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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEMPESTADE SOBRE A CIDADE / Máximo Gorki
TEMPESTADE SOBRE A CIDADE / Máximo Gorki

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A meio do vale, sulcado em todas as direcções por estradas cinzentas, ergue-se Okuroff, pequena cidade de casas tão juntas que dir-se-ia um engenhoso brinquedo sobre a palma da mão, larga e enrugada.
Divide a cidade em duas partes iguais - Shikane, o bairro da elite, e Saretz, o reino da vagabundagem - o Putanitza, que nasce algures, lá longe, na Floresta Negra, qual ribeira preguiçosa e lenta, serpenteando, em busca da cidade, por entre colinas cobertas de terra lavrada.
Depois de atravessar a cidade o rio segue, mais lento ainda, na direcção de Sudeste, tornando-se pouco a pouco mais baixo, para ir perder-se, já cor de ferrugem, nos pântanos de Lakhoff e nas ilhotas selvagens semeadas de pinheiros franzinos, que se estendem, em fileiras cerradas, até ao infinito. A Leste, aqui e além, no alto das colinas, contorcidas e desfolhadas pelas intempéries, velhas árvores ladeiam a estrada principal que conduz à sede do concelho.
Mercê da abundância de água na região, a atmosfera, na estação quente, satura-se de uma humidade tépida e aromática, o céu torna-se quase sempre pálido e velado, o sol embacia-se, e o crepúsculo surge estranhamente purpúreo. A Lua, quando aparece, apresenta uma face enorme, vermelha como carne viva.
No Outono, nuvens de um cinzento plúmbeo pairam sobre a cidade durante longas semanas, vertendo torrentes de água sobre os telhados das casas; violentas correntes cavam sulcos profundos nas estradas, o rio torna-se arruivado e sem graça. A cidade morre, envolvida por um silêncio morno; os seus habitantes saem de casa por necessidade, ou aguardam, docilmente, nos seus cantinhos aquecidos, a chegada do Inverno, ou entregam-se a certas ocupações, fazer malha, jogar cartas ou ler - conforme o gosto de cada um - livros santos ou profanos. Mas vem um dia em que a neve começa a cair, cobrindo pouco a pouco as ruas e as casas, que chegam a confundir-se, como que ocultas por toalhas brancas. Chegada a noite e adormecida a cidade, saem os lobos; ecoam os seus uivos pelo vale, sob um céu opaco constelado de estrelas, entre as quais resplandece Vénus, a estrela do pastor, tão grande e tão verde que parece uma esmeralda.
Nesta altura, a cidade oferece o aspecto de uma cruz tumular, em que a parte de baixo é ocupada por um convento de religiosas e pelo cemitério, e a de cima pelos subúrbios de Saretz. No braço da esquerda situa-se a prisão, parda, vetusta, enquanto no da direita se estende a vasta propriedade dos Bubnoff, outrora uma das famílias mais ricas da região. Presentemente, o velho palácio encontra-se em ruínas. As asnas do telhado sobressaem tanto que parecem costelas salientes de um cavalo tísico; as janelas escondem-se por detrás de pranchas cheias de fendas, que revelam bem toda a odiosa desolação em que caiu esta antiga residência senhorial, vestígios solenes e simultaneamente sórdidos do seu antigo esplendor.
Shikane conta cerca de seis mil habitantes Saretz não chega a ter setecentos. Na margem esquerda, além do convento de religiosas, há ainda duas igrejas: a catedral, nova, alva e elegante, e a velha igrejinha de São Nicolau, com cinco cúpulas de cores diferentes, os seus contrafortes de tijolo e o seu relógio bojudo, que nos faz recordar uma saia de balão, de fundo azul e listas amarelas.
Os habitantes de Shikane foram sempre tidos por pessoas acivas e empreendedoras. São comerciantes, na sua maioria. Exercem toda a espécie de comércio, não lhes faltando uma feira regional; compram ou vendem, por grosso ou por miúdo, ovos, manteiga, forragem, gado, cânhamo e outras mercadorias. As mulheres e as filhas confeccionam malhas com lãs multicolores, desde peúgas, chinelas, camisolas e coletes a sacos de viagem e a colchas. Ainda pequenas aprenderam a fazer tudo isso no convento, cujas aulas quase todas frequentaram. A cidade é conhecida pelas suas malhas e lãs, que dali saem para quase toda a parte. E, quem sabe, talvez o gosto que nutrem pelas cores vivas, como o demonstram as casas em que moram, tenha a sua origem no garrido das lãs com que trabalham.

 

 

 


 

 

 


A rua principal de Shikane é calcetada de grossos calhaus. Na Primavera, logo que por entre essas pedras pardas começa a crescer com vigor a erva miúda, imediatamente o presidente do município manda vir os presos para que a arranquem. Esses homens, cabisbaixos, silenciosos, rastejam durante dias e dias pela rua, de uma ponta a outra, limpando-a dessa erva daninha.
É nessa rua que se encontram alinhados os melhores edifícios do burgo: a vila branca, de telhados semeados de pequenas torretas, que pertence a Vogel, o regedor; a casa de tijolo, com persianas amarelas, onde habita o presidente da câmara; a pequena residência cor-de-rosa, do sacerdote; e uma longa enfiada de outras habitações, qual delas a mais janota, a mais confortável.
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A cidade regurgita de árvores, pequenas e grandes. Bordos, acácias, lilases e sorveiras escondem com coquetismo as fachadas dessas vilas, tapando quase por completo as pequenas janelas de alvas cortinas, onde há gerânios, begónias e gaiolas de pássaros.
Longo quarteirão, povoado de tílias, de acácias e de salgueiros delimita a margem ruiva e escarpada de Shikane, bordejada de ruínas de muralhas de antigas fortalezas. A meio do quarteirão, algumas das pessoas de maior importância ali residentes mandaram construir, à sua própria custa, um quiosque todo vermelho, encimado por um mastro, onde nos dias de festa é posta a flutuar, alegremente, a bandeira nacional. Entre o quiosque e o rio, duas escadas de pedregulhos conduzem aos numerosos banhos particulares ou públicos. As barracas projectam sombras multicolores na ondulação das águas, que parecem banhar, docemente, as lonas brancas, vermelhas e azuis.
Na outra margem, baixa e areenta, os aglomerados sombrios de Saretz - os casebres enegrecidos pelo tempo, com tufos de musgo verde sobre os telhados de madeira carcomida, os tugúrios, enterrados de esguelha na areia fitam-se hostilmente, enquanto o rio parece reflectir, contra vontade, as janelas de vidros opalinos, que mais parecem olhos embaciados pela cegueira. Entre estas lúgubres habitações, devastadas pelo tempo e razoavelmente danificadas pelas
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frequentes ofensivas do rio, ergue-se uma capela de tijolo, erigida em honra do santo russo Alexandre Nevsky. Foi construída por um antepassado dos riquíssimos Bubnoff, exactamente no mesmo local onde, exilado para Tobols pelo czar Paulo I, foi alcançado por um correio do novo czar, que lhe pedia que regressasse imediatamente a São Petersburgo. Presentemente, um terço da capela, invadida pela areia, encontra-se como que soterrado por toda a espécie de imundícies. Além disso, conta com inúmeras brechas, pois os habitantes de Saretz utilizam-se dos tijolos como projécteis sempre que deles necessitam para as suas rixas, famosas na região, ou para repararem as chaminés das suas moradas, A cruz da capela, outrora belamente doirada, inclina-se hoje, tristemente, sobre a cúpula, prestes a desmoronar-se. No bairro não existe qualquer outra construção de relevo, à excepção do pequeno "Paraíso de Feliçata", casa de passe situada em local afastado, no caminho que desce em direcção ao rio.
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II
Quando as chuvas da Primavera desabam com toda a violência sobre a cidade, o rio transborda, invadindo as ruas e os caminhos de Saretz e obrigando os seus moradores a subir às águas-furtadas ou a instalarem-se nas clarabóias das casas. Nessa altura aproveitam a circunstância para pescar à linha, o que fazem desde que o dia nasce até que o sol se põe. Outros atravessam as ruas inundadas, utilizando jangadas improvisadas com portas arrancadas dos gonzos; outros, ainda, apanham toda a madeira que as águas impetuosas arrastam, depois de arrancada ao bosque, disputando entre si a posse dessa presa, ou, a coberto da noite, vão arrancando uma a uma, e a maior parte das vezes por maldade, as tábuas que formam os lados da ponte que liga o bairro à cidade.
Os meses da Primavera, Verão e Outono, isto é, durante as três quartas partes do ano, passam-nos os saretzenos a colher legumes e cogumelos, ou a caçar pássaros que vendem na cidade. Alguns
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chegam a construir gaiolas e até viveiros. Famílias inteiras, de geração em geração, fazem redes ou confeccionam caixinhas de casca de bétula, com fechaduras secretas. Outros trabalham na fábrica de feltros de Sukobaief ou cosem em casa os muito apreciados chapéus de feltro da região.
Estes últimos bebem vodka mais vezes e em maior quantidade do que os outros, facto que lhes vale a deferência e a consideração do resto do bairro. De tempos a tempos, aos domingos e dias de festa, Gerassine Kriltzoff, o melhor oficial de feltros e um dos mais reputados atletas de Saretz, resolve, sem motivo, aborrecer os seus admiradores, gritando como um possesso:
"Vocês embriagam-me, velhacos! É por vossa culpa que eu morro na flor da idade!... Enfim, tanto pior: cheguem-me mais um copo"
Aproveitando a ocasião, Vavilo Burmistroff, inexpressivo herói dos subúrbios, arregaça as mangas e desata a animar Gerassine:
- Repara, Gerassine, como ousas tu, assassino, acusar o povo cristão que me ama e tanta estima tem por mim ? Porquê ? Anda, explica-te ou põe-te em guarda!
Vencido, a cair de bêbado, Gerassine verte lágrimas de sangue, enquanto gagueja:
- Não lamento o dinheiro mas sim a minha vida, que é uma inutilidade.
Ódio feroz opõe a cidade aos arrabaldes desde tempos imemoráveis, desde sempre, talvez. A abastada
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burguesia de Shikane tem um olhar malévolo para os dos subúrbios, essa gente que não é ninguém mas é capaz de tudo, esses bêbados, esses ladrões. Estes, por sua vez, consideram os da cidade uns avarentos, uns burgueses nojentos, sempre à espreita de uma oportunidade para lhes causarem aborrecimentos.
Era por ocasião de São Miguel, sobre a espessa camada de gelo do rio, que as rixas se desencadeavam. Sangrentos, sempre de grande violência, esses recontros repetiam-se por todo o Inverno, muitas vezes até à micarême, e, apesar dos habitantes dos arrabaldes contarem com bom número de lutadores excepcionais, os da cidade levavam geralmente a melhor devido ao maior número, perseguindo os adversários até ao seu próprio meio - as dunas, conhecidas por "fossas cavalares", por serem ali enterrados os cadáveres dos animais já em decomposição.
Todavia, a maior parte das vezes era a Polícia que, sob qualquer pretexto, descia ao Saretz. Interrogava todos os suspeitos e apropriava-se dos bens dos contribuintes que se recusavam a pagar os impostos, pondo, assim, ponto final nas constantes brigas.
Mas havia outra espécie de habitantes em Shikane. Esses, só altas horas da noite se dirigiam aos arrabaldes, e faziam-no para visitar o
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"Paraiso de Feliçata". Este "paraíso", antigo palácio dos senhores feudais Woevodine, velha e obscura residência que caía em ruínas, tinha na frente um vasto terreiro. Do lado do rio era invejosamente coberto por alta e densa cortina de brancos salgueiros, ulmeiros e prateadas bétulas, e, do lado da rua, por uma imponente muralha aberta a meio por grande portão de carvalho, com uma pesada porta de ferro na metade da esquerda.
Junto dessa porta, desde o cair da noite até ao despontar do dia, um gigante ruivo permanecia sentado sobre um banco de tijolos. Era um desconhecido, a quem os habitantes do bairro, sem saber por que motivo, chamam Shetykh.
Sucedera neste posto de guardião do "paraíso" a André, irmão mais novo de Vavilo Burmistroff que, apesar da sua força hercúlea, apenas o soube manter durante dois anos. Porque no Inverno os habitantes de Saretz, como uma alcateia de lobos, cercaram as ruínas do castelo, tentando arrancar-lhe tudo o que pudesse servir para alimentar-lhes as chaminés e as frigideiras. Energúmenos pilhavam, menos impelidos pela necessidade do que por um apetite inato de tudo saquearem na sua passagem, de darem livre curso a essa triste insolência de que se reveste a obscura angústia russa. Vítima do seu dever, que ele compreendia à sua maneira, o antigo guarda tinha chegado a lutar até contra o seu próprio irmão, Vavilo, instigador de todos os escândalos da região, e ao qual não foi
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totalmente estranha a morte prematura do pobre André!
Sucumbindo aos ferimentos, André repetia, sem cessar, com voz estrangulada:
"Foi por ti, Feliçata, que eu lutei... que eu morro... para teu bem... adeus..."
A mulher chorou-o com sinceridade, cobrindo o rosto redondo com as suas mãos de brancura pouco comum. Morto e enterrado o defensor, mandou erguer-lhe sobre o túmulo uma bela cruz de carvalho, encerada, e, durante muito tempo, mandou rezar missas pelo repouso da alma do seu fiel e incorruptível servidor; o que, todavia, não a impediu de partir, no próprio dia das exéquias, com destino desconhecido, em viagem misteriosa, depois do que se viu aparecer, à porta do "paraíso", um novo guarda, indivíduo muito alto, espadaúdo e taciturno. Rapidamente soube inspirar aos bravos habitantes do bairro o devido respeito pela sua força física, conseguido numa brilhante série de combates corpo a corpo, em que defrontou os mais intrépidos atletas dos arrabaldes, tais como Kriltzoff, Vavilo Burmistroff e Zózirno Puchkarioff.
Alta e larga, com as suas galerias e os seus terraços, a antiga residência dos Woevodine erguia-se a meio de um pátio invadido pelas ervas daninhas, que em certos pontos chegavam a atingir um metro de altura. A casa encontrava-se rodeada pelos escombros das dependências em que a própria
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Feliçata armazenava o combustível necessário para manter no seu estabelecimento a indispensável temperatura.
Mas, o verdadeiro "paraíso" era no segundo andar; persianas sempre corridas escondiam três janelas que aguentavam a custo o telhado cheio de barrigas, a que o peso da neve dera origem.
Escondido pela parede, ao fundo do pátio, o "Paraíso de Feliçata", onde tudo o que lá se passava escapava à curiosidade dos vizinhos, aliás pouco numerosos. No Verão, a maioria dos clientes chegava de canoa, espalhando-se furtivamente, como ladrões, por entre os arbustos que ladeiam o rio; no Inverno, atravessavam velozmente a artéria principal de Saretz, espinha encurvada e nariz escondido na enorme gola das pelicas.
Porém, sabia-se que Feliçata tinha a trabalhar três raparigas - Facha, Rosa e Lodka - e que, entre as pessoas consideradas, com ou sem razão, pertencentes à elite da cidade, os mais assíduos, ali, eram Nemtzoff, comissário da polícia, pois a esposa encontrava-se gravemente doente; o preceptor Jukoff, porque era viúvo e o doutor Riakhine, que adorava divertir-se e escandalizar a opinião pública.
Sabido era, igualmente, que nos dias de maior anuência Feliçata chamava precipitadamente, para que a ajudassem, outras mulheres e raparigas do bairro. E, embora toda a gente conhecesse essas voluntárias, ninguém se mostrava exageradamente
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rigoroso a seu respeito, porquanto era coisa assente que certos maridos ou certos pais lhe confiscavam esse ganho acessório para poderem deleitar-se com um copo de vinho a mais.
Mujiques barbudos, gente simples e serena, proveniente das florestas de Obnosskoff, das terras baixas de Balvmer, ou de qualquer outro canto perdido do departamento, arriscavam-se a atravessar Saretz mesmo durante o dia, mas procuravam fazê-lo em grupos cerrados, a fim de melhor poderem defender os seus bens. Porque o viajante isolado expunha-se sempre às piores aventuras. Apenas o vislumbravam, os habitantes mais expeditos saíam de casa e, fingindo curiosidade, rodeavam sem pressas a carripana do imprudente:
"Eh! tiozinho, que tens para nos vender?" Era a pergunta fatídica, sempre a mesma. "Mostra-nos a tua mercadoria."
E, enquanto uns examinavam a "mercadoria", outros serviam-se dela com o maior dos à-vontades. Uma vez o carro saqueado e a vítima no prosseguimento da sua viagem, partilhavam fraternalmente o espólio entre si. Ao mujique restava apenas lamentar-se ou chamar por socorro, o que dava azo a que fosse largamente injuriado e selvàticamente esmurrado.
Nas longas noites de Verão reuniam-se nas
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margens do rio, sob a folhagem hospitaleira dos ulmeiros e dos chorões fronteiros ao quarteirão da cidade, e, sentados ou deitados na areia, lançavam olhares de inveja para a outra margem. Era ali o seu ponto de observação, o seu lugar predilecto.
Sob um céu vermelho recortam-se nitidamente as cúpulas azuis e verdes das igrejas, o sino pardacento - bloco de chumbo maciço - tendo, ao alto, a silhueta sombria do bombeiro de sentinela e as torretas da casa Vogel, que o pôr do Sol colora de um rosa a atirar para o alaranjado. Como uma espessa parede, as verduras do bairro escondem as coquetes vivendas, apenas deixando entrever os telhados e as chaminés. Todavia, os mais assíduos chegam a reconhecer, por entre os emaranhado dos ramos das árvores, os cidadãos que merecem mais particularmente a sua atenção, e é com um sorriso preguiçoso e escarnecedor nos lábios que armam o mexerico e o escandalozinho do vizinho, do inimigo; aquele ganhou ou perdeu tanto às cartas, o outro embriagou-se ontem à noite, aqueloutro bateu na mulher... Em pouco tempo se está perfeitamente ao corrente da vida dos cidadãos, dos seus negócios, querelas, e até segundo parece, projectos ou planos.
A vida íntima de Shikane é conhecida em todos os seus pormenores, ou quase todos, graças às mulheres domésticas que vão trabalhar o dia à cidade; e como a sua própria existência, sombria
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e monótona, não parece ter qualquer interesse, os habitantes nem se preocupam a falar dela, preferem os temas abstractos ou os assuntos fantásticos que saem do quadro da insípida existência de Saretz.
Gostam do canto. No Verão, sempre que no quarteirão da frente se ouve o famoso coro de Jvíazepa, chefe da guarnição e amador apaixonado de música, o bairro responde-lhe magistralmente, com as mais belas vozes dos seus melhores cantores, dentre os quais se destacam, em primeiro lugar, Vavilo Burmistroff e Artéme, o caçador intrépido e artista infatigável.
Sima Diewuskine, poeta da aldeia, imprimiu um dia o estado de alma dos habitantes dos subúrbios nesta pequena poesia:
Atrás de nós-florestas Á nossa frente -pântanos Ó Senhor, tende piedade de nós Que somos débeis
Aborrecimentos e cuidados, Existência triste, nenhum prazer. Há entre nós centenários
Que podem eles fazer?
Talvez tivéssemos mais alegria Se mitigássemos a nossa fome. Mas, pobres de nós, cedo morremos Como os mitos.
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III
Era opinião unânime: Jaime Tiunoff era considerado o mais forte do bairro.
Alto, seco, musculoso, tinha reflexos rápidos e resposta pronta e fácil. Mas fazia pena vê-lo deslocar-se tão lentamente, com gestos pesados, ou ouvir-lhe a voz arrastada e um pouco cava.
A vida dele era um enigma completo. Um dia, ainda novo, com quinze anos apenas, desapareceu Deus sabe para onde, desconhecendo-se o seu paradeiro durante alguns anos. Todo esse tempo, nem os pais nem a irmã souberam algo dele. Mas um belo dia chegou. Foi a Polícia que o trouxe à terra onde nascera, e vinha doente, havia perdido a vista direita e alguns dentes. No saco que trazia a tiracolo dois grandes alfarrábios encadernados a coiro: "História dos Inventores" e "Opróbrio Universal ou Teatrãozinho".
Nessa altura já os pais haviam falecido e a irmã partido sem deixar endereço, depois de vender
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a casinhota e as terrinhas que herdara. Jaime Tiunoff instalou-se, provisoriamente, em casa da bruxa Daria, a quem todos chamavam a Muda devido a uma insuportável loquacidade. Ninguém sabia ao certo de que vivia Tiunoff, nem quais os seus proventos. Evitava as pessoas, falava-lhes num tom seco, hostil mesmo, não as olhando nunca de frente. Piscava a vista que lhe restava, enquanto agitava o queixo com ar agressivo sempre que dele se aproximava alguém. A noite, saía do seu casebre e vagueava pela estepe, sozinho, com os olhos postos no chão e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, como os zarolhos.
Segundo espalhou Daria, quando estava em casa Tiunoff empregava todo o tempo a ler grossos volumes e a falar consigo próprio. As velhas do bairro diziam que ele era bruxo e afirmavam que comunicava com os mortos. As mais novas tomavam-no como ladrão de almas, julgando encontrá-lo em toda a parte. Vezes sem conta tentaram os mujiques interrogá-lo, mas sempre em vão. Um dia pediram-lhe que lhes oferecesse uma dezena de garrafas de vodka e como ele recusasse sovaram-no de tal maneira que esteve de cama vários dias. Uma vez restabelecido, logo voltou aos seus misteriosos passeios nocturnos. Mas uma tarde deixou o bairro para só voltar ao fim de três ou quatro lustros.
A segunda vez que Tiunoff apareceu tinha cerca de quarenta e cinco anos. Madeixas grisalhas
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de cabelos pendiam-lhe a toda a volta da cabeça, muito semelhante a um torrão de açúcar. Uma pequena barbicha, também grisalha, tornara-lhe ainda mais alongado o rosto ossudo e enegrecido. O seu olhar era, agora, mais arguto; a única vista de que dispunha, outrora um tanto sombria, fitava as pessoas com exagerada atenção.
Voltou a instalar-se em casa da Muda, mas com a diferença de que já não passava os dias onde quer que fosse lugar de reunião, isto é, no cabaret de Sinemukh no Inverno, e nas margens do rio no Verão. Viu-se, então, que ele sabia reparar fechaduras com perfeição, soldar quaisquer utensílios - samovares, especialmente - e que se desembaraçava muito bem a forrar casacos e a consertar relógios. É certo que o bairro não necessitava muito dos seus serviços, e se algum desprevenido o procurava era para lhe pagar com uma refeição ou com um copo de vinho. Mas o trabalho que havia na cidade dava-lhe o suficiente para viver um pouco melhor do que os outros cidadãos menos favorecidos.
A sua vida decorria normalmente, sem grandes alterações. De manhã, para acordarem os respectivos maridos, as mulheres diziam:
"Levanta-te, mandrião. São sete horas; já o Zarolho anda a pé há que tempos!"
Toda a gente sabia que ele regressava a casa ao fim da tarde, às seis horas exactas. Nos dias de festa ia à igreja assistir à missa da manhã,
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seguindo depois para o cabaret de Sinemukh, onde se demorava até à hora do almoço, pois comia em casa, pouco depois do meio-dia.
Findo o almoço corria tudo até uma hora avançada da noite, ora encontrando-se no centro da cidade, ora nos lugares mais afastados e menos frequentados. Caminhava sempre com ar sereno, sem pressas, batendo no solo com uma bengalinha de cerejeira, virando continuamente a cabeça para um lado e para o outro a fim de que nada lhe escapasse, saudando gentilmente quem passava e respondendo sempre com inteligência às perguntas mais intrincadas que lhe fossem feitas, viessem donde viessem.
Um dia, Fima Puchkareva, desastrosamente vencida por um amigo afortunado, acorreu a casa de Tiunoff para lhe pedir conselho e auxilio. E enquanto Fima, de cabeça enfiada nos ombros, se lamentava da sua triste sorte ao zarolho, este, com ar carinhoso e ao mesmo tempo doutoral, disse-lhe:
"Ouve com atenção, Fima: em vez de estares para aí a ladrar como um cão era melhor que tivesses mais cuidado na escolha das pessoas que encontras no teu caminho. Escolhe uma que seja amável e inteligente e dá-te com ela em paz. Já não és nenhuma criança e deves saber bem que para o homem a mulher só o é apenas por uma hora, nunca mais, por vezes até menos. Se tens um pouco de respeito pela imagem divina que trazes
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em ti não te apaixones por uma pessoa qualquer. Ajuda-te a ti própria, e o céu te ajudará". Tal facto, ao ser conhecido por todo o bairro, logo fez com que as mulheres passassem a considerar o zarolho uma pessoa justa, o que Tiunoff não deixou de aproveitar, pois as suas admiradoras disputavam entre si as maiores amabilidades para com ele.
Porém, Tiunoff preferia errar pelos campos que rodeavam o burgo, sempre sozinho, ao luar, com a cabeça inclinada para um lado e um sorriso estranho nos lábios.
Grandes grupos sentados debaixo das faias, gente inclinada à meditação, faziam-lhe então as perguntas mais estranhas. E era sempre Burmistroff quem começava. Sentindo que o zarolho, a pouco e pouco, eclipsava aos olhos dos companheiros a sua estrela, nem sequer tentava esconder a sua animosidade, procurando afastar Tiunoff com as mais vagas e equívocas perguntas.
- Diz-nos cá, Tiunoff, sempre é verdade que andaste a fabricar moeda falsa e que já te arrependeste?
- O dinheiro... é sempre falso - responde o zarolho, sem zanga, e fixando com o seu olho perscrutador o belo rosto da Vavilo.
Confuso, este começa a irritar-se. ?--Não te percebo lá muito bem. Se eu, por exemplo, fabrico rublos de estanho ou de vidro
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ou trabalho com mercúrio, e se, por seu turno, o Tesouro faz rublos de prata, que tem isso?...
- Nesse caso, haverá dois rublos diferentes replica Tiunoff com a sua voz roufenha. - Estanho e prata teriam o mesmo valor. No entanto, desde que existe um rublo papel, porque não admitirmos a possibilidade de os haver também de madeira, de barro, etc. Poder-se-ia fazê-los de todas as espécies e nas quantidades desejadas. Não seria, por acaso, o mesmo se tu fizesses botas de casca de bétula! Claro que isso seria um logro porque as botas constituem um valor verdadeiro, ao passo que o dinheiro não é mais do que lixo...
