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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TENSÃO / Jan Hutton
TENSÃO / Jan Hutton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

TENSÃO

 

Mac Nilsen, agente do FBI, encontra Lon e sua irmã Tilda Hopper, ele, um antigo amigo de Mac na infância e na juventude mas agora um bandido procurado pelo FBI após o roubo de uma mala postal que continha mais de cem mil dólares e ela, o grande amor da vida de Mac, três vidas entrelaçadas que se reencontram...

 

              

Lon o matará, Mac! Você não o conhece, é o homem mais astuto e perigoso que já encontrei! Ando à sua caça há meses, e sei muito bem. Vamos juntos, pois seremos dois contra um: se um de nós cair, o outro ainda poderá alcançá-lo. Se você for sozinho, ele o apanhará, numa emboscada, em algum recanto das rochas.

Mac começava a impacientar-se. Acentuou, ru­demente, sua opinião:

— Você é cabeçudo, além de mau alpinista! Um novato...

O olhar que Leggit lançou-lhe revelava surpresa. Apertou os dentes com raiva, sem responder,

— E há mais — continuou Mac. — Se esti­vesse só, eu já o teria alcançado. Durante toda a escalada, você só me criou dificuldades.

Leggit enrubesceu, como se houvesse sido esbofeteado, e disse, com a voz alterada pelo can­saço e pela emoção:

escolhera o caminho mais fácil, pelos pendentes suaves das abas da montanha. Tratava, talvez, de enganar seus perseguidores, fazendo-os crer que não se aventuraria a escalar as rochas. De­pois, revelou suas verdadeiras possibilidades, ao atravessar uma estreita cornija. Naquele momen­to, Nilsen compreendeu que a perseguição não seria um brinquedo.

Leggit foi um estorvo, até o momento em que Mac se livrou dele. Para ajudá-lo, havia perdido um tempo precioso. Se as ordens emanadas do FBI houvessem sido menos severas, talvez ti­vesse assistido da caçada pelas montanhas. Se Lon alcançasse a vertente meridional, estaria a salvo; a ordem era terminante, de que não o dei­xasse escapar.

Mac levantou a cabeça, percorrendo com o olhar o muro rochoso que se estendia à sua frente. Por ali subira Lon, como o demonstravam os sinais que deixara. Calculou que este ainda não alcançara o passo, invisível do lugar em que se encontrava. Depois de estudar a parede rochosa, Mac optou por escalá-la verticalmente, para des­fazer a vantagem do perseguido. Ao alto, percebe­ra a existência de uma aresta de aspecto sólido, e dispunha de bastantes espeques para a subida. Cravou o primeiro, prendendo-lhe a corda de nylon que passou pela cintura. Ser-lhe-ia agora mais fácil trabalhar com rapidez, pois ficaria suspenso pela corda, no caso de falsear o pé. Prendeu rapidamente o segundo espeque. Um novo esforço levou-o à altura apropriada para a instalação do terceiro. Ao cravar o quarto, soltou um suspiro de satisfação: o espeque soara de modo parti­cular, demonstrando que se havia fixado firme­mente na rocha, o que lhe permitiria sustentar todo o seu peso. Pouco depois, suas mãos aferravam a borda da aresta.

Nilsen era profundo conhecedor da arte de es­calar, mas nunca como naquela oportunidade a experiência lhe serviria. Suas mãos firmaram-se na base da cornija, alçando-o à plataforma. Levantou-se, lentamente, com o hálito a trans­formar-se em vapor. Examinou o lugar a que acabava de chegar. À direita da plataforma, a parede que escalara; do lado contrário, um despenhadeiro de enorme profundidade; às suas cos­tas, também o vácuo. Restava uma só passagem, uma "chaminé" bastante estreita à sua frente.

— Bem — pensou — agora ficou mais fácil. Uma "chaminé" não traz dificuldades...

Recolheu a corda e dispôs-se a continuar seu caminho. Mas não moveu um pé, sequer. Alguma coisa obrigou-o a manter-se completamente imó­vel, rígido, com a respiração contida e todo seu corpo alerta, pronto para a ação. Sentia uma presença humana, em algum lugar das rochas à sua frente. A súbita sensação de perigo tomou conta de todo o seu ser, e com o olhar agudo percorreu as redondezas em busca do inimigo oculto. Não divisou nada, além do granito escuro. Seu ouvido atento também não percebeu ruído algum. No entanto, sua intuição, um sexto sen­tido, certificava-o daquela presença, muito pró­xima.

O lugar era ideal para uma emboscada. Um passo, em qualquer sentido, precipitaria o agente federal no pavoroso vácuo. Restava, pois, a "chaminé", onde forçosamente estaria à sua es­pera o inimigo. Mac sentiu um calafrio correr-lhe pela espinha. A situação não admitia dúvidas sobre quem seria o vencedor, a menos que um milagre interviesse em favor do defensor da lei. Lon estava ali, com as costas apoiadas na rocha, oculto para Mac, que lhe oferecia um alvo per­feito. Nilsen não poderia retroceder, nem mover-se para os lados. Não podia, também, avançar, a não ser que preferisse precipitar os acontecimen­tos. Não via seu inimigo, que, quando saltasse do esconderijo, fa-lo-ia apertando o gatilho de sua arma.

Não se deu ao trabalho de puxar sua Luger. O adversário devia estar apontando para seu cora­ção o cano de outra arma, e dispararia no mo­mento em que puxasse a sua. Os segundos, cheios de angústia, começaram a passar como séculos. Um suor frio banhou-lhe a testa, à me­dida que o tempo transcorria. Lon, provavelmen­te, comprazia-se no prolongamento da sensação de triunfo. Por que sua arma não cuspia fogo, de uma vez? Com dedos trêmulos, Mac enxugou a fronte, abafando uma maldição. Já havia res­pirado em muitas oportunidades o ar seco, vivificante, das montanhas, mas agora respirava-o com uma fruição dolorosa, a pensar que seria a última sensação agradável, em sua vida. Decidiu-se: deu um passo à frente, oferecendo o corpo como alvo. Foi o espanto que o fez parar novamente: nada ocorrera. Outro passo, e ainda nada.

Homem de ação, capaz de reflexos instantâ­neos, Nilsen tirou a pistola do coldre. Seu sub­consciente dissera-lhe que a vantagem do fugitivo fora eliminada: agora, poderiam disparar simul­taneamente, com possibilidades iguais. Mac estava junto à "chaminé". Sem ver o inimigo, apertou o gatilho uma, duas, quatro vezes, formando um leque de chumbo que abrangeu todo o espaço à sua frente. Mas Lon não estava escondido ali. Mac perscrutou toda a parede rochosa da "chaminé", sem divisá-lo.

— Não se mova!

A voz provocou um sobressalto em Nilsen, que caiu ajoelhado na rocha. Aquela voz estava im­pregnada de ódio, de uma fúria homicida. Mac não necessitava mais de procurar o fugitivo com o olhar. Havia, entretanto, uma diferença provi­dencial na situação: Lon, em vez de esconder-se atrás das rochas, estava no fundo da "chaminé". Não foi difícil a Mac compreender o que ocorrera.

Levantou-se, lentamente, ainda empunhando a Luger.

— Então, Lon? Tudo bem? — perguntou, sem ousar debruçar-se à borda da "chaminé".

Tinha vontade de rir. A vida, para ele era agora como um dádiva inesperada. Sabia que Lon não se encontraria na base daquele buraco por vontade própria. Sua pergunta maliciosa foi respondida por uma espécie de bufado, um som de difícil interpretação. Subiu novamente da "cha­miné" a voz, trêmula de raiva, do perseguido:

— Não cante vitória. Tenho um revólver na mão, e está carregado. Experimente pôr a cabeça na borda...

Desta vez, o agente federal soltou uma garga­lhada. Disposto a aproveitar a situação vantajosa, não deu importância às ameaças do criminoso, e avançou mais um passo para a margem do bu­raco. O perseguido havia demonstrado possuir uma inteligência acima do comum, na escalada e ao preparar a emboscada naquele lugar favo­rável aos seus desígnios. Somente o acaso impe­dira seu sucesso, e agora, impulsionado pela rai­va, deixaria de lado a inteligência? Não; um alpinista é um homem dotado de nervos de aço, capazes de sobrepor-se aos impulsos. Mac, repen­tinamente, deu o passo que o separava da "cha­miné", e assomou à borda do buraco. Teve apenas o tempo suficiente para ver que Lon estava deitado ao fundo. Um relâmpago partiu do revolver que empunhava, e a Luger foi arrancada da mão de Mac. Pela segunda vez, este deixou escapar uma gargalhada. Não se enganara: Lon era inteligente, pois não atirara para matar, e sim apenas para desarmar seu perseguidor.

— Afaste-se, se não quiser levar outro tiro!

A gargalhada de Nilsen foi substituída por um sorriso divertido.

— Não, Lon. Você não fará isso, pois não lhe convém. Olhe para o céu.

O malfeitor obedeceu, observando as densas nuvens que se formavam sobre as montanhas. Um ar desalentado transpareceu em suas feições. Mac prosseguiu, com voz tranqüila:

— Você sabe o que significam estas nuvens. Dentro de meia-hora, uma hora, no máximo, virá uma tormenta de neve. Você está ferido, se não teria saído daí. E a neve, em poucos minutos, sepultá-lo-ia... Você sabe disto, e por este mo­tivo não vai atirar mais. Jogue-me seu revólver, que eu o tirarei daí. Poderia matá-lo, se quisesse, mas prefiro levá-lo de volta, para que a Justiça se encarregue de você.

Não recebeu resposta, e voltou a falar:

— Você não teve muita sorte, embora esco­lhesse um lugar excelente para a emboscada. Eu já me considerava perdido... Você escorregou, não foi?

— Eu o vi subir pela parede, e fiquei à sua espera. Quando você chegou ao alto, retrocedi, para apoiar-me melhor na parede da "chaminé". Com a pressa não vi que a saliência onde me coloquei não tinha resistência suficiente. Foi isso o que salvou sua vida.

— Muito bem, agora as coisas mudaram. De graças a Deus pela minha disposição de levá-lo de volta.

Uma exclamação indecente subiu até à borda do buraco.

— É, Lon, você é quem decide. Entregue-se, desarmado, ou ficará aí à espera da neve... Dou-lhe cinco minutos para resolver.

Não havia transcorrido metade desse tempo, Mac esclareceu:

— Tenho equipamento completo, comigo. Posso tirá-lo daí e levá-lo para o albergue. Decida-se, senão a tormenta nos impedirá de chegar lá.

Lon atirou seu revólver para o alto. A arma caiu aos pés de Nilsen, que com um pontapé atirou-o ao abismo. O perseguido entregava-se, afinal.

— Devo ter quebrado um tornozelo. Torci-o, ao cair. Tentei subir de volta, mas a dor é insu­portável.

— Poderia ser pior, Lon; imagine, se você houvesse quebrado a espinha...

Sem perder mais tempo, Mac iniciou os prepa­rativos para içá-lo. Cravou um espeque na parede da "chaminé", e desenrolou a corda que trazia às costas. Fixou um extremo desta, atando-a com um nó Prusik. Por último, passou uma volta da corda pelos ombros, jogando-a a Lon. — Vamos. Ajuda-me, ao menos.

O ferido não respondeu. Nilsen começou a le­vantá-lo, fortemente apoiado ao solo de pedra. Enquanto o fazia, examinava seu prisioneiro. Tratava-se de um jovem, como ele próprio. Seu cabelo negro e brilhante contrastava com a palidez do rosto. Mac não viu em suas feições traço algum dos que uma vida de crimes marca o rosto humano. Qualquer pessoa, desconhecendo a verdadeira personalidade de Lon, confundi-lo-ia facilmente com um jovem normal, correto, de expressão séria. Entretanto, um fogo estranho brilhava em seu olhar, o que talvez se devesse às circunstâncias atuais.

Ao chegar ao alto, o malfeitor deixou-se cair ao solo, apoiado na rocha. Embora sentado, via-se que sua estatura era superior à média. Começou a descalçar a bota do pé ferido, que revelava, pela largura anormal do cano, a inchação do tornozelo. Torcia-se de dor, e gotas de suor ba­nhavam sua testa, ao enfaixar com uma tira da camisa o local fraturado.

As nuvens convertiam-se pouco a pouco, em um toldo uniforme, cinzento. Um vento gelado açoitou as montanhas, soando, lúgubre, nas cavi­dades da rocha. Aproximava-se a tempestade. Os dois homens contemplaram a sombria perspectiva, e foi Lon quem deu forma ao que ambos pensavam:

— Está ficando difícil, hem, "tira"? Será que você vai conseguir levar-me até o albergue?

— O FBI nos ensina a sermos "cabeçudos", Lon. Recebi ordem de levá-lo, e pode estar certo de que cumprirei minha palavra: você chegará lá, morto ou vivo.

O policial voltou as costas ao ferido, pondo-se a examinar o caminho que adotaria para a des­cida. O olhar do prisioneiro moveu-se, rápido, até encontrar um objeto que brilhava no solo: a Luger, que Mac não recolhera. No cérebro do delinqüente crescia a idéia de apoderar-se daquela arma; na base da montanha, então, poderia de­sembaraçar-se do condutor, e aguardar socorro.

Sem o menor ruído, enquanto Mac permanecia virado para o precipício, começou a mover-se, cautelosamente. A Luger distava apenas tres me­tros de sua mão. Pôs-se a esticar o corpo, esten­dendo ao mesmo tempo o braço. Ao alcançar a pistola, um sorriso sinistro crispou-lhe os lábios.

Repentinamente, Mac voltou-se, sem demons­trar surpresa com a cena. De um salto, percorreu o espaço que o separava do prisioneiro. Já a mão de Lon fechava-se sobre a arma, quando a bota ferrada de Mac apertou-lhe o pulso sobre a pedra do chão. Lon proferiu um grito de dor, e seus dedos abriram-se. Tranqüilamente, o agente federal abaixou-se, recolhendo a arma.

 

— Pensou que eu estivesse distraído, é? Pelo contrário, fiz uma experiência, para ver se pode­ria confiar em você...

Uma exclamação rouca subiu da garganta de Gretsy:

— Eu não poderia deixar de tentar. E lá em­baixo, a coisa seria diferente...

Mac cortou um pedaço da corda e começou a atar seu inimigo:

— Você o quis — informou. — Agora, trate de não resistir. Ficará com as pernas livres, para não tentar mais alguma tratantada.

Não era fácil manejar um corpo daquele vo­lume, mas Nilsen conseguiu arrastá-lo até à borda do precipício. Tirou da mochila um pedaço de lona, que passou em volta do prisioneiro, preparando o salvamento pelo sistema Gramminger. Cinco minutos após, os dois homens desciam pela perigosa parede de rocha. Asemelhavam um só corpo, unidos no esforço pela salvação. O vento aumentara de intensidade. Começava a tempes­tade, aumentando a dificuldade da descida.

 

Já deviam estar muito próximos do albergue e, no entanto, não o viam. A neve fustigava os rostos dos três homens, obrigando-os a avançarem de cabeças baixas, a tatearem o ca­minho. Lutavam há quase uma hora contra a fúria dos elementos desencadeados, e às vezes paravam, esforçando-se para não caírem sob a pressão do vento. O ferido era um estorvo, tor­nando a marcha ainda mais difícil. Para que pudesse andar, os agentes federais amparavam-no, cada um durante algum tempo. O braço do bandido permanecia sempre apoiado aos ombros de um de seus captores, que já estavam à beira do esgotamento físico.

Mac, que havia realizado a façanha de subir por um atalho aparentemente inacessível, domi­nar o fugitivo e conduzi-lo de volta ao ponto onde deixara Leggit, ainda assim era o que demonstrava maior resistência. Ele dirigia a mar­cha, que, afortunadamente, seguia uma ladeira suave. Através da cortina de neve, distinguiu uma gruta. Apontou-a para seu companheiro, que grunhiu, aquiescendo.

Conduziram o ferido ao interior, que se en­contrava seco e bem abrigado, deitando-o no solo pedregoso. Apoiados com as costas contra a parede, os agentes do F.B.I. quedaram-se vários minutos sentados, ofegantes e calados. O vento gemia em torno do abrigo providencial. A tem­pestade recrudescia, lá fora, prometendo prolongar-se pelo resto do dia e, talvez, pela noite toda também.

Leggit revelou seu temor em voz alta, o que arrancou um sorriso inescrutável dos lábios do prisioneiro.

— Não durará mais de vinte e quatro horas — opinou Nilsen. — Aqui estamos bem abrigados, e podemos esperar que passe. Depois, será fácil voltarmos.

Leggit tirou do bolso um maço de cigarros, que ofereceu a Mac. Servindo-se de um, este lhe disse:

— Ofereça um também a ele. Esqueceu-o? Leggit estendeu o maço ao ferido, e após acen­deu seu cigarro.

— Nunca pensei que nenhum de vocês voltasse de lá... Teria apostado dez contra um como Lon acabaria com você, Mac.

Este sorriu.

— Eu também. Mas a sorte estava do meu lado, hoje. Se ele não tivesse caído do barranco...

— Apesar disso, você ainda o trata com brandura?

Mac voltou-se para o prisioneiro e, em vez de responder a Leggit, perguntou a Lon:

— Onde é que você aprendeu a escalar? Cons­tatei que não é um principiante. E se eu o fosse, você teria escapado.

Nos olhos do ferido brilhou uma luz estranha.

— Que importa? — exclamou. — Aprendi na Europa, nos Alpes. Depois, andei por outras mon­tanhas da Europa, e também pela Ásia.

— Os Alpes — murmurou Mac. — Sim, eu também conheço bem os Alpes. Era ainda garoto, quando fiz minha primeira escalada lá.

O prisioneiro fumava, silencioso. Mac concluiu:

— No Eiger e no Materhorn.

— Cale-se! Cale-se, de uma vez!

Lon saltara, com os músculos da face contraí­dos, pálido como um cadáver. Os dois homens olharam-se, surpreendidos, pois não havia ne­nhuma palavra hostil saído de seus lábios. Como se percebesse o absurdo de sua reação, o prisio­neiro encolheu-se sobre si mesmo, parecendo dimi­nuir de estatura.

— Desculpem — disse. — Essas lembranças não me agradam.

Mac contemplou-o através da fumaça do ci­garro.

