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T E M P L O
Segunda Parte
Nesse instante, o helicóptero Mosquito passou por eles, a rugir, com os canhões laterais a cuspir fogo. Os nazis deviam tê-lo deixado para trás, para acabar o trabalho.
Race e os outros procuraram imediatamente refúgio entre a vegetação. Sobre as suas cabeças, caíam folhas e folhas e, à sua volta, os troncos das árvores eram feitos em fanicos.
- Foda-se! - gritou Cochrane, por entre a barulheira do tiroteio. Race observava o Mosquito, que planava sobre o abismo, cuspindo longas línguas de fogo, olhou atentamente para os patins alongados do trem de aterragem, que balançavam por baixo da cabine.
Os patins do trem de aterragem... pensou.
Nesse momento, qualquer coisa estalou na mente de Race: uma espécie de determinação feroz, que ele nunca julgara possuir. - Van Lewen! - gritou, de repente.
- O que é?
- Cubra-me com a sua arma.
- Para quê?
- Veja se consegue fazer aquele helicóptero subir um pouco mais, está bem? Mas não o faça fugir.
- O que é que vai fazer?
- Vou arranjar uma maneira de sairmos deste rochedo!
Foi tudo quanto Van Lewen quis ouvir. Um segundo depois, saltou do meio da vegetação e disparou uma rajada contra o helicóptero preto.
O Mosquito respondeu subindo mais um pouco e disparando também.
Entretanto, Race manobrava febrilmente o arpão, desenrolando a corda que estava presa a este. Olhou para o helicóptero.
- Faça-o subir mais! - gritou. - Mais um bocado! Está demasiado baixo Race calculou a distância que o separava do helicóptero. Estava demasiado próximo para ele poder disparar o arpão com o lança-granadas. Ia ter que o lançar à mão.
Desenrolou um pouco mais a corda, deixando-a solta para, quando a lançasse, ela não ficar enredada.
- Cochrane! - gritou. - Consegue saltar com a perna assim?
- O que é que acha, Einsten?
- Então, não me serve para nada! - disse Race, irado. - Vai ter que ficar aqui. Van Lewen, dê-me cobertura!
Então, enquanto Van Lewen disparava nova rajada contra o helicóptero, Race saltou rapidamente do meio da vegetação, com o arpão na mão, e, com um movimento fluido, atirou-o em direção ao patim do lado esquerdo do trem de aterragem do Mosquito.
Mal o lançou, teve a certeza de que tinha calculado bem a força com que o atirara.
O arpão cruzou o ar, em direção ao helicóptero, atingindo o ponto máximo de sua parábola que descreveu, no momento em que atingia o patim esquerdo do Mosquito. Então, com um tilintar agudo, o arpão balançou-se sobre o patim e volteou duas vezes sobre ele, acabando por se prender.
- Muito bem, Van Lewen, vamos embora!
Van Lewen disparou uma última rajada contra o helicóptero, antes de ir correndo juntar-se a Race, na beira do precipício.
- Pegue nisto - disse Race, estendendo a M-16 a Van Lewen. A arma estava presa à extremidade da corda do arpão.
Van Lewen lançou um olhar grave a Race.
- Sabia que é muito mais corajoso do que muita gente pensa?
- Obrigado.
E, dito isto, Race e Van Lewen saltaram da beira da saliência e ficaram a balançar sobre aquele abismo de uns trinta metros de largura, descrevendo um arco elegante, suspensos do patim do trem de aterragem do helicóptero de combate.
- Filho da mãe... - disse Buzz Cochrane, ao ver os dois afastarem-se dele, balançando sobre o vazio que se seguia à ravina.
Race e Van Lewen deixaram-se cair, de pé, sobre a trilha, do outro lado do abismo. Mal aterrou, Race desprendeu rapidamente da M-16 a corda do arpão e deixou-a ir.
Lá em cima, o piloto do helicóptero não parecia saber onde eles se tinham metido. O aparelho sobrevoou várias vezes a garganta, disparando os canhões contra tudo e contra nada, numa frustração, enquanto Race e Van Lewen desciam a trilha em espiral, novamente a caminho da aldeia.
Heinrich Anistaze agarrou no volume envolto em pano e susteve a respiração, enquanto o desembrulhava.
- Sim - disse, quando pôs a descoberto o ídolo preto e reluzente. - Sim...
Então, de repente, rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se para a ponte de troncos do lado oriental.
- Equipe de demolição - chamou, em alemão, sem parar de andar. - Essas cargas de cloro já estão colocadas?
- Mais três minutos, Herr Obergruppenführer - respondeu um homem, que se encontrava por baixo do ATV - Então, está três minutos atrasado - rosnou Anistaze.
- Acabe de as colocar e vá ter conosco no rio.
- Sim, Obergruppenführer.
Anistaze apertou um botão do rádio.
- Herr Oberstgruppenführer? Está a ouvir-me? Oberstgruppenführer era o posto mais alto das SS, o equivalente a general.
- Sim - foi a resposta. – - Já o temos.
- Tragam-no.
- Sim, Oberstgruppenführer. Imediatamente - disse Anistaze, ao mesmo tempo que atravessava a ponte oriental e penetrava na floresta.
Race e Van Lewen desceram correndo a trilha em espiral.
Chegaram ao fundo da cratera e, depois, à passagem, pela qual seguiram, sempre a correr. Finalmente, de armas a postos, chegaram ao caminho do rio. Havia nevoeiro por todo o lado.
Enquanto corria, o auscultador de rádio, no ouvido de Race, deu subitamente sinal de vida.
- Van Lewen, comunique-se. Repito. Cochrane, Reichart, Van Lewen comuniquem-se...
Era Nash. Os rádios tinham voltado a funcionar. Os nazis deviam ter desligado o sistema de interferências ou, pelo menos, deviam tê-lo levado para qualquer lugar de onde já não os atingia. Sem parar de correr, Van Lewen respondeu:
- Fala Van Lewen, meu coronel. Perdemos Reichart e Cochrane está ferido. E os nazis têm o ídolo. Repito. Os nazis têm o ídolo. O Professor Race está comigo. Vamos a caminho da aldeia.
- Deixou levar o ídolo?
- Deixei.
- Recupere-o - disse Nash.
Race e Van Lewen chegaram à ponte oriental e entraram nela, com cautela, de armas erguidas.
A aldeia estava deserta, envolta em nevoeiro. Não havia nazis à vista. Nem rapas.
Mesmo diante deles, via-se a forma escura do ATV, tombado de lado. À esquerda, viam-se as sombras das várias construções de Vilcafor, recortando-se contra o nevoeiro.
Van Lewen avançou para o ATV. - Meu coronel?... - chamou.
A resposta que obteve foi uma rajada de tiros - de G-11, disparados pelos três nazis da equipe de demolição, que tinham sido deixados na aldeia, para colocarem as cargas explosivas de Anistaze.
Race atirou-se ao chão, para o lado esquerdo, Van Lewen mergulhou para o lado direito e os dois ergueram as M-16.
Mas era inútil, Não se via nada, no meio de todo aquele nevoeiro.
Race voltou a pôr-se de pé, no instante em que viu um comando nazi saltar do lado do ATV, de G-11 em punho e a postos.
Então, de repente - bum! - ouviu-se um único tiro, muito alto, vindo de um ponto qualquer por trás de Race, e a cabeça do nazi saltou para trás, por entre um jato de sangue. Num espanto absoluto, Race ficou vendo o seu oponente cair ao chão, morto.
- Que... - disse, voltando-se para o lado de onde tinha partido o tiro.
Inesperadamente, um rapa saltou do meio do nevoeiro, diante de Race, arreganhou os dentes e lançou-se sobre a sua garganta...
Bum! O rapa caiu de lado, apanhado a meio do salto por mais uma bala veloz, e teve morte instantânea. A carcaça do enorme animal tombou a poucos centímetros dos pés de Race.
Que diabo é que estava a passar-se?
- Professor! - chamou a voz de Doogie, do meio do nevoeiro. - Aqui. Venha para aqui! Eu estou a dar-lhe cobertura. Perscrutando o nevoeiro, Race conseguiu vislumbrar a esplanada da cidadela e, empoleirado no alto, a silhueta de Doogie Kennedy, com uma metralhadora com mira telescópica encostada ao ombro.
Da posição que ocupava, na esplanada da grande fortaleza de pedra, Doogie tinha uma boa perspectiva da aldeia.
Através da mira térmica da sua potente metralhadora M-82A1A, via todos que andassem na aldeia, como se fosse de dia. Cada figura aparecia na sua mira como uma mancha multicolorida - desde as formas vagamente humanas de Race, Van Lewen e os dois sobreviventes da equipe de demolição alemã, à forma trapezoidal e sem cabeça do ATV e às assustadoras formas de quatro patas que eram os felinos.
Os felinos.
Com o desaparecimento dos soldados nazis e do respectivo armamento, naquele momento, os felinos andavam novamente à vontade por toda a aldeia.
Tinham voltado. E buscavam sangue.
Race girou sobre si mesmo e viu Van Lewen junto ao ATV virado.
- Saia daqui, Professor! - gritou o sargento dos Boinas Verdes. - o Doogie dá-lhe cobertura. Eu tenho que endireitar esta coisa.
Race não precisou que lhe dissessem duas vezes a mesma coisa. Começou a correr aldeia fora, por entre o nevoeiro. Mal começou a correr, porém, ouviu o ruído de passadas rápidas na lama, atrás dele, escondido do manto cinzento que cobria tudo.
E as passadas aproximavam-se, ganhavam terreno. Então, de súbito...
Mais um tiro disparado por Doogie, seguido pelo som da bala a cravar-se num dos nazis, a que se seguiu som do nazi a tombar no chão.
Diante de Race, apareceu outro rapa, preparado para saltar e bum! - a cabeça do animal explodiu, atingida por Doogie. O corpo do rapa começou a estrebuchar. Mais tiros. O corpo ficou imóvel. Race nem queria acreditar.
Era como encontrar o caminho, num labirinto envolto em nevoeiro, sob a proteção de um anjo da guarda. A única coisa que ele precisava fazer era continuar a correr, continuar a avançar, enquanto Doogie afastava os perigos que o rodeavam, perigos que ele próprio não conseguia ver.
Voltou a ouvir passadas sobre a lama, desta vez mais pesadas, passadas de quatro patas.
Lá em cima, na cidadela, Doogie praguejou.
O último disparo deixara-o sem munição. Tinha ficado sem munições. Mergulhou para trás do parapeito e, freneticamente, começou a recarregar a arma.
Junto ao rio, Van Lewen pendurou-se na parte de baixo do ATV virado, colocando nele todo o seu peso, consciente de que havia rapas por perto, ocultos pelo nevoeiro.
- Subam para o lado mais alto! - disse, dirigindo-se a Nash e aos outros que se encontravam dentro do veículo. - Temos que endireitar esta coisa!
Os outros agiram com rapidez e, quase de imediato, o ATV, precariamente equilibrado sobre um dos lados, começou a endireitar-se.
Van Lewen afastou-se rapidamente do caminho, no preciso momento em que o veículo de oito rodas, aterrava sobre os pneus, e correu para a porta lateral.
Race continuava a correr velozmente por entre o nevoeiro, quando, de repente, como o pano a ser afastado para deixar a descoberto o palco, o manto de nevoeiro se abriu diante de si e ele deu consigo a olhar para a cidadela.
Foi então que ouviu o estalido da trava de segurança de uma G-11, ali bem perto, e estacou. Voltando-se lentamente, viu o último comando nazi, parado junto à cortina de nevoeiro, atrás dele, com a G-11 apontada à sua cabeça.
Race ficou à espera de ouvir o já familiar estampido da metralhadora com mira telescópica de Doogie. Mas não ouviu nada. Porque é que ele tinha deixado de disparar?
Nesse instante, abruptamente, soou um tremendo rugido, que Race julgou ser o rugido de um dos felinos.
Mas não era o rugido de nenhum felino. Era o rugido de um motor.
No instante imediato, o ATV emergiu velozmente do meio do nevoeiro e foi bater nas costas do comando nazi.
O nazi caiu, esmagado pelo veículo todo-terreno, e o próprio Race teve que saltar para longe do caminho, enquanto o ATV passava por ele a toda a velocidade, para depois parar diante da cidadela, em frente da entrada da fortaleza, alinhando a sua porta de correr do lado esquerdo com a porta da cidadela.
Um segundo mais tarde, Race viu abrir-se a escotilha traseira do ATV e aparecer a cabeça de Van Lewen.
- Então, Professor, vem ou não?
Race saltou para a traseira do veículo e mergulhou de cabeça pela escotilha. Mal ele acabou de entrar, Van Lewen fechou estrondosamente a escotilha de aço.
- Eles têm o ídolo - disse Van Lewen.
Estava sentado no chão, na cidadela, rodeado pelos outros, à fraca luz das lanternas. Por trás dele, a porta aberta do ATV tapava por completo a entrada de pedra da cidadela.
- Porra - disse Lauren. - Se eles utilizarem aquele tírium numa Supernova funcional, estamos fodidos...
- O que é que vamos fazer? - perguntou Johann Krauss. - Vamos recuperar o ídolo - respondeu Nash, em tom categórico.
- Mas como? - perguntou Troy Copeland.
- Temos que ir atrás dele, já - disse Van Lewen. - Neste momento, eles estão na fase mais vulnerável. Vieram aqui buscar o ídolo e, agora, é de supor que tenham que o levar para o lugar onde têm escondida a Supernova. Mas, numa missão irregular como a deles, o momento em que as pessoas que participam na missão ficam mais vulneráveis é quando vão a caminho do destino final. - E onde é que é a base deles?
- Tem que ser perto - disse Race, num tom firme, surpreendendo toda a gente, incluindo ele próprio, com tamanha convicção. - Julgando pela forma como eles chegaram aqui.
- E como foi, exatamente, que eles chegaram aqui, Professor? - perguntou Copeland, incrédulo.
- Não tenho a certeza absoluta - respondeu Race. - Mas penso que posso calcular, com alguma segurança. Primeiro, eles chegaram aqui, utilizando um meio de transporte que lhes evitou serem detectados pela vossa sofisticada rede SAT-SN. Por isso, não vieram numa aeronave. Segundo, não sendo por via aérea nem a pé, qual é a maneira mais rápida e mais fácil de transportar uma força de uns trinta homens, pela floresta?
- Droga. Porque foi que eu não pensei nisso?... resmungou Lauren.
- E qual é essa forma? - perguntou Copeland, irritado.
- Os rios - respondeu ela.
- Exatamente - disse Race. - Eles vieram de barco. O que quer dizer que a base de operações deles não pode ser muito longe daq... - Race parou repentinamente de falar.
- Então, onde é que é? - perguntou Nash. - Onde é a base de operações deles?
Mas Race não estava ouvindo. Havia qualquer coisa que tinha provocado um lampejo na sua cabeça.
Base de operações...
Onde é que ele já tinha ouvido aquela expressão?
- Professor Race? - chamou Nash.
Não, espera. Ele não tinha ouvido aquela expressão. Tinha-a visto escrita.
Então, de súbito, lembrou-se.
- Lauren, ainda temos conosco aquela transcrição da conversa telefônica? Aquela em que os nazis diziam que iam pedir um resgate? A conversa telefônica, interceptada pelo BKA, entre um telefone celular em algum lugar no Peru e a Colonia Alemania.
Lauren levantou-se e começou imediatamente a procurar no meio do equipamento, na cidadela mal iluminada.
- Aqui está - anunciou, entregando-lhe uma folha de papel. Race olhou para a transcrição que já tinha visto antes.
VOZ 1: ... ase das operações já está pronta a funcionar... resto do... será... a mi...
VOZ 2: ... quanto ao dispositivo?... pronto?
VOZ 1: ... adotamos... forma de ampulheta, com base no modelo americano... dois detonadores termonucleares, montados na parte superior e na parte inferior de uma câmara interior de titânio. Os ensaios de campo indicam que... dispositivo... operacional. Agora, só precisamos... o tírium.
VOZ 2: ... não se preocupem. o Anistaze está a tratar disso...
VOZ 1: ... E quanto à mensagem?
VOZ 2: ... vai, logo que apanhemos o ídolo... a todos os primeiros-ministros e Presidentes da UE... o Presidente dos Estados Unidos, via linha vermelha interna de emergência... o resgate vai ser cem bilhões de dólares... ou, então, detonamos o dispositivo...
O olhar de Race deteve-se nas primeiras duas linhas da transcrição.
VOZ 1: ... ase das operações já está pronta a funcionar... resto do... será... a mi...
- Será a mi... - disse Race, em voz alta. - A mi... a mina. Voltou-se para Lauren.
- Como é que se chamava aquela mina de ouro abandonada, que vimos do Huey, quando vínhamos para aqui? Aquela que estava toda iluminada e que já não parecia nada ter sido abandonada?
- A mina de ouro Madre de Dios - respondeu Lauren.
- Fica perto de algum rio?
- Sim, fica perto do Alto Purus. Quase todas as minas a céu aberto da zona do Amazonas ficam perto de rios, porque a única maneira de tirar de lá o ouro é em hidroaviões e por barco.
- A que distância é que fica daqui?
- Não sei. A uns noventa ou cem quilômetros. Race voltou-se para Nash:
- É para lá que eles vão, coronel. Para a mina de ouro Madre de Dios. De barco.
Heirich Anistaze caminhava por entre a vegetação rasteira, em direção a leste. Por fim, afastou as últimas ramagens e, diante de si, abriu-se uma paisagem verdadeiramente espetacular.
A floresta amazônica estendia-se a perder de vista, qual tapete de verde luxuriante.
Anistaze encontrava-se na orla do planalto, no alto de um rochedo, coberto de vegetação, de onde se avistava a floresta.
Mesmo à sua direita, via-se uma espetacular queda de água de mais de sessenta metros, que escorria do planalto, o fruto final do rio infestado de jacarés que corria junto a Vilcafor.
Anistaze ignorou a queda de água.
Aquilo que realmente lhe interessava era o que se encontrava ao fundo desta, onde o rio se alargava, lá embaixo.
Sorriu ao olhar para lá. Isso...
Então, com o ídolo debaixo do braço, começou a descer pelas cordas, suspensas ao longo da face do rochedo, até ao rio.
- Muito bem - disse Copeland. - E como é que vamos apanhar aqueles filhos da mãe? Eles levam-nos quinze minutos de avanço e, caso se tenham esquecido, os rapas andam por aí...
- Se os barcos deles estiverem onde nós julgamos que eles estão, há outra maneira de chegar até lá - disse Race. - Um caminho que nos evita passarmos pelos felinos.
- Que caminho? - perguntou Nash.
Race pôs-se de joelhos e começou a passar as mãos pelo chão irregular da cidadela.
- O que é que está fazendo? - Estou procurando uma coisa.
- O quê?
Race continuava à procura. Segundo o manuscrito, devia estar em algum lugar por ali. O único problema era saber se os Incas tinham ou não usado o mesmo símbolo para a assinalar.
- Disto - disse Race, de súbito, passando as mãos sobre o piso irregular e pondo a descoberto uma laje de pedra, que estivera coberta por uma delgada camada de poeira e lama.
Gravado num canto da laje, estava um símbolo: um círculo com um «V» duplo inscrito dentro dele.
- Ajudem-me aqui - pediu Race.
Van Lewen e Doogie aproximaram-se, agarraram na laje e começaram a puxá-la.
A laje roçou ruidosamente contra as que lhe estavam próximas e, devagar, foi-se afastando do lugar onde se encontrava, revelando um buraco escuro.
- É o quenko - disse Race.
É o quê? - perguntou Nash.
O manuscrito falava nisto. Era um labirinto escavado na rocha, por baixo da aldeia, um caminho de fuga, um sistema de túneis que vai dar à queda de água, na orla do planalto... desde que se saiba o código do labirinto.
- E você sabe o código?
- Sei.
- Como? - perguntou Troy Copeland, em tom de troça.
- Porque li no manuscrito - respondeu Race.
- Então, quem é que vai? - perguntou Lauren.
- Van Lewen e Kennedy - respondeu Nash. - E qualquer outra pessoa que saiba servir-se de uma arma - acrescentou, olhando para os dois agentes do BKA e para o pára-quedista alemão, Molke.
Renée, Schroeder e Molke disseram que sim com a cabeça. Nash voltou-se para Copeland:
- E você, Troy?
- Eu nunca na vida peguei numa arma - respondeu Copeland.
- Então, pronto. Parece que são só vocês os cinco... - Eu sei manejar uma arma - disse Race.
- O quê? - perguntou Lauren. - Você? - duvidou Copeland.
- Bem... - respondeu Race, encolhendo os ombros. - Algumas armas. O meu irmão andava sempre a levar armas para casa. Não sou lá muito bom mas...
- O Professor Race pode vir comigo sempre que quiser disse Van Lewen, dando um passo em frente e entregando uma pistola SIG-Sauer a Race, com quem trocou um olhar, - A julgar por aquilo que ele fez lá em cima, na torre de pedra.
Em seguida, voltou-se para Nash. - É tudo, meu coronel?
Nash anuiu.
- Façam o que têm a fazer mas recuperem o ídolo. O nosso apoio aéreo deve estar quase chegando. Mal eles cheguem aqui, mando-os atrás de vocês. Se vocês conseguirem arranjar uma maneira de pegar o ídolo e de aguentar os filhos da mãe dos alemães, durante um tempo, a equipe de apoio aéreo deve conseguir tirar vocês de lá. Entendido?
- Entendido - disse Van Lewen, pegando na M-16.
- Então, vamos embora.
Van Lewen ia à frente, caminhando apressado pelos estreitos túneis de pedra do quenko por baixo de Vilcafor.
Levava a M-16 encostada ao ombro, para iluminar o exíguo túnel com a luz fraca da lanterna montada no cano da arma. Race, Doogie, Molke e os dois agentes do BKA acompanhavam as suas passadas rápidas, pela passagem sombria. Doogie e os três alemães empunhavam M-16. Race levava apenas a SIG-Sauer prateada.
Embora não quisesse confessá-lo, Race estava morto de medo. Mas também estava onde queria estar, com Van Lewen, Doogie e os alemães, em busca do ídolo e em perseguição dos nazis. Fazendo alguma coisa.
Contudo, o quenko não contribuía para lhe desanuviar o espírito. Parecia quase uma horrível masmorra, um labirinto subterrâneo de pesadelo, com paredes de pedra muito próximas umas das outras e o chão coberto de lama escorregadia.
Enormes aranhas peludas escapavam-se precipitadamente por frinchas escuras, quando os seis passavam por elas. Cobras obscenamente gordas deslizavam pela lama estagnada do piso do túnel, quase os fazendo cair. E aquilo dava claustrofobia, uma claustrofobia dos diabos. Todas as passagens que ia vendo tinham, quanto muito, noventa centímetros de largura.
Van Lewen continuava a avançar rapidamente.
- Siga pelo terceiro túnel à direita - disse Race, atrás dele. - E, depois, em ziguezague, a contar da esquerda.
Exatamente na mesma altura em que Race e os outros percorriam o labirinto subterrâneo, Heirich Anistaze estava chegando ao fundo da encosta do planalto.
Correu para a margem do rio, onde foi direito a uma lancha rápida Zodiac de borracha.
Premiu o botão do microfone de rádio. - Equipe de demolição. Contacte. Não obteve resposta.
Eles corriam labirinto afora.
Corriam esforçadamente, velozmente, virando à esquerda, cortando à direita, rasgando teias de aranha, tropeçando em cobras com doze metros de comprimento, escorregando na lama que cobria o chão dos túneis daquele labirinto subterrâneo fantasmagórico.
- Eh, Van Lewen - chamou Race, com a respiração entrecortada, enquanto continuavam a correr por um longo trecho do túnel.
- Sim? - respondeu Van Lewen.
- O que é o Clube dos 80?
- O Clube dos 80?
- Cochrane falou nisso, na outra noite, quando vocês estavam a descarregar os helicópteros, mas não quis dizer o que era. Gostaria de saber, antes de morrer.
Van Lewen riu-se, sem parar de correr.
- Eu posso dizer-lhe mas é muito, muito grosseiro. - Vamos, prove-me!
- Bom... - Respondeu Van Lewen. - É assim. Para se ser membro do Clube dos 80 é preciso ter dado uma transa com uma garota que tenha nascido nos anos 80.
- Corta essa, cara! - disse Race, encolhendo-se.
- Eu disse-lhe que era grosseiro - disse Van Lewen. Continuaram a correr.
Havia mais ou menos sete minutos que os seis corriam quenko afora. Então, de repente, Van Lewen virou uma esquina e foi esbarrar numa sólida parede de pedra.
Só que não era uma parede. Era uma porta de pedra.
Na verdade, era uma porta de pedra não muito diferente da entrada da cidadela: uma laje quadrada, com a base arredondada, para poder ser facilmente rolada, do lado de dentro, mas que era inexpugnável, do lado de fora.
Race e Van Lewen afastaram a laje para o lado e ouviram de imediato o rugido de uma forte queda de água.
Uma chuva de gotículas de água bateu-lhes nos rostos, no mesmo instante em que avistaram uma cortina de água, que caía a menos de três metros deles.
Race perscrutou a zona em volta.
Encontravam-se numa trilha, uma trilha inca, aberta na parede de rocha por trás da queda de água.
Encontravam-se já na orla do planalto.
O ruído da queda de água, lá no alto, era incrível. Abafava todos os outros sons. Van Lewen teve que gritar, para se fazer ouvir.
- Por aqui! - gritou, correndo para a esquerda.
O caminho aberto na rocha estava molhado e era escorregadio mas Race e os outros conseguiram manter o ritmo da marcha, enquanto seguiam por trás da cortina de água.
Apesar de caminharem rapidamente, ainda levaram um minuto a chegar à orla da cortina. Lá no alto, a queda de água era extensa e eles tinham saído do quenko no meio dela.
Van Lewen foi o primeiro a chegar em terra firme. De súbito parou na margem lamacenta do rio.
- Que grande merda! - disse.
O que foi? - perguntou Race, ao chegar ao lado dele e olhando para o rio.
A primeira coisa que viu foi a lancha rápida Zodiac de Hemrich Anistaze, abrindo um sulco de espuma branca, enquanto se afastava deles, atingindo as águas mais profundas do centro do rio.
- O que é que estava dizendo? - perguntou. Foi nesse instante que viu os outros barcos.
- Que grande merda.
Parecia uma verdadeira armada.
Devia haver, pelo menos, uns vinte barcos - de todos os tamanhos e feitios - na margem castanha do rio, na base da queda de água.
À volta do perímetro da frota, aceleravam cinco barcos de assalto de pequeno calado. Eram embarcações de assalto Rigid Raiders, aerodinâmicas, de cascos de alumínio, sem cobertura, geralmente utilizadas pela SAS em incursões rápidas.
Quatro barcos patrulha militares dos tempos do Vietnã, conhecidos por Pibbers, navegavam tranquilamente, ao lado de alguns dos barcos maiores, perto do centro da frota. Os Pibbers eram canhoneiras super rápidas de trinta e cinco pés, blindadas, equipadas com metralhadoras de 20 mm e silos suspensos laterais de lançamento de torpedos. O seu nome era a abreviatura militar da sua designação oficial PBR (Patrol Boat River) e, embora já fosse bem conhecido pelas suas façanhas no Vietnã, o Pibber tinha sido imortalizado pelo filme Apocalypse Now.
Três grandes porta-helicópteros seguiam, rio fora, no interior do círculo dos barcos de assalto. No convés de dois destes porta-helicópteros, viam-se alguns helicópteros de combate Mosquito. O helicóptero que, momentos antes, tinha estado no cimo da torre preparava-se agora para aterrar na plataforma do terceiro porta-helicópteros.
Atrás do porta-helicópteros do meio e, destoando notoriamente dos três Mosquitos de alta tecnologia nele pousados, seguia, contudo, um pequeno hidroavião de aspecto desgastado.
Era um Grumman JRF-5 Goose, um hidroavião de duas hélices, compacto, do tempo da Segunda Guerra Mundial.
O Grumman Goose era um pequeno avião com características muito próprias, cujo desenho se tornara um clássico. Visto de lado, o seu nariz tinha mais ou menos a forma do focinho de um labrador, pequeno e achatado mas arredondado junto à linha de água. Pousava na água sobre o ventre, estabilizado por dois flutuadores que saíam das suas asas compridas. Uma característica notável do Goose era ter duas entradas: uma porta lateral e uma escotilha de ejeção no nariz.
Mas este Goose também tinha sido armado. No seu flanco esquerdo, tinha sido montado um canhão ligeiro Gaffing 20 mm de dois canos.
No centro da frota nazi, encontrava-se o seu centro focal - e destino do Zodiac de Anistaze - um enorme catamarã branco. O barco de comando.
Tinha um aspecto imponente: extremamente aerodinâmico, com pelo menos quarenta e cinco metros de comprimento. Os dois cascos compridos estavam pintados de um branco alvo e as janelas inclinadas eram de um preto azeviche. A sua bateria de sonares girava no cimo da cobertura. No convés de aterragem que constituía a popa do grande barco, estava um helicóptero Bell Jet Ranger, de um branco estonteante.
Além do helicóptero, balançando sobre a água, ao lado do grande catamarã e preso a ele, seguia a lancha rápida mais tenebrosa que Race alguma vez tinha visto. Também tinha sido pintada de branco, na mesma tonalidade que o barco de comando e que o helicóptero. O casco, muito comprido e que afilava bruscamente na popa, mergulhava vários centímetros na água. Sobre o assento do condutor, havia um spoder inclinado para trás, uma precaução aerodinâmica concebida para evitar que a potente lancha rápida saltasse acima da superfície do rio, quando se deslocava sobre as águas, a toda a velocidade. Race viu a palavra «SCARAB» pintada de um dos lados da lancha.
Escoltando à volta daquela frota heterogênea, deixando atrás de si sulcos de espuma branca, navegavam seis Jet Raiders: pequenos veículos aquáticos de assalto unipessoais, quase idênticos aos jet-skis.
Mas eram mais compridos que os jet-skis normais tinham uns dois metros e setenta de uma ponta a outra. E eram mais luzidios, mais facilmente manobráveis, mais rápidos. Tinham assentos que pareciam selas e narizes em forma de balas e, em movimento, mal afloravam a água - só a metade traseira dos cascos tocava na superfície do rio, sobre o qual deslizavam com leveza, movendo-se rapidamente à volta dos barcos maiores.
Race e os outros ficaram a ver o Zodiac de Anistaze chegar junto do barco de comando e o conhecido comandante de campo nazi subir para bordo. Mal ele ali chegou, o grande catamarã branco começou a acelerar, ao mesmo tempo que o resto da frota começava a avançar.
- Eles vão-se embora! - gritou Doogie.
- Ali! - exclamou Van Lewen, ao avistar, na margem, três Jet Raiders abandonados, ali deixados sem dúvida pelos membros da equipe de demolição nazi.
- Vamos - disse Van Lewen.
Os seis correram para os três Jet Raiders.
A superfície do rio deslizava velozmente por baixo deles. Enquanto corriam lado a lado, em perseguição da frota nazi, os três jet Raiders roubados deixavam atrás de si rastos espetaculares de jatos brancos pulverizados.
Race ia com Van Lewen e era ele quem conduzia. O Boina Verde ia sentado atrás, como se estivesse na garupa de uma motocicleta, com uma das mãos à volta da cintura de Race e a outra segurando a M-16, pronta a disparar.
Doogie Kennedy conduzia rapidamente sobre a água, à direita de Race e de Van Lewen, tendo como parceiro o pára-quedista alemão Molke. Renée e Schroeder seguiam do lado esquerdo, com Renée conduzindo e Schroeder de metralhadora em punho.
Disposta numa formação muito semelhante a uma formação de combate, com o grande barco de comando no centro, rodeado de Rigid Raiders e de Pibbers, a frota nazi ia uns trezentos metros à frente deles, sulcando velozmente a vasta superfície de águas castanhas.
Os três porta-helicópteros seguiam atrás dos outros barcos, cobrindo a retaguarda, enquanto os pequenos jet Raiders descreviam velozmente curvas e contra-curvas entre os barcos maiores, parecendo moscas sobre um monte de lixo.
Race seguia à grande velocidade, com o vento e a água a baterem-lhe na cara. Pelo canto do olho, via desfilar as árvores da margem do rio, que formavam uma espécie de mancha verde, e viu um tronco estranho que flutuava à superfície, perto dele.
Não bata nos troncos, Will. Não bata nos troncos... E, então, percebeu.
Não eram troncos. Eram jacarés.
Não bata nos jacarés, Will. Não batas nos jacarés...
- Van Lewen! - chamou, aos gritos, para se fazer ouvir apesar do vento ensurdecedor. - Qual é o plano?
- É fácil! Tomamos o barco de comando, pegamos o ídolo e, depois, mantemos o controle do barco, até chegar o apoio aéreo.
- Tomamos o barco de comando...
- Depois de nos apoderarmos dele, podemos controlá-lo.
- Deve ter razão - gritou Race.
Lá adiante, a frota nazi contornou uma curva do rio e desapareceu do campo de visão de Race. Visto de cima, o rio Alto Purus parecia o corpo ondulante de uma serpente, cheio de curvas e mais curvas.
- Bem, pessoal - disse Van Lewen, para o microfone de garganta. - Estão vendo aquelas árvores lá adiante? É para ali que nós vamos.
Race olhou para a frente e viu que a curva do rio que os nazis tinham acabado de contornar era composta por um denso conjunto de árvores. Contudo, quando olhou para ele com mais atenção, reparou numa coisa estranha. Na base das árvores, não se via poeira nem terra. As árvores pareciam simplesmente brotar da água.
Então, percebeu. Era a estação das chuvas e, com a queda anual das chuvas, o nível das águas dos rios da bacia do Amazonas subia imenso. A terra onde aquelas árvores mergulhavam as raízes estava submersa, coberta por uma espessa camada de água: uma floresta alagada.
O que queria dizer que quem se deslocasse numa pequena embarcação, como os Jet Raiders, podia cortar caminho por entre as árvores, em vez de contornar a curva natural do rio.
O jet Raider de Doogie escapou-se, disparado, em direção às árvores. Race foi atrás dele e Renée seguiu-os de perto.
Os troncos das árvores desfilavam, de um lado e do outro, parecendo apenas uma mancha acastanhada.
Os três jet Raiders seguiram entre aquele labirinto de árvores escuras e grossas, deslizando para a esquerda, inclinando-se para a direita, saltando com leveza sobre as ondas e os seus cascos afilados e lisos mal afloravam a superfície. Do lado esquerdo, por entre as aberturas daquele muro descontínuo de troncos de árvore, podiam avistar a armada nazi, que contornava a curva do rio.
Race tentou desesperadamente concentrar-se na condução. A velocidade a que seguiam era absolutamente assustadora.
Era tudo tão rápido. Tão incrivelmente rápido!
Os troncos passavam por ele rápidos. Sob o casco de seu jet Raiders, formavam-se pequenas ondas. Navegavam tão depressa, roçando tão levemente a superfície da água, que quase não precisava de tocar nos comandos para a fazer deslizar para a esquerda ou para a direita.
Race ia sentado no alto do selim do jet Raider, atrás do de Doogie, quando, de repente, viu Doogie e Molice abaixarem-se sem motivo aparente. Foi então que, num relance, viu a causa daquele mergulho e gritou:
- Abaixe-se, Van Lewen!
Van Lewen e Race abaixaram-se no momento exato em que um ramo mais rasteiro passava a zumbir por cima das suas cabeças.
- Obrigado! - gritou Van Lewen.
- De nada!
E, então, por entre a cortina de troncos que se estendia diante de si, Race viu a luz do dia. Uma luz pesada, acinzentada, do fim do dia.
- Muito bem, pessoal - disse Van Lewen. - Formação em flecha. Doogie e Molke, vocês vão na frente. Agentes Schroeder e Becker ficam com o lado esquerdo. Eu e o Professor Race cobrimos o lado direito. OK. Prontos?
O corpulento Boina Verde ergueu a M-16 com uma das mãos, enquanto, com a outra, se agarrava à cintura de Race.
Lá à frente, Race viu Doogie e Molke levantarem as suas M-16.
- Pronto - disse a voz de Doogie.
Os três alemães responderam uns a seguir aos outros.
- Professor?
- Pronto. o mais possível - disse Race. -Então, vamos a isso - disse Van Lewen.
Os três Jet Raiders ocupados por americanos e alemães irromperam do meio das árvores, numa formação em flecha perfeita, mesmo ao lado da frota nazi. Um instante depois, Race deu consigo acelerando sobre a água, no meio de quatro Jet Raiders dos nazis!
Os quatro nazis voltaram-se ao mesmo tempo e ficaram olhando para as três motos de água americanas, de olhos arregalados de espanto. Lançaram as mãos às armas, no preciso momento em que Van Lewen gritava:
- Doogie, se ocupe da direita!
Os dois Boinas Verdes dispararam rajadas simultâneas de tiros de M-16, em ambas as direções. Num instante, à passagem dos três Jet Raiders roubados, os quatro nazis tinham sido derrubados das suas motos de água.
Ao passar pelos nazis caídos, Race olhou para o lado e viu vários grupos de pequenas ondas sulcarem a água, em direção a eles. Os jacarés...
Então, de súbito, uma linha de buracos de balas de 20 mm agitou as águas, dos dois lados do seu Jet Raider em movimento e Race foi imediatamente arrancado do transe em que caíra.
Voltou-se rapidamente e viu dois barcos de assalto, um Rigid Raider e um barco patrulha Pibber atrás deles. O Pibber disparava furiosamente o seu canhão de 20 mm.
Race carregou no acelerador e a sua moto de água deu um salto em frente. Atrás dele, Van Lewen voltou-se no assento, para ficar virado para trás, ergueu a M-16 e abriu fogo contra os seus perseguidores.
A saraivada de projéteis da sua arma atingiu os dois barcos, danificando o pára-brisas do Pibber e atirando três dos quatro homens pela borda fora do Rigid Raider.
Então, abruptamente, toda a frota virou para a esquerda, acompanhando outra curva do rio.
- Pessoal! Virar tudo à esquerda! - gritou Van Lewen. - À esquerda? - perguntou Race, confuso.
- Outra vez pelo meio das árvores. Temos de chegar àquele barco de comando!
Nesse momento, voltaram a cair balas em torno deles: duas motos de água dos nazis vinham atrás deles, As balas choviam de todos os lados, zuniam sobre a cabeça de Race e, então, de repente - zás! - Race viu um horrível jato de sangue brotar do ombro esquerdo de Doogie, quando o jovem Boina Verde foi atingido.
- Háaá! - troou a voz de Doogie, no rádio. Mas Doogie conseguiu não perder velocidade.
As três motos de água americanas corriam por entre as árvores: Renée e Schroeder à frente, Doogie e Molke em segundo lugar, Race e Van Lewen em último.
Um segundo atrasadas em relação a eles, vinham as duas motos de água dos nazis.
As balas embatiam nos troncos das árvores, mesmo por cima da cabeça de Race, que fugia delas a uma velocidade fenomenal. Alguns ramos mais baixos pareciam correr na sua direção. De cada vez que via um aproximar-se, Race gritava a Van Lewen, que continuava virado para trás, e mandava-o baixar-se.
Van Lewen disparava afincadamente a sua M-16 contra as duas motos de água dos nazis, que vinham mesmo atrás, mas os nazis escondiam-se atrás das árvores e, ao cabo de algum tempo, Van Lewen ficou sem munição.
Aproveitando a oportunidade, os dois Jet Raiders dos nazis aproximaram-se.
Um deles colocou-se rapidamente ao lado da moto de água de Race e de Van Lewen, acelerou sobre a água, do lado direito de ambos, e o condutor nazi tirou imediatamente uma Glock do saco do selim. Não podendo fazer mais nada, Van Lewen empunhou a M-16 descarregada como se fosse um bastão de basebol e arrancou a pistola das mãos do nazi. Das árvores que rodeavam os dois Jet Raiders, lançados em furiosa correria, saltaram violentamente lascas de madeira, quando, no mesmo instante, estas foram atingidas por uma rajada de tiros de G-11.
Van Lewen e Race baixaram-se repentinamente, quando o segundo Jet Raider nazi saiu a rugir do meio das árvores, à esquerda deles, e foram embater na margem do rio.
A força do impacto quase fez Race saltar do assento mas ele conseguiu aguentar-se. Manteve a velocidade e inclinou-se rapidamente, para escapar à investida de uma árvore. Depois, olhou para a esquerda, tentando ver o novo atacante, e deu consigo a olhar para o cano de uma espingarda de assalto G-11.
Race desviou os olhos do cano para o rosto do homem que empunhava a arma e viu-o sorrir maldosamente, todo contente. Então aconteceu. O nazi desapareceu da sua vista, quando o Jet Raider bateu, a toda a velocidade, num grosso tronco de árvore e a sua moto de água explodiu numa enorme bola de fogo. Race sentia a cabeça andar à roda.
Tinha acontecido tudo tão depressa!
Era como se o tronco tivesse saltado ao caminho das duas embarcações, varrendo o nazi.
O outro nazi, o que se encontrava logo à direita deles, também se voltou, para ver a explosão. Van Lewen apanhou-o a olhar e, com um movimento ágil, de M-16 em punho, saltou para o Jet Raider do outro homem e foi aterrar em cima do selim, atrás dele.
O condutor nazi voltou-se, surpreso. No momento em que ele se voltou, Van Lewen olhou em frente, para o rio que se estendia diante de ambos, abriu muito os olhos e, com os reflexos de um gato, baixou-se, no preciso instante em que o nazi se voltava para olhar na mesma direção e apanhava, em cheio, com um ramo de árvore, que se aproximara deles a toda a velocidade, à altura das suas cabeças, O ramo acertou-lhe na cana do nariz e abriu caminho pela cabeça do homem, esmagando-lhe o cérebro e matando-o instantaneamente. O nazi caiu para trás, desamparado, passou sobre o corpo curvado de Van Lewen e caiu à água.
Segundos depois, Van Lewen e Race, agora em jet Raiders separados, aproximavam-se da veloz moto de água de Doogie e Molke. Renée e Schroeder iam mais à frente, navegando em segurança entre as árvores.
- Estás bem, Doogie? - perguntou Van Lewen, para o microfone de garganta.
- Eu vou ficar bem. A bala entrou por um lado e saiu pelo outro - respondeu Doogie.
Enquanto Van Luwen verificava como estava Doogie, Race manteve-se atento, a ver se via mais nazis. Não vinha mais nenhum atrás deles, por entre as árvores. Mas, pelos intervalos na cortina de troncos, à sua direita, Race viu dois ou três barcos de assalto Rigid Raiders, sulcando velozmente a superfície do rio, paralelamente a eles. No convés das duas embarcações, estavam alinhados comandos nazis armados, perscrutando a floresta alagada, à espera de voltar a vê- los sair dali.
Van Lewen disse:
- Muito bem, pessoal, ouçam com atenção. O Doogie foi atingido mas está suficientemente bem para seguir em frente. O plano é este. Vamos apoderar-nos do barco de comando, certo? E vamos fazer isso da seguinte maneira. Quero que vocês dois, do BKA - disse, acenando a Renée e Schroeder - se apoderem de um daqueles Pibbers. Para controlarmos aquele barco grande, vamos precisar do apoio de fogo pesado, o que quer dizer pegar um daqueles canhões de 20 mm. Acham que conseguem?
- Vamos tentar - respondeu Schroeder.
- Ótimo. Doogie: você, eu e Molke vamos atrás do barco de comando. Pode fazer isso?
- Posso - respondeu Doogie, com um trejeito de dor.
- Então e eu? - perguntou Race.
- Tenho uma tarefa especial para você, Professor - disse Van Lewen. - Como não tem treino das forças especiais, pensei que não ia querer pegar nenhum barco.
- Bem pensado.
- Pensei que, em vez disso, podia servir de isca. - De isca?
- Quero que se ponha a correr, às voltas, o mais depressa que puder, à frente dos barcos de assalto nazis, para desviar o fogo deles, enquanto nós deitamos a mão ao barco de comando e ao Pibber. Quando nós nos apoderarmos dos dois barcos, levamo-lo para bordo do barco principal.
Race engoliu em seco.
- OK.
Enquanto dizia isto, olhou para a esquerda, para Renée. Ela devia ter visto o seu ar apreensivo e acenou com a cabeça, num gesto tranquilizador.
- Vai correr tudo bem - disse a voz dela, baixinho, no auscultador de Race.
- Obrigado - disse ele.
Depois, olhou em frente e viu que a cobertura que as árvores lhes proporcionava acabava uns cem metros adiante, num grupo de árvores parcialmente submersas.
Para além daquelas árvores, distinguia-se a luz acinzentada do dia e o rio propriamente dito.
E, no rio, estavam os nazis.
- Muito bem, pessoal - disse Van Lewen. - Olho vivo e pé ligeiro. já sabem o que têm a fazer.
Race sentiu o sangue correr-lhe mais depressa nas veias. Um segundo depois, os seis chegaram, a toda a brida, ao limite da zona protegida pelas árvores e ficaram a descoberto.
Era o que os nazis estavam esperando.
Mal emergiram do meio das árvores, Race e os outros foram recebidos por uma chuva de tiros de metralhadora, que caíram à volta deles.
- Cuidado! - gritou Doogie, abaixando-se.
Mas Molke foi demasiado lento. Uma ruidosa saraivada de balas zuniu por cima da cabeça de Doogie e foi cravar-se no corpo do soldado alemão, despedaçando- lhe o peito e fazendo Molke oscilar convulsivamente, até ser cuspido da moto de água, que seguia a alta velocidade.
Race ficou de olhos esbugalhados, ao ver Molke ser feito em pedaços, quase ao seu lado. E abriram-se ainda mais, quando deparou com o que tinha pela frente.
Dois dos três helicópteros Mosquito que, pouco antes, tinha visto pousados nos porta-helicópteros planavam agora sobre a água, mesmo à frente dele e da sua equipe, enquanto o resto da frota nazi seguia rio afora, atrás deles.
Droga!
Os canhões laterais dos dois helicópteros cuspiram uma chuva de mortíferas balas de 20 mm, que despedaçaram vários troncos, atrás de Race, e agitaram a água à sua volta.
- Espalhem-se! Espalhem-se! - gritou Van Lewen.
Os quatro jet Raiders tripulados por americanos e alemães afastaram-se uns dos outros: dois foram para a esquerda e dois para a direita. De repente, Race deu consigo sulcando velozmente as águas ao lado de Doogie Kennedy, que agora seguia sozinho na sua moto de água, com o ombro esquerdo ferido, coberto de sangue.
Van Lewen, Renée e Schroeder partiram rápido na direção oposta, desaparecendo da vista, por trás da frota de barcos patrulha.
Race e Doogie abriram caminho entre os barcos nazis, descrevendo curvas a contra-curvas. Um dos Mosquitos que planavam por perto, avançou a rugir em direção a ambos, com os canhões a cuspir fogo.
Diante do ataque, Race desviou-se para a esquerda, meteu-se entre dois porta-helicópteros e acelerou. Atrás dele, as balas embatiam, produzindo faíscas, num dos lados do porta-helicópteros mais próximo.
Race continuou, disparado, pela faixa de água entre os dois porta-helicópteros. Depois, abruptamente, foi dar a um espaço aberto, diante destes, e seguiu a direito, respirando fundo, ao saltar sobre a ondulação provocada pelo casco do porta- helicópteros do lado direito.
Então, viu o jet Raider de Doogie, correndo ao seu lado, exatamente à mesma velocidade. Mas, por cima de Doogie, planava o helicóptero Mosquito e, ao lado deste, seguia um dos Pibbers dos nazis.
- Rápido, Professor! - gritou Doogie, que empunhava a pistola SIG-Sauer com a mão esquerda, coberta de sangue.
- Cubra-me! Vou abordar aquele Pibber.
- E o barco de comando? - gritou Race para o microfone.
- E o plano?
- O plano foi por água abaixo, mal saímos do meio daquelas árvores! Venha!
- Está bem!
Dizendo isto, Race sacou da sua SIG e abriu fogo contra os dois membros da tripulação nazi que se encontravam na popa do Pibber. Quando Race disparou, os dois atiraram-se ao chão e Doogie aproveitou a oportunidade para encostar rapidamente o jet Raider ao Pib e saltar para a coberta da proa.
Num espanto total, Race viu Doogie equilibrar-se sobre a cobertura da seção dianteira do Pibber e dar dois passos saltitantes para trás, dançando sobre o teto da casa do leme da canhoneira e, depois, pular para a plataforma descoberta da popa e, com a sua M-16, fazer ir desta para melhor os dois membros da tripulação nazi.
- Salte aqui, Professor! Preciso de você para manejar esta coisa! - disse Doogie, apontando para o canhão de 20 mm. Race manobrou sobre a superfície do rio, em direção ao Pibber.
À bordo do Pibber, Doogie tirou uma G-1 das mãos de um dos nazis caídos e ocupou-se do leme, disparando contra o helicóptero Mosquito que os sobrevoava, sem deixar que a embarcação perdesse a velocidade alucinante a que navegava.
Race chegou junto do Pibber.
Encostou o Jet Raider ao veloz barco patrulha, tentando desesperadamente manter o controle da moto de água, que balançava selvaticamente sobre a ondulação lateral provocada pelo Pibber.
Race tentava manter-se ao lado do Pibber, conduzindo, concentrado, de olhos fixos na amurada da canhoneira, que se encontrava a uns noventa centímetros de distância.
A única coisa que ele queria era pegar aquela amurada. Mas, nesse momento, uma chuva de balas bateu naquele lado do Pib - à sua frente.
Race voltou-se de imediato.
E viu outro Pibber sulcando as águas na sua direção, com mais cinco nazis no convés.
Vinha mesmo direto a ele.
E não estava a abrandar a marcha.
Ia lançar-se contra o Pibber de Doogie, quer Race estivesse ou não no caminho!
Race voltou-se para olhar, mais uma vez, para o barco de Doogie, de olhos novamente fixos na amurada.
Salta, gritava-lhe o cérebro.
Race saltou do Jet Raider e, ainda com as pernas a balançar sobre a água, agarrou-se à amurada. Num instante, içou as pernas para cima, passou-as sobre a amurada, no preciso momento em que a segunda canhoneira batia estrondosamente contra o lado do Pibber de Doogie.
Race rolou sobre o convés. Por baixo dele, a embarcação saltava descontroladamente.
- Aqui, Professor! - gritou Doogie.
Race ainda estava deitado de bruços no convés. Olhou para cima e viu Doogie acenar-lhe, da casa do leme, no momento exato em que, de repente, um par de botas da tropa irrompia no seu campo de visão, interpondo-se entre ele e Doogie.
Mas, no preciso momento em que as botas aterravam no convés, uma arma disparou e o dono das botas tombou de imediato, com o rosto de olhos esbugalhados voltado para Race. Tinha um único buraco de bala, no meio da testa. Lá ao fundo, por trás do nazi morto, Race viu Doogie, empunhando uma G-11, com o braço direito.
Santo Deus, pensou Race, quando viu o segundo Pibber encostar-se à amurada do seu barco e os quatro nazis, alinhados no convés, prepararem-se para saltar para a sua embarcação.
Deu meia volta, olhou para o lado oposto e viu aproximar-se um dos porta- helicópteros, que lhes cortava a fuga, encurralando-os.
- Isto não está nada bom, disse para si mesmo. Era óbvio que Doogie estava pensando o mesmo.
Doogie virou o Pibber deles para a esquerda, batendo com toda a força no barco nazi, o que fez perder momentaneamente o equilíbrio aos comandos que se encontravam alinhados no seu convés, ganhando assim os segundos preciosos de que precisava para erguer a G-11 e disparar.
Mas não disparou contra o convés do Pibber dos nazis, em especial porque não dispunha de tempo suficiente para fazer girar a arma para aquele lado. Em vez disso, apontou-a para a proa da embarcação dos nazis, onde não havia ninguém.
- O que é que está fazendo? - gritou Race. A G-11 de Doogie entrou em atividade. Uma rajada de talvez duas dúzias de tiros. Instantaneamente, começaram a chover faíscas à volta da âncora da proa do Pibber dos nazis.
Depois, de repente - zás! - a pequena argola metálica que segurava no seu lugar a âncora do Pibber foi atingida pelo fogo de Doogie, saltou do convés e foi cair ao lado da proa do Pibber, mergulhando na água que corria por baixo deste. Num instante, a corda de nylon da âncora saltava borda fora.
Os quatro nazis que se encontravam no Pibber viram a âncora cair e, de G-11 apontadas, voltaram-se para enfrentar Doogie e Race.
E foi então que aconteceu.
Race nunca chegou a saber se a âncora tinha batido apenas na raiz de uma árvore ou num diabo de uma árvore totalmente submersa: fosse o que fosse era qualquer coisa muito grande.
Bem podia ter sido um terrível e forte monstro marinho, que se tivesse atravessado no caminho da âncora do Pibber. Porque, no curto espaço de um medonho instante, o Pibber dos nazis passou de cerca de sessenta e cinco milhas marítimas por hora a zero e a embarcação pareceu querer devorar-se a si mesma, com a ré sobre a quilha, ao mesmo tempo que a proa era cuspida para a água.
A popa saiu disparada do meio das ondas e todo o barco pareceu descrever um desajeitado salto mortal lateral, agitando-se no ar, abatendo-se sobre a cobertura da casa do leme, caindo com enorme estrépito na água.
Race voltou-se, para ver o barco dos nazis, virado, mergulhar, por trás deles, afundando-se lentamente.
Leonardo Van Lewen fazia deslizar o seu jet Raider, metendo-se pelo meio da frota nazi, afastando-se em seguida, mal tocando na superfície do rio, de cada vez que desaparecia e reaparecia por trás dos porta-helicópteros, por trás dos Pibbers, por trás dos Rigid Raiders.
À sua volta choviam balas, enquanto ele tentava desesperadamente avançar mais depressa do que o barco de assalto Rigid Raider e do que o helicóptero de combate Mosquito, que não paravam de o acossar.
Estranhamente, a bordo do Rigid Raider que o perseguia vinha só um nazi. Era o mesmo barco contra o qual ele tinha disparado, um pouco antes, matando todos os seus ocupantes menos um.
Verdade seja dita, Van Lewen não prestava muito atenção no barco nem no helicóptero. Só tinha olhos para a embarcação que seguia uns cinquenta metros à sua frente.
O grande catamarã branco.
O barco de comando dos nazis.
Uns vinte metros atrás de Van Lewen, o tripulante solitário do Rigid Raider disparava freneticamente contra a moto de água do soldado americano e as suas balas caíam por todo o lado, enquanto ele ia fazendo o seu barco de assalto correr que nem um louco. Então, abruptamente, o homem que ia ao leme ouviu um ruído atrás de si e voltou-se, mesmo a tempo de ver o punho de Karl Schroeder avançar para a sua cara.
Renée Becker puxava o mais possível pelo seu Jet Raider. Os pequenos jatos de água que lhe batiam na cara pareciam agulhas.
Mesmo à sua esquerda, Renée viu Schroeder pegar no leme do Rigid Raider para onde tinha acabado de saltar e fazer-lhe sinal, erguendo o polegar.
Depois de ter certeza de que ele assumira o controle do barco nazi, Renée esforçou ainda mais o motor da sua moto de água e colocou-se à frente do Rigid Raider, usando-o como escudo contra o helicóptero que os sobrevoava, enquanto ia ter com Van Lewen, para o ajudar na perseguição ao barco de comando.
O grande barco de comando dos nazis corria rápido sobre o rio, liderando a frota.
Uns seis nazis estavam alinhados na amurada da popa, por baixo das pás do helicóptero branco pousado no convés da embarcação, disparando contra Van Lewen.
Mas o corpulento Boina Verde foi fazendo correr o seu Jet Raider em ziguezague, baixando-se para escapar às balas, até que, de repente, sem aviso prévio, apareceu atrás do barco de comando, vindo detrás de um dos porta-helicópteros.
Protegido pelo porta-helicópteros, Van Lewen ganhou velocidade, ultrapassando-o gradualmente, com o seu manobrável Jet Raider.
Em poucos segundos, chegou à proa do porta-helicópteros e, então, respirou fundo uma última vez.
Em seguida, quando ficou pronto, girou os comandos o mais possível para a esquerda.
Como um caça a jato atrás da sua presa, o Jet Raider de Van Lewen contornou velozmente a proa do porta-helicópteros e colocou-se atrás do grande barco de comando de dois cascos.
Os nazis que se encontravam na popa do enorme catamarã abriram de imediato fogo contra ele mas, para espanto de Van Lewen, foram subitamente obrigados a baixar-se devido ao aparecimento do jet Raider de Renée, que, aos gritos, abriu fogo cerrado sobre eles com a sua M-16, ao mesmo tempo que deslizava sobre a água.
Aproveitando o fato de os nazis estarem acocorados, os dois saltaram em vôo para baixo da parte central do catamarã, que parecia uma ponte, disparando para a zona de sombra entre as dois cascos de quarenta e cinco metros!
Os dois jet Raiders, arremessados para a frente, por entre a escuridão que reinava por baixo do catamarã, em breve chegavam à proa do barco.
Van Lewen aproximou-se do casco do lado direito. Renée acostou à do lado esquerdo. Depois, ficou a ver Van Lewen estender as mãos acima da cabeça, agarrar-se à amurada, içar-se para a proa do barco de comando e, depois, desaparecer da sua vista.
Um segundo mais tarde, respirando fundo, Renée estendeu as mãos para a amurada do lado esquerdo e começou a subir para bordo.
Uma forte ventania bateu-lhe no rosto, quando emergiu das sombras da parte de baixo do catamarã e se pôs de pé sobre a proa do lado esquerdo.
Renée viu Van Lewen, na outra proa, a uns quinze metros de distância, empunhando a M-16, pronta a disparar.
O barco de comando seguia à frente da frota e, por isso, os nazis não tinham obviamente esperado que alguém os abordasse pela frente e não tinham destacado comandos para ali.
Pelo menos por enquanto.
Renée observou bem o catamarã. Era grande, muito grande mesmo. A superstrutura montada no topo dos dois enormes cascos era extremamente macia e aerodinâmica. Era composta por dois níveis, cujos interiores não eram visíveis devido aos vidros especiais das janelas inclinadas. Em cada um dos flancos da grande embarcação, havia um corredor lateral amplo.
- E agora? - gritou Renée.
- Tomamos o barco e aguentamo-lo até à chegada dos helicópteros! - Respondeu Van Lewen, também aos gritos.