Ele fala com autoridade e o olho brilha, severo, forçando os seus auditores a reflectir, com vontade ou sem ela...
Mark Klushnikoff, o latoeiro coxo, acaricia com ar perplexo a sua calva lisa, passando em seguida a mão pelo rosto amarelecido e vaidoso.
- Olha - exclama, martelando as palavras com visível esforço -, por vezes acontece que me ponho a pensar acerca da Rússia. E depois? A Rússia... o que é a Rússia? Diz-mo, meu velho, tu sabes?...
Tiunoff, sem hesitar:
- Nada mais simples, meu caro... A Rússia é um aglomerado de províncias... Não há dúvida... Temos apenas duas capitais, é certo, mas há milhares de cidades no coração dessas províncias, que vivem a sua própria vida. Aqui tens, é isto a nossa mãezinha Rússia.
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E, depois de um momento de reflexão, acrescenta :
- Resta saber o que une todas essas províncias. É coisa boa? É coisa má? Examinemo-la
um pouco...
- Parece que perdeste a vista direita a examinar um certo número de coisas, ou não? pergunta Burmistroff a brincar.
Então, Vavilo, voltando-se para outro lado e parecendo ter encontrado outra pergunta não menos embaraçosa:
- Falas tanto de nós, pequenos burgueses afirma ele com ar inquisitorial -, mas talvez não saibas quantos somos ao todo!
- Não é possível contar todos.
- Mentes, irmãozinho! Ainda há seis anos fomos contados.
- Pois bem! Os que vos contaram devem saber quantos sois. Quanto a mim asseguro-te que não sei. Não é fácil recensear-vos-prossegue, suspirando ligeiramente e com um fino sorriso.
- Porquê?
- Porque os imbecis nascem espontaneamente!...
Tiunoff sente-se contente por ter conseguido nítida vantagem nas réplicas, e Burmistroff berra de tal forma que parece expelir chispas:
- Essa é boa... Então eu também sou um imbecil?...
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Porém, os amigos, Klushnikoff, Streltzoff e o modesto Zózimo Puchkarioff, vulgarmente conhecido por "diabo furtivo", aprestam-se a acalmar o belo galhofeiro.
Então, Klushnikoff, enquanto alarga com um dedo um enorme rasgão nas calças, pergunta, com ar preocupado:
- E Moscovo, por exemplo?
- Bem, Moscovo... - replica, lentamente, o zarolho, rodando em círculo aquela vista sombria que parece camuflada por sobrancelhas farfalhudas - bem... imagina que usas uns tamancos no mais miserável dos estados, que a tua camisa há mais de um ano não vê água, que as tuas calças mal te escondem as misérias e que a tua barriga, tal como a algibeira, apenas guardam migalhas e cotão; todavia, na cabeça trazes um belo boné, digamos, mesmo, um boné de pele... Aí tens, é isso Moscovo...
Klushnikoff assopra, passa a mão pela testa, fita por momentos o zarolho e, preguiçosamente, exclama:
- É possível. Tens razão - diz, por fim. Cobertos de andrajos, com os cabelos eriçados
e a barba hirsuta, estes ociosos vagueiam indefinidamente junto das árvores, qual montão de lixo para ali arrastado pelo rio. Parecem todos iguais, na sua máscara de indiferença altiva e desdenhosa, peculiar aos muito experimentados e inacessíveis a qualquer sentimento, a qualquer
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surpresa. De olhos sonolentos, fitam, plàcidamente, as águas turvas do rio, a margem escarpada e ruiva da cidade ou o céu esbranquiçado que cobre o bairro do Okuroff. Tal como a atmosfera húmida exala o odor insípido das ervas dos pântanos em putrefação, também os madraços transpiram um aborrecimento obscuro e sem fim. O zarolho observa-os um a um com o seu olho pardacento, medindo-os com desprezo; Tiunoff meneia a cabeça em todas as direcções, como se quisesse escolher velhas pelicas roídas pelas traças. Por sua vez, o taciturno Pavel Streltzoff interessa-se principalmente pelas coisas de valor prático.
- Diz-me, Tiunoff, se puséssemos a ferver chá e aguardente obteríamos madeira?
- Não!-responde o outro, com tanta calma como segurança.-Pelo que eu sei, é principalmente malte o que se obtém da madeira.
- Estás sempre a mentir, zarolho! - exclama Burmistroff, com indignação.-São todos uns ignorantes, por isso lhes levas a palma.
- Quem te obriga a acreditar-me?-replica Tiunoff.
- Mas eu não te acredito! As tuas palavras cortam-me o coração... Como me aborreço com vocês!...
Enquanto isto, soltam alguns suspiros, escarram na areia, bocejam, enrolam cigarros. Vagarosamente, a tarde vai alongando cada vez mais
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as sombras quentes dos chorões. Do "Paraíso de Feliçata" chega o som de uma canção:
Meus amigos, Meus queridos, Vinde!
É Rosa quem canta, com voz áspera, e Lodka quem a acompanha, apaixonadamente.
Vinde Vinde todos!
Não tendes vergonha
De passar diante do nosso miradoiro
Sem repararem em nós?
- Esta Rosa, como ela se deleita com estas coisas! - observa Streltzoff. Porquê...
- Porque tem boa vista - explica Tiunoff. De súbito, ao longe, a voz baixa de Feliçata
viola o doce silêncio da tarde.
- Rosinha!
- Que há?
- Está na hora do chá!
- Eu cá também me apetecia tomar chá-diz Klushnikoff, fazendo trejeitos com os lábios...
- Aqui, sem nos mexermos... - acrescenta Zózimo Puchkarioff.
Entretanto, do outro lado do rio, num quarteirão, os citadinos começam a agrupar-se. Através das árvores vêem-se passar, meneando-se, mulheres de azul, de cor-de-rosa, de branco, e homens de cinzento e de amarelo. Ouvem-se
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gargalhadas, chamamentos, excertos de conversas, apercebe-se até a voz balbuciante de Mazepa, provocando as coristas.
Os suburbanos observam os seus adversários enquanto vão trocando entre si as últimas notícias.
- Comissário da polícia! - exclama Burmistroff, estirando-se na terra com um sorriso desdenhoso. - Um dia, ao restituir-me à liberdade, disse-me: "Não tens vergonha, Vavilo, de levares a vida inteira a embriagares-te? É preciso trabalhar, ser-se gente!"
"- Saiba vossa nobreza, respondi-lhe, que meu avô trabalhou toda a vida e que meu pai fez outro tanto; por isso eu tenho de descansar pelos dois. Tu estoiras, Vavilo".
- Não, Vavilo, se estoirares eu saberei porquê. Por causa das mulheres, unicamente, como teu irmão André, - observa Klushnikoff, bocejando.
- André faleceu devido aos ferimentos que sofreu - replica Zózimo -; além disso gostava imenso do álcool.
Passando um olhar orgulhoso por toda a assistência, Vavilo declara pomposamente:
- Não foi nem o vinho nem as feridas... mas o seu amor por Feliçata que o perdeu. Gostava de Feliçata, amava-a com um amor terno e sincero, sou eu que o digo. Se a não amasse porque havia ele de se bater por ela? Porquê?
Ao longo da margem, cambaleando em cima das suas longas e delgadas pernas, afastava-se um
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homem, de cabeça descoberta, descalço, cana de pesca ao ombro e segurando na mão um cesto de casca de bétula. Um sobretudo de Inverno, esfarrapado, cai-lhe em volta do seu corpo magro e alquebrado. Tem um pescoço comprido e seco, e um jeito curioso de agitar a cabeça, desmedidamente grande, como se quisesse saudar quem quer que fosse que encontrasse.
Pavel Streltzoff agita-se, levanta-se e grita ao jovem vagabundo:
- Anda, Sima, despacha-te!
O rosto do poeta Sima é redondo, inexpressivo; os olhos, arregalados e baços, assemelham-se estranhamente aos do carneiro.
- Vamos, Sima! Lê-nos versos teus - propõe-lhe Streltzoff.
- Isso mesmo - apoia Klushnikoff com um largo sorriso.-Recita para nós, como tu sabes tão bem fazer, Sima...
Então, calcando a areia com os pés e sem olhar para ninguém, Sima recita com voz rápida e insegura:
Senhor: Nós somos obra tua Mas a maldade tortura os nossos corações. Desde que nascemos até ao túmulo Somos todos uns brutos, todos.
Estejais connosco, Senhor! Não somos nós teus filhos? Nós procuramos a fé Tu, nossa luz, nosso tudo.
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Mas Burmistroff interrompe:
- Hoje não é assim...
E Tíunoff insiste com"doçura:
- Pois não, Sima... De facto não é assim. É preciso não esquecer que são versos sagrados; isto não é para ti. Os versos sagrados têm de deslizar como a água brota da fonte. Assim, escuta.
E, com voz melodiosa, martela, lentamente e com apuro:
- Senhor, tende piedade de nós! Senhor, Vós que estais no Céu, tende misericórdia de nós!... Percebes; assim é que é; ao passo que tu pareces que estás a cantar a Balalaika.
Fazendo um sinal de desaprovação com a cabeça, Streltzoff declara, por sua vez:
- Isso não vale nada.
Sima conserva-se de pé, dominando os outros. Baixa a pesada fronte, move os lábios e começa a fazer versos na areia com os pés. De súbito, cambaleia de tal modo que dir-se-ia que ia cair como uma massa bruta; mas não, equilibra-se e caminha alargando muito aquelas pernas de cegonha, de tal forma que provoca o riso.
Tiunoff segue-o com a sua vista sombria e murmura:
- Apesar de tudo, sabe fazer versos! Embora pareça um homem como qualquer outro. O que prova que nunca se sabe o que nos vai cá bem no fundo.
com as mãos assentes nos joelhos e os olhos
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fechados, Vavilo escuta os ruídos da cidade; o seu belo rosto de traços quase clássicos está triste e pensativo; as sobrancelhas franzem-se-lhe. Tem caracóis arruivados e pestanas pardas; um belo bigode loiro encima uns lábios bem recortados, cor de morango maduro. Uma camisa azul, aberta no peito, deixa entrever a brancura da pele semeada de pêlos doirados.
Forte, bem lançado e ágil, o corpo de Vavilo evoca a graça felina de um animal selvagem.
- Tudo isso não vale lá grande coisa - resmunga, sem abrir os olhos.-A poesia? Para que serve? Que se tira daí?
- Para ti só Lodka existe e serve para alguma coisa - replica Klushnikoff com um sorriso.
E, Zózimo Puchkarioff, convencido:
- Mas que belo par, apesar de tudo: Lodka e Vavilo! Qual deles o mais belo!
- Porque dizes tu que a poesia para nada serve? - pergunta docemente o zarolho, dardejando o seu olho penetrante como um furador.
- Se determinada poesia se harmoniza com o tema, pode perfeitamente impressionar a tua alma... O Volga, por exemplo, como falar dele senão...
E, sem terminar a frase, faz um gesto largo, estende a mão e, com voz cava, martela lenta e gravemente:
Volga! Volga... Na Primavera!
Estação dos mais violentos sinistros,
Não arruinam tanto os campos as tuas águas...
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- Percebem?
...como o desgosto do povo revolve a terra.
- A terra! - grita Tiunoff com inesperado ênfase -, a terra russa! Eis o que é uma verdade e o que há-de ir longe...
O latoeiro adianta-se um pouco e pergunta:
- Esses versos... onde os aprendeste tu?
- Em Moscovo... na prisão. Cantavam-nos os estudantes...
- Estiveste na prisão?
- Pois estive...
- Por teres fabricado moeda falsa, não?
- Nada disso! Eu estava a brincar quando disse que a fabricava. Uma peta boa, mais nada. Se estive preso foi por vagabundagem...
E acrescentou:
- ...e também por política, bem entendido.
- Por política? O que é a política? - pergunta Streltzoff, admirado. - Corre o boato que foi preso aqui um soldado...
- Esse mesmo...
- A política é uma coisa muito complicada - diz Tiunoff, impassível.-Uma coisa vaga, que cada um trata a seu modo, evidentemente. Uns dizem que é preciso dar as terras todas aos camponeses; outros não querem, preferem que se abandonem todas as fábricas e oficinas aos operários. Outros,
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ainda, afirmam: "Dêem-nos tudo e nós tudo partilharemos com justiça por todos os filhos do povo." Enfim, seja o que for, a política ocupa-se do bem-estar do género humano sobre a terra...
- Bem... mas... e os pequenos burgueses?- pergunta Streltzoff, visivelmente inquieto.
- Evidentemente que a política não é assunto para pequenos burgueses! - observa Vavilo, num tom que não admite réplica.
O zarolho tem uma contracção de desdém com a boca e fita o ignaro de beleza aparente, que imediatamente vira a cabeça.
À medida que a humidade se desprende do rio mais forte se torna o cheiro das ervas podres. O céu escurece a olhos vistos. Substituindo o Sol que se esconde, surge Vénus na abóbada cerúlea, meio velada por ligeira bruma. A torre, cor de chumbo, tinge-se de púrpura. No quarteirão, os peões tagarelam e riem em voz alta, mas não o suficiente para se sobreporem à voz rouca de Mazepa, capaz de abafar todos os ruídos deste mundo.
De súbito, sem se saber donde, eleva-se o som de uma canção:
Um dia em frente
de montanhas da mesma rafa ...
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- Espera que eu te digo! - grita Burmistroff, fazendo um gesto ameaçador com o punho. Espera que Arteme vem aí e vai mostrar-te "as montanhas da mesma raça..."
E logo clama, estrondosamente:
- Artéme!
com as mãos nas costas e assobiando uma ária qualquer surge Arteme, o Pistola, pescador, passarinheiro e caçador de grande classe. Tem todo o tipo de mongol - maçãs salientes, olhos rasgados e um pouco vesgos. Longa e profunda cicatriz ocupa-lhe quase totalmente a face esquerda, o que faz com que exiba sempre um sorriso desdenhoso.
- Há um tempo para cá que cantam em demasia! - exclama, enquanto meneia a cabeça.-Tentemos dar-lhes uma pequena lição, vá!
Lá no alto, Vavilo Burmistroff levanta-se, espreguiça-se, enche de ar o peito de atleta e, mostrando os dentes, solta um grito de encorajamento :
- Vá, Arteme! E vocês, monte de imbecis, aguentem-se!
Através do ar quente e húmido sobem notas melancólicas e lânguidas de uma voz clara:
Oh... oh... meu cuco..,
Arteme está ainda de pé, com as costas apoiadas a uma árvore, os braços estendidos para trás, a cabeça abandonada e os olhos fechados. Depois,
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uma das suas mãos agarra-se ao tronco de uma árvore, o peito dilata-se-lhe, a maçã-de-adão, move-se e os lábios tremem-lhe ligeiramente.
Entretanto, Vavilo volta costas à cidade e, de frente para o companheiro, resolve acompanhá-lo com voz de barítono, doce e cálida:
Oh... oh... pássaro sem abrigo, Diz-me que espécie de vida será a minha...
Enquanto canta Vavilo gesticula. Agita a cabeça com ar exaltado sempre que dá uma nota mais alta e estranhamente penetrada de tristeza; comprime o coração com as mãos; lacrimoso, levanta os olhos para o céu e abre os braços enormes como se quisesse estreitar neles o mundo sofredor. O seu mais pequeno gesto encontra a mais perfeita harmonia na canção que trauteia. O seu rosto, tão depressa pálido como ligeiramente colorido, muda constantemente de expressão, parecendo ao mesmo tempo triste e sombrio, doce e alegre. Dir-se-ia que canta com todo o seu ser, com toda a sua alma, tal é o seu entusiasmo, embriagado pela melopeia como um bêbado com o cheiro do vinho.
Sem conseguir afastar dele os olhos, a assistência segue, fascinada, o seu jogo patético. Apenas Tiunoff observa, imóvel, o rio. Movem-se-lhe os lábios; a barbicha, ora subindo ora descendo, é bem indício de profundo trabalho interior.
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Sima sai da escuridão, qual fantasma encurvado. Traz, agora, uma cana de pesca em cada ombro; dir-se-ia um insecto com antenas de desmedidas dimensões. Aproxima-se de Vavilo sem o menor ruído, ajoelha-se diante dele e fita-o, de boca aberta e esbugalhando os olhos insondáveis.
Entretanto, a voz de Vavilo aumenta de volume, e ele solta um lamento desesperado:
Conhecerei eu algum dia
a sorte que me está reservada?
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IV
Certa manhã, muito cedo, encontrava-se Vavilo no escritório do comissário da Polícia. com os olhos desmesuradamente abertos fixava Worms, o homem das suíças grisalhas, e batia no peito com o punho cerrado, mesmo sobre o coração. Impelido por um sentimento de desgosto e de vergonha, como nunca havia experimentado, falava com voz baça, traindo emoção:
- ... Sabem o que disse ele? Nós, pequenos burgueses russos, nada podemos contra os nobres, alemães na sua maioria. Isto tem de mudar...
- Como? - inquire Worms, franzindo as sobrancelhas pardas, com ar terrível.
- O quê?
- Isto tem de mudar... e como?
- Ah, isso não sei... ele não disse...
O comissário leva o indicador à altura do nariz, observa-o por momentos, dobra-o sem se saber porquê, e ao mesmo tempo enruga a fronte:
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- E os outros ?
- Os outros? - repetiu Vavilo, baixando a voz e olhando em redor-os outros, nada... Mas. que importa os outros se só ele é que fala?
- E o latoeiro? Há lá um latoeiro, não há?
- Há, sim, mas esse mantém-se calado - responde Vavilo, insipidamente.
- É tudo?
- Sim, é tudo.
O comissário apoiou o corpo descarnado nas costas da cadeira e, tamborilando sobre a secretária:
- Vocês todos, que estão para aí, sois uns bêbados, uns ladrões, uns salteadores - diz ele.
- O melhor seria deportar todo esse rebanho sarnento para a Sibéria. Tu também, sim, és um salteador, um animal.
Enquanto ele falava, em catadupa, Vavilo fitava, com as mãos atrás das costas e sem pestanejar, a mesa repleta de toda a espécie de coisas, qual delas a mais estranha, amontoadas na maior desordem; um galgo de cobre amarelo, um pequeno cubo de aço, um revólver de cano curto, uma mulher nua de porcelana, um pequeno recipiente de osso, muito semelhante a um crânio humano e que estava cheio de pontas de cigarro, e,. por fim, um monte de papéis amachucados. Grande candeeiro com pedestal de mármore, ? abajour quadrado, dominava todos estes objectos.
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Fazendo um gesto com o dedo, o comissário ameaça Vavilo, dizendo-lhe:
- Põe-te a andar, Burmistroff!
E, com as mãos enfiadas nas algibeiras, acrescentou com ar grave:
- Agora só tens uma coisa a fazer: seguir atentamente tudo o que se passar entre vocês e vires regularmente informar-me. Toma, aqui tens um rabio. Terás igual quantia sempre que cá venhas.
Vavilo protestou com ar taciturno, mas estendeu a mão para receber a recompensa:
- Bem, não é o dinheiro o que me interessa...
- Isso não tem importância, aceita-o na mesma.
Curvado sobre os braços da cadeira, o comissário levanta-se e inclina-se para a frente, como se quisesse saltar por sobre a secretária.
De cabeça baixa, Vavilo pergunta:
- Posso ir-me embora, agora?
- Sim, podes.
Isto passou-se num triste dia de Agosto. Caía uma chuva fina, ininterrupta. Regos de água cruzavam-se na rua, murmurando uma queixa; um vento frio, penetrante até aos ossos, soprava em rajadas, agitando as árvores despidas antes da estação. Ao longe, grasnavam corvos, roufenhamente; ouvia-se o som de sinos, de mistura com outros ruídos.
Desgostoso consigo próprio, Vavilo caminhava,
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patinhando na lama líquida e procurando até, estranhamente, as poças maiores e mais profundas. A mão direita apertava o rublo que Wormes lhe dera; essa moeda parecia-lhe tão pesada que a transportava como uma mulher costuma transportar um balde de água- o braço esquerdo um pouco afastado e o corpo levemente inclinado para a direita.
A indignação que há algum tempo sentia contra o zarolho tinha momentaneamente desaparecido para dar lugar a uma sensação de vazio, fria e como que viscosa, que lhe apertava o coração, ao mesmo tempo que a memória lhe evocava as recordações mais desagradáveis. Corrompido pela exagerada adulação do bairro, Vavilo sentia que doravante Tiunoff ocuparia o seu lugar, relegando-o para segundo plano. Desgostoso e até furioso com esta reviravolta inesperada, entregara-se, havia já alguns dias, aos mais estranhos e violentos caprichos. Passeava seminu pelo bairro, o mais andrajosamente vestido, chafurdando na lama, ou rolando no pó; apanhava os cães e os gatos que encontrava e lançava-os para o fundo dos poços, intrometia-se com as mulheres, injuriava os homens, trauteava canções obscenas; enfim, consumia-se em invectivas à medida que o corpo, bem lançado e ágil, se ia lentamente vergando, como se transportasse pesado e invisível fardo. Nos dias de libertinagem em que o seu belo rosto se tornava flácido, parecendo que as feições
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se alteravam, um sorriso ingénuo esboçava se-lhe nos lábios e lacrimejavam-lhe os olhos dilatados e vermelhos, cheios de malícia e de uma espécie de angústia animal. Porém, bastava que um vizinho se aproximasse dele e lhe falasse elogiosamente da sua ousadia para que Vavilo se reanimasse, qual bétula poeirenta, que, na berma de larga estrada e ao fim de longas semanas de seca, um simples aguaceiro subitamente rejuvenescesse. Os olhos reencontravam a vivacidade perdida, a encurvada espinha ganhava verticalidade e os seus braços vigorosos já estreitavam afectuosamente os amigos. Cantava, ininterruptamente, árias alegres, cheias de alegria de viver. Nesses dias, aliás muito raros, encontrava-se sempre pronto a socorrer fosse quem fosse, a dar uma ajuda a quem soubesse tocar-lhe no ponto sensível ou fazer apelo à sua coragem.
Assaltado por recordações que surgiam da sua memória uma a uma, como manchas de humidade sobressaem numa parede exposta ao sol, e lhe provocavam mal-estar físico, uma espécie de náusea, Vavilo vai caminhando, sem se dar conta, para casa da Muda, onde vive Tiunoff. E logo que parou, maquinalmente, diante da janela do zarolho, abriu a boca como se fosse gritar e, com um gesto espontâneo e decidido, franqueou a porta do pardieiro. Dirigiu-se para a velha bruxa, passou-lhe para as mãos o rublo e, em tom autoritário, ordenou-lhe:
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- Vai arranjar vodka, pão, pepinos de conserva e um arenque fumado... Mas depressa!
No cubículo de Tiunoff tirou a veste ensopada de chuva, lançou-a para o chão e pôs-se a agitar os braços, a gemer, a bater no peito e na cabeça com as mãos fechadas e o olhar desvairado.
"Tiago, sou eu, sou mesmo eu, em carne e osso. Oh! Sou um miserável... Que sou eu, na realidade? Pó! Uma folha de Outono caída por terra! Podre... Que faço eu neste mundo? Pó! Aonde vou?"
Representava, bem entendido, mas representava com sinceridade, com todas as forças da sua alma. As faces empalideciam-lhe, os olhos inundavam-se-lhe de lágrimas e o coração invadia-se-lhe de uma ansiedade sem limites.
Vagarosamente e com paixão, manifestava arrependimento, murmurando queixas amargas, sem querer atender ao que lhe dizia Tiunoff. Inebriado com a comédia que representava e orgulhoso de si próprio, via a consciência tornar-se pequenina no cantinho do coração que ao mesmo tempo se ia iluminando.
Por fim, fatigado, cala-se, deprimido, só então reparando na figura do zarolho, mais estranha do que nunca e quase impenetrável. Tiunoff, sentado diante de uma mesa, as salientes maçãs do rosto apoiadas nas mãos secas e pequenas e os lábios, entreabertos, deixando ver uns dentes
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negros, olhava-o de frente com um sorriso tal que Vavilo ao reparar nele estacou.
- Que tens?-perguntou Vavilo, afastando-se do zarolho. - Estás zangado comigo por te ter denunciado ao comissário?
Tiunoff deixa escapar um fundo suspiro.
- Apesar disso, Vavilo, tens bom coração...
- bom coração! - exclamou Vavilo, feliz -, mas olha que é um coração franco a tudo o que é belo!
- Lá no fundo, tens remorsos... Para nada. Se tu saísses daqui, seguisses o teu destino? Para Moscovo, por exemplo?
- Ir-me daqui? - gritou Vavilo, perscrutando o rosto sombrio e pensativo do seu interlocutor.
"Espertalhão é o que ele é!" pensou, mas logo respondeu:
- Não, é impossível. Nem pensar nisso... Sabes que o amor é um grilhão impossível de quebrar. Imagina, por momentos, que eu parto... E Lodka?... que seria dela, aqui, sem mim? Existe porventura sobre a terra algum ser mais belo do que ela?
- Leva-a contigo.
- Ela não quer, com certeza.
E, com ar abatido, desfecha sobre a mesa um murro tão violento que até as garrafas tilintam com um som triste.
- Quantas vezes já eu lhe disse: "Ouve-me,
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Lodka, saímos daqui, instalamo-nos numa grande cidade... Tu empregas-te numa loja chique, só frequentada por gente rica, e eu serei o teu homem, cuidarei de ti". - "Não", responde-me ela, invariavelmente, "isso não é para mim. Ia para outro lado ocupar talvez um décimo lugar, ao passo que aqui estou na primeira linha. Tenho o meu brio profissional, aí tens, e, além disso, sabes... não troco o certo pelo improvável".
- Tudo isso é muito bonito, de facto, mas não conta - responde Tiunoff, vagarosamente.
Vavilo observa-o, desconcertado e sacudindo a cabeça:
- Acalma-te - diz, por fim. - Não és capaz de adivinhar o que acabo de fazer.
- Denunciaste-me ao comissário da Polícia?
- pergunta o zarolho. -Niichevo! Não te quero mal por isso, meu caro. Nada tenho a recear porque nunca cometi a mais pequena imprudência. Não se fala mais nesse assunto.
