria. As palavras de Emily vieram-me à lembrança.    

Confie em si mesmo e você fará a escolha certa. Não é tão difícil quanto parece.    

E eu sabia então que já tinha tomado a decisão, porque Emily já tinha me procurado. Ela existia. Certo ou errado, eu nunca extinguiria aquela criança, nem impediria sua vida de se formar.

Eu me levantei de cima do corpo de Thomas, mas pressionei o pé sobre a barriga dele, sentindo uma certa satisfação quando ele gemeu. Meu pai olhou para mim com um olhar indagador quando fiquei de pé em frente a ele, bloqueando sua visão e impedindo-o de atirar.    

Ele nem teve a chance de me perguntar nada, porque Raymond, o cara da marca de sapato na cara, que tinha matado Eileen, apareceu na laje atrás dele, com a arma apontada para as suas costas.    

– Pai! Cuidado! – Eu mergulhei para a frente e puxei meu pai para o lado justamente quando o homem na laje atirou. Eu mal senti quando a bala atingiu o meu braço. Fiquei olhando o homem cair do telhado, atingido pelo tiro certeiro do meu pai. Segundos depois, o baque do corpo de Raymond caindo no chão chegou aos nossos ouvidos através da chuva.    

Meu pai imediatamente girou o corpo e olhou para Thomas, que agora estava de pé sobre o telhado assim como Raymond estava.    

– Nós nos veremos outra vez, Jackson.    

Então, Thomas simplesmente se virou e pulou do telhado, uma fração de segundo antes de meu pai atirar novamente. Não ouvimos nenhum baque e eu soube que ele tinha se desvanecido no ar antes que seu corpo atingisse o chão. Ele estava livre de mim e seus poderes ainda estavam intactos.

Meu pai soltou um palavrão baixinho, depois correu até onde eu estava, forçando-me a me sentar.    

– Droga, Jackson! Ao menos uma vez, você podia me ouvir?    

Eu sorri um pouco e encostei a cabeça na parede.    

– Pelo menos pegamos três deles. É um progresso, não é?    

Holly rastejou para fora do seu esconderijo e correu até nós.    

– Ai, meu Deus!... Você levou um tiro!    

Ela ajoelhou na minha frente e começou a desabotoar a minha camisa.    

– Ele vai ficar bem, eu prometo – disse meu pai.    

– Quem atirou na loira? – perguntei ao meu pai.    

– O agente Freeman.    

– Ele fugiu, não é? – Holly perguntou enquanto tirava meu braço delicadamente da manga da camisa. – O sujeito maligno.    

Eu assenti e fechei os olhos quando a dor da ferida se espalhou pelo meu braço. Descansei a mão do outro braço no rosto de Holly. Seus olhos encontraram os meus e eu sussurrei sem pensar:

– Lamento muito, Hol... lamento mesmo. Isso nunca deveria ter...    

Ela tocou meus lábios com a ponta dos dedos e balançou a cabeça.    

– Pare... Você não tem que se desculpar por salvar a minha vida. Eu que devia agradecê-lo. Ainda não sei como você fez aquilo, aquela coisa de salto do telhado... e de salto no tempo...    

Ela se chocou um pouco com o próprio tom sarcástico em sua voz e então chegou mais perto e encostou o rosto no meu.    

Beijei a lateral do seu pescoço e disse:    

– Amor vincit omnia.    

– Latim? – Holly perguntou, tocando a testa na minha. – O que significa?    

– O amor conquista tudo – respondeu meu pai, enquanto fazia um torniquete com um pedaço da minha camisa sobre o ferimento que sangrava.     Holly roçou os lábios na minha testa.    

– Eu definitivamente acredito nisso.    

Alguns minutos depois, Adam e Melvin apareceram na porta do telhado.

Outro suspiro de alívio. Mas parte de mim sabia que meu pai nunca teria deixado nada acontecer a Adam enquanto ele estivesse sob sua vigilância. Holly se levantou e o abraçou.    

Ele apertou os ombros dela.    

– Por que eu vi vocês pulando do telhado? Sabiam que eu quase tive um ataque do coração?    

Holly se apoiou nele e eu soube que ela já tinha vivido coisas demais por um dia. Dava a impressão de que poderia desmaiar a qualquer momento. Adam ajudou-a a se sentar ao meu lado e ela se aconchegou a mim, tremendo como se estivesse 5 graus em vez de 25.    