— O passado, é? — disse, mansamente. — Não lhe agradam as recordações do passado. Mas minha intenção era somente distrair-nos, enquanto esperamos o fim da tempestade.

O olhar do malfeitor cravou-se em .seu rosto, com um brilho sombrio, mas não respondeu. Vol­tou-se para o lado, jogando fora o cigarro, com violência. O silêncio invadiu o recinto. D vento começava a acalmar-se, e já não gemia soturna­mente, como antes. Produzia agora um murmúrio suave. A neve continuava a cair, mas vertical­mente, sem torvelinhos. Anoitecia. Leggit, que se achava próximo à entrada da gruta, deu um brado de alegria. Os outros perscrutaram a es­curidão, e perceberam, ao longe, uma luz que se aproximava.

— É uma lanterna!

Mac levantou-se, com presteza. Instantes após, os agentes federais saíam da gruta, encaminhando-se, a gritar, em direção à luz salvadora. Após alguns instantes, a lanterna apagou-se, e tornou a acender, passando a avançar em linha reta para o lugar em que se encontravam. Quem quer que a conduzisse, ouvira, sem dúvida, seus gritos. Ao aproximar-se, apagou a lanterna.

— Fizeram bem. Se não houvessem gritado, eu teria passado sem vê-los.

— Entre nesta gruta — convidou Mac. — Per­deu-se na tormenta?

O desconhecido penetrou na gruta, sacudindo a neve que lhe cobria as roupas. Aparentemente, não esperava encontrar ninguém lá dentro, pois parou, rígido e imóvel, ao deparar com Lon Gretsy. Reagiu imediatamente, dirigindo-se aos policiais:

— Sim, creio que me perdi. Suponho que acon­teceu o mesmo com os senhores?

— Com efeito. Não sabemos onde estamos. Descemos da montanha, e a nevada nos apanhou no caminho — respondeu Leggit. — íamos para o albergue, mas não temos a menor idéia do rumo.

O recém-chegado desabotoou sua jaqueta. Era bastante corpulento, mediano de idade. Via-se que não morava nas redondezas, e os agentes deduziram logo que tratava de um habitante de cidade, provavelmente em férias nas montanhas.

— Por coincidência — falou o estranho, esfre­gando as mãos para esquentá-las — eu também procuro o albergue. Cheguei esta manhã, disposto a desfrutar minhas férias imediatamente. Avisa­ram-me que viria uma tormenta, mas saí para dar uma olhada nas proximidades, certo de que conseguiria voltar em seguida. Quando dei por mim, estava envolto pelo furacão, e perdi-me, sem achar o caminho de volta. Ainda bem que os encontrei.

O desconhecido pôs-se a encher um velho ca­chimbo, e continuou:

— Que belo início de férias, este. E pensar que poderia ter ido... — repentinamente, apontou para o prisioneiro. — Que aconteceu com você? Está ferido?

— Sim — informou Nilsen. — Quebrou um tornozelo, lá em cima.

O estranho tomou a palavra, novamente:

— Permitam que me apresente: sou Max Schilling, comerciante em Chicago. Os senhores, tam­bém são comerciantes?

Mac não tirava os olhos do interlocutor. Um detalhe interessante não lhe escapara à perspi­cácia: se aquele homem saiu do albergue para um rápido giro pelas redondezas, por que levara uma lanterna? Enquanto seu companheiro aper­tava a mão do comerciante, apresentando-se, por sua vez, Mac o examinava detidamente.

— Chamo-me Leggit, agente do FBI, e meu companheiro é Mac Nilsen. Levamos este homem que prendemos.

Os olhos de Schilling arregalaram-se de surpre­sa. Exclamou:

— Ah, no hotel falaram-me que estava hos­pedado lá um agente do FBI.

— Crê que estamos muito longe do hotel? — perguntou Leggit.

— Não sei... Creio que não. Não andei muito, pois estive dando voltas, ao começar a tempes­tade. Talvez estejamos a menos de um quilômetro dele.

Levantou-se. Dir-se-ia que os nervos não lhe permitiam parar um só momento. Dirigiu-se à boca da gruta, olhando para o exterior.

A neve está cessando — disse.

Mac notou que usava botas ferradas, de alpinis­mo. Seria normal que alguém calçasse botas fer­radas, para um giro próximo do albergue? Não teve tempo para estender suas especulações, pois Schilling tornou a falar, virando-se para eles:

— Não se movam!

A ordem saiu de seus lábios como um tiro no interior da gruta. Empunhava um Colt, apontado para es policiais.

— Terminou a farsa, amigos — assegurou. — Eu estava à procura de Lon, e encontrei-o.

— Morderam o anzol, Max — disse o prisio­neiro. — Você leu minha mensagem, não?

— Claro. Estou à sua procura desde cedo. Já ia perdendo a esperança de revê-lo.

— Apanharam-me lá em cima, porque caí no fundo de uma "chaminé" e feri o tornozelo.

— Não se preocupe. Ficará curado em pouco tempo. Que vamos fazer deles? Não acha melhor matá-las aqui mesmo?

Uma careta sinistra repuxava-lhe os lábios. A arma era sustentada firmemente em sua mão, e os olhos astutos vigiavam os policiais aten­tamente.

— Não é possível, Max. Seria uma loucura. A neve pode ter isolado o albergue, e reter-nos por muitos dias. Se alguém encontrá-los antes de irmos embora, podem suspeitar de nós. O melhor é você me levar para o hotel, e voltar aqui. Se soubermos que poderemos viajar imediatamente, então você fará o serviço. Em caso contrário, fica vigiando-os, e desce, de vez em quando, para comer ou saber notícias.

— Muito bem, Lon. Você tem razão. No dia em que formos embora, liquido estes dois.

— Desarme-os — disse o ferido. — Dê-me uma das armas, que eu apontarei enquanto você os amarra.

Lon voltou-se para Nilsen. O ar sombrio havia desaparecido de seu rosto.

— Sinto muito, meu amigo — disse, imitando-o. — Nunca deixo uma corda frouxa, jamais me descuido. Minha intenção, desde o início, era vol­tar ao albergue, e deixei um bilhete para Schilling, avisando-o do que ia fazer.

— Você não irá muito longe, Lon — assegurou Nilsen. — O FBI sabe que saímos em seu en­calço pelas montanhas. Ao não receber notícias, mandará mais homens para averiguarem o que nos aconteceu.

O ferido fez um gesto de indiferença.

— Vale a pena tentar, não acha?

Max Schilling acercou-se de Leggit, revistando-o. Tirou-lhe a Luger, sem deixar de apontar-lhe o revólver.

— Tome, Lon — disse, jogando a pistola.

Antes da Luger chegar ao destino, Nilsen lan­çou-se ao ataque. Era aquele o momento que esperava. Afastou-se bruscamente a um lado, aplicando ao mesmo tempo um pontapé nas mãos estendidas do ferido. A arma de Schilling cuspiu fogo, dirigida para o lugar onde havia estado Mac, arrancando lasca da parede de pedra.

A ação fora tão inesperada, que Nilsen teve tempo suficiente para saltar novamente, no mo­mento em que o segundo tiro era desfechado. A bala atingiu o ponto exato que acabara de deixar. Caiu sobre o companheiro de Lon no instante em que se dispunha a atirar à queima-roupa.

Sem poder levantar-se, rangendo os dentes de raiva, Lon viu o agente especial atingir seu sócio em cheio, com um soco no estômago. Max deixou escapar um urro de dor, e dobrou-se em dois, com a boca aberta, sem fôlego. O soco de Nilsen, capaz de pôr fora de combate qualquer adversário, não pareceu decisivo para o bandido. Ainda encolhido, com os braços ao longo do corpo, Schilling jogou-se para a frente, procurando atin­gir o agente com uma cabeçada.

Leggit não havia intervindo, acreditando que seu companheiro derrubaria Schilling. Mac percebeu a manobra do inimigo e, num reflexo ins­tintivo, sentiu que não poderia retroceder, devido às pequenas dimensões da gruta. Saltou para um lado, levantando ao mesmo tempo ambos os braços. Como um touro enfurecido, Max avan­çou, sem ver o peito que procurava atingir. Isso o perdeu.

No momento em que a cabeça de Schilling che­gava ao ponto em que estivera Nilsen, este apli­cou-lhe uma cutilada, com as mãos cruzadas, com tremenda força, na nuca. O som emitido foi seco, sinistro. A cabeça do bandido projetou-se para baixo, seguida do corpo, em uma curva inverossí­mil. Seu rosto chocou-se contra o solo de pedra, e Max ficou imóvel, de bruços, como se fora esmagado.

A luta havia sido breve, mas violenta. Nilsen ofegava, ao voltar-se para Lon, com um sorriso de triunfo, que repentinamente desapareceu.

— Levante as mãos, valente! Você também, Leggit!

O ferido apontava-lhe a Luger que seu capanga tomara pouco antes ao policial. Enquanto Nilsen batia Schilling e Leggit acompanhava a luta, para intervir se fosse necessário, Lon apoderara-se da pistola caida ao solo. Sua posição demonstrava claramente os movimentos que fizera. Quando Mac lhe deu o pontapé nas mãos, a pistola rolou para o canto oposto da caverna, e o ferido apontava-lhes a Luger ainda estendido de lado a lado, apoiado sobre um cotovelo.

A surpresa patenteou-se no rosto de Leggit, que compreendeu seu descuido.

— Vocês não farão comigo o mesmo que fize­ram com ele — assegurou o ferido. — Ao menor movimento, acabo com ambos.

— Solte essa arma, Lon — ordenou Mac. — Se você nos matar, não poderá sair daqui, pois está ferido. Outros agentes do FBI, então, tra­tarão de mandá-lo para a cadeira elétrica.

— Isso, ainda veremos!

Lon começou a levantar-se, lentamente. Pro­curava uma posição que lhe permitisse dominar melhor seus inimigos. Tratava de apoiar as cos­tas contra a parede, para postar-se de frente ante os policiais. O olhar de Mac fez a Leggit um sinal imperceptível, como a dizer-lhe que o mo­mento mais propício para dominarem o bandido era aquele, antes que conseguisse apoiar-se na parede.

Leggit compreendeu o intento de seu compa­nheiro, e deu um passo em direção a Lon. O corpo do ferido crispou-se. Gritou:

— Não se mova, Leggit! Não se mova. ou atiro!

A Luger subiu uns centímetros, visando o peito de Leggit, que falou:

— Escute, Lon. Você não pode apertar o ga­tilho, pois nossa morte será também a sua.

— Cachorro! Eu lhe meto...

A atenção toda do bandido concentrava-se em Leggit. Não pôde concluir a frase, que substituiu por um grito de dor. A arma que empunhava caiu ao solo. A bota ferrada de Nilsen havia pisado sem contemplação o tornozelo ferido de Lon, que agora rolava pelo chão, desferindo urros. Nilsen não sorria mais, observando o resultado de sua ação. Quando Lon deixou de rolar, seu rosto estava branco como cera, e o sangue es­corria de seus lábios, mordidos na angústia da­quela dor candente. O suor corria-lhe pelo rosto.

— Eu lhe tinha dito que deixasse a arma, Lon.

O ferido não respondeu, limitando-se a encarar com ódio o homem que o dominara.

— Terminou a festa — tornou a falar Nilsen. — Eu o estava tratando bem, mas você não me­receu a consideração. Amarre-o! — ordenou a Leggit.

Enquanto seu companheiro algemava o ferido, Mac abaixou-se ante o bandido desmaiado.

— Este não está muito são, também — disse, virando-o.

Arrastou-o, pela gola da jaqueta, para fora da gruta.

— Que vai fazer, Mac? — perguntou Leggit.

— Já Vai ver. Este sujeito vai levar-nos para o albergue.

Colheu neve nas mãos, esfregando fortemente o rosto de Schilling, que não tardou a abrir os olhos. Ao ver debruçado sobre si o homem que o derrotara tão facilmente, o temor brilhou nos olhos do bandido.

— Não se assuste — disse-lhe Mac. — Não lhe baterei mais, a não ser que você o queira. Conduza-nos ao albergue, e não tente enganar-nos. Você e seu companheiro irão algemados, e com urna arma apontada às costas. E não faremos cerimônia' com o gatilho, entendeu?

Schilling não respodeu, limitando-se a passar a lingua nos lábios ressequidos, e a engolir em seco.

— Você sabe onde nos encontramos, e o cami­nho do hotel. Vamos, diga-o logo!

— Não fale, Max! — gritou roucamente Lon.

— Você já terminou com ele, Leggit? Faça-o calar, sem pena!

A mão de Leggit abateu-se violentamente no rosto do prisioneiro.

— A primeira palavra que você disser será a sua última — advertiu-o.

A atitude dos policiais havia mudado por com­pleto, mormente a de Nilsen. Portava-se agora como um homem duro, capaz de levar a cabo sua missão, sem importar-se de tratar com cruel­dade os prisioneiros. Forçou Max, brutalmente, a levantar-se, e estendeu a mão para as cordas.

Quando se dispunha a amarrar os braços do ban­dido às costas, este lançou-se para a frente, pro­curando a saída para o exterior da caverna. O súbito arranco de Max colheu Nilsen de surpresa, não lhe dando tempo de agarrá-lo. Mas sua perna direita entrou em ação velozmente.

Antes que o outro alcançasse o boca da gruta, o pé de Mac Nilsen trançou-se em suas pernas. Estendendo os braços para a frente, o bandido, perdido o equilibrio, caiu ao solo. Sua cabeça bateu na parede de pedra, com um estalido si­nistro. Schilling ficou imóvel, como um trapo, à entrada da caverna. Ao ajoelhar-se a seu lado, Mac comprovou que estava morto. Informou:

— Quebrou o crânio. Veja!

Leggit acercou-se e verificou que um filete de sangue fluía do crânio de Max Schilling. O silêncio voltou a dominar a caverna. Lon pareceu impressionado com o fim trágico de seu compa­nheiro, mas manteve-se calado. Dava-se, afinal, por vencido.

— Agora vamos ficar presos aqui até o ama­nhecer — opinou Leggit.

— Não, creio que há uma solução. A neve não tem caído muito forte, já há algum tempo. Schil­ling deixou seu rasto, que a nevada não pode ter destruído em tão poucos minutos. Com sua lanterna, não será difícil segui-lo.

Obrigaram Lon a levantar-se. Ao constatarem que não poderia caminhar, ou manter-se de pé,

Mac concordou em tirar-lhe as algemas, para que se apoiasse em Leggit. Amarrou-lhe um pedaço comprido de corda à cintura, segurando a outra ponta. Lentamente, puseram-se a caminho, dei­xando na caverna escura o cadáver de Max Schilling.

 

O albergue, assim chamado vulgarmente, era um hotel de montanha, com as comodidades habituais para os-esportes de inverno. Situa­va-se em um lugar idílico, em plena montanha, rodeado de bosques e escarpas. Na primavera e no verão, devido à fama de que gozava em todo o país, costumava receber sua lotação com­pleta de viajantes em busca de repouso. Nos meses de inverno, entretanto, poucos hóspedes o procura­vam; apenas os afeiçoados à neve e às escaladas.

A solidez de sua construção e seu telhado de lousa emprestavam-lhe um ar grave. Em cada pavimento, amplos terraços em cada apartamento rodeavam a estrutura de pedra. Contava com qua­dras de tênis, piscina, ginásio, garagem, enfim, todo o conforto de um hotel de boa qualidade.

Naquela noite havia pouco movimento no al­bergue e poucas luzes brilhavam. Notava-se logo que a clientela era escassa. Realmente, nos úl­timos dias havia chegado muito pouca gente.

Leggit, o agente do FBI, permanecera três dias, afastando-se naquela tarde repentinamente, após conferenciar com Mac. Este viera, autoritário, seco, e saíra com Leggit após conferenciarem por alguns minutos.

O proprietário, senhor Vernoux, um suíço na­turalizado, discutira com sua esposa Jacqueline a pressa dos dois hóspedes, chegando ambos à conclusão de que perseguiam alguém. Mac, cujo nome o suíço não chegara a saber, com­prou-lhe um equipamento completo para alpi­nismo, sem regatear. O hoteleiro percebeu que se tratava de um hábil escalador, pelo material escolhido.

Pouco após a partida dos policiais, hospeda­ram-se no hotel mais duas pessoas, um homem de seus trinta e cinco anos, elegante no trajar, que assinou no registro com o nome de Rodge, e uma mulher, muito mais jovem, bela e também elegante, Tilda Hopper. Ambos demonstraram muito interesse em conhecerem os costumes da região, e em particular os do albergue.

Perguntaram, também, ao senhor Vernoux por­que um lugar tão atraente permanecia vazio. O hoteleiro contou-lhes que os únicos hóspedes ha­viam partido precipitadamente poucos minutos antes, no encalço de algum criminoso, pois eram policiais.

Mais tarde, o hoteleiro pôs-se a esfregar as mãos de contentamento, à chegada de outro hóspede, que, segundo afirmou, vinha em busca de repouso absoluto. Três clientes, em ocasião em que não esperava contar com nenhum, eram uma perspectiva animadora, sobretudo por haverem todos eles solicitado apartamentos de luxo, pagando-os adiantadamente.

Os hóspedes travaram relações entre si, em seguida. Jogaram cartas, no salão de estar, junto ao belo fogo da enorme chaminé, consumindo o melhor uísque da casa. Quando a tempestade parecia iminente, a reunião dissolveu-se e o úl­timo hóspede subiu aos seus aposentos, Voltando alguns minutos depois, vestia-se como para uma excursão: jaqueta impermeável, bombachas de lã grossa, botas ferradas, luvas... Secamente, rechaçou os conselhos de Vernoux, que tentava dissuadi-lo do passeio.

Há quatro horas que o hóspede saíra, e o hoteleiro e seus clientes comentavam, preocupa­dos, sua demora, quando alguém bateu à porta.

— Aí está ele — exclamou Vernoux, aliviado. — Deve vir feito um pinto, e vai reconhecer que eu tinha razão, ao aconselhá-lo a não sair com este tempo...

Os outros dois trocaram um olhar de inte­ligência, e seguiram o hoteleiro até à porta. O homem demonstrava inquietação, e os olhos da jovem tinham um brilho enigmático. Vernoux abriu a porta, retrocedendo devido à rajada vio­lenta que penetrou no "hall". A neve caía em flocos enormes e o frio externo era seco, cortante como uma faca.