- Que alma! - exclama Vavilo, enchendo um copo de vodka. - Bebamos pela amizade! Ah, nem já me sinto dono dos meus sentimentos!
Bebem e até se abraçam. Tiunoff limpou os lábios e a conversa retoma um tom calmo, amigável.
- Procura compreender-me-insinuava o zarolho, falando lentamente, pesando cada uma das palavras. - O teu coração oscila estupidamente, como uma balança; engana toda a gente, e a ti
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próprio em primeiro lugar, não é verdade? Mas é porque te falta uma base, meu irmão! Porque tu és incapaz de te prender ao que quer que seja!
- É isso mesmo-aprovava Vavilo, sacudindo energicamente a cabeça. - Tens absoluta razão! Há de tudo em mim...
- Excepto um eixo! Tu não sabes onde lançar a âncora, nem sequer orientares-te. E nós somos todos iguais, não servimos para nada. Viramo-nos para todas as direcções e nada feito: não temos nem moral nem probidade; somos capazes de tudo comprar e de tudo vender, até o próprio Cristo! Em boa verdade, a única mercadoria de que dispomos é a nossa alma! Mas vivemos miseravelmente. Em novos sujamos a terra; na velhice tentamos ganhar o Céu, fazendo peregrinações e recolhendo-nos aos mosteiros.
- É verdade! Que miséria!
- Entre nós a lei assemelha-se muito a um cavalo que se pode orientar para qualquer direcção. É esta a nossa posição, meu irmão.
Semelhante a uma fita, umas vezes larga, outras estreita como um fio, a palavra fácil de Tiunoff gira em torno do estouvado, desperta-lhe a atenção e acalma-lhe o ânimo. Um curto instante e logo conclui que de nada serve estar a discutir: este zarolho de dentes enegrecidos não lhe saberia disputar a glória de que desfruta no bairro; não se incomoda com isso. Vavilo observa-lhe a barbicha dividida a meio, que treme de vez em quando,
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e as finas rugas que lhe sulcam as fontes; mais do que nunca, tem a certeza de que se trata de um homem excepcional, muito fora do vulgar.
- Escuta - diz Tiunoff fitando Vavilo nos olhos-, tu denunciaste-me há pouco...
Vavilo ergue um pouco os ombros como se tivesse frio.
- Tiveste pouca sorte comigo, porque eu não sou nem nunca fui um amotinador. Porém - e aqui a sua voz magistral toma maior volume ... vou dizer-te, com franqueza, o que penso a esse respeito... Uma nova Rússia surgiu, renasce das cinzas. Isto quer dizer simplesmente que o amor da pátria, da querida terra russa, desperta com o povo!
Pronuncia estas palavras pestanejando e enquanto enche um copo de vodka, que logo despeja de um trago para imediatamente o encher de novo.
- É espantoso o que tu consegues beber!
- exclama Vavilo com expressão interessada, quase de admiração.
O esperto respondeu, com calma:
- Eu sei beber o que há para se beber. Quando tudo está bebido, então paro...
Tal resposta provoca em Vavilo formidável gargalhada. Bate com os pés no chão, agita a cabeça e exclama:
- Olhem que está bem dito! E para ali ficam sentados em frente um do
outro até ao cair da noite. Vavilo sente-se feliz na
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companhia do homem mais inteligente da terra. Contudo, embora nutrindo por Tiunoff uma estima exagerada, ainda sente um certo mal-estar quando se recorda da denúncia da manhã.
"Ele não me diz nada, este zarolho do diabo", cogita Vavilo, "mas aguarda, espreita com certeza o momento próprio para me humilhar diante de toda a gente".
Esta ideia faz-lhe ferver o sangue nas veias; assopra, dilatam-se-lhe as narinas como um cavalo de raça; experimenta o vago pressentimento de um desgosto iminente, levanta-se de um salto e precipita-se em direcção ao "paraíso" para ver Lodka, a querida do seu coração, a confidente dos seus desgostos.
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V
com cerca de vinte e três anos, alta e forte, Lodka possui um peito espantoso, um rosto arredondado, jovial, uns olhos cinzento azulados, simultaneamente cândidos e provocantes. Lisos, abundantes, separados a meio da cabeça por uma risca excepcionalmente rectilínea, os cabelos castanhos caem-lhe sobre a nuca em longo rolo cuidadosamente entrançado. O peso desta luxuriante cabeleira obriga Lodka a andar de cabeça muito direita, facto que por vezes lhe dá um aspecto altivo. O nariz estreito, terminando em bico, parece fino, perdido a meio do rosto. A boca pequena seduz pelo recorte pronunciado dos lábios, pelos quais Lodka passa continuamente a língua e que dir-se-iam sempre frescos e atraentes. Os olhos são vivos, brilhantes: é o sorriso agradável da mulher que tem o gosto de viver e que avalia a vida pelo seu justo valor.
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Desloca-se lenta e vagarosamente; quando se senta, o seu busto opulento inclina-se ligeiramente, como uma árvore verga ao peso dos seus frutos. Há qualquer coisa de lascivo que se desprende desse movimento inconsciente. E, quando o olhar dele, ardente de desejos, se fixa naquele permanente balancear do corpo de Lodka, Jukoff, o triste preceptor sempre embriagado, exclama com voz de estentor:
"Basta, diabo! Não andes para aí a dar a dar dessa maneira que me fazes um mal terrível! Não ouves, pára lá com isso!"
"Morangos com chantilly" é como lhe chama o sempre alegre doutor Riakhine, na sua admiração por ela; mas não lhe toca porque simpatiza mais com Rosa, rapariga delgada e esbelta, cantora infatigável, que bem parece um daqueles pequenos cãezinhos pretos. Cabeça coberta de ondas acastanhadas, penugem abundante sobre o lábio superior, duas fileiras de pequenos dentes, de uma brancura admirável, Rosa é bem uma garota mimada e caprichosa que sabe manter à distância, em respeito, o doutor Riakhine; chama-lhe "o meu esqueleto amarelento". É um gosto que ela tem de pôr cognomes seja a quem for, amigos ou inimigos.
A terceira rapariga é a pequena e ruiva Pacha, mais taciturna, que prefere o sono a todos os demais prazeres deste mundo. Quando boceja saem uns sons sinistros daquela boca cheia de dentes
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irregulares e salientes. Tem olhos verdes e inquietos, que incidem sobre as pessoas e as coisas com uma expressão misto de pessoa ferida e de desdém. Só Shetykh, o corpulento guarda, lhe soube inspirar uma espécie de estima e ao mesmo tempo de curiosidade. Gosta dos homens fortes, porque lhe evocam os heróis dos contos de fadas.
A patroa, a bela Feliçata, já chegou aos quarenta. Trata com gentileza as pensionistas diligentes, protegendo e encorajando os seus amores; imiscui-se nas suas brigas e sabe reconciliá-los com a maior das cortesias. Tem um rosto amável, bondoso mesmo; nos seus olhos, que parecem estar sempre sob a acção de vapores inebriantes, reina um sorriso perpétuo, equívoco, de expressão fugaz. Se necessário, executa com perfeição várias danças russas, toca guitarra como uma verdadeira artista, e canta com paixão algumas canções de amor. Embora bastante medíocre, a sua voz é dócil, adocicada, melosa, conseguindo prender os auditores e adormecer-lhes todos os sentidos, excepto um. Feliçata adora belos vestidos e chapéus do último grito; há muito tempo que assina uma revista feminina de modas. Quando se embriaga recita, uns atrás dos outros, todos os versos que aprendeu nos tempos em que frequentava a escola. Desta maneira, não é de estranhar que os seus negócios progridam; diz-se, até, que tem conta aberta no banco e uma caderneta de caixa económica com uma soma bem razoável.
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Mal Vavilo surge ao portão do "paraíso", Shetykh, o homem-macaco, desfecha um pontapé tão violento na porta pequena que esta abre-se.
- Boa tarde, diabo mau! - diz-lhe Vavilo à guisa de saudação e enquanto deita um olhar para os braços enormes do porteiro, enfiados nos bolsos da pelica.
- Boa tarde, imbecil! - respondeu Shetykn, com indiferença.
Já por duas vezes Vavilo tentara bater-se com este colosso, mas em ambas as lutas havia sofrido desastrosa derrota. E, sempre que se encontrava diante do seu vencedor, Vavilo empertigava-se, crescia com uma malícia amarga.
Sem insistir, Vavilo entrou em casa de Lodka. Esta, como de costume, veio ao seu encontro bandeando-se e lambendo os lábios. Os seus olhos, de um cinzento azulado, tornaram-se sombrios e, abrindo os braços, exclamou:
?- Ah, querido! Já estava cansada de esperar por ti - diz, com voz lânguida e sorriso equívoco.
- Esperavas por mim, sério ? - riposta Vavilo, carrancudo e com olhar fugidio. - Mas eu vim cá anteontem...
Ela comprime-se contra o hercúleo peito dele, envolvendo-o com o seu hálito quente.
- Não me terias confundido com outro, por acaso?
- Tu? com outro?
Depois desta troca de palavras, Lodka oferece
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cerveja ao amante. E, enquanto descansa nos braços dela, geme:
- Tenho trinta anos já feitos. Todavia, forte como sou, nunca conseguirei encontrar um canto onde os aborrecimentos me passem despercebidos...
- Mas tu podes vir para minha casa sempre que queiras - propôs Lodka, recostando-se no assento.
Vavilo franziu o sobrolho, abanou a cabeça e, com ar triste:
- Vê tu! Vocês mulheres, tal como sois, para mini não valeis mais do que cinco copeques... no máximo! Contigo ou sem ti terei sempre fome.
- Oh! mausão. Então eu não te alimento convenientemente? Não te dou tudo o que posso?
- Não se trata disso, imbecil! Refiro-me à minha alma! O teu dinheiro! Para que me serve ele?
Falavam lentamente, preguiçosamente. Habituados há já muito a não se entenderem, não faziam o mais pequeno esforço para defenderem as suas ideias, as suas aspirações.
- Mas então, que queres tu?-perguntou Lodka balançando-se indolentemente. - Que procuras, no fim de contas?
Vavilo fechou os olhos, fugindo à visão daquele corpo provocante de mulher, daquelas pernas nuas, roliças e alvas como nabos.
- Queres saber o que quero? - balbuciou abafadamente, como através de nevoeiro. - Quero
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encontrar o meu caminho, a minha verdadeira estrada, compreendes ?
- Então procura-a! - responde Lodka com um sorriso preguiçoso. - Quem te impede de procurá-la ?
- Toda a gente! Até tu. Principalmente tu... O quarto estava superaquecido, e sentia-se
fortemente o cheiro de roupa lavada, de cosméticos, de cerveja, de mulher. Como habitualmente, as persianas cerradas, e as moscas, grandes e negras, ziguezagueando desorientadas na atmosfera sufocante da tarde. A um canto, diante do ícone da Virgem de Kazan, ardia, crepitando, uma lamparina de vidro azul, enorme como um olho aberto pestanejando de medo. Na penumbra do crepúsculo movimentavam-se dois corpos lânguidos, quentes, cobertos de suor. Ouviam-se palavras vazias, lentas, derradeiras estrelas do braseiro que acabava de se extinguir.
Geralmente, Vavilo aparecia em casa da amiga belamente despenteado, camisa aberta no peito, olhos brilhantes de arrojo e de desejo insaciável. Toda a inquietação do mundo nele encarnada!
"Lodka! - exclama, ao mesmo tempo que bate no peito, à sua maneira -, eu sou teu, Lodka. Agarra-me, possui-me, meu animal feroz!
Os olhos da mulher iluminaram-se de cintilações verdes. Inclina-se, bandeia-se e, com voz fanhosa e cantante, mendiga como uma pobre,
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mas com a certeza antecipada de receber esmola avultada:
- Querido I Anda cá, meu irmãozinho, esquecido de todos... Anda cá, quero acariciar-te assim... quero abraçar-te, meu pobre abandonado...
- Lodka - exclama Vavilo de corpo e alma mergulhado numa embriaguez infinita-, leva o meu coração, Lodka; leva-o porque me abafa. Ah! Falta-me a respiração...
Nestas ocasiões Vavilo é extraordinariamente belo. E sabe-o melhor do que ninguém. Exalta a destreza do seu corpo vigoroso, que os braços fragrantes da mulher envolvem. A melancólica luz que ainda cintila nos seus olhos desperta em Lodka toda a volúpia e toda a doce piedade femininas.
- Tenho necessidade de respirar ar livre! Lodka, dá-me a liberdade, Lodka! - geme o homem.
De facto, sente-se verdadeiramente oprimido. A mulher olha-o com amor; lágrimas bailam-lhe ao canto dos olhos, aproxima-se dele de forma que ele sinta o hálito ardente e abraça-o como uma nuvem húmida beija a terra sufocada pelo calor.
Depois desta cena patética, Vavilo ergue delicadamente, com curiosidade, o seu rosto pálido e fatigado. Lodka tem os olhos cerrados e os lábios deixam aperceber um tremelicar voluptuoso. Dir-se-ia que no seu pescoço de neve, um
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pouco atrás da orelha, se sentem as pancadas do seu coração; dir-se-ia que palpita ali qualquer coisa com vida...
Então, ele afasta as pernas com precaução: sente-se assaltado por um desejo súbito de fugir o mais rapidamente possível, sem que a companheira dê conta.
Raras vezes obtém êxito nas tentativas deste género. Na sua maioria, ao mais pequeno movimento de Vavilo, a mulher volta a si, sentindo um ligeiro arrepio percorrer-lhe todo o corpo; levanta-se e senta-se no leito, severa ou suplicante.
- Ó que há, Vavilo ? - pergunta.
- Tenho de ir - responde ele, de um sopro, sem voltar os olhos.
Ela encarquilha-se, olhando-o enquanto ele se veste.
- Quando voltas ?
- Logo vês, quando eu chegar.
- Então, adeus.
Mas eis que, no momento de partir, um terrível furor se apodera dele, um ódio súbito o impele a beliscar, a atormentar a única mulher que o ama desinteressadamente. De dentes cerrados, deixa escapar palavras secas como chicotadas, frases cortantes, incompreensíveis:
- Ah! diabinho!... Tudo isto é por tua causa... sem ti... oh! sem ti...
De início ela ri, soltando gritinhos felizes:
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- Deixa-me... Não me faças cócegas.
Mas, quando Vavilo, irritado pelos risos, pelos gritos e pela resistência que ela lhe oferece, resolve bater-lhe, Lodka escapa-se-lhe, corre em direcção à janela, abre a persiana e chama a plenos pulmões:
"Kusma Pietrovitch!"
Logo o formidável Shetykh faz a sua aparição. Mas quando chega junto deles já os encontra de perfeito entendimento: reconciliados e sentados na beira do leito. Então, a mulher exclama com um sorriso ingénuo e desconcertante:
- Oh! Kusma Pietrovitch, desculpa-me! Fui muito estúpida! Estava a brincar, menti-te... Bebe um copo de cerveja, queres? Não te incomodes... tens aqui akuskhy, pepinos salgados, salpicão...
Sem pronunciar palavra, Shetykh enche a goela de cerveja ou de vodka, mede atentamente Vavilo e, desferindo um sonoro arroto, recua e sai sem perder de vista o fautor do escândalo. A porta fecha-se e Vavilo, esgotado pela emoção do momento, murmura:
- Imbecil! Nem percebes quando estou a brincar.
Ela, mais do que nunca risonha e gata, estende-lhe os lábios com um piscar de olhos maliciosos, beija-o e fica-se a olhá-lo provocantemente naqueles olhos que a queimam.
Quando Vavilo fala acerca de Tiunoff e se
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refere aos desígnios dele, Lodka boceja, indiferente, mas acrescenta:
- Nicolau, o telegrafista, também é da opinião que vai haver uma revolução. Também detesta os alemães, os únicos, os únicos responsáveis por tudo.
- Provocadores estúpidos é o que eles são!
- resmungou Vavilo. - Vivem bem, estão gordos... Qual é o seu sofrimento?
- Se queres eu falo ao comissário da Polícia- propõe Lodka sem entusiasmo.
- Que lhe dirias ?
Entretanto, a mulher vai entrançando o cabelo, ao mesmo tempo que faz inchar o peito:
- Não sei - responde. - Diz-me o que queres... Para mim tanto faz.
Após um instante de reflexão, Vavilo afasta os braços e deixa-os cair:
- Não - conclui -, é melhor não. Não te metas onde não és chamada. Além do mais, até eu nada tenho com isso.
E acrescenta, suspirando:
- De resto, quem sabe, talvez o zarolho tenha razão quando fala de uma revolução iminente... Apesar destes acontecimentos não terem pés nem cabeça, de um modo geral não me desagradaria uma revoluçãozinha. É certo! Aborreço-me de tal forma; nem sei onde aplicar as forças. Abafo!
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- Olhem bem para este lindo revolucionário - serrazina Lodka, apertando-o contra si.
- Oh!... Nessa altura é que tu verias de quanto sou capaz - exclama Vavilo, inflamado e com um movimento orgulhoso de cabeça. - Não, tu nem sonhas que espécie de tipo eu sou!
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VI
Um dia, ao fim da tarde, passeavam no jardim as três pensionistas de Feliçata. Lodka e Rosa caminhavam pelas áleas, ora para cá ora para lá, insinuando-se por entre os framboeseiros bravos, enquanto Facha colhia pequenas bagas que abundavam um pouco por toda a parte.
Rosa recitava com ardor versos obscenos. Lodka ria, soltando gargalhadas e fazendo constantemente a mesma pergunta:
- O quê? Que disseste?
E, logo em seguida, admirada:
- Mas que memória que tu tens! Eu nunca conseguiria decorar isso tudo...
- É que ele ensina-me como se eu fosse um papagaio - explicava Rosa -, senta-me nos seus joelhos, agarra-me pelas orelhas e lê, por assim dizer, boca com boca, olhos nos olhos.
- Estes doutores sabem-na toda; para eles
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não há segredos. O teu Riakhine, por exemplo, não recua perante coisa alguma...
- Diante de nada! Escuta mais versos... E, volúvel, Rosa voltava a recitar. Naquela altura passavam diante de Pacha, que
lhes lançou um vivo olhar de reprovação:
- Que desavergonhadas vocês são, meu Deus I
- exclamou.
- Come os morangos e cala a boca! - replicou Rosa, bruscamente, como se tivesse atirado uma pedra.
- Sim - disse, empurrando Lodka, sempre sonhadora -, é bem certo que o teu doutor não acredita em nada, em ninguém, nem sequer respeita a Santa Virgem, nem os anjos.
Moscas e vespas zumbem em redor dos framboeseiros. Corvos, ainda novos, saltitam continuamente por entre a folhagem copada dos brancos salgueiros. Lá longe, na melancólica cidade, os sinos chamam os fiéis às cerimónias vespertinas. Ouvem-se também, não se sabe donde, mas de muito perto, os silvos arrastados e regulares de uma máquina invisível. E ainda o choro de uma criança e o bater da roupa que alguém lava nas margens do rio.
- Gostas do cheiro do funcho? - pergunta Lodka, docemente, à amiga, enquanto esta continua a recitar, toda orgulhosa, sem prestar atenção.
- Para ele é tudo igual, não acredita em nada. Ouve esta...
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Observa à direita e à esquerda e diz, muito baixinho:
- Uma bela manhã, ao acordar, oh! meu Deus... Olha, Lodka, é Sima quem está a espiar-nos!
Pestanejando, Lodka volta-se para a direcção indicada:
- E é mesmo. Sabes que ele também faz versos?
- Que dizes? - exclamou Rosa, empertigando a cabeça com desdém. - Acreditas que um doido desses saiba fazer versos?
- Se queres ter a certeza vamos ter com ele. Queres?
- Essa agora, só a brincar! - aquiesceu Rosa.
Sima espreitava por um buraco do muro; parecia um bruxo; tinha na mão uma linha de pesca muito comprida e fixava as mulheres com um olhar insondável, como um cego olha para o Sol.
Lodka e Rosa aproximaram-se dele, sorrindo brandamente. Os ramos dos medronheiros e a erva alta prendiam-lhes os vestidos. Evitavam tais obstáculos baixando-se aqui e ali, curvando-se para trás ou para a frente e soltando gritinhos agudos, nervosos.
- Vais pescar à linha? - perguntou Lodka, gentilmente.
- vou - respondeu Sima sem se mexer, direito que nem um fuso.
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- Não será cedo de mais ?
- Pelo contrário, é a altura exacta em que o peixe morde a isca-explicou o jovem com os olhos vazios, e sem deixar de fitar o rosto de Lodka
- Ouviste os versos que eu estava a recitar?
- perguntou Rosa, beliscando a amiga.
Sima acenou afirmativamente.
- São bem melhores do que os teus, não é verdade - afirma a rapariga trigueira, com um olhar perverso.
- Não - responde Sima, baixinho. Rosa encoleriza-se.
- Essa agora! - exclama. - Que pretensão! Tu nem sequer sabes fazê-los! Mia-mia-mia, é o que fazes, e já não é pouco, para não dizer nada!
- Eu quero que os meus versos soem como preces - diz Sima, voltando-se para Lodka.
Sempre que esta leviana mulher encontrava o estranho Sima, o brilho imprudente dos seus olhos extinguia-se e as pupilas dilatavam-se, mudando de cor e imobilizando-se. Uma espécie de arrepio gerava-se-lhe no estômago, passava ligeiramente a língua pelos lábios e por todo o corpo corria um frémito diferente, como nunca sentira noutras ocasiões.
Nessa tarde, essa sensação foi mais viva do que habitualmente.
- Como ele é feio!
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Ela esforçava-se por se convencer a si própria, perscrutando o rosto pálido e esmaecido de Sima, o seu corpo abaulado, de braços compridos e pendentes, como cordas de chicotes, e as suas mãos tão secas que pareciam madeira. No entanto, os olhos dela perdiam-se nos de Sima, mergulhavam nas suas águas claras, magnéticas. A mesma trémula atracção puxava-a para esse ser desgraçado, despertando nela um desejo irreprimível de lhe tocar, de lhe agarrar as mãos.
Já por várias vezes Sima lhe havia recitado as suas poesias, e ela, ao ouvir aqueles versos doces e apaixonados, sentia-se invadida por uma espécie de confusão e de enfado que a emudecia. Todavia, não deixava de lhe perguntar:
- Fizeste mais versos, Sima? Já hoje?
- Fiz - respondia ele à tradicional pergunta, baixando a cabeça.
- Oh! diabo, então vou pôr-me a salvo,
- exclamava Rosa, olhando-o com ar trocista. Escuta, Lodka, beija-o e leva-o a dar um passeio !...
E, a rir, embrenha-se pelos arbustos, através dos quais soa a voz recitando de novo mais versos libertinos.
- Pois bem, diz-me qualquer coisa, Sima
- propôs-lhe Lodka, suspirando ligeiramente.
Sima erguia a cabeça e sorria-lhe reconhecido. Manchas rosadas surgiam-lhe nas faces e os seus
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olhos inquietos brilhavam num lampejo húmido. Ela recuou um passo.
Virgem Santa
Mãe do nosso Salvador
Baixa teu doce olhar
Para as infelizes criancinhas
E o queixo de Sima tremia. Recitava com voz lenta e distinta. Imóvel, encostado à parede, observava Lodka secretamente, qual tímido mendigo. De sobrolho carregado, ela marcava o ritmo dos versos que ele recitava, agitando cadenciadamente a cabeça. Estava apoiada à parede com a mão direita e a esquerda brincava com o botão da blusa.
Nas isbas sombrias, criancinhas
Morrem de fome e de frio.
Males atrozes as atormentam,
A morte cruel extingue-lhes a luz dos olhos
Raro é que uma carícia materna
Vá alegrar a infeliz criança
A. carícia só chegará Quando a morte a tiver levado. Apenas será amada A caminho do cemitério.
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- Basta! - exclamou Lodka, com um gesto de recuo.
Sima cala-se, entristecido, julgando Lodka zangada. De facto ela está pálida, os olhos perderam o brilho, tomando um tom azul-escuro, e morde os lábios.
com ar culpado, Sima tenta explicar-lhe:
- ...É que Lisa, a filhinha dos Streltzoff, morreu há pouco. Estava muito doente, de cama há tempos. A mãe, que trabalhava a dias em casa dos burgueses, dizia diariamente à pequenita: "Ah! tenho bem com que me entreter... És tu quem me impede de trabalhar, de ganhar a vida..." Agora, que a pobre criança morreu, a mãe há três dias que não faz outra coisa senão chorar.
Eu compreendo-a - diz Lodka, baixinho -, também perdi dois filhos... Os únicos que tive...
- Ah! - fez Sima. E pestanejou.
Lodka olhou à sua volta. Um crepúsculo róseo invadia o jardim. O sol púrpura brilhava através das árvores pobremente vestidas com a sua folhagem outonal.
- Anda! - ordenou-lhe de súbito a mulher. Sima largou a linha no solo e avançou, dócil,
caminhando desajeitadamente. Lodka, por seu turno, desloca-se com rapidez, curvando-se como se quisesse esconder-se. Empurra Sima para um canto sombrio do jardim e aponta-lhe um monte de garavetos:
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- Senta-te - murmura ela.
Mal ele se senta logo ela lhe passa o braço em volta do pescoço, interrogando-o avidamente:
- Tu amas-me, Sima, não é verdade? Diz-me se me amas?
- Sim, amo-te - respondeu Sima a tremer.
- Pois bem! Eu também te amo.
Ele recua, lançando-lhe um olhar receoso.
- Não é verdade...
- É, é, juro-te por Deus. Se quiseres posso ajoelhar-me. Talvez assim me acredites...
Sima, sacudido por um soluço, lança-se para Lodka, encosta a cabeça aos joelhos dela e, com uma voz ofegante de felicidade, balbucia:
- Há tanto tempo que gosto de ti!...
Lodka afasta-lhe a cabeça desgrenhada e murmura:
- Então vem... mas depressa...
Como Sima não compreendesse, ela agarra-lhe rudemente o pulso e, num movimento selvagem, entrega-se-lhe...
Depois, mudando bruscamente de tom, diz-lhe, já com mais calma:
- Então?... Agora podes vir ver-me as vezes que quiseres, não é? Eu digo ao guarda que te deixe passar.
Afasta-o com um movimento do cotovelo e ergue-se, soberba e possante.