- E o ídolo? Se não conseguirmos tomar o barco, devíamos, pelo menos, tentar pegar o...
Nesse instante, dois comandos nazis apareceram correndo, vindos da passagem de bombordo, com as G-11 a cuspir fogo. Mas estavam disparando de uma zona inclinada e os tiros eram demasiado altos. Van Lewen só teve que mover um pouco a M-16 e fazer pontaria: os dois caíram, atingidos por dois disparos certeiros.
O que é que disse? - gritou, dirigindo-se a Renée. - Não interessa - respondeu esta. - Avance! Eu cubro-o. E, dito isto, Van Lewen e Renée avançaram pela passagem de estibordo.
Race e Doogie quase voavam sobre a água, no seu barco patrulha Pibber.
Um dos helicópteros de combate Mosquito, que planava sobre o barco em que seguiam à desfilada, disparava sobre eles, lá do alto e, de vez em quando, dava uma volta e voava novamente para trás, para disparar diretamente sobre eles. Até chegara a abrir uma das portas laterais, de onde um comando nazi disparou contra eles a sua G-11.
Do lado direito, seguia um dos porta-helicópteros, encurralando-os e impedindo- lhes a fuga por aquele lado. Enquanto conduzia, Doogie ia disparando a sua G-1 contra o helicóptero.
Tentava em vão chegar ao canhão dianteiro do Pibber onde se encontrava, mas o fogo sem tréguas do helicóptero mantinha-o preso à casa do leme.
- Droga, não consigo chegar lá! - gritou, enquanto o Mosquito voltava a mover-se rapidamente por cima deles e, ao rugido dos rotores, se seguia o impacto de perto de um milhão de disparos, capazes de perfurar armaduras, que bateram na cobertura da casa do leme.
- Temos que fazer qualquer coisa com aquele helicóptero! - gritou Race.
- Eu sei, eu sei - gritou Doogie, em resposta. - Depressa, Professor! Vá lá embaixo e veja se encontra granadas ou qualquer coisa do gênero.
Race obedeceu de imediato, abriu a escotilha da frente da casa do leme e desceu para o interior da canhoneira.
Foi dar a um pequeno compartimento austero, de paredes cinzento metálico.
Ao longo das paredes inclinadas, estavam alinhados redes e caixotes de madeira. No centro do compartimento, viu um objeto cinzento que parecia uma caixa. Tinha uns noventa centímetros de altura e outros tantos de largura, mais ou menos o tamanho de uma mesa de cartas, e, à primeira vista, Race pensou que era apenas mais um caixote, uma espécie de contentor de munições ou algo parecido.
Mas não era nenhum caixote, nem um contentor. Olhando com mais atenção, Race viu que estava preso ao chão.
Então, percebeu: era uma escotilha de mergulho. No Vietnã, as forças especiais e os SEAL preferiam usar os Pibbers em vez de quaisquer outros barcos patrulha, porque só eles tinham aquelas escotilhas especiais nos cascos. Saindo por elas, os homens-rãs podiam entrar na água, sem que o inimigo se apercebesse que fora ludibriado.
Race começou rapidamente a procurar nas prateleiras, tentando encontrar armas.
A primeira coisa que encontrou foi um pequeno caixote de granadas de mão L2A2, de fabricação britânica. A segunda coisa foi uma caixa Kevlar, com algumas palavras escritas num dos lados, em inglês:
PROPRIEDADE DO EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS
MATERIAL BÉLICO
56-005/C/DARPA 6 X CARGAS M-22
Race abriu a caixa e viu seis frascos de laboratório de crômio e plástico, de aspecto futurista, muito bem arrumadinhos em divisórias individuais, forradas a espuma. Os frascos eram bastante pequenos, mais ou menos do tamanho de uma embalagem de batom, e estavam todos cheios de um estranho líquido âmbar lustroso.
Race encolheu os ombros, pegou na caixa Kevlar, meteu-a no caixote das granadas normais e levou tudo para a casa do leme. - Ah, Professor - disse Doogie, quando viu a caixa Kevlar.
- Eu... hum... se fosse você, não lançava essas belezinhas.
- Porquê?
- Porque nós também seríamos mortos.
- O quê?
- São M-22. Cargas explosivas de alta temperatura. É uma merda muito séria. Olhe para o líquido âmbar que têm lá dentro. É líquido isotópico de cloro. Uma grama dessa coisa desintegra tudo o que existir num raio de mais de sessenta metros, nós incluídos. Devem ter sido estes sacanas destes nazis quem roubou a tal remessa de M-22 daquele caminhão, em Baltimore, há uns anos atrás.
- Oh - disse Race.
- Não precisamos de um poder de fogo dessa ordem - disse Doogie, sorrindo, ao mesmo tempo que pegava numa granada de mão mais convencional, uma L2A2. - É disto que nós precisamos.
Menos de um minuto depois, o Mosquito voltou a passar sobre eles, crivando os costados do Pibber de buracos de bala. Mas, desta vez, enquanto o helicóptero disparava lá do alto, doogie arrancou o pino da granada e atirou-a, como quem faz uma jogada de basebol, para a porta lateral aberta do helicóptero.
A granada voou que nem um míssil e, depois, desapareceu no interior do Mosquito.
Um segundo mais tarde, a fuselagem do Mosquito explodia e o pequeno helicóptero de combate dava um salto incrível para a frente, girando sobre si mesmo e explodindo em chamas, antes de aterrar de nariz na água, que parecia correr para ele, a uma velocidade assustadora.
- Belo lançamento - comentou Race.
Van Lewen e Renée correram pelo corredor do barco de comando, com as M-16 firmemente apoiadas nos ombros. Movimentavam-se com rapidez, apontando as armas ora para um lado ora para outro, até que, de repente, foram dar a um espaço aberto, a plataforma de aterragem da popa do grande catamarã.
Van Lewen viu imediatamente o helicóptero branco Bell Jet Ranger, pousado na plataforma, e, ao lado deste, o respectivo piloto.
O homem também os viu logo e sacou da arma. Van Lewen derrubou-o, virou à direita e deu de caras com um grupo de seis comandos nazis, que tinham aparecido a correr, vindos do interior do catamarã, com as G-11 a cuspir fogo.
As balas da super-metralhadora voaram à volta de Van Lewen e Renée, varrendo o convés, despedaçando a madeira da amurada, por trás deles.
Van Lewen abaixou-se e viu Renée atirar-se ao chão, protegida na esquina de onde ambos tinham vindo.
Mas ele tinha avançado demasiado.
Olhou para os nazis que se aproximavam. Encontravam-se a uns quinze metros de distância, com as suas metralhadoras futuristas cuspindo uma chuva de balas e, perante aquele assalto, sem ter absolutamente mais nada a que pudesse recorrer, Leo Van Lewen fez a única coisa de que conseguiu lembrar-se.
Saltou por cima da amurada.
Ao leme do seu Rigid Raider, correndo atrás do barco de comando, Karl Schroeder assistiu, horrorizado, ao salto de Van Lewen por cima da amurada do enorme catamarã.
Mas Schroeder não teve tempo para ficar embasbacado. Nesse instante, uma saraivada de disparos tombou à sua volta e dois Rigid Raiders; nazis caíram sobre ele, alvejando os flancos da sua embarcação e obrigando-o a atirar-se ao chão, para escapar às balas.
Bateu no chão com toda a força e olhou de imediato em torno de si, à procura de qualquer coisa que lhe pudesse ser útil para lutar contra os dois Rigid Raiders.
A primeira coisa que viu foi uma G-11, caída no chão, ao lado de uma caixa Kevlar. Nada mau.
Mas, então, viu outra coisa, atrás da G-11. E franziu o sobrolho.
Van Lewen descreveu um arco, no ar, e ficou à espera do impacto com a água do rio.
Mas este não se deu.
O sargento americano aterrou em cima de qualquer coisa dura, de qualquer coisa sólida, que parecia plástico ou fibra de vidro. Olhou em volta e viu que se encontrava deitado no convés da lancha de corrida Scarab, que ia amarrada ao lado esquerdo da amurada do barco de comando.
Menos de um segundo depois, três comandos nazis, de G-11 em punho, saltaram por cima da amurada do barco e fizeram pontaria para o septo do seu nariz. Nesse momento, quando os fitou nos olhos, Van Lewen apercebeu-se de que a sua luta chegara ao fim.
Os três nazis apertaram os gatilhos das armas.
A princípio, Schroeder não compreendeu do que se tratava. Era um dispositivo estranho, do tamanho aproximado de uma mochila, com uma forma mais ou menos retangular e com uma série de mostradores com escalas numeradas, com medidas em quilohertz, megahertz e gigahertz.
Escalas de frequências... Então, percebeu o que era.
O gerador de impulsos dos nazis, o dispositivo de que estes se tinham servido, quando tinham chegado a Vilcafor, para neutralizar o sistema de comunicações dos americanos.
Colada à parte da frente do aparelho estava um bocado de fita isolante cinzenta, com as seguintes palavras, escritas em alemão:
AVISO!
NÃO UTILIZAR O NÍVEL DOS PULSOS ELETROMAGNÉTICOS A NÍVEIS ACIMA DOS 1.2 gHz.
Ao ver a sigla «IEM», Schroeder ficou de olhos esbugalhados. Deus do céu.
Um gerador de impulsos eletromagnéticos.
Os nazis tinham um gerador de impulsos eletromagnéticos. Mas porque seria que tinham fixado o nível máximo dos impulsos nos 1.2 gigahertz?
Então, de repente, fez-se luz no seu espírito.
Schroeder pegou na G-11 que se encontrava por perto e olhou para as especificações marcadas no corpo da arma.
HECKLER & KOCH, DEUTSCHLAND - 50 V.3.5 MV: 920 CPU: 1.25 gHz
Nos centésimos de segundo durante os quais a sua mente refletiu, Schroeder lembrou-se da teoria dos impulsos eletromagnéticos: o IEM neutralizava tudo quanto tivesse um microprocessador: computadores, transmissores de rádio, televisores.
Sendo assim, pensou Schroeder, também podia neutralizar as G-11, as únicas armas do mundo equipadas com um microprocessador, a única metralhadora suficientemente complexa para precisar de ter um.
Os nazis não queriam que os seus homens utilizassem frequências demasiado elevadas no IEM porque, se tal acontecesse, o impulso eletromagnético tornava inoperantes as suas G-11.
Schroeder sorriu.
E, então, exatamente no mesmo momento em que, deitado de costas, no convés do Scarab, Van Lewen olhava para os canos das metralhadoras G-11 empunhadas pelos nazis, Karl Schroeder carregou no botão do gerador de impulsos e colocou o indicador deste nos 1,3.
Clique. Clique. Clique.
O olhar de resignação de Van Lewen transformou-se num olhar de espanto absoluto, quando as três G-11 apontadas à sua cabeça não dispararam.
Os nazis pareciam ainda mais espantados. Não faziam a mínima ideia de que diabo estava passando.
Van Lewen não perdeu tempo.
No espaço de um segundo, tinha a M-16 numa das mãos e a SIG-Sauer na outra. Premiu os dois gatilhos em simultâneo.
E as duas armas cuspiram fogo.
As cabeças dos três nazis explodiram em jatos de sangue e eles caíram ruidosamente para trás, contra a amurada.
As balas silvavam sobre a amurada, fazendo ricochete nas mais variadas direções e uma delas cortou a corda que prendia o Scarab ao barco de comando.
A lancha de corrida afastou-se imediatamente do grande catamarã. Os nazis que se encontravam a bordo do barco de comando, segurando nas mãos G-11 agora inúteis, tiveram que se resignar a ficar a ver o Scarab distanciar-se, deslizando sobre as águas.
Do outro lado do rio, sentado na cadeira giratória, diante do canhão do seu Pibber, Doogie Kennedy fazia estragos indescritíveis com o canhão de cano duplo de 20 mm do barco patrulha.
Voltou o canhão e fê-lo cuspir uma saraivada de fogo, que transformou em queijo suíço um dos Rigid Raiders que corriam sobre o rio, à sua esquerda.
Em seguida, lançou os olhos para um dos porta-helicópteros que seguiam à sua frente, para aquele onde estava pousado um helicóptero Mosquito, e crivou o porta-helicópteros de balas de 20 mm, perfurando-lhe os depósitos de combustível. Porta-helicópteros e helicóptero transformaram-se numa única bola de fogo.
- Tomem lá esta, seus filhos da puta nazis!
Três metros atrás de Doogie, na casa do leme do Pibber, Race puxava pela embarcação e, ao mesmo tempo, ia observando o rio. Nesse momento, o terceiro e último helicóptero de combate Mosquito sobrevoou-os a baixa altitude, com os canhões laterais a cuspir fogo. Race não perdeu tempo e atirou-se ao chão. Na parte da frente do convés, Doogie virou o canhão e disparou uma rajada ensurdecedora de balas de 20 mm contra o helicóptero mas o Mosquito afastou-se velozmente e os projéteis luminosos disparados por Doogie perderem-se no ar.
Foi então que Race viu outra canhoneira Pibber, que navegava ameaçadoramente, atrás deles.
Mas não havia nazis armados junto à amurada e os seus canhões de 20 mm estavam silenciosos.
A embarcação foi mantendo a distância, navegando calmamente, pelo menos a uns trezentos metros deles.
Então, Race viu uma lufada de fumaça sair do suporte quadrado fixado na lateral da embarcação, e alguma coisa, branca e alongada, ser disparada repentinamente na direção da água.
- Aquela coisa seria aquilo que eu estou pensando? - disse Race, no preciso momento em que, vindo detrás do barco deles, surgiu outro Rigid Raider dos nazis, que se meteu entre eles e o Pibber que tinha acabado de lançar o tal objeto estranho.
No convés do Rigid Raider, estavam quatro nazis, que dispararam contra Race e Doogie, com pistolas Beretta.
Então, de repente, tão de repente que Race até deu um salto, o Rigid Raider entre os dois Pibbers explodiu.
Sem aviso prévio. Sem causa aparente.
O barco de assalto, de casco alongado, foi pelos ares, num jato de fumo, água e metal contorcido.
Sem causa aparente, pensou Race, a não ser o objeto que o outro Pibber tinha acabado de lançar. Race e Doogie chegaram à mesma conclusão, ao mesmo tempo.
- Torpedos... - disseram os dois, trocando um olhar. Enquanto pronunciavam a palavra, o suporte quadrado do Pibber nazi cuspiu outro jato de fumo e um novo torpedo branco e alongado tombou na água e seguiu em frente, a uma velocidade incrível, em direção ao barco deles.
- Oh, oh - disse Doogie, mal podendo respirar. Race carregou no acelerador do Pibber.
O torpedo corria sobre a água.
A toda a velocidade, Race conduziu o Pibber para o mais longe possível dele, girando para a direita, na direção do resto da frota, na esperança de conseguir interpor outra embarcação entre eles e o torpedo.
Mas não serviu de nada.
Os dois barcos mais próximos deles eram os dois porta-helicópteros que ainda restavam, o que arrastava atrás de si o hidroavião Grumman JRF-5 Goose, imediatamente à direita, e o outro, que seguia um pouco à frente, do lado esquerdo.
As plataformas de aterragem dos dois porta-helicópteros e as suas amplas pistas sem amuradas estavam vazias.
Race forçou ainda mais o motor.
O Pibber saltou em frente, disparado, bateu numa onda solitária, deu um grande salto no ar e, depois, guinou subitamente, voltou a descer e chocou com toda a força com a água.
- Professor! - gritou Doogie. - Tem dez segundos para fazer qualquer coisa.
Dez segundos, pensou Race. Merda.
A visão do porta-helicópteros, à sua esquerda, deu-lhe uma idéia e correu em direção a ele.
Oito segundos.
O Pibber galgava, disparado, a distância de uns trinta metros que o separava do porta-helicópteros, comprido e plano.
Os olhos de Race estavam grudados ao porta-helicópteros. Pouco mais era do que uma plataforma de aterragem sobre a água, apenas uma superfície plana para aterragem de helicópteros, que flutuava a pouco mais de noventa centímetros acima da linha de água, com uma pequena casa do leme envidraçada na proa.
Seis segundos.
De súbito, Race fez rodar completamente o volante para bombordo e o Pibber descreveu uma curva sobre a água, inclinando-se para a esquerda, galgou rapidamente as ondas, dando vários saltos no ar, enquanto continuava a dirigir-se, a uma velocidade perigosa, para o porta-helicópteros.
Cinco segundos.
O torpedo aproximava-se. Quatro segundos.
- O que é que está fazendo? - gritou Doogie. Três.
Race carregou no acelerador, fazendo-o tocar no fundo. Dois.
Lançado numa rota de colisão com o flanco estibordo do porta-helicópteros, o Pibber mal tocava na água.
Então, de repente, o Pibber embateu numa onda e ergueu-se no ar, que nem um automóvel conduzido por um dublê de cinema, ao saltar de uma ribanceira.
Na sua veloz correria, a canhoneira saiu por completo da água, com as hélices a rasgar o ar, lá atrás, literalmente a voar, até o seu casco aterrar na plataforma vazia do porta-helicópteros, com um rangido de fazer arrepiar a pele.
Mas o Pibber continuava lançado a grande velocidade e, com uma chiadeira capaz de rebentar com os tímpanos a qualquer um, o barco patrulha deslizou sobre o convés de aterragem vazio, lançando chispas enquanto seguia por ali fora. Então - bumba! O Pibber galgou o extremo esquerdo do porta-helicópteros e caiu ruidosamente na água, do outro lado. Quando as suas hélices voltaram a encontrar água, a embarcação seguiu em frente, afastando-se do porta-helicópteros, no momento exato em que o torpedo atingia o infortunado porta-helicópteros e explodia.
O corpo do porta-helicópteros arrebentou com estrondo. Pedaços de aço retorcidos, peças encurvadas do casco e milhares de estilhaços de vidro foram pelos ares, quando o porta-helicópteros explodiu devido ao impacto do torpedo.
- Uau! - gritou Doogie, que continuava no banco junto ao canhão. - Que grande vôo!
Com a respiração suspensa, Race olhava para a extensão do rio atrás deles, enquanto pedaços do porta-helicópteros destruído choviam sobre a casa do leme onde se encontrava.
- Uff - disse ele.
Renée Becker esgueirou-se por uma porta lateral do barco de comando e avançou cautelosamente pelo estreito corredor, iluminado por uma luz branca.
Escondeu-se num cubículo, quando uma porta à sua frente se abriu de repente e apareceram dois nazis, que passaram por ela, apressados, empunhando pistolas. Um deles disse:
- Eles estão usando o nosso IEM contra nós.
E os dois seguiram corredor adiante, sem terem dado pela presença dela.
Renée não perdeu tempo. O interior do catamarã era luxuoso: paredes brancas, painéis de madeira escura e opulentos carpetes azuis.
Mas isso não lhe interessava.
O seu objetivo era bem preciso. O ídolo.
Depois de ter saltado da água e voado sobre a plataforma de aterragem do porta-helicópteros, o Pibber de Race e Doogie tinha voltado a sulcar a superfície do rio e Doogie disparava o canhão contra o último helicóptero Mosquito, que zunia selvaticamente sobre as suas cabeças.
Mas o Mosquito era demasiado rápido, demasiado ágil. Escapou-se às balas, com toda a facilidade, até que o canhão de 20 mm de Doogie ficou sem munições e começou a disparar em seco.
- Ah, merda - disse Doogie, franzindo o sobrolho.
Saltou rapidamente do banco de controle do canhão, pegou na G-11 e foi ter com Race à casa do leme.
- Temos que apanhar aquele helicóptero - disse. - Enquanto ele andar lá por cima, não temos nenhuma hipótese de vencer. - O que é que sugere?
Doogie indicou com a cabeça o último dos porta-helicópteros, que seguia rio abaixo, a uns cinquenta metros à direita deles, o batelão que levava a reboque o hidroavião Grummann Goose.
- Sugiro que vamos dar uma volta lá por cima, naquela coisa.
Segundos depois, o Pibber de Race e Doogie encostava ao lado do batelão porta- helicópteros.
Os dois barcos tocaram-se por um momento e Doogie saltou para a plataforma de aterragem do batelão, - Muito bem, Professor! - gritou. - Agora é a sua vez! Race concordou, com um aceno de cabeça, e largou o leme do Pibber, no momento exato em que este era selvaticamente abalado por um tremendo impacto.
Race caiu no convés e olhou para cima, mesmo a tempo de ver um dos dois Pibbers que ainda restavam, abordar a amurada esquerda do seu barco.
No batelão porta-helicópteros, à direita dos dois Pibbers, Doogie apontou a G-11 e premiu o gatilho... mas a arma não cuspiu fogo.
- Mas que droga! Merda! - gritou Doogie, ao ver Race e o outro Pibber afastarem-se do batelão.
Aquilo era o inferno, pensou Race.
À sua volta choviam balas, quando os nazis a bordo do outro Pibber, abriram fogo contra a casa do leme, com pistolas de curto alcance. O pára-brisas dianteiro do seu Pibber foi estilhaçado e milhares de pedacinhos de vidro aterraram-lhe em cima.
Então, de repente, sentiu novo impacto, quando o segundo Pibber bateu na amurada de bombordo da sua embarcação. Olhou ao redor e viu o Pibber dos nazis, navegando lado a lado com o seu, viu quatro comandos no convés da popa, de Berettas em punho, preparando-se para abordar o seu Pibber e para o matar.
Voltou-se, olhou para o lado oposto e viu que, nesse momento, a distância que separava a sua embarcação do batelão porta-helicópteros onde se encontrava Doogie era de, pelo menos, trinta metros. Demasiado longe.
Agora, estava por conta própria. Empunhou a SIG.
Quais são as opções, Will? Não há muitas.
O primeiro nazi saltou para o Pibber de Race.
Race girou sobre si mesmo instantaneamente e atirou-se pelo pára-brisas quebrado do seu barco, indo parar lá acima, à coberta da proa, no instante exato em que o nazi disparava a pistola e as balas iam cravar-se na moldura do pára-brisas, a poucos centímetros da cabeça de Race.
Race rastejou sobre a coberta da proa do Pibber, para fora da linha de fogo, pelo menos de momento.
Ouviu o som dos saltos de mais nazis para o convés do seu barco.
Merda. Olhou atrás e viu as cabeças dos quatro comandos nazis, que avançavam para ele. Instintivamente, rolou sobre si mesmo, afastando-se deles mas, de repente, as suas costas bateram em qualquer coisa.
Race voltou-se.
Era a âncora do Pibber.
Os nazis continuavam a avançar. Faz qualquer coisa!
Está bem...
Race apontou a SIG-Sauer à corda da âncora e disparou.
A bala cortou a corda, por cima da âncora e, uma vez liberto, aquele peso de aço inoxidável desabou sobre o convés. Então, Race tirou o boné e agarrou-o firmemente entre os dentes.
O primeiro nazi a chegar à casa do leme ergueu a Beretta e disparou.
Race rolou para escapar à bala e, ao mesmo tempo, agarrou-se à corda da âncora. Depois, sem pensar duas vezes, rolou rapidamente pela coberta da proa, em direção à proa do barco.
Enquanto Race rolava, o aço da coberta da proa ia ficando crivado de buracos de bala mas estas falharam sempre o alvo. Porque, no momento exato em que os quatro nazis entravam na casa do leme do Pibber, William Race içava o corpo sobre a proa do barco patrulha e lançava-se à água, que corria veloz, lá em baixo.
R ace caiu na água de costas.
O seu corpo projetou um jato espetacular de espuma, enquanto fazia ricochete, com toda a força, sobre a superfície deslizante, arrastado sobre ela a uma velocidade alucinante, tentando sempre não largar a corda da âncora. De vez em quando, enquanto sulcava a água, o seu corpo saltava por cima de uma onda e batia contra a parede lateral da proa do Pibber.
Race mordeu com força a pala do boné, segurando-se à corda, com quantas forças tinha.
Foi uma corrida árdua, que lhe magoou o corpo, que o espancou, deixando-o cheio de marcas. Mas Race sabia que, se não fizesse uma última coisa, a situação se tornaria ainda pior.
Ouviu o som das pesadas passadas das botas dos nazis, lá em cima, na coberta da proa. Se eles o vissem ali, pendurado na corda, por baixo da proa, era um homem morto. Abatiam-no, ali mesmo.
Vá lá, Will!
Está bem, pensou. Vamos a isso.
Race esticou o corpo contra as ondas, que deslizavam por baixo de si, fechou os olhos, para os proteger dos jatos de água que lhe batiam na cara. Depois, ajustou a posição das mãos que agarravam a corda e retesou os músculos, todos ao mesmo tempo.
Em seguida, deixou-se mergulhar na água, por baixo da proa do Pibber.
Primeiro as pernas.
Depois a cintura, o estômago, o peito.
Lentamente, os seus ombros foram descendo, seguidos pelo pescoço.
Então, respirou fundo, encheu os pulmões de ar e mergulhou a cabeça.
O mundo tornou-se subitamente silencioso.
Não se ouvia o rugido dos motores de popa, nem as pás dos helicópteros, nem os disparos de armas automáticas. Só o eco constante e vibrante dos motores dos barcos, que penetravam o espectro aquático.
O casco cinzento e inclinado do Pibber enchia o campo de visão de Race. Pequenas manchas sabe-se lá de quê passavam junto ao seu rosto a milhares de quilômetros por hora, desaparecendo depois naquela tenebrosa escuridão verde que se estendia sob os seus pés.
Lentamente, deliberadamente, à força de pulso, Race foi descendo pela corda da âncora, ao longo do casco do Pibber, sustendo a respiração, sem nunca largar o boné que levava entre os dentes.
Tinha descido até mais ou menos um terço da altura do casco, quando avistou a primeira forma reptilínea por entre a escuridão que o rodeava.
Um jacaré.
Nadava ao lado do Pibber, com a boca de dentes aguçados bem aberta, avançando maldosamente para os tênis de Race, em movimentos rápidos e sinuosos.
Race encolheu as pernas no momento exato em que as fauces do jacaré batiam uma na outra, abocanhando apenas água. Incapaz de acompanhar a velocidade do Pibber, o enorme réptil mergulhou na escuridão, sem ter apanhado a sua presa.
Race precisava desesperadamente de ar. Os pulmões pareciam querer rebentar e sentiu um vômito subir-lhe à garganta. Acelerou a descida ao longo da corda e, finalmente, encontrou aquilo que procurava.
A escotilha de mergulho. Yes!
Estendeu a mão para a escotilha, empurrou-a para cima com o punho e fez saltar a tampa interior. Depois enfiou a cabeça pela abertura.
A cabeça de Race chegou à superfície no interior da cabina inferior do Pibber.
Cuspiu rapidamente o boné dos Yankees e sorveu todo o ar que conseguiu engolir.
Em seguida, depois de ter normalizado a respiração, içou-se pela escotilha e deixou- se cair de qualquer maneira no chão da cabina. Doía-lhe o corpo, que ficara coberto de equimoses, e estava absolutamente esgotado. Mas sentia-se contente que nem um rato por ainda estar vivo.
D oogie Kennedy correu pelo convés aberto do último batelão porta-helicópteros, perseguido pelas faíscas das balas que caíam no convés.
Mal vira Race mergulhar por baixo da proa do Pibber tinha aberto fogo contra os quatro nazis que se encontravam na casa do leme. Agora, eles estavam disparando contra ele, enquanto ele tentava alcançar o hidroavião que o batelão porta- helicópteros rebocava.
Chegou ao fundo da popa do batelão e, rapidamente, desatou a corda que prendia o Goose.
Em seguida, saltou sobre a proa do hidroavião e abriu a pequena escotilha de entrada, situada no topo do nariz deste. Meteu a cabeça para dentro da escotilha e, alguns segundos depois já se encontrava de pé na cabine do avião, Doogie carregou no interruptor da ignição e as duas hélices montadas nas asas do Goose começaram logo a girar, a princípio numa rotação lenta, depois passando bruscamente a descrever círculos muito rápidos.
O hidroavião afastou-se do batelão porta-helicópteros, perseguido pelas balas dos nazis, que embatiam no seu casco.
Em resposta, Doogie fez o Goose descrever uma curva sobre a superfície do rio, apontando-o na direção do convés do Pibber de onde saíra ainda não havia muito.
Em seguida, carregou no gatilho da alavanca de comando. Instantaneamente, uma rajada ensurdecedora de tiros de canhão ligeiro de 20 mm saltou do Gatling montado num dos lados do Goose.
Três dos nazis que se encontravam no Pibber tombaram de imediato, atingidos no peito pelo potente fogo do Goose.
O quarto também caiu mas por iniciativa própria, para se afastar da linha de fogo, - Adoro estas armas de 20 milímetros - disse Doogie.
No Pibber, Race estava parado atrás da pequena porta metálica que ia dar novamente à casa do leme, quando os tiros de canhão disparados por Doogie começaram a atingir o barco.
Quando, finalmente, o fogo cessou, Race espreitou para o outro lado da porta e viu que, dos quatro nazis iniciais, só um estava ainda vivo. Estava deitado no convés do Pibber, a recarregar a Beretta.
Era a sua oportunidade.
Race demorou um instante a acalmar os nervos. Depois, escancarou a porta, apontou a SIG-Sauer ao atônito nazi e apertou o gatilho.
Clique! O indicador da SIG saltou para a posição de vazio. Estava sem balas!
Enraivecido, Race atirou a pistola para o chão e, ao ver o nazi meter mais cartuchos na sua pistola, fez a única coisa que lhe passou pela cabeça fazer.
Deu três passos hesitantes em frente e atirou-se a ele.
O embate foi forte e os dois homens rolaram pelo convés do Pibber, que continuava lançado a grande velocidade, em direção à popa.
Puseram-se de pé e o nazi lançou o punho esquerdo contra a cara de Race mas Race baixou-se e o punho passou-lhe por cima da cabeça.
No instante imediato, Race atirava-se à cara do comando e atingia-o com uma forte estocada da mão direita. o murro atingiu o alvo e o nazi vacilou sob o golpe e a sua cabeça descaiu para trás.
Race voltou a bater, uma vez e outra, e mais outra, gritando a cada pancada... e o nazi ia recuando, cambaleante.
- Sai...
Murro.
- ... do...
Murro.
- ... meu...
Murro.
- ... barco!
Com o golpe final, o nazi embateu na amurada da popa do Pibber e saltou por cima dela, caindo ruidosamente da traseira do barco.
Com o peito a arfar e os nós dos dedos a sangrar, Race olhou para o lugar onde o nazi tinha caído e engoliu em seco. Instantes depois, viu o já familiar ondear da água, em círculos que convergiam para o soldado e voltou-se, quando o nazi começou a gritar.
Renée caminhava cautelosamente por um estreito corredor do barco de comando, de arma apontada, quando, de repente, ouviu vozes vindas de uma divisão à sua direita.
Avançou mais um pouco e espreitou pela ombreira da porta. Parado no meio de um laboratório de alta tecnologia de ponta, encontrava-se um homem que ela conhecia. Era um homem de idade, grande, obeso, com um pescoço de touro e uma cintura descomunal, e a camisa branca que tinha vestida estava completamente esticada sobre a enorme barriga.
Ao olhar para o velho, Renée susteve a respiração. Era Odilo Ehrhardt.
O líder dos Soldados da Tempestade.
Um dos nazis mais temidos da Segunda Guerra Mundial. Agora, devia ter uns setenta e cinco anos mas mão parecia ter mais de cinquenta. Apesar de um tanto desgastadas pela idade, as suas feições arianas clássicas ainda eram reconhecíveis. O seu cabelo branco e loiro estava ficando ralo no alto da cabeça, deixando a descoberto uma série de horríveis lesões castanhas. Os seus olhos azuis soltavam chispas, que tinham o brilho da loucura. Estava gritando ordens aos seus homens.
- ... Então, descubram esse gerador e desliguem-no, seus imbecis! - gritava para um rádio. Em seguida, apontou um dedo gordo para um dos seus comandos e acrescentou: - Você, Hauptsturmführer! Traga aqui o Anistaze. Imediatamente!
O laboratório onde se encontrava o general nazi era uma mistura de vidro e crômio. Ao longo das suas paredes, viam-se super-computadores Cray YMP, as bancadas de trabalho estavam cobertas de câmaras de vácuo seladas. Vestidos com batas brancas, os técnicos de laboratório corriam de um lado para o outro. Comandos armados de pistolas saíam apressados pela porta principal envidraçada, que ia dar à parte de trás do convés.
Mas Renée só tinha olhos para o objeto que Ehrhardt segurava na mão esquerda.
O ídolo.
Nesse momento, Heirich Amstaze irrompeu pela porta do convés e pôs-se em sentido diante de Ehrhardt.
- Eles estão por todo o lado, Herr Oberstgruppenführer. Devem haver dúzias deles ou talvez mais. Segundo parece, eles separaram-se e atacaram várias seções da frota, provocando estragos consideráveis.
- Então, vamos embora - disse Ehrhardt, entregando o ídolo a Anistaze e empurrando-o de volta em direção ao convés.
- Depressa. Levamos o ídolo para o helicóptero e vamos nele até à mina. Depois, se os chefes de Estado não tiverem respondido às nossas reivindicações, até à altura em que tivermos colocado o tírium na Supernova, detonamo-la.
Da casa do leme do Pibber que acabara de recuperar, Race observava a batalha aquática que se desenrolava à sua volta.
O que ainda restava da frota navegava rio adiante. Mas era uma sombra daquilo que tinha sido.
Havia ainda três Pibbers operacionais mas um deles estava na posse de Race. Só restava um batelão porta-helicópteros e três dos Rigid Raiders iniciais mas um deles estava na posse de Schroeder.
O Scarab de Van Lewen navegava velozmente na dianteira da frota e, claro, havia ainda o último helicóptero Mosquito, que continuava lá em cima, a zunir e a causar estragos.
Mais ou menos quarenta metros atrás de si, Race viu o hidroavião Goose de Doogie, seguindo o rasto de espuma do batelão porta-helicópteros. Tinha-se afastado do centro do rio, em busca de um espaço de água descoberto, de onde pudesse levantar vôo.
Race acelerou.
Uns trinta metros à frente, e para a esquerda do seu Pibber, viu o grande barco de comando dos nazis, navegando rio adiante. Nesse momento, porém, Race viu aparecer dois homens, que saltaram para o convés de ré e, daí, correram para o helicóptero branco Bell jet Ranger, que estava pousado na popa.
Race reconheceu de imediato um dos homens: Anistaze.
O outro era mais velho que Anistaze, gordo, semi-careca e tinha um pescoço muito grosso. Race não sabia quem ele era mas calculou que devia ser o homem de quem Schroeder tinha falado, o líder dos Soldados da Tempestade, Otto Ehrhardt ou qualquer coisa assim.
Anistaze e Ehrhardt saltaram para o compartimento traseiro do Bell jet Raider e as pás das hélices, começara imediatamente a girar, por cima do helicóptero.
Então, Race percebeu.
Eles iam-se embora com o ídolo...
Nesse mesmo instante, quando estava olhando intensamente para a atividade que se desenrolava na popa do barco de comando, Race viu, pelo canto do olho, um ligeiro movimento, a sombra furtiva de um pequeno vulto, que corria pela passagem de estibordo do barco de comando.
Race ficou de olhos esbugalhados. Era Renée.
Corria velozmente, encostada a um dos lados do corredor, em direção à popa, com a M-16 firmemente encostada ao peito. Ia atrás do ídolo...
Sozinha! Atônito, Race viu Renée contornar a esquina do corredor e abrir fogo contra o helicóptero branco, com a sua M-16.
Dois soldados nazis que se encontravam perto do helicóptero foram instantaneamente atingidos e tombaram no lugar onde estavam mas os outros voltaram-se e começaram a disparar contra Renée, com as AK-47 que empunhavam.
Reagindo ao tiroteio, Renée atirou-se para trás da esquina, quando os nazis que se encontravam na plataforma de aterragem do helicóptero a atacaram.
Race não podia fazer nada a não ser olhar, horrorizado, na altura em que, enquanto corria pela passagem de estibordo, em direção à proa, ela deu um passo em falso.
Sem parar de correr, cheia de determinação, Renée disparava furiosamente a sua M-16, mantendo os nazis colados ao corredor da popa, até conseguir chegar ao fim da passagem por onde corria, deixando os seus atacantes ingloriamente postados na outra ponta do corredor.
Foi nesse momento que Race o viu.
Um comando nazi solitário. Avançando lentamente pela ampla cobertura do barco de comando, em direção à posição ocupada por Renée.
O homem levava a arma ao alto e movia-se com passadas deliberadamente lentas, fora do campo de visão de Renée, aproximando-se sorrateiramente dela, pelo lado de cima.
Não havia hipótese de ela o ver. Não havia maneira de ela saber que ele estava ali.
- Merda - disse Race, olhando em volta, em busca de uma solução.
O seu olhar incidiu no hidroavião de Doogie, que deslizava rapidamente sobre as ondas, por trás da embarcação de Race, colocando-se entre o Pibber deste e o barco de comando, ao passar velozmente por entre a frota, em busca de um pedaço de água desimpedido.
Race percebeu instantaneamente que aquela era a única possibilidade e, sem pestanejar sequer, saltou pelo pára-brisas quebrado da casa do leme e subiu para o teto desta.
Então, quando o Goose de Doogie passou pelo seu Pibber, Race saltou para a asa do hidroavião em movimento e avançou sobre ela.
Era um espetáculo espantoso. O hidroavião Goose, navegando à toda velocidade entre o barco de comando dos nazis e o Pibber, com a diminuta figura de William, Race, de jeans surrado, camiseta e boné dos New York Yankees, a correr sobre as suas asas, com o corpo inclinado para diante, para opor menor resistência ao vento forte.
Race correu o mais que pôde, com os pés movendo-se rapidamente mas com segurança sobre a asa do Goose, que tinha uma envergadura de uns quinze metros.
Viu o barco de comando agigantar-se diante de si. Viu o mundo passar lateralmente pela embarcação, à velocidade de um relâmpago. Viu Renée perto da proa, mantendo os três nazis à distância, na outra ponta do corredor. Viu o nazi solitário em cima da cobertura do grande catamarã aproximando-se da posição ocupada por Renée.
Race não perdeu tempo. Desarmado, lançou-se sobre o homem, caiu em cima dele, e os dois rolaram para a frente, saindo ambos em vôo do teto do barco de comando.
Aterraram os dois, como um único corpo, na coberta da proa do catamarã, não muito longe do lugar onde se encontrava Renée, ao fundo do corredor, por baixo da cobertura do barco de comando.
Desorientado, Race rolou, afastando-se do local onde tinham caído, e, quando olhou para cima, viu, horrorizado, que o nazi já se pusera de pé.
Por um instante fugaz, Race avistou a cara do homem. Era, indiscutivelmente, o rosto mais feio que alguma vez vira: comprido, bochechas descaídas, com marcas profundas de bexigas. Era também a viva imagem da cólera, a imagem de uma fúria imensa e descontrolada.
Mas Race viu tudo isto apenas num relance momentâneo. Porque, no instante seguinte, a visão da cara horrenda do nazi foi substituída pela visão da soleira da espingarda de assalto AK-47, que avançava para o seu rosto. Depois - zás! - e o mundo de Race mergulhou na escuridão total.
Renée girou sobre si mesma, a tempo de ver a cabeça de Race ser violentamente lançada para trás pelo golpe. O corpo dele caiu, desamparado, sobre o convés, desmaiado.
Renée viu a cara feia do nazi, que estava debruçado sobre Race, viu-o erguer-se de repente e olhar para ela.
Depois, viu-o levantar a arma e sorrir.
O hidroavião Goose ergueu-se subitamente diante do barco de comando, no espaço desimpedido das águas, à frente da frota.
Doogie acelerava com força total, tentando fazer com que o pequeno hidroavião adquirisse velocidade suficiente para levantar vôo, quando, de súbito, ouviu um grande estrondo, vindo do seu lado esquerdo. De repente, sentiu o avião inclinar-se repentinamente e olhou para fora: não havia nada no lugar onde deveria estar o flutuador esquerdo.
Menos de um segundo depois, dois Rigid Raiders dos nazis descreveram arcos dos dois lados da proa do Goose, navegando em ziguezague diante de Doogie. Os comandos que seguiam no convés de cada uma das embarcações crivavam o seu pára-brisas de balas de metralhadora.
Doogie mergulhou. O pára-brisas do hidroavião parecia coberto de teias de aranha.
Depois, olhou para cima e viu um dos nazis do Rigid Raider da direita levar ao ombro um lança-mísseis portátil M-72A2 e apontá-lo para o Goose.
- Oh, diabo... - disse Doogie, com a respiração suspensa. O nazi disparou.
Uma nuvem de fumo saiu do cano do lança-mísseis, no exato momento em que Doogie rodava o volante todo para a esquerda.
O Goose descreveu uma curva tão apertada que a ponta da asa esquerda, agora sem flutuador, tocou na água, provocando uma chuva espetacular de espuma.
Em resultado desta pirueta, o míssil lançado pelo nazi passou mesmo por baixo da asa direita, que formava quase um ângulo reto com a água, não lhe acertando por uma questão de centímetros, antes de atingir as árvores da margem e mandar para o inferno um desgraçado de um tronco.
O pequeno Goose de Doogie continuou a adernar sobre a superfície do rio, assente na barriga e no único flutuador que ainda tinha.
Precisamente nesse momento, o último helicóptero de combate Mosquito apareceu a rugir, vindo sabe-se lá de onde, cuspindo uma chuva devastadora de balas de canhão à volta do pequeno hidroavião.
- Porra! - gritou Doogie, metendo a cabeça por baixo do painel de instrumentos. - Será que isto ainda vai piorar?
Foi então que ouviu um som terrível, que já se tornara familiar. Doogie girou sobre o assento a tempo de ver um dos dois Pibbers dos nazis que ainda restavam aparecer atrás dele e lançar um torpedo.
O torpedo caiu na água e seguiu em frente sobre a superfície desta.
Doogie disparou contra ele.
Os dois Rigid Raiders navegavam agora um de cada lado do Goose, saltando sobre as ondas, encurralando-o.
- Merda - disse Doogie. - Merda, merda, merda. O torpedo aproximava-se.
Doogie empurrou para a frente o acelerador de mão.
O pequeno hidroavião saltou disparado sobre a água, rodeado de embarcações inimigas por todos os lados: pelos dois Rigid Raiders, à esquerda e à direita, pelo Pibber, à popa, e, ainda, pelo helicóptero de combate preto Mosquito, que disparava sobre ele, lá do alto.
Desesperado, Doogie olhou em volta. o seu pequeno avião lutava para manter a velocidade mas os dois Rigid Raiders navegavam com toda a facilidade ao seu lado, com os motores a rugir, e os seus tripulantes pareciam ter um prazer malévolo em observar aquela luta.
- Não se riam antes de tempo, seus nazistas de merda - disse Doogie, em voz alta. - Isto ainda não acabou.
Nesse momento, o torpedo estava a uns vinte metros da cauda do Goose. Doogie empurrou a manete da gasolina até ao fundo.
Quinze metros e tinha atingido os oitenta nós. Dez - noventa.
Cinco - cem.
Doogie estava a ver os nazis a bordo dos Rigid Raiders rirem-se da sua tentativa desesperada de ser mais veloz que o torpedo, naquele Goose completamente ultrapassado.
Dois metros - cento e dez. Velocidade máxima. O torpedo deslizou para baixo do Goose.
- Não! - gritou Doogie. - Vá lá, meu lindo! Faz lá isso por mim!
O Goose saltou sobre a superfície do rio. Os nazis riram-se.
Doogie praguejou.
Então, de repente, o pequeno Goose fez, gloriosamente, aquilo que ninguém, a não ser Doogie, pensava que ele ainda fosse capaz de fazer.
Levantou vôo.
Só se ergueu ligeiramente sobre a superfície do rio, uns trinta a cinquenta centímetros, no máximo. Mas foi o suficiente.
Depois de ter perdido o seu alvo inicial, o torpedo começou a correr sobre a água, em busca de um alvo alternativo.
E encontrou o Rigid Raider à direita de Doogie.
Mal o Goose se ergueu acima da superfície, o Rigid Raider saltou sobre a água, impelido pela onda de choque da detonação do torpedo.
O Goose voltou a descer, lançando atrás de si uma chuva de espuma.
Lá no alto, o Mosquito viu o que tinha acontecido e lançou-se para a frente do Goose, dando uma volta lateral no ar. Nesse momento, voava na direção da própria cauda, diante do hidroavião, disparando selvaticamente contra ele.
Doogie escondeu-se debaixo do painel de instrumentos.
- Malditos helicópteros - gritou. - Vamos lá ver se gosta disto!
E, ao dizer isto, rodou o volante todo para a esquerda.
O Goose inclinou-se violentamente, com a ponta da asa esquerda sem flutuador tocando de novo na água, atravessando-se no caminho do Rigid Raider que sobrevivera.
O piloto do Rigid Raider não reagiu suficientemente depressa. Qual míssil rasgando os céus, o Rigid Raider ergueu-se completamente sobre as águas, passando por cima das asas inclinadas do hidroavião.
O barco de assalto subiu pelas asas reforçadas do Goose, com o casco prateado, totalmente exposto, a roçar ruidosamente pelas asas muito inclinadas do hidroavião, que utilizou como rampa de lançamento. Depois, o Rigid Raider atirou- se da extremidade da asa direita e voou pelos ares, indo bater na coberta do helicóptero Mosquito, que planava sobre o Goose.
O Mosquito saltou para trás, ressaltando como um boxeur que tivesse levado um murro no nariz, enquanto o Rigid Raider lhe rasgava o corpo a uma velocidade incrível. A coberta do helicóptero estilhaçou-se instantaneamente e o aparelho explodiu numa enorme bola de fogo.
Doogie olhava fixamente para o massacre que se desenrolava acima da sua cabeça. Viu o casco escurecido do Rigid Raider atingido pelo torpedo mergulhar lentamente na água. Viu os restos calcinados do Mosquito e do outro Rigid Raider caírem ruidosamente sobre a superfície do rio.
- Tomem lá esta, seus sacanas nazis - disse, baixinho.
Tonto, confuso e com uma dor de cabeça dos diabos, William Race foi conduzido, com uma arma apontada às costas, para o convés da popa do barco de comando dos nazis.
Renée ia ao seu lado, empurrada pelo nazi espantosamente feio, a quem Race tinha dado o nome de «Bexiguento». Depois de ter dominado Race e Renée, na proa, o Bexiguento tinha gritado aos seus companheiros, que se encontravam do lado de estibordo, dizendo-lhes que parassem de disparar. Depois, conduzira os dois cativos ao longo do corredor, até à plataforma de aterragem, na popa do catamarã, onde o helicóptero branco Bell Jet Ranger se preparava para levantar vôo.
Anistaze viu-os e abriu a porta lateral do helicóptero.
- Tragam-nos aqui - gritou.
Van Lewen navegava velozmente sobre a superfície do rio, mesmo na dianteira da frota.
Ajustou o leme do Scarab e saiu disparado sobre o rio, apenas com o terço traseiro do barco em forma de bala a tocar na água e com o som dos motores de 450 cavalos a ecoarem-lhe nos ouvidos.
Voltou-se e viu o helicóptero branco Bell Jet Ranger levantar vôo do convés da popa do barco de comando.
- Que grande merda - disse, ofegante.
Karl Schroeder estava tendo sérios problemas.
O seu Rigid Raider ia na cauda da frota, correndo sobre a superfície do rio, entre os dois últimos Pibbers dos nazis, que disparavam sem tréguas contra ele.
Tentou desesperadamente evitar as balas mas eles estavam demasiado próximos e eram demasiado rápidos.
Então, de repente, uma rajada perfurou o seu Rigid Raider, atingindo-o na perna e abrindo-lhe três buracos na coxa. Schroeder caiu, a ranger os dentes, abafando um grito. Apesar de tudo conseguiu assentar o peso do corpo num joelho e continuar conduzindo o barco. Mas era inútil. Os Pibbers dos nazis estavam mesmo em cima dele.
Olhou em frente, viu o que restava da frota - o barco de comando, o Scarab, o hidroavião Goose e um dos batelões porta-helicópteros - navegando velozmente, lá longe, a uns bons cem metros de distância dele.
Também viu o helicóptero branco Jet Bell Ranger levantar vôo da plataforma do barco de comando. Poucos minutos antes, tinha visto Race e Renée serem atirados lá para dentro...
Nesse momento, outra rajada atingiu o barco de Schroeder, abrindo-lhe vários buracos nas costas, perfurando o seu colete à prova de bala como se este fosse feito de lenços de papel. Schroeder gritou de agonia e caiu no convés.
E, nesse instante, soube que ia morrer.
Com as feridas ardendo que nem fogo, com os centros nervosos que gritavam, com todo o corpo à beira de entrar em choque, Karl Schroeder olhou desesperadamente à sua volta, à procura de qualquer coisa que pudesse utilizar para levar consigo o maior número possível de nazis.
Os seus olhos deram com a caixa Kevlar que tinha visto antes, no chão do Rigid Raider. Foi só então que viu as palavras escritas em inglês, num dos lados.
Lentamente, Schroeder leu os caracteres inscritos num dos lados da caixa.
Quando acabou de ler, estava com os olhos arregalados.
Encurralado entre os dois Pibbers dos nazis, o Rigid Raider de Schroeder ia ficando cada vez mais para trás do que restava da frota.
Karl Schroeder estava agora deitado de costas no convés do seu barco de assalto, olhando para cima, para as nuvens anunciadoras de tempestade que deslizavam sobre a sua cabeça, escurecendo o céu do fim da tarde. A vida esvaía-se-lhe lentamente do corpo.
Abruptamente, o rosto bastante sinistro de um nazi interpôs-se entre ele e o céu e Schroeder ficou a saber que um dos Pibbers tinha abordado o seu barco.
Mas isso já não lhe importava.
Na verdade, quando o nazi levou calmamente ao ombro a AK-47, Schroeder limitou-se a olhar para o cano da arma do homem, resignado com o seu destino.
Mas então, estranhamente, sorriu. O nazi hesitou.
Depois, olhou ligeiramente para o lado, para a caixa Kevlar, que estava à esquerda de Schroeder.
A tampa da caixa estava aberta.
Dentro dela, havia cinco pequenos frascos de crômio e plástico, que continham uma pequena quantidade de um líquido cor de âmbar. Cada frasco estava acondicionado numa pequena divisória de espuma.
O nazi percebeu de imediato o que aquilo era. Cargas isotópicas M-22.
Mas havia uma sexta divisória de espuma na caixa.
E estava vazia.
O nazi desviou o olhar e viu o sexto frasco na mão ensanguentada de Schroeder.
Schroeder já tinha quebrado o selo de borracha no topo da carga, já tinha soltado o trinco vermelho de segurança que cobria o mecanismo de lançamento.
Agora, o seu polegar estava sobre o botão de descarga. Apertou-o, olhando calmamente para o espaço.
Os olhos do nazi esbugalharam-se de terror.
- Oh, foda-se...
Schroeder fechou os olhos. Agora, tudo dependia de Renée e do professor americano. Esperava que eles fossem bem sucedidos. Também esperava que os dois soldados americanos estivessem suficientemente longe daquele barco, fora do raio de ação da explosão. Esperava...
Schroeder suspirou uma última vez e soltou o detonador. A carga isotópica explodiu gloriosamente.
O mundo tremeu. Uma enorme - imensa - explosão de calor, com origem no Rigid Raider, irradiou em todas as direções.
Atingiu as árvores das duas margens do rio, incinerando-as num instante, reduzindo-as a nada.
Penetrou a superfície do rio. Era uma superfície fervilhante, arrasadora, de calor, que se deslocava a uma velocidade inimaginável, fazendo ferver a água ao contactar com ela, matando tudo o que encontrava pelo caminho, enquanto corria para baixo, como um cometa em queda.
Subiu em direção ao céu, muito, muito alto. Era de um branco cintilante, como o da lâmpada de um flash de uma máquina fotográfica, um flash monumental que consumia tudo e que devia ter sido visível do espaço.
Mas o pior de tudo foi que a superfície em expansão de luz branca e escaldante seguiu ao longo da superfície do rio, atrás do que restava da frota.
O Scarab de Van Lewen e o Goose de Doogie quase voavam sobre a água, à cabeça da frota... fugindo da gigantesca onda de luz branca, que devorava o rio, lá atrás.
Em certa medida, tinham tido sorte. Encontravam-se uns bons trezentos metros à frente do Rigid Raider de Schroeder, quando a carga M-22 rebentou.
As outras embarcações - o último batelão porta-helicópteros, os dois Pibbers que sobravam e o próprio barco de comando não tinham tido tanta sorte.
E, nesse momento, a superfície em expansão de luz branca e escaldante agigantava-se sobre elas, qual enorme monstro mitológico, que as fazia parecer minúsculas. Então, a gigantesca superfície branca consumiu o batelão porta-helicópteros e os Pibbers, fazendo-os explodir ao seu contato, antes de os engolir por completo e de prosseguir o seu ataque voraz.
O próximo alvo era o barco de comando. Como um rinoceronte desajeitado tentando ultrapassar um veloz caminhão, o grande catamarã acelerou, numa tentativa desesperada de escapar à superfície de energia devoradora que se aproximava dele.
Mas a explosão foi demasiado rápida, demasiado potente.
Tal como acontecera antes com o batelão e com os Pibbers, a superfície de luz em expansão avançou, agarrou o barco de comando com as suas garras, esmagando-o, e, num instante fugaz, obliterou a enorme embarcação.
Então, tão depressa como tinha surgido, a enorme superfície de luz começou a dissipar-se. Pouco depois, perdia toda a força que a fazia avançar e desaparecia à distância.
Van Lewen lançou um último olhar para trás, para a selva chamuscada e fumarenta da margem do rio. Viu uma nuvem de fumo negro subir para o céu, sobre os topos das árvores. Mas a nuvem foi rapidamente extinta pelos lençóis da chuva tropical que tinha começado a cair.
Foi então que olhou em volta e viu que o seu Scarab e o Goose de Doogie eram as únicas embarcações que sulcavam as águas do rio.
Na verdade, o único outro sobrevivente do terrível assalto que tinha acabado de ocorrer era uma pequena mancha branca que se via desaparecer entre as nuvens, lá à frente.
O helicóptero branco Bell Jet Ranger.
QUINTA CONSPIRAÇÃO
Terça-feira, 5 de janeiro, 18h15
MINA DE OURO MADRE DE DIOS
Vista Aérea
- Quem é você? - perguntou Odilo Ehrhardt, em alemão, esbofeteando Renée, com toda a força.
- Já lhe disse - gritou ela. - Chamo-me Renée Becker e sou agente especial da Bundes Kriminal Amt.
Naquele momento, o helicóptero branco voava a baixa altitude sobre o rio, em direção a leste. Race e Renée estavam sentados no compartimento traseiro, algemados. À frente deles, estavam sentados Ehrhardt, Aniztase e o Bexiguento. Na dianteira do aparelho, um único piloto dirigia o helicóptero.
Ehrhardt voltou-se Para Race. - E então você, quem é?
- Ele é americano - disse Renée. Ehrhardt bateu-lhe novamente com força.
- Não estava falando com você. - Ehrhardt voltou-se novamente para Race. - Então, quem é você? FBI? Marinha? De uma equipe do SEAL, talvez... caramba, vocês devem ser SEAL, para terem destruído os nossos barcos daquela maneira...
- Nós somos da DARPA - disse Race.
Ehrhardt franziu o sobrolho. Depois, começou a rir-se, baixinho.
- Não é nada - contrapôs, inclinando-se para a frente, colocando a sua cara redonda e gorda em frente da de Race.
Race pensou que fosse vomitar.
Ehrhardt era nojento, abjeto, gordo ao ponto de ser grotesco, fedia a suor e tinha um rosto perverso, em forma de lua cheia. Quando falava, escorria-lhe dos lábios um delgado fio de baba e o seu hálito cheirava a esterco.
- Eu estou trabalhando com o doutor Frank Nash - disse Race, tentando desesperadamente manter a calma. - o doutor Nash é um coronel do Exército, reformado, e trabalha para a Agência de Projetos de Pesquisa Avançados de Defesa conjuntamente com membros do Exército dos Estados Unidos.
- O Frank Nash, hein? - comentou Ehrhardt, lançando uma baforada de hálito repugnante para a cara de Race.
- Exatamente.
- Então, você deve ser o Zé Ninguém Armado em valentia, observou Ehrhardt, arrancando o boné dos Yankees da cabeça de Race.
- Chamo-me William Race - disse Race, agarrando no boné com as mãos algemadas. - Sou professor de Línguas Clássicas, da Universidade de Nova Iorque.
- Oh - exclamou Ehrhardt, acenando com a cabeça, - Então, foi você que eles trouxeram para traduzir o manuscrito. Muito bem, muito bem. Antes de lhe mandar matar, Mr. William Race, professor de Línguas Clássicas, da Universidade de Nova Iorque, gostaria de corrigir um mal-entendido que parece haver na sua cabeça.
- E que mal-entendido é esse?
- O Frank Nash não trabalha para a DARPA.
- Como!? - exclamou Race, franzindo as sobrancelhas.
- E pode ter a certeza de que ele não é um coronel do Exército, reformado. Pelo contrário. A verdade é que ele está na ativa e... é muito ativo. Para sua informação, o coronel Francis K. Nash é o chefe da Unidade de Projetos Especiais do Exército dos Estados Unidos.
- O quê!?
Race não conseguia entender. Porque haveria Nash de lhe ter dito que era da DARPA, quando, afinal, não era?
Ah-ah - gargalhou Ehrhardt, batendo palmas. - Adoro ver esse olhar de quem se sente traído, na cara de um homem que está quase a morrer.
Race estava completamente confuso. Não sabia o que pensar.
Mesmo que Nash não fosse da DARPA, que importância isso tinha? A Supernova era um projeto do Exército e Nash era dos Projetos Especiais do Exército.
A não ser...
Ehrhardt voltou-se para Aniztase.
- Com que então, também cá temos o Exército americano. O que é que me diz a isto?
- Deve haver outro infiltrado - respondeu Aniztase, ignorando completamente Race e Renée.
- Na DARPA? - perguntou Ehrhardt. Aniztase anuiu com um aceno de cabeça.
- Nós sabemos da ligação ao grupo terrorista americano mas não conhecíamos este...
- Bah! - Ehrhardt abanou a mão, com desdém. - Agora, isso já não tem importância, porque somos nós que temos o ídolo.
- O que é que esperam conseguir com tudo isto? - perguntou Renée, em tom de desafio. - Querem destruir o mundo? Ehrhardt sorriu, com um ar complacente.