Melvin olhou para mim, falando rápido em persa.    

– Você pulou com ela?    

– Vocês viram? – perguntei, olhando para o dr. Melvin e depois para o meu pai. Ambos assentiram. – Eu nem sabia que era possível.    

– Nós chamamos esse salto de Deslocação. – Melvin chegou mais perto e a intensidade do seu olhar me assustou. – Ouça. Você pode levar outra pessoa, se tiver habilidade para isso. Mas a parte do seu cérebro que você usa para saltar não é acessível para uma pessoa normal. Se você saltar com ela novamente, agora mesmo, há oitenta por cento de chance de que isso a mate. Um terceiro salto, depois desse, é cem por cento de chance de que ela de fato morra.

Eu engoli em seco, desejando ter tido conhecimento disso antes, mas sabendo que não teria mudado nada. Eu ainda assim teria tentado salvá-la, independentemente de qualquer coisa.    

Ouvi o barulho de um helicóptero se aproximando. Fechei os olhos para evitar a poeira, quando o vento provocado pelas hélices agitou tudo ao redor. Eu me forcei a pensar apenas na garotinha de olhos brilhantes de lágrimas quando ela me deixou na praia. Para onde quer que ela estivesse voltando não era algo agradável e eu precisava ajudá-la. Embora eu não tivesse ideia de quando iríamos nos encontrar novamente. Em algum momento no futuro. Isso era a única coisa que eu sabia.    

Meu pai ajudou Holly a entrar no helicóptero e esperou por mim para embarcar, antes de ajudá-la a se acomodar. Adam ajudou Holly a afivelar o cinto num banco perto do meu. Os olhos dela se abriram novamente e ela se endireitou no banco... alerta com o barulho alto do helicóptero. Eu me reclinei no banco, tentando não pensar na dor. A mão de Holly pegou a minha, sua cabeça descansou contra o meu braço bom.    

Tão logo levantamos voo, olhei para baixo, na direção do hotel. Um lado inteiro do edifício tinha ido abaixo enquanto eu estava saltando no tempo e escalando o telhado. Carros de bombeiros estavam em todos os lugares.

Um homem num uniforme de paramédico enfiou uma agulha intravenosa no meu braço, mais rápido do que eu achava ser possível, considerando as manobras do helicóptero. O conteúdo da injeção, fosse ele qual fosse, dissipou a dor e um torpor tomou conta do meu cérebro. Mas um pouco antes de apagar, as palavras de Thomas vieram à minha mente outra vez: Ela é descartável. Ela é sempre descartável.    

Holly nunca estaria a salvo. Não enquanto me conhecesse. E a dor voltou, mas era outro tipo de dor. O pior tipo.          

 

– Você teve muita sorte. Essa é a ferida de bala mais limpa que eu já vi – disse pela décima vez o médico que suturava o meu braço.    

– É.    

– Ele vai precisar de uma tipoia? – meu pai perguntou.    

– Sim, provavelmente por alguns dias – respondeu o homem. – Mas vai pra casa em menos de uma hora.    

– Que horas são? – perguntei para o meu pai.  

Tínhamos ficado ali a noite toda, exceto que eu tinha dormido e Holly e Adam tinham voltado para casa a salvo.    

Ele se mexeu na cadeira ao meu lado e olhou no relógio.    

– Oito da manhã. Prometi a Holly que você ia ligar logo que acordasse.

Eu assenti lentamente, sentindo a preocupação e o medo voltarem. Esperei até que o médico acabasse a sutura e fizesse o curativo antes de responder ao meu pai.    

– Não sei se... eu devia.    

Meu pai ficou de pé e espiou através da cortina, enquanto o médico saía do quarto. Ele se sentou na beirada da cama e falou em voz baixa.    

– Ele ameaçou machucá-la? Thomas?    

– Não exatamente, mas eu sei que faria isso se quisesse me pegar. – Eu não contei ao meu pai sobre a teoria do DNA e não planejava contar a ninguém. Não só porque Emily tinha pedido para eu não contar. A CIA tentaria impedir o experimento e eu já tinha sacrificado muito para que ele acontecesse. Deixei Thomas fugir. Provavelmente por todas as razões erradas. Mas eu não era como o Comandante Marshall. Nem sempre conseguia olhar para o quadro maior, não quando eu já tinha visto as pequeninas peças.    

