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TEMPESTADE DE CRISTAL / Parte III
Series & Trilogias Literarias
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MAGNUS
PAELSIA
Magnus sabia que nunca imploraria por nada na vida: nem por misericórdia, nem por perdão, nem por uma segunda chance. Ainda assim, tudo o que queria era ir atrás de Cleo para tentar fazê-la entender seu
lado.
Maldito Nic. Se o idiota tinha finalmente morrido, Magnus não podia nem comemorar a ocasião, graças à recente ruptura com Cleo.
Ele deu um passo em direção à escada.
- Não - a voz da avó dele o impediu. - Deixe a garota sozinha. Correr atrás dela logo depois da discussão só vai piorar as coisas. Acredite.
Magnus virou e viu Selia de pé perto da porta, observando-o com curiosidade.
- Eu não sabia que nossa discussão estava sendo ouvida - ele disse.
- Meu querido, até um surdo poderia ter ouvido - ela inclinou a cabeça - a discussão, foi o que você disse?
- Peço desculpas, Selia, mas não quero falar sobre isso com você.
- Eu preferiria que me chamasse de avó, como costumava fazer quando era pequeno.
Mais uma vez, ele se virou para a escada, esperando por um milagre que fizesse Cleo voltar para ele.
- Vou chamar a senhora do que quiser.
- Você é surpreendentemente sério e inflexível para alguém tão jovem. Até mesmo para um limeriano, não? Mas você foi criado por Althea, por isso não me surpreendo muito. Não me lembro de ter visto aquela
mulher sorrir alguma vez.
- Meu pai, por acaso, contou que a matou? E então mentiu e me disse que a amante dele, Sabina, era minha mãe verdadeira?
- Não - ela disse apenas, retorcendo o prateado pingente de serpente no pescoço. - É a primeira vez que estou ouvindo isso.
- E você acha esquisito que eu não esteja rindo alegremente todos os dias, sendo que estamos em guerra contra um império inteiro que ameaça nos destruir?
- Claro que você tem razão. Sinto muito... meus pensamentos estavam longe.
- Invejo seus pensamentos.
Selia franziu os lábios.
- Você precisa saber que seu pai não vai sobreviver a esta noite. A morte vai levá-lo por completo pela manhã. Você se importa?
Magnus não disse nada. Nenhum pensamento lhe ocorreu, nem bom nem ruim.
Ele tinha imaginado que celebraria o momento da morte iminente de um homem que detestara desde sempre.
- Gaius ama você - Selia disse, como se lesse os pensamentos dele. - Independentemente de você acreditar ou não, sei que é verdade. Você e Lucia são a parte mais importante da vida dele.
Ele não tinha tempo para bobagens como aquela.
- É mesmo? Eu poderia jurar que o desejo pelo poder era a coisa mais importante para ele.
- À beira da morte, questões como dinheiro e legado perdem o sentido diante da consciência de que alguém que se importa com você vai segurar sua mão enquanto estiver partindo.
- Vou precisar me lembrar disso quando estiver à beira da morte. - Magnus olhou para ela. - Peço desculpas, mas você quer alguma coisa de mim? Porque se estiver me pedindo para subir a escada e segurar
a mão de meu pai enquanto ele morre, me deixando aqui para cuidar da bagunça que ele fez, vou ter que recusar.
- Não. Quero que você me acompanhe à taverna hoje à noite para encontrar minha amiga Dariah.
Magnus prendeu a respiração.
- A pedra sanguínea.
Ela assentiu.
- Quero você do meu lado.
- Por quê?
- Porque é importante para mim. Sei que você tem dúvidas a respeito das escolhas que fiz no passado, mas sei que vai entender tudo em breve.
Magnus acompanharia a avó naquela noite. Não pelos assuntos amorosos, já que esses já tinham se trancado em um quarto no andar superior em um acesso de raiva e pesar.
Não, ele iria porque, naquele momento incerto, a pedra sanguínea parecia uma magia pela qual valia a pena matar.
Magnus esperou Cleo sair do quarto, mas ela não saiu. Quando o sol se pôs, ele e Selia deixaram a hospedaria Falcão e Lança. Até aquele momento, tinha se acostumado com a Videira Púrpura. Da entrada, ele
conseguia ver o mar brilhando sob o luar, os navios ancorados no porto enquanto a tripulação estava espalhada pela cidade. Basilia parecia mais movimentada à noite do que durante o dia, quando coisas precisavam
ser feitas. À noite, todos os que tinham trabalhado durante o dia queriam beber, comer e se dedicar a outros interesses, todos fáceis de conseguir a uma distância curta do cais.
A taverna estava lotada de clientes barulhentos, e a maioria já estava caindo bêbada quando Magnus e Selia entraram. Ainda assim, o príncipe manteve o capuz sobre a cabeça para esconder sua identidade.
Ele não podia correr o risco de ser reconhecido de novo.
Selia o conduziu até uma mesa num canto afastado, e ali, sentados, estavam uma bela jovem de cabelo avermelhado e um homem de cabelo loiro que ia até os ombros, olhos acobreados.
Era um homem que Magnus reconheceu de imediato.
Ao vê-lo, as lembranças do acampamento nas Montanhas Proibidas de Paelsia tomaram sua mente. Aquele homem - um Vigilante exilado - tinha sido designado a ficar ali para infundir a estrada com a magia necessária
para localizar os quatro pontos em Mítica onde a Tétrade seria despertada.
Magnus não havia falado diretamente com o Vigilante na época, mas o vira tirar a vida de outro exilado durante um ataque rebelde.
- Xanthus - Magnus finalmente se forçou a dizer o nome. - Você lembra de mim?
O homem levantou, ostentando sua altura. A aliança grossa de ouro que usava no dedo indicador direito reluziu à luz da vela.
- Claro que sim, vossa alteza.
- Não precisa se preocupar com formalidades hoje. Na verdade, vamos deixar de lado meu nome e meu título, certo?
Xanthus assentiu.
- Como quiser.
- Há meses você não aparece nem dá notícias.
- Tem razão - Xanthus concordou. - Meu trabalho para o rei acabou, e chegou a hora de eu descansar e recuperar minhas forças. Sentem, por favor.
Magnus e Selia sentaram no bloco de madeira que fazia as vezes de mesa.
- Você está linda hoje - Selia disse à outra mulher, que Magnus não reconheceu. - Seu controle sobre a magia do ar melhorou muito ao longo dos anos.
- Acha mesmo? - a mulher perguntou com uma risadinha, torcendo timidamente uma mecha do cabelo comprido, sedoso e avermelhado no dedo.
Xanthus pousou a mão sobre a da mulher.
- Dariah sempre está linda.
Dariah? Magnus observou a mulher com interesse renovado quando percebeu que ela tinha usado seus elementia para mudar sua aparência para a de uma mulher muito mais jovem e atraente. Se observasse com atenção,
podia ver que seus traços pareciam escondidos, como se estivesse sentada à sombra e não sob a luz de uma lamparina na parede, e que parecia um pouco perfeita demais para ser real.
- Dariah me disse que você deseja falar comigo - Xanthus comentou. - Ela disse que era importante que eu chegasse o mais rápido possível. Se fosse por outra pessoa, eu não me daria ao trabalho.
- Diga - Magnus disse, a curiosidade crescendo dentro dele a ponto de precisar ser liberada -, você continua em contato com Melenia?
Xanthus olhou para Magnus.
- Não continuo.
- O que aconteceu? Ela parou de aparecer nos sonhos de meu pai.
- Melenia faz o que quer quando quer. Acredito que ela está concentrada na restauração de minha casa, para ela voltar a ser linda como antes, agora que a Tétrade foi despertada.
A menção aos cristais fez Magnus criar expectativas de que Selia diria alguma coisa, mas ela se manteve em silêncio, o olhar curioso voltado para os dois.
Xanthus tomou um gole da taça à sua frente, fazendo um gesto para a atendente trazer mais uma rodada à mesa.
- O que quer comigo hoje?
- Mais uma pergunta, se não se importar - Magnus disse, estreitando os olhos. - Conhece alguém chamado Kyan?
Xanthus voltou toda a sua atenção a Magnus, a expressão séria.
- Ele está livre.
- Sim. Será que tem algum conselho para dar sobre ele?
- Fique longe de Kyan o máximo que puder, se dá valor a sua vida - Xanthus disse. - Melenia, pensando que estava fazendo a coisa certa, ajudou o deus do fogo a roubar a forma corpórea de um bom amigo meu.
- Ele olhou com seriedade para Dariah enquanto tomava sua bebida. - Foi por isso que insistiu que eu viesse aqui hoje? Para responder às perguntas do príncipe sobre assuntos que não pretendo discutir com
ninguém?
- Não, não foi para isso - Selia respondeu no lugar da amiga. - Mas acho fascinante saber mais sobre o deus do fogo, então agradeço por isso.
- A Tétrade foi despertada - Dariah disse, a voz tomada de temor. - É verdade?
- É - Selia disse, sorrindo com doçura. - Xanthus, há quantos anos está exilado?
Ele olhou para Dariah, que assentiu.
- Selia é uma amiga de confiança - ela disse.
- Muito bem. Deixei o Santuário há vinte anos.
- Incrível - Selia disse, balançando a cabeça. - Todos os exilados de quem tenho informações acabaram com a magia muito reduzida em um quarto desse tempo. Mas a sua permanece tão forte que você é capaz
de abençoar a Estrada Imperial com ela.
Ele confirmou.
- Melenia tomou providências para que minha magia não se perdesse ao longo dos anos e eu não corresse o risco de morrer como um mortal. Essa promessa foi posta à prova não muito tempo atrás, quando uma
adaga atingiu meu coração.
A atendente trouxe as bebidas, e Magnus ficou surpreso ao se deparar com uma caneca de cerveja. Ele a empurrou para longe.
- Não gostou? - Selia perguntou. - Ah, é verdade. Você prefere vinho paelsiano.
Magnus olhou para ela.
- Como sabe disso?
- Porque você volta para a hospedaria com cheiro de vinho paelsiano toda noite. - A velha bruxa disse a indelicadeza com um sorriso charmoso. - Gaius gostava muito de vinho quando jovem, apesar de todas
as leis de proibição. O pai dele sempre ficava furioso que ele desrespeitasse a deusa. Paelsiano, auraniano, terreano, kraeshiano... o vinho que fosse parar nas mãos dele. Eu nunca experimentei. Nunca
quis. Prefiro manter a mente clara e atenta.
Mesmo depois de dizer isso, Selia chamou uma moça e pediu duas garrafas da melhor safra. Magnus não tentou impedi-la e, quando chegaram, tirou a rolha das duas garrafas e bebeu com vontade do gargalo de
uma delas, cujo rótulo dizia "Vinícolas Agallon".
Não havia mesmo como escapar do rebelde.
Selia levantou uma sobrancelha quando ele tomou todo o conteúdo da primeira garrafa, rápido.
- O vinho nunca faz os problemas desaparecerem. Só os aumenta.
- Excelente conselho de alguém que nunca tomou um gole. - Ele suspirou. - Estou cansado desse dia horroroso. Quanto tempo precisamos ficar aqui hoje?
- Não muito.
- Que bom.
- Dariah. - Selia se inclinou sobre a mesa. - Chegou a hora.
- Compreendo - Dariah assentiu com o rosto corado. - Faça o que tiver que fazer.
Selia se virou para o imortal exilado.
- Preciso de sua aliança, Xanthus.
- Precisa? Sinto muito, mas não está à venda - Xanthus disse com tranquilidade, olhando para o anel grosso na mão direita. - Mas posso indicar o nome do artesão que a criou para mim.
- Dariah, você precisa saber que estou me preparando para a noite de hoje desde que você se foi. Cada dia pareceu um ano enquanto eu observava meu filho amado desaparecer diante dos meus olhos. Você sabe
que eu faria qualquer coisa por ele. Deixe sua vaidade de lado um pouco e tente sentir minha magia recuperada hoje à noite.
Magnus observou sua avó, sem saber exatamente o que ela queria dizer. Ela não tinha dito que precisava da pedra sanguínea para restaurar a magia?
A falsa beleza de Dariah sumiu quando ela franziu a testa.
- Sim, consigo sentir a magia do sangue. Selia, quantas pessoas você matou para conseguir isso?
- O suficiente. Esta cidade está cheia de homens que não vão fazer falta. Eu gosto daqui.
- O quê? - Magnus exclamou, chocado com a afirmação. - Quando você fez isso? Você ficou ao lado do meu pai quase todos os momentos desde que chegamos.
- Toda noite depois de vocês se deitarem. - Selia abriu um sorriso paciente para ele. - Não preciso dormir muito, meu querido. Assim como esta cidade, ao que parece.
- Você não acha que vou tentar impedi-la? - A voz de Dariah falhou.
Impedi-la? Magnus olhou para a outra bruxa e ficou ainda mais confuso.
- Você pode tentar. - Selia levantou o queixo, o lábio contraído, apertando a mão de Dariah. - Mas vai fracassar.
Dariah se assustou e levou a mão ao pescoço.
- Mas... eu... pensei...
Sem nenhuma outra palavra, a beleza da mulher caiu como uma máscara, o rosto enrugado e mais velho foi revelado por baixo de sua magia, e ela desabou sobre a mesa.
Magnus ficou chocado.
- Você a matou - Xanthus disse, a voz baixa e ameaçadora.
- E você não tentou me impedir.
Ele a encarou nos olhos.
- Sua magia é mais forte do que a de qualquer bruxa que já vi.
- Bruxas dispostas a fazer o que for necessário podem ter quase a mesma magia de uma feiticeira. Por um tempo, pelo menos.
Selia olhou para a mão dele.
- Agora, sobre a sua aliança...
Ele ficou mais sério.
- Minha aliança não é...
Selia abaixou uma adaga com força e rapidez, e o dedo indicador de Xanthus saltou sobre a mesa, deixando um rastro de sangue.
Xanthus gritou de dor e partiu para cima de Selia.
- Vou matar você!
O fogo o iluminou um momento depois, cobrindo-o num instante. Ele tentou apagá-lo, mas estava rápido e forte demais.
- Venha comigo - Selia disse a Magnus quando tirou a aliança do dedo cortado e a guardou no bolso.
Magnus deu as costas para o homem em chamas que gritava e se apressou para acompanhar a avó para fora da taverna, deixando os outros clientes bêbados na confusão.
- Surpreendi você? - ela perguntou enquanto os dois voltavam para a taverna.
Magnus estava quieto, tentando desesperadamente se recompor depois do que havia testemunhado.
- Teria sido bom saber de seus planos antes.
- Você teria tentado me impedir?
- De matar uma bruxa e um Vigilante exilado? De jeito nenhum - ele respondeu com sinceridade. - Imagino que a pedra sanguínea esteja escondida dentro da aliança.
- Está. Tenho exatamente aquilo de que precisamos.
Magnus queria a pedra sanguínea para si, mas pensar em pegá-la da avó depois de tê-la visto fazer o que fez quase sem pestanejar...
O melhor naquele momento era conservar a simpatia da bruxa.
Selia não parou quando entraram na hospedaria, atravessaram o corredor até a escada e subiram ao segundo andar. Magnus se sentiu meio zonzo por causa da garrafa de vinho bebida depressa, mas sua mente
estava quase clara. Quando passou pela porta de Cleo, encostou a mão nela e então seguiu Selia pelo corredor, entrando no quarto do pai.
Lá dentro, um homem esquelético, a pele da mesma cor dos lençóis brancos, estava deitado na cama.
Magnus não via o pai desde a conversa na taverna. Ele tinha piorado muito. Os lábios estavam secos e rachados. As olheiras profundas estavam muito escuras. Até mesmo o cabelo preto tinha se tornado quebradiço
e grisalho. Os olhos, castanhos como o de Magnus, estavam enevoados.
- Meu filho - o rei sussurrou, levantando a mão com fraqueza. - Por favor, venha aqui.
Para ele, era sempre chocante ouvir o rei pedir "por favor".
Magnus, com relutância, sentou na beira da cama.
- Sei que você não vai me perdoar. Não deveria me perdoar. Minhas escolhas, principalmente com você... - Os olhos leitosos do rei brilhavam. - Me arrependo por não ter sido um pai melhor para você.
- Me poupe das confissões ao leito de morte - Magnus disse, a garganta seca. - Elas não funcionam comigo.
- Shiu, meu querido. - Selia sentou na beira da cama de Gaius, a mão sobre a testa dele. - Poupe sua energia.
Magnus desejara muito fincar uma espada no peito do pai, vingar a morte da mãe, fazê-lo pagar por todos os anos de abuso e abandono, ver a vida esvair-se de seus olhos de uma vez por todas.
Mas não era assim que queria que as coisas acontecessem. Magnus não queria sentir nada além de ódio por aquele monstro.
- Sei que tentou me salvar - Gaius disse à mãe. - Não importa mais. Você precisa encontrar Lucia a qualquer custo. Precisa implorar para ela ajudar, se for preciso. Sei que ela não vai deixar Mítica cair
nas mãos de Amara. Lucia vai destruir todos os nossos inimigos, e o trono pertencerá ao meu filho.
- Vamos encontrar Lucia juntos. - Selia deslizou a aliança de ouro no dedo magro do rei, e ele respirou com dificuldade. - A pedra sanguínea é sua, meu filho, como prometi. Agora descanse e deixe a pedra
fazer seu papel.
Magnus deu meia-volta, confuso com tudo o que tinha visto. O rei segurou o braço dele, forçando-o a se virar.
- Não falei por falar - seu pai disse, já com força renovada na voz e determinação nos olhos menos enevoados. - Serei um pai melhor para você, Magnus. Pode não acreditar, mas eu juro.
24
CLEO
PAELSIA
O mundo de Cleo estava reduzido às quatro paredes do quarto na hospedaria paelsiana. A tranca enferrujada na porta era a única coisa que a protegia dos inimigos.
Os Damora eram seus inimigos - não sua família, nem seus aliados, nem seus amigos.
E ainda assim, ela continuava com eles, sentindo-se presa, uma prisioneira impotente que não podia decidir o próprio destino.
Ela não sabia ao certo quando finalmente conseguira adormecer, mas depois de escapar das garras dos pesadelos, com lágrimas secas no rosto, percebeu algo muito importante.
Não era uma prisioneira impotente. Era uma rainha.
Ela tinha se esquecido de ser corajosa, de ser forte como a irmã e o pai tinham pedido para que fosse. O que pensariam dela agora, depois de se perder e esperar respostas confiando em pessoas que não mereciam
sua confiança?
- Já chega - ela sussurrou quando saiu da pequena cama.
Não sabia como, mas ia consertar aquilo. Seus objetivos continuavam os mesmos: vingança, poder, recuperar o trono e garantir o bem-estar do povo auraniano.
Nada mais importava.
Seu marido tinha razão sobre uma coisa: se Nic soubesse que ela estava apaixonada por Magnus, ele a teria detestado. Era sorte, então, que ela não tivesse se entregado totalmente ao príncipe. Ela estava
se controlando, protegendo a si mesma apesar de não saber que era isso que estava fazendo.
- Sinto muito, Nic - ela murmurou quando passou a escova prateada pelos fios de cabelo compridos, tentando não pensar em quando Magnus tinha feito a mesma coisa. - Você estava certo. Você sempre esteve
certo.
Seu estômago roncou, e ela percebeu que não comia desde a tarde do dia anterior. Necessitava de força para fazer o que precisava ser feito - ir a Auranos encontrar os aliados de seu pai. Tinha que encontrar
os rebeldes que a ajudariam a elaborar um plano para derrubar Amara.
Se havia um jeito, Cleo descobriria qual era. Não importava o que teria que fazer.
Assim que amanheceu, ela desceu a escada, em silêncio. A hospedaria estava quieta; apenas os Damora moravam no lugar que, dias antes, era tomado por uma mistura estranha de inimigos e aliados.
Ela caminhou em direção à cozinha. A esposa do dono já estava de pé, assando pão. O cheiro deixou Cleo com água na boca.
- Preciso tomar café da manhã - ela disse à mulher.
- Sim, vossa graça - a mulher assentiu. - Sente e trarei tudo assim que estiver pronto.