Apareceu primeiro um homem, que trazia outro aos ombros, curvado pelo peso, a arrastar os pés, exausto. Atrás deles, emergiu da cortina de neve um terceiro personagem, demonstrando exaustão igual. Um grito de surpresa escapou da garganta do suíço ao reconhecer o primeiro: era Leggit. E uma careta de desgosto torceu-lhe as feições, ao ver que o último era o mesmo que havia tirado do hotel, quase à força, seu hós­pede.

Leggit avançou com sua carga até a sala de estar, onde, sem o menor cuidado, despejou-a sobre um sofá, deixando-se cair ao seu lado. O suíço exprimiu alarma. Aqueles homens chega­vam cobertos de neve, molhados dos pés à ca­beça, e instalavam-se em seus móveis, molhando-os e sujando-os. Sua indignação cresceu, ao verificar que o que viera aos ombros de seu hóspede tinha as roupas ensangüentadas.

— Não! — exclamou, disposto a salvar seus móveis. — Aqui não. Os senhores estão... sujos demais. Vou levá-los para um lugar melhor.

O olhar de Mac Nilsen cravou-se no hoteleiro, tirando-lhe a fala.

— Deixe-o. Este homem desmaiou, e nós esta­mos cansados, muito cansados para ouvirmos as­neiras.

Nunca Vernoux havia sido tratado assim. Seus lábios chegaram a abrir-se, para retrucar no mesmo tom.

— Basta! — a exclamação de Mac tinha um acento quase ameaçador. — Onde está o tele­fone?

— Escute! — explodiu o suíço. — Creio que esta casa é minha. O fato de os senhores terem lutado contra a tempestade não lhes dá direito de mandar aqui.

Nas pupilas do agente federal brilhou a ira.

— Olhe. Isto aqui, não me dá direitos?

Na palma de sua mão faiscava uma chapa de metal. Os olhos do suíço arregalaram-se.

— O senhor é do FBI?

— Não vê a credencial? Vamos, diga-me onde está o telefone.

Vernoux precedeu Mac até uma sala próxima, e voltou, deixando-o a efetuar a chamada.

— Se soubesse... — murmurou. Leggit moveu-se no sofá.

— Traga-me uísque, por favor. Não vê como estamos?

Tinha o aspecto lamentável, com as roupas encharcadas, o rosto e as mãos arranhados, e parecia extremamente cansado. Ao receber a gar­rafa de bebida, levantou-se com esforço e intro­duziu entre os dentes, do prisioneiro o gargalo, despejando-lhe o uísque na boca. Em seguida, bebeu, ele próprio, um gole, estalando a língua com evidente satisfação. Lon Gretsy abriu os olhos, pousando o olhar no rosto que se inclinava sobre o seu. Ao reconhecer as feições de Leggit, pareceu afundar-se no sofá. Em seguida, com grande esforço, apalpou o tornozelo ferido, a gemer de dor.

        — Você disse que não chegaríamos, hem, Lon?

O bandido não respondeu, limitando-se a olhar em redor.

— Ao menos... — disse, depois de algum tem­po, aparentemente conformado com a sorte ad­versa. — Ao menos poderemos dormir confortavelmente.

Mac Nilsen voltou, com a aparência tão cansada como a dos outros, embora demonstrasse maior energia.

— A tempestade deve ter rebentado os fios. Não consegui ligação.

Dirigira-se a Leggit, mas os presentes o ou­viram. Um sorriso entreabriu os lábios de Lon. E, sem que os demais o notassem, os outros hóspedes, o homem e a mulher elegantes, troca­ram um olhar de inteligência.

Ao ver a garrafa, Nilsen apanhou-a. Bebeu enorme gole, sem uma pausa. A seguir sacudiu a cabeça, desabotoando a jaqueta, e acendeu um cigarro. Vernoux e os hóspedes contemplavam-no. Aquele homem devia possuir uma resistência extraordinária. Seus companheiros de aventura pareciam não ter forças para falar, sequer, enquanto ele demonstrava te-las recuperado ra­pidamente. Nilsen, de repente, afastou suas musculosas costas da poltrona, apontando com o ci­garro para Lon.

— Este homem — informou — está ferido e é meu prisioneiro. Tentou fugir-me, e quebrou o tornozelo direito.

Calou-se por um instante, e ajuntou, com um sorriso:

— Nunca perdi um prisioneiro, e este também não me escapará. Em algum lugar, tenho moti­vos para suspeitá-lo, deve haver amigos seus que pretendem libertá-lo. Quero fazer uma adver­tência: Lon não vai escapar, e quem tentar aju­dá-lo converter-se-á em réu de delito muito grave.

A jovem levantou a cabeça, encarando o agente especial:

— O senhor não pode acusar-nos. Que o faz supor que nós...

— Não disse isto — cortou, abrupto, Mac. — Fiz uma advertência, apenas. Há duas horas, um homem chamado Max Schilling tentou ajudar Lon a fugir, e agora está morto, numa caverna. Creio, por dedução, que ele não é o único...

Voltou-se para o hoteleiro:

— Diga-me, senhor...

— Vernoux, para servi-lo.

— Bem, Vernoux. Crê que a tempestade in­terrompeu o caminho para o vale?

— Tenho a certeza — respondeu o suíço. —, Sempre que a tempestade é forte, o albergue fica isolado por um tempo. Caiu muita neve, e ainda cairá mais, talvez por vários dias.

— Temia isto. E demorará muito, para que se possa sair daqui?

— Depende... Mas não pense em descer para o vale antes de oito ou dez dias.

— Quer dizer que estamos completamente pre­sos?

— Sim. Só um helicóptero poderia chegar aqui. A estrada fica sob diversos metros de neve e é muito perigoso viajar.

— Mesmo para um guia da região?

— Temos um, mas não creio que se arriscaria a isso por todo o ouro do mundo. Outras tenta­tivas já custaram muitas vidas.

— A que distância exata fica o vale?

— Pela estrada, quinze quilômetros; através do campo, descendo em linha reta, talvez a me­tade, ou menos.

— E existe possibilidade de chegar-se ao vale, por aí?

— Não sei. Creio que não.

Mac levantou-se, fazendo sinal a Leggit que o imitasse.

— Pode dar-nos um quarto? Com camas, por favor. E, a propósito senhor Vernoux, mande al­guém amanhã buscar o morto. Darei a indicação, para que encontrem a caverna onde ficou.

Leggit tratava inutilmente de levantar o ferido. Mac ajudou-o. Era prodigiosa a forma como o policial dominava a fadiga. Caminhou atrás do suíço, ereto, com passo firme, como se voltasse de um ameno passeio.

Rodge e Tilda ficaram no "living", sozinhos. O homem acendeu nervosamente um cigarro. Os olhos da jovem encheram-se de lágrimas.

— Calma, Tilda —- sussurrou Rodge. — Lon não está muito ferido, só quebrou o tornozelo.

— Quando terminará isto? — exclamou ela. Quando?

A mão de Rodge tomou-a bruscamente pelo pulso. Um ar duro crispava sua feição.

— Basta, Tilda! Não comece outra vez com sentimentalismos. Assim você porá tudo a per­der. Vamos tratar de salvar Lon, e para isso devemos ser resistentes. Você conhece seu irmão muito bem: sabe que não gostaria de vê-la cho­ramingando.

— A ocasião para salvá-lo passou. Aqueles ho­mens estavam completamente esgotados, e não poderiam resistir.

Antes de responder, Rodge olhou para a porta.

— Não. Pensei muito, quando chegaram. Per­cebi que um deles ainda estava em muito bom estado. Além disso, passou todo o tempo a vi­giar meus movimentos. Se houvesse tentado alguma coisa, tenho a certeza de que puxaria sua pis­tola imediatamente.

— Falaram de um... morto.

— Sim, ouvi isso. É Max. Mandei-o procurar Lon, para ajudá-lo. Agiu precipitadamente, de­certo. Ele sempre foi impulsivo. Agora, ficamos reduzidos...

Ouviram-se passos que se dirigiam à sala. Rod­ge afastou-se da jovem, e pôs-se a encher um copo com uísque. O suíço entrou no "living".

— Cairão na cama, cansados como estão, e vão dormir um montão de horas.

Lá em cima, no quarto, os dois agentes federais não se haviam ainda deitado. Lon jazia na cama, ao parecer adormecido, com as mãos algemadas. Leggit prendera outra algema à de Lon, passando-a em seu próprio pulso, e ocupava a mesma cama.

Falaram em voz muito baixa, para que Lon, no caso de estar apenas aparentando dormir, não ouvisse o que diziam.

— Sim, tenho quase certeza de que aquele par pertence ao bando dele. Se tiver razão, atravessa­mos um grande perigo. Estamos exaustos, inca­pazes de enfrentar nova luta. Por isto, fiz um esforço a mais, para que pensassem que não estava tão cansado assim. A verdade é que esse esforço me deixou ainda pior.

Arrastando os pés, Nilsen aproximou-se da ja­nela, examinando a parte exterior.

— Este maldito terraço — falou, apontando para fora — favorece um ataque de surpresa. Não podemos facilitar; enquanto você dorme um pouco, ficarei vigiando. Depois, trocaremos de po­sição.

— Muito bem, Mac.

Leggit deitou-se, vestido e molhado como es­tava, e instantes após dormia profundamente. Mac apagou a luz, sentando-se a uma cadeira junto à janela. Ouviu-se o estalido seco de sua pistola, ao ser destravada. Lá fera, a neve caía, intensa.

 

Vernoux tinha razão ao prognosticar que con­tinuaria nevando por vários dias. Na manhã se­guinte, o vento cessara por completo, mas a neve caía em flocos enormes, que silenciosamente engrossava a capa de alvura imaculada sobre a natureza inteira. Leggit acordou seu companhei­ro, já muito avançada a manhã. Precisou sacudi-lo repetidamente para obter resultado.

— Sem novidade, Mac — foi a saudação do que havia feito o último turno de vigilia.

Lentamente, Nilsen levantou-se, após soltar a algema que o prendia a Lon. Acercou-se da ja­nela, contemplando o panorama que se estendia ante o hotel. O ar era tonificante, e o agente aspirou-o com prazer.

— Depois deste repouso, sinto-me outro homem. É surpreendente como a gente se recupera de­pressa.

— É surpreendente — replicou Leggit — como você se recupera. Eu, na verdade, sinto-me como se tivesse apanhado a maior surra da vida...

O terraço correspondente ao seu quarto estava coberto pela neve. Mac mostrou-o a Leggit, di­zendo:

— Não parece que tenham tentado aproximar-se de nós. A menos que o tenham feito muito cedo, e a neve apagasse os sinais. É estranho... O mais lógico seria que o tentassem ontem, quan­do estávamos cansados, e que dormiríamos como uns troncos.

— Quem sabe essa gente não tem nada a ver com Lon? Talvez nem o conheçam.

— Não sei. De qualquer modo, devemos man­ter os olhos bem abertos. O ataque do tal Schil­ling me faz suspeitar que boa parte do bando an­de por aqui, disposta a salvar seu chefe. Acorde-o.

O prisioneiro tardou vários minutos a dar-se conta da realidade. Um movimento de raiva con­traiu-o quando Mac inclinou-se sobre ele.

— Como vai Lon? Parece que seus amigos ainda não decidiram cair sobre nós.

Lon cuspiu para um lado, com desprezo.

— Vocês estão com medo, e imaginando coisas.

Nilsen não pareceu ter ouvido suas palavras, porque disse:

— Suponho que haja um médico por aqui. Vamos chamá-lo, para ver seu tornozelo. En­quanto isto, não quer lavar-se?

Ajudado pelos policiais, o ferido foi ao banhei­ro, onde despiu o tronco. Tinha um torso poten­te, atlético, com músculos flexíveis e bem desen­volvidos. Deixaram-no sozinho, com a porta do quarto aberta.

— Se precisar de nós, avise.

— Que vão para o diabo, os dois! — foi a grosseira resposta.

Mac acendeu um cigarro, sentado na cama, de onde podia vigiar os movimentos de Lon. Ou­viu-se o ruído da água, enquanto este, apoiando uma das mãos na pia, ensaboava o peito. A opera­ção prolongava-se, e o cigarro de Mac já havia terminado. O ruído da água continuava.

— Não temos outro remédio, senão passarmos o tempo jogando paciência. O tédio deve ser enor­me, aqui — disse Leggit, encostado à janela.

 

Nilsen olhava distraidamente para a neve que caía, através da janela fechada, pensando que para si não existia tédio. Costumava permanecer dias inteiros refugiado contra tem­pestades em qualquer gruta perdida nas monta­nhas, sozinho, a esperar que amainasse a fúria dos elementos.

Sem nenhuma intenção prévia, voltou a cabe­ça para o banheiro. Deu um salto, de repente, abandonando a cama onde sentara. Lon estava fazendo alguma coisa estranha. Tinha pegado sua jaqueta, colocada em uma cadeira com o restante de sua roupa, e tirava um papel de um bolso. Para não cair, apoiava as costas contra a pa­rede.

— Quieto, Lon! — ordenou Mac, entrando, rá­pido, no banheiro.

Ao ver-se descoberto, o prisioneiro empalideceu. Seus dedos amassaram o papel, levando-o à boca. De um salto, Nilsen caiu sobre ele. Lon já começava a mastigar o papel, com evidente pressa de engoli-lo. Uma bofetada do policial forçou-o a cuspir o que desejava fazer desapa­recer. A reação de Lon foi instantânea. Jogou-se contra Mac, conseguindo agarrar-se a ele. Lan­çava faíscas dos olhos, balbuciando pragas. Um novo golpe de Nilsen atirou-o para trás, contra a parede. Desta vez, o policial empregara o punho fechado, com violência indescritível. Lon caiu ao solo, com um grito de dor. Mac olhou-o com firmeza.

— Você parece que não aprende nunca, Lon. Mac Nilsen recolheu a bola de papel. Adiante,

a jaqueta permanecia onde caíra. Leggit, à porta do banheiro, assistia a cena. Abrindo o papel, com cuidado, Mac leu-o, passando-o em seguida para seu companheiro. Tratava-se de uma nota apressada, a lápis, em que alguém prometia estar em determinado lugar, na data prefixada, com a "mercadoria". Não precisava qual era o lugar, em que data, e o que era a misteriosa mercadoria. Também não estava assinada.

— Convém interrogá-lo, não? Ele pode deci­frar esta mensagem para nós, Mac.

Nilsen, sem responder, abaixou-se e recolheu a jaqueta. Ao levantá-la, uma carteira caiu do bolso interno, espalhando parte de seu conteúdo. Mac abaixou-se, novamente, recolhendo sem pres­sa os papéis que se haviam espalhado pelo chão. Leggit contemplava o que seu companheiro fa­zia, sem intervir, com um sorriso nos lábios. Não conseguia compreender aquele homem, às vezes irônico e afável coro o prisioneiro, outras vezes violento. A forma com que o obrigara a cuspir o papel era própria de um homem inflexível. E pouco depois, poupava ao bandido o trabalho de recolher seus pertences.

Mac repunha na carteira os objetos que levan­tava, sem olhá-los sequer. Lentamente, o ferido recuperava as forças, apoiando-se à pia para le­vantar-se, num só pé. Não afastava o olhar do policial como a temer novo ataque. A verdade é que começava a temer aquele homem que o pren­dera e rechaçara diversos contra-ataques, de­monstrando uma resistência inesgotável. Restava no solo apenas um pedaço de cartolina branca, retangular, em que havia uma data estampada. Tinha o aspecto de uma velha fotografia, vista de dorso.

A cartolina ia seguir o mesmo caminho dos objetos anteriores, quando Mac, distraidamente, virou-a. Nenhum dos dois homens que o obser­vavam poderia prever a alteração que sofreu. Seus dedos deixaram escapar a carteira, que tor­nou a espalhar seu conteúdo pelo chão. Estava rígido, com os dedos que sustinham a fotografia trêmulos. E a expressão de seu rosto adquirira um matiz sombrio. Permaneceu assim vários minutos, rodeado de silêncio. Lon e Leggit olha­vam-no, estranhados, sem compreender o que ocorria. Seu olhar fixava-se tenazmente, como que hipnotizado, na fotografia desbotada pelo tempo, já sem brilho.

Mac refez-se, repentinamente, como saído de um sono. A primeira coisa que fez foi passar a mão pelos olhos, a espantar um pesadelo. Sua voz tornara-se irreconhecível, ao formular uma pergunta a Lon, mostrando-lhe a fotografia:

— Como chegou isto ao seu poder?

Era uma pergunta inesperada, que induziu Leg­git a pensar que Mac enlouquecera. Não houve resposta. Um ar indefinível mascarava a expres­são de Lon, que continuava a levantar-se, centí­metro a centímetro. Bruscamente, atirou-se con­tra Mac, impulsionado pelo pé são. Foi um ataque tão forte como insuspeitado, que apanhou o po­licial desprevenido. Lon arrancou-lhe a fotografia das mãos, antes de cair, sem sustentação, rugindo:

— Policial dos diabos! Meta-se com sua vida!

Leggit verificou com estupor que uma raiva surda, terrível, apoderara-se de Nilsen. Seu ros­to se transfigurava, e a fúria aumentava a cada instante. Prevendo o que poderia ocorrer, Leggit entrou no banheiro, disposto a impedir nova luta. Era tarde, já. Como uma fera, Mac atacava o prisioneiro. Agarrou-o pelo pescoço, levantando-o do chão, como se se tratasse de um boneco. Os rostos dos dois homens, dos dois inimigos, ficaram frente a frente, espumando de ódio incontrolável.

— Vou matá-lo! — gritou Mac, com o rosto con­gestionado. Repetiu, destacando cada sílaba: — Vou matá-lo, vou esmagá-lo, como a uma ser­pente venenosa. Que significa esta fotografia?

Leggit não ousou interferir, como pensara fa­zer a princípio. Mac estava furioso, com todo o corpo crispado. Seria perigoso tirar-lhe a presa.

— Fale, cão! Fale!

Lon tentava falar, mas a voz não lhe saía da garganta. Balbuciava sons ininteligíveis, e o pâ­nico apoderava-se rapidamente de seu ser. Os dedos de Mac cravavam-se em sua carne, e um tom purpúreo começou a tingir o semblante do ferido, que lutava inutilmente para livrar-se. Nil­sen puxou-o mais uma vez para si, e a seguir jogou-o contra a parede. A fotografia passou no­vamente para as mãos do agente federal, e pela segunda vez seus olhos fixaram-se nela, fasci­nados, como em transe. Leggit compreendeu que deveria agir. Acercou-se do companheiro segurando-o pelo braço.

— Escute, Mac. Não deve tratá-lo assim. Não podemos empregar métodos violentos, sem pro­vocação, nos que estão sob nossa custódia.

Por um momento, pareceu que Mac Nilsen en­frentaria também a seu colega. Ao encará-lo, Leggit constatou, surpreendido, que a emoção lhe velava o olhar. Supondo que a causa do descontrole de Mac fosse a fotografia, olhou-a de relance. Representava dois jovens, que teriam menos de vinte anos, vestidos de alpinistas, re­tratados, sem dúvida, durante uma excursão, com os braços de cada um ao ombro do outro.

- Não se meta nisto, Leggit — pediu-lhe Nil­sen, com voz trêmula. — Quero averiguar como Lon obteve esta fotografia. Talvez sua vida de­penda da resposta que me dê...

Aparentemente esquecido da presença de Leg­git, Mac inclinou-se ante o prisioneiro, mostrando-lhe a fotografia. Leggit falou, então, temendo nova explosão de cólera do companheiro:

— É melhor que o diga, Lon. É melhor para todos.

Não dera uma ordem, mas um conselho. O ferido olhou-o, e Leggit fez-lhe um sinal com os olhos.

— Você é diferente — disse o prisioneiro, e voltando-se para Mac, enfrentou desafiadoramente seu olhar. — Que pensa tirar disto? Um cri­me? É engraçado: os objetos mais inocentes des­pertam suspeitas nos sabujos do FBI.

— Estou esperando a resposta, Lon! Não es­gote minha paciência.

— Sinto decepcioná-lo — assegurou Lon, com sarcasmo. — Esta fotografia é minha, e não a roubei de ninguém. Sou eu mesmo, há mais de dez anos, quando era ainda um garoto.

— E quem é o outro?

A pergunta soou seca e insistente. Leggit diria que exprimia uma angústia estranha, incompreen­sível. O bandido não respondeu imediatamente. Seu olhar habitualmente cínico, mudara, como antes o de Mac. Seus dedos agitavam-se agora por um leve tremor, como os de Mac minutos antes.

Leggit começou a convencer-se de que ambos haviam perdido o juízo. Ninguém suspeitaria no despudorado Lcn aquele ar sentimental, que o fazia falar com a voz entrecortada.

— O outro — balbuciou. — O outro era meu melhor amigo, o único amigo verdadeiro que tive. Só ele me poderia ter desviado do cami­nho que escolhi...

Mac ergueu-se. Encaminhou-se rapidamente para o quarto, saindo do banheiro. O prisioneiro pendera a cabeça, abatido pelas recordações, sem perceber seu afastamento. Leggit compreendeu, de repente, a significação daquela cena, que antes parecera absurda. Nilsen demorou muito a re­gressar. Ao penetrar no banheiro, sua atitude e seu semblante haviam mudado. Mac recuperara a compostura, e seu rosto estava agora coberto por uma máscara impessoal, de completa indi­ferença.

— Pensei ter ouvido um ruído suspeito na porta — explicou a Leggit. — Estava enganado.

Acendeu um cigarro, oferecendo outro ao pri­sioneiro.

— É curioso — disse, dirigindo-se a este. —, Há uns meses vi nos arquivos do FBI uma foto­grafia igual a esta. Recebemos ordem de procurar por todo o país os dois rapazes retratados, custas­se o que custasse. Compreende minha insistên­cia? Mas foi um erro de minha parte, pois a fotografia dos arquivos era de dois jovens que cometeram um crime pavoroso poucos dias antes. Não pode, portanto, ser a mesma, já que a sua data de mais de dez anos. Lamento haver perdido o controle.

Talvez Lon engolisse o embuste, mas Leggit percebeu a mentira intencional. Sua brusca saída não tivera outro objeto que o de recuperar o domínio de si mesmo, inventando uma explica­ção. Nos minutos seguintes, Mac demonstrou se­gurança na dissimulação que adotara. Sem tornar a referir-se ao motivo da cena desagradável, ajudou o prisioneiro a levantar-se e a vestir as roupas. Amparou-o no caminho até a cama, onde descobriu seu pé ferido para examiná-lo.

— Creio que está apenas luxado — informou a Lon. — Não tem má aparência. Mandarei cha­mar o médico do hotel, e em poucas horas você melhorará. Dói muito?

Apertava com cuidado em vários pontos do tornozelo inchado, observando a reação do pri­sioneiro.

— Ai! Dói como...

Uma careta de dor impediu-o de terminar a frase.

— Não quero fazê-lo sofrer inutilmente. É melhor que o próprio médico verifique se foi fratura ou luxação. Daqui a pouco vou chamá-lo.

Aparentemente tranqüilo, Mac sentou-se aos pés da cama, onde terminou de fumar seu ci­garro.

— Por que não conta a história toda, Lon? — falou, com tom indiferente. — Esqueça-se de minha brutalidade. Às vezes, perco a cabeça sem motivo. Perdoe-me.

A surpresa brilhou nos olhos do ferido. Não compreendia a atitude do policial.

— Sim — insistiu Mac. — Essa fotografia, sua amizade com o outro. Você disse que ele se­ria o único capaz de desviá-lo do caminho que escolheu. Interessante, não é, Leggit?

Piscou um olho para o companheiro, ao ver uma sombra de pesar nas pupilas do prisioneiro. Prosseguiu:

— Enquanto palestramos, podemos pedir o lan­che. Tenho uma fome devoradora; vocês também, creio...

Lon caiu na armadilha. Desde a véspera ne­nhum dos três comia.

— Encomende, Leggit. Vejamos: que acham, para começar, de um par de ovos fritos para cada um? Para você também, Lon.

O agente estendia sua rede em torno do ferido, como a aranha envolve sua vítima. Para ganhar terreno, continuou:

— Reconheço, Lon, que me portei como um canalha com você. Por isto, quero tratá-lo de modo diferente, agora. Afinal, você ainda não foi julgado, e nem sei se será condenado... Vou fazer-lhe uma proposta vantajosa.

Leggit entendeu o jogo de seu companheiro, e aproximou-se mais da cama, para estudar melhor a expressão dos dois.

— Se você portar-se bem, não tentando fugir, terá um tratamento de primeira, enquanto esti­vermos encerrados aqui.

Seu método parecia infantil. Apesar disto, Leg­git percebeu que estava dando resultado. A pa­lavra de Lon, de que não tentaria fugir, não tinha valor. Leggit estranhava a proposta de seu companheiro.

— Bem, creio que me convém aceitar — disse o ferido. — Prometo não escapar.

— Ótimo, Lon. Vejo que é inteligente — Mac sentou-se novamente no leito, mais perto do pri­sioneiro. — Quer outro cigarro? — voltou-se para Leggit. — Que está esperando? Peça o lanche para três. Ah! e, não esqueça de pedir que man­dem o médico aqui.

Leggit obedeceu, voltando pouco depois ao quar­to. Queria escutar a palestra, pressentindo no relato de Lon um assunto de muita importância para Nilsen. Este, ao vê-lo voltar tão depressa, íêz uma careta de desgosto. Não tendo outra desculpa para afastá-lo, resignou-se com sua pre­sença.

— Não creio — Lon resistia — que achem nada interessante meu passado.

— Quem sabe? Às vezes a existência de um homem depende de seus primeiros anos. De qual­quer modo, será uma distração, enquanto espe­ramos o lanche.

Lon não se fez rogar por mais tempo e co­meçou a relatar sua vida.

 

A amizade de Lon Gretsy com o jovem da fo­tografia  datava  da  infância.  Morava  na Alemanha, com seus pais, e seu amigo, norte-americano, passava as férias com eles.

— Chamava-se Mac, como você — o ferido apon­tou para o homem que o caçara, sem suspeitar a armadilha que o destino preparava para ambos. — Um dia, nadando no Reno com outros amiguinhos, tive uma cãibra. Os companheiros, entretidos em mergulharem, não perceberam o que acontecia comigo...

Mac tornara a acender dois cigarros, entregan­do um ao prisioneiro, que agradeceu com um gesto. Leggit observou que Nilsen tremia perceptivelmente.

— Pensei então que me afogaria. Afundei, en­golindo água, impotente contra a dor da cãibra, sem atinar com o que se passava ao meu redor. Percebi que ainda estava vivo, somente quando me senti deitado na margem, cercado pelos companheiros de brincadeira. Entre eles, um desco­nhecido, que mais tarde soube ter passado pelo local no momento do acidente e, vestido como estava, havia-se jogado à água, salvando-me.

A recordação revivia dolorosamente na memó­ria de Lon. Permanecia meio recostado na cama, com o olhar perdido em um ponto abstrato. Sua voz soava velada pela emoção.

— Foi o início de uma grande amizade. Desde aquele dia, fomos inseparáveis. Cheguei a estimá-lo mais que a minha própria família, e ele jurou que o mesmo se dava consigo. Ao regressar aos Estados Unidos, na época escolar, senti que me faltava algo. Trocamos cartas todas as semanas, até sua volta à Alemanha. Nossos pais eram adversários políticos, mas nós estreitamos mais e mais nossa amizade, sem importar-nos as suas divergências. Minha irmã apaixonou-se por Mac, e foi correspondida. Éramos intensamente felizes, os três, e qualquer um de nós daria alegremente a vida pelos outros.

Uma breve pausa seguiu as palavras do ban­dido. Já não parecia um criminoso, afundado no lodo. O passado parecia transformá-lo em um homem normal. Prosseguiu em voz muito baixa, quase um sussurro:

— Marcamos secretamente a data do casamen­to. Antes que pudesse realizar-se, começou a guer­ra. Nossa felicidade partiu-se, como um copo de cristal, às primeiras explosões. Algum tempo após, os Estados Unidos converteram-se em nossos inimigos.

Mac levantou-se da cama. Sem perceber que estava sendo observado, esmagou o cigarro entre os dedos, não demonstrando sentir a queimadura que a ponta acesa provocou. Foi mais um dado registrado na mente de Leggit

— A família de meu amigo já visara seus pas­saportes, para abandonar o país. Na noite ante­rior à viagem marcada, aconteceu uma coisa bru­tal, incompreensível: desconhecidos assaltaram sua casa, munidos de pistolas. Os pais de Mac foram cruelmente assassinados. Ele conseguiu fugir, depois de ferir dois assaltantes. Foi perseguido como um cão, com a alegação de que ele e sua família haviam atacado pacatos alemães que passavam defronte à casa.

Leggit comprovou o efeito que causava o rela­to do prisioneiro no rosto de seu companheiro. A mandíbula de Mac Nilsen estava cerrada, en­durecida. Seu olhar fixava-se, como o de Lon, em um ponto longínquo: o passado.

— Prenderam-no. Foi condenado a um campo de concentração, onde seria enforcado dias após. Era meu amigo, e mais do que isso: era o ser que eu mais queria, depois de meus pais e minha irmã. Fui em seu socorro, sabendo a que me expunha. Um dos guardas do campo conhecia-me bem; tentei subornar aquele homem, para que me ajudasse a libertar Maç. Não o consegui, e então ataquei-o, e vesti seu uniforme. Quem deu a guar­da aquela noite fui eu, e antes do amanhecer, Mac fugia do campo em minha companhia.

Lá fora, o tempo recomeçava a piorar. A neve fustigou os vidros das janelas. Mas Lon e Nil­sen não se aperceberam disso. Leggit pensou que talvez o estouro de uma bomba no terraço não te­ria outro efeito.

— Convertemo-nos ambos em fugitivos. Antes que o Consulado dos Estados Unidos em Colônia fosse repatriado, conseguimos alcançá-lo. Mac in­sistiu em que o acompanhasse, mas neguei-me. Em meu coração ardia a fé em minha pátria, e queria lutar por ela. Confundido entre o pes­soal do Consulado, Mac embarcou para os Esta­dos Unidos. Na despedida, abraçamo-nos; já éra­mos adultos, mas choramos sem ocultar o que sentíamos. Lembro-me de suas palavras de des­pedida: "Até breve, Lon. Aconteça o que aconte­cer, você continuará aqui"; e apontou para seu coração. Imitei-o, repetindo seu adeus: "Aconte­ça o que acontecer, Mac."

O prisioneiro calou-se, fumando seu cigarro. Mac estava fora de sua vista. A menos que vol­tasse a cabeça, o agente estava invisível para ele. Dirigiu-se a Leggit, que estava diante de si:

— Creio que minha história os cansará. É na­tural: só quando sentimos uma coisa no mais profundo do ser não nos parecerá ridícula.

— Não, Lon, ao contrário. Prossiga. O que es­tá contando é realmente interessante.

Com um gesto, Mac agradeceu a seu compa­nheiro o que acabara de dizer.

— A guerra envolveu-me em seu torvelinho de loucura. Lutei na frente oriental, onde fui ferido no rosto. Um médico militar fez-me uma opera­ção plástica, dando-me novas feições. Meus pais morreram no primeiro bombardeio de Colônia. Restava-me apenas Helma, minha irmã, que con­tinuava amando Mac, e não perdera a esperança de ser sua esposa ao fim da guerra.

Apagaram-se, novamente, as palavras do fe­rido. Era evidente o grande esforço que lhe exi­gia a recordação do passado a dois estranhos. Leggit tornou a animá-lo, e ele prosseguiu:

— A guerra terminou, finalmente. Eu fora apri­sionado. Mas Mac não esquecera a promessa que nos fizéramos mutuamente. Era capitão-aviador, e ficou acantonado na Alemanha. Ia ser desmo­bilizado, quando deu com meu paradeiro. Não podendo conseguir minha liberdade em vinte e quatro horas, e devendo viajar no dia seguinte, deixou encaminhadas as medidas para que me sol­tassem. Não nos encontramos, pois eu estava a mais de trezentos quilômetros de distância, e Mac não dispunha de licença.

A voz de Mac Nilsen soou. diferente da habi­tual:

— Você é bom alpinista, Lon. Começou depois da guerra?

Sem dúvida, o agente queria convencer-se de que o relato do prisioneiro era autêntico. Lon explicou-lhes que ele e seu amigo eram entusias­tas do alpinismo, e que não perdiam oportunida­des de excursionarem às montanhas. Em seguida, sem necessidade de ser animado, continuou:

— Graças à influência de Mac, duas semanas depois fui libertado. Ele, além disso, enviou-me dinheiro e licença especial para que minha irmã e eu viéssemos para os Estados Unidos. Em sua última carta, dizia que nos esperava, ansioso, para fazer de Helma sua esposa.

Bateram à porta. Leggit deu entrada ao gar­çom do hotel, precedido de um carrinho sobre o qual fumegava o lanche pedido para os três. Assegurou ao empregado que eles próprios se ser­viriam, apressando sua saída, para ficarem a sós outra vez.

— A aparência está apetitosa — opinou o ferido, como que envergonhado das confidencias que fi­zera.

— Podemos esperar uns minutinhos — disse Leggit. — Tenho a impressão de que você acaba­va de chegar ao ponto mais interessante de sua história. Não podemos perdê-lo: termine, que os ovos fritos esperam por nós...

— Mac não estava no porto, quando chegamos. Crendo que alguma ocupação o impedisse de comparecer, dirigimo-nos, de táxi, à sua casa. Não estava era casa, também, mas deixara ordens para que nos acolhessem. Helma adivinhou que alguma coisa anormal se passava» Recebeu-nos uma espécie de secretário, dizendo-nos que queria mostrar uma coisa.

Uma espécie de gemido afogado sacudiu Lon. Passou ambas as mãos no rosto, antes de falar novamente.

— Sim, havia acontecido o pior, o que cons­tituía para nós três uma amarga tragédia. Re­vistando o arquivo do Partido Nacional-Socialista em Colônia, um militar americano encontrou documentos referentes à morte de um casal de compatriotas seus no início da guerra: a história da morte dos pais de Mac. O oficial que descobriu os papéis lembrou-se de que o filho das vítimas havia relatado o fato aos jornalistas, ao chegar a Nova York.

O olhar de Leggit procurou o de seu com­panheiro. As mãos de Nilsen crispavam-se na cabeceira da cama. A verdade abriu-se na mente de Leggit: o que a princípio fora uma suspeita, constituía agora uma verdade terrível.

— Isso aconteceu durante nossa viagem, de navio, para os Estados Unidos. O oficial julgou conveniente remeter os documentos ao interes­sado, isto é, a Mac, se ainda estivesse vivo. O Serviço de Informações não tardou dois dias para encontrar o paradeiro do filho das vítimas. Mac deixara aqueles documentos para que nos entregassem, à nossa chegada...

— Que diziam? — Leggit, ansioso, não pudera conter a pergunta.

— A prova irrefutável de que o mandante da morte dos pais de Mac fora meu próprio pai. Sempre havia visto com maus olhos minha amizade com um norte-americano, e opunha-se terminantemente ao casamento de Helma com ele. Ao começar a guerra, aproveitou sua influência no Partido para denunciar o pai de Mac como agente secreto inimigo. O restante, produziu-se por si só. Os ânimos estavam exaltados...

— E Mac, que fez, além de mostrar-lhes as provas ?

— Nada. Minha irmã chegou a desmaiar, e eu pensei enlouquecer. Saímos da casa, com o co­ração despedaçado. Sem dinheiro, passamos fome, toda a sorte de privações, até que um enviado de Mac encontrou-nos em uma casa de caridade de Nova York. Trazia uma carta e dinheiro. A carta dizia que sabia de nossa inocência, que amava Helma como antes, mas que não podia suportar a realidade terrível. O enviado entregou-nos tam­bém uma licença permanente de residência no país.

— Parece uma novela de rádio! — explodiu Leggit. — Uma novela com um final espantoso. E depois?

Uma careta de amargura torceu a boca de Lon.

— Foi para mim como se me arrancassem as entranhas aos pedaços. Minha fé na vida fora destruída. Quando quis reagir, era tarde demais. Sem fé em nada, sem vontade, roído por aquela realidade negra, fui caindo aos poucos. O dinheiro de Mac terminou, e não encontrei trabalho. Tinha fome, o único incentivo para a luta. Roubei... Depois, que importa? Depois...

A voz de Lon converteu-se em um soluço rouco. Era a voz de um homem mergulhado no charco de sua perdição. O silêncio pesou sobre os três homens. Repentinamente, a porta bateu. Ao le­vantar a cabeça, Leggit não viu seu companheiro: Mac acabava de sair.

— Diga-me, Lon — implorou — como se cha­mava seu amigo Mac?

— Mac Nilsen — foi a resposta.

 

Lon estava perdido em seus pensamentos, e não notara a estranha atitude tomada por Mac durante o relato, nem o tom angustioso com que Leggit lhe perguntara qual era o nome com­pleto de seu amigo. Não viu, também, a palidez que cobriu as feições deste último, quando pro­nunciou o nome: Mac Nilsen. Não viu, sequer, que o policial mordia os lábios, até sangrarem.

Quando levantou a cabeça, o criminoso viu que estava só com Leggit no quarto. Seu guar­dião estava de costas para a cama, olhando a neve que caía, através dos vidros da janela. Antes que a conversa fosse retomada, o médico cha­mado chegou para examinar o ferido, e a si­tuação tomou novo rumo. A atmosfera tensa que se criara, ao relato do prisioneiro, desfez-se.

Lon tirou a atadura e a meia do pé torcido, mostrando-o ao doutor. Este soltou um assobio, que não permitia presumir-se nada de animador. Atrás das lentes de seus óculos de aros de tartaruga, os olhinhos do médico expressaram alar­ma. Era um homem baixinho, de idade acima da mediana, com a testa muito alta e cara semelhan­te à de um rato. Antes de parecer um homem capacitado a curar seus semelhantes, dava a impressão de necessitar mais do que estes de cura.

O médico soltou sobre a cama a maleta de primeiros-socorros que empunhava e pôs-se a examinar detidamente o tornozelo do prisioneiro. Cada vez que o tocava com seus dedos amarela­dos e ossudos, um gemido surgiu da boca de Lon.

— Aperte os dentes, meu filho — recomendou-lhe. — Assim agüentará melhor a dor.

Embora sua primeira impressão houvesse sido alarmante, pouco depois dava uma palmada de satisfação na perna nua do paciente.

— A primeira impressão que tive era de que havia fratura e, o que seria pior, de que o sangue começara a gangrena... Mas é só uma vulgar luxação. O que não entendo é essa cor em torno do osso. A menos que...

Leggit interveio, informando-o do ocorrido: o ferido estivera exposto ao frio intenso das mon­tanhas, sem bota a protegê-lo, por muito tempo. Essa cor estranha devia-se, provavelmente, a isso. Tranqüilizado, o médico abriu a maleta, tirando os apetrechos necessários para um cura­tivo. Procurou algo, com o olhar, em redor, sem encontrá-lo, a julgar-se por sua careta de des­gosto.

— O senhor pode conseguir-me alguma coisa com que possa entalar este tornozelo? — pediu, indicando ao mesmo tempo a perna de Lon e a porta do quarto.

 Leggit vacilou um momento. Aquele sujeito não oferecia perigo, pelo menos por enquanto.

 Era demasiado delicado e velho para supor-se que pertencesse ao bando de Gretsy. Não obstan­te, algemou o prisioneiro às grades da cama, an­tes de sair do quarto. Ao chegar ao corredor, ainda ouviu o médico, que se dirigia a Lon:

— Você é tão perigoso, meu filho, que preci­sam fazer isto?

Não escutou a resposta. Desejava voltar o mais cedo possível ao quarto, já que as ordens de Nilsen eram positivas: não deixar o prisio­neiro sozinho. Mal Leggit desaparecera, o mé­dico afundou a mão no bolso do paletó, de onde  saiu com um papelzinho que estendeu ao surpre­endido prisioneiro.

— Vamos — apressou-o, vendo-o hesitar. — Não  perca um segundo. Esse homem voltará em poucos instantes. É um bilhete de seus amigos.

A cor voltou às faces de Lon, e seus olhos despediram uma faísca de alegria. O médico não pertencia ao bando, mas seus companheiros haviam-no convencido a colaborar para sua liberta­ção. Olhou rapidamente o papel, que devolveu ao médico.

— Destrua-o — ordenou, secamente.

Instantes depois, a chama de um isqueiro re­duzia a mensagem a cinzas. Quando Leggit vol­tou com as talas que conseguira, o velho estava inclinado sobre o pé do paciente, em silêncio, tentando repor na posição normal o tornozelo torcido. Grossas gotas de suor perolavam a testa de Lon, que se retorcia no leito. Apiedado, o policial pôs-lhe um lenço entre os dentes, para que o mordesse.

— Dentro de uma hora, o jovem poderá dar seus primeiros passos, se encontrarmos uma ben­gala neste maldito hotel — assegurou o gale­no, terminada a tarefa.

Através da careta de dor que lhe crispava o rosto, Lon conseguiu sorrir, dizendo, de si para consigo:

— Em pouco tempo depois, estarei livre, e esses dois descansando debaixo da neve...

Um duelo sem quartel começara a travar se no íntimo de Mac Nilsen. Desceu a escada como um autômato, sentindo-se desmoronar ao peso da fatalidade. O destino tem desses caprichos: logo ele haveria de capturar Karl Mann, agora conhecido por Lon Gretsy! O melhor amigo de sua vida, o homem a quem mais havia estimado, tanto, talvez, como a seu pai morto. E devia encaminhá-lo à cadeira elétrica! Competia-lhe fa­zer isso com Karl!

Parou no meio dos degraus. As recordações invadiam seu coração como uma avalancha de sensações dolorosas. Ao chegar ao piso térreo, sua expressão era lívida. Ah! se o soubesse, an­tes... Que não teria feito, se o soubesse, para evitar aquilo? Há dez anos, teria dado sua pró­pria vida para salvar a do homem que agora era seu prisioneiro, e que devia conduzir à morte.

Levantou a mão até a altura do coração, e murmurou as palavras que trazia desde então como uma recordação viva em sua mente: "Acon­teça o que acontecer..." Nunca soubera que as feições de Karl haviam sido alteradas pela ci­rurgia plástica; por isto, não o reconhecera. Karl também não o havia identificado. Teria mudado tanto, para que seu amigo não o re­conhecesse?

Desde a última vez em que se falaram, à des­pedida, na Alemanha, aconteceu muita coisa. E uma delas, os documentos que provaram a culpa­bilidade do pai de Karl na morte dos seus, de­terminou uma mudança radical na vida de Mac, convertendo-a em algo amargo e duro, como o remorso de um crime atroz.

E Helma, que teria sido dela? O agente es­pecial parou novamente, ao fazer-se esta per­gunta. Amara-a muito, e não pudera esquecê-la jamais, apesar de havê-lo tentado com todas suas forças. Ela, sua lembrança, foi como uma faca cravada durante anos no coração de Nilsen. Amando-a profundamente, tinha-a lançado à lama. En­goliu em seco, pronunciando o nome daquela que permanecia em seu coração desde que a conhecera. Dez anos, a sonhar com um fantasma, com algo impossível...

A amargura de sua vida, ainda muito jovem, convertera-o em um ser duro e seco, temido até por seus companheiros do FBI. Mac não se perguntou o que iria fazer. Onda após onda, as recordações assaltavam sua mente, sem dei­xarem espaço para um pensamento racional.

Repentinamente, o agente federal teve um so­bressalto. Parou, rígido. Uma voz musical sacudia seus ouvidos, sua mente, todo seu ser. Uma voz suave, feminina, que ele jamais esquecera. Era um simples e vulgar bom dia, que penetrou até o mais profundo de suas entranhas, como um ferro candente, como uma barra de gelo, angustiando-o. Seria um pesadelo? Seria o pro­duto de sua mente perturbada pelo fatal encontro com Karl?

A voz provinha do fundo da peça a que ele chegara. Um pesadelo! Com seu atroz sofrimen­to, o agente federal esteve a ponto de rir-se, como um demente. Não, não era um sonho. Era uma voz real, que voltou a soar, quase às suas cos­tas:

— Como vão a Polícia e o ferido? Vocês dor­miram quatorze horas a fio...

A mandíbula de Mac tremeu, sem que sua gar­ganta pudesse emitir a resposta à saudação. Seu primeiro impulso foi de continuar andando, para que ela não pudesse ver-lhe a expressão. Mas, inexplicavelmente, contra seu desejo conscien­te, voltou-se para o lugar donde partia a voz. Fê-lo muito lentamente, tanto que a jovem começou a pensar que aquele homem estivesse sob os efeitos de um narcótico, ou ainda meio ador­mecido.

Olhando-o, surpreendida, apreciou a rigidez de seu pescoço, a postura do corpo a girar sobre os pés. Ouviu um balbuciar rouco. Que estará acontecendo ao policial? — perguntou-se, com a impressão de que não queria virar-se para ela. Mas Mac continuou a voltar-se, centímetro a cen­tímetro, forçado inexoravelmente pelo destino.

A revista que Helma tinha nas mãos caiu ruidosamente ao solo. A moça levantou-se, de um salto, como uma mola que se soltasse re­pentinamente. Um grito indefinível, de angústia, de selvagem alegria, de imensa dor, percorreu o corpo da jovem, antes de saltar de sua gar­ganta.

Ele escutou aquele alarido e, antes que pudes­se fazer qualquer movimento, viu-a, impotente, cair desfalecida. Ajoelhou-se a seu lado e aper­tou sua cabeça contra o peito, até ouvi-la gemer de dor. Subitamente, pôs-se a beijá-la. Beijou-lhe a boca, a testa, os olhos, outra vez a boca...

 

Os braços de Helma cercaram o corpo de Mac, com as mãos crispadas. Um pranto abrasador subia a seus olhos. Sussurrou o nome do amado, muitas e muitas vezes. Ele surgia de mui­to longe, de quase toda uma vida de violência, de dor, em que o significado desse nome lhe dava energia para suportar a miséria e o lodo que a rodeavam, para continuar vivendo...

Esgotados pela intensidade dos sentimentos, abraçados com ânsia, permaneceram mudos por alguns minutos. Seus braços continuavam aper-tando-se, seus hálitos confundidos, os corações palpitando em sintonia, esmagados pelo infor­túnio. Nilsen reagiu primeiro, olhando em re­dor.

— Venha, Helma, precisamos conversar. Va­mos a algum lugar onde ninguém nos ouça.

Ajudou-a a levantar-se, e encaminhou-a para a porta mais próxima. Saíram do prédio, sob a neve que caía, sem darem importância aos flocos que começavam a encharcá-los. Estavam no jar­dim. Ao fundo, à direita, descobriram um telheiro de troncos. Os traços de sua passagem pela neve, muito juntos, demonstravam que iam an­dando apoiados um no outro.

O telheiro sobressaía das paredes laterais. Pu­seram-se sob aquele abrigo. Estavam sós, e do interior do albergue não podiam ser vistos, por estarem no lado contrário do edificio, que dava para o campo.

— Deixe que a contemple, Helma. Meu Deus, como você mudou! Não teria reconhecido, se não lhe tivesse ouvido a voz.

Passou os dedos por seu rosto, como se aca­riciasse uma criança, temendo machucá-la. Ela respondeu em alemão, na língua em que costu­mavam afirmar, muitos anos antes, que seriam um do outro.

— E você, Mac? Reconheci-o imediatamente. Tê-lo-ia reconhecido entre um milhão de pessoas. Ontem à noite, não, porque você estava coberto de lama. Você mudou muito, também.

Pôs-lhe a palma da mão na face.

—- Você tem a expressão dura. Parece muito mais velho. Parece outro...

Seus rostos estavam muito próximos. Seus lá­bios juntaram-se, suavemente a princípio, incons­cientemente temerosos da realidade. Depois, aper­taram-se com doloroso frenesi. Ao separarem-se, ofegavam. Ela pôs-se a soluçar, apoiada no peito de Mac.

— Agora, nada poderá separar-nos, Helma. Nada!

Através das lágrimas, a jovem olhou-o. A im­potência contra o destino rasgava em suas pu­pilas a felicidade que as fizera resplandecer mo­mentos antes.

— É tarde demais, Mac. Já é impossível — balbuciou, com voz trêmula de soluços conti­dos.

— Por quê? Eu a quis sempre. Estes anos to­dos, só pensei em você, em encontrá-la.

— O primeiro crime não tem importância, a princípio. Depois... Vai-se caindo paulatinamen­te, a pouco e pouco, mas sem remédio. O lodo sobe mais e mais, até que nos suja por com­pleto.

Os dedos de Mac crisparam-se nos braços da Helma. Através das mangas, ela sentiu a furiosa pressão de suas unhas, mas mordeu os lábios para não gritar de dor.

— Você não caiu! Você não pode ter caído! Um rito de profunda tristeza moveu os lá­bios da jovem, quando tornou a falar.

— Acreditei que não poderia suportar. A fome, que horrível que é! Primeiro, foi a fome. Dor­míamos debaixo das pontes, cobertos de jornais, com os dentes batendo de frio, todas as noites, com o estômago dolorido de fome. Mas eu su­portei, disposta a morrer de fome, antes que a roubar. KarI começou a fazê-lo, poucas vezes a princípio. Eu me negava a participar, até que a fome tornava-me como louca. Pouco depois, Karl adoeceu. Não tínhamos recursos...

— Eu os procurei, Helma — interrompeu-a o agente federal. — Quando vocês estavam de via­gem, deram-me aqueles malditos documentos; perdi a cabeça. Andei como louco, por uma sema­na. Vocês estavam prestes a chegar, e eu tinha de achar uma solução. Encontrei a pior... Depois da partida de vocês, convenci-me disso. Que culpa poderiam ter pelo que seu pai fez? Por que pagarem as culpas alheias?

— Esqueça-o, Mac. Eu o perdoei no mesmo dia em que soube a espantosa verdade.

— Não. Você tem que ouvir-me. Senti-me culpa­do, e procurei-os. Durante semanas inteiras, aban­donei meu trabalho, com um só desejo: encon­trá-los, fazer que tudo voltasse a ser como antes. Percorri Nova York, rua por rua, distrito por dis­trito, dos mais elegantes aos mais sórdidos. Dei-me por vencido somente após dois meses. Mas não perdi a esperança de encontrá-los. Amava-os de­mais, para perdê-los por um momento de deses­pero. Entrei para o FBI para ter ao meu alcance os fichários mais importantes do país. Olhei fi­cha por ficha; paguei, durante dois anos, várias agências de detetives particulares, para procurá-los.

— Nós não estávamos mais nos Estados tini­dos — confessou Helma. — Fugimos de você, en­vergonhados, e do país que aprendêramos a amar por você. Com o dinheiro que você mandou que nos entregassem, fomos para Cuba. Estávamos quase a ponto de refazermos nossas vidas, quan­do Karl caiu numa armadilha. Escapamos, e re­gressamos aos Estados Unidos.

Helma não continuou o relato. Os soluços a afogavam. O frio intenso não chegava até eles, apesar de estarem no exterior. O vento desviava, por vezes, a neve esvoaçante, açoitando-os.

— Tudo mudou, agora — insistiu ele.

— Mudou... — repetiu a alemã. — Sim, mu­dou muito. Karl é seu prisioneiro, e você vai levá-lo, talvez, à cadeira elétrica. E eu pertenço ao seu bando. Por vontade própria ou à força, pouco importa, sou sua cúmplice.

Um acento de desespero enchia as palavras de Helma. A realidade era a que suas frases encer­ravam, realidade espantosa demais para que pu­dessem sobrepor-se a ela. Ele o compreendeu, olhando os olhos de Helma, vendo através das lágrimas que banhavam suas pupilas. Sem per­ceber o que fazia, abrasado interiormente por essa realidade, sacudiu-a com força. Seus dentes permaneciam cerrados. Separou-os, para exclamar roucamente:

— Você não caiu! Você, não!

— É impossível, não compreende? Você quer amar a filha do assassino de seus pais, a irmã do homem que deve levar para a cadeira elé­trica.

— Talvez exista uma solução, Helma.

— Qual?

— Ainda não entreguei Karl. Posso sair do FBI.

— Conheço-o bem, para crer que possa fazer isso. Você é demasiado honesto, para essa covardia. Não, Mac: não trate de enganar-se a si mesmo. O destino é mais forte do que nós.

— Diga-me: você pertence ao bando?

—- Não. Karl às vezes leva-me consigo e obri­ga-me a colaborar. Mas não tem muita confian­ça em mim. Sempre diz que eu nunca servirei para o seu bando.

— Isso é uma infâmia! Como pode Karl obri­gá-la a tornar-se sua cúmplice?

— O Karl que você conheceu não é mais o mesmo, Mac. Já não existe aquele rapaz que acreditava na vida e na humanidade. Agora é um homem sem piedade, porque o mundo não teve piedade com ele. É um homem capaz de roubar e de...

— Matou alguém?

— Sim, derramou sangue, já. No início, repugnava-lhe ser criminoso, a eu tinha alguma ascen­dência sobre ele. Pouco a pouco, seu coração foi endurecendo, e hoje seria capaz de matar você, como a uma formiga, ou a qualquer que se atravesse em seu caminho.

 

O agente federal voltou a cabeça para um lado, para que a jovem não pudesse ver o riso que lhe torcia a boca. Ao olhá-la, novamente, perguntou-lhe:       — Que papel você faz aqui? no hotel? Helma pareceu vacilar, como a temer reve­lar o jogo de seu irmão. Decidiu-se, no entanto, decorridos poucos segundos.

— Eles me trouxeram para cá quase à força. Lon voltaria para o albergue, quando conseguisse enganar seus perseguidores. Estava certo de con­segui-lo, graças à montanha. Seu companheiro, Leggit, não é alpinista, e seria como uma brinca­deira, para Lon. Diversos membros do bando puseram-se a caminho, enquanto Lon prosseguia com seu plano. Avisou-os pelo telefone, dizendo que não lhes poderia explicar melhor o assunto, porque Leggit estava em seus calcanhares. Pou­co antes de iniciar-se a tempestade, o bando di­vidiu-se. Rodge e eu tomamos aposentos no al­bergue. Os outros desapareceram, sem dúvida escondidos em algum lugar. Uma ruga marcava a testa de Nilsen.

— É estranho — falou com voz ausente, mer­gulhado em reflexões. — Se Lon tinha a certeza de enganar Leggit, para que chamou o bando?

— Não sei. Eles nunca me revelam seus pro­jetos. Eu suspeito que Lon escondeu aqui o pro­duto do último golpe, que deram há duas se­manas, e voltou para buscá-lo. Foi quando apa­receu Leggit, que decerto não lhe deu tempo de recuperar esse dinheiro, ou o que quer que seja, e então mandou que o bando viesse ajudá-lo.

— Creio que tçm razão. O roubo que Lon executou foi o de uma mala postal, apoderando-se de mais de cem mil dólares. Andamos à sua caça, mas ele escapava sempre. Já havíamos perdido sua pista, quando Leggit encontrou-a novamente. Quase foi alcançado por Leggit, e o FBI, ao per­ceber que escaparia novamente, pois Leggit não é bom montanhista, mandou-me para cá. Creio que Lon escondeu o produto do roubo nestas re­dondezas, e chamou o bando para ter a sua proteção contra nós. Agora, começarão a lu­tar.

— Que pretende fazer, Mac?

— Não sei. Só posso salvar Karl traindo o FBI.

— A condenação de Karl será muito severa?

— Creio que sim. Temo que seja a máxima: cadeira elétrica.

— Oh. meu Deus! E você precisa levá-lo! Ele o reconheceu, Mac?

— Não. Agora, creio que não me reconhecerá mais. Estivemos muitas horas juntos, e ele nem suspeitou de quem eu sou. Não me reconhecerá. Faz muitos anos que nos vimos pela última vez. Éramos muito moços, e muda-se muito, com o tempo. Ele nunca o saberá, a menos que você lhe diga.

— Ontem, quando vocês chegaram ao albergue, eu também não o reconheci. Estavam encharca­dos, exaustos. Não olhei para você muito detida­mente.

— E eu nem sequer olhei para você. Estava cansadíssimo, e cuidava-me do homem que estava com você, o tal Rodge.

Pela segunda vez, ela formulou a pergunta ter­rível:

— Que vai fazer, Mac?

Nilsen não respondeu imediatamente. Apanhou sua face entre as mãos, olhando-a nos olhos.

— Vou lutar com todas as forças, Helma, para salvá-la. Vou lutar por você. Se vencer, nada impedirá nosso casamento; se perder, há uma solução para Karl e para mim, a única so­lução.

A jovem compreendeu o que seu amado queria significar com aquelas palavras. Levou as mãos à boca, afogando um grito de protesto. E entre soluços exclamou:

— Não, Mac! Isso, não! Você não pode...

— É a melhor solução, é a única —- repetiu Mac. — Quando se estima uma pessoa, não se pode enviá-la para. a cadeira elétrica. Karl der­ramou sangue, e isto não tem perdão. Eu sou o culpado indireto da situação a que ele chegou A única solução que nos resta é a nossa morte; os dois pagaríamos, assim, nossas culpas, Hel­ma. Você não matou, por isto deve continuar vivendo: no fundo, é inocente. Nós pagaremos também sua culpa, se é que a tem.

Ela o agarrou desesperadamente, mas Mac sol­tou-se com violência. Deu uns passos em direção ao hotel, e voltou-se bruscamente. Uma vez mais, estreitou-a contra o peito. Quando seus lábios se separaram, cheios de amargura, os dele sus­surraram:

— Por você, Helma. Por você, até a última gota de meu sangue.

Soltou-a, fazendo-a retroceder até a parede de troncos, e, sem voltar a cabeça, dirigiu-se para o albergue. Ela não se moveu. Através de suas lá­grimas e da neve, viu-o afastar-se. Soluçava, com o corpo sacudido por um estremecimento convulsivo. Recebera muitos golpes do destino, mas ne­nhum fora tão esmagador como o que acabava de sofrer.

No dia seguinte, pela manhã, o médico entrou no quarto dos agentes federais, para a segunda visita profissional a Lon Gretsy.

— Olá, policial — saudou, atirando sua velha maleta sobre a cama. — Como está nosso doente?

Mac Nilsen não se encontrava no quarto. Des­de que o prisioneiro fizera o relato de sua vida, só voltara a ele à noite, quando o ferido já ador­mecera. O velho doutor parecia mais abatido e cansado, aquela manhã. Antes mesmo de desen­rolar a atadura que cobria o tornozelo de Lon, deixou-se cair numa cadeira, puxando seu ca­chimbo do bolso.

— A neve esgota meus nervos — disse, como desculpa. — Estou aqui há anos, mas não me acostumo com ela. Quando era mais moço, passava horas lendo, em dias assim. Hoje em dia nada me distrai, e fico enervado, fechado em um quarto, sem nada com que me ocupar.

Fumou o conteúdo do cachimbo, sem parar de falar, antes de levantar-se para cumprir seu dever profissional. Leggit estranhou sua atitude, sem, entretanto, suspeitar de nada. Atribuía ao nervosismo provocado pela nevada aquele com­portamento. Que perigo poderia representar um velho médico, de aparência doentia?

— Vamos ver, meu filho. Vamos ver — inclinou-se sobre as pernas de Lon, começando a tirar a atadura. — Creio que hoje você poderá caminhar um pouco.

O tornozelo estava muito melhor, tendo vol­tado à coloração normal, e apresentando-se me­nos inchado. Com um, grunhido de satisfação, o médico levantou-se.

— Muito bem, agora vamos tentar caminhar. Ajude-nos, polícia.

Foi fácil ao prisioneiro levantar-se da cama. Passando os braços pelos ombros de Leggit e do doutor, deu alguns passos. Apertou os dentes, sentindo ainda alguma dor no pé ferido. Desse modo, deram uma volta no quarto.

— Com uma muleta ou uma bengala, você po­derá descer para o salão. É questão de um pouco de esforço e vontade. Vou entalar, agora, para firmar melhor, seu tornozelo. Verá que não será muito difícil caminhar.

O agente federal alcançou as talas para o mé­dico. Nunca pensara que sua colocação causasse dor; viu com surpresa o rosto de Lon contrair-se e seus dentes rangerem, durante a operação.

— Não demora, filho. É questão de poucos mi­nutos.

Entalado o tornozelo, o doutor apertou firme­mente as ataduras. O ferido, repentinamente, dei­xou escapar um gemido e desmaiou.

— Não entendo essa fraqueza — exclamou Leg­git, estupefato.

O módico olhou-o, com malícia.

— Não, hem? — disse. — Eu esperava por isto.

Como Leggit continuasse imóvel, o velho pa­receu perder a calma, e disse-lhe, com irritação na voz:

— Que faz, parado aí? Nunca viu ninguém perder os sentidos? Vamos, faça alguma coisa: dê-lhe uísque.

— Não temos bebida nenhuma.

— Procure, então. Vá buscar lá embaixo, que há de sobra. Depressa!

Leggit teve a intuição de que estava aconte­cendo alguma coisa anormal. Hesitou, o que au­mentou a irritação do médico. O velho insistiu, colérico, mas Leggit não se decidia a deixá-los a sós.

— Será que você pensa que um sujeito desmaia­do e com o pé nessas condições poderá sair cor­rendo? Ande, faça o que lhe disse. Eu cuido dele, para que não levante vôo.

A ironia do velho não passou despercebida ao agente federal, que esteve para responder-lhe à altura. Mas conteve-se; no fundo, o velho tinha razão, pois Lon não estava em condições de fu­gir. Desprezando, pela segunda vez, seus pres­sentimentos, saiu em busca de bebida. Ao regres­sar, trazendo uma garrafa de uísque e um copo, a porta do quarto estava aberta como a deixara. O médico estava junto à janela, olhando a neve que caía, e o prisioneiro, na cama, dava as costas para a porta.

Leggit não dera mais de dois passos no quarto, quando parou. As suspeitas vagas que sentira cresceram repentinamente em seu intimo. A in­tuição fê-lo parar e levar a mão ao coldre. Já era tarde: antes de seus dedos chegarem à Luger, soou a voz de Lon, como uma chicotada:

— Pare, Leggit! Não se mova um centímetro, se não quiser morrer!

Virara-se de repente, empunhando um revól­ver 45, que apontava para o peito do agente.

— Terminou a farsa — prosseguiu, com a voz sonora do triunfador. — Desarme-o, doutor, de­pressa!

Enquanto o velho obedecia, trêmulo, o policial animou-se a perguntar:

— Quem lhe deu essa arma, Lon?

— Eu — respondeu o médico — Eles me obriga­ram, ameaçando-me de morte se não os ajudasse.

— Dê-me a arma de Leggit — ordenou Lon ao doutor, que obedeceu prontamente. Dirigiu-se novamente ao homem do FBI. — Encoste-se na parede!

Leggit também obedeceu, com um sorriso im­perceptível nos lábios. Lon ignorava que ainda tinha em seu poder a arma que Mac arreba­tara a Schilling na caverna. O agente federal guardava esse trunfo para o momento oportuno, quando a última palavra seria sua. Ao encos­tar-se à parede, ouviu o prisioneiro ordenar ao médico:

 

— Agora, abra a janela e faça o sinal.

O doutor abriu-a, com o tremor do corpo acen­tuando-se. O vento penetrou no quarto, lançando neve sobre a cama.

— Feche a porta com chave!

Novamente o velho fez o que Lon mandava. Um indivíduo, desconhecido de Leggit apareceu no terraço, imediatamente após o sinal do mé­dico, empunhando um revólver.

— Tudo saiu de acordo com os planos, chefe — informou ao ferido. — E foi bastante fá­cil...

— Não percamos tempo. Trouxe a corda? Sem responder, o  capanga entregou-lhe um

rolo de cordas. Lon passou uma das pontas em torno da cintura, preparando-se para a descida. Entretanto, seu colaborador acercou-se de Leggit.

— Você poderia atrapalhar-nos, não acha?

Levantou inesperadamente a mão armada, apli­cando uma coronhada na nuca do policial, que caiu sem um grito. Leggit, no entanto, não per­deu os sentidos. Rolou ao solo, sentindo um fio de sangue a escorrer-lhe pelo pescoço. Apesar de entontecido, pôde ver o bandido fazendo Lon descer pela janela, sem dúvida com a corda fixada a algum lugar. Leggit não entendia muito de alpinismo, mas sabia o suficiente para per­ceber que Lon estava pondo em prática o método mais usual: os dois extremos da corda em poder do que desce, um em torno da cintura, e o outro em suas mãos, para fazê-lo correr ao redor de um espeque.

O capanga, uma vez terminada a operação, voltou-se para o médico, que ficara imóvel, para­lisado pelo medo.

— Você nos viu, e o outro agente, quando voltar, vai perguntar-lhe como foi que fugimos.

Suas palavras encerravam uma ameaça clara. O corpo do velho moveu-se, finalmente, domina­do pelo terror. Deu um passo em direção ao ban­dido.

— Que... que vai fazer? Eu... eu...

Não terminou de falar. Sua voz não atendia à sua vontade. O capanga de Lon levantou o re­vólver.

— Isto — disse, e disparou à queima-roupa.

O médico caiu, de costas para o chão. Um véu de sangue cobriu os olhos de Leggit, ocultando-lhe o velho e seu matador. Ante o agente acabara de ser cometido um assassinato a sangue-frio. Não procurou fazer nada para recuperar a visão; sabia onde estava o canalha. A mão justiceira do policial apertou o revólver que ocultava. Sem tirá-la do bolso, disparou, através do tecido, três vezes consecutivas. Não viu o resultado mas ouviu-o. Um grito de surpresa, mortal, rompeu o silêncio. Em seguida, o ruido de um corpo que caía.

Um novo estampido; outro. Leggit sentiu na carne a mordedura do chumbo ardente. Quis apertar o gatilho, outra vez, mas seus dedos haviam perdido a força. As trevas avançaram, ameaçan­do tomar conta de seu cérebro. Teve consciência de ter sido atingido por dois disparos, e sentia-se muito enfraquecido.

Com um esforço sobre-humano, conseguiu dis­tinguir vagamente a silhueta de alguém à jane­la, desaparecendo para baixo. A seu lado ja­ziam dois homens: o bandido e o velho doutor. Sentia um vazio estranho, uma insensibilidade crescente em todo o organismo.

Pareceu-lhe haverem transcorrido horas. Não podia mover-se. Sua mente, cheia de sombras, julgou perceber passos precipitados. Uma face conhecia inclinou-se sobre ele: Mac Nilsen. Sen­tiu a presença de outras pessoas, que não podia precisar quem fossem. Chegava-lhe muito con­fuso e irreal o som de suas vozes.

Mac não perdeu tempo. Abaixou-se ao lado do companheiro, levantando-o sem esforço aparen­te, e depondo-o na cama. Não era médico mas possuía alguns conhecimentos de pronto-socorro, principalmente a baleados, adquiridos ao longo dos anos em que exerceu a profissão de agente do FBI. Rasgou a camisa de Leggit, empapada de sangue, para examinar os ferimentos.

Nilsen apertou os ferimentos com raiva, ao per­ceber que eram gravíssimos. Se não fosse encontrado um médico imediatamente. Leggit não teria salvação, pois uma das balas perfurara um pulmão, enquanto a outra penetrara na viri­lha, seguindo, através do ventre, seu curso para cima. Tentou reanimá-lo com uísque, embora sou­besse que o álcool é contra-indicado em casos se­melhantes.

O senhor Vernoux estava a seu lado, profun­damente impressionado, a julgar por sua ex­pressão e a forma com que esfregava constante­mente as mãos. Mac apontou o corpo do velho, perguntando:

— Há outro médico por aqui, além deste?

— Não, só ele.

— Nem ninguém que possa substituí-lo, na emergência ?

Um movimento negativo de cabeça foi a res­posta do proprietário do hotel. O ferido, reanimado pelo uísque, escutou a breve palestra. Conseguiu, com grande trabalho, soerguer-se uns centímetros, e falou. Sua voz denotava já o rouco estertor da agonia:

— Não quis... matá-lo... Era... seu... ami­go...

A inesperada revelação penetrou como um es­tilete no coração de Mac Nilsen. O ferido prosse­guiu, com muita dificuldade:

— Esteve... ao alcance... de minha mão... Perguntei... como se chamava... seu amigo... Disse seu nome... Deixei que você... resolva.

Os presentes, o dono do hotel e dois emprega­dos não compreenderam a significação do que Leggit dizia. O olhar de Mac toldou-se ainda mais. Uma garra de dor apertava seu ser.

— Sei que... não tenho... salvação...

Uma golfada de sangue surgiu da boca de Leggit. Maquinalmente, Mac passou os dedos pelo líquido pegajoso que avermelhava os lençóis. Afas­tou-se da cama, com uma decisão terrível no olhar.

— Cuide dele, senhor Vernoux — ordenou ao suíço. — Fique a seu lado até sua morte, já que não podemos fazer nada para evitá-la.

Saiu do quarto, como um sonâmbulo. Refez-se somente ao chegar ao piso térreo. Certificou-se de que Helma e Rodge haviam saído pouco antes, como suspeitara enquanto descia a escada. Mu­niu-se de um rifle e revisou sua Luger. Não demonstrava pressa, como se tivesse certeza de que alcançaria a quadrilha.

Vernoux forneceu-lhe um par de raquetas de neve e voltou para a cabeceira de Leggit. Já na porta, Nilsen falou pela última vez, em voz que escondia a espantosa luta que lhe ia no íntimo:

— Se eu não voltar, providenciem o enterro de meu companheiro, e, logo que for possível, co­muniquem o acontecido à cidade mais próxima. Eles se encarregarão do resto.

O suíço viu-o desaparecer na brancura imacula­da que cobria aquele pequeno mundo de drama.

 

Mac Nilsen sabia que os criminosos não em­preenderiam a fuga a pé. Lon Gretsy, ferido, não poderia deslocar-se senão em algum veículo. O agente encontrou sob a janela do quarto os traços deixados por um trenó, que calculou pertencer a alguém do hotel, ou ter sido trazido pelos capangas de Lon para trans­portá-lo. Não perdeu tempo a averiguá-lo, pois a sua procedência não tinha importância para ele, e sim a vantagem que trazia para os ban­didos.

O veículo era puxado por um cavalo, que dei­xara igualmente seu rasto na neve. A intensidade da nevada apagaria em menos de uma hora aque­les sinais, e era de esperar-se que os bandidos previam que Nilsen trataria de segui-los sem perda de tempo. Mac tinha a esperança de que Lon planejasse permitir que os seguisse, com a intenção de armar-lhe uma cilada.

Nilsen levava munição em abundância, para suas armas. Se conseguisse alcançar o trenó, seus inimigos passariam maus bocados, pois es­tava disposto a atirar para matar. Olhou seus dedos, tintos ainda do sangue de Leggit. Aquilo lhe daria coragem no momento decisivo. Aquilo, e a consciência que tinha agora de que Karl Mann, ou Lon Gretsy, o homem que mais esti­mara em sua vida, era na realidade um canalha sem escrúpulos, um assassino desapiedado.

Enquanto o vento açoitava seu rosto e seus pés deslizavam pela neve, ia recordando Helma. Quando falara com Helma, estava certo de que só havia duas saídas para o problema, e de que o destino obrigava-o a escolher a pior: matar Karl, deixando que seus capangas o matassem, após. Agora, sua intenção era outra. Se lhe fosse possível, mataria a todos, começando por Karl.

O rasto deixado pelo trenó descrevia uma li­geira curva, ao sair do albergue, como se os bandidos procurassem o abrigo do bosque, a oeste. Não parecia que tivessem muita pressa em sua marcha, a julgar pelas marcas das patas do cavalo, que devia estar trotando. A menos, pen­sou Mac, que pretendessem viajar muitas horas, e estivessem poupando o animal.

Uma estrada estreita atravessava o bosque de abetos. O policial seguiu-a, sem tomar precau­ções, calculando ser muito cedo para a emboscada. O hotel ficara para trás, oculto pelas árvores e pela cortina de neve, que aumentava de in­tensidade. Os olhos de Mac começaram a doer. Avançava fitando firmemente os rastos, e o resplendor da neve feria-os.

Pôs os óculos protetores, disposto a não perder de vista nenhum dos traços deixados pelo cavalo. Para saber, aproximadamente, quando seria ten­tada a emboscada, devia saber interpretar as suas variações. Durante uma hora, seguiu as linhas paralelas do trenó através do bosque, e internando-se num segundo maciço de abetos, sem novidades.

A direção seguida pelos fugitivos, sempre cons­tante até então, levava-os para uma região de carvoarias, afastando-os do caminho do vale. Pelo que ouvira na véspera de Helma, Nilsen deduziu que estavam a caminho do lugar onde havia sido escondido o produto do roubo.

A estrada que cruzava o segundo bosque apre­sentava mais dificuldades que a anterior. Paula­tinamente, o trenó moderara ainda mais sua marcha, ao acercar-se de uma zona onde o cami­nho tornava-se mais estreito. Os abetos eram mais abundantes, de ambos os lados da estrada. Um homem escondido entre a espessura, armado com um rifle, seria capaz de conter uma dúzia, ou mais, de inimigos. Era um sítio ideal para uma emboscada.

Mas não era fácil apanhar Mac Nilsen desprevenido. Em vez de seguir o rasto do trenó mantendo-se na estrada, saiu para a margem, avan­çando mais devagar, mas com muito maior se­gurança. Marchava atento, revistando com o olhar a solidão branca que o rodeava. Qualquer ruído produzido a um quilômetro de distância chega­ria a seus ouvidos, treinados durante anos de ação policial.

Duas horas depois de iniciada a perseguição, fez a primeira parada. Chegara à zona monta­nhosa, uma série de fundas estreitas gargantas, onde os carvoeiros costumavam trabalhar no verão, preparando sua mercadoria. Tirou um mapa do bolso, estendendo-o na neve. Lembrou-se de Leggit, que uma vez havia rido de seu equipa­mento.

Um exame detido do mapa foi-lhe de grande proveito. Não muito adiante, seguindo a direção em que viajavam, os fugitivos não poderiam continuar no trenó. O terreno tornava-se rochoso, excepcionalmente acidentado, que não permitia a passagem de veículos de qualquer espécie. O que os fugitivos usavam não podia ser muito pequeno, pois Karl, Helma e Rodge, pelo menos, ocupavam-no. Três pessoas, sendo que uma ne­cessitava de espaço extra, para proteger sua perna ferida.

Em tais circunstâncias, cabiam unicamente duas deduções. Uma, de que o bando ia para lá a fim de recuperar o dinheiro escondido. Outra, de que seguia aquele rumo para despistar o perseguidor. Mas, Karl precisava perder duas horas para despistá-lo, desperdiçando a oportunidade que tivera de emboscá-lo?

A primeira alternativa apresentava-se muito mais provável de ser a acertada. Certos de que poderiam livrar-se facilmente do agente federal, que, sabiam, viria desacompanhado, os bandidos dirigiam-se ao objetivo sem preocupações. No mo­mento oportuno, tratariam dele. Que poderia um homem sozinho, contra vários, bem armados? Um homem que, além disso, via-se forçado a seguir a pé seu rasto, e que não poderia evitar a emboscada sem abandonar a perseguição.

Um sorriso iluminou a face do agente. Eles não suspeitavam que Mac dispunha de um mapa extraordinariamente bom da região, traçado pe­los especialistas do FBI. Esse mapa marcava todos os caminhos existentes através dos bosques e da zona rochosa. Havia diversos, que Nilsen acompanhou com a ponta de sua esferográfica, calculando a transitabilidade de cada um sob a neve. Verificou que, por qualquer deles, os fugi­tivos ver-se-iam impedidos de continuar no trenó além de seis ou sete quilômetros do ponto em que se achava.

Atravessada aquela extensão, iniciava-se a re­gião rochosa, e em seguida as montanhas. Logo, o lugar onde Karl ocultara o dinheiro deveria situar-se dentro daqueles seis ou sete quilôme­tros. Uma vez recuperado, o bando disporia de tres saídas. Uma, escalar as montanhas; a se­gunda, voltar pelo mesmo caminho; e a terceira, dirigir-se para o vale.

Mac deixou de lado a primeira, por ser im­praticável. Nem sequer uma boa equipe de alpinistas poderia aventurar-se pela montanha sob a tormenta. A segunda exigiria um rodeio, além de obrigá-los a passarem novamente pelo alber­gue. Foi também eliminada sem maior estudo. Restava, portanto, a terceira. O trenó seria lança­do pela única estrada que descia para o vale, além da do albergue.

Os papéis poderiam inverter-se, nesse caso. Mac, em lugar de ser a vítima da emboscada, seria o seu autor. Nos minutos seguintes, Mac entregou-se a um exame lento, minucioso, do mapa. Só deu por terminado o estudo ao sentir-se completamente seguro de que não havia nenhuma outra passagem para o vale.

Karl estranharia que seu perseguidor não apa­recesse atrás deles, mas acabaria acreditando que o agente recuara, temendo enfrentar sozinho o bando. Antes de tudo, o plano de Mac requeria rapidez. Precisava chegar à estrada do vale antes dos malfeitores. Cabia ainda outra probabilidade: a de que Karl e seus companheiros não tentassem chegar ao vale. Mas, aonde se dirigiriam? Não existia outra saída. O vale comunicava a região com o resto do território, onde poderiam optar entre a estrada de ferro e o ônibus para completarem a fuga.

Guardou o mapa, tornando a calçar as luvas. Devia, antes de tudo, tomar o maior cuidado para não se extraviar naquele mar de brancura, entre milhares de abetos, que tornavam difícil a iden­tificação do caminho entre os bosques. Não eram as dificuldades o que faria o agente federal desis­tir de seu plano, uma vez resolvido.

Antes de reencetar a marcha, sacudiu com von­tade a neve aderida à roupa. Agora, cinqüenta por cento das probabilidades estavam a seu favor. Abandonou a estrada sulcada pelas linhas para­lelas, profundas, que o trenó deixava em seu rasto. Mudou de rumo, em um ângulo de ses­senta graus, para cortar caminho através do bos­que em direção ao vale.

Avançou quase tão depressa como antes, apesar de agora pisar terreno inseguro, onde um passo em falso resultaria sumamente perigoso. Não ga­nhara mais de quinhentos metros, quando a in­tuição de que alguma coisa andava mal assal­tou-lhe a mente. Tratou, em vão, de livrar-se da idéia, que considerou absurda.

Parou, por fim, com uma careta de desgosto. Algo nele impulsionava-o a prosseguir, sem perda de tempo. Repetiu para si mesmo que devia apres­sar-se, para assegurar aqueles cinqüenta por cen­to de vantagem. No entanto, parou e sentou-se na neve. Acendeu, maquinalmente, um cigarro.

Achava-se sob a ramada de uma árvore, que o protegia da nevasca.

Permaneceu alguns instantes imóvel. O cigarro terminava, quando deu uma palmada na testa. Sua parada não resultará improfícua. Pensou, com desagrado, que a luta interior que sustentava consigo mesmo desde o momento em que sou­bera que Lon Gretsy e Karl Mann eram uma só pessoa, afetara sua faculdade de raciocínio.

Havia uma falha em seu plano de ação contra o bando de Lon, falha que em circustâncias nor­mais jamais cometeria. Acreditara que os fugiti­vos escolheriam o mesmo caminho que estava percorrendo, para alcançarem o vale. Lon era muito inteligente, e talvez suas deduções o con­duzissem à mesma conclusão a que chegara seu perseguidor. Assim sendo, poderia prever que Mac, em lugar de segui-lo até o esconderijo do dinheiro, preferiria esperá-los na volta, entrin­cheirado e disposto a vencê-los.

Em conseqüência, o mais indicado seria segui-los até chegarem ao ponto de destino, e precedê-los depois, quando iniciassem a descida para o vale. Mesmo sendo o trenó mais veloz que Mac, este podia cortar caminho em linha reta. Não pensou mais no assunto, certo de que escolhera a es­tratégia mais indicada. Retornou, correndo até perder o fôlego, para recuperar o tempo perdido.

Voltou à estrada um pouco acima do lugar em que se afastara dela, o que lhe tornou a marcha mais fácil. Mac dispunha de excepcional resis­tência física. Era um esportista completo, várias vezes comprovado, com a justa fama de ser o melhor alpinista do FBI, que só aceita em suas fileiras homens destacados nas diferentes especializações de todos os ramos do saber humano.

Nilsen percorreu três quilômetros sem deter-se. Suas pernas correspondiam ao esforço que a men­te exigia. Se a energia lhe faltasse naquela ocasião, teria abandonado a luta, perdida a fé em si mesmo. O bando não podia estar muito distante, já que chegara à região rochosa. Pouco adiante, o trenó não mais poderia prosseguir. Sentia-se a proximidade das primeiras formações da montanha, pela força redobrada do vento, mais frio e cortante que antes.

Examinando os sinais que acompanhava, com­provou que o veículo diminuíra a velocidade, reduzida ao passo do cavalo. Pouco depois, apa­recia à vista, a uns cem metros, uma cabana de carvoeiro, feita de troncos enegrecidos pela in­tempérie, e quase sepultada pela neve. Havia chegado ao fim. Parou, para não ser pressentido pelos ocupantes da cabana, onde um monte de neve a cada lado da porta denunciava sua recente remoção. A pista do trenó dirigia-se em linha reta para ela.

Destravou o rifle e a Luger, antes de dar mais um passo. Não pretendia atacar os fugitivos, de momento. Seria uma loucura, por estar sozinho, tendo os bandidos uma trincheira natural de troncos a protegê-los. Queria, apenas, certificar-se de que a cabana era o objetivo da viagem do bando. Em seguida levaria a cabo a segunda parte do plano, preparando a emboscada em meio da estrada, em lugar em que os bandidos não contassem com nenhum refúgio contra seu ata­que.

Avançou passo a passo, devagar, sem erguer o corpo. Já não tinha motivo para apressar-se. Poucos metros adiante, parou novamente. Desta vez, não olhava para a cabana, e sim para os arredores, porque verificara que um dos passa­geiros do trenó havia saltado do veículo antes de chegar ao refúgio.

Não lhe foi necessário examinar muito deti­damente o manto, de neve que cobria o solo. A um lado dos sulcos deixados pelo trenó via-se a marca de pés, calçados com botas ferradas, cujos saltos afundavam-se profundamente na neve. Mac interpretou facilmente o significado daquelas marcas. Um dos bandidos saltara, para preparar a tocaia, no lugar onde Nilsen logicamente dei­xaria de seguir a trilha para concentrar sua atenção na cabana.

Não encontrou nada suspeito, nos arredores. O bandido devia estar escondido, com uma arma engatilhada, mas onde? Os passos que dera in­ternavam-no entre as arvores. O perigo, então, devia estar no lado contrário, segundo a experiência ensinara a Mac Nilsen. Um homem astuto prepararia uma pista falsa no lado contrário ao em que ficaria de atalaia.

O agente adivinhou as intenções do bando. Esperavam que descobrisse os traços, crendo que a morte o procuraria do lado para onde se afas­tavam da estrada. Não era uma perspectiva muito sorridente para o policial. Entre algumas centenas de abetos que o rodeavam, um assassino estava à sua espera, para matá-lo. E ele estava no meio da estrada, oferecendo um alvo magní­fico. Seu pensamento abarcou com a rapidez de um relâmpago a situação. Via uma só solução. E era...

Empunhou rapidamente sua pistola, saltando de lado em direção contrária ao rasto do emboscado. Ao voltar-se para o lado onde certamente es­taria seu inimigo, gritou:

— Entregue-se! Está sob a mira de minha arma!

Suas pernas moveram-se com uma celeridade surpreendente. Uma fração de segundo após o primeiro movimento, estava distante do lugar an­terior. Ainda no ar, disparou contra uma das árvores, escolhida ao azar. Em outra fração de segundo, saltou para outro lugar.

Seu truque deu resultado. Ouviu-se uma deto­nação seca, de rifle, seguindo um relâmpago que saía dentre os abetos. Em seguida, outro, e duas balas afundaram-se na neve no lugar onde estivera momentos antes.

— Maldito! Acer... tou...

O agente dobrou-se em dois, soltando o rifle. A Luger continuava em sua mão direita. Fingiu que procurava agarrar-se com a esquerda no vácuo, e caiu ao solo. Ficou imóvel, com o rosto voltado para as árvores entre as quais o bandido se ocultava, com o corpo dobrado e a mão arma­da em posição de tiro.

Um homem surgiu do esconderijo, do lugar onde a intuição de Nilsen previra que estaria oculto. Empunhava um rifle, fumegante ainda, com uma expressão de triunfo a dominar suas feições. Não adotou precaução alguma, ao acercar-se do agente federal, assim como não o examinou para certificar-se de que estava morto. Sua experiên­cia de assassino profissional ensinara-lhe que os homens morrem exatamente como vira Mac Nil­sen cair, e não tinha dúvida de que o acertara em cheio. Uma gargalhada saltou de sua boca.

— Você me viu, hem? E de que serviu? Como é fácil acabar com esses super-homens do FBI.

Começou a virá-lo, com o pé, para vê-lo me­lhor.

— Acertei bem no coração — terminou.

Seu pé não encontrou resistência alguma. Não teve dúvida de que o policial estava morto. Sa­cudiu os braços, procurando despertar a atenção dos companheiros na cabana, para que viessem ver sua obra. A seguir, com um suave empurrão para o lado, terminou de virar o corpo.

Foi o último ato de sua vida. Antes mesmo de ter tido tempo de tornar a baixar o olhar para sua pretensa vítima, sentiu um fogacho súbito a queimar-lhe a testa. Um segundo tiro atingiu-lhe diretamente o peito. O bandido caiu, soltando uma exclamação ininteligível de surpresa, as feições enrijecidas de estupor. Caiu de bruços, já morto, em posição diferente da que Mac ado­tara, menos real do que a simulada pelo agente do FBI.

Nilsen empurrou para um lado o corpo de seu inimigo, para poder levantar-se. Num relance, viu que saía da cabana outro desconhecido. Atirou em sua direção, sem mirar, e correu para fora da estrada, retrocedendo. Não havia ainda chegado o momento da luta decisiva, que engajaria quan­do lhe fosse mais favorável. As balas assobiavam em seu redor, sem perigo, devido à distância em que se encontrava, e que aumentava a cada instante.

Ao ficar fora da vista dos ocupantes da cabana, Mac, sem deter a corrida, puxou da faca e deu um pequeno corte no braço esquerdo, provocando a saída de algumas gotas de sangue, que pinga­vam na neve. Desta forma, o bando julgaria que estava ferido. Por quase meia hora, prosseguiu o que parecia uma luta. Ao parar, respi­rava com dificuldade, entrecortadamente.

Olhou para trás, sem ver sinais de seus inimi­gos, que corriam na superfície fofa da neve recém-caida apenas com a ajuda de suas botas ferradas, enquanto Mac dispunha de raquetas. Àquela altura, não acreditava que ainda estives­sem em seu encalço. Tranqüilamente, fez um pequeno curativo, com o uso do lenço, no braço levemente ferido.

 

Nilsen não havia contado o número de pessoas que ocupavam o trenó. Sabia, ape­nas, que o veículo devia estar vindo em direção ao lugar que escolhera para esperá-lo. Tudo ocorrera conforme planejara, e faltava-lhe tão somente terminar a tarefa, sua parte mais penosa.

Karl e Mac iam encontrar-se frente a frente, em poucos minutos. Dois antigos camaradas, que chegaram a estimar-se como irmãos, e que agora deviam matar-se um ao outro, como se fossem feras. Graças a seu binóculo de companha, Mac notou que o cavalo avançava coberto de espuma.

O bando lançara-se pelo caminho do vale à velocidade maior que obtinha do cansado animal, sem preocupar-se em perseguir o agente especial. Ao encontrarem sangue no rasto de Nilsen, julgaram-no morto, pois um homem baleado ja­mais conseguiria chegar ao albergue sob a tem­pestade de neve que ainda não cessara.

Por outro lado, tinham recuperado o dinheiro, e evitavam perder mais tempo, que lhes era precioso para a fuga, antes que chegassem ou­tros agentes do FBI. Ferido ou morto, o homem que os seguira até a cabana não constituía mais impedimento para a fuga. Ao chegarem ao vale, esta se transformaria em cômodo passeio de trem ou ônibus.

Tinham libertado Lon e apanhado o dinheiro. Que mais poderiam desejar? Embarcaram no trenó, que haviam deixado entre as árvores, perto do refúgio. Eram quatro, os fugitivos restantes: Lon, Helma, Rodge e outro bandido, completa­mente calvo. Abandonando o companheiro mor­to, empreenderam a marcha.

O agente federal, do esconderijo que escolhera para esperá-los, podia vê-los a aproximar-se, ainda ao longe. A estrada dava voltas enormes, através do bosque, para vencer os desníveis com mais suavidade. A surpresa ia constituir a melhor arma de Nilsen.

Postou-se em uma posição vantajosa, à margem da estrada, com as armas preparadas. O rifle e a Luger, dada a quantidade de munição de que dispunha, estava certo, ajudá-lo-iam a anular a diferença numérica que pesava a favor dos ban­didos. O rosto do agente especial testemunhava seu sofrimento interior. Daria anos inteiros de sua vida para não ser obrigado a matar Karl. Mas o destino cruzara novamente seus caminhos, desta vez em uma encruzilhada de sangue.

Apertou os dentes e assestou o rifle, cuidado­samente. Ante ele, a estrada descrevia uma curva. O trenó demoraria cinco minutos, talvez menos, a dar a volta e postar-se ante o cano de sua arma. Não queria arriscar-se a acertar em Helma, o que seria o pior dos males. Planejou rapida­mente sua próxima ação, a última de sua vida, talvez.

Havia outro perigo na curva. Uma das mar­gens da estrada era um barranco. Se disparasse antes do tempo, o trenó e seus ocupantes pode­riam despenhar-se, quando o cavalo se espantasse com o estampido. Arriscando-se a dar tempo aos bandidos de usarem suas armas em primeiro lugar, resolveu esperar até que o veículo hou­vesse vencido aquele trecho.

Mac raciocinava com a frieza necessária, como se aquela fosse apenas mais uma ação em sua carreira de policial. Seu coração batia, no en­tanto, em ritmo acelerado, e em suas veias pa­recia correr chumbo derretido. Um sombrio desespero enchia sua alma. A fatalidade estava dentro de si e ali em frente. A fatalidade eram Karl Mann e Mac Nilsen.

Repentinamente, ouviu-os. O estalar do chicote usado contra o cavalo chegou até Mac, trazido pela pureza do ar gelado. Escutou gritos de alen­to, e o ranger agudo das lâminas do trenó contra o gelo. O indicador de sua mão direita firmou-se no gatilho. Por um momento, uma estranha opres­são atenazou-lhe o coração. Precisou de um vio­lento esforço para que sua determinação não desmoronasse.

O cavalo apareceu ante seus olhos, comple­tando a curva. Era alazão, semelhando uma chama impulsionada pelo vento, um potro fogoso, um feixe de músculos e nervos, a julgar pelo galope. Avançava com muita velocidade, com risco de sair da senda, o que poderia ocasionar um de­sastre para seus passageiros.

Os bandidos não viram Mac, cegos pelo vento e pela neve que voavam ao seu encontro. Nilsen estava de costas para o vento, e pôde mirar caprichosamente o potro. Apertou o gatilho. Três estampidos, quase confundidos em um só. A seguir, a confusão espantosa que sua pontaria certeira produziu. Gritos de surpresa, maldições, ordens e alaridos de raiva...

O cavalo alazão caiu ao solo. Ferido, procurou frenèticamente levantar-se, conseguindo-o. Foi um momento inenarrável. Os bandidos não sabiam quem os atacara, nem o lugar donde haviam par­tido os tiros. Os pés de Nilsen, que estavam firmemente plantados no chão, encaminharam-no alguns passos em direção ao local da confusão. Ainda podia fazê-lo tranqüilamente, devido ao inesperado do ataque, antes que o bando voltasse a si da surpresa e reagisse.

Levantou o rifle, pela segunda vez. Não foi preciso mirar com muito cuidado. Tinha certeza de que acertaria. Apertou o gatilho, e o cavalo caiu, finalmente. O solo resvaladio fê-lo patinar alguns metros, arrastando o trenó. Em seguida virou de lado, preso às correias. Seus últimos estertores sacudiram o veículo, fazendo-o tombar. Um dos ocupantes saltou fora, no último mo­mento.

Mac Nilsen havia conseguido detê-los, evitando, entretanto, a queda do trenó no despenhadeiro. O agente não mais ouvia os gritos dos passa­geiros. A tarefa final começara, e ele sabia de antemão qual seria o resultado. Correu para o lugar onde os fugitivos pugnavam para sair de baixo do trenó que virará sobre eles.

Os bandidos gritavam, enfurecidos. A mente de Mac é que não os ouvia, escutando seu próprio coração que repetia sem parar: matarás Karl Mann — Karl Mann — Karl Mann...

 

O primeiro som que ouviu, vindo de fora de seus sentidos, foi um grito de surpresa e dor, um grito feminino. Olhou para o lugar donde provinha, e viu-a de pé na neve, ao lado do veículo. Fora ela o primeiro fugitivo a ver Mac Nilsen, e algo impedia-lhe qualquer movimento.

Apesar da distância, Nilsen sentiu o olhar de Helma cravado nele. Aquela expressão de an­gústia, de dor terrível forçou-o a parar um mo­mento. Deu mais alguns passos à frente, com as pernas trêmulas. Sentia a garganta seca. Matar Karl — matar Karl — matar Karl — repetia o martelar constante em sua mente. — Matar Karl — matar o homem que você amou como um irmão.

De muito perto, diante de Mac, surgiu um relâmpago. Sentiu um impacto no ombro direito, e o rifle escapou de sua mão. Estava ferido. Uma fraqueza súbita dobrou-lhe os joelhos. Outro es­tampido soou a seus ouvidos, e percebeu o assobio da bala, roçando-lhe a cabeça.

Tinha a Luger na mão esquerda. Não teve necessidade de apontar. Seus inimigos haviam feito fogo em posição forçadas, ainda meio es­magados pelo trenó. Estavam quase à sua mercê. Apertou o gatilho, e um alarido mortal rasgou o silêncio após o estampido. O corpo do calvo contorceu-se, pugnando desesperadamente por li­vrar-se do obstáculo que o prendia. A morte deixou-o crispado e rígido, antes de conse­gui-lo.

— Atire, Rodge! Atire — bramiu a voz de Lon. Karl não podia atirar, mas Mac sim. E este havia jurado ante Leggit moribundo que atiraria para matar. Rodge apertou o gatilho, mas muito tarde. Um balaço atingiu-lhe o cotovelo, des­viando a trajetória de seu disparo. No instante seguinte, outro impacto de chumbo atravessou-lhe o peito. Caiu para a frente, rebotando con­tra o gelo, entre os homens que restavam vivos: Lon e Mac.

O agente especial continuou avançando, com um véu de sangue a turvar-lhe a visão. Sabia, sem vê-la, que Helma estava ali, convertida em pedra, os olhos enlouquecidos fixos nos prota­gonistas da tragédia inevitável.

Nilsen empurrou com o pé o corpo de Rodge, que lhe impedia o caminho em direção a Lon. O chefe do bando estava sob o trenó, com os braços presos, junto ao corpo, sem poder sequer puxar sua arma. As pupilas de Lon não denotavam medo. Percebia-se nelas o ardor de um ódio feroz.

— Conseguiu pegar-me — torcia a boca com um ricto de raiva. — Mas não me levará vivo!

Mac abaixou-se, pegando com a mão livre o trenó. O esforço arrancou de seu peito um grito de dor. Esquecera o ombro ferido. Instantes após, o bandido estava livre do peso do trenó. Levou logo a mão ao bolso da jaqueta, em busca da arma.

— Pare! Mais um movimento, e atirarei.

Os dedos de Karl quedaram imóveis, muito perto da arma que ocultava. A paixão sombria acentuou-se em seu olhar.

Helma moveu-se, por fim, agitada pelo mesmo terror extremo que a paralisara até então. Não pôde pronunciar uma só palavra. A voz negava-se a surgir de sua garganta. Levou as mãos à boca, que lutava para soltar um grito. Seu olhar per­maneceu, como hipnotizada por sua própria fixidez, cravado na cena, desmesuradamente abertos os olhos pela dor.

Lembrou-se, num repente, do que Mac dissera ao estreitá-la com frenesi em seus braços: havia duas soluções. O destino escolhera a última, a mais terrível, para eles. Mac Nilsen assegurou, e Helma sabia que sua decisão não tinha sido tomada em vão, que assim seria. Ele tentara lutar por ela, para salvá-la e fazê-la sua esposa. Na impossibilidade de realizar seu intento, resta­va o outro caminho, a morte do próprio agente federal e a do homem que fora seu melhor amigo.

Mae e Karl. Dois homens que encerravam para a jovem toda a vida sentimental, toda a sua vida. Viu o policial inclinar-se sobre seu irmão, arrebatando-lhe o revólver do bolso sem deixar de apontar-lhe a Luger.

— Agora, levante-se, Lon!

A raiva transfigurava o rosto do bandido, pon­do em suas feições como uma máscara de cruel­dade sinistra. Não era mais aquele jovem cheio de fé na vida, virtuoso, que Mac conhecera. Trans­formara-se em um homem cruel, duro, sem pieda­de para ninguém. Se as posições fossem inversas, não teria tido contemplações, e descarregaria a arma contra Mac.

Começou a levantar-se lentamente, fitando a mão armada do agente federal. A fúria que o invadia obrigava-o a apertar os dentes, respiran­do entrecortadamente.

— Vai levar-me para o vale?

A resposta do policial pareceu, por sua dureza, o estampido de uma arma:

— Não! Vou matá-lo, Lon!

O estupor aumentou a crispação do rosto de Karl. Suas mãos cerraram-se com força.

— Um assassinato, é? — exclamou, roucamente; com sarcasmo, acrescentou: — Será mais fácil para você, que conduzir-me de volta...

A Luger apontou o coração de Karl, mas Nilsen não apertou o gatilho. Um suor estranho perolou sua testa. Sentia um estremecimento de impotência percorrer-lhe o corpo, como uma cãibra inesperada que garroteasse seus mús­culos.

Pela mente de Mac, com a velocidade de um relâmpago, desfilaram as lembranças, atropela­das, sem ordem, dolorosas. Não podia matar Karl! Não poderia matá-lo, nunca. Era superior às suas forças e à sua vontade aquele dever que se impusera.

A pistola que empunhava desceu alguns cen­tímetros. Mac fechou os olhos, sentindo que em suas entranhas formava-se uma angústia lacerante. Nunca faria aquilo. Karl era seu irmão...

Nesse momento, o prisioneiro saltou contra ele. Não sabia o que se passava no íntimo de seu captor, embora houvesse percebido sua per­turbação. Aproveitou a vacilação de Mac, que atribuiu ao ferimento que este sofrerá, no om­bro, compreendendo que nela repousava, talvez, sua única possibilidade de salvação.

Os dois homens rolaram pelo solo. Nenhum dos contendores escutou o grito que, afinal, sal­tou da garganta de Helma. Enquanto lutava abraçado a Karl, o agente especial compreendeu que h lesão em seu tornozelo havia sido muito mais leve do que supunha. O malfeitor tramou, desde o momento de sua prisão, a simulação de sentir-se pior do que realmente estava para facilitar seus planos de fuga.

Mac não estava enganado. O homem que co­meçou a lutar contra ele, corpo a corpo, selvagemente, não sentia dor alguma no tornozelo. Servia-se de ambos os pés, sem limitações. E nos primeiros momentos a vantagem pendeu para Karl. Lançara-se com todas as forças contra o agente federal, sabendo bem o que estava arriscando. Mac tentou estreitar o abraço, para impedir que seu adversário usasse a raiva feroz que o movia. Mas, foi-lhe impossível; não o conseguiu, devido ao ferimento em seu ombro. Karl desvencilhou-se do abraço, procurando outro modo de luta.

A Luger havia caído vários metros para trás, do outro lado do trenó. Quando viu-se livre dos braços que procuravam imobilizá-lo, o bandido jogou-se naquela direção. Suas mãos semelhavam garras, ao estenderem-se na neve à procura da arma.

Mac não chegou a levantar-se; não haveria tem­po para isso. Em frações de segundo Karl po­deria encontrar a pistola, e então... Crispou todo seu corpo, e saltou. Foi um salto inacredi­tável. Durante o vôo, pareceu uma mola a distender-se, em direção ao inimigo.

Uma praga escapou do peito de Karl, no mo­mento em que Mac atingia-o, caindo em cheio sobre seu corpo e esmagando-o contra a neve. Reiniciou-se a luta brutal, de músculo contra músculo, vitalidade contra vitalidade.

O agente especial estava agora por cima. Com­provando que não poderia dominá-lo, atirou o punho, com violência, contra a mandíbula de Lon. Um jorro de maldições surgiu de seus lá­bios. Uma e outra vez, Mac golpeou com as mãos fechadas o rosto do bandido, sem conseguir reduzir sua resistência frenética. Sob os joelhos do policial, o corpo do criminoso continuava tenso, invencível, crispando-se em sacudidas vio­lentas.

Karl não estava vencido. Repentinamente, con­seguiu atirar um soco nos rins do agente. Os braços do que estava por cima abriram-se, en­quanto sua boca soltava toda a respiração con­tida. Fora um golpe afortunado, muito doloroso, em um ponto fraco. Antes de conseguir recupe­rar o fôlego, Mac era lançado contra o solo por seu inimigo.

A situação mudara inesperadamente. Mac pôs o joelho em terra, para levantar-se rapidamente. Karl já o fizera, com a raiva homicida a brilhar em seu olhar e os lábios torcidos ferozmente. Antes que Mac conseguisse pôr-se de pé, o irmão de Helma aproveitou a oportunidade que se lhe oferecia. Deu impulso à perna, lançando-a contra o inimigo. Sua bota ferrada acertou em cheio o rosto de Nilsen. Tê-lo-ia esmagado, se não o houvesse jogado para trás com terrível força.

Mac caiu de costas. O som do choque de sua cabeça contra a neve não apagou o urro de dor que estalou em seus lábios. Durante uns segun­dos, o agente especial permaneceu imóvel, aba­lado pelo golpe que acabara de receber. Reco­meçou a mover-se muito devagar. Ao abrir os olhos, meio estonteado, viu as duas pernas de Lon diante de si, firmadas no solo, desafiadoras em sua imobilidade.

Nilsen percebeu que seu inimigo esperava que tentasse levantar-se de novo para repetir o cas­tigo. Por isto, saltou repentinamente contra sua pernas, abraçando-se a elas. E ambos rolaram outra vez pelo gelo da estrada.

Desta vez, Mac não se descuidou. Seus dedos apertaram a garganta de Lon, incrustando-se nela como garfos. O bandido debateu-se, impotente contra as garras que o aterravam, tirando-lhe a respiração. Começou a enrubescer, e seus olhos ameaçavam saltar-lhe das órbitas. Quando Mac afrouxou a pressão mortal, o malfeitor respirou avidamente, semimorto pela asfixia. Sem muito esforço, o homem do FBI levantou-o, agarrando-o pela gola da jaqueta.

Durante a breve e tenaz luta, Nilsen esquecera-se de Helma. Viu-a, então, ajoelhada na neve a poucos passos de distância deles, soluçando, com o rosto entre as mãos. Soltou Karl e ca­minhou até ela, compreendendo o dano irrepa­rável que o espetáculo da luta feroz estava cau­sando ao seu coração.

— Helma — chamou, em voz suave — Helma!

Ela levantou a cabeça, com o rosto lavado em lágrimas. Naquele momento, Mac sentiu que nada mais importava na vida. Ajoelhou-se ante ela, ante a mulher que amava desde muito jovem, e que, agora o sabia, amava mais que à própria vida. Queria pedir-lhe perdão, dizer-lhe que aquilo não se repetiria jamais. Helma afundou o rosto em seu peito, que ofegava pelo esforço da luta. Também ela não pôde falar. Sons balbuciantes confundiam-se aos soluços de ambos.

Helma levantou a cabeça para olhá-lo, e então viu o perigo que Mac corria. Um grito de aviso rasgou o silêncio. Ele virou-se para trás, para o lugar onde deixara Karl. O bandido não estava mais lá, mas a meio caminho da estrada, em direção à Luger. Mac soltou a jovem, disposto a recomeçar a luta.

Era tarde, já. O grito de triunfo proferido por Karl assegurou-lhe que tinha apanhado a pistola. Ao levantar-se, girando sobre si mesmo, o ban­dido empunhava a arma. Mac parou. Havia cor­rido atrás dele, para impedir que se apoderasse da Luger, e estava a pouco mais de dois metros de distância.

Atrás de Karl, a pouco mais de quatro me­tros, achava-se o barranco aberto à margem da estrada.

— Vou matá-lo como a um cão!

Não era uma ameaça. O pulso de Karl tremia ligeiramente, devido à ansiedade de acabar com a vida daquele homem que o vencera tantas ve­zes em tão poucos dias. Mac avançou um passo. Somente sua serenidade seria capaz de paralisar o inimigo, e evitar que premisse o gatilho.

— Está descarregada — disse, para ganhar tempo.

Sua voz traía-o. A gargalhada de Lon demons­trou que tinha certeza do triunfo. Subitamente, apertou o gatilho. Um estampido soou, e a bala atravessou o braço do agente especial.

— Seu pulso está trêmulo — assegurou Mac, com impressionante sangue-frio, dando outro pas­so em direção ao bandido.

Este levantou a pistola. Queria apontar bem, para acertar um tiro perfeito. Mac sentiu as pernas fraquejarem, negando-se a sustentá-lo. Era uma ironia espantosa, ser morto por Karl Mann, que levara anos procurando para reatarem a amizade da infância...

Às costas de Nilsen ouviu-se um ofegar ines­perado. Sem que os contendores esperassem ou pudessem evitar, Helma lançou-se entre eles, com expressão enlouquecida. Seu corpo protegeu  o de Mac, enquanto seu olhar procurava o de Karl:

— Não!

— Afaste-se! Você está louca?

Com a decisão de matar o policial patenteada no gesto, Karl aproximou-se mais, puxando a irmã para um lado. Arrastou-a, longe de Mac, onde a deixou cair ao chão. Karl levantou a Luger, apontada ao coração de Nilsen. Helma elevou a voz, sacudida pelo sofrimento:

— Não, Karl! Ele é Mac Nilsen!

Karl retrocedeu um passo, movido pelo estupor. A arma caiu-lhe da mão.

— Mac Nilsen! Mac Nilsen! — repetiu, com a voz rouca, estranha, a surgir do mais profundo de seu ser.

Esfregou os olhos, como se estivesse saindo de um pesadelo, e olhou fixamente para Mac, por vários minutos. Então, reconheceu-o. Um soluço inarticulado comoveu seu corpo. Retrocedeu mais um passo.

— Mac Nilsen! — repetia, maquinalmente. — Eu ia matar Mac Nilsen!

A cor de seu rosto desaparecera, e suas feições tornaram-se brancas como as de um cadáver, retrocedendo sempre. Às suas costas, abria-se o despenhadeiro. Mac levantou a mão, para avi­sá-lo do perigo.

— Cuidado, Karl! .

Correu para ele. Helma gritou. O vácuo colheu o corpo de Karl, que rolou, rebotando de pedra em pedra, em direção ao vale.

Helma e Nilsen lançaram-se em desabalada carreira, à velocidade que os obstáculos lhes per­mitiam, com risco de caírem também pela en­costa. Alcançaram Karl, meio enterrado na neve, imóvel. Correram ao seu encontro, virando-o. Estava vivo, mas notava-se em seu olhar que não seria por muito tempo. Abriu os olhos, fi­tando sem rancor o antigo inimigo, que o am­parava.

— Mac... por que... não... me... disse? Falava com terrível esforço. Sua expressão transfigurou-se.

— Cuide... dela... Ela... é inocente...

Os soluços de Helma tornaram-se mais fortes. O ferido olhou-a com carinho, e apanhou sua mão, que pôs sobre a de Mac.

— Adeus...

Suas últimas energias haviam-se esgotado. Fez uma desesperada tentativa, levando a mão ao coração, e conseguiu dizer:

— Sempre... aqui... Mac...

Caiu-lhe a cabeça sobre o peito. Estava morto. Mac Nilsen, o agente do FBI duro e forte, capaz de sobrepor-se a todas as emoções, conservando a mão de Helma sobre a sua, levantou-se, lentamente, com os olhos marejados de lá­grimas. Imitou o gesto de Karl, pondo também a mão sobre o coração.

— Aconteça, o que acontecer, Karl. Para sem­pre.

 

                                                                                            Jan Hutton

 

 

                      

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