– Podemos dobrar a proteção que temos agora...    

Meu pai parou de falar quando eu balancei a cabeça.    

– Não será suficiente. Você viu... Eles simplesmente aparecem e desaparecem no ar. Não podemos lutar contra isso. Não para sempre.

– Mas se você se afastar de Holly, eles não terão mais interesse nenhum em matá-la ou feri-la. Lembre-se de que eu disse que a filosofia deles é só matar por poder. Eles não entenderão o sacrifício que estará fazendo para ficar longe dela. Vão simplesmente presumir que ela não é mais uma boa influência.    

Eu podia sentir o desespero em sua voz. Essa era a escolha que ele queria que eu fizesse. Era a escolha que ele teria feito com Eileen. Deixá-la viver em segurança, mas não fazer parte da vida dela. Esse era o verdadeiro amor. Mas e se eu não fosse tão forte quanto o meu pai?    

– É difícil, não é?... Viver sozinho? – ele perguntou.    

Eu olhei para as minhas mãos e concordei.    

– É.    

– Mas se isso for preciso para mantê-la viva... – meu pai continuou.    

– Eu sei.    

O que eu deveria dizer a ela? Que eu tinha uma doença incurável? Não, ela seguraria a minha mão e se prepararia para esperar comigo pela minha morte. Deveria dizer que eu nunca a amei de verdade? Só de pensar em olhar para ela enquanto absorvia essas palavras era pior do que levar outro tiro.    

Mas que escolha eu tinha?

Um pouco depois, os médicos me liberaram e meu pai e eu tomamos um táxi para casa. Quando descemos do táxi em frente ao nosso prédio, eu saí primeiro e disse a ele que ia dar uma volta. Meu braço descansava na tipoia e a medicação para a dor ainda corria nas minhas veias, por isso eu só andei um pouco e depois encontrei um banco na sombra onde me sentei.    

– Você nem precisa dizer nada a ela.    

Eu olhei para cima e vi meu pai de pé na minha frente.    

– Só desaparecer sem dizer nada a Holly?    

Ele se sentou ao meu lado.    

– Sei o que você está pensando... Ou ficar com ela 24 horas por dia durante sete dias por semana ou partir seu coração. Mas eu acho que há uma outra solução.    

Eu me virei para ele, desesperado por qualquer alternativa.    

– O quê?    

Meu pai respirou fundo antes de falar.    

– Você não pode dizer nada a Melvin ou Marshall sobre isso... A ninguém.    

Ele pôs a mão no bolso e me deu um pequeno cartão de memória. Eu o virei nas mãos.

– Ok...?    

– Adam Silverman não é o único que tem seu próprio código de espionagem.    

– Ainda não entendi...    

Meu pai verificou rapidamente os arredores com os olhos antes de continuar.    

– Isso é para mim. Eu quero atualizar meu eu um pouco mais jovem com esses fatos recentes. Lembre-se de como a linha do tempo funciona. Pense nisso. Não muito tempo atrás Holly nem conhecia você. E se ela não conhecer você...    

Eu olhei para ele, incapaz de pronunciar sequer uma palavra enquanto seu plano oprimia meu peito como um torno.    

– Eu não tenho nem certeza se posso mudar minha base principal outra vez.    

Ele assentiu.    

– Você fez isso nos momentos mais importantes. Essa decisão é totalmente sua, mas eu sei como é... perder alguém muito próximo.    

Meu celular estava ao meu lado. Meu pai o pegou e lentamente o colocou na minha mão.    

– Ligue para ela, só não diga adeus. Ela não sentirá nada, só coisas boas.    

Ele se afastou um pouco e eu abri meu celular, olhando para a foto de Holly comigo na praia, só alguns dias antes. Minha garganta se apertou quando vi o número dela no visor. Ele tocou mais algumas vezes antes de ela atender.

– Ei, você já pode sair esta manhã? – ela disse.    

Eu forcei a voz para parecer calmo.    

– Já. Estou saindo agora. Devo estar aí logo.    

Ela suspirou de alívio.    

– Ótimo!    

Ouvir o gritinho de empolgação dela, a expectativa em sua voz, já doía muito. Eu tive que limpar a garganta antes de falar. Olhei para as árvores à minha frente e me concentrei na ideia da vida. Da vida de Holly sendo longa e feliz.    