- Sabes que sou casada?-pergunta-lhe, reparando que ele está inebriado.
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- Sim, sei - responde Sima com hesitação.
- Também tenho um amante.
Ele sorri, confundido, e meneando-se sem responder.
- E agora! Que faremos nós ? - pergunta ela com ar curioso.
- vou dizer-lhe...
Lodka estremece e endireita-se.
- O que vais tu dizer? E a quem?
- A Vavilo, nitchevo! - exclama o jovem, candidamente. - Nada receies, eu sei o que tenho de fazer.
Uma expressão terna, quase maternal, passa pelo olhar de Lodka. Depois exclama, severamente :
- Livra-te disso! Tu eras capaz de fazer tal coisa, grande tolo ?
E batendo com ambas as mãos nas espáduas ossudas de Sima:
- Ele matava-te, com toda a certeza. O melhor é calares-te!
De súbito, assalta-a um pressentimento sinistro; dá meia volta e resmunga, empurrando-o:
- Põe-te a andar. Adeus! E se tens amor à pele não te esqueças de ser mudo como uma tumba.
Ele volta-se uma vez mais, querendo ainda abraçá-la, mas ela já se afastava, rapidamente, sem olhar para trás. Fica extático, sem esboçar o mais pequeno movimento, junto de um amontoado
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de detritos cheirando a mofo; depois sorri, com ar sonolento, os olhos húmidos perdidos nos arbustos por entre os quais, como uma nuvem, o vestido branco de Lodka desaparecera.
Ela caminhava rapidamente. Agora quase corria, mais parecendo querer escapar a um desastre. Saltando os pedregulhos que formavam os degraus da escada, foi refugiar-se no seu quarto, fechando-se à chave e, agarrando-se às tábuas do leito, suspira profundamente.
O olho azul da lamparina piscava tristemente na penumbra do quarto; sombras cinzentas envolviam a imagem da Virgem.
A mulher fita demoradamente o ícone, depois ajoelha-se e, feliz por poder esconder-se atrás da cama, cruza os braços sobre o peito e resmunga apressadamente, com voz implorante:
- Virgem Santa! Tende piedade da tua escrava e perdoa a Lodka, pecadora impenitente...
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VII
A nomeada de Sima atravessa o rio. Um dia, o chefe da Polícia deu ordem de conduzirem a sua casa o poeta do bairro. Ouviu-o, por uns momentos, recitar os seus versos e, cerrando os olhos, no final, sacudiu a cabeça e exclamou:
- Precisas de estudar - disse-lhe-, porque no fim de contas não passas de um iletrado. Gostas de ler?
Sima já cumprira o seu dever: tinham-no forçado a declamar; temia a expressão severa do chefe da Polícia e, por isso, conservava a cabeça baixa, calado.
Strekhel passeou as mãos pelo rosto liso e, olhando com curiosidade o desengonçado corpo que se encostara, sem acção, à ombreira da porta, prosseguiu:
- É necessário que leias o mais que puderes. Conheces Puchkine, por exemplo?... Pergunto-te se conheces Puchkine, o nosso maior poeta?
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- Não.
- Não conheces? - exclama o polícia surpreendido.-Estes versos nada te dizem?...
Começa o dia, surge a aurora, aparece o bufarinheiro. Shetykh arrasta-se em lugar...
- São de Puchkine! Onde é que estudaste?
- Na escola paroquial.
- Sério? Mas isso não te impede de conheceres Puchkine. vou emprestar-te alguns livros dele... Agora, aqui, não os tenho... Diz-me, porque . tens tão má cara?
- A minha saúde não vale grande coisa responde o poeta, com voz longínqua, como um
eco.
- Então precisas de tratar-te. Devias aproveitar todos os momentos disponíveis para dares um passeio pelo bosque, onde há muitos pinheiros. Far-te-ía bem.
Deu cinquenta copeques a Sima e acompanhou-o até à porta, com ar maternal.
Também o sacerdote Isaías Kudriansky apreciava as poesias de Sima.
- Fazes bem, Simeão, fazes muito bem dizia-lhe, sacudindo gravemente a bela cabeça.
- Gosto dos teus versos. E do teu espírito, da simplicidade do teu estilo, que me toca directamente o coração. Trabalha, meu filho, não escondas o talento que Deus te deu, implora noite
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e dia ao teu santo patrono, Simeão, esforça-te por saíres da sombra e atingires as alturas dignas de um verdadeiro poeta... Queres beber qualquer coisa?
- Não - responde Simeão com um suspiro-, a minha saúde não mo permite.
- Perfeito! Isso também é digno de elogio!
- afirmou o padre Isaías; e, dando-lhe a tradicional bênção, deixou-lhe na mão três moedas de cinco copeques, enquanto dizia com voz cálida:
- Aceita o meu óbolo de que certamente necessitas; dou-to como paga de me teres lido as tuas obras. Mais uma vez te digo que gosto delas...
Das pessoas instruídas da cidade muitas há que se julgam no dever de convidar Sima. Ele, desorientado, recita com rapidez e, timidamente, na sua confusão, engole sílabas e até palavras inteiras. No final, lá vai, satisfeito, com as moedas de dez e de vinte copeques que lhe dão.
Acontece até que alguns comerciantes o convidam a entrar nas suas lojas e, depois de o terem escutado com a máxima atenção, não deixam nunca de o recompensar com uma moeda, por mais pequena que seja. Os mais novos chegam a conselhá-lo a variar um pouco os assuntos.
- Ouve, meu velho, tu devias fazer qualquer coisa alegre. Não serias capaz disso?
- Não - respondia Sima com ar triste e culposo.
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- É pena!
O Dr Riakhine, depois de tê-lo feito dizer umas poesias, exclama, rindo-se nas barbas dele:
- Mais uma vítima inútil!...
No entanto, sempre foi anotando no seu bloco-notas alguns dos versos de Sima, com a promessa de enviá-los a alguém. Contudo, antes de despedir o visitante, e enquanto esfregava vivamente as mãos, ressequidas como madeira, disse-lhe:
- Oiça, meu amigo, não desperdice muito tempo. É muito possível que as coisas que você faz não estejam mal feitas; porém, eu interrogo-me sobre se de facto isso corresponderá bem ao espírito da época em que vivemos. Não vos prometo seja o que for, mas vou enviar os seus versos a várias pessoas e depois se verá. Conte comigo.
Este nada lhe deu em paga.
Aborrecido e desamparado, Sima começa a evitar as pessoas; vai à cidade o menos possível, só por necessidade imperiosa. Tem bem a noção de que não gostam muito dele, de que desperta apenas uma curiosidade malsã, lamenta não encontrar em parte alguma quem possa compreender o seu coração doente.
Porém, dos sete mil habitantes de Okuroff e de Saretz, um havia, pelo menos, que tomava a sério o poeta: todas as vezes que Sima saía do "paraíso" em que Lodka o enchia das suas carícias, Shetykh, o guarda colosso, barrava-lhe o caminho.
- És tu? - perguntava, reconhecendo o corpo
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seco e desmedido do poeta. -Pois bem! Senta-te um bocado e vamos conversar.
Sempre dócil, Sima sentava-se no banco de tijolo, Shetykh colocava a larga mão sobre o ombro ou sobre o joelho do amigo e implorava-lhe com doçura:
- Não me recitas uns versos?
Como Sima condescendesse de bom grado, Shetykh suspirava, persignava-se intimamente e logo insistia:
- Mais!
O jovem adorava recitar as suas ingénuas poesias a esse gigante que, sem o menor esforço, podia esmagá-lo. E recitava-as de uma maneira muito particular, sem pressas, com voz doce e ar compenetrado, procurando dar um acento particular às palavras mais preferidas. Outras vezes, calava-se por momentos, como que misteriosamente, e batia no cotovelo do seu auditor a fim de lhe chamar a atenção para as passagens mais importantes.
Das profundezas das ruínas ainda solenes da antiga residência senhorial vinham, por vezes, gritos estridentes de raparigas, a voz langorosa de Kolia, o telegrafista, a voz tonitruante de Vânia Khriapoff, primogénito de um usurário, ou, ainda, canções libertinas e o som de uma guitarra - mas estes sons, de uma semi-embriaguez artificial, em nada importunavam Sima e o seu auditor.
- Mais! - reclamava este.
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O seu olhar, cintilando através das fartas sobrancelhas ruivas, contemplava o céu e a via láctea que o atravessava, qual explosão alegre de estrelas, a marcha lenta da meia lua cor de cobre ou o deslizar tranquilo das nuvens. Shetykh fitava o firmamento, escutava o poeta e, com um encolher de ombros, persignava-se às escondidas.
Comprimidas em volta do castelo dos Woevodine, as isbas pareciam dormir um sono pesado, eterno. Tugúrios miseráveis que a pobre2a e a selvajaria dos mujiques transformavam em enormes amontoados de imundície.
Encostado à porta cocheira, Sima continuava a recitar, recordando-se de vez em quando das carícias de Lodka, carícias que lhe pareciam tão prematuras e incertas quão forçadas.
Nessa altura sentia um vivo descontentamento, uma revolta grande contra a sua amante.
" - Ah! - pensava ele - se me fosse dado admirá-la com calma, sem provocação, como os outros que se demoram junto dela tanto tempo quanto o desejo lá os retém!"
Nessas ocasiões Sima sentia-se mais abatido do que nunca; esquecia-se de recitar e até de falar; a voz ressoava molemente, sem expressão; o coração deixava de bater.
- Nitchevo! Nitchevo! - dizia-lhe Shetykh, deixando escorregar para as mãos dele quatro ou cinco copeques - agradeço-te na mesma.
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- Mas eu não quero o teu dinheiro - protestava o poeta, fugindo com a mão.
- Aceita-o - e ameaçava zangar-se -, sou eu que te digo! Eu tenho que chegue; sou só no mundo...
Sima cedia, por fim, mas mais para não ferir aquele bravo homem. Depois, lá partia, errante, para a aventura através da estepe.
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VIII
Além do trabalho profissional, Facha, a ruiva, trabalhava ainda como criada. Era a cozinheira que a acordava muito cedo, antes de todos os outros. E Pacha começava por arranjar o salão onde eram recebidos os clientes, divisão tão grande como uma garagem, com cinco janelas ogivais, duas das quais, dissimuladas por uma tapeçaria de feltro, nunca se abriam.
O tecto era decorado com flores de todas as cores, numa grinalda onde havia estranhos pássaros verdes e amarelos, e dois amores - um tinha o rosto já tingido; ao outro faltava-lhe uma perna e parte do ventre.
Matriona, a cozinheira, contara um dia a Pacha que o tecto havia sido decorado em 1812, por um francês prisioneiro de guerra. O tecto era objecto de admiração de muitos, até de Pacha, que todas as vezes que entrava na vasta sala com
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a vassoura, o espanador e os panos do pó, nunca deixava de o admirar, especada a meio da divisão, de nariz no ar, olhando atentamente os motivos da pintura, já atingidos pelas manchas de humidade, pelas fendas e pelo negro do fumo do tabaco.
- És doida? Quando acabas tu de ficar para aí, de boca aberta e olhos esbugalhados - resmungava Matriona, personagem importante da casa. -Despacha-te, já são horas de estar a pé...
com um sorriso hipócrita, Facha respondia, lançando-se ao trabalho:
- Muito bem, muito bem... Apesar de tudo, como tinha jeito este francês! E como conseguiu ele fazer isto? com certeza que se viu obrigado a trabalhar deitado, não acha tia Matriona?
Matriona encolerizava-se:
- Para ti só existe uma maneira de trabalhar: deitada!...
Algumas vezes, Pacha mergulhava de tal maneira nos seus sonhos que nem ouvia os gritos rabugentos das companheiras nem as exortações da patroa. Nessas ocasiões, as outras, algo maliciosas devido às libações da véspera, lançavam-se sobre ela como gato a bofe, batendo-lhe e fazendo-a ir ao chão e comer o pó do soalho.
Pacha não se defendia quando era atacada; limitava-se a fungar, fechando os olhos e a boca. Mal terminava a contenda, imediatamente se punha a gemer e a lamentar-se, ao mesmo tempo que
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iniciava o exame dos prejuízos, começando pelo vestido ou pela saia. Depois dirigia-se para o pátio, onde chorava e praguejava à vontade, com voz forte de baixo. Nessa altura, a porta pequena não tardava a entreabrir-se para nela assomar a cabeça de Shetykh, cheio de curiosidade de saber o que se passava no interior. Triste, taciturno, ouvia pacientemente as lamúrias de Pacha, e só no final, quando já estava cansado das suas queixas, é que resolvia acalmá-la.
- Então! Já basta de choro, rapariga impudente! Gritas que nem uma doida; esqueces-te de que quem passa na rua pode ouvir.
- Doi-me o corpo todo! -- explicava Pacha, sossegada por instantes.
- É por isso que te batem! - respondia Shetykh, a quem não faltava o bom senso.
Uma noite, a hora tardia, dois clientes bêbados que nem cachos ofenderam Pacha da maneira mais abominável e mais ultrajante por que se pode ofender uma mulher. No final, quando conseguiu libertar-se, fugiu desesperadamente para o pátio, escondendo nas mãos o rosto rubro de vergonha, para se ir agachar junto da porta cocheira e ali dar livre curso às lágrimas.
- Outra vez a chorar?--perguntou-lhe Shetykh, entreabrindo a porta pequena.
- Oh! tio Shetykh, se soubesse como sou infeliz ! - soluçava a rapariga.
- Acaba lá com isso! - aconselhava o guarda.
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Mas, como ela continuasse a chorar cada vez mais, Shetykh ouviu-a durante mais algum tempo e, por fim, com um longo suspiro:
- Meu Deus! Que fraca voz que tu tens! Diabos te levem!
E, logo em seguida:
- Anda cá!
Abre a porta, ela sai e, lançando um olhar prudente à sua volta, obriga-a a sentar-se no banco, a seu lado.
- Pronto, cala-te. Sossega e não chores mais. A noite está calma... Não se vê vivalma... Quem te ofendeu?!
com a voz entrecortada pelos soluços, Pacha começa a descrição. Mas ele interrompe-a, desgostoso:
- Isso é bonito. Basta. Detesto essas porcarias. É melhor não se falar nisso...
Ela cala-se, estranhamente dócil e apoiando-se ao ombro de Shetykh. Este procura afastá-la um pouco mas não consegue. Então, assentando os braços hercúleos nas pernas, inclina a cabeça para a frente e começa a falar sem olhar para ela:
- Ouves o ladrar do cão da Markucha? À noite fecham o animal sem lhe darem de comer, suponho que para o tornarem ainda mais bravo... Repara como a rua, a esta hora da noite, está tão tranquila... É uma hora em que quase não se vê ninguém... Olha, Pacha, observa: uma estrela cadente! Dizem que quando o mundo
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acabar o céu encher-se-á de estrelas cadentes Deve valer a pena ver-se...
Falava ininterruptamente. Por vezes, entortava a vista, olhando de soslaio para as roliças pernas da rapariga, para os braços e para o peito semidescoberto. Começou então a sentir o corpo de Pacha tornar-se, lentamente, cada vez mais pesado, o que lhe causou viva satisfação. Sem afastar os joelhos, levou a mão direita à cintura da rapariga, enlaçou-a, mas qual não foi o seu espanto quando ouviu um longo e plácido ressonar.
- Estás a dormir?--pergunta ele, admirado. E, como não obtivesse resposta:
- Então ? Mexe-te!
Pacha limita-se a responder dando um estalido de aborrecimento com a boca e soltando um suspiro calmo e profundo. O homem fita lhe a fronte, coberta de madeixas ruivas: boca entreaberta, lágrimas brilhando ainda nas faces, os braços caídos sem defesa ao longo do corpo.
Shetykh esboça um sorriso indulgente e, sacudindo levemente a cabeça, resmunga:
- Que doida! Mas que grande doida!
O sono tranquilo de Pacha e o seu abandono infantil predispõem Shetykh favoravelmente. Olha-a de lado, com pena de ter de reprimir os movimentos involuntários das suas mãos; permanece junto dela, sereno, durante muito tempo, quase até ao nascer do sol. Chega a ouvir os
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bêbados que se dirigem ao "paraíso". Porém, o relógio da catedral bate quatro horas. Pacha acorda e ele diz-lhe:
- Levanta-te e esconde-te na minha guarita, porque de um momento para o outro podem sair as pessoas que estão lá dentro.
- Como pude eu adormecer?-pergunta Pacha, olhando admirada em redor.
- Muito simples; fechando os olhos... e começando a dormir...
- Ai, meu Deus!
- Vá...
Abre a porta pequena diante dela e fica a aguardar que aquelas formas brancas desapareçam no cubículo contíguo à cozinha. Em seguida, fecha a porta, alarga as pernas e fica-se a olhar atentamente para o solo como se estivesse a ver qualquer coisa de grave.
Nessa noite as relações entre Pacha e Shetykh em nada foram afectadas. Todavia, ao fim de algum tempo, novo incidente ocorreu, mais sério do que o primeiro.
Um belo dia, depois de uma noite de devassidão particularmente agitada, Lodka levantou-se ao meio-dia, queixosa e de mau humor; doíam-lhe os olhos, ardia-lhe o estômago, tinha dores
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em todo o corpo. Põe-se a bater com o pé no sobrado e, como ninguém atendesse rapidamente ao seu chamamento, continuou a bater cada vez com mais força, até que às tantas já o fazia com os dois pés. Havia dureza e fúria no seu olhar.
Quando Pacha surgiu à entrada da porta, Lodka atirou-lhe um sapato à cara e, lançando-se à criada, rasgou-lhe a blusa, empurrando-a depois escada abaixo.
O resultado foi Pacha refugiar-se mais uma vez no pátio, para ali chorar o seu infortúnio e, mais uma vez também, aparecer Shetykh, ainda esguedelhado, pois acabara de se levantar do leito e mais parecia um espantalho do que um homem.
- Que há?
- Foi Lodka que me encheu de pancada.
- Porquê ?
- Era bom que eu soubesse? Meu Deus!...
- Meu Deus! - repetia Shetykh, imitando a entoação vulgar de Pacha.
E acrescentou, num tom autoritário:
?- Vai lavar a cara.
Assoou-se ruidosamente, fungou e reentrou em casa, enquanto Shetykh resmungava com um gesto ameaçador na direcção do edifício:
- Ah, porcos! Hão-de ter notícias minhas. com um formidável pontapé atira para longe
um caco de garrafa que se lhe deparou e, com ar resoluto, enrugando a fronte, dirige-se para
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a cozinha, onde Feliçata e Matriona discutiam i animadamente, de mãos erguidas. Abriu a porta, i parou na soleira, tapando-a quase totalmente com o seu corpo maciço e, cortando a palavra às duas mulheres, exclama:
- Porque batem sem razão em Pacha?
- Que dizes, Kusma? - pergunta-lhe a patroa com voz pausada, sem compreender de que se tratava.
- Digo que não há direito de se bater em Pacha sem razão - repetiu Shetykh, assentando as mãos de gorila nas almofadas da porta.
Matriona e Feliçata esbugalharam os olhos, embaraçadas. Durante três longos anos, este homem mantivera-se à porta da casa, sempre dócil, taciturno, obedecendo a todos, nunca se intrometendo no que quer que fosse, e eis que se permitia fazer observações à patroa!
- Não devem voltar a bater-lhe. Ela está tão inocente como uma criança.
Feliçata sorriu com doçura, levantou a cabeça e avançou lentamente para o guarda. Nesse dia tinha os cabelos arranjados em coroa, o que dava a impressão de que era mais alta e mais imponente que de costume. O grande pente vermelho, as pulseiras e os anéis que trazia nos pulsos e nos dedos, o tilintar das chaves na cintura, os dentes à vista e os olhos mais trocistas deste mundo, tudo isto se impôs a Shetykh, que deixou cair as mãos e baixou a cabeça.
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- Diz-me cá. Quem és tu para me vires falar dessa maneira?-perguntou Feliçata, maliciosamente.
O homem balbuciou algumas palavras ininteligíveis.
- Fora daqui! - ordenou a patroa, indicando a porta.
Shetykh deu meia volta, pesado como um elefante, e ouviu ainda Feliçata dizer para a cozinheira, antes de fechar a porta atrás de si:
"Que diabo terá mordido ao bom homem" para estar assim tão mal-humorado? Não é possível, deve ter tido sonhos maus, com toda a certeza !"
Depois de ter parado um instante diante da porta, deitou a mão ao balaústre da escada e sacudiu-o. A madeira carunchosa, datando de tempos imemoráveis, emitiu um som queixoso. Entretanto, na cozinha, a voz de Matriona, ao mesmo tempo insípida e sibilante, insinuava servilmente :
- Oh, minha senhora, ele foi bem corrido!
- Bem sabes que comigo ninguém brinca...
- Não há dúvida de que a senhora é uma verdadeira patroa!
- Não esqueças que tenho sangue azul, Matriona.
- Até vos chamam "a generala", de tal forma conduzis bem o vosso mundo.
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- Os nobres nada receiam. Quanto ao que acaba de passar-se, basta dizer uma palavrinha ao comissário da Polícia para que esta espécie de alarve fique reduzido a nada e seja atirado para a cadeia. Como a cidade se encontra actualmente cheia de rumores sinistros, é muito natural que Kusma lhe tenha sentido o cheiro. Mas para aqui vem de carrinho, porque não é lá muito fácil meter-me medo. Lá isso não!
Shetykh olhou à sua volta, mugiu como um toiro ferido e, em seguida, desceu a escada. As suas pernas arqueadas tocavam nos pedaços de madeira e de tijolo, nas pedras, enfim, em tudo o que encontrava no caminho.
Entretanto, Lodka, ainda por vestir, saboreava uma chávena de chá forte e voltava a deitar-se. Agravara-se a sua indisposição. Afirmava que enorme sanguessuga se lhe havia agarrado ao coração, que lhe bebia o sangue, e que, já cheia, se arrastava pelo seu corpo, cortando-lhe a respiração.
De súbito, no momento em que ela começava a perder a noção da existência, no exacto momento em que corpo e alma estavam prestes a mergulhar no negro abismo do sono, a porta do quarto abre-se docemente. Ergue a cabeça e vê o rosto macilento de Sima, que lhe sorri com uma graça infinita.
- Não estás a dormir? - pergunta-lhe, sem
ousar entrar.
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Ela fecha os olhos, reabre-os, com ar descontente, e responde em voz baixa:
- Estou um pouco doente... Mas entra.
Prudentemente, nas pontas dos pés, Sima aproxima-se do leito, inclina-se para ela e fita-a nos olhos.
- Posso ficar um bocadinho? Ela faz-lhe um sinal afirmativo.
Sima, feliz, senta-se timidamente na beira do leito, poisa os dedos brancos de Lodka nos seus joelhos e, com a palma da mão, acaricia-lhe todo o braço, quente e acetinado, desde o punho ao cotovelo.
- Passei quase todo o dia de ontem junto da estrada e mal consegui fazer uns versos... Queres que diga alguns para ti?
- Acerca da Virgem, como de costume, não?
- resmungou Lodka.
- Não, acerca da vida. Queres ouvi-los?
- Se tu quiseres - aquiesceu a mulher com um suspiro.
Oh! Senhor, tende piedade de nós, Teus escravos!
começou Sima em voz baixa. Mas logo foi interrompido por Lodka:
- Sempre a mesma ladainha. Já deito isso pelos olhos. Não achas que é uma maçada muito grande estar eternamente a ouvir a mesma coisa?
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com um sorriso triste, Sima baixa a cabeça e
cala-se.
- Vá lá então! - continua Lodka, fechando os
olhos com lassidão.
Logo Sima começa, precipitadamente, quase com voz imperceptível:
Oh! Senhor, tende piedade de nós,
Teus escravos!
Onde encontrar forças bastantes
Para lutar contra a vida adversa
E a. miséria opressora!
De que somos nós culpados?
Todos nos submetemos à Tua santa vontade
Sem jamais discutir Tuas leis.
Mas a morte espreita
E contínuos desgostos a ajudam.
Tu deixas-nos morrer
Dia a dia
Hora a hora!
- Quando é que acabas de te lamentar? pergunta-lhe Lodka asperamente. - Bem melhor farias se escrevesses canções de amor, por exemplo. Em vez disso, repetes estupidamente, como um danado: "Senhor! Senhor!" Até pareces um padre... Se gostas de mim porque não compões versos para mim. É vexatório, talvez.
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Sima suspende as carícias e, sacudindo a cabeça, exclama:
- Não sei escrever acerca das mulheres.
- Mas aprendeste a amá-las. Porque não tentas ?-diz ela, gravemente.
Ergue-se do leito com energia, senta-se e começa a balançar o corpo, com as mãos nos joelhos e ar pensativo. Ele passeia a vista, melancolicamente, pelo quarto onde tudo lhe é familiar. E repugnante, também: as paredes forradas a papel cor-de-rosa, o tecto branco, alvo mesmo, mas cheio de fendas, o penteador, os lavabos, a velha cómoda desventrada e, no canto, a chaminé enegrecida. De noite, como de dia, a penumbra reinava neste quarto mal iluminado e de atmosfera sufocante.
- Não sei escrever acerca das mulheres.
- Mentes - diz finalmente Lodka, martelando as sílabas ?-?, não é verdade que não saibas escrever acerca das mulheres; acaso não tecem os teus versos louvores à Virgem? Ou não é? - repetiu, dando um estalido com a língua e piscando os olhos.
Sima lança um olhar para o peito nu de Lodka e, numa atitude de impossibilidade, abre os braços e deixa-os logo cair.
- Se tu ouvisses os versos que esse porco desse doutor recita?
Ela abaixa um pouco as pernas, atrai Sima para si com doçura, inclina-se ligeiramente para a frente e, com um movimento do corpo, toca-lhe
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ao de leve com os seios na cara. Ele experimenta uma sensação ao mesmo tempo deliciosa e incomodativa. Sente uma dor nas costas; o corpo, longo, a escorregar, e faz tentativas para se endireitar mas sem o conseguir; chega até a curvar-se.
- Caio - diz, embaraçado.
- Que desajeitado!
Ela ajuda-o a sentar-se, beija-o e, fitando-o nos olhos, implora-lhe:
- Diz-me, fazes os versos?...
- Que versos ?
- Versos alegres, divertidos.
- Alegria?... O que é a alegria? - pergunta em voz baixa.