- Eu não quero destruir o mundo, Fraulem Becker. Longe disso. Quero reconstruí- lo. Reordená-lo, da forma como ele devia ser.
- Com quê? Com cem bilhões de dólares? Afinal, é disso que se trata? De dinheiro?
- É só até aí que consegue ver, minha cara Fraulein Becker? Dinheiro. Isto não tem a ver com dinheiro. Tem a ver com aquilo que o dinheiro pode fazer. Cem bilhões de dólares... bah... isso não é nada. É só um meio para atingir um fim.
- E qual é esse fim?
Ehrhardt semicerrou os olhos.
- Cem bilhões de dólares vão servir para eu comprar um mundo novo.
- Um mundo novo?
- Minha corajosa Fraulein Becker, o que é que pensa que eu quero? Algum país novo? Para continuar atrás do velho e gasto objetivo nazi de estabelecer uma nação ariana com o Herrenvolk à frente dela e os Untermenschen sob o seu jugo? Bah!...
- Então o que é que quer? Como é que consegue comprar um mundo novo?
- Largando cem bilhões de dólares americanos nos mercados financeiros mundiais, ao preço convidativo de um cêntimo por dólar.
- O quê!? - exclamou Renée.
- A economia americana está num estado perfeitamente lastimoso, na situação mais precária dos últimos cinquenta anos. A dívida externa acumulada é de cerca de oitocentos e trinta bilhões de dólares. E, todos os anos, o défice orçamental aumenta. Para resistir a tudo isto, os Estados Unidos dependem de uma moeda forte, com a qual possam pagar as suas dívidas no futuro. Mas, se o valor da moeda se depreciar drasticamente, digamos, para um quarto do seu valor atual, os Estados Unidos não vão nunca poder pagar essas dívidas. Com o dólar sem valor, o país estaria falido. O que eu quero fazer com os meus cem bilhões de dólares é dar cabo da economia americana.
De olhos brilhantes, Ehrhardt continuou a divagar:
- Desde a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a ser o mundo dos Americanos. Um mundo que tem visto a cultura americana ser-lhe impigida à força, um mundo que tem tido de suportar o domínio do comércio americano e a política brutal de escravidão econômica, conduzida e permitida pelo governo americano. Eu concluí que despejar cem bilhões de dólares nos mercados mundiais seria o suficiente para depreciar o dólar americano para lá de qualquer possibilidade de recuperação. As empresas americanas não valerão nada, o povo americano não terá poder de compra para comprar seja o que for, porque a moeda americana não valerá sequer o papel em que foi impressa. Os Estados Unidos passarão a ser os mendigos do mundo e o mundo poderá começar de novo. É isso o que eu estou fazendo, Fraulein Becker. Estou comprando um mundo novo para mim.
Race nem queria acreditar no que estava ouvindo.
- Não pode estar falando sério - disse.
- Não? - contrapôs Ehrhardt. - Veja o caso de George Soros. Em 1997, o Presidente da Malásia acusou publicamente Soros de estar na origem da crise econômica asiática, por ter lançado nos mercados enormes quantias de moedas asiáticas. E isto foi um homem, um homem, que nem sequer tinha um décimo da riqueza que eu pretendo utilizar. Mas, por outro lado, é claro que o meu objetivo é peixe mais graúdo.
- E se eles não lhe derem o dinheiro? - perguntou Renée. - Eles darão. Porque eu sou o único homem no mundo que tem uma Supernova operacional.
- Mas se não derem?
- Então mando detonar o dispositivo - respondeu Ehrhardt, com toda a simplicidade.
O general nazi voltou-se na sua cadeira e olhou pelo vidro oval frontal do helicóptero. Race e Renée seguiram a direção do seu olhar.
E tiveram uma visão verdadeiramente espetacular.
Viram a floresta amazônica estendendo-se até à linha do horizonte, um vasto manto verde que parecia não ter fim.
A uma curta distância, no entanto, existia uma falha no manto verde - uma enorme cratera marrom em forma de cone, escavada na terra.
Situava-se à direita do rio e era enorme. Tinha, pelo menos, oitocentos metros de diâmetro. Longos caminhos de terra batida desciam suavemente até ao fundo da gigantesca cratera. Na sua orla, havia enormes holofotes, que a iluminavam como se fosse um estádio de futebol, destacando-se contra a luz tênue do fim da tarde.
No centro da cratera, suspensa bem alto sobre ela por uma rede de cabos esticados, via-se uma grande cabina branca em forma de caixa, uma espécie de cabina de controle, com largas janelas retangulares nos quatro lados.
A única maneira de entrar na cabine era por duas pontes suspensas inclinadas, que atravessavam a cratera de lados opostos do lado sul e do lado norte. Cada uma das pontes tinha pelo menos noventa metros de comprimento e era construída com cabos de aço.
Era uma mina de ouro.
A mina de ouro Madre de Dios.
O helicóptero Bell Jet Ranger aterrou numa plataforma montada sobre flutuadores, na superfície do rio, não muito longe da orla da enorme mina escavada no solo.
A mina em si ficava diretamente a Sul do Rio Alto Purus e estava ligada a ele por um grupo de velhos edifícios decrépitos: três grandes estruturas, tipo armazém, horrivelmente degradadas pela passagem dos anos.
A maior projetava-se sobre o rio e era suportada por estacas. Uma série de portões de garagem ocupava a sua fachada, permitindo que ali pudessem ser guardados barcos e hidroaviões. Devia ser ali que, no passado, os aviões e barcos vinham recolher o ouro da companhia, conjeturou Race.
Hoje, no entanto, servia para outros propósitos.
Permitia aos nazis esconder a sua frota de barcos, helicópteros e hidroaviões dos «olhos» curiosos dos satélites espiões americanos.
Assim que o helicóptero aterrou na plataforma flutuante, o piloto carregou num botão.
À esquerda do helicóptero, abriu-se imediatamente uma porta enferrujada e uma espécie qualquer de mecanismo submerso começou a puxar em direção à porta a plataforma onde o helicóptero estava pousado.
Race olhou para cima, enquanto o helicóptero era lentamente arrastado para dentro do grande armazém.
No instante seguinte, o céu desapareceu abruptamente e foi substituído pelo teto do armazém, uma rede complexa de vigas de ferro enferrujadas e traves de madeira escura.
Race observou o armazém onde acabara de entrar.
Era verdadeiramente enorme - um imenso espaço fechado, mais ou menos do tamanho de um hangar, com todo o seu espaço cavernoso iluminado por lâmpadas cônicas de halogêneo, suspensas das vigas do teto.
O «chão» do armazém era, no entanto, bastante invulgar. Era a superfície do rio. Um passadiço, estreito e alongado, estendia-se sobre a água, cruzado a intervalos por outros passadiços perpendiculares, mais pequenos - ancoradouros para os barcos e aviões que recolhiam o ouro.
Um longo e largo tapete rolante deslizava, ao nível do solo, a todo o comprimento do passadiço. Saía de um grande buraco quadrado, aberto na parede de terra do armazém, e terminava na outra extremidade do passadiço.
Race calculou que, do lado de terra, o extremo do tapete mergulhava nas profundezas da mina em forma de cone, provavelmente numa plataforma de carga ou mesmo no fundo da própria cratera.
Em seu entender, o ouro costumava ser colocado sobre o tapete, lá em baixo, na mina, e, depois, era transportado por meio dele, ao longo do túnel escavado na terra, até chegar ali, ao armazém, onde era carregado nos barcos ou aviões.
A plataforma flutuante imobilizou-se dentro de um dos ancoradouros. As pás das hélices do aparelho, ainda não completamente paradas, pairaram sobre a orla do tapete rolante, brilhando sob a luz das lâmpadas de halogêneo.
Da sua cadeira na traseira do helicóptero, Race viu quatro homens sair de um gabinete envidraçado, ao fundo do armazém, do lado de terra.
Três deles vestiam batas brancas de laboratório: eram cientistas. o quarto vestia um uniforme de combate e empunhava uma espingarda-metralhadora G-11: era um soldado.
Um dos três cientistas, observou Race, era muito menor que os outros dois e infinitamente mais velho. Era um homem minúsculo, com longos cabelos prateados e dois olhos enormes, que eram ampliados por um par de óculos de lentes grossas. Race calculou que devia tratar-se do doutor Fritz Weber, o genial cientista nazi de quem Schroeder e Nash tinham falado.
Tirando os quatro homens que se encontravam diante do gabinete envidraçado, o resto do armazém estava completamente deserto.
Não há mais ninguém, pensou Race.
Os nazis deviam ter levado todos os efetivos de que dispunham a Vilcafor, para ir buscar o ídolo. Aqueles quatro homens, Aniztase, Ehrhardt, o Bexiguento e o piloto eram tudo o que restava deles.
- Unterschaführer - disse Ehrhardt, dirigindo-se ao Bexiguento, quando o helicóptero se imobilizou com um solavanco.
- Queira ter a bondade de levar a agente Becker e o Professor Race para a lixeira, por favor. Depois, mate-os e enterre os cadáveres.
R ace e Renée foram empurrados rápido que seguia selva fora, na direção oeste, para longe dos enormes armazéns da beira-rio.
Atrás deles, o Bexiguento e o outro soldado nazi, o único outro soldado da mina, obrigavam os dois a caminhar, sob a mira das suas G-11.
- Faz alguma idéia de como é que vamos sair desta? - perguntou Race a Renée, a certa altura do caminho.
- Não faço a mínima idéia - respondeu ela, friamente.
- Pensei que pudesse ter um plano ou coisa parecida. Alguma coisa escondida na manga.
- Não tenho plano nenhum.
- Então, vamos morrer?
- Tudo indica que sim.
Dobraram uma curva da trilha e Race encolheu-se, quando um cheiro totalmente pútrido lhe assaltou os sentidos. Um momento mais tarde, os quatro chegaram ao fim do caminho e Race viu um monte de lixo espalhado no meio das árvores, à frente deles. Cobria uma área de uns cinquenta metros: pneus velhos, pedaços de comida podre e desperdícios, pedaços retorcidos de metal e, até, algumas carcaças de animais.
A lixeira.
De joelhos. Os dois - rosnou o Bexiguento. Race e Renée ajoelharam-se.
- Mãos na cabeça.
Race e Renée enlaçaram os dedos atrás da cabeça. Clique, clique!
Race ouviu o outro nazi soltar a segurança da G-11. O IEM reprogramado por Schroeder afundara-se com ele e, naquele momento, as G-11 estavam de novo completamente operacionais.
Depois, ouviu os passos dele a avançar sobre a lama, sentiu-o encostar o cano da espingarda-metralhadora à sua nuca.
As coisas não deviam ser assim, gritou uma voz, dentro da sua cabeça. Está tudo acontecendo demasiado depressa. Eles não deviam enrolar um pouco ou coisa parecida? Dar-nos uma chance... uma chance para...
Race inclinou a cabeça, afastando-a da arma, mordeu os lábios, fechou os olhos, cedendo à inevitabilidade desesperada da situação, e esperou pelo fim.
Veio depressa. Soou um tiro.
N ão aconteceu nada.
Race continuava de olhos fechados.
A G-11 tinha disparado mas, por qualquer razão, por qualquer estranha razão, a sua cabeça ainda estava no lugar.
E, de repente, um corpo caiu de bruços na lama, ao lado do lugar onde estava ajoelhado.
Race abriu os olhos, olhou para trás e viu o Bexiguento, ali parado, com a G-11 apontada para o lugar onde, momentos antes, tinha estado a cabeça do outro nazi.
O nazi morto estava agora, de barriga para baixo, na lama, com uma horrível papa de sangue e cérebro saindo de um buraco na nuca.
- Uli, - disse Renée, levantando-se e correndo para o Bexiguento, a quem deu um abraço caloroso.
A mente de Race estava à mil. Uli?... Em seguida, Renée deu uma palmada, com força, no peito do grande nazi de cara esburacada.
- Você tinha que demorar tanto? Estava ficando louca ali no chão.
- Desculpa, Renée - disse o Bexiguento, ou Uli. - Eu tinha de esperar, até estar suficientemente longe da casa dos barcos. Senão, os outros iam descobrir.
Race virou-se subitamente para o homem chamado Uli. - Você é do BKA - disse.
- Sim - admitiu o homem corpulento, com um sorriso. E as suas boas intenções salvaram-lhe a vida, Professor William Race, da Universidade de Nova Iorque. Quando tentou salvar Renée, a bordo do catamarã, atacou o homem certo. Se eu fosse mesmo um nazi, tinha-lhe metido logo uma bala na cabeça. Eu sou o agente especial Uli Pleck mas, por estas bandas, sou conhecido por Unterscharführer Uli Kahr.
De repente, tudo fazia sentido para Race.
- O manuscrito - disse. - Foi você que arranjou a cópia do manuscrito que o BKA tinha.
- Exatamente - admitiu Uli, impressionado.
Race recordou-se de Karl Schroeder ter falado a Frank Nash dos planos do BKA para bater os nazis na corrida para obter o ídolo. Ele lembrava-se das palavras exatas de Schroeder: “Para o conseguirmos, arranjamos uma cópia do manuscrito de Santiago e utilizamo-la para chegar até aqui."
Foi só então que Race percebeu que, no momento em que ouvira as palavras de Schroeder, devia ter deduzido que o BKA tinha um homem infiltrado na organização dos Soldados da Tempestade.
O exemplar do BKA era uma fotocópia do original do Manuscrito de Santiago. E o original do Manuscrito de Santiago tinha sido roubado da Abadia de San Sebastian, nos Pirineus franceses, vários dias antes, pelos Soldados da Tempestade. Logo, a fotocópia do manuscrito que se encontrava na posse do BKA tinha que lhe ter sido enviada por alguém de dentro da organização nazi.
Um espião. Uli.
- Venham - disse Uli, correndo para o corpo do nazi caído. Retirou rapidamente as armas ao cadáver, atirando a G-11 e um par de granadas a Renée e, depois, o colete Kevlar preto e uma pistola Glock-20 a Race. - Depressa, despachem-se. Temos de impedir Ehrhardt de armar a Supernova!
Heinrich Aniztase e Odilo Ehrhardt estavam num dos gabinetes envidraçados, dentro da casa dos barcos, rodeados por uma imensidade de equipamentos de rádio e comunicações.
Diante deles, encontrava-se o Dr. Fritz Weber, o antigo membro da equipe do projeto da bomba atômica de Adolfo Hitler, o cientista nazi que, durante a Segunda Guerra Mundial, tinha realizado experiências com seres humanos e que viria a ser condenado à morte por isso. Apesar do seu corpo, corcunda e deformado, de setenta e nove anos, a sua mente estava tão viva como sempre fora.
Weber tinha nas mãos o ídolo inca. - É lindo - disse.
Com setenta e nove, Fritz Weber era dois anos mais velho que Ehrhardt e uns sessenta centímetros mais baixo que este. Era um homem baixo, de óculos, com olhos frios e calculistas e uma cabeleira desordenada, ao estilo de Einsten, que lhe caía sobre os ombros.
- Que notícias há dos governos europeus e americano? perguntou Ehrhardt.
- Os alemães e os americanos pediram mais tempo para juntar o dinheiro. Não há notícias dos outros - respondeu Weber.
- É um estratagema, uma tática habitual de adiamento, utilizada pelos negociadores. Estão tentando ganhar tempo, até se certificarem de que as suas equipes não encontraram o ídolo primeiro.
- Então vamos mostrar-lhes quem tem o ídolo - rosnou Ehrhardt. Em seguida, voltou-se para Aniztase. - Faça uma imagem digital do ídolo, já. Date-a com a hora e, depois, ponha-a no computador e envie-a diretamente para Bonn e para Washington. Diga aos presidentes que o dispositivo foi armado e programado para ser detonado dentro de exatamente trinta minutos. Só será desarmado, quando tivermos a confirmação da transferência dos cem bilhões para a nossa conta em Zurique, dentro desse prazo.
- Sim, senhor - respondeu Aniztase, atravessando a sala para ligar uma câmara digital.
Doutor Weber - disse Ehrhardt.
- Sim, Oberstgruppenführer, - Quando o Obergruppenführer tiver acabado de obter a imagem digital, quero que leve o ídolo para a cabine de controle e arme a Supernova. Programe-a para detonar dentro de trinta minutos e inicie a contagem.
- Sim, Oberstgruppenführer.
Race, Renée e Uli correram de volta à casa dos barcos.
Uli e Renée levavam uma G-11 cada, Race a pequena Glock que Uli tinha tirado do nazi morto, na lixeira.
Agora, levava também vestido, por cima da camiseta, o colete preto Kevlar do nazi morto. Antes disso, não tinha reparado bem nas proteções dos nazis. Mas agora, que tinha uma vestida, examinou-a com mais atenção.
Em primeiro lugar, era incrivelmente leve e fácil de usar. Não lhe inibia nada os movimentos. Em segundo lugar, no entanto, reparou numa estranha unidade em forma de A, presa às costas do colete, por cima dos ombros. Esta também era leve e, tal como um spoiler num carro, tinha sido bem integrada no desenho do colete Kevlar, de modo a não estragar a sua aparência elegante.
Como sempre, e talvez um pouco incongruentemente com o seu colete de alta tecnologia, Race ainda tinha o malfadado boné dos Yankees.
- Imagem digital está pronta - anunciou Aniztase, da bancada de equipamento de rádio eletrônico. - Estou enviando agora.
Ehrhardt voltou-se para Weber. - Arme a Supernova.
Weber pegou de imediato no ídolo e, seguido de Ehrhardt, saiu rapidamente do gabinete.
- Ali! - gritou Renée, apontando para uma das pontes suspensas incrivelmente longas, que ligava os edifícios da beira-rio à cabine de controle, no centro da cratera.
Race olhou para a mina e viu duas figuras minúsculas - uma grande e gorda, a outra pequena e envergando uma bata branca balançando na moderna ponte de cabos de aço.
A figura menor levava algo debaixo do braço. Um objeto embrulhado num pano púrpura. O ídolo.
Uli e Renée saíram da trilha, mergulharam numa seção de vegetação baixa, em direção à cratera. Race seguiu-os. Segundos depois, os três chegaram à orla da gigantesca mina e olharam para lá.
- É o Ehrhardt e o Weber - disse Uli. - Vão levar o ídolo para a Supernova.
- O que é que vamos fazer? - perguntou Race.
Uli disse:
- A Supernova está na cabine de controle. Só há duas pontes para lá chegar: aquela a norte e a outra a sul. Temos de arranjar uma maneira de entrar naquela cabine e desarmar a Supernova.
- Mas como é que conseguimos fazer isso?
- Para desarmar o dispositivo - esclareceu Uli - é preciso introduzir o código no computador de detonação.
- Qual é o código?
- Não sei - disse Uli tristemente. - Ninguém sabe. Ninguém, exceto Fritz Weber. Foi ele que concebeu o dispositivo e só ele é que sabe o código para o desarmar.
- Que maravilha - disse Race. Uli voltou-se.
- Muito bem, agora ouçam. O que eu penso é isto. Eu sou o único de nós que pode chegar à cabine de controle. Se eles virem algum de vocês correndo, numa das pontes suspensas, deixam-nas cair imediatamente e isolam a cabine. E, depois, se não receberem o dinheiro, detonam a Supernova. Mas eles estão esperando que eu volte, a qualquer momento, e julgam que eu matei vocês. Quando eu voltar, vou tentar chegar à cabine de controle. Depois vou tentar... persuadir... Weber a desarmar o dispositivo.
- E o que nós fazemos, entretanto? - perguntou Race. Para isto dar resultado - disse Uli - tenho de estar só com o Weber. Preciso que vocês eliminem o Aniztase e os outros na casa dos barcos.
Exatamente a duzentos e treze metros do fundo da mina, o doutor Fritz Weber apertava as teclas de um computador. A seu lado, um aparelho de corte a laser estava trabalhando cuidadosamente no ídolo de tírium, dentro de uma câmara de vácuo.
Por trás de Weber, encontrava-se Ehrhardt. E, por trás de Ehrhardt, precisamente no centro da cabine, estava um engenho feito de aço e vidro, imponente nos seus dois metros.
Dentro de um cilindro de vidro, havia duas ogivas termonucleares, cada uma com mais ou menos um metro de altura e vagamente cônicas. As duas ogivas estavam posicionadas na chamada «formação de ampulheta», com a ogiva superior apontada para baixo e a ogiva inferior apontada para cima, o que dava ao dispositivo o aspecto de uma enorme ampulheta. Entre as duas ogivas, no estrangulamento da ampulheta, via-se uma estrutura esquelética feita de titânio, na qual iria ser colocada a massa subcrítica de tírium.
Era a Supernova.
Ao lado do dispositivo, estava um par de contentores cilíndricos forrados a chumbo, do tamanho de caixotes do lixo normais. Eram as cápsulas das ogivas - contentores monumentalmente fortes, à prova de radiação, que eram utilizados para transportar ogivas nucleares em segurança.
Mas, Weber sabia-o bem, uma arma nuclear convencional requer cerca de dois quilos de plutônio. No entanto, e de acordo com os seus cálculos, a Supernova iria requerer muito menos que isso: apenas duzentas e cinquenta gramas de tírium.
Era por isso que, naquele momento, com a ajuda de dois super-computadores Cray YMP e de um laser de alta potência, que conseguia cortar com uma margem de erro de um milésimo de milímetro, Weber estava extraindo do ídolo uma pequena seção cilíndrica de tírium.
A ciência nuclear tinha progredido muito desde os tempos da obra-prima de J. Robert Oppenheimer, em Los Álamos, nos anos 40. Com a ajuda de super-computadores multitarefas como os dois Cray, as complexas equações matemáticas relativas ao tamanho, massa e rácio de força do núcleo radioativo podiam ser feitas em poucos minutos. A purificação de gases inertes, o enriquecimento de prótons e o aumento de ondas alfa podiam ser feitos simultaneamente.
E os cálculos matemáticos de tudo isto - a parte crucial, a parte que Oppenheimer e ao seu grupo de gênios tinham demorado seis anos completos a dominar, com a ajuda de computadores primitivos - podia ser feito em segundos pelos YMP.
Na verdade, a parte mais difícil para Weber tinha sido a construção do próprio dispositivo. Mesmo com a ajuda dos supercomputadores, tinha levado mais de dois anos para construí-lo.
Enquanto o laser cortava a pedra, de acordo com a relação peso-volume pré-definida, baseada no peso atômico do tírium, Weber inseriu algumas fórmulas matemáticas complexas num dos super-computadores.
Momentos depois, o laser de corte soltou um silvo agudo e voltou ao modo de espera.
Estava feito.
Weber aproximou-se e desligou o laser. Depois, utilizando um braço robótico, já que os braços humanos eram demasiado inexatos para semelhante tarefa, extraiu a pequena seção cilíndrica de tírium da base do ídolo.
A seção de tírium foi então colocada na câmara selada a vácuo e bombardeada com átomos de urânio e ondas alfa, transformando-a numa massa subcrítica da substância mais potente que jamais tinha existido neste planeta.
Momentos depois, o braço robótico transportou o conjunto da câmara até à Supernova onde, com a maior precisão, fez deslizar a câmara, com a massa subcrítica de tírium lá dentro, para dentro da estrutura de titânio suspensa entre as duas ogivas termonucleares. A Supernova estava completa.
A massa subcrítica de tírium estava agora colocada, na horizontal, no seu trono selado a vácuo entre as duas ogivas, apresentando-se ao mundo como se fosse detentora do poder de Deus. E o problema é que o detinha.
A toda a volta da cabina de controle, havia monitores que mostravam quantidades maciças de informação. Num desses monitores, sob a epígrafe INSTALAÇÃO HIDRODINÂMICA RADIOGRÁFICA DE EIXO DUPLO, um sem fim de uns e zeros rolava pela tela.
Weber ignorou-os e começou a escrever no teclado ligado diante da Supernova. Apareceu uma instrução na tela: INSERIR CÓDIGO DE ARMAMENTO.
Weber assim o fez.
SUPERNOVA ARMADA.
Weber escreveu: INICIALIZAR SEQUÊNCIA DE DETONAÇÃO. SEQUÊNCIA DE DETONAÇÃO INICIALIZADA. INSERIR TEMPO DE CRONOMETRAGEM.
Weber escreveu: 00:30:00
A tela mudou imediatamente.
RESTAM 00:30:00 MINUTOS
PARA INSERIR CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO INSIRA CÓDIGO AQUI _ _ _ _ _ _ _ _
Weber fez uma pausa, olhou para a tela e respirou fundo. Depois pousou um dedo na tecla ENTER
00:29:59 00:29:58 00:29:57
- Onde está o Unterscharführer Kahr? - perguntou Heinrich Aniztase. - Estava olhando para fora do gabinete da casa dos barcos, para a imensa cratera exterior, escavada na terra, e a pergunta não tinha sido dirigida a ninguém em particular. - Já devia ter voltado. Aniztase voltou-se.
- Você! - disse, atirando um rádio a um dos técnicos, vestidos com batas de laboratório, que se encontravam perto de um terminal de computador. - Vai à lixeira ver por que está demorando tanto tempo o Untarscharfúhrer.
- Sim, senhor.
Com movimentos simultâneos, Renée e Race colaram-se à parede da casa dos barcos.
Poucos momentos antes, Uli tinha-os deixado. Dirigira-se para o lado da enorme casa dos barcos, a caminho da cratera e da ponte suspensa do lado norte.
Renée espreitou para dentro da porta de ampla garagem, que estava ao seu lado.
O interior da enorme casa dos barcos estava vazio, em particular, a ampla seção entre os gabinetes envidraçados, à sua direita, e os ancoradouros, à sua esquerda.
Nada se mexia. Não se via nem mesmo uma alma viva. Renée fez sinal a Race.
Race indicou ter visto o sinal, agarrando a Glock que empunhava com um pouco mais de firmeza.
Pronto. A seguir, sem uma palavra, Renée passou rapidamente pela soleira da porta, com a G-11 apoiada ao ombro com firmeza.
Race preparou-se para a seguir mas, nesse instante, uma outra porta atrás dele abriu-se de súbito e Race atirou-se instantaneamente ao chão, escondendo-se atrás de um velho barril de petróleo.
Um jovem técnico nazi, vestido com uma bata de laboratório branca e segurando desajeitadamente um rádio na mão, saiu à pressa da porta que tinha acabado de abrir e correu para o caminho que levava à lixeira.
Race arregalou os olhos.
Ele ia a caminho da lixeira, onde iria encontrar um nazi morto e mais nada.
- Merda - disse Race. - Uli...
Estava na altura de tomar uma decisão. Podia ir atrás do técnico... e, depois, fazia o quê? Matava-o a sangue frio? Apesar de tudo o que se tinha passado até então, Race não tinha a certeza de ser mesmo capaz de matar um homem. Também podia ir avisar Uli. Sim: isso era melhor, muito melhor.
Por conseguinte, nesse momento, em vez de seguir Renée até à casa dos barcos, Race encaminhou-se para o lado do grande armazém, em direção à cratera e a Uli.
Uli chegou à ponte suspensa norte.
Estendia-se à sua frente, balançando sem medo sobre o vertiginoso abismo de duzentos metros, com os corrimãos convergindo como um par de trilhos que desaparecem à distância, terminando em pontos minúsculos na porta da cabine de controle, a cento e vinte metros de distância.
- Unterscharführer - disse, subitamente, uma voz, atrás dele.
Uli girou sobre os calcanhares.
E deu de cara com Heirich Aniztase.
- O que é que está fazendo? - perguntou Aniztase.
- Ia ver se o Oberstacharführer e o doutor Weber precisavam de assistência na cabine de controle - respondeu Uli, talvez um pouco depressa demais.
- Já eliminou os dois prisioneiros? - Já sim, senhor.
- Onde está o Dieter?
- Ele, ah, teve de ir ao WC - mentiu Uli.
Nesse preciso instante, o técnico de laboratório enviado por Aniztase chegou à lixeira.
O homem viu imediatamente Dieter, caído de bruços na lama, com sangue e miolos a saírem de um buraco na nuca.
Nada de americanos. Nem sinal de Uli.
O técnico de laboratório aproximou o rádio da boca.
- Herr Obergruppenführer - disse a voz do técnico, no auscultador de Aniztase.
- Sim.
Aniztase encontrava-se ao lado de Uli, no extremo norte da ponte. Os quatro dedos da mão esquerda do comandante nazi batiam levemente na perna das suas calças, enquanto escutava a voz no auscultador, - Dieter está morto, comandante. Repito: Dieter está morto. Não vejo os prisioneiros nem o Unterscharführer Kahr em lado nenhum.
- Obrigado - respondeu Anistaze sem desviar os olhos de Uli. - Muito obrigado.
Os olhos negros e frios de Aniztase pareciam querer penetrar nos de Uli.
- Onde estão os prisioneiros, Unterscharführer?
- Como, Herr Obergruppenführer?
- Perguntei onde estavam os prisioneiros.
Foi nesse momento que Uli viu a Glock aparecer na mão direita de Aniztase.
Renée moveu-se silenciosamente pela casa dos barcos, de arma em punho.
Race não a tinha seguido e ela interrogou-se sobre o que lhe teria acontecido. Mas não podia esperar: ainda tinha uma coisa a fazer.
A casa dos barcos estava silenciosa, calma. O tapete rolante que emergia do túnel à sua direita estava imóvel. Renée não viu ninguém no gabinete por detrás dele.
Um motor arrancou. Renée virou-se.
E viu as pás das hélices do helicóptero Bell jet Ranger começarem a girar lentamente.
A seguir, viu o piloto, deitado de lado no chão, sem notar a sua presença, procedendo a umas reparações quaisquer no helicóptero. Depois, de repente, com um zumbido estridente, as pás das hélices do helicóptero saltaram para a velocidade máxima e o ruído ensurdecedor provocado pelo motor preencheu o enorme espaço da casa dos barcos. Renée levou um tremendo susto.
No entanto, se não fosse o rugido dos motores, talvez o tivesse ouvido aproximar- se furtivamente dela.
Mas não o ouviu.
Porque, nesse instante, enquanto Renée avançava na direção do helicóptero, com a G-11 erguida, algo muito pesado atingiu-a na nuca, atirando-a para a frente, fazendo-a cair pesadamente no chão.
- Herr Obergruppenführer - disse Uli, à beira da enorme cratera, erguendo as mãos. - o que é que quer...
Bang! A Glock de Anistaze disparou - um único tiro que voou para o estômago de Uli. Uli dobrou-se ao meio instantaneamente e caiu no chão.
De pé, Anistaze olhava, de cima, para Uli, de arma em riste.
- Então, Unterscharführer, devo assumir que você também pertence àquela porcaria do BKA?
Uli contorceu-se no chão, aos pés do comandante nazi, cerrando os dentes, em agonia.
- Não responde - disse Anistaze. - Então que tal isto? Que tal se eu lhe arrancar os dedos da sua mão direita, a tiro, um a um, até você me dizer para quem trabalha. E quando tiver dado conta dessa mão, passo para a outra.
- Aaah! - gemeu Uli.
- Resposta errada - disse Anistaze, apontando a arma para a mão de Uli e apertando o gatilho.
A arma disparou.
Foi nesse mesmo instante que William Race irrompeu de uma esquina próxima, bateu de lado contra Anistaze, a toda a velocidade, arrancando-lhe a Glock da mão.
Mas os dois caíram desajeitadamente, batendo num dos pilares que sustentavam a ponte. O pé de Anistaze escorregou para a beira da cratera e ele estendeu uma mão, agarrando o braço de Race com a força de um torno e, antes de Race poder perceber o que estava acontecendo, caíram ambos do rebordo da mina pela parede da cratera abaixo.
Felizmente, as paredes de terra da mina não eram completamente verticais. Formavam um declive muito acentuado, talvez um ângulo de setenta e cinco graus. Os dois homens levantaram nuvens de poeira, ao deslizarem descontroladamente pela parede da cratera. Escorregaram ao longo de uns bons trinta metros, até aterrarem ambos em solo plano e sólido.
Na casa dos barcos, Renée também caiu no chão e viu as estrelas durante alguns momentos.
Depois, voltou-se de costas, a tempo de ver um pedaço de tubo, empunhado pelo segundo técnico nazi, vir direito à sua cara! Renée girou, mais uma vez, sobre si mesma e o tubo bateu estrondosamente no soalho de madeira, a centímetros da sua cabeça.
A agente alemã pôs-se de pé, com um mortal, em busca da arma. A sua G-11 estava caída no chão a um metro de distância, fora do seu alcance, afastada pela queda do seu corpo, quando fora agredida na nuca com o tubo.
O técnico voltou a atacar.
Renée abaixou-se e o tubo passou-lhe por cima da cabeça. Em seguida, levantou-se outra vez e deu um soco no técnico, no meio da cara, fazendo-o voar de encontro a uma parede.
O técnico bateu violentamente com as costas num painel de controle existente na parede. Devia ter tocado num botão, pensou Renée, pois, nesse momento, ouviu um som sinistro de maquinaria vindo de dentro das paredes da casa dos barcos e, de súbito, sem aviso prévio, o tapete rolante que se estendia ao longo do armazém começou a mover-se.
Race e Anistaze resvalaram para a frente.
Os dois homens estavam ainda aturdidos, devido à queda de 30 metros, na mina, e tentando levantar-se, quando sentiram que, sob os seus pés, o chão começava a mover-se para diante.
Race cambaleou ligeiramente e olhou para baixo, para o chão.
Não era terra firme de todo. Era a parte mais baixa do tapete rolante, do tapete rolante que levava à superfície, dentro da casa dos barcos!
Só que agora, movia-se para cima.
Race voltou-se mesmo a tempo de ver o punho esquerdo, com quatro dedos, de Anistaze voar em direção à sua cara. O golpe do comando alemão acertou no alvo e Race caiu como um saco de batatas, no amplo tapete rolante.
Anistaze pôs-se de pé, por cima do seu corpo caído, e então, abruptamente, o mundo ficou negro.
De início, Race não percebeu o que estava acontecendo. Depois compreendeu. Ele e Anistaze tinham acabado de entrar no longo túnel que levava à casa dos barcos, arrastados pelo movimento do tapete rolante.
Na casa dos barcos, por entre o ruído ensurdecedor das hélices do Bell Jet Ranger que giravam velozmente, fazendo eco naquele espaço cavernoso, Renée lutava com o técnico.
Este voltou a desferir um golpe com o tubo, no preciso momento em que Renée saltava para trás. O golpe falhou o alvo mas Renée reparou que o piloto do helicóptero estava agora olhando diretamente para ela.
O piloto começou a contorcer-se, tentando escapar à posição incômoda em que se encontrava, no chão do helicóptero. Ao mesmo tempo, o jovem técnico que tinha ido à lixeira procurar Uli apareceu à porta da casa dos barcos.
Renée viu um e o outro. Então, num único movimento fluído, ao desviar-se de mais um golpe desferido pelo primeiro técnico, tirou do cinto as duas granadas que Uli tinha tirado do nazi morto na lixeira, puxou as cavilhas, virou-se e atirou ambas para o interior da casa dos barcos.
As granadas rolaram pelo chão, em direções diferentes. Uma dirigia-se para a plataforma do helicóptero e para o próprio helicóptero, a outra ia direitinha ao jovem técnico, que estava parado junto à porta.
Um...
Dois...
Três...
O técnico que se encontrava à porta percebeu, um segundo tarde demais, que o objeto rolava na sua direção. Tentou fugir no último momento mas não foi suficientemente rápido. A granada explodiu. E ele também.
A segunda granada ressaltou para a plataforma e parou mesmo por baixo do elegante Bell Jet Ranger branco. Detonou abruptamente, despedaçando a carlinga do helicóptero num milésimo de segundo e matando instantaneamente o piloto deitado no chão. A explosão desfez também os patins de aterragem, obliterando-os, fazendo com que o helicóptero inteiro caísse um metro e meio na vertical e embatesse na plataforma. Ficou de barriga, com as pás da hélice ainda a girar, num turbilhão de velocidade.
Enquanto subiam, por entre a escuridão, Race e Anistaze lutavam.
Race lutava com força, com toda a força que o seu físico lhe permitia, socando à toa, acertando alguns golpes, falhando a maior parte deles. Mas Anistaze era de longe o melhor lutador e, pouco depois, Race estava deitado de costas, pregado ao chão, tentando em vão defender-se dos seus golpes.
Então, Anistaze sacou de uma faca de mato, que tinha numa bainha, no tornozelo. Mesmo na escuridão do túnel íngreme, Race viu o brilho da longa lâmina avançar rapidamente para a sua cara.
Agarrou o pulso de Anistaze com as duas mãos, mantendo a lâmina afastada, mas o nazi beneficiava do impulso e a lâmina aproximava-se cada vez mais do olho esquerdo de Race.
De repente, uma luz branca, crua, bateu na cara dos dois e, com igual brusquidão, o tapete rolante voltou à horizontal, fazendo com que os dois homens perdessem o equilíbrio e dando a Race a oportunidade de escapar à faca de Anistaze.
Race olhou rapidamente em volta.
Estava novamente dentro da casa dos barcos.
Só que agora, viajava na horizontal, sobre o tapete rolante, ainda subjugado pelo peso de Anistaze.
No entanto, infelizmente para ambos, o tapete arrastava-os agora para as pás da hélice do Bell Jet Ranger, que giravam a toda a velocidade, Neste momento, porém, devido ao fato de ter perdido os patins de aterragem na explosão da granada, as pás giravam como uma serra rotativa horizontal, a pouco mais de noventa centímetros acima do tapete rolante.
As pás da hélice estavam a três metros de distância. Girando velozmente.
Dois metros e setenta. Anistaze também as viu. Dois metros e meio.
Race viu Renée lutar com o técnico, perto da parede. O rugido das pás da hélice descontroladas ribombava no interior do armazém.
Dois metros.
Então, Anistaze decidiu adotar uma horrível tática nova. Com uma força tremenda, agarrou em Race pelo colarinho e levantou-o à altura dos ombros, para que o pescoço de Race ficasse ao nível das pás da hélice do helicóptero.
Um metro e oitenta.
Renée continuava a lutar com o primeiro técnico. Nos curtos intervalos, viu Race e Anistaze, lutando em cima do tapete rolante e viu Anistaze colocar o professor de joelhos e mantê-lo distante de si. Renée ficou de olhos esbugalhados de horror.
Anistaze ia decapitar Race com as pás da hélice do helicóptero! Um metro e meio.
Renée viu o console, na parede. O painel de comando que ligava e desligava o tapete...
Um metro e vinte.
Race viu as pás da hélice girar rapidamente e percebeu o que Anistaze estava tentando fazer.
Um metro.
Race tentou mexer-se, tentou lutar. Mas não serviu de nada. Anistaze era simplesmente demasiado forte. Race olhou para os olhos do seu atacante e viu apenas ódio.
Meio metro.
A morte certa aproximava-se. Race gritou, em desespero.
- Aaaaaaaaaaaah!
Trinta centímetros.
Nesse preciso instante, Renée desviou-se de um novo golpe desferido pelo técnico, aproximou-se sorrateiramente dele por trás e, agarrando-o à bruta pelos cabelos, arremessou com toda a força a cabeça dele contra o console da parede.
O tapete rolante parou.
Race também parou e a sua nuca ficou a uns três centímetros das pás da hélice do helicóptero.
A surpresa deixou o rosto de Anistaze sem expressão.
- Que caralho?...
Race aproveitou a oportunidade e deu uma joelhada com força nos testículos do nazi.
Anistaze deu um berro.
No mesmo instante em que Race o agarrava pelos colarinhos.
- Sorria, seu filho da puta - disse Race.
Depois, deixou-se cair no tapete rolante, rebolando rapidamente para trás, sob a hélice do helicóptero, utilizando o seu peso como alavanca para empurar Anistaze para a frente, com o pescoço exposto às lâminas giratórias do helicóptero.
As pás da hélice penetraram na garganta de Anistaze como uma serra elétrica a cortar manteiga, separando-lhe a cabeça do corpo, num único golpe suave e regular.
Um jato de sangue cobriu a cara de Race, que continuava deitado no tapete, ainda agarrado à gola de Anistaze.
Race livrou-se rapidamente do corpo e rolou para fora do tapete.
Sacudiu a cabeça. Não conseguia bem acreditar no que tinha acabado de fazer. Tinha acabado de decapitar um homem... Uau!
Olhou para cima e viu Renée de pé perto do console, ao lado do corpo inconsciente do técnico nazi. O homem tinha perdido os sentidos com a pancada que ela o tinha feito dar contra o console.
Renée sorriu a Race, erguendo o polegar.
Pela sua parte, Race deixou-se cair pesadamente no chão, exausto.
No entanto, ainda a sua cabeça não tinha tocado no chão, já Renée estava ao seu lado.
- Ainda não, Professor - disse ela, puxando-o, para ele se levantar. - Ainda não chegou a hora do descanso. Venha, temos de impedir Ehrhardt de detonar a Supernova.
Na cabine de controle, no alto da mina, o cronômetro da tela do portátil da Supernova continuava a contagem decrescente.
00:15:01 00:15:00 00:14:59
Ehrhardt pegou no rádio.
- Obergruppenführer?
Não obteve resposta.
- Anistaze, onde está você?
Nada.
Ehrhardt voltou-se para Fritz Weber.
- Passa-se alguma coisa. O Anistaze não responde. Inicie as contra medidas de proteção em redor do dispositivo. Sele a cabina de controle.
- Sim, senhor.
Renée e Race arrastaram Uli para o gabinete envidraçado com vista para a mina e deitaram-no no chão.
Um grande mostrador digital na parede mostrava a contagem decrescente.
00:14:55 00:14:54 00:14:53
- Droga - disse Race. - Já começaram a contagem!
Renée começou imediatamente a tratar da ferida no estômago de Uli. A máquina de fax, no outro lado da sala, começou a trabalhar ruidosamente.
Race, que agora carregava uma espingarda de ataque G-11, foi até lá. Estava saindo uma folha, onde se podia ler:
DO GABINETE DO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS TRANSMISSÃO DE FAC-SIMILE PROTEGIDA
NÚMERO DE ORIGEM DE FAX: 1-202-555-6122
NÚMERO DE DESTINO DE FAX: 51-3-454-9775
DATA: 5 JAN 1999
HORA: 18:55:45 (LOCAL)
CÓDIGO DE REMETENTE: 004
(Secretário da Defesa Nacional)
A MENSAGEM É A SEGUINTE:
Tendo-se reunido com os seus conselheiros, e de acordo com as suas bem conhecidas posições relativamente ao terrorismo, o Presidente deu-me instruções para os informar de que, EM CIRCUNSTÂNCIA ALGUMA, pagará qualquer quantia em dinheiro para evitar que detonem qualquer tipo de dispositivo que possam ter na vossa posse.
Secretário da Defesa Nacional do Presidente dos Estados Unidos
- Jesus - murmurou Race. - Eles não vão pagar... Renée foi ter com ele e olhou para o fax.
- Meu Deus, olhe só para este fraseado duro. Eles estão vendo se ele desiste. Pensam que ele não vai detonar a Supernova. - E ele vai detonar a Supernova?
- Não duvidem - disse Uli do chão, fazendo com que Race e Renée se voltassem.
Uli falava com os dentes cerrados.
- Ele está sempre falando nisso. É louco. Só uma coisa que ele quer: o seu mundo novo. E, se não o puder ter, vai simplesmente destruir o mundo que existe.
- Mas porquê? - perguntou Race.
- Porque é essa a moeda de troca dele. Foi sempre essa moeda de troca que ele usou: vida e morte. Ehrhardt é um homem velho. Velho e mau. Já não precisa do mundo. Se não receber o dinheiro e, com ele, a sua nova ordem mundial, destruirá a antiga, sem pensar duas vezes.
- Maravilhoso - ironizou Race. - E nós somos os únicos que o podemos deter?
- Isso mesmo.
- E como é que vamos fazer isso? - perguntou Race, voltando-se para Uli. - Como é que paramos a contagem?
- Temos de introduzir o código de desarme no computador de inicialização - respondeu Uli. - Mas, como eu já disse, só o Weber é que sabe o código.
- Então, de uma forma ou de outra - disse Race - vamos ter de lhe arrancar o código.
Momentos mais tarde, Race corria pela orla da enorme cratera, em direção à ponte sul.
O plano era simples.
Renée esperava no início da ponte norte, enquanto Race dava a volta à cratera, correndo, até à ponte sul. Em seguida, quando ele lá chegasse, corriam os dois, ao mesmo tempo, ponte fora, para a cabine de controle, partindo de extremos opostos.
A lógica do plano baseava-se no fato de as duas pontes suspensas, que se estendiam até à cabine de controle, serem bastante avançadas e muito robustas. As duas pontes tinham sido construídas com cabos de aço de alta-tensibilidade e, para fazer cair qualquer delas, era preciso alguém soltar quatro juntas de pressão separadas. Se Race e Renée corressem pelas duas pontes, ao mesmo tempo, um deles poderia conseguir chegar à cabine, antes de Ehrhardt e/ou Weber puderem inutilizar as duas pontes.
Após seis minutos e meio de corrida, Race chegou à ponte sul. Estendia-se diante dele, por cima da mina. Era monstruosamente comprida, uma característica que era acentuada pelo fato de ser muito estreita. Embora só tivesse a largura suficiente para deixar passar uma pessoa de cada vez, tinha mais ou menos o comprimento de um campo de futebol, de uma ponta à outra. Santo Deus, pensou Race.
- Está pronto, Professor? - perguntou, de repente, a voz de Renée no auscultador de Race.
Race usava o rádio havia tanto tempo que já quase se tinha esquecido dele.
- Mais do que nunca - respondeu.
- Então, vamos.
Race entrou na ponte suspensa.
Viu a cabine branca quadrada, ao fundo, suspensa lá no alto, por cima do chão da mina, viu a porta embutida na sua parede, no ponto onde a ponte se lhe juntava. No momento, essa porta estava fechada.
E, pelas longas janelas retangulares, também não se via movimento dentro da cabine.
Não. A cabina estava ali, só, silenciosa, a pairar perfeitamente no ar, mais de duzentos metros acima do mundo. Race entrou na ponte.
Nesse preciso momento, Renée movia-se velozmente pela ponte suspensa, do lado norte.
Caminhava de olhos fixos na porta fechada, ao fundo da ponte, observando-a numa expectativa tensa, à espera de a ver abrir-se de repente, a qualquer momento.
Mas a porta manteve-se resolutamente fechada.
Odilo Ehrhardt espreitou por uma das janelas da cabine de controle e viu Renée aproximar-se pela ponte norte.
Pela janela do lado oposto, viu Race fazendo exatamente a mesma coisa que Renée mas pela ponte sul.
Agora, Ehrhardt tinha de escolher. Escolheu Race.
As figuras minúsculas de Race e de Renée corriam pelas duas pontes suspensas, convergindo para a cabine de controle.
Renée movia-se um pouco mais depressa que Race, correndo rapidamente, de arma erguida. Quando ela ia mais ou menos a meio caminho, no entanto, a porta ao fundo abriu-se de repente e Odilo Ehrhardt saiu para a ponte.
Renée ficou estática, gelada.
Ehrhardt empurrava diante de si a minúscula figura do Dr. Fritz Weber, escudando-se atrás do corpo do pequeno cientista que se debatia. Ehrhardt tinha colocado um braço rechonchudo em volta do pescoço de Weber. Na outra mão, segurava uma pistola semi-automática Glock-20, apontada para a cabeça do cientista.
Não o faças, pediu Renée mentalmente, desejando que Ehrhardt não matasse o único homem que sabia o código de desarme da Supernova.
Obviamente não o desejou com ardor suficiente. Porque nesse instante, nesse instante único e terrível, Odilo Ehrhardt dirigiu um último e sinistro sorriso a Renée e apertou o gatilho.
A arma na mão de Ehrhardt disparou alto e bom som, ecoando pela cratera.
Fez brotar um jato de sangue do lado da cabeça de Weber, espalhando os seus miolos pelo corrimão e pelo fundo da cratera.
O corpo de Weber ficou completamente flácido e Ehrhardt atirou-o da ponte, deixando Renée olhando, sem poder fazer nada a não ser ficar, num horror atordoado, vendo o corpo cair, cair, cair, até acabar de galgar os duzentos e tantos metros de vazio que o separavam do chão da mina, onde tombou com um baque distante.
Race também escutou o tiro e, um segundo depois, viu o cadáver de Weber voar cratera abaixo.
- Santo Deus...
E começou a correr mais depressa, em direção à cabine, começou a correr...
Entretanto, no lado norte da cabine, Odilo Ehrhardt ainda não tinha terminado.
Depois de atirar da ponte o corpo de Weber, tinha começado a desfazer as conexões das juntas de pressão que ligavam a cabine à ponte.
- Não! - gritou Renée, agarrando-se aos corrimãos dos dois lados da ponte.
Com um silvo agudo, uma das juntas pressurizadas soltou-se e o corrimão do lado esquerdo de Renée simplesmente caiu. Renée fez os cálculos mentalmente. Não havia maneira de conseguir chegar à cabine antes de Ehrhardt soltar as outras três junções.
Deu meia volta e correu, correu com todas as suas forças, no sentido contrário ao da cabine.
De repente, um ruído sibilante.
Tinha sido solta mais uma junção e o outro corrimão caiu. Mais duas junções.
Renée corria no máximo de suas forças, pela ponte agora sem corrimãos, a duzentos e tal metros do solo.
Alguns segundos depois, a terceira das junções foi cortada e as placas debaixo dela começaram a descair para a esquerda.
A seguir, com um último esgar de contentamento, Ehrhardt soltou a quarta junção e a enorme ponte suspensa - ainda presa à orla norte da cratera mas já não à cabine que ficava no centro precipitou-se no abismo, levando consigo Renée Becker.
Renée estava apenas a cerca de quinze metros da orla, quando a ponte lhe desapareceu debaixo dos seus pés. Assim que a sentiu cair, atirou-se para a frente, agarrando-se, com os dedos, às placas metálicas do soalho da ponte, como se estas fossem tábuas de salvação.
A ponte suspensa tombou contra a parede inclinada da cratera. Renée bateu violentamente na parede terrosa da mina, ressaltou com o impacto mas, fosse lá como fosse, conseguiu aguentar-se.
Race chegou à porta, ao fundo da ponte por onde corria. Então, ouviu a voz de Renée gritar nos auscultadores.
- Professor, aqui Renée. A minha ponte foi abaixo. Estou fora da jogada. Agora, é com você.
Fantástico, pensou Race, cinicamente. Era mesmo isto que eu queria ouvir.
Respirou fundo e agarrou a arma com maior firmeza. A seguir, agarrou a maçaneta da porta com força e abriu-a, empurrando a porta com o cano da G-11... ... Rompendo o fio.
Bip! Race viu Ehrhardt antes de perceber de onde vinha aquele som agudo.
O corpulento general nazi estava de pé no outro lado da cabina de controle, junto à porta sul, com a Glock na mão, pendente ao lado do corpo. Sorria para Race. À esquerda de Ehrhardt, Race viu a Supernova - com a superfície exterior, de prata e vidro a brilhar, a seção cilíndrica de tírium colocada ao centro, suspensa dentro da sua câmara selada a vácuo entre as duas ogivas termonucleares.
Encostados à parede, ao lado da Supernova, havia dois super-computadores Cray YMP. As duas cápsulas que tinham sido utilizadas para transportar as ogivas estavam no chão, ao lado do grande dispositivo, e o ídolo, agora com uma seção oca na base, encontrava-se numa bancada ao lado, abandonado.
No computador portátil ligado à frente da Supernova, a fonte do som, Race viu o cronômetro, que continuava a contagem decrescente, a caminho do zero:
00:05:00 00:04:59 00:04:58
Por baixo da sequência, viam-se as palavras:
INICIADA SEQUÊNCIA ALTERNATIVA DE DETONAÇÃO. Sequência de detonação alternativa?
- Obrigado, Sr. Zé Ninguém.
- Armado em Valentia - zombou Ehrhardt. - Ao entrar nesta cabine, assinou a sua sentença de morte.
Race franziu o sobrolho.
Os olhos de Ehrhardt voltaram-se para a esquerda.
Race seguiu o olhar de Ehrhardt e viu, alinhados na parede leste da cabine, oito barris de oitocentos litros. Em letras bem grandes, escritas nos lados, viam-se as palavras: ATENÇÃO! e PERIGO: FLUIDOS AUTO-INFLAMÁVEIS.
Na frente dos enormes tambores amarelos, tinham sido escritas outras palavras: HIDRAZINA, TETRÓXIDO DE NITROGÊNIO.
Havia quatro tambores com hidrazina e quatro de tetróxido de nitrogênio. Uma rede complexa de cabos e tubos ligava os tambores de plástico uns aos outros.
Fluidos auto-inflamáveis ou hipergólicos, recordou Race das suas aulas de química, eram líquidos que explodiam quando entravam em contato uns com os outros.
Em cima de um dos tambores de hidrazina, havia um segundo cronômetro. Mas não estava contando, estava parado nos cinco segundos.
00:05:00
E, então, só então, Race viu que os oito tambores amarelos estavam ligados ao computador da Supernova por um cabo preto e grosso que serpenteava pelo chão da cabine.
00:04:00 00:03:59 00:03:58
- Como? - perguntou Race, com a G-11 encostada ao ombro, apontada ao peito de Ehrhardt. - Como foi que eu assinei a minha sentença de morte?
- Ao abrir essa porta, acionou um mecanismo que, de uma maneira ou outra, vai acabar com a sua vida.
- Mas como? Ehrhardt sorriu.
- Há dois dispositivos incendiários nesta sala, Professor: A Supernova e os combustíveis auto-inflamáveis. Um destruirá o planeta inteiro, o outro destruirá esta cabine. Eu sei que deseja desarmar a Supernova mas, se o conseguir fazer, terá de pagar um preço.
- Que preço?
- A sua vida em troca pela vida do mundo. Ao abrir essa porta, Professor, acionou um mecanismo que liga o computador da Supernova aos fluidos auto-inflamáveis. Agora, se, por alguma razão, a contagem decrescente da Supernova for parada, o cronômetro dos combustíveis auto-inflamáveis arranca. Em cinco segundos, os combustíveis irão misturar-se e quando o fizerem explodem, destruindo esta cabine e destruindo a você.
- Por isso, a escolha é sua, Professor. É uma escolha singular, única na história da humanidade. Pode morrer com o resto do planeta dentro de exatamente três segundos e meio ou pode salvar o mundo. Mas, para o fazer, terá de sacrificar a sua vida. Race nem queria acreditar no que estava ouvindo.
Uma escolha singular... Pode salvar o mundo...
Mas, para o fazer, terá de sacrificar a sua vida...
Os dois homens estavam um em cada lado da cabine: Race na porta sul, com a G-11 encostada ao ombro; Ehrhardt na porta norte, com a Glock na mão pendente ao lado do corpo.
00:03:21 00:03:20 00:03:19
- O Presidente concordou em pagar o resgate - disse Race, apressadamente, tentando um ardil desesperado.
- Não, não concordou - ripostou Ehrhardt, pegando numa folha de papel que estava na bancada ao seu lado e atirando-a a Race.
A folha esvoaçou para o chão. Era uma cópia do fax que Race tinha visto no escritório da mina. Ehrhardt devia ter um fax ali, também.
- E mesmo que ele tivesse dito que pagava - cuspiu o nazi - eu continuava sem poder desativar o dispositivo. Só o Weber é que sabia o código de desarme e ele, meu amigo, está morto. Não. Agora, é você ou nada. Agora, aconteça o que acontecer, pelo menos terei a satisfação de saber que não sairá vivo desta cabine.
- E você? - desafiou Race. - Também vai morrer.
- Eu estou velho, Professor Race. Velho e cansado. A morte não significa nada para mim. Mas o fato de poder levar o resto do mundo comigo significa tudo...
E, nesse momento, rápido como uma cascavel, Ehrhardt ergueu a Glock, apontou-a para Race e apertou o...
Bang!
A G-11 de Race deu um coice no seu ombro ao disparar um único tiro.
A bala sem invólucro bateu no enorme peito de Ehrhardt, de onde saltou uma gota de sangue, e o impacto atirou o homem corpulento contra a parede que tinha atrás dele.
Ehrhardt bateu violentamente na parede e a sua Glock disparou para o teto, desfazendo um alarme de incêndio e, de repente, uma série de extintores de incêndios no teto expeliram jorros de água.
Ehrhardt tombou no chão, por entre aquela chuva de interior. Era uma imagem nojenta: babava-se, de boca aberta, e com os olhos esbugalhados devido ao choque.
Race ficou ali parado, junto à porta, paralisado na posição de tiro, com a água a encharcar-lhe a cara, atordoado.
Era a primeira vez que matava um homem a tiro. Nem mesmo durante a perseguição no rio o tinha feito. Sentiu-se doente. Engoliu a bílis que se lhe acumulava na boca.
E, então, viu o cronômetro da Supernova.
00:03:00 00:02:59 00:02:58
Race saiu do transe em que mergulhara e correu para examinar o corpo do líder nazi.
Ehrhardt ainda estava vivo mas por pouco. Saía-lhe sangue da boca e do peito.
Mas os seus olhos ainda brilhavam e fitavam fixamente Race, com uma espécie de deleite louco, como se estivesse encantado por deixar Race naquela situação, sozinho numa cabine de controle, no estrangeiro, sem mais ninguém senão um nazi moribundo, uma Supernova prestes a explodir e oito tambores de combustível auto-inflamável, que o matariam se ele conseguisse desarmar a bomba principal.
M uito bem, Will, permaneça calmo.
00:02:30 00:02:29 00:02:28
Dois minutos e meio para o fim do mundo.
Permanecer calmo, o caralho!
Race correu para a Supernova e olhou para a tela do computador de ativação.
RESTAM 00:02:27 MINUTOS PARA INTRODUZIR CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO
INTRODUZA CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO AQUI _ _ _ _ _ _ _ _
Desanimado, Race olhou para o cronômetro. A chuva dos sprinkler caía-lhe com força na cabeça.
O que é que vai fazer, Will? Não tinha escolha, pois não?
Ele podia morrer com o resto do mundo ou podia tentar arranjar maneira de parar a Supernova e morrer do mesmo jeito.
Droga, pensou.
Não era nenhum herói.
As pessoas como Renco e Van Lewen eram heróis. Ele não era ninguém. Era só um tipo qualquer. Um professor universitário que chegava sempre atrasado ao trabalho, que perdia sempre o trem. Ainda tinha multas de estacionamento por pagar, pelo amor de Deus!
Não era nenhum herói.
E também não queria morrer como um herói.