- Obrigada. - Cleo foi para a sala de jantar e ficou surpresa ao ver que não era a única pessoa acordada àquela hora. Selia Damora estava sentada à cabeceira da mesa, lendo um livro sob a luz clara do
sol nascente. Ela levantou os olhos quando Cleo se aproximou.
- A princesa finalmente saiu de seus aposentos - ela disse. - Que bom vê-la hoje.
Cleo hesitou antes de sentar ao lado da mulher. Ainda não havia por que mudar seus planos de partir.
- Está muito cedo.
- Sempre gostei de levantar antes de o sol nascer.
Cleo nunca teve esse hábito. Houve uma época em que dormia até mais tarde todas as manhãs, até que sua irmã tocasse seu ombro para dizer que ela já tinha perdido a primeira aula, o que deixava seu tutor
muito irritado. Cleo respondia cobrindo a cabeça com cobertores e resmungando para Emilia deixá-la em paz.
Os tutores sempre gostaram muito mais de Emilia do que da princesa mais nova.
Cleo olhou para a jarra e para os copos de vidro perto de Selia.
- O que está bebendo?
- Suco de uva fresco. Parece que os paelsianos fazem mais do que vinho com a fruta. Aceita um copo?
- Talvez daqui a pouco.
- Você está chateada hoje - Selia comentou. - Não pude evitar e acabei entreouvindo parte de sua discussão com meu neto ontem à noite. Devo admitir que você tem razão por estar brava. Ele não tinha o direito
de manipular seu amigo e deixá-lo em perigo.
Os olhos de Cleo começaram a arder.
- Ainda não consigo acreditar que é verdade. Que Nic... morreu.
- Sei que está sofrendo. Mas deixe essa dor fortalecê-la, querida.
Cleo olhou para a mulher na hora.
- Não pareço forte o bastante?
- Uma mulher pode sempre se esforçar para ser mais forte diante de emoções dolorosas. Se chegou a alguma conclusão sobre o amor e sobre como ele nos enfraquece, eu a enalteço. Muitas mulheres precisam
ter muito mais idade do que você para aprender essas lições.
- Você fala como se conhecesse meu coração, mas não conhece. Não me conhece, e não conheço você.
- Aprenda a aceitar bons conselhos quando os recebe de graça. A vida será muito mais fácil se fizer isso. - Selia não pareceu se abalar nem um pouco com o tom de Cleo. - Percebo grandeza em você, minha
cara. Vejo em seus olhos. Você está determinada a mudar o mundo. Vi a mesma expressão nos olhos de sua mãe quando a conheci.
Cleo arregalou os olhos.
- Você conheceu minha mãe?
Selia assentiu.
- Elena era uma mulher louvável, forte, corajosa e inteligente. Uma combinação incomum, detesto admitir, principalmente entre os membros da realeza. Nossa classe costuma ser mimada e protegida na juventude,
não importa nossa origem. Isso pode gerar adultos preguiçosos que não estão dispostos a fazer o que precisa ser feito para conseguirem o que querem.
- Fui mimada e protegida - Cleo admitiu.
- Tal fraqueza foi extinta de você com os desafios e as perdas.
- Sim. Extinta - Cleo repetiu, assentindo. - Uma descrição precisa do que senti.
- O fogo que nos deixa ocos é o que permite que sejamos preenchidos com força e poder onde antes não tínhamos nada - Selia disse. Ela encheu dois copos de suco de uva. Cleo pegou um deles. - Talvez devêssemos
brindar a esse fogo. Sem ele, não ameaçaríamos aqueles que talvez queiram limitar nosso potencial.
Cleo assentiu.
- Acho que podemos brindar a isso.
Ela levou o copo aos lábios. Quando estava prestes a tomar um gole, o copo voou de sua mão e se espatifou na parede.
Ela olhou com surpresa para o rei, que estava agora a seu lado. Gaius não olhava para ela, mas, sim, para a mãe dele.
Cleo levantou com dificuldade, arrastando a cadeira no piso de madeira. O rei parecia mais forte e saudável do que nunca.
A pedra sanguínea. Gaius a tinha agora, e ela havia feito sua mágica.
Ela estivera ocupada demais sentindo pena de si mesma, isolada no quarto, para saber o que estava acontecendo.
- Minha nossa, Gaius. - Selia levantou. - É assim que você trata a esposa de seu filho?
- Percebi que você ainda não tomou um gole, mãe. Vá em frente, mate sua sede. Não me deixe impedi-la de saborear sua própria magia.
Em vez de fazer o que ele havia sugerido, Selia deixou o copo sobre a mesa. Cleo a observou, enojada ao perceber.
O suco de uva estava envenenado.
Cleo se encostou na parede, o coração batendo rápido.
- Você parece muito bem, Gaius - Selia disse sem olhar na direção de Cleo.
- Graças a você, parece que me recuperei.
- Como prometi que aconteceria. - A expressão dela estava séria. - Agora diga o que está acontecendo e por que me olha com ódio em vez de amor hoje.
Ele riu com frieza. Seu olhar era tão frio que fez o sangue de Cleo congelar nas veias.
- O que teria acontecido se a princesa tivesse bebido aquilo? - Ele indicou a jarra com um aceno de cabeça. - Ela teria morrido depressa e sem dor ou teria gritado com um buraco na garganta, como aconteceu
com meu pai quando tomou a sua poção mais fatal?
- Não sei bem - Selia disse com calma. - Cada pessoa reage de um jeito.
- Você tentou mesmo me envenenar? - Cleo perguntou. O choque e o susto a deixaram trêmula.
Selia a encarou determinada.
- Você revelou ser um problema em muitos aspectos. Não vejo motivo para permitir que estrague essa família mais do que já estragou.
- Essa decisão não cabe a você - Gaius resmungou. - Cabe a mim.
- Até onde sei, você tentou se livrar desse incômodo muitas vezes. Será que é tão difícil assim acabar com a vida de uma garota problemática?
- Como você sabia? - Cleo perguntou a Gaius. Pensar que tinha começado a confiar em Selia, que tinha acreditado em suas palavras de força e coragem provocava náuseas. Ela quase tinha tomado o veneno, sem
pensar, nem por um momento, que sua vida estivesse em risco. Se o rei não tivesse arrancado o copo de sua mão...
- Eu apenas soube - o rei respondeu. Ele ainda não tinha olhado diretamente para Cleo; seu olhar permanecia fixo na mãe. - Assim como sei o que você fez dezessete anos atrás, mãe.
Por fim, Selia franziu a testa.
- Não sei do que está falando.
- Podemos brincar disso, se quiser. Prefiro não brincar. Prefiro não perder mais tempo ouvindo suas mentiras, as mentiras com as quais encheu minha cabeça a vida toda.
- Nunca menti para você, Gaius. Eu amo você.
- Amor. - Ele jogou a palavra de volta como se fosse uma flecha em chamas que tinha conseguido bloquear. - É disso que você chama? Não, mãe. Durante o tempo que passei frente a frente com a morte, a mente
livre de poções de proteção, pensei muito em como sua ideia de amor é apenas um truque para conseguir poder. Fiz tudo o que você pediu e não recebi nada em troca. Foi você que me disse que o amor é uma
ilusão. Ou você só considera alguns tipos de amor inadequados?
Selia o encarou incrédula.
- O amor romântico é uma ilusão. O amor da família é eterno! Esperei treze anos no exílio para você perceber que tudo o que fiz foi por você. Por você, Gaius, não por mim. E finalmente você apareceu quando
mais precisou de mim. E o que fiz sem questionar? Salvei sua vida!
- Sei que salvou. E também sei que você foi ver Elena antes de ela morrer -disse Gaius, a voz mais baixa. - Você ficou atormentada com a ideia de que eu voltaria para ela, apesar de ela nunca ter respondido
às minhas cartas. Mas você interceptou as cartas, não é? Ela não recebeu nenhuma.
Cleo não conseguia se mexer, mal conseguia respirar. Ela sabia que o que estava assistindo não era para ser visto. Ainda assim, não conseguia sair de lá.
Selia olhou para Gaius como se ele fosse um menino de dez anos tentando argumentar com uma intelectual.
- Sempre tentei proteger você para que não tomasse decisões ruins que ameaçariam seu poder. E, sim, eu sabia que você planejava ir até ela, tão ingênuo aos vinte e cinco anos quanto era aos dezessete.
Ele assentiu devagar.
- Você ofereceu suco de uva para ela também? Lembro que ela preferia sidra. Sidra morna de maçã com especiarias.
Selia não respondeu.
- Você não precisava tê-la envenenado. Eu não pretendia ficar com Elena, não naquela época. Meu coração já tinha se tornado sombrio e frio demais para pensar que ela me aceitaria de volta, principalmente
com a vida e a família perfeitas que tinha. Mas não foi a maldição de uma bruxa vingativa que a matou. Foi você.
Cleo percebeu que tinha começado a tremer muito, e tudo o que ouvia a atingia como socos.
- Você envenenou minha mãe - ela sussurrou. - Você a matou.
- O veneno deveria ter acabado com a vida dela e com a do bebê que ela esperava. - Selia balançou a cabeça. - Mas a gravidez já estava avançada demais. A morte dela pareceu natural para muitos, já que
o parto de Emilia tinha sido muito difícil. Sei que Corvin acreditava ter sido uma maldição, culpa dele por se envolver com uma bruxa. E, sim, foi com sidra de maçã. Que estranho... só lembrei agora. Mas
garanto que ela não sofreu. Simplesmente... foi. Em paz.
- Mentira - Gaius disse, os dentes cerrados. - Ouvi relatos do quanto ela sofreu até a morte finalmente levá-la.
- São só boatos.
O ódio frio nos olhos do rei congelou a sala.
- Quero que você saia. Nunca mais quero vê-la de novo.
Selia balançou a cabeça.
- Você precisa ver que fiz o que achava ser o melhor para você, Gaius. Porque amo você, e sempre amei. Você é meu menino perfeito, nascido para ser grande. Juntos, vamos dominar o mundo, como eu sempre
disse que faríamos.
- Saia - ele disse de novo -, ou mato você.
- Não, meu querido. Não posso deixá-lo. Não agora. Não assim...
- Saia! - ele berrou e socou a mesa de café da manhã com tanta força que Cleo teve certeza de que ela se racharia.
Selia levantou o queixo.
- Você vai me perdoar quando entender que não há outra maneira de isso terminar.
O rei tremia da cabeça aos pés quando sua mãe saiu da sala.
Cleo estava assustada, incapaz de pensar com clareza depois daquela discussão.
- Minha mãe foi envenenada... - ela começou. - Porque sua mãe achou que você queria retomar o relacionamento com ela.
- Sim.
- E isso... acabaria com o controle dela sobre você.
- Sim. - A segunda resposta não passou de um sibilo.
- Selia me disse que você agrediu minha mãe quase a ponto de matá-la, que ela odiava você.
Gaius arregalou os olhos.
- Minha mãe é uma mentirosa. Elena era meu mundo, minha fraqueza, meu sofrimento e meu único amor. Não encostei a mão nela com raiva e nunca faria isso. - Gaius olhou para ela com seriedade. - Quero que
você saia daqui também.
- O quê?
- Minha mãe tem razão a respeito de uma coisa: você é um perigo para meu filho, assim como Elena era um perigo para mim. Não vou aceitar. Vou protegê-lo do perigo, quer ele queira minha proteção ou não.
- Mas eu... eu pensei...
- O quê? Que eu tinha começado a me redimir de alguma maneira impedindo-a de tomar aquele veneno? Não teve nada a ver com você, princesa. Teve a ver comigo e com minha mãe. Magnus estaria melhor se você
estivesse morta e não fosse mais um problema para nós.
A dor no coração que tinha assustadoramente começado a sentir por causa do passado horroroso daquele homem logo se transformou em pedra.
- Acho que o Magnus deveria participar dessa decisão.
- Ele é jovem e idiota no que diz respeito a essas coisas, assim como eu era. Não perdoo minha mãe pelo que fez, mas compreendo por que tomou essa atitude. Farei o favor de não acabar com sua vida hoje,
mas só se você for embora agora. Volte para sua preciosa Auranos. Ou, melhor ainda, saia de Mítica de uma vez. A família de Elena é do oeste de Veneas. Talvez você possa construir uma vida nova lá.
- Quero falar com Magnus - Cleo insistiu. - Preciso...
- Você precisa partir antes que o pouco de paciência que ainda me resta desapareça. E saiba, princesa, não faço isso por você, mas em memória de sua mãe, que deveria ter vivido no lugar de sua filha inútil,
que não trouxe nada além de tristeza ao meu mundo. Agora vá e não volte.
Cleo finalmente virou de costas, contendo as lágrimas.
A primeira pessoa que viu foi Enzo, do lado de fora da sala.
- Você ouviu? - ela perguntou.
- Não tudo - ele admitiu.
Ela hesitou.
- Sei que você é limeriano e, apesar das promessas que fez, é leal ao rei, não a mim. Mas preciso perguntar mesmo assim... Quer vir comigo? Não sou tola o bastante para achar que consigo sair por aí por
este mundo como está agora, sem proteção.
Não demorou muito para Enzo assentir com firmeza.
- Sim, claro que vou. Vamos encontrar um navio que nos leve a Auranos ou a qualquer lugar aonde queira ir.
Cleo concordou, grata por contar com o apoio dele, pelo menos.
- Obrigada, Enzo. Mas não vou pegar navio para lugar nenhum.
- Aonde você quer ir?
Parecia que restavam poucas opções. Estava na hora de ela ser forte de novo.
- Quero me encontrar com a imperatriz.
25
MAGNUS
PAELSIA
Ele tinha secado as duas garrafas de vinho que o dono da hospedaria tinha. Estranho, mas o vinho não era de uma vinícola paelsiana. Era amargo, seco e deixou um gosto ruim na boca de Magnus, mas foi tão
eficiente quanto o vinho paelsiano para debilitar sua mente e ajudá-lo a adormecer.
Mas não a continuar dormindo. O barulho da porta abrindo com um rangido o fez acordar. Tinha certeza de que a tinha trancado. Seu corpo estava pesado e cansado demais para se mexer, e a mente estava muito
confusa para que ele se importasse em saber quem tinha entrado.
- Sou eu - Cleo sussurrou.
Magnus estava de costas para a porta e seus olhos se arregalaram ao ouvir a voz dela.
- O que você quer? - ele perguntou hesitante, sem se virar para ela.
- Precisava ver você.
- Não pode esperar até amanhã cedo?
- Você está bêbado.
- Você é observadora.
- Quer que eu saia?
- Não.
A cama rangeu quando ela deitou ao lado dele.
Magnus ficou paralisado ao sentir a mão dela deslizar pela lateral de seu peito.
- Cleo...
- Não quero brigar com você - ela murmurou no ouvido dele. - Não quero deixar você. Te amo, Magnus. Muito.
Ele sentiu um aperto no coração.
- Você disse que o amor não bastava para resolver nossas questões.
- Eu estava brava. Todo mundo diz coisas horríveis quando está bravo.
- Mas Nic...
- Preciso ter esperança de que ele está vivo. Tem que estar. Ele sabe que eu ficaria furiosa se ele morresse. Agora, olhe para mim, Magnus.
Ele finalmente virou e a viu ao seu lado, o lindo rosto iluminado pelo luar que entrava pela janela, o cabelo loiro como ouro, os olhos escuros e profundos.
- Preciso que você faça algo muito importante por mim - ela disse.
- O quê?
- Me beije.
Ele quase riu.
- Se eu beijar você agora, garanto que não vou conseguir parar.
- Não quero que pare. Não quero que pare nunca. Não importa o que acontecer, Magnus. Estamos juntos nisso. Eu escolhi você. E preciso de você. A menos... - ela levantou uma sobrancelha - que você esteja
bêbado demais e prefira que eu saia.
Seu olhar se tornou mais intenso.
- Não, mas a maldição...
- A maldição é uma fantasia, nada mais. Tire isso da cabeça.
- Não sei se consigo.
- Parece que vou ter que dar o primeiro passo hoje... - Cleo passou os lábios pela cicatriz dele, do rosto aos lábios. - Assim.
- Cleo... - ele conseguiu dizer quando a abraçou, mas de repente não estava abraçando Cleo. Não havia nada ali além do ar e dos cobertores.
Percebeu, desanimado, que ela nunca esteve ali. Tinha sido apenas um sonho.
Mas não precisava ser.
Magnus precisava conversar com ela, fazê-la ouvir a voz da razão. Cleo era capaz disso, ele sabia. E juntos eles descobririam a verdade sobre Nic.
Magnus levantou, determinado a tornar o presente melhor do que o dia anterior, mas sua cabeça parecia prestes a explodir. Ele gemeu e levou as mãos às têmporas, inclinando-se para a frente de dor.
O vinho. O vinho paelsiano não dava ressaca. Mas as outras bebidas inebriantes...
Os outros aceitavam sofrer uma dor assim para se esquecer dos problemas por uma noite?
Magnus estava furioso consigo por ter cedido a algo que o tinha enfraquecido daquele modo, mas precisava superar. Tinha que se concentrar em seus objetivos.
Ele próprio iria atrás de Ashur. Os cristais da Tétrade precisavam ser recuperados - por ele, por Cleo, por Mítica. E como estava se sentindo, quem quer que cruzasse seu caminho teria uma morte muito dolorosa.
A hospedaria parecia estranhamente vazia naquela manhã. O quarto da princesa estava vazio, a porta estava aberta. A avó de Magnus não estava ali em nenhum lugar, nem no pátio nem na sala de convivência.
O rei, no entanto, esperava por ele à mesa da sala de jantar com um café da manhã completo a sua frente. A esposa do dono da hospedaria - Magnus não tinha se preocupado em guardar o nome dela - observou-o
nervosa quando ele entrou e sentou.
- Coma alguma coisa - o rei disse.
Magnus observou enojado os pratos com frutas secas, queijo de cabra e pão fresco. O cheiro o deixou com vontade de vomitar.
Pensar em comida o deixava nauseado.
- Não quero - Magnus respondeu. - Você parece... bem.
- Me sinto bem. - O rei usava o anel dourado de Xanthus no indicador esquerdo. Levantou a mão e a observou. - Difícil acreditar que haja tanta magia nessa pequena peça, suficiente para me fazer voltar
a ser como antes tão depressa.
- Quanto tempo vai durar?
- Ah, essa é a dúvida, não é?
- Selia não disse?
- Não perguntei.
- Onde ela está?
- Foi embora.
Magnus franziu a testa e sentiu uma pontada de dor na cabeça.
- Para onde?
O rei pegou um pedaço de pão, mergulhou-o em uma tigela de manteiga derretida e mordeu, ponderando.
- A comida tem um gosto ainda melhor agora. É como se um véu de apatia tivesse sido retirado de meus sentidos.
- Que maravilhoso para você. Pergunto de novo, onde está minha avó?
- Eu a mandei embora.
Magnus hesitou.
- Você a mandou embora.
- Foi o que eu disse.
- Por quê?
O rei pousou o garfo sobre a mesa e virou para Magnus.
- Porque ela não merece respirar o mesmo ar que nós.
Magnus balançou a cabeça, tentando entender.
- Ela salvou sua vida.
O rei riu.
- Sim, acho que salvou.
- Você está falando, mas não diz coisa com coisa. A pedra sanguínea roubou sua sanidade ao devolver sua saúde?
- Nunca me senti tão são quanto agora. - Ele olhou para a porta onde Milo estava.
- Milo, meu bom homem, venha tomar café da manhã. Magnus não quer comer, mas não podemos desperdiçar boa comida.
- Obrigado, vossa alteza - Milo disse. - É verdade o que eu ouvi? Que Nicolo Cassian morreu?
O rei arqueou as sobrancelhas.
- É possível que sim - Magnus disse.
Milo sorriu.
- Isso é decepcionante. Perdoe-me por dizer isso, mas sempre quis matá-lo.
Magnus se pegou concordando.
- Ele despertava essa vontade nas pessoas.
- Onde está Enzo? - o rei perguntou. - Tem muita comida aqui para ele também.
- Enzo saiu, vossa majestade - Milo respondeu um tanto relutante.
O rei pousou o pão na mesa e olhou para o guarda.
- Para onde ele foi?
- Foi com a princesa.
A maneira hesitante como ele disse aquilo fez o estômago de Magnus revirar.
- Por favor, faça a gentileza de me dizer que a princesa foi fazer compras na cidade e voltará mais tarde.