- Qualquer coisa de alegre a meu respeito! Ela cala-se, perscruta longamente os olhos
claros de Sima, olhos sem fundo e, depois, tapa-os com a palma da mão.
- Não, não deves ser capaz disso. És tímido em demasia. Tanto pior!
- Não é bonito blasfemar - diz Sima, sem saber porquê.
Lodka, repentinamente desconfiada, bate-lhe nas costas:
- Não me faças cócegas - exclama, caprichosa - tens as mãos frias; não me toques, deixa-me estar sossegada.
Sima levanta bruscamente a cabeça, pondo a descoberto os olhos que a mão de Lodka encobria;
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olha para ela como um mendigo e, com um sorriso triste que lhe crispava os lábios:
- Tu não me amas, Lodka. Eu não te agrado. com os braços cruzados na nuca e os olhos
fixando o tecto, ela responde:
?- Eu, se soubesse escrever, só escrevia versos escandalosos, de fazer corar toda a gente.
Mas Sima repetia, com o indicador no peito de Lodka:
- Não, Lodka, tu não gostas de mim.
- Boa piada! - replica ela, calmamente. Como podes tu dizer isso? Por eu nunca te pedir dinheiro...
Depois de uns momentos de silêncio acrescenta, com uma olhadela coquete:
- Até porque gosto de todos os homens; é o meu ofício.
Sima suspira, poisa os pés no chão e senta-se, voltando a cabeça.
- Se é verdade que me amas, um bocadinho ao menos, é necessário confessá-lo a Vavilo... De contrário, é uma vergonha para mim!
Tomada de pânico, Lodka dá um salto, passa-lhe um braço em volta do pescoço e procura convencê-lo com toda a persuasão de que é capaz.
- Nunca penses nisso! Ouves-me bem? Só a ti eu amo! Quanto a Vavilo, bem sabes... é um homem à parte...
De olhos cerrados, estende-se ao comprido.
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- Tu não dirás por que motivo eu fico com ele? - prosseguiu Lodka, encontrando a calma e já com voz mais segura.-Por medo, simplesmente. Se eu não cedesse, ele matava-me, tenho a certeza! Mas tu... gosto de ti, entendes?... Gosto de ti... pela salvação da minha alma, entendes?
E estreitava, cada vez com mais força, aquele corpo delgado e descarnado, olhando-o apaixonadamente, de pupilas dilatadas, e, entre dois beijos, explicou-lhe:
- Deus há-de perdoar-me muitos pecados por este amor puro, tenho a certeza. Como poderia eu não gostar de ti?
Sima estremecia aos beijos dela, como um pássaro ferido. Ardia num fogo devorador. De olhos semicerrados procurava os olhos de Lodka, que se lhe abandonava, mais complacente do que habitualmente - mas sem alegria e sem desejo.
- Não te aborreças, Sima - exclamava ela displicentemente -, tudo se arranjará.
E, baixinho, num tom de enfeitiçar:
- Experimenta, meu querido, escrever qualquer coisa de jeito, para que os outros te respeitem. Tem coragem! É fácil dizer-se o que se quer, bem sabes! Repara, por exemplo, no que fazem as pessoas endinheiradas, que até gracejam com os anjos. São menos estimadas por isso? Evidentemente que não, pelo contrário!
Estrelinhas verdes brilhavam nos seus olhos
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enormes, desmesuradamente abertos. Grande rubo subia-lhe às faces, que se inflamaram, de tal forma estava excitada. O peito arfava-lhe precipitadamente e os seios palpitavam como duas pombas brancas.
com a mão trémula, Sima acariciava o rosto de Lodka, fitava-a nos olhos ingénuos e enganadores, e sentia-se novamente inflamado ao escutar o doce murmúrio que o acalentava:
- O meu amor por ti é o meu único mérito, Simuchka. Sei muito bem que não passo de uma pobre pecadora...
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IX
Corriam boatos na cidade. Boatos vagos e sinistros. Habitantes e autoridades, todos cochichavam, mas ninguém ao certo sabia de que se tratava. A bem dizer, só Kolia, o telegrafista, falava em voz alta e de tal forma que de dia para dia as palavras que proferia se tornavam mais impertinentes, mais provocadoras.
Delgado, vivo e vestindo com apuro, corria a cidade de lês a lês, de nariz no ar, espalhando por toda a parte os rumores alarmantes cuja origem ele próprio ignorava.
E, quando se lhe perguntava: "Mas... como aprendeste tu isso tudo?", respondia, com importância : "- Podem acreditar em mim".
Nesta altura, fazia um ar digno e ajustava o uniforme elegante que trazia vestido.
- Sim! Sim! - resmungava o Dr. Riakhine, tentando perturbá-lo. - Não vejo motivos para
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andar tão agitado, meu caro. Temos de nos arvorar em filósofos: o homem, por mais que faça, não consegue acelerar os acontecimentos e muito menos entravá-los, tal como não consegue impedir que a terra ande à roda, a paralisia geral evolua ou ainda, por exemplo, que pare esta chuva idiota. O que for há-de soar. Inevitavelmente, quer queiramos quer não. Tal como o contrário: o que tem de acontecer acontece mesmo e ninguém pode contrariar o destino. Já há muito que Marx demonstrou tudo isso e nós nada podemos fazer, absolutamente nada!
- Peço desculpa, doutor! - exclamava Kolia, indignado. - É preciso fazer qualquer coisa, apesar
de tudo.
- A lei universal incita-nos a crescer e a multiplicar-nos, a povoar a terra, O resto não nos diz respeito, de maneira alguma. E eu peço-lhe que me acredite, meu amigo, toda a humanidade, nós inclusive, claro, existe apenas para desempenhar essa tarefa tão simples quão agradável, e que, só por si, justificaria a nossa presença no mundo.
- Meu Deus, que terrível personagem que sois com esse arrazoado!
- Não é mais nem menos do que o arrazoado de todo o russo provinciano, pois ninguém ignora que os campos da Rússia são essencialmente povoados por gente que vive em permanente misantropia, enquanto que vós andais excitados e Aspirais a uma constituição
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liberal? Atenção, meu caro, não vos apresseis demasiado. Tempo virá em que a tereis, essa constituição, com todos esses progressos sociais ou pretensos como tais. E, enquanto aguardais, quedai-vos tranquilo, sossegado, e, principalmente, folheai Tolstoi - porque por agora é tudo o que necessitais. O nosso verdadeiro guia é Tolstoi: ele, melhor do que ninguém, conhecia o sentido da nossa vida aqui, isto é: "Nada fazer porque tudo se cumpre espontaneamente, para nossa felicidade e nosso prazer." É esta a filosofia mais essencial e mais útil para uso dos camponeses russos e até mesmo dos estrangeiros.
- Falais exactamente como Tiunoff- observa Kolia, agastado.
- Tiunoff, o encadernador ?...
- Relojoeiro, talvez...
- Talvez também relojoeiro. Um camponês russo, sem nada saber, abraça qualquer ofício...
- Meu Deus!... - suspirou o homem. E partiu, desorientado.
Uma doença misteriosa consumia o doutor Riakhine. Esta figura intrigava Kolia, atraía-o irresistivelmente devido aos seus gracejos, que desencadeavam na cabeça do jovem telegrafista ideias audaciosas e até temerárias. Gostava também do aspecto do doutor, que lhe fazia recordar um instrumento cirúrgico, muito delicado, guardado em guarda-jóias de preço. Gostava, ainda, das gravatas que ele usava, das camisas, dos fatos
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de bom corte e dos gestos untuosos, graciosos, das suas pálidas mãos. Por vezes, os sarcasmos do doutor provocavam no coração deste homem sensível uma angústia enorme, mas eram mais frequentes as vezes que lhe inspiravam uma espécie de orgulho. Repetia, fielmente, aos amigos, os aforismos do epicúreo, espantando-os, o que fazia com que a seus olhos passasse por um ente de certo modo invulgar, inteligente, dotado de um espírito culto e mordaz.
Todavia, apesar destas conversas decepcionantes com o doutor, Kolia verificava que na cidade, e também fora dela, reinava uma curiosidade doentia, índice de verdadeira inquietação. Quase toda a gente esperava por qualquer coisa de desconhecido, que deveria transformar, de alto a baixo, a ordem universal. Encontravam-se na rua ou no mercado para discutirem mais à vontade, com veemência, apaixonadamente mesmo, no meio de um grupo de auditores que escutavam os oradores com respeitosa atenção.
Corajosamente, Kolia intrometia-se nas discussões.
- É impossível continuar-se a viver como até aqui...
- E porquê ? - perguntavam os citadinos com desconfiança, intrigados. - Porquê? Sempre temos vivido satisfeitos
- Por tolice!-afirmava Kolia, sem perder a calma.
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- Perdão, perdão! De quem é a culpa?
- De toda a gente! Até vossa!... - exclamava o jovem, tendo em mente as teorias do doutor Ki Riakhine.
Alguns encolerizavam-se. -De qualquer maneira, vão um bocado longe -observavam. - Que bicho lhes teria mordido?
A multidão escutava avidamente Kolia, até li com prazer, dirigindo-lhe várias perguntas. De uma maneira geral, estas eram de ordem estritamente prática, mas ele lá conseguia desenvencilhar-se, umas vezes com maior habilidade, outras
com menor.
Passados uns tempos, toda a cidade parecia viver o dia a dia, havendo a sensação de se estar nas vésperas de partida para o desconhecido. Às mulheres, que, como habitualmente, pretendiam efectuar quaisquer compras a contar com o Inverno que se aproximava, os maridos respondiam-lhes vagamente:
"Espera mais um tempo. Na hora presente nunca se sabe o que está para acontecer. Não sejamos apressados, mas sim razoáveis!"
Um belo dia soube-se, com espanto, que as autoridades da região se haviam reunido por mais de uma vez, a fim de a todo o custo se estabelecerem os meios de se manter a ordem pública. Porém, no final, foi anunciado que o padre Isaías, nas cerimónias vespertinas do domingo seguinte,
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pronunciaria um sermão com o qual poria fim a todos os boatos. Ora, quase na mesma ocasião correu o boato alarmante segundo o qual um batalhão havia sido enviado urgentemente para Okuroff, e que devia chegar de um dia para o outro.
- Soldados! - gritava o alfaiate Minakoff, permanentemente embriagado. - Agora compreendo tudo...
Todavia, apesar de muito instado pelos amigos, Minakoff nunca quis falar daquilo que havia compreendido.
Nesse mesmo dia, ao cair da noite, sentado sobre um monte de entulho que se encontrava diante da igreja de São Nicolau, Minakoff lamentava-se, com as lágrimas nos olhos.
- Oh! meu Deus, chegou sem dúvida a
nossa última hora.
Kapinduk, o agente da Polícia, sentado perto dele, fazia os possíveis por acalmá-lo:
- Então? Estás a chorar como uma Madalena! Talvez não seja nada... Aliás, nunca se sabe!
Contudo, parecia confirmarem-se os rumores acerca das medidas que as autoridades haviam decidido tomar. Assim, o chefe da Polícia convocou o telegrafista Kolia para comparecer urgentemente no posto e intimou-o a ter mais cuidado com a língua. Desde essa altura, o jovem tagarela deixou de percorrer a cidade e de semear o pânico.
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O agente Kapinduk, por sua vez, foi certa manhã visitar o seu amigo alfaiate.
- Acompanha-me ao posto, Igor...
- Fazer o quê ?
- Ensinar-te a espalhar boatos falsos acerca do que se passa...
Também foram presos alguns vagabundos: Vavilo Burmistroff e mais dois ou três companheiros seus, que desapareceram da circulação durante algum tempo.
No domingo seguinte, na cerimónia da tarde, a catedral encheu-se até à porta. Numa atmosfera de suor, os fiéis escutaram religiosamente o belo sermão do padre Isaías, que falou de Absalão, de Pedro o Grande, da sabedoria do Rei Salomão, do ano de 1812, de Napoleão, de Sebastopol, da abolição da escravatura, da inveja que a Rússia inspirava a certas potências estrangeiras e dos perigos de uma credulidade exageradamente ingénua.
De regresso a suas casas, os citadinos comentavam calorosamente as palavras do padre Isaías.
"Do que não há dúvida é de que estamos em vésperas de acontecimentos muito graves. Provam-no as palavras do padre, pois, de contrário, não seria incomodado".
Houvesse ou não razão, o certo é que o alarme se propagava dia a dia. Fundados ou infundados, os boatos encontravam crédito na multidão. Dia
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e noite, formavam-se grupos compactos na rua, trocando opiniões. Um, dizia:
- Como sempre, a culpa é dos alemães...
- Como se explica que a Alemanha nos tenha querido sempre iludir? - perguntava outro.
Um terceiro respondia, com conhecimento de
causa:
- Porque os alemães são de mais para o território em que vivem. A população não pára de aumentar. Olha para um mapa e vê como os temos empurrado pela terra dentro. Nada mais lhes resta do que areia e água salgada. É um povo
de pé descalço.
- Assim já compreendo porque têm inveja
de nós!
- Tenho a certeza de que ainda um dia se fará apelo aos verdadeiros russos - clamava a voz rouca de Tiunoff.
- Quem disse?
- O zarolho do bairro.
- Não vale a pena ouvir o que ele diz - exclamavam os mais desafogados.
E afastavam-se todos, cada um para seu lado" com um gesto de desprezo. ?
Brandindo a sua bengalinha de cerejeira Tiunoff percorria o bairro e até a cidade, em todas as direcções, prestando sempre a maior atenção a todas as novidades, e fitando com aquele seu olho sombrio ora um rosto ora outro, qual cigano examinando cavalos numa feira.
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Frequentemente perguntavam-lhe:
- Mas, no fim de contas, que se passa exactamente?
- Sei tanto como vós - respondia, com os lábios cerrados.
E logo deixava o interlocutor, em busca de outro local onde, por sinal, lhe eram feitas as mesmas perguntas, que sempre traíam inquietação.
Um certo mal-estar desenhava-se no rosto ressequido do zarolho, que trajava andrajosamente. Amarrotado e sujo, bem parecia ter passado pelo interior de qualquer chaminé estreita. com frequência era visto a passear na companhia de Matwei Kojemiakine, analista amador, cujos olhos permanentemente tristes e mãos amarelentas cofiavam uma barba branca e assustavam quem passava, principalmente as mulheres grávidas.
Foram lúgubres fantasmas que trouxeram para o bairro a última notícia: em breve haveria uma grande reunião no mercado, ou melhor, no cabaret de Semianikoff.
A notícia foi confirmada e os habitantes do bairro, nervosos e barulhentos, começaram a chegar em massa ao local fixado, Deus sabia para quê.
No cabaret, o estatístico corcunda Shishmarioff, de pé sobre uma mesa e com as costas apoiadas à parede, abriu com autoridade os debates
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improvisados. Levantando os braços, grita a plenos pulmões a fim de impor silêncio:
"Chegou finalmente o dia em que Rússia tem consciência!"
Ao pronunciar estas palavras abanava tragicamente, em todos os sentidos, a enorme cabeça. A voz traía-o a cada instante e gotas de suor cobriam-lhe a testa. O cabaret regurgitava de gente; ouviam-se ranger as mesas e as cadeiras, gemer as tábuas do sobrado, enquanto à porta a multidão se comprimia, cada vez mais densa, e Semianikoff, o dono da casa, não cessava de se lamentar com voz aguda e efeminada:
"Ah! miséria!... Quem me compensará dos
prejuízos"?
Vozes impacientes dirigiam-se a Shishmarioff:
- Despache-se! Não esteja a demorar isto!
- Fale-nos do que nos diz respeito!
- Para já não é todo o resto da Rússia que nos interessa, mas apenas a nossa terra.
- Olha o velho! Não sabe nada de nada!
Nesta altura já o local da reunião se assemelhava a enorme caldeira em que as pessoas se agitavam como grãos de trigo moiro em água a ferver. O céu cobria a terra de pesada manta cinzenta, envolvendo a estepe com um véu opaco, saturado de uma humidade que penetrava nos corpos até aos ossos.
"A ideia de liberdade, de solidariedade e de progresso!..." gritava Shishmarioff.
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Comprimidos na praça, os habitantes dos subúrbios forçavam as portas, introduziam-se em casa pelas janelas baixas e gritavam com voz rouca:
- Mais alto! Mais alto!
- He! Lá atrás ninguém ouve!
- Para a rua, para que todos possam ouvir. "... E eis que, finalmente, todas as classes
da sociedade chegam a acordo para..." - afirmava o estatístico corcunda.
Entre a assistência viam-se já alguns grisalhos; a excitação alastrava como línguas de fogo devorando uma floresta. Aqui e além, olhos brilhantes, ardendo de inquietação, e sorrisos maliciosos traduziam um princípio de embriaguez, desfigurando o rosto dos consumidores apertados uns contra os outros, em volta das mesas. Parecendo um peixe viscoso, o alfaiate Minakoff esgueirava-se por entre a multidão, insinuando com voz melosa e sorrisos enigmáticos:
"Ah! meus caros irmãos, palavras perigosas que dão que pensar, não há dúvida...".
E piscava os olhos ao mesmo tempo que um sorriso enigmático lhe transformava a expressão.
Vavilo Burmistroff ultrapassava-o, acotovelando toda a gente sem se incomodar nada; parecia o dono da casa. Em mangas de camisa, os olhos cintilantes de alegria, gritava com voz de trovão, a fim de dominar a algazarra:
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"Ora aí está, chegou, finalmente, o tão desejado dia! De hoje em diante tudo vai mudar!"
Entretanto, as pessoas de bom senso que assistiam, calmamente, à borrasca, perguntavam a Vavilo:
- Que tens, que gritas tanto?
- Eu? O que tenho? - respondia o belo lutador.
Dizia isto a rir, abraçando vigorosamente os que queriam chamá-lo à razão:
- Vocês não dão conta de que vai começar uma vida nova? O povo recalcitra. Não há dúvida! Está próximo o dia que nos há-de trazer a liberdade! A liberdade, compreendem bem o que quer isto dizer? Liberdade de viver ou liberdade de deixar de viver? Liberdade de fazer tudo o que me agradar! Compreendem bem o que quer dizer liberdade? É simplesmente maravilhoso !
Sorrindo contrafeitos, os incrédulos ainda perguntavam:
- A liberdade? Que nos traz ela?
- Meus irmãos - bradava Vavilo entusiasmado e batendo com os punhos no peito-, a alma aceita a liberdade! Alegra-te, minha alma!...
- Está embriagado, simplesmente - diziam as pessoas de juízo.
E preparavam-se para abandonar a praça, carrancudos.
As mulheres observavam o homem disfarçadamente,
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mordiam os lábios e murmuravam com os olhos hipocritamente baixos:
"Que impertinência!...".
Por sua vez, o alfaiate Minakoff, com o rosto coberto de manchas castanhas, continuava a seguir Vavilo e a insinuar a meia-voz, em todas as direcções:
"Para se ter a ousadia de dizer semelhantes coisas é preciso ser-se audaz! É um atrevido de classe!"
Em longa e cerrada coluna a multidão abandonava o cabaret. Os mujiques, suando em bica, empurravam o corcunda, que mais parecia uma esfarrapada bola de trapos.
- A mesa para o seu lugar - gritava uma voz.
A multidão aplaudia com entusiasmo e Shishmarioff não teve outra alternativa senão obedecer.
Alguns minutos mais tarde, dominando a multidão postada diante do cabaret, via-se a sua enorme cabeça oscilar, dando a impressão de estar prestes a cair. Abria terrivelmente a larga boca desdentada e os gritos que soltava eram de tal ordem que feriam os tímpanos:
"O que é preciso é cerrar fileiras... marchar unidos, sem hesitar... Assim, por exemplo...".
Mas não teve tempo de acabar: logo estrebuchou, estendendo os braços magros, e desapareceu como por encanto para dar lugar a Vavilo, que subiu para a mesa, cabelos em desalinho e
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camisa entreaberta, deixando ver o peito soberbo e extraordinariamente hercúleo:
"Povo! - gritou, abrindo os braços num gesto espontâneo--povo, escutai-me!... Aqui estou, camaradas... Dai liberdade à minha alma, porque abafo aqui!"
Seguiu-se um silêncio, que se prolongou por um momento, e, depois, ecoou subitamente uma voz áspera, qual grito de pássaro infeliz na escuridão da noite:
"Senhor, para onde vamos?" E, arqueando o dorso, vociferou: "Sabeis, meus bravos, o que me disse há dias o chefe da Polícia? "A partir de hoje, Burmistroff, deves observar todas as pessoas e todas as coisas que se passam à tua volta e, de tempos a tempos, apresentares-me relatórios pormenorizados com o resultado das tuas investigações. Se alguma vez te sentires em perigo o que tens a fazer é procurares-me imediatamente...".
- Oh! - disse a uma voz na multidão. "Povo! Cristãos! - gritava Vavilo, perdendo o controle das palavras - haverá coisa mais perigosa do que a nossa actual vida? Chegou o dia em que vai decidir-se da nossa sorte. Que todos se preparem para um combate corpo a corpo com o destino. A nossa miséria acabou, a escravatura foi abolida; podemos agora viver como melhor entendermos, sem qualquer espécie
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de opressão ou de controle. Povo, levanta-te contra a tua sorte! Agora ou nunca!"
- É inadmissível o que ele diz! - gritou alguém receoso, que se tinha prudentemente escondido junto de uma cerca.
Outras vozes invectivaram:
- Corram com ele!
- Tirem-no de cima da mesa!
- Se continuarmos a ouvir discursos destes, com certeza que isto acaba mal.
Outros acharam mais prudente recolherem às suas casas o mais rapidamente possível. Mas a massa de gente não diminuía, pelo contrário, parecia adensar-se cada vez mais, tornar-se cada vez mais ruidosa. A atmosfera aquecia e o povo comprimia-se. Começaram a chegar algumas mulheres, e logo outras não tardaram a juntar-se-lhes. As suas vozes esganiçadas, estridentes, confundiam-se na algazarra da multidão ululante, que fervia como malte muito forte. A confusão estava longe de diminuir; as pessoas não se compreendiam, incapazes de comparticiparem de um pensamento comum, de se unirem num sentimento mútuo que justificasse aquela efervescência generalizada. Diferentes uns dos outros e na sua maioria hostis entre si, não podiam, materialmente, constituir-se numa força activa e sensata, cimentada por aspirações e desejos comuns. Depois, as mulheres trouxeram para a rua aquilo que lhes é próprio: olhares falsos e desconfiados, sorrisos maliciosos,
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alusões dissimuladas. Até as disputas antigas, que desde há meses ardiam em fogo lento, meio esquecidas, se reavivavam de súbito, assinalando fumos libertados de lareiras traiçoeiras, mal extintas.
- Vais ver, tiazinha; hás-de pagar todo o mal que me fizeste!
- E tu também, minha velha, também terás notícias minhas.
A discussão acendia-se à volta de uma história de couves roubadas na adega da Maria coxa, Vania Kihriapoff, que não queria casar com Lise Matuchka, caixa de uma grande loja e que batera na filha com um chicote.
Minakoff, o alfaiate, foi selvàticamente sovado. O pobre diabo regressou a casa apoiando-se com as mãos trémulas às paredes dos edifícios, cuspindo sangue e choramingando.
- Meu Deus! - gemia ele, meio cego. Porquê! Mas porquê?
O vento uivava, fustigando a cidade, confundia-se com o tumulto, gelava a multidão excitada, afugentando-a das ruas para os cubareis ou para os humildes e lastimáveis casebres de miséria e de
tristeza.
As árvores gemiam em queixas lúgubres e os cães uivavam num agoiro de morte, parecendo tomados por sinistro pressentimento, o qual se ia apoderando pouco a pouco dos habitantes do bairro
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x
Na obscuridade da noite, prudente e taciturno, batendo no solo com a ponta da bengalinha, caminhava Tiunoff, lado a lado com Vavilo Burmistroff, que a cada passo escorregava e tropeçava.
- Percebes alguma coisa disto? -perguntou, por fim, já exasperado com o mutismo do companheiro.
Num tom de voz receoso, Tiunoff responde, docilmente:
- Não percebo lá muito bem, não...
O outro, sempre à espreita de uma oportunidade para discutir, assenta as mãos nos ombros dele e diz-lhe, à guisa de observação:
- Desta maneira és incapaz de sentir piedade, não é verdade?
O zarolho não respondeu, mantendo os olhos fixos nos candeeiros do bairro, que ia escurecendo, lá longe, no crepúsculo.
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- É isso! - afirma Vavilo, com firmeza. - Valho mais do que tu. Não há dúvida. Hoje, ; por exemplo, sinto piedade de toda a gente: em cada homem encontro um irmão, ou quase. Tu ; falas-me sempre com desprezo pelas pessoas de menor condição, ao passo que eu lamento a infelicidade delas. Até os alemães. Um alemão? O que é um alemão? Um homem como qualquer outro, suponho. Também têm os seus problemas. A tua alma é que é zarolha. Que pensas tu da humanidade? Vamos, responde! Depressa!
Tiunoff não sentia o menor desejo de responder a este homem meio embriagado, mas também não teve coragem de se manter calado por
mais tempo:
- De facto, ninguém duvida de que isto vai
de mal a pior. Para todos.
- É isso mesmo - exclamou Vavilo, subitamente entristecido.
- Simplesmente, a culpa também é um bocadinho nossa...
- Pois é - continuava Vavilo. - Quantas pessoas se conduzem mal... até contra mim?... Na cidade pergunta-se: Vavilo Burmistroff, no fim de contas, que espécie de tipo é ele? Mas tu bem viste hoje, não viste? Domino-os a todos. Quando falo, toda a bicharada se cala. Consigo que me oiçam, compreendes? Até faço com que me tragam uma cadeira quando estou a falar em cima de uma mesa. "Ponham-na aqui, disse eu, porque quero
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falar sentado." E fazem-no com rapidez. Sento-me e falo - e os outros, onde se encontram? Em baixo, a meus pés. Em terra, compreendes? E sentem-se bem na terra, e eu, em plano superior a todos eles. É mesmo por isso que eu tenho pena deles.
Atravessavam nesse momento a ponte. A água marulhava, lambendo a estacaria, depois recuava até ao infinito, negra, enigmática. Os passos incertos dos dois homens martelavam, com um ruído sonoro, o sobrado carcomido da ponte.
- Sim, tenho pena de todos vós! - gritava Vavilo, cambaleando. - A meu ver, só um remédio existe; dêem-nos liberdade... Que cada um de nós julgue o que deve ou não ser feito... Que cada um se desembarace e se defenda como melhor entender... Oh! Como eu gostaria agora de cantar qualquer coisa... É pena que Artéme não esteja lá agora!
Estacou a meio da ponte e chamou, aturdido, em plena noite:
- Artéme!
Imediatamente Tiunoff deu alguns passos para a frente e, encurvado, partiu velozmente na direcção do bairro.
"Artéme! Artéme!"
O chamamento desvairado de Vavilo ressoava atrás dele à medida que ia perdendo fôlego e aumentando a corrida, de sobretudo aberto e segurando debaixo do braço a bengalinha de cerejeira.
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- Eh! Zarolho, onde estás?
A voz vinha de longe; Tiunoff compreendeu que se havia distanciado bem do seu companheiro. Então, parou por momentos para tomar fôlego e endireitou-se, aliviado.
Por fim, Vavilo abandonou a ponte e desceu em direcção à margem arenosa do lado do bairro; experimentou a impressão desagradável de que a areia lhe comia os calcanhares, o puxava para baixo, Deus sabia para onde, ao mesmo tempo que a atmosfera pesada e impenetrável da noite lhe sobrecarregava dolorosamente as pálpebras.
A voz dele era rouca; teve um arrepio e, um pouco desiludido, murmurou, vexado:
- Partiu, o diabo do zarolho! Bem... Bem!... Chegou a meio da ponte, parou, e logo voltou atrás, precipitadamente, fazendo ranger as tábuas debaixo dos pés. Depois estacou, tomado de pânico:
- E se ele caiu à água?
Aproximou-se da margem, lançou uma olhadela rápida ao ondeado movente que luzia a seus pés e, sacudindo a cabeça:
- Hum... hum! - fez ele.
Depois, agitando as mãos, sem qualquer motivo, começou a cantar:
Ah - o teu rostinho de mármore, como eu gostaria de aquecê-lo com beijos!
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-Abandonou-me, este zarolho. Possivelmente já conseguira de mim o que queria - resmungou, num intervalo.
Não e não! Não posso
Viver sem ti, minha querida...
Na sua memória sobreexcitada ele via, ora despontarem ora desvanecerem-se, os olhares curiosos dos habitantes do bairro. Consideravam-no uma pessoa importante, olhando-o como se olha um ser superior, mas ele media-os com desdém, das alturas a que se guindara, vendo-se-lhe nos olhos qualquer coisa de vacilante, como a Ichama das velas que iluminam os ícones, na igreja. ?No seu coração de homem despertava esse sentimento estranho, tão longamente desejado e só conhecido dos que sonham com conquistas, atrás da glória, esse sentimento que continuamente reclama a agitação, os movimentos e as acções rápidas, heróicas.
Arrastava os pés na areia e, embora desiludido, falava consigo próprio, erguendo os braços ao céu; os músculos distendiam-se devido à violência do vento, que lhe vergava o corpo como se este fosse um arbusto novo e flexível. Aqui e além viam-se ainda luzes acesas nalgumas janelas do bairro. O "Paraíso de Feliçata" distinguia-se dos casebres como uma meda de
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feno em terreno eriçado de torrões. Porém, através das suas persianas cerradas não passava o mais pequeno raio de luz.
"vou ver a minha querida amiga Lodka", decidiu subitamente Vavilo; a esta ideia percorria-lhe o corpo um fluxo quente e agradável; "contar-lhe-ei tudo e ela compreender-me-á porque só ela me ama. Este cão deste zarolho abandonou-me, tal como os outros. Vamos, tanto pior!..."
Mal chegou à porta cocheira da velha residência dos Woevodine logo Shetykh veio ao seu encontro, com aquela indiferença habitual, mas, desta vez estacou resolutamente diante da entrada, obstruindo-a totalmente com o seu enorme corpo.
- Então não me deixas passar? - diz Vavilo, com tom grosseiro.
- Hoje não se passa.
- Como?
- Lodka está ocupada.
- Mentes!
O guarda não protestou.
- Então, se não está ninguém com ela...
- Está, sim, está alguém.
O obstáculo excitava Vavilo. Estremecia de desejos ao recordar o leito de Lodka, hospitaleiro e doce. Tinha arrepios.
- É o inspector Jukoff? - perguntou ele, desairosamente.
Ao pronunciar estas palavras teve a impressão que Shetykh caçoava. Observou atentamente o
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guarda, reparando no quadro que formavam os ombros dele, e também na cabeça.
- Que tens ?
E, esquecendo na sua agitação que Shetykh era mais forte do que ele, levanta o punho cerrado. Porém, os dedos de ferro de Shetykh prenderam-lhe imediatamente o pulso.
- Escuta, idiota, não te enganes. E, principalmente, não te ponhas para aí a gritar - disse o guarda do "paraíso", com voz calma, quase alegre.- Não tenhas pressa. Se insistes deixo-te passar, o diabo que te leve, mas apenas com uma condição.
- Qual?
- Que te portes bem! É Sima quem está agora com Lodka.
- Quem? - gritou Vavilo, libertando a mão e recuando, estupefacto.
- Quem? Quem? Já te disse que era Sima Diewuskine quem está com ela.
- Sima? - repetiu Vavilo.
A surpresa gelava-o, apertando-lhe a garganta.
- Tem cuidado se lhe tocas! - diz Shetykh, pausadamente.-Podes dar-lhe um ou dois murros para ele aprender, mas não passes disso, entendes, Vavilo? Quanto a Lodka é outro negócio: podes bater-lhe até quereres; não te prives. Ela também não se priva de bater nos outros sempre que lhe apetece. É uma bruta; merece ser castigada! Desfecha-lhe o teu punho mesmo nas goelas, de
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forma que lhe fique de memória. Mas ouve, não toques em Sima. Entendes? Bem, agora podes entrar.
Abriu a porta, mas Vavilo continuava diante dele, imóvel, como se estivesse acorrentado, os braços cruzados nas costas, a cabeça levemente inclinada sobre o peito.
- Então, entras ou não? - exclama Shetykh, empurrando-o.
Vavilo levantou um pé e, como um cavalo aguado, de carcaça arqueada, atravessou a porta e penetrou no pátio. Dirigiu-se, na escuridão, até à escada interior, e sentou-se num degrau com ar
pensativo.
"Meu queridinho abandonado -por toda a gente..." E recordava as meigas palavras com que a sua amiga gostava de acalentá-lo.
Uma excitação esgotante, desconhecida, assaltava-lhe o peito. A cabeça andava-lhe à roda; as mãos tremiam-lhe; o coração doía-lhe.
"Shetykh mentiu-me - dizia sem convicção;
- mente sem vergonha, o idiota!"
Idealizava-se junto de Lodka. Via Sima, esse homem desajeitado, frio, ridiculamente cómico, e comparava-o consigo, belo e forte, temido por toda a gente.
"Não será Sima um bruxo, por acaso?" - interrogava-se, com os dentes cerrados; e imaginava os olhos vítreos do poeta.
Ergueu a cabeça, levantou-se, começou a
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subir a escada a custo, batendo pesadamente com os pés nos degraus e sacudindo o corrimão de tal forma que ele rangia sob a pressão das suas mãos. Tossia e soprava, a fim de que a sua aproximação fosse notada antes que se desse o irreparável...
Chegado diante da porta do quarto de Lodka, desfecha-lhe um pontapé e diz, com voz de trovão:
-Abre!
A voz calma de Lodka respondeu-lhe imediatamente:
- Quem é?
?- Abre a porta.
Vavilo sentia a boca seca e a língua a enrolar-se aflitivamente.
- És tu, Vavilo ?
-; Como única resposta, Vavilo apoiou o ombro
contra a almofada da porta, que quase sem esforço
ia saltando do lugar. Ripas de madeira cairam aos
pés de Lodka; ela abriu precipitadamente e gritou,
; recuando:
-O que se passa contigo? O que há?
Vavilo imobilizou-se por momentos à entrada
da porta, depois avançou para a mulher, com os
olhos parecendo saltar-lhe das órbitras, e fitou-lhe
o rosto pálido, pouco sociável, malicioso. Descalça, envergando apenas uma camisa, Lodka
endireitou o corpo, levou o braço direito às costas: e a mão esquerda à garganta, que apertou convulsivãmente.
- Lodka! - começou Vavilo com voz lenta e
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roufenha. - É assim que tu procedes para comigo, meu diabinho? Eu quero...
O punho dele erguia-se, fremente, pronto a vibrar um golpe talvez mortal; mas o homem era incapaz de desviar a vista do olhar felino e tenaz de Lodka, que se mantinha diante dele, rígida como uma corda esticada.
Ele não teve tempo de exprimir o seu pensamento, nem sequer de a sovar, porque nesse mesmo instante chegou-lhe aos ouvidos um ruído vindo de debaixo da cama, ao mesmo tempo que de lá emergia a cabeça desgrenhada de Sima.
- Espera, Vavilo, espera que eu explico-te...
- pôs-se a gritar o jovem rapaz.
Lodka deixou escapar um grito penetrante e correu para fora do quarto. Vavilo teve a sensação de ter recebido um golpe terrível na cabeça; não esperava nada daquilo; todo o seu corpo foi como que sacudido; círculos vermelhos e verdes começaram a dançar diante dos seus olhos. Lançou um olhar furtivo para a porta escancarada; os
braços caíam-lhe, inertes, ao longo do corpo; reparou que Sima se arrastava, emergia com dificuldade de debaixo do leito, seminu, mais parecendo um lagarto cinzento.
- Desculpa-me, irmão, desculpa-me...-balbuciava o poeta a tremer. - Se Lodka consentiu foi por piedade unicamente, juro-te. E eu... se não fosse ela não tinha ninguém... Tu, Vavilo, tu que és um homem bravo...
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Vavilo arregalava os olhos como se tivesse ficado cego. Inclinava-se cada vez mais para Sima, avançando instintivamente com os braços estendidos, e, no momento preciso em que o infeliz ia sentar-se no sobrado, Vavilo agarrou-o pelo pescoço delgado e palpitante, ergueu-o um pouco do solo e fixou-o atentamente nos olhos. Sima debatia-se com o estertor; arranhava a mão vigorosa que o estrangulava; depois revirou a cabeça e começou a remoer a língua, como se quisesse ultrajar o seu carrasco, e a rolar terrivelmente os olhos, nos quais se lia já a angústia da morte.
Então Vavilo atirou Sima contra a parede e, com as duas mãos, apertou-lhe o pescoço cada vez com mais força; as cartilagens estalaram com um ruído atroz, enquanto os braços do desgraçado caíam, inertes, ao longo do corpo. Como Sima se tornasse pouco a pouco mais pesado, sacudiu-lhe o corpo várias vezes. Depois, foi afrouxando lentamente a pressão que exercia com os dedos na garganta do desgraçado, repelindo-o, finalmente, com desprezo.. Sima sentou-se docemente a seus pés, com um som semelhante ao de uma bola oca. Vavilo cambaleava; as mãos assassinas agarravam-se aos móveis; por último deixou-se abater sobre o leito.
Quando, ao fim de certo tempo, surgiu Shetykh, seguido pelas longas silhuetas esbranquiçadas de Feliçata e da cozinheira, Vavilo estava petrificado,
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a boca crispada e o olhar desvairado, contemplando o cadáver de Sima que jazia a seus pés.
- Que fizeste, miserável? - perguntou-lhe
Shetykh.
Vavilo ergueu a cabeça, mediu o porteiro desdenhosamente com o olhar, levantou-se de um salto e lançou-se a ele como um cão de guarda. Shetykh repeliu-o com um soco em pleno peito, Vavilo recuou, tropeçou nos pés do morto e caiu por terra, ficando sentado.
As mulheres faziam grande alarido, Shetykh vociferava, com o punho estendido para Vavilo. Por fim, todos desapareceram, excepto o porteiro. Sobre a mesa uma vela de luz vacilante acabava de consumir-se. Na toalha cinzenta, em redor da palmatória de cobre, bailavam sombras indecisas. Reinava um silêncio glacial.
A certa altura Vavilo pôs-se de pé, aproximou-se do leito e sentou-se. E, enquanto passava a mão pelo peito, interrogava-se em voz baixa:
- Será possível que eu o tenha morto?
- Eu bem te disse, grande cão, que não era preciso bater-lhe - respondeu Shetykh, meneando a cabeça em ar de reprovação.
- Eu não lhe bati! - murmurou Vavilo. Sem o perder de vista, Shetykh baixa-se, apalpa
o corpo de Sima e volta a erguer-se:
- Parece que já não respira... Se lhe molhássemos a cara com água?
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Dizendo isto abriu os braços, para logo, os deixar cair; e, aparentando admiração, exclamou:
- Imbecil que és! Cão selvagem! Tens bem a noção do que fizeste? Sabes que espécie de homem mataste? De entre os brigões, os gatunos e os assassinos que vocês todos são, só este era amado por Deus... Só te resta uma coisa; a prisão!
Sentado, com as mãos apoiadas no leito, Vavilo permanecia imóvel, com a testa cheia de rugas. O porteiro agarrou na palmatória e aproximou-se do assassino, iluminando-lhe o rosto. Grossas gotas de suor cobriam-lhe a fronte, e o maxilar inferior tremia como se ardesse em febre.
- De que tens medo, imbecil? - perguntou Shetykh enquanto poisava a palmatória na mesa.
- Tanto melhor para ti se ficares maluco.
Depois prestou atenção: pesado silêncio envolvia a casa; nem o menor ruído vinha da rua. Ficou um instante a meio do quarto, calado, de mãos enfiadas nas algibeiras, espiando Vavilo pelo canto do olho. Este, continuava sentado no mesmo lugar, com as costas arqueadas e a cabeça baixa.
Então, ouviram-se na escada alguns passos abafados; alguém se aproximava; ouvia-se respirar.
- Quem está aí?
- Sou eu, Shetykh - responde a voz meiga de Pacha.
- E depois ?
- Não encontrei um polícia sequer.
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- Então é preciso ir à cidade.
Depois de curto silêncio, Facha disse, baixinho:
- Onde devo ficar, tio Kusma? Tenho medo.
- Senta-te na escada e espera. Eu fico aqui, nada tens a recear.
- com quem estás a falar? - perguntou Vavilo, com voz quase imperceptível.
- Que tens com isso?
- Farias melhor se falasses comigo.
- Credo! - resmungou Shetykh.
Mas logo acrescentou, com severidade:
- Porque mataste?
- E eu sei-o? - respondeu Vavilo como num sonho. - Foi sem querer, aconteceu, creio eu. Caiu redondinho e pronto... Que razões tinha eu para o matar?
Esboçou um gesto e deixou escapar longo suspiro.
- Não quererás atirar o cadáver para o patamar
da escada?-propôs.
?-O quê? Estás doido!-disse Shetykh, melancolicamente. - Tocar nisso antes de chegar a
Polícia?
- Não gostava nada que ela viesse!...
- Já começas a ter remorsos!
- Não!-respondeu Vavilo, hesitante. - Digo isso por dizer... Além disso, a verdade é que Sima era bom tipo, muito prestável.
A chama da vela crepitava, depois vacilou e, por fim, extinguiu-se.
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- Diabo! - resmungou Shetykh.
Vavilo acomodou-se melhor no leito, cruzando as pernas debaixo de si e os braços sobre o peito. Rangia os dentes.
- Fecha a porta.
- O quê? - perguntou Shetykh. E, sem esperar a resposta:
- Não penses fugir! Está quieto!
- És doido! Para onde fugia eu ? Se quiseres vou entregar-me sozinho ao posto.
- Pois sim! Não te mexas!
- Acaso julgas que estou alegre por tudo o que aconteceu ? - balbuciava Vavilo, de certo modo atemorizado pelo silêncio que reinava no quarto. Mas, Lodka... por que motivo me fez ela uma coisa destas ?
- Vocês todos nada valem, tanto uns como outros.
- Estraguei a vida. Para nada...
Shetykh respondeu com uma calma imperturbável :
- É bem certo! Agora és um homem perdido. Calaram-se novamente. Para além da porta a
noite começava a empalidecer, dando lugar a um dia cinzento, baço como fumo. De súbito,ouviu-se o ruído de qualquer coisa que rangia queixosamente, no fundo da escada, depois um outro e mais outro. Alguém subia vagarosamente.
- Quem é?-inquiriu Shetykh
- O caçador - respondeu timidamente Pacha.
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À porta, um pouco abaixo da cabeça do porteiro, surgiu um fósforo aceso, iluminando o mutilado rosto de Arteme, o Pistola. Pesadamente, Shetykh levantou-se com evidente satisfação, enquanto dizia:
- Bem fizeste em trazer a espingarda, Arteme.
- Ia ao bosque - explicou Arteme - quando ouvi a Matriona, a cozinheira, a gritar-me: "Anda cá, despacha-te!"
E acrescentou:
- Onde está Vavilo?
- Aqui - respondeu o assassino com voz arrastada.
- Olá, irmãozinho! Grande asneira fizeste! Vavilo exclamou, vexado:
- Mas porque estamos nós às escuras, Kusma? Acende uma luz.
Na obscuridade que se dissipava, Shetykh viu-o, acocorado na borda do leito a erguer os braços enquanto falava.
- Ah, meu pobre Arteme, estou em maus lençóis! O destino perdeu-me... E por causa de uma mulher!
- Que tagarela! - exclamou Shetykh com desprezo.
E, voltando-se para Pacha:
- Vai buscar luz, Pacha.
Entretanto, Vavilo, insistindo em explicar-se, continuava em tom ferido:
- Eu sabia que isto acabaria mal e, infelizmente,
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não me enganei. E Sima? Juro-te que não compreendo que papel ele representava neste negócio. Kusma é que tinha razão; quem eu devia matar era Lodka.
- Eu não te disse isso! - gritou Shetykh, aproximando-se do assassino com ar ameaçador.
- Disseste, sim! Aporta...
- Quem me ouviu dizer-te isso? Há testemunhas?
- Eu ouvi bem tudo o que disseste. Mas espera, espera um pouco...
- Ninguém te acreditará!
Nesta altura já gritavam, exasperados, e quase prontos a baterem-se; mas Pacha apareceu trazendo uma luz. Shetykh agarrou nela, levantou-a mais alta do que a cabeça e iluminou Vavilo, em primeiro lugar, que continuava acocorado no leito, com os cabelos em desalinho e as mãos crispadas no peito; em seguida, o corpo vergado de Sima, jazendo por terra, e, por fim, Arteme, de pé, junto da chaminé. O caçador segurava o cano da espingarda e sorria, com um sorriso involuntário, contínuo.
- É verdade: nunca mais cantaremos juntos - disse Vavilo, olhando para o outro, avidamente. - Não achas, camarada?
Arteme, com saliva entre os dentes, respondeu:
- Se eu pudesse substituir-te não me importava de ir para a Sibéria no teu lugar. Porque não? Ao menos lá podia caçar do melhor - valia a
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pena - ao passo que aqui cansa-se uma pessoa e nada. Além disso não há lá tanta gente... Que beleza!
- Isso é verdade - aprovou Shetykh, bocejando.
- Ah, meus amigos, todavia, que pena! -exclamou Vavilo, tristemente. - Vão julgar-me. Em vez de todas essas cerimónias preferia que me mandassem imediatamente para lá. Era bem melhor.
O Pistola recomeçara a desfiar, sem pressas, a sua arenga consoladora:
- Desde que a vida aqui valha menos do que nada... Olha lá, meu velho. Sima não escreveu:
Desgostos e cuidados Triste existência, triste prazer... Há entre nós centenários -
Para fazer o quê?
?- Pois é, cada um trata de inventar seja o que for a fim de enganar o desgosto.
- Sima, por exemplo, fazia versos - dizia Shetykh, olhando para o cadáver. E benzia-se às escondidas, para que ninguém o visse.
- Deus sabe o que não se inventaria num mundo como o nosso - disse Arteme fazendo uma careta com a face mutilada.
E suspirou:
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- Só tenho vinte e sete anos, mas estas ideias acodem frequentemente ao meu espírito. A minha fé? Só o que tenho é medo. É mesmo por isso que prefiro viver sozinho, longe de todos; é a única maneira de não fazer asneiras.
- Sim - aquiesceu Shetykh -, eu também... Quando me encontro sentado à porta de entrada, penso, penso, e digo para comigo: "Que o diabo os leve a todos! Que um raio os parta!"
Continuava segurando a candeia, fazendo subir e descer a torcida. A chama ora avivava ora amortecia e, consequentemente, aumentava ou diminuía nas paredes, no tecto e no soalho o fluxo e o refluxo das sombras pardas.
- Até parece uma cerimónia fúnebre - resmungou Vavilo, abatido.
Arteme olhava para Shetykh com um ar quase de culpa e continuava, sem abandonar o seu sorriso:
- Por vezes também me acontece considerar-me como um velho que já viveu cem anos e que sabe perfeitamente o que acontecerá amanhã, depois de amanhã, sempre.
- Presentemente há grande agitação na cidade,
- observou Shetykh, pensativo.
- É verdade, há lá grande barulho - respondeu Arteme -, estive lá ontem e anteontem... Toda a gente fala sem saber de quê. Olha, Vavilo também dizia que precisávamos de liberdade para que cada um pudesse fazer o que quisesse. É justo,
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talvez; mas eu, por exemplo, não preciso desse género de liberdade. Não quero bater-me com ninguém, para quê? O único interesse quetenho é que me deixem sossegado.
Dizendo isto, acenou com a cabeça para o
cadáver:
- Aí tem, a liberdade, não é? Que faremos nós desta liberdade? Aí é que está a questão. Streltzoff, por exemplo, alegra-se muito com isso: "vou mandar tirar uns poucos de passaportes", disse-me ele ontem, "para que durante um mês me tomem por um nobre, durante outro por comerciante, e assim sucessivamente".
- Ele lembra-me um pouco Sima - declarou
Shetykh.
- Sim, um pouco - aquiesceu o Pistola, após
um instante de reflexão.
Calaram-se por momentos.
Então, de novo, alguém subiu lentamente a escada. O Pistola ergueu a cabeça e pôs o ouvido
à escuta.
- Kusma! - chamou docemente Rosa.
- O que há?
- A polícia nunca mais chega...
- E depois?
- Digo-te que a Polícia nunca mais chega.
- disse Vavilo, tristemente. - Irei eu próprio ao
posto.
- Quando é cometido um assassínio a Polícia deve comparecer imediatamente no local! - exclamou
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Shetykh, franzindo o sobrolho. - Eu conheço as leis, fui bombeiro...
- Para que é que a candeia ainda está acesa?
- perguntou Rosa lançando um olhar medroso para o quarto. - Já é dia!
Shetykh olhou-a com desconfiança enquanto apagava a luz da candeia. A claridade amarelada cedeu o lugar ao acinzentado do dia; um véu opaco escondia o céu.
- É verdade, já é dia - anunciou Shetykh. Volta-se para um lado, depois para outro e diz,
incomodado:
- Nada a fazer, Vavilo. Vamos ao posto.
- Vamos! - aquiesceu o criminoso sem pestanejar.
- Deixa-me ligar-te as mãos-propôs o porteiro, tirando o cinto.
- bom! Vamos lá!
Vavilo levantou-se, saltou por cima do cadáver fechando os olhos, aproximou-se de Shetykh e, de costas, estendeu-lhe os braços. Mas Shetykh assertoou a pelica à frente e reajustou o cinto. Teve uma contracção com a boca e passou a língua pelos lábios.
- Não vale a pena! Não acredito que queiras fugir.
- Ele não foge, com toda a certeza! - aprovou o Pistola, autoritariamente.
- Não fugirei - disse, por sua vez Vavilo.
- Oxalá eu não a encontre!
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- Acredito!-resmungou o porteiro.-Certamente está escondida na cave a tremer de medo. Vamos, toca a andar! ;
Na escada fungou, assoou-se e disse, suspirando:
- Tenho muita pena de Sima... Que Deus o tenha lá em descanso! De ti tenho piedade, grande imbecil... Que idiota...
Do cimo da escada ouviu-se um grito angustioso :
- Tio Kusma!
Deitada sobre o corrimão, Pacha fez o gesto de quem ata uma corda.
- É bom, é, minha franguinha - ripostou Shetykh, agitando a mão descontente.
Uma vez na rua esboçou um sorriso e disse ao
preso:
- Pacha queria que eu te ligasse os pulsos.
- Que mal lhe fiz eu? - perguntou Vavilo com voz surda. - Nunca lhe toquei, nunca lhe dirigi a mais pequena ofensa.
- Não é por ti mas por mim que ela está inquieta - explicou Shetykh, com arrogância. E, voltando-se para o Pistola: - Uma criança, no fim de contas! Uma criança sem a mais pequena ( noção das coisas. Ela devia estar num convento de mulheres; em vez disso anda para aí...
Alterne, o Pistola, caminhava ao lado de Vavilo sem o olhar. com as mãos profundamente mergulhadas nas algibeiras do casaco, de espesso tecido
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azul, levava a espingarda a tiracolo, com o cano virado para baixo. A larga viseira do boné de coiro que usava ocultava-lhe os olhos, projectando uma sombra negra no robiu.
Caminharam por momemtos em silêncio. Uma ligeira camada de gelo matinal estalava, debaixo dos pés deles. Estava muito frio. com ar Sonolento, as vidraças pareciam espiar a rua. O bairro ainda dormia, sem duvidar de nada.
- bom - declarou o Pistola-, não os acompanho mais. vou ao bosque. Só passei pelo "pequeno paraíso" para ver se era verdade que Vavilo cometera um crime. E infelizmente era. bom, digo-te adeus, Vavilo. Não é verdade?
Vavilo estendeu-lhe a mão, olhando-o de uma maneira que parecia não compreender. Arteme apertou a mão assassina, sacudiu-a e, voltando bruscamente as costas, partiu sem voltar a cabeça.
Vavilo seguiu-o com olhar atento e longo. Depois, deixou o passeio e parou, a meio da rua.
- Onde vais? - interpelou Shetykh, como um pastor que guarda duas ovelhas.
- Não vês - respondeu Vavilo gravemente. -? bom, vejo que te consideras um verdadeiro
prisioneiro-disse Shetykh, complacente.-Começas já a dar-te conta do crime que cometeste. Vavilo caminhava ao longo da rua. Titubeava um pouco. De vez em quando os seus pés quebravam o gelo frágil, patinhando na lama, mas
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continuava a andar, impassível, sem se preocupar com as poças de água, ligeiramente cobertas por uma película acinzentada.
De súbito, apareceu um cão, de rabo caído entre as patas; -ladrava bamboleando-se e sacudindo o pelo sujo.
- Põe-te a andar - disse Vavilo, sem maldade.
O cão olhou-o de lado, como Tiunoff, parou por instantes, com ar atento, e depois foi-se embora, de rabo caído, com a presteza do ladrão.
Aqui e além, tanto na cidade como nos arrabaldes, ouvia-se o cantar porfiado dos galos, saudando a aurora outonal.
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XI
De boca crispada, Lodka saiu do seu quarto, desceu precipitadamente a escada, mas ao chegar ao pátio abrandou a marcha, caminhando prudentemente, porque ia descalça e receava ferir-se nos vidros partidos e no lixo que juncava o solo. Tremia de frio ao estender a mão para a porta cocheira; queria chamar Shetykh, mas um pensamento paralisou-a:
- Que pena que se trate de Si mas não de outro. Toda a gente vai rir-se-me na cara... Que vergonha!
Mas já o portão se abria num ruído seco.
Ouviam-se passos pesados.
- É você, Kusma Pietiywitch?
-Sou eu, sim, minha linda! - respondeu
Shetykh, aproximando-se. - Então, livraste-te com
toda a sem-cerimónia?
- Suba depressa ao primeiro andar, senão
ele mata Sima! Para que o deixou entrar?
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Shetykh agarrou Lodka pela camisa e empurrou-a para trás, resmungando com voz surda:
- Para que te batesse como mereces!... Para que estás sempre a humilhar Pacha?
Antes que ele tivesse tempo de lhe bater, Lodka escapou-se, gritando:
- Feliçata!
- Lá vai! Lá vai! - disse Shetykh baixinho. Ainda um dia hei-de ter a tua pele, vais ver.
Ouviu-se o bater de portas e a voz da patroa parecia ressoar por toda a parte: ruídos insólitos ecoavam em diversos pontos; dir-se-ia que desarrumavam a casa. ...
Arrepiada, segurando nas mãos trémulas a camisa rasgada em vários pontos, Lodka dirigiu-se lentamente para a escada exterior, colérica, e angustiada.
O receio de saber o que se passava lá em cima fê-IVparar por momentos, em baixo, junto da escada;De súbito, ouviu a voz de Rosa:
- Socorro! Socorro!
Por seu turno, a patroa esganiçava-se:
- Chama depressa um médico, Rosa! E tu, Pacha, vai procurar um polícia. Mas despacha-te, vamos!
Sem fazer o menor ruído, Lodka escondeu-se num canto do corredor, aguardando o momento propício de entrar no quarto de Feliçata. Lá dentro, tirou a camisa e ficou quieta, toda nua,
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sem saber que fazer. Por fim, decidiu-se: "Preciso de me ir embora imediatamente!"
Nesse momento apercebeu-se pelo espelho que tinha o rosto descomposto e estremeceu. Sem perder tempo decide vestir-se com a roupa de Feliçata, em desordem pelo quarto.
Alguns instantes depois atravessava a rua principal do bairro, resolvida a esconder-se provisoriamente em casa de uma amiga, Serafina Puskariova. Caminhava na sombra, com passo decidido, mas não conseguia libertar-se dos sombrios pensamentos que lhe ocupavam o cérebro inquieto. "No fim de contas", pensava, "a vida não vale grande coisa: tinha de procurar refúgio e socorro em casa de uma mulher de quem não gostava muito; um Shetykh qualquer ousara arrancar-lhe a camisa e ameaçara-a como à pior das mulheres; toda a gente iria rir-se dela por causa da sua ridícula aventura com Sima..."
Por vezes pensava também em Vavilo, ou melhor, na irreparável infelicidade a que podia dar origem a violência do seu carácter e a sua formidável força física. A pouco e pouco tal suposição tomava vulto e, tornando-se inquietante, forçava-a a moderar o passo. Tremendo de frio, ia aconchegando ao corpo o seu xaile quentinho, sentindo que uma avalancha de aborrecimentos e desgostos estava prestes a cair sobre si, e da qual dificilmente ou nunca conseguiria libertar-se.
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Mergulhada nestas tristes meditações, passara, sem dar conta, o beco em que morava Serafina. De súbito, estacou diante de uma porta a fim de prestar atenção, sem saber porquê, ao martelar melancólico das horas do relógio de São Nicolau, a igreja mais antiga da cidade.
À sua volta erguia-se a multidão de casas do bairro, num amontoado lúgubre. Varria a rua um vento glacial, proveniente dos pântanos próximos, e aqui e além ramos de árvores despidas apareciam fora dos muros ou dos telhados. Uivavam cães. Ruídos sinistros povoavam os
ares.
- Não - decidiu subitamente Lodka -, prefiro ir para casa de Jukoff.
Convencida de que optara pelo melhor, dadas as circunstâncias, tomou a direcção da ponte sem mais reflexões.
Caminhava contra um vento terrível, que a fazia vergar como uma roseira; e ia recordando-se, com desgosto, do inspector, do seu corpo horrível, da sua tendência para desafiar toda a gente, fosse quem fosse, da sua grosseria, que dissimulava - ela sabia-o bem - uma ausência absoluta de carácter. Recordava ainda os hábitos deploráveis de Jukoff, o que a fazia sobressaltar de desgosto. No entanto, uma ideia nova insinuava-se e avolumava-se no seu cérebro, uma ideia que lhe levava aos lábios um sorriso astucioso.
Chegada diante da casa do inspector, puxaj
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a campainha com força. Atrás da porta, uma voz roufenha, de velha mulher, perguntou, inquieta:
- Quem é? Que quer?
Lodka respondeu, em tom autoritário:
- Abra depressa; quero falar ao inspector Jukoff; é urgente.
A velha, sempre invisível, fez várias perguntas de ocasião, às quais Lodka respondeu do portal, tremendo de impaciência:
- Peço-lhe desculpa - disse, por fim, abrindo. - A esta hora da noite só chegam telegramas. E agora, com tantos acontecimentos um pouco por toda a parte, toda a prudência é pouca.
- Basta, cale-se - disse a visitante. Jukoff recebeu Lodka na entrada, de vela na
mão e de grosso cigarro entre os lábios. com os olhos esbugalhados de alegria, exclamou, martelando as sílabas:
- Que surpresa! Como tiveste tal ideia? Mas estás muito chique, hoje!
-Tinha saudades suas - disse ela, maliciosamente.
- Então, sejas benvinda! Sinto-me feliz por te ver aqui. - Depois, gritou para a velha, que estava lá para dentro: - Chá, Plotrowna! E depressa!
Tomou Lodka pela mão e puxou-a desajeitadamente. Ela passou a língua pelos lábios em sinal de satisfação; reencontrava a respiração regular e a confiança em si:
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- Senta-te, que eu vou acender o candeeiro. Fizeste muito bem em vir ver-me, minha gatinha! Vê tu que há mais de oito dias que quase não saio, encerrado na minha gaiola como uma coruja no seu buraco... Oh, diabo, queimei um dedo!
Nunca Jukoff falara com tanta desenvoltura. Lodka olhava-o, admirada, com os olhos muito abertos. Habitualmente grosseiro, desconfiado, carrancudo, estava hoje irreconhecível. Estranhamente meigo, falava gentilmente, embora lançasse com frequência um olhar inquieto para as janelas da sala.
- Está tudo calmo na rua?
- Mas, evidentemente!... Porquê ? Já é noite!
- Bem sei que é noite, mas agora os dias são tão pequenos que as pessoas fazem barulho até de noite. Olha, ainda ontem, já bastante tarde, alguém me veio bater às janelas, primeiro a uma, depois a outra. Que brincadeira! Ah, os imbecis!
Como não conseguisse fixar o vidro do candeeiro, a luz deste estava prestes a extinguir-se. Mas Jukoff não parecia aborrecido com o facto.
- Basta sair à rua - prosseguiu ele no mesmo tom complacente -, para se ouvirem as goelas, qual delas a mais repugnante... Todos gritam, todos se agitam, exigindo não se sabe o quê...
Por fim, a chama do candeeiro avivou-se. Limpou as mãos sujas a uma ponta do roupão e
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retirou-se para um canto da sala, arrastando ruidosamente os pés, calçados de pesadas pantufas de feltro.
Na sala pairava um cheiro a vodka, a tabaco e a couve. Objectos de todas as formas e feitios, dispersos por toda a parte. Reinava uma desordem espantosa.
- Perguntas a ti própria onde é o leito, não é? -diz Jukoff, de pé, diante do guarda-loiça, enquanto tilintavam os copos.-É na divisão ao lado. Eu durmo aqui, neste divã, embora a cama seja larga e grande!
- Que está a fazer? - perguntou Lodka, aproximando-se dele. - Que me quer oferecer? Dá-me licença? O que é?
- Isto? Espera um pouco... Parece que é conhaque; a menos que seja rum. vou provar. Esta imbecil desta velha criada mistura-me tudo.
Destapou a garrafa e levou-a à boca, mas Lodka antecipou-se ao gesto e tirou-lha das mãos.
- Prova depois; comecemos pelo princípio, pondo a mesa, como deve ser, e sentemo-nos como se fôssemos marido e mulher. Imagine por momentos que sou sua mulher e que acabo de regressar depois de uma longa ausência...
Jukoff bateu com a mão na testa. -- Uma ideia engraçada, sim senhora - disse ele num tom vago.
- Mas isto nada tem de engraçado - respondeu Lodka, afável. - A sua mulher vem agora
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fazer-lhe uma visita e só é pena que nada tenha de melhor para lhe apresentar do que dar-lhe de comer e de beber. Tem tempo de o fazer...
Jukoff rebentou numa grande gargalhada.
- Que mulher - exclamou com ar ridículo-,
que diabo de mulher!
Ao mesmo tempo que dispunha pela mesa os copos e as garrafas, Lodka inspeccionava os cantos da sala com a vista. Os seus passos faziam tilintar o tinteiro de metal branco colocado em evidência sobre a secretária. Ela distribuía, discretamente, as colheres de chá, abanando a cabeça com ar de reprovação.
Sentado no divã, Jukoff seguia-a com os olhos, pestanejando e acariciando o bigode; ouvia-se até o mexer dos seus lábios grossos.
- É desconfortável a sua casa - observou Lodka, franzindo o sobrolho.
- Desconfortável?...-repetiu o inspector,
surpreso.
- Sim, por toda a parte poeira e velharias que não servem para nada. Parece que ninguém se ocupa da casa. Apre!
- A culpa é da minha velha criada.
- No entanto o senhor passa por um intelectual - resmungou Lodka. - Será possível que um homem verdadeiramente distinto viva desta
maneira?
com a testa enrugada, Jukoff implorou:
- Basta! Sinto-me feliz por te ver em minha
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casa, não estragues o prazer que me dás. Além disso vou deixar de ser só... Tenho a intenção de comprar um gato, mas ainda não encontrei um de que gostasse...
Ela sentou-se a seu lado, encostando-se-lhe levemente. Quando a enlaçou, ela disse num tom rabugento:
- Porque tem o aspecto tão velho ?
- Porque me aborreço terrivelmente, Lodka.
- Até tem os olhos empapuçados.
- Deixa-me sossegado, peço-te. Os olhos empapuçados nada querem dizer. Nestes últimos dias bebi talvez demasiado álcool. É tudo.
- Tenho pena de si! A sua saúde decai a olhos vistos.
- Mentes! - exclamou Jukoff, sacudindo a cabeça.
- Porque diz que eu minto?
- Não sei... Habitualmente não tens pena de nada nem de ninguém... Mentes!
Ele fez a afirmação com voz segura e cortante. Lodka baixou os olhos, envergonhada. O inspector olhou-a pelo canto do olho e tornou-se menos frio:
- Ah, pequena, como a vida pode ser aborrecida! Isto é, sem ti... mas olha...
Calou-se, repentinamente, pestanejou, riu e gaguejou:
- Diabo! Perdi completamente o hábito de falar!
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A velha trouxe o samovar. Observou a visitante com os seus olhos de ratinho, negros e redondos, e afastou-se resmungando e batendo nos móveis à passagem.
- Bem, vamos tomar o chá - propôs Jukoff.
- É verdade, já não me reconheço... Há tempos tocava violino, hoje sou incapaz de conseguir o mais pequeno som. A minha defunta mulher gostava muito de me ouvir tocar. Era muito boa, a minha mulher...
?- Então... não me acredita ? - perguntou Lodka, sentando-se à mesa.
Ele encheu de vinho os enormes copos, teve um sorriso frouxo e disse:
- Bebe!
- Porque não me acredita quando lhe digo que tenho pena de si? -insistia Lodka. - Eu vejo-o um homem solitário, doente, que a morte espreita já, não é verdade?
O inspector depôs com ruído o copo vazio em cima da mesa e reclinou-se comodamente na cadeira. Arregalou os olhos enquanto o rosto se coloria de um vermelho violáceo.
- Cala-te! - gritou, com a voz rouca de furor. - Porque me dizes isso? Porque me aborreces desta maneira?
Ela nem se mexeu. Beberricava à vontade, lambendo tranquilamente os lábios e, balançando o busto, fixava Jukoff com um olhar misto de carinho e de provocação.
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?-Chut...-fez ela - não se zangue; procure ouvir-me e antes de ter bebido demasiado.
--Não quero! Proibo-te que me fales desse modo!
- Ora vejam!... como está hoje tão mauzinho. Ele continuava a protestar, mas Lodka conhecia
perfeitamente a impotência total daquele montão de carne corrupta. E à medida que ele começava a experimentar um certo receio, ela sentia-se cada vez mais tranquila, mais segura de si, exasperante à força de ser afável.
- Há muito tempo, meu caro amigo, que penso em si - dizia ela com voz açucarada e um tudo nada fanhosa. - Penso nas suas doenças, na sua vida solitária, na velhice que se aproxima...
- Basta! Já te disse! Já ouvi asneiras até de mais!
Ele pretendia mostrar-se severo, mas a voz tremia-lhe e as faces contraíam-se-lhe, sulcadas de rugas finas. Deixou escapar um longo suspiro e encheu novo copo de vinho.
- Não tem parentes?...
- Tenho um sobrinho, estudante em Kazan!
- exclamou Jukoff, dando uma palmada no joelho com ar triunfante.
Lodka teve uma expressão triste e calou-se por um instante; depois, subitamente, uma nova ideia, alegre, lhe acudiu ao cérebro; pôs-se a rir, docemente, piscando os olhos; os dentes brilhavam como pérolas.
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- Bem vês que não estou absolutamente só no mundo: tenho um sobrinho!
- Que importância tem isso - replicou Lodka, sem pestanejar. - Um sobrinho o que é? Um estudante. Não é uma mulher, julgo eu. Não, meu velho, da maneira como está é de uma mulher que precisa... de uma mulherzinha gentil que saiba cuidar de si, que seja meiga, heim?
Ela inclinava-se brejeiramente para Jukoff, encostando levemente ao dele o seu corpo flexível, cheio de vigor. Ele baixou os olhos e endireitou-se.
- Além disso, creio que o seu sobrinho não
quereria viver consigo!
- Porquê? - balbuciou o inspector.
- Mas, Deus meu... com tantos boatos que correm a seu respeito...
Ao pronunciar estas palavras Lodka recostou-se na cadeira e inquiriu num tom cortante:
- O meu caro amigo conhece uma certa Zino, devota e ao mesmo tempo comerciante de primeira ordem?
- Porquê?
- Porque ela conhece muitas histórias a seu respeito. E não só ela, até eu, se fosse uma mulher sem vergonha, poderia contar o que fez sofrer à pobre Pacha no dia da Anunciação.
- Quando acabas de me aborrecer? - exclamou Jukoff.
E, intencionalmente, estendeu-lhe o seu copo.
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- Toma, bebe! A não ser que já estejas embriagada?
- Ah, não, não estou embriagada, não! respondeu Lodka.
E, afastando a mão dele, levantou-se da mesa.
- Então? Que queres? - perguntou Jukoff pela décima vez, lamentando não se embriagar nessa noite.
- Quero apenas regularizar as nossas contas... E, depois de um momento de reflexão, acrescentou, quase sincera:
- Palavra que tenho pena de si, pobre infeliz que é! Estou convencida de que já não durará muito...
- Minha pequena Lodka - implorou Jukoff, de mãos postas-, deixa-me sossegado, peço-te.
- Um dia cairá por terra, acabou-se... acabou-se.
Ele estendeu os braços para ela, quis articular qualquer coisa, mas os lábios tremeram-lhe; o rosto contraiu-se, os olhos fecharam-se e grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces.
Lodka observou-o durante alguns segundos, silenciosa, depois aproximou-se dele nas pontas dos pés, tomou-lhe as mãos e assentou-as com autoridade nas ancas dela. Em seguida, agarrou-lhe violentamente as orelhas e abanou-lhe a cabeça de tal forma que a maçã-de-adão do inspector, estranhamente vermelha, parecia querer saltar do pescoço flácido.
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- Ainda nãos sois velho: apenas quarenta anos - disse ela, martelando as palavras - e, no entanto, já sois tão feio, tão decrépito... ao passo que eu sou bela, até mesmo quando choro.
- Diz-me, porque és tão má para mim?
- implorou Jukoff a fungar e agitando a cabeça em todas as direcções, a fim de libertar as orelhas
que já lhe ardiam.
Por fim, Lodka sentou-se-lhe nos joelhos. Jukoff, vendo-se liberto, respirou fundo, apoiou a face no peito dela e começou a fazer-lhe observações :
- Não é gentil da tua parte, Lodka! Não te sabia tão insolente! Que razões tens tu para te conduzires desta maneira comigo? Estou-te muito grato pela visita que me fizeste, mas pergunto: de que serve voltares sempre, continuamente, às nossas antigas brincadeiras? Sim, pergunto...
Enquanto falava os dedos tremiam-lhe ao desabotoarem o vestido de Lodka. As suas mãos apalpavam o corpo dela, quente e doce como a seda, e sentia uma força viva, excitante, que o sufocava e, ao mesmo tempo, lhe fazia desaparecer
o medo.
- Sejamos amigos, sim? Apenas te peço um bocadinho de amizade. Queres? Não tens tu, também alguma? Quanto ao meu sobrinho é melhor não falarmos nele, não vale a pena...
- Sim, eu sei - disse ela furtando-se às mãos
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dele. - Já basta de conversa, vamo-nos deitar. Daqui a pouco nasce o dia, creio. Anda, mexe-te. Ele levantou-se, sorrindo com humildade, e, designando o quarto vizinho, grunhiu como um velho cão acariciado pelo dono:
- Segura a candeia.
Ela, enquanto se despia no quarto de dormir, perguntou:
- A tua velha criada deve roubar-te, não?
- Hi hi - fez Jukof, limpando com uma toalha húmida as lágrimas que lhe marejavam os olhos avermelhados.
Lodka, completamente nua, acariciava suavemente o seu corpo róseo. Sentada na otomana, meneava a bela cabeça enquanto dizia, com desgosto:
- Meu Deus, que horrível desordem! E é isto um pretenso intelectual! Pó, lixo, safa! safa!
Sem conseguir tirar-lhe os olhos de cima, o inspector ria e esfregava as mãos.
Ele não tardou a adormecer. Lodka voltou-se para apagar a luz. Entretanto apercebera-se de que na parede havia um grande retrato de mulher: usava óculos, o rosto era longo e seco, e tinha, perto da narina esquerda, uma enorme verruga.
"Que caricatura!" - pensou, enquanto baixava a chama da candeia.
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Lentamente, o retrato escurecia, na noite.
"Será a mulher ou não? Talvez a mulher..."
Depois deitou a língua de fora ao retrato, já na escuridão que invadia o quarto. Parecia que a vida parava para sempre.
Lodka enrolava-se na coberta e dizia para
consigo, vacilante:
"com certeza que aquele bruto vai passar a
noite no posto..."
E, ainda antes de adormecer:
"É preciso começar por pôr a velha a andar... Contratarei Claudina Streltzoff... É pobre e coxa..."
Ela sonha, acha-se a descer uma montanha a velocidade vertiginosa. A encosta torna-se cada vez mais íngreme; a velocidade da descida aumenta a cada momento; não consegue parar e, pressentindo que aquela corrida só tem fim na morte, pôs se a gritar.
Coberta de suores frios, Lodka abriu os olhos: Jukoff sacudia-a rudemente pelos ombros.
- Como podes tu dormir, minha franguinha!
Parecias morta...
- Deixa-me sossegada - respondeu ela ao inspector com ar malicioso e sem o olhar. - Quase não dormi em toda a noite. Sempre estes pesadelos...
Ele tossia, escarrava e repetia obstinadamente:
- Levanta-te, levanta-te, então, não ouves...
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Já são onze horas... Pode alguém vir visitar-me, enquanto tu... tu ficas para aqui. Vamos, levanta-te !
Lodka soergueu a cabeça, fixou por instantes o homem e passou a língua pelos lábios, lentamente.
O rosto de Jukoff, amarelento, lívido, pareceu-lhe horrendo; os olhos, injectados de sangue, davam a ideia de profundas feridas. Estava de pé, meio despido, perto do leito; os lábios descobriam os dentes; parecia mais repugnante do que nunca.
- Sais pela escada de serviço, percebes? Lodka aconchegou-se melhor na coberta.
- Vai-te embora! - disse-lhe.
Ela quis acrescentar qualquer coisa, mas um sobressalto de indignação apertou-lhe dolorosamente a garganta.
O inspector dirigiu-se lentamente para o quarto, cuja arrumação já havia sido feita, e onde o samovar fervia com um silvo.
"A velha vai ficar toda contente se ele me aponta a porta da rua" - pensava Lodka, dando balanço aos seus pensamentos, enquanto se vestia. "Certamente aparecerá para qualquer coisa".
Ele tinha a sensação de que o seu corpo fatigado se queixava, se lamentava, como se mão maliciosa lhe tivesse batido sem dó nem piedade.
"Ele enxota-me como se enxota uma cadela... como uma cadela..." - repetia ela.
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As mãos tremiam-lhe, e quando, no lavatório, agarrou num copo, este escorregou-lhe dos dedos frouxos, caiu e quebrou-se em mil pedaços.
- Então-gritou Jukoff aparecendo à porta-, que se passa?
"Trata-me como um cocheiro trata o seu cavalo - pensou Lodka vestindo-se à pressa. Tu enxotas-me, velho cão doente! Seja! Mas ainda hás-de ter notícias minhas. Saberei vingar-me".
Envolveu a cabeça no seu xaile, deixando à vista apenas os olhos chamejando de furor, depois passou para o quarto vizinho e, sem olhar para Jukoff, atirou-lhe:
- Pois bem, adeus...
Ele estendeu-lhe a mão, zombando. Os seus dedos apertavam uma nota verde, de três rublos, que ela com prudência e desdém arrancou dos dedos grossos.
- Obrigado.
- Chega?
- Sim, chega.
- Vai pela esquerda, pela cozinha... Adeus! Lodka esboçou longo suspiro, cobriu completamente o rosto, abriu de repelão a porta e precipitou-se pela cozinha dentro com tal velocidade que parecia arder em labaredas. Atingido o pátio, saiu para a rua e partiu, de dentes cerrados e o coração a palpitar.
"vou ver a velha Zino - decidiu. - Espera,
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Jukoff, espera um pouco e terás em breve notícias minhas... muito frescas..." Em pensamento dialogava ainda com o inspector. Estugara o passo e pouco a pouco empertigava o corpo.
Pairava na cidade um silêncio pesado, de mau agoiro. Apenas ao longe, no ar fresco da manhã, se ouviam as marteladas que um tanoeiro desferia, primeiro três vezes, depois duas:
- Tum-tum-tum... tum-tum
Tum-tum-tum... tum-tum
it
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XII
Ocioso, Vavilo Butmistroff vagueia na cela; com olhar vago percorre as paredes cobertas de motivos incompreensíveis e sujas de lama até meia altura. Não é a primeira vez que se encontra em tão exíguo compartimento. Mais de uma vez ali lhe bateram e há, certamente, traços de sangue seu naquelas paredes.
Agora encontra-se mergulhado numa semi-sonolência: fraqueza física e depressão moral. Os seus pensamentos entrecruzam-se, encadeiam-se, apenas nascem logo morrem no nada; na alma vai-lhe angústia e amargura; a vida está envenenada.
Embora não pense em Sima - ou pense pouco
- de tempos a tempos avivam-se na sua memória enfraquecida os olhos transparentes do jovem que matou. com uma curiosidade doentia sonda as suas profundezas e, consternado, tenta implorar o morto:
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"Mas que ideia eu tive! Para que diabo te meteste no meu caminho?"
Por vezes julga que apenas vive um sonho mau, que vai terminar de um momento para o outro. É, de facto, impossível que essa espécie de doido tenha ocupado o lugar privilegiado que ele, Vavilo, ocupava no leito de Lodka! Não é possível...
Mas logo se recorda daquele corpo de mulher insaciável, daquela voz fanhosa e cantante, daqueles fascinantes olhos azuis, e então compreende que tudo podia esperar de uma mulher como aquela, cheia de vícios.
Então, cerra os punhos e os dentes e chora o seu desespero... Por momentos é como se mão invisível lhe apertasse brutalmente o peito, a cabeça, o corpo todo. Ele excita-se, sua em bica, mede a cela a largas passadas, e bate furiosamente, como se cego fosse, nas paredes, na cama, na mesa.
"Não é verdade que eu te amava, minha pequena Lodka? - balbucia, abatido. - Haverá alguém, mulher maldita, que seja mais caro ao meu coração?"
Nestes momentos de extrema ansiedade, nada lhe parece exagerado: sim, essa mulher, ele amava-a com um amor de homem honesto, sincero, amava-a com um amor desinteressado, que preenchia toda a sua vida. Era por ela, unicamente por ela, que ele se encontrava daquela maneira, inactivo, sem ambições. Tinha sido por ela, também, que,
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afrontando tudo, ele disputava a glória de ser o primeiro atleta, e ter a mais ardente imaginação de todo o bairro.
Complacente consigo próprio, repete obstinadamente :
"Toda a minha vida por ti, Lodka!"
Uma vez mais o seu espírito quer exaltar-se, elevar-se como um balão, cada vez mais alto.
Por fim, fatigado, abatido, passeia o seu olhar de angústia pelas paredes da cela; sente-se esgotado, como um cavalo agonizante.
"O mundo esqueceu-me; ninguém vem saber de mim - pensa ele, postado numa imobilidade absoluta, diante das grades da janela.- É verdade; a sorte deu uma má volta para mim..."
Observa o pátio da prisão, coberto de erva amarelecida, pisada em vários pontos. Liteiras voltadas para o céu e algumas viaturas de bombeiros, abandonadas. Junto da porta escancarada da cavalariça, cavalos abanam as cabeças e remoem as queixadas. Um deles, animal ossudo e pardo, mostra os dentes; dir-se-ia um sorriso infinitamente triste. com covas profundas sob os olhos e uma ligadura negra na perna esquerda, tinha todo o ar de viúvo hipócrita.
Para esconjurar as doenças dos cavalos, há dependurado no alto da porta da cavalariça o esqueleto de um pássaro que o vento ligeiramente faz oscilar. No ponto mais alto do telhado, um crânio de bode, com uns grandes cornos, está
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muito branco, lavado pelas chuvas. Ramos de árvores despidos inclinam-se para ele, como que fatigados.
Afanosamente, cruzam-se no pátio algumas pessoas, num vaivém contínuo. Falam a meia voz, de cabeça baixa.
Vavilo abre a bandeira da janela. Penetra no interior da cela um cheiro forte a estrume, a alcatrão e a coiro. Da cidade chega até ele um rumor estranho, de qualquer coisa em efervescência.
"Sempre este barulho lá em baixo!" - pensa Vavilo, com saudade. E ao recordar que foi ele o fulcro das atenções dessa multidão, deixa escapar longo suspiro. Desamparado, cospe nas paredes e procura acalmar-se, pensando novamente em Lodka; cerra os punhos ameaçadoramente...
"Cadela! Filha de uma cadela!..."
Evoca também Tiunoff:
"Diabo do zarolho! Aí está um que saberá sempre desembaraçar-se, quer chova quer faça sol".
Mas voltam os negros pensamentos acerca de Sima: o julgamento e a perspectiva da deportação para a Sibéria cortam-lhe os braços e as pernas, aniquilam-no. Assaltam-no desejos de regressar ao seu leito do campo e de nele se deixar cair, qual piedoso farrapo humano.
Um dia passa, depois outro. Na tarde do terceiro dia, Kapinduk, o agente da Polícia, penetra
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na cela e, sem fechar a porta, senta-se no leito do detido, dando-lhe vigorosa palmada nas costas:
- Sempre deitado? - pergunta.
- Sempre. Que queres tu que eu faça? - responde Vavilo asperamente.-E a instrução quando começa?
- A esse respeito, meu caro irmão, nada sei
- responde o polícia com um suspiro. - Temos, agora, outros gatos a esfolar - prossegue, lentamente, fitando a parede com os seus grandes olhos castanhos. - Sabes, por acaso, quem acaba de chegar até nós?
E, antes mesmo que Vavilo lhe pudesse responder:
- Concederam-nos à pouco a liberdade!
- A quem? - pergunta o prisioneiro, indiferente.
- Mas... a toda a gente, claro!
Kapinduk tira da manga do capote uma bolsa de tabaco e, da algibeira, um cachimbo.
- Sim - diz enquanto enche o cachimbo. Vai cantar-se hoje solene Te Deum na catedral. É a amnistia geral.
Vavilo observa-o, levanta-se lentamente e vai sentar-se ao lado dele.
- E a quem devemos tal graça?
- Ao Czar, evidentemente.
- E a amnistia abrange toda a gente?
- Que te disse eu?
- Então, também a mim?
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- Naturalmente! Porque não? Desde que se trata de amnistia geral não há razão alguma para que tu constituas excepção.
- Mas eu... devo ser julgado, apesar de tudo
- diz Vavilo, com voz apagada. - A liberdade! Ah, diabo, escolheram bem a ocasião de no-la darem, a liberdade! Eu estou-me nas tintas!
Vavilo Burmistroff ouve as suas próprias palavras com desconfiança. Quantas vezes, meu Deus, pensando e falando de liberdade, experimentava ele essa coisa inexprimível que lhe apertava a garganta de forma tão magnífica? Quantas esperanças vagas mas sedutoras, outrora ligadas a essa palavra! Que resta delas, agora? Essa palavra não representa mais do que um fraco eco numa alma em que só existe o vácuo, o nada...
Entretanto, Kapinduk fuma, cospe na parede e continua com uma calma absoluta:
- Parece que estou a ver o tumulto que vai, certamente, haver. Porque nós somos livres de fazer o que nos der na real gana, e todos terão pressa de se vingar. E como...
De súbito, Vavilo levanta-se e dispara:
- Pois bem, deixa-me, então, sair.
- Espera-responde o agente, sacudindo a cabeça-, eu não posso; não tenho ordem para isso. Vim apenas por amizade. À parte isso apenas posso fazer o que me mandam. Quando me disserem: "Kapinduk, podes libertar Burmistroff", imediatamente
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virei anunciar-te que estás livre. Não é verdade ?
- E Sima? - pergunta Vavilo, mais desconfiado.
- Isso é contigo, não é comigo. Desde o momento que não sou nem pai nem irmão dele...
- Deixa-me sair, então - diz Vavilo aproximando-se resolutamente da porta.
Sem tentar detê-lo, o polícia esvazia o cachimbo.
- Mas onde é que vais, patife?... Depois de teres estado tanto tempo deitado, resolves pôr-te a andar, Deus sabe para onde ! Tem calma, meu velho, tem calma!
Se Kapinduk tivesse procurado detê-lo, Vavilo ter-se-ia escapado custasse o que custasse, mas como não lhe foi oferecida qualquer resistência cedeu logo, apoiando-se à parede, estático; a cabeça caída e as pernas a fraquejar. Entretanto, Kapinduk sacode a cinza dos joelhos e conta, preguiçosamente, que os habitantes se conduzem com uma insolência extraordinária, que não querem ouvir nada nem ninguém, que toda a cidade está às avessas, que a ordem não é mais do que uma palavra vã.
- Passam-se coisas... dir-se-ia, juro-te que todos, homens e mulheres, se tornaram subitamente loucos.
- Como ?
- É o que tu vês, meu velho, parece que têm agora todos a mesma aparência, as mesmas
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feições, como os prisioneiros, por exemplo. Incapazes de se manterem num lugar determinado, correm em todas as direcções, como loucos. Só porque o poder se ocupa das pessoas. Porcos, desembaracem-se como puderem... Aconteça o que acontecer.
Uma cólera súbita apodera-se de Kapinduk. Sai com ar amuado e bate com a porta. Então Vavilo lança um olhar interrogativo para essa porta, aproxima-se dela lentamente e dá-lhe violento pontapé. A porta abre-se com um ranger pesado para dar passagem a Vavilo, que logo se vê no corredor sombrio, onde grita com voz severa:
- Eh! Fecham a porta ou não?
Como ninguém lhe responde, Vavilo detém-se por momentos, com a boca entreaberta, no limiar da cela. De súbito, tem a sensação física de que força invisível se apodera dele e que irresistivelmente o impele para a frente. Como resistir? Fecha a porta e, vagarosamente, nos bicos dos pés, atravessa o corredor que desde há muito tão bem conhecia. Arrepios percorriam-lhe o corpo, um zumbido insólito enchia-lhe os ouvidos; caminha com precaução, esforçando-se por não fazer o menor ruído. No entanto tem desejo de andar cada vez mais depressa, de correr mesmo; e quando os seus olhos admirados encontram o pátio onde, aqui e ali, abandonados, estacionam os carros de incêndio, esse desejo torna-se irresistível.
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Em meia dúzia de passadas, com uma destreza notável, alcança a cavalariça, trepa pela escada que se encontra ao lado, bem à vista, atinge o telhado, agacha-se, olha em todas as direcções, ergue-se, depois, como uma flecha, lança-se através das platibandas.
Pouco depois, fatigado e sem fôlego, resolve agachar-se num canto, entre o telheiro, e, de joelhos, põe o ouvido à escuta: do outro lado da vedação, como fios telegráficos ao vento, ouve vozes humanas que resmungam ou ralham, vozes surdas, frases curtas, inquietas.
Vavilo lança um olhar para trás de si, repara numa espécie de bordão, agarra nele com força, dá um passo em frente e encosta a face a uma brecha da vedação; agrupadas num beco umas quinze pessoas da cidade. Parece reconhecê-las. Formam um grupo compacto e conversam com ar preocupado. Estão todos vestidos de abafos quentes e alguns, embora ainda não tenha nevado, calçam botas de feltro. Patinham sobre montes de lama gelada ou passeiam de um lado para outro.
Uma voz ressoa:
- Isto vai, disse uma a minha mulher. Agora basta deitares-te. Nada mais a recear... Mas mal a minha velha se deitou ouviu-se um estrondo tão grande que estremeceu toda a casa: era um grupo de idiotas que atirara uma saraivada de pedras contra as portas da frente...
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Outra voz, traindo prudência e parecendo pesar cada palavra pronunciada, replica:
- Parece que há dois bandos a semear a desordem na cidade: um é conduzido por Kojemiakine e pelo zarolho do bairro; o outro pelo telegrafista Kolia e pelo corcunda.
- É isso mesmo...
- Então, que vamos fazer?
Vavilo treme de frio e ao mesmo tempo de excitação. Que fazer? Esta pergunta fatídica ressoa-lhe constantemente no cérebro, conservando-se completamente paralisado no seu canto, como um cão na sua casota. Não gosta dessa gente desafogada. Não se dá bem com ela. Mas, presentemente, tais sentimentos são tão vagos como uma massa de nuvens num céu de chumbo. De tempos a tempos há um clarão, mas não tarda a extinguir-se.
Entretanto a multidão engrossa e a efervescência cresce.
com uma voz de baixo, como um diácono lendo a Bíblia, alguém conta:
- Certa mulher, Zino, percorre a cidade em todos os sentidos, acompanhada por outra mulher, desconhecida, vinda Deus sabe de onde. Ambas espalham boatos e semeiam o pânico.
Um grito de angústia, porém, vem interrompê-lo:
- Aí vêm os dos arrabaldes! Outros gritos de alarme ecoam:
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- São pelo menos quinhentos em volta da catedral.
- Os dos arrabaldes são a peste!
- Só Vavilo Burmistroff vale por dez dos outros!
- Vavilo! Mas ele está preso por assassínio!
- Isso é o que tu dizes! Já não há prisioneiros: estamos no reino da liberdade!
Admirado, Vavilo sai precipitadamente do seu esconderijo, satisfeito por ouvir opinião tão agradável. Por momentos experimenta um desejo violento de saltar a cerca e de cair no meio daquela gente: "Que desassossego!..."
Sorri, de olhos fechados, e os seus músculos contraem-se ao máximo.
Para além da cerca, os habitantes da cidade zumbem como um enxame de abelhas.
- Corre o boato de que vão ser fechadas todas as igrejas. Parece que são estabelecimentos proscritos.
- Ainda ontem Kojemiakine assegurava que não havia excessos a recear.
- Esta liberdade! Que pensam dela? É um bem ou é um mal?
- Como primeiro resultado será seguramente a ruína geral.
- Seja como for, o marasmo dos negócios faz-se já sentir um pouco.por toda a parte...
- Eu digo-vos o seguinte: se estivesse no lugar do presidente da câmara a primeira coisa que
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fazia era chamar à ordem todos esses bandidos e filhos de bandidos!
- Que fazer, então? Que fazer?
- Estão aí todos! "Ah, os porcos, que terror!..." - pensa Vavilo,
malèvolamente. A inquietação dos habitantes alegra-o, excita-o, enche-lhe mesmo o coração de coragem. Observa atentamente os rostos inquietos ; vê bem que toda aquela gente - proprietários, comerciante se outros - se assemelha a um rebanho de carneiros momentaneamente privado do bode que os conduz.
De súbito, sente faiscar nele aquela chama! bem conhecida, que o embriaga, aquela cintilante luz que explode, que o agita, que o chama para além da cerca. Como um tição ardente Vavilo cai no meio da multidão. E logo inflama cérebros e corações. ji
" Cristãos! - exclama, erguendo os braços! para o céu e rodando como um pião em volta das pessoas admiradas com aquela brusca aparição. Cristãos, sou eu, Vavilo Burmistroff! Batam-me se quiserem, mas escutem-me! Ah, irmãos, agora, que eu compreendi, quero-vos abrir toda a minha grande alma!"
Uns afastam-se, outros aproximam-se, curiosamente.
Alguém lhe bate com um pau, sem razão, mas o espanto faz com que esse pau logo seja abandonado. Outros poem-se aos urros com uma voz
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toda ela mortal desgosto. Vavilo ajoelha-se precipitadamente, estende os braços e lança audacioso apelo.
- Batam-me, irmãos, batam-me até se fartarem! É o reino da liberdade! Eu, vós, todos os que...
A sua excitação é tal que, de repente, parece perder o uso da palavra. Pára e pestaneja, preso pela sua própria representação.
- Silêncio! - exclama um chamado Kulugoroff, agitando os braços. - Não lhe toquem, deixem-no falar!
Entretanto, Vavilo retoma o fio da conversa:
- Meus irmãos! Algum de vós ama a liberdade com um amor tão forte como o meu?
Prudentemente, o povo comprime-se à sua volta, e ele, sentindo que está prestes a convencê-los, anima-se cada vez mais. Os olhos brilham-lhe como pedras fosforescentes.
- O que é a liberdade? Eu matei e estou aqui, livre. De hoje em diante posso cometer o crime que quiser; ninguém tem o direito de importunar a minha independência. Que pensam desta liberdade? Que necessidade têm dela?
- É verdade o que ele diz - exclama Kulugoroff, batendo com o pé no solo. - Povo, escutai-o!
Mas as vozes de protesto erguiam-se, ameaçadoras :
- E é verdade que ele matou um inocente?...
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- Ele reconhece ou não esse crime? Isso é que é preciso saber...
- Parece que sim...
- Isso é essencial! Eis a liberdade! Eis a consciência russa! Eis um assassino que quer resgatar o seu crime. Não há dúvida, só os russos são capazes de coisa semelhante...
Vavilo, que experimenta certa apreensão, lança-se na aventura com redobrado entusiasmo, com angústia, com abandono.
- Sim, é verdade: matei! Mas acaso fugi? Não! Declino a minha responsabilidade? Não! Julguem-me; estou aqui, diante de vós!
Uma vez mais lhe faltavam as palavras, a garganta aperta-se-lhe, as mãos crispam-se no peito e, por um momento incapaz de prosseguir, cala-se.
Ouvem-se vozes:
- Ele arrepende-se do crime.
- Do fundo do coração, com sinceridade.
- Não há dúvida que ele matou.
- Mas quem era aquele que matei? - exclama Vavilo, pálido, mas esplêndido. - Um discípulo de Tiunoff, o zarolho provocador!
Admirado com as suas próprias palavras, fica de boca aberta, dando-se conta do proveito que pode tirar do lapso. Satisfeito, volta a inflamar-se.
- Porque o matei? Por causa dos seus ignóbeis versos! Por causa das suas blasfémias, meus irmãos! Eu sei: foi o zarolho, o falso moedeiro, que lhos ensinou. Foi porque esses insultos
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repugnavam ao meu coração que bati em Sima. Um golpe só, juro-vos, por Deus! É certo que tenho a mão pesada. Deus deu-me uma força tal que por vezes me é impossível dominá-la. E depois não é tudo! Onde o matei? Em casa de uma rapariga! Numa casa de passe! Um homem de bem visita tais lugares? Pergunto-vos?
A multidão continua a olhá-lo com ar bastante taciturno. Então Kulugoroff, com voz lenta, sobrepõe-se a Vavilo:
- Nós não somos qualificados para julgar tais coisas - diz -; esses negócios sinistros não nos dizem respeito. A única coisa que de momento nos interessa é que este homem se ergue contra a liberdade! Logo, é dos nossos!
- Mas, e o zarolho? - clama uma voz de ódio. - Ele está em toda a parte, mete-se em tudo!
- Que diabo de homem, de facto!
No mesmo instante ouvem-se outras exclamações.
- Olhem para aquela multidão que se comprime em volta da catedral! Seguramente os dos arrabaldes vão esmagar-nos!
- Porquê? - brada Kulugoroff. - Por nada deste mundo devemos consentir em tal. Não representamos nós, cidadãos leais, qualquer coisa da nossa própria cidade? Se representamos, temos de agir em conformidade, heim?... Mas como actuar, se nos deixaram sem socorro?... Só uma saída nos resta: dar batalha ao inimigo!... Vem
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connosco, Vavilo! E diz-lhes tudo o que pensas da dita liberdade deles, diz-lhes!
Kulugoroff é um homem de pulso. Toda a cidade o conhece. Arregaça as mangas da camisa e, num abrir e fechar de olhos, forma um grupo cerrado de combatentes, prontos para o pior. Os que se encontravam junto de Vavilo agarram-lhe os braços e empurram-no em altos gritos:
- Diz-lhes tudo o que te vai na alma!
- Nada receies, conta connosco.
- Mas, se não há polícias...
- Nós saberemos defender-te!
- E principalmente não esqueças o zarolho! Entusiasmado, o peito repleto de coragem,
Vavilo sente-se como se tivesse asas e voasse por sobre o inimigo, à frente dos seus amigos de ocasião, gente conhecida e desconhecida que o aperta, que o empurra, que lhe dá vigorosas palmadas nas costas, que lhe apalpa os músculos. Um há, mesmo, que o abraça e lhe diz ao ouvido com voz piedosa:
- Irmão, tu vais levar a cruz ao calvário...
- Deixem-me! - diz Vavilo sacudindo os ombros hercúleos e empurrando os seus partidários, que caem à sua beira como folhas mortas, soltando gritos de alegria:
- Mas vejam: que força ele tem!
- É o homem mais robusto que nós já vimos! Cada vez mais compenetrado do seu papel,
Vavilo agita os braços nus e clama, com voz tonitruante:
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- vou esventrá-los! A todos, ouviram? Nunca ele sentira semelhante alma de herói.
Os seus olhos, flamejando de bravura, contemplam toda aquela gente que ele entusiasmou já até à adoração ; um pensamento alegre, embriagador, fulgura no seu espírito, elevando-o potentemente do solo.
- Eis a liberdade! A liberdade! Carregam sobre a multidão estacionada na
praça e, acotovelando toda a gente, dirigem-se para o átrio da catedral. São apenas uma meia centena, mas sabem o que querem, e os néscios, dóceis, deixam-nos passar.
- Ei-los! - gritam para Vavilo - ei-los!
No átrio, entre as colunas, comprime-se um pequeno grupo de pessoas, entre as quais algumas que agitam bandeiras brancas e gritam frases incoerentes, cujos ecos o vento dispersa.
Dominando o rumor da multidão, que engrossa a olhos vistos, ecoam as vozes sonoras de Streltzoff, Klushnikoff e outros.
- Os nossos estão com eles - pensa Vavilo.
Um sorriso de embriaguez invade-o e transfigura-lhe o rosto. Num segundo entrevê o assombro que vai causar aos seus companheiros de antigas e perigosas brincadeiras.
com um salto magnífico, como se fosse atirado por uma mola tensa ao máximo, lança-se para o meio do átrio, com os grandes braços e, por fim, volta-se para a praça e grita a plenos pulmões:
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"Cristãos! Todos quantos sois, sou eu quem vos fala, sou eu, eu!"
Como resposta apenas se ouve uma algazarra ensurdecedora. Em todas as fibras do seu corpo, sensível até à exasperação, Vavilo sente que esse rumor é hostil, impregnado de ameaças. Tem a sensação de que toda a praça está atulhada de rostos humanos, que o sol brilhante oscila e o observa com os seus milhares de olhos.
Qualquer coisa se desfaz no coração de Vavilo; um frio glacial o invade. Faz um esforço supremo, contrai-se, eleva a voz, solta um grito pungente, um bramido animal, mas o rugido surdo que se eleva daquelas centenas de peitos é mais potente:
"Abaixo! Abaixo! Nada queremos de ti! Traidor!"
E logo à sua beira um homem começa a falar; repletas de segurança e ao mesmo tempo de desdém, as suas palavras ressoam com autoridade:
"...Foi, portanto, com o concurso deste vesgo indivíduo que eles tentaram barrar a estrada da verdade... Sabem, acaso, que é este homem?..."
Uma vez mais Vavilo procura recuperar, esticar ao máximo a corda que sente vibrar dentro de si, mas ela salta com um ruído que se sobrepõe a todos os outros.
- Mentirosos! - clama, encarando a imensa face viva, massa amorfa, que vacila na sua frente.
Depois, volta-se, nota um braço estendido na sua direcção, um olho sombrio, um crânio calvo
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em forma de cone, Tiunoff! Imediatamente o agarra pelos ombros e o lança por terra. E, num grito de raiva:
"Vamos a eles!... Para a frente!..."
Logo começa aquela massa de gente a movimentar-se, em turbilhão, como as poeiras do Outono a que o vento não dá tréguas. Trocam invectivas selvagens que rapidamente conduzem à pancadaria e desancam-se uns aos outros. Rondando a loucura, aumenta de minuto a minuto a efervescência e, consequentemente, a violência. Em poucos instantes se desencadeia uma verdadeira batalha que ameaça degenerar em chacina.
- Ah! Ah! - resmunga o velho tanoeiro Kulugoroff, brandindo à laia de moca uma barra de ferro arrancada ao corrimão da escada da torre da catedral. - Vocês querem-na, a liberdade? Terão a vossa conta, canalha de revolucionários!
Vavilo bate às cegas. Maxilares contraídos, levanta constantemente o braço, esmurrando os seus adversários na cara e no nariz, e, mal um infeliz cai a seus pés, inanimado, logo procura outro, sem pressas, e depois outro, para lhe desferir os mesmos golpes do seu punho homicida, testemunho de uma destreza diabólica, irresistível.
Sem procurarem defender-se todos fogem ou se atropelam. Mas - facto estranho - ao fim de certo tempo Vavilo não experimentava nem alegria nem orgulho em se bater. A fadiga vence-o e ele acaba por se sentar, ao acaso. Estende as
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pernas, olha à sua volta e verifica que se encontra atrás da catedral, na berma do passeio, ao lado de um marco fontanário, e exactamente em frente de uma porta cocheira, fechada à chave. Junto dele, de pé, em grupo, uma dezena de citadinos; ao centro Kulugoroff, desgrenhado, o fato em tiras, passa com a sua grossa mão pelo rosto brilhante de suor.
- Apesar de tudo, esse maldito zarolho ainda encaixou uns famosos golpes - diz, com uma alegria animal.
As cúpulas mosqueadas da igreja de S. Nicolau estão cobertas de gralhas. Fazem um barulho ensurdecedor. Vavilo olha atentamente; respira com dificuldade. Quem o vê julgará que está prestes a adormecer, morto de fadiga. Remexe os pés sem desprender os olhos do chão e, maquinalmente, desfaz um amarrotado boné, esquecido no empedrado.
- É um facto: pusemo-los em fuga - declara Kulugoroff. - Vamos, ocupemo-nos, agora, de uma coisa não menos importante.
Assoa-se com os dedos e aproxima-se de Vavilo, ao mesmo tempo que os seus partidários se juntam à sua volta.
- Agora que tudo acabou, ou quase, que vão fazer de mim? - pergunta Vavilo, insidiosamente, ao ver-se cercado por todos.
- Estás ferido? - pergunta Kulugoroff, iludindo a pergunta.
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- Que dizes?... Não se trata disso. Eu pergunto mas é onde vão vocês meter-me? Creio que...
Porém, antes que tivesse tempo de terminar a frase já mãos vigorosas caíam sobre ele e o agitavam, prontas a abatê-lo.
- Pois bem, meu velho - diz Kulugoroff, extraordinariamente sério -, primeiro não nos confessaste o teu crime, segundo foste tu quem começou a briga... Vamos conduzir-te ao posto.
Alguém acrescenta:
- Enganas-te redondamente se imaginas que te deixamos fazer o que queres. É evidente que não!
Vavilo olha à sua volta sem dizer palavra. Depois põem-se todos em marcha. De olhos cravados no solo, vai olhando para os bocados de tecido, os fatos esfarrapados, galochas perdidas, os paus partidos, o empedrado arrancado. Passa por aqueles destroços e, sem saber porquê, esforça-se por pisá-los como se os quisesse enfiar naquele solo que ainda se lhe afigura coberto de numerosa multidão e nos milhares de olhos postos nele.
Uma espécie de nevoeiro envolve as árvores. Através do rumor da cidade agitada ouve-se a voz lenta de Kulugoroff:
- Como excepção à regra, este ano os combates feriram-se muito antes de São Miguel; estamos adiantados quinze dias...
A neve começa a cair, envolvendo em poucos
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instantes as ruas, as gentes e as coisas com o seu véu flocoso.
- Resta-me a possibilidade de me estrangular no posto - diz de repente Vavilo, com ar pensativo.
- Um imbecil nunca se trai - riposta uma voz atrás dele.
- Não, não quero seguir-vos - clama Vavilo, estacando bruscamente.
Faz um esforço sobre-humano para se libertar das pessoas que se aferram a ele, que se lhe agarram aos braços, às pernas, ao pescoço, mas com mágoa verifica que desta vez não o conseguirá.
Como uma matilha de cães em perseguição de um lobo isolado, os companheiros de há pouco atacam-no furiosamente, empurram-no em todas as direcções, rebolam-no por terra, gritam, bramam, enquanto, inexorável, a neve continua a cair, envolvendo a cidade num alvo sudário.
Sombras negras-um grande bando de gralhas surge na tempestade de neve.
Entretanto, o tanoeiro, infatigável, trabalha algures, talvez como de costume, no Monte do Galo. E os golpes que desfere, sem descanso, ecoam a intervalos regulares, como se encerrasse toda a cidade em círculos sólidos, estreitos. com uma segurança e uma insistência impressionante, ele bate:
tum - tum - tum... tum - tum...

 

 

                                                                  Máximo Gorki

 

 

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