Além disso, não fazia a mínima ideia de como adivinhar o código do computador da Supernova. Não era nenhum hacker. Não, o único fato importante era que Fritz Weber estava morto. E Fritz Weber era a única pessoa que sabia o código para desativar a Supernova.
00:02:01 00:02:00 00:01:59
Race fechou os olhos e suspirou.
Já agora, podia, pelo menos, morrer como um herói.
Então, sentou-se muito direito, em frente à Supernova, e olhou para a tela, com a cabeça mais fria.
Muito bem, Will, respira fundo. Respira fundo. Olhou para a tela, para a linha que dizia:
INTRODUZA CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO AQUI _ _ _ _ _ _ _ _
O Weber sabe o código.
Era a única pessoa que sabia o código.
Então, uma voz explodiu no seu ouvido e Race quase saltou.
- Professor, o que é que está acontecendo?
Era Renée - Pelo amor de Deus, Renée, pregou-me um susto de morte. O que é que se passa? Bem, o Ehrhardt matou o Weber. - E eu matei o Ehrhardt e agora estou sentado à frente da Supernova tentando arranjar uma maneira de a desativar. - Onde é que está?
- No escritório por cima da cratera.
- Tem alguma boa idéia para desativar esta coisa?
- Não, o Weber era o único que...
- Isso já eu sei. Ouve, eu tenho oito espaços para preencher e preciso de os preencher depressa.
- OK. Deixe-me pensar...
00:01:09 00:01:08 00:01:07
- Um minuto, Renée.
- Está bem, está bem. Eles diziam, naquela transcrição telefônica, que a Supernova deles é baseada no modelo americano, não era? Isso quer dizer que o código deve ser numérico.
- Como é que sabe isso?
- Porque sei que a Supernova americana tem um código numérico - Renée devia ter ouvido o silêncio dele. - Nós temos gente infiltrada nas suas agências.
- Ah, OK. Pronto, é um código numérico. Um código de oito dígitos. Isso deixa-nos com cerca de um trilhão de combinações possíveis.
00:01:00 00:00:59 00:00:58
O Weber era a única pessoa que sabia o código, certo? - perguntou Renée. - Por isso, deve ser qualquer coisa que tenha a ver com ele.
- Ou pode ser um número completamente aleatório - respondeu Race amargo.
- Pouco provável - argumentou Renée. - As pessoas que usam códigos numéricos raramente utilizam números aleatórios. Usam números que têm significado para elas, números de que se podem lembrar, pensando num acontecimento ou numa data memorável ou qualquer coisa do gênero. Ora, o que é que sabemos sobre o Weber?
Mas Race já não estava ouvindo.
Algo tinha soado na sua cabeça ao escutar Renée, algo que tinha a ver com aquilo que ela acabara de dizer.
- Muito bem - dizia Renée, pensando em voz alta. - Ele era um nazi, na Segunda Guerra Mundial. Fez experiências com seres humanos.
Mas Race estava pensando noutra coisa completamente diferente.
Usam números que têm significado para elas, números de que se podem lembrar, pensando num acontecimento ou numa data memorável...
E então lembrou-se.
Era o artigo do New York Times que tinha lido a caminho do trabalho, ontem de manhã, antes de chegar à universidade e dar de cara com uma equipe de tropas das Forças Especiais à sua espera, no seu gabinete.
O artigo dizia que os ladrões conseguiam entrar mais facilmente nas contas bancárias das pessoas porque oitenta e cinco por cento delas utilizavam os seus aniversários ou outras datas significativas para elas como códigos dos seus cartões.
- Quando era o aniversário dele? - perguntou Race, de repente.
- Ah, isso eu sei - respondeu Renée. - Vi isso na ficha dele. Alguma data em 1914. Ai, quando é que era? É isso: 6 de Agosto. 6 de Agosto de 1914.
00:00:30 00:00:29 00:00:28
- O que acha? - gritou Race, por entre o ruído ensurdecedor da chuva que continuava a cair no recinto.
- É uma possibilidade - admitiu Renée.
Race pensou nisso por um segundo. Olhou para a sala em seu redor e, quando o fez, viu Ehrhardt sentado, com as costas contra a parede, rindo-se pela boca ensanguentada.
- Não - afirmou, decidido, Race. - Não é isso...
- Então?
Embora não soubesse porquê, Race estava pensando com uma clareza cristalina.
- É demasiado simples. Se ele usou uma data, terá que ser uma data relevante mas que seja ardilosa ou tenha a ver com presunção. Alguma coisa que humilhasse o resto do mundo. Ele não utilizaria algo tão frívolo como a data do aniversário. Com certeza que foi buscar qualquer coisa com significado.
- Já não temos muito tempo, Professor. O que é que há mais? Race tentou lembrar-se do que mais ele tinha ouvido dizer sobre Fritz Weber.
Tinha feito experiências com seres humanos.
00:00:15
Tinha sido julgado em Nuremberg.
00:00:14
E condenado à morte.
00:00:13
E executado.
00:00:12
Executado.
Executado... É isso, pensou Race.
00:00:11
Mas em que data?
00:00:10
- Renée, depressa. Em que data foi a suposta execução de Weber?
00:00:09
- Ah... 22 de Novembro de 1945.
00:00:08
22 de Novembro de 1945.
00:00:07
Faça isso.
00:00.06
Race inclinou-se para a frente e digitou os algarismos no teclado da Supernova.
INTRODUZA CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO AQUI 22111945
Uma vez introduzido o código, com a água dos sprinkler a cair-lhe em cima e o cronômetro à sua frente decrescendo rapidamente para o zero, Race carregou com força na tecla ENTER.
Bip!
As gargalhadas de Ehrhardt pararam assim que ouviu o som. A cara de Race abriu-se num sorriso.
Meu Deus, consegui.
E, de repente, a tela da Supernova mudou.
CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO INTRODUZIDO
CONTAGEM DECRESCENTE PARA DETONAÇÃO INTERROMPIDA AOS 00:00:04 MINUTOS.
SEQUÊNCIA ALTERNATIVA DE DETONAÇÃO ATIVADA.
Sequência alternativa de detonação?
- Oh, merda... - sussurrou Race.
Os seus olhos dirigiram-se para o outro cronômetro, aquele que estava em cima dos tambores de hidrazina, do outro lado da sala, aquele que não passava dos 00:00:05.
O segundo cronômetro ativou-se e passou para os 00:00:04. Os olhos de Ehrhardt abriram-se de surpresa.
Os olhos de Race abriram-se ainda mais.
- Oh, porra - disse.
Exatamente quatro segundos depois, no término da contagem abreviada, os combustíveis auto-inflamáveis nos tambores misturaram-se e as paredes da cabine de controle explodiram com uma violência extraordinária.
As janelas estilhaçaram-se todas ao mesmo tempo, explodindo para fora num milhão de fragmentos, seguidas de perto por uma estrondosa, diluviana e explosiva bola de chamas.
Os destroços voaram em todas as direções. Portas, pedaços da Supernova, pedaços de bancadas, fragmentos do chão, foi tudo expelido com tamanha força que alguns resíduos conseguiram mesmo ultrapassar a orla da cratera, caindo na densa vegetação que rodeava a mina gigante. Os pedaços desfeitos das duas ogivas termonucleares que eram parte da Supernova caíram inofensivamente no fundo da cratera, pois a explosão hipergólica não tivera potência suficiente para dividir os átomos nelas contidos.
Num instante, da cabine de controle só restava um esqueleto enegrecido, carbonizado, impossível de reconhecer, vagamente suspenso sobre a cratera. As paredes da cabine tinham desaparecido, as janelas tinham desaparecido, o chão e o teto tinham também desaparecido.
William Race também tinha desaparecido.
SEXTA CONSPIRAÇÃO
Terça-feira, 5 de janeiro, 19h10
As duas embarcações navegavam lentamente sobre o rio, a caminho da mina abandonada.
Uma das embarcações era uma lancha rápida longa e elegante, a outra, um pequeno hidroavião de aspecto desgastado, com apenas um flutuador na asa direita.
O mundo estava silencioso, o rio calmo.
Leonardo Van Lewen e Doogie Kennedy espreitaram para fora das respectivas cabines e olharam para a mina deserta, que tinham diante de si. Devagar, aproximaram as embarcações da margem, atracando-as suavemente.
Tinham escutado a explosão hipergólica e, naquele momento estavam olhando para a imensa cratera de terra e para a coluna de fumo negro, que subia da armação em forma de caixa carbonizada, suspensa sobre o seu centro.
Não havia ninguém à vista. Nada se mexia.
O que quer que fosse que tivesse acontecido, já tinha terminado. Os dois Boinas Verdes saltaram das embarcações e, de armas em punho, dirigiram-se cautelosamente para o conjunto de velhos armazéns, na orla da cratera.
Depois, abruptamente, Renée apareceu junto à porta de um dos edifícios. Ela viu-os imediatamente, foi até eles e os três ficaram na orla da ravina, olhando para os restos enegrecidos da cabine de controle.
- O que foi que aconteceu aqui? - Perguntou Van Lewen.
- Ehrhardt usou o ídolo para armar a Supernova. Depois, programou-a para detonar - respondeu Renée, numa voz triste e suave. - O Professor Race conseguiu parar a sequência de detonação mas, assim que ele neutralizou a Supernova, a cabine simplesmente explodiu.
Van Lewen olhou para a cabine destruída, para o lugar onde William Race tinha sido visto vivo pela última vez.
- O engenho estava ali? - perguntou.
- Hum, hum - respondeu Renée. - Não dá para acreditar. Ele parou a contagem. Ele foi incrível.
- E o ídolo?
- Destruído na explosão, presumo, juntamente com a Supernova e com o Professor Race.
Ouviram um ruído, no meio da vegetação, do lado direito deles.
Van Lewen e Doogie voltaram-se, de armas em riste.
Mas, quando o fizeram, não viram nada a não ser árvores e folhas.
Então, subitamente, um objeto cilíndrico parecido com um tambor, uma espécie de cápsula, aproximadamente do tamanho de um latão de lixo comum, caiu dos ramos superiores de uma árvore e aterrou suavemente na densa vegetação, a cerca de vinte metros deles.
Van Lewen, Renée e Doogie olharam, intrigados, e aproximaram-se, para ver o que era.
A cápsula devia ter estado dentro da cabine de controle, quando aquela explodira e tinha sido expelida até ali, pela força da onda de choque.
A cápsula da ogiva rolou sobre a vegetação e parou. Depois, estranhamente, começou a abanar de um lado para o outro, como se estivesse alguém lá dentro a contorcer-se, para tentar sair...
Subitamente, a tampa da cápsula saltou e Race saiu de lá de dentro, estatelando-se sentado no solo lamacento.
A cara de Renée abriu-se num sorriso maravilhoso. De imediato, ela e os dois Boinas Verdes correram para o lugar onde Race estava caído na vegetação.
O professor estava deitado de costas na lama, encharcado e exausto. Mas ainda tinha o seu boné e o colete preto Kevlar.
Race olhou para cima, para os seus três companheiros, quando eles se aproximaram e presenteou-os com um meio-sorriso cansado.
Depois, tirou a mão direita detrás das costas e colocou um objeto no chão, diante dele. Gotas de água brilhavam por todo o objeto mas era impossível não reconhecer a brilhante pedra preta e púrpura e os traços ferozes da cabeça de rapa que nela tinham sido esculpidos.
Era o ídolo.
O Goose cruzava os ares, pairando graciosamente sobre a floresta amazônica.
Dirigia-se para oeste, banhado pela luz do ocaso. De volta às montanhas, de volta a Vilcafor.
Doogie ia à frente na cabine, pilotando o avião. Van Lewen, Race, Renée e o ferido, Uli, iam sentados atrás.
Race meditava sobre a sua fuga da cabine de controle.
Nos cinco segundos de que dispunha, entre acabar de desativar a Supernova e o momento em que os combustíveis auto-inflamáveis se misturariam, tinha procurado desesperadamente uma forma de escapar da cabina.
Por acaso, o seu olhar detivera-se numa das cápsulas das ogivas - um contentor capaz de suportar 5000 quilos de pressão por centímetro quadrado, pois o seu fim é proteger ogivas nucleares.
Sem mais nada a que recorrer, correra para ela, pegara o ídolo no caminho e fechara a tampa da cápsula, no momento exato em que terminava a contagem de cinco segundos.
Os combustíveis tinham-se misturado, a cabine explodira e ele tinha sido lançado bem alto, pelos ares, dentro da cápsula. Graças a Deus, aterrara com relativa suavidade em cima das árvores que rodeavam a mina.
Mas estava vivo e era isso que interessava.
Agora, sentado na traseira do hidroavião, Race segurava também nas mãos um velho livro de capa de couro esfarrapada, que tinha encontrado na casa dos barcos, depois da sua fuga espetacular. Estava numa prateleira, dentro do escritório que dava para a mina.
Era um livro que ele tinha insistido em procurar, antes de partirem para Vilcafor.
Era o Manuscrito de Santiago.
O Manuscrito de Santiago original, escrito por Alberto Santiago, no século dezesseis, roubado da Abadia de San Sebastian por Heirich Anistaze, no dia vinte, e copiada pelo agente especial, Uli Pleck, do Bundes Kriminal Amt, pouco tempo depois.
Sentado na traseira do pequeno hidroavião, Race olhava para o manuscrito numa espécie de respeito contido.
Olhava para a caligrafia de Alberto Santiago. Os traços e os floreados eram-lhe familiares mas, agora, estava a vê-los num papel com uma textura maravilhosa, escritos com uma tinta rica azul, e não numa fotocópia desagradável e tosca.
Tinha vontade de o ler imediatamente mas não podia ser: era uma coisa que teria de esperar. Havia outras coisas que ele ainda tinha de resolver.
- Van Lewen - disse.
- Sim.
- Fale-me de Frank Nash.
- O quê?
- Eu disse, fale-me de Frank Nash. - O que é que quer saber?
- Já alguma vez tinha trabalhado com ele?
- Não. Esta foi a primeira vez. A minha unidade foi chamada de Fort Bragg para esta missão.
- Sabe que Nash é coronel da Unidade de Projetos Especiais de Exército?
- Sim, claro.
- Então, sabia que era mentira quando, Nash foi ao meu gabinete, ontem de manhã, com uma identificação da DARPA e uma história de que era um coronel reformado do Exército e que, agora, trabalhava para a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa?
- Eu não sabia que ele tinha dito isso.
- Não sabia?
Van Lewen olhou para Race. Era um olhar honesto.
- Eu sou apenas uma peça da engrenagem, OK, Professor Race? Disseram-me que ia ser uma missão de proteção. Disseram-me para o proteger a você. Por isso, é o que estou fazendo. Se o coronel lhe mentiu, sinto muito mas não sabia.
Race cerrou os dentes. Estava com muita raiva daquilo tudo. Estava furioso por ter sido levado a participar naquela missão por meio de uma artimanha.
Mas, para além de estar zangado, estava também determinado a ficar sabendo tudo, porque, se Nash não era mesmo da DARPA, havia uma série de outras perguntas a fazer. Por exemplo, qual era a posição de Lauren e de Copeland? Também trabalhavam nos Projetos Especiais do Exército? E, numa perspectiva mais pessoal, também havia perguntas sobre a forma como ele próprio tinha vindo a fazer parte daquela missão. Afinal, Nash afirmara que tinha obtido o seu contato através do seu irmão Marty. Mas havia quase dez anos que Race nem sequer via o irmão.
Estranhamente, Race deu consigo a pensar em Marty.
Em criança, tinham sido muito unidos. Embora Marty fosse uns bons três anos mais velho que ele, sempre praticaram esportes juntos - futebol, basebol ou, simplesmente corridas. Mas, apesar da diferença de idades, Will tinha sido sempre melhor nos desportos.
Por outro lado, Marty era sem dúvida o mais esperto dos dois rapazes. Tinha-se distinguido na escola e por causa disso socialmente excluído. Não era bonito e, mesmo aos nove anos, era a imagem do pai: ombros curvados e sobrancelhas grossas, com uma expressão permanentemente severa, que fazia lembrar Richard Nixon.
Race, pelo contrário, tinha a beleza da mãe: cabelos castanhos-claros e olhos azuis.
Na adolescência, enquanto Will saía com os amigos, Marty ficava em casa com os seus computadores e a sua preciosa coleção de discos do Elvis Presley. Aos dezenove anos, Marty nunca tinha sequer tido uma namorada. Com efeito, a única garota de que ele gostara, uma linda chefe de torcida chamada Jennifer Michaels, tinha um fraco por Will. E isso deixara Marty arrasado.
Quando chegara a altura de ir para a universidade, enquanto os seus algozes de recreio saíram para serem empregados bancários ou agentes imobiliários, Marty foi direitinho para os laboratórios de informática no MIV, com os estudos pagos na íntegra pelo pai, que era engenheiro informático.
Por seu turno, Race, inteligente, é certo mas sempre o pior dos dois nos estudos, iria parar à USC, com meia bolsa de desporto. Aí iria encontrar, cortejar e perder Lauren O’Connor e, nos intervalos, estudar línguas.
Depois, viera o divórcio dos pais.
Tinha acontecido tudo tão repentinamente. Um dia, o pai de Race chegara em casa, vindo do trabalho, e dissera à mãe que a ia deixar. Depois, soubera-se que ele tinha um caso com a secretária havia quase onze meses.
A família dividiu-se ao meio.
Marty, então com vinte e cinco anos, ainda via o pai regularmente. Afinal, ele tinha sido sempre o filho predileto do pai, tanto no aspecto como na maneira de ser.
Mas Race nunca perdoou o pai. Quando ele morreu de ataque cardíaco, em 1992, Race nem sequer foi ao funeral.
Era a clássica família americana. Explodira a partir de dentro.
Race voltou ao presente, a um hidroavião que sobrevoava as florestas do Peru.
E a Lauren e o Copeland? - perguntou a Van Lewen. - Eles também são dos Projetos Especiais do Exército?
- São - respondeu, solenemente, Van Lewen. Filho da puta.
- Então, está bem - disse Race, mudando de tática. - O que é que sabe sobre o projeto Supernova?
- Juro que não sei nada - respondeu Van Lewen. Race mordeu os lábios, com uma expressão carregada. Depois, voltou-se para Renée.
- O que é que sabe sobre o projeto Supernova americano?
- Um pouco.
Race ergueu as sobrancelhas, expectante. Renée suspirou.
- Projeto aprovado pela Comissão de Armamento do Congresso, em sessão à porta fechada, em janeiro de 1992. Orçamento de 1,8 bilhões de dólares, aprovado pela Comissão de Valores do Senado, mais uma vez em sessão à porta fechada, em Março de 1992. O projeto nasceu como um empreendimento conjunto entre a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa e a Marinha dos Estados Unidos. O nome do Chefe de Projeto é...
- Um momento - interrompeu Race. - O Projeto Supernova é um projeto da Marinha?
- Exatamente.
Então, Frank Nash tinha-lhe dito várias mentiras, para o convencer a participar na missão. A Supernova nem sequer era um projeto do Exército.
Era um projeto da Marinha.
Então, subitamente, Race deu consigo a lembrar-se de uma coisa que tinha ouvido na noite anterior, quando estava preso dentro do Humvee, antes dos felinos atacarem a equipe do BKA.
Recordou-se de ouvir a voz de uma mulher, talvez a de Renée, dizendo qualquer coisa em alemão, no rádio, uma frase que, na altura, ele tinha achado bastante incongruente e que não tinha traduzido para Nash e para os outros.
Was ist mit dem anderen amerikanischen Team? Wo sind die jetzt? «E a outra equipe americana? Onde é que eles estão, agora?» A outra equipe americana...
- Desculpe, Renée - disse Race - quem é que você disse que era o chefe de projeto da Supernova?
Chama-se Romano. Doutor Julius Michael Romano.
E ntão, era isso.
Finalmente, sabia quem era o misterioso Romano. A equipa de Romano era a outra equipa americana. Santo Deus...
- Então, deixe ver se eu entendi bem - começou Race. - O projeto Supernova é um projeto da Marinha, chefiado por um tipo chamado Romano. Certo?
- Certo.
- E Romano e a sua equipe estão, neste momento, no Peru, à procura do ídolo de tírium.
- Exato.
- Mas Frank Nash também tem cá uma equipae do Exército e também anda à procura do ídolo.
- Correto - respondeu Renée.
- Então porquê, porque é que uma equipe chefiada por um coronel da Divisão de Projetos Especiais do Exército dos Estados Unidos anda tentando apanhar um ídolo que é crucial para uma arma que é da Marinha?
Renée esclareceu:
- A resposta a essa pergunta é um pouco mais complexa do que possa parecer à primeira vista, Professor Race.
- Experimente.
- Está bem - acedeu Renée, respirando fundo. - Durante os últimos seis anos, os serviços secretos alemães têm andado observando, discretamente, os três ramos das Forças Armadas dos Estados Unidos: Exército, Marinha e Força Aérea, que têm travado uma luta pelo poder, muito dura e muito secreta.
- Andam lutando pela própria sobrevivência. Cada um deles tenta ser o ramo das Forças Armadas mais importante dos Estados Unidos, para não ser dispensado, quando o Congresso finalmente eliminar um deles, como planeja fazer em 2010. Eles lutam para se tornarem imprescindíveis.
- O Congresso quer suprimir um dos ramos das Forças Armadas até 2010? - Perguntou Race.
- De acordo com uma minuta secreta do Departamento da Defesa, datada de 6 de Setembro de 1993 e assinada pelo Secretário da Defesa e pelo próprio Presidente, o Departamento da Defesa recomendou ao Presidente a eliminação, em 2010, de um ramo das Forças Armadas.
- OK... - disse Race. - E como é que sabe tudo isso? Renée presenteou-o com um sorriso malandro.
- Vamos lá, Professor. A Marinha americana não é a única que põe escutas nos cabos de comunicação submarinos de outros países.
- Oh, - disse Race - Na base da decisão do Departamento, esteve o fato de a guerra ter mudado. A antiga divisão terra-mar-ar das forças armadas dos vários países já não se aplica ao mundo moderno. É um anacronismo provocado por duas guerras e por mil anos de combate pessoal. Só resta decidir qual dos três ramos vai desaparecer.
- Desde essa altura - continuou Renée - cada ramo das Forças Armadas tem tentado provar o seu valor, à custa das outras duas.
- Como, por exemplo? - perguntou Race, cético.
- Por exemplo, a Força Aérea afirma que tem o bombardeiro Stealth, o avião caça-bombardeiro furtivo, e uma perícia única em matéria de combate com superioridade aérea. Mas a Marinha contrapõe, dizendo que tem os Grupos de Combate de Porta-Aviões.
Mais ainda: diz que os seus caças e bombardeiros convencionais são tão invisíveis como o B-3 e que, ainda por cima, a Marinha tem a vantagem acrescida de dispor de aeródromos transportáveis. Com uma dúzia de Grupos de Combate de Porta- Aviões, diz a Marinha, quem é que precisa da Força Aérea?
O Exército, por outro lado, afirma ter tropas terrestres especializadas e forças de infantaria mecanizadas. Mas tanto a Força Aérea como a Marinha contrapõem, dizendo que a guerra tem lugar nos céus e nos oceanos do mundo. Dizem que basta pensar na Guerra do Golfo e no conflito do Kosovo, nos quais as batalhas que foram travadas a partir do ar e não de terra. Acrescente-se a isso o fato de haver uma ligação próxima da Marinha ao Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos, Uma vez que a existência do Corpo de Fuzileiros é garantida pela Constituição Americana, este não pode ser eliminado. E eles têm capacidades de infantaria terrestres e mecanizadas, o que coloca o Exército uma pressão ainda maior, para justificar a sua existência.
- Caramba, veja os mísseis balísticos intercontinentais. Todos os ramos mantêm instalações para lançamento de mísseis: a Marinha tem os sistemas de lançamento submarinos; a Força Aérea tem sistemas de lançamento terrestres e aéreos; e o Exército tem sistemas móveis e terrestres. Haverá alguma nação que precise mesmo de três sistemas de mísseis nucleares individualizados, quando, na verdade, dois ou mesmo apenas um serve?
- Então, quem é que lhe parece que vai perder? - perguntou Race, indo direto ao assunto.
- O Exército - respondeu Renée, com toda a simplicidade.
- Sem dúvida. Especialmente se tivermos em conta a garantia constitucional que salvaguarda o Corpo de Fuzileiros. Em todas as análises que vi, até agora, o Exército aparece sempre em terceiro lugar.
- Por isso, precisam provar o seu valor - disse Race. - Precisam desesperadamente provar o seu valor. Ou de denegrir o desempenho de outro ramo das Forças Armadas.
O que quer dizer com «denegrir o desempenho de outro ramo das Forças Armadas»?
- Professor - disse Renée - sabia que, no final do ano passado, houve uma intrusão na base da Força Aérea de Vanderberg?
- Não.
- Foram roubados os planos ultra-secretos da nova ogiva nuclear W-88. A W-88 é uma ogiva miniaturizada, que representa o mais recente avanço tecnológico neste campo. Durante o roubo, foram mortos seis seguranças. o relatório da investigação oficial do assalto e a cobertura mediática que se seguiu afirmavam ter sido obra de agentes chineses. Mas o relatório não oficial do assalto diz que, depois de examinar as técnicas de intrusão e assassinato utilizados, apenas uma unidade podia ter executado o crime. Os Boinas Verdes.
Race olhou para Van Lewen. O Boina Verde encolheu os ombros, impotente. Aquilo era uma novidade para ele.
- O Exército assaltou uma base da Força Aérea? - perguntou Race, incrédulo.
Renée respondeu:
- Está vendo, Professor, o Exército está trabalhando numa nova ogiva miniaturizada própria. A construção, com sucesso, da W-88 iria minar seriamente o projeto do Exército e representaria uma razão a menos para eles continuarem a existir depois de 2010. Race franziu as sobrancelhas.
- E como é que isso tudo se aplica ao projeto Supernova?
- É simples - respondeu Renée. - A Supernova é a arma definitiva. O ramo das Forças Armadas que a tiver garante a sua sobrevivência, em 2010. É óbvio que, apesar de a Supernova ser oficialmente um projeto da Marinha, o Exército decidiu construir o seu próprio dispositivo. E tudo indica que vão utilizar informação que conseguiram obter por um agente infiltrado no projeto da Marinha.
- Mas ainda ninguém tem tírium - observou Race.
- E é por isso que todo mundo está aqui, à procura do ídolo.
- OK, deixe ver se eu entendi bem - disse Race. - Apesar de, oficialmente, a Supernova ser um projeto da Marinha, o Exército tem estado, secretamente, a construir o seu próprio dispositivo. Depois, quando descobre que existe, aqui, uma possível fonte de tírium, encarrega Frank Nash e a Unidade de Projetos Especiais de encontrar esse tírium, antes da Marinha.
- Correto.
- Droga - sussurrou Race. - Onde é que uma coisa destas pode ir parar?
Race estava pensando na comitiva de carros, do dia anterior, à saída de Nova Iorque. Só alguém bastante importante poderia ter organizado uma coisa daquelas.
- Alguém do topo - disse Renée, num tom de voz mais baixo. - Aos postos mais elevados da hierarquia do Exército americano. E é isso o que realmente me assusta. Nunca vi o Exército tão desesperado. Quer dizer, meu Deus, reparem nesta missão. É isso. É o tudo ou nada. Se o exército coloca a mão naquela pedra - acrescentou Renée, indicando, com a cabeça, o ídolo colocado na cadeira vazia ao lado de Race - garantem a sua existência futura. E isso significa que Frank Nash fará tudo para a conseguir. Tudo.
Race pegou no ídolo que reluzia nas suas mãos, a cabeça do rapa rosnando ameaçadoramente.
Race olhou para ele com tristeza, observando a base recentemente escavada.
- Então, acho eu, só há um problema, não é? - Qual é? - perguntou Renée.
- Este ídolo.
- O que é que tem o ídolo?
- A questão é essa - continuou Race. - Este ídolo não é feito de tírium. Este ídolo é falso.
- O quê? - perguntou Renée, embasbacada. É falso? - repetiu Van Lewen.
- É falso - confirmou Race. - Tomem, olhem para ele. Atirou o ídolo negro e reluzente a Van Lewen. - O que é que está vendo?
O corpulento sargento encolheu os ombros. - Estou vendo o ídolo inca que viemos aqui buscar.
- Vê mesmo? - Race inclinou-se para a frente e pegou no cantil que Van Lewen tinha pendurado no cinto. - Empresta-me isto? Race destapou rapidamente o cantil e despejou o seu conteúdo sobre o ídolo. A água correu pela cabeça do rapa abaixo, depois pelo focinho e pingou para o chão do avião.
- Está bem, e...? - disse Van Lewen.
- De acordo com o manuscrito - esclareceu Race - quando é molhado, o ídolo produz uma espécie de cantilena, baixinho. Este não faz nada disso.
- E?
- E, nesse caso, não é feito de tírium. Se fosse feito de tírium, o oxigênio existente na água faria com que ele ressoasse. Este não é o ídolo verdadeiro. É uma falsificação.
- Quando é que descobriu isso? - perguntou Renée.
Race contou.
- Quando eu tirei este ídolo da bancada, uns segundos antes da cabine explodir, o sistema anti-incêndio estava encharcando a sala toda com água. Molhou o ídolo e, mesmo então, ele não emitiu cantilena nenhuma. Como agora.
- Portanto, a Supernova dos nazis não teria destruído o mundo? - perguntou Van Lewen.
- Não - respondeu Race. - Talvez algumas centenas de hectares de selva, devido à explosão termonuclear. Mas o mundo não.
- Se não é feito de tírium - perguntou Van Lewen - de que é feito?
- Não sei - respondeu Race. - Um tipo qualquer de rocha vulcânica, acho eu.
- Se é uma imitação - disse Renée, tirando o ídolo das mãos de Van Lewen - então quem é que a fez? Quem é que poderia tê-la feito? Foi encontrada dentro de um templo, onde não entrava ninguém há mais de quatrocentos anos.
- Eu penso que sei quem foi - respondeu Race.
- Sabe?
Race concordou com um aceno da cabeça.
- Quem?
Race pegou no volume encadernado em pele, no original do Manuscrito de Santiago, no mesmo manuscrito em que o próprio Alberto Santiago tinha trabalhado havia muito, muito tempo.
- A resposta a essa pergunta - disse - está nas páginas deste livro.
Race retirou-se para a retaguarda do pequeno hidroavião. Iam chegar a Vilcafor dentro de pouco tempo. Mas ele queria ler o manuscrito, antes de lá chegarem. Queria lê-lo até ao fim. Havia tantas perguntas para as quais não tinha respostas. Como: quando tinha Renco substituído o ídolo verdadeiro por um ídolo falso? Ou: como tinha ele conseguido que os rapas voltassem a entrar no templo?
Mas, acima de tudo, mais importante do que outra coisa qualquer, Race queria saber uma coisa.
Onde estava o ídolo verdadeiro.
Race acomodou-se num assento, na traseira do avião. No entanto, quando se preparava para começar a ler o manuscrito, olhou para o pendente de esmeralda que tinha pendurado ao pescoço, o pendente de Renco e segurou-o na mão. Passou os dedos pelas arestas verdes cintilantes. Enquanto o fazia, pensou no esqueleto do qual, algumas horas antes, tinha tirado a tira de couro, o velho esqueleto empoeirado que tinha encontrado dentro do templo.
Renco... Race pestanejou para afastar aquela imagem e tentou não pensar nisso. Largou a esmeralda e pôs as idéias em ordem. Em seguida, encontrou a passagem no manuscrito onde tinha interrompido a leitura:
Alberto Santiago tinha acabado de salvar dos rapas a irmã de Renco, Lena, depois do que Lena tinha contado a Renco que os espanhóis chegariam ao amanhecer..
QUARTA LEITURA
Por um momento, o mais longo de todos os momentos, Renco ficou olhando para Lena.
- Ao amanhecer, disse ele, repetindo as palavras dela.
Lá fora, ainda era de noite mas, dentro de algumas horas, ia amanhecer.
- Assim é, disse Lena.
À fraca luz que pairava no interior da cidadela, eu conseguia ler no rosto de Renco os pensamentos que lhe iam passando pela mente - a sua missão de salvar o ídolo em conflito com o seu desejo de ajudar os habitantes de Vilcafor, naqueles tempos de duras provações.
Renco olhou para o outro lado, para o interior da cidadela. - Bassario, chamou, com brusquidão.
Voltei-me e vi Bassario sentado no chão, de pernas cruzadas, num canto da cidadela mergulhado na sombra, de costas voltadas para nós, como era hábito.
- Sim, sábio príncipe, respondeu o criminoso, sem abandonar o que estava fazendo.
- Diz-me que progressos alcançaste? - Já quase acabei.
Renco avançou a passos largos para o lugar onde estava sentado aquele criminoso. E eu fui atrás.
Bassario voltou-se, quando Renco chegou junto dele, e, no chão, a seu lado, eu vi o ídolo que era nossa missão proteger. Então, Bassario entregou a Renco uma coisa qualquer para ele apreciar.
Quando vi o que era, parei de pronto.
Abri e fechei as pálpebras duas vezes e voltei a olhar, pois estava certo de que aquilo era uma brincadeira.
Mas não era.
Fiquei com a certeza absoluta de que não era.
Porque, ali mesmo, diante dos meus olhos, encontrava-se uma réplica exata do ídolo de Renco.
Claro que Renco havia planeado tudo aquilo desde o começo. Recordei-me da nossa breve parada na pedreira da aldeia de Colco, logo no começo da nossa jornada, recordei-me de ver Renco encher um saco de objetos com arestas aguçadas. E recordei-me distintamente de, nesse momento, ter pensado, porque estaríamos perdendo o nosso precioso tempo apanhando pedras.
Mas, agora, compreendia tudo.
Renco havia obtido na pedreira uma coleção de rochas muito semelhantes à estranha pedra preta e púrpura, na qual o ídolo havia sido esculpido.
Em seguida, havia entregado essas pedras ao criminoso Bassario, ordenando-lhe que esculpisse uma cópia do ídolo, com a qual pretendia enganar Hernando.
Era uma idéia brilhante.
Também compreendi aquilo que Bassario vinha fazendo ao longo de toda a nossa jornada, nos momentos em que se afastava para um canto do acampamento e se debruçava sobre uma pequena fogueira, de costas voltadas para nós.
Nesses momentos, ele ia esculpindo a sua cópia do ídolo.
E, em boa verdade, é preciso dizê-lo, era uma cópia notável. As fauces arreganhadas do gato, os dentes aguçados que nem facas. Tudo isto esculpido no mais lustroso das espécimes de pedra preta e púrpura.
Por um instante, a única coisa que fui capaz de fazer foi olhar fixamente para o falso ídolo e perguntar a mim mesmo que espécie de mestre criminoso Bassario havia sido.
- Quanto tempo falta para acabares? Inquiriu Renco a Bassario.
Enquanto Renco falava, reparei que a cópia ainda necessitava de alguns retoques finais, nas linhas das mandíbulas do felino. - Não muito, replicou o criminoso. - Estará pronto de madrugada.
- Só dispões de metade do tempo, disse Renco, afastando-se de Bassario e olhando para o grupo de sobreviventes reunidos em torno de si, na cidadela.
Não era uma visão que pudesse dar-lhe esperança.
Diante dele, encontrava-se Vilcafor - velho, inútil e frágil e sete guerreiros incas que haviam tido a sorte de estar dentro da cidadela, quando os rapas haviam atacado. Além dos sete guerreiros, Renco estava rodeado somente de alguns homens mais velhos, de olhares assustados, mulheres e crianças.
- Renco, sussurrei. - O que nós vamos fazer?
O meu corajoso companheiro cerrou os lábios, enquanto pensava. Então, disse o seguinte:
- Vamos pôr termo a todo este sofrimento. De uma vez por todas.
E, dito isto, enquanto Bassario trabalhava febrilmente para terminar a sua réplica do ídolo, Renco começou a organizar os sobreviventes de Vilcafor.
- Agora, ouvi, disse ele, reunindo-os em torno de si, num círculo apertado. - Os comedores de ouro vão estar aqui ao nascer do Sol. Pelos meus cálculos, isso dá-nos menos de duas horas para nos prepararmos para a chegada deles.
- As mulheres, as crianças e os mais velhos, entrarão no quenko, seguindo as instruções da minha irmã, e afastar-se-ão desta aldeia tanto quanto possível.
E, voltando-se para os sete guerreiros sobreviventes da aldeia, acrescentou:
- Guerreiros. Vós vindes comigo, até esse templo de que fala Vilcafor. Se os rapas vieram de dentro daquela construção, então teremos que voltar a mandá-los para lá, Vamos atraí-los para dentro do templo com a canção do ídolo e, em seguida, voltamos a fechá-los lá. Agora, ide e recolhei todas as armas que conseguirdes encontrar.
Os guerreiros apressaram-se a cumprir as ordens. - Lena, chamou Renco.
- Sim, meu irmão?
A bela irmã de Renco apareceu a seu lado. Sorriu-me ao chegar, de olhos brilhantes.
- Preciso da maior bexiga que fores capaz de encontrar, disse Renco. - Cheia de água da chuva. - Assim será, replicou Lena, afastando-se, apressada.
- E Hernando?, inquiri a Renco. - E se ele chegar, enquanto nós estamos ocupados fazendo os rapas voltarem para o seu covil. Renco disse:
- Se, como conta a minha irmã, ele vem atrás de nós com batedores chancas, então, quando aqui chegar, ficará sabendo qual a direção que nós seguimos. Confia em mim, meu bom Alberto. Eu estou contando que assim seja. Pois, quando ele me descobrir, vai encontrar um ídolo comigo... e dou-lhe minha palavra que eu vou entregar esse ídolo.
- Hernando é um homem frio e cruel, Renco, disse eu. - Um homem mau e sem remorsos. Não podes esperar que ele aja com honra. Depois de lhe entregar o ídolo, ele matar-te-á.
- Eu sei.
- Então, porque... - Qual é o maior dos bens, meu amigo?, - disse Renco, baixinho. - Que eu viva e Hernando deite as mãos ao ídolo do meu povo? Ou que eu morra e ele se apodere somente de uma réplica?
Renco sorria-me.
- Pela minha parte, preferia viver. Mas temo que a minha vida não seja o que mais importa neste caso.
A cidadela tornou-se uma colméia de atividade, quando todos em Vilcafor começaram a preparar-se para o que estava para vir.
O próprio Renco saiu, a fim de dar mais instruções aos guerreiros da aldeia de Vilcafor. Enquanto ele o fazia, eu aproveitei a oportunidade para me aproximar por instantes de Bassario e vê-lo modelar a sua réplica do ídolo. Diga-se em abono da verdade - e possa Deus perdoar-me por isto - que eu tinha outro motivo para querer falar com ele.
- Bassario, sussurrei, hesitante. - A... Lena tem um marido? - Bassario fitou-me, fazendo um esgar ímpio. Vejam só o matreiro do monge... - disse ele, bem alto. - Supliquei-lhe, em murmúrios abafados, que não falasse tão alto. Como era de esperar de tal velhaco, Bassario estava achando graça.
- Ela já teve marido, acabou por dizer. - Mas o casamento deles terminou faz muitas luas, antes da chegada dos comedores de ouro. O marido de Lena chamava-se Huarca e era um jovem guerreiro promissor. Tanto quanto se pode esperar de um casamento contratado, o casamento deles era tido como esperançoso. Todavia, ninguém sabia que Huarca era dado a ataques de cólera. Após o nascimento do filho de ambos, Huarca começou a bater selvaticamente em Lena. Dizia-se que Lena suportava aquelas pancadas para proteger o filho da ira do pai. Tudo parece indicar que foi bem sucedida quanto a esse fim. Huarca nunca bateu no rapaz.
- Porque ela não o abandonou?, inquiri. - Afinal, ela é uma princesa do vosso povo... - Huarca ameaçou matar o rapaz, se ela contasse a alguém que ele lhe batia.
Santo Deus, pensei. - E, depois, o que foi que aconteceu?, inquiri.
- Acabou por se descobrir tudo por acaso, disse Bassario. - Um dia, Renco chegou, sem que ninguém o esperasse, na casa de Lena e foi encontrá-la encolhida a um canto, com o filho nos braços. Tinha os olhos cheios de lágrimas e o rosto coberto de sangue e de nódoas negras.
- Huarca foi imediatamente capturado e condenado à morte. Penso que acabou por ser lançado a um poço, com um par de felinos da selva esfomeados. Eles fizeram-no em pedaços. Bassario abanou a cabeça, em sinal de desaprovação. - Um homem que bate na sua esposa, monge, é o mais covarde dos covardes, o mais baixo de todos eles. Eu diria que Huarca teve o fim que merecia.
Deixei Bassario entregue ao seu trabalho e dirigi-me a um canto da cidadela, a fim de me preparar para a missão que se aproximava.
Ao cabo de algum tempo, Renco juntou-se a mim, para fazer o mesmo. Ainda envergava as vestes espanholas que havia roubado no navio-prisão fazia algumas semanas: o casaco de couro castanho, as calças brancas, as botas de couro até ao joelho. Aquelas vestes, havia-me dito uma vez, haviam sido de grande valor para ele, durante a nossa árdua viagem pela floresta.
Renco colocou uma aljava ao ombro e começou a apertar o cinto da espada à volta da cintura.
- Renco, disse eu. - Sim?
- Por que Bassario estava preso?
- Ah, Bassario... - suspirou ele, com tristeza.
- Quer acredite ou não, antes Bassario era um príncipe, disse Renco. - Um jovem príncipe muito estimado. Na verdade, o seu pai era nada menos que o Mestre Pedreiro Real, um brilhante construtor e talhador de pedra, o engenheiro mais venerado do império. Bassario era seu filho e seu protegido e, em breve, tornar-se- ia um pedreiro brilhante. Aos dezesseis anos, havia ultrapassado o seu pai em sabedoria e arte, apesar do seu pai ser o Mestre Pedreiro Real, o homem que construía cidadelas para o Sapa Inca.
- Mas Bassario era irresponsável. Era um grande arqueiro, na verdade um arqueiro magnífico mas, como muitos, era dado à bebida, ao jogo e a divertir-se com as belas jovens de Cuzco, nos bairros mais barulhentos. Todavia, infelizmente para ele, o seu sucesso junto das mulheres não tinha reflexo nas casas de jogo. Foi contraindo uma dívida monstruosa junto a uns homens de reputação duvidosa. Então, quando a dívida se tornou demasiado elevada para ele poder pagá-la, esses crápulas decidiram que Bassario teria de lhes pagar de outra maneira... com os seus consideráveis talentos.
- Como? - Bassario pagou-lhes, utilizando as suas notáveis qualidades de canteiro para esculpir cópias de estátuas famosas e de tesouros sem preço. Esmeralda ou ouro, prata ou jade, fosse qual fosse a matéria, Bassario era capaz de fazer réplicas dos objetos mais complexos.
- Depois de Bassario ter copiado uma estátua famosa, os seus nefandos parceiros assaltavam a casa do verdadeiro dono do ídolo e substituíam-no pela cópia que Bassario havia feito.
- Este esquema funcionou ao longo de mais de um ano, havendo os criminosos lucrado muito com ele, até ao dia em que os amigos de Bassario foram descobertos na casa de um primo do Sapa Inca, quando trocavam um ídolo verdadeiro por uma réplica.
O papel de Bassario em todo aquele esquema logo foi descoberto. Ele foi mandado para a prisão e toda a sua família caiu em desgraça. O seu pai deixou de ser o Mestre Pedreiro Real e foi despojado dos seus títulos. O meu irmão, o Sapa Inca, decretou que a família de Bassario seria expulsa da casa que ocupava no bairro real e passaria a viver num dos bairros mais pobres de Cuzco. Eu ia ouvindo tudo isto em silêncio.
Renco prosseguiu:
- Eu considerei que a pena era demasiado dura e assim o disse a meu irmão mas ele queria fazer de Bassario um exemplo e ignorou os meus pedidos de clemência.
Renco olhou para Bassario, que continuava o seu trabalho, a um canto da cidadela.
- Outrora, Bassario foi um jovem muito nobre. Com muitos defeitos, sem dúvida, mas nobre na sua essência. Foi por isso que, quando fui incumbido do dever de ir buscar o ídolo em Coricancha, pensei que podia recorrer aos seus talentos em proveito da minha tarefa. Pensei que, se os criminosos de Cumo podiam aproveitar-se da sua arte para os seus próprios fins, então, sem dúvida que eu podia fazer o mesmo, na minha missão de resgatar o Espírito do meu povo.
Ao cabo de algum tempo, Bassario terminou a sua réplica do ídolo.
Quando isso aconteceu, Bassario trouxe o falso ídolo e o verdadeiro e estendeu ambos a Renco.
Renco ergueu os dois ídolos à altura dos olhos. Eu olhei por cima do seu ombro e, na verdade, a arte de Bassario era tal que eu não seria capaz de dizer qual dos ídolos era o verdadeiro e qual era o falso.
Bassario retirou-se para o seu canto da cidadela e começou a reunir as suas coisas: a espada, a aljava, o arco.
- Onde pensa que vai?, inquiriu Renco, ao vê-lo pôr-se de pé. - Vou embora, replicou Bassario com simplicidade.
- Mas eu preciso da tua ajuda, disse Renco. Vilcafor disse que os seus homens tiveram que remover uma enorme laje da entrada do templo e que foram precisos dez homens para o conseguir. Eu vou precisar da ajuda de tantos quantos puder reunir, para voltar a colocá-la no seu lugar. Preciso da tua ajuda.
- Penso que já fiz mais do que a minha parte na sua missão, nobre príncipe, - disse Bassario. - Fugir de Cuzco, atravessar as montanhas, caminhar às cegas pela floresta cheia de perigos. E, enquanto isso, sempre fazendo um ídolo falso em teu benefício. Não, eu cumpri a minha parte e, agora, vou-me embora.
- Não sente que deve alguma lealdade ao teu povo?
- O meu povo mandou-me para a prisão, Renco, - retorquiu Bassario, amargamente. - Depois, castigou a minha família pelo crime que eu cometi, baniu-a e obrigou-a a viver no bairro mais pobre e mais sujo de Cuzco. A minha irmã foi violada, naquele antro, o meu pai e a minha mãe foram espancados e roubados. Os ladrões até quebraram os dedos do meu pai, para ele não poder voltar a talhar pedra. Só lhe restava mendigar, mendigar migalhas para alimentar a família. Não sinto amargura pelo meu próprio castigo, não sinto amargura alguma, mas também não sinto qualquer dever de lealdade para com a sociedade que puniu a minha família por um crime que era meu e só meu.
- Lamento, disse Renco, num tom brando. - Não sabia desses incidentes. Mas, por favor, Bassario, o ídolo, é o Espírito do Povo... - É a sua missão, Renco. E não a minha. Já fiz muito por você, mais do que bastante. Acho que ganhei a minha liberdade. Segue o seu destino e deixa-me seguir o meu.
E, com estas palavras duras, Bassario colocou o arco às costas, entrou no quenko e desapareceu na escuridão.
Renco não tentou detê-lo. Ficou somente olhando para o lugar por onde ele havia desaparecido, com o rosto coberto de tristeza.
Então, havia chegado o momento do resto de nós se preparar para o confronto com os rapas. Só faltava dar um toque final.
Agarrei na bexiga com urina de macaco, que o velho desdentado me havia dado, no começo daquela noite, abri a tampa. Um odor absolutamente nauseabundo investiu contra meu olfato. Sentia-me fraquejar, desesperado, perante a perspectiva de espalhar aquele líquido mal cheiroso sobre o meu corpo.
Mas não deixei de o fazer. E, oh, como era pútrido aquele cheiro. Não era de espantar que os rapas o detestassem.
Renco riu-se perante o meu desconforto. Em seguida, arrancou-me a bexiga das mãos e começou a espalhar o líquido amarelo e mal cheiroso sobre o próprio corpo. A bexiga foi passada aos outros guerreiros que iriam aventurar-se a subir a montanha e também eles começaram a banhar-se naquele terrível líquido pestilento.
Quando já nos encontrávamos quase prontos, Lena regressou com uma bexiga muito maior, a bexiga de um lhama, que eu cuidei que também estaria cheia de líquido.
- A água da chuva que pediste, - disse ela a Renco.
- Ótimo, disse Renco, tirando-lhe das mãos a bexiga do lhama. - Agora podemos partir.
R enco despejou sobre o ídolo verdadeiro umas gotas de água da chuva, que tirou da bexiga do lhama. Logo, este adquiriu vida e começou a entoar a sua melodiosa canção.
O interior da cidadela estava vazio. Lena já havia mandado para o quenko as mulheres, as crianças e os velhos da aldeia, para darem início à sua jornada pelos túneis do labirinto, uma jornada que acabaria por os levar até à queda de água, na beira do planalto. A própria Lena havia-se deixado ficar para trás, a fim de fechar a porta da cidadela, após a nossa partida.
- Muito bem, disse Renco, acenando para os dois guerreiros incas que manejavam a porta de pedra. – Agora!
Nesse momento, os dois guerreiros incas fizeram rolar para o lado a grande pedra, deixando entrever a noite, lá fora.
Os rapas estavam mesmo ali. À nossa espera.
Reunidos num amplo círculo, do lado de fora da cidadela. Contei-os: eram doze, doze enormes felinos pretos, todos eles com demoníacos olhos amarelos, orelhas pontiagudas e músculos poderosos.
Renco ergueu diante de si o ídolo cantante e os rapas ficaram a olhar fixamente para ele, paralisados.
Então, bruscamente, o ídolo parou de cantar e, de modo igualmente brusco, os rapas saíram do transe em que haviam caído e começaram a rosnar baixinho.
Rapidamente, Renco molhou o ídolo com mais água da bexiga do lhama e a canção do ídolo recomeçou e os rapas mergulharam mais uma vez em hipnose.
E o meu coração também começou a bater de novo. Então, com o ídolo na mão e os sete guerreiros incas e eu próprio atrás dele, Renco franqueou a porta da cidadela, mergulhando no ar frio da noite. Finalmente, a chuva havia parado e, entre as nuvens, havia agora alguns intervalos, que deixavam ver o céu estrelado e o brilho da lua cheia. Empunhando tochas acima das nossas cabeças, fomos avançando pela aldeia e pelo estreito caminho que seguia ao longo do rio. Em redor de nós, os rapas moviam-se em passadas lentas e deliberadas, mantendo os corpos junto ao chão e os olhos fixos no ídolo cantante empunhado por Renco. O meu medo era imenso. Não: a verdade manda que se diga que nunca na minha vida me havia sentido tão aterrorizado. Afinal, estava rodeado por um bando de criaturas enormes e perigosas, de criaturas totalmente desprovidas de dó ou perdão, de criaturas que matavam sem a menor hesitação.
Eram tão grandes! A luz trêmula das nossas tochas, os músculos das suas espáduas e dos seus flancos ostentavam reflexos cor de laranja. Também respiravam pesadamente, com um som profundo que parecia vir-lhes do mais fundo do peito e que não era muito diferente do resfolgar de um cavalo.
Enquanto seguíamos pelo caminho que bordejava o rio, olhei para trás e vi Lena parada, ao fundo da aldeia, empunhando uma tocha, a ver-nos avançar.
Ao cabo de alguns momentos, todavia, ela desapareceu da minha vista, pensando, imagino, que era altura de voltar para a cidadela e levar por diante aquilo que tinha que fazer ali. Nós prosseguimos a nossa jornada em direção ao templo misterioso.
Lá fomos, caminho fora. Nove homens - Renco, eu e os sete guerreiros incas - rodeados por um bando de rapas.
Chegamos ao flanco da montanha, num caminho estreito, talhado na superfície rochosa. Um dos guerreiros incas disse a Renco que ficava do outro lado daquela passagem.
Renco molhou novamente o ídolo. Este cantava bem alto e o seu canto agudo cortava o ar fresco da manhã. Então, enveredamos pela passagem, os felinos bem perto de nós, como crianças atrás de um professor.
Enquanto caminhávamos por aquele estreito caminho, à luz das nossas tochas, um dos guerreiros incas tentou desavisadamente trespassar um dos rapas em transe com a ponta da sua lança - mas, quando estava prestes a cravar a arma no flanco do animal, o rapa virou-se a ele, rosnando ferozmente, obrigando-o a deter-se no meio do movimento. Então, o enorme felino recomeçou a avançar e retomou a perseguição extasiada ao ídolo cantante.
O guerreiro trocou um olhar com um dos companheiros. Os rapas podiam estar em transe mas não estavam totalmente indefesos. Foi então que chegamos ao fim do caminho e fomos dar a uma espécie de desfiladeiro circular. Conforme havia dito o chefe Vilcafor, via-se o que parecia ser um incrível dedo de pedra, apontando bem alto para o céu da noite.
À esquerda, no flanco do desfiladeiro, havia sido aberto um caminho, o caminho de retirada que Vilcafor havia mandado construir. O caminho estendia-se à volta da circunferência do desfiladeiro cilíndrico, subindo depois em espiral, ao longo do dedo de pedra que havia no meio deste.
Renco começou a subir o caminho, avançando lentamente, sempre com o ídolo na mão. Os felinos foram atrás dele. Os guerreiros incas e eu começamos lentamente a subir, atrás deles.
Para cima, cada vez mais para cima. À volta, sempre à volta, seguindo a curvatura do caminho.
Ao cabo de algum tempo, chegamos a uma ponte de corda, que se estendia sobre o desfiladeiro, ligando o caminho exterior, ao dedo de pedra situado a meio do grande desfiladeiro.
Olhei para o outro lado da ravina, para a torre de pedra diante de mim. No cimo da torre, rodeada por uma espécie de manto de vegetação, vi uma magnífica pirâmide de degraus, não muito diferente das que podem ser encontradas nas terras dos Astecas. Um tabernáculo em forma de caixa, sobrepujava a imponente pirâmide triangular. Renco foi o primeiro a atravessar a ponte. Um a um, os felinos foram atrás dele, saltitando com passadas firmes sobre a ponte, comprida e oscilante. Os guerreiros foram a seguir. Eu fui o último a atravessar. Depois de ter passado a ponte, subi uma larga escadaria de pedra, que ia dar a uma espécie de clareira. Ao fundo dessa clareira, ficava o portal do templo, a entrada.
Era ampla e sombria, quadrada e ameaçadora e encontrava-se aberta, como que desafiando as pessoas a penetrá-la. Com o ídolo na mão, Renco aproximou-se do portal. - Guerreiros, disse ele, num tom firme. - Ocupai-vos da laje. Os sete guerreiros e a minha humilde pessoa dirigimo-nos para a laje, que se encontrava ao lado da entrada aberta do templo. Renco deteve-se junto ao portal, molhando o ídolo com água da chuva, para que ele continuasse a cantar a sua melodiosa canção.
Os felinos detiveram-se diante dele, olhando fixamente para o ídolo cantante, hipnotizados.
Renco deu um passo para o interior do templo. Os felinos foram atrás dele.
Renco deu mais um passo e o primeiro rapa entrou atrás dele. Mais um passo.
O segundo rapa, depois o terceiro, depois o quarto.
Nesse instante, Renco verteu sobre o ídolo a água que ainda restava dentro da bexiga do lhama e, então, após um derradeiro olhar solene ao bem mais precioso do seu povo, atirou-o para as profundezas sombrias do templo.
Os rapas saltaram para dentro do templo, atrás do ídolo. Os doze.
- Depressa, a laje! - Gritou Renco, saindo correndo da entrada do templo. - Empurrem-na de volta para o portal!
Como um só homem, nós empurramos. A laje roçou ruidosamente contra o limiar. Apoiei nela todo o meu peso, lançando-o contra o da enorme pedra. De repente, Renco estava a meu lado, fazendo igualmente força contra ela.
Lentamente, a laje foi-se deslocando para cima do portal. Faltavam mais alguns passos.
Quase... Só mais... dois...
- Renco, disse subitamente uma voz, vinda das proximidades. Era uma voz de mulher.
Renco e eu voltamo-nos ao mesmo tempo. E, então, vi Lena parada, à entrada da clareira.
- Lena? - Disse Renco. - O que fazes tu aqui? Eu disse para... Naquele momento, Lena foi brutalmente afastada, atirada ao chão e, de súbito, vi um homem parado nos degraus, por trás dela, e, naquele instante único e solitário, cada gota do sangue que me corria nas veias, transformou-se em gelo.
Eu estava olhando para Hernando Pizarro.
U m grupo de cerca de vinte conquistadores surgiu da vegetação, por trás de Lena, e espalhou-se pela clareira, com os mosquetes erguidos e apontados aos nossos rostos. As chamas das suas tochas iluminavam toda a clareira.
Vinham acompanhados de três nativos, todos eles com pedaços compridos e aguçados de osso, sobressaindo-lhes dos rostos. Chancas. Os batedores chancas que Hernando havia utilizado para seguir o nosso rastro até Vilcafor.
O último a aparecer, e do modo mais ominoso, era um homem mais alto que os restantes, com longos cabelos pretos que lhe chegavam aos ombros. Também tinha um pedaço aguçado de osso, cravado na face esquerda. Era Castino, o brutamontes chanca, que estivera no mesmo navio-prisão que Renco, no começo da nossa aventura, aquele que havia ouvido Renco dizer que o ídolo se encontrava no Coricancha, em Cuzco.
Os conquistadores e os Chancas formaram um círculo amplo, à volta de Renco, de mim e dos sete guerreiros incas.
Foi então que reparei como todos eles estavam imundos. Cobertos de lama e sujeira. E todos eles pareciam exaustos, tomados de um cansaço sem medida.
Então, compreendi que aquilo era tudo o que restava da legião de cem homens de Hernando. Durante a longa marcha através das montanhas e das florestas, os homens de Hernando iam morrendo à sua volta. De doença, de fome ou talvez somente de pura exaustão.
Era tudo o que restava da sua legião. Vinte homens. Hernando avançou alguns passos, ao mesmo tempo que obrigava Lena a pôr-se de pé. Arrastando-a atrás de si, aproximou-se do templo e parou diante de Renco, lançando-lhe uma mirada imperiosa. Hernando era uma cabeça mais alto que Renco e duas vezes mais corpulento. Empurrou brutalmente Lena para os braços de Renco.
Pela minha parte, lancei um olhar temeroso ao portal do templo.
Encontrava-se parcialmente aberto e a brecha entre a laje e a grande entrada de pedra era bastante ampla para deixar passar um rapa.
Aquilo não era nada bom.