- Desculpe, mas não sei aonde foram, só que partiram ao amanhecer.
O coração de Magnus começou a bater mais forte, e ele lançou um olhar de acusação ao pai.
- O que você fez agora?
O rei deu de ombros, a expressão inescrutável.
- Não vou discutir com você hoje, meu filho. Sua avó se foi. E a princesa também. Nenhuma delas vai voltar aqui.
Magnus levantou tão depressa que a cadeira caiu para trás.
- Preciso encontrá-la.
- Sente - o rei sibilou.
- Você a ameaçou, não? Ela e Selia. Você mandou as duas embora.
- Sim, acho que sim. Enquanto você dormia embriagado até meio-dia. Você precisa começar a pensar claramente como eu, Magnus. Agora que me recuperei, está na hora de entrarmos em ação.
- É mesmo? - Magnus percebeu a voz ficando cada vez mais alta. - Precisamos de ação. Vejamos... no momento somos você, eu e Milo representando a um dia grandiosa Limeros. Somos três contra o exército de
Amara. E não temos Lucia ao nosso lado, já que você mandou embora a pessoa que poderia encontrar minha irmã! - Ele xingou em voz baixa. - Preciso encontrar Cleo.
- Você não precisa fazer isso. Aquela garota tem sido um problema para nós desde que entrou em nossa vida.
- Nós? Não existe nós, pai. Você acha que alguma coisa mudou? Algumas palavras de incentivo e olhares sofridos não consertam as coisas. Você pode tentar me impedir de sair, mas juro que vai fracassar.
Magnus foi direto para a porta da hospedaria, a mente confusa. Cleo deve ter ido para Auranos, ele pensou. Começaria por lá. Alguém saberia onde encontrá-la.
Graças à deusa ela tinha sido inteligente o bastante para levar Enzo junto. Mas só um guarda para protegê-la da presença de Amara não era suficiente.
- Magnus, não vá - o rei disse. - Precisamos discutir uma estratégia.
- Discuta uma estratégia com Milo - ele rebateu. - O que você tem a dizer é totalmente irrelevante para mim.
Magnus abriu a porta com tudo, pronto para sair da sala, mas três homens estavam ali, bloqueando a passagem.
- Príncipe Magnus Damora - um deles disse, meneando a cabeça. Ele olhou para os companheiros. - Viram? Eu disse que era ele. O príncipe de Limeros no meio de Basilia. Quem acreditaria? Lembro de você em
sua lua de mel. Trouxe minha esposa e meus filhos para verem alguns membros da realeza com suas roupas perfeitas e brilhantes, para mostrar a eles o que nunca poderíamos ter por sermos paelsianos inferiores,
como vocês sempre nos viram. E aqui está você, vestido como um de nós.
- Muito prazer em conhecê-lo, seja quem for. - Magnus semicerrou os olhos. - Agora sugiro que saia da minha frente.
- Sua cabeça e a de seu pai valem uma recompensa.
- Valem? - Magnus abriu um pequeno sorriso para ele. - E qual é a recompensa pela cabeça de cada um de vocês se eu cortá-las fora?
O desconhecido e o amigo riram da resposta como se fosse a coisa mais hilária que já tinham ouvido.
- Todos nós? Nem mesmo o Príncipe Sanguinário poderia derrubar todos nós.
- Não tenha tanta certeza.
- Mate-os - o rei sugeriu. - Não temos tempo para besteiras hoje.
- Essa é a primeira boa ideia que você teve - Magnus respondeu em voz baixa.
Mas antes que pudesse se mover para pegar uma arma ou dizer outra palavra, três lanças chegaram voando, acertando os homens por trás.
Os três caíram aos pés de Magnus.
Magnus olhou para a frente. Atrás deles, havia um verdadeiro exército de soldados com uniformes verdes.
O exército de Amara.
Magnus bateu a porta e entrou na hospedaria de novo.
- Temos um problema.
- Sim, percebi - o rei respondeu.
- Imagino que Amara não esteja mais acreditando na história que você contou, uma vez que mandou seu exército atrás de você.
- Imaginei que seria apenas uma questão de tempo.
Magnus olhou para ele.
- Como pode falar com tanta calma?
Alguém bateu à porta.
- Abra a pedido de Amara Cortas, a imperatriz de Kraeshia!
Milo estava na frente deles, espada em punho, quando a porta da frente foi arrombada e os guardas de Amara entraram na hospedaria. Magnus estava com a espada pronta, mas só conseguiu observar Milo - o
guarda por quem ainda sentia profunda gratidão por intervir quando ele e Cleo foram ameaçados de morte no penhasco - cair depois de atingir apenas dois guardas.
Com um rugido de raiva, Magnus avançou, levantando a arma.
O rei pôs a mão sobre o ombro de Magnus para impedi-lo.
- Não faça isso - ele disse.
Um soldado alto, musculoso e uniformizado deu um passo para a frente, e os outros abriram espaço.
- Largue sua arma. Entregue-se ou morra aqui e agora.
Magnus, rangendo os dentes, olhou para Milo, para o sangue empoçado ao lado do corpo. Milo tentou lutar, tentou matar o máximo de kraeshianos que podia em nome do rei e de Limeros.
Mas não podia matar todos eles. Nem Magnus poderia.
A briga terminou antes mesmo de começar. Amara tinha vencido.
26
LUCIA
PAELSIA
- Juro pela deusa - Lucia disse, com a mão na barriga - que essa criança vai me matar.
Ela nunca pensou que uma gravidez seria simples. Já tinha visto mulheres grávidas que reclamavam de dor nas costas, tornozelos inchados e náusea constante. Mas sabia que aquele caso era diferente.
O caminho que Jonas prometeu conduzir à família dela era longo e tortuoso. Sempre que a carroça mudava de direção muito depressa ou passava um obstáculo, Lucia sentia vontade de gritar de dor.
- Quer que eu peça ao condutor para parar de novo? - Jonas perguntou.
- Não. Já perdemos muito tempo.
O rebelde estava calado durante a viagem que, devido a várias paradas, tinha demorado quase um dia inteiro desde a partida da casa da irmã dele.
Lucia teve que perguntar.
- Sua irmã odeia você por causa de quem eu sou? Por você ter me levado à casa dela?
- Seria mais do que suficiente, acho. Eu errei ao levar você lá pensando que ela estaria disposta a ajudar. Mas minha irmã me odeia por outros motivos. Motivos válidos. Não posso negar que abandonei minha
família. Apesar de achar que eu os estava protegendo ao ficar longe, agora vejo que foi a decisão errada. Eu deveria estar lá quando meu pai morreu.
- Sinto muito - ela disse.
Jonas olhou para ela.
- Sente?
- Apesar do que você pensa de mim, não sou uma pessoa sem coração.
- Se está dizendo...
Lucia resmungou.
- Por favor, continue falando, mesmo que seja só para me ofender. Quando você fala, a dor parece diminuir um pouco. - Ela observava o que podia da paisagem, que tinha deixado de ser rural e se tornado
mais movimentada, com construções mais próximas e estradas menos acidentadas e muito percorridas. - Ainda estamos longe?
- Não muito. Vou continuar falando para aliviar sua dor durante o resto do caminho. Da última vez em que vi meu pai, decidi que nunca seria como ele. Mas, ainda assim, deveria estar presente quando ele
morreu. Como muitos paelsianos, meu pai aceitou a vida que foi apresentada para ele e nunca se esforçou para mudá-la. Ele acreditava cegamente no chefe Basilius. Acho que também acreditei, por um tempo.
Pelo menos até ver com meus próprios olhos que o chefe não tinha a magia que afirmava ter e que deixava paelsianos morrerem de fome enquanto vivia como rei em seu complexo, graças aos altos impostos que
cobrava sobre a produção do vinho paelsiano. Ele me fez muitas promessas de um futuro melhor, chegou até a querer que eu casasse com a filha dele.
Era esquisito, mas a voz do rebelde realmente parecia acalmá-la. Pelo menos até ele dizer aquele nome.
- O chefe Basilius queria que você casasse com a filha dele? Qual delas?
- Laelia. - Ele a observou. - Por que parece tão surpresa? Porque a filha de alguém como Basilius não teria nada a ver com o filho de um vendedor de vinhos?
- Não é por isso.
- Olha só, ela não achou ruim.
- Minha nossa, rebelde! Seu antigo noivado é um assunto delicado para você?
- Não. Mal penso nisso ou nela. Não tenho interesse em casar. - Ele contraiu o maxilar e continuou resmungando, como se falasse sozinho. - Casamento traz filhos, e filhos... não me vejo criando um filho,
por mais importante que isso possa ser.
Lucia franziu a testa para ele.
- Claro que não. Você ainda é jovem.
- Você também é.
- Não escolhi isso.
Ele continuou sério.
- Fico pensando quantos de nós conseguem escolher o futuro, ou se o destino já está traçado e somos fadados a simplesmente acreditar que temos controle sobre a vida.
- Que filosófico. Para sua informação, fiquei surpresa ao saber de seu noivado com Laelia porque descobri recentemente que Gaius Damora não é meu pai de verdade. Ele me sequestrou por causa da profecia.
Meu pai verdadeiro era o chefe Basilius. Laelia é minha irmã.
Jonas hesitou.
- Fico surpreso por me contar isso.
- Por quê? Estamos conversando, e esse segredo não importa mais.
Ele franziu a testa.
- Então você é paelsiana.
Lucia riu sem graça.
- É só o que você conclui dessa revelação?
Jonas praguejou em voz baixa enquanto observava o rosto dela.
- Você parece com ela, agora que estou prestando atenção. Com Laelia. Os mesmos olhos azuis, a mesma cor de cabelo. Mas sem a cobra. E você está muito pálida agora. Não está se sentindo bem mesmo, não
é?
- Nem um pouco.
- Então essa gravidez rápida é coisa de feiticeira? Devido a todos os seus elementia?
- Acho que tem mais a ver com minha visita ao Santuário. A rapidez só aconteceu depois que voltei para Paelsia.
Jonas a encarou chocado.
- Você esteve no Santuário? O Santuário de verdade, onde os imortais vivem?
Ela assentiu.
- Durante um tempo. Um Vigilante chamado Timotheus tem tolerado minha existência por causa da profecia. Às vezes ele aparece em meus sonhos. Eu sabia que precisava vê-lo e pedir sua ajuda. Para ser sincera,
ele não foi tão solícito assim. - Os ombros de Jonas ficaram tensos quando disse aquele nome. - O que foi?
- Nada. Você disse Timotheus?
- Ele tem visões... sobre mim, sobre este mundo e sobre o mundo dele. Mas guarda segredo sobre as visões que me envolvem.
- Imagino que sim. - A expressão de Jonas era inescrutável. Ela não sabia bem se Jonas estava fascinado com o que ela estava dizendo ou entediado.
- Bom... - Lucia observou o grande vilarejo ao redor no qual a carroça adentrava, torcendo para a viagem terminar logo. - Ele não apareceu em meus sonhos nenhuma vez desde que voltei para cá. Ou não pode
mais fazer isso ou está me deixando em paz para que eu descubra meu destino sozinha. Como você disse, pode ser que seja decidido sem qualquer intervenção minha.
Jonas não respondeu e demorou um pouco para dizer alguma coisa.
- O pai de seu filho... era bom ou mau?
Ela estava prestes a dizer que aquela pergunta era esquisita, mas como já sabia que Jonas a considerava má, concluiu que era válida.
- Acredito que Ioannes era bom, mas foi manipulado por outros para fazer o mal. Ele tinha ordens de me matar e, quando o momento chegou, se recusou e se matou.
- Ele se sacrificou por você.
Ao se lembrar de Ioannes, a dor que sentia na barriga foi para o coração. Tentava pensar nele o mínimo possível para evitar remorso ou pesar em relação ao imortal.
- Ele lutou contra a magia que o forçava a me levar de um lugar ao outro como se eu fosse uma peça de um jogo de tabuleiro. Ele me ensinou mais sobre minha própria magia. Ele até me ensinou a roubar a
magia dos outros para enfraquecê-los. Eu não sabia por que fazia isso na época, mas no fim... entendi. Ele estava me ensinando a matar um imortal.
- Você matou um imortal roubando toda a magia dele?
- Não, matei uma imortal roubando toda a magia dela.
Distraidamente, Jonas esfregou o peito.
- Você acha que posso aprender a fazer isso? Roubar magia?
- Não acho que eu deveria ensinar algo assim a alguém que me odeia. Além disso, até onde sei, a marca que você me mostrou foi feita com tinta.
- Não foi. - Ele olhou para as próprias mãos. - Não sei... no navio, consegui usar um pouco da magia que há em mim. Não muito, mas ainda sinto a pressão dentro de mim para sair. É como se estivesse tentando
sair, mas não sei como liberá-la, nem se quero que isso aconteça.
- Minha própria magia foi difícil de compreender depois que despertou dentro de mim. Talvez você simplesmente precise ser paciente.
- Sim, claro, porque tenho muito tempo para ser paciente com uma imperatriz e um deus de fogo que preciso enfrentar. Sugestão incrível, princesa. - Ele levantou quando a carroça parou. - Chegamos.
Lucia desviou o olhar do rebelde e percebeu que reconhecia a cidade onde tinham entrado: Basilia. Ela observou as ruas movimentadas e sentiu o fedor do Porto do Comércio dali.
- Meu irmão e meu pai estão aqui?
- Estavam da última vez em que os vi. - Jonas desceu da carroça num salto e ofereceu a mão a Lucia, que pareceu em dúvida. - Vamos, princesa. Não trouxe você até aqui para deixá-la cair da carroça, muito
menos em seu estado delicado.
- Não sou delicada.
- Se está dizendo... - Ele deu de ombros, mas não recolheu a mão.
Resmungando, Lucia segurou a mão dele e o deixou ajudá-la a descer da carroça.
- Você precisa comer? - ele perguntou. - Tem uma taverna aqui perto onde pode encontrar sua irmã de sangue. Acho que você não comeu hoje.
Pensar em Laelia só trazia lembranças desagradáveis.
- Eu já a vi e não tenho tempo para comer. Quero ver minha família.
- Tudo bem. - Ele franziu a testa. - Você não me disse que conhecia Laelia.
- Como acha que eu soube quem sou?
- Não sei... Pela magia?
- Os elementia não podem resolver todos os problemas, infelizmente. Fui em busca da verdade, e essa busca me levou a Laelia. Quando soube quem eu era, ela pediu dinheiro... muito dinheiro para ajudá-la
agora que seu pai está morto e ela teme que alguém a reconheça. Por mim, tudo bem se eu nunca mais a vir.
- Basilius também era seu pai.
- Nunca vou dizer que o chefe era meu pai.
- Mas gosta de dizer que o Rei Sanguinário é sua família.
- Apesar do que você pensa, Gaius Damora foi bom para mim. Ele me manteve segura e protegida até que fui tola o suficiente para fugir, pensando que estava apaixonada por um rapaz que conhecia fazia poucos
dias. Gaius me roubou do berço por causa da minha profecia. Ele poderia ter me mantido trancada. Mas em vez disso, me criou como sua filha, como uma princesa. Recebi educação e uma vida maravilhosa em
um lar que eu adorava.
Jonas balançou a cabeça.
- Hum, bom, acho que tive uma ideia errada dele desde sempre. De fato o rei Gaius é uma pessoa gentil e maravilhosa.
- Certo, vou guardar saliva para uma conversa mais útil, com meu pai, por exemplo.
- Tudo bem. Vou levá-la a sua família perfeita e amorosa e acabar com isso de uma vez. Preciso voltar ao complexo da imperatriz à procura de meus amigos idiotas que atraem problemas em um piscar de olhos.
Lucia seguiu Jonas pela estrada. Ela sentiu uma pontada pelas palavras grosseiras que havia dito. O rebelde a tinha ajudado muito.
- Quero que saiba que agradeço por isso. O que você fez, me trazer aqui... Cuidarei para que nada de mal lhe aconteça, apesar de todos os seus crimes horrorosos.
- Ah, que ótimo. Obrigado, princesa. Você é um doce.
Ela ficou tensa.
- Ou talvez não faça isso. - Quando ela começava a tratar o rebelde de modo menos rígido, ele a provocava. Lucia estava prestes a dispensá-lo por completo quando uma onda de dor fez seus joelhos fraquejarem.
Jonas segurou seu braço.
- Princesa?
- Estou bem - ela disse, rangendo os dentes. - Tire a mão de mim.
- Não. - Quando Jonas a pegou no colo, ela estava fraca demais para impedi-lo. - Você é um problema, não?
- Mostre onde minha família está.
- Não vai me agradecer por eu ter impedido que você caísse como um saco de batata no meio da rua? Tudo bem, então. Eles estão na hospedaria da esquina. Levo você até lá. O que acha de poupar sua energia
e meus ouvidos ficando quieta?
De todo modo, Lucia não conseguia falar. A dor era muito intensa. Ela semicerrou os olhos, respirando fundo, trêmula. Podia aguentar, tinha que aguentar. Contanto que seu filho estivesse seguro, podia
aguentar qualquer coisa.
Jonas se movia bem depressa para alguém carregando uma grávida. Lucia teve que segurar nos ombros dele para se sentir segura quando ele entrou na hospedaria.
A poucos metros da porta, havia uma mulher abaixada esfregando o chão. Ela devia ter acabado de começar, já que havia sangue por todo lado.
- Me ponha no chão - Lucia pediu a Jonas, assustada com a cena inesperada.
Ele obedeceu.
- O que aconteceu aqui? - ela perguntou.
A mulher levantou a cabeça, os olhos vermelhos e cansados.
- Não estamos aceitando hóspedes hoje. Desculpem, mas há muitas hospedarias descendo a rua.
- De quem é esse sangue?
A mulher só balançou a cabeça e se concentrou em sua tarefa.
- Maria - Jonas chamou, agachando-se ao lado dela. Ela o encarou, e seu olhar revelou que o reconhecia.
- Jonas, você voltou. - Ela sorriu sem vontade. - Acho que você foi o único que se deu ao trabalho de guardar meu nome.
- Como eu poderia esquecer o nome da mulher que faz os melhores bolinhos de figo que já comi?
Lágrimas escorreram pelo rosto de Maria.
- Foi horrível.
- O que aconteceu? - Lucia quis saber, punhos cerrados. - Diga ou...
Jonas a encarou com os olhos arregalados.
- Você não vai fazer nada com essa mulher. Não se aproxime nem mais um passo.
- Ela é sua esposa, Jonas? - Maria perguntou, assustada.
- Minha...? - Jonas riu baixinho. - Não, com certeza ela não é minha esposa.
Como aquela mulher pobre podia ousar pensar que ela se envolveria amorosamente com alguém como aquele rebelde cruel e grosseiro?
- Sou Lucia Eva Damora, e juro pela deusa que se não me contar o que aconteceu aqui e onde minha família está, vai se arrepender profundamente. - Lucia se arrependeu das palavras assim que as disse, e
Jonas a olhou furioso.
- Lucia Damora... - Maria sussurrou, soltando o pano ensanguentado. - A feiticeira. Você está aqui. Poupe meu marido, por favor. Eu imploro.
- Ignore Lucia - Jonas resmungou. - Conte o que aconteceu, Maria. Não vou deixar a princesa machucar você nem sua família, de jeito nenhum. Eu juro.
- Soldados kraeshianos... entraram aqui, em número maior do que o dos homens que chegaram a Basilia. Houve uma briga... breve. O rei e o príncipe... - Ela balançou a cabeça. - É difícil demais.
Jonas assentiu, olhando para baixo.
- Alguém foi morto?
- Um jovem de cabelo escuro. Ele não me dava muita atenção enquanto vocês estavam aqui. Ele tentou defender os limerianos, mas foi morto rápido. Acho que o nome dele era Milo.
- E meu pai e meu irmão? - A ira de Lucia tinha sido substituída pelo medo. Ela levou uma mão trêmula à barriga.
- Eles se foram - Maria sussurrou. - Os soldados os levaram. Não sei para onde. A cidade está descontrolada. Muitos homens foram assassinados nas ruas nas últimas noites, a garganta cortada, os corpos
apodrecendo abandonados. Algumas pessoas acham que são ordens da imperatriz, caso a desagrademos.
- E a princesa Cleiona? - Jonas perguntou. Sua voz estava tomada de preocupação. - Onde ela está?
- Saiu cedo hoje. Ouvi ela e o rei discutindo feio. Ele a mandou embora. O príncipe não gostou.
- Imagino que não - Jonas murmurou.
- Cleo estava aqui? - Lucia perguntou, atônita.
- Onde mais poderia estar?
- Morta, eu esperava.
Jonas a encarou sério.
- Quando estava começando a achar que você não era tão má e repugnante quanto pensei, você diz algo assim.
Ela revirou os olhos.
- Ah, por favor, não me diga que você é outro dos homens que Cleo conseguiu seduzir com o lindo cabelo e a atitude indefesa. Isso o faria cair ainda mais no meu conceito.
- Não dou a mínima para o que pensa de mim. - Ele a segurou com força pelo ombro. - Vamos embora. Conseguimos toda a informação que queríamos aqui. Muito obrigada, Maria. Fique protegida aqui dentro até
tudo terminar.
- E quando vai terminar? - a mulher perguntou.
Ele balançou a cabeça.
- Gostaria de saber com certeza.
Do lado de fora, Jonas caminhou depressa, quase arrastando Lucia.
- Vamos à taverna - ele disse. - Vamos conseguir mais informações lá.
- E se alguém me reconhecer e tiver a mesma reação que aquela mulher?
- Sugiro que você não faça a besteira de se apresentar em voz alta, assim talvez consiga evitar isso.
- Ela me odeia.
- Pensei que você já estivesse acostumada com isso.
- Estou, mas... - De repente, ficou difícil respirar, o ar estava tão quente que Lucia começou a transpirar. - Preciso parar um pouco. Acho que vou desmaiar.
Jonas resmungou irritado.
- Não temos tempo para mais drama.
- Não estou sendo dramática. Está muito quente aqui fora.
- Não está nem um pouco quente hoje.
- Você acha que está quente, pequena feiticeira? - Uma voz familiar disse no ouvido dela. - Que estranho... Paelsia costuma ter temperaturas bem amenas nessa época do ano na costa oeste.
Lucia ficou paralisada.
- Kyan - ela sussurrou.
Jonas virou e olhou para ela.
- Onde?
- Não sei... Não consigo vê-lo. Você também consegue ouvi-lo?
- Ouvi-lo? Não. Você consegue?
- Sim. - A voz era a mesma, mas parecia vir de dentro da cabeça dela. Ele não tinha uma forma que Lucia pudesse ver, apenas a sensação de calor que a envolvia. Ele conseguia ficar invisível?
- Esse é seu novo companheiro de viagem? Ele parece... inadequado. Jovem demais, inexperiente demais. Pena eu e você não termos nos entendido.
O coração dela disparou.
- Você tentou me matar.
- Você prometeu me ajudar e, na hora, se recusou.
- Não vou participar de seu plano maligno.
- Onde ele está? - Jonas girou com a espada empunhada.
- O garoto é um tolo, não? Acha que aquela arma mortal vai ter algum efeito em mim?
Lucia mal conseguia respirar. Durante todo aquele tempo, ficou sem saber o que tinha acontecido com Kyan, apesar de ter pesadelos com ele quase toda noite.
Ela precisava se acalmar. Não podia deixá-lo perceber que estava aterrorizara.
- O que você quer? - ela perguntou.
- Onde ele está? - Jonas perguntou de novo.
Lucia arregalou os olhos para o rebelde.
- Ele não passa de uma voz no momento. Abaixe a espada. Você está ridículo brandindo isso para ninguém.
Jonas guardou a espada na bainha.
- Será que você está imaginando coisas? Pode ser que esteja delirando de dor. Ou está tentando me enganar?
- Não para as duas perguntas. - Ela tentou ignorar Jonas, mas ele não estava facilitando as coisas.
O rebelde cerrou os punhos como se estivesse pronto para lutar contra o ar.
- Kyan, se pode me ouvir, se realmente estiver aqui, juro que vou acabar com você pelo que fez com Lysandra.
Lucia sentiu uma baforada quente quando Kyan riu.
- Quase me esqueci disso. Diga a ele que a culpa foi dela, não minha. Ela estava ansiosa demais para conhecer minha magia naquele dia.
- Você matou a amiga dele - ela disse. - Concordo que Jonas mereça se vingar por isso.
- Mortais e sua necessidade idiota de vingança... A morte faz parte da vida de vocês. Nada vai mudar isso. Ainda assim, ofereci imortalidade a você, pequena feiticeira, como recompensa por me ajudar.
- Ajudá-lo a destruir o mundo, é o que quer dizer.
- Este mundo merece ser destruído.
- Discordo.
- Não importa o que acha. Estou tão perto disso agora, pequena feiticeira... Você não faz ideia. Não preciso de sua ajuda para nada. Já dei outro jeito. Tudo está se alinhando perfeitamente. Está acontecendo
como se já estivesse escrito.
Pensar que Kyan tinha encontrado outro jeito de levar adiante sua missão de destruir o mundo a deixou enojada. Mas talvez ele estivesse apenas blefando.
- Então essa é só uma visita de velhos amigos? - ela perguntou.
- Talvez. - A voz se movimentava ao redor dela, e Lucia girava para manter o som à sua frente. Não gostava de imaginar que havia um deus de fogo atrás de si. - Você está grávida. De Ioannes, não é?
Lucia não disse nada. Esperava que sua barriga ficasse escondida pelo manto.
- Dizem que as mães são guerreiras na hora de proteger os filhos. Vou lhe dar mais uma chance, pequena feiticeira. Ofereço imortalidade para você e seu filho. Vocês vão sobreviver e ajudar a construir
o próximo mundo ao meu lado.
- Você não tinha dito que podia fazer o mal sem mim?
- Não é o mal. É o destino.
- Destino... - ela murmurou. - Sim, acredito no destino, Kyan. Acredito que era meu destino possuir isto.
Lucia pegou a esfera de âmbar de dentro do bolso e a segurou na palma da mão. Concentrou-se e respirou devagar. Seus elementia eram mais fáceis de acessar quando suas emoções estavam elevadas - o ódio
e o medo eram as mais úteis para liberar sua magia.
Mas naquele momento, mesmo enfraquecida, com o anel de Eva no dedo, ela poderia tirar a fera da jaula. Os pelos finos de seu braço se eriçaram, e Lucia sentiu a combinação de ar, terra, água e fogo dentro
dela subir para a superfície da pele - uma pressão nas veias que insistia em se libertar. Naquele dia, ela não queria soltá-la no mundo à sua volta - queria alimentá-la.
Ela desejava roubar magia.
Assim como tinha feito com Melenia, concentrou-se na magia que existia no ar à sua frente, enxergando-a com uma visão que ia muito além do comum. Era um brilho vermelho girando ao redor dela, incorpóreo,
etéreo. E ela sentia, sem dúvida, que estava vulnerável naquele momento.
A própria essência de Kyan. Fogo.
A esfera começou a brilhar e Kyan emitiu um som abafado de dor.
- O que você está fazendo?
- Parece que Timotheus não é o único que você deve temer, não é? - ela comentou.
O fogo surgiu em um círculo ao redor de Lucia e de Jonas. Estava tão quente e forte que ela perdeu a concentração, e a chama pegou na manga de seu manto.
Aquela era a magia de Kyan ou dela mesma?
Jonas apagou a chama com o próprio manto, o mais rápido que conseguiu. Ela sumiu tão depressa quanto aparecera, deixando um círculo preto ao redor deles.
- Deu certo? - ele perguntou. - Você tentou prendê-lo, não tentou?
Lucia confirmou e observou a esfera de âmbar.
- Não sei.
Jonas olhou para o cristal.
- Não consigo ver a coisa preta girando.
- Seu companheiro fala demais, pequena feiticeira - Kyan sibilou. - Sua magia continua formidável, mas você falhou.
- Então vou tentar de novo. - Lucia pegou a esfera e tentou acessar sua magia, mas já tinha enfraquecido muito. - Droga!
- Minha pequena feiticeira, você sem dúvida não é a garota inocente e sofrida que conheci em seu pior momento, não é?
- Não, sou a feiticeira que vai acabar com você.
- Veremos. Você está procurando seu pai e seu irmão? Sugiro que se apresse para encontrá-los antes que a imperatriz arranque o coração dos dois.
27
AMARA
PAELSIA
- Cinquenta e três morreram no ataque dos rebeldes, imperatriz, muitos deles pisoteados pela multidão.
- Que pena. - Amara tomou um gole de vinho enquanto Kurtis lhe dava as notícias do dia. - Eles me odeiam? Esses pobres violentos?
- Não. A simpatia entre os paelsianos por você continua alta.
- Ótimo.
- Quer que executemos os prisioneiros? - Kurtis perguntou enquanto cutucava o curativo. - Eu sugiro uma decapitação rápida em público, e também fincarmos a cabeça dos outros rebeldes mortos em lanças,
para mostrar a todo mundo que crimes assim não serão tolerados.
Amara arqueou uma sobrancelha enquanto pensava na sugestão.
- É assim que as execuções públicas são feitas aqui?
Ele confirmou.
- Em Limeros, sim, imperatriz.
- Em Kraeshia, meu pai gostava de amarrar os prisioneiros em postes, arrancar a pele deles vivos e os deixar ali até pararem de gritar. Não costumava demorar muito. Testemunhei muitas dessas execuções
em minha vida.
Kurtis empalideceu.
- Isso pode ser feito se a imperatriz desejar.
Ela o encarou.
- Não, não é o que a imperatriz deseja.
A única coisa que a imperatriz desejava era que Kyan finalmente voltasse de suas viagens e lhe desse mais informações sobre como liberar o ser poderoso dentro de seu cristal da água.
Apesar de ser uma pena, no fim das contas a vida de alguns paelsianos não importava. E uma tentativa fracassada de assassinato cometida por um ex-amante também não importava.
Só a magia importava.
Em silêncio, Nerissa encheu a taça de vinho de Amara.
- Sem execução - Amara disse a Kurtis, correndo o dedo pela borda da taça. - Eles podem ficar no buraco até eu decidir o que fazer com eles.
Chefe Basilius tinha sido gentil o bastante em deixar uma prisão engenhosa. No centro de seu complexo cercado por muros, havia um grande fosso de nove metros de profundidade, com paredes de arenito. Não
havia como escapar dali, mas Amara tinha pedido a dez guardas para vigiar Felix e Taran caso conseguissem criar asas e voar.
- Perdoe-me por dizer isso, imperatriz - Kurtis continuou -, mas devo expressar minha preocupação mais uma vez a respeito de permanecer em Paelsia por muito mais tempo. Como pôde testemunhar, apesar de
ter ganhado o povo com as promessas que fez, os paelsianos são muito perigosos e partem para a violência depressa, como animais encurralados e feridos. E se houver mais facções rebeldes aqui em Mítica...
sem falar das que podem chegar de fora... - Ele estremeceu. - Este lugar é perigoso demais.
Amara fechou os olhos com força quando sua cabeça começou a latejar por causa do som agudo da voz dele.
- E o que sugeriria, lorde Kurtis?
- Sugiro seguir até Auranos, para a Cidade de Ouro e o palácio real de lá. Garanto que seria muito mais adequado para vossa grandeza.
- Sei que o palácio é lindo, lorde Kurtis. Já estive lá.
- Já escrevi a meu pai a respeito dessa possibilidade, e ele a aprova com entusiasmo. Haverá um grande banquete em sua homenagem, e o maior alfaiate do Pico do Falcão, Lorenzo Tavera, será contratado para
criar uma roupa esplendorosa para que receba seus súditos auranianos.
Amara olhou para Kurtis com tanta intensidade que ele deu um passo para trás, hesitante.
- Não sei - ela disse em voz baixa, ainda passando o dedo devagar pela borda da taça. - O que acha, Nerissa?
Nerissa demorou um pouco para responder.
- Acho que o lorde Kurtis tem razão quando diz que Lorenzo Tavera criaria uma roupa magnífica. Foi ele quem fez o vestido de noiva da princesa Cleiona.
- Mas e a mudança para lá?
- Acho que isso depende da senhora, vossa graça.
- Lorde Kurtis. - Amara inclinou para a frente para observar o grão-vassalo, agarrando-se ao resto de paciência que ainda tinha dentro de si. - Acho uma ótima ideia. No entanto, não estou pronta para sair
de Paelsia ainda. Você pode ir em meu lugar para supervisionar pessoalmente a criação desse vestido e a preparação do banquete. E vá agora.
- O quê? - Kurtis franziu a testa. - Eu... eu quis dizer que todos nós deveríamos ir. Sou seu conselheiro real e...
- E é exatamente por isso que é tão importante que seja a pessoa que vai me representar lá.
- Mas eu esperava estar presente quando o príncipe Magnus finalmente fosse preso.
- Imagino. Mas como você disse de modo tão gracioso, outros assuntos são muito mais importantes para mim, como vestidos e banquetes em Auranos. - Amara balançou a mão para afastá-lo. - Você deve deixar
o complexo ao anoitecer. É uma ordem, lorde Kurtis.
Ele contraiu o maxilar, e por um momento, Amara achou que fosse contra-argumentar. Esperou, considerando tirar a outra mão dele como castigo pela insubordinação.
Mas o grão-vassalo assentiu com firmeza.
- Sim, imperatriz. Como quiser.
Kurtis saiu da sala.
Amara fez um gesto para um guarda perto da porta.
- Cuide para que ele faça exatamente o que ordenei.
O guarda fez uma reverência e seguiu Kurtis.
- Bem, pequena imperatriz, parece mesmo que você tem tudo sob controle por aqui.
Amara segurou com força a taça dourada ao ouvir a voz de Kyan, algo inesperado depois de três dias de silêncio.
- Você também pode sair, Nerissa - disse Amara.
- Sim, imperatriz. - Nerissa fez uma reverência e obedeceu.
Se todo mundo fosse tão obediente e tão disposto como Nerissa Florens, a vida seria muito mais tranquila e simples, Amara pensou enquanto observava a adorável criada sair da sala e fechar a porta.
- Quando realizaremos o ritual? - ela perguntou.
- É com essas palavras que você me recebe depois de minhas andanças? Devo dizer que estou decepcionado, pequena imperatriz.
- Não sou uma pequena imperatriz - ela falou mais alto. - Sou a imperatriz.
- Você está incomodada. Comigo ou com o mundo em geral?
- Quase morri enquanto você estava longe. Rebeldes tentaram me assassinar aqui, para onde você me disse para vir. O lugar onde você prometeu que eu me tornaria mais poderosa do que qualquer um.
- Mas você está viva e parece muito bem. Obviamente, fracassaram.
- Não graças a você. - Ela parecia não conseguir controlar a impaciência naquele dia, nem mesmo na presença de um deus.
- E o que gostaria que eu fizesse se estivesse a seu lado? Você tinha uma tocha que eu poderia ter acendido para afastar os rebeldes? Já expliquei que o poder total do que sou está reprimido nessa forma
incorpórea.
- Sim, você explicou. - Ela levantou para olhar pela janela para a arena onde cinquenta e três pessoas, incluindo Nic, o amigo de Cleo, tinham sido mortas. Havia manchas de sangue no chão. - Na verdade,
além do fogo mais forte em minha lareira em Limeros e algumas velas acesas, não vi sinais de sua magia. Ouvi falar tanto a respeito da magia da Tétrade que devo confessar que estou decepcionada.
- Compreendo sua impaciência, pequena imperatriz, já que a vida de um mortal é curta, mas faço um alerta para que não fale com tanto desrespeito comigo.
Amara se esforçou para controlar a raiva que só aumentava.
- Preciso voltar para Kraeshia e para a minha avó para ajudá-la a lidar com os últimos vestígios da revolução lá. Ela está velha... não deveria ter que assumir tanta responsabilidade com a idade que tem.
- O ritual está mais próximo do que você pensa. Consegui reunir as peças de que vamos precisar. Mas precisaremos de sacrifícios. O sangue será necessário para fortalecer essa magia, já que ela não vem
da própria feiticeira.
- Há possíveis sacrifícios esperando. - Ela detestava ficar esperançosa, mas as palavras dele apertaram seu coração. - Quando começamos?
- Quando a tempestade vier, tudo será revelado.
Amara estava prestes a falar mais, talvez jogar a taça do outro lado da sala, frustrada, e exigir uma explicação mais clara, mas uma batida à porta interrompeu seus pensamentos.
- O quê? - ela perguntou.
Um guarda abriu a porta e fez uma reverência para ela.
- Imperatriz, a princesa Cleiona de Auranos está nos portões do complexo e pediu para vê-la. Deseja recebê-la ou devemos jogá-la no fosso com os outros?
Amara encarou o homem, sem saber se tinha ouvido direito.
- Ela está sozinha?
- Trouxe um guarda limeriano.
- Mais ninguém?
- Mais ninguém, imperatriz.
- Quero vê-la. Pode trazê-la agora mesmo.
- Sim, imperatriz.
- Então, parece que ela sobreviveu... - Amara disse bem baixo. - E depois de tudo, vem a mim?
O que aquilo significava? Cleo devia saber que Amara a queria morta pelo que tinha acontecido entre as duas.
- Princesa Cleiona - Kyan disse. - Conheço esse nome. Eu já a vi. A feiticeira a detesta.
- Tenho certeza de que muitas pessoas detestam Cleo.
- Você acredita que a chegada dela seja algum truque?
- O que você acha?
- Quero saber o que você acha.
Amara lançou um olhar sério na direção de onde vinha a voz sem corpo.
- Estou começando a achar que Cleo pode ser mais útil do que você. Quando essa tempestade misteriosa de que você fala vier, me avise, por favor.
Amara esperou a resposta dele, mas não recebeu. E se amaldiçoou por ter sido sincera com uma criatura tão imprevisível.
Não importava. Ainda que ela o tivesse desagradado de alguma forma, Kyan logo lembraria que, se quisesse completar o ritual sanguinário ali, precisava da ajuda dela tanto quanto ela precisava da dele.
Não demorou muito para Cleo entrar na sala, acompanhada dos guardas de Amara. Seu rosto estava vermelho; o olhar, furioso. O vestido que usava estava rasgado e havia manchas de sujeira em seu rosto e nos
braços nus.
- Você lutou contra meus guardas? - Amara perguntou, erguendo uma sobrancelha.
- Tratada com tamanho desrespeito, eu lutaria com qualquer um - Cleo respondeu com seriedade.
Amara olhou para o guarda.
- Onde está o subordinado dela?
- Está sendo mantido em uma sala de interrogatório - o guarda respondeu.
- Não precisa fazer isso. Deixem-no com os outros prisioneiros, mas não o machuquem. Ainda não.
- Sim, imperatriz.
- Deixem-nos a sós. E fechem a porta.
Os guardas se entreolharam, e Amara percebeu que os dois tinham arranhões recentes no rosto.
- Tem certeza de que não quer proteção? - um deles perguntou.
- Façam o que mandei - Amara disse entredentes.
- Sim, imperatriz.
Eles saíram e fecharam a porta.
Amara sentou e encheu mais uma taça de vinho.
- Eu ofereceria um pouco a você, Cleo, mas receio que tente quebrar essa garrafa na minha cabeça de novo. - Ela fez uma pausa para tomar um gole da taça de vinho doce. - Você veio aqui para pedir desculpas
e para implorar minha misericórdia?
- Não - Cleo respondeu apenas.
- Pensei que estivesse morta, enterrada sob a neve perto da quinta do lorde Gareth.
- Como pode ver, estou muito viva.
- Com certeza está. - Amara a observou por cima da borda da taça. - Muitos de meus soldados foram mortos na noite da sua fuga. Foi você quem fez isso?
- Se eu responder a essa pergunta com sinceridade, vou ganhar seu respeito ou você vai me jogar em sua masmorra?
- É um fosso, na verdade. Bem eficiente. E isso depende da resposta.
- Ótimo. - Cleo assentiu. - Eu precisava me defender. Então, sim, eu os matei.
- Com arco e flecha.
- Só a flecha. Admito que ainda preciso dominar a arte do arco e flecha.
- Como conseguiu matar homens com o dobro do seu tamanho só com uma flecha?
- Minha aparência faz os homens pensarem que sou inofensiva.
- Mas está longe disso, não é? - Amara não conseguiu deixar de sorrir quando recostou na cadeira, tomou mais um gole da taça e observou a moça à sua frente, que a havia surpreendido com sua sede por sobrevivência
a qualquer custo. -Você não parece mais da realeza. Seu vestido está rasgado, o cabelo está despenteado. Você parece mais uma camponesa.
- Para parecer membros da realeza, precisamos de tempo e criados. Ultimamente, tenho apenas tentado sobreviver para ver o sol nascer no dia seguinte e, claro, lutado contra seus guardas quando tentam me
arrastar por aí como se eu fosse uma boneca de pano.
Algo naquela reunião, na coragem de Cleo ao visitar uma inimiga sem qualquer vestígio de medo nos olhos, conquistou o respeito de Amara.
- Ofereci uma aliança quando conversamos pela última vez. Acredito que você já me deu sua resposta. - Ela esfregou a nuca depressa, que tinha cicatrizado, restando só a lembrança do ferimento. - Fiquei
muito irritada com sua escolha, já que achava que poderíamos ser uma boa equipe.
- Ainda podemos - Cleo respondeu de imediato.
Não surpreendia que a garota tivesse mudado de ideia depois de perder tudo o que valorizava.
- Peço desculpas - Cleo disse um momento depois -, mas estou viajando há tanto tempo que tenho a sensação de que meus pés cairão se eu não sentar agora mesmo.
Amara indicou uma cadeira próxima.
- Por favor.
Cleo sentou largando o peso do corpo sobre a cadeira.
- Não estou aqui para perder mais tempo. Suas palavras podem ter sido incentivadoras da última vez em que conversamos, mas suas atitudes nunca me deram muita esperança de uma aliança entre nós. Você me
culpa de verdade pelo modo como reagi, independentemente do que me prometeram?
- Agradeço sua sinceridade. Não, acho que quanto mais penso nisso, menos culpo você por quase ter estourado minha cabeça. - Ela forçou um sorriso. - Acredito que eu teria feito a mesma coisa se estivesse
no seu lugar.
- Não sei se você teria feito.
Amara balançou o vinho na taça meio distraída, observando o líquido.
- Nunca fui sua inimiga, Cleo.
- Você queria a Tétrade e estava disposta a fazer o que fosse preciso para tê-la.
- Verdade. - Amara olhou para ela por um momento. - Você proclamou Magnus como rei durante seu discurso aos paelsianos, apesar de a família dele ter roubado seu trono. Por quê?
A expressão de Cleo ficou séria.
- Porque odiei o pai dele por ter entregado Mítica a você com tanta facilidade. O povo limeriano não estava pronto para me aceitar como rainha, por isso mostrei a eles um rei um pouco menos repugnante
do que o pai de Magnus.
- Então não foi porque você se apaixonou por ele.
- Amara, quer que eu seja direta? Serei. Política e amor não deveriam se misturar. Você discorda?
- Não discordo. - Ela observou a garota loira por um momento, em silêncio.
- Por que está aqui, Cleo?
- Porque soube que você não confia nos homens... em nenhum homem. Mas parece que está cercada por eles. Poucas mulheres têm posições importantes neste mundo, além de serem esposas ou mães de homens importantes.
Acho que isso deveria mudar. Você controla um terço do mundo todo aqui, uma parte que sem dúvida crescerá nos anos que virão. Acho que você vai precisar de ajuda.
- E está me oferecendo essa ajuda.
Cleo levantou o queixo.
- Isso mesmo.
- Ou... talvez seja apenas uma artimanha para me distrair.
- Distrair você do quê? - Cleo disse sem alterar a voz.
- De exigir sua cabeça. Você entra aqui como se tivesse o direito de estar a poucos metros de mim. Está tão desesperada a ponto de arriscar tanto vindo aqui e esperando que eu seja gentil?
- Gentileza não é uma coisa que espero de você, Amara. E se você falasse comigo com gentileza hoje, eu pensaria que está mentindo. Muito bem, o que posso fazer para provar meu valor?
Amara a analisou com cuidado.
- Informação. Diga alguma coisa que eu ainda não saiba e que possa afetar meu reinado como imperatriz.
Cleo mordeu o lábio enquanto Amara esperava com o máximo de paciência. Então, os olhos azul-claros da moça se fixaram nos dela.
- Seu irmão Ashur está vivo. - Cleo observou a expressão de choque de Amara. - Imagino que ainda não tenha chegado.
Amara sentiu um aperto no peito diante da possibilidade, mas estreitou os olhos para a princesa.
- Impossível. De todas as mentiras que podia me contar, essa não é uma que vai servir. Minha paciência com você acabou. Guarda!
A porta se abriu, e Amara ficou surpresa ao ver Carlos, não um outro guarda.
- Imperatriz, estou aqui para anunciar que mais uma pessoa chegou - ele informou.
Ela franziu a testa.
- Mande essa pessoa embora. Não quero mais nenhuma visita inesperada. E leve esta criatura odiosa daqui. Deixe-a com os outros enquanto decido como quero que ela morra.
- Como desejar, vossa graça. - Carlos hesitou, mas só por um momento. - Mas acho que deveria receber o visitante.
- Quem quer que seja, pode esperar.
- Não vai esperar, vossa graça. - Carlos olhou para a esquerda antes de cair de joelhos, abaixando a cabeça.
E então, Amara viu, sem acreditar, seu irmão morto entrando na sala.
28
CLEO
PAELSIA
Amara encarou Ashur em silêncio por tanto tempo que Cleo pensou que ela tinha virado pedra.
- Irmã, tenho certeza de que está surpresa em me ver - ele disse antes de levantar uma sobrancelha para Cleo. - Você também está aqui.
- Sim, estou aqui - Cleo confirmou, o coração batendo rápido. - Acho que cheguei antes de você.
- Chegou. Mas não me apressei. Precisava de tempo para pensar.
- Que estranho. Os ladrões costumam ter muito mais pressa.
Ele franziu a testa.
- Sim, com certeza.
- Imperador Cortas, o que deseja que eu faça com a prisioneira? - o guarda perguntou.
Prisioneira. Cleo sentiu o estômago revirar quando pensou que sua viagem seria interrompida antes que pudesse fazer qualquer diferença. Ela precisava pensar, encontrar uma maneira de lidar com esse resultado.
A manipulação era sua melhor arma. Precisava ganhar a confiança de Amara, se aproximar da mulher mais poderosa do mundo para conseguir destruí-la.
- Quero que você... - Amara começou e franziu a testa. - Você disse "imperador"?
O guarda a ignorou, voltando sua completa atenção para Ashur.
- Imperador?
- Deixe-nos conversar a sós - Ashur respondeu.
O guarda se afastou, fazendo uma reverência até sair.
Ashur olhou para a irmã.
- Parece que agora que nosso pai e nossos irmãos morreram, sou o próximo da linha de sucessão. Você sabe muito bem que nunca quis essa responsabilidade, mas farei o que for preciso. - Ela não respondeu,
e Ashur continuou: - Não tem nada a dizer para mim depois de todo esse tempo, minha irmã?
Amara balançou a cabeça devagar.
- Não é possível.
Cleo quis morder a língua para não dizer qualquer coisa que pudesse chamar atenção e fazer Amara lembrar que desejava sua morte.
Mas não conseguiu.
- É possível, sim - Cleo disse. - Ashur está vivo e bem. Foi uma surpresa para mim, mas tenho certeza de que é um choque para você. Afinal, você o matou a sangue-frio, não?
- Claro que não - Amara disse, as palavras mais frias e duras do que Cleo esperava, levando em conta a expressão assustada da imperatriz.
- Matou - Ashur confirmou, passando a mão no peito, distraído. - Não houve como não sentir a dor da lâmina cortando minha pele e meus ossos. Seu olhar frio que eu já tinha visto direcionado a outros, mas
nunca a mim. A terrível sensação de traição que despedaçou meu coração quando você me apunhalou sem hesitar.
- Como? Diga como isso pode ter acontecido!
- Preciso dizer que não estou aqui por vingança. Apesar de suas decisões precipitadas e questionáveis, compreendo muito mais do que você pode pensar. Você não é a única de nossa família que foi deixada
de lado por nosso pai por diferenças inaceitáveis.
- Elan era diferente - ela sussurrou.
- Elan olhava para nosso pai como quem olha para um deus. Acredito que isso perdoava muitas de suas imperfeições.
- Isso está acontecendo mesmo? - Os olhos de Amara ficaram marejados. - Você não vai acreditar em mim, mas só me arrependo de uma de minhas decisões: o que fiz com você. Eu estava irritada, me sentindo
traída... por isso reagi.
- Sim, reagiu.
- Não o julgaria se quisesse minha morte.
- Não quero sua morte, Amara. Quero que você continue viva, bem e disposta a ver tudo neste mundo com mais clareza do que nunca. O mundo não é um inimigo a ser derrotado a qualquer custo, não importa o
que nossa madhosha possa tê-la feito pensar.
- Nossa madhosha foi a única pessoa que acreditou em mim. Ela tem me guiado e tem sido minha mais importante conselheira.
- Então foi ela quem aconselhou você a acabar com minha vida.
Amara entrelaçou os dedos.
- Mas fui eu quem agiu guiada por esse conselho. Por um tempo, pensei que você estaria ao meu lado, mas você escolheu aquele garoto... aquele garoto ruivo... depois de ter se apaixonado por ele por quanto
tempo? Um mês?
- Nic - Cleo disse, a garganta apertada. - O nome dele era Nic.
Ashur a encarou sério.
- Como assim, o nome dele era Nic?
Cleo se controlou para não chorar. Ela se recusava a demonstrar fraqueza ali, a menos que fosse em benefício próprio. Queria odiar Amara, fazer aquele ódio servir de combustível para fortalecê-la, mas
naquele momento, só queria machucar Ashur.
- Quando você partiu, ele o seguiu - ela disse com calma. - Ele estava aqui no complexo quando um conflito começou.
- E daí? - ele perguntou em voz baixa.
- E... ele morreu. - Parecia horrível demais dizer em voz alta, mas ela precisava fazer aquilo. Queria fincar as palavras em Ashur para ver se o príncipe era mesmo feito de aço, alguém que não se importava
com quem feria, usava ou abandonava.
- Não. - Ashur balançou a cabeça, franzindo a testa. - Não pode ser.
- É verdade. - Amara confirmou. - Eu vi acontecer.
- Você mesmo disse - Cleo falou, com um nó na garganta. A confirmação roubou qualquer esperança que ela ainda tinha de que aquilo fosse mentira. - Todo mundo que se importa com você acaba morrendo. Não
acredito que esteja tão surpreso.
- Não - Ashur repetiu ao pressionar as costas da mão contra os lábios e fechar os olhos com força.
- Ah, por favor, Ashur. - Amara o ignorou com um aceno. - Você mal conhecia aquele garoto! Está tentando me dizer que está chateado com essa notícia?
- Cale a boca! - Cleo vociferou, surpresa com a própria raiva repentina. Amara a encarou, chocada. - Ele era meu amigo, meu melhor amigo. Eu o amava, e ele me amava. Ele era a minha família, e por causa
de você e de seu irmão, Nic está morto!
- Por causa de nós? - Amara repetiu com a voz baixa. - Você tentou impedi-lo de ir atrás de meu irmão como um ex-namorado ridículo e descartado?
- Eu só soube quando ele já tinha partido!
- Talvez você devesse ter cuidado melhor de alguém que afirma ter amado.
Cleo partiu na direção dela, querendo arrancar todos os fios de cabelo de sua cabeça, mas Ashur estava atrás, segurando seus braços e mantendo-a sob controle.
Ela lutou, como tinha feito antes com os guardas, tentando arranhar o rosto do príncipe também.
- Me solte!
- Violência não se responde com violência - ele disse, soltando-a para que sentasse em uma cadeira. - Sente e fique quieta, a menos que queira ser retirada desta sala.
Cleo fez o melhor que pôde para se controlar, amaldiçoando o dia em que aqueles irmãos horrorosos pisaram em solo mítico.
- Quer saber por que estou vivo, irmã? - Ashur perguntou, rangendo os dentes. - Porque soube o que aconteceu com você na infância. Sei que nosso pai tentou matar você. E não sou nem surdo nem cego; já
ouvi você e nossa avó conversando, planejando o que aconteceria e definindo quem estava atrapalhando. Quando percebi que minha vida podia estar em perigo, apesar de não acreditar totalmente que você faria
algo assim, não comigo, fui ao boticário de nossa avó...
Uma brisa quente soprou pelos braços nus de Cleo.
- Minha nossa, que drama, não é, pequena rainha? - uma voz sussurrou no ouvido dela.
Ela se assustou.
- Seria melhor não reagir. Não quero interromper o príncipe e a princesa nesse encontro tão esperado. Ou seriam o imperador e a imperatriz?
Cleo ficou observando Amara e Ashur enquanto o rapaz explicava por que tinha sido ressuscitado e por que acreditava ser a fênix lendária que traria a paz.
- Quem é você? - ela sussurrou.
- Shiu. Não fale nada. Amara vai sentir muito ciúme se souber que estou conversando com outras garotas bonitas sem que ela saiba. Mas talvez eu não me importe com o que ela pensa sobre mim. Ela tem sido
uma decepção agora que a tempestade se aproxima. - Ele fez uma pausa. - Sou o deus do fogo, pequena rainha, liberto de minha prisão, finalmente.
Cleo começou a tremer.
- Não precisa ter medo de mim. Agora percebo que deixei de ver muitas coisas em nosso último e breve encontro. Eu estava prestando atenção em Lucia e no irmão dela, e na busca de minha roda especial e
mágica. Mas você... seus olhos...
Ela sentiu o calor no rosto e seus músculos ficaram tensos.
- São da cor da água-marinha. Da cor da esfera de cristal de minha irmã. Por favor, balance a cabeça se consegue me entender.
Ela meneou discretamente, quase sem conseguir respirar.
- Há poder dentro de você, pequena rainha. E um desejo por mais. Você sabia que descende de uma deusa? Você gostaria que eu desse a você toda a magia com a qual sonhou?
Cleo sabia muito bem o que Kyan tinha feito com Lysandra e o que ele e Lucia tinham feito com muitos vilarejos em Paelsia. Apesar de seu medo e ódio por aquela criatura que não conseguia ver, parecia não
haver outra resposta no momento que o satisfizesse e a mantivesse ilesa.
Então, ela assentiu.
- Amara não vale nada, consigo perceber agora. Ela só quer poder, mas se engana dizendo que quer mais do que o pai queria. Mas você sacrificaria a si mesma para salvar aqueles que ama, não é mesmo?
Cleo se forçou a assentir de novo, apesar de sentir um arrepio na espinha. Com o que estava se comprometendo?
Será que o deus do fogo de fato via algo nela, algo especial, poderoso e que valesse a pena para ter magia de verdade?
Talvez seu desejo finalmente fosse se realizar.
- Vou voltar com a tempestade. Está muito perto agora, pequena rainha. Não conte a ninguém o que contei a você. Não me decepcione.
O calor que a fez começar a suar desapareceu, e Cleo percebeu que Amara estava falando com ela.
- Cleo - ela chamou. - Está me ouvindo?
- Sim, estou.
- Você também ouviu o que o Ashur sugeriu?
- Não - ela admitiu.
- Ele acredita que juntos, ele e eu podemos governar Kraeshia pacificamente. O que você acha? É um bom plano?
Cleo se viu momentaneamente sem voz, mas então algo começou a subir por sua garganta... uma risada.
- Perdoe-me por dizer isso, Amara, mas que plano absurdo. Duas pessoas não podem governar em igualdade. É impossível.
Amara arqueou as sobrancelhas.
- Agradeço pela sinceridade.
- Discordo muito - Ashur resmungou.
Cleo levantou da cadeira, usando sua raiva, seu pesar e sua necessidade de sobrevivência para ganhar força.
- Onde está, Ashur?
Ele franziu a testa.
- O quê?
- O que você roubou de mim.
- Não roubei nada de você. - O príncipe contraiu a mandíbula. - Sei que você me culpa pela morte de Nicolo. Também me culpo. Se pudesse voltar e fazer as coisas de outro jeito, eu voltaria.
- A partir de quando? De quando você tomou a poção de ressurreição ou quando forçou Nic a beijar você aquela noite em Auranos? Os dois erros foram terríveis, na minha opinião.
- Palavras cruéis e insensíveis não combinam com você, princesa. - Ashur se virou para a irmã. - A decisão está em suas mãos, Amara, e sei que você vai escolher bem. Vim aqui para mostrar outro caminho,
diferente daquele em que está. Um melhor.
- E mostrou. - Amara assentiu. - Pude escolher o caminho de ser gentil, doce e mais agradável, como todas as moças boazinhas deveriam ser, certo?
- Você fala com sarcasmo, mas uma visão mais delicada poderia lhe trazer mais do que pensa. Podemos governar Kraeshia juntos ou governarei sozinho como imperador.
- Se você acha que eu concordaria com isso, irmão, então não me conhece nem um pouco. Guardas!
Os olhos arregalados de Cleo se voltaram para a porta quando vários guardas entraram na sala, olhando para Ashur e para Amara, sem saber para quem voltar a atenção.
Amara apontou para Ashur.
- Meu irmão confessou que conspirou com o rebelde que matou nossa família. Ele deseja ajudar a rebelião a acabar com o Império Kraeshiano que meu pai construiu.
- Não fiz nada disso - Ashur disse, indignado.
- Errado - Cleo disse, enojada com as mentiras de Ashur. Ele tinha escondido os cristais da Tétrade em algum lugar, guardando-os para seu próprio benefício. - Confessou, sim. Eu mesma ouvi.
Ashur encarou a princesa furioso.
Apesar de ter desejado que Ashur fizesse Amara ouvir a razão, tal desejo parecia ser em vão. Amara tinha a brutalidade que faltava ao irmão. Ela era a predadora, e Ashur, naquele dia ou dali a um ano,
acabaria sendo a presa dela de novo.
Ainda que fosse apenas um conflito temporário, Cleo tinha que se alinhar com a força, agora mais do que nunca.
Ela tinha que se alinhar com Amara.
- Você não está mais tão pacífico, não é, Ashur? - Cleo perguntou com firmeza. - Engraçado como isso muda depressa.
- Deixem-no com os outros prisioneiros - Amara disse aos guardas.
- Amara! - Ashur vociferou. - Não faça isso!
A imperatriz manteve a calma.
- Você veio aqui para me dizer, com orgulho, que é a fênix da lenda, mas está enganado. Eu sou a fênix. - Ela sinalizou para os guardas. - Levem-no daqui.
Os guardas tiraram Ashur da sala enquanto Amara sentava na cadeira.
- Você mentiu sobre Ashur para os guardas - ela disse.
Cleo mal conseguia acreditar.
- Menti.
- Ele poderia ter tirado tudo de mim: meu título, meu poder. Tudo. Porque é meu irmão mais velho.
- Sim, poderia ter feito isso. - Cleo manteve o olhar firme. - E agora, o que pretende fazer comigo?
- Para ser sincera, ainda não decidi.
Cleo mordeu o lábio, tentando manter a confiança diante de tamanha incerteza.
- Você acredita mesmo que é a fênix?
Amara levantou uma sobrancelha.
- Isso importa?
Um guarda continuava na porta. Quando Amara virou, ele endireitou os ombros.
- Imperatriz, tenho informações para a senhora.
Amara o encarou com impaciência.
- O que é?
- Os rebeldes foram capturados. Esperam ser interrogados.
Cleo ficou zonza. Seriam Jonas e Felix? Taran? Quem mais?
- Cleo, quero que você venha comigo interrogá-los - Amara disse. - Quero que você me prove que é capaz de recuperar um pouco de minha confiança, quem sabe? Pode fazer isso?
O deus do fogo tinha feito uma promessa tentadora. Mas ela daria as costas para Jonas, Felix e Taran se, com isso, pudesse reaver o trono?
Se não desse, haveria uma maneira de convencer Amara a soltá-los antes de roubar o cristal da Tétrade dela?
Não havia tempo para essas decisões no momento, não sobre algo tão importante. Ela só podia ganhar o máximo de tempo possível.
Cleo assentiu.
- Claro que posso fazer isso, imperatriz.
29
MAGNUS
PAELSIA
Magnus e Gaius passaram o dia todo acorrentados como prisioneiros comuns na parte de trás de uma carroça que partia de Basilia rumo à direção oeste. Magnus sabia exatamente aonde estavam indo e, quando
finalmente chegaram ao antigo complexo do chefe Basilius ao anoitecer, não sabia ao certo se veriam o sol nascer no dia seguinte.
O pequeno, mas impressionante, exército de Amara cercava o perímetro do complexo, e Magnus e seu pai foram levados portões adentro pelos guardas. Lá dentro, foram empurrados e arrastados por um corredor
estreito e comprido e jogados em uma sala com paredes de pedra e sem mobília. Guardas prenderam correntes novas em seus tornozelos. Não havia nada a fazer além de sentar e esperar no chão manchado de sangue.
A porta tinha uma trava que só abria pelo lado de fora.
Sim, Magnus pensou, isto aqui pode ser chamado de masmorra.
- Eu não queria isso - o rei disse quando ficaram a sós.
- Não? Não queria que fôssemos acorrentados e ficássemos à mercê dos caprichos de Amara? Soube como os kraeshianos lidam com os prisioneiros. Faz o tratamento que você dá a eles parecer quase benevolente.
- Este não será nosso fim.
- Que engraçado, pai, pois parece que será. Sabe o que seria muito útil agora? A ajuda de uma bruxa. Mas você também a mandou embora, não é?
- Sim. E não me arrependo. Minha mãe é uma mulher cruel.
- Então, acho que você nasceu dessa mesma crueldade naturalmente, sem precisar de poções.
Magnus tinha tido muito tempo para pensar durante o trajeto. Pensou principalmente em Cleo, e se perguntou se as coisas seriam diferentes se não tivesse mandado Nic atrás de Ashur.
Provavelmente não. Porque nesse caso, Cleo poderia estar com ele e com seu pai, e Magnus não conseguiria fazer nada para ajudá-la. O príncipe esperava muito que ela finalmente tivesse conseguido fazer
o que deveria ter feito desde o começo: partido para Auranos em busca de aliados, rebeldes, ou qualquer outro tipo de ajuda.
Cleo estava muito melhor o mais distante possível dele.
O tempo passava devagar, e a noite voltou a ser dia quando os raios de sol entraram na masmorra escura por uma janela minúscula. O barulho de uma trava na porta chamou sua atenção, e Magnus protegeu os
olhos da luz forte do sol quando a porta foi aberta e vários guardas entraram. Depois deles, a imperatriz apareceu.
Ela meneou a cabeça para ele.
- Magnus, que ótimo vê-lo de novo.
- Bem, para mim é muito desagradável revê-la.
Amara manteve o sorriso frio.
- E Gaius, estava muito preocupada com você. Não tenho notícias suas desde que partiu em busca de seu filho traidor para puni-lo. Não deu certo?
- Meus planos mudaram - o rei disse.
- Compreendo.
- É assim que você recebe seu marido, Amara? - Magnus perguntou. - Acorrentando-o em uma masmorra?
- Certa vez, minha mãe fugiu de meu pai. Soube que ele a arrastou de volta e a trancou em uma sala pequena e escura. Durante um ano inteiro, se não me engano. Ela também perdeu um dedo como castigo por
tentar fugir. Foi obrigada a decepá-lo sozinha.
Ela contou a história sem nenhuma emoção.
- Esse será meu destino? - Gaius perguntou. - Perder um dedo?
- Não decidi o que gostaria de arrancar de seu corpo por todas as suas mentiras e trapaças. Mas tenho certeza de que pensarei em alguma coisa. Enquanto isso, trouxe alguém que tenho certeza de que vocês
gostariam de ver.
Ela deu um passo para o lado, e Magnus, ainda protegendo os olhos do sol, percebeu, incrédulo, que Cleo estava parada na porta.
A expressão dela era totalmente indecifrável.
- Achei que você tivesse dito que havia rebeldes presos aqui - Cleo comentou.
Amara virou para ela.
- Eles são rebeldes, já que estão trabalhando contra mim para roubar o que agora me pertence. Estou errada?
- Não, acho que não. - Cleo inclinou a cabeça. - Mas é estranho pensar neles como rebeldes. A palavra não parece se encaixar.
- Se somos rebeldes, princesa - o rei sibilou -, o que você é, então?
- Uma prisioneira de guerra - Cleo respondeu com calma. - Forçada a me casar contra a minha vontade quando minha liberdade foi roubada junto com meu trono. Este ano tem sido muito longo e doloroso para
mim.
Magnus não tinha dito nada desde que Cleo entrara na masmorra, surpreso com cada movimento e palavra dela. Aquela não podia ser a mesma garota que ele conhecia, cheia de entusiasmo e energia na noite em
que seus caminhos se cruzaram no chalé da floresta tomado pela neve. A garota cheia de ódio e fúria quando soube da morte de Nic.
A impecável expressão de indiferença da princesa se opunha à dele.
- Eu lhe dei muitas chances de ir embora - Magnus disse. - Você não era uma prisioneira.
- Fui prisioneira das escolhas que seu pai tirou de mim. Quantas vezes ele teria gostado de ver essa mesma situação invertida, de me ver acorrentada e entregue à sua boa vontade? Boa vontade. - Ela riu.
- Eu nunca usaria essas palavras para descrever seu pai.
- Você devia ter me acordado - Magnus disse. - Meu pai não devia ter mandado você embora. Sei que está brava comigo.
- Brava? Você acha que eu estava...
- Mas vir até aqui? - ele a interrompeu. - Para quê? Tentar uma aliança com Amara?
- Talvez - ela admitiu. - Ela é a única que tem poder aqui. Você me julgaria por isso?
- O que devo fazer com eles, Cleo? - Amara perguntou. - Quer que eu considere poupar a vida de Magnus?
- Vou pensar um pouco - Cleo respondeu.
Magnus a encarou com os olhos semicerrados.
- Pensar um pouco? A princesa precisa pensar um pouco para decidir se vou morrer ou não? Será que preciso lembrar que perdi a conta de quantas vezes salvei sua vida?
- Não é o momento para analisarmos essas coisas. Estamos em guerra. E na guerra, precisamos fazer o que for necessário para sobreviver.
Magnus olhou para ela e, em seguida, para Amara.
- Então, talvez, eu deva formar uma aliança com você.
Amara riu.
- É mesmo? Que tipo de aliança?
- Lembro muito bem da noite que passamos juntos. Você é... uma mulher incrível, que eu adoraria levar para a cama de novo.
De canto de olho, Magnus viu Cleo se mexer desconfortável.
- É mesmo? - Amara enrolou uma mecha de cabelo no dedo. - E você não se importa que eu tenha estado com outros homens desde que ficamos juntos? Incluindo seu pai?
- Prefiro mulheres experientes. Muitas são muito... desajeitadas e esquisitas em sua inocência. - Ele virou para Cleo para ver se suas palavras totalmente falsas surtiam algum efeito nela. - Não acha,
princesa?
- Ah, sem dúvida - Cleo concordou, apesar do tom sarcástico. - Você deve procurar apenas as mulheres mais experientes. Talvez aprenda muito com elas.
Amara manteve um sorriso discreto.
- Acho que tais convites não cabem aqui, Magnus, mas agradeço pela oferta generosa. No momento, meu maior interesse é obter o cristal do ar. Eu quero o cristal.
- Imagino que queira - o rei disse. - Como sempre quis tudo o que tenho.
- Nem tudo. Não quero mais você como marido, por exemplo. Pode me dizer onde está?
- Não.
- Não tenho paciência para isso. - Amara fez um gesto aos guardas. - Levem os dois para o buraco.
- Sim, imperatriz.
As duas moças viraram para a porta.
- Princesa... - Magnus disse, detestando o tom fraco de sua voz. Os ombros de Cleo ficaram tensos quando ouviu a voz dele.
Ela olhou para trás.
- Achei que tivesse dito para você me chamar de Cleiona.
Magnus ficou observando Cleo e Amara saírem sem mais nenhuma palavra.
Cleiona... Ela queria ser chamada de Cleiona.
O nome de uma deusa. Seu nome completo e correto, não um apelido. O nome que ele havia escolhido para mostrar que a desejava, que a amava.
Que ela o amava.
Podia ainda haver esperança de que ela não o tivesse abandonado àquele destino? De que tivesse perdoado seus muitos erros?
Os guardas soltaram Magnus e o rei e começaram a arrastá-los da masmorra até a luz. Eles entraram em uma construção e então caminharam por um corredor que fazia eco, sem teto.
Uma garota bonita com cabelo curto e preto e corpo bem torneado estava recostada na parede mais à frente.
- Olá - ela disse aos guardas. - Estou vendo que vocês têm os prisioneiros sob controle. Muito bem.
- Sim, Nerissa. Você está linda hoje.
- Você acha? - Ela sorriu de modo sedutor, e os guardas retribuíram.
- Está bem integrada aqui, pelo visto - Magnus comentou com frieza.
- Muito bem, obrigada. - Nerissa começou a caminhar para perto deles, e passou a mão pela manga do uniforme do guarda. - Preciso pedir um favor a você, meu querido.
O guarda de Magnus diminuiu o passo, enquanto os guardas do pai dele seguiam pelo corredor.
O guarda a olhou cheio de desejo.
- Sim?
Ela sussurrou alguma coisa em seu ouvido, e o homem riu.
- Esse é um favor que ficarei muito feliz em fazer, minha querida. Diga quando e onde.
O rei e os guardas sumiram mais adiante.
- Em breve. Talvez só um beijo por enquanto para você lembrar de mim.
- Como se fosse possível esquecer você.
A garota puxou o guarda e encostou os lábios nos dele. Magnus viu quando ela enfiou a mão entre as dobras do vestido. Nerissa encarou os olhos de Magnus enquanto cravava uma adaga na barriga do homem.
O guarda imediatamente o soltou, levando a mão ao abdômen.
- O que você... - ele disse, ofegante.
Ela o apunhalou, rápido e fundo, várias outras vezes até o guarda cair no chão sobre uma poça de sangue.
Magnus olhou para a garota, chocado pelo que acabara de testemunhar.
Nerissa fez um gesto para alguém atrás de Magnus.
- Depressa. Solte o príncipe.
A pessoa cortou as cordas que amarravam os braços dele, e Magnus se virou. Encontrou um rosto familiar e irritado emoldurado por cabelos ruivos.
- Nic - ele disse.
Nic balançou a cabeça.
- Sou contra salvar sua pele, mas vamos lá.
Magnus não acreditou no que viu.
- Você deveria estar morto.
- E estaria, se não fosse a magia de sua irmã. Eu estava preparado para odiar vocês dois pelo resto da vida. Ainda não me decidi quanto a você. Mas quanto a ela... agora devo a minha vida. - Ele olhou
para Nerissa. - O que vamos fazer com o guarda?
- Por aqui. - Ela pegou a manga do uniforme do guarda morto, e ela e Nic o puxaram pelo corredor, levando-o a uma alcova escura. - Isso deve bastar. Precisamos sair rápido.
Magnus, ainda assustado, se esforçou para recuperar a compostura.
- Aonde vamos?
- Vamos ao quarto de Amara pegar o cristal da água - Nerissa sussurrou. - Ela sabe realizar o ritual para liberar sua magia. Não sei como aprendeu, mas tem certeza de que vai funcionar. O sangue dos prisioneiros
será usado para fortalecer a magia. Quero fazer o que puder para ajudá-los, mas, no momento, precisamos daquele cristal da Tétrade em nossas mãos, não nas dela.
Magnus assentiu.
- Então vamos parar de falar e começar a agir.
Nerissa atravessou o corredor às pressas, e Nic e Magnus a acompanharam. Por fim, chegaram a uma porta. Nerissa olhou para os dois lados do corredor antes de destrancar a porta. Os três entraram em uma
sala elegante com várias outras salas interligadas, repletas de janelas com vista para a pequena cidade murada.
Nerissa foi direto ao armário, conferindo os bolsos de vários vestidos e casacos compridos.
- Procurem em tudo, ela pode ter trocado de lugar.
Magnus e Nic entraram em ação, conferindo estantes, armários e até embaixo das almofadas das poltronas.
- Tem certeza de que está aqui? - Magnus perguntou.
- Tenho certeza de que ela não estava com o cristal mais cedo.
- Como sabe?
- Eu a ajudei a se vestir, e com certeza não estava em nenhum dos bolsos. Procurem no outro quarto.
Magnus não sabia muito bem como se sentia recebendo ordens de uma criada, mas continuou obedecendo. Aquela garota tinha muitos outros talentos além dos de uma serva particular.
Mas, claro, Magnus se deu conta de que Nerissa Florens não era apenas uma criada. Era uma rebelde.
Não encontrou nada na busca e voltou para o quarto, mas não viu Nic nem Nerissa.
- Aonde vocês foram? Nic? Nerissa?
Ele observou o espaço amplo até encontrar dois corpos no chão.
Os olhos de Nic estavam fechados, e ele tinha uma marca vermelha na têmpora. A alguns metros, Nerissa gemia de dor.
Ela encarou os olhos de Magnus e ficou aterrorizada no mesmo instante.
Magnus sentiu uma dor aguda na nuca e, então, tudo se apagou.
30
AMARA
PAELSIA
- Pequena imperatriz.
O som da voz de Kyan a surpreendeu, mas Amara ficou aliviada ao ouvi-la. Ela tinha certeza de que o deus tinha partido depois da discussão do dia anterior.
- Você ainda está aqui - ela sussurrou. Ela estava na pequena sala adjacente a seus aposentos, que tinha se tornado uma sala de meditação, sem nenhum objeto além do tapete sobre o qual sentou.
- A tempestade está quase chegando. Está na hora de eu retomar meu poder e de você colher todas as recompensas que tanto merece.
O coração dela disparou.
- Os prisioneiros estão esperando - ela informou.
- Excelente. O sangue deles selará o ritual e o tornará permanente.
Amara afastou todas as poucas dúvidas que restavam. Agir com receio agora seria a maior fraqueza depois de tudo o que tinha sacrificado por aquele dia.
- Espere por mim do lado de fora com o cristal da água.
Ela concordou sem hesitar.
Amara queria Cleo ao seu lado, para incentivá-la e, se fosse preciso, seria um sacrifício a mais. Juntas, elas deixaram os aposentos reais e saíram, rumo ao centro do complexo, onde ficava o fosso. Amara
instruiu uma dúzia de soldados a cercar o fosso, metade com flechas apontadas para os prisioneiros ali dentro.
Nada poderia dar errado.
- Puxa, veja quem veio nos visitar. - Felix a encarou, protegendo o olho bom da luz do céu claro que tinha acabado de começar a escurecer com as nuvens carregadas. - A grande e poderosa imperatriz. Desça
aqui, vossa graça. Eu adoraria conversar. Tenho certeza de que seu irmão também gostaria!
Amara olhou para Ashur sentado ao lado de Felix e do outro rebelde, Taran. O irmão a encarou de volta, não com ira nem ódio, mas com uma decepção profunda nos olhos azuis-acinzentados.
- Minha irmã, você ainda pode mudar seu caminho - ele disse.
- Infelizmente, você não pode mudar o seu - ela respondeu. - Não devia ter voltado.
- Não tive escolha.
- Sempre existe uma escolha. E eu fiz a minha.
Gaius estava sentado com as costas para a parede do fosso, os braços cruzados sobre o peito. Ele não disse nada, só olhou para ela de uma maneira inexpressiva que a deixava indignada. Era triste ver o
antigo rei tão derrotado - mas, ainda assim, profundamente gratificante.
Também havia outro jovem no fundo do fosso, que Amara reconhecia vagamente do dia em que Nerissa se tornara sua criada. Ela achava que seu nome era Enzo.
Cleo espiou dentro do fosso.
- Onde está Magnus?
Quando percebeu que o príncipe não estava com os outros, Amara franziu a testa e virou para um guarda.
- E então, onde ele está?
O guarda fez uma reverência.
- Parece que ele conseguiu escapar. Uma busca está sendo realizada, e garanto que será encontrado.
- Magnus escapou? - Cleo perguntou, sem fôlego.
Amara ficou tensa.
- Encontre-o - ela disse ao guarda. - Traga-o aqui vivo. Você será responsabilizado se ele não for encontrado.
- Sim, imperatriz. - O guarda se curvou e saiu correndo.
- Ele não importa mais - Amara disse para si mesma, principalmente. - Está tudo bem.
- Sim, pequena imperatriz. Está tudo bem.
Um momento depois de Kyan falar, um trovão retumbou no céu. As nuvens se fechavam, cada vez mais escuras. O vento ganhou força, soprando o cabelo de Amara para trás.
- Então é uma tempestade de verdade - ela disse, a pele formigando de ansiedade com o que estava por vir.
- Sim. Criada com todos os elementos combinados pela poderosa magia do sangue.
Dois guardas se aproximaram do fosso com prisioneiros que Amara não esperava ver.
Cleo se sobressaltou.
- Nic! Você está vivo!
O rapaz estava ensanguentado, cheio de hematomas e desgrenhado, mas o amigo de Cleo estava bem vivo. Amara sinalizou para o guarda, que soltou Nic por tempo suficiente para Cleo correr direto para seus
braços.
- Pensei que tivesse morrido! - ela gritou.
- Quase morri. Mas... me recuperei.
Cleo segurou o rosto de Nic entre as mãos, olhando para ele como se não conseguisse acreditar no que via.
- Estou tão irritada com você que quero gritar!
- Não grite. Estou com muita dor de cabeça. - Ele tocou a marca vermelha na têmpora.
- Como você pode estar vivo? Amara disse que viu você morrer.
- Acredite ou não, foi graças à Lucia.
Amara tinha certeza de que tinha ouvido mal.
- A feiticeira esteve por aqui? - ela perguntou.
Nic lhe lançou um olhar de ódio.
- Por quê? Teme que ela derrube este lugar sobre a sua cabeça? Podemos torcer para que faça isso, não?
Amara estava prestes a responder, ou talvez pedir para que Nic fosse morto logo, mas outro prisioneiro chamou sua atenção.
- Nerissa? - Ela encarou a criada com a expressão chocada, e então virou para o guarda que a segurava. - O que isso significa?
- Ela ajudou na fuga do príncipe Magnus, junto com o rapaz - o guarda explicou. - Juntos, estavam tentando sair da propriedade.
Amara hesitou surpresa ao assimilar a notícia.
- Por que você faria isso comigo? Pensei que fôssemos amigas.
- Pensou errado - Nerissa disse. - Tenho certeza de que você não vai acreditar em nada do que eu disser agora, por isso prefiro não dizer nada.
- Não se pode confiar em ninguém, pequena imperatriz. Essa garota que você valorizava conseguiu enganar até mesmo você.
Amara levantou o queixo, sentindo a traição doer mais do que pensou que doeria.
- Deixe essa vadia com os outros. O outro também.
- Amara! - Cleo gritou.
- Dobre a língua, a menos que queira ir com eles - Amara disse. - E juro que essa não seria uma decisão boa para ser tomada hoje. Escolha de que lado pretende ficar, Cleo, do meu ou do deles?
Cleo estava ofegante, mas não disse mais nada quando Nic e Nerissa foram forçados pelos guardas a descer a escada de corda que levava para dentro do fosso.
Amara olhou para dentro do fosso para ver a reação de Ashur ao descobrir que Nic tinha ressuscitado, querendo esquecer a traição de Nerissa.
- Você está vivo - Ashur disse, surpreso.
- Estou - Nic respondeu tenso.
Os olhos de Ashur estavam marejados quando caiu de joelhos.
Você se tornou um fraco, irmão, ela pensou com nojo e alguma tristeza por tudo o que tinha se perdido entre eles.
- O que houve com você? - Nic perguntou a Ashur, franzindo a testa.
- Você... sei que você veio atrás de mim, para tentar me convencer a não fazer o que eu achava ser o certo. E... pensei que você estivesse morto.
Nic o observou com atenção.
- Parece que muitos pensavam isso. Mas não estou.
Ashur assentiu.
- Que bom.
- Fico contente por você estar contente. - Nic franziu a testa ainda mais. - Posso ser sincero? Não imaginei que você se importaria, de qualquer modo. Mas... - Ele observou os outros dentro do fosso com
nervosismo. - Por favor, fique de pé agora.
Ashur obedeceu, aproximando-se de Nic.
- Sei que meu comportamento tem sido imperdoável. Eu queria afastar todo mundo... principalmente você. Não queria que você se magoasse. Mas eu estava errado em relação a tudo. Em relação a mim, minhas
escolhas, meu destino... Achei que eu fosse importante.
- Você é importante.
- Não sou a fênix. Entendo isso agora. - Ashur abaixou a cabeça, e o cabelo, escapando da tira de couro que usava para prendê-lo para trás, cobriu seu rosto. - Por favor, me perdoe, Nicolo.
Um pouco hesitante, Nic arrumou o cabelo do príncipe atrás da orelha.
- Tudo isso porque você pensou que eu estivesse morto? Detesto ter que dizer isso, mas hoje não está sendo um dia bom para nenhum de nós.
- Você tem razão. A vida não é uma garantia, em nenhum momento, para ninguém. Cada dia, cada momento, pode ser o último.
- Ah, infelizmente, sim.
Ashur olhou para Nic.
- Isso quer dizer que devemos ir atrás do que mais queremos nesta vida mortal e curta enquanto podemos.
- Concordo plenamente.
- Ótimo. - Ele levou a mão à nuca de Nic e o beijou com intensidade. Quando se afastou, as bochechas de Nic estavam quase tão vermelhas quanto seu cabelo.
- Ha! - Felix disse, apontando para eles. - Eu sabia! Eu tinha certeza!
Amara observou tudo aquilo sentindo o coração pesado ao ver o irmão finalmente admitir seus sentimentos. Ela não sabia se estava contente ou triste.
- Que ótimo para todos vocês. Meu irmão sabe interpretar, não?
- Não estou fingindo ser alguém que não sou - Ashur resmungou para ela. - Não mais. Não como você.
- Pode acreditar, meu irmão. Hoje sou exatamente quem eu tinha que ser. - Ela olhou para um guarda. - Se conseguiu prender Nicolo e Nerissa, onde está Magnus?
O guarda fez uma reverência.
- Preso em outro lugar, vossa graça.
- Onde?
- Receio ter me afastado dos guardas que o arrastaram de seus aposentos. Mas garanto que ele não é uma ameaça à senhora.
Talvez não, mas Amara preferiria manter todos os prisioneiros em um só lugar.
- Muito bem, pequena imperatriz. Você está demonstrando muita força hoje.
Amara queria que aquilo terminasse de uma vez por todas, queria finalmente esquecer os sacrifícios que tinha sido forçada a fazer durante toda a vida.
- Fico feliz por saber que aprova - Amara respondeu, e a impaciência cresceu dentro dela quando a primeira gota de chuva caiu das nuvens escuras. - Está na hora de começar?
- Sim, está na hora. Ela finalmente está aqui.
Com mais um trovão e um raio cortando o céu da noite, uma mulher se aproximou deles, o manto preto esvoaçando ao vento. Os guardas se afastaram para abrir caminho para ela, dando um passo para trás, sincronizados.
- Lucia? - Amara perguntou, tensa.
- Não, não é a Lucia.
A mulher que se aproximava tinha um rosto maduro e cabelo grisalho comprido com uma mecha branca na parte da frente. Os olhos escuros, quase pretos, percorreram os guardas e a beirada do fosso, e em seguida
se voltaram para Amara.
O raio cortou o céu atrás dela.
- Selia! - Cleo gritou. - O que está fazendo aqui?
- Você conhece essa mulher? Quem é ela? - Amara quis saber.
- É a mãe de Gaius Damora - Cleo disse e em seguida teve um sobressalto. - Olivia!
Outra mulher apareceu atrás de Selia, uma moça linda de pele escura e olhos verdes que observavam o local com nervosismo.
- Cleo - ela disse com delicadeza. - Eu... eu sinto muito por isso.
- Sente muito? Sente muito pelo quê?
- Pelas marcas. - Olivia esticou os braços para mostrar símbolos pretos pintados na pele.
- Sim - Selia disse. - Marcas mágicas antigas que farão até uma imortal obedecer às minhas ordens.
- Você é a mãe de Gaius. - Os pensamentos de Amara não paravam. - E também é a bruxa que Kyan trouxe aqui.
- Sou. É a maior honra da minha vida usar minha magia para ajudar o deus do fogo no lugar da minha neta, que, em sua tolice, voltou-se contra ele. Para que esse ritual libere a magia da Tétrade, é necessário
o sangue da feiticeira e o sangue de um imortal.
- Selia... - Cleo começou, franzindo a testa. - Por que você faria isso?
- Porque sou uma Vetusta, é por isso. Adoramos a Tétrade por inúmeras gerações, e hoje ajudarei a libertar seus deuses.
- Mais de um? - Amara inclinou a cabeça. - Só tenho o cristal da água.
Selia sorriu.
- E eu tenho o da terra e o do ar.
De seu manto, ela tirou duas pequenas esferas de cristal - uma de obsidiana e uma de selenita
Cleo levou um susto.
- Você... Foi você!
- Incrível. - A frustração e a dúvida de Amara desapareceram como névoa ao vento. - Admito que tive receio, mas agora vejo que tudo está como deve ser. Depois de todos os meus sacrifícios, finalmente vou
receber tudo o que sempre quis.
- Vai? - Selia perguntou, arqueando as sobrancelhas finas e escuras. - Na verdade, isso não tem nada a ver com você, mocinha.
Amara fez um gesto na direção dos guardas.
- Tirem as esferas dela e tragam-nas para mim. Cuidem para que essa mulher faça só o que receber ordem para fazer. Amarrem a bruxa, se for preciso.
Antes que alguém pudesse se mexer, os doze guardas que cercavam o fosso levaram as mãos à garganta. Amara observou horrorizada enquanto os homens tentavam respirar em vão, caindo no chão. Estavam todos
mortos.
- Kyan! Faça essa bruxa parar!
- O que começou não pode ser interrompido. - O calor passou por ela, soprando por sua orelha esquerda. - Você quer a magia da Tétrade para usar em seu benefício, como já fez várias vezes. Mas não pertencemos
a ninguém.
Selia moveu o dedo na direção de Cleo, e a princesa tombou para trás, caindo dentro do fosso. Amara correu para o lado para olhar para baixo e viu que Taran tinha conseguido segurá-la antes que batesse
no fundo.
Amara se virou chocada para a bruxa.
- Como ousa...?
Selia mexeu o dedo de novo, e parecia que uma mão grande e invisível a empurrava. Amara perdeu o equilíbrio e caiu no fosso. Quando bateu no chão, um osso de sua perna quebrou com um barulho horroroso.
Felix olhou para ela, os braços cruzados à frente do peito largo.
- Ops - ele disse. - Esqueci de segurar você. Machucou?
Cegada pela dor e sem conseguir se mexer, os olhos marejados, Amara viu Selia à beira do fosso, sorrindo para todos.
- Excelente - Kyan disse. - Agora, vamos começar.
31
JONAS
PAELSIA
Lucia insistiu para que ela e Jonas fossem ao complexo da imperatriz o mais rápido possível. Isso significava ir a cavalo, o que Jonas soube, antes mesmo de começar a jornada, que era uma péssima ideia
para alguém na situação da princesa. Mas Lucia não reclamou nem uma vez enquanto seguiam para o sudeste o mais depressa que conseguiam.
Mas então Lucia parou no meio de uma floresta - ou onde já tinha sido uma floresta um dia. Jonas viu que, ao seu redor, os arbustos e as árvores que antes eram altos e frondosos estavam agora marrons e
murchos, e olhou para Lucia. A pele dela estava muito pálida, como a de um cadáver.
- Posso continuar - ela murmurou.
- Acho que não.
- Não discuta comigo, rebelde. Minha família...
- Sua família pode muito bem esperar. - Ele desceu do cavalo num pulo e estava ao lado de Lucia quando ela soltou as rédeas e escorregou.
O céu escureceu logo em seguida.
- Malditas tempestades paelsianas - Jonas resmungou, olhando para cima. - Não dá para saber quando vêm.
Um trovão alto bastou para assustar os cavalos. Antes que Jonas pudesse impedi-los, os animais fugiram.
- Não me surpreende - ele resmungou. - Uma coisa ruim chama outra.
Lucia segurou a mão dele quando Jonas tentou colocá-la de pé.
- Jonas...
- O que foi?
- Ah, minha nossa, acho... - Ela soltou um grito de dor. - Acho que está na hora.
- Na hora? - Ele balançou a cabeça, olhando para Lucia em negação. - Não, não está na hora de nada além de encontrar outro meio de transporte.
- O bebê...
- Não, eu repito, você não vai fazer isso agora.
- Acho que não tenho escolha.
Jonas a segurou pelos ombros.
- Olhe para mim, princesa. Olhe para mim!
Lucia o encarou com uma expressão de dor.
- Você não vai dar à luz agora porque Timotheus apareceu em meu sonho... só uma vez, mas tempo suficiente para me dizer que teve uma visão comigo. Estarei com você quando você morrer dando à luz. E vou
criar seu filho.
Lucia o encarou, arregalando os olhos.
- Ele disse isso?
- Sim.
- Você vai criar meu filho?
- Sim, ao que parece.
- O filho de um vendedor de vinho paelsiano vai criar meu filho?
Jonas estava cansado demais para se importar com a ofensa.
- Não ouviu que acabei de dizer que você vai morrer?
- Mereço morrer por tudo o que fiz. Com certeza não escolheria nem aqui nem agora, mas sabia que a hora estava chegando. Aceito que não tenho escolha. - Ela gritou de novo. - E você deve aceitar seu destino,
porque acho que você também não terá escolha.
Ele bufou.
- Eu deveria deixar você aqui e dar as costas para tudo isso. Mas não farei isso.
- Ótimo.
- Você tem certeza de que realmente é agora?
Ela assentiu.
- Tenho certeza.
Jonas a segurou no colo e tentou encontrar abrigo na floresta deserta antes que o céu desabasse. Ele tirou o manto que vestia e o usou para cobrir Lucia e esquentá-la.
- Não sei o que fazer - ela disse.
- Aprendi uma coisa com minha mãe quando era criança - Jonas respondeu. - Ela ajudava outras mulheres a dar à luz em nosso vilarejo. E dizia que a natureza tem um jeito de fazer acontecer, quer saibamos
o que estamos fazendo ou não. Mas acha que pode fazer alguma coisa para aliviar a dor com sua magia da terra?
Lucia balançou a cabeça.
- Estou esgotada. Fraca. Minha magia se foi. Timotheus tinha razão. Agora entendo por que ele não queria me contar. Ele me fez acreditar que eu poderia impedir Kyan, mas agora vejo que essa missão é sua.
- Ela deixou na mão de Jonas. Ele olhou para baixo e viu que era uma esfera de âmbar. - Kyan precisa ser aprisionado de novo. Você tem magia dentro de si, Jonas. Tudo faz sentido agora. - Enquanto falava,
sua voz foi ficando cada vez mais fraca até ficar quase inaudível com o estrondo da tempestade. Ele se esforçou para se apoiar no chão cheio de lama quando se agachou ao lado da princesa.
- Você acha que posso aprisionar um ser como ele? Você é a feiticeira profetizada.
- Não por muito tempo pelo jeito. Jonas... - Ele teve que se aproximar para ouvi-la sussurrar. - Diga a meu irmão e a meu pai... diga a eles que sinto muito por tê-los magoado. Diga que eu os amo e que
sei que me amaram. E diga... diga ao meu filho, quando ele for grande para entender, que o bem existia dentro de mim. - Ela sorriu sem forças. - Bem no fundo, pelo menos.
Jonas tinha começado a acreditar nisso, por isso não tentou discutir com ela.
- Você será um bom pai para meu filho - Lucia disse. - Pode não acreditar agora, mas eu vejo. Você é forte, sincero e trabalhador. Faz o que acha que é certo, ainda que isso custe muito caro.
- Não esqueça que sou lindo.
Ela sorriu.
- Isso também.
Ele balançou a cabeça, querendo discutir. Ele não era forte nem fazia o que era certo. Muitos de seus amigos tinham morrido por causa de suas escolhas e de seus planos.
Lucia segurou a mão dele. Sua pele estava muito fria; ele ficou chocado ao perceber.
- Você nasceu para ser grande, Jonas Agallon. Consigo ver seu destino tão claramente quanto Timotheus.
- Escute - Jonas disse, afastando o cabelo comprido e molhado da testa de Lucia -, nunca acreditei em magia nem em destino até um ano atrás.
- E agora?
- Acredito em magia. Em feiticeiras más que no fundo são princesas muito lindas. Acredito em imortais que vivem em um mundo diferente deste, acessível por rodas de pedra mágicas. Mas sabe no que não acredito?
- Não.
- Me recuso a acreditar que não temos controle sobre nosso futuro, porque no momento, vou controlar o meu. Não quero ser pai. Ainda não, pelo menos.
- Mas você precisa ser! Meu filho está...
- Seu filho vai ficar bem. E você também. - Ele apertou a mão dela. - Você disse que Ioannes ensinou você a roubar magia. Então roube a minha. Roube o suficiente para se curar, para passar por esse parto
sem morrer. Faça isso, e pode mandar Timotheus se lascar quando chegar a hora de assumir seu futuro no pequeno santuário dele.
Lucia o encarou confusa por um momento.
- Não é assim que deve ser.
- Exatamente - ele disse, sorrindo. - Não gosta da ideia de poder escolher seu futuro?
- Eu... eu não sei se consigo.
- Tente - ele disse. - Tente e pare de discutir sobre cada coisa que digo, droga!
A expressão de medo de Lucia foi substituída pela fúria.
- Você é muito grosseiro comigo!
- Ótimo. Fique brava comigo... tão brava que possa roubar minha magia. Pode me estapear por ser grosseiro mais tarde. Vamos, princesa. Pegue a magia.
Ela franziu a testa enquanto se concentrava. Isso vai funcionar, Jonas pensou. Tem que funcionar.
E então ele sentiu - uma sensação de esgotamento que o fez ofegar. Não era dor, exatamente. Parecia mais uma força magnética puxando suas entranhas.
Seus batimentos cardíacos começaram a diminuir e sua visão começou a escurecer.
- Faça um favor - Jonas conseguiu dizer.
- Qual? - Lucia perguntou, e ele notou que a voz dela já soava mais forte, enquanto ele se sentia mais fraco e mais gelado.
- Tente não... me matar...
Quando acordou com a chuva ainda encharcando seu corpo, Jonas percebeu que tinha desmaiado. O manto molhado tinha sido jogado sobre ele como um cobertor, e lenta, muito lentamente, ele conseguiu sentar.
- As tempestades costumam durar tanto assim por aqui? - Lucia perguntou.
Jonas olhou para ela. Lucia segurava um pacotinho nos braços.
- Tem... tem um bebê aí.
- Tem. - Ela inclinou o pacotinho o suficiente para que ele conseguisse ver um rostinho rosado olhando para ele.
- Um bebê, sem dúvida - ele disse, assentindo. - Você está viva.
- Graças a você. Não sei dizer como estou grata, Jonas. Seu sacrifício salvou minha vida.
- Sacrifício? - ele repetiu. - Não foi sacrifício nenhum. Nunca quis ter essa magia.
- Bem, não peguei toda a sua magia. Como você pediu, não quis matá-lo. Afinal, você prometeu que eu podia estapeá-lo quando me sentisse melhor. - Ela sorriu. - Estou ansiosa para fazer isso.
Ele tentou não rir.
- Eu também.
- Parece que Timotheus estava enganado sobre muitas coisas - Lucia disse. - E o destino não está traçado, como você disse.
- Muitas coisas? Sobre o que mais ele estava enganado?
- Sobre o meu filho. - Ela beijou a testa do bebê. - É uma menina, na verdade.
- Uma menina? - Jonas não conseguiu conter o sorriso ao ouvir aquilo. - Muito bem, princesa.
- Por favor, pode me chamar de Lucia. Acho que você conquistou esse direito.
- Certo. O que vamos fazer agora, Lucia? - ele perguntou.
- Ela tem nome. Quer saber qual é?
Ele assentiu.
- Dei a ela o nome de Lyssa - Lucia anunciou, encarando-o. - Em homenagem a uma garota corajosa chamada Lysandra que eu gostaria de ter conhecido.
Os olhos de Jonas começaram a arder.
- Um excelente nome. Eu aprovo - ele disse, engolindo o nó que tinha se formado em sua garganta. - Certo. Antes que você destrua o resto de Paelsia, vamos encontrar uma hospedaria para você e para Lyssa,
assim você vai recuperar o resto de suas forças.
32
CLEO
PAELSIA
Cleo observou os rostos que a cercavam no fosso de pedra com o coração na boca. Não era para ser assim. Não sabia ao certo como pretendia deter Amara, pegar os cristais da Tétrade e salvar a todos, mas
não era daquele jeito.
- Não tema, pequena rainha. Estou com você.
Ela perdeu o fôlego. De algum modo, Kyan ainda achava que eles estavam juntos naquilo. Mas por que precisaria dela? Ela nunca tinha se sentido tão impotente como naquele momento, mesmo cercada por jovens
fortes que normalmente seriam mais do que capazes de protegê-la de qualquer mal.
Menos Magnus. Cleo sentiu o estômago revirar. Onde ele estava? Preso em outro lugar? Mas onde?
Ela observou Selia levitar devagar, entrando no fosso como se estivesse de pé sobre uma plataforma invisível de magia do ar. Ela torcia para Felix, Taran e Enzo não serem tolos a ponto de tentar atacar
a bruxa. Cleo não tinha dúvidas de que fracassariam rápido.
Felizmente, eles não se mexeram.
- Há quanto tempo planeja isso, mãe? - o rei Gaius perguntou de onde estava. Ele não tinha movido nem um centímetro desde que Cleo e Amara foram jogadas dentro do fosso.
- Há muito tempo, meu filho - Selia respondeu, passando os dedos pelo pingente de serpente. - Minha vida inteira, ao que parece.
- Foi a senhora quem me ensinou sobre a Tétrade, a me empenhar em encontrar os cristais.
- Sim. E você aceitou essa promessa de poder como eu esperava que faria.
- Mas a senhora não me contou tudo.
Selia encarou o filho.
- Não. Tive que guardar segredo até agora.
- Quando eu era mais jovem, achava que a senhora só queria a magia da Tétrade, como qualquer pessoa que tinha ouvido a lenda. Mas sempre foi mais do que isso, não foi? Queria ajudar a libertá-los.
Ela se agachou ao lado de Gaius e tocou seu rosto.
- Eu não estava mentindo para você. Você vai dominar o mundo, só que de um jeito diferente do que planejei. O deus do fogo precisa de um novo veículo corpóreo. Acredito que só você é grande e digno o suficiente
para ter esse poder onipotente dentro de si.
Antes que o rei pudesse responder, Cleo sentiu um sopro de vento quente passar por ela.
- Não, pequena bruxa - Kyan disse. - Esse rei caído não serve. Ele está velho demais. Doente demais.
- Quem disse isso? - Nic perguntou, observando em volta.
Cleo arregalou os olhos para ele.
- Você também consegue ouvi-lo?
Nic assentiu.
- Também consigo - Taran disse, observando o fosso. Felix e Enzo estavam ao lado dele, com uma expressão tensa, mas concordando.
- Só por que eu permito - Kyan disse. - Como o irmão da pequena imperatriz disse antes, não há mais motivos para me esconder.
- Gaius está melhorando, Kyan - Selia garantiu. - Foi ferido gravemente e quase morreu. Vai demorar para se curar por completo, mas está progredindo.
- Não. Eu quero um veículo diferente.
- Claro. - Selia franziu a testa, o único sinal de decepção ao olhar para os outros. - E este kraeshiano, o príncipe Ashur? Jovem, bonito, forte...
- Não, repito. Preciso de alguém já possuído por uma alma de fogo. - Eles ficaram em silêncio por um momento enquanto a sensação de calor tomava conta do espaço do fosso. - Este. Sim, este é perfeito.
Sinto a grandeza dentro dele, a grandeza protegida do mundo.
Quem?, Cleo pensou desesperada. Não havia como saber a quem o deus do fogo se referia.
- Então vamos começar - Selia disse.
A bruxa estendeu a mão e as três esferas de cristal que Amara tinha escondido no bolso da túnica voaram pelo fosso e foram parar nas mãos de Selia.
Cleo observou, tensa, quando a bruxa deixou a água-marinha, a obsidiana e a selenita com cuidado no centro do fosso.
- Onde está o cristal de âmbar? - Selia perguntou.
- Não está aqui - Kyan respondeu.
- Onde está?
- Já estou liberto de minha prisão, não preciso mais do cristal. O ritual deve funcionar sem ele. Continue.
Selia tirou a corrente prateada do pescoço e Cleo percebeu, chocada, que o grande pingente de serpente que usava não era apenas uma joia - era um recipiente com uma pequena rolha.
A bruxa inclinou o recipiente de prata sobre os três cristais para despejar um líquido vermelho sobre eles. A cada gota, as esferas clareavam, brilhando por dentro.
- Você tem o sangue de Lucia - o rei perguntou, com a voz rouca. - Como?
Ela levantou uma sobrancelha.
- Tirei sangue dela quando era criança, antes de meu exílio. Só precisei de um pouco de magia da terra para mantê-lo fresco todo esse tempo. - Selia olhou para Olivia. - Venha aqui e estenda o braço.
Olivia foi em direção a Selia e fez exatamente o que foi mandado. A bruxa pegou uma adaga e cortou o braço da imortal. Quando o sangue de Olivia se uniu ao de Lucia sobre as esferas, as pedras brilharam
ainda mais.
Cleo quis se atirar para a frente, derrubar a adaga da mão da bruxa, mas sabia que seria a última coisa que faria. Sentia-se totalmente impotente ao observar aquele ritual sombrio acontecer diante de seus
olhos.
Mas, apesar da raiva que sentia de Magnus por tantas coisas, Cleo sabia que ele não deixaria o complexo se conseguisse escapar dos guardas de Amara de novo. Ele não se concentraria em salvar apenas a si
mesmo.
Não. Ele interviria quando parecesse que não havia mais esperança.
Será que tinha compreendido o sinal que ela tinha tentado passar ao pedir para ser chamada de Cleiona? Ela precisava que Magnus soubesse que ela tinha tentado se aliar a Amara apenas por necessidade. Cleo
pretendia usar aquela aliança para reaver seu poder.
Para reaver o poder de Magnus também.
A tempestade se tornou mais violenta. A chuva começou a cair sem parar, encharcando Cleo.
Selia levantou as mãos, olhos brilhando. Os cristais se acendiam como pequenos sóis. Cleo se assustou e ficou ofegante quando os filetes de magia que estavam dentro das esferas saíram.
Três cristais. Mas havia quatro filetes espalhados pelo ar ao redor deles: vermelho, azul, branco e verde.
Por que Selia pensava que a esfera de âmbar era necessária para o ritual se Kyan já estava ali?, Cleo se perguntou. Importava? Poderia fazer diferença para deter aquilo?
- Deus do fogo - Selia disse. - Você escolheu. Agora está na hora de entrar em seu novo veículo de carne e osso.
O filete de magia vermelho vivo rodopiou com força pelo fosso até finalmente entrar no peito de Nic.
- Nic, não! - Cleo gritou.
Nic arregalou os olhos e gritou. Engasgando, ele caiu no chão.
Em seguida, seu querido amigo virou aos poucos para encará-la.
- Nic - Cleo chamou, ofegante. - Você está bem?
Ele franziu a testa.
- Assumi o nome de meu último hospedeiro, Kyan. Gosto mais do que de Nic. Vou mantê-lo.
Ela o observava incrédula.
- O que foi? O que você fez? Nic, está me ouvindo? Você precisa lutar contra isso!
- Nic se foi - o garoto que se parecia com Nic lhe informou. - Mas garanto a você que ele foi sacrificado pelo bem do mundo.
Lágrimas quentes escorreram pelo rosto dela. Seu amigo tinha acabado de voltar para ela e agora partira de novo.
- Deusa da terra - Selia chamou, tirando a atenção que Cleo dava a Nic. - Está livre. Escolha seu veículo de carne e osso.
O filete verde de magia rodopiou pelo fosso, e dessa vez todo mundo deu um passo para trás, observando com medo.
Olivia ficou ofegante quando a magia entrou em seu corpo.
Nic... ou Kyan... ou... - Cleo não sabia o que pensar - foi diretamente até Olivia e segurou suas mãos.
- Irmã?
- Sim. - Ela o encarou no fundo dos olhos. - Você fez o que prometeu. Estou livre, finalmente!
- Sim. E escolheu um ótimo veículo.
- Qual era o nome dela? - a deusa perguntou.
- Olivia - o deus do fogo respondeu.
- Olivia - ela repetiu, assentindo. - Sim, Olivia será meu nome de agora em diante.
- Mãe. - Gaius tinha andado até ficar ao lado de Selia, o cabelo preto molhado jogado para trás.
- Sinto muito, meu filho - ela respondeu, balançando a cabeça. - Você está com a pedra sanguínea. Vai ter que bastar.
Ele assentiu.
- Você sempre me põe em primeiro lugar, não importa o que tenha que fazer.
Selia o observou.
- Eu não devia ter feito o que fiz com Elena. Vejo agora que isso machucou você mais do que pensei que machucaria. Só queria que você fosse livre.
- Eu sei. E você estava certa. Meu amor por ela confundiu minha cabeça e ameaçou destruir minha sede por poder. - Gaius segurou o rosto dela com delicadeza entre as mãos e se inclinou para beijar sua testa.
- Obrigado por me ajudar a me tornar o homem que sou hoje.
Ela tocou a mão do filho, e então franziu a testa.
- Espere. Onde está o...?
Virando-se depressa, ele quebrou o pescoço da mãe e deixou o corpo cair no chão.
Kyan olhou para a bruxa e depois olhou furioso para o rei.
- O que você fez?
- Interrompi seu ritual egoísta - Gaius disse, observando o corpo da própria mãe. - Eu sabia que havia um bom motivo para eu ainda não tê-la matado.
Kyan observou para os dois filetes de magia restantes com raiva nos olhos castanhos e furtivos.
- Pequena rainha, preciso de você agora. Preciso do sangue de um descendente de feiticeira... de seu sangue. A magia dele bastará por ora. Depois, encontrarei outra Vetusta obediente para selar o que foi
feito aqui.
Ele estava ao lado de Cleo, segurando a adaga de Selia.
- Darei a você seu trono. Toda Mítica. Todo este mundo e mais. O que quiser.
As lágrimas se misturaram com a chuva que escorria pelo rosto de Cleo.
- Me dê a adaga.
Ele fez o que ela pediu e Cleo olhou para a adaga em sua mão, sabendo que tinha que fazer aquilo, sabendo que não havia escolha.
Kyan não podia sair dali, independentemente do corpo que tivesse roubado. Mas assim que ela levantou a adaga para cravar a lâmina no coração de Nic, Ashur segurou seu braço.
Ela o encarou enquanto a chuva caía torrencialmente sobre eles.
- Não - Ashur disse. A resposta não deixava espaço para discussões. Ele apertou seu braço até Cleo ofegar de dor e largar a arma.
Quando Cleo virou para Kyan de novo, ele lhe deu um tapa tão forte que seu corpo girou e bateu na parede do fosso.
- Você me decepciona, pequena rainha - ele vociferou.
Magnus, ela pensou em pânico. Agora seria o momento perfeito para você salvar o dia.
As paredes do fosso começaram a ruir. Os filetes azuis e brancos de magia - os deuses da água e do ar - continuavam a rodopiar pelo fosso.
- Irmão, temos um problema - Olivia, agora possuída pela deusa da terra, vociferou. - Os outros estão prontos e o tempo está acabando. Como terminar o ritual sem uma bruxa para nos ajudar?
Como se fosse uma resposta, o filete branco foi em direção ao hospedeiro escolhido, entrando no peito de Taran. Ele arfou e caiu de joelhos.
Antes que Cleo pudesse dizer alguma coisa, gritar ou se afastar do rebelde, o filete azul apareceu em sua frente.
Parecia que ela tinha sido atingida por uma onda de dez metros de altura que a jogou para trás e a afogou com a água salgada.
A divindade da água a tinha escolhido como veículo.
Cleo olhou para cima, para o céu tempestuoso, e a chuva a molhava enquanto se esforçava para manter o controle sobre o próprio corpo. Sabia que não podia fraquejar naquele momento, mas como lutaria contra
uma divindade?
- Vamos voltar para consertar isso - Kyan vociferou com raiva antes de se transformar em uma coluna de chama e sair do fosso. Olivia, lançando um olhar de ódio a Cleo, desmoronou como se fosse feita de
areia e desapareceu no chão.
Taran estava ao lado de Cleo, ajudando-a a sentar.
Ela o encarou, confusa.
- Taran...
- Você ainda é você? - ele perguntou. Ela não respondeu, e Taran a chacoalhou com força. - Responda. Você ainda é você?
Ela assentiu.
- Eu... ainda sou eu.
- Eu também sou. - Taran franziu a testa e estendeu a mão direita. Uma espiral simples, a marca da magia do ar, estava na palma da mão dele, como se tivesse sido gravada ali.
Cleo olhou para a palma da mão esquerda e viu duas linhas onduladas paralelas que indicavam o símbolo da água.
- A bruxa morreu antes de torná-la permanente em nós - ela disse. - Temos a magia elementar dentro de nós, mas não perdemos a mente nem a alma.
Ele analisou o rosto de Cleo, franzindo a testa.
- Você acha mesmo?
Ela balançou a cabeça com a mente confusa.
- Não sei. Não tenho certeza de nada no momento.
Cleo procurou Magnus de novo, espiando à beira do fosso e esperando que ele aparecesse de repente. O príncipe não apareceu, e ela estendeu a mão para Taran.
- Ajude-me a subir.
Taran obedeceu.
- O que acontece?
A chuva ainda os castigava. Novos guardas chegaram e olharam para o grupo no fundo do fosso.
- Imperatriz? - um deles perguntou, hesitante.
Amara desviou o olhar chocado de Cleo, franzindo a testa, e virou para os homens.
- Tirem-nos daqui.
Os guardas pegaram uma escada, que afundou na lama do fundo do fosso. Um por um, o grupo saiu em silêncio. Com a perna quebrada, Amara precisou de dois guardas para auxiliá-la.
- Kyan queria matar todo mundo. - Amara explicou fora do fosso, sem qualquer emoção na voz. - Isso, com a magia da bruxa, teria tornado o ritual permanente.
- E você concordou com isso... em matar todos nós - Felix comentou, os punhos cerrados. - Por que não estou surpreso?
Amara se encolheu.
- Não aconteceu, não é?
- Você não ajudou em nada - ele disse com uma expressão feroz. - Não se preocupe, vou cuidar para que você pague pelo que fez hoje.
- O que isso significa? - Nerissa perguntou. Enzo estava ao lado dela de modo protetor, a mão em sua cintura. - Nada que a bruxa fez é permanente? Nem mesmo com Nic e Olivia?
Amara balançou a cabeça.
- Não sei.
- Você me impediu - Cleo disse a Ashur, que não tinha dito nada desde que eles saíram do fosso.
- Você ia apunhalar Nicolo. Eu não podia permitir isso.
- Ele se perdeu - a voz dela falhou. - Ele se foi.
- Tem certeza? - A expressão dele ficou mais séria. - Eu não tenho. E se houver um jeito, vou trazê-lo de volta para nós. Está ouvindo?
Ela só conseguiu assentir, esperando que Ashur estivesse certo.
O rei foi o último a sair do fosso.
- Onde está meu filho, Amara? - Gaius perguntou.
- Também não sei - Amara respondeu.
A ausência de Magnus por tanto tempo não era normal. Ele já tinha que ter sido encontrado.
- Você precisa encontrá-lo - Cleo disse, e uma nova onda de pânico cresceu dentro dela.
- Vou fazer isso - disse Amara.
- Mas você não parece se importar. Ouça com atenção: você precisa encontrá-lo.
- Ele deve estar morto - Amara disse sem rodeio. Em seguida, ela engasgou e começou a cuspir água. - O que... o que você está fazendo?
Cleo percebeu que suas mãos estavam tão fechadas que as unhas afundavam na pele. Ela tinha a sensação de estar girando. Forçou-se a abrir a mão e viu que o símbolo da água tinha começado a brilhar.
Magia da água. A divindade da água estava dentro dela, mas não no controle de suas atitudes.
Ela sentiu algo quente embaixo do nariz e quando tocou o rosto, viu que era sangue.
- O poder de um deus dentro de um mortal - Gaius disse surpreso. - Sem o ritual finalizado... é uma posição perigosa para você, princesa. Para você também, Taran. Mas tem razão: precisamos encontrar meu
filho.
Nerissa deu um passo para a frente, segurando as mãos de Cleo com hesitação e apertando-as. Cleo viu seu olhar angustiado.
- Vi um guarda agredi-lo, princesa - ela sussurrou, balançando a cabeça. - Ele bateu no príncipe com força e o arrastou para longe. Eu... eu temo que Amara possa estar certa. Sinto muito.
Cleo encarou a amiga, seus olhos ardiam.
- Não - ela disse. - Não, por favor, não. Não pode ser verdade. Não pode ser.
Taran e Felix se entreolharam preocupados. O rebelde olhou para baixo com nervosismo, para a palma da mão, onde estava o símbolo da magia do ar.
- Por que se importa com o destino de Magnus, Cleo? - Amara perguntou, com a voz trêmula como Cleo nunca ouvira. - Pensei que você o detestasse.
- Você está enganada. Não o detesto - Cleo disse em voz baixa. E então, mais forte: - Eu o amo. Amo Magnus do fundo do coração. E juro, se ele... morrer... perdi Nic e Magnus hoje... - Sua voz falhou quando
virou para a frente, vendo que os outros a observavam com medo no olhar. A sensação da forte magia da água fluía sob a superfície de sua pele, como se esperasse ser libertada. - Acho que este mundo não
sobreviverá à minha dor.
33
MAGNUS
PAELSIA
Magnus piscou e abriu os olhos, franzindo a testa, confuso com a dor que sentia nos braços. Demorou um pouco para perceber que estava deitado. Seus braços estavam erguidos acima da cabeça, presos e acorrentados
ao teto.
Ele estava em uma sala escura iluminada apenas por algumas tochas.
- Ele despertou. Finalmente. Eu estava prestes a mandar buscarem sais aromáticos.
Ele franziu a testa, sem entender, ainda zonzo.
- Olá, meu velho amigo. - A voz era familiar. Dolorosamente familiar.
E então, entendeu tudo muito bem.
- Kurtis - Magnus disse, sentindo gosto de sangue na boca. - Que incrível vê-lo de novo.
- Ah, você diz isso, mas, no meu coração, sei que está mentindo. - O ex-grão-vassalo deu uma volta lenta ao redor de Magnus com um sorriso contido.
- O que você fez com Nerissa e Nic?
- Não se preocupe com eles, amigo. Preocupe-se consigo mesmo.
Magnus tentou entender onde estava observando ao redor. Era difícil, uma vez que um de seus olhos estava inchado e fechado.
- Vi sua adorável esposa mais cedo - Kurtis disse. - Ela não me viu, claro. Por causa de como as coisas ficaram entre nós, acho que Cleo pode estar irritada comigo.
- Não ouse falar o nome dela - Magnus resmungou.
Kurtis parou na frente de Magnus e inclinou a cabeça, ainda com aquele maldito sorriso.
- Cleo. Cleo, Cleo, Cleo... Sabe o que vou fazer com ela? Eu adoraria, de verdade, que você pudesse estar presente para ver.
Ele se inclinou para a frente e sussurrou no ouvido de Magnus uma lista de horrores que faria qualquer pessoa - homem ou mulher - implorar para morrer muito antes do alívio finalmente chegar.
- Juro pela deusa - Magnus disse -, que vou matar você muito antes que encoste um dedo nela.
- Achei que estava chegando perto de fazer isso quando ministrava aulas de arco e flecha à princesa. Sei que você nos observava. Era ciúme no seu olhar? Parece que os boatos de ódio entre vocês estão longe
de ser verdade, não é? Mas por que se importa com o destino dela? Ela traiu você por uma chance de se alinhar com a imperatriz.
- Eu não me importaria nem um pouco se ela me traísse para se alinhar com todos os demônios das sombras, mas mato você se olhar para ela de novo.
- Mas, em sua atual situação... - Kurtis olhou para as correntes. - Eu gostaria muito, muito, de vê-lo tentar.
- Quer me torturar? Uma espécie de vingança pelo que fiz com você?
- Isso, quero torturar você. E depois quero matar você bem devagar. - Ele levantou o coto onde antes ficava sua mão. - E o aconselharia a economizar saliva em vez de implorar por sua vida. Vai precisar
dela para todos os gritos que vai soltar.
No fundo, o príncipe conhecia a verdade do que via nos olhos de Kurtis. Não haveria misericórdia ali. Mas Magnus Damora não imploraria pela própria vida.
- Eu seria um aliado vivo melhor do que um inimigo morto - ele disse. - Lembre, você é, no momento, um limeriano no meio de milhares de kraeshianos e de dezenas de milhares de paelsianos.
Kurtis mostrou os dentes em um sorriso sinistro.
- Um problema por vez, meu velho amigo. Diga, quando você voltou ao palácio e me tirou do trono, eu poderia ter jurado que seu braço estava quebrado. Foi sua irmãzinha feiticeira quem o curou?
- Talvez eu tenha alguns truques próprios que você não conhece - Magnus blefou.
- Para ser sincero, espero que tenha. - Kurtis olhou para os dois guardas kraeshianos que estavam atrás dele nas sombras. - Quebrem os dois braços dele, por favor. E acho que a perna direita também.
Os guardas avançaram sem hesitar.
- Kurtis - Magnus disse, alternando o olhar entre o grão-vassalo e os guardas que se aproximavam. - Você acha que vai me matar aqui hoje, e ninguém vai ficar sabendo?
- Hoje? Você acha que vou matar você hoje? Não. Sua morte deve demorar para você sofrer bastante. - Ele meneou a cabeça. - Até logo.
Magnus jurou para si mesmo que não ia implorar. Não pediria.
Mas Kurtis estava certo em relação aos gritos.
Quando Magnus abriu os olhos, viu um pedaço da lua no céu escuro. A consciência era sinal de que estava vivo, mas também trazia uma dor sem fim devido às lesões causadas pelas ordens sádicas de Kurtis.
Onde estava? Do lado de fora, sim. Se via a luz da lua, estava do lado de fora. E ainda estava em Paelsia, já que o ar frio não combinava bem com o frio severo de Limeros, nem com o calor de Auranos.
Percebeu que estava em uma caixa de madeira.
- O que é isso? - ele perguntou.
- Você está acordado - Kurtis disse, e seu rosto odioso apareceu diante de Magnus. - Você dorme pesado. Como um morto, devo dizer.
- Eu... não consigo me mexer.
- Imagino que não. Você está péssimo, meu amigo. Mas é forte. Já vi esse tipo de tortura matar homens e mulheres. Muito bem.
- Você é um lorde e um grão-vassalo, Kurtis. Um limeriano. Também é ridículo, um merda, mas precisa perceber que o que está fazendo é errado. Ainda dá tempo de parar.
- Todos esses elogios, Magnus, estão entrando em minha mente. Nunca gostei de você, mas eu o tolerava por causa do poder de seu pai. Agora esse poder não existe mais, assim como minha mão. Tudo devido
a ordens. - Kurtis arregalou os olhos e seu rosto ficou vermelho. - Diga, o boato de que você tem medo de lugares pequenos e fechados é verdadeiro?
- Não, não é.
- Imagino que logo se tornará verdade. - Kurtis sorriu. - Guardarei essa lembrança pelo resto da vida, meu velho amigo. Adeus.
Magnus tentou sentar, mas a dor tomou conta de seu corpo, cegando-o como um raio.
E então, veio a luz, a noite, e Kurtis Cirillo desapareceu quando uma tampa de madeira se fechou sobre ele.
Um caixão. Ele tinha sido colocado dentro de um caixão.
Pregos foram martelados. Magnus sentiu que estava sendo levantado por um milésimo de segundo, e então desabou com força, batendo as costas no fundo de madeira.
E então veio o raspar de pás e a batida leve da terra enchendo a cova enquanto Kurtis e seus guardas leais o enterravam vivo, debaixo da terra paelsiana.
Morgan Rhodes
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