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Series & Trilogias Literarias
A lua crescente que acendia o céu noturno de Tulsa transbordava magia. O gelo que cobria a cidade e o Convento das Irmãs Beneditinas – logo após nosso grande confronto com um anjo caído e uma Grande Sacerdotisa ordinária – brilhava tanto à luz da lua que tudo ao nosso redor parecia tocado pela Deusa. Olhei para o círculo banhado pelo luar em frente à Gruta de Maria, o lugar de poder onde foram personificados, não fazia muito tempo, o Espírito, o Sangue, a Terra, a Humanidade e a Noite, que se uniram para triunfar sobre o ódio e as Trevas. A estátua de Maria, cercada por rosas de pedra e aninhada em uma prateleira no alto da gruta, parecia o ponto de referência da luz prateada. Olhei para a estátua. A expressão de Maria era serena; seu rosto coberto de granizo cintilava como se ela estivesse discretamente chorando de alegria.
Levantei os olhos para o céu. Obrigada . Fiz uma prece silenciosa para o belo crescente que simbolizava Nyx, minha Deusa. Estamos vivos, Kalona e Neferet foram embora.
– Obrigada – sussurrei para a lua.
Escute seu interior...
As palavras me vieram sutilmente, doces como folhas tocadas por uma brisa de verão, roçando minha consciência com tanta leveza que minha mente recém-desperta mal as percebeu, mas o comando sussurrado de Nyx foi impresso em minha alma.
Eu estava vagamente ciente de que havia muita gente (bem, freiras, novatos e uns vampiros também) ao meu redor. Ouvi a mistura de gritos, choro e até de risos que preenchia a noite, mas tudo parecia distante. Naquele momento, as únicas coisas que eu considerava verdadeiras eram a lua lá em cima e a minha cicatriz que ia de um ombro a outro, atravessando-me o peito. Senti algo latejando por dentro como resposta à minha prece silenciosa, mas não foi um latejamento doloroso. Não mesmo. Foi um calor familiar, um formigamento que me garantiu que Nyx havia, novamente, me Marcado como sendo dela. Eu sabia que, quando fosse olhar pela gola da minha blusa, veria uma nova tatuagem decorando aquela cicatriz sinistra e comprida com delicadas filigranas de safira – sinal de que estava seguindo o caminho da minha Deusa.
– Erik e Heath, procurem Stevie Rae, Johnny B e Dallas, depois deem uma olhada pelo terreno do convento para ver se todos aqueles Raven Mockers foram embora mesmo com Kalona e Neferet! – Darius gritou, rompendo meu tranquilo e meditativo clima de prece. E quando eu estava assim e levava um susto, era que nem ligar um iPod alto demais de repente e ter os sentidos invadidos pelo volume excessivo.
– Mas Heath é humano. Um Raven Mocker pode matá-lo num segundo – as palavras saíram de minha boca antes que as pudesse calar, provando de vez que ser lunática não era minha única característica debiloide.
Como era de se prever, Heath bufou como um sapo que enfrenta um gato.
– Zo, não sou nenhum fracote!
Erik, aproveitando para enfatizar sua condição de vampiro alto e forte e fazer a linha “meto-porrada-mesmo”, deu uma risadinha sarcástica e disse: – Não, você é uma droga de um humano. Peraí, isso quer dizer que você é mesmo um fracote, então!
– Quer dizer que derrotamos os demônios e cinco minutos depois Erik e Heath ficam bancando os valentes um para o outro. Que previsível – Aphrodite disse, com aquele jeitinho irônico que era sua marca registrada. Mas, ao chegar ao lado de Darius, sua expressão mudou completamente quando se voltou para o guerreiro Filho de Erebus. – Oi, gostosão. Você está bem?
– Não precisa se preocupar comigo – Darius respondeu. Ele olhou nos seus olhos e praticamente se comunicaram por telepatia, tamanha a química que existia entre eles, mas, em vez de começar a beijá-la daquele jeito bruto que costumava fazer, ele se concentrou em Stark.
Aphrodite tirou os olhos de Darius e fitou Stark. – Putz, eeeca. Seu peito tá totalmente arrebentado.
James Stark estava parado entre Darius e Erik. Tá, bem, parado não era bem o termo. Stark estava inquieto e aparentando muita ansiedade.
Ignorando Aphrodite, Erik falou: – Darius, seria melhor levar Stark para dentro. Vou coordenar a busca por Stevie Rae e cuidar para tudo correr bem por aqui – suas palavras pareciam positivas, mas seu tom era do tipo “eu-sou-o-adulto-do-pedaço” e, quando ele bancou o condescendente e disse “Vou até deixar Heath ajudar”, soou como um babaca afetado.
– Você vai me deixar ajudar? – Heath reagiu. – É a sua mãe quem vai me deixar ajudar.
– Ei, qual dos dois é o seu suposto namorado? – Stark me perguntou. Mesmo naquele estado terrível em que se encontrava, conseguiu atrair meu olhar ao dizer aquilo. Sua voz estava áspera, e ele pareceu assustadoramente fraco, mas seus olhos emitiam um brilho bem-humorado.
– Eu! – Heath e Erik disseram juntos.
– Ah, fala sério, Zoey, os dois são idiotas! – Aphrodite disse.
Stark começou a rir baixinho, o que se transformou em uma tosse, que mudou de novo, transformando-se em um doloroso ofego. Ele revirou os olhos e desmaiou, mole como uma folha de papel.
Com a rapidez típica de um guerreiro Filho de Erebus, Darius segurou Stark antes que ele caísse no chão.
– Tenho que levá-lo para dentro.
Senti que minha cabeça ia explodir. Caído nos braços de Darius, Stark parecia estar à beira da morte.
– Eu... Eu nem sei onde fica a enfermaria – gaguejei.
– Não tem problema. Vou pedir para um pinguim desses nos mostrar – Aphrodite disse. – Ei, você, freira! – ela gritou para uma das irmãs em trajes branco e preto que saíram correndo do convento para ver o resultado caótico produzido pela batalha que acabara de terminar.
Darius correu atrás da freira com Aphrodite logo atrás. O guerreiro olhou para mim rapidamente. – Não vem conosco, Zoey?
– Assim que puder – antes de começar a resolver meu assunto com Erik e Heath, ouvi uma voz vinda por trás de mim, e aquele sotaque familiar me salvou o dia.
– Vá com Darius e Aphrodite, Z. Eu cuido do Mané e do Manézão aqui. Vamos ver se não restou nenhum daqueles bichos-papões lá fora.
– Stevie Rae, você é a melhor de todas as melhores amigas – virei--me e a abracei rapidamente, adorando ver como ela parecia forte e normal. Na verdade, parecia tão normal que senti algo estranho quando ela recuou, sorriu para mim e vi, pela primeira vez, as tatuagens vermelhas que brotaram de seu crescente completo no meio da testa, que desciam pela lateral do rosto. Senti um calafrio desconfortável.
Sem entender minha hesitação, ela disse: – Não se preocupe com esses dois patetas. Estou acostumada a separar os dois – continuei parada, olhando para ela, e seu sorriso luminoso se desfez. – Ei, você sabe que sua avó está bem, não sabe? Kramisha a levou para dentro logo depois que Kalona foi banido, e a irmã Mary Angela me disse que ia lá dar uma olhadinha nela.
– É, eu me lembro de ver Kramisha ajudando-a com a cadeira de rodas. Só estou... – não completei a frase. Estava só o quê? Como conseguiria colocar em palavras que estava assombrada por uma sensação de que havia algo de errado, e como dizer isso à minha melhor amiga?
– Só está cansada e preocupada com um monte de coisas – Stevie Rae disse baixinho.
O que vi brilhar nos seus olhos foi compreensão? Ou foi outra coisa, algo mais sinistro?
– Tô ligada, Z., vou cuidar de tudo aqui. Agora você se preocupe só com Stark – ela me abraçou de novo e me deu um empurrãozinho em direção ao convento.
– Tá. Valeu – foi tudo que consegui dizer, e segui em direção ao convento, ignorando totalmente os dois patetas que estavam parados olhando pra minha cara.
Stevie Rae ainda disse enquanto eu me afastava: – Ei, diga para Darius ou alguém ficar de olho na hora. Falta mais ou menos uma hora para o sol nascer, e você sabe que eu e os novatos vermelhos não podemos pegar sol.
– Tá, vou lembrar. Sem problema – respondi.
O problema era que eu estava achando cada vez mais difícil esquecer que Stevie Rae não era mais a mesma.
2
Stevie Rae
– Muito bem, vocês dois, escutem aqui. Só vou dizer isso uma vez: comportem-se.
Parada entre os dois, Stevie Rae pôs as mãos na cintura e olhou feio para Erik e Heath. Sem tirar os olhos deles, gritou: – Dallas!
O garoto atendeu quase instantaneamente: – Que foi, Stevie Rae?
– Chame Johnny B. Diga a ele para sair com Heath para dar uma inspecionada na parte da frente do convento na Lewis Street e ver se os Raven Mockers foram mesmo embora. Você e Erik vão para o lado sul do edifício. Vou dar uma olhada naquele caminho cercado por árvores na Rua Vinte e Um.
– Sozinha? – Erik perguntou.
– Sim, sozinha – Stevie Rae respondeu na defensiva. – Esqueceu que posso pisar forte agora mesmo e fazer o chão tremer debaixo dos seus pés? Eu também posso te levantar e te jogar de bunda no chão, seu ciumento do caramba. Acho que dou conta de dar uma olhada nas árvores sozinha.
Ao lado dela, Dallas riu. – E eu tô achando que a vampira vermelha com afinidade com o elemento terra ganha do vampiro azul teatral.
Heath riu alto ao ouvir aquilo; e, como era de se esperar, Erik começou a querer puxar briga de novo.
– Não! – Stevie Rae interrompeu antes que os dois idiotas começassem a trocar socos de novo. – Se vocês não conseguem dizer nada de bom, então calem a droga dessa boca.
– Está querendo falar comigo, Stevie Rae? – Johnny B perguntou, parando ao seu lado. – Eu vi Darius carregando aquele garoto do arco e flecha para dentro do convento. Ele me disse pra te procurar.
– É – ela respondeu, aliviada. – Quero que você e Heath deem uma olhada na parte da frente do convento na Lewis Street, para ter certeza de que os Raven Mockers foram embora mesmo.
– Tô nessa! – Johnny B disse, dando um soco de brincadeira no ombro de Heath. – Vamos lá, zagueiro, mostre-me do que é capaz.
– É só prestar atenção nas drogas das árvores e nas drogas das sombras – Stevie Rae disse, balançando a cabeça enquanto Heath abaixava a sua e se esquivava, atingindo o ombro de Johnny B com socos ligeiros.
– Tranquilo – Dallas garantiu, começando a se afastar com Erik, que não disse nada.
– Sejam rápidos – Stevie Rae advertiu as duas duplas. – O sol vai sair daqui a pouco. Vamos nos encontrar em frente à Gruta de Maria daqui a meia hora mais ou menos. Berrem alto se encontrarem alguma coisa e todos nós iremos correndo.
Stevie Rae ficou observando os quatro caras para ter certeza de que estavam indo mesmo nas direções indicadas, até que deu meia--volta e, com um suspiro, começou sua própria missão. Caraca, isso é que era aporrinhação! Stevie Rae era doidinha por Z., mas estava ficando zoada com esse negócio de ter de lidar com os namorados de sua melhor amiga! Antigamente, ela achava Erik o cara mais gostoso do mundo. Mas, depois de passar dois dias com ele, passou a considerá-lo a maior mala sem alça do mundo, e com um ego insuportável. Heath era um doce, mas era apenas humano, e Z. tinha razão de ficar preocupada com ele. Os humanos morriam muito mais facilmente do que os vamps , mais até do que os novatos. Ela virou o pescoço para trás, tentando avistar Johnny B e Heath, mas a escuridão gelada e as árvores a engoliram e ela não viu ninguém.
Não que Stevie Rae ligasse de estar sozinha. Johnny B ia ficar de olho em Heath. Na verdade, ela estava feliz de se livrar um pouquinho dele e do ciumento do Erik. Os dois a fizeram gostar de Dallas. Ele era simples e tranquilo. Era meio que seu namorado. Os dois tinham um rolo, mas nada que atrapalhasse a sua vida. Dallas sabia que Stevie Rae tinha muito o que fazer, e a deixava cuidar de suas coisas. Mas ficava ao seu lado na hora do aperto. Tranquilinho, bonitinho e animadinho! Dallas era assim.
Z. bem que podia aprender comigo umas coisinhas sobre como lidar com os garotos , ela pensou enquanto avançava por entre o bosque de velhas árvores que cercava a Gruta de Maria e protegia o terreno do convento da agitação da Rua Vinte e Um.
Bem, uma coisa era certa: aquela era, mesmo, uma noite de merda. Stevie Rae não tinha dado nem doze passos ainda e suas mechas louras curtas já estavam ensopadas. Caraca, até seu nariz estava pingando! Ela esfregou o rosto com as costas da mão, limpando a mistura molhada e gelada de chuva e gelo. Tudo estava tão estranhamente escuro e silencioso. Era bizarro não ver nenhum sinal de trânsito funcionando na Rua Vinte e Um. Não havia carro algum na rua; nem uma viatura policial sequer. Stevie Rae escorregou e deslizou pela ladeira. Ela pôs os pés na estrada e só conseguiu se orientar graças à sua supermaravilhosa visão noturna de vampira vermelha. A impressão que dava era a de que, ao partir, Kalona levara consigo o som e a luz.
Sentindo-se esquisita, ela esfregou o rosto com as costas da mão para afastar os cabelos molhados e se recompor.
– Você está agindo como uma franguinha, e você sabe como franguinhas são estúpidas! – ela falou alto e ficou duplamente arrepiada quando suas palavras soaram ampliadas pelo gelo e pela escuridão.
– Por que diabos estou tão assustada?... Talvez por estar escondendo coisas de minha melhor amiga – Stevie Rae murmurou e apertou os lábios. Sua voz soou alta demais na noite escura e cheia de gelo.
Mas ela ia contar a Z. tudo que tinha de contar. Ia mesmo! Só que ainda não tinha tido tempo. E Z. já estava com a cabeça cheia demais, não precisava de mais um motivo para se estressar. E... e... era difícil falar sobre isso, até mesmo com Zoey.
Stevie Rae chutou um galho seco coberto de gelo. Ela sabia que o fato de ser ou não ser difícil não fazia a menor diferença. Ia falar com Zoey. Tinha que falar. Mas depois. Talvez bem depois mesmo.
Era melhor se concentrar no presente, pelo menos por enquanto.
Apertando os olhos e cobrindo-os com a mão para tentar protegê-los das gotas agudas de chuva gelada, Stevie Rae deu uma olhada nos galhos das árvores. Apesar da escuridão e da tempestade, ela estava enxergando bem e ficou aliviada ao ver que não havia corpos enormes e escuros espreitando acima dela. Achando mais fácil caminhar na lateral da estrada, desceu a Rua Vinte e Um, afastando-se do convento e mantendo os olhos sempre atentos para o alto.
Foi só ao se aproximar da cerca que separava o terreno das freiras e o condomínio chique que ficava ao lado que Stevie Rae sentiu o cheiro.
Sangue.
Um tipo errado de sangue.
Ela parou. De um jeito quase animalesco, Stevie Rae farejou o ar. Estava carregado do odor úmido e embolorado de terra coberta por gelo e pelo aroma revigorante das árvores invernais, um aroma que lembrava canela, e pelo cheiro penetrante, produzido pelo homem, do asfalto sob seus pés. Ela ignorou os cheiros e procurou se concentrar no sangue. Não era sangue humano, nem de novato, ou seja, não tinha cheiro de raio de sol e primavera, de mel e chocolate, de amor e vida, tudo que ela mais sonhava. Não, esse sangue tinha um cheiro muito pesado. Muito denso. Havia algo que não era humano, não mesmo, no cheiro desse sangue. Mas era sangue mesmo assim, e ela se sentiu atraída por ele, apesar de saber, no fundo da alma, que era totalmente errado.
Era o cheiro de uma coisa estranha, de uma coisa do outro mundo, que a levou aos primeiros respingos escarlates. Em uma escuridão tempestuosa do pré-alvorecer sem sol, mesmo com sua visão potente, só conseguiu ver umas manchas molhadas contra o gelo que pareciam cobrir a estrada e a grama ao lado. Mas Stevie Rae sabia que era sangue. Muito sangue.
Mas não havia nenhum animal e nenhum humano sangrando por ali. Somente um rastro de escuridão líquida engrossando a camada de gelo, afastando-se da rua e adentrando a parte mais densa do bosque atrás do convento.
Seus instintos de predadora se aguçaram instantaneamente. Stevie Rae seguiu com movimentos furtivos, mal respirando, mal fazendo ruído, acompanhando a trilha de sangue.
Foi debaixo de uma das árvores maiores que ela o encontrou, acocorado debaixo de um galho enorme e recém-quebrado, como se tivesse se recolhido para morrer.
Stevie Rae sentiu um calafrio de medo. Era um Raven Mocker .
A criatura era enorme. Maior do que ela pensava ao ver de longe. Estava deitado de lado, com a cabeça apoiada no chão, de modo que ela não podia ver seu rosto direito. A asa gigante que via não estava boa, dava para ver que estava quebrada, e o braço humano que jazia debaixo estava fazendo um ângulo esquisito e coberto de sangue. As pernas eram humanas também, e estavam dobradas como se ele tivesse morrido em posição fetal. Ela se lembrou de ter ouvido Darius dando um tiro enquanto ele, Z. e a galera desciam a Rua Vinte e Um em direção ao convento, desembestados que nem morcegos do inferno. Então o tiro fora para o alto.
– Caraca – ela sussurrou. – Deve ter sido uma queda sinistra.
Stevie Rae cercou a boca com as mãos em concha e estava pronta para dar um berro e chamar Dallas para que ele e os demais a ajudassem a arrastar o corpo para outro lugar, quando o Raven Mocker se mexeu e abriu os olhos.
Ela não se mexeu. Os dois se encararam. Os olhos vermelhos da criatura se arregalaram, parecendo surpresos e impossivelmente humanos naquela cara de pássaro. Ele olhou para os lados e para trás dela para ver se estava sozinha. Automaticamente, Stevie Rae se agachou, levantando as mãos na defensiva e se equilibrando para invocar a terra para fortalecê-la.
Então, ele falou.
– Mate-me. Acabe com isso – ele pediu, arfando de dor.
O som daquela voz era tão humano, tão completamente inesperado, que Stevie Rae soltou as mãos e deu um passo para trás.
– Você fala! – ela disse de repente.
Então, o Raven Mocker fez algo que chocou Stevie Rae profundamente e mudou de vez o rumo de sua vida.
Ele riu.
Foi um som seco e sarcástico que terminou com um gemido de dor. Mas foi uma risada que emoldurou as palavras com um toque de humanidade.
– Sim – ele disse, respirando com dificuldade. – Eu falo. Eu sangro. Eu morro. Mate-me e acabe logo com isso – ele tentou se sentar, como se quisesse morrer logo de uma vez, e o movimento o fez gritar de agonia. Ele revirou seus olhos por demais humanos e caiu no chão, inconsciente.
Stevie Rae agiu antes mesmo de pensar em tomar qualquer decisão. No começo, ela hesitou por um segundo. Mas agora ele desmaiara de cara para o chão, de modo que não foi difícil empurrar as asas de lado e puxá-lo por debaixo dos braços. Ele era grande, grande mesmo, tipo, do tamanho de um cara de verdade, e ela se preparou, achando que era pesado, mas não era. Na verdade, ele era tão leve que foi moleza carregá-lo, o que ela fez enquanto sua mente gritava: Que diabo é isso? Que diabo é isso? Que diabo é isso?
Que diabo ela estava fazendo?
Stevie Rae não sabia. Só sabia o que não ia fazer. Ela não ia matar o Raven Mocker .
3
Zoey
– Ele vai melhorar? – tentei sussurrar para não acordar Stark e, pelo jeito, não consegui, pois suas pálpebras fechadas estremeceram e seus lábios se levantaram ligeiramente em uma versão fantasmagórica e dolorida de seu semissorriso metidinho.
– Ainda não tô morto – ele respondeu.
– E eu não tô falando com você – retruquei, de um jeito bem mais irritado do que era minha intenção.
– Calma, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa – vovó Redbird me repreendeu gentilmente enquanto a irmã Mary Angela, diretora do Convento das Irmãs Beneditinas, a ajudava a entrar na pequena enfermaria.
– Vó! Aí está a senhora! – corri para perto dela e ajudei irmã Mary Angela a acomodá-la em uma poltrona.
– Ela só está preocupada comigo – os olhos de Stark estavam novamente fechados, mas em seus lábios ainda havia um vestígio de sorriso.
– Eu sei, tsi-ta-ga-a-s-ha-ya. Mas Zoey é uma Grande Sacerdotisa em treinamento e precisa aprender a controlar suas emoções.
Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya! Eu teria dado gargalhadas se vovó não estivesse tão pálida e com aparência tão frágil, e se eu não estivesse tão... bem... tão preocupada com tudo.
– Desculpe, vó. Eu devia me controlar, mas é muito difícil quando as pessoas que a gente ama vivem à beira da morte! – terminei de falar afobadamente e tive de respirar fundo para me recompor. – E a senhora já não deveria estar na cama?
– Já já, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa, já, já.
– O que quer dizer tsi-ta-ga-a-sei-lá-o-quê ? – a voz de Stark soou carregada de dor enquanto Darius passava um creme grosso sobre suas queimaduras. Mas, apesar do ferimento, ele parecia até satisfeito e curioso.
– Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – vovó corrigiu sua pronúncia – quer dizer galo de briga.
Os olhos dele brilharam, achando graça. – Todos dizem que a senhora é sábia.
– O que é menos interessante do que o que todos dizem de você, tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – vovó respondeu.
Stark soltou uma risada alta e respirou, sugando o ar de tanta dor.
– Fique quieto! – Darius ordenou.
– Irmã, pensei que a senhora tivesse dito que havia um médico aqui – tentei não demonstrar o pânico que estava sentindo.
– Nenhum médico humano poderia ajudá-lo – Darius disse antes que a irmã Mary Angela pudesse responder. – Ele precisa descansar, ficar sossegado e...
– Descansar e ficar sossegado, tudo bem – Stark o interrompeu. – Como já disse, ainda não morri – ele encarou os olhos de Darius e eu vi o Filho de Erebus dar de ombros e balançar a cabeça brevemente, como se estivesse dando razão ao vampiro mais jovem.
Eu devia ter simplesmente ignorado a pequena interação entre os dois, mas minha paciência havia se evaporado horas antes.
– Vamos lá, o que vocês estão escondendo de mim?
A freira que estava ajudando Darius me lançou um olhar longo e frio e disse: – Talvez o menino ferido precise saber que seu sacrifício não foi em vão.
Suas palavras me fizeram sentir um choque de culpa que me tapou a garganta e não me deixou responder à mulher de olhar severo. O sacrifício que Stark pretendia fazer era dar a própria vida pela minha. Engoli em seco. Quanto valia minha vida? Eu era só uma garota, mal completara dezessete anos. E tinha feito uma besteira atrás da outra. Eu era a reencarnação de uma boneca criada para armar uma cilada para um anjo caído e, por conta disso, no fundo da minha alma, eu não tinha como deixar de amá-lo, mesmo sabendo que não devia... Não podia...
Não. Eu não valia o sacrifício da vida de Stark.
– Eu já sei disso – a voz de Stark não se alterou; de repente, ele soou forte e decidido. Pisquei os olhos para limpar as lágrimas e olhei nos seus olhos. – O que fiz é parte do meu trabalho – ele continuou. – Sou um guerreiro. Jurei dedicar minha vida a servir Zoey Redbird, Grande Sacerdotisa e Escolhida de Nyx. Isso significa que trabalho para nossa Deusa, e ser derrubado e um pouquinho tostado não significa grande coisa para mim se for para ajudar Zoey a derrotar os caras do mal.
– Falou certo, tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – vovó disse.
– Irmã Emily, está liberada de sua função na enfermaria pelo resto da noite. Por favor, mande a irmã Bianca vir substituí-la. Creio que seria boa ideia a irmã passar um tempinho meditando sobre Lucas 6:37 – a irmã Mary Angela disse.
– Como desejar, irmã – a freira respondeu e saiu do recinto às pressas.
– Lucas 6:37? O que é isso? – perguntei.
– “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados” – respondeu minha avó. Ela estava trocando um sorriso com a irmã Mary Angela quando Damien bateu de levinho na porta entreaberta.
– Podemos entrar? Tem alguém aqui precisando muito ver Stark.
Damien virou o pescoço para trás e fez um gesto como quem diz “fique aí ”. O ufff baixinho que veio em seguida me fez perceber que alguém era, na verdade, uma cachorra .
– Não a deixe entrar – Stark fez careta de dor ao virar a cabeça bruscamente para não olhar para Damien nem para a porta. – Diga para o tal do Jack que agora ela é dele.
– Não – parei Damien quando ele começava a se afastar. – Faça Jack trazer Duquesa para dentro.
– Zoey, não, eu... – Stark começou, mas minha mão levantada o impediu de continuar.
– Pode trazê-la – repeti e fitei os olhos de Stark. – Você confia em mim?
Ele olhou para mim pelo que pareceu um tempo enorme. Percebi sua vulnerabilidade e sua dor claramente, mas finalmente ele assentiu com um movimento de cabeça e disse: – Confio em você.
– Venha, Damien – chamei meu amigo.
Damien virou-se, murmurou algo e foi para o lado. Jack, namorado de Damien, entrou primeiro. Estava com as bochechas rosadas e os olhos cintilando de desconfiança. Ele parou mais ou menos um metro à frente e se voltou para a porta novamente.
– Venha. Tudo bem. Ele está aqui – Jack persuadiu Duquesa pacientemente.
A labradora loura entrou no recinto, e fiquei surpresa ao ver como se movia graciosamente para um animal tão grande. Ela parou brevemente ao lado de Jack e olhou para ele, balançando o rabo.
– Tudo bem – Jack repetiu. Ele sorriu para Duquesa e enxugou as lágrimas que lhe escaparam dos olhos e agora desciam pelo rosto. – Ele está melhor agora – Jack apontou para a cama. Duquesa virou a cabeça na direção que ele apontou e olhou diretamente para Stark.
O garoto machucado e a cadela simplesmente se entreolharam enquanto todos os presentes seguraram o fôlego.
– Oi, garota linda – Stark falou com hesitação, a voz embargada de lágrimas. Duquesa levantou as orelhas e inclinou a cabeça. Stark levantou a mão e fez um gesto para que ela se aproximasse. – Venha cá, garota.
Como se o seu comando tivesse rompido uma barragem dentro da cadela, Duquesa se aproximou, agitada, choramingando, se balançando e fazendo uuuff, basicamente soando e agindo como se fosse um impossível filhotinho com seus cerca de cinquenta quilos.
– Não! – Darius ordenou. – Na cama, não!
Duquesa obedeceu ao guerreiro e se contentou em colocar a cabeça ao lado de Stark e enfiar seu narigão debaixo do sovaco dele, sacudindo o corpo todo, e Stark, com o rosto iluminado de felicidade, lhe fez carinho e ficou repetindo sem parar como sentira saudade e que ela era uma boa menina.
Só percebi que eu também estava em prantos quando Damien me deu um lenço de papel.
– Obrigada – murmurei e enxuguei o rosto. Ele sorriu brevemente para mim e foi para o lado de Jack, colocando o braço ao lado do namorado e dando tapinhas em seu ombro (e um lenço de papel para ele também). Ouvi Damien lhe dizer: – Vamos ver onde fica o quarto que as irmãs prepararam para nós. Você precisa descansar.
Jack fungou e soluçou, fez que sim com a cabeça e saiu do recinto com Damien.
– Espere, Jack – Stark chamou.
Jack olhou para a cama, onde Duquesa ainda estava repousando a cabeça junto ao corpo de Stark, que estava com o braço ao redor do seu pescoço.
– Você cuidou bem dela quando eu não pude.
– Não foi nada demais. Nunca tive cachorro antes e não sabia como eles eram legais – Jack ficou com a voz um pouquinho embargada, limpou a garganta e prosseguiu: – Eu... eu fico feliz por você não ser mais do mal, esquisito e tudo mais, e que ela possa voltar a ficar com você.
– É, falando nisso – Stark fez uma pausa e uma careta de dor ao se mexer. – Ainda não estou exatamente cem por cento e, mesmo quando estiver, não tenho certeza de qual vai ser a minha. Por isso acho que você me faria um grande favor se pudesse compartilhar Duquesa comigo.
– É mesmo? – o rosto de Jack se iluminou.
Stark balançou a cabeça com dificuldade. – Mesmo. Você e Damien poderiam levar Duquesa para o quarto com vocês, e quem sabe trazê--la de novo mais tarde?
– Com certeza! – Jack disse e então limpou a garganta e continuou: – É como eu disse. Ela não causou nenhum problema.
– Ótimo – Stark respondeu. Ele levantou o focinho de Duquesa com a mão e olhou nos olhos da labradora. – Estou bem agora, menina linda. Você pode ir com Jack enquanto me curo de vez.
Eu sei que ele deve ter ficado agoniado de dor, mas ele se sentou e se abaixou para beijar Duquesa e deixá-la lamber seu rosto.
– Boa garota... Esta é a minha menina linda... – ele sussurrou, beijou-a de novo e disse: – Vá com Jack agora! Vá! – e apontou para Jack.
Depois de dar mais uma lambida no rosto de Stark e soltar um gemidinho relutante, ela deu as costas para a cama e foi para o lado de Jack, balançando a cauda para ele e cheirando-o como forma de cumprimento, enquanto ele enxugava os olhos com uma das mãos e fazia carinho nela com a outra.
– Vou cuidar bem dela e trazê-la para cá assim que o sol se puser hoje. Tá?
Stark conseguiu sorrir. – Tá, obrigado, Jack! – e desabou nos travesseiros.
– Ele precisa descansar e ficar quieto – Darius disse a todos e continuou seu trabalho em Stark.
– Zoey, será que você pode me ajudar a levar sua avó para o quarto? Ela também precisa de descanso. A noite foi longa para todos nós – a irmã Mary Angela me pediu.
Tirei os olhos de Stark e me voltei para minha avó, e então fiquei olhando para aquelas duas pessoas das quais eu tanto gostava.
Stark percebeu o meu olhar. – Ei, vá cuidar de sua avó. Estou sentindo que o sol vai nascer daqui a pouco. Eu vou apagar geral quando amanhecer.
– Bem... tá certo – me aproximei da cama e fiquei parada, sem jeito, ao lado dele. O que eu ia fazer? Beijá-lo? Apertar sua mão? Levantar o polegar e rir como uma tapada? Tipo, ele não era meu namorado oficial, mas tínhamos uma ligação além da amizade.
Sentindo-me confusa e preocupada, e basicamente desconfortável, pus minha mão no ombro dele e sussurrei: – Obrigada por salvar minha vida.
Ele me olhou nos olhos e o resto do recinto desapareceu para mim. – Vou sempre tomar conta e garantir a segurança de seu coração, mesmo que o meu precise parar de bater para isso acontecer – ele me disse baixinho.
Eu me abaixei e beijei sua testa, murmurando: – Vamos tentar evitar que isso aconteça, tá?
– Tá – ele sussurrou.
– Te vejo de novo quando anoitecer – eu disse para Stark antes de finalmente me voltar para minha avó. A irmã Mary Angela e eu a levantamos, quase carregando-a pelo pequeno corredor para outro quartinho, tipo quarto de hospital. Vovó me pareceu pequena e frágil apoiando-se em meu braço, e senti um aperto no estômago de preocupação.
– Pare de se preocupar, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa – ela disse enquanto a irmã Mary Angela arrumava os travesseiros ao seu redor, ajudando-a a se ajeitar.
– Vou pegar seu analgésico – irmã Mary Angela disse a vovó. – Também vou ver se as cortinas do quarto de Stark estão bem fechadinhas, de modo que vocês têm uns minutos para conversar. Mas, quando voltar, vou insistir para que você tome seu remédio e durma.
– Você é durona, Mary Angela – vovó disse.
– Olha quem fala, Sylvia – a freira respondeu e saiu às pressas. Vovó sorriu para mim e deu um tapinha na cama que estava ao seu lado. – Venha se sentar perto de mim, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa.
Sentei-me ao lado de minha avó, dobrando as pernas debaixo do corpo, tentando tomar cuidado para não balançar demais a cama. Seu rosto estava machucado e queimado pelo airbag que lhe salvara a vida. Parte do lábio e do rosto estava escurecida pelos pontos. Ela estava com a cabeça enfaixada e seu braço direito estava assustadoramente escuro.
– Não é irônico que meus ferimentos estejam tão feios, mas doam menos do que os ferimentos invisíveis dentro de você? – ela disse.
Comecei a dizer a minha avó que eu estava realmente bem, mas suas palavras seguintes atravessaram o que tinha restado da minha tentativa de negar.
– Quanto tempo faz que você sabe que é a reencarnação da boneca A-ya?
4
Zoey
– Senti atração por Kalona desde o primeiro segundo em que o vi – respondi lentamente. Eu não ia mentir para minha avó, mas nem por isso foi fácil contar a verdade. – Mas quase todos os novatos, e até os vampiros, sentiram-se atraídos por ele; na verdade, era como se estivessem todos enfeitiçados.
Vovó assentiu. – Foi o que Stevie Rae já me disse. Mas com você foi diferente? Foi mais do que essa aura mágica que ele tem?