– Ei, Hol?    

– Sim?    

– Eu amo você.    

Lágrimas fizeram meus olhos arderem, mas eu pude praticamente ver seu sorriso pelo telefone.    

– Amo você também. Vejo você daqui a pouco.    

Não se eu puder evitar.    

– Tchau, Holly.    

Fechei os olhos e tentei um salto completo de volta para um dos dias mais importantes da minha vida. Imediatamente senti o peso de todo o meu corpo saltando comigo e soube que meu pai estava certo. Eu podia escolher fazer isso.

 

                     15 DE MARÇO DE 2009, 17:38.

Minha nova base principal. E eu consegui aterrissar exatamente onde e quando precisava. Entrei na rua 92 e me dirigi à recepcionista.    

– Preciso deixar um recado para o sr. Wellborn.  

– Claro. – Ela me passou papel e caneta.    

Rabisquei um bilhete rápido, explicando que estava me demitindo do meu emprego de verão, que eu deveria começar naquele dia. Deixei o lugar logo em seguida, mas fiquei parado próximo a um poste de luz, a uma certa distância das portas da frente. Eu tinha que vê-la.    

Alguns minutos se passaram e então eu a vi vindo pela calçada, o rabo de cavalo loiro balançando, o imenso smoothie cor-de-rosa numa mão e um livro escondendo o rosto. Achei que minhas emoções iam levar a melhor sobre mim e eu correria até ela, mas em vez disso eu me encostei no poste e observei-a chegar cada vez mais perto.    

Nesse momento ela estava segura e feliz. Eu não teria que magoá-la e partir seu coração... ou causar sua morte. Lembrei-me das palavras que ela tinha me dito muito tempo antes: É como se você tivesse outra vida e eu não pudesse fazer parte dela.    

Mas seria exatamente o contrário agora.

Eu segurei a respiração quando Holly se aproximou alguns passos, sem nem tirar os olhos do livro. Mas meus pés ficaram firmemente plantados no chão até que ela subisse os degraus. Esse tinha sido o exato momento em que tínhamos trombado um no outro. Dois caminhos que agora provavelmente nunca se cruzariam. Eu senti uma mistura de alívio e de uma dor excruciante quando Holly Flynn atravessou as portas da ACM, completamente ilesa. A história tinha mudado seu curso para sempre. Ela e eu nunca nos conheceríamos.    

Eu enfiei a mão no bolso, segurando entre os dedos o anel que Emily tinha me dado. Ela não deveria saber da escolha que eu tinha feito... ou talvez... talvez ela soubesse. Eu tirei da mente aquele pequeno fiapo de esperança quando me virei e me afastei de Holly.    

Quanto mais eu me afastava, mais dor eu sentia. Uma dor amarga que eu acho que nunca desapareceria.    

Sem pensar, parei bem em frente ao parquinho onde a Holly 007 e eu tínhamos passado uma manhã deitados na grama. Um sentimento inesperado de paz se apossou de mim, como naquele dia. Segundos depois, eu me deitei no mesmo lugar, olhando as nuvens, ouvindo a voz dela como se ela estivesse ao meu lado outra vez.    

Você é tão diferente do que eu pensava.    

Você é exatamente como eu pensava.

E eu sabia, sem sombra de dúvida, que tinha finalmente feito a coisa certa. Completamente certa. Afinal de contas, a dor e a tristeza não eram nada comparados com o arrependimento.  

Tirei meu diário da mochila jogada na grama e só escrevi quatro palavras. Um lembrete para dias ainda mais difíceis que esse. Porque a verdade é que... embora eu não soubesse o que ia acontecer em seguida... pelo menos hoje...            

Eu não tenho arrependimentos.

 

[1] GED (General Educational Development), teste que certifica que o aluno tem ensino médio. Só as pessoas que não cursaram o ensino médio e não se diplomam podem prestar o GED. (N. da T.)                        

[2] Exame norte-americano, semelhante ao ENEM brasileiro, que serve de critério para admissão de estudantes do 2o grau nas universidades norte-americanas. (N. da T.)                        

[3] Dick e Jane eram os principais personagens dos livros escritos por William S. Gray e Sharp Zerna, usados para ensinar as crianças a ler a partir de 1930 nos Estados Unidos. (N. da T.)

 

                                                                                Julie Cross  

 

                      

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