Se a água que cobria o ídolo secasse e este deixasse de cantar, os rapas libertar-se- iam daquele feitiço e... - Finalmente nos encontramos, - disse Hernando a Renco, em espanhol. - Faz muito tempo que andas a evitar-me, jovem príncipe. Vai morrer lentamente.
Renco não respondeu, - E você, monge, - disse Hernando, voltando-se para mim, - Você que é um traidor do seu país e do seu Deus, hás-de morrer ainda mais lentamente.
Engoli em seco, controlando o medo.
Renco nem pestanejou. Limitou-se a introduzir lentamente a mão no bornal que trazia à cintura e tirar de lá o ídolo.
Os olhos de Hernando brilharam ao ver o ídolo. - Entregue-me, ordenou.
Renco deu um passo a frente. - De joelhos.
Lentamente, a despeito da humilhação que aquilo era, Renco ajoelhou-se e estendeu o ídolo a Hernando.
Este arrancou-lhe das mãos e os olhos brilharam-lhe de cobiça, enquanto contemplava o prêmio que havia tanto tempo buscava.
Ao cabo de alguns instantes, desviou os olhos do ídolo e voltou-se para um dos seus homens.
Sargento, disse. - Sim, senhor? - Replicou o sargento que se encontrava mais próximo dele.
- Executa-os.
Amarraram-me as mãos com um grande pedaço de corda. E fizeram o mesmo às de Renco.
Lena foi afastada de Renco por dois soldados espanhóis e os dois brutamontes torturaram-na com uma descrição completa do que lhe fariam depois de Renco e eu estarmos mortos, proferindo coisas que não ouso repetir aqui.
Renco e eu fomos obrigados a ajoelhar-nos, no meio da clareira, diante de uma grande pedra retangular, que parecia um altar. - O sargento espanhol postou-se de pé, diante de mim, de sabre em riste.
- Você, chanca, - disse Hernando, entregando uma espada a Castino. Desde que havia chegado à clareira, o vil chanca fitava Renco com o mais puro dos ódios. - Podes se ocupar do príncipe.
- Com muito gosto, disse Castino, em espanhol, agarrando na espada e dirigindo-se de imediato ao altar de pedra. - Cortai-lhes primeiro as mãos, - disse Hernando, em tom judicioso, quero ouvi-los gritar, antes de morrerem.
Os nossos carrascos e dois outros conquistadores empurram-nos, a Renco e a mim, para nos colocarem em posição, puxando pelas cordas que nos prendiam as mãos para que os nossos braços ficassem estendidos sobre o grande altar. Agora, os nossos pulsos encontravam-se completamente expostos, as mãos prontas para serem separadas dos corpos.
- Alberto, disse Renco, baixinho. - Sim.
- Antes de morrermos, meu amigo, gostaria que soubesses que, para mim, foi uma honra e uma alegria conhecer-lhe. Aquilo que fizeste pelo meu povo será recordado por gerações e gerações. Muito obrigado, por isso.
- Se as circunstâncias se repetissem, meu bravo amigo, - repliquei, faria tudo igual ao que fiz. Que Deus cuide de você no céu. - E de você, disse Renco. - E de você também.
- Cavalheiros, disse Hernando, dirigindo-se aos nossos carrascos, - cortai-lhes as mãos.
O sargento e o chanca ergueram as espadas ao mesmo tempo, ergueram-nas bem acima da cabeça.
- Espere! - Gritou alguém, de repente.
Naquele momento, um dos outros conquistadores correu para o altar. Parecia mais velho que os restantes dos soldados, mais grisalho e astuto, uma verdadeira raposa. O homem correu diretamente para Renco.
Havia visto o pendente com a esmeralda, no pescoço do meu companheiro.
O velho conquistador retirou rapidamente o cordão, passando-o sobre a cabeça de Renco, sorrindo-lhe com cobiça, enquanto o fazia.
- Obrigado, selvagem, - disse, rindo com desdém, ao mesmo tempo que colocava o pendente à volta do próprio pescoço e voltava para a sua posição junto ao portal do templo.
Os nossos dois carrascos olharam para Hernando, à espera de um sinal.
Mas, estranhamente, Hernando havia deixado de olhar para eles.
Na verdade, nem sequer olhava para Renco nem para mim.
Olhava fixamente para o templo, de boca aberta.
Eu contorci-me para ver para onde estava ele olhando. - Oh, meu Deus... - murmurei.
Um dos rapas estava parado à entrada do portal, mirando com curiosidade o grupo de seres humanos que tinha diante dele. O seu vulto, postado à entrada, era enorme. Tinha as fortes patas dianteiras afastadas, os músculos dos flancos tensos mas, naquele momento, a sua aparência era estranhamente cômica, em especial porque tinha qualquer coisa na boca.
O ídolo.
O verdadeiro.
O grande felino preto, anteriormente tão aterrorizador e feroz, agora parecia um simples cão que trazia o bastão de volta para o seu dono. Da fato, o rapa mantinha o ídolo na boca como se procurasse por alguém que pudesse molhá-lo de novo para que começasse a cantar.
Hernando simplesmente fixava o animal, ou melhor, o ídolo que ele trazia entre as mandíbulas poderosas. Em seguida, seus olhos passaram repentinamente do rapa e do ídolo em sua boca, para o que tinha nas mãos e, em seguida, para Renco e para mim, enquanto um ar de entendimento invadia seu rosto.
Compreendeu.
Compreendeu que tinha sido enganado.
O rosto do imponente espanhol ficou vermelho de raiva enquanto nos encarava.
- Matem-nos – urrou para os nossos carrascos – Matem-nos agora!
N aquele instante, uma miríade de eventos ocorreu simultaneamente.
Os carrascos tinham erguido de novo a lâmina e estava fazendo ela descer à grande velocidade, quando uma seta bateu no punho da sua espada, arrancando-lhe das mãos.
Rápido, Renco pôs-se de pé, no momento em que Castino, agora sem espada, o atacava com um dos seus enormes punhos. Renco empurrou o conquistador que havia estado a segurá-lo junto ao altar, colocando-o entre si e o golpe que se aproximava, e o potente murro de Castino atingiu em cheio o rosto do conquistador, despedaçando-lhe o nariz, que se foi enterrar na parte de trás do seu crânio, matando-o com um único golpe.
Então, no mesmo instante, outro conquistador ergueu o mosquete e apontou-o para Renco e disparou, exatamente no mesmo momento em que Renco girava sobre si mesmo, arrastando consigo e diante de si o conquistador morto, que usou como escudo. O disparo de mosquete abriu um feio buraco vermelho no meio do peito do soldado morto.
Enquanto Renco se preparava para lutar, o conquistador que segurava os meus pulsos em cima do altar ergueu a espada e olhou para mim com intentos maldosos.
Mas, então, num abrir e fechar de olhos, uma seta atingiu-o em pleno rosto e o conquistador caiu, diante de mim, sobre a pedra do altar, de rosto para baixo, com uma seta a sair-lhe da parte de trás da cabeça.
Eu perscrutei a escuridão, tentando ver de onde vinham as setas.
E vi-o.
Vi a figura de um homem, postada lá no alto, na beira do desfiladeiro.
O luar recortava-lhe a silhueta, uma silhueta com um joelho em terra, empunhando um arco em posição de disparar e com uma seta encostada à cabeça.
Era Bassario.
Soltei um viva de alegria e, em seguida, dediquei-me a desatar os nós que me prendiam as mãos.
É impossível descrever a carnificina que, naquele momento, se desenrolava ao meu redor. Era o caos. O caos absoluto. A clareira diante do templo havia-se transformado num campo de batalha, de uma batalha feroz e sangrenta.
Havia lutas por toda a parte, umas doze lutas separadas. Junto do templo, os rapas haviam já morto cinco conquistadores e, agora, estavam atacando quatro outros espanhóis e os seus três batedores chancas.
Noutras partes da clareira, os sete guerreiros incas, que os rapas evitavam por causa da urina de macaco espalhada sobre os seus corpos lutavam contra os espanhóis que restavam. Alguns deles caíram, quando os conquistadores dispararam os mosquetes contra eles, outros retalhavam os seus inimigos espanhóis, com pedras ou com quaisquer outras armas a que conseguiam deitar as mãos. Apesar de todos os morticínios e derramamentos de sangue a que eu havia assistido nas minhas viagens pela Nova Espanha, aquele era, de verdade, o mais brutal e primário exemplo de combate que eu alguma vez havia testemunhado. A meu lado, Renco e Castino haviam pegado em espadas e estavam agora envolvidos no mais feroz dos combates. Castino, pelo menos duas cabeças mais alto do que o meu bravo companheiro, segurava a espada com as duas mãos e desferia uma chuva de golpes potentes contra Renco.
Mas Renco defendia-se bem, só com uma mão, tal como eu lhe havia ensinado, recuando em pequenos passos sobre a lama, como um esgrimista espanhol consumado, mantendo o equilíbrio, ao mesmo tempo que se ia distanciando, em direção à vegetação.
Quando, por fim, consegui soltar a corda do meu pulso esquerdo e me pus de pé, compreendi que bom discípulo Renco havia sido. Tornava-se agora evidente que o aprendiz havia ultrapassado o mestre.
A sua arte de esgrimista era espantosa.
A cada golpe potente que Castino lançava contra ele, Renco erguia rapidamente a espada e aparava-o.
As espadas dos dois homens embatiam uma na outra com feroz intensidade. Castino atacava, Renco defendia-se. Castino dava passadas pesadas, Renco dançava.
Então, Castino desferiu um golpe demoníaco, um golpe tão forte que cortaria a cabeça de qualquer homem vulgar.
Mas não a de Renco.
Os seus reflexos eram demasiado rápidos. Recuou perante o golpe e, no fugaz instante que se seguiu, deu um salto para diante, para cima de uma pequena rocha e ergueu-se no ar, pondo termo à diferença de alturas entre si e Castino. A lâmina da sua espada sulcou o ar tão velozmente que produziu um assobio e, antes de eu ser capaz de me aperceber do que estava acontecendo, vi a sua espada cravada horizontalmente no tronco de árvore por trás do pescoço de Castino.
Castino ficou ali parado, de queixo pendente e olhos esbugalhados. No momento seguinte, a espada caiu-lhe da mão.
E, então, o corpo de Castino separou-se da sua feia cabeça. Renco havia-lhe separado a cabeça do corpo!
Quase aplaudi.
Quer isto dizer que eu teria aplaudido, se não houvesse tido outras coisas com que me ocupar.
Girei sobre mim mesmo, a fim de vigiar o campo de batalha em torno de mim.
Por toda a clareira, estavam ainda em curso pequenas batalhas mas os únicos vencedores óbvios pareciam ser os rapas.
Foi então que vi o ídolo. O ídolo verdadeiro.
Encontrava-se no limiar do portal, tombado de lado, no lugar exato onde, momentos antes, havia caído da boca do rapa. Ainda com um pedaço de corda preso ao pulso direito - tinha cerca de dois passos de comprimento - apanhei do chão uma espada e uma tocha e corri em direção ao templo, por entre o tinir de lâminas e os gritos dos conquistadores destroçados.
Alcancei o portal, atirei-me ao chão junto do ídolo e agarrei nele, no preciso momento em que um dos soldados espanhóis batia contra as minhas costas, impelindo-nos a ambos para o outro lado do portal, para o interior do templo.
Tombamos os dois, galgando na queda uma série de largos degraus de pedra e mergulhando na escuridão do templo, numa confusão de braços, pernas, ídolo e tocha.
Ao chegarmos ao fundo das escadas, cada um caiu para seu lado. Encontrávamo-nos no que parecia ser um túnel de paredes de pedra escura.
O meu inimigo conseguiu pôr-se de pé e, agora, estava encostado à parede, diante de uma pequena alcova que havia sido aberta nesta. Eu ainda continuava deitado de costas no chão, com o ídolo no colo.
Quando o soldado espanhol se aproximou de mim, vi o pendente de esmeralda no seu pescoço e, de pronto, reconheci-o. Era o matreiro soldado mais velho, que, momentos antes, havia tirado de Renco o seu preciosíssimo pendente.
A velha raposa ergueu a espada bem alto. Eu encontrava-me sem defesa, totalmente exposto.
Nesse momento, com um rugido obscenamente alto, qualquer coisa muito grande saltou sobre a minha cabeça, vinda de trás, e atacou o conquistador a uma velocidade assustadora.
Um rapa.
O felino atingiu o espanhol com uma força tão colossal que este foi atirado para dentro da alcova, que havia por trás de si. A cabeça dele embateu na parede e, com o mais aterrador dos sons, explodiu, quebrando-se que nem um ovo. Um jato de sangue e miolos saltou do buraco que se havia aberto instantaneamente na parte de trás do seu crânio.
O soldado espertalhão caiu no chão da alcova mas, quando ali chegou, já estava morto.
Com a cauda a abanar com toda a força, o felino começou de imediato a despedaçá- lo.
Eu aproveitei a oportunidade, agarrei no ídolo, subi as escadas correndo e saí do templo.
Saí cá para fora, para a noite, grato por, mais uma vez, haver escapado à morte.
Mas o meu devaneio foi de curta duração. Mal havia passado o portal, ouvi um estalido seco, vindo detrás de mim, seguido de um grito rouco:
- Monge! Girei sobre mim mesmo.
E vi Hernando Pizarro, parado diante de mim, com uma pistola na mão, apontada ao meu peito.
Então, antes mesmo de poder esboçar um movimento, vi uma língua de fogo sair do cano da pistola, ouvi o estrondoso eco do disparo e, quase de imediato, senti um peso tremendo embater no meu peito e fui atirado para trás.
Caí instantaneamente no chão, depois do que só conseguia ver nuvens, nuvens escuras de tempestade, rolando sobre o céu estrelado, lá no alto, e foi nesse momento que compreendi com extremo horror que havia levado um tiro.
F iquei deitado de costas, os dentes apertados de agonia, mirando o céu manchado de nuvens, sentindo uma dor ardente a perfurar-me o peito.
Hernando inclinou-se e arrancou o ídolo das minhas mãos que o apertavam e, enquanto isto, deu-me uma bofetada no rosto e disse:
- Morre devagar, monge. Depois, desapareceu.
Eu continuei deitado nos degraus de pedra diante do templo, à espera que a vida se me fosse escapando do corpo, à espera que a dor se tornasse insuportável.
Mas, então, por qualquer razão que ultrapassava o meu entendimento, em vez de se esvaírem, as minhas forças começaram a regressar.
A dor ardente no meu peito abrandou e eu sentei-me de imediato, tateando o peito, no ponto em que a bala havia aberto um buraco no meu hábito.
Senti qualquer coisa ali.
Qualquer coisa macia, espessa e quadrada, que tirei dali. Era a minha Bíblia. A minha Bíblia, de trezentas páginas escritas à mão e encadernada em couro.
No centro, via-se um buraco redondo, que parecia a toca de um verme. No fundo da toca, vi uma esfera deformada de chumbo escuro.
A bala de Hernando.
A minha Bíblia havia detido a bala! Louvada seja a Palavra do Senhor.
Pus-me de pé de um salto, momentaneamente inebriado. Olhei em volta, em busca da minha espada, mas não a encontrei e saí para a clareira.
Vi Renco no lado oposto da clareira, empunhando duas espadas e lutando contra dois conquistadores munidos de sabres. Não muito longe do lugar onde me encontrava, dois guerreiros incas combatiam com outros tantos espanhóis. Pareciam ser os únicos sobreviventes, sobre a torre de pedra.
E, então, vi Hernando, com o ídolo na mão, correndo pelas escadas de pedra, à minha direita, em direção à vegetação.
Os meus olhos esbugalharam-se.
Ele encaminhava-se para a ponte de corda.
Se ali chegasse, o mais certo seria cortar a ponte e deixar-nos abandonados na torre, entregues aos rapas.
Fui atrás dele, saltando pela clareira, quase tropeçando num rapa, que se encontrava deitado no chão, a despedaçar o corpo de um conquistador morto.
Desci as escadas de pedra, de duas em duas, com o coração a bater violentamente, as pernas voando, em perseguição de Hernando. Quando contornava uma curva das escadas, vi-o a mais ou menos dez passos de mim, saltando para a ponte de corda.
Hernando era forte e musculoso; eu era mais baixo, mais ágil e mais rápido. Ganhei terreno rapidamente e corri para a ponte na pegada dele e, nesse momento, sem ter mais nada com que pudesse contar, lancei-me, sem espada, contra as suas costas.
Colidi com ele com todo o meu peso e caímos ambos sobre as delgadas tábuas da ponte de corda, bem por cima do desfiladeiro. Mas tamanho foi o peso da nossa queda que, por baixo de nós, as tábuas da ponte se despedaçaram que nem frágeis rebentos novos de uma árvore e, para meu grande horror, caímos ambos pelo buraco que se abriu, direto ao abismo...
Mas a nossa queda foi breve.
Com uma sacudidela súbita e violenta, paramos abruptamente. No terror da queda, Hernando havia procurado qualquer coisa a que se agarrar, qualquer coisa que pudesse deter a queda.
E havia encontrado o pedaço de corda, que continuava preso ao meu pulso direito. A corda havia passado sobre uma das tábuas da ponte de corda e, agora, Hernando encontrava-se pendurado numa das suas extremidades e eu na outra!
E, assim, lá estávamos nós, que nem pratos de uma mesma balança, um de cada lado da mesma corda, com pedaços de corda da ponte parcialmente quebrada, a balançarem-se à nossa volta.
Por um acaso da sorte, da má sorte no meu caso, eu estava suspenso por baixo de Hernando, com a cabeça próxima dos seus joelhos pendentes. Hernando conseguiu içar-se um pouco, até junto das tábuas que ainda restavam da ponte de corda.
Vi que ele segurava o ídolo na mão esquerda, agarrando-se à corda com a direita. Esticou a mão esquerda, tentando desesperadamente colocar o ídolo numa das tábuas que restavam da ponte de corda e segurar-se a qualquer coisa.
Se conseguisse fazê-lo, compreendi, já poderia deixar-me cair. De momento, o meu peso, por leve que fosse se comparado com o seu, era a única coisa que impedia a sua queda.
Eu precisava fazer alguma coisa. E rapidamente.
- Porque fazes isto, monge? - Gritou Hernando, enquanto continuava a tentar salvar-se, o que parecia estar prestes a conseguir. - Que importa a você este ídolo? Eu era capaz de matar por ele!
Enquanto ele se enraivecia, reparei numa das cordas que pendiam lá de cima, da ponte, uma das cordas que fora parte do corrimão da ponte.
Se eu conseguisse... - Seríeis capaz de matar por ele, não seríeis, Hernando? - Disse eu, tentando distraí- lo, enquanto me esforçava por desatar o pedaço de corda que estava presa ao meu pulso direito - a corda que me ligava a Hernando. - Para mim, isso não significa nada! - Ah não? - Gritou ele.
Agora, era uma competição, uma competição para ver quem era o primeiro a conseguir atingir o seu objetivo: o de Hernando era chegar à tábua, acima de nós; o meu desatar a corda que nos unia.
- Não! - Gritei em resposta, no momento em que conseguia libertar-me do pedaço de corda.
- Porquê, monge?
- Porque eu seria capaz de morrer por ele, Hernando.
E, dito isto, encontrando-me já liberto da corda presa ao meu pulso, estendi o braço para a corda que pendia lá de cima, da ponte, e consegui agarrá-la, ao mesmo tempo que soltava o pedaço de corda que me prendia a Hernando.
O resultado foi instantâneo.
Agora sem o peso que o equilibrava, do outro lado da corda a que se agarrara, Hernando caiu por ali abaixo.
Passou por mim, na queda: uma massa humana aos gritos. Então, como merecido insulto final, quando ele passou diante de mim, estendi a mão e arrebatei-lhe o ídolo.
- Nãoooooo! - Gritou Hernando, enquanto continuava a cair. E, assim pendurado sobre o abismo, balançando pendente da corda da ponte a que me agarrava com uma das mãos, ao mesmo tempo que segurava o ídolo sagrado com a mão que tinha livre, vi o olhar de terror absoluto no seu rosto diminuir, diminuir, até, finalmente, desaparecer no abismo negro que se abria por baixo de mim, só se ouvindo agora os seus gritos.
E estes pararam, um instante mais tarde, ao mesmo tempo que ouvi um baque distante e aterrador.
Cheguei à clareira algum tempo depois, com o ídolo na mão. A cena com que deparei era como que uma visão do próprio inferno.
À luz fraca e tremente das tochas caídas na clareira, vi os rapas deitados junto das filas de conquistadores mortos, empanturrando-se de carne humana fresca. Havia capacetes prateados por todo o lado, brilhando à luz das tochas.
Foi então que vi Renco, Lena e três dos guerreiros incas parados junto ao portal. Tinham nas mãos espadas e mosquetes e eram os únicos sobreviventes da carnificina, em boa parte graças aos seus dotes de combatentes e à camada de urina de macaco que os cobria. Pareciam andar em busca de qualquer coisa. Do ídolo, sem dúvida.
- Renco! - Gritei. - Lena!
Logo lamentei tê-lo feito.
Um dos rapas deitados no chão, diante de mim, levantou imediatamente a cabeça, distraído do festim, perturbado pelo meu grito. O enorme animal pôs-se de pé, olhando para mim.
Outro rapa, atrás do primeiro, fez o mesmo. Depois outro e outro ainda.
O bando de felinos gigantes formou um círculo em torno de mim, Tinham as cabeças baixas e as orelhas espetadas para trás.
Renco voltou-se e viu que eu me encontrava em apuros. Mas estava demasiado longe para poder ajudar-me.
Perguntei a mim mesmo por que motivo a urina de macaco já não mantinha os felinos afastados. Talvez houvesse sido parcialmente raspada, durante a minha luta com o velho conquistador, dentro do templo. Ou talvez houvesse sido limpa, quando eu havia caído ao chão, depois de Hernando me haver alvejado.
Fosse como fosse, pensei, este era o fim.
O primeiro rapa distendeu o corpo, preparando-se para atacar. E, então...
A primeira gota de água caiu sobre o alto da minha cabeça, com grande ruído. Foi seguida de perto por uma segunda gota, depois por uma terceira, depois por uma quarta.
E, então, como se fosse uma dádiva do próprio Deus, os céus desabaram e a chuva começou a cair abundantemente.
Oh, como chovia! Eram verdadeiros lençóis de água, espessos lençóis de água, enormes gotas de água que martelavam na torre de rocha, com uma força tremenda, desabando sobre a minha cabeça, desabando sobre o ídolo.
E, nesse momento, graças a Deus, o ídolo começou a cantar.
A sua canção acalmou os felinos instantaneamente.
Com as cabeças inclinadas para o lado, em resposta à sua melodiosa canção, ficaram a mirar o ídolo gotejante nas minhas mãos.
Renco, Lena e os três guerreiros aproximaram-se do local onde eu me encontrava, protegendo as tochas da chuva e contornando o bando de rapas em transe.
Reparei que Renco trazia na mão o falso ídolo de Bassario. - Obrigado, Alberto, - disse ele, tirando das minhas mãos o ídolo cantante. - Agora, acho que tenho que o levar.
Ao lado dele, Lena sorria-me e a sua bela pele cor de azeitona brilhava devido à chuva.
- Então, derrotaste o grande comedor de ouro e salvaste o nosso ídolo, - disse ela. - Haverá alguma coisa que não sejas capaz de fazer, meu pequeno grande herói?
Enquanto dizia estas palavras, Lena avançou de repente e beijou-me docemente nos lábios. O meu coração quase deixou de bater, no instante em que os lábios dela se colaram firmemente aos meus. Os joelhos fraquejaram-me. Tão delicioso era o seu contato que quase caí.
De um ponto qualquer, atrás de mim, uma voz disse: - Vamos lá, monge. Pensava que isso não era permitido aos homens como você.
Voltei-me e deparei com Bassario, parado nos degraus de pedra, por trás de mim, com o arco ao ombro e de rosto aberto num grande sorriso.
- Reservamo-nos o direito de abrir algumas exceções, - disse eu.
Bassario soltou uma gargalhada. Renco voltou-se para ele.
- Obrigado por teres voltado, para nos ajudar, Bassario. As tuas setas salvaram as nossas vidas. O que foi que lhe levou a regressar? Bassario encolheu os ombros.
- Quando cheguei à queda de água, ao fundo do quenko, vi aproximarem-se os comedores de ouro, vindos do outro lado do rio. Então, pensei que, se por milagre você sobrevivesse a tudo isto, as pessoas iriam cantar canções acerca de você. Decidi que queria fazer parte dessas canções. De ser recordado por outra coisa que não fosse por haver desgraçado o nome da minha família. E, ao mesmo tempo, queria recuperar a honra desse nome.
- Foste bem sucedido nos teus dois intentos, - disse Renco. - Foste mesmo. Agora, posso pedir-te que sejas indulgente, mais uma vez, e que me faças um último favor?
Enquanto falava, Renco, segurando uma tocha com um dos braços e os dois ídolos com o outro, havia começado a afastar-se de nós e, por entre a chuva, encaminhava-se para o portal. De caminho, apanhou a bexiga do lhama do lugar onde esta havia caído durante a batalha e começou a enchê-la com água da chuva.
Os felinos começaram a segui-lo, ou melhor, foram atrás do ídolo cantante.
- Depois de eu estar dentro do templo, - disse Renco, sem parar de caminhar, - quero que todos vós fechem a laje. Eu olhei para Renco e, em seguida, para os três guerreiros incas sobreviventes, que se encontravam a meu lado.
- Que vais fazer? - Inquiri.
- Vou assegurar-me de que ninguém apanha este ídolo, - retorquiu Renco. - Vou servir-me dele para atrair os rapas para dentro do templo. Então, depois de entrarem todos, quero que volteis a colocar a laje sobre o portal.
- Mas... - Confia em mim, Alberto, disse ele, numa voz calma, ao mesmo tempo que avançava lentamente para o portal, com o bando de rapas atrás de si. Havemos de voltar a encontrar-nos, juro.
E, dito isto, Renco entrou pela boca aberta do templo. Os rapas entraram todos, seguindo ele, indiferentes à chuva que continuava a cair.
Lena, Bassario, os três guerreiros e eu encaminhamo-nos para a laje.
Renco parou à entrada do templo e lançou-me um derradeiro olhar.
Sorrindo tristemente, disse: - Cuida bem de ti, meu amigo.
E, em seguida, desapareceu no meio da escuridão, entre a laje e o grande portal de pedra.
Os rapas foram atrás dele, entrando no templo, um após outro. Quando o último rapa desapareceu para lá do portal, Bassario disse: - Vamos lá, empurrar!
Encostamo-nos os seis contra a laje maciça, empurrando-a com todas as nossas forças.
A grande laje roçou ruidosamente contra o chão de pedra. Felizmente não era preciso empurrá-la numa grande extensão, mas somente alguns passos, de outro modo poderíamos não ser capazes de o fazer, sendo apenas seis pessoas.
Mas Bassario e os guerreiros incas eram fortes. E Lena e eu empurramos com todas as nossas forças. Assim, lentamente, muito lentamente, a laje começou a cobrir o portal quadrado.
Enquanto íamos selando com aquela enorme pedra, ouvia, vinda lá de dentro, a canção do ídolo, cada vez mais fraca. Então, abruptamente, a laje selou por completo o portal e, ao fazê-lo, abafou por completo a canção do ídolo. Com o cessar daquela canção, uma grande tristeza desabou sobre mim, pois sabia que não voltaria a ver o meu bom amigo Renco.
Antes de abandonar aquela assustadora torre de pedra, eu tinha uma última tarefa a cumprir.
Tirei uma adaga de um dos conquistadores caídos e comecei a gravar uma mensagem, na superfície da enorme laje. Gravei uma advertência para quem alguma vez pensasse em voltar a abrir aquele templo.
Escrevi:
No entrare absoluto.
Muerte asomarse dentro.
AS
Não entrar a preço algum. A morte espreita lá dentro.
Passaram-se muitos anos antes que estes acontecimentos se tornassem conhecidos. Agora, eu sou um velho gasto e frágil, sentado a uma mesa, num mosteiro, escrevendo à luz das velas. À minha volta, em todas as direções, estendem-se montanhas cobertas de neve, as montanhas dos Pirineus.
Depois de Renco haver entrado no templo, com os dois ídolos e os rapas, Bassario, Lena e eu regressamos a Vilcafor.
Não tardou muito que se espalhassem pelo império as novas dos nossos feitos. Falava-se da morte de Hernando e dizia-se que o ídolo repousava no interior de um templo misterioso, à guarda de um bando de rapas mortíferos.
Como era de esperar, o governo colonial espanhol engendrou uma falsa história sobre a morte de Hernando, o irmão do Governador. Diziam que ele havia morrido honrosamente às mãos de uma tribo de nativos desconhecida, enquanto, com toda a coragem, procedia ao reconhecimento de um rio da selva, não registrado nos mapas. Se, pelo menos, os meus compatriotas soubessem a verdade...
Também fiquei sabendo que os incas haviam realmente composto canções acerca da nossa aventura e - sim, é verdade – que estas mencionavam o nome de Bassario, continuando tais baladas a ser cantadas mesmo depois de os Espanhóis haverem conquistado as suas terras.
Os comedores de ouro, diziam, podiam apoderar-se das suas terras, queimar as suas casas, torturar e matar o povo.
Mas não podiam apoderar-se do seu espírito.
Até hoje, não sei o que fez Renco, dentro do templo, com os dois ídolos.
Somente posso supor, que na sua sabedoria, ele previu os rumores que se espalhariam após a nossa vitória sobre Hernando. Tal como Sólon, ele sabia que, ao ouvirem falar do ídolo guardado no interior do templo, as pessoas iriam procurá-lo.
Imagino que ele tenha colocado o falso ídolo em qualquer parte, mais perto da entrada do templo, para que, se este fosse aberto por alguém que andasse em busca do ídolo, esse alguém encontrasse primeiro o falso ídolo.
Mas isto é somente o que eu penso. Não tenho certezas. Nunca mais o vi.
Pela minha parte, não fui capaz de continuar a viver no horror que era a Nova Espanha e decidi regressar à Europa.
E, assim, após me haver despedido da bela Lena e do nobre Bassario, e com a ajuda de vários guias incas, segui pelos caminhos que atravessavam as montanhas da Nova Espanha, em direção ao norte.
Caminhei, caminhei, percorrendo selvas, montanhas e desertos, até que, por fim, cheguei à terra dos Astecas, a terra que Cortez havia conquistado alguns anos antes, em nome da Espanha.
Ali, por meio de subornos, consegui embarcar a bordo de um navio mercante, carregado de ouro roubado e cujo destino era a Europa.
Cheguei a Barcelona, alguns meses mais tarde, e dali segui para este mosteiro do alto dos Pirineus, um local bem distante do mundo do Rei e dos seus conquistadores sedentos de sangue, e foi aqui que envelheci, sonhando todas as noites com as minhas aventuras na Nova Espanha e desejando, a cada momento, poder ter passado somente mais um dia com o meu bom amigo Renco.
Race virou a página.
Era tudo. O manuscrito acabava ali.
Olhou em volta, para a cabine do Goose. Pelo pára-brisas do pequeno hidroavião, Race viu os picos aguçados dos Andes, que se erguiam à sua frente.
Estavam quase chegando a Vilcafor.
Race suspirou de tristeza, ao pensar na história que tinha acabado de ler. Pensou na valentia de Alberto Santiago, no sacrifício de Renco e na amizade que se tinha estabelecido entre aquelas duas personagens. Também estava pensando nos dois ídolos, que tinham sido colocados dentro do templo.
Race ponderou em tudo aquilo, durante algum tempo. Havia qualquer coisa que não batia certo.
Qualquer coisa que tinha a ver com a forma como o manuscrito acabava tão de repente, tão abruptamente e, já agora que pensava nisso, havia também qualquer coisa que ele tinha visto no dia anterior, quando Lauren fizera o ensaio de ressonância nucleótida para determinar a localização do ídolo verdadeiro de tírium. Qualquer coisa acerca do resultado do ensaio que não batia certo.
Pensar na expedição de Lauren e Frank Nash fez surgir no espírito de Race uma série de questões.
Nash não era da DARPA. Na verdade, chefiava uma unidade do Exército, que tentava levar a melhor à verdadeira equipe da Supernova, uma equipe da Marinha, na procura do ídolo de tírium. E tinha enganado Race para o levar a participar na missão. Race afastou aquele pensamento.
Era preciso pensar na maneira como iria lidar com Nash, quando chegassem a Vilcafor. Deveria confrontá-lo com a verdade ou seria melhor ficar calado e não deixar Nash perceber aquilo que sabia?
Fosse qual fosse a escolha, era preciso decidir depressa porque, mal tinha acabado de ler o manuscrito, o hidroavião inclinara-se suavemente, de nariz para baixo.
Estavam começando a descer. Estavam chegando a Vilcafor.
O agente especial John-Paul Demonaco deslocava-se cuidadosamente pela cripta, examinando o cenário do crime.
Depois do comandante da Marinha, Aaronson, ter saído, para dar luz verde para o assalto às instalações suspeitas dos Combatentes da Liberdade, o outro investigador da Marinha, o capitão Tom Mitchell, tinha pedido a Demonaco que desse uma olhadela ao cenário do crime. Talvez ele descobrisse alguma coisa que lhes tivesse passado despercebida.
- Aaronson está enganado, não está? - perguntou Mitchell, enquanto os dois andavam de um lado para o outro, na cripta.
- O que é que quer dizer com isso? - perguntou, por seu turno, Demonaco, enquanto observava as instalações de alta segurança do laboratório.
- Não foram os Combatentes da Liberdade que fizeram isto - disse Mitchell.
- Pois não... não foram. - Então, quem foi?
Demonaco ficou calado, durante algum tempo.
Quando, finalmente, disse alguma coisa, não respondeu à pergunta.
- Diga-me mais coisas acerca do dispositivo que a Marinha está construindo aqui. A tal Supernova.
Mitchell respirou fundo.
-Vou dizer-lhe aquilo que eu sei. A Supernova é uma arma termonuclear de quarta geração. Em vez de dividir os átomos de elementos radioativos terrestres como o urânio e o plutônio, gera uma mega-explosão, dividindo uma massa subcrítica de um elemento não terrestre chamado tírium.
“A explosão causada pela fissão de um átomo de tírium é tão poderosa que poderia fazer ir pelos ares cerca de um terço da massa da Terra. Em termos simples, a Supernova é o primeiro dispositivo construído pelo homem, que é capaz de destruir o planeta onde vivemos."
- Disse que esse tal elemento, o tírium, não é terrestre - observou Demonaco. - Então, se não é terrestre, de onde é que vem?
- De impactos de asteróides, da queda de meteoritos. Pedaços de rochas que sobreviveram à passagem pela atmosfera da Terra. Mas, tanto quanto sabemos, ainda ninguem encontrou um exemplar de tírium.
- Acho que vai acabar por descobrir que alguém encontrou - disse Demonaco. - E talvez eu saiba quem.
Demonaco explicou.
- Nos últimos seis meses, capitão, a minha unidade do Bureau tem tomado conhecimento de rumores acerca de uma guerra entre grupos de milicianos. Entre os Combatentes da Liberdade do Oklahoma e outro grupo terrorista chamado Exército Republicano do Texas.
- Não foi o Exército Republicano do Texas que esfolou aqueles guardas florestais, no Montana?
- São os principais suspeitos - respondeu Demonaco. - Dissemos aos jornalistas que os dois Rangers tinham esbarrado com um grupo de montanheses que andava praticando caça furtiva mas aquilo que realmente pensamos é que eles deram com um campo de treinos secreto dos Texanos.
- Um campo de treinos?
- Hum, hum. Os Texanos são um grupo muito maior do que os Combatentes da Liberdade. E são muito melhores em combate.
A verdade é que os Texanos não aceitam ninguém que não tenha sido membro de um dos ramos das Forças Armadas. Também são muito bem organizados, para um grupo terrorista. Parecem mais uma unidade militar de elite do que um grupo de caçadores de fim-de-semana.
Têm uma cadeia de comando rigidamente definida, com penalizações muito severas para qualquer membro que não respeite a hierarquia. Um sistema que tem sido atribuído à influência do líder deles, Earl Bittiker, um ex-SEAL da Marinha, caído em desgraça e demitido, em 1986, por ter agredido sexualmente uma mulher- tenente, que lhe tinha dado uma ordem de que ele não gostou. Violou-a, vaginalmente e oralmente.
Mitchell arregalou os olhos.
- Segundo parece, o Bittiker foi um dos melhores homens dos SEAL: uma máquina de matar, totalmente imune ao remorso. Mas, como muitos desses tipos, faltam-lhe algumas virtudes das pessoas civilizadas. Aparentemente, em 1983, três anos antes da história da violação, o Bittiker tinha tido um diagnóstico clínico de psicótico mas, apesar disso, a Marinha deixou que ele continuasse ao serviço. Acharam que isso não tinha importância, desde que a agressividade dele tivesse por alvo os nossos inimigos. Uma grande lógica.
Depois do estupro, o Bittiker foi afastado da Marinha e condenado a oito anos em Leavenworth. Quando saiu, em 1994, fundou o Exército Republicano do Texas, com outros militares caídos em desgraça, que tinha conhecido na prisão.
- Os Texanos estão sempre em treinos - prosseguiu Demonaco. - No deserto, nas terras áridas do Texas e de Montana e, de vez em quando, nas montanhas do Oregon. Acham que têm que estar bem preparados para combater em toda a espécie de terrenos, para quando chegar a altura de lançar uma guerra em grande escala contra o governo dos Estados Unidos ou contra o governo e as Nações Unidas em conjunto, querem estar preparados para lutar em todos os terrenos.
O pior é que também têm dinheiro. Depois do Governo acabou com um contrato de petróleo qualquer, o magnata do petróleo Stanford Cole, este deixou a Bittiker e aos Texanos qualquer coisa na ordem dos quarenta e dois milhões de dólares e um bilhete que dizia: «Dê cabo deles.» Por isso, não é de espantar o fato de Bittiker e os seus capangas serem frequentemente vistos nas «feiras» do mercado negro de armas do Médio Oriente e de África. Só no ano passado, eles compraram oito helicópteros Black Hawk, dos excedentes do Governo australiano.
- Meu Deus - disse Mitchell.
- Mas - continuou Demonaco - isso não os impede de, de vez em quando, roubarem algum material. Pensamos, por exemplo, embora não possamos prová-lo, que foram os Texanos os responsáveis pelo roubo de um tanque Abrams M-1A1, que...
- Eles roubaram um tanque? - perguntou Mitchell, incrédulo.
- De um reboque, quando estava a ser transportado da fábrica da Chrysler, em Detroit, para o Batalhão de Blindados e Carros de Combate de Warren, Michigan.
- Porque é que suspeitam deles? - perguntou Mitchell.
- Porque, há dois anos, os Texanos compraram um velho avião cargueiro, um Antonov An-22, num mercado de armas, no Irã. o An-22 é um avião grande como o diabo, o equivalente russo das nossas maiores aeronaves de carga, o C-5 Galaxy e o C-17 Globemaster. Ora, quem quiser um avião de carga normal compra um An- 12, que é mais pequeno, ou um Hércules C-130. E não um An-22. Só é preciso um An-22 quando se quer transportar qualquer coisa muito grande. Qualquer coisa como um tanque de 67 toneladas.
Demonaco fez uma pausa e abanou a cabeça.
- Mas, neste momento, esta é a menor das nossas preocupações.
- Porquê?
- Porque, ultimamente, temos ouvido alguns boatos realmente preocupantes acerca dos Texanos. Parece que eles encontraram a sua alma gêmea na seita Aum Shinrikyo, do Japão, o grupo que lançou o gás sarin no metrô de Tóquio, em 1995. Depois do atentado de Tóquio, alguns membros da seita vieram para a América e infiltraram-se em alguns dos nossos grupos de milícias. Temos razões para acreditar que vários membros da Aum Shinrlkyo se juntaram aos Texanos.
- Isso representa algum problema para nós? - perguntou Mitchell.
- Quer dizer que estamos com um grande problema.
- Porquê?
- Porque a seita Aum Shinnkyo é uma seita do dia do Juízo Final. O único objetivo deles, ou melhor, a única razão da sua existência, é chegar ao fim do mundo. Só sabemos do incidente do metrô de Tóquio porque as televisões filmaram aquilo. Sabia que, em começos de 1994, a Aum Shlnrikyo conseguiu apoderar-se de um silo de mísseis chinês, situado num local remoto? Pouco faltou para que tivessem lançado trinta mísseis nucleares táticos contra os Estados Unidos, numa tentativa de dar início a uma guerra termonuclear em grande escala.
- Não, não sabia - disse Mitchell.
- Até agora, nunca tivemos nenhuma verdadeira seita do dia do juízo Final, na América. Temos grupos anti-governamentais violentos, grupos anti-ONU, anti- aborto, anti-semitas e anti-negros. Mas nunca tivemos nenhum grupo cuja única ambição fosse provocar a destruição em massa da vida no planeta.
- Mas, se Earl Bittiker e os Texanos tiverem decidido adotar uma filosofia do dia do Juízo Final, então estamos perante um grande problema. Porque, nesse caso, vamos ter por aí à solta, com um desejo pela morte, um dos grupos paramilitares mais perigosos da América.
- Está bem - disse Mitchell. - Mas o que é que isso tem a ver com este roubo?
- É simples - respondeu Demonaco. - o grupo que levou a cabo este roubo é um esquadrão altamente treinado, altamente qualificado, de tropas especiais. As táticas que eles utilizaram são táticas das Forças Especiais, táticas em grande escala como as dos SEAL, que apontam para uma organização ao estilo do Exército Republicano do Texas e não dos Combatentes da Liberdade.
- Certo.
- Mas quem quer que seja que tenha feito isto deixou-nos com uma única bala de tungstênio, que aponta para os Combatentes da Liberdade. Se foram realmente os Texanos quem fez isto, não acha que fazia sentido desviar as nossas atenções, acusando os inimigos deles, os Combatentes da Liberdade do Oklahoma?
- Sim...
- Mas o que mais me assusta - disse Demonaco - é aquilo de que eles andam atrás. Porque, se os Texanos passaram realmente a ter tendências do dia do Juízo Final, a sua Supernova é exatamente o tipo de coisa de que eles andam à procura.
- Outra coisa em que temos de pensar - prosseguiu Demonaco - é na forma como eles entraram aqui. Tiveram que contar com alguém cá de dentro, alguém que sabia os códigos e que podia arranjar cartões de passe e cartões para as fechaduras hidráulicas. Tem uma lista de todas as pessoas envolvidas no projeto?
Mitchell tirou do bolso uma folha de papel, impressa por computador, e entregou-a a Demonaco.
- Isto é a lista de todas as pessoas, da Marinha e da DARPA, que trabalham no projeto Supernova.
Demonaco olhou para a lista.
Mitchell disse:
- Investigamo-los a todos. Estão todos limpos, incluindo o Henry Norton, o tipo cujo cartão de segurança e as senhas foram utilizados na entrada.
- Onde estava ele na noite do assalto? - perguntou Demonaco.
- No necrotério de Arlington - respondeu Mitchell, com toda a simplicidade. - Os relatórios dos paramédicos confirmam que às 5 e 36 da manhã do dia do assalto, exatamente quinze minutos antes de os ladrões terem assaltado o edifício, Henry Norton e a sua mulher, Sarah, foram encontrados mortos a tiro na casa de ambos, em Arlington.
- 5 e 36 - repetiu Demonaco. - Foram rápidos, depois de os terem abatido. Sabiam que o nome dele ia ser comunicado pelo hospital.
Demonaco e Mitchell sabiam que era habitual os funcionários governamentais de alto nível terem sinalizações eletrônicas associadas aos seus nomes, para o caso de darem inesperadamente entrada em qualquer hospital. Mal o nome de uma pessoa importante era introduzido nos registos do hospital, aparecia uma bandeira na tela, indicando ao médico responsável que deveria telefonar para a agência governamental relevante.
- O Norton tinha alguma ligação às milícias armadas? Perguntou Demonaco.
- Nenhuma. Esteve sempre na Marinha. Era especialista em sistemas de apoio técnico: computadores, sistemas de comunicações, computadores de navegação. Tem uma folha de serviços exemplar. o homem parecia um escoteiro. O homem com menos possibilidades de trair o país.
- E os outros?
- Nada. Nenhum deles tem qualquer ligação a organizações paramilitares. Todos os membros da equipe tiveram que passar por uma investigação global de segurança, antes de serem admitidos para trabalhar no projeto. Estão limpos. Pensa-se que nenhum deles conhecia sequer algum membro dos grupos de milícia.
- Mas alguém conhece - contrapôs Demonaco. - Descubra quem é que trabalhava mais de perto com Norton, alguém que pudesse estar por perto, quando ele introduzia as senhas, todos os dias. Eu vou fazer alguns telefonemas para o meu departamento, para saber em que é que os Texanos têm andado metidos ultimamente.
O Goose levantou um jato de espuma, ao tocar na superfície do Rio Alto Purus, não muito longe do fundo da queda de água que escorria do planalto.
Já tinha anoitecido e, preocupados com a presença dos rapas na aldeia, Race e os outros tinham decidido aterrar o hidroavião junto à queda de água e entrar em Vilcafor pelo quenko.
Depois de Doogie ter estacionado o Goose junto à margem do rio, por baixo de um maciço denso de árvores, os quatro desembarcaram. Deixaram Uli no avião, inconsciente, atordoado por uma dose de metadona que tinham encontrado num estojo de primeiros socorros, na retaguarda do aparelho.
Contudo, antes de enveredarem pela trilha por trás da queda de água, Race obrigou-os a fazer uma coisa bastante invulgar. Utilizando duas caixas de madeira que tinham encontrado dentro do Goose e algumas barras energéticas que Van Lewen e Doogie tinham consigo, montaram umas armadilhas primitivas, para apanhar os macacos que saltavam de ramo em ramo, lá em cima, por entre as árvores.
Dez minutos mais tarde, um par de primatas tinha caído nas duas caixas de madeira. Os dois macacos guincharam, enraivecidos, enquanto Van Lewen e Doogie os levavam pela trilha, por trás da queda de água, até à entrada do quenko.
Dez minutos mais tarde, Race subia para a cidadela de Vilcafor. Nash, Lauren, Copeland, Gaby Lopez e Johann Krauss encontravam-se a um canto da cidadela e Lauren estava tentando estabelecer contato, via rádio, com Van Lewen ou com Doogie.
Voltaram-se todos ao mesmo tempo, quando Race saiu do quenko, com o ídolo falso na mão.
Renée, Van Lewen e Doogie vinham logo atrás dele. Estavam todos cobertos de lama e de porcaria. Race ainda tinha na cara algumas gotas secas de sangue de Heiririch Anistaze.
Nash viu imediatamente o ídolo, nas mãos de Race.
- Conseguiu! - exclamou, correndo para Race e arrancando-lhe o ídolo.
Mirava o ídolo, com um ar embevecido.
Race ficou olhando para ele friamente e, nesse instante, decidiu que não ia contar a Nash aquilo que sabia acerca dele. Ia, antes, ficar à espera, para ver o que faria Nash, a partir daquela altura. Talvez ainda conseguissem pegar o ídolo verdadeiro, inclusive até com a ajuda de Race, mas este estava decidido a assegurar-se de que Nash não iria ficar com ele.
- É lindo - disse Nash, em tom sonhador. É falso - informou Race, sem delongas. - O quê?
É falso. Não é feito de tírium. Se voltar a ligar o seu gerador de imagens por ressonancia nucleótida, vai descobrir que ainda há uma fonte de tírium nesta zona. Mas este não é o verdadeiro ídolo.
- Mas... como?
- Depois de ter fugido de Cuzco, Renco Capac pediu ao criminoso Bassario que esculpisse uma réplica exata do Espírito do Povo. Renco planejava render-se a Hernando e entregar-lhe o falso ídolo. Sabia que Hernando o mataria mas também sabia que, depois de se ter apoderado do ídolo, Hernando nunca iria suspeitar que este pudesse ser falso.
- Mas aconteceu que Renco e Alberto Santiago mataram Hernando e os seus homens e, segundo diz o manuscrito, Renco acabou por esconder os dois ídolos dentro do templo.
Nash fez girar o ídolo nas mãos e viu, pela primeira vez, a cavidade cilíndrica na base deste. Ao vê-la olhou para Race. - Então, o ídolo verdadeiro ainda está dentro do templo? - É o que Santiago diz, no manuscrito - respondeu Race.
- Mas?...
- Mas eu não acredito nele.
- Não acredita nele? Porquê?
- O seu aparelho de GIRN ainda funciona? - perguntou Race a Lauren.
- Funciona.
- Liga-o e eu mostro a vocês o que quero dizer.
Subiram todos para a esplanada da cidadela, onde Lauren começou a montar o gerador de imagens por ressonancia nucleótida.
Enquanto ela se dedicava à tarefa de montar o aparelho, Race olhou lá para baixo, para a aldeia. Estava escuro e continuava a cair uma chuva ligeira. Race avistou a sombra fugaz de um grande felino, que o espreitava detrás de uma das construções menores da aldeia.
Ao fim de alguns minutos, Lauren tinha o GIRN pronto. Apertou um botão e a haste prateada montada no topo do console começou a rodar lentamente.
Trinta segundos depois, ouviu-se um apito estridente e a haste parou de repente. Mas não estava apontando para o ídolo que Nash tinha na mão. Apontava para longe de Nash, para as montanhas.
- Estou obtendo uma leitura - anunciou Lauren. - Um sinal forte, de uma ressonância de frequência muito alta.
- Quais são as coordenadas? - perguntou Race.
- Ângulo de direção 270 graus. Ângulo vertical 29 graus e 58 minutos. Amplitude 793 metros, A mesma coisa que da outra vez, se bem me lembro - disse Lauren, olhando para Race.
- E lembras-te bem - concordou este. - Também deves lembrar-te que pensamos que era dentro do templo.
- Sim... - disse Lauren.
Race fitou-a com intensidade, mais intensamente do que era habitual. Estava perguntando a si próprio se ela partilharia da decepção de Nash e concluiu que talvez partilhasse.
- Lembras-te do motivo por que pensamos que era dentro do templo?
Lauren franziu o sobrolho.
- Lembro-me de que subimos à cratera e encontramos. Então, achamos que a localização do templo coincidia com a trajetória do GIRN. Logo, o ídolo estava dentro do templo.
- Foi isso - anuiu Race. - Foi mesmo isso que aconteceu. E foi precisamente aí que nós nos enganamos.
Voltaram todos para dentro da cidadela.
Race tirou uma caneta e uma folha de papel do interior do ATV, que continuava estacionado contra a entrada da cidadela. - Copeland - disse Race, dirigindo-se ao cientista alto e destituído de senso de humor. - Acha que é capaz de encontrar uma máquina de calcular normal, no meio de todas essas maquinetas de alta tecnologia que vocês trouxeram?
Copeland descobriu uma dentro de um dos contentores americanos e entregou-lhe.
- Muito bem - disse Race, deixando que os outros se reunissem à sua volta, para verem o que ele fazia.
Desenhou uma imagem na folha de papel.
- OK - prosseguiu. - Isto é Vilcafor e o planalto que fica a ocidente, visto de perfil. OK?
- OK - concordou Lauren.
Race traçou algumas linhas que atravessavam o desenho:
- E isto é o que nós deduzimos, ontem, a partir da leitura que tínhamos obtido do gerador de imagens por ressonância nucleótida: 793 metros até ao ídolo. Ângulo de inclinação 29 graus e 58 minutos. Mas eu vou usar os 30 graus, para ser mais simples. A questão é que, quando subimos a cratera e encontramos, pensamos de imediato que era que condizia com a leitura. Certo?
- Certo... - concordou Nash.
- Pois estávamos enganados - disse Race. - Lembram-se de que, quando subimos por aquela trilha em espiral à volta da torre de pedra, a Lauren fez uma leitura com a bússola digital?
- Vagamente - concedeu Nash.
- Mas eu lembro-me. Quando estávamos ao nível da torre de pedra, parados na extremidade exterior da ponte de corda, a Lauren disse que tínhamos percorrido exatamente 632 metros, na horizontal, desde a aldeia.
Acrescentou mais uma linha ao esboço e mudou a indicação «793 m» marcada sobre a hipotenusa, o lado maior do triângulo, para «x m».
- Alguém se lembra de ter estudado trigonometria, na escola? - Perguntou. Os físicos teóricos reunidos à sua volta, na cidadela, anuíram com expressões envergonhadas. - Claro que isto não é física nuclear - acrescentou Race. - Mas sempre tem alguma utilidade.
- Ah, estou vendo - disse Doogie, do meio da pequena multidão reunida em torno de Race.
Era óbvio que os outros não estavam vendo nada. Race disse:
- Recorrendo à trigonometria, se soubermos qual é um dos outros ângulos de um triângulo que tem um ângulo reto e sabendo qual o comprimento de um dos seus lados, podemos determinar os comprimentos dos outros dois lados, utilizando os conceitos de senos, cossenos e tangentes.
- Lembram-se? O seno de um ângulo é igual ao comprimento do lado oposto a esse ângulo, a dividir pelo comprimento da hipotenusa. O cosseno é igual ao comprimento do lado adjacente ao ângulo, a dividir pela hipotenusa.
- No exemplo que temos aqui, para calcular o valor de x, a distância que nos separa do templo, vamos utilizar o cosseno de 30. Dito isto, Race escreveu:
cos 30 = 632 X
- Portanto - acrescentou:
X = 632 cos30
Digitou alguns números na calculadora que Copeland lhe tinha entregado.
- Ora, segundo esta calculadora, o cosseno de 30 é 0,866. Portanto, X igual a 632 dividindo por 0,866. E, cá está... 729.
Race corrigiu o desenho em conformidade com os cálculos, escrevendo febrilmente. Lauren olhava para ele, espantada. Renée limitava-se a observar, atenta.
- Alguém está vendo qual é o problema? Ninguém se pronunciou.
Race emendou o desenho uma última vez, rematando-o com um X floreado.
- Cometemos um erro - disse. - Partimos do princípio de que, por causa da altitude, ficava a 793 metros da aldeia e, que, portanto, o ídolo estava lá dentro. Era um bom palpite mas estava errado. O verdadeiro ídolo não está dentro do templo. Está mais acima, no planalto. - Mas onde? - perguntou Nash.
- Imagino que - disse Race - o ídolo se encontra na aldeia da tribo de nativos que construíram a ponte de corda da torre de pedra. A mesma tribo de nativos que atacou os nossos amigos, alemães, quando eles se preparavam para abrir.
- M as, e o manuscrito? - observou Nash. - Você não disse que os dois ídolos estavam dentro do templo?
- O manuscrito não conta a história toda - respondeu Race. - Calculo que Alberto Santiago adulterou o final, para que, mais tarde, quem viesse a ler o manuscrito não ficasse sabendo qual o paradeiro do ídolo.
Race agitou no ar a folha de papel com o desenho que fizera. - É lá que está o ídolo. É o que diz o GIRN e, também, a matemática.
Nash mordeu os lábios, pensativo. Por fim, disse:
- Muito bem. Vamos buscá-lo.
Os dois macacos que Race e os outros tinham capturado junto ao rio, acabaram por os presentear, alegremente - ou talvez, iradamente - com um bom fornecimento de urina. Urina que os dois primatas guinchadores tinham vertido nos sacos de plástico com que Race forrara as caixas onde eles se encontravam.
Para falar verdade, tresandava a urina de macaco. O cheiro forte, o cheiro de amônia, inundava o interior da cidadela. Não era de espantar que os rapas detestassem aquilo, pensou Race, enquanto ele e os outros cobriam os corpos com aquela urina fedorenta, Depois de terem acabado, Van Lewen distribuiu as armas. Como eram os únicos Boinas Verdes que restavam - tanto quanto sabiam, Buzz Cochrane continuava lá em cima, na torre de pedra - ele e Doogie ficaram com as duas G-11. Nash, Race e Renée tiveram, cada um, direito a uma M-16, com arpões.
Race, que continuava a usar o colete preto à prova de bala dos nazis e o seu boné azul de basebol, pendurou o arpão no cinto. Copeland e Lauren receberam pistolas automáticas SIG-Sauer P228. Krauss e Lopez, meros cientistas, iam desarmados.
Depois de todos estarem prontos, Van Lewen saltou da porta da cidadela para o ATV. Depois, dirigiu-se para a traseira do veículo todo-terreno e abriu a escotilha.
A primeira coisa a emergir foi a sua G-11.
Depois, lentamente, Van Lewen espreitou pela escotilha aberta e observou a área. Os seus olhos esbugalharam-se.
O grande veículo de oito rodas estava cercado de rapas.
As caudas dos felinos oscilavam de um lado para o outro. Fitaram-no com os seus olhos penetrantes, frios, duros e amarelos. Van Lewen contou-os: eram doze, ali parados, no meio da rua, olhando para ele.
Depois, de repente, o rapa mais próximo fungou, detectou o cheiro da urina e afastou-se imediatamente do ATV Um após outro, os restantes rapas fizeram o mesmo, distanciando-se do veículo blindado e formando um círculo amplo à volta deste.
Van Lewen saiu para a rua, de arma levantada. Um a um, os outros foram atrás dele.
Como todos os outros, Race avançou lentamente, com cautela, de olhos postos nos rapas e com o dedo encostado no gatilho da M-16.
Era uma sensação realmente bizarra, uma espécie de anti-climax. Homens armados com espingardas e rapas armados apenas da sua agressividade natural. Apesar de todas as espingardas e pistolas, Race tinha a certeza de que os rapas dariam facilmente cabo deles, se alguém se atrevesse a disparar um tiro.
Mas os felinos não atacaram.
Era como se aqueles seres humanos estivessem protegidos por uma parede invisível, uma parede que os rapas se recusavam simplesmente a atravessar. Limitavam-se a seguir Race e os outros a alguma distância, enquanto eles se dirigiam para o caminho do rio.
Eram enormes, Santo Deus, pensou Race, enquanto avançava por entre as fileiras daqueles impressionantes felinos pretos.
A última vez que os tinha visto de perto, fora do outro lado dos vidros do Humvee. Mas, naquele momento, eles estavam ali, à sua volta, sem janelas a separá-los, e pareciam duas vezes maiores. Podia ouvir-lhes a respiração. Era exatamente como Alberto Santiago tinha descrito: um resfolegar profundo, que lhes saía do peito, como se fossem cavalos. O som de animais cheios de força e vigor.
- Porque é que não os matamos? - perguntou Copeland. - Eu não seria tão precipitado - respondeu Van Lewen.
- Acho que, neste momento, a repulsa que sentem pela urina de macaco ultrapassa o desejo que têm de nos matar. Julgo que, se abrirmos fogo contra eles, o desejo de sobreviver irá ultrapassar a repulsa pela urina de macaco.
Os oito seguiram pelo caminho do rio e entraram na fenda do planalto, sempre com os rapas atrás deles, a alguma distância. Saíram da fenda no sopé da cratera e viram o lago pouco profundo que se estendia aos seus pés e que tinha no centro a torre de pedra, recortando-se contra o céu, e a queda de água, estreita mas incrivelmente comprida, brotando do extremo sudoeste do desfiladeiro.
Excepcionalmente, não estava chovendo e a luz forte da lua cheia batia nas paredes da cratera, cobrindo-a de uma tonalidade azulada quase mística.
Com Van Lewen à frente, subiram a trilha em espiral, que subia em direção ao céu escuro.
Os rapas foram atrás deles. Com aquelas cabeças pretas e com as suas orelhas pontiagudas pareciam demônios saídos do inferno, prontos a arrastar Race e os seus companheiros para as profundezas da terra, se estes dessem um passo que fosse em falso. Mas, entretanto, iam mantendo a distância, estabelecida pelo cheiro da urina de macaco.
Por fim, o grupo chegou aos dois contrafortes de pedra, aos quais, anteriormente, estivera presa a ponte de corda.
A ponte de corda propriamente dita estava caída ao longo da parede da torre, do outro lado da ravina, no local exato onde os nazis a tinham deixado.
Race olhou para o outro lado, para o cimo da torre. Não havia sinais de Buzz Cochrane.
Então, porém, em vez de passarem para o lado da torre, coisa que, aliás, naquele momento, não podiam fazer, Van Lewen conduziu-os mais para cima, pela trilha em espiral, em direção à orla da cratera.
A trilha contornava a queda de água e, depois, continuava por trás do lado sudoeste desta, antes de começar a subir violentamente e de chegar à orla da cratera.
Race subiu para a orla, olhou para ocidente e avistou os imponentes picos dos Andes, que se erguiam, lá ao fundo: sombras escuras e triangulares, recortadas contra o céu noturno. Para a esquerda, via-se o pequeno rio que alimentava a queda de água e, paralela a este, uma zona de floresta densa.
Diante de si e na direção da zona de vegetação densa, havia uma trilha estreita e lamacenta, aberta mais pelo uso constante do que por qualquer ação deliberada.
Mas foi o que se encontrava ao lado da trilhoa que atraiu de imediato a sua atenção: um par de estacas de madeira, enterradas na lama.
Uns crânios de aspecto tenebroso tinham sido espetados em cada um dos paus.
Race sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, quando a lanterna montada no cano da sua arma iluminou os crânios. Tinham um aspecto verdadeiramente assustador, amplificado pela enorme quantidade de sangue e pelo fato de, dos lados dos crânios, penderem pedaços de carne putrefata. Também tinham uma forma estranha, definitivamente não humana. Os dois crânios eram anormalmente alongados e tinham caninos aguçados, narinas em forma de triângulos invertidos e umas órbitas enormes.
Race engoliu em seco. Eram crânios de felinos. Eram crânios de rapas.
- U m sinal primitivo típico para indicar «mantenha-se à distância» - disse Krauss, olhando para os dois crânios espetados nas estacas.
- Não acho que se destinem a manter as pessoas afastadas disse Gaby Lopez, cheirando um dos crânios. - Foram ensopados em urina de macaco. São para manter afastados os felinos.
Van Lewen passou pelos crânios e avançou para a selva densa. Race e os outros seguiram-no, guiados pelos focos das respectivas lanternas.
Uns trinta metros depois de terem passado pelos crânios, Van Lewen e Race chegaram a um fosso largo, não muito diferente do que havia à volta de Vilcafor.
A grande diferença entre os dois fossos era que este não estava seco. Estava cheio de água, cuja superfície ficava um pouco mais de quatro metros abaixo da beira do fosso. Em segundo lugar, lá dentro, havia uma família de enormes jacarés.
- Ótimo - disse Race, olhando para os répteis, que vagueavam pelo fundo do fosso. - Outra vez jacarés.
- Mais um mecanismo de defesa? - perguntou Renée. - Os jacarés são os únicos animais da zona que têm, pelo menos, uma hipótese remota de derrotar um rapa numa luta, disse Krauss. - As tribos primitivas não têm espingardas nem arame farpado. Por isso, arranjam outros meios de manter afastados os inimigos felinos.
Do outro lado do fosso, completamente rodeada por ele, Race viu mais uma zona de vegetação, para lá da qual havia um pequeno conjunto de cabanas de sapê, aninhadas por baixo de um grupo de árvores altas.
Era uma aldeia.
A pequena extensão de vegetação existente entre a aldeia e o fosso, dava àquele agregado primitivo de cabanas um aspecto singular, quase místico. Presas a uns paus altos, ardiam algumas tochas, que banhavam a pequena aldeia de uma luminosidade alaranjada e fantasmagórica. Porém, à parte as tochas acesas, a aldeia parecia completamente deserta.
Um ramo estalou.
Race deu meia volta e viu o bando de rapas, parados no caminho lamacento, a uns dez metros de distância deles. Pelo visto, tinham conseguido passar pelos crânios ensopados em urina e, naquele momento, estavam a escassos metros de Race e dos outros, olhando, à espera.
Assente no chão, do lado da aldeia, havia uma estreita ponte de troncos. Preso à extremidade dessa ponte, de um modo bastante semelhante ao que tinham visto antes, lá em baixo, na ponte de corda da torre de pedra, via-se um pedaço de corda. Estendia-se sobre o fosso, até ao lado de Race, onde estava preso a uma estaca cravada no chão.
Van Lewen e Doogie puxaram a corda e manobraram a ponte de troncos, para a colocar em posição que cruzasse o fosso.
Em seguida, os oito atravessaram a ponte e chegaram à zona de vegetação que rodeava a aldeia.
Depois de todos terem passado a ponte, Van Lewen e Doogie voltaram a puxá-la rapidamente para o lado da aldeia, para que os rapas não pudessem segui-los até ali.
Saíram todos juntos do meio da vegetação e foram dar a uma ampla clareira, que devia ser a praça principal da aldeia. Apontaram as lanternas para as cabanas de sapê e para as árvores altas que rodeavam a clareira.
No extremo Norte da praça, havia uma gaiola de bambu, com as quatro arestas feitas de grossos troncos de árvore. Por trás da gaiola, escavado na parede de lama do fosso, havia um poço de um pouco mais de nove metros de altura e uns quatro metros e meio de profundidade. Uma espécie de grade de bambu separava o poço do fosso.
Mas aquilo que de mais fascinante havia para ver encontrava-se no centro da praça.
Era uma espécie de altar, uma estrutura larga, de madeira, escavada no tronco da maior árvore da aldeia.
Tinha vários escaninhos e pequenos nichos. Dentro dos nichos, Race viu uma série bastante espetacular de relíquias uma coroa de ouro, cravada de safiras, estátuas de ouro e prata, representando guerreiros e garotas incas, vários ídolos de pedra e um rubi gigantesco, quase do tamanho do punho de um homem.
Mesmo naquela semi-escuridão, o altar brilhava: os tesouros reluziam à luz do luar. Densos grupos de folhas pendiam das árvores que o rodeavam, enquadrando-o dos dois lados, como as cortinas de um teatro.
Mesmo no centro do altar de madeira, no lugar que devia ser o seu coração, via-se o mais trabalhado de todos os escaninhos. Estava tapado com uma pequena cortina e era, obviamente, a peça central de todo o altar. Mas fosse o que fosse que se encontrasse lá dentro estava escondido.
Nash avançou diretamente para lá. Race sabia o que ele estava pensando. Com um puxão seco, Nash afastou a cortina que tapava o interior do escaninho.
E viu-o. Race também o viu e ficou com um nó na garganta. Era o ídolo.
O verdadeiro ídolo. O Espírito do Povo.
Olhar para ele deixou Race sem respiração. Estranhamente, o seu primeiro pensamento foi que Bassario tinha feito um excelente trabalho, quando esculpira a cópia. O seu ídolo falso era uma reprodução perfeita, Mas, por muito que se tivesse esforçado, Bassario não tinha sido capaz de reproduzir a aura que rodeava o ídolo verdadeiro.
Era a personificação da majestade.
A ferocidade da cabeça do rapa inspirava terror. O brilho da pedra preta e púrpura de tírium inspirava admiração. O conjunto que era o ídolo reluzente inspirava apenas um temor receoso.
Em transe, Nash estendeu a mão para agarrar no ídolo e, nesse preciso instante, uma seta aguçada de pedra surgiu junto à sua cabeça.
A seta era empunhada por um nativo de expressão colérica, que emergiu da cortina de vegetação, à direita do santuário. A seta estava ajustada a um arco esticado, que o nativo trazia encostado à orelha.
Van Lewen ergueu a G-11 e da floresta que o rodeava saltaram nada menos de uns cinquenta nativos.
Quase todos eles estavam armados de arcos e setas, apontados para Race e para os outros.
V an Lewen ainda tinha a arma na mão. Doogie não: estava apenas ali parado, a poucos metros de distância, estático.
Aquele compasso de espera foi terrível. Van Lewen, armado com uma metralhadora com capacidade para matar instantaneamente vinte homens, face a um grupo de mais de cinquenta nativos, armados de setas e arcos, prontos a disparar.
Eram demasiados, pensou Race. Mesmo que Van Lewen conseguisse disparar alguns tiros, não seria suficiente. Mesmo nesse caso, os nativos eram tantos que os matariam.
- Não, Van Lewen... - disse Race.
- Baixe essa arma, sargento Van Lewen - disse Nash, que continuava junto ao altar, com uma seta encostada à cabeça.
Van Lewen obedeceu. Mas, quando o fez, os nativos avançaram imediatamente e apoderaram-se das potentes armas dos americanos.
Um homem que parecia mais velho, de pele cor de azeitona e enormes barbas grisalhas, avançou um pouco mais que os outros. Devia ser o chefe da tribo.
Ao lado do chefe foi postar-se outro homem. Mal o viu, Race pestanejou de surpresa.
O segundo homem não era um nativo: era um latino-americano robusto, muito bronzeado e vestido à maneira dos índios, mas nem mesmo as grandes quantidades de pintura cerimonial que usava no rosto e no peito conseguiam ocultar as suas feições decididamente urbanas.
Enquanto olhava para Nash, ali parado, diante do santuário como um ladrão apanhado com a boca na botija, o chefe resmungou qualquer coisa, na sua língua nativa.
O latino-americano que se encontrava ao seu lado ouviu atentamente e, depois, falou, parecendo estar dando um conselho.
- Humpf - resmungou o chefe.
Race estava ao lado de Renée e os dois estavam rodeados de cinco índios, de setas em riste.
Nesse momento, um desses índios deu um passo a frente, curioso, e tocou na cara de Race, como se quisesse ver se a pele branca deste era real.
Race afastou a cara, libertando-a do contato.
Mas, quando o fez, o índio guinchou e o seu espanto foi tal que toda a gente se voltou. Depois, correu para o chefe, gritando:
- Rumaya! Rumaya!
O chefe dirigiu-se imediatamente para o lugar onde estava Race, seguido pelo seu conselheiro branco. O velho chefe parou diante de Race, avaliando-o com um olhar frio, enquanto o índio que tinha tocado na cara de Race, apontava para o olho esquerdo deste e gritava:
- Rumaya! Rumaya!
De súbito, o chefe agarrou no queixo de Race e rodou-o para a direita.
Race não opôs resistência.
O chefe observou a cara dele em silêncio, inspecionando o sinal castanho triangular, por baixo do seu olho esquerdo. Depois, molhou o dedo e começou a esfregar o sinal, como se estivesse a ver se este saía. Não saiu.
- Rumaya... - disse, por fim, com a respiração suspensa. Voltou-se para o conselheiro latino-americano e disse qualquer coisa, em Quêchua. O conselheiro murmurou uma resposta, sem levantar a voz e num tom respeitoso. Depois de o ouvir, o chefe acenou com a cabeça e apontou, com ar decidido, para o poço escavado na parede do fosso.
Depois, girou sobre os calcanhares e gritou algumas ordens para o seu povo.
Os índios apressaram-se a conduzir todo mundo, exceto Race, para a gaiola de bambu entre as árvores.
Race foi conduzido para o poço lamacento adjacente ao fosso. O conselheiro latino- americano colocou-se ao seu lado.
- Olá - disse o homem, num inglês com forte sotaque, apanhando Race completamente de surpresa.
- Ei! - respondeu Race. - ah... é capaz de me dizer o que é que se está passando?
- Eles são os descendentes diretos de uma tribo inca remota. Viram que você tinha a Marca do Sol... esse sinal que você tem por baixo do olho esquerdo. Pensam que você poderá ser uma segunda encarnação do salvador deles, um homem que eles conhecem como Aquele que Foi Escolhido. Mas querem pô-lo à prova, para terem a certeza.
- E como é que eles me vão pôr à prova?
- Vão metê-lo naquele poço e, depois, vão levantar a grade que separa o buraco do fosso, para deixar entrar um dos jacarés. Depois, vão ver quem é que sobrevive ao confronto que se vai dar: você ou o jacaré. Sabe, é que há uma profecia...
- Eu sei - disse Race. - Eu li isso. Segundo a profecia, Aquele que Foi Escolhido terá a Marca do Sol e é capaz de lutar contra grandes lagartos e salvar o espírito deles.
O homem olhou para Race, atônito.
- É antropólogo?
- Linguista. E li o Manuscrito de Santiago. O homem franziu o sobrolho.
- Vocês vieram aqui à procura do Espírito do Povo?
- Eu não, mas eles sim - respondeu Race, indicando com o queixo Nash e os outros, que estavam sendo metidos na gaiola de bambu.
- Mas porquê? Não vale nada, em termos monetários... - Foi esculpido num meteorito - informou Race. - E, agora, descobriram que o tal meteorito era um tipo de pedra muito especial.
- Oh, - disse o homem.
- E você quem é? - perguntou Race.
- Oh, claro, desculpe, esqueci-me de me apresentar - disse o homem, endireitando as costas. - o meu nome é Miguel Moros Márquez. Sou antropólogo da Universidade do Peru e estou vivendo com esta tribo há nove anos.
U m minuto mais tarde, Race era empurrado por uma estreita trilha escorregadia.
A trilha descia entre altas paredes de terra e terminava junto a uma pequena grade de madeira que dava para o poço. Quando Race chegou ao pé da grade, esta abriu- se, puxada por dois índios que se encontravam lá em cima, e Race avançou, hesitante, para o buraco adjacente ao fosso infestado de jacarés.
O poço era mais ou menos quadrado e bastante grande: tinha cerca de nove metros por nove metros.
Três dos lados eram formados por paredes lamacentas. Mas o quarto lado era constituído por uma enorme grade, feita de «barras» de bambu entrelaçadas, através das quais Race avistou o ondear escuro do fosso.
Como se isto não bastasse, o fundo do poço estava coberto por uma camada de água, da água do fosso, que entrava à vontade através das grades de bambu. No ponto onde Race se encontrava, a água dava-lhe pelos joelhos. A profundidade que atingia noutros pontos do poço era indeterminada.
Esta é nova, Will. Que diabo é que você terá feito para se ver metido numa situação destas?
Nesse momento, um pedaço retangular da enorme grade, uma grade dentro da grade - foi levantado pelos índios que se encontravam lá em cima, na beira do poço, deixando à vista uma grande abertura, no meio da grade maior, entre o poço e o fosso infestado de jacarés.
Horrorizado, Race viu a grade subir, subir, tornando cada vez maior a abertura. Race tinha ainda vestidos os jeans, a camiseta e o colete Kevlar, que Uli lhe tinha dado, algumas horas antes, na mina. E, como não podia deixar de ser, ainda tinha o boné de basebol dos Yankees e os óculos.
Quanto a armas, nada. Apenas o arpão que prendera ao cinto. Race pegou nele. Tinha preso à ponta um pedaço de corda e, de momento, as suas quatro garras de aço estavam encolhidas contra a pega do arpão, como as varetas de um guarda-chuva fechado.
Race ficou olhando para o arpão, por alguns instantes. Talvez pudesse usá-lo para sair dali para fora...
Foi então que qualquer coisa muito grande entrou pela grade aberta, vinda do fosso.
Race ficou gelado.
A criatura era realmente enorme, apesar de cerca de três quartos do seu corpo se encontrarem submersos.
Race viu as narinas, os olhos e o dorso coriáceo, destacando-se acima da superfície, tudo aquilo deslocando-se à mesma velocidade, à medida que o enorme animal avançava ameaçadoramente. Viu a longa cauda coberta de placas, oscilando vagarosamente de um lado para o outro, impelindo o animal para a frente. Era um jacaré e era imenso.
Com pelo menos cinco metros e meio.
Depois do grande réptil ter acabado de entrar no poço, a grade de bambu foi novamente descida e fechada atrás dele. Agora, era só Race e o jacaré.
Frente a frente. Deus do céu...
Race saltou para o lado, afastando-se da criatura e refugiando-se num canto do poço quadrado, com os pés a chapinhar na água que lhe dava pelos joelhos.
O jacaré não mexeu um músculo.
De fato, a enorme criatura semelhante a um crocodilo nem sequer parecia ter consciência da sua presença.
Race ouvia as batidas do próprio coração, que lhe ecoavam na cabeça.
O jacaré continuava sem se mexer.
Race continuava estático, no seu canto do poço.
E, então, de repente, sem aviso prévio, o jacaré mexeu-se. Mas não foi um movimento rápido. Na verdade, o animal não saiu do lugar onde estava. Não avançou nem tentou apanhar Race. Foi mergulhando lenta e sinistramente na água lamacenta.
Race ficou de olhos esbugalhados. Merda.
O jacaré tinha acabado de submergir por completo! Não estava à vista. Na verdade, à luz suave do luar e à luz trêmula das tochas dos índios, Race só conseguia ver um ligeiro ondular da superficie da água.
Mais silêncio.
Pequenas ondas batiam contra as paredes térreas do poço. Race sentiu o corpo ficar tenso, à espera de ver aparecer o jacaré e crispou a mão sobre o cabo do arpão - como quem empunha um bastão.
A superficie da água não se mexia.
Silêncio total.
Race sentiu o medo crescer dentro de si. Foda-se, foda-se, foda-se.
Quanto tempo iria o réptil ficar debaixo de...? O ataque veio da esquerda, quando Race estava olhando para a direita.
Com um rugido retumbante, o jacaré emergiu repentinamente da água, ao lado dele, com as fauces escancaradas e o enorme corpo de duas toneladas a rasgar o ar.
Race viu o réptil de imediato e, por reflexo, atirou-se para o lado, caindo à água. O jacaré passou por ele e voltou a tombar no lodo.
Race pôs-se de pé, girou sobre si mesmo e voltou a mergulhar, no instante em que o jacaré lançava novo ataque, com os maxilares a bater um no outro com estrépito, diante da sua cara.
Race estava coberto de lama mas isso era o que menos importava. Voltou a levantar-se, junto à parede de terra do poço e voltou-se mesmo a tempo de ver o animal aproximar-se rapidamente da sua cara, mais uma vez.
Voltou a baixar-se e, desta vez, mergulhou todo o corpo na água. O jacaré passou por cima dele que nem um trovão e foi bater com a cabeça na parede do poço.
Race voltou à superfície e ouviu os gritos de aplauso dos índios, que se encontravam na orla do poço. Deslizou para a direita e foi parar a uma zona mais profunda. Então, começou a desatar a corda presa ao cabo do arpão.
Olhou para o cimo do poço.
Pouco mais de quatro metros e meio.
Agora, a água chegava-lhe ao peito, enquanto desenrolava a corda, ao mesmo tempo que lançava uma rápida olhadela em redor, para ver onde estava o jacaré.
E não o viu.
O jacaré tinha desaparecido. Devia ter voltado a mergulhar...
Cheio de medo, Race olhou para a água, à sua volta. Ah, merda, pensou.
Então, de repente, sentiu qualquer coisa bater-lhe na perna, a grande velocidade, e uma dor atroz no tornozelo. Depois, foi puxado para baixo de água.
Race abriu os olhos e, por entre a água escura que o rodeava, viu que o jacaré tinha o seu pé esquerdo dentro da boca!
Mas não o tinha bem seguro e, por um milésimo de segundo, abriu a boca para o agarrar melhor.
Foi quanto bastou a Race. Mal o enorme réptil lhe libertou o pé, Race afastou-o e as fauces do jacaré fecharam-se sobre o nada.
Arrastando atrás de si a corda do arpão, Race voltou à superfície, em busca desesperada de ar para respirar.
O jacaré também emergiu à superfície, atrás dele, com os maxilares a bater selvaticamente, e apanhou a corda do arpão, rasgando-a num instante. Quando a corda foi cortada, Race perdeu o equilíbrio e caiu desajeitadamente na zona de água menos profunda.
Voltou-se no mesmo instante, mesmo a tempo de ver o jacaré avançar para ele, de lado, com a boca aberta. A boca do animal, cheia de dentes, era a única coisa que Race conseguia ver e, sem mais nada a que pudesse recorrer, enfiou o arpão - e, com ele, todo o braço direito - na boca escancarada do jacaré.
Os maxilares do enorme réptil fecharam-se sobre o seu braço, no preciso momento em que Race apertou o botão de abertura do gancho de escalada.
Nesse instante, um milésimo de segundo antes de os dentes aguçados do jacaré se fecharem sobre os seus bíceps, as pontiagudas garras de aço do arpão abriram-se, com uma força tremenda.
A cabeça do jacaré explodiu.
Duas das garras pontiagudas atingiram-lhe as órbitas e, num instante, breve e nauseante, os dois olhos do jacaré saltaram-lhe da cabeça, impelidos de dentro, e foram substituídos pelas lâminas aguçadas de duas garras de aço.
As outras duas garras do arpão cravaram-se por baixo do maxilar inferior do jacaré, rasgando facilmente aquela zona de carne mais mole.
No caminho que tinham percorrido, as duas garras que saíram pelas órbitas do enorme réptil deviam ter-lhe penetrado no cérebro, porque o mataram instantaneamente e as suas fauces pararam a meio do movimento esboçado de morder. Agora, Race estava sentado no chão do poço, com um jacaré de mais de cinco metros e meio ligado ao seu braço direito, com a comprida boca triangular do animal aberta sobre o braço exposto e os dentes a milímetros da pele. O enorme corpo escuro jazia, imóvel, sobre o fundo do poço.
Os nativos reunidos junto à orla do poço contemplavam a cena, consternados, mudos de espanto.
Depois, lentamente, começaram a bater palmas.
Race saiu do poço e foi fortemente aclamado pelos índios. Deram-lhe palmadas nas costas e das suas bocas, de dentes tortos e amarelos, surgiram sorrisos rasgados.
A gaiola onde Nash e os outros estavam presos foi imediatamente aberta e, momentos depois, eles estavam ao pé de Race, no centro da aldeia.
Van Lewen abanou a cabeça, ao chegar junto de Race.
- Que diabo é que você fez? Nós não conseguíamos ver nada, daquela gaiola.
- Acabei de matar um grande lagarto - disse Race, com simplicidade.
O antropólogo, Márquez, aproximou-se e sorriu a Race. - Muito bem! Muito bem! Como é que disse que se chamava?
- William Race.
- Os meus parabéns, Senhor Race. Acabou de se transformar num deus.
O telefone celular de John-Paul Demonaco tocou. Demonaco e o investigador da Marinha, Mitchell, continuavam nas instalações da DARPA, na Virgínia. Mitchell estava atendendo outra chamada.
- Quer dizer que é coisa do Bittiker... - disse Demonaco, ao telefone. De súbito, empalideceu terrivelmente. - Telefone para o Departamento de Polícia de Baltimore e eles que mandem imediatamente para lá a brigada de explosivos.
Mitchell aproximou-se no momento em que Demonaco desligava.
- Era o Aaronson - informou o homem da Marinha. - Eles assaltaram as instalações dos Combatentes da Liberdade. Não havia lá nada. Nada.
- Deixe estar - disse Demonaco, dirigindo-se para a porta.
- O que foi? - perguntou Mitchell, correndo atrás dele.
- Recebi uma chamada de um dos meus homens de Baltimore. Ele está no apartamento de um dos nossos informantes junto dos Texanos. Diz que tem uma coisa grande.
Noventa minutos mais tarde, Demonaco e Mitchell chegavam a um antigo armazém decrépito, no setor industrial de Baltimore.
Em frente ao edifício, estavam já estacionados três carros de rádio-patrulha da polícia, dois Buicks beges sem qualquer identificação - veículos do FBI - e um enorme furgão azul escuro com a inscrição BRIGADA DE EXPLOSIVOS pintada numa das portas.
Demonaco e Mitchell entraram no armazém e subiram umas escadas.
- Este lugar é de um tipo chamado Wilbur Francis James, mais conhecido por «Bluey» - disse Demonaco. - O marginal era operador de rádio do Exército mas foi demitido por ter roubado equipamento... scanners de frequência, M-16. Agora, é um escroque de meia tigela que trabalha em ligação com os Texanos e com alguns marginaizinhos do mundo do crime, que fornecem armas e informação aos Texanos. Há alguns meses, apanhamo-lo com três caixas roubadas de gás neurotóxico ou gás paralisante VX, mas decidimos não o acusar formalmente, se ele nos ajudasse a revolher informações. Até agora, tem sido de confiança.
Os dois chegaram a um apartamento exíguo, no andar por cima do armazém, a que estavam de guarda dois polícias de Baltimore. Entraram. Era um apartamento nojento, com as tábuas do chão viscosas e o papel de parede caindo.
À espera de Demonaco estavam um jovem agente negro chamado Hanson e o chefe da Brigada de Explosivos da Polícia de Baltimore, um homem baixo e atarracado chamado Barker.
Bluey James estava a um canto da divisão, de braços cruzados. Saboreava o fumo de um cigarro, com ar de desafio. Era baixote, com a barba por fazer, cabelo castanho oleoso e uma camisa havaiana toda suja. Calçava sandálias... e meias.
- O que é que temos? - perguntou Demonaco a Hanson.
- Quando chegamos, não encontramos nada - respondeu o jovem agente, fitando Bluey James com desprezo. - Mas, depois, procuramos melhor e encontramos isto.
Hanson entregou a Demonaco um volume do tamanho de um livro de bolso. Estava embrulhado em papel castanho e não tinha sido aberto. Junto com ele, estava um envelope branco de aspecto normal, que fora aberto.
- Estava escondido por trás de um falso painel, na parede informou Hanson.
Demonaco voltou-se para Bluey.
- Muito inventivo - comentou. – Está ficando mais esperto, com a idade, Bluey.
- E isso tem algum mal?
- Raios X? - perguntou Demonaco, dirigindo-se ao homem que se chamava Barker.
- Está limpo - respondeu o homem da brigada de explosivos, - Parece ser um CD ou qualquer coisa do gênero. Bluey James riu com desdém.
- Não sabia que, neste país, era crime um homem comprar um CD. Mas, se calhar, até devia ser, por causa da merda que se ouve.
- O quê? Não gostas de Achy Breaky Heart? - perguntou Demonaco, olhando para o envelope branco, de onde tirou uma folha de papel.
Dizia:
QUANDO TIVERMOS O TÍRIUM, CONTACTO-O DIRETAMENTE.
DEPOIS DE RECEBER O MEU TELEFONEMA, MANDE O CONTEÚDO DESTE DISCO, POR E-MAIL, ÀS SEGUINTES ORGANIZAÇÕES.
BITTIKER
A seguir, vinha uma lista de uns doze nomes e endereços, todos eles de cadeias ou canais de televisão: CNN, ABC, NBC, CBS, FOX.
Demonaco virou o embrulho de papel castanho. Que seria que Earl Bittiker queria mandar por e-mail às principais cadeias de televisão do país?
Abriu o volume.
E viu um disco compacto de um prateado reluzente.
Mas a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que não era um CD vulgar.
Eram um VCD, um disco compacto de vídeo. Voltou-se.
- Que diabo é isto, Bluey?
- The Best of Billy Ray Cyrus. Especialmente para você, palerma.
- Ei, Demonaco - disse Mitchell, apontando para um leitor de VCD, que estava por baixo do moderníssimo televisor de Bluey.
Ao lado do televisor, havia um computador IBM preto. Os três objetos pareciam absolutamente deslocados naquele apartamento miserável.
Demonaco colocou o disco compacto no leitor de VCD e carregou no botão «PLAY».
Na tela do televisor, apareceu a cara de Earl Bittiker.
Era uma cara feia, malévola, marcada por cicatrizes e pelo ódio. Bittiker tinha um rosto avermelhado, de feições cavadas, cabelo loiro e uns olhos cinzentos e frios, que deixavam transparecer apenas o mar de raiva que lhe ia na alma. Ao fundo, por trás do terrorista, Demonaco e Mitchell viram a Supernova.
Bittiker falava diretamente para a câmara.
- Cidadãos do mundo, o meu nome é Earl Bittiker e sou o Anti-Cristo.
- Se estiverem vendo esta mensagem, é porque estão prestes a morrer. Hoje, ao meio-dia em ponto, hora da costa Leste, ireis ser todos mortos por uma arma que foi paga pelos vossos impostos. Uma arma que, daqui a poucas horas, irá mandar pelos ares este mundo vil.
- Não tenho nada contra vós, cidadãos do mundo. O que eu odeio é o mundo onde viveis, um mundo que não merece continuar a existir. É um cão doente e deve ser abatido.
- Vós, os Governos deste mundo, sois os culpados desta situação. Comunistas, capitalistas e fascistas: todos vós tendes engordado, enquanto as pessoas que governáveis morriam de fome. Todos vós tendes enriquecido, enquanto os outros iam ficando mais pobres. Viveis em mansões e eles viviam em guetos.
- O desejo de qualquer homem de mandar em outro é parte da natureza humana. Surge sob muitos disfarces, sob muitas formas, que vão das políticas de gabinete às limpezas étnicas, e é praticado por todos nós, do mais baixo escalão ao chefe do Governo dos Estados Unidos. Mas o seu caráter é sempre o mesmo. Tem a ver com o poder e com a dominação. Mas é um câncer deste mundo e esse câncer tem de ser erradicado.
- As cadeias de televisão que receberem esta mensagem deverão contactar a Marinha ou a Agência de Projetos de Pesquisa Avançados de Defesa e perguntar- lhes o que aconteceu à Supernova deles. Perguntem-lhes o porquê da sua existência e qual a sua finalidade. Façam-lhes perguntas acerca da morte de dezesseis membros do pessoal de segurança, quando, há dois dias, os meus homens atacaram a sede da DARPA, na Virgínia. Estou seguro de que ninguém vos informou deste incidente porque é assim que os Governos de hoje funcionam. Depois de terem feito tudo isto, perguntem ao vosso Governo se é disto - apontou para o dispositivo, por trás de si - que eles andam à procura.
Bittiker olhou para a câmara, com uma expressão dura.
- A vós, cidadãos do mundo, não peço nada. Não peço qualquer resgate. Não quero a libertação de nenhuns presos políticos. Não há maneira de vocês fazerem parar este dispositivo. Agora, não. Nem nunca. Não há nada que vocês possam fazer para impedir que isto aconteça. Hoje, ao meio-dia, vamos todos juntos para o inferno.
A tela ficou cinzenta.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual todos ficaram digerindo o que Bittiker acabara de dizer. Até Bluey James estava abalado.
- Foda-se - disse ele, entre dentes.
- Muito inteligente - comentou Demonaco. - A única coisa que ele disse foi a hora da explosão. Meio-dia. Agora, só lhe falta encontrar o tírium, entrar em contato com o Bluey e o plano está andando. - Voltou-se para Mitchell e acrescentou:
- Acho que encontramos a sua Supernova, capitão. - Depois, dirigiu-se a Bluey: - Devo concluir que ainda não recebeste o tal telefonema?
O que é que achas, idiota?
- O que é que sabes acerca disto, Bluey? - perguntou Demonaco, mudando de tom.
- Aquilo que sempre soube, meu. Porra nenhuma.
- Se não me disseres mais nada, agora, vou ter que te acusar de cumplicidade no assassinato de dezessete funcionários de segurança federais...
- Olha lá, meu, não ouviste o que ele disse? O mundo vai acabar. O que é que interessa, agora, ser acusado de cumplicidade?
- Isso depende de quem é que você acha que vai ganhar esta partida: nós ou o Bittiker.
- Bittiker - disse Bluey, sem rodeios.
- Então, parece que vais passar as horas que te restam de vida na prisão - replicou Demonaco, fazendo sinal aos dois Polícias que se encontravam à porta. - Levem daqui este sonso.
Os dois polícias agarraram Bluey por baixo dos braços.
- Ah, esperem aí... - disse Bluey - Tenho muita pena, Bluey.
- Ouve lá, meu, ouve! Eu não tive nada a ver com as tais mortes. Sou só um moço de recados, OK? Faço coisas em nome do Bittiker. Como qualquer advogado. O que, devo dizer, não tem sido muito fácil, nos últimos tempos, porque o homem está batendo pino.
- Então, está passado de todo - repetiu Demonaco, fazendo sinal aos dois polícias para largarem Bluey.
- Passado como o diabo. Por onde é que tens andado, meu? Primeiro, ele deixa uma cambada de chinocas entrar para os Texanos. Japoneses, meu. Uns cabrões de uns japoneses. Havias de ver aqueles sacanas. Uns kamikazes desgraçados, meu. São de uma seita qualquer de loucos, lá do Japão. Querem destruir o mundo e essa merda toda. Mas o Earl acha que gosta do que eles dizem e dá-lhes rédea solta. E, depois, foda-se, faz uma coisa ainda mais esquisita. Vai daí e alia-se aos cabrões dos Combatentes da Liberdade.
- O quê?
- Para passar a contar com os conhecimentos técnicos deles. Se quiseres a minha opinião, esses Combatentes da Liberdade são um bando de chupadores de pica, mas também é verdade que sabem muito de tecnologia. Quer dizer, mensagens para o mundo todo em VCD e essas merdas. Achas que fui eu que andei pelas lojas, para comprar este aparelho?
- Os Texanos juntaram-se aos Combatentes da Liberdade... - disse Demonaco. - Merda.
Bluey ainda estava falando.
- E tudo por causa dos japoneses. Desde que chegaram cá, andam sempre dizendo ao Earl que, se ele quer mesmo foder o mundo, precisa de alta tecnologia. Nada de espingardas nem de merdas dessas. Só bombas e coisas assim. São tarados. E, depois, quando souberam dessa coisa da Supernova, então...
Mas Demonaco já não estava ouvindo. Voltou-se para Mitchell.
- Os Texanos absorveram os Combatentes da Liberdade. Foi por isso que o seu chefe, Aaronson, não encontrou nada nas instalações dos Combatentes da Liberdade. Eles já não existem. Não admira que tenham usado balas de tungstênio. Ganharam tempo, colocando a culpa para cima de um grupo terrorista que já não existe. Os Texanos e os Combatentes da Liberdade não andavam em guerra uns com os outros. Estavam negociando uma fusão...
O que é que está dizendo? - perguntou Mitchell. - Estou dizendo que acabamos de assistir à união de três das organizações terroristas mais perigosas do mundo. Uma é uma unidade de combate, brilhantemente organizada. A segunda deve ser o grupo paramilitar da América mais avançado do ponto de vista tecnológico. E a terceira é uma seita japonesa, a do Dia do Juízo Final.
- Junte tudo isto e fica perante um problema dos diabos. Porque foram eles que roubaram a sua Supernova. E, a julgar pelo vídeo que acabamos de ver, eles andam por aí agora, tentando arranjar tírium.
À luz suave do amanhecer, estava sendo preparado um banquete. Depois de ter derrotado o jacaré, Race tinha repelido delicadamente a adulação dos índios e pedido para descansar. Seguira-se um sono profundo - Santo Deus, bem precisava dele, pois havia quase trinta e seis horas que não dormia - do qual só acordara pouco antes do amanhecer.
O grande prato que lhe tinham posto à frente era digno de um rei. Era uma variedade de comida crua da selva, disposta sobre enormes folhas verdes. Larvas, bagas, milho. E, até, um pedaço de carne de jacaré crua. Caía uma chuva miudinha mas ninguém parecia preocupar-se com isso.
Race e o pessoal do Exército estavam na clareira diante do santuário da aldeia, sentados em círculo, comendo, vigiados pelo olhar atento do ídolo verdadeiro, orgulhosamente instalado no seu nicho de madeira trabalhada.
Embora os nativos lhes tivessem devolvido as armas, ainda pairava no ar uma tênue atmosfera de suspeita. Cerca de uma dúzia de guerreiros índios, armados de arcos e setas, estavam ostensivamente parados, à roda do círculo de pessoas, a observar Nash e os seus funcionários, como tinham feito durante toda a noite.
Race estava sentado junto ao chefe da tribo e do antropólogo, Miguel Moros Márquez.
O chefe Roa gostaria de lhe manifestar a sua enorme gratidão por ter vindo até aqui - disse Márquez, traduzindo as palavras do velho chefe.
Race sorriu.
- Passamos de ladrões noturnos a hóspedes bem-vindos.
- Mais do que julga - disse Márquez. - Mais do que julga. Se você não tivesse sobrevivido ao encontro com o jacaré, os seus amigos teriam sido sacrificados aos rapas. Assim, os seus amigos partilham da sua glória.
- Eles não são precisamente meus amigos - disse Race. Gaby Lopez estava sentada do outro lado do antropólogo, obviamente entusiasmada por se encontrar na presença de uma lenda. Afinal, conforme tinha contado a Race, no primeiro dia que tinham passado no Peru, Márquez embrenhara-se na selva, havia nove anos, para estudar tribos amazônicas primitivas.
- Por favor, Doutor Márquez - pediu - fale-nos um pouco desta tribo. A sua experiência aqui deve ser fascinante.
Márquez sorriu.
- E tem sido. Estes índios são pessoas verdadeiramente notáveis. Uma das poucas tribos autênticas que ainda há em toda a América do Sul. Apesar de dizerem que vivem nesta aldeia há séculos, são nômades, como quase todas as outras tribos desta região. De vez em quando, vão-se todos embora, por seis meses ou mesmo durante um ano, para outro lugar, à procura de comida ou de um clima mais ameno. Mas voltam sempre a esta aldeia. Dizem que estão ligados a esta zona, ao templo da cratera e aos deuses felinos que nele habitam.
- Como foi que eles se apoderaram do Espírito do Povo? perguntou Race, interrompendo-o.
- Desculpe mas não percebi.
- Segundo o Manuscrito de Santiago - disse Race - Renco Capac utilizou o ídolo para atrair os rapas para dentro do templo. Depois, fechou-se lá com eles. Quando foi que estes índios entraram no templo e tiraram de lá o ídolo?
Márquez traduziu, para o chefe índio, Roa, aquilo que Race tinha dito. O chefe abanou a cabeça e respondeu qualquer coisa, em quíchua.
O chefe Roa diz que o Príncipe Renco era um homem muito esperto e corajoso, como seria de esperar de Aquele que Foi Escolhido. O chefe também diz que os membros desta tribo têm muito orgulho em ser os seus descendentes diretos.
- Os seus descendentes diretos? - perguntou Race. - Mas isso quer dizer que Renco teria conseguido sair do templo...
- Pois é - respondeu Márquez, enigmaticamente, traduzindo as palavras do chefe.
- Mas como? - insistiu Race. - Como foi que ele conseguiu sair?
Perante esta observação, o chefe deu uma ordem a um dos seus guerreiros e este correu para uma das cabanas. Voltou instantes depois, trazendo uma coisa na mão.
Quando o guerreiro chegou junto do chefe, Race viu que o objeto que ele tinha na mão era um livro de notas, não muito espesso, forrado a couro. A encadernação tinha aspecto de ser muito antiga mas as suas páginas pareciam intactas.
O chefe falou. Márquez traduziu.
- Senhor Race, Roa diz que a resposta à sua pergunta está na construção do próprio templo. É verdade que, depois da famosa batalha de Renco e Alberto com Hernando Pizarro, Renco entrou no templo com o ídolo. Mas conseguiu sair de lá com ele. A história completa do que aconteceu depois de Renco ter entrado no templo está nesse livro de notas.
Race olhou para o livro de notas que o chefe tinha na mão. Estava morto por ler o que lá estava escrito.
O chefe entregou a Race o pequeno livro de notas.
- Roa dá-lhe de presente - disse Márquez. - Afinal, nos últimos quatrocentos anos, você é a primeira pessoa a passar por esta aldeia que é capaz de o ler.
Race abriu imediatamente o livro e viu meia dúzia de páginas de cor creme, escritas com a caligrafia de Alberto Santiago. Ficou olhando para aquilo, pasmado.
Era o fim verdadeiro da história de Santiago.
- Queria fazer uma pergunta - disse, de repente, Johann Krauss, num tom pomposo, inclinando-se para diante, sem sair do seu lugar no círculo. - Como foi que os rapas conseguiram sobreviver durante tanto tempo, dentro do templo.
Depois de ter consultado o chefe, Márquez respondeu:
- Roa diz que a resposta a essa pergunta está no livro de notas.
- Mas... - começou Krauss.
Roa interrompeu-o, com um berro cortante.
- Roa diz que a resposta a essa pergunta está no livro de notas - repetiu Márquez, num tom firme.
Era óbvio que a hospitalidade de Roa relativamente a Race não tinha limites mas os seus favores para com os companheiros deste não iam muito longe.
A chuva começou a cair com maior intensidade. Passados alguns minutos, Race ouviu o troar distante de um trovão. Doogie e Van Lewen também se voltaram, quando ouviram o som.
- Vem aí uma tempestade - disse Race.
Doogie abanou a cabeça e olhou para o céu. O ribombar do trovão tornou-se mais intenso. - Não é nada disso - disse Doogie, apanhando do chão a sua G-11.
- O que é que está dizendo?
- Não é uma tempestade, Professor. - Então, o que é?
Nesse momento, antes de Doogie ter podido responder, um enorme helicóptero Super Stallion rugiu lá no alto.
Race, Doogie e Van Lewen puseram-se de pé de um salto e os índios pegaram nos arcos.
O rugido dos dois Super Stallions que sobrevoavam a aldeia abafava todos os outros sons e era ensurdecedor. Então, de repente, oito escadas de corda ondulantes saíram de cada helicóptero. Num segundo, dezesseis homens em uniformes de combate começaram a descer pelas cordas, de armas na mão, quais sombras agourentas contra o céu do amanhecer.
As armas empunhadas pelos homens que desciam dos helicópteros cuspiam balas.
As pessoas corriam em todas as direções. Os índios procuraram a cobertura da vegetação que rodeava a aldeia, apanhando os arcos e as setas, enquanto se dirigiam para lá. Van Lewen e Doogie dispararam as suas G-11, respondendo ao fogo que chovia na lama, à volta de ambos.
Race rolou sobre si, no lugar onde se encontrava, e viu Doogie ser atingido, na perna esquerda, por dois disparos brutais. Depois, voltou a rolar, a tempo de ver o corpo do zoólogo alemão, Krauss, que fora atingido na cara, nos braços e no peito, agitar-se convulsivamente e transformar-se numa massa de carne ensanguentada, rasgada por rajadas de fogo devastador de super-metralhadoras.
Os dois Super Stallions pairavam sobre a aldeia, a pouco mais de seis metros de altitude, arrasando-a com os seus canhões. Ao pôr-se de pé, Race viu uma palavra pintada dos dois lados de cada aparelho: MARINHA.
Era a equipe de Romano. Finalmente, tinham chegado.
E então, só então, enquanto corria para escapar ao fogo dos enormes helicópteros que sobrevoavam ameaçadoramente a aldeia, ocorreu a Race um pensamento inesperado.
A equipe de Romano não tinha três Super Stallions? Abruptamente, uma rajada de fogo esburacou o chão à sua volta e Race fugiu para baixo das árvores. Enquanto corria, olhou para trás e viu Frank Nash afastar-se do santuário e mergulhar entre a vegetação, seguido de perto por Lauren e Copeland.
Os olhos de Race fixaram-se no santuário. O ídolo ainda lá estava, orgulhosamente instalado no seu nicho.
Ou não?
As balas continuavam a abrir buracos no chão que o rodeava mas Race correu para o santuário, tirou o ídolo do seu nicho e rodou-o na mão.
Faltava uma seção cilíndrica na base do ídolo. Era o ídolo falso.
- Não... - murmurou Race.
Lá no alto, os helicópteros continuavam a disparar. A ventania da corrente de ar que estes provocavam soprava à volta de Race que nem um tornado.
Lutando contra aquele vendaval, Race correu para a vegetação, atrás de Nash e dos outros dois.
- Onde é que vai? - gritou Renée, de trás de uma árvore próxima.
O Nash tem o ídolo! - respondeu Race, também aos gritos. - O verdadeiro...
Nesse momento, sem qualquer aviso prévio, um dos dois enormes helicópteros Super Stallion explodiu, lá no alto. Foi uma explosão terrível, de uma força monstruosa. E ainda mais assustadora por ter sido tão inesperada.
Race olhou para cima, instantaneamente, e viu o potente helicóptero cair em direção ao solo, num movimento que parecia em câmara lenta, por cima dos homens que vinham pendurados nele.
- Os homens, que eram do corpo SEAL, da Marinha, atingiram o solo primeiro, seguidos, um segundo mais tarde, pelo enorme aparelho, que se abateu sobre eles, esmagando-os num instante sob o seu volume medonho, que se abateu estrondosamente sobre o terreno.
Race olhou para além dos destroços flamejantes do Super Stallion caído e, lá no alto, viu um rastro horizontal de fumaça que começava a dissipar-se no ar.
Era o rastro de fumaça de um míssil ar-ar e os olhos de Race seguiram-no até ao ponto de partida.
E viu mais um helicóptero.
Só que não era um aparelho de transporte de tropas, como os dois Super Stallions. Era um helicóptero de dois lugares, um pássaro de combate, esguio, com uma cabine em forma de prisma e um rotor de cauda coberto. Parecia um louva-a-deus.
Embora não o soubesse, Race estava olhando para um AH-66 Comanche, o helicóptero de combate de última geração do Exército dos EUA.
O apoio aéreo de Nash. Finalmente, tinha também chegado.
Race viu um segundo helicóptero de combate Comanche aparecer, contra o céu da manhã, por trás do primeiro, viu-o abrir fogo contra o Super Stallion sobrevivente, com o seu canhão Gafling de dois canos.
O segundo Super Stallion respondeu com uma rajada de metralhadora, dando cobertura aos oito SEAL que ainda estavam pendurados das suas escadas de corda.
O primeiro SEAL chegou ao solo e uma seta cravou-se-lhe na testa, tombando-o instantaneamente.
Os sete SEAL que ainda restavam continuaram a descer os degraus da escada. Dois deles foram abatidos por setas, durante a descida. Os outros conseguiram chegar ao solo.
Lá no alto, o Super Stallion andava numa roda-viva. Rodopiou de lado, para ficar de frente para os dois Comanches do Exército que disparavam contra ele.
Depois, de repente - bum! - O Super Stallion disparou um único míssil Sidewinder. O míssil traçou no ar um rastro de fumaça perfeitamente horizontal e, depois, foi bater, a uma velocidade incrível, na coberta de um dos Comanches, varrendo do céu o helicóptero de combate, com uma potente explosão.
Mas foi apenas um prêmio de consolação. Na verdade, se o feito serviu para alguma coisa foi para selar o destino do Super Stallion. Porque ainda restava um Comanche.
Mal o primeiro helicóptero do Exército foi atingido, o segundo fez uma pirueta no ar e lançou um míssil Hellfire.
O Hellfire cruzou os ares a uma velocidade fenomenal, fazendo mira para o Super Stallion. Atingiu o alvo em poucos segundos, mergulhando a toda a velocidade num dos lados do grande helicóptero da Marinha.
Os dois lados do Super Stallion explodiram num instante, saltando em todas as direções e lançando sobre o solo uma chuva de destroços flamejantes. Depois, o enorme helicóptero da Marinha esmagou-se sobre as árvores, acima da aldeia, numa lamentável bola de fogo.
Os ramos molhados batiam na cara de Race, enquanto ele e Renée corriam na direção leste, por entre a seção de vegetação baixa e densa, a Sul da praça da aldeia, atrás de Frank Nash.
No caminho, passaram por Van Lewen. Estava encostado por trás de uma cabana, a disparar a G-11 contra três dos cinco SEAL que tinham sobrevivido à descida do segundo Super Stallion.
Disparava baixo, tentando ferir e não matar. Afinal, aqueles homens eram compatriotas seus e, depois do que tinha ouvido Renée contar, no avião, algumas horas antes, acerca de Frank Nash e da missão do Exército, que tentava passar a perna na Marinha, tinha começado a questionar os seus deveres de lealdade. A menos que fosse mesmo obrigado a fazê-lo, não queria matar homens como ele, soldados de primeira linha, que se limitavam a cumprir ordens.
Os três SEAL tinham-se acocorado por trás de umas árvores, perto do santuário, e, quando disparavam ao mesmo tempo, as suas MP-5 estavam provando estar à altura da sua G-11 solitária. Depois, de súbito, o fogo dos SEAL parou, quando estes foram atacados, por trás, por uma horda de índios armados de arcos, setas, paus e pedras.
Van Lewen pestanejou.
- Onde é que vocês vão? - gritou, quando viu Race e Renée passarem por ele, correndo.
- Vamos atrás do Nash. Ele roubou o ídolo verdadeiro! - Ele o quê?...
Mas Race e Renée estavam já chegando às árvores e Van Lewen foi atrás deles.
Gaby Lopez também corria. Mas apenas para tentar salvar a vida.
Quando tinham aparecido os Super Stallions da Marinha, ela escondera-se atrás das árvores mais próximas. Mas, enquanto todos os outros tinham fugido para sul, ela tomara a direção contrária para norte - e, agora, ia correndo, sozinha, por entre a vegetação que lhe dava apenas pela altura do peito, para nordeste da aldeia, baixando-se enquanto corria, tentando desesperadamente escapar às balas que batiam nos ramos à volta da sua cabeça.
Os dois SEAL sobreviventes estavam por trás dela, disparando as suas MP-5, ocultos por entre os arbustos.
Gaby olhou para trás, vendo se avistava os seus perseguidores. Depois, quando se voltou outra vez para frente, sentiu que subitamente o chão lhe fugia debaixo dos pés.
Caiu que nem uma pedra.
Um segundo depois, batia na água.
O líquido lamacento saltou para todos os lados. Quando aquilo parou, Gaby abriu os olhos e descobriu que estava sentada no fosso que rodeava a aldeia! Pôs-se rapidamente de pé e viu que se encontrava numa zona onde a água só lhe chegava aos tornozelos. Um pensamento atingiu-a subitamente: jacarés.
Olhou ao redor, desesperada, Viu que o fosso era mais ou menos circular, viu que curvava para a esquerda e para a direita do lugar onde se encontrava, como uma estrada cheia de curvas. As paredes de terra lisas terminavam uns bons três metros acima da sua cabeça.
De repente, tiros de espingarda-metralhadora bateram na água, à sua volta e, instintivamente, Gaby atirou-se ao chão e as balas passaram-lhe por cima da cabeça, indo cravar-se nas paredes de terra do fosso.
Nesse momento, sem que nada a fizesse prever, ouviu novos disparos. Mas eram disparos diferentes, de G-11, e, num instante, deixou de se ouvir o som das primeiras armas e, depois, não se ouviu mais nada. Gaby continuava deitada de bruços, na água baixa do fosso. Seguiu-se um longo silêncio. Ao fim de alguns segundos, Gaby ergueu cautelosamente a cabeça.
E deu de cara com o focinho de um jacaré, de dentes arreganhados, como se sorrisse.
Gaby ficou gelada.
O animal estava ali, parado, diante dela, a observá-la, com a cauda a abanar lentamente de um lado para o outro. Tinha-a apanhado. Tinha direito de morte sobre ela.
Então, com um rugido sonante, o gigantesco réptil atacou, com as fauces selvaticamente abertas estendidas para ela.
Claque! Qualquer coisa vinda de cima tinha acabado de aterrar em cima do jacaré. Gaby não sabia o que era. Tinha-lhe parecido que era um animal e, nesse momento, esse animal e o jacaré rolavam de um lado para o outro diante dela, lançando jatos de lama e água.
Gaby ficou perplexa, quando percebeu que não era um animal. Era um homem. Em uniforme de combate. Tinha saltado da orla do fosso, lançando-se sobre o jacaré, no preciso instante em que este avançara para ela.
O jacaré e o homem rolavam no chão e lutavam, o réptil investindo e tentando abocanhar, o homem tentando respirar sempre que podia.
Depois, Gaby viu quem era. Era Doogie.
Os dois lutavam, rolando pelo chão, grunhindo e resfolgando. O jacaré tentava selvaticamente morder Doogie, enquanto o Boina Verde ferido lhe segurava desesperadamente o focinho, tentando manter fechados os maxilares do animal, como tinha visto fazer, quando era criança, os homens que lutavam com jacarés.
Doogie ainda tinha a sua G-11 mas, agora, não lhe servia de nada. Estava vazia. Relutantemente, tinha utilizado as últimas balas para abater os dois SEAL da Marinha que estavam disparando contra Gaby. Depois, tinha visto o jacaré aparecer diante dela e atacar e fizera a única coisa que lhe ocorrera. Saltara para cima dele.
Nesse momento, o jacaré libertou o focinho da pressão das mãos de Doogie, abriu os maxilares e atirou-se à cabeça do soldado. Por puro desespero, Doogie fez girar a G-11, e, sem sequer pensar, enfiou-a dentro da boca do enorme réptil, escancarando-a, em frente à sua cara!
O jacaré grunhiu de surpresa.
As suas fauces estavam agora completamente abertas, como o capô de um carro. A enorme criatura não podia fechar a boca. Doogie aproveitou a oportunidade e, num movimento rápido, tirou da bainha a faca Bowie.
O jacaré estava ali, estupidamente, diante dele, com o enorme focinho mantido aberto pela G-11 colocada na vertical.
Doogie tentou colocar-se por trás do grande réptil, para lhe cravar a faca no crânio e matá-lo, mas o jacaré viu-o mexer-se e voltou-se rapidamente de lado, embatendo em Doogie e fazendo-o perder o equilíbrio. Doogie caiu na água lamacenta.
Então, o jacaré atirou-se rapidamente para a frente, pisando as pernas de Doogie com as suas curtas patas dianteiras, enterrando-o na lama.
- Aaaaaaah! - gritou Doogie, quando o peso do jacaré se abateu sobre as suas pernas.
O enorme réptil deu mais um passo, pisando-lhe a perna esquerda ferida. Doogie gritou de dor, quando as suas pernas se enterraram um pouco mais na lama.
A boca escancarada do jacaré estava ali mesmo, diante da sua cara, a uns sessenta centímetros do seu nariz, mantida aberta pela G-11.
Foda-se, pensou Doogie, enquanto, com um movimento rápido, estendia a mão para dentro da bocarra do jacaré e colocava a sua faca Bowie por trás da G-11, na vertical, para que o cabo assentasse na língua do caimão e a lâmina ficasse voltada para o céu da boca do mostrengo.
Come isso - disse Doogie, ao mesmo tempo que afastava, de lado, o braço e arrancava a G-11 da boca do réptil gigantesco. O resultado foi instantâneo.
Quando a G-11 foi retirada, os fortes maxilares do jacaré juntaram-se: o maxilar superior descaiu para cima da faca Bowie, colocada na parte de trás da boca, e esta subiu em direção ao cérebro do animal.
A lâmina da faca, manchada de sangue, irrompeu da enorme cabeça do réptil e o corpo do jacaré, do qual a vida se esvaíra, cedeu ao próprio peso.
Doogie ficou olhando para ele, por um momento, espantado com o que tinha acabado de fazer. O enorme animal estava ainda parcialmente em cima dele, rosnando involuntariamente, expelindo grandes quantidades de ar, de que já não precisava.
- Uff.. - murmurou Doogie.
Em seguida, abanou a cabeça, saiu com esforço de debaixo da enorme criatura e arrastou-se até onde Gaby continuava deitada na lama, completamente perplexa com aquele ato digno de um cavaleiro andante.
- Venha - disse ele, pegando-lhe na mão. - Vamos embora daqui.
Frank Nash correu por entre a densa vegetação entre a aldeia e a cratera, com o ídolo debaixo do braço, como se fosse uma bola de futebol.
Lauren e Copeland corriam atrás dele, de pistolas SIG-Sauer em punho.
No meio da confusão gerada pelo ataque aéreo à aldeia, ele, Lauren e Copeland tinham lançado sobre o fosso uma das pontes de troncos e, depois, tinham-na atravessado, para chegarem à vegetação.
- Aqui é Nash! Aqui é Nash! - gritava este, sem parar de correr, para o microfone de garganta. - Equipe aérea, contacte! Nash olhou para cima e viu o helicóptero Comanche do Exército, que tinha sobrevivido, planando sobre os restos fumegantes da aldeia. Por trás dele, via-se um terceiro helicóptero, mais pesado e maior do que o Comanche. Era um Black Hawk 11, o terceiro helicóptero do Exército.
- Aqui capitão Frank Thompson, coronel Nash - disse uma voz, junto ao seu ouvido, por entre o ruído da estática. - Peço desculpa... demorar tanto tempo... Perdemos o seu sinal... tempestade...
- Nós temos o prêmio, Thompson. Repito: temos o prêmio. Neste momento, estou a uns cinquenta metros da aldeia e vou na direção leste, a caminho da cratera. Preciso ser retirado daqui imediatamente.
- Negativo, coronel... não há lugar para aterrar aqui... muitas... árvores.
- Então, vá ter conosco à outra aldeia - gritou Nash. - Aquela que tem uma cidadela. Dirija-se para leste, por cima da cratera, e olhe para baixo. Não há como se enganar. Tem muito espaço para aterrar.
- Entendido, coronel... encontramo-nos lá.
Os dois helicópteros do Exército sobreviventes deram imediatamente a volta, por cima da aldeia do planalto, ribombando sobre a cabeça de Nash, dirigindo-se para Vilcafor.
Menos de um minuto depois, Nash, Lauren e Copeland chegavam à cratera e começavam a descer a trilha em espiral.
Race, Renée e Van Lewen corriam por entre a densa vegetação que se estendia entre a aldeia e a cratera, atrás de Nash e do ídolo. Não havia rapas à vista.
Com a chegada da manhã, deviam ter voltado para as profundezas da cratera, pensou Race. Esperava que o diabo da urina de macaco que espalhara sobre o corpo, continuasse a fazer efeito. Os três chegaram à trilha da cratera, correndo.
Quando Race, Renée e Van Lewen começaram a descer o caminho, Nash, Lauren e Copeland estavam chegando ao fundo.
Chegaram ao desfiladeiro, seguiram pela sua base, fazendo saltar água a cada passo. Nem viram que os felinos, que se encontravam junto ao lençol de água, tinham erguido preguiçosamente as cabeças escuras, quando eles por ali passaram.
Os três chegaram num instante ao caminho do rio, onde depararam com um tênue nevoeiro matinal. Mas não pararam para o admirar. Continuaram a avançar, em direção a Vilcafor e ao som ribombante dos helicópteros.
Mais dois minutos e os três chegaram junto ao fosso, do lado ocidental da aldeia.
E, de repente, pararam.
Incapazes de dar mais um passo que fosse.
Diante deles, no centro de Vilcafor, com as mãos cruzadas sobre a nuca e com o tênue nevoeiro volteando junto aos seus pés, estava um grupo de uns doze homens e mulheres. Estavam todos parados, indiferentes ao ruído dos rotores dos helicópteros, que ecoavam no ar da manhã.
Alguns deles eram SEAL da Marinha. Envergavam uniformes de combate completos. Mas estavam desarmados. Outros tinham vestidos uniformes do corpo regular da Marinha. Outros ainda usavam roupas civis normais - os cientistas da DARPA.
E, então, Nash viu o helicóptero deles. Estava estacionado por trás do pequeno ajuntamento.
Um solitário Super Stallion.
O terceiro helicóptero da Marinha.
Estava no centro da aldeia, silencioso, imóvel, com as sete pás das hélices paradas. Nash viu a palavra MARINHA pintada dos lados, com grandes letras brancas.
Depois, olhou para cima, para ver de onde vinha o terrível ruído, que atroava os ares, sobre a aldeia.
E viu-os.
Viu os dois helicópteros do Exército, o Comanche e o Black Hawk 11, que ele tinha mandado para ali, quando ainda estava perto da outra aldeia. Estavam sobrevoando Vilcafor, com os seus canhões Gaffing de dois canos e os seus ameaçadores lança- mísseis apontados para os membros da equipe da Marinha e da DARPA, que se encontravam no solo, impotentes.
Race e os outros saíram do caminho do rio alguns minutos mais tarde.
Na altura em que chegaram à rua principal de Vilcafor, os dois helicópteros do Exército tinham aterrado e Nash passeava-se que nem um pavão, diante dos homens da Marinha, com o ídolo numa das mãos e uma pistola prateada SIG-Sauer na outra.
As tripulações dos helicópteros do Exército, seis homens no total - dois do Comanche e quatro do Black Hawk - empunhavam M-16, apontadas para o pessoal da Marinha e da DARPA.
- Ah, Professor Race, ainda bem que veio ter conosco disse Nash, quando Race e os outros apareceram na rua principal de Vilcafor e ficaram olhando para aquela estranha mistura de civis e homens da Marinha, parados, com as mãos sobre a nuca.
Race não respondeu a Nash. Os seus olhos observavam, um a um, os elementos do pessoal da Marinha, à procura de alguém. Pensou que deviam ser as pessoas da equipe de Romano, a verdadeira equipe da Supernova. Por isso, talvez...
De repente, ficou estático. Tinha-o visto.
Tinha visto um homem, um civil, parado no meio do grupo dos homens da Marinha, vestindo roupas normais de passeio.
Apesar de não o ver havia quase dez anos, Race reconheceu logo as sobrancelhas escuras e os ombros encurvados.
Estava olhando para o irmão.
- Marty... - murmurou Race. - Professor Race... - interrompeu Nash Race ignorou-o e dirigiu-se a passos largos para o irmão. Ficaram parados um em frente do outro, sem se abraçarem. Eram irmãos, mas muito diferentes.
Para começar, Race estava uma verdadeira desgraça: coberto de lama e fedendo a urina de macaco, enquanto Marty estava bem vestido e com as roupas impecavelmente limpas. Marty olhava, embasbacado, para as roupas imundas de Race, para o seu boné, coberto de lama, como se ele fosse o monstro da Lagoa Negra.
Marty era mais baixo que Race e mais entroncado. Além disso, enquanto Race tinha sempre uma cara franca e bem disposta, o rosto de Marty apresentava sempre uma expressão terrivelmente séria.
- Will... - disse Marty.
- Peço desculpa, Marty, Eu não sabia. Eles mentiram-me, para me convencerem a vir com eles. Disseram que trabalhavam com a DARPA, que te conheciam e que...
Nesse momento, Race interrompeu-se, abruptamente, ao ver outro elemento da equipe da Marinha que também conhecia.
O seu rosto assumiu uma expressão carregada.
Era Ed Devereux.
Devereux era um homem negro, baixo, que usava óculos. Tinha quarenta e um anos e era um dos mais conceituados professores de línguas clássicas da Universidade de Harvard. Havia quem dissesse que ele era o melhor estudioso de latim de todo o mundo. Naquele momento, estava parado, em silêncio, na fila composta por pessoal da Marinha e da DARPA, e tinha debaixo do braço um grande livro, encadernado a couro. Race supôs que seria o exemplar do manuscrito, que estava na posse da Marinha.
Foi então que Race se recordou do encontro com Frank Nash, no seu gabinete, dois dias antes, quando tudo aquilo tinha começado, e se lembrou de ter sugerido que, em vez dele, levassem Devereux naquela missão, porque o professor de Harvard era muito melhor que ele em Latim medieval.
Agora... agora Race sabia o motivo por que Nash insistira em levar a ele, em vez de Devereux.
Devereux já tinha sido contratado. Pela verdadeira equipe da DARPA.
- Não vai sair disto com vida, Nash - disse um homem mais velho, da equipe Marinha-DARPA.
Era um homem totalmente calvo e tinha a postura de alguém que estava habituado a cargos de chefia. O doutor Julius Romano.
- Porque é que diz isso? - perguntou Nash.
O Comitê das Forças Armadas vai ficar sabendo disto, respondeu Romano. - A Supernova é um projeto da Marinha. Você não tem nada que estar aqui.
- A Supernova deixou de ser um projeto da Marinha, no momento em que ela foi roubada do quartel-general da DARPA, há dois dias - contrapôs Nash. - o que quer dizer que, agora, o Exército é o único ramo das Forças Armadas dos Estados Unidos que está na posse de uma Supernova.
- Seu filho da... - rosnou Romano Nesse momento, a cabeça de Romano explodiu, rebentou que nem um tomate, projetando jatos de sangue em todas as direções. Uma fração de segundo depois, o seu corpo caía ao chão, flácido, sem vida, morto.
Ao ouvir o tiro, Race voltou-se, a tempo de ver Nash, ainda com a pistola SIG-Sauer estendida em posição de fogo. Nash seguiu ao longo da linha do pessoal da Marinha e da DARPA e apontou a pistola para a cabeça do homem seguinte.
A arma disparou e o homem caiu.
- O que é que está fazendo? - berrou Race.
- Coronel! - gritou Van Lewen, incrédulo, fazendo menção de erguer a sua G-11.
Mas ainda ele não tinha concluído o movimento, quando outra SIG-Sauer lhe foi encostada à cabeça. Quem empunhava a pistola era Troy Copeland.
- Largue a arma, sargento - ordenou Copeland.
Van Lewen cerrou os dentes, deixou cair a G-11 e fitou Copeland.
Entretanto, Lauren apontara a sua arma à cabeça de Renée. Completamente confuso, Race voltou-se para Marty. Mas o irmão estava no extremo da fila dos homens e mulheres da Marinha e da DARPA, a olhar estoicamente em frente. O seu único movimento era um pestanejar, de cada vez que uma arma disparava.
- Isto é assassinato puro e simples, meu coronel - disse Van Lewen.
Nash parou diante de outro dos homens da Marinha, ergueu a pistola e disparou.
- Não - replicou Nash. - Trata-se apenas de um processo de seleção natural. Da sobrevivência do mais forte.
Nash aproximou-se de Ed Devereux.
O professor de Harvard tremia. Por trás dos óculos de aros metálicos, os seus olhos estavam esbugalhados e todo o seu corpo tremia de medo. Nash apontou-lhe a SIG à cabeça.
Devereux gritou:
- Não!...
O grito foi abruptamente interrompido e Devereux caiu ao chão, desamparado.
Race nem queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Americanos a matar americanos. Era um pesadelo. Pestanejou, ao ver Devereux cair ao chão, morto.
Foi então que viu o livro encadernado a couro, que Devereux tinha na mão no momento em que fora atingido. Estava caído na lama, de capa para baixo, aberto, deixando ver uma série de páginas grosseiras e antigas, cobertas de ilustrações e de uma elaborada caligrafia medieval.
Era o Manuscrito de Santiago.
Ou melhor, pensou Race, corrigindo-se a si próprio, a cópia parcial do manuscrito, feita por outro monge, em 1599, trinta anos após a morte de Alberto Santiago, - Que diabo é que está fazendo, coronel? - perguntou Race.
- Estou apenas eliminando a concorrência, Professor Race. Lentamente, Nash ia avançando ao longo da fila de homens e mulheres, abatendo-os calmamente à queima-roupa, um após outro. Enquanto ia matando, um a um, os seus inimigos, os seus compatriotas americanos, o olhar de Nash era duro, frio, desprovido de qualquer emoção.
Alguns dos homens da Marinha e da DARPA começaram a rezar, quando Nash lhes apontou a arma ao rosto. Alguns civis começaram a soluçar. Impotente para pôr termo ao massacre, Race viu que os olhos de Renée se enchiam de lágrimas, perante aquela série chocante de execuções.
Ao fim de pouco tempo, só restava um homem, o último da fila. Marty.
Race ficou olhando, quando Nash parou diante do irmão. Sentia-se completamente impotente, sem possibilidade de ajudar Marty. Nesse momento, porém, estranhamente, Nash baixou a pistola. Voltou-se para ficar de frente para Race e, sem afastar os olhos dele, disse:
- Por favor, Lauren, vai buscar o meu computador portátil no ATV Race franziu o sobrolho, confuso. Mas que raio?...
Lauren correu para o ATV, que continuava estacionado diante da cidadela. Voltou um minuto depois, com o portátil de Nash, o computador que este tinha utilizado durante as etapas iniciais da missão. Entregou-o a Nash, que, estranhamente, o estendeu a Race.
Ligue-o - ordenou Nash. Race assim fez.
- Carregue em REDE INTERNA DO EXÉRCITO DOS EUA, ordenou Nash.
Race assim fez.
Na tela, apareceu um título.
REDE INTERNA DE MENSAGENS DO EXÉRCITO DOS EUA
Depois, a tela mudou, mostrando uma lista de mensagens classificadas de e-mail.
- Deve estar aí uma mensagem que tem o seu nome. Faça uma busca do nome Race - ordenou Nash. Interrogando-se sobre o que pretenderia Nash com tudo aquilo, Race escreveu o seu nome e selecionou a Opção PESQUISAR.
De repente, o computador apitou: 2 MENSAGENS ENCONTRADAS.
A longa lista de mensagens ficou reduzida a duas.
DATA HORA ASSUNTO
3.1.99 18:01 MISSÃO SUPERNOVA
4.1.99 16:35 QUESTÃO WILLIAM RACE
- Está vendo a que tem o seu nome? - perguntou Nash. Race olhou para a segunda mensagem e fez clique duas vezes. A tela mostrou uma mensagem:
4 JAN 1999
16:35
REDE INTERNA DO EXÉRCITO DOS EUA
617 5544 89516-07
No. 187
De: Chefe da Divisão de Projetos Especiais
Para: Frank Nash
Assunto: QUESTÃO WILLIAM RACE
Não deixe Race em Cuzco. Repito. Não deixe Race em Cuzco. Leve-o consigo para a selva. Depois de ter obtido o ídolo, liquide-o e trate de fazer desaparecer o corpo.
GENERAL ARTHUR H. LANCASTER
Chefe da Divisão de Projetos Especiais do Exército dos EUA
- Só queria que soubesse que há muito tempo que devia estar morto, Professor Race - explicou Nash.
Race sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias, ao olhar para aquele e-mail.
Aquilo era uma condenação à morte, a sua condenação à morte. Uma mensagem do general responsável pela Divisão de Projetos Especiais do Exército, ordenando que o matassem.
Santo Deus.
Tentou manter-se calmo.
Olhou para a hora da mensagem, 16:35, de 4 de janeiro.
Ao fim da tarde do dia em que saíra de Nova Iorque.
Por conseguinte, aquela mensagem tinha chegado quando eles ainda iam a caminho do Peru, a bordo do avião de carga.
O vôo para o Peru.
Deus do céu, parecia ter sido anos atrás.
Então, Race lembrou-se do momento em que, a certa altura do vôo, a campainha do computador portátil de Nash tinha apitado. Lembrava-se claramente. Tinha sido logo a seguir a de ele ter acabado de traduzir a cópia parcial do manuscrito.
E, nesse instante, percebeu.
Tinha sido esse o motivo por que Nash o trouxera consigo para Vilcafor. Apesar de, no início da missão, ter dito que, se ele tivesse acabado de traduzir o manuscrito antes de aterrarem, Race nem precisaria sair do avião, Nash acabara por o trazer consigo. E porquê?
Porque Nash não podia deixar testemunhas.
Como a sua missão era secreta, uma missão do Exército tentando sabotar uma missão da Marinha, Nash não podia correr o risco de deixar viva qualquer testemunha.
- Há dois dias, eu ia matá-lo, depois de termos aberto o templo - disse Nash. - Mas, depois, a chegada da equipe do BKA alterou os meus planos. Eles abriram e... quem é que ia adivinhar o que eles iam encontrar lá dentro? Mas, depois, apareceu aquelas páginas a mais do manuscrito e fiquei contente por não o ter morto.
- Ainda bem que ficou contente - ironizou Race.
Depois, mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo, Race, que continuava a ter o computador diante de si, abriu a outra mensagem que também mencionava o seu nome, a que tinha por título MISSÃO SUPERNOVA.
A mensagem completa surgiu na tela.
Mas, afinal, era uma mensagem que Race já tinha visto, mesmo no começo da missão, quando atravessavam Nova Iorque, numa carreata.
3 Jan. 1999, 22:01,
REDE INTERNA DO EXÉRCITO DOS EUA
617 5544 88211-05
No. 139
De: Nash, Frank
Para: Todos os elementos da equipe Cuzco
Assunto: MISSÃO SUPERNOVA
Contactar Race o mais depressa possível. Participação crucial para o sucesso da missão.
Aguardem chegada encomenda amanhã, 4 de janeiro, Newark, 09:45.
Todos os membros devem ter equipamento a bordo do transporte, às 09:00.
Race franziu o cenho, ao ver aquelas palavras. Contactar Race o mais depressa possível.
Participação crucial para o sucesso da missão.
Quando vira a mensagem pela primeira vez, Race não lhe prestara muita atenção. Tinha concluído que se referia a si próprio, William Race, e que era ele a pessoa a contactar o mais depressa possível.
Mas e se fosse outra a pessoa que o Exército queria contactar? Outro Race?
Nesse caso, isso significava que devia ser estabelecido contacto com... Marty. Horrorizado, Race desviou os olhos do computador, no preciso momento em que o seu irmão se afastava da fila de mortos da Marinha e da DARPA e apertava a mão de Frank Nash.
- Como está, Marty? - perguntou Nash, afavelmente.
- Muito bem, Frank. É bom encontrá-lo, finalmente.
Race sentia-se tonto.
Os seus olhos saltavam de Nash e Marty para os cadáveres caídos na rua lamacenta e, destes, para a cópia do manuscrito que jazia sobre a lama, ao lado do corpo de Ed Devereux.
E, então, de repente, tudo passou a fazer sentido.
Race olhou para a elaborada caligrafia do texto, para aquele espantoso trabalho artístico medieval. Era idêntico à fotocópia do Manuscrito de Santiago que ele tinha traduzido para Nash, durante a viagem para o Peru.
Oh, não...
- Marty, tu não...
- Lamento que tenha se envolvido nisto tudo, Will - disse Marty.
- Tínhamos que descobrir uma maneira de arranjar uma cópia do manuscrito - explicou Nash. - Meu Deus. Quando assaltaram o tal mosteiro, na França, e roubaram o manuscrito verdadeiro, aqueles nazis desencadearam uma caçada que ninguém seria capaz de imaginar. De repente, todo mundo que tinha uma Supernova passava a ter uma oportunidade de arranjar uma amostra de tírium ativo. Era uma oportunidade única. Depois, quando nós interceptamos uma transmissão da DARPA, dizendo que havia um segundo exemplar do manuscrito, limitamo-nos a arranjar uma maneira de alguém da DARPA nos fornecer uma fotocópia... Marty.
Mas como?, pensou Race. Marty trabalhava para a DARPA e não para o Exército. Qual era a ligação? Como é que Marty se tinha metido com Nash e com os Projetos Especiais do Exército?
Nesse momento, viu Lauren dirigir-se a Marty e beijá-lo, de leve, no rosto.
Mas que?...
Foi então que Race viu a aliança na mão esquerda de Marty. Uma aliança de casamento.
Voltou a olhar para Lauren e Mart... Não...
Depois, lembrou-se do que Lauren lhe dissera: O meu primeiro casamento não correu lá muito bem. Mas voltei a casar, há pouco tempo.
Estou vendo que já conhece a minha mulher, Will - disse Marty, avançando, de mão dada com Lauren. - Não cheguei a dizer-lhe que tinha casado, pois não?
- Marty..
- Lembras-te de quando éramos adolescentes, Will? Você sempre foi popular e eu andava sempre sozinho. O chato de sobrancelhas grossas e ombros encurvados, que ficava em casa aos sábados à noite, enquanto você saía com as garotas todas. Mas houve uma garota que você não enganou, não foi, Will?
Race não respondeu.
- E parece que fui eu quem ficou com ela - acrescentou Marty.
Race estava perplexo. Seria possível Marty ter tanta amargura por coisas da infância, que andara atrás de Lauren só para o bater em alguma coisa?
Não. Não era possível.
Aquela teoria não dava a Lauren o crédito que lhe era devido. Lauren nunca casaria com um homem com quem não quisesse casar. O que queria dizer que nunca casaria com ninguém que não lhe trouxesse benefícios para a sua própria carreira.
E foi nesse momento que ocorreu a Race outra imagem.
A imagem de Lauren e Troy Copeland, no Huey, duas noites antes, beijando-se como dois adolescentes, até Race esbarrar com eles.
- Marty - disse Race, rapidamente. – Ouça, você vai se traído por Lauren.
- Cala a boca, Will.
- Mas Marty..
- Mandei que calasse a boca!
Race calou-se. Passado um instante, perguntou em voz baixa: O que é que o Exército lhe deu, para você trair a DARPA?
- Não me deram muita coisa - respondeu Marty. - Foi só a minha mulher que me pediu um favor. E o patrão dela, o coronel Nash, ofereceu-me um cargo executivo no projeto Supernova. Eu sou engenheiro de desenvolvimento de sistemas, Will. Concebo os sistemas informáticos que controlam estes dispositivos. Mas a DARPA não quer saber de mim. Durante toda a minha vida, Will, durante toda a minha vida, aquilo que eu sempre quis foi ver os meus esforços reconhecidos. Em casa, na escola, no emprego. Que reconhecessem as minhas capacidades. Agora, finalmente, vou conseguir algum reconhecimento.
- Marty, por favor, ouve. Há duas noites, eu vi a Lauren com...
- Deixa disso, Will, o espetáculo acabou. Tenho muita pena que as coisas tenham tido que acontecer assim mas aconteceram e eu não posso fazer nada. Adeus.
Depois destas palavras, Frank Nash aproximou-se, interpondo-se no campo de visão de Race, e a imagem de Marty foi substituída pela do cano da pistola SIG- Sauer de Nash.
- Foi um prazer conhecê-lo, Professor, a sério que foi - disse Nash, deitando o dedo ao gatilho.
- Não - disse subitamente Van Lewen, colocando-se entre Race e a pistola de Nash. - Não posso permitir uma coisa dessas, coronel.
- Saia da frente, sargento.
- Não, senhor. Não saio.
- Saia do caminho, foda-se!
Van Lewen pôs-se em sentido, diante do cano da pistola de Nash.
- As ordens que recebi foram muito claras, meu coronel. Foi o senhor mesmo quem me deu. O meu dever é proteger o Professor, a todo o custo.
- As suas ordens acabam de ser alteradas, sargento.
- Não, meu Coronel. Não foram. Se quiser matar o Professor Race, terá que me matar primeiro.
Nash mordeu os lábios.
Em seguida, com uma rapidez chocante, a SIG que tinha na mão disparou e a cabeça de Van Lewen explodiu, lançando esguichos de sangue para cima de Race.
Qual marionete a que tivessem cortado os fios que a sustentavam, o corpo do Boina Verde caiu desamparado no chão. Race ficou olhando para o cadáver de Van Lewen.
Aquele sargento, corpulento e simpático, tinha sacrificado a própria vida em troca da sua, colocando-se diante do cano da arma, para o proteger. E, agora, estava morto. Race julgou que ia vomitar.
- Seu filho da puta - rosnou, dirigindo-se a Nash.
Nash reajustou a posição da arma e apontou-a à cara de Race.
- Esta missão é mais importante do que qualquer homem, Professor. Mais importante que ele, mais importante que eu e, sem dúvida alguma, mais importante que você.
E, dito isto, Nash premiu o gatilho.
Race viu passar qualquer coisa castanha, de relance, diante da sua cara, antes de ouvir o silvo.
Depois, no preciso momento em que Nash apertava o gatilho da pistola, uma diminuta explosão de sangue saltou do antebraço do coronel do Exército, que tinha sido atingido por uma seta primitiva de madeira.
A arma de Nash foi desviada para o lado e a SIG cuspiu fogo à toa, para a esquerda de Race. Nash gemeu de dor e deixou cair a pistola, no instante em que mais umas vinte setas caíam à volta de ambos, matando de imediato dois dos tripulantes dos aparelhos do Exército.
A seguir à chuva de setas, um grito de guerra de pôr os cabelos em pé rasgou o ar da manhã.
Ao ouvir aquele som, Race girou sobre si mesmo e aquilo que viu quase lhe fez cair o queixo.
Viu sair do meio das árvores, a Oeste de Vilcafor, todos os nativos da aldeia do planalto - todos os adultos, uns cinquenta, pelo menos. Gritavam selvaticamente, brandindo todas as armas a que tinham conseguido deitar a mão - arcos, setas, machados, mocas - e os seus rostos ostentavam as expressões mais coléricas que Race alguma vez tinha visto.
O ataque dos nativos era absolutamente aterradora.
A fúria deles era intensa, a sua cólera quase palpável. Frank Nash roubara-lhes o ídolo e eles queriam recuperá-lo. Abruptamente, mesmo atrás de Race, soou o estrépito de disparos de M-16.
Dois dos tripulantes dos aparelhos do Exército tinham aberto fogo contra os índios. Quase ao mesmo tempo, quatro dos nativos que vinham na vanguarda da horda foram atingidos. Vacilaram e caíram, de bruços, sobre a lama.
Mas os outros continuaram a avançar.
Com uma seta cravada no braço direito e, pendurado na ponta desta, um pedaço da própria carne, Nash voltou-se instantaneamente e, com o seu pessoal atrás de si, abandonou a aldeia e encaminhou-se para os dois helicópteros do Exército.
Race não tinha sequer esboçado um movimento. Continuava ali, no meio da rua, como que colado ao chão, olhando, perplexo, para a horda de atacantes nativos.
Depois, de repente, alguém lhe sacudiu brutalmente o ombro. Era Renée.
- Venha, Professor! - gritou, empurrando-o para o Super Stallion vazio, que se encontrava do outro lado da aldeia.
Os homens do Exército chegaram aos seus helicópteros. Nash, Lauren, Marty e Copeland saltaram para o compartimento traseiro do Black Hawk 11 ao mesmo tempo que os dois tripulantes dos helicópteros se instalavam nos lugares do piloto e do co-piloto.
Os rotores do Black Hawk começaram imediatamente a girar.
Pelo vidro do compartimento traseiro, Nash viu Race e Renée correndo em direção ao Super Stallion.
Voltando-se para o artilheiro que manejava o mini-canhão Vulcan montado na traseira do helicóptero, Nash ordenou:
- Destrua aquele helicóptero!
Mal as pás das hélices do Black Hawk entravam em funcionamento e o grande helicóptero começou lentamente a levantar vôo, o co-piloto carregou no gatilho e uma barreira flamejante de fogo saltou do Vulcan.
A saraivada de fogo que atingiu o Super Stallion foi de uma intensidade terrível. Crivou os flancos reforçados do helicóptero de milhares de buracos de bala, do tamanho de um punho fechado.
Depois, precisamente quando Race e Renée estavam aproximando-se dele, o Super Stallion explodiu numa enorme bola de fogo. Os dois atiraram-se ao chão, uma fração de segundo antes de uma tempestade de pedaços de metal incandescentes passar voando sobre as suas cabeças, saltando em todas as direções. Dois bocados desgarrados de metal rubro atingiram o ombro de Renée, fritando a pele ao contato. Renée gritou de dor.
- Agora, dê cabo deles! - berrou Nash, apontando para baixo, para Race e para Renée.
O Black Hawk estava ainda subindo e encontrava-se a cerca de quatro metros e meio do solo. O artilheiro fez girar o grande Vulcan e fez pontaria para a cabeça de Race.
Tiro! A cabeça do artilheiro saltou violentamente para trás, com um tiro entre os olhos.
Nash voltou-se, surpreendido, perscrutando o solo, para ver de onde tinha partido o tiro que matara o artilheiro.
E viu-o. Era Doogie.
Apoiado num joelho, junto ao fosso, e com uma MP-5 roubada de um dos mortos da Marinha apoiada no ombro, Doogie apontava diretamente para o Black Hawk. Por trás dele, encontrava-se Gaby Lopez.
Nesse momento, Doogie disparou outro tiro, que fez ricochete na cobertura de aço, por cima da cabeça de Nash. Nash gritou para o piloto:
- Vamos embora desta merda deste lugar!
Com o braço por baixo do ombro bom de Renée, Race arrastou-se até ao ATV.
A multidão de nativos encontrava-se agora por baixo dos dois helicópteros do Exército, gritando furiosamente, brandindo os seus porretes e disparando em vão as suas setas contra os ventres blindados daquelas bestas de aço voadoras.
Race saltou para a traseira do ATV, abriu a pequena escotilha circular e ajudou Renée a entrar por ela.
Quando se preparava para a seguir, Viu Doogie e Gaby correndo pela rua principal, agitando freneticamente os braços. Gaby tinha que amparar Doogie, que, a coxear, avançava o mais depressa que podia.
Por fim, os dois chegaram ao ATV e subiram para cima dele. - Que raio de merda é que se passa aqui? - perguntou Doogie, mal podendo respirar. Race reparou que a perna esquerda dele sangrava. Tinha um pano atado à volta, fazndo de torniquete.
- Quando chegamos aqui, vimos o coronel matar o Leo, com um tiro na cabeça.
O rosto de Doogie contorceu-se, num misto de raiva e confusão impotente.
- O coronel tinha outras prioridades - respondeu Race, com amargura. - Outras prioridades que não nos incluíam.
- O que é que vamos fazer? - perguntou Doogie.
Race mordeu os lábios, pensativo.
- Venham- disse. - Entrem. Ainda estamos no jogo.
Os dois helicópteros do Exército - o Comanche e o Black Hawk - elevaram-se no ar, sobre a rua principal de Vilcafor.
E Nash olhou pela janela do seu helicóptero, para a multidão de nativos irados, que berravam e acenavam com os punhos, ameaçando os dois helicópteros. Soltou uma gargalhada e desviou os olhos dele, espreitando pelo vidro da frente do helicóptero.
Os dois helicópteros do Exército sobrevoaram as copas das árvores.
E, então, o sorriso de Nash desapareceu.
Eram oito helicópteros Black Hawk semelhantes àquele em que seguiam mas mais antigos, de um modelo que o Exército pusera de lado havia alguns anos. Estavam todos pintados de preto, sem qualquer marca identificativa, e pairavam ameaçadoramente, num círculo de uns quinhentos metros, à volta de Vilcafor, como uma matilha de chacais famintos, a rondar um campo de batalha, à espera de se atirarem aos despojos.
De repente, sem aviso prévio, um dos Black Hawks não identificados soltou um jato de fumaça negra, quando um míssil foi lançado de uma das suas pequenas asas. A frente do helicóptero era o ponto de partida de um longo rastro de fumaça, que se foi estendendo em direção ao Comanche do Exército, à medida que o míssil corria velozmente para este aparelho. O Comanche explodiu num instante, caiu desamparado e foi esmagar-se contra uma das cabanas de pedra da rua principal de Vilcafor, com as chamas saindo da sua carcaça carbonizada e torcida.
Race e os outros estavam dentro da cidadela e prestes a entrar no quenko, quando ouviram a súbita explosão, lá fora.
Voltaram ao ATV e espreitaram pelas suas estreitas janelas, não maiores que meras ranhuras, para ver o que tinha acontecido.
E deram de cara com os destroços contorcidos e incandescentes do Comanche, caídos de qualquer maneira, em cima de uma das pequenas cabanas de Vilcafor.
E também viram o Black Hawk de Nash, planando sobre a aldeia, sem ousar afastar- se.
As pás das hélices do Black Hawk do Exército rugiam, girando a um ritmo regular, enquanto o grande helicóptero pairava sobre Vilcafor, no centro de um círculo formado por ameaçadores helicópteros pretos.
Subitamente, dois dos helicópteros não identificados abandonaram a formação e começaram a descer para a aldeia.
Sentados junto às portas, soldados vestidos de preto abriram fogo sobre os nativos que se encontravam no solo e estes dispersaram de imediato, correndo pelas pontes de troncos e mergulhando entre a densa vegetação que rodeava a aldeia.
Vinda de um dos helicópteros, ouviu-se uma voz de homem, que falava em inglês, por um alto-falante.
- Black Hawk do Exército, isto é um aviso. Têm um míssil apontado para a aeronave. Aterrem imediatamente. Repito: aterrem imediatamente e preparem-se para entregar o ídolo. Se não aterrarem imediatamente, rebentamos vocês e, depois, só temos que ir buscar no meio dos destroços.
Nash e Marty olharam um para o outro. Lauren e Copeland fizeram o mesmo.
- Eles não estão mentindo acerca do míssil, meu coronel disse o piloto, voltando-se para Nash.
- Vamos descer - disse Nash.
Ladeado por dois dos Black Hawks não identificados, o Black Hawk de Nash desceu lentamente para terra.
Os três helicópteros tocaram no solo ao mesmo tempo. No momento em que as rodas do helicóptero do Exército roçaram a lama, voltou a ouvir-se a voz que falava pelo alto-falante.
- Agora, saiam do helicóptero de mãos para o ar.
Nash, Lauren Copeland e Marty assim fizeram e, depois deles, o piloto do helicóptero.
A salvo, dentro do ATV, Race e os outros assistiam, perplexos, à cena que se desenrolava diante dos seus olhos.
Race nem queria acreditar no que estava acontecendo. Aquilo era como as fábulas em que um peixe grande come os peixes menores, para, momentos depois, ser comido por um peixe ainda maior.
Pelo visto, Frank Nash tinha acabado por deparar com um peixe maior que ele.
- Quem diabo são estes caras? - perguntou Doogie. -Acho que são os responsáveis pelo assalto às instalações da DARPA, há dois dias - respondeu Renée, apertando firmemente um pedaço de gaze contra o ombro ensanguentado. - O assalto durante o qual foi roubada a Supernova da Marinha.
Do outro lado do mundo, o agente especial John-Paul Demonaco e o capitão Tom Mitchell estavam sentados no apartamento imundo de Bluey James, em Baltimore, à espera de ouvir tocar o telefone. Aguardavam o telefonema dando instruções a Bluey para ele enviar o VCD com a mensagem de Bittiker a todas as cadeias de televisão. E, claro, o telefone de Bluey tinha sido ligado a uma central de equipamento de localização de chamadas do FBI.
Bateram à porta.
Mitchell foi abrir. Eram dois agentes da Unidade de Terrorismo Doméstico de Demonaco, um homem e uma mulher, ambos jovens, na casa dos trinta anos e de aspecto cuidado.
- O que foi que apuraram? - perguntou Demonaco. - Investigamos o Henry Norton - disse a agente. - O sujeito cujos cartões e códigos foram utilizados no assalto. As nossas investigações confirmam que ele não tinha quaisquer contatos com grupos paramilitares.
- Então, com quem é que ele trabalhava? Quem é que poderia tê-lo visto introduzir os códigos para, depois, os passar a alguém.
- Parece que ele trabalhava muito de perto com um sujeito chamado Martin Race, Martin Eric Race. Era um dos homens da DARPA que trabalhavam no projeto, o engenheiro de desenvolvimento de sistemas de ignição.
- Também o investigamos - informou o agente.
- E está limpo, Não tem ligações conhecidas com grupos de milícias, nem sequer uma história de contatos com quaisquer grupos extremistas. Até é casado com uma cientista do Exército, de alta patente, chamada Lauren O’Connor. Tecnicamente ela é major mas não tem experiência de combate. A patente é meramente honorária. Martin Race e O’Connor casaram em fins de 1997. Não têm filhos. Não há discórdias visíveis. Mas...
- Mas o quê?
- Mas, exatamente há três semanas, a ficha dela no FBI foi atualizado, quando foi vista saindo de um motel, em Gamesville, com este homem - o agente estendeu a Demonaco uma fotografia de 8 por 10, preto-e-branco, de um homem, que saía de um quarto de motel. - Chama-se Troy Copeland. Também é major da Unidade de Projetos Especiais do Exército. Parece que a Sra O’Connor tem um caso com Copeland, neste último mês.
- E?... - incitou Demonaco, na expectativa.
- E Copeland está sujeito a vigilância periódica desde há um ano, por suspeita de passar códigos de segurança do Exército a determinados grupos de milícias, um dos quais é... e vai adorar esta... o Exército Republicano do Texas.
- Mas, como o caso entre eles dura apenas há um mês acrescentou a agente - a DARPA não deve ter pegado no caso, para lançar uma investigação de acompanhamento.
Demonaco suspirou.
- E o Exército e a Marinha não são propriamente unha com carne. Há anos que andam a puxar o tapete debaixo dos pés uns dos outros. - Demonaco voltou-se e chamou: - Capitão Mitchell?
- Sim?
O Exército tem uma Supernova?
- Não deveria ter.
- Responda à pergunta.
- Pensamos que eles têm andado trabalhando numa.
- Então - disse Demonaco - será possível esta Sra O’Connor ter convencido o marido a fornecer, a ela e ao Exército, códigos secretos da DARPA e, depois, tê-los passado ao amante, Copeland, sem saber que ele ia transmiti-los aos Texanos?
- É isso que nós pensamos - respondeu o agente do FBI.
- Porra!
Frank Nash desceu do Black Hawk com o Espírito do Povo na mão. Depois dele, saíram Lauren, Marty, Copeland e o piloto.
Os dois Black Hawks não identificados que tinham aterrado de cada um dos lados do helicóptero do Exército deixaram as pás das hélices a rodar.
- Afastem-se do helicóptero! - ordenou a voz que falava pelo alto-falante.
Nash e os outros obedeceram.
Um instante depois, um novo rastro longilíneo de fumaça partiu de outro dos Black Hawks que pairavam sobre a aldeia e desceu do céu a uma velocidade incrível. O míssil bateu no Black Hawk do Exército, reduzindo-o a mil pedaços.
Nash pestanejou.
Fez-se um longo silêncio, perturbado apenas pelo ruído das pás das hélices dos dois helicópteros sem identificação, que continuavam a girar.
Passado quase um minuto, um homem, um único homem, saiu do helicóptero sem identificação que se encontrava mais próximo.
Usava uniforme de combate completo - botas, farda de trabalho, colete de proteção - e a sua mão esquerda empunhava uma pistola semi-automática de aspecto estranho.
Era uma arma preta, grande, maior do que a famosa IMI Desert Eagle, a maior pistola semi-automática de fabricação em série de todo o mundo. Mas esta arma tinha uma coronha pesada e uma corrediça comprida, que se estendia a quase todo o comprimento do cano.
Nash reconheceu-a imediatamente.
Não era uma pistola semi-automática. Era uma pistola Calico, uma arma muito rara e muito cara, a única pistola realmente automática do mundo. Bastava premir o gatilho e o cano cuspia uma chuva de balas. Tal como a M-16, a Calico podia ser regulada para disparar rajadas curtas de três balas ou para automático pleno. Mas, qualquer que fosse a opção escolhida, o resultado era o mesmo. Matar uma pessoa com uma Calico equivalia a esquartejá-la.
O homem que empunhava a Calico avançou para Nash, enquanto os homens que se encontravam no helicóptero sem identificação apontavam as suas M-16 para os outros.
O homem estendeu a mão.
- O ídolo, por favor - disse.
Nash avaliou-o por alguns instantes. Era um homem de meia-idade, magro, macilento, com braços musculados e rijos. Tinha um rosto encovado e corado, coberto de cicatrizes, e umas mechas desgrenhadas de cabelo louro e ralo, que lhe caíam para cima dos olhos, uns olhos azuis iluminados pelo ódio.
Nash não lhe entregou o ídolo.
Foi então que o homem que empunhava a Calico ergueu calmamente a pistola e, com uma rajada curta de três tiros, fez voar a cabeça do piloto.
- O ídolo, por favor - repetiu o homem. Relutantemente, Nash entregou-lhe.
- Obrigado, coronel - disse o homem.
- Quem é você? - perguntou Nash.
O homem inclinou ligeiramente a cabeça para o lado. Depois, muito devagar, os cantos da sua boca ergueram-se num sorriso maldoso.
- O meu nome é Earl Bittiker - respondeu.
- E quem diabo é que é Earl Bittiker? - disse Nash, com desdém.
O homem voltou a sorrir, com o mesmo sorriso arrogante.
- O homem que vai destruir o mundo.
Pelas janelas do ATV, Race, Renée, Gaby e Doogie assistiam ao drama que se desenrolava no exterior.
- Como é que eles sabiam como é que se chegava aqui? perguntou Renée. - Não me digam que há outro exemplar do manuscrito.
- Não, não há - respondeu Race. - Mas julgo que sei como foi que eles chegaram aqui.
Race começou a olhar em volta, perscrutando o interior do ATV, à procura de qualquer coisa. Segundos depois, encontrou o que pretendia: o computador portátil da equipe do BKA. Ligou-o e, ao cabo de alguns segundos, chegou a um documento escrito em alemão, que já tinha visto antes.
TRANSMISSÃO DE COMUNICAÇÕES POR SATÉLITE
44-76/BKA32
No. DATA HORA ORIGEM RESUMO
1 4.1.99 19.30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
2 4.1.99 19.50 EXTERIOR SINAL INDICATIVO UHF
3 4.1.99 22.30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
4 5.1.99 01,30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
5 5.1.99 04.30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
6 5.1.99 07.16 TERRENO (CHILE) CHEGADA SANTIAGO PARTIDA PARA COLONIA ALEMANIA
7 5.1.99 07,30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
8 5.1.99 09.58 TERRENO (CHILE) CHEGADA COLONIA ALEMANIA; COMEÇO VIGILÂNCIA
9 5.1.99 10.30 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO
10 5.1.99 10.37 TERRENO (CHILE) EQUIPE CHILE SINAL DE EMERGÊNCIA EQUIPE CHILE SINAL DE EMERGÊNCIA
11 5.1.99 10.51 SEDE BKA EQUIPE PERU INFORME IMEDIATAMENTE
Era o documento que eles tinham visto na véspera, antes da chegada dos nazis, o documento que apresentava todos os sinais de comunicações recebidas pela equipe do BKA no Peru.
Race encontrou a linha que lhe interessava. A segunda linha:
2 4.1.99 19.50 EXTERIOR SINAL INDICATIVO UHF
- Doogie - chamou. - Ontem, disse qualquer coisa acerca de um sinal UHF. O que é exatamente isso?
- É um sinal de localização normalizado. Ontem, enviei um à nossa equipe de apoio aéreo, para eles saberem onde tinham que nos vir buscar.
Renée apontou para a tela.
- Mas este sinal de UHF foi enviado há dois dias, a 4 de janeiro, às 17:50. Bem antes de a minha equipe ter chegado aqui.
- Pois é - confirmou Race. - E a data e a hora são importantes.
- Porquê? - perguntou Doogie.
- Porque, na primeira noite, exatamente às 17 e 45, a Lauren fez a leitura da ressonância nucleótida e verificou a existência de tírium nas proximidades da aldeia. Este sinal de UFIF foi enviado precisamente cinco minutos depois da leitura positiva da ressonância. E que estávamos nós a fazer nessa altura?
- Estávamos descarregando os helicópteros - respondeu Doogie, encolhendo os ombros. - Preparando o nosso equipamento.
- Exatamente - disse Race. - A oportunidade ideal para alguém enviar um sinal de UHF, sem ninguém ver. E esse sinal diria aos seus amigos que tinha sido confirmada a presença de tírium.
- Mas quem é que fez isso? - perguntou Gaby. Race apontou para a janela.
- Acho que estamos quase descobrindo quem foi.
Earl Bittiker tirou outra pistola Calico do coldre suplementar e entregou-a a Troy Copeland.
- Olá, Troy – cumprimentou.
- Ainda bem que veio - respondeu Copeland, engatilhando a enorme pistola.
Lauren ficou mortalmente pálida.
- Troy? - murmurou, sem poder acreditar. Copeland sorriu-lhe. Era um sorriso perverso e cruel.
- Devias ter mais cuidado com os homens com quem fodes, Lauren. Pode acontecer, eles andarem a foder-te, sem você saber. Embora imagine que não te deve acontecer muitas vezes seres fodida sem saberes.
O rosto de Lauren escureceu. Ao lado dela, Marty empalideceu.
- Lauren?
Copeland riu-se entre dentes.
- Marty, Marty, Marty. O merdinha do Marty, que traiu a DARPA, para ver se conseguia ser alguém. Devia ter mais cuidado com as pessoas a quem dá informações, meu amigo. Mas claro que você não podia saber que a sua mulher andava a foder com outro homem.
Imóvel, com todo o corpo tenso, Race observava a cena que se passava lá fora.
Conseguia ouvir o que Copeland estava dizendo a Marty, humilhando-o.
- E ela até gostava bastante - escarneceu Copeland. - Na verdade, não me lembro de muitas coisas que me tenham agradado mais do que ouvir a sua mulher gritar, quando tinha um orgasmo.
O rosto de Marty ficou muito vermelho, de cólera e de humilhação.
- Eu mato-o - grunhiu.
- Não me parece - respondeu Copeland, apertando o gatilho da Calico, que cuspiu uma rajada rápida de balas para o abdome de Marty.
Race ficou boquiaberto quando ouviu disparar a arma. A súbita rajada de três balas rasgou em pedaços a camisa de Marty e o seu estômago transformou-se numa horrível massa vermelha. Race viu-o cair pesadamente no chão.
- Marty - murmurou.
Lá fora, na rua principal, Copeland apontou a pistola para Lauren, ao mesmo tempo que Earl Bittiker apontava a sua para Frank Nash.
- Como foi que você disse, Frank? - perguntou Copeland a Nash. - A lei dos acontecimentos inesperados: grupos terroristas que deitam as mãos a uma Supernova, Confesse lá. Para si, aquela arma era só um instrumento para fazer bluff, uma arma que você tinha na mão mas que nunca teria coragem para utilizar. Talvez devesse ter encarado o problema doutra maneira: não se deve construir aquilo que não se tenciona utilizar.
Copeland e Bittiker dispararam ao mesmo tempo.
Nash e Lauren caíram juntos, fazendo saltar jatos de lama. Lauren levou um tiro no coração e teve morte instantânea. Mas Nash foi atingido no estômago e caiu ao chão, uivando de dor.
Depois, já na posse do ídolo, Bittiker e Copeland correram para um dos Black Hawks sem identificação e saltaram para bordo.
Os dois grandes helicópteros pretos levantaram imediatamente vôo. Depois de terem sobrevoado as copas das árvores, aumentaram a velocidade e afastaram-se, na direção sul, para longe de Vilcafor.
M al os helicópteros dos Texanos desapareceram, Race escancarou a escotilha traseira do ATV e correu para a rua principal. Ajoelhou-se ao lado do corpo caído de Marty, que, com as poucas forças que lhe restavam, tentava voltar a colocar os intestinos no lugar. Saía-lhe sangue da boca e, quando olhou para os olhos do irmão, Race viu apenas medo e choque.
- Oh, Will... Will - disse Marty, com os lábios a tremer, ao mesmo tempo que agarrava o braço de Race, com a mão ensanguentada.
- Porquê, Marty? Porque foi que fizeste isto? - Will... - sussurrou ele. - A ignição... Race amparou-o nos braços.
- O que é? O que é que está tentando me dizer?
- Peço... desculpa... sistema... ignição... por favor, detenha... eles..
Depois, lentamente, os olhos de Marty fixaram-se longe, lá no alto, num olhar sem vida, e o seu corpo coberto de sangue ficou flácido nos braços de Race.
Foi então que Race ouviu uma espécie de gorgolejo baixinho, vindo atrás dele.
Voltou-se e viu Frank Nash deitado de costas, a poucos metros de distância. O ventre de Nash também tinha sido dilacerado. Tossia e o sangue que lhe saía da garganta fazia-o engasgar-se.
Em seguida, de repente, Race distinguiu um movimento, por trás de Nash.
O primeiro nativo curioso estava saindo do meio das árvores.
- Professor - chamou Doogie, baixinho, do ATV - Acho que... é capaz de ser boa idéia irmos embora daqui.
Os outros nativos emergiram da floresta. Ainda traziam consigo as suas armas primitivas - paus, arcos e machados - e pareciam zangados como o diabo.
Lenta e suavemente, Race deitou o corpo de Marty no chão. Depois, lentamente, muito lentamente, pôs-se de pé e dirigiu-se para o ATV.
Os nativos mal repararam nele.
Só tinham olhos para uma pessoa - Nash - que continuava deitado, no meio da rua principal, a cuspir sangue.
Então, com um grito selvagem e estridente, todos os índios convergiram para Nash, como um bando de piranhas. Num instante, Race deixou de ver o coronel assassino e, segundos depois, a única coisa visível era uma turba irada de nativos de corpos cor de azeitona, reunidos à volta do lugar onde estava Nash, batendo violentamente com os seus paus e machados. Depois, de repente, por entre todo o barulho que eles faziam, Race ouviu um grito terrível, um grito de puro terror, que só podia ter sido soltado por um homem.
Frank Nash.
Race bateu com a escotilha traseira do ATV e olhou para os três rostos que tinha diante de si.
- Muito bem - disse. - Parece que vamos ter que fazer tudo outra vez. Temos que deter aqueles filhos da mãe antes que eles utilizem aquele ídolo numa Supernova.
- Mas como? - perguntou Doogie.
- A primeira coisa que temos de fazer - respondeu Race - é descobrir para onde é que eles o levaram.
Race e os outros correram pelos estreitos túneis do quenko, tão rapidamente quanto lhes permitiam os seus corpos feridos. Quase não dispunham de poder de fogo: só duas SIG-Sauer e a única MP-5 que Doogie tinha encontrado na aldeia do planalto. No que se referia a proteção corporal, Doogie continuava vestido com o uniforme de combate e Race o estranho colete Kevlar. E era tudo.
Mas todos sabiam para onde iam e era isso que interessava. Iam a caminho da queda de água.
Em busca do Goose que ali ficara escondido, na margem do rio.
Ao fim de cerca de dez minutos de corrida, chegaram à queda de água, que havia ao fundo do quenko. Mais quatro e chegaram junto do Goose, que estava estacionado exatamente onde Race, Doogie e Van Lewen o tinham deixado, por baixo de uns ramos baixos das árvores da beira do rio. Race ficou contente por ver que Uli continuava ali, dormindo, são e salvo.
Passados quatro minutos, o pequeno hidroavião estava novamente na água, saltando sobre as ondas, deslizando sobre a vasta superfície castanha do rio. Acelerou rapidamente até à velocidade que lhe permitia levantar vôo e, depois, de repente, subiu majestosamente acima da superfície e ergueu-se nos ares.
Depois de se encontrarem no ar, Doogie fez o avião dar meia volta, apontando-o diretamente para sul, a direção em que tinham seguido os Black Hawks dos Texanos.
Ao cabo de uns quinze minutos de vôo, Doogie avistou-os: oito manchas negras no horizonte. Estavam voltando para a direita, sobre as montanhas, seguindo agora para sudoeste.
- Estão a ir para Cuzco - observou Doogie.
- Não os perca de vista - disse Race.
Uma hora mais tarde, os oito helicópteros Black Hawk aterravam num aeroporto privado, nos arredores de Cuzco.
Majestosamente pousado na pista de terra batida, à espera deles, estava um avião cargueiro de grande porte, um Antonov An-22. Com o seu sistema de quatro propulsores e uma enorme rampa de carga traseira, o An-22 tinha sido, durante muito tempo, uma das aeronaves de transporte de tanques mais confiáveis da União Soviética. Era também um valioso bem de exportação, que fora vendido com regularidade a países que não podiam permitir-se ou não estavam autorizados a comprar aviões cargueiros americanos.
Contudo, com o fim da Guerra Fria e com a derrocada da economia russa, muitos An-22 tinham ido parar no mercado negro. Enquanto as estrelas de cinema e os profissionais do golfe compravam Lear Jets, por 30 milhões de dólares, as organizações paramilitares podiam comprar um An-22 de segunda mão, por pouco mais de 12 milhões.
Earl Bittiker e Troy Copeland saltaram do helicóptero e correram para a rampa de carga da grande aeronave de transporte.
Quando chegou à traseira do avião, Bittiker olhou para o imenso porão de carga, contemplando com orgulho a sua jóia da coroa.
Um carro de combate M-1A1 Abrams.
Tinha um aspecto fantástico. Era a verdadeira imagem de força brutal e indomável. A sua fuselagem blindada era pintada de um preto opaco, as suas esteiras monstruosamente largas, achatadas devido ao peso, pareciam agarradas ao porão de carga.
Bittiker olhou fixamente para o imponente canhão de teto trapezoidal, resolutamente voltado para a frente, na direção da cabine do avião, para o longo canhão de 105 mm, apontado para cima, num ângulo de 30 graus.
Bittiker olhava apreciativamente para o Abrams, com uma satisfação fria. Era o esconderijo perfeito para a Supernova roubada. Era inexpugnável.
Entregou o ídolo a um dos técnicos dos Combatentes da Liberdade e o homenzinho voltou a entrar no avião e correu para o tanque.
- Meus senhores - disse Bittiker, dirigindo-se, por rádio, aos homens que se encontravam nos outros helicópteros. – Muito obrigado pelos vossos leais serviços. A partir de agora, nós nos ocuparemos do resto. Até à próxima vida.
Depois, largou o rádio, pegou no telefone celular e marcou o número de Bluey James.
O telefone tocou, no apartamento de Bluey. O equipamento digital de localização de chamadas do FBI iluminou-se que nem uma árvore de Natal.
Demonaco pegou num par de auscultadores e, depois, fez sinal a Bluey.
Bluey atendeu o telefone.
- Alô?
- Bluey, fala Bittiker. Já temos o tírium. Pode mandar a mensagem.
- Certo, Earl.
Bittiker desligou o telefone e, seguido de Copeland, subiu a rampa de carga e, depois, entrou no Antonov.
Eram 11h e 13 minutos da manhã.
- Deus do céu! Eles já estão levantando vôo! - exclamou Doogie, apontando para o velho Antonov, que se erguia da pista de terra batida, em direção ao céu.
- Olhem para o tamanho daquela coisa - comentou Renée.
- Acho que acabamos de descobrir onde é que eles têm a Supernova - disse Race.
O Antonov elevou-se nos ares, com as enormes asas a brilhar sob o sol da manhã.
Por entre o silêncio sepulcral que reinava no ventre do blindado Abrams, que seguia no seu porão cavernoso, dois técnicos dos Combatentes da Liberdade trabalhavam com a máxima cautela numa câmara de vácuo selada, extraindo lentamente, com um cortador a laser, uma pequena porção da base do ídolo de tírium.
Por trás dos dois técnicos, ocupando quase todo o espaço disponível do interior do grande tanque, encontrava-se a Supernova - A Supernova que, dois dias antes, se encontrava na caixa forte, no quartel-general da DARPA.
Depois de, com a ajuda de dois super-computadores MM, alinhados junto à parede do porão de carga, terem extraído a seção cilíndrica de tírium, submeteram-na a otimização por ondas alfa, a purificação com gás inerte e a enriquecimento de prótons, transformando a seção de tírium numa massa subcrítica.
- Quanto tempo falta para isso ficar pronto? - perguntou, subitamente, uma voz, vinda de cima.
Os dois olharam e avistaram Earl Bittiker, olhando para eles pela escotilha circular do topo do tanque.
- Mais quinze minutos - respondeu um deles. Bittiker olhou para o relógio.
Eram 11 h e 28.
- Informem-me, quando tiverem acabado.
- Doogie - chamou Race, sem perder de vista a enorme aeronave de carga, que voava acima deles. - Como é que se abrem as rampas de carga destes aviões de carga grandalhões? Doogie franziu o sobrolho.
- Há duas maneiras. Ou se utiliza um botão que há num console, dentro do porão de carga, ou utiliza-se o console exterior.
- O que é o console exterior?
- São só dois botões, escondidos dentro de um compartimento, no exterior do avião. Geralmente, ficam do lado esquerdo da rampa de carga e são cobertos por um painel que os protege do vento.
- É preciso algum código, ou coisa assim, para abrir o painel?
- Não - respondeu Doogie. - Quero dizer, não é muito provável alguém abrir a rampa de carga, do lado de fora, em pleno vôo, não é mesmo?
Doogie voltou-se para Race. E, então, de repente, abriu muito os olhos:
- Deve estar brincando.
- Nós temos que pegar aquele ídolo, antes deles o colocarem na Supernova - disse Race. - É tão simples como isso.
- Mas como?
- Faça-nos subir até à traseira daquele avião. Mantenha-se cá por baixo, para eles não nos verem. Depois aproxime-se de mansinho.
O que é que vai fazer?
Race voltou-se e observou o lamentável grupo de pessoas que o rodeavam: Doogie, ferido a tiro na perna e no ombro; Renée, com um ferimento no ombro; Gaby, ainda parcialmente em estado de choque, devido às recentes aventuras por que tinham passado; Uli, fora de combate.
Race abafou uma gargalhada, - O que é que eu vou fazer? Vou salvar o mundo.
E, dito isto, pôs-se de pé e pegou na única metralhadora disponível, a MP-5 da Marinha.
- Tudo pronto. Leve-nos até lá acima.
Os dois aviões cruzavam velozmente o céu límpido da manhã. O Antonov voava a cerca de 11.000 pés de altitude, três quilômetros acima da Terra, seguindo a uma confortável velocidade de cruzeiro de 200 nós, à medida que ia subindo cada vez mais. Embora o Antonov não o soubesse, havia um avião menor, o Goose, que o seguia no seu movimento de ascensão, aproximando-se rapidamente da seção da sua cauda.
A fuselagem do pequeno hidroavião estremeceu violentamente, quando o aparelho atingiu a sua velocidade máxima de 220 nós. Doogie agarrava a manche com toda a sua força, tentando manter estável o avião.
A coisa estava preta. A altitude máxima operacional do Goose era de 21.300 pés. Se continuasse a subir, o Antonov ficaria em breve fora do alcance do Goose.
O pequeno hidroavião aproximou-se gradualmente do monstruoso avião cargueiro. Os dois aparelhos realizavam um estranho bailado aéreo, em que a andorinha corria atrás do albatroz. Lentamente, muito lentamente, o Goose aproximou-se da traseira do Antonov e colocou o nariz por trás da traseira do avião maior.
Então, de repente, sem aviso prévio, a escotilha dianteira do Goose abriu-se, dela emergindo a figura minúscula de um homem, visível da cintura para cima.
A força do vento que bateu na cara de Race, quando ele colocou a cabeça para fora da escotilha dianteira do Goose, era absolutamente colossal.
Colidiu com o seu corpo, fustigando-o. Se não tivesse o colete Kevlar, com certeza que o vento o teria arrastado.
Race viu a traseira manchada de lama do Antonov agigantando-se diante de si, a cerca de quatro metros e meio de distância. Santo Deus, era enorme...
Parecia a cauda do maior pássaro do mundo. E, então, Race olhou para baixo, para o solo. Ah... Merda!
O mundo estava lá muito em baixo, muito longe. Imediatamente por baixo de si, Race viu um mosaico de colinas e campos e, mais ao longe, para Leste, a infinita floresta tropical.
Não penses na queda, gritava uma voz na sua cabeça. Mantém-te concentrado no que tens a fazer!
Certo. OK.
Tinha de agir rapidamente, antes de ficar sem fôlego e antes que os dois aviões se elevassem a uma altitude tal em que o ar rarefeito e o vento gelado o congelasse.
Race acenou a Doogie pelo vidro da frente do Goose, indicando-lhe que se aproximasse mais do Antonov.
O Goose aproximou-se um pouco mais. Dois metros e meio.
Earl Bittiker e Troy Copeland estavam sentados na cabine do Antonov, sem saber o que se passava na sua retaguarda.
De repente, o telefone de parede ao lado de Bittiker tocou.
- Sim? - respondeu Bittiker.
- Já colocamos o tírium no dispositivo. - Era o técnico encarregado de armar a Supernova. - Está pronta.
- Muito bem. Desço já.
O Goose estava a um metro do Antonov e 15.000 pés acima do mundo. E continuava a subir.
Race tinha todo o corpo de fora da escotilha dianteira do Goose. Diante de si, estava a rampa do Antonov. A rampa ainda estava firmemente fechada e a sua existência só era denunciada por finas linhas dentadas que formavam um quadrado na traseira do enorme avião.
Então, Race viu o painel inserido na fuselagem do aparelho, à esquerda da rampa.
Fez sinal a Doogie para aproximar um pouco mais o Goose.
Bittiker saiu do convés superior do Antonov e parou numa passadeira de metal, olhando para baixo, para o compartimento de carga. Viu o gigantesco tanque, lá embaixo, com o potente canhão apontado diretamente para ele.
Olhou para o relógio.
Eram 11 horas e 48. o VCD já devia ter ido para o ar uma boa meia hora antes. O Mundo devia estar em pânico. O Dia do Juízo Final tinha chegado.
Bittiker desceu uma escada, subiu para a torre do tanque e entrou lá para dentro.
Chegou ao ventre do Abrams e viu a Supernova, com as duas ogivas termonucleares suspensas na sua posição de ampulheta e a seção cilíndrica de tírium suspensa na horizontal, entre as duas, dentro da câmara de vácuo.
Acenou com a cabeça, satisfeito.
- Iniciem a sequência de detonação - ordenou.
- Sim, capitão - respondeu um dos técnicos, saltando para junto do computador portátil ligado à parte da frente do dispositivo.
- Regule-a para doze minutos - ordenou Bittiker. - Meio-dia. O técnico escreveu rapidamente no teclado e, segundos depois, a tela mostrava o cronômetro:
RESTAM 00:12:00 MINUTOS PARA INSERIR CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO
INSIRA CÓDIGO AQUI _ _ _ _ _ _ _ _
O técnico pressionou a tecla ENTER e o cronômetro iniciou a contagem decrescente. Ao mesmo tempo, Bittiker pegou no celular e marcou novamente o número de Bluey Jones.
No apartamento de Bluey, as luzes do equipamento digital de localização de chamadas telefônicas começaram de novo a piscar, como as luzes de uma árvore de natal.
Bluey pegou no telefone.
- Alô?
- A mensagem já foi transmitida?
- Já está no ar, Earl - mentiu Bluey, olhando para John Paul Demonaco.
- Há pânico nas ruas?
- Como você jamais acreditaria - respondeu Bluey.
O Goose aproximou-se ainda mais da traseira do Antonov. Entre os dois aviões em ascensão havia agora apenas a distância de meio metro.
Confrontado com o vento fustigante, demolidor, Race agarrou-se à escotilha do Goose com uma mão, enquanto, com a outra, tentava alcançar o painel do avião de carga, esticando-se o mais que podia.
Ainda estava longe demais. Doogie aproximou o Goose um pouco mais, o mais a que se atreveu...
... E Race agarrou o painel e abriu-o.
Viu dois botões - um vermelho, outro verde - e, sem pensar duas vezes, deu um murro no botão verde.
Com um ruído estrondoso, a rampa de carga do Antonov começou a descer, por cima do nariz do Goose!
Com os reflexos de um felino, Doogie manobrou rapidamente o pequeno hidroavião, afastando-o da trajetória da rampa descendente e, com a manobra, quase fez Race saltar da escotilha! Mas Race segurou-se com toda a força e conseguiu manter o equilíbrio, ficando meio dentro, meio fora da escotilha do Goose enquanto, com destreza, Doogie colocava o pequeno hidroavião atrás do Antonov e a rampa da gigantesca aeronave de carga se abria diante deles.
Os dois aviões continuaram a voar, um atrás do outro, pelos céus do Peru: o enorme Antonov e o pequeno Goose separados por pouco mais de meio metro, chegando aos 18000 pés de altitude. Só que, agora, a rampa de carga, na traseira do Antonov, estava aberta, mesmo em frente do nariz do pequeno hidroavião!
Então, no exato momento em que a rampa ficou completamente aberta e apesar de estar 18.000 pés acima do solo, a minúscula figura de William Race emergiu da escotilha, por entre o vento fortíssimo, e saltou do nariz do Goose para a rampa aberta do Antonov.
Race aterrou de barriga para baixo na rampa de carga do enorme cargueiro voador.
Procurou qualquer coisa a que se agarrar, para não ser sugado para fora do avião, rastejou ao longo da rampa, de barriga no chão, primeiro uma mão e depois a outra, com o vento a rugir à sua volta, avançando de bruços, sem nada atrás de si a não ser o Goose e 18.000 pés de céu limpo.
É engraçado o que a vida nos leva a fazer...
O enorme compartimento de carga estendia-se à sua frente. Race viu o monstruoso tanque Abrams, orgulhosamente instalado no centro do compartimento, viu que o vento arrastava tudo o que não estivesse pregado ao chão, viu as luzes vermelhas de aviso a piscar e ouviu o grito histérico das sirenes de alarme que estavam, sem dúvida, a avisar quem quer que estivesse a bordo do avião de que a rampa de carga tinha sido ilegalmente aberta.
Earl Bittiker já sabia.
Mal a rampa ficara aberta meio metro, tinha ouvido o silvo do vento entrando no porão de carga. Uma fração de segundo depois, seguira-se o uivar agudo das sirenes.
No local onde se encontrava, no ventre do tanque Abrams, com o celular ainda encostado ao ouvido, Bittiker girou sobre si mesmo.
- Mas que merda vem a ser isto? - vociferou, subindo as escadas do tanque para o exterior.
Já de pé, Race tirou do ombro a sua MP-5 e esgueirou-se pelo reduzido espaço entre o enorme tanque e a parede do porão de carga.
De súbito, a cabeça de um homem emergiu da escotilha, no cimo do tanque, à sua esquerda.
Race voltou-se de repente e apontou a arma ao homem.
- Quieto! - gritou.
O homem ficou quieto.
Race arregalou os olhos, quando percebeu quem era.
Era o homem que tinha tirado o ídolo de Frank Nash, em Vilcafor, o líder dos terroristas.
Grande merda.
Estranhamente, o homem tinha um telefone na mão, um celular.
- Desce daí! - berrou Race.
A princípio, Bittiker não se mexeu. Limitou-se a olhar para Race, numa espécie de pasmo boquiaberto. Não afastava os olhos daquele homem de óculos, vestido com um jeans e uma camiseta imunda, um velho boné dos New York Yankees e um colete Kevlar preto, que lhe apontava uma MP-5 e lhe dava ordens daquela maneira.
Bittiker olhou para trás de Race, para a rampa de carga aberta, e viu o pequeno hidroavião Goose que voava uns vinte metros atrás do Antonov, numa tentativa sem sucesso, acompanhar a gigantesca aeronave de carga que se elevava nos céus.
Lentamente, Bittiker desceu da torre do tanque, até ficar em frente de Race.
- Dá-me a merda do telefone - ordenou Race, arrancando o celular da mão do terrorista. - Afinal, com quem é que estava falando?
Race levou o telefone ao ouvido, mantendo os olhos e a arma voltados para Bittiker.
- Quem fala? - perguntou, ao telefone.
- Quem sou eu? - respondeu uma vozinha desagradável. - Quem é você, essa é a pergunta mais adequada.
- Chamo-me William Race. Sou um cidadão americano que foi trazido para o Peru para ajudar uma equipe do Exército a encontrar uma amostra de tírium para colocar numa Supernova.
Do outro lado da linha, ouviu-se um grande burburinho. - Senhor Race - disse, de repente, outra voz. - Sou o agente especial Demonaco, do FBI. Estou investigando o roubo de uma Supernova das instalações da Defesa...
- Não vai conseguir pará-la - disse Bittiker, com uma forte pronúncia texana. - Não vai conseguir pará-la.
- Porquê? - perguntou. Race.
- Porque nem eu sei desativá-la - respondeu Bittiker. - Eu certifiquei-me de que nosso pessoal só iria saber armá-la. Assim, depois de ativada, ninguém ia conseguir pará-la.
- Ninguém sabe o código de desativação?
- Ninguém - respondeu Bittiker. - Exceto, imagino eu, algum babaca cientista de Princeton, na DARPA. Mas isso não nos vai ajudar agora, não é?
Race mordeu os lábios de frustração.
As sirenes de alarme continuavam a tocar. Não tardava nada, iam aparecer mais Texanos, para ver o que se passava...
Tiros. Repentinos e bem sonoros.
Crivaram o chão, à sua volta, fazendo saltar faíscas. Race saltou para fora da trajetória das balas, rolou pelo chão, enfiando o celular no bolso de trás das calças, olhou para cima e viu Troy Copeland, de pé, na passarela que dava ao porão de carga, acompanhado por mais dois Texanos. Os três disparavam contra Race com as suas pistolas Calico.
Bittiker aproveitou a oportunidade e agachou-se atrás da esquina frontal do tanque, fora do campo de visão de Race. Race comprimiu-se contra as enormes esteiras do tanque, fora da linha de fogo, pelo menos de momento.
Estava ofegante e sentia o coração batendo com força, dentro da cabeça.
Que diabo vai você fazer agora, Will?
Então, de súbito, ouviu alguém gritar o seu nome.
- É você, Professor Race? - Era Copeland. - Você é um filho da puta persistente.
- É melhor que ser um idiota babaca - murmurou Race entredentes, enquanto se levantava, de repente, detrás do tanque, disparando contra Copeland e os outros dois terroristas, uma curta rajada que passou a metros deles.
Droga, pensou Race. O que é que havia de fazer agora? Não tinha planejado as coisas com tanto pormenor.
A Supernova, disse uma voz, dentro da sua cabeça. Desarmá-la! É isso o que tens de fazer.
Afinal, pensou, nesta viagem, já tinha conseguido desarmar uma Supernova.
E, com isto, Race pôs-se em pé e apertou o gatilho da MP-5, disparando à toa para a passarela, enquanto subia pela borda do tanque Abrams. Depois, subiu para a torre do tanque e saltou pela escotilha para dentro do interior da enorme besta metálica.
F oi acolhido pelos olhares atônitos dos dois técnicos dos Combatentes da Liberdade encarregados de armar a Supernova.
- Fora! Já! - gritou, apontando-lhes a MP-5. Os dois técnicos apressaram-se a subir a escada e saíram pela escotilha da torre, fechando-a com força ao sair. Race trancou-a e, de repente, viu-se sozinho no centro de controle do tanque. Sozinho com a Supernova.
Estava comaçando a sentir uma terrível sensação de déjà vu. Pegou o celular no bolso de trás.
- Agente do FBI, ainda está aí? John-Paul Demonaco saltou para o seu microfone.
- Estou aqui, Sr. Race - respondeu, rapidamente.
- Como é que disse que se chamava? - perguntou Race. Um dos outros agentes disse:
- A localização está chegando. Mas que raio?... Diz que eles estão no Peru... e que estão a 20000 pés de altitude.
- Chamo-me Demonaco - começou Demonaco. - Agente especial John-Paul Demonaco. Agora, escute com muita atenção, senhor Race. Onde quer que esteja, tem de sair daí. As pessoas que estão consigo são indivíduos muito perigosos.
Não me digas, Sherlock!
- Hum... - disse a voz de Race.
- Receio que sair daqui esteja fora de questão - respondeu Race, no celular.
Enquanto falava, no entanto, viu a contagem decrescente no cronômetro da Supernova.
00:02:01
00:02:00
00:01:59
- Ah, deves estar gozando comigo - exclamou. - Isto não é justo.
- SAIA DO TANQUE, PROFESSOR RACE! - berrou uma voz horrivelmente estrondosa, num alto-falante no exterior do Abrams. Era a voz de Copeland.
Race espreitou pela mira do artilheiro do enorme veículo e viu Copeland parado, na passarela, na parte da frente do porão de carga, com um microfone na mão.
O vento soprava furiosamente no porão. A rampa de carga, por trás do tanque, continuava aberta.
Race olhou à sua volta, no interior do enorme tanque.
A Supernova ocupava a totalidade da parte central do centro de comando. Por cima dele, ficava a escotilha de entrada da torre. À sua frente, estavam os comandos de tiro da peça de 105 mm e, a seguir a estes, mesmo por baixo deles, semi-enterrada no centro do chão do tanque, viu uma cadeira acolchoada e uma manche, os comandos de direção do tanque.
Havia qualquer coisa muito estranha naquele console de direção. O topo da cadeira do condutor quase tocava no teto.
E, então, Race percebeu porquê.
Num tanque como aquele, o condutor ia com a cabeça de fora, saindo por uma pequena escotilha por cima da cadeira.
Race sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe a espinha. Havia outra escotilha lá na frente!
Race mergulhou para a frente, enfiando-se no lugar do condutor, e olhou imediatamente para cima, para ver se era verdade. Havia de fato outra escotilha ali. E estava aberta.
E, de pé, com as pernas abertas, apontando a sua pistola Calico diretamente à cabeça de Race, estava Earl Bittiker.
Quem é você? - perguntou lentamente Bittiker. Chamo-me William Race - respondeu Race, olhando para cima pela escotilha, para Bittiker.
Tinha a cabeça a ferver, à procura de uma saída. Espera lá, havia uma possibilidade...
- Sou professor de línguas na Universidade de Nova Iorque - apressou-se a acrescentar, tentando manter Bittiker falando.
- Um professor? - cuspiu Bittiker. - Puta que me pariu... Race calculou que, do lugar onde se encontrava, Bittiker não conseguia ver as suas mãos, ocultas por baixo da escotilha, nem que ele estava mexendo, às apalpadelas, nos comandos de direção do tanque.
- Diz-me lá, ó gênio, o que estava pensando quando lhe passou pela cabeça vir até aqui?
- Estava pensando que podia desativar a Supernova. E salvar o mundo. Uma coisa assim.
Race continuava às apalpadelas. Raios, tinha de estar por ali...
- Pensou mesmo que conseguiria desativar esta bomba? Encontrou.
Race fitou Bittiker com um olhar duro.
- Enquanto ainda me restar um segundo, vou tentar desativar aquela bomba.
- Sério?
- Isso mesmo - respondeu Race. - Aliás, já fiz isso uma vez. Nesse instante, sem Bittiker ver, Race apertou com força o botão selado com borracha, que tinha encontrado na parte debaixo dos comandos da direção do Abrams. O tal botão selado com borracha, que era instalado em todos os veículos de combate americanos.
VRUUM! O motor monstruoso Avco-Lycoming do tanque tinha despertado de imediato e o seu poderoso motor reverberava no enorme porão de carga.
Abalado pela súbita vibração do motor, Bittiker perdeu o equilíbrio. Na passadeira em frente ao tanque, Troy Copeland também levantou a cabeça, surpreso.
Dentro da cabine de condução, Race olhou em volta, à procura de qualquer coisa que pudesse...
Oh, sim. Perfeito.
Tinha encontrado uma alavanca, com gatilho e tudo, na qual estava escrito CANHÃO PRINCIPAL.
Race agarrou a alavanca, apertou o gatilho e pediu a Deus que o canhão do Abrams estivesse carregado.
Estava.
O estrondo produzido pela peça de 105 mm do tanque, ao disparar dentro do porão de carga do Antonov, devia ser o ruído mais alto que Race alguma vez tinha escutado na vida.
Toda a aeronave de carga estremeceu com violência, quando o poderoso canhão do Abrams disparou em toda a sua glória.
O projétil de 105 mm atravessou o avião, como um meteoro desembestado. Primeiro, arrancou a cabeça de Troy Copeland, com toda a limpeza, rapidamente, removendo-a num instante, como uma bala a arrancar a cabeça de uma Barbie, decapitando Copeland num milésimo de segundo, e deixando o seu corpo de pé, pelo espaço de um segundo, depois da sua cabeça ter sido removida. Mas o projétil não parou ali.
Continuou como um míssil, atravessando a parede metálica por trás do corpo de Copeland, entrando pelo compartimento de passageiros do Antonov como um foguete, penetrando, a uma velocidade colossal, na cabina, fazendo explodir o peito do piloto, antes de desfazer os vidros da cabina numa espetacular chuva de estilhaços.
Com o piloto agora morto e bem morto, o Antonov inclinou-se violentamente para o lado, desgovernado, entrando na primeira fase de uma queda a pique.
No porão de carga, o mundo parecia ter enlouquecido. Race olhou para os estragos que fizera e viu para onde o avião estava indo.
Enquanto ainda me restar um segundo, vou tentar desativar aquela bomba.
Bittiker continuava de pé, na borda do tanque, ainda com a Calico na mão. Mas a descarga do canhão abalara-o profundamente.
Race empurrou as mudanças do tanque e encontrou aquela que queria.
Pisou o acelerador, tocando no fundo.
O tanque respondeu de imediato, as suas esteiras entraram em atividade - e a enorme besta de metal arrancou como um carro de corrida. O único problema foi que arrancou em marcha-ré, deslizando rampa fora e tombando para o céu aberto.
O Abrams caía.
Depressa. Muito, muito depressa.
De fato, assim que o tanque saltou do seu porão de carga, o avião cargueiro Antonov, despedaçado pelo disparo do canhão, inclinou-se lateralmente, iniciou um vôo inclinado e explodiu numa gigantesca bola de chamas.
O Abrams caiu de traseira para baixo, rasgando os céus a uma velocidade fenomenal. Era tão grande, tão pesado que cortava o ar como uma bigorna, uma bigorna de sessenta e sete toneladas.
Dentro do tanque, Race estava tendo problemas até aos cabelos. Tudo o que havia lá dentro, estava tombado, de lado, e o tanque tremia violentamente, devido ao atrito que a sua própria passagem pelo ar criava.
Entretanto, Race estava desajeitadamente deitado no meio do centro de comando, para onde tinha sido atirado quando engatara a marcha-ré e o tanque saltara da rampa. Junto dele, encontrava-se a Supernova, agora na horizontal, firmemente presa, entre o chão e o teto.
Race olhou para a tela, que mostrava o cronômetro e a contagem decrescente:
00:00:21
00:00:20
00:00:19
Dezenove segundos.
Mais ou menos o mesmo tempo de que dispunha, até o tanque se esborrachar no chão, caído de uma altitude de cerca de 20.000 pés. Merda.
Ou a Supernova explodia e ele morria com o resto do mundo ou conseguia desativá-la e morria sozinho, quando o tanque batesse no solo, dentro de dezessete segundos.
Em outras palavras, restava-lhe sacrificar a própria vida para salvar o mundo.
Outra vez.
Porra, pensou Race. Como é que uma coisa destas podia acontecer duas vezes, em dois dias?
Race olhou para a tela do computador:
RESTAM 00:00:16 MINUTOS PARA INSERIR CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO
INSIRA CÓDIGO AQUI _ _ _ _ _ _ _ _
Dezesseis segundos...
O tanque caía céu abaixo, produzindo um ruído que parecia um grito.
Desolado, Race olhou para o cronômetro, que, inexorável, continuava a contagem decrescente.
Nesse momento, de repente, detectou um movimento, pelo canto do olho. Virou- se rapidamente, para olhar para cima, e viu Earl Bittiker, entrando, pela escotilha do condutor, no topo do tanque que caía, desgovernado, de Calico em punho!
Foda-se!
00:00:15
Esquece ele!
Pensa! Pensa? Deus meu, como é que alguém pode pensar, dentro de um tanque Abrams, que vai mergulhando em direção ao solo, a cento e cinquenta quilômetros por hora, com um sujeito entrando pela escotilha, de arma na mão?
00:00:14
Race tentou ordenar os pensamentos.
Muito bem: da última vez, ele sabia que tinha sido Weber a conceber o código de desativação, Mas, desta vez, não fazia a mínima ideia de quem o teria feito, principalmente porque não sabia quem fora que concebera o sistema de ignição.
00:00:13
Sistema de ignição...
Tinham sido essas as últimas palavras de Marty, as palavras que ele tinha proferido, ao morrer nos braços de Race.
00:00:12
O Abrams atingiu a velocidade máxima e começou a emitir um som estridente, como o de uma bomba a cair.
Naquele momento, Bittiker encontrava-se no meio da escotilha do condutor. Bittiker viu Race e disparou contra ele.
Race desviou-se das balas, agachou-se atrás da Supernova, sacou o telefone celular do bolso, enquanto as balas continuavam a embater na parede metálica do tanque, a seu lado.
- Demonaco! - berrou Race, para se fazer ouvir por entre a barulheira do tanque em queda.
O que é, Professor?
- Diga-me depressa! Quem foi que concebeu o sistema de ignição da Supernova da Marinha?
A cinco mil quilômetros de distância, John-Paul Demonaco pegou numa folha de papel. Era a lista com os membros da equipe da Supernova, composta por elementos da Marinha e da DARPA. Os seus olhos detiveram-se numa linha:
RACE, Martin. Engenheiro projetista da DARPA D/3279-97A do sistema de ignição
- Foi um sujeito chamado Martin Race! - gritou Demonaco ao telefone.
Marty, pensou Race.
00:00:11
Fora Marty quem concebera o sistema de ignição. Tinha sido isso que ele tentara dizer-lhe, antes de morrer.
Portanto, o código de desativação tinha sido engendrado por Marty.
00:00:10
Código numérico de oito dígitos.
Naquele momento, Bittiker já tinha acabado de entrar no tanque.
Que código utilizaria Marty?
00:00:09
O tanque continuava a cair, a trezentos metros por segundo. Bittiker viu-o e voltou a erguer a sua Calico.
Qual era o código que o Marty usava sempre?
00:00:08
O aniversário? Uma data relevante? Não. O Marty não.
Quando alguma coisa requeria um código numérico, um cartão de Multibanco ou uma senha de celular, Marty usava sempre o mesmo número.
O número da matrícula do Elvis Presley no Exército.
00:00:07
Bittiker apontou a Calico para Race. Droga, qual era?
Tinha o diabo do número na ponta da língua...
00:00:06
Race baixou-se por trás da Supernova - Bittiker não se atreveria a disparar sobre ela - e deu consigo em frente ao computador de desativação do dispositivo.
Jesus, qual era o número?
533...
Pensa, Will! Pensa!
00:00:05
5331...
...07...
... 61...
53310761!
Era isso!
Race começou a digitar os números no teclado do computador de desativação. Escreveu 53310761 e apertou a tecla ENTER.
A tela emitiu um bip.
CÓDIGO DE DESATIVAÇÃO INTRODUZIDO.
CONTAGEM DECRESCENTE PARA DETONAÇÃO INTERROMPIDA AOS 00:00:04 MINUTOS.
Mas Race não ficou olhando para a tela.
Em vez disso, trepou rapidamente para longe de Bittiker, escudado pela Supernova agora desativada, e dirigiu-se para a curta escada que levava à escotilha da torre do tanque.
Não sabia por que se dirigia para lá. Era apenas uma idéia completamente ilógica de que, se estivesse no exterior do tanque quando este chocasse com o solo, teria mais hipóteses de sobreviver ao impacto.
O impacto não devia tardar.
Ao subir pela escada horizontal, passou pelo ídolo, agora com um buraco na base, e pegou nele.
Chegou à escotilha e empurrou-a. O vento veloz atingiu-o de imediato no rosto, um vento que soprava tão depressa que o cegava. Agarrado ao topo do Abrams, naquele momento na posição vertical, Race fechou rapidamente a escotilha com um pontapé, fechando Bittiker no interior do tanque, no preciso instante em que a tampa metálica da escotilha era atingida por uma saraivada de balas vindas do interior.
Race olhou para baixo, enfrentando o vento ascendente que lhe batia nos óculos, e viu a floresta tropical aproximar-se a um milhão de quilômetros por hora.
O tanque corria em direção ao solo, produzindo uma espécie de gemido estridente.
Dois segundos para o impacto. Era agora.
Um segundo.
O solo precipitou-se na sua direcção.
E, naquele último segundo antes do Abrams se espatifar no solo, a uma velocidade estonteante, William Race fechou os olhos e rezou uma única prece final.
E, então, aconteceu. O impacto.
O tanque colidiu com o solo com uma força assombrosa.
O mundo pareceu estremecer, quando o colosso de sessenta e sete toneladas se esborrachou contra ele, à velocidade máxima. O tanque implodiu ao contato com o solo, achatando-se num milésimo de segundo e espalhando seções inteiras em todas as direções.
Earl Bittiker estava dentro do Abrams, na altura em que este chocou com o solo. Quando o gigantesco tanque de aço se esborrachou no solo, as suas paredes implodiram com uma rapidez vertiginosa e milhares de arestas pontiagudas de metal cravaram-se no corpo do terrorista, penetrando-o por todos os lados, uma fração de segundo antes de ele ser reduzido a nada. Uma coisa era certa, Earl Bittiker tinha morrido gritando.
Entretanto, William Race nem sequer estava perto do tanque, quando este se esmagou no chão.
No segundo que antecedeu o momento de o tanque chocar com a Terra, quando este estava a cerca de 25 metros e meio do solo, Race experimentou uma sensação estranhíssima.
Tinha ouvido um som não muito diferente de um estampido supersônico, vindo de um ponto qualquer, atrás dele e, depois, de repente, sem perceber como, sentira-se puxado para cima, para o ar, por uma força poderosa e invisível. Mas o puxão não fora brutal, nem se assemelhara a uma chicotada. Fora abrupto mas suave, como que vindo de qualquer coisa ligada aos céus por uma espécie de elástico invisível.
Por isso, enquanto o tanque e Bittiker colidiam com o solo numa amálgama de chamas e aço esmagado, Race pairava a dez metros do chão, são e salvo.
E foi então que ele olhou para trás do ombro e viu o que acontecera.
Viu duas colunas de gás branco, saindo do fundo da unidade em forma de A ligada ao seu invulgar colete Kevlar. Na verdade, os dois jatos de propulsor saíram de dois pequenos escapes situados na base do A. Race não sabia mas, o colete preto Kevlar, que Uli lhe tinha dado na lixeira, era uma mochila a jato J-7, a unidade mais avançada que existia em matéria de inserção aérea, criada pela DARPA, em colaboração com o Exército dos Estados Unidos e a 82ª. Divisão Aerotransportada.
Ao contrário dos habituais pára-quedas MC1-1B do Exército, que deixavam os seus utilizadores suspensos, à vista do inimigo, durante vários minutos, antes de aterrarem, os J-7 permitiam aos seus utilizadores descer em queda livre, até chegarem a três metros do solo e, depois, travavam subitamente, mesmo por cima da zona de aterragem, de uma forma muito parecida com a descida de um pássaro.
No entanto, tal como os pára-quedas, todas as mochilas a jato J-7 estavam equipadas com comutadores de altímetro, mecanismos de segurança disparados por este, que acionavam os propulsores da unidade, no caso de o utilizador não conseguir acionálos antes de passar a barreira dos 25 metros de altitude. Tal como acontecera com Race.
Claro que não havia maneira de Race saber que, no dia 25 de Dezembro de 1997, além das quarenta e oito cargas explosivas de cloro roubadas de um caminhão da DARPA que transitava pela marginal de Baltimore, também tinham sido roubadas dezesseis J-7.
Lenta e suavemente, a J-7 pousou Race no solo.
Race soltou um suspiro e, mal podendo respirar, deixou amolecer o corpo, ao descer por entre as copas das luxuriantes árvores da floresta tropical.
Segundos depois, os seus pés tocaram terra firme e ele deixou-se cair de joelhos, exausto.
Race olhou em volta, para a floresta tropical e, num recanto remoto da sua mente, perguntou a si mesmo como diabo é que ia sair dali.
Depois, concluiu que isso já não lhe importava. Tinha acabado de desarmar uma Supernova, enquanto caía de uma altura de 19000 pés, dentro de um tanque de guerra de sessenta e sete toneladas.
Não, realmente nada mais importava. E, nesse momento, a solução para o seu problema apareceu subitamente, sob a forma de um pequeno hidroavião, que voava baixo, por cima das árvores, lá no alto. A mão de um homem acenou alegremente da janela do piloto.
Era Doogie e o Goose.
Lindo.
Trinta minutos mais tarde, graças a um braço de rio convenientemente próximo, Race estava de volta a bordo do Goose, com os outros, voando no céu límpido da tarde, bem por cima da floresta.
Encostou a cabeça à janela da cabine e olhou vagamente lá para fora. Estava exausto.
Ao seu lado Doogie disse:
- Sabe o que eu acho, Professor? Acho que já está na hora de sairmos deste maldito país. O que é que acha?
Race voltou-se para ele:
- Não Doogie. Ainda não. Temos que fazer uma coisa antes de partirmos.
SÉTIMA CONSPIRAÇÃO
Quarta-feira, 6 de janeiro, 17:30
O Goose aterrou no rio, perto de Vilcafor, pouco antes do pôr-do-sol do dia 6 de janeiro de 1999.
Depois de terem novamente aspergido o corpo com urina de macaco, Race e Renée dirigiram-se, mais uma vez, para a aldeia do planalto. Deixaram Doogie e Gaby no Goose, para ela poder tratar das muitas feridas do jovem Boina Verde.
Quando, cansados e exaustos, os dois atravessaram Vilcafor, Race reparou que não havia corpos caídos na rua.
Apesar do fato de cerca de uma dúzia de cientistas da DARPA e da Marinha, além de Marty, Lauren, Nash e Van Lewen terem sido mortos ali, havia apenas algumas horas, não se via qualquer corpo.
Race olhou tristemente para a rua vazia. Tinha uma idéia acerca do lugar onde tinham ido parar os corpos.
Race e Renée entraram na aldeia do planalto, na altura em que a escuridão começava a abater-se sobre os sopés andinos.
O chefe dos nativos e o antropólogo, Miguel Moros Márquez, receberam-nos junto ao fosso, à entrada da aldeia.
- Creio que isto vos pertence - disse Race, apresentando o ídolo que segurava nas mãos.
Roa sorriu.
- Tu és mesmo Aquele que Foi Escolhido - disse. - Um dia, o meu povo cantará canções a teu respeito. Obrigado. Obrigado por nos devolveres o nosso Espírito.
Race inclinou a cabeça. Não se considerava, de modo algum, um «Escolhido». Tinha feito apenas aquilo que pensava estar certo.
- Prometam-me só uma coisa - pediu a Roa. - Prometam-me que, quando eu partir, deixam esta aldeia e desaparecem na floresta. Tenho a certeza de que hão-de vir outros homens, em busca deste ídolo. Levem este ídolo para longe daqui, para onde eles nunca possam encontrá-lo.
Roa acedeu com um aceno.
- Assim faremos, Aquele que Foi Escolhido. Assim faremos. A verdade era que Race ainda não entregara o ídolo a Roa.
- Se me permitir, senhor - disse - há ainda uma coisa que preciso fazer aqui e, para o fazer, vou ter de utilizar o ídolo.
A tribo de nativos reuniu-se na trilha em espiral que contornava a torre de pedra.
A noite já tinha caído e todos eles tinham molhado completamente os corpos com urina de macaco.
Como não tinham podido regressar ao seu covil, dentro do templo, dissera Márquez, os rapas tinham passado o dia escondidos nas escuras sombras da base da cratera.
Race estava parado, na trilha em espiral, olhando para a ravina que, antes, era atravessada pela ponte de corda.
A ponte de corda ainda estava pendurada, encostada do lado da torre, no mesmo slugar onde os nazis a tinham deixado, quando a tinham solto dos seus pilares, vinte e quatro horas antes.
Duplamente coberto de urina de macaco, um dos homens de Roa que trepava com maior agilidade tinha sido enviado à base do desfiladeiro e, dali, iniciara uma hábil escalada da parede quase vertical da torre.
Pouco depois, o homem chegou à longa corda de recuperação que balançava, suspensa da extremidade da ponte de corda. Atou-a a outra corda, que estava sendo segura pelos nativos que se encontravam na trilha em espiral e estes puxaram a corda de recuperação para o seu lado da ravina.
A ponte de corda foi rapidamente reposta no lugar.
- Tem certeza de que quer fazer isto? - perguntou Renée a Race, que estava olhando fixamente para o topo da torre.
- Há uma saída daquele templo - disse Race. - Renco descobriu-a. Eu também vou encontrá-la.
Em seguida, com o ídolo numa mão, uma tocha na outra e um bornal de couro ao ombro, Race atravessou a ponte instável. Uma equipe de dez dos mais fortes guerreiros de Roa seguiu-o.
Todos eles empunhavam tochas acesas.
Depois de terem chegado todos à torre, Race conduziu-os até à clareira em frente ao templo. Ali, tirou uma bexiga com água do bornal de couro e molhou o ídolo de tírium.
O ídolo começou imediatamente a cantarolar. Era um som puro, hipnótico, que cortava a noite como uma faca.
Poucos minutos depois, chegava à clareira o primeiro rapa. Depois, um segundo e um terceiro.
Os enormes felinos pretos reuniram-se ao redor da clareira, formando um círculo amplo à volta de Race.
Race contou-os: eram doze no total.
Em seguida, molhou novamente o ídolo, que emitiu a sua cantilena harmônica com renovado vigor.
Então, Race deu um passo para trás e entrou no templo. Mais dez passos, descendo os degraus, e estava rodeado pela escuridão.
Enormes, negros e ameaçadores, os rapas seguiram-no, bloqueando os raios de luar azul que entravam no túnel, vindos do exterior.
Depois de todos os felinos terem entrado no templo, os dez guerreiros índios, que se encontravam do lado de fora, começaram a empurrar a pedra, como Race lhes tinha dito para fazerem.
A enorme pedra gemeu ruidosamente ao ser empurrada, devagar, para o seu lugar.
Race observou o seu movimento do interior do templo. Gradualmente, todo o luar do exterior foi substituído pela sombra da rocha gigantesca e, depois, com um ominoso baque final, a rocha não se mexeu mais. Agora, tapava todo o portal, selando-o, e selando ao mesmo tempo William Race, dentro do templo, com a matilha de ferozes rapas.
Escuridão. Uma escuridão total, cortada apenas pelo tremeluzente brilho alaranjado da sua tocha.
À volta de Race, as paredes do túnel brilhavam de umidade. Vindo das profundezas do templo, ouvia-se um gotejar constante, que produzia um ligeiro eco.
Tudo aquilo deveria ter sido aterrador mas, estranhamente, Race não sentia medo. Depois de tudo pelo que tinha passado, Race já não conseguia ter medo.
Os doze rapas, vivas imagens de maldade à luz intermitente da tocha, limitavam-se a olhar fixamente, extasiados, para o ídolo que cantarolava na mão de Race.
Segurando a tocha bem alto, por cima da cabeça, Race foi descendo o túnel em espiral até à base das escadas. O túnel fazia uma curva para a esquerda, uma curva larga e descendente. Nas suas paredes, tinham sido escavados pequenos nichos.
Race passou pelo nicho que tinha visto da última vez que estivera dentro do templo, viu que o esqueleto mutilado com o crânio esmagado continuava ali. Era o esqueleto que ele pensara ser de Renco mas que, agora, sabia ser do velho conquistador velho que tinha roubado a Renco o pendente de esmeralda.
Race chegou ao fundo da passagem em espiral e deparou com um longo túnel à direita que se estendia diante dele. Era o túnel onde von Diksen e os seus homens tinham encontrado o seu terrível fim.
Silenciosos, ameaçadores, agourentos, os rapas emergiram da rampa atrás dele, quase sem ruído, movendo-se furtivamente sobre as patas almofadadas.
Ao fundo do longo túnel retilíneo, Race encontrou um enorme buraco no chão. Era vagamente quadrado e tinha, pelo menos, cinco metros de largura, ocupando a totalidade do túnel à sua frente.
Dele saía um dos odores mais repulsivos que Race sentira nos últimos tempos.
O cheiro fez Race estremecer, enquanto avaliava o amplo buraco no chão, diante dele.
Do outro lado, não se vislumbrava nada senão uma parede, uma sólida parede de pedra - e, dentro do buraco propriamente dito, não havia nada a não ser escuridão.
No entanto, nesse momento, viu uma série de apoios para pés e mãos que tinham sido escavados na parede, do lado direito do buraco. Tinham sido escavados uns por cima dos outros, de maneira a formarem uma espécie de escada, que podia ser usada por alguém que quisesse descer para o buraco. Depois de molhar o ídolo mais uma vez, com água da bexiga que levava consigo, Race pôs a tocha na boca e, em seguida, usando os apoios escavados na parede, começou lentamente a descer para o buraco pestilento.
Os rapas seguiram-no mas não se deram ao trabalho de utilizar os apoios. Bastou-lhes usar as suas garras, que pareciam sabres, para descer até o buraco, atrás dele.
Cerca de quinze metros mais adiante, os pés de Race voltaram a tocar no chão.
Ali, o cheiro nauseabundo era mais intenso, tão intenso que se tornava esmagador. Cheirava a carne putrefata.
Race tirou a tocha da boca e afastou-se da parede de pedra que acabara de descer.
Aquilo que viu cortou-lhe a respiração.
Encontrava-se numa espécie de enorme compartimento, uma caverna gigantesca com paredes de pedra, que tinha sido escavada nas entranhas da torre.
Era absolutamente espetacular.
Uma enorme catedral, com paredes de pedra.
O teto em forma de cripta erguia-se no ar a mais de quinze metros do chão, desaparecendo na escuridão. Era suportado por um conjunto de colunas de pedra, que tinham sido esculpidas, escavando a rocha em volta, o chão de pedra lisa estendia-se à volta de Race, desaparecendo também entre as sombras.
Contudo, o aspecto mais espantoso da catedral residia nas suas paredes.
Estavam cobertas de relevos primitivos, de pictogramas semelhantes aos que adornavam o portal, à superfície.
Havia imagens de rapas, imagens de pessoas, imagens de rapas a matar pessoas. Rasgando-lhes os membros e arrancando-lhes as cabeças. Algumas das gravuras representavam seres humanos que gritavam, enquanto estavam sendo despedaçados pelos felinos, e que, mesmo assim, não largavam os tesouros pilhados que tinham nas mãos.
A ganância pura, no momento da morte.
Entre as gravuras que cobriam as paredes, havia uma série de nichos, todos eles esculpidos em forma de cabeças de rapa. Todos os nichos estavam cobertos por espessas teias de aranha, quase parecendo que alguém correra cortinas cinzentas transparentes sobre os focinhos esculpidos dos rapas.
Race aproximou-se de um dos nichos e espreitou para dentro da boca aberta do rapa, por trás da teia de aranha.
Ficou de olhos esbugalhados.
No interior da cavidade formada pelas fauces escancaradas do rapa, havia uma espécie de pódio, sobre o qual se encontrava uma estátua de ouro, representando um homem gordo, com uma enorme ereção.
- Santo Deus... - disse Race, baixinho, ao ver a estátua. Em seguida, olhou em volta. Devia haver uns quarenta nichos como aquele, espalhados pelas paredes da câmara. Se houvesse um artefato em cada um deles, aquilo seria um tesouro que valia...
Era o tesouro de Sólon.
Race olhou para o nicho que tinha diante de si, olhou para a cabeça esculpida do rapa, com os dentes ameaçadoramente arreganhados.
Quem construíra aquele templo parecia querer tentar qualquer eventual aventureiro ambicioso a meter a mão na boca do rapa, para tirar o tesouro.
Mas Race não queria nenhum tesouro. Queria ir para casa.
Afastou-se do tenebroso nicho, voltou para o centro da enorme catedral de pedra e ergueu a tocha.
Foi então que viu o que provocava o odor intenso que lhe assaltara as narinas.
- Santo Deus... - murmurou.
Encontrava-se no extremo mais afastado da catedral e era enorme.
Era uma pilha de cadáveres, um horrível e imenso monte de corpos.
De corpos humanos.
Deviam ser pelo menos cem e encontravam-se em diferentes fases de decomposição. À volta deles, as paredes estavam cobertas de sangue, em quantidades tais que parecia que alguém usara sangue para as pintar.
Alguns dos corpos estavam nus, outros parcialmente vestidos. Uns não tinham cabeça, outros não tinham membros, outros ainda, tinham os troncos partidos em dois pedaços. O chão estava coberto de ossos ensanguentados, alguns dos quais ainda tinham agarrados pedaços de carne.
Para seu horror, Race reconheceu alguns dos corpos.
O capitão Scott, Chucky Wilson, Tex Reichart, o general alemão Kolb. Também viu o corpo de Buzz Cochrane, tombado de bruços, na pilha. A metade inferior do seu tronco tinha desaparecido.
Curiosamente, Race viu também um grande número de corpos de pele cor de azeitona.
Nativos.
Depois, de repente, viu um pequeno buraco na parede, por trás daquela macabra pilha de cadáveres.
Era mais ou menos circular e tinha uns setenta e cinco centímetros de diâmetro, a largura aproximada dos ombros de um homem corpulento.
Race lembrou-se de imediato de que, nesse mesmo dia, tinha visto, à superfície, uma pedra com uma forma semelhante àquela. Tinha-a visto na trilha que parecia um varandim, por trás do templo. Uma pedra redonda, no meio de uma série de pedras quadradas, uma pedra que parecia tapar um buraco redondo.
Oh, não, pensou Race, quando percebeu o que aquilo significava.
Não era um buraco.
Era uma espécie de poço.
Um poço que começava lá em cima, à superfície, e que acabava ali, na enorme catedral de rocha.
Acabava de encontrar a resposta para a pergunta sobre a forma como tinham os rapas sobrevivido, dentro do templo, durante quatrocentos anos.
Mentalmente, Race voltou a ouvir as palavras de Miguel Márquez: «Se você não tivesse sobrevivido ao encontro com o jacaré, os seus amigos teriam sido sacrificados aos rapas.» Sacrificados aos rapas.
Com os olhos esbugalhados de terror, Race observou o buraco circular na parede.
Era um poço de sacrifícios.
Um poço pelo qual os nativos da aldeia do planalto atiravam as suas oferendas aos rapas.
Oferendas humanas. Sacrifícios humanos.
Também atiravam ali pessoas do seu próprio povo.
Mas, provavelmente, as coisas não ficavam por ali, pensou Race, olhando para o grande número de corpos de pele cor de azeitona.
Os nativos deviam atirar ali os seus mortos e os mortos dos seus inimigos, como forma de apaziguar os rapas.
E, nos períodos de escassez, imaginou Race, o mais provável era os rapas comerem-se uns aos outros.
Nesse momento, viu um grupo de cinco rapas, deitados no chão de pedra, atrás da pilha dos corpos, perto de um pequeno buraco quadrado, escavado no chão.
Os cinco rapas estavam olhando fixamente para ele, em transe por causa da cantilena constante do ídolo molhado.
Diante deles, estavam mais dez felinos menores. Filhotes, filhotes de rapa - mais ou menos do tamanho dos filhotes de tigre. Também estavam olhando para Race. Pareciam ter ficado todos estáticos, no meio das suas brincadeiras, ao ouvirem o zunido hipnotizador do ídolo.
Santo Deus, pensou Race. Havia ali uma comunidade completa. Uma comunidade de rapas.
Vá lá, Will, faz o que tens a fazer. Certo.
Foi então que Race tirou outra coisa do bornal de couro que trazia ao ombro.
O ídolo falso.
Race deixou o ídolo falso no chão, ao fundo do buraco quadrado, que ia dar à catedral, para que qualquer pessoa que entrasse no templo o encontrasse imediatamente.
Não podia ter a certeza mas pensou que tinha sido exatamente isso que Renco tinha feito, quatrocentos anos antes. Muito bem, pensou Race. Está na hora de ir embora daqui.
Race viu o buraco menor, no chão, perto das cinco fêmeas rapas e dos seus filhotes, e pensou que, além de subir pelo poço dos sacrifícios e ficar à espera que alguém o abrisse, a melhor opção era continuar a descer.
Assim, sempre com o ídolo verdadeiro a cantarolar nas suas mãos, Race passou cautelosamente pelas cinco fêmeas rapas e pelos seus filhotes, em direção ao pequeno buraco quadrado escavado no chão, perto delas.
Olhou para o buraco.
Tinha aproximadamente um metro e oitenta de largura e fora aberto direto no chão de pedra. Tal como o anterior buraco maior, também tinha apoios para pés e mãos, escavados nas paredes verticais.
Meu Deus, pensou Race.
Com a tocha firmemente segura entre os dentes e o ídolo cantante metido no bornal, Race foi descendo pelo estreito poço.
Mais ou menos um minuto depois, deixou de ver a abertura, lá no alto. A partir daí, tirando o pequeno círculo de luz trêmula que a tocha projetava à sua volta, ficou rodeado pela mais absoluta escuridão.
Dois dos rapas foram atrás de Race, deslizando pelas paredes do poço, no limiar do círculo de luz, acompanhando o ritmo dele, fitando-o com os seus olhos amarelos e frios.
Mas não atacaram.
Race continuou a descer. Cada vez mais fundo. Parecia que já tinha descido quilômetros mas, o mais provável era ter descido apenas algumas dezenas de metros.
Finalmente, os seus pés voltaram a tocar em solo firme. Race tirou a tocha da boca, fê-la rodar em volta e descobriu que tinha ido dar a uma espécie de pequena caverna, de paredes de rocha sólida.
Mas o chão estava coberto de água.
Era um charco, limitado, em três dos lados, por paredes de pedra. o quarto lado do charco era o pedaço de terra lisa, onde Race se encontrava nesse momento.
Race encaminhou-se para a beira da água e inclinou-se para lhe tocar. Queria ver se era verdadeira. Os dois rapas desceram lentamente do poço, por trás dele.
Race mergulhou a mão na água.
E, de repente, sentiu qualquer coisa.
Não era um objeto nem nada que se parecesse. Apenas uma espécie de descontinuidade na própria água.
Race franziu o cenho. A água escorria.
Olhou outra vez para a superfície do charco e viu que esta era percorrida por minúsculas ondulações, que se deslocavam lentamente da direita para a esquerda.
E, nesse instante, percebeu onde estava.
Estava na base da torre de pedra, no ponto onde havia o lago de águas baixas, ao fundo da cratera. Só que, não sabia como, havia água entrando e saindo daquela caverna.
Dentro do bornal, o ídolo continuava a cantar. Os dois rapas olhavam intensamente para Race.
Então, com uma confiança que não tinha qualquer razão para sentir, Race deitou fora a tocha a arder, entrou no charco de água escura e deixou-se cair para baixo da sua superfície, molhando as roupas e o bornal.
Trinta segundos mais tarde, depois de ter nadado de bruços ao longo de um comprido túnel debaixo de água, foi dar ao lago de águas baixas, ao fundo da cratera.
Respirou fundo e soltou um suspiro de alívio. Estava novamente no lado de fora.
Depois de ter emergido junto à base da torre de pedra, Race voltou à aldeia do planalto. Mas, antes disso, passou pelo cimo da torre e parou à entrada do templo. Os guerreiros que tinham voltado a empurrar a laje contra o portal já tinham partido para a aldeia e, nesse momento, Race estava sozinho, diante da enorme estrutura de pedra.
Ao fim de alguns instantes, pegou numa pedra e aproximou-se da enorme laje que cobria o portal. Então, escreveu a sua mensagem, por baixo da inscrição feita por Alberto Santiago:
Não abrir de jeito nenhum.
A morte está lá dentro.
William Race, 1999
Quando chegou à aldeia do planalto, encontrou Renée à sua espera, à beira do fosso, na companhia de Miguel Márquez e do chefe Roa.
Race estendeu o ídolo a Roa.
- Os rapas já estão outra vez dentro do templo - anunciou.
- Está na hora de irmos para casa.
- O meu povo agradece aquilo que fez por nós, “Aquele que Foi Escolhido” - disse Roa. - Quem me dera que houvesse muita gente assim, neste mundo.
Race inclinou a cabeça, com modéstia, no momento em que Renée, enfiava o braço bom no dele.
- Como é que se sentes, herói? - perguntou.
- Acho que devo ter levado outra pancada na cabeça - respondeu. - Não há outra maneira de explicar estes feitos intrépidos. Deve ter sido por causa da adrenalina.
Renée abanou a cabeça e fitou-o nos olhos.
- Não - disse. - Não acho que tenha sido a adrenalina. Em seguida, beijou-o, comprimindo firmemente os lábios contra os dele. Quando, por fim, se afastou, sorriu-lhe e disse:
- Anda, herói. Está na hora de irmos para casa.
Race e Renée partiram da aldeia do planalto, por entre os aplausos dos nativos.
Enquanto eles desapareciam por trás da cratera e se dirigiam para Vilcafor, lá longe, na aldeia de onde tinham saído, soou um grito abafado.
Vinha da gaiola de bambu, que estava presa a quatro árvores, que funcionavam como postes.
No fundo da gaiola, contorcendo-se de agonia por causa das feridas que tinha no estômago, e com as mãos decepadas, jazia a figura maltratada e amordaçada de Frank Nash.
Os nativos não o tinham morto na rua principal de Vilcafor. Tinham-lhe cortado as mãos culpadas de roubo e, depois, tinham-no trazido para ali, para receber o tratamento adequado.
Uma hora mais tarde, teve início a última procissão de índios até ao templo de Sólon. Quando a procissão atravessou a ponte de corda, a caminho do templo, os corpos foram transportados em liteiras cerimoniais.
Nash jazia, agonizante, numa das liteiras. As restantes eram ocupadas pelos corpos de Van Lewen, Marty, Lauren, Romano e dos demais elementos da equipe da Marinha e da DARPA. Morta ou viva, qualquer tipo de carne humana servia para apaziguar os deuses-felinos que viviam no templo.
Os habitantes da aldeia reuniram-se atrás do templo, cantando em uníssono, enquanto dois guerreiros fortes retiravam a pedra circular do seu lugar, na trilha, pondo a descoberto o poço dos sacrifícios.
Os corpos dos mortos foram lançados primeiro: Van Lewen, depois Marty, Lauren e o pessoal da Marinha.
Frank Nash foi último a ser levado para junto do poço dos sacrifícios. Tinha visto o que acontecera aos outros corpos e os seus olhos arregalaram-se, quando percebeu o que lhe ia acontecer.
Urrou através da mordaça, enquanto os sacerdotes lhe amarravam os pés. Sacudiu-se que nem um louco, enquanto dois guerreiros o levavam até ao poço.
Ergueram-no com os pés para diante e, quando olhou para o céu pela última vez, os olhos de Frank Nash quase saltaram de terror.
Os dois guerreiros atiraram-no para dentro do poço. Nash gritou até chegar ao fundo.
A pedra redonda voltou a ser colocada no seu lugar e os nativos abandonaram a torre de pedra, para nunca mais voltar. Quando regressaram à aldeia, iniciaram os preparativos para uma longa viagem, uma viagem que os levaria bem para o coração da floresta tropical, para um lugar onde nunca pudessem ser encontrados.
O Goose sobrevoava os Andes, em direção a Lima, direto para casa.
Doogie ia à frente, na cabine, enfaixado, mas vivo. Race, Renée, Gaby e Uli iam sentados atrás.
Ao fim de aproximadamente uma hora de vôo, Gaby Lopez foi ter com Doogie na cabine.
- Olá - disse.
- Olá - respondeu Doogie, quando viu quem era. Engoliu em seco, nervoso. Continuava pensando que Gaby era terrivelmente bonita e que não era para o seu bico. Gaby saíra-se muito bem tratando-lhe das feridas, com as suas mãos delicadas. Doogie tinha passado o tempo todo olhando para ela.
- Obrigada por me ter ajudado, quando fui atacada pelo jacaré, no fosso - disse ela.
- Oh - disse ele, corando. - Não foi nada.
- Obrigada, de qualquer modo.
- Não tem de quê.
Seguiu-se um silêncio incômodo.
- Estive pensando - disse Gaby, nervosa. - Pensei que, se não tivesse ninguém à sua espera, podia vir até minha casa e eu fazia-lhe um jantar.
O coração de Doogie quase parou mas o seu rosto abriu-se num sorriso de orelha a orelha.
- Seria ótimo - respondeu.
Lá atrás, a pouco mais de três metros de distância, na zona de passageiros do avião, Renée dormia profundamente, com a cabeça no ombro de Race.
Graças ao botão de repetição de chamada, Race estava falando com John-Paul Demonaco, pelo telefone celular de Earl Bittiker. Estava informando a Demonaco sobre tudo o que se tinha passado em Vilcafor. Do BKA, passando pelos nazis, passando pela Marinha e pelo Exército até, finalmente, chegar ao que acontecera com os Texanos.
- Espere aí - disse Demonaco. - Você tem alguma experiência militar?
- Nenhuma - respondeu Race.
- Deus do céu. O que é que você é? Algum herói desconhecido?
- Mais ou menos.
Depois de terem falado durante mais um bocado, Demonaco deu a Race o número de telefone e endereço da embaixada americana em Lima e o nome do funcionário do FBI ali destacado. O FBI, disse ele, trataria da viagem de regresso aos Estados Unidos.
Depois de ter desligado, com o maltratado boné dos Yankees encostado ao vidro e acariciando o pendente de esmeralda com os dedos da mão direita, Race olhou para fora, pela janela, para as montanhas que deslizavam por baixo de dele.
Pouco depois, pestanejou e tirou uma coisa do bolso. Era o pequeno livro de notas que Márquez lhe tinha dado nessa manhã, durante o banquete.
Race folheou-o. Não era muito espesso. Na verdade, tinha apenas meia dúzia de páginas escritas à mão.
Mas a caligrafia era-lhe familiar.
Race voltou à primeira página e começou a ler.
QUINTA LEITURA
Ao ousado aventureiro que encontrar este livro de notas. Estou escrevendo, à luz de uma tocha, no sopé das gloriosas montanhas que dominam a Nova Espanha.
De acordo com os meus cálculos superficiais, deve estar correndo o Ano da Graça de 1560, mais de vinte anos depois de eu haver pisado pela primeira vez nestas costas estrangeiras.
Para muitos dos que possam vir a lê-lo, o que aqui fica escrito não terá qualquer significado, pois estou escrevendo prevendo vir a fazer outro relato, mais completo, das notáveis aventuras em que me foi dado participar na Nova Espanha, um relato que, quiçá, poderei nunca vir a escrever.
Mas se o fizer, e vós, oh, bravo aventureiro houverdes chegado à posse deste livro de notas por ministério de algum nativo, dos mais nobres que hei encontrado, então, o que se segue por certo terá significado para vós.
Passaram mais de vinte anos sobre a minha incrível aventura com Renco e todos os meus amigos estão mortos.
Bassario, Lena, o próprio Renco.
Mas não temais, caro leitor, eles não morreram por maus feitos nem foram vítimas de embustes. Morreram, todos eles, enquanto dormiam, vitimados por esse mal chamado velhice, a que ninguém escapa.
Agora, sou o único que ainda vive.
Infelizmente, por isso, não me resta nada para o que viver, nestas montanhas, e, por tal, decidi retornar à Europa. Tenciono acabar os meus dias em algum mosteiro remoto, distante do mundo, onde, se Deus quiser, poderei escrever o relato completo dos espantosos momentos por que passei.
Deixo, todavia, este livro de notas, aos bons cuidados dos meus amigos incas, para que eles o vão passando de pais para filhos, até, um dia, o poderem ofertar ao mais valoroso dos aventureiros, alguém que, em boa verdade, só poderá ser da estatura incomensurável do meu bom amigo Renco.
Dito isto, dada a linhagem daqueles que possam vir a ler estas páginas, confio a este livro de notas o cuidado de dissipar algumas das ficções que tenciono incluir no relato mais completo das minhas aventuras.
Após a morte de Hernando, na enorme torre de pedra, Renco entrou realmente no templo, levando consigo os dois ídolos. Todavia, reapareceu pouco depois, são e salvo, vindo de uma passagem sob a água, na base do gigantesco dedo de pedra.
Os habitantes de Vilcafor viriam a abandonar a sua aldeia, na base do planalto e a instalar-se mais acima, num novo local, por cima da enorme cratera que circunda o templo.
Eu ficaria vivendo com eles, nos vinte anos que se seguiram, desfrutando da companhia do meu amigo Renco. Até o canalha do Bassario, que provou a sua valentia, no nosso confronto final com Hernando e com os seus homens, se tornou um bom companheiro.
Mas, ah, como me deleitou o tempo que passei com Renco. Nunca antes eu havia tido um amigo tão bom e tão leal. Sinto que fui afortunado por me ter sido concedida a graça de passar a maior parte da minha vida na sua companhia.
Oh, mas há ainda outra coisa que vos quero contar, nobre leitor, mas que vos imploro não relateis aos meus santos confrades.
Ao cabo de algum tempo, eu viria a casar.
E com quem? Podereis perguntar. Como não podia deixar de ser, com a bela Lena.
Sim, eu sei.
Embora a tenha admirado desde o primeiro instante em que a vi, não podia saber que ela nutria por mim sentimentos semelhantes. Ela cuidava que eu era um homem corajoso e nobre e quem era eu para a privar de tal impressão?
Os dois e o seu filho Mani, que Renco enchia de mimos, à maneira dos tios de todo o mundo, fazíamos uma bela família. Na verdade, ao cabo de algum tempo, Lena e eu aumentamos essa família, com duas belas filhas, que, digo-o com orgulho, eram a viva imagem da sua mãe.
Lena e eu estivemos casados por mais de vinte e quatro anos, os mais maravilhosos vinte e quatro anos da minha vida. Terminaram faz algumas semanas, quando ela adormeceu a meu lado, para não mais acordar.
Sinto a sua falta todos os dias.
Agora, enquanto os guias fazem os preparativos para me conduzir, através da floresta, até à terra dos Astecas, penso nas minhas aventuras, em Lena e em Renco.
Penso na profecia que nos reuniu e interrogo-me sobre se serei na verdade uma das pessoas nela mencionadas.
Há-de chegar o dia em que ele virá.
Um homem, um herói, ostentando a Marca do Sol. Ele há-de ter a audácia de lutar contra grandes lagartos, Ele há-de ter a Jinga, Ele há-de contar com a ajuda de homens de coração bravo.
De homens capazes de dar a vida, em honra da sua nobre causa. E ele há-de cair dos céus, para salvar o nosso espírito.
Ele é Aquele que Foi Escolhido. Pergunto a mim mesmo: serei um «homem de coração bravo»? É estranho, muito estranho, mas, hoje, depois de tudo aquilo por que passei, penso que, em verdade, assim é.
É este o fim da minha história, valoroso aventureiro.
Que estas linhas vos encontrem de boa saúde. E desejo-vos as maiores felicidades, na vida e no amor.
Adeus. A.S.
Race ficou sentado na traseira do Goose, olhando para a última página do livro de notas de Alberto Santiago.
Estava contente por aquele monge simpático ter encontrado a felicidade, no final das suas aventuras. Bem a merecia.
Race pôs-se a pensar na transformação sofrida por Santiago de monge tímido a defensor implacável do ídolo.
Depois, Race voltou a olhar para a profecia e começou a pensar em Renco. Em seguida, por qualquer razão que não era capaz de precisar, começou a pensar nas semelhanças que havia entre Renco e ele próprio.
Ambos ostentavam a Marca do Sol.
Ambos tinham lutado com jacarés e ambos tinham demonstrado possuir a capacidade de se movimentarem como felinos. Um e outro tinham contado com a ajuda de homens de coração valente e ambos tinham arriscado a vida pela sua causa. E, finalmente, ambos tinham caído do...
Espera aí, pensou Race.
Renco nunca tinha caído do céu...
Matthew Reilly
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