– É. Comigo não foi só um encantamento – engoli em seco. – Não caí nessa história de ele ser Erebus encarnado, e eu sabia dos planos malignos que ele tinha com Neferet. Vi a escuridão que ele trazia. Mas eu também queria estar com ele, não apenas por acreditar que ele talvez pudesse escolher o caminho do bem, mas porque eu o desejava , mesmo sabendo que era errado.
– Mas você resistiu a esse desejo, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa. Você escolheu seu caminho, o caminho do amor, da bondade e da sua Deusa, e assim a criatura foi banida. Você escolheu o amor – ela repetiu lentamente. – Que isso sirva de bálsamo para a ferida que ele deixou na sua alma.
A sensação de pânico e o aperto no peito começaram a se desfazer.
– Eu posso seguir meu próprio caminho – eu disse com mais convicção do que nunca desde que me dei conta de ser A-ya reencarnada. Então franzi a testa. Não havia como negar que ela e eu tínhamos uma conexão. Podem chamar de essência, de alma, de espírito, do que for, mas era uma coisa que me conectava com um ser imortal. Isso era tão certo quanto a terra que o aprisionara por séculos. – Eu não sou A-ya – repeti mais lentamente –, mas minha história com Kalona não acabou. O que posso fazer, vó?
Vovó pegou minha mão e a apertou. – Como você disse, você segue seu caminho. E no momento esse caminho a está conduzindo a uma cama quentinha e a um bom dia de sono.
– Uma crise de cada vez?
– Uma coisa de cada vez – ela me corrigiu.
– E está na hora de seguir seu próprio conselho, Sylvia – irmã Mary Angela disse ao entrar no quarto com um copo descartável de água em uma das mãos e comprimidos na outra.
Vovó deu um sorriso cansado para a freira e pegou o remédio. Reparei que suas mãos tremiam quando ela colocou os comprimidos na língua e bebeu a água.
– Vó, vou deixar a senhora descansar agora.
– Eu te amo, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa. Você se saiu muito bem hoje.
– Eu não teria feito nada disso sem a senhora. Também te amo muito, vó – abaixei-me e beijei sua testa e, quando ela fechou os olhos e se acomodou de novo nos travesseiros com um sorriso contente, saí do quarto com a irmã Mary Angela. Assim que chegamos ao corredor, comecei a enchê-la de perguntas: – A senhora arrumou quartos para todo mundo? Os novatos vermelhos estão bem? A senhora sabe se Stevie Rae mandou Erik e Heath e todo mundo dar uma olhada na área ao redor do convento? Está tudo tranquilo lá fora?
Irmã Mary Angela levantou a mão para conter minha incontinência verbal: – Filha, respire um pouquinho e me deixe falar.
Contive um suspiro, mas consegui ficar quieta ao seguir com a irmã Mary Angela pelo corredor, enquanto ela me explicava que as freiras haviam preparado uma área aconchegante no porão para os novatos vermelhos depois que Stevie Rae disse que ficariam bem confortáveis lá embaixo. Meu pessoal estava nos quartos de hóspedes lá em cima e, sim, os meninos tinham dado uma geral lá fora e não acharam Raven Mocker algum.
– Sabe, a senhora é incrível mesmo – sorri para ela quando paramos em frente a uma porta fechada no fim de um longo corredor. – Obrigada.
– Eu sou uma serva de Nossa Senhora, e você é muito bem-vinda – ela respondeu simplesmente e segurou a porta aberta para mim. – Esta escada leva ao porão. Disseram-me que a maioria dos meninos está lá embaixo.
– Zoey! Aí está você! Venha, tem que ver uma coisa. Você não vai acreditar no que Stevie Rae fez – Damien disse enquanto subia as escadas correndo em nossa direção.
Senti um nó no estômago. – O quê? – imediatamente comecei a descer para encontrá-lo. – Qual o problema?
Ele sorriu para mim. – Problema nenhum. É incrível – Damien pegou minha mão e me puxou.
– Damien tem razão – irmã Mary Angela disse, descendo as escadas atrás de nós. – Mas acho que incrível não é a palavra certa para o caso.
– A palavra certa seria algo do tipo terrível ou horrível? – perguntei.
Ele apertou minha mão. – Pare de se preocupar tanto assim. Você derrotou Kalona e Neferet, tudo vai dar certo.
Apertei sua mão também e forcei um sorriso para parecer menos preocupada, apesar de saber, no fundo do meu coração, no fundo da alma, que o que acontecera esta noite não tinha sido o fim nem representava vitória alguma. Aquilo na verdade tinha sido um terrível e horroroso começo.
– Uau! – olhei ao redor com perplexidade, sem conseguir acreditar.
– Uau ao quadrado, eu diria – Damien disse.
– Foi Stevie Rae quem fez isto mesmo?
– Jack disse que foi – Damien respondeu. Ficamos lado a lado e demos uma espiada pela escuridão da terra recém-escavada adentro.
– Na boa... Que sinistro – pensei alto.
Damien me olhou de um jeito estranho. – Como assim?
– Bem – fiz uma pausa sem saber direito o que queria dizer, mas sabia, com certeza, que aquele túnel me dava uma sensação esquisita. – Hummm , é... ahn ... bem escuro .
Damien riu. – Claro que é escuro. É para ser escuro mesmo. É um buraco no chão.
– Para mim parece mais natural do que um buraco no chão – replicou irmã Mary Angela enquanto nos seguia até a boca do túnel, espiando conosco o buraco escuro. – Por alguma razão, ele me traz uma sensação agradável. Talvez seja o cheiro.
Nós três farejamos. Senti cheiro de... bem... de terra. Mas Damien disse: – É um cheiro encorpado e saudável.
– Como campo recém-arado – a freira concordou.
– Viu, não tem nada de sinistro, Z. Eu me esconderia aqui em caso de tornado, com certeza – Damien disse.
Sentindo-me excessivamente sensível e meio boba, expirei profundamente e dei uma olhada para dentro do túnel, tentando enxergar com olhos renovados e sentir com um instinto mais apurado.
– Posso usar sua lanterna por um instante, irmã?
– É claro – irmã Mary Angela pegou a lanterna grande, pesada e quadrada que trouxera do porão, de uma partezinha que ela chamava de seu celeiro de raízes. A tempestade de gelo que caíra em Tulsa nos últimos dias derrubara o fornecimento de energia do convento e do resto da cidade. Elas tinham geradores a gás, de modo que na parte principal do convento havia umas poucas lâmpadas elétricas acesas, bem como zilhões das velas que as freiras gostavam tanto. Mas no celeiro de raízes não havia eletricidade, e a única iluminação vinha da lanterna da freira. Joguei a luz da lanterna para dentro do buraco no chão.
O túnel não era dos maiores. Se eu abrisse os braços, poderia facilmente tocar os dois lados. Olhei para cima. O teto ficava a meio metro da minha cabeça. Farejei de novo, tentando encontrar a sensação agradável que a irmã e Damien estavam sentindo. Torci o nariz. O lugar fedia a breu, umidade, raízes e coisas que haviam sido arrancadas da superfície. Desconfiei que essas coisas se arrastavam e deslizavam, o que automaticamente fez minha pele tremer e se arrepiar.
Então procurei usar a cabeça. Por que eu achava tão nojento um túnel na terra? Eu tinha afinidade com a terra. Sabia conjurá-la. Não devia ter medo dela.
Rangendo os dentes, dei um passo para dentro do túnel. E outro. E mais outro.
– Ei, ahn, Z., não vá tão na frente. Você está com a única fonte de luz e eu não quero que a irmã Mary Angela fique para trás no escuro. Ela pode ficar com medo.
Balancei a cabeça e, sorrindo, dei meia-volta, iluminando com a lanterna a entrada, a cara preocupada de Damien e o rosto sereno da irmã Mary Angela.
– Você não vai querer que a irmã fique com medo do escuro, não é? – Damien distorceu a situação, cheio de culpa.
Irmã Mary Angela pôs a mão no ombro dele por um momento. – É gentileza sua pensar em mim, Damien, mas não tenho medo do escuro.
Olhei para Damien como quem diz deixe de ser medroso, quando senti uma coisa. O ar atrás de mim mudou. Eu sabia que não estava mais sozinha naquele túnel. Senti o medo galgando minha espinha e de repente tive vontade de sair correndo. Sair de lá o mais rápido possível e nunca, nunca mais voltar.
Quase corri. Então, de repente, me dei conta da situação e fiquei irritada. Eu havia acabado de encarar um imortal, um anjo caído, uma criatura com a qual estava ligada do fundo da minha alma. E não saí correndo. E não ia fazer isso agora.
– Zoey? O que é isso? – a voz de Damien soou distante, enquanto eu me virava para encarar a escuridão.
De repente uma luz intensa se materializou, como o olho brilhante de um monstro subterrâneo. Ela não era grande, mas era forte, e causou manchas temporárias em meu campo de visão, e foi me cegando parcialmente, de modo que, quando levantei a cabeça, o monstro parecia ter três cabeças que balançavam loucamente, além de ombros desproporcionais e grotescos.
Então, fiz o que qualquer pessoa razoável faria. Draguei o ar para dentro dos pulmões e soltei meu melhor berro de menina, e as três bocas do monstro de um olho só ecoaram o berro na hora, de modo assombroso. Ouvi Damien gritando atrás de mim e tive certeza de que até a irmã Mary Angela soltou um ofego assustado. Eu estava começando a fazer exatamente o que jurara a mim mesma que não faria, ou seja, sair correndo, quando uma das cabeças parou de gritar e se aproximou do jato de luz da lanterna.
– Merda, Zoey! Qual é o seu problema? Somos só eu e as gêmeas. Você quase nos matou de susto – Aphrodite me repreendeu.
– Aphrodite? – eu estava com a mão na altura do coração, tentando segurá-lo para que não saísse do peito.
– É claro que sou eu – ela respondeu, passando por mim com cara de revoltada. – Minha Deusa! Que sem noção!
As gêmeas ainda estavam paradas no túnel. Erin segurava uma vela grossa, apertando-a com tanta força que estava com as dobras do dedo brancas. Shaunee estava ao lado dela, tão perto que estavam apertando o ombro de uma no da outra. Pareciam congeladas, de olhos arregalados.
– Ah, oi – eu disse. – Não sabia que vocês estavam aqui.
Shaunee foi quem descongelou primeiro: – Que que cê acha? – ela passou a mão trêmula delicadamente na testa e se voltou para Erin. – Gêmea, ela me fez ficar branca de susto?
Erin piscou o olho para sua melhor amiga. – Não acho que isso seja possível – ela deu uma olhada para Shaunee. – Mas não, ela não fez você ficar branca. Você continua com sua linda cor de cappuccino. – Erin levou a mão que não estava segurando a vela aos cabelos grossos e louros e os ajeitou freneticamente. – Será que ela fez meu cabelo cair ou ficar prematura e repulsivamente grisalho?
Franzi a testa para as gêmeas. – Erin, seu cabelo não está caindo nem ficando grisalho, e Shaunee, não tem como você ficar branca de susto. Nossa, foram vocês quem me assustaram primeiro .
– Olha, da próxima vez que você quiser assustar Neferet e Kalona, é só dar um berro desses – Erin disse.
– É, parecia que tinha baixado a louca em você – Shaunee ecoou enquanto as duas passavam por mim.
Entrei com elas no celeiro de raízes onde Damien estava dando piti, mais gay do que nunca, e a irmã Mary Angela terminava de fazer o sinal da cruz. Abaixei a lanterna em direção a uma mesa cheia de coisas em jarras de vidro bizarras que pareciam conter fetos flutuantes na penumbra.
– Então, sério, o que vocês estão fazendo aqui embaixo? – perguntei.
– Dallas disse que foi assim que eles vieram da estação de trem para cá – Shaunee respondeu.
– Ele disse que aqui embaixo era legal e que Stevie Rae havia preparado tudo – Erin completou.
– E ele achou que podíamos vir aqui ver pessoalmente – Shaunee voltou a falar.
– E por que você está aqui com as gêmeas? – perguntei a Aphrodite.
– A dupla dinâmica precisava de proteção. E, naturalmente, foram me procurar.
– Mas como vocês de repente apareceram assim? – Damien perguntou antes que as gêmeas começassem com o bate-boca de sempre.
– Moleza – Erin foi voltando pelo túnel rapidamente, ainda carregando sua vela. Virou-se em nossa direção quando estava a poucos metros de onde eu estivera. – O túnel vira direto para a esquerda aqui – foi para o lado e sua luz desapareceu, então ela recuou e reapareceu. – Por isso nós só nos vimos na última hora.
– É realmente impressionante que Stevie Rae tenha conseguido fazer isso – Damien disse. Reparei que ele não se aproximou do túnel, preferindo ficar perto da lanterna.
Irmã Mary Angela chegou perto da entrada, tocou a lateral do buraco recém-escavado com reverência e disse: – Stevie Rae fez isto, mas fez com intervenção divina.
– Com “intervenção divina”, a senhora se refere àquele papo de que a Virgem-Maria-é-apenas-outra-forma-de-Nyx ? – o sotaque de Stevie Rae saiu do outro lado do celeiro de raízes, assustando-nos.
– Sim, filha. É exatamente o que quero dizer.
– Não quero ofendê-la, mas isso é a coisa mais esquisita que já ouvi – Stevie Rae disse e veio em nossa direção. Eu a achei pálida. Quando ela chegou perto de mim, senti um cheiro estranho, mas seu sorriso devolveu ao seu rosto a mesma expressão bonitinha e familiar de sempre. – Z., foi você quem deu aquele berro?
– Ahn, foi – não pude deixar de sorrir para ela. – Eu estava dentro do túnel e não esperava dar de cara com as gêmeas e Aphrodite.
– Bem, isso faz sentido. Aphrodite é meio monstruosa mesmo – Stevie Rae respondeu.
Eu ri, e então, aproveitando a oportunidade de mudar de assunto, disse: – Ahn... Falando em monstros, você encontrou algum Raven Mocker por aí?
Stevie Rae desviou o olhar do meu.
– Está tudo bem. Não precisa se preocupar com nada – ela respondeu rapidamente.
– Que bom – irmã Mary Angela disse. – Aquelas criaturas eram abomináveis com aquela mistura de homem e animal – um calafrio a fez estremecer. – Fico aliviada por estarmos livres deles.
– Mas eles não tiveram culpa – Stevie Rae disse bruscamente.
– Como é? – a freira pareceu bastante confusa com o tom defensivo de Stevie Rae.
– Eles não pediram para nascer indefinidos daquele jeito por causa dos estupros e das maldades. Eles são vítimas.
– Não tenho pena deles – eu disse, me perguntando por que Stevie Rae soava como se estivesse defendendo aqueles Raven Mockers nojentos.
Damien estremeceu. – Nós precisamos mesmo falar neles?
– Não, claro que não – Stevie Rae disse rapidamente.
– Ótimo. De qualquer forma, a razão pela qual trouxe Zoey cá para baixo foi para ela ver o túnel que você abriu, Stevie Rae. Vou te contar. Achei impressionante.
– Valeu, Damien! Foi legal demais quando percebi que podia mesmo abrir o túnel – Stevie Rae passou por mim e entrou na boca do túnel, onde foi instantaneamente cercada pela escuridão total que se desdobrava por trás dela como se fosse uma enorme cobra de ébano. Ela levantou os braços com as palmas voltadas para as paredes de terra do túnel. De repente, lembrei-me de uma cena de Sansão e Dalila, um filme antigo que assisti com Damien mais ou menos um mês antes. A imagem que me veio à memória foi de quando Dalila levou Sansão às cegas para ficar entre enormes pilares que sustentavam um estádio cheio de gente horrível que zombava dele. Ele retomou sua força mágica e terminou derrubando os pilares e destruindo a si mesmo e...
– Não é, Zoey?
– Ahn? – pisquei os olhos, um pouco transtornada pela cena triste e destrutiva que revivi em minha mente.
– Eu disse que Maria não abriu a terra para mim quando fiz o túnel; este poder quem me deu foi Nyx. Nossa! Você não está prestando a menor atenção ao que estou dizendo – Stevie Rae me repreendeu. Ela havia tirado as mãos das laterais do túnel e estava me olhando como quem pergunta em que diabo você está pensando?
– Desculpe, o que você estava dizendo sobre Nyx?
– É só que eu acho que Nyx e a droga da Virgem Maria não têm nada a ver uma com a outra; tenho certeza de que a mamãe de Jesus não me ajudou a abrir o túnel na terra – ela balançou um ombro. – Não quero magoá-la nem nada do tipo irmã, mas é o que penso.
– Você tem direito a opinião própria, Stevie Rae – a freira respondeu, calma como sempre. – Mas você devia saber que dizer que não acredita em algo não implica sua não existência.
– Bem, andei pensando nisso e, pessoalmente, não acho a hipótese tão improvável assim – Damien disse. – Você devia se lembrar que Maria aparece como uma das muitas faces de Nyx no Manual do Novato 101 .
– Ahn... – retruquei. – É mesmo?
Damien me lançou um olhar de bronca que dizia claramente você devia ser a melhor aluna. Depois, assentiu com a cabeça e continuou, usando seu melhor tom professoral.
– É. Existe uma boa documentação atestando que, durante o influxo do cristianismo na Europa, os templos de Gaia, bem como os de Nyx, foram convertidos em templos de Maria muito antes de as pessoas se converterem à nova...
Com aquele falatório incessante de Damien como pano de fundo dei uma olhada para dentro do túnel. A escuridão era profunda e densa. Já não dava para enxergar nada poucos centímetros depois de Stevie Rae. Nada mesmo. Olhei fixo, imaginando silhuetas e formas se escondendo no escuro. Alguém ou algo podia estar se escondendo a poucos metros de nós sem ninguém perceber. E isso me dava medo.
Peraí, isso é ridículo!, disse a mim mesma. É só um túnel. Mesmo assim, meu medo irracional me empurrou para a frente. O que, infelizmente, me irritou e me fez ter vontade de recuar. Então, como qualquer figurante loura retardada de filme de terror, dei um passo escuridão adentro. E outro.
E fui engolida pelo breu.
Em minha mente eu sabia que estava a poucos passos do celeiro de raízes e dos meus amigos. Ouvi Damien tagarelando sobre religião e a Deusa. Mas não era minha mente que batia aterrorizada em meu peito. Meu coração, meu espírito, minha alma – chamem como quiserem – gritava em silêncio Corre! Sai daí! Vai!
Senti a pressão da terra como se não fosse um buraco no chão, e sim algo que me preenchia, me cobria... me sufocava... me prendia.
Comecei a respirar cada vez mais rápido. Sabia que devia estar com hiperventilação, mas não consegui parar. Eu quis recuar do buraco que serpenteava sob meus pés escuridão adentro, mas só consegui dar um passo trôpego para trás. Não consegui fazer com que meus pés me obedecessem! Pontos de luzes cintilaram em meus olhos, me cegando, e tudo foi ficando cinzento. E então fui caindo... caindo...
5
Zoey
A escuridão era implacável. Ela não me cegava apenas a vista; cegava-me todos os sentidos. Achei que estivesse arfando e me debatendo na tentativa de respirar, tentando achar alguma coisa, qualquer coisa que pudesse tocar, ouvir ou cheirar, qualquer coisa de real na qual pudesse me apoiar. Mas não senti nada. Eu só sabia do casulo de escuridão e do meu coração freneticamente disparado.
Será que eu tinha morrido?
Não, acho que não. Lembrava-me de estar no túnel sob o Convento das Beneditinas, a poucos metros de meus amigos. Fiquei surtada por causa da escuridão, mas não tinha caído dura.
Mas estava com medo. Lembro-me de morrer de medo. E então, virou tudo um breu só. O que tinha acontecido comigo? Nyx! Minha mente gritou. Socorro, Deusa! Por favor, me mostre algum tipo de luz!
– Ouça com sua alma...
Pensei que tinha gritado bem alto ao ouvir o doce e reconfortante som da voz da Deusa em minha mente, mas, quando suas palavras cessaram, só restou aquele silêncio inexorável e o breu.
Caraca, como eu ia fazer para ouvir com a alma?
Tentei me acalmar e ouvir alguma coisa, mas só havia silêncio. Um silêncio absoluto, preto, vazio, de sugar a alma, diferente de tudo que conhecia. Eu não tinha nenhum tipo de base que me guiasse por aqui, só sabia...
Então me dei conta, de um só golpe, e minha mente assimilou tudo. Eu tinha uma base para me guiar. Parte de mim já conhecia esta escuridão.
Eu não enxergava. Não sentia. Não conseguia fazer nada, a não ser me revirar por dentro, procurando pela parte de mim que talvez conseguisse extrair algum sentido disso, que talvez conseguisse me tirar de lá.
Minha memória deu um pulo, desta vez me levando de volta para muito antes daquela noite no túnel sob o convento. Os anos foram vencendo minha resistência até que, finalmente, voltei a sentir.
Meus sentidos foram voltando lentamente. Comecei a ouvir mais do que meus pensamentos. Uma batida ritmada pulsava ao meu redor, e dentro dela se entremeavam distantes vozes femininas. Voltei a ter olfato e reconheci o cheiro úmido que me fez lembrar o túnel do convento. Até que senti, enfim, a terra em minhas costas nuas. Tive apenas um instante para peneirar a inundação causada pelo retorno de meus sentidos antes de despertar de vez. Eu não estava sozinha! Minhas costas estavam apoiadas na terra, mas eu estava nos braços fortes de alguém.
Então ele falou.
– Ah, Deusa, não! Não deixe isto acontecer!
Era a voz de Kalona, e minha reação imediata foi gritar e me debater cegamente para fugir dele, mas não tinha controle sobre meu corpo, e as palavras que me vieram à boca não eram minhas de verdade.
– Sssh, não se desespere. Estou com você, meu amor.
– Você armou uma armadilha para mim! – ele me acusou e senti o aperto de seus braços ao meu redor e reconheci a paixão fria de seu abraço imortal.
– Eu salvei você – minha estranha voz respondeu enquanto meu corpo se ajustava mais intimamente ao dele. – Você não foi feito para habitar este mundo. Por isso tem estado tão infeliz e insaciável.
– Eu não tive escolha! Os mortais não entendem.
Envolvi seu pescoço com meus braços. Meus dedos mergulharam em seus cabelos macios e pesados. – Eu entendo. Fique aqui comigo, em paz. Sossegue aqui essa sua aflição. Eu vou ficar ao seu lado.
Senti que ele ia se render antes mesmo de ele falar.
– Sim – Kalona murmurou. – Vou enterrar em você minha tristeza e assim esgotar o desespero desta ansiedade.
– Sim, meu amor, meu consorte, meu guerreiro... Sim...
Foi nesse momento que me perdi dentro de A-ya. Não sabia dizer onde terminava seu desejo e começava minha alma. Se eu ainda tinha escolha, não queria ter. Só sabia que estava onde era meu destino estar, nos braços de Kalona.
Fomos os dois cobertos por suas asas, que não deixaram o gelo de seu toque me queimar. Seus lábios encontraram os meus. Exploramos um ao outro lenta, completamente, com uma sensação de encanto e entrega. Quando nossos corpos começaram a se mexer em uníssono senti um prazer absoluto.
E então, de repente, comecei a me dissolver.
– Não! – o berro saiu da minha alma como se tivesse sido arrancado. Eu não queria partir! Eu queria ficar com ele. Meu lugar era com ele!
Mas o fato é que não estava no controle da situação, e me senti murchando, voltando para a terra, enquanto A-ya choramingava, e sua voz embargada ecoou na minha mente: LEMBRE-SE...
Senti um tapa ardido no rosto, arfei profundamente, e a escuridão desapareceu. Abri os olhos, franzi a testa e pisquei ao me deparar com o brilho da lanterna.
– Eu me lembro – minha voz soou tão enferrujada quanto minha mente.
– Você se lembra de quem é ou vou ter que bater de novo? – Aphrodite perguntou.
Minha mente estava lenta, pois ainda gritava não por ter sido arrancada da escuridão. Pisquei os olhos outra vez e balancei a cabeça, tentando limpá-la.
– Não! – berrei com tanta emoção que Aphrodite automaticamente se afastou de mim.
– Tá bem – ela disse. – Pode deixar para me agradecer mais tarde.
A irmã Mary Angela tomou o lugar dela e se debruçou sobre mim, afastando meu cabelo do meu rosto, que estava suado e frio.
– Zoey, você está conosco?
– Sim – respondi com a voz presa.
– Zoey, o que foi isso? O que a fez hiperventilar? – ela me perguntou.
– Você não está doente, está? – a voz de Erin soou ligeiramente trêmula.
– Não está com vontade de tossir nem nada, não é? – Shaunee perguntou, soando tão preocupada quanto a outra gêmea.
Stevie Rae empurrou as gêmeas de lado para se aproximar de mim.
– Fale comigo, Z. Você está bem mesmo?
– Estou ótima. Não estou morrendo nem nada assim – meus pensamentos se reorganizaram, mas não consegui espantar os últimos traços do desespero que conheci com A-ya. Entendi que o medo dos meus amigos era que meu corpo tivesse começado a rejeitar a Transformação. Com um enorme esforço para me concentrar no aqui e agora, levantei a mão para Stevie Rae. – Vamos, me ajude a levantar. Já tô melhor.
Stevie Rae me puxou, tomando o cuidado de segurar meu cotovelo quando balancei de leve antes de recuperar o equilíbrio.
– O que aconteceu com você, Z.? – Damien perguntou enquanto me observava.
O que eu ia dizer? Será que devia assumir para meus amigos que tinha uma lembrança excepcionalmente intensa de uma vida passada na qual me entreguei para nosso atual inimigo? Eu sequer havia tido tempo de digerir aquele verdadeiro labirinto de novas emoções trazidas pela lembrança. Como ia explicar aquilo tudo aos meus amigos?
– Pode falar, filha. A verdade falada é sempre menos ruim do que a imaginada – irmã Mary Angela disse.
Eu suspirei e respondi: – Fiquei com medo do túnel!
– Com medo? Tipo, como se tivesse alguma coisa lá dentro? – Damien finalmente parou de olhar fixo para mim e lançou um olhar nervoso para dentro do buraco escuro.
As gêmeas deram alguns passos em direção ao celeiro de raízes, afastando-se do túnel.
– Não, não tem nada lá dentro – hesitei. – Pelo menos, acho que não. Enfim, não foi por isso que fiquei com medo.
– Você quer que a gente acredite que desmaiou por medo do escuro? – Aphrodite perguntou.
Todos ficaram olhando para mim.
Eu limpei a garganta.
– Olha, galera. Talvez seja alguma coisa que Zoey simplesmente não quer dizer – Stevie Rae interveio.
Olhei pra minha melhor amiga e percebi que, se não dissesse alguma coisa sobre o que havia acabado de acontecer comigo, depois não seria capaz de enfrentar aquilo que tinha de fazer em relação a ela.
– Você tem razão – disse a Stevie Rae. – Não quero falar sobre isso, mas vocês merecem saber a verdade – olhei para o resto do grupo. – Este túnel me deixou bolada porque minha alma o reconheceu – limpei a garganta e continuei: – Eu me lembrei de estar presa debaixo da terra com Kalona.
– Você quer dizer então que A-ya está dentro de você? – Damien perguntou baixinho.
Assenti. – Eu sou eu, mas também tenho, sei lá como, uma parte dela dentro de mim.
– Interessante... – Damien soltou um longo suspiro.
– Bem, que diabo isso quer dizer em relação a você e Kalona hoje? – Aphrodite perguntou.
– Não sei! Não sei! Não sei! – explodi, expondo com máxima sinceridade o estresse e a confusão sobre o que havia acabado de acontecer dentro de mim. – Eu não tenho droga de resposta nenhuma. Só tenho essa lembrança, e tive zero de tempo para digerir a história. Que tal vocês me darem um tempinho para eu arrumar as ideias?
Todo mundo começou a se mexer, resmungando “tudo bem” e me olhando como se eu estivesse ficando maluca. Ignorei o olhar pasmado dos meus amigos e as perguntas sem resposta e quase palpáveis sobre Kalona e me voltei para Stevie Rae: – Me explica como foi exatamente que você fez este túnel.
Percebi pelo ponto de interrogação nos olhos dela que meu tom de voz a deixou preocupada. Não soei tipo “Caraca! Acabei de desmaiar e preciso mudar de assunto porque tô com vergonha de ser uma boneca reencarnada”, falei como Grande Sacerdotisa.
– Bem, nem foi nada demais – Stevie Rae parecia nervosa e desconfortável, como se estivesse se esforçando muito para parecer que estava de boa, quando na verdade estava bastante bolada. – Ei, tem certeza de que está bem? Será que não é melhor a gente subir e arrumar um refrigerante de cola ou algo assim para você? Tipo, se este lugar te provoca flashback , seria melhor conversar em outro lugar.
– Eu tô bem. No momento só quero saber do túnel – olhei firme nos olhos dela. – Portanto, me diga como foi que fez o túnel.
Senti que os outros garotos, bem como a irmã Mary Angela, nos observavam com curiosidade, sem entender nada, mas continuei me concentrando em Stevie Rae.
– Tá... Bem... Você sabe que existem túneis da época da Lei Seca debaixo de praticamente todo edifício do centro da cidade, não sabe?
– Sei.
– Você se lembra também de quando eu disse que tinha saído para reconhecer o terreno e ver onde os túneis iam dar?
– Lembro sim.
– Tá. Então, encontrei este túnel parcialmente encoberto sobre o qual Ant falou para todos no outro dia, aquele que sai dos túneis debaixo do Edifício Philtower e tal.
Eu assenti de novo, impaciente.
– Bem, ele estava cheio de terra, mas, quando fui sentindo o buraquinho que deixaram no meio dele, removi um monte de terra e enfiei o braço, e então senti ar fresco do outro lado. Acabei pensando que o túnel devia continuar do outro lado. Então, empurrei com a força da minha mente, das mãos e do meu elemento. E a terra respondeu.
– Respondeu? Tipo se mexeu, ou algo assim? – perguntei.
– Tipo se mexeu. Como eu quis. Na minha cabeça – ela fez uma pausa. – É meio difícil de explicar. Mas o que aconteceu foi que a terra que fechava o túnel acabou se desintegrando e eu entrei pelo buraco maior que se abriu, que dava para um túnel bem, bem velho.
– E esse túnel velho era feito de terra, não revestido de concreto, como os túneis debaixo da estação no centro, certo? – Damien disse.
Stevie Rae sorriu e assentiu, fazendo os cabelos louros roçarem nos ombros. – É! E, em vez de dar no centro, ele dava no meio da cidade.
– O túnel vem de lá? – tentei calcular mentalmente quantos quilômetros seriam, mas não consegui. É claro, sou retardada para matemática, mas mesmo assim dava para saber que era longe pra caramba.
– Não. O que aconteceu foi que descobri o túnel cheio de terra e meio que fui abrindo, fui explorando. Bem, ele começa em um dos desdobramentos do Edifício Philtower. Achei esquisito, mas também achei irado o túnel terminar depois do centro da cidade.
– Como você sabia? – Damien a interrompeu. – Como você podia saber onde dava o túnel?
– Para mim foi mole! Eu sempre sei onde fica o norte, sabe, a direção do meu elemento terra. Depois que acho o norte, posso achar qualquer lugar.
– Hummm – ele respondeu.
– Continue – pedi. – E daí?
– Parei com o túnel por ali. Antes de você me dar aquele bilhete dizendo para encontrar vocês aqui na casa das irmãs. Foi lá que parei. Tipo, claro que eu tinha intenção de voltar e continuar depois, mas não era minha prioridade. Quando você me disse que talvez tivesse de trazer a galera para cá, não consegui parar de pensar no túnel de terra. Lembrei-me de que ele seguia nesta direção antes de acabar. Pensei aonde queria ir e como gostaria que o túnel seguisse naquela direção. Então voltei a empurrar a terra, como tinha feito para aumentar o buraco, só que com mais força. Então, bem, de repente, de uma hora para a outra, a terra fez o que mandei, e aqui estamos nós! Tchã-tchã! – ela terminou com um grande sorriso e um floreio.
Dentro do silêncio que cercou a explicação de Stevie Rae, a voz da irmã Mary Angela soou completamente normal e razoável, o que me fez gostar dela ainda mais do que já gostava.
– Extraordinário, não é? Stevie Rae, você e eu podemos discordar da origem do seu dom, mas, mesmo assim, ainda fico impressionada com o alcance dele.
– Obrigada, irmã! Também acho que a senhora é extraordinária, especialmente para uma freira.
– Como você enxergou lá dentro? – perguntei.
– Bem, eu não tenho problema nenhum em enxergar no escuro, mas o resto da galera já não se sai tão bem, então trouxe uns lampiões que achei nos túneis da estação – Stevie Rae apontou para uns lampiões a óleo que, eu não havia reparado, estavam nos cantos escuros do celeiro de raízes.
– Mesmo assim, o caminho é longo – Shaunee disse.
– Sério mesmo. Devia ser um breu sinistro – Erin completou.
– Que nada, a terra não tem nada de sinistro para mim, nem para os novatos vermelhos – ela deu de ombros. – Como eu disse, não foi nada demais. Na verdade, foi superfácil.
– E você conseguiu trazer todos os novatos vermelhos para cá sem problemas? – Damien perguntou.
– Aham!
– Todos quais? – perguntei.
– Como assim, todos quais? Isso não faz nenhum sentido, Z. – ela disse. – Eu trouxe todos os novatos vermelhos que vocês já conheciam, além de Erik e Heath. De quem mais você está falando? – suas palavras soaram normais, mas ela terminou dando uma risada nervosa e desviando o olhar do meu.
Senti um nó no estômago. Stevie Rae ainda estava mentindo para mim. E eu não sabia o que fazer em relação a isso.
– Acho que talvez Zoey esteja se sentindo confusa por estar exausta, e nem podia ser diferente depois da noite que ela teve – a mão quente de irmã Mary Angela no meu ombro foi tão reconfortante quanto sua voz. – Estamos todos cansados – ela acrescentou e sorriu também para Stevie Rae, as gêmeas, Aphrodite e Damien. – Não falta muito para amanhecer. Vamos acomodá-los com seus outros amigos. E dormir. Tudo vai ficar mais claro depois que vocês estiverem bem descansados.
Concordei com a cabeça, esgotada, e deixei que irmã Mary Angela nos conduzisse pela saída das entranhas do celeiro de raízes, subindo novamente a escada que havíamos descido não fazia muito tempo. Mas, ao invés de continuar a subir e pegar a escada que levava para o convento, a freira abriu uma porta que havia no patamar da escada e na qual eu não havia reparado ao passar por lá antes, quando estava correndo atrás de Damien. Havia uma escadaria menor que levava à área do porão, um porão grande, mas de aparência normal, de cimento, que fora transformado pelas freiras de lavanderia gigante em dormitório provisório. Havia um monte de beliches espalhados pelas duas paredes, um de frente para a outro, com cobertores e travesseiros, parecendo bastante aconchegantes. Havia um monte do tamanho de um garoto em uma das camas e, pelo pedacinho de cabelo que escapava por baixo do cobertor, que ele havia puxado até o alto da cabeça, dava para ver que era Elliott, dormindo que nem uma pedra. Os demais novatos vermelhos estavam agrupados na área das máquinas de lavar e secar, sentados naquelas cadeiras dobráveis de metal que deixavam minha bunda gelada. Eles estavam de frente para uma enorme televisão de tela plana colocada em cima de uma das lavadoras. Estavam bocejando muito, o que indicava que já devia mesmo estar perto do amanhecer, mas pareciam hipnotizados pelo que estavam vendo na tevê. Dei uma olhada na tela e senti meu rosto cansado se abrir em um enorme sorriso.
– A Noviça Rebelde ? Eles estão assistindo A Noviça Rebelde ? – ri.
Irmã Mary Angela olhou para mim levantando uma das sobrancelhas. – É um de nossos DVDs favoritos. Achei que os novatos também fossem gostar.
– É um clássico – Damien exclamou.
– Eu achava aquele garoto nazista gatinho – Shaunee disse.
– Mas ele trai os Von Trapp – Erin rebateu.
– E mostra que não é tão gatinho assim – Shaunee continuou enquanto as gêmeas pegavam umas cadeiras dobráveis e se juntavam aos outros novatos em frente à tevê.
– Mas todos gostam de Julie Andrews – Stevie Rae afirmou.
– Ela devia dar uma porrada naqueles mimadinhos – Kramisha disse de seu lugar em frente à tevê. Ela virou o pescoço para trás e deu um sorriso cansado para irmã Mary Angela. – Desculpe por falar “porrada” irmã, mas eles são umas pestes.
– Eles só precisavam de atenção e compreensão, como qualquer criança – a irmã respondeu.
– Eca, vomitei. Sério mesmo – Aphrodite quase gritou. – Vou chamar Darius para ir para o quarto antes que vocês comecem a cantar How Do You Solve a Problem like Maria ?[1] e eu tenha que cortar os meus lindos pulsos – ela balançou a cabeça e começou a sair do porão.
– Aphrodite – irmã Mary Angela chamou. Quando Aphrodite parou e se virou para olhar, ela continuou: – Creio que Darius ainda esteja com Stark. Não tem problema em procurá-lo para dar boa-noite, mas seu quarto fica no quarto andar. Você vai ficar com Zoey, não com o guerreiro.
– Ih – eu sussurrei.
Aphrodite revirou os olhos. – Por que isso não me surpreende? – e seguiu seu rumo, resmungando sozinha.
– Desculpe, Z. – Stevie Rae disse depois de revirar os olhos para Aphrodite pelas costas. – Eu gostaria de dividir o quarto com você de novo, mas acho melhor ficar aqui embaixo. Eu me sinto melhor debaixo da terra depois que o sol nasce e, além disso, preciso ficar perto dos novatos vermelhos.
– Tudo bem – respondi um pouco rápido demais. Então, agora nem quero mais ficar sozinha com minha melhor amiga?
– Todos os outros estão lá em cima? – Damien perguntou. Eu o vi olhando ao redor e achei que estava procurando Jack.
Mas eu não estava procurando nenhum dos meus namorados. Na verdade, depois daquela exibição idiota de testosterona lá fora, a ideia de não ter namorado nenhum me agradava cada vez mais.
E também havia Kalona, e aquela lembrança indesejada.
– Sim, está todo mundo lá em cima no refeitório, ou então já foram dormir. Ei, Terra chamando Zo! Olha só. As freiras têm um estoque gigantesco de Doritos variados, e eu até achei um refrigerante de cola para você, cheio de cafeína e açúcar – Heath disse enquanto dava os últimos três passos porão adentro.
6
Zoey
– Obrigada, Heath – contive um suspiro quando ele veio para perto de mim, sorrindo e me oferecendo Doritos sabor nacho cheese e uma lata de refrigerante de cola.
– Z., se você está bem mesmo, eu gostaria de ver onde Jack está para saber se Duquesa está bem e depois dormir uma pequena eternidade – Damien disse.
– Tranquilo – respondi logo, não queria que Damien dissesse nada a Heath sobre minha lembrança de A-ya.
– Cadê o Erik? – Stevie Rae perguntou para Heath enquanto eu virava a lata de refrigerante de cola.
– Ele ainda está lá fora, dando uma de dono do pedaço.
– Vocês acharam alguma coisa depois que fui embora? – a voz de Stevie Rae de repente ficou tão incisiva que vários novatos vermelhos tiraram os olhos da cena do filme em que Maria e os Von Trapp cantam My Favorite Things .
– Que nada, Erik é um bundão, ficou só conferindo as partes que eu e Dallas já tínhamos visto.
Dallas tirou os olhos da tevê ao ouvir seu nome. – Tudo bem lá fora, Stevie Rae.
Ela fez um gesto de vem cá para Dallas, e ele veio correndo. Ela baixou a voz e disse: – Conte tudo.
– Eu já te disse lá fora antes de você descer aqui – Dallas respondeu e voltou a olhar para as imagens de pôneis cor de creme e strudel de maçã na tela da tevê.
Stevie Rae deu um tapa no seu braço. – Dá para prestar atenção? Não estou mais lá fora. Agora estou aqui. Então me conta de novo .
Dallas suspirou, passou a prestar total atenção nela, dando um sorriso bonitinho e indulgente.
– Tá, tá. Mas só porque você está pedindo com jeitinho – Stevie Rae fez cara feia para ele. – Erik, Johnny B, o Heath aqui – ele parou e assentiu para Heath – e eu... Nós procuramos como você mandou, o que não foi brincadeira, pois o gelo está bastante escorregadio e tá megafrio lá fora – ele fez uma pausa. Stevie Rae ficou olhando em silêncio até ele continuar: – Enfim, como você já sabe, estávamos fazendo isso enquanto você saiu para procurar pela Rua Vinte e Um. Depois de um tempinho, nos encontramos na gruta. Foi quando achamos aqueles três corpos na esquina de Lewis com a Vinte e Um. Você disse pra gente dar um jeito neles e foi embora. Nós fizemos o que você disse e então Heath, Johnny B e eu entramos para nos secar, comer e assistir à tevê. Acho que Erik ainda está dando uma olhada lá fora.
– Por quê? – a voz de Stevie Rae soou ríspida.
Dallas deu de ombros. – Deve ser o que Heath disse. O cara é um bundão.
– Corpos? – irmã Mary Angela perguntou.
Dallas assentiu. – É, nós achamos três Raven Mockers mortos. Darius atirou para cima e pegou neles, porque tinham furos de balas no corpo.
Irmã Mary Angela baixou a voz. – E o que você fez com as criaturas mortas?
– Joguei nas latas de lixo atrás do convento, como Stevie Rae mandou. Tá gelado lá fora. Os corpos não vão apodrecer. E não vai aparecer nenhum caminhão de lixo tão cedo por aqui com esse gelo todo e tal. Achamos que podiam ficar lá até resolvermos o que vamos fazer com eles.
– Ah! Ôh, meu Deus! – a cara da freira ficou branca.
– Você colocou nas lixeiras? Eu não mandei vocês colocarem nas lixeiras! – Stevie Rae praticamente berrou.
– Sssh! – Kramisha protestou, e o pessoal que estava assistindo à tevê olhou de cara feia.
Irmã Mary Angela fez menção para que a seguíssemos e nós cinco subimos a escada que dava no corredor do convento, saindo do porão.
– Dallas, eu não acredito que você jogou os corpos nas lixeiras! – Stevie Rae partiu para cima dele quando já estávamos longe e fora do alcance do ouvido dos demais.
– O que você esperava que fizéssemos com eles, que cavássemos um túmulo e rezássemos uma missa? – Dallas perguntou e deu uma olhada para a irmã Mary Angela. – Desculpe, não quis blasfemar, irmã. Meus velhos são católicos.
– Tenho certeza de que você não falou por mal, filho – disse a freira, soando um tanto abalada. – Corpos... Eu... Eu não havia pensado nos corpos.
– Não se preocupe com isso irmã – Heath deu um tapinha esquisito no ombro dela. – A senhora não tem que se envolver com eles. Sei o que a senhora está sentindo. Todo esse negócio de homem alado, Neferet, Raven Mockers , bem, é bem duro de...
– Eles não podem ficar nas lixeiras – Stevie Rae falou por cima de Heath como se não o tivesse ouvido. – Não é certo.
– Por que não? – perguntei calmamente. Até então eu tinha ficado quieta porque estava estudando Stevie Rae, observando bem como estava ficando cada vez mais irritada.
De repente, Stevie Rae não demonstrou mais se incomodar em me olhar nos olhos.
– Porque não é certo, por isso – ela repetiu.
– Eles eram monstros em parte imortais que fariam de tudo para nos matar em questão de segundos se Kalona mandasse – lembrei-a.
– Parte imortal e parte o quê? – Stevie Rae me perguntou.
Olhei para ela franzindo a testa, mas Heath respondeu antes de mim: – Parte pássaros?
– Não – Stevie Rae não estava olhando para mim, mas me encarando. – Parte ave não, essa é a parte imortal. Eles têm sangue parte imortal, parte humana. Humana, Zoey. Eu tenho pena da parte humana e acho que ela merece algo melhor do que ser jogada na lata de lixo.
Havia algo no olhar dela e no som de sua voz que estava realmente me incomodando. E respondi com a primeira coisa que me passou pela cabeça. – É preciso mais do que um acidente sanguíneo para eu ter pena de alguém.
Os olhos de Stevie Rae cintilaram e seu corpo balançou, quase como se eu lhe tivesse dado um bofete. – Acho que isso nós temos de diferente.
De repente entendi por que Stevie Rae conseguia sentir pena dos Raven Mockers . Devia estar tendo uma identificação bizarra com eles. Ela tinha morrido e depois, devido ao que eu achava que ela chamava de acidente, ressuscitou sem boa parte de sua humanidade. Então, por causa de outro “acidente” retomou sua humanidade. Pensando assim, acho que Stevie Rae sentia pena deles por saber que ela mesma era parte monstro, parte humana.
– Olha – eu disse baixinho, desejando que estivéssemos de volta à Morada da Noite e pudéssemos conversar de boa como fazíamos antes. – Há uma enorme diferença entre um acidente fazer alguém já nascer ferrado e algo terrível acontecer depois de a pessoa nascer. Por um lado você é o que é, e, por outro, algo tentou transformá-la numa coisa que você não é.
– Ahn? – Heath não entendeu.
– Acho que Zoey está tentando dizer que entende por que Stevie Rae sente pena dos Raven Mockers mortos, apesar de não ter nada em comum com eles – irmã Mary Angela tentou explicar. – E Zoey tem razão. Essas criaturas são seres das trevas, e apesar de eu também ficar desconfortável com a morte deles, eu entendo que eles precisavam morrer.
Stevie Rae tirou os olhos dos meus. – As duas estão erradas. Não é o que penso, mas não vou mais falar sobre isso – ela começou a andar pelo corredor, afastando-se rapidamente de nós.
– Stevie Rae? – chamei.
Ela nem olhou para mim. – Vou procurar o Erik, ver se está tudo bem mesmo lá fora e mandá-lo entrar. Mais tarde converso contigo – deu as costas e saiu batendo uma porta que, presumi, dava para fora do prédio.
– Ela não costuma agir assim – Dallas observou.
– Vou rezar por ela – sussurrou irmã Mary Angela.
– Não se preocupe – Heath disse. – Ela volta logo. O sol está quase saindo.
Esfreguei o rosto com a mão. O que eu deveria ter feito era ir atrás de Stevie Rae, botar a garota contra a parede e fazê-la contar exatamente o que estava se passando. Mas não podia lidar com mais esse problema naquele momento. Não tinha sequer conseguido resolver meu problema com as lembranças que tinha de A-ya. Eu sentia que ela estava no fundo da minha mente, guardada como um segredo cheio de culpa.
– Zo, tudo bem? Você está com cara de quem precisa dormir. Todos nós precisamos – Heath disse, bocejando.
Pisquei os olhos e dei um sorriso cansado. – É verdade. Quero dormir. Mas primeiro preciso falar com Stark rapidinho.
– Bem rapidinho – irmã Mary Angela me alertou.
Assenti e, sem olhar para Heath, disse:– Hummm, tá bem. Vejo vocês daqui a umas oito horas.
– Boa-noite, filha – irmã Mary Angela me abraçou e sussurrou: – E que Nossa Senhora a abençoe e a proteja.
– Obrigada, irmã – sussurrei também, abraçando-a forte. Quando a soltei, Heath me surpreendeu ao segurar minha mão. Olhei para ele com um ponto de interrogação nos olhos.
– Vou com você até o quarto de Stark – ele disse.
Sentindo-me derrotada, dei de ombros, e fomos descendo o corredor de mãos dadas. Não falamos nada, apenas caminhamos. A mão de Heath era quente e familiar, e caminhei tranquilamente ao seu lado. Eu estava começando a relaxar quando Heath limpou a garganta.
– Ei... Ahn... Quero pedir desculpas pela palhaçada lá fora com o Erik. Foi babaquice. Eu não devia ter deixado ele me provocar – ele tentou se desculpar.
– É isso mesmo, você não devia ter deixado, mas ele sabe ser irritante – respondi.
Heath sorriu. – Diz pra mim. Você vai dar o fora nele de uma vez, não vai?
– Heath, sem chance de eu falar sobre Erik com você.
Ele sorriu mais ainda. Eu revirei os olhos.
– Você não me engana. Eu te conheço. Você não gosta de cara mandão.
– Cala a boca e continue caminhando – ordenei, mas apartei sua mão, e ele fez o mesmo com a minha. Ele tinha razão. Eu não gostava de cara mandão, e ele me conhecia bem, bem demais.
Demos a volta no corredor. Havia uma agradável janela panorâmica com um recanto em frente, com direito a um banco confortável que parecia perfeito para leitura. No peitoril havia uma linda estátua de porcelana de Maria com várias velas votivas queimando ao lado. Heath e eu diminuímos o passo, parando ao lado da janela.
– Muito lindo – eu disse baixinho.
– É, eu nunca prestei muita atenção em Maria. Mas todas essas estátuas dela iluminadas por velas são muito legais de ver. Você concorda com a freira? Será que Maria é Nyx e Nyx é Maria?
– Não faço ideia.
– Nyx não fala com você?
– É, às vezes fala, mas nunca tocamos no assunto “Jesus” – respondi.
– Bem, acho que você devia perguntar na próxima vez.
– Talvez eu pergunte.
Ficamos lá de mãos dadas, observando a dança das chamas amarelas ao redor da estátua brilhante. Eu estava pensando como seria bom se minha Deusa me visitasse em um momento em que eu não estivesse cheia de estresse causado por situações de vida ou morte, quando Heath disse: – Quer dizer que Stark fez Juramento para servi-la como guerreiro.
Eu o observei atentamente à procura de sinais de que estivesse aborrecido ou com ciúme, mas só vi curiosidade em seus olhos azuis.
– É, ele fez sim.
– Dizem que é uma ligação muito especial.
– É sim – respondi.
– É ele o cara que não erra o alvo, não é?
– É.
– Então, ficar com ele ao lado é como ser protegida pelo Exterminador do Futuro?
Depois dessa, eu sorri. – Bem, ele não é tão grande quanto o Arnold, mas acho que a comparação é bem boa.
– Ele também ama você?
Sua pergunta me pegou de surpresa, e eu não soube o que dizer. Como fazia desde que estávamos no ensino fundamental, Heath pareceu saber exatamente o que dizer.
– Apenas me diga a verdade, só isso.
– É, eu acho que ama sim.
– E você o ama?
– Talvez – respondi com relutância. – Mas isso não muda o que sinto por você.
– Mas o que isso significa para nós dois agora?
Foi estranho perceber que suas palavras lembraram a pergunta de Aphrodite sobre como eu me sentia em relação a Kalona depois de vivenciar a lembrança de A-ya. Fiquei perplexa, pois não tinha resposta para nenhuma das duas perguntas. Esfreguei minha cabeça, que já estava começando a latejar na têmpora direita.
– Acho que ficamos Carimbados e irritados.
Heath não disse nada. Só ficou me olhando com aquele sorriso triste que eu conhecia tão bem e que, mais forte do que se houvesse uns dez holofotes piscando entre nós, deixava mais claro como eu o estava magoando. Eu estava ficando arrasada.
– Heath, eu sinto tanto. Eu só... Eu só... – minha voz ficou embargada e tentei de novo. – Eu só não sei o que fazer em relação a um monte de coisas no momento.
– Eu sei – Heath se sentou no banco e levantou os braços para mim. – Zo, vem cá.
Balancei a cabeça. – Heath, eu não posso...
– Eu não vou pedir nada – ele me interrompeu com firmeza. – Vou te dar uma coisa. Vem cá.
Fiquei olhando com cara de quem não estava entendendo nada, e ele suspirou, esticou o braço, segurou minhas mãos e gentilmente puxou para seu colo meu corpo rígido, mas que não ofereceu resistência, e me abraçou. Ele apoiou o rosto no alto da minha cabeça, como sempre fazia depois de crescer, mais ou menos na época do novo ano do fundamental, quando ele ficou maior que eu. Com o rosto apertado na curva entre seu pescoço e seu ombro, senti seu cheiro. Era o cheiro da minha infância, de longas noites de verão sentada no quintal com ele, perto do mata-mosquito, ouvindo música e conversando; de festas depois dos jogos, nas quais eu ficava pendurada no braço dele enquanto montes de garotas (e de garotos também, aliás) falavam entusiasmados dos passes sensacionais de Heath em campo; dos longos beijos de boa-noite e da paixão que senti ao descobrir o amor.
E me dei conta de repente de que, enquanto eu estava envolvida por uma sensação de familiaridade e segurança, também estava relaxando. Dei um suspiro e me aninhei junto a ele.
– Está melhor? – Heath murmurou.
– Tô – respondi. – Heath, eu realmente não sei...
– Não diz nada! – ele apertou os braços em volta de mim e depois aliviou o abraço de novo. – Agora não quero que você se preocupe nem comigo, nem com Erik, nem com esse cara novo. Quero apenas que você se lembre de nós, de como as coisas têm sido entre nós por todos esses anos. Estou aqui com você, Zo. Apesar de toda essa merda que não consigo entender, estou aqui. E nós somos um do outro. Meu sangue que o diga.
– Por quê? – perguntei, ainda nos seus braços. – Por que você ainda está aqui, querendo ficar comigo, mesmo sabendo de Erik e de Stark?
– Porque eu te amo – ele disse simplesmente. – Te amo desde sempre, e vou te amar pelo resto da vida.
Senti lágrimas latejando meus olhos e pisquei com força, tentando não chorar.
– Mas Heath, Stark não vai sumir. E não sei o que vou fazer com Erik.
– Eu sei.
Respirei fundo e disse ao soltar o ar: – E dentro de mim existe uma ligação com Kalona, mesmo eu não querendo.
– Mas você disse não para ele, você colocou o cara pra correr.
– Sim, mas eu... Eu tenho lembranças que estão presas na minha alma, e elas têm tudo a ver com quem eu era em outra vida, e nela eu estava com Kalona.
Ao invés de me fazer zilhões de perguntas ou de se afastar de mim, ele me apertou mais forte. – Vai dar tudo certo – ele disse, soando bastante sincero. – Você vai dar um jeito em tudo isso.
– Não sei como. Nem sei o que fazer com você.
– Não tem que fazer nada comigo. Eu tô com você. E pronto – Heath fez uma pausa e acrescentou rapidamente, como se quisesse fazer as palavras saírem da sua boca: – Se eu tiver que dividir você com os vampiros, vou dividir.
Ainda nos seus braços, levantei a cabeça para olhar para ele.
– Heath, você é ciumento demais para eu acreditar que você aceitaria que eu ficasse com outro cara.
– Não disse que aceito. Claro que não gosto, mas não quero ficar sem você, Zoey.
– Isso é bizarro demais – eu disse.
Ele segurou meu queixo quando tentei desviar o olhar. – É bizarro mesmo. Mas o fato é que, enquanto formos Carimbados, sei que vou ter com você algo que ninguém mais tem. Eu posso te dar algo que nenhum desses grandões candidatos a Drácula pode chegar perto de te oferecer. Posso te dar algo que imortal nenhum pode.
Olhei bem para ele. Seus olhos estavam molhados de lágrimas. Ele pareceu tão mais velho do que seus dezoito anos que quase senti medo. – Não quero fazer você ficar triste. Não quero estragar sua vida.
– Então pare de tentar me afastar de você. Nós somos um do outro.
Tá, eu sei que foi erro meu, mas, em vez de responder que não podíamos dar certo juntos, aninhei-me em seus braços e me deixei abraçar. É, foi egoísmo da minha parte, mas me perdi em Heath e no toque do passado. O jeito que ele me segurava era perfeito. Ele não tentou forçar a barra comigo. Não me agarrou nem ficou se esfregando em mim. Não tentou me apalpar. Sequer pensou em se cortar e me fazer beber seu sangue, o que automaticamente despertaria uma paixão entre nós que nos faria perder o controle. Heath apenas me abraçou gentilmente e murmurou, dizendo como me amava e que tudo ia dar certo. Eu senti seu coração batendo. Senti o sangue encorpado e apetitoso que havia dentro dele, tão quente e tão perto... Mas naquele momento eu precisava mais daquela sensação de familiaridade, do nosso passado em comum e da força de sua compreensão do que de seu sangue Carimbado.
E foi então que Heath Luck, meu namoradinho de infância, se tornou meu consorte de verdade.
7
Stevie Rae
Sentindo-se uma perfeita imbecil, Stevie Rae bateu a porta do convento e saiu na noite gelada. Ela não estava realmente aborrecida com Zoey, nem com aquela freira superlegal, apesar de um pouco biruta.
– Caraca! Detesto ferrar assim com as coisas! – gritou para si mesma. Ela não queria ferrar tudo para valer, mas parecia que estava mergulhando em um monte de merda e afundando quanto mais se mexia.
Zoey não era idiota. Ela sabia que havia algo de errado. Isso era óbvio, mas como podia começar a contar tudo? Havia tanta coisa para explicar. Ele em si já era motivo de muita explicação. Não era sua intenção que isso acontecesse. Menos ainda a parte do Raven Mocker . Caraca! Antes de ela encontrá-lo quase morto, jamais teria considerado possível. Se alguém lhe tivesse avisado antes, ela teria rido e dito “Que nada, isso não vai acontecer”.
Mas era possível, pois havia acontecido. Ele acontecera.
Enquanto perambulava pelo convento silencioso à procura do pentelho do Erik, que era bem capaz de descobrir esse último e mais terrível segredo, e realmente jogar a merda no ventilador, ela tentou entender como diabos havia se enfiado em uma confusão dessas proporções. Por que ela o salvara? Por que não chamara Dallas e os outros para resolver o problema? Até ele tinha sugerido isso antes de desmaiar.
Mas ele havia falado. Soara tão humano. E ela não conseguiu matá-lo.
– Erik! Cadê ele, diabo? Erik, vem cá! – ela deu um tempo em sua batalha interna e gritou noite adentro. Noite? Stevie Rae deu uma olhada para o leste e pôde jurar ter visto o começo do amanhecer se manifestar na escuridão com sua típica cor de ameixa. – Erik! Hora de aparecer para entrar! – ela berrou pela primeira vez. Parou e olhou ao redor do silencioso terreno do convento. Passou os olhos na estufa que fora temporariamente transformada em cocheira para os cavalos que Z. e o resto da gangue haviam cavalgado para fugir da Morada da Noite. Mas não foi bem a estufa que lhe chamou a atenção, e sim o pequeno galpão de aparência inocente ao lado. Ele parecia totalmente normal, apenas uma extensão sem janelas. A porta nem estava trancada. Ela devia saber. Ela havia entrado ali não fazia muito tempo.
– Ei, o que houve? Você viu alguma coisa ali?
– Ah, merda! – Stevie Rae deu um pulo e se virou, com o coração batendo tão forte no peito que quase não conseguiu respirar. – Erik! Você quase me mata de susto! Dá para fazer algum barulho antes de aparecer assim do nada?
– Desculpe, Stevie Rae, mas você estava me chamando.
Ela empurrou uma mecha loura de cabelo para trás da orelha e tentou ignorar o fato de estar com a mão tremendo. Simplesmente Stevie Rae não era boa nesse negócio de ficar espreitando por aí e escondendo as coisas de seus amigos. Mas ela empinou o queixo e forçou seus nervos a se acalmarem, e a forma mais fácil de fazer isso era dar uma boa mordida no pentelho do Erik.
Stevie Rae olhou feio para ele. – É, eu estava te chamando porque era para você estar lá dentro com todo mundo. Que diabo ainda está fazendo aqui, afinal? Você deixou Zoey preocupada, como se ela estivesse precisando de mais motivo para se estressar justamente agora, não é?
– Zoey estava preocupada comigo?
Stevie Rae fez um esforço para não demonstrar sua impaciência com Erik. Ele era tãããão irritante. Comportava-se como se fosse o namorado mais perfeito do mundo em um momento e, no outro, de repente virava um canalha arrogante. Ela tinha que falar com Z. sobre ele. Isto é, se Z. ainda lhe desse ouvidos. As duas não andavam lá muito próximas ultimamente. Segredos demais... Coisas demais entre as duas...
– Stevie Rae! Quer prestar atenção? Você disse que Zoey estava me procurando?
Ela acabou demonstrando sua impaciência. – Você devia estar lá dentro. Heath, Dallas e os outros já estão. Zoey sabe disso. Ela queria saber onde diabos você tinha se enfiado e por que não está onde devia estar.
– Se ela estava preocupada, devia ter vindo pessoalmente.
– Eu não disse que ela estava preocupada! – Stevie Rae explodiu, irritada com o egocentrismo de Erik. – E Z. tem muito mais o que fazer do que ficar bancando sua babá.
– Não preciso de droga de babá nenhuma.
– É mesmo? Então por que tive que vir aqui procurá-lo?
– Sei lá. Eu já estava voltando. Só queria dar uma última olhada no terreno. Achei que seria boa ideia dar uma olhada na parte que Heath ficou de conferir. Você sabe que os humanos não enxergam direito à noite.
– Johnny B não é humano e estava com Heath – Stevie Rae suspirou. – Entre logo. Pegue algo para comer e roupas limpas. Alguma freira vai lhe dizer onde dormir. Vou dar mais uma olhada ao redor antes de o sol sair.
– Se o sol sair – Erik disse, franzindo os olhos para olhar para o céu.
Ela acompanhou seu olhar e, sentindo-se totalmente sem noção, percebeu que estava chovendo de novo, só que a temperatura ainda permanecia entre o congelamento e o degelo, de modo que o céu estava, novamente, cuspindo gelo.
– Essa porcaria de tempo não é do que a gente estava precisando – Stevie Rae murmurou.
– Bem, pelo menos vai ajudar a lavar o sangue daqueles Raven Mockers – Erik respondeu.
Imediatamente, Stevie Rae olhou para a cara dele. Merda! Ela não tinha pensado no sangue! Será que eles tinham seguido a trilha do sangue que adentrava o galpão? Isso sim era deixar um anúncio em letras garrafais dizendo Estou aqui!. Ela viu que Erik estava esperando que ela dissesse alguma coisa.
– É, hummm, você tem razão. Acho que vou jogar um pouco de gelo e galhos quebrados e tal para cobrir o sangue daqueles três pássaros – ela disse com casualidade fingida.
– Deve ser melhor mesmo, para o caso de algum humano aparecer durante o dia. Quer ajuda?
– Não – ela respondeu rápido demais, e então deu de ombros forçadamente. – Com meus superdons de vamp vermelha, vai ser rapidinho. Moleza.
– Bom, então está bem – Erik começou a se afastar, mas hesitou. – Ei, talvez você queira dar uma olhada nas marcas de sangue no limite do bosque perto dos condomínios ao lado e da estrada. A coisa estava feia por lá.
– Ah, tá, eu conheço o lugar. Com certeza.
– Ah! Onde você disse que Zoey estava?
– Ahn, Erik, não me lembro de ter dito nada.
Erik franziu a testa, esperou e, ao ver que ela continuava apenas olhando para ele, finalmente perguntou: – E aí? Onde ela está?
– Da última vez que a vi, estava conversando com Heath e a irmã Mary Angela no corredor em frente ao porão. Mas acho que ela deve ter ido falar com Stark primeiro e agora já deve estar na cama. Ela parecia cansada pra caramba.
– Stark... – Erik murmurou algo incompreensível após o nome do garoto e deu meia-volta, seguindo em direção ao convento.
– Erik! – Stevie Rae gritou, irritada consigo mesma por ter feito a estupidez de tocar nos nomes de Heath e de Stark. Ela esperou que ele olhasse para trás e disse: – Como melhor amiga de Z., vou lhe dar um conselho: ela já passou por coisas demais por hoje para ainda ter que resolver problemas com o namorado. Se ela estiver com Heath, é porque quer ver se ele está bem, não porque está de amorzinho com ele. E o mesmo em relação a Stark.
– E daí? – Erik perguntou, o rosto sem um pingo de expressão.
– E daí que você deve comer alguma coisa, trocar de roupa e cair na cama sem ir atrás dela para encher o saco.
– Ela e eu estamos juntos , Stevie Rae. Que história é essa de dizer que o namorado dela vai “encher o saco” por querer estar com ela?
Stevie Rae segurou o riso. Zoey ia simplesmente acabar com a raça dele. Ela deu de ombros. – Então tá. Foi só um conselho, só isso.
– Tá bom, até mais – Erik deu meia-volta e saiu batendo os pés em direção ao convento.
– Para um cara inteligente, até que ele tem atitudes bem estúpidas – Stevie Rae disse baixinho enquanto o observava se afastar com suas costas amplas. – Claro que minha mãe, se me ouvisse dizer isso, diria que é o roto falando do esfarrapado.
Ela deu um suspiro e olhou com relutância para as latas de lixo parcialmente camufladas perto do estacionamento das freiras. Evitou olhar, pois não queria visualizar a pavorosa imagem dos corpos amassados lá dentro.
– No lixo – ela pronunciou as palavras lentamente, como se tivessem certo peso, e reconheceu para si mesma que o minissermão que ouvira de Zoey e da irmã Mary Angela talvez até tivesse sua razão de ser, mas mesmo assim ainda estava muito contrariada.
Tudo bem que ela havia exagerado, Stevie Rae pensou, mas realmente achara aquela história de jogarem os corpos dos Raven Mockers no lixo o fim da picada, e não era nem só por causa dele. Seus olhos se voltaram para o galpão que ficava ao lado da estufa.
Ela ficara incomodada com o que haviam feito com os corpos dos Raven Mockers porque não acreditava que uma vida tivesse mais valor que outra, nenhum tipo de vida. Era perigoso se achar uma espécie de deus que pode decidir quem merece viver ou não. Stevie Rae entendia disso muito mais do que a freira ou Zoey jamais seriam capazes. Além de sua própria vida, ou, melhor dizendo, sua própria morte ter sido bagunçada por uma Grande Sacerdotisa que começou a se achar uma Deusa encarnada, ela mesma, Stevie Rae, chegou a se achar no direito de interferir na vida dos outros quando precisasse, a seu bel-prazer. Ficava doente só de lembrar que fora flagrada naquele estado de raiva e violência. Ela tinha deixado para trás aquele tempo de Trevas e optara pelo bem, pela luz e pela Deusa, e este era o caminho que ia seguir. E por isso, quando alguém resolvia que a vida não significava nada, fosse a vida que fosse, ela ficava realmente aborrecida.
Ou pelo menos foi isso que Stevie Rae disse a si mesma ao começar a atravessar o terreno do convento, seguindo a direção oposta ao jardim do galpão.
Segura a onda, garota... segura a onda... ela ficou repetindo sem parar enquanto dava a volta rapidamente pelo fosso para entrar no bosque e seguir a trilha de sangue da qual se lembrava tão bem. Encontrou um galho grosso quebrado do qual ainda saía um monte de ramos e o levantou tranquilamente, feliz por ter a força extra que fazia parte de seu novo status de vampira vermelha Transformada. Usando o galho como vassoura, varreu o sangue, parando de vez em quando para jogar outro galho quebrado ou um arbusto inteiro sobre as manchas vermelhas que entregavam tudo.
Seguindo pelo caminho que fizera antes, virou à esquerda, afastando-se da rua e voltando para o gramado das freiras, do outro lado da cerca. Stevie Rae não tinha ido muito longe quando, como da outra vez, encontrou uma enorme mancha de sangue.
Só que desta vez não havia um corpo sobre o sangue.
Cantarolando (Baby) You Save Me, de Kenny Chesney, para tentar se distrair, tratou de apagar logo as manchas de sangue e então seguiu a trilha de pingos que já sabia ia encontrar, chutando gelo e galhos sobre os indícios, pois a trilha de sangue terminava bem no jardinzinho do galpão.
Ela ficou olhando fixo para a porta, suspirou e deu a volta pelo galpão em direção à estufa. A porta estava destrancada e não foi difícil girar a maçaneta. Ela entrou no edifício e parou um pouquinho, procurando respirar fundo e inalar o cheiro de terra e de coisas crescendo que se misturava ao tempero novo de três cavalos que estavam alojados por lá temporariamente. Stevie Rae queria acalmar os sentidos, e o calor daquele lugar era um contraponto ao tempo úmido e gelado que parecia ter lhe penetrado a alma. Mas não se permitiu descansar muito tempo. Não podia. Tinha coisas a resolver, e muito pouco tempo antes do amanhecer. Para um vampiro vermelho nunca era confortável estar desabrigado, exposto e vulnerável durante o dia, mesmo que o sol estivesse sendo tapado pelas nuvens e pelo gelo.
Não levou muito tempo para Stevie Rae encontrar o que precisava. As freiras sem dúvida gostavam de fazer as coisas à moda antiga. Em vez de um sistema moderno de mangueiras, interruptores e coisas metálicas, elas tinham baldes, bacias e regadores com longos bicos perfurados para regar delicadamente os brotos, além de um monte de instrumentos que eram evidentemente muito utilizados e bem cuidados. Stevie Rae encheu um balde com água fresca de uma das muitas torneiras, pegou uma bacia, umas toalhas limpas de uma pilha que achou em uma prateleira usada para guardar luvas de jardinagem e potes e, então, ao sair, parou perto de uma bandeja de musgo que lhe pareceu um carpete grosso e verde.
Ficou parada, mordendo o lábio, indecisa, enquanto sua intuição guerreava com seu lado racional, até que finalmente se rendeu e puxou um fio de musgo. Então, murmurando para si mesma que não sabia como sabia o que sabia , saiu da estufa e voltou para o galpão.
Parou em frente à porta e concentrou sua atenção. Direcionou todo seu instinto de predadora para sentir, farejar, ver alguém, alguma coisa espreitando. Nada. Não havia ninguém do lado de fora. A chuva com neve que estava caindo e o adiantado da hora mantinham todos dentro de casa, aconchegados e aquecidos.
– Todos que têm um mínimo de noção – murmurou para si mesma.
Deu mais uma espiada ao redor, transferiu todas as coisas que estava carregando para uma das mãos e, com a outra livre, tocou a tranca da porta. Tá, tá. Acabe logo com isso. Talvez ele esteja morto e você nem precise lidar com mais este megavacilo da sua parte.
Stevie Rae apertou a tranca e abriu a porta. Torceu o nariz de imediato. Um sopro da simplicidade terrena da estufa, este pequeno prédio que recendia a gás, óleo e bolor, misturava-se ao cheiro de um tipo de sangue errado .
Ela o deixara do outro lado do galpão, atrás do cortador de grama motorizado e das prateleiras onde ficavam materiais como tesouras de jardinagem, fertilizantes e partes de borrifadores. Espiou mais para o fundo e conseguiu perceber uma silhueta escura, mas imóvel. Aguçou os ouvidos e só ouviu o gelo batendo no telhado.
Temendo o momento inevitável em que teria de olhar para ele, Stevie Rae adentrou o galpão contra sua vontade e fechou a porta com firmeza. Passou pelo cortador de grama e pelas prateleiras para chegar perto da criatura que jazia do outro lado do galpão. Ao que parecia, ele não se mexera após ter sido meio que arrastado, carregado e literalmente jogado naquele canto cerca de duas horas antes. Ele estava todo amassado, em posição fetal, sobre o lado esquerdo do corpo. A bala que lhe atravessara o peito furara sua asa e saíra do corpo, destruindo--a completamente. A enorme asa negra estava ensanguentada, acabada e inutilizada. Stevie Rae achou que ele devia ter quebrado um dos tornozelos também, pois estava terrivelmente inchado e, mesmo na escuridão do galpão, dava para ver como estava contundido. Na verdade, seu corpo todo estava bem arrasado, o que não era surpresa. Ele levara um tiro quando estava voando, e os enormes carvalhos que cercavam o terreno do convento retardaram sua queda, impedindo que morresse de imediato, mas ela realmente não sabia a dimensão do estrago. Só sabia que o interior do corpo dele estava tão arrebentado quanto o lado de fora parecia estar. Até onde sabia, ele estava morto. Sem dúvida parecia estar morto. Ela observou seu peito e não teve cem por cento de certeza, mas sua impressão foi a de que não estava respirando. Devia estar morto. Ela continuou olhando, sem vontade de se aproximar e incapaz de dar as costas e ir embora.
Será que estava louca de pedra? Por que não parou para pensar antes de arrastá-lo para lá? Ela olhou fixo para ele. Ele não era humano. Nem mesmo era animal. Deixá-lo morrer não era bancar a toda-poderosa; ele nem devia ter nascido.
Stevie Rae estremeceu. E continuou parada, como que paralisada pelo horror do que fizera. O que seus amigos diriam se descobrissem que ela havia escondido um Raven Mocker ? Será que Zoey romperia com ela? E como os novatos vermelhos reagiriam à presença desta criatura? Como se eles já não tivessem problemas demais com o mal e com as Trevas?
A freira tinha razão. Ele não lhe devia inspirar pena. Ela resolveu levar a toalha e o resto das coisas de volta para a estufa, entrar no convento, chamar Darius e contar que havia um Raven Mocker no galpão. E então deixaria o guerreiro fazer sua parte. Se ele já não estivesse morto, Darius daria um jeito nisso. Na verdade, seria uma forma de acabar com o sofrimento daquele homem-pássaro. Ao tomar a decisão, ela soltou um longo suspiro que não percebera que estava prendendo, e ele abriu os olhos vermelhos para fitar os dela.
– Acabe com isso... – a voz do Raven Mocker estava fraca e cheia de dor, mas era clara, absoluta e inegavelmente humana.
E pronto. Stevie Rae entendeu por que não havia chamado Dallas e os demais ao encontrá-lo. Quando ele lhe pediu que o matasse da outra vez, sua voz era a de um homem de verdade, um homem ferido, abandonado e com medo. Ela não conseguira matá-lo na ocasião e agora não estava conseguindo lhe dar as costas. Aquela voz fazia toda a diferença, pois, mesmo parecendo um ser impossível e improvável, era como a de um cara normal que estava tão desesperado e sentindo tanta dor que esperava que o pior lhe acontecesse.
Não, isso era errado. Ele não só esperava que o pior lhe acontecesse, ele queria que acontecesse. Estava sofrendo horrivelmente e não conseguia enxergar outra saída a não ser a própria morte. Para Stevie Rae, apesar de ele ter culpa por boa parte do próprio sofrimento, isso por outro lado só o tornava muito, muito humano. Ela sabia como era isso. Conhecia bem aquela completa desesperança.
8
Stevie Rae
Stevie Rae controlou seu impulso automático de recuar, pois, com ou sem voz humana, e deixando de lado por enquanto a questão da humanidade que havia nele, a verdade era que se tratava de um enorme homem-pássaro cujo sangue tinha um cheiro totalmente errado. E estava totalmente a sós com ela.
– Olha, eu sei que você está machucado e tudo, por isso não está pensando direito, mas, se eu fosse te matar, não teria te arrastado para cá – ela forçou a voz para que soasse normal e, em vez de se afastar, como desejava, ficou onde estava e fitou aqueles olhos vermelhos frios que pareciam tão bizarramente humanos.
– Por que você não me mata? – as palavras saíram como um sussurro debilitado, mas a noite estava tão silenciosa que Stevie Rae não teve dificuldade para ouvir.
Ela podia fingir não entender o que ele dissera, mas estava cansada de mentiras e evasivas, por isso continuou olhando nos olhos dele e disse a verdade: – Bem, na verdade, isto tem mais a ver comigo do que com você, e é uma história longa e confusa. Acho que não sei direito por que não te mato, mas sei que gosto de fazer as coisas do meu jeito, e garanto que não sou muito fã de sair matando por aí.
Ele a encarou até ela ficar sem graça e disse, enfim: – Pois devia.
Stevie Rae levantou as sobrancelhas. – Eu devia o que, te matar ou fazer as coisas do meu jeito? Você precisa ser mais específico. Ah, e talvez fosse bom ser menos mandão. Você não está em condições de me dizer o que eu devia fazer .
Nitidamente perdendo o que lhe restava de força, ele começou a fechar os olhos, mas as palavras dela o fizeram abrir os olhos de novo. Ela viu algum tipo de emoção mudando a expressão da face dele, mas seu rosto era tão estranho, tão diferente de tudo ou de todos a quem ela estava acostumada que não conseguiu decifrar aquela expressão. Seu bico preto se abriu como se fosse dizer alguma coisa, mas, naquele momento, um tremor lhe sacudiu o corpo. Em vez de falar, ele fechou bem os olhos e soltou um lamento. Foi um som cheio de uma agonia totalmente humana.
Ela se aproximou dele sem pensar. Ele abriu os olhos novamente e, apesar de cheios de dor, concentraram-se nela com aquelas esferas vermelhas. Stevie Rae parou e falou lenta e claramente: – Olha, a parada é a seguinte. Eu trouxe água e umas ataduras para fazer curativo, mas não acho legal ficar te encontrando se você não me der sua palavra de que não vai tentar nada que eu não vá gostar – desta vez Stevie Rae teve certeza de ver surpresa naqueles olhos humanos vermelhos.
– Não consigo me mexer – ele falava com hesitação, deixando claro o esforço que estava fazendo para pronunciar as palavras.
– Quer dizer que você me garante que não vai me morder nem fazer nada que não seja legal?
– Sssssim – a voz do homem-pássaro ficou toda gutural e a palavra foi pronunciada com um sibilo, o que Stevie Rae não achou nada confiável. Mesmo assim, empinou a coluna e assentiu, como se ele não tivesse acabado de soar como uma cobra.
– Bem. Então, tá. Vamos ver o que posso fazer pra você se sentir melhor.
Então, antes que ela pudesse botar um pouco de bom-senso naquela cabeça desmiolada que tinha, foi diretamente até o Raven Mocker . Jogou as toalhas e o musgo no chão ao lado dele e abaixou o balde de água com muito cuidado. Ele era grande mesmo. Ela se esquecera disso. Bem, talvez tivesse na verdade bloqueado sua memória, porque “esquecer” aquele tamanho era bem difícil. Não tinha sido exatamente fácil puxá-lo/carregá-lo para dentro do galpão antes que Erik, Dallas, Heath ou alguém a visse, apesar de tê-lo achado estranhamente leve para o tamanho que tinha.
– Água – a voz dele foi quase um grasnado.
– Ah, é, tá certo! – Stevie Rae deu um pulo e tateou à procura da concha de sopa. A concha caiu no chão e, constrangida e esgotada, ela deixou cair de novo. Teve de pegar, limpar com a toalha, e finalmente mergulhá-la na água. Ela se aproximou dele. Ele se mexeu com movimentos debilitados, sem dúvida tentando levantar um braço, mas gemeu de novo e seu braço continuou pendurado, inútil como sua asa quebrada. Sem parar para pensar no que estava fazendo, Stevie Rae se curvou, levantou os ombros dele gentilmente, empurrou a sua cabeça para trás e levou a concha ao bico. Ele bebeu, sedento.
Quando ele acabou de beber, ela o ajudou a se deitar de novo, mas primeiro ajeitou uma das toalhas debaixo da cabeça dele.
– Bom, não tenho mais nada para limpar você além de água, mas farei o melhor possível. Ah, e eu trouxe umas tiras de musgo. Se eu colocar nas suas feridas, vai ajudar – ela não se deu ao trabalho de explicar que, na verdade, não sabia como sabia que musgo era bom para as feridas dele; essa era apenas mais uma das informações que lhe vinham do nada de vez em quando. Podia não entender nada sobre determinado assunto, mas, de repente, passava a saber como limpar um machucado, por exemplo. Ela queria acreditar que era Nyx lhe sussurrando, como sussurrava para Zoey, mas a verdade era que não tinha certeza se era mesmo a Deusa. – Basta continuar escolhendo o bem ao invés do mal... – ela murmurou para si mesma e começou a rasgar uma toalha em tiras.
O Raven Mocker abriu os olhos e a fitou com cara de quem não estava entendendo nada.
– Ah, não ligue para mim. Eu falo sozinha. Até quando não estou sozinha. É tipo a minha versão própria de terapia – ela fez uma pausa e olhou nos olhos dele. – Isto vai doer. Tipo, vou tentar fazer com cuidado e tal, mas você está bem ferrado.
– Vá em frente – ele disse com aquela voz sussurrada e dolorida que soava humana demais para vir de uma criatura de aparência tão inumana.
– Bem, lá vai – Stevie Rae trabalhou da maneira mais rápida e delicada que pôde. O buraco no peito dele estava terrível. Ela lavou com água e tirou o máximo de galhos e sujeira que pôde. Suas plumas tornavam superesquisito o que ela estava fazendo. Tinha um peito, tinha pele debaixo das plumas, mas era esquisito pra caramba! Ele tinha plumas e debaixo delas Stevie Rae encontrou um montinho peludo e preto, macio como algodão-doce de feira.
Ela olhou para o rosto dele. O homem-pássaro recostou a cabeça no travesseiro improvisado com a toalha. Seus olhos estavam bem fechados, e sua respiração estava ofegante.
– Desculpe, eu sei que isso dói – ela disse, e recebeu como resposta só um resmungo incompreensível que, ironicamente, o tornou mais parecido ainda com um cara. Sério mesmo. Todos sabem que o resmungo é um dos métodos de comunicação mais usados pelos homens. – Bom, acho que já posso colocar o musgo – ela falou mais para acalmar os próprios nervos do que os dele. Arrancou um pedaço de musgo e cuidadosamente o aplicou sobre o ferimento. – Agora que já não está sangrando tanto, nem está tão ruim – ela continuou tagarelando, apesar de ele mal responder. – Olha, vou ter de virar você um pouquinho – Stevie Rae o virou de barriga para baixo para tratar o resto do machucado. Ele enfiou o rosto na toalha e gemeu de novo. Stevie Rae falou rapidamente, odiando ouvir aquele som agoniado. – O buraco aqui nas costas, por onde saiu a bala, é maior, mas não está tão sujo, então não tenho que limpar muito.
Foi preciso mais musgo para cobrir o buraco, mas ela terminou logo. E, então, se voltou para as asas. A esquerda estava bem encolhida. Não parecia ter sido atingida. Mas a direita era outra história. Estava totalmente ferrada, esmagada, ensanguentada e pendurada, inerte, caída para o lado.
– Bem, acho que está na hora de admitir que estou totalmente fora do meu ambiente aqui. Tipo, o ferimento causado pelo tiro era feio, mas pelo menos eu sabia o que fazer com ele. Sabia mais ou menos . Mas sua asa é outra coisa. Não faço a menor ideia de como cuidar dela.
– Amarre-a em mim. Use as tiras de pano – sua voz era sombria. Ele não olhou para ela, ainda estava de olhos bem fechados.
– Tem certeza? Talvez fosse melhor deixar assim.
– Dói menos... se estiver... amarrada – ele disse com dificuldade.
– Caraca... que merda. Então, tá – Stevie Rae começou a rasgar outra toalha em longas tiras, depois as amarrou. – Muito bem. Vou colocar sua asa nas costas mais ou menos na mesma posição da sua outra asa. Certo?
Ele meneou a cabeça uma vez.
Ela respirou fundo, se preparou e pegou a asa. Ele se sacudiu e arfou. Ela soltou a asa e deu um pulo para trás. – Merda! Desculpe! Droga!
Ele apertou os olhos como fendas e levantou a cabeça para fitá-la. Entre um ofego e outro, ele disse: – Faz. Logo.
Ela rangeu os dentes, debruçou-se sobre ele e, tentando ignorar os gemidos de dor, recolocou a asa esmigalhada em uma posição que lembrava vagamente a asa boa. Então, mal parando para respirar, ela disse: – Você vai ter que aguentar firme para eu amarrar a asa.
Stevie Rae sentiu que ele retesou os músculos e levantou o corpo, apoiando-se no braço esquerdo para ficar meio sentado. Seu torso se afastou do chão do galpão para ela rapidamente passar as tiras de toalha por baixo, imobilizando a asa.
– Pronto, consegui.
Ele desmoronou. Seu corpo inteiro tremia.
– Agora vai ser o tornozelo. Acho que também está quebrado.
Ele balançou a cabeça novamente.
Ela rasgou mais tiras de toalha e as amarrou naquele tornozelo, de aparência surpreendentemente humana, do mesmo jeito que se lembrava de ver o instrutor de vôlei amarrar nos seus, na época em que fazia o ensino médio na Henrietta High, cujo time oficial era o Galinhas Guerreiras.
Galinhas Guerreiras? Tá, a mascote oficial de sua cidade natal sempre foi boba, mas só naquele momento Stevie Rae se tocara de que era superengraçado, e teve de morder o lábio para não gargalhar histericamente.
Felizmente se controlou, após respirar e expirar duas vezes, conseguiu perguntar: – Está doendo muito em mais algum lugar?
Ele balançou a cabeça, dizendo que não.
– Bom, então vou parar de mexer, porque acho que já cuidei da pior parte – ele fez que sim com a cabeça, e ela se sentou no chão ao lado dele, enxugando as mãos trêmulas em uma das toalhas que haviam sobrado. E então ficou lá, olhando para ele e pensando que diabo ia fazer agora. – Eu vou te dizer uma coisa – ela falou em voz alta. – Espero nunca mais ter que amarrar outra asa quebrada na droga da minha vida.
Ele abriu os olhos, mas não disse nada.
– Bem, foi totalmente horrível. Essa asa deve doer mais do que um braço ou perna quebrada, não é?
Stevie Rae estava falando de nervoso e não esperava que ele respondesse. E se surpreendeu quando ele disse: – Dói.
– É, foi o que pensei – ela continuou, como se fossem duas pessoas normais tendo uma conversa normal. A voz ainda estava fraca, mas pareceu mais fácil para ele falar, e ela achou que imobilizar sua asa realmente ajudara a diminuir a dor.
– Eu preciso de mais água – ele pediu.
– Ah, claro – ela pegou a concha e ficou satisfeita de ver que suas mãos tinham parado de tremer. Desta vez ele conseguiu se levantar e virar a cabeça sozinho. Ela só teve que derramar a água na boca da criatura, ou bico, ou seja lá qual for o nome certo.
Como já estava em pé, Stevie Rae achou melhor pegar os pedaços ensanguentados de toalha, pensando que seria uma boa ideia deixá-los longe do galpão. O faro dos novatos vermelhos não era tão bom quanto o dela, mas também não era tão subdesenvolvido quanto o dos novatos normais. Ela não queria dar motivo para nenhum deles vir farejar a área. Após uma rápida busca pelo galpão, encontrou sacos de lixo e de grama supergrandes, nos quais enfiou os trapos. Sem parar para pensar muito, pegou três toalhas que não havia usado, abriu-as e cobriu o Raven Mocker o máximo possível.
– Você é a Vermelha?
Stevie Rae deu um pulo ao ouvir sua voz. Seus olhos estavam fechados, e ele ficara tão quieto enquanto ela limpava que achou que estava dormindo, ou talvez desmaiado de cansaço. Mas, agora, aqueles olhos humanos estavam abertos de novo e concentrados nela.
– Não sei o que responder. Eu sou uma vampira vermelha, se é isso que quer saber. A primeira vampira vermelha – ela pensou brevemente em Stark e em suas tatuagens vermelhas completas, o que fazia dele o segundo vampiro vermelho, e imaginou onde ele se encaixaria em seu mundo, mas não ia falar dele para o Raven Mocker de jeito nenhum.
– Você é a Vermelha.
– Bem, então tá, acho que sou.
– Meu pai disse que a Vermelha era poderosa.
– Eu sou poderosa – Stevie Rae disse sem hesitação, e então olhou firmemente para ele e continuou: – Seu pai? Você quer dizer Kalona?
– Sim.
– Você sabe que ele foi embora.
– Eu sei – ele desviou seu olhar. – Eu devia estar com ele.
– Sem ofensa, mas pelo que sei de seu paizinho, acho melhor você estar aqui e ele ter ido embora. Ele não é exatamente um cara legal. Sem contar Neferet, que ficou completamente louca de pedra. Os dois são verdadeiras maçãs podres.
– Você fala demais – o homem-pássaro fez uma careta de dor.
– É, é um hábito que tenho – hábito nervoso. Mas isso ela não disse. – Olha, você precisa descansar. Tenho que ir embora. Além do mais, o sol já começou a subir faz cinco minutos, e isso significa que tenho que ir para dentro. Só estou podendo sair agora porque o céu está cheio de nuvens.
Ela amarrou o saco de lixo para fechá-lo e pôs o balde de água com a concha perto dele, isto é, se ele conseguisse pegar alguma coisa.
– Então, tchau. Eu vou embora, ahn, até mais – ela começou a se afastar às pressas, mas parou ao ouvir a voz dele.
– O que você vai fazer comigo?
– Ainda não sei – Stevie Rae suspirou, irritada, cutucando as unhas umas nas outras de nervoso. – Olha, acho que você está seguro aqui pelo menos por um dia. O tempo não vai melhorar e as freiras não aparecerão por aqui. Todos os novatos provavelmente ficarão lá dentro até o sol se pôr. Até lá devo saber o que fazer com você.
– Ainda não entendi por que você não conta aos outros sobre mim.
– É. Bem, então somos dois. Tente descansar. Eu volto.
Ela estava com a mão no trinco da porta quando ele falou de novo: – Meu nome é Rephaim.
Stevie Rae olhou para trás e sorriu para ele.
– Oi. O meu é Stevie Rae. Prazer em conhecer, Rephaim.
Rephaim observou a Vermelha sair do galpão. Contou cem inspirações depois que ela fechou a porta e então começou a virar o corpo até se forçar a ficar sentado. Agora que estava totalmente consciente, queria avaliar seus ferimentos.
Seu tornozelo não se quebrara. Estava doendo, mas dava para mexer. As costelas estavam machucadas, mas pelo jeito não havia nenhuma quebrada. O ferimento à bala no peito era sério, mas a Vermelha limpara o ferimento e o cobrira com musgo. Se não infeccionasse e apodrecesse, ia ficar bom. Ele conseguia mexer o braço direito, apesar de ser difícil, e se sentiu estranhamente duro e fraco.
Enfim, passou a se concentrar na asa. Rephaim fechou os olhos e sondou mentalmente o próprio corpo, procurando sentir os tendões, ligamentos, músculos e ossos, as costas e a ponta da asa quebrada. Ele arfou, quase sem conseguir respirar, e sentiu o real tamanho do estrago causado pela bala e pela terrível queda que sofrera. Jamais seria capaz de voar novamente.
Dar-se conta da realidade foi tão horrível que sua mente se recusou a pensar naquilo, então resolveu pensar na Vermelha e tentar se lembrar de tudo que seu pai lhe dissera sobre seus poderes. Talvez se lembrasse de alguma coisa que explicasse o comportamento incomum dela. Por que não o matara? Talvez ainda fosse matá-lo, ou talvez, ao menos, contar aos amigos que ele estava lá.
Se fosse o caso, paciência. Sua vida estava acabada, pelo menos aquela à qual estava acostumado. Ele preferia morrer lutando contra qualquer um que tentasse mantê-lo cativo.
Mas não parecia que ela o estivesse aprisionando. Ele pensou bem, forçando a mente a funcionar em meio a tanta dor, exaustão e desespero. Stevie Rae . Foi o nome que ela dissera. Por que iria querer salvá-lo senão para aprisioná-lo e usá-lo? Tortura. Fazia sentido querer mantê-lo vivo para que ela e seus aliados pudessem forçá-lo a contar o que sabia sobre seu pai. Que outra razão ela teria para não matá-lo? Ele teria feito a mesma coisa se tivesse tido a sorte de encontrá-la na situação em que ele estava.
Eles vão descobrir que o filho de um imortal não é facilmente derrubado, ele pensou.
Superestressado e com suas reservas de força esgotadas, Rephaim desmoronou. Ele tentou ficar em uma posição que aliviasse a agonia que arrasava seu corpo cada vez que respirava, mas era impossível. Só o tempo poderia aliviar sua dor física. Mas nada seria capaz de aliviar a dor que sentia no fundo da alma por nunca mais poder voar. Nunca mais ser inteiro.
Ela devia ter me matado , ele pensou. Talvez eu consiga convencê--la se da próxima vez ela voltar sozinha. E, se voltar com seus aliados e tentar me torturar para me fazer revelar segredos sobre meu pai, não serei só eu quem vai sentir dor.
Pai? Onde o senhor está? Por que me abandonou?
Esse foi o último pensamento de Rephaim antes de ficar inconsciente e dormir.
9
Zoey
– Ei, lembre-se de que você prometeu à freira que ia para a cama. E tenho certeza de que isso não significa ir para a cama dele – Heath apontou com o queixo a porta do quarto de Stark.
Olhei para Heath levantando as sobrancelhas.
Ele suspirou. – Eu disse que dividiria você com esses vampiros idiotas se fosse preciso, mas não disse que ia gostar disso.
Balancei a cabeça. – Você não está me dividindo com ninguém esta noite. Eu só vou ver se Stark está bem, depois vou dormir na minha cama. Sozinha. Sem mais ninguém. Entendeu?
– Entendi – ele sorriu e me deu um beijinho leve. – Até mais, Zo.
– Até mais, Heath.
Fiquei olhando enquanto ele andava pelo corredor. Ele era alto e musculoso, e parecia mesmo um zagueiro dos bons. Estava pronto para receber sua bolsa integral na Universidade de Oklahoma no próximo ano, e então, depois de terminar a faculdade, ia ser policial ou bombeiro. Qualquer que fosse sua escolha, uma coisa era certa, Heath ia ser um cara do bem.
Mas será que poderia fazer tudo isso, será que ia fazer tudo isso, e também ser consorte de uma vampira Grande Sacerdotisa?
Sim. Mil vezes sim. Eu vou me certificar de que Heath tenha o futuro que sonhou e planejou desde que éramos crianças. Claro que algumas partes serão diferentes. Nenhum de nós tinha planejado esta história de vampiros. Algumas partes serão difíceis. Tipo, bem, toda a história de vampiros em si. Mas a verdade é que gosto demais de Heath para forçá-lo a sair da minha vida, e também gosto demais dele para estragar sua vida. E, sendo assim, vamos ter que arrumar um jeito de dar certo. Ponto final. Fim.
– Você vai entrar, ou vai ficar aí fora estressando?
– Caraca, Aphrodite! Dá para parar de aparecer de fininho e quase me matar de susto?
– Não tem ninguém aparecendo de fininho, e “caraca” é o que, palavrão? Porque, se for, acho que vou ter que ligar para a Patrulha da Boca Suja e pedir sua prisão – Darius veio atrás de Aphrodite no corredor e olhou para ela como quem diz comporte-se , o que a fez suspirar e dizer: – Então, Stark não morreu ainda.
– Deus, grata pela notícia. Você acaba de me fazer sentir tão melhor – eu disse sarcasticamente.
– Não enche meu saco, tô tentando ser legal.
Voltei minha atenção para o único adulto responsável na área e perguntei a Darius: – Ele está precisando de alguma coisa?
O guerreiro hesitou por um breve instante, mas foi um instante que captei. Então ele respondeu: – Não. Ele está bem. Acredito que vá se recuperar completamente.
– Bem... – respondi, imaginando que diabo estaria realmente acontecendo. Será que Stark estava mais machucado do que Darius estava dizendo? – Vou dar uma olhadinha bem rápida nele e depois vou dormir – arqueei uma sobrancelha para Aphrodite. – Você e eu somos colegas de quarto. Darius está com Damien e Jack. Ahn, isso significa que você não vai dormir com ele porque as freiras iam surtar. Você tá ligada, né?
– Ah. Não. Mas você nem precisava me passar esse sermão de boa samaritana! Até parece que não sei me comportar decentemente. Você se esquece de que meus pais são praticamente donos de Tulsa? Meu. Pai. É. Prefeito. Não acredito que tenho de aguentar esta merda! – Darius e eu ficamos olhando, sem palavras, enquanto Aphrodite dava um piti de proporções históricas. – Eu ouvi o que a droga da freira disse. Além do mais, este convento não é exatamente romântico. Até parece que quero fazer um sexo gostoso enquanto os pinguins ficam se benzendo e rezando. Eca. É ruim. Deusa! Acho que vou derreter se ficar muito tempo aqui.
Quando ela fez uma pausa para respirar, eu falei: – Não quis dizer que acho que você não saiba se comportar. Só queria que não se esquecesse, só isso.
– É mesmo? Dane-se. Você mente mal demais, Z. – ela foi para perto de Darius e o beijou na boca com vontade. – Até outra hora, paixão. Vou sentir sua falta na minha cama – ela me deu um olhar de repulsa. – Dê boa-noite ao namorado número três e entre logo no nosso quarto. Não gosto que me acordem depois que me recolho – Aphrodite virou a cabeça, jogando para trás os longos e lindos cabelos louros, e foi saindo.
– Ela é realmente incrível – Darius disse, olhando para ela romanticamente.
– Se você acha incrível um “pé no saco”, então concordo com você – levantei a mão, abortando seu comentário “ela não é tão má assim” antes que ele o fizesse. – Não quero falar sobre sua namorada no momento. Só quero saber como Stark realmente está.
– Stark está ficando bom.
O vazio no fim da frase foi quase palpável. Lancei um olhar desconfiado para o guerreiro. – Mas...
– Mas nada. Stark está ficando bom.
– Por que tenho a impressão de que está faltando alguma coisa?
Darius esperou um segundo e então deu um sorriso um pouco acanhado. – Talvez porque a senhorita seja intuitiva o bastante para sentir que a coisa não acaba por aí.
– Bem, e o que é, então?
– É questão de energia, de espírito e de sangue. Ou melhor, de Stark precisar dessas coisas.
Pisquei os olhos umas duas vezes, tentando entender exatamente o que Darius estava dizendo. Suguei o ar entre os dentes, com a pulga atrás da orelha, sentindo-me uma completa idiota por não ter entendido antes.
– Ele foi ferido, como eu fui também, e ele precisa de sangue para ficar bom, como eu precisei. Bem, por que você não me disse nada antes? Droga! – fiquei tagarelando enquanto minha mente dava voltas. – Eu não gostaria muito que ele mordesse Aphrodite, mas...
– Não! – Darius interrompeu, parecendo bastante aborrecido só de pensar em Stark bebendo o sangue de sua namorada. – O fato de Aphrodite ser Carimbada com Stevie Rae torna seu sangue repulsivo para outros vampiros.
– Caraca! Vamos arrumar um saquinho de sangue ou, sei lá, tentar arrumar um humano que ele possa morder... – minha voz foi sumindo. Eu odiava, odiava pensar em Stark bebendo o sangue de alguém. Tipo, já tive que lidar com suas mordidas por fora antes de ele jurar servir como meu guerreiro e passar pela Transformação. Eu esperava que seus dias de morder outras garotas tivessem passado. Ainda espero! Mas não vou ser egoísta a ponto de impedir que ele faça o que precisa fazer para ficar curado.
– Eu já dei a ele um pouco do sangue que as irmãs tinham na enfermaria. Ele não corre risco de vida. Vai se recuperar.
– Mas... – estava ficando irritada com aquelas frases de Darius, todas parecendo faltar alguma coisa.
– Mas quando um guerreiro faz o voto de servir a uma Grande Sacerdotisa, cria-se uma ligação especial entre eles.
– É, eu já sei disso.
– Essa ligação vai além do Juramento. Desde tempos imemoriais, Nyx vem abençoando suas Grandes Sacerdotisas e os guerreiros que as servem. A senhorita e ele estão ligados um ao outro pela bênção da Deusa. E isso faz com que ele tenha conhecimento intuitivo sobre a senhorita, o que torna mais fácil protegê-la.
– Conhecimento intuitivo? Você quer dizer como uma Carimbagem? – Deusa! Quer dizer que eu era Carimbada com dois caras?
– Uma Carimbagem e um Elo de Guerreiro têm semelhanças. Ambos ligam duas pessoas. Mas uma Carimbagem é uma conexão de tipo mais rude.
– Mais rude? Como assim?
– Quero dizer que, apesar de Carimbagens acontecerem com frequência entre um vampiro e um ser humano por quem ele ou ela nutra sentimentos profundos, é uma conexão que se origina no sangue, governada por nossas emoções mais básicas: paixão, luxúria, desejo, fome, dor – ele hesitou, obviamente tentando escolher as palavras cuidadosamente. – Você sentiu essas coisas pelo seu consorte, não foi?
Sentindo as bochechas esquentarem, balancei a cabeça rapidamente.
– Compare esse elo com o de Juramento que a senhorita tem com Stark.
– Bem, não faz muito tempo que temos este elo. Eu realmente não sei muita coisa sobre isso – mas, já ao dizer aquelas palavras, dei-me conta de que já sabia que a conexão que tinha com Stark ia além de querer beber seu sangue. Na verdade, nem pensei em beber dele ou vice-versa.
– À medida que seu guerreiro continuar a servi-la, a senhorita entenderá melhor o elo que tem com ele. Seu laço com o guerreiro implica ele poder desenvolver a capacidade de sentir muitas das emoções que a senhorita sente. Por exemplo, se uma Grande Sacerdotisa é ameaçada de repente, o guerreiro a ela devotado pode sentir seu medo e seguir a trilha emocional que leva à sua Sacerdotisa, para que possa protegê-la de qualquer ameaça.
– Eu... Eu não sabia disso – gaguejei de nervoso.
Darius deu um sorriso triste. – Detesto dar uma de Damien, mas a senhorita realmente precisa arrumar um tempinho para ler seu Manual do Novato .
– É, isso está no topo da minha lista de prioridades assim que meu mundo parar de explodir. Bem, Stark pode saber se eu sentir medo. E o que isso tem a ver com o fato de ele estar ferido?
– Sua conexão não se resume à mera possibilidade de ele sentir seu medo. É também questão de energia e espírito. Seu guerreiro pode acabar sentindo várias de suas emoções mais fortes, especialmente à medida que seu tempo de serviço for aumentando.
A lembrança da intensa experiência emocional que compartilhei com A-ya enquanto ela aprisionava Kalona fez meu estômago dar um nó com a explicação de Darius.
– Continue.
– O guerreiro pode absorver as emoções de sua Sacerdotisa. E também pode absorver o espírito dela, especialmente se sua Sacerdotisa tiver afinidade forte. Muitas vezes ele consegue alcançar essa afinidade.
– Que diabo quer dizer isso, Darius?
– Quer dizer que ele pode literalmente absorver energia através do seu sangue.
– Está querendo dizer que Stark tem que me morder? – tá, admito que meu coração disparou só de pensar. Sério mesmo. Eu já era superatraída por Stark e sabia que trocar sangue com ele seria uma experiência quente.
E também ia deixar Heath arrasado. E tinha mais. E se depois de beber meu sangue Stark entrasse na minha mente e visse o que se passava em relação às minhas memórias de A-ya? Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Então me ocorreu outra ideia.
– Ei, espere aí. Você disse que Stark não podia morder Aphrodite porque ela é Carimbada com outra pessoa e os outros vamps não iam querer seu sangue. Eu sou Carimbada com Heath. Isso não deixa meu sangue estragado para Stark?
Darius balançou a cabeça. – Não, a Carimbagem só muda o sangue humano.
– Então, meu sangue serve para Stark?
– Sim, seu sangue com certeza o ajudaria a se recuperar, e ele sabe disso, razão pela qual estou tentando lhe explicar tudo isso – Darius continuou como se eu não estivesse tendo um minicolapso emocional bem na frente dele. – E a senhorita também precisa saber que ele se nega a beber do seu sangue.
– O quê? Ele se recusa a beber do meu sangue? – tá, certo, um segundo atrás eu estava preocupada com o que poderia acontecer se Stark me mordesse, mas isso não significa que quisesse ser rejeitada por ele!
– Ele sabe que a senhorita acabou de se recuperar de um ataque de Raven Mocker . A criatura quase a matou, Zoey. Stark não quer fazer nada que vá enfraquecê-la. Se ele beber seu sangue, não estará apenas absorvendo seu sangue, mas lhe tirando energia e espírito. Inclua aí também que ninguém sabe para onde foram Kalona e Neferet, e isso significa que não sabemos quando a senhorita terá de encontrá-los outra vez. Concordo com a decisão dele de se recusar a beber. A senhorita precisa recuperar totalmente suas forças.
– E o meu guerreiro também – rebati.
Darius suspirou e assentiu lentamente com a cabeça. – Concordo, mas ele pode ser substituído. A senhorita não.
– Ele não pode ser substituído! – respondi sem pensar.
– Não quero soar frio, mas a senhorita precisa ser sábia em todas as suas decisões.
– Stark não pode ser substituído – repeti teimosamente.
– Como quiser, Sacerdotisa – Darius abaixou levemente a cabeça e depois, de repente, mudou de assunto. – Agora que a senhorita entende as implicações de um Juramento de Guerreiro, gostaria de pedir sua permissão para me oferecer em Juramento formal.
Engoli em seco.
– Bem, Darius, eu gosto mesmo de você, e reconheço que tem cuidado de mim bem demais, mas acho que me sentiria meio esquisita de ter dois caras me servindo sob Juramento – como se eu já não tivesse problemas demais com homens.
Darius sorriu prontamente. Ele balançou a cabeça, e tive a clara impressão de que estava tentando não rir de mim.
– A senhorita não entendeu. Eu ficarei ao seu lado e liderarei todos os que fizerem sua guarda, mas gostaria de oferecer meu Juramento de Guerreiro a Aphrodite. É para isso que estou lhe pedindo permissão.
– Você quer se ligar a Aphrodite?
– Quero. Sei que não é normal um vampiro guerreiro se oferecer em Juramento a uma humana, mas Aphrodite não é uma humana normal.
– Eu sei bem disso – murmurei. E ele continuou como se eu não tivesse falado nada.
– Ela é uma verdadeira profetiza, o que a coloca na mesma categoria de uma Grande Sacerdotisa de Nyx.
– O fato de ela ser Carimbada com Stevie Rae não vai interferir no elo de vocês dois?
Darius deu de ombros. – Veremos. Estou disposto a arriscar.
– Você a ama, não é?
Ele olhou bem nos meus olhos e deu um sorriso caloroso. – Amo.
– Ela é uma mala sem alça.
– Ela é peculiar – ele rebateu. – E precisa de minha proteção, especialmente em dias vindouros.
– Bem, nisso você tem razão – dei de ombros. – Tá bem, você tem minha permissão. Mas, depois, não diga que não lhe avisei que ela é uma mala sem alça.
– Jamais me passaria pela cabeça. Obrigado, Sacerdotisa. Por favor, não diga nada a Aphrodite. Eu gostaria de me oferecer em Juramento em particular.
– Meus lábios estão totalmente selados – fiz uma pequena pantomima de fechar um zíper em meus lábios e jogar a chave fora.
– Então lhe dou boa-noite – Darius levou a mão ao coração, curvou-se e saiu.
10
Zoey
Eu fiquei no corredor, tentando organizar a loucura em que meus pensamentos tinham se transformado.
Uau! Darius ia pedir a Aphrodite para aceitar seu Juramento de Guerreiro. Nossa mãe. Um vampiro guerreiro e uma humana profetiza da Deusa. Ahn. Quem diria?
Detalhe igualmente bizarro: Stark podia sentir minhas emoções caso fossem fortes. Bem, eu tinha uma forte sensação de que isso seria inconveniente. E depois me dei conta de que estava tendo sentimentos fortes em relação a sentir vividamente as coisas e tentei parar com tudo, o que só me estressou, e ele provavelmente sentiu isso. Sem dúvida, ia acabar ficando doida.
Contendo um suspiro, abri a porta sem fazer barulho. A única luz que havia vinha de uma das enormes velas votivas, daquelas que só se acha naquelas lojas com imagens religiosas megabizarras. Essa vela não era tão estranha. Era cor-de-rosa, tinha uma linda imagem de Maria e cheirava a rosas.
Fui até a cabeceira de Stark, pé ante pé. Ele não parecia nada bem, mas não estava tão pálido e tão horrível como havia estado pouco tempo atrás. Ele parecia adormecido, pelo menos seus olhos estavam fechados, sua respiração estava regular e parecia relaxado. Ele estava sem camisa, com o lençol de hospital enfiado debaixo de seus braços, dando pra ver a borda de uma cobertura branca que deveria ser uma enorme atadura cobrindo-lhe o peito. Lembrei-me de como estava terrível a queimadura e pensei se, mesmo considerando as possíveis consequências, devia fazer um corte em meu braço como Heath fizera por mim e enfiar na sua boca. Ele provavelmente agarraria o braço sem pensar e beberia o que precisava para ficar bom. Mas será que ele ficaria bravo quando se desse conta do meu gesto? Provavelmente. Eu sabia que Heath e Erik ficariam, com certeza.
Droga. Erik. Eu não havia nem começado a encarar a situação com ele ainda.
– Pare de se estressar.
Dei um pulo e meu olhar instantaneamente se voltou para o rosto de Stark. Ele não estava mais de olhos fechados. E me olhava com uma expressão entre divertido e sarcástico.
– Pare de ficar xeretando mentalmente.
– Não estava xeretando. Foi quando você mordeu o lábio que percebi que estava estressada. Bem, acho que Darius já conversou com você.
– Já, sim. Você sabia de tudo que acontece como consequência do Juramento de Guerreiro antes de se oferecer?
– A maioria das coisas, sim. Quer dizer, estudei isso na escola, na aula de Sociologia Vamp no ano passado. Mas na prática é diferente.
– Você pode realmente sentir o que eu sinto? – perguntei com hesitação, quase com tanto medo de saber a verdade quanto de não saber.
– Estou começando a sentir, mas não é tipo escutar seus pensamentos nem nenhuma doideira do tipo. Só sinto as coisas às vezes, e sei que elas não vêm de mim. Quando começou a acontecer, ignorei, mas depois me dei conta do que estava acontecendo e prestei mais atenção – Stark começou a sorrir.
– Stark, tenho que dizer que continuo me sentindo espionada.
Ele fez uma cara bem séria. – Não estou te espionando. A coisa não é tipo eu ficar te seguindo com a mente. Não vou invadir sua privacidade; vou cuidar da sua segurança. Achei que você... – ele desviou o olhar sem completar o que ia dizer. – Deixa pra lá. Não é nada importante. Você só devia saber que não vou usar esta coisa entre nós dois pra ficar te perseguindo mentalmente feito um doente.
– Você pensou que eu o quê? Termine o que começou a falar.
Ele soltou um longo e exasperado suspiro e me olhou nos olhos outra vez. – O que comecei a dizer era que pensei que você confiava um pouco mais em mim. Essa é uma das razões pelas quais decidi me oferecer em Juramento para você, já que havia confiado em mim numa hora em que ninguém mais confiou.
– Eu confio em você – eu disse rapidamente.
– Mas acha que eu ia ficar te espionando? Não combina...
Da maneira que ele colocou as coisas, entendi seu ponto de vista, o que fez parte do meu surto inicial perder força. – Eu não acho que você fez de propósito, mas se minhas emoções ficarem muito na cara, ou sei lá, seria fácil para você, bem... – não completei, irritada com o desconforto daquela conversa.
– Espiar ? – ele terminou para mim. – Não. Não vou. Digamos assim: vou prestar atenção no seu lado mental e espiritual e quando sentir medo. Fora isso, vou ignorar o que você sente – ele me olhou nos olhos e percebi que estava magoado. Droga! Não tive intenção de magoá-lo.
– Você vai ignorar tudo que sinto? – perguntei baixinho.
Ele fez que sim com a cabeça, e uma cara de dor por causa do movimento, mas sua voz saiu firme. – Tudo, menos o que precisar saber para cuidar de sua segurança.
Sem dizer nada, estiquei o braço lentamente e segurei sua mão. Ele não a tirou, mas também não disse nada.
– Olha, comecei esta conversa da forma errada. Eu confio em você. Só fiquei surpresa quando Darius me contou todo esse negócio de você saber o que sinto.
– Ficou surpresa? – os lábios de Stark se levantaram em um quase sorriso.
– Tá, talvez completamente surtada seja mais o caso. É que tem um monte de coisas rolando na minha vida, e acho que tô estressada.
– Tá estressada, com certeza – ele respondeu. – E monte de coisas quer dizer aqueles dois caras, Heath e Erik?
– Infelizmente, sim – respondi num sussurro.
Ele entrelaçou os dedos aos meus. – Esses caras não mudam nada. Meu Juramento nos conecta.
Por um segundo, ele falou de um jeito tão parecido com Heath que tive que me esforçar para não ficar irritada de novo.
– Não estou a fim de conversar sobre eles dois com você agora – nem nunca, eu pensei, mas não disse.
– Tô ligado. Também não tô a fim de conversar sobre esses manés – ele puxou minha mão. – Por que você não senta ao meu lado um pouquinho?
Eu me sentei cuidadosamente na beira da cama para não balançar o colchão nem machucá-lo.
– Não vou quebrar – ele disse, dando aquele seu sorriso metido.
– Você quase quebrou – respondi.
– Que nada, você me salvou. E vou ficar bom.
– E então, está doendo muito?
– Já me senti melhor antes. Mas aquele creme que as freiras deram para Darius passar na queimadura até que ajudou. Tirando a sensação de aperto no peito, praticamente não sinto nada – mas ao falar ele se remexeu, parecendo desconfortável. – E como estão as coisas lá fora? – Stark perguntou, mudando de assunto de repente antes que eu pudesse perguntar mais sobre como estava se sentindo. – Todos os Raven Mockers foram embora com Kalona?
– Acho que sim. Stevie Rae e os garotos acharam três deles mortos – fiz uma pausa, recordando a estranha reação de Stevie Rae quando Dallas disse que tinha colocado os corpos no lixo.
– Que foi?
– Não sei exatamente – respondi sinceramente. – Tem umas coisas acontecendo com Stevie Rae que estão me deixando preocupada.
– Tipo? – ele me estimulou a falar.
Olhei para nossas mãos entrelaçadas. Até onde podia me abrir? Será que eu realmente podia conversar com ele?
– Eu sou seu guerreiro. Você pode me confiar sua vida. Isso significa que também pode me contar seus segredos – novamente olhei nos seus olhos, e ele continuou, sorrindo docemente para mim. – Nós temos um Elo de Juramento. É uma ligação mais forte do que aquela entre Carimbados ou mesmo entre casais. Jamais a trairei, Zoey. Jamais. Você pode contar comigo.
Por um instante, me deu vontade de lhe contar tudo sobre minha memória de A-ya, mas, em vez disso, eu disse, sem pensar: – Acho que Stevie Rae está escondendo novatos vermelhos. E acho que eles são do mal.
O sorriso tranquilo de Stark se desfez e ele começou a se sentar, depois respirou de forma incisiva e ficou totalmente branco.
– Não! Você não pode se levantar! – pressionei seus ombros gentilmente para baixo.
– Você tem que contar para Darius – Stark me disse entredentes.
– Tenho que conversar com Stevie Rae primeiro.
– Não acho que seja...
– Sério mesmo! Tenho que conversar com Stevie Rae primeiro – segurei sua mão outra vez, tentando, com o toque, fazê-lo entender. – Ela é minha melhor amiga.
– Você confia nela?
– Eu quero confiar. E tenho confiado – meus ombros murcharam. – Mas se não falar a verdade quando eu conversar com ela, vou procurar Darius.
– Preciso sair desta droga de cama para impedir que sejamos cercados por inimigos!
– Eu não estou cercada de inimigos! Stevie Rae não é minha inimiga – e enviei uma prece em silêncio para Nyx, pedindo para que eu estivesse certa. – Olha, já escondi coisas dos meus amigos antes. Coisas ruins – arqueei uma das sobrancelhas e dei aquele olhar para ele. – Escondi você dos meus amigos.
Ele sorriu. – Bem, isso é diferente.
Não deixei que ele me tirasse do sério. – Não, na verdade, não é não.
– Tá bem, estou ouvindo o que você está dizendo, mas não concordo. Acho que não tenho chance de convencê-la a trazer Stevie Rae aqui quando for conversar com ela, não é?
Inclinei a testa na sua direção. – Bem pouco provável.
– Então me prometa que tomará cuidado e que não vai conversar com ela sozinha em nenhum lugar afastado.
– Ela jamais me agrediria!
– Na verdade, acho que ela não a agrediria, pois você controla os cinco elementos, enquanto ela, um só. Mas você não sabe que tipo de poderes têm esses novatos patifes que ela está escondendo e nem quantos são. E eu entendo de novatos vermelhos patifes. Por isso, prometa que vai tomar cuidado.
– Tá, tudo bem. Prometo.
– Ótimo – ele relaxou um pouco e voltou a se recostar no travesseiro.
– Ei, não quero que se preocupe comigo agora. Você precisa se concentrar em melhorar – respirei fundo para ganhar forças e continuei: – Acho que é melhor você beber do meu sangue.
– Não.
– Escuta, você quer poder me proteger, não é?
– É – ele respondeu, concordando contidamente.
– Então você tem que melhorar o mais rápido possível. Certo?
– Certo.
– E você vai melhorar mais rápido se beber do meu sangue. Então, o lógico é você beber logo.
– Você se olhou no espelho ultimamente? – ele me perguntou bruscamente.
– Ahn?
– Você faz alguma ideia de como parece esgotada?
Senti meu rosto esquentar. – Realmente não tenho tido tempo ultimamente de me preocupar com coisas como maquiagem e penteado – respondi na defensiva.
– Não estou falando de maquiagem nem de cabelo. E, sim, que você está pálida demais. Está com bolsas enormes debaixo dos olhos – ele olhou para o ponto onde estava a enorme cicatriz em meu peito, debaixo da camiseta, de um ombro ao outro. – Como está o corte?
– Bem – com a mão livre puxei a camiseta para cima, mesmo sabendo que não estava expondo a cicatriz.
– Ei – ele disse gentilmente. – Já vi, esqueceu?
Olhei nos seus olhos. Não, eu não tinha esquecido. Na verdade, ele não tinha visto só a cicatriz, ele tinha me visto nua. Todinha. Pronto, agora minha cara inteira esquentou.
– Não estou falando para você ficar com vergonha. Só tô tentando fazê-la se lembrar de que você também quase morreu. Nós precisamos de você forte e bem, Zoey. Eu preciso que fique forte e bem. E é por isso que não vou lhe tirar nada agora.
– Mas eu também preciso que você fique forte e bem.
– Eu vou ficar bem. Olha, não se preocupe comigo. Pelo jeito, é praticamente impossível me matar – Stark deu seu lindo sorriso metidinho.
– Lembre-se do meu nível de estresse. Praticamente impossível não é o mesmo que impossível.
– Vou tentar me lembrar disso – ele puxou minha mão. – Deite aqui do meu lado um pouquinho. Eu gosto quando você fica perto.
– Tem certeza de que não vou te machucar?
– Tenho quase certeza de que você vai me machucar – ele sorriu, dando um tom jocoso às palavras. – Mas, mesmo assim, quero que fique perto. Vem pra cá.
Deixei ele me puxar para deitar ao seu lado. Aninhei minha cabeça cuidadosamente no seu ombro e olhei em seus olhos. Ele colocou um braço sobre meu corpo, me puxando mais para perto dele.
– Eu disse que não vou quebrar. Agora relaxe.
Suspirei e tentei relaxar. Levei meu braço à cintura dele, tomando cuidado para não sacudir seu corpo nem tocar seu peito. Stark fechou os olhos, e vi seu rosto mudar de tenso e pálido para relaxado e pálido à medida que respirava mais fundo. Juro que ele caiu no sono em menos de um minuto.
Era exatamente o que eu queria que ele fizesse. Respirei fundo três vezes, limpando os pulmões, me concentrei e sussurrei: – Espírito, venha para mim.
No mesmo instante percebi aquela comichão familiar dentro de mim, sentindo algo de inacreditavelmente mágico enquanto minha alma assimilava o quinto elemento, o espírito.
– Agora, bem devagar e com cuidado, delicadamente, vá até Stark. Ajude-o. Preencha-o. Fortaleça-o, mas não o acorde – falei baixinho, torcendo para ele continuar dormindo. Quando o espírito saiu de mim, senti o corpo de Stark enrijecer por um momento, depois ele tremeu e então soltou um longo, profundo e sonolento suspiro quando o espírito lhe trouxe um pouco de alívio e, tomara, de força também.
Fiquei observando mais um pouquinho; depois, lentamente, me soltei de Stark e, pedindo ao espírito com um sussurro para ficar com ele enquanto dormia, saí do quarto nas pontas dos pés, fechando a porta gentilmente.
Só tinha dado uns dois passos quando me dei conta de que não fazia a menor ideia de onde ir. Parei e senti os ombros murchando. Uma freira, que estava caminhando de olhos baixos apressada atrás de mim, parou ao meu lado e então nossos olhares se encontraram.
– Irmã Bianca? – ela me pareceu conhecida.
– Ah, Zoey, sim, sou eu. O corredor está tão escuro que quase não a vi.
– Irmã, acho que me perdi. A senhora pode me dizer onde fica meu quarto?
Ela deu um sorriso gentil, e me lembrei da irmã Mary Angela, apesar de ela não ser tão velha quanto a irmã Bianca.
– Siga o corredor até chegar à escada. Suba até o último andar, e acho que o quarto que você está dividindo com Aphrodite é o de número treze.
– Número da sorte – suspirei. – Faz sentido.
– Você acredita que fazemos nossa própria sorte?
Dei de ombros. – Na verdade, irmã, no momento estou cansada demais para saber no que acredito.
Ela deu um tapinha no meu braço. – Bem, então vá dormir. Vou rezar à Nossa Senhora e pedir por você. Sua intervenção é melhor do que qualquer dia de sorte.
– Obrigada.
Segui em direção à escada. Quando cheguei ao andar de cima, estava esbaforida como uma velha, e a cicatriz que atravessava meu peito ardia e pulsava no ritmo do meu coração. Abri a porta, saí para o corredor e encostei-me na parede, tentando recuperar o fôlego. Esfreguei o peito distraidamente e fiz uma careta, porque doeu mesmo. Puxei para baixo a gola da minha camiseta, torcendo para que aquela ferida idiota não estivesse aberta de novo. Quase perdi o fôlego ao ver a nova tatuagem que decorava ambos os lados da cicatriz elevada.
– Eu havia me esquecido disto – sussurrei para mim mesma. – Que demais!
Soltei um gritinho abafado, abaixei a gola e pulei para trás tão de repente que bati a cabeça na parede.
– Erik!
11
Zoey
– Pensei que você soubesse que eu estava aqui. Não estava tentando me esconder – Erik estava a menos de dois metros, recostado na parede perto da porta de número treze. Ele se levantou e, com seu típico sorriso de galã de cinema e seu gingado autoconfiante, veio se aproximando de mim. – Droga, Z., faz séculos que estou aqui esperando por você – ele abaixou a cabeça e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, plantou um beijo dos grandes na minha boca.
Eu o empurrei pelo peito e dei um passo para o lado, saindo do abraço que estava começando a me dar.
– Erik, não tô no clima para beijar.
Ele arqueou uma das sobrancelhas. – É mesmo? Foi isso o que você disse para Heath também?
– Eu não vou mesmo conversar sobre isso agora.
– Então vai conversar quando? Da próxima vez que eu tiver que presenciar você bebendo o sangue do seu namorado humano?
– Sabe de uma coisa? Você tem razão. Vamos conversar agora – senti que estava ficando cada vez mais irritada, não só por estar cansada e estressada, mas porque a atitude completamente insensível de Erik estava me deixando furiosa. Eu estava de saco cheio com a possessividade de Erik. Ponto final. – Heath e eu somos Carimbados. Ou você encara o fato, ou não. E nós não vamos voltar a discutir este assunto.
Observei seu rosto assumir uma expressão de quem estava “p” da vida, mas então, para minha surpresa, ele se controlou. Encolheu os ombros e soltou um longo suspiro, que terminou em um tipo de meio sorriso.
– Você fala como Grande Sacerdotisa.
– Bem, não me sinto muito como tal.
– Ei, desculpe – ele afastou uma mecha de cabelos negros que caíra sobre meu rosto. – Nyx lhe deu novas tatuagens, né?
– É – quase automaticamente agarrei a gola da minha camiseta e me recostei contra a parede para que ele não me tocasse. – Aconteceu quando Kalona foi banido.
– Importa-se de me mostrar?
Ele falou com aquela voz profunda e sedutora; o tom do namorado perfeito. Mas antes que ele pudesse se aproximar e achar que podia me ajudar a abaixar minha camiseta, levantei a mão e fiz sinal para que parasse.
– Agora não. Eu só quero dormir um pouco, Erik.
Ele parou de se aproximar e apertou os olhos. – E como está Stark?
– Está ferido. Coisa feia. Mas Darius diz que ele vai ficar bom – mantive um tom de voz reservado. O jeito dele estava me deixando super na defensiva.
– E você acabou de sair do quarto dele, não foi?
– Foi.
Nitidamente contrariado, ele passou a mão nos grossos cabelos negros. – É simplesmente demais.
– Ahn?
Ele jogou os braços para os lados do corpo num gesto que me pareceu de uma dramaticidade muito bem calculada.
– Todos esses caras! Eu tenho que aguentar Heath porque ele é seu consorte e, quando estou tentando me acostumar, aparece mais esse outro cara, o Stark – Erik disse o nome com desprezo.
– Erik, eu...
Ele falou por cima de mim, agindo como se eu não tivesse dito nada.
– É, ele fez um Juramento Solene para ser seu guerreiro. Eu sei o que isso significa! Ele vai estar sempre com você.
– Erik... – tentei falar outra vez, mas ele continuou tagarelando por cima de mim.
– Então vou ter que aguentar esse cara também. E, como se não bastasse, está na cara que tem alguma coisa rolando entre você e Kalona! Peraí! Todo mundo viu o jeito que aquele cara olha para você – ele ironizou. – Não está até parecendo aquela história do Blake?
– Pare – pedi baixinho, mas a raiva e a irritação que estavam se acumulando dentro de mim explodiram depois da referência sarcástica a Kalona, e o espírito, que eu invocara recentemente, carregou a palavra com um poder que fez Erik arregalar os olhos e dar um passo para trás. – Vamos acabar com isto – continuei. – Você não vai ter que aguentar mais cara nenhum porque a partir deste momento você e eu não estamos mais juntos.
– Ei, eu não...
– Não! Agora é a minha vez de falar. Terminamos, Erik. Você é possessivo demais e, mesmo que eu não estivesse exausta e estressada até o talo, duas coisas para as quais você parece não dar a mínima, mesmo assim não ia querer aguentar suas palhaçadas.
– Quer dizer que, depois de tudo que me fez passar, você pensa que pode simplesmente me dispensar assim?
– Não – sentindo o espírito dar voltas ao meu redor, eu o projetei em minhas palavras seguintes e avancei, encurralando-o. – Eu não penso nada. Eu sei que é assim que vai ser. Acabou. Agora você tem que ir embora antes que eu faça alguma coisa que me cause remorsos daqui a cinquenta anos – eu o empurrei com força de propósito, usando o poder dos elementos que estava fluindo através de mim, e Erik tropeçou.
Ele ficou completamente pálido. – Que diabo aconteceu com você? Você era tão doce. Agora parece um monstro! Estou cansado de você me trair com qualquer coisa que “vista calças”. Você deve mesmo ficar com Stark e, Heath e Kalona. São eles que você merece! – ele passou por mim pisando duro e saiu batendo a porta que dava para a escada.
Igualmente furiosa, marchei até o quarto de número treze e abri a porta.
E Aphrodite quase caiu de cara no chão.
– Ooops – ela disse, passando os dedos pelos cabelos sempre perfeitos. – Acho que eu estava, ahn...
– Escutando a minha grande cena de rompimento com Erik? – completei para ela.
– É, era o que eu estava fazendo. E vou dizer que você está certa. É o tipo de cara que senta com a cabeça em vez da bunda. Além do mais, você não o traiu com todo mundo que “veste calças”. Você e Darius são só amigos. Também tem Damien e Jack... bem, não que eles realmente contem, já que também gostam de quem “veste calças”. Mesmo assim, foi um exagero ridículo.
– Você não está ajudando a me fazer sentir melhor – desabei sobre a cama cujos lençóis não estavam remexidos.
– Desculpe. Não sou muito boa nesse negócio de fazer as pessoas se sentirem melhor.
– Então você ouviu tudo?
– Ouvi.
– Até a parte sobre Kalona?
– Sim, e repito que ele é do tipo que senta com a cabeça em vez da bunda.
– Aphrodite, que diabo é esse negócio de sentar com a cabeça em vez da bunda?
Ela revirou os olhos exageradamente. – O Erik é assim, sua tapada. Enfim, como estava tentando dizer antes de você me interromper, foi a maior pisada na bola ele tocar no assunto de Kalona. Além do mais, Heath e Stark já davam motivos de sobra para alimentar seu ciúme idiota e sua insegurança. Foi totalmente desnecessário mencionar o sujeito alado.
– Eu não o amo.
– Claro que não. Você cansou de Erik. Agora, sugiro que você durma um pouco. A Deusa sabe como odeio dizer isto, mas você está com uma cara péssima.
– Obrigada, Aphrodite. É realmente de grande ajuda no momento saber que estou tão horrorosa quanto me sinto – eu disse sarcasticamente, preferindo não abordar o fato de ter dito que não amava Kalona , e não Erik.
– Às ordens. Estou aqui para isso.
Eu estava procurando uma resposta sarcástica à altura quando percebi o que ela estava usando, e uma risadinha incontrolável me escapou. Aphrodite, a Rainha da Moda, estava usando um camisolão branco de algodão que a cobria do pescoço aos pés; a barra chagava ao chão. Parecia uma devota Amish.[2]
– Ahn... O que é essa coisinha linda que você está usando?
– Não me provoque. Isto aqui é o que os pinguins chamam de roupa de dormir. Bem, eu quase consigo entender. Tipo, elas fazem esses votos de castidade ridículos, e ir para a cama com uma coisa destas torna o voto de castidade praticamente desnecessário. Sério mesmo. Este troço aqui quase me embagulha .
– Quase? – eu ri.
– Sim, espertinha, quase . E, antes que você se anime muito, dá uma olhadinha ali. Aquela coisa dobrada na ponta da sua cama não é um lençol extra. É sua própria peça de roupa de dormir à moda das freiras.
– Ah, bem, pelo menos parece confortável.
– Conforto é coisa de mariquinhas e gente feia.
Enquanto Aphrodite voltava para a cama com seu nariz empinado de sempre, fui até a pequena pia no canto do quarto, lavei o rosto e usei uma das escovas novas, ainda lacradas, para escovar os dentes. Então eu disse, como quem não quer nada: – Ei, ahn, posso perguntar uma coisa?
– Pergunta aí – ela disse, afofando os travesseiros.
– É uma pergunta séria.
– E daí?
– Daí que eu preciso de uma resposta séria.
– Tá, tudo bem. Pergunta – Aphrodite respondeu com seu jeitinho petulante.
– Você me disse que sabia que Erik era muito possessivo.
– Isso não é exatamente uma pergunta – ela retrucou.
Olhei para ela, pelo espelho, arqueando as sobrancelhas, e ela suspirou.
– Tá, sim, Erik era um grudento nível cinco.
– Hein?
Ela suspirou. – Grudento. Nível. Cinco. Foda, e não no bom sentido.
– Aphrodite, que língua é essa que você está falando?
– Adolescente americana. Megaclasse alta. Você também pode falar assim, com um pouquinho de imaginação e alguns palavrões de verdade.
– Deusa, me ajude – murmurei para mim mesma antes de continuar. – Tá, vamos lá. Erik era possessivo demais com você também.
– Foi o que acabei de dizer.
– E você ficava “p” da vida?
– É, com certeza. Foi basicamente por isso que terminamos.
Coloquei um pouco de pasta Crest na minha escova de dente. – Então você ficou “p” da vida. Você e Erik terminaram, mas você estava, ainda, ahn, toda, bem... – mordi o lábio por um segundo e tentei de novo. – Eu vi vocês dois, e você estava toda, ahn...
– Ah, que merda! Você pode falar que não vai derreter, não. Você me viu pagando boquete nele.
– Ahn, é – respondi, toda sem graça.
– Isso também não é uma pergunta.
– Tá bem! Lá vai a pergunta: você terminou com ele porque era ciumento e idiota, mas ainda tentava ficar com ele, tanto que estava fazendo aquilo. Eu não entendo por quê – falei sem pensar e enfiei a escova de dente na boca.
Observando o reflexo dela no espelho, vi suas bochechas corarem. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Limpou a garganta. Então, me encarou pelo espelho.
– Eu não estava querendo Erik. Eu estava querendo controle.
– Hein? – perguntei entre bolhas de pasta Crest.
– As coisas começaram a mudar para mim na escola antes mesmo de você aparecer.
– Que coisas? – perguntei, depois de cuspir e enxaguar a boca.
– Eu sabia que havia algo de errado com Neferet. Era algo esquisito que estava me incomodando.
Enxuguei a boca e fui para perto da cama, tirei os sapatos e a roupa, vesti a camisola quente e macia de algodão e fui para a cama, aproveitando a oportunidade para ficar sossegada enquanto tentava traduzir em palavras a confusão que não calava em minha mente. Mas, sem que eu dissesse nada, Aphrodite continuou: – Você sabe que eu costumava esconder minhas visões de Neferet, não sabe?
Concordei. – E muitos seres humanos morreram por causa disso.
– É, você tem razão. Morreram. E Neferet nem ligava. Eu percebia. Foi quando comecei a sentir algo estranho. E foi aí que minha vida começou a andar pra trás. Eu não queria que minha vida mudasse. Queria continuar sendo a vaca de plantão que um dia seria Grande Sacerdotisa e que, de preferência, dominaria o mundo. Aí eu poderia mandar minha mãe pro inferno e, quem sabe, ficar tão poderosa que ia deixar a coroa apavorada de medo, que é o que ela merece – Aphrodite respirou fundo. – Mas não deu certo.
– Você preferiu ouvir o que Nyx dizia – falei baixinho.
– Bem, primeiro tentei de tudo para segurar minha posição de megera mor e ficar com o cara mais gostoso da escola. Mesmo ele sendo um babaca possessivo, fazia parte dos meus planos.
– Acho que faz sentido – respondi.
Aphrodite hesitou e acrescentou: – Fico doente só de lembrar.
– Lembrar de que, de fazer aquilo com Erik?
Ela levantou os lábios e balançou a cabeça, rindo um pouquinho: – Deusa, como você é puritana! Não, fazer aquilo com Erik na verdade não era ruim. Fico doente de lembrar como fui capaz de guardar segredo das minhas visões, jogando merda no caminho de Nyx.
– Bem, ultimamente você andou limpando a caca que talvez tenha deixado no Caminho de Nyx. E eu não sou puritana.
Aphrodite deu uma risadinha irônica.
– Você não fica nada bonita fazendo aquilo – eu disse.
– Eu sempre sou bonita – ela respondeu. – Terminou com as perguntas sérias que não são perguntas?
– Acho que sim.
– Ótimo. Minha vez. Você conseguiu conversar com Stevie Rae? Sozinha?
– Não, ainda não.
– Mas vai conversar.
– Ahã.
– Breve?
– O que você sabe?
– Tenho certeza de que ela está escondendo alguma coisa de você.
– Coisas tipo novatos vermelhos? Como você me disse antes? – Aphrodite não respondeu, o que fez meu estômago revirar. – E então? O que é?
– Parece que tem mais coisas acontecendo com Stevie Rae além de esconder um ou outro novato vermelho.
Não queria acreditar em Aphrodite, mas minha intuição dizia que ela estava falando a verdade, e meu bom-senso também. Por causa da Carimbagem com Stevie Rae, Aphrodite tinha uma conexão com minha melhor amiga que ninguém mais podia ter. Ou seja, Aphrodite sabia coisas sobre ela. Além do mais, por mais que eu não quisesse, não tinha como ignorar que Stevie Rae estava muito esquisita. – Você não pode me dizer nada mais específico?
Aphrodite balançou a cabeça. – Não. Ela está totalmente bloqueada.
– Bloqueada? Como assim?
– Bem, você sabe como a caipira da sua melhor amiga é, com aquele seu jeito de versão country de embaixadora da boa vontade, tipo “Ei, pessoal! Olha só como eu sou gente boa, boazinha que só! Cacacá! Cacacá!”.
Aphrodite imitou o sotaque de Oklahoma de Stevie Rae um pouquinho bem demais, e franzi a testa severamente ao dizer: – Sim, eu sei que ela costuma ser aberta e sincera, se é isso que você quer dizer.
– É, bem, ela não está mais sendo tão aberta e sincera. Pode acreditar no que tô dizendo, e a Deusa é testemunha que eu bem que queria que você pudesse tirar de mim esta maldita Carimbagem. Ela está escondendo alguma coisa, e sinto que é algo muito mais importante do que uns meros novatos.
– Droga.
– Pois é – ela disse. – Mas, ei, não tem nada que você possa fazer quanto a isso agora, então é melhor dormir. Nosso mundo ainda vai precisar de salvação amanhã.
– Ótimo – respondi.
– Ah, falando nisso... Como vai seu namorado?
– Qual deles? – perguntei, mal-humorada.
– O sr. Flecha no Saco.
Dei de ombros. – Acho que está melhor.
– Você não deixou que ele te mordesse, né?
– Não – respondi num sussurro.
– Darius tinha razão quanto a isso, sabia? Por mais irritante que possa ser para alguns de nós, e por mais desqualificada que você pareça, você é a Grande Sacerdotisa no momento.
– O que me faz sentir tão melhor...
– Ei, tudo bem. Olha, o que estou dizendo é que você precisa estar cem por cento, não pode ser sugada como um Martini a mais no almoço da minha mãe no Country Clube.
– Sua mãe toma mesmo Martini no almoço?
– É claro que sim – Aphrodite balançou a cabeça com uma cara de nojo total. – Tente não ser tão ingênua. Enfim, não vá fazer nenhuma besteira só por se sentir protagonizando com Stark algum filme romântico campeão de bilheteria.
– Dá um tempo, tá? Não vou fazer nenhuma besteira! – debrucei--me e soprei a gorda vela que estava na mesa entre nossas camas.
A escuridão do quarto era bem aconchegante e, como nenhuma de nós duas disse nada por um tempinho, senti que estava começando a apagar, até que a voz de Aphrodite me puxou novamente a um estado de alerta total.
– Nós vamos voltar à Morada da Noite amanhã?
– Acho que temos que voltar – respondi vagarosamente. – Aconteça o que acontecer, a Morada da Noite é nosso lar, e os novatos e vampiros de lá são nosso pessoal. Temos que voltar para eles.
– Bem, é melhor dormir um pouco. Amanhã você vai aterrissar bem no meio do que um dos seguranças da minha mãe chamaria de uma porra de multidão enorme – Aphrodite disse com seu tom mais alegremente sarcástico.
Aphrodite continuava irritantemente certa.
12
Zoey
Depois da previsão sinistra, mas provavelmente correta de Aphrodite, pensei que não fosse conseguir dormir, mas fui derrotada pelo cansaço. Fechei os olhos e então, por um breve momento, não houve nada além do mais paradisíaco nada. Lamentavelmente, alegria nenhuma parecia durar muito na minha vida.
Em meu sonho a ilha era tão azul e tão linda que fiquei deslumbrada. Eu estava no alto... olhei ao redor... no teto de um castelo! Um daqueles castelos que parecem bem antigos, feitos de grandes blocos de pedra crua. O teto era muito irado. Cercado por aquelas pedras pontudas que pareciam dentes de gigantes. Havia plantas por toda parte no teto. Cheguei a reparar em limoeiros e laranjeiras com galhos pesados e cheios de frutas doces e cheirosas. No meio de tudo, havia uma fonte no formato de uma linda mulher nua, cujas mãos estavam levantadas sobre a cabeça, e daquelas mãos em concha emanava água cristalina. Algo na mulher de pedra me parecia familiar, mas algo continuava atraindo meu olhar do belíssimo jardim do teto do castelo para a vista, ainda mais impressionante, que se abria ao redor.
Segurei o fôlego. Fui para a borda do teto e olhei bem lá embaixo, para o mar azul-brilhante. A água era mais do que linda. Tinha cor de sonho, risada e céu de verão. A ilha em si mesma era formada por montanhas irregulares, cobertas por pinheiros incomuns que pareciam guarda-chuvas gigantes. O castelo ficava bem na montanha mais alta da ilha, e ao longe pude avistar vilarejos graciosos e uma linda cidadezinha.
Tudo era banhado pelo azul do mar, o que dava um clima de magia ao lugar. Respirei a brisa, sentindo cheiro de sal e de laranjas. O dia estava ensolarado, o céu totalmente sem nuvens, mas em meu sonho seu brilho não me incomodava os olhos nem um pouquinho. Eu adorei! Estava fazendo um friozinho e o vento não estava fraco, mas nem liguei. Gostava de sentir a vivacidade da brisa na pele. Naquele momento, a ilha estava com cor de água-marinha, mas eu podia imaginar como ficaria ao cair da tarde, quando o sol já não mais dominaria o céu. O azul se aprofundaria, escureceria e ficaria cor de safira.
Meu eu de sonho sorriu. Safira... A ilha ia ficar da mesma cor que as minhas tatuagens. Joguei a cabeça para trás e abri bem os braços para abraçar a beleza daquele lugar criado na minha imaginação adormecida.
– Então parece que não posso escapar de você, mesmo voando para longe – Kalona disse.
Ele estava atrás de mim. Sua voz me subiu pela pele das costas, arrastando-se como um inseto, alcançando os ombros e me envolvendo o corpo. Lentamente, fui soltando os braços nos lados do corpo. Mas não me virei.
– É você quem fica invadindo os sonhos das pessoas, não eu – fiquei contente por minha voz soar calma e hipercontrolada.
– Então você ainda não quer admitir que me atrai para si? – a voz dele era profunda e sedutora.
– Escute, não tentei encontrar você. Tudo que estava querendo ao fechar os olhos era dormir – falei quase automaticamente, não respondendo à pergunta que ele fizera e tentando não me lembrar da última vez que ouvi sua voz e fui envolvida por seus braços.
– Você está dormindo sozinha. Se estivesse com alguém, teria sido bem mais difícil ser tocada por mim.
Contive o desejo confuso que sua voz me dava e guardei bem aquela informação: dormir com alguém de fato dificultava seu acesso a mim, o que Stark já me dissera na noite anterior.
– Isso não é da sua conta – falei.
– Você tem razão. Todos esses filhos de homens que vivem ao seu redor, ansiosos para desfrutar de sua presença, estão completamente aquém de minhas preocupações.
Não me dei ao trabalho de corrigir a distorção que ele estava fazendo sobre o que eu dissera. Estava ocupada demais tentando manter a calma e me fazer acordar.
– Você me fez ir para longe, mas me encontra em seus sonhos. O que isso significa para você, A-ya?
– Meu nome não é esse! Não nesta vida!
– “Não nesta vida”, você diz. Isso quer dizer que você aceitou a verdade. Você sabe que sua alma é a reencarnação da boneca feita pelas Ani Yunwiya para me amar. Talvez seja por isso que você fica vindo a mim em seus sonhos, porque, apesar de sua mente consciente continuar resistindo, sua alma, seu espírito, sua própria essência anseia por estar comigo.
Ele usou o termo antigo para o povo Cherokee da minha avó e meu. Eu conhecia a lenda. Um belo imortal alado fora viver em meio aos Cherokees, mas, em vez de ser um deus benevolente na terra, ele foi cruel. Abusava das mulheres e usava os homens. Enfim, as Sábias das tribos, conhecidas como Ghiguas, se reuniram e criaram uma boneca de terra. Elas deram vida a A-ya e, também, dons especiais. O objetivo era usar a luxúria de Kalona para atraí-lo para debaixo da terra e lá aprisioná-lo. O plano deu certo. Kalona não conseguiu resistir a A-ya e ficou preso debaixo da terra; pelo menos, foi onde ficou até Neferet libertá-lo.
E agora que eu compartilhava memórias com A-ya, sabia muito bem que aquela lenda era verdade.
Verdade, minha mente me lembrou. Use a força da verdade para combatê-lo.
– Sim –reconheci. – Eu sei que sou a reencarnação de A-ya – respirei fundo para retomar o equilíbrio, dei meia-volta e encarei Kalona. – Mas sou a reencarnação atual dela, o que significa que faço minhas próprias escolhas, e não vou escolher ficar com você.
– E mesmo assim você continua a vir para mim em seus sonhos.
Eu queria negar que tinha ido até ele, queria dizer alguma coisa inteligente, tipo Grande Sacerdotisa, mas só consegui ficar olhando para ele. Ele era tão lindo! Como sempre, estava com pouca roupa. Acho que a melhor descrição seria quase sem roupa . Ele estava de calça jeans e só. Pele bronzeada e perfeita, cobrindo-lhe os músculos com uma suavidade que me fez querer tocá-lo. Os olhos cor de âmbar de Kalona eram luminosos. E me fitavam com um calor e uma delicadeza que me tirou o fôlego. Ele parecia ter uns dezoito anos, mas, quando sorriu, pareceu ainda mais jovem, mais garoto, mais acessível. Tudo nele gritava cara gostoso demais, eu devia estar surtando!
Mas aquilo era mentira. Kalona era, na verdade, superpavoroso e superperigoso, e eu jamais poderia me esquecer disso, a despeito do que ele parecesse ser e do que as lembranças plantadas bem no fundo de minha alma quisessem que ele fosse.
– Ah, então você finalmente se digna a me dirigir o olhar.
– Bem, como você não quer ir embora e me deixar em paz, achei que devia agir com educação – respondi com falsa despreocupação.
Kalona jogou a cabeça para trás e riu. Foi um som contagiante, caloroso e muito sedutor. Que me deixou morrendo de vontade de acompanhá-lo naquela risada tão aberta. Quis tanto que quase dei um passo em direção a ele quando suas asas escolheram aquele momento para adejar. Elas se movimentaram e se abriram parcialmente, e os raios de sol cintilaram em suas negras profundezas, iluminando o índigo e a púrpura que costumavam se esconder no interior de sua escuridão.
Ver aquelas asas era como correr rumo a um muro invisível. Lembrei-me novamente do que ele era: um perigoso imortal caído na Terra que tinha intenção de me roubar o livre-arbítrio e, no final, minha alma.
– Não sei por que você está rindo – eu disse rapidamente. – Estou falando a verdade. Estou olhando para você porque sou educada, mas o que realmente quero é que você voe para longe e me deixe sonhar em paz.
– Ah, minha A-ya – ele fechou a cara. – Eu jamais vou deixá-la em paz. Você e eu somos ligados. Seremos a salvação, ou a ruína, um do outro – ele deu um passo em minha direção, e eu espelhei seu movimento dando um passo para trás. – Qual vai ser? Salvação ou ruína?
– Só posso responder por mim mesma – forcei minha voz a permanecer calma e consegui até falar com uma dose de sarcasmo, apesar de estar sentindo a pedra fria da balaustrada me pressionando as costas como se fosse uma parede de prisão. – Mas ambos me soam muito mal. Salvação? Nossa, você está me lembrando o Povo de Fé e, como eles o consideram um anjo caído , parece que você não entende muito de salvação. Ruína? Bem, falando sério, você continua me fazendo lembrar o Povo de Fé. Desde quando você se tornou esse chato religioso?
Bastaram dois passos para ele diminuir a distância entre nós dois. Seus braços se tornaram barras de ferro, aprisionando-me entre ele e a balaustrada. Suas asas tremeram, abrindo-se ao redor dele e ofuscando o sol com seu brilho negro. Senti aquele frio terrível e maravilhoso que dele sempre emanava. Eu devia ter sentido repulsa, mas não senti. Aquele frio terrível me atingiu o fundo da alma. Eu queria apertar meu corpo contra o dele e ser levada pela doce dor que ele podia trazer.
– Chato? minha pequena A-ya, meu amor perdido, ao longo de séculos os mortais me chamaram de muitas coisas, mas de chato, até agora, nunca.
Kalona se agigantou sobre mim. Ele era muito grande! E com toda aquela pele nua... Tirei meu olhar do seu peito e olhei bem dentro de seus olhos. Ele estava sorrindo para mim, perfeitamente à vontade e completamente sob controle. Ele era tão gostoso que mal conseguia respirar. Claro que Stark e, Heath e, sim, Erik, eram caras bonitos, excepcionalmente bonitos, na verdade. Mas não eram nada comparados à beleza imortal de Kalona. Ele era uma obra-prima, a estátua de um deus que personificava a perfeição física, só que era ainda mais atraente por ter vida, por estar ali perto, por estar ali para mim.
– Eu... eu quero que você se afaste – tentei impedir que minha voz tremesse, mas não consegui.
– É isso mesmo que você quer, Zoey?
Fiquei abalada ao ouvi-lo dizer meu nome, mais até do que quando me chamava de A-ya. Meus dedos apertaram com força as pedras do castelo na tentativa de me estabilizar e não cair em seu feitiço. Respirei fundo e me preparei para mentir e lhe dizer que, sim, eu tinha toda a certeza do mundo de que queria que ele se afastasse de mim.
Use o poder da verdade. As palavras me adentraram a mente, sussurradas.
Qual era a verdade? Que eu tinha que me controlar para não cair nos braços dele? Que não conseguia parar de pensar em A-ya se rendendo a ele? Ou seria aquela outra verdade, a de que eu queria voltar a ser apenas uma garota normal cujos maiores problemas eram deveres de casa e garotas más?
Fale a verdade.
Pisquei os olhos. Eu podia dizer a verdade.
– No momento, o que realmente quero é dormir. Ser normal. Quero me preocupar com a escola, com o pagamento do seguro do carro e o preço alto da gasolina. E gostaria demais se você pudesse colaborar com alguma dessas coisas – encarei-o firmemente, permitindo que esta fração de verdade me desse força.
Ele deu um sorriso jovial e perverso. – Por que você não vem para mim, Zoey?
– Bem, sabe, porque isso não me traria nenhuma dessas coisas que acabei de mencionar.
– Eu podia lhe dar muito mais do que essas coisas mundanas.
– É, tenho certeza que sim, mas nada disso seria normal, e no momento o que realmente mais quero é uma boa dose de normalidade .
Ele me olhou nos olhos, e percebi que ele estava esperando que eu desse um passo em falso, que ficasse nervosa e gaguejasse, ou, pior ainda, entrasse em pânico. Mas eu tinha dito a verdade, o que era uma pequena, mas brilhante vitória para mim, pois me deu certo poder. Foi Kalona quem finalmente desviou o olhar, foi a voz de Kalona que de repente demonstrou hesitação e insegurança. – Eu não preciso ser assim. Por você, eu poderia ser mais – ele voltou a fitar meus olhos. – Eu podia escolher um caminho diferente com você ao meu lado.
Tentei não demonstrar o fluxo de emoções que suas palavras tinham causado dentro de mim ao alcançar aquela parte minha que fora despertada por A-ya.
Descubra a verdade, minha mente insistiu. E, novamente, descobri e disse: – Eu gostaria de poder acreditar em você, mas não acredito. Você é lindo e mágico, mas também é mentiroso. Não acredito em você.
– Mas podia acreditar – ele disse.
– Não – eu respondi sinceramente. – Acho que não podia, não.
– Tente. Dê-me uma chance. Venha para mim e me deixe lhe provar quem sou. Sinceramente, meu amor, diga uma palavrinha só, sim – ele se debruçou e, em um movimento simultaneamente gracioso, forte e sedutor, o imortal caído sussurrou em meu ouvido, roçando os lábios em minha pele o bastante para me deixar toda arrepiada. – Entregue-se a mim, e eu juro que torno verdade seus sonhos mais profundos.
Minha respiração estava alterada e apertei com força as palmas das mãos sobre a pedra nas minhas costas. Naquele instante, eu só queria dizer uma palavra: sim. Eu sabia o que aconteceria se a dissesse. Já passara por esse tipo de rendição através de A-ya.
Ele deu risada, com um som profundo e confiante.
– Vamos, meu amor perdido. Basta dizer uma palavra, sim, e sua vida mudará para sempre.
Seus lábios não estavam mais perto do meu ouvido. Seu olhar agora mergulhava no meu outra vez. Ele sorria pelos meus olhos adentro. Ele era jovem e perfeito, poderoso e gentil.
E eu quis tanto dizer que sim que tive medo de falar.
– Ame-me – ele murmurou. – Simplesmente me ame.
Minha mente ignorou o desejo que eu sentia por ele para processar o que estava ouvindo, e finalmente encontrei outra palavra para dizer que não fosse sim.
– Neferet – foi o que eu disse.
Ele franziu o cenho. – O que tem ela?
– Você diz que devo amar apenas você, mas não é descompromissado. Você está com Neferet.
O jeito seguro de Kalona desapareceu. – Neferet não é da sua conta.
Aquelas palavras me causaram um aperto no coração, fazendo-me entender que havia uma parte de mim que esperava que ele negasse estar com ela, esperava que ele dissesse que não estava mais com ela. A decepção me deu força, e eu disse: – Acho que ela é da minha conta sim. Da última vez que a vi, ela tentou me matar, e isso foi quando eu estava rejeitando você. Se disser sim a você, ela vai perder a cabeça, se é que ainda tem alguma. E virá para cima de mim. De novo.
– Por que estamos falando de Neferet? Ela não está aqui. Olhe toda a beleza que nos cerca. Pense em como seria governar este lugar ao meu lado; ajudar a trazer o jeito de antigamente de volta a este mundo que se modernizou demais – ele acariciou um dos meus braços. Ignorei a sensação que me subiu pela pele e os sinos soando o alarme em minha cabeça ao ouvi-lo falar em trazer de volta o jeito de antigamente, e procurei falar da forma mais adolescente que sabia.
– Sério mesmo, Kalona, realmente não quero mais drama com Neferet. Acho que não dou conta.
Ele levantou as mãos, frustrado. – Por que você insiste em falar na Tsi Sgili? Ordeno que a esqueça! Ela não é nada para nós.
No momento em que seus braços deixaram de me encurralar contra a parede de pedra, fui para o lado, decidida a manter certa distância entre nós dois. Eu precisava pensar, mas não conseguia com aqueles braços me envolvendo.
Kalona me seguiu e, desta vez, me encurralou contra uma das partes baixas do muro do teto, um vão entre os dentes de pedra. Eu só tinha apoio até a altura dos joelhos. De lá eu sentia o vento frio roçando minhas costas e soprando meus cabelos. E nem precisei olhar para trás. Sabia que a altura era vertiginosa e que o mar azul me aguardava lá embaixo, bem lá embaixo.
– Você não pode escapar de mim – Kalona apertou os olhos cor de âmbar. Vi a raiva começando a se formar debaixo da superfície de sedução. – E você precisa entender que vou dominar este mundo muito em breve. Vou fazer as coisas voltarem a ser como eram antigamente e, ao fazer isso, vou dividir essas pessoas modernas, separando o joio do trigo. O trigo vai ficar ao meu lado, crescendo e prosperando ao me alimentar. O joio será queimado e se transformará em um grande nada.
Senti algo terrível dentro de mim, como se fosse uma morte. Ele estava usando palavras antigas, poéticas, mas eu não tinha dúvida de que estava descrevendo o fim do mundo como o conhecemos, a destruição de um número imensurável de pessoas; vampiros, novatos e humanos. Sentindo-me enjoada, virei a cabeça para trás e olhei para ele como quem não está entendendo nada.
– Trigo? Joio? Desculpe, mas não entendi. Você precisa traduzir isso para eu entender.
Ele não disse nada por um longo momento. Apenas me observou em silêncio. Então, com um leve sorriso levantando os cantos dos seus lábios, ele fez um carinho com a mão no meu rosto.
– Você está fazendo um jogo perigoso, meu pequeno amor perdido – meu corpo ficou paralisado. Sua mão foi descendo lentamente do meu rosto, largando um rastro de calor gelado na minha pele. – Você está brincando comigo. Você acha que pode se fazer passar por alguma colegial que só pensa no vestido que vai usar ou no próximo garoto que vai beijar. Você já me subestimou antes. Eu te conheço, A-ya. Conheço bem demais.
Kalona continuou a descer sua mão e arfei, chocada, quando ele segurou meu seio. Ele esfregou o ponto mais sensível com o polegar e eu senti uma punhalada frígida de desejo que me abalou as estruturas. Por mais que tentasse me controlar para não tremer, não consegui. Lá, no teto do castelo do meu sonho, com o mar atrás de mim e Kalona na minha frente, eu estava presa pelo seu toque hipnótico, e tive uma certeza terrível de que não eram só as lembranças de A-ya que me levavam a ele. Era eu mesma, meu coração, minha alma, meus desejos .
– Não! Por favor, pare – quis falar com força, alto, ordenar de um jeito que ele não pudesse ignorar, mas soei sem fôlego, fraca.
– Parar? – ele riu de novo. – Acho que você perdeu contato com sua verdade. Você não quer que eu pare. Seu corpo anseia pelo meu toque. Você não pode negar. Portanto, pare com essa besteira de ficar resistindo. Aceite-me e assuma seu lugar ao meu lado. Acompanhe-me e, juntos, criaremos um novo mundo.
Balancei para o lado dele, mas consegui sussurrar: – Não posso.
– Se você não me acompanhar, será minha inimiga, e eu vou queimá-la com o resto do joio – enquanto ele falava, seu olhar passou do meu rosto para meus seios. Agora ele segurava os dois com as mãos. Seus olhos de âmbar ficaram mais suaves e pareciam sem foco quando me acariciou, mandando ondas de desejo que eu não queria pelo meu corpo. E uma sensação de náusea tomou conta do meu coração, da minha mente e da minha alma. Eu tremia tanto que minhas palavras soaram trêmulas: – Isto é um sonho... só um sonho. Isto não é real – falei como se quisesse me convencer do que dizia.
Seu desejo por mim o tornava ainda mais sedutor. Ele sorriu para mim de um jeito íntimo enquanto continuava a acariciar meus seios.
– Sim, você sonha. Apesar de haver aqui verdade e realidade, bem como seus desejos mais profundos e secretos. Zoey, neste sonho você é livre para fazer o que quiser. Nós podemos fazer qualquer coisa que você queira.
É só um sonho... repeti as palavras para mim mesma. Por favor, Nyx, permita que a verdade a seguir me acorde.
– Eu quero ficar com você – eu disse. Kalona deu um sorriso carregado de vitória, mas, antes que ele pudesse me prender em seu abraço imortal que eu já conhecia tão bem, acrescentei: – Mas a verdade é que, por mais que o queira, ainda sou Zoey Redbird, e não A-ya, e isso significa que nesta vida optei por seguir o caminho de Nyx. Kalona, não vou trair minha Deusa para ficar com você! – quando gritei as últimas palavras, me joguei para trás e caí do teto do castelo em direção à praia pedregosa lá embaixo, bem lá embaixo.
Entre meus próprios gritos, ouvi Kalona gritando meu nome.
13
Zoey
Sentei-me na cama, berrando como se alguém tivesse acabado de me jogar em um buraco cheio de aranhas. Meus ouvidos apitavam, e meu corpo tremia tanto que pensei fosse ficar doente, mas, em meio ao pânico, percebi que não era eu a única voz a berrar. Olhei para os lados na escuridão, forcei-me a calar a boca, inalei o ar desesperadamente e tentei me orientar. Onde diabos eu tinha ido parar? No fundo do mar? Será que tinha morrido arrebentada nas pedras da ilha?
Não... não... eu estava no Convento das Beneditinas... no quarto que me puseram para dividir com Aphrodite... que estava na cama ao lado da minha, berrando feito doida.
– Aphrodite! – berrei mais alto do que ela. – Pare! Sou eu. Tudo bem.
Ela parou de berrar, mas estava com a respiração curta, ofegante.
– Luz! Luz! – ela gritava, soando como se tivesse se mudado para a Terra dos Ataques de Pânico. – Eu preciso de luz! Preciso enxergar!
– Tá, tá! Peraí – lembrei-me da vela votiva na mesa entre nossas camas e tateei desajeitadamente à procura de um isqueiro. Tive que segurar com a mão esquerda o pulso da mão direita para conseguir acender a vela e, mesmo assim, precisei tentar cinco vezes para conseguir acendê--la. Enfim, o calor da luz da vela iluminou o rosto fantasmagoricamente branco de Aphrodite, cujos olhos eram sangue puro.
– Aimeudeus ! Seus olhos!
– Eu sei! Eu sei! Merda! Merda! Merda! Ainda não estou enxergando nada – ela choramingou.
– Não se preocupe... não se preocupe... isso aconteceu da última vez. Vou pegar um pano molhado e um pouco de água, como fiz da outra vez e... – minhas palavras sumiram quando me dei conta do exato significado dos olhos escarlates de Aphrodite, e então parei entre a cama e a pia. – Você teve outra visão, não teve?
Ela não disse nada. Apenas afundou o rosto nas mãos e assentiu, soluçando.
– Está tudo bem. Vai dar tudo certo – fiquei repetindo sem parar enquanto corria até a pia, pegava uma toalha de mão e a molhava com água fria. Depois, enfim, peguei um dos dois copos que estavam ali e o enchi com água. Então voltei correndo para Aphrodite.
Ela ainda estava sentada na beira da cama com o rosto afundado nas mãos. Seu choro passou da histeria máxima a gemidinhos tristes. Ajeitei o travesseiro atrás dela.
– Tome, beba isto aqui. Depois, quero que se deite para eu colocar esta toalha molhada nos seus olhos – ela tirou as mãos do rosto e procurou o copo às cegas. Ajudei-a a encontrar o copo e fiquei olhando enquanto ela bebia tudo. – Vou pegar mais para você agora mesmo. Mas, primeiro, deite para eu colocar isto nos seus olhos.
Aphrodite se recostou no travesseiro. Ela piscava, sem nada enxergar. Estava horrível, de dar medo. Seus olhos estavam completamente ensanguentados e bizarros, fantasmagoricamente emoldurados pelo seu rosto pálido.
– Só vejo seu vulto, só um pouquinho – ela disse debilmente. – Mas você está toda vermelha, como se estivesse sangrando – Aphrodite terminou com um soluço.
– Não estou sangrando; estou bem. Isso já aconteceu antes, não lembra? E você ficou bem depois de fechar os olhos e descansar um pouco.
– Eu me lembro. Só não me lembrava de ser tão ruim.
Ela fechou os olhos. Dobrei a toalha e cobri seus olhos gentilmente com ela. E então menti: – Da última vez foi tão ruim quanto agora – com as mãos agitadas, Aphrodite tocou um pouco a toalha antes de ser colocada em seus olhos. Voltei para a pia e enchi o copo outra vez. Olhando para seu reflexo no espelho eu perguntei: – Foi alguma visão terrível?
Seus lábios se retorceram. Ela inalou profunda e tremulamente. – Foi.
Voltei para o lado da cama. – Você quer mais água?
Ela fez quem sim com a cabeça. – Eu me sinto como se tivesse acabando de correr uma maratona por um deserto escaldante. Não que jamais passasse pela minha cabeça fazer uma coisa dessas. Suar daquele jeito não tem nada de elegante.
Fiquei feliz de ouvi-la soando novamente como a Aphrodite de sempre, sorri e levei sua mão ao copo de água outra vez. Então me sentei na cama de frente para ela e esperei.
– Sinto você olhando para mim – ela disse.
– Desculpe. Pensei que não dizer nada seria uma forma de demonstrar paciência – fiz uma pausa. – Você quer que eu chame Darius? Ou talvez Damien? Ou os dois?
– Não! – Aphrodite respondeu rapidamente. Eu a vi engolir em seco umas duas vezes e então, com uma voz mais calma, ela continuou: – Não vá a lugar nenhum por enquanto, tá? Não quero ficar sozinha agora, sem enxergar.
– Tá. Não vou a lugar nenhum. Você quer me falar da visão?
– Não muito, mas acho que tenho que falar. Vi sete vampiras. Elas pareciam importantes e poderosas, não restava dúvida de que eram todas Grandes Sacerdotisas. Estavam em um lugar lindo de morrer. Coisa de gente que nasceu em berço de ouro, nada daquelas merdas nouveau riche de mau gosto – revirei os olhos para ela, que, infelizmente, não viu. – No começo eu nem sabia que era uma visão. Achei que fosse um sonho. Eu estava observando as tais vampiras, sentadas em poltronas que pareciam tronos, e esperando que acontecesse alguma daquelas coisas bizarras que acontecem quando a gente sonha, tipo todas elas virarem o Justin Timberlake, se levantarem e começar a fazer striptease para mim, cantando que está na hora de trazer de volta a sensualidade de antigamente.
– Ahn – eu disse. – Que sonho interessante. Ele é gostoso de doer, apesar de estar ficando velho.
– Ah, dá um tempo. Você já tem homens demais na sua vida para sonhar com mais algum. Deixe o Justin para mim. Bem, enfim, elas não viraram o Justin, nem tiraram a roupa. Eu só estava imaginando o que estava acontecendo quando ficou megaóbvio que estava tendo uma visão porque Neferet apareceu.
– Neferet!
– É. Kalona estava com ela. Foi ela quem falou o tempo todo, mas as vamps não estavam olhando para ela, porque não conseguiam tirar os olhos de Kalona.
Eu não disse nada, mas entendi perfeitamente como elas se sentiam.
– Neferet estava dizendo alguma coisa sobre aceitar as mudanças que ela e Erebus traziam, de mudar tudo, de fazer as coisas voltarem a ser como eram antigamente... blá-blá-blá...
– Erebus! – interrompi sua tagarelice. – Ela ainda dizia que Kalona é Erebus?
– É, e ela também se dizia Nyx Encarnada, e abreviou para Nyx simplesmente, mas não peguei tudo que ela estava dizendo, porque foi aí que comecei a queimar.
– Queimar? Tipo pegar fogo?
– Bem, não fui eu exatamente. Foram algumas das vamps . Foi esquisito, uma das visões mais esquisitas que já tive, na verdade. Uma parte de mim estava observando Neferet conversar com as sete vamps , ao mesmo tempo em que outra parte saía da sala com elas, uma por uma. Senti que nem todas acreditavam no que Neferet estava dizendo, e foi com essas que fiquei. Até que elas queimaram.
– Você quer dizer que elas simplesmente pegaram fogo?
– É, mas foi muito estranho. De repente, me toquei de que elas estavam pensando coisas negativas sobre Neferet e, no minuto seguinte, pegaram fogo no meio de um campo. E não foram só elas que pegaram fogo – Aphrodite fez uma pausa e bebeu o resto do copo de água. – Muita gente pegou fogo com elas, humanos, vamps e novatos. Todo mundo queimou nesse mesmo campo, e parecia que a coisa estava se ampliando para o resto do mundo inteiro.
– O quê?
– É, foi ruim demais. Nunca tive qualquer visão com vamps morrendo. Bem, tirando aquelas duas que tive com você, e você é só uma novata, então não conta.
Fiz cara feia à toa, pois ela não estava enxergando mesmo.
– Você conhecia mais alguém além das vamps que pegaram fogo? Neferet e Kalona também estavam lá?
Aphrodite não disse nada por um momento. Então, tirou a toalha molhada dos olhos e piscou. Percebi que sua vista estava menos vermelha. Ela se voltou para mim, franzindo os olhos.
– Está melhorando. Já estou quase enxergando você. Bom, a visão termina assim: Kalona estava lá. Neferet não. Mas você estava. Com ele. Estou dizendo que você estava com ele . Ele estava pegando você, e você gostava. Ahn... Devo dizer que foi uma eca ter de assistir àquela pegação, principalmente porque estava vendo do ponto de vista das pessoas que estavam torrando, enquanto você ficava de baixaria. Basicamente estava mais do que claro que o fato de você ficar com Kalona provocava o fim do nosso mundo.
Esfreguei a mão trêmula no rosto, como se assim pudesse apagar a lembrança de mim mesma como A-ya nos braços de Kalona.
– Eu nunca vou ficar com Kalona.
– Tá, mas não vou dizer o que tô me preparando para dizer por ser escrota, pelo menos não desta vez.
– Vamos, diz logo.
– Você é A-ya reencarnada.
– Já sabemos disso – respondi de um jeito mais áspero do que tive intenção.
Aphrodite levantou a mão.
– Peraí. Não tô te acusando de nada. Mas essa garota Cherokee de antigamente com quem você divide a alma ou sei lá o que foi criada para amar Kalona. Não foi?
– Foi, mas você tem que entender que Eu. Não. Sou. Ela – pronunciei cada palavra lenta e claramente.
– Olha, Zoey, eu sei disso. Mas também sei que tem mais atração por Kalona do que está disposta a reconhecer provavelmente até para si mesma. Você já teve uma lembrança tão forte de quando era A-ya que até desmaiou. E se não conseguir controlar totalmente o que sente por ele pelo fato de essa atração estar entranhada na sua alma?
– Você acha que já não pensei nisso? Caraca, Aphrodite, vou ficar longe de Kalona! – berrei, sentindo-me frustrada. – Completamente longe dele. Não existe a menor possibilidade de eu estar com ele de novo, portanto sua visão não vai acontecer.
– Não é tão simples assim. A visão na qual você fica com ele não foi a única que tive. Na verdade, agora que parei para pensar, foi meio como aquelas visões idiotas que tive com a sua morte nas quais primeiro eu via você sendo decapitada e depois, na mesma droga de visão, eu me afogava com você. Estresse é pouco.
– É, eu me lembro. Era a minha morte que você estava vendo.
– É, mas até agora só fui eu quem vivenciou as suas mortes. Repetindo, não é nada agradável .
– Pode fazer o favor de terminar de contar as suas visões?
Ela me deu um olhar longo e sofrido, mas continuou.
– Então a visão se desfez, como aconteceu com as suas duas mortes que vi. Uma hora, você e Kalona estavam se chupando e fazendo baixaria. Ah, e eu me senti agoniada também.
– Bem, é, faz sentido. Você estava pegando fogo – respondi, frustrada por ela não terminar de contar a porcaria da visão.
– Não, quero dizer que senti outro tipo de agonia. Tenho quase certeza de que não vinha do pessoal que estava queimando. Tinha mais alguém lá, e com certeza era alguém que estava sendo coagido.
– Coagido? Que péssimo – meu estômago voltou a doer.
– É. Bastante desagradável. Uma hora as pessoas pegavam fogo, eu sentia uma agonia horrorosa, blá-blá-blá, e você de pegação com o anjo ruim. Aí tudo mudou. Era sem dúvida um dia diferente num lugar diferente. As pessoas ainda estavam pegando fogo e eu ainda sentia aquela agonia esquisita, mas em vez de ficar de baixaria com Kalona você saiu dos braços dele. Mas não foi muito longe. E você disse alguma coisa para ele. Sei lá o que você disse, mas mudou tudo.
– Como?
– Você matou Kalona, e o fogo parou.
– Eu matei Kalona?
– É. Pelo menos, foi o que me pareceu.
– O que eu disse a ele que tinha o poder de fazer isso?
Ela deu de ombros.
– Não sei. Não ouvi você. Eu estava tendo a visão do ponto de vista de quem estava pegando fogo, e sentido aquela agonia estúpida que não sabia de onde vinha; eu estava ligeiramente ocupada sentindo dor para prestar atenção a cada sílaba que você pronunciava.
– Tem certeza que ele morreu? Ele supostamente não morre, é imortal.
– Foi o que me pareceu. Você falou alguma coisa que o fez se desintegrar.
– Ele desapareceu?
– Na verdade, foi tipo uma explosão. Mais ou menos. É difícil descrever porque, bem, eu estava pegando fogo e, além disso, ele começou a brilhar, brilhar mesmo , tanto que nem deu para enxergar exatamente o que aconteceu. Mas posso dizer que ele meio que desapareceu e então o fogo parou, e tudo voltou a ficar de boa.
– Só foi isso o que aconteceu?
– Não. Você estava chorando.
– Hein?
– É, depois que matou Kalona, você chorou. De soluçar. Aí a visão acabou, e eu acordei com uma enxaqueca horrorosa e meus olhos doendo pra cacete. Ah, e você estava berrando que nem uma doida de pedra – ela olhou demoradamente para mim, como quem estivesse pensando. – Falando nisso, por que você estava berrando?
– Eu tive um pesadelo.
– Kalona?
– Não tô nem um pouco a fim de falar nisso.
– Só lamento. Você vai ter que falar. Zoey, eu vi o mundo inteiro pegando fogo enquanto você e Kalona se divertiam. Isso não é nada bom.
– Isso não vai acontecer – afirmei. – Não se esqueça de que você também me viu matando Kalona.
– O que aconteceu no seu sonho? – ela perguntou com insistência.
– Ele me ofereceu o mundo. Disse que vai fazer as coisas voltarem a ser como nos tempos de antigamente e que quer que eu seja a chefona de tudo ao seu lado. Essas palhaçadas. Eu não só disse não, mas também de jeito nenhum . Ele disse que ia queimar... – ah, minha Deusa! – Espera, você disse que as pessoas estavam pegando fogo em um campo? Será que era um campo de trigo?
Aphrodite deu de ombros.
– Acho que sim. Pra mim todo campo é a mesma coisa.
Senti um aperto no peito e uma pontada no estômago.
– Ele disse que ia separar o joio do trigo e queimar o joio.
– Que diabo é esse negócio de joio?
– Não sei direito, mas tenho quase certeza de que tem alguma coisa a ver com trigo. Vamos, tente lembrar. O campo onde eles estavam pegando fogo tinha uma vegetação dourada ou era verde, tipo palha de milho ou, sei lá, algo que não fosse trigo?
– Era amarelo. E alto. E bem farto. Acho que podia ser trigo.
– Então, o que Kalona ameaçou fazer no meu sonho basicamente se concretizou na sua visão.
– Só que no seu sonho você não cedia e não ficava de pegação com ele. Ou ficava?
– Não, nada disso! Eu me joguei de um penhasco, por isso acordei berrando daquele jeito.
Ela arregalou os olhos avermelhados. – Sério mesmo? Você pulou mesmo de um penhasco?
– Bem, pulei do alto de um castelo que ficava no alto de um penhasco.
– Parece ruim mesmo.
– Foi a coisa mais doida que já fiz, mas foi menos pior do que ficar com ele – estremeci ao me lembrar do toque dele e do desejo terrivelmente profundo que me fazia sentir. – Eu tive que me afastar dele.
– É, bem, você vai precisar repensar isso no futuro.
– Hein?
– Dá pra prestar atenção? Eu vi Kalona ganhando o mundo. Ele estava usando o fogo para queimar as pessoas e, quando eu digo pessoas, me refiro a vamps e humanos. E você o impediu. Sinceramente, acho que minha visão está nos dizendo que você é a única pessoa viva que pode impedi-lo. Por isso não pode ficar longe dele. Zoey, você vai ter que descobrir o que foi que disse que matou Kalona e depois você vai ter que procurá-lo.
– Não! Eu não vou com ele.
Aphrodite olhou para mim cheia de pena.
– Você vai ter que lutar contra esse negócio de reencarnação e destruir Kalona de uma vez por todas.
Ah, caramba, era o que eu estava pensando quando alguém bateu na porta.
14
Zoey
– Zoey! Você está aí? Me deixa entrar!
Em questão de segundos, levantei-me da cama e fui até a porta. Ao abri-la, me deparei com Stark apoiando-se no batente.
– Stark? O que você está fazendo de pé? – ele usava calça de hospital, sem camisa. Seu peito estava coberto por um enorme curativo que lhe envolvia o torso. Seu rosto estava branco que nem osso, e um véu de gotículas de suor cobria sua testa. Ele estava com a respiração curta e áspera e parecia que ia cair a qualquer segundo. Mas, com a mão direita, ele agarrava seu arco, no qual estava engatada uma flecha.
– Merda! Ele tem que entrar antes que desmaie. Se cair, não vamos conseguir levantá-lo de jeito nenhum, e ele é grande demais para ser arrastado.
Tentei segurá-lo, mas Stark me surpreendeu com sua força ao me empurrar.
– Deixa disso, estou bem – ele disse e entrou no quarto, olhando para os lados como se esperasse que alguém fosse pular de dentro do armário. – Não vou desmaiar – ele disse, irritado, enquanto tentava retomar o fôlego.
Eu parei em frente a ele para forçá-lo a prestar atenção em mim.
– Stark, não tem ninguém aqui. O que você está fazendo? Você não deveria nem ter saído da cama, que dirá subir escadas.
– Eu senti você. Você estava apavorada. Então vim.
– Eu tive um pesadelo, só isso. Não estava correndo perigo.
– Kalona? Ele apareceu no seu sonho de novo?
– De novo? Quanto tempo faz que você vem sonhando com ele? – Aphrodite perguntou.
– Se você não estiver dormindo com alguém, e não estou falando de uma colega de quarto, Kalona pode entrar nos seus sonhos se quiser – Stark respondeu por mim.
– Isso não tá cheirando bem.
– São só sonhos – falei.
– Nós temos certeza disso? – Aphrodite perguntou.
Ela perguntou a Stark, mas eu respondi: – Bem, não morri. Então foi só um sonho.
– Não morreu? Você precisa explicar isso – Stark me repreendeu. Sua respiração já estava normal e, apesar de ainda pálido, ele soou exatamente como o perigoso guerreiro que era, pronto para honrar seu Juramento Solene e proteger sua Grande Sacerdotisa.
– No sonho, Zoey se jogou do alto de um penhasco para fugir de Kalona – Aphrodite disse.
– O que ele fez com você? – a voz de Stark soou grave e cheia de raiva.
– Nada! – respondi rápido demais.
– Isso porque você pulou do penhasco antes que ele pudesse fazer alguma coisa – Aphrodite emendou.
– O que ele estava tentando fazer? – Stark perguntou outra vez.
Eu suspirei.
– O mesmo de sempre. Ele quer me controlar. Não é o que ele diz, mas é o que ele quer, e eu jamais darei o que ele quer.
Stark trincou o maxilar.
– Eu devia imaginar que ele ia tentar se aproximar através dos seus sonhos. Conheço os truques dele! Eu devia ter feito você dormir com Heath ou Erik.
Aphrodite deu uma risadinha sarcástica.
– Essa é nova. O namorado número três quer que você durma com o namorado número um ou número dois.
– Eu não sou namorado dela! – Stark praticamente rosnou. – Sou seu guerreiro. Fiz o Juramento Solene para protegê-la. O que representa muito mais do que uma paixonitezinha de merda ou um ciúme idiota.
Aphrodite ficou só olhando para ele e desta vez não teve o que dizer.
– Stark, foi só um sonho – minha voz demonstrou muito mais convicção do que sentia. – Kalona pode invadir meus sonhos quantas vezes quiser que o resultado vai ser sempre igual. Não vou ceder.
– É melhor mesmo, porque, se você ceder, todos nós estaremos seriamente ferrados – Aphrodite me alertou.
– O que ela quer dizer com isso?
– Ela teve outra visão, só isso.
– Só isso? Isso é que é ser desprestigiada – ela olhou demoradamente para Stark. – Então, Senhor Arqueiro, se você dormir com Zoey, Kalona fica longe dos sonhos dela?
– É provável – Stark respondeu.
– Então acho que você devia dormir com Zoey e, como três é demais numa situação dessas, vou cair fora daqui.
– Para onde você vai? – perguntei.
– Para onde Darius está, e estou me lixando se os pinguins não vão gostar. Sério mesmo, estou com uma dor de cabeça daquelas. Por isso só quero dormir, mas vou ficar com meu vamp . E pronto.
Ela pegou suas roupas e sua bolsa. Percebi que ia se enfiar no banheiro e trocar aquela camisola de velha antes de ver Darius, o que me fez lembrar que eu estava de camisola de velha. Sentei na cama e suspirei. Ah, é, ele já tinha me visto nua em pelo, o que era bem mais constrangedor do que me ver de camisola branca de algodão feito uma vovó. Meus ombros murcharam. Deusa, para uma garota com vários namorados, eu estava seriamente deixando a desejar no departamento visual.
Antes que Aphrodite saísse pela porta, eu disse: – Não comente sobre sua visão com ninguém antes de eu pensar um pouquinho. Quer dizer – me apressei em completar –, você pode contar a Darius, mas só para ele, tá?
– Tô ligada. Você quer evitar pânico. É você quem sabe. Eu também não estou a fim de ficar ouvindo a horda de nerds e as massas em geral dando ataque histérico. Durma um pouco, Z. Vejo você à noite – ela acenou discretamente para Stark e fechou bem a porta ao sair.
Stark veio se sentar pesadamente ao meu lado. Ele fez uma rápida careta, provavelmente sentindo dor no peito. Pôs o arco e a flecha na mesa ao lado e me deu um sorriso triste.
– Quer dizer que não vou precisar do arco e flecha?
– Você acha que vai?
– O que significa que minhas mãos agora estão convenientemente livres – ele abriu seus braços para mim e me olhou daquele seu jeitinho metido. – Por que você não vem para cá, Z.?
– Espera – corri até a janela para ganhar tempo enquanto pensava como eu era capaz de passar dos braços de um para outro. – Não posso descansar enquanto não tiver certeza de que você não vai se incinerar – balbuciei. Enquanto puxava as venezianas, não resisti e dei uma olhadinha para fora, e fui agraciada com a visão de um dia com pouquíssima luz. Era um mundo silencioso e cinzento, repleto de gelo e penumbra. Nada se movia. Era como se a vida fora do convento, junto com as árvores, a grama e os cabos de força derrubados tivesse congelado. – Bem, acho que isso explica como você chegou aqui sem fritar. Não tem sol lá fora – fiquei olhando pela janela, pasma com aquele mundo transformado em gelo.
– Eu sabia que não estava correndo perigo – Stark disse da cama em que estava. – Senti que o sol havia saído, mas o brilho não passa por todo o gelo e as nuvens. Vir para cá não foi problema – então ele acrescentou: – Z., você pode vir aqui? Minha mente diz que você está bem, mas meu instinto ainda acusa alguma coisa.
Dei meia-volta, surpresa em ver sumir da sua voz o tom arrogante. Saí da janela, me aproximei, dei-lhe minha mão e me sentei na beira da cama. – Eu estou bem, bem melhor do que você estaria se tivesse vindo correndo para cá no meio de uma manhã de sol.
– Quando senti seu medo, tive de vir. Mesmo arriscando a vida. Faz parte do Juramento que fiz.
– É mesmo?
Ele assentiu, sorriu e levou minha mão aos lábios.
– Mesmo. Você é minha senhora e minha Grande Sacerdotisa. E vou sempre protegê-la.
Levei a mão ao rosto dele e não consegui parar de olhar e, por alguma razão, isso de repente me fez chorar.
– Ei, não faz isso... não chora – Ele limpou as lágrimas do meu rosto. – Vem cá.
Sem dizer nada, deslizei ao seu lado, tomando cuidado para não esbarrar em seu peito. Ele me envolveu com o braço e eu me aconcheguei nele, desejando que o calor de seu toque varresse a memória da paixão fria de Kalona.
– Ele faz de propósito, sabia?
Nem precisei perguntar. Sabia que ele estava falando de Kalona. Stark continou: – O que ele te faz sentir não é de verdade. Faz parte dos seus truques. Ele encontra a fraqueza da pessoa e a usa – Stark fez uma pausa, e percebi que ele queria dizer mais. Mas eu não queria ouvir. Queria me aninhar no porto seguro dos braços do meu guerreiro, queria dormir e esquecer.
Mas não consegui. Depois das lembranças de A-ya e das visões de Aphrodite, não dava para dormir.
– Vamos – eu disse. – Que mais?
Senti o braço dele me envolvendo com mais força.
– Kalona sabe que seu ponto fraco é a ligação que você tem com aquela garota Cherokee que o levou para a armadilha debaixo da terra.
– A-ya – lembrei-lhe.
– É, A-ya. Ele vai usar A-ya contra você.
– Eu sei.
Senti que ele relutou, mas acabou dizendo: – Você tem desejo por ele. Por Kalona. Ele a faz querê-lo. Você resiste, mas ele te toca.
Meu estômago afundou e senti vontade de vomitar, mas respondi com sinceridade: – Eu sei, e morro de medo.
– Zoey, acredito que você vá continuar dizendo não para ele, mas, se um dia ceder, pode contar comigo. Vou ficar entre você e Kalona, nem que seja a última coisa que faça.
Deitei a cabeça em seu ombro, lembrando muito bem que Aphrodite não havia dito nada sobre Stark estar presente em suas visões.
Ele virou a cabeça e me beijou de leve na testa.
– Ah, aliás, que linda camisola.
Uma risadinha inesperada me escapou.
– Se você não estivesse tão machucado, eu ia te dar uma porrada.
Ele deu seu sorrisinho metido.
– Ei, eu gostei. Fico imaginando que estou na cama com uma menina rebelde daqueles antigos internatos católicos esquisitos só para meninas. Quer me contar sobre você e suas amiguinhas peladas fazendo guerra de travesseiros?
Revirei os olhos para ele. – Ahn, talvez mais tarde, quando você não estiver mais se recuperando depois de quase morrer.
– Tá legal. Estou cansado demais para fazer qualquer coisa de impressionante mesmo.
– Stark, por que você não quer beber do meu sangue? Só um pouquinho – fui me aproximando, e ele começou a protestar. – Olha, Kalona não está aqui. Na verdade, pelo meu sonho dá para concluir que esteja bem longe, pois não tem ilha nenhuma perto de Oklahoma.
– Você não sabe onde ele está. No seu sonho, ele podia fazê-la achar que estava em qualquer lugar.
– Não, ele está em uma ilha – ao falar, senti que estava certa. – Ele tinha que ir para uma ilha para retomar as forças. Você faz ideia de onde seja? Já o ouviu conversar com Neferet sobre alguma ilha?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ele nunca disse nada sobre isso perto de mim, mas o fato de ser uma ilha indica que você o feriu. De verdade.
– O que significa que estou bem agora, e isso também quer dizer que não tem problema você beber do meu sangue.
– Não – ele repetiu, irredutível.
– Você não quer?
– Não seja insana! Eu quero, mas não posso. Não podemos. Agora não.
– Escuta, você precisa do meu sangue e da minha energia, ou espírito, ou sei lá, para melhorar – levantei o queixo para ele ver bem minha jugular. – Então, vamos lá. Me morde – fechei os olhos e respirei fundo.
Stark riu, o que me fez abrir os olhos e me deparar com ele segurando o peito de dor. Depois de parar um pouco para respirar, ele voltou a rir.
Olhei para ele de cara feia.
– Qual é a graça?
Stark conseguiu enfim se controlar.
– É que parece que você acabou de sair de um daqueles filmes antigos de Drácula. E devia estar falando do jeito esquisito que falam os vampiros desses filmes – ele fez uma cara medonha e mostrou os dentes.
Senti minhas bochechas começando a arder e me afastei dele.
– Deixa pra lá. Esquece que toquei no assunto. Vamos dormir e pronto, tá? – comecei a me virar para o lado, mas Stark me segurou pelo ombro, me fazendo virar para ele.
– Espera, espera... Tô fazendo besteira – de repente ele ficou sério. – Zoey – Stark tocou meu rosto. – Não vou beber do seu sangue porque não posso. Não porque não quero.
– É, já ouvi isso – eu ainda estava constrangida e tentei virar a cabeça, mas Stark me forçou a olhar para ele.
– Ei, desculpe – sua voz ficou grave e sexy. – Eu não devia ter rido de você. Devia ter dito logo a verdade, mas ainda sou novo nesse negócio de ser guerreiro. Preciso de um pouquinho de tempo para pegar o jeito da coisa – ele passou o polegar na maçã do meu rosto, seguindo a linha das tatuagens. – Devia ter dito que a única coisa que quero mais do que provar do seu sangue é saber que você está em segurança e forte – ele me beijou. – Além do mais, não preciso beber do seu sangue, pois sei que vou melhorar – ele esfregou os lábios nos meus. – Quer saber como sei disso?
– Ahã – murmurei.
– Sei disso porque sua segurança é minha força, Zoey. Durma agora. Estou aqui – ele se deitou, me aninhando ao seu lado.
Pouco antes de meus olhos se fecharem, sussurrei: – Se alguém tentar me acordar, você pode fazer o favor de matar?
Stark riu. – Como quiser, minha senhora.
– Ótimo – fechei os olhos e adormeci no abraço forte do meu guerreiro, protegida de sonhos e fantasmas do passado.
15
Aphrodite
– Sério mesmo, gayzinhos . Voltem para a cama juntos, eeeeca. Eu preciso do meu vamp pelo resto da noite – Aphrodite estava em pé, de braços cruzados, logo depois da porta do quarto onde estavam dormindo Darius, Damien, Jack e Duquesa. Ela reparou, sentindo uma ligeira irritação, que Damien, Jack e Duquesa estavam aninhados juntos em uma só cama. Eles estavam parecendo filhotinhos de cachorro, mas não era exatamente justo da parte dos pinguins acharem normal eles dormirem juntos, enquanto a obrigavam a dormir com Zoey. Ou pelo menos tentavam obrigá-la.
– Que foi, Aphrodite? O que houve? – Darius correu para perto dela, com uma das mãos vestindo uma camiseta para cobrir aquele peito lindo e com a outra calçando sapatos. Como sempre, ele já estava alerta bem antes dos outros, o que era outra razão para ela se apaixonar cada vez mais.
– Está tudo bem. É que Zoey está dormindo com Stark. No nosso quarto . E não tô a fim de segurar vela. Por isso também vamos fazer um pequeno remanejo.
– Está tudo bem com Zoey? – Damien perguntou.
– Acho que só agora as coisas ficaram melhores para o lado dela – Aphrodite respondeu.
– Não achei que Stark estivesse disposto a, bem, fazer coisas – Jack disse delicadamente, com cara de sono, os cabelos desgrenhados e os olhos inchados. Aphrodite achou que ele estava com mais cara de filhotinho de cachorro do que nunca, fofo mesmo. É claro que preferia arrancar os olhos a assumir isso em voz alta.
– Ele conseguiu subir até nosso quarto, então acho que está bem melhor.
– Iiiih, Erik não vai gostar disso – Jack disse alegremente. – Amanhã vai rolar um drama afetivo daqueles.
– O drama nesse departamento acabou. Z. deu o fora em Erik esta noite.
– É mesmo? – Damien perguntou.
– É, já estava na hora. Aquela palhaçada de ciúme tinha que acabar – Aphrodite disse.
– E Z. está bem mesmo? – Damien perguntou.
Aphrodite não gostou de ver o olhar tipicamente interessado de Damien. Ela não ia abordar o fato de Kalona ter entrado no sonho de Zoey e que era por isso que Stark estava dormindo com ela. Também não ia falar sobre sua visão, algo que teria o prazer de jogar a culpa em Zoey no futuro por ela ter guardado segredo sobre o assunto, o que deixaria Damien furioso. Assim, para afastar a Senhorita Fuxiqueira, ela levantou uma das sobrancelhas perfeitas e falou com seu típico tom de desprezo: – Você é quem, a mãe gay dela?
Como Aphrodite já previa, Damien franziu instantaneamente a sobrancelha.
– Não, sou amigo dela!
– Por favor. Que tédio. Até parece que ninguém sabe disso. Zoey. Está. Bem. Deusa! Dá um tempo para ela respirar um pouco.
Damien franziu o cenho.
– Eu a deixo respirar, sim. Só estava preocupado com ela, só isso.
– Cadê o Heath? Ele já sabe que ela terminou com Erik e que está, bem, dormindo com Stark ? – Jack terminou a frase com um sussurro teatral.
Aphrodite revirou os olhos.
– Eu não estou nem aí para Heath e, a não ser que Z. precise de um lanchinho, acho que não deve estar muito interessada em saber onde ele está. Ela está ocupada – Aphrodite pronunciou as últimas palavras claramente. Ela realmente não gostava de magoar os sentimentos de Damien e seu namorado/namorada Jack, mas esse era o único jeito de deixar Damien de fora da história, e, mesmo assim, nem sempre dava certo. Ela se virou para Darius, que estava ao seu lado, observando-a de perto com uma expressão que misturava diversão e preocupação. – Pronto, gatão?
– É claro – ele olhou para Damien e Jack antes de fechar a porta. – Encontro vocês dois depois que anoitecer.
– Tá bom! – Jack cantarolou enquanto Damien fuzilava Aphrodite com olhos penetrantes.
Já no corredor, ela deu só uns dois passos e Darius pegou seu pulso e a fez parar. Antes que pudesse dizer alguma coisa, ele colocou as mãos nos seus ombros e olhou bem dentro de seus olhos.
– Você teve uma visão – ele disse simplesmente.
Aphrodite sentiu lágrimas brotando em seus olhos. Ela estava total e absolutamente louca por aquele homem enorme que a conhecia tão bem e parecia gostar tanto dela.
– É.
– Você está bem? Porque está pálida e seus olhos ainda estão avermelhados.
– Eu estou bem – ela respondeu, apesar de não soar convincente nem para si mesma. Ele a tomou nos braços e ela se deixou abraçar, sem palavras para expressar como se sentia fortalecida pela força dele.
– Foi tão ruim quanto da última vez? – ele perguntou.
– Foi pior – com o rosto enfiado no peito dele, Aphrodite falou tão baixinho e docilmente que qualquer pessoa que a conhecesse ficaria chocada.
– Outra visão de morte de Zoey?
– Não. Desta vez foi uma visão do fim do mundo, mas Zoey estava nela.
– Vamos voltar para o quarto dela?
– Não, ela está mesmo dormindo com Stark. Parece que Kalona andou entrando nos sonhos dela e, se ela dormir com algum cara, ele não entra no sonho.
– Ótimo – Darius respondeu. De repente, eles ouviram um som no fim do corredor e Darius puxou Aphrodite para o canto, escondendo-se nas sombras, enquanto uma freira passava sem nem perceber a presença dos dois.
– Ei, falando em dormir... Eu sei que Z. é a Grande Sacerdotisa, mas não é a única que está precisando de seu sono de beleza – Aphrodite sussurrou quando voltaram a ficar sozinhos no corredor.
Darius olhou para ela com uma cara pensativa.
– Você está certa. Deve estar exausta, especialmente depois de ter tido uma visão.
– Eu não estava falando só de mim, Sr. Machão. Estava pensando onde poderíamos ir por aqui e tive uma ideia, brilhante, se me permite dizer.
Darius sorriu.
– Claro que sim.
– Enfim. Lembro-me de que você disse às freiras pinguins que Stark não devia ser perturbado por, no mínimo, oito horas. Ou seja, ele não está em seu quarto bastante isolado, escuro e aconchegante. O quarto está, na verdade, tragicamente vazio – Aphrodite esfregou o nariz na lateral do pescoço dele, ficou na ponta dos pés e mordiscou o lóbulo da orelha.
Ele riu e passou o braço ao redor dela.
– Você é brilhante.
A caminho do quarto vazio de Stark, Aphrodite contou a Darius sobre a visão que teve e sobre o sonho de Zoey. Ele a escutou com muita atenção, o que foi a segunda coisa que a fez sentir tanta atração por ele.
É claro que a primeira era o fato de ele ser tão gostoso.
O quarto de Stark era aconchegante e escuro, iluminado por uma só vela. Darius puxou uma cadeira para perto da porta e a encaixou na maçaneta para impedir a entrada de qualquer um. Então, vasculhou as gavetas da cômoda no canto do quarto, pegou lençóis e cobertores e refez a cama, enquanto dizia qualquer coisa sobre não querer que ela dormisse nos lençóis de um vampiro ferido.
Aphrodite ficou observando Darius enquanto tirava as botas e a calça jeans, e depois tirou o sutiã por debaixo da blusa. Ela pensou que era esquisito sentir que alguém estava cuidando dela, alguém que na verdade parecia gostar dela pelo que era, aliás, uma enorme surpresa. Os caras gostavam dela por ser gostosa, ou por ser rica, popular, um desafio, ou, mais frequentemente ainda, por ser uma cachorra. Ela sempre achou impressionante como os caras adoravam as cachorras. Eles não gostavam dela por ela ser Aphrodite. Na verdade, normalmente nem perdiam tempo tentando descobrir quem ela era debaixo daqueles lindos cabelos, pernas compridas e jeito de durona.
Mas a coisa mais chocante em seu relacionamento com Darius, e aquilo estava com certeza se transformando em um relacionamento, era o fato de que eles ainda não tinham ido para a cama. Ainda. Claro que todo mundo achava que eles transavam que nem coelhos; e ela deixava que pensassem isso mesmo, até dava força. Mas não estavam indo para a cama. E, por alguma razão, isso nem parecia esquisito. Eles dormiam juntos e até já tinham dado uns amassos bem quentes, mas não passaram disso.
Subitamente chocada ao se dar conta disso, Aphrodite entendeu o que estava acontecendo entre ela e Darius. Eles estavam indo devagar e procurando conhecer melhor um ao outro. Conhecer de verdade. E ela estava descobrindo que gostava de ir devagar, quase tanto quanto gostava de conhecer Darius.
Eles estavam se apaixonando!
Essa ideia aterradora fez os joelhos de Aphrodite enfraquecerem de modo que, de repente, ela foi para a cadeira no canto do quarto e, sentindo-se tonta, sentou-se.
Darius terminou de fazer a cama e olhou para ela, confuso.
– O que você está fazendo aí?
– Só estou sentada – ela respondeu rapidamente.
Ele virou a cabeça para o lado.
– Você está bem mesmo? Você disse que pegou fogo com os vampiros em sua visão. Ainda está sentindo os efeitos dela? Você está pálida.
– Estou com um pouquinho de sede, e meus olhos ainda estão ardendo, mas estou bem.
Ao ver que ela continuou sentada do outro lado do quarto, sem fazer nenhum movimento de ir para a cama, ele deu um sorriso confuso e disse: – Não está cansada?
– É, tô sim.
– Quer que eu pegue água para você?
– Ah, não! Eu mesma pego. Sem problema – Aphrodite saltou da cadeira como uma daquelas marionetes bizarras amarradas por cordas e foi até a pia do outro lado do quarto. Estava enchendo com água um copinho de papelão quando Darius de repente veio por trás. Suas mãos fortes estavam novamente nos seus ombros. Desta vez seus polegares começaram a massagear gentilmente os músculos megatensos em sua nuca.
– Você concentra toda a sua tensão aqui – ele disse, passando da nuca para os ombros.
Aphrodite tomou o copo de água e não conseguiu mais se mexer. Darius massageou seus ombros em silêncio, dizendo com seus toques o quanto gostava dela. Enfim, ela deixou o copo escorrer de seus dedos. Sua cabeça ficou totalmente relaxada e ela respirou fundo, soltando um suspiro de prazer.
– Suas mãos são nada menos do que mágicas.
– Tudo por você, minha dama.
Aphrodite sorriu e apoiou a cabeça nas mãos dele, soltando-se cada vez mais. Ela adorava o fato de Darius tratá-la como se fosse sua própria Grande Sacerdotisa, mesmo ela não tendo mais Marca e mesmo que ela jamais pudesse ser uma vampira. Adorava o fato de ele não ter dúvida de que ela era especial para Nyx, de ter sido Escolhida pela Deusa. Ele deixava claro que não ligava a mínima se ela tinha Marca ou não. Ela adorava o fato de ele...
Aiminhadeusa! Ela o amava mesmo! Puta merda!
Aphrodite levantou a cabeça e se virou tão rápido que Darius levou um susto e deu um passo para trás, automaticamente abrindo espaço para ela.
– O que foi? – ele perguntou.
– Eu amo você! – ela disse sem parar para pensar, e depois levou a mão à boca, parecendo querer fechá-la quando já era tarde demais e as palavras já tinham saído como em uma explosão.
O guerreiro deu um longo e lento sorriso.
– Fico feliz de ouvi-la dizer isso. Eu também a amo.
Os olhos de Aphrodite começaram a se encher de lágrimas, e ela piscou com força para não deixá-las rolar rosto abaixo, passando por Darius em direção ao outro lado do quarto.
– Deusa! Que saco!
Em vez de responder àquele faniquito, Darius simplesmente ficou olhando enquanto ela ia para a cama. Aphrodite sentiu seu olhar firme enquanto pensava se devia se sentar na cama ou deitar para dormir. No final, ela não fez nem uma coisa nem outra, pois não gostou da cena que imaginou na cama. Ela já estava se sentindo vulnerável e exposta demais ali na frente dele, de camiseta, calcinha e nada mais, e se virou para encará-lo.
– Que foi? – ela perguntou com um arzinho petulante.
Ele inclinou a cabeça. Um sorriso triste se formou nos cantos de seus lábios. Ela achou que seus olhos pareciam décadas mais velhos do que o resto do rosto.
– Seus pais não se amam, Aphrodite. Pelo que você me falou, eles talvez não sejam capazes de sentir essa emoção por ninguém, e isso inclui você.
Ela levantou o queixo e olhou nos olhos dele.
– E qual é a novidade nisso que está dizendo?
– Você não é a sua mãe.
Ele pronunciou as palavras gentilmente, mas ela sentiu como se fossem mil punhais sendo cravados em seu coração.
– Eu sei disso! – Aphrodite sentiu seus lábios subitamente frios.
Darius se aproximou lentamente. Aphrodite pensou em como ele era lindo e como sempre parecera tão poderoso. Ele a amava ? Como? Por quê? Será que ainda não tinha se dado conta de como ela era insuportável?
– Será que você sabe mesmo disso? Você é capaz de amar, mesmo que sua mãe não seja – ele disse.
Mas será que sou capaz de ser amada? Ela quis gritar a pergunta, mas não conseguiu. O orgulho falou mais alto para ela do que a compreensão que viu nos olhos de Darius, e se calou. Então, continuou a agir do modo que a fazia se sentir segura: continuou na defensiva.
– É claro que sei disso. Mas esta história entre nós dois não tem nada a ver. A verdade é que você é um vampiro. Eu sou humana. Eu poderia ser, no máximo, sua consorte, e nem isso posso, pois já sou Carimbada com a demente da Stevie Buscapé Rae. Carimbagem da qual parece que não consigo me livrar nem você me mordendo também – Aphrodite fez uma pausa, tentando não pensar na ternura que Darius demonstrara ao beber de seu sangue, mesmo o sangue de Carimbada tendo gosto ruim para ele. Ela tentou, sem sucesso, não pensar no prazer e na paz que encontrava em seus braços, tudo isso mesmo sem fazer sexo com ele.
– Eu não acho que esteja certa em relação a tudo isso. Você não é meramente humana, e sua Carimbagem com Stevie Rae não nos afeta. Para mim, isso é prova de como Nyx a considera importante. Ela sabe que Stevie Rae precisa de você.
– Mas você não precisa de mim – ela disse com amargura.
– Eu preciso de você sim – ele a corrigiu com firmeza.
– Pra quê? A gente nem trepa!
– Aphrodite, por que está fazendo isso? Você sabe que a desejo, mas nós somos muito mais do que corpos e luxúria. Nossa ligação vai além disso.
– Não sei como! – ela estava perigosamente perto de chorar de novo, o que a deixou ainda mais irritada.
– Eu sei – Darius eliminou o espaço que restava entre os dois e, segurando a mão de Aphrodite, ajoelhou-se na sua frente. – Quero lhe pedir uma coisa.
– Ah, Deusa! O quê? – será que ele ia fazer algo ridículo como pedi-la em casamento?
Ele levou o punho cerrado ao coração e olhou nos olhos dela.
– Aphrodite, Amada Profetisa de Nyx, eu lhe peço que aceite meu Juramento Solene de Guerreiro. Prometo, a partir de hoje, me dedicar a protegê-la com meu coração, minha mente, meu corpo e minha alma. Prometo ser seu acima de tudo e ser seu guerreiro até meu último suspiro neste mundo e no mundo do além, se for a vontade de Nossa Deusa. Você aceita meu voto?
Aphrodite foi tomada por uma onda inebriante de alegria. Darius queria ser seu guerreiro! Mas a alegria durou pouco, pois ela pensou nas implicações desse voto.
– Você não pode ser meu guerreiro. Zoey é sua Grande Sacerdotisa. Se você tiver que ser guerreiro de alguém, tem de ser dela – Aphrodite odiou dizer essas palavras, e mais ainda imaginar Darius se ajoelhando em frente a Zoey.
– Zoey é minha Grande Sacerdotisa, assim como também é sua, mas ela já tem um guerreiro. Fui testemunha do entusiasmo do jovem Stark por ter feito o voto e por agora estar na posição de guerreiro de Zoey. Ela não vai precisar de outro. Além do mais, Zoey já me deu permissão para me oferecer em Juramento a você.
– Ela fez o quê?
O guerreiro assentiu solenemente.
– Eu tinha de explicar a Zoey minhas intenções.
– Então você não está fazendo isso por impulso? Você pensou antes?
– É claro – ele sorriu para ela. – Quero protegê-la para sempre.
Aphrodite balançou a cabeça para os lados em negativa.
– Você não pode fazer isso.
O sorriso de Darius murchou.
– O voto é meu e ofereço a quem quiser. Sou jovem, mas tenho vastos talentos. Eu garanto que posso protegê-la.
– Não foi isso que quis dizer! Sei que você é bom... bom demais! Esse é o problema – Aphrodite começou a chorar em silêncio.
– Aphrodite, eu não entendo.
– Por que você quer ser meu guerreiro? Eu sou insuportável!
Ele voltou a sorrir.
– Você é especial.
Aphrodite balançou a cabeça.
– Eu vou magoar você. Eu sempre magoo todos que se aproximam de mim.
– Então é bom que eu seja um guerreiro forte. Nyx foi sábia ao me dar a você, e estou plenamente satisfeito com a escolha que nossa Deusa reservou para mim.
– Por quê? – agora as lágrimas corriam livremente pelo rosto de Aphrodite, pingando do queixo e ensopando a camiseta.
– Porque você merece alguém que a valorize além do dinheiro, da beleza e do status . Você merece alguém que a valorize pelo que é. Agora volto a perguntar. Você aceita meu voto?
Aphrodite olhou para aquele rosto forte e belo, e algo dentro dela se libertou ao visualizar seu futuro naquele olhar sincero e firme.
– Sim, eu aceito seu voto.
Darius se levantou dando um grito de alegria e pegou sua Profetisa no colo. Então a abraçou gentilmente até o sol se pôr enquanto ela chorava, desatando o nó de tristeza, solidão e raiva que lhe amarrava o coração há tanto tempo.
16
Stevie Rae
Stevie Rae normalmente não tinha problemas para dormir. Tá, isto é um clichê terrível, mas durante o dia ela dormia como se estivesse, digamos, morta. Mas não naquele dia. Naquele dia ela não conseguira calar sua mente, ou, para ser mais sincera, ela não conseguira calar a culpa em sua mente.
O que faria com Rephaim?
Ela devia contar a Zoey. Era o que devia fazer. Disso não restava dúvida.
– Claro, aí Z. ia dar um piti pior do que um gato de rabo comprido em um quarto cheio de cadeiras de balanço – ela murmurou para si mesma e continuou andando de um lado para o outro em frente à entrada do túnel do celeiro de raízes. Stevie Rae estava sozinha, mas ficava olhando furtivamente para os lados como se estivesse esperando que alguém a flagrasse.
E daí se alguém viesse procurá-la? Ela não estava fazendo nada de errado! Só não estava conseguindo dormir, só isso.
Pelo menos ela gostaria que fosse só isso.
Stevie Rae parou de andar e ficou olhando para a tranquilizadora escuridão do túnel que abrira na terra fazia pouco tempo. Que diabo ela ia fazer com Rephaim?
Não podia contar a Zoey, ela não entenderia. Nem Stevie Rae entendia a si mesma! Ela só sabia que não podia abandoná-lo. Não podia dedurá-lo a ninguém. Mas, quando saía de perto dele, quando não estava ouvindo sua voz nem vendo aquela dor tão humana nos seus olhos, quase entrava em pânico, preocupada por estar perdendo totalmente o juízo ao esconder aquele Raven Mocker .
Ele é seu inimigo! O pensamento ficou dando voltas em sua mente, girando e batendo as asas descontroladamente como um pássaro ferido.
– Não, no momento ele não é meu inimigo. No momento, ele está apenas machucado – Stevie Rae falou para dentro do túnel, para a terra que lhe dava força e equilíbrio.
Stevie Rae arregalou os olhos ao lhe ocorrer uma coisa. Era o fato de ele estar ferido que havia originado toda aquela confusão! Se ele estivesse inteiro e a tivesse atacado, ou a outra pessoa, ela não teria hesitado em proteger a si mesma ou alguém mais.
E se eu apenas o levasse para algum lugar onde ele pudesse se curar? Sim! Essa era a resposta! Ela não precisaria protegê-lo. A única coisa que ela não queria era entregá-lo para ser executado. Se o levasse para algum lugar seguro onde ninguém o incomodasse, Rephaim poderia melhorar e escolher seu próprio futuro. Ela resolvera! Talvez ele decidisse se juntar ao pessoal do bem contra Kalona e Neferet. Talvez não. De um jeito ou de outro, não era problema dela.
Mas para onde ele poderia ir?
Então, encarando o interior do túnel, ela percebeu a resposta perfeita, mas que implicava assumir alguns de seus segredos. E ela se perguntou se, ao fazer isso, Zoey entenderia por que ela deixara de lhe contar certas coisas. Ela tinha que entender. Ela também tivera de tomar algumas decisões bastante impopulares antes. De qualquer forma, Stevie Rae desconfiava cada vez mais que Zoey não se surpreenderia muito com o que ela tinha a dizer; sua amiga já devia estar com a pulga atrás da orelha a esta altura do campeonato.
Então ela ia contar tudo a Z., o que pelo menos seria uma garantia de que o lugar para onde ela mandasse Rephaim não se transformasse tão cedo em ponto de encontro de novatos. Ele não ia ficar exatamente sozinho nem em segurança total, mas não seria mais responsabilidade nem problema dela.
Sentindo-se animada e até ligeiramente tonta por ter encontrado uma solução para seu terrível problema, Stevie Rae se reequilibrou e conferiu as horas em seu relógio interno, sempre preciso. Tinha pouco mais de uma hora até o sol se pôr. Em um dia normal, ela jamais conseguiria escapar ilesa ao fazer o que estava planejando, mas hoje sentia que o sol estava muito fraco, tentando brilhar por entre as nuvens, mas sem conseguir atravessar a grossa camada de nuvens cinzentas, pesadas como o gelo que se instalara, pelo jeito em caráter permanente, sobre Tulsa. Ela tinha certeza de que não ia queimar se fosse para fora e, também, de que não haveria nenhuma freira enxerida com tanto gelo ainda caindo do céu e com tudo congelado e escorregadio do lado de fora do convento. O mesmo poderia ser dito sobre os novatos normais. Os vermelhos eram o menor de seus problemas, pelo menos entre o amanhecer e o entardecer. Eles ainda estavam pregados de sono em seus beliches no porão. É claro que todo mundo ia se levantar dentro de uma hora e, se conhecia Z., e ela a conhecia muito bem, haveria uma grande reunião para debater que direção seguir, o que significa que Zoey contaria com a sua presença.
Stevie Rae beliscou as unhas nervosamente. Seria durante o grande debate sobre “o que vamos fazer agora?” que teria de se abrir com Zoey e com todo mundo. Cara, ela não estava nada ansiosa pela hora da reunião.
Para completar a falta de vontade de ir àquela reunião, havia também o fato de Aphrodite ter tido outra visão. Stevie Rae não sabia o que ela tinha visto, mas através de sua Carimbagem sentira a mesma enorme confusão que sua Carimbada sentira por causa da visão, uma confusão que apareceu e sumiu, provavelmente indicando que ela estava caída no sono. O que era bom, pois Stevie Rae não queria que Aphrodite estivesse fisicamente alerta a ponto de sentir o que estava prestes a fazer. E, agora, só podia torcer para que Aphrodite já não soubesse demais.
– Então, é agora ou nunca. Hora de agarrar o touro à unha – Stevie Rae murmurou para si mesma.
Sem dar chance a si mesma de se acovardar, subiu rápida e silenciosamente os degraus do celeiro de raízes e entrou no porão do convento. Claro que todos os novatos vermelhos ainda estavam apagados. O ronco típico de Dallas ressoava pelo quarto escuro, quase a fazendo sorrir.
Ela foi para sua cama vazia e puxou o cobertor. Então, refez o caminho para o porão, seguindo com extraordinária segurança em meio ao breu até a boca do túnel. Entrou nele sem hesitar, adorando o cheiro e a sensação de estar cercada pela terra. Apesar de saber que o que estava prestes a fazer talvez fosse o maior erro de sua vida, a terra ainda assim a tocava e a acalmava, tranquilizando seus nervos à flor da pele como se fosse o abraço familiar de um pai ou uma mãe.
Stevie Rae deu alguns passos já dentro do túnel, e logo veio a primeira leve curva. Então parou e abaixou o cobertor. Respirou fundo três vezes, equilibrando-se. Quando falou, sua voz foi um leve sussurro, mas impregnada de tanto poder que o ar literalmente tremeu como se fosse uma onda de calor emanando do asfalto em um dia quente de verão.
– Terra, você é minha como eu sou sua. Eu a chamo, venha para mim – o túnel ao redor de Stevie Rae ficou instantaneamente tomado pelos aromas de feno e o som do vento soprando por entre as árvores. Ela sentiu a grama inexistente sob os pés. E não foi só isso. Sentiu também a terra ao redor de si, e foi esta a sensação de seu elemento: a da terra como uma entidade dotada de alma.
Ela levantou os braços e apontou com o dedo para o teto baixo do túnel de terra.
– Eu preciso que você se abra para mim. Por favor – o teto tremeu e caiu um pouco de terra, no começo lentamente, mas depois com um som parecido com o de uma velha suspirando, e a terra se abriu acima de Stevie Rae.
Ela pulou para trás por instinto, em direção à proteção das sombras do túnel, mas tinha razão quanto ao sol; realmente não estava dando para vê-lo nem senti-lo. Estava chovendo? Não, ela concluiu quando deu uma olhada no céu lúgubre e umas gotas lhe caíram no rosto, não estava chovendo; estava caindo granizo, bem forte, aliás, o que era melhor ainda para o que tinha a fazer.
Stevie Rae enrolou o cobertor ao redor dos ombros e começou a curta subida pelo lado desmoronado do túnel em direção ao mundo exterior. Ela emergiu não muito longe da Gruta de Maria, entre ela e as árvores que ladeavam a margem leste do convento. Estava tão escuro que parecia que o sol já havia se posto, mas mesmo assim Stevie Rae fez uma careta por causa do desconforto em razão da luz do dia, que a deixava vulnerável, mesmo a luz estando tão filtrada que era praticamente inexistente.
Ela espantou a sensação de desconforto e se recompôs rapidamente, avistando um pouco à esquerda o galpão onde deixara Rephaim. Abaixou a cabeça devido aos projéteis cortantes de chuva congelada e correu até o galpão. Como na noite anterior, ao tocar o trinco, não conseguiu deixar de pensar Tomara que ele tenha morrido... Seria mais fácil se estivesse morto...
O galpão estava mais quente do que ela havia imaginado e com um cheiro estranho. Além do cheiro de cortador de grama, de outros equipamentos de jardim movidos a combustível e de vários pesticidas e fertilizantes estocados nas prateleiras do galpão, tinha algo mais. Algo que lhe arrepiou a pele. Stevie Rae deu a volta pelo cortador de grama que estava no meio do caminho e passou a andar lentamente pelos fundos do galpão quando, de repente, se lembrou de que cheiro era aquele e parou completamente.
O galpão, com o aroma de Rephaim e de seu sangue, tinha o mesmo cheiro da escuridão que a cercara depois que “desmorrera”, quando sua humanidade fora quase totalmente destruída. O cheiro a lembrava daquele tempo sombrio e dos dias e noites repletos de raiva e desejo, de violência e de medo. Ela soltou um ofego ao ligar uma coisa à outra e entender tudo. Os novatos vermelhos, aqueles outros novatos vermelhos, os mesmos que ela tanto relutara em revelar a Zoey, tinham esse mesmo cheiro. Não era uma combinação perfeita, e ela duvidava que um nariz menos apurado do que o seu conseguisse perceber, mas ela conseguia. Ela percebia, sim. E um mau pressentimento fez seu sangue gelar.
– Você veio sozinha de novo – a voz de Rephaim se fez ouvir.
17
Stevie Rae
As palavras de Rephaim a alcançaram, vindas da escuridão. Sem ver o monstro que ele era, sua voz tinha uma qualidade que o fazia soar assombrosa e dolorosamente humana. Afinal fora isso que o salvara no dia anterior. Sua humanidade tocara Stevie Rae, e ela não conseguira matá-lo.
Mas agora ele estava soando diferente, mais forte do que antes. Ela ficou ao mesmo tempo aliviada e preocupada.
Mas espantou a preocupação. Ela não era nenhuma criança indefesa que fugia ao primeiro sinal de perigo. Era bem capaz de dar umas porradas naquele “passarinho”. Stevie Rae empinou a coluna. Tomara a decisão de ajudá-lo a fugir, e era isso que faria, caraca.
– E quem você estava esperando? John Wayne e a cavalaria? – imitando a mãe quando um de seus irmãos ficava doente e manhoso, Stevie Rae foi em frente. A silhueta que antes era uma bola escura acocorada nos fundos do galpão ganhara nitidez, e ela o encarou com a cara mais cética que podia fazer. – Bem, você não morreu e está sentado. Deve estar se sentindo melhor.
Ele virou a cabeça levemente de lado.
– Quem é John Wayne e cavalaria?
– A cavalaria. Quer dizer que o pessoal do bem está a caminho. Mas não se anime. Não tem exército nenhum a caminho. Sou só eu mesmo.
– Você não se considera do bem?
Ele a surpreendeu com sua capacidade de conversar de verdade, e ela pensou que, se fechasse os olhos ou desviasse o olhar, quase conseguiria achar que ele era um cara normal. É claro que ela sabia que não era nada disso. Jamais poderia fechar os olhos perto dele nem desviar o olhar. E, se tinha uma coisa que ele não era, essa coisa era um cara normal.
– Bem, é, sou boa, mas não sou exatamente um exército – Stevie Rae olhou para ele, examinando-o de maneira exagerada. Ele ainda estava com a aparência péssima, bastante abatido, ensanguentado e arrebentado, mas não estava mais deitado de lado e todo encarquilhado. Estava sentado, recostado mais para o lado que estava melhor, o esquerdo, nos fundos do galpão. Ele havia arrumado as toalhas que ela deixara sobre seu corpo como se fossem fatias de cobertor. Seus olhos estavam luminosos e alertas, e jamais se desviavam do rosto dela. – E então, você está se sentindo melhor?
– Como você disse, não morri. Onde estão os outros?
– Eu já disse, os outros Raven Mockers partiram com Kalona e Neferet.
– Não. Estou falando dos outros filhos e filhas de homem.
– Ah, os meus amigos. A maioria está dormindo. Não temos muito tempo. Não vai ser fácil, mas acho que bolei um jeito de você sair daqui inteiro – ela fez uma pausa e parou de beliscar as unhas. – Você consegue caminhar, não é?
– Farei o que for preciso.
– Que diabo isso quer dizer? Diga simplesmente sim ou não. É importante.
– Sssssim.
Stevie Rae engoliu em seco ao ouvi-lo sibilar e concluiu que estava enganada ao pensar que o acharia normal se não tivesse de olhar para ele.
– Bem, tá, vamos logo com isso então.
– Onde você está me levando?
– A única coisa que consegui pensar é que preciso que vá para um lugar onde possa ficar em segurança e sarar. Você não pode ficar aqui. Eles vão te achar, com certeza. Ei, você não tem o mesmo problema que seu pai quanto a ficar debaixo da terra, né?
– Eu prefiro o ccccccéu à terra – ele soou amargo, praticamente mordendo as palavras e sibilando com ênfase especial a palavra “céu”.
Stevie Rae colocou as mãos na cintura.
– Quer dizer que você não pode ir para debaixo da terra?
– Prefiro não ir.
– Bem, você prefere ficar vivo e escondido debaixo da terra, ou aqui em cima, correndo o risco de ser encontrado e morto? – ou pior, ela pensou, mas não disse em voz alta.
Ele demorou um pouco para responder, e Stevie Rae começou a imaginar que talvez Rephaim não quisesse realmente viver, uma ideia que não havia levado em consideração. Mas achou que fazia sentido. Seus próprios amigos o abandonaram à morte, e o mundo moderno era tipo um zilhão de vezes diferente do que era na época em que ele estava vivo e encarnado antes, aterrorizando vilarejos Cherokees. Será que tinha feito uma besteira muito grande ao não deixá-lo morrer?
– Eu prefiro viver.
Pela expressão no rosto dele, Stevie Rae pensou que talvez suas palavras fossem uma surpresa tão grande para ele quanto para ela.
– Tá. Tudo bem. Então, você precisa sair daqui – ela deu um passo em direção a ele, mas parou. – Preciso fazer você prometer de novo que vai ser bonzinho?
– Estou fraco demaissss para oferecer perigo – ele disse simplesmente.
– Tudo bem, então vou considerar que sua palavra de antes continua valendo. Basta você não tentar fazer nenhuma besteira e vamos conseguir resolver isso – Stevie Rae caminhou para perto dele e se agachou. – Acho melhor dar uma olhada nos seus curativos. Devem estar precisando ser trocados ou apertados antes de sairmos – ela conferiu metodicamente sua situação enquanto seguia comentando o que estava fazendo. – Bem, parece que o musgo está agindo. Não estou vendo muito sangue. Seu tornozelo está bem inchado, mas não acho que esteja quebrado. Pelo menos não estou sentindo nenhum osso quebrado – ela enfaixou de novo o tornozelo e apertou as demais ataduras, deixando a asa despedaçada por último. Stevie Rae começou a fixar os curativos que ficaram soltos nas costas de Rephaim que, até então em silêncio e totalmente imóvel, se encolheu e gritou de dor.
– Ah, droga! Foi mal. Sei que a asa está bem ruim.
– Amarre mais pedaços de pano ao redor da asa. Aperte mais contra o corpo. Não vou conseguir caminhar se você não imobilizar a asa completamente.
Stevie Rae assentiu.
– Vou fazer o que posso – ela arrancou mais tiras das toalhas e então ele se inclinou para que ela pudesse alcançar suas costas. Stevie Rae rangeu os dentes e trabalhou com o máximo de agilidade e gentileza que pôde, odiando vê-lo tremer e gemer de dor. Quando terminou com a asa, pegou um pouco de água com a concha e o ajudou a beber. Depois que ele parou de tremer, ela se levantou e estendeu as mãos para ele. – Bem, vamos agarrar o touro à unha.
Ele a fitou de um jeito nitidamente confuso, apesar da estranheza natural de seus traços de homem-pássaro.
Ela sorriu.
– Quero dizer levantar e enfrentar a situação, por mais difícil que seja.
Ele assentiu e lentamente estendeu as mãos para segurar as dela. Ela se preparou e puxou, dando-lhe tempo para se recompor. Ele soltou um ofego de dor e conseguiu se equilibrar, apesar de ter se apoiado um pouco no tornozelo machucado e não parecer muito firme.
Stevie Rae continuou segurando as mãos dele para que pudesse se acostumar a ficar de pé e, se por um lado ela se preocupava com a possibilidade de ele desmaiar, por outro pensou como era estranho ele ter mãos tão quentes e humanas. Ela sempre achou que os pássaros fossem frios e agitados. Na verdade, não gostava muito de aves, nunca gostara. As galinhas de sua mãe sempre a matavam de susto com seus berros, batendo asas feito loucas. De repente, teve um breve flashback de si mesma colhendo ovos quando uma galinha gorda voou para cima dela, por pouco não lhe atingindo os olhos.
Stevie Rae estremeceu e Rephaim soltou suas mãos.
– Você está bem? – ela perguntou para cobrir o silêncio desconfortável que se formara entre eles.
Ele fez que sim com um grunhido.
Ela concordou com a acabeça.
– Espere aí. Antes de tentar caminhar muito, vamos ver se arrumo algo para ajudar – Stevie Rae procurou em meio ao material de jardinagem e acabou optando por uma boa pá de ferro com cabo de madeira. Voltou para perto de Rephaim, comparou o tamanho da pá com o seu e, com apenas um movimento ágil, arrancou o cabo de madeira e lhe entregou. – Use isso aqui como bengala. Você sabe, para tirar um pouco do peso do seu tornozelo machucado. E pode se apoiar em mim um pouquinho, mas depois que entrarmos no túnel você vai ter que continuar sozinho, e aí vai precisar disto.
Rephaim pegou o cabo de madeira.
– Sua força é impressionante.
Stevie Rae deu de ombros.
– É bastante útil.
Rephaim tentou dar um passo para a frente usando o cabo de madeira para apoiar um pouco do peso e até conseguiu caminhar, mas Stevie Rae viu que estava sentindo muita dor. Mesmo assim, ele se arrastou sozinho até a porta do galpão, onde fez uma pausa e olhou para ela com expectativa.
– Primeiro vou enrolar isto aqui em você. Estou contando que ninguém vá nos ver, mas é possível que alguma freira bisbilhoteira esteja olhando pela janela, e, se estiver, só vai me ver ajudando alguém enrolado em um cobertor. Pelo menos é o que espero.
Rephaim assentiu e Stevie Rae enrolou nele o cobertor, colocando-o sobre a cabeça e prendendo a ponta na atadura sobre o peito do homem-pássaro.
– Meu plano é o seguinte: você conhece os túneis nos quais estávamos ficando debaixo da estação de trem desativada no centro da cidade, não conhece?
– Conheço.
– Bem, eu meio que os ampliei.
– Não entendi.
– Minha afinidade é com o elemento terra. Posso controlá-la, mais ou menos. Pelo menos alguns aspectos dela consigo controlar. Uma das coisas que recentemente descobri é que posso fazer a terra se mexer, tipo para abrir um túnel. E foi o que fiz para fazer uma ligação entre a estação e o convento.
– Foi esse tipo de poder que meu pai disse que você tinha.
Stevie Rae com certeza não queria falar com Rephaim sobre seu horroroso pai, nem pensar por que ele teria falado sobre ela e seus poderes.
– É, bem, enfim... abri parte do túnel que fiz para poder subir aqui. Não fica longe do galpão. Vou te ajudar a chegar lá. Quando chegar ao túnel, quero que vá por ele até chegar à estação de trem. Lá tem abrigo e comida. Na verdade, é legal pra caramba. Você vai ficar de boa por lá.
– E por que seus aliados não vão me achar nesses túneis?
– Primeiro, porque vou fechar o túnel que conecta a estação e o convento. Depois vou dizer aos meus amigos alguma coisa para fazer com que fiquem afastados dos túneis da estação por enquanto. E espero que “por enquanto” seja tempo suficiente para você sarar e se virar antes que eles apareçam.
– O que você vai dizer para eles ficarem longe dos túneis?
Stevie Rae suspirou e esfregou o rosto com as mãos.
– Vou contar a verdade. Que há mais novatos vermelhos, que eles estão escondidos nos túneis da estação e que são perigosos, pois não optaram pelo bem, e sim pelo mal.
Rephaim ficou em silêncio por vários segundos. E enfim disse: – Neferet tinha razão.
– Neferet! Como assim?
– Ela vivia dizendo ao meu pai que tinha aliados entre os novatos vermelhos e que eles seriam soldados prontos a lutar por sua causa. Era desses novatos vermelhos que ela estava falando.
– Só pode ser – Stevie Rae murmurou com tristeza. – Eu não queria acreditar nisso. Queria acreditar que eles fossem acabar escolhendo a humanidade ao invés da escuridão. Só precisavam de tempo para esclarecer as coisas em suas cabeças, foi o que pensei. Acho que eu estava errada.
– São esses novatos que vão manter seus amigos longe dos túneis?
– Mais ou menos. Na verdade, sou eu quem vai mantê-los afastados. Vou ganhar tempo para você e para eles – ela olhou nos seus olhos. – Mesmo se eu estiver errada.
Sem dizer mais nada, ela abriu a porta, foi para o lado dele, levantou seu braço e o colocou sobre seus ombros, e assim os dois saíram em direção ao anoitecer gelado.
Stevie Rae sabia que Rephaim estava sofrendo dores terríveis ao sair do galpão em direção à abertura no chão que ela fizera e que dava no túnel. Mas o único som que ele emitiu foi o de sua respiração difícil. Apoiou todo seu peso sobre Stevie Rae, que ficou novamente surpresa com o calor e a sensação familiar de um braço masculino sobre o ombro, misturado ao corpo emplumado que ela estava ajudando a carregar. Ela ficou olhando para ele, quase morta de medo de que alguém, como o irritante metido a macho do Erik, aparecesse. O sol velado estava se pondo. Stevie Rae podia senti-lo se afastando do céu coberto de gelo. Era questão de tempo para que os novatos, os vamps e as freiras começassem a se mexer.
– Vamos lá, você está indo bem. Você consegue. Temos que nos apressar – ela ficou murmurando para Rephaim, encorajando-o e tentando acalmá-lo em meio ao medo e culpa que ela sentia.
Mas ninguém gritou nem correu atrás deles e, em muito menos tempo do que previra, Stevie Rae chegou à abertura para o túnel.
– Vá descendo de costas, com as mãos e os pés. Não é longe. Vou segurá-lo a maior parte do caminho para te ajudar a ficar firme.
Rephaim não perdeu tempo nem energia com palavras. Ele assentiu e tirou o cobertor de cima das costas, e então Stevie Rae segurou seu braço bom – contente por ser grande e aparentemente forte e resistente, ainda que ele pesasse menos do que ela – e o ajudou a desaparecer lenta e dolorosamente terra adentro. Depois, o seguiu. No túnel, Rephaim se recostou na parede de terra, tentando ganhar fôlego. Stevie Rae bem que queria poder descansar, mas a sensação sinistra na nuca gritava que os outros estavam acordando e que viriam atrás dela e a encontrariam com seu Raven Mocker!
– Você tem que continuar sozinho. Vai. Sai daqui. Vá por lá – ela apontou para o breu em frente a eles. – O escuro vai ser dos grandes. Desculpe, mas não tenho tempo de pegar uma lanterna. Tudo bem para você seguir no escuro?
Ele assentiu.
– Eu sempre prefiro a noite.
– Ótimo. Siga esse túnel até chegar ao ponto em que as paredes de terra passam a ficar cimentadas. Aí você vira à direita. A coisa vai ser confusa, pois quanto mais perto você chegar da estação, mais túneis vão aparecer. Mas fique no principal. Ele estará iluminado, ou pelo menos espero que esteja. De um jeito ou de outro, se você seguir em frente vai encontrar iluminação, comida e quartos com camas e tudo.
– E os novatos escondidos.
Ele não perguntou, mas Stevie Rae respondeu.
– É. Quando os outros novatos vermelhos e eu estávamos morando lá, eles ficavam afastados dos túneis principais e dos nossos quartos e tudo mais. Não sei o que estão fazendo agora porque não estamos mais lá e, sinceramente, não sei o que farão com você. Não acho que vão querer comer você, porque seu cheiro não é nada apetitoso. Mas não tenho certeza. Eles são... – ela fez uma pausa à procura das palavras certas. – Eles são diferentes de mim... e do resto de nós.
– Eles são da escuridão. Como já disse, estou bem acostumado a ela.
– Tá certo. Bem, vou acreditar que você vai ficar de boa – Stevie Rae fez outra pausa, sem saber o que dizer, até que finalmente voltou a falar. – Então, acho que a gente se vê qualquer hora dessas.
Ele a encarou sem dizer nada.
Stevie Rae se irritou.
– Rephaim. Você tem que ir. Agora. Aqui não é seguro. Assim que você pegar o rumo do túnel vou fechar essa parte com terra para que ninguém possa segui-lo por aqui, mas mesmo assim você precisa se apressar.
– Não entendo por que você trai seu pessoal para me ajudar – ele disse.
– Não estou traindo ninguém; apenas não quero matá-lo! – ela gritou, e então baixou a voz. – Por que deixar você ir embora significa trair meus amigos? Não posso estar simplesmente escolhendo pela vida ao invés da morte? Olha, escolhi o bem ao invés do mal. Qual a diferença que há entre isso e deixar você vivo?
– Você não acha que ao me salvar está fazendo uma escolha por aquilo que você chama de mal?
Stevie Rae olhou para ele longamente antes de responder.
– Então disse isso para a sua consciência. Você escolhe o que vai ser na vida. Seu pai foi embora. Os outros Raven Mockers também. Minha mãe costumava cantar uma canção boba para mim quando eu era criança, fazia alguma besteira e acabava me machucando. Ela cantava que eu precisava me levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E é isso que você precisa fazer. Só estou lhe dando a chance de fazer isso – Stevie Rae estendeu a mão. – Então, espero que da próxima vez que nos encontrarmos, não seja como inimigos.
Rephaim olhou para a mão estendida de Stevie Rae, depois para seu braço e para a mão outra vez. Então, lentamente, quase com relutância, ele a segurou. Não foi um aperto de mão tradicional, e sim a tradicional saudação dos vampiros, um segurando no antebraço do outro.
– Eu lhe devo a vida, Sacerdotisa.
Stevie Rae sentiu o rosto corar.
– Pode me chamar de Stevie Rae. Não me sinto muito Sacerdotisa no momento.
Ele abaixou a cabeça.
– Então é a Stevie Rae que devo a vida.
– Faça a coisa certa e me considerarei recompensada – ela disse. – Merry meet , merry part e merry meet outra vez, Rephaim.
Ela tentou soltar o braço da mão dele, mas ele não soltou.
– Eles são todos como você, os seus aliados?
Ela sorriu.
– Que nada, eu sou mais esquisita que a maioria deles. Sou a primeira vampira vermelha, e às vezes acho que isso faz de mim uma espécie de experimento ou experiência.
Ainda segurando o braço dela, ele disse: – Eu fui o primeiro dos filhos de meu pai.
Apesar de ele continuar olhando-a fixamente, ela não conseguiu decifrar a expressão em seu rosto. Tudo que viu à meia-luz do túnel foi o formato humano de seus olhos com aquele brilho vermelho de outro mundo, o mesmo brilho vermelho que assombrava seus sonhos e às vezes tomava conta de sua vista, tingindo tudo de escarlate, de raiva e de Trevas. Ela balançou a cabeça e disse, mais para si mesma: – Ser o primeiro pode ser difícil.
Ele assentiu e finalmente soltou seu braço. Sem dizer mais nada, ele deu meia-volta e saiu se arrastando escuridão adentro.
Stevie Rae contou lentamente até cem e levantou os braços.
– Terra, eu preciso de você outra vez – no mesmo instante seu elemento respondeu, preenchendo o túnel com os aromas de um prado primaveril. Ela respirou fundo antes de continuar. – Derrube o teto. Encha esta parte do túnel. Feche o buraco que fez para mim; tampe-o, deixe-o lacrado de novo para que ninguém mais passe aqui.
Ela recuou antes de a terra em frente e em cima começar a se mexer, para depois cair como chuva, deslocando-se e se solidificando até não restar mais nada, a não ser um muro concreto de terra na sua frente.
– Stevie Rae, que diabo você está fazendo?
Stevie Rae se voltou, apertando a mão sobre o coração.
– Dallas! Você quase me fez cuspir a alma pela boca de susto! Caraca, acho que você quase me fez sofrer um ataque cardíaco, na boa.
– Desculpe. É tão difícil espreitar você que achei que você sabia que eu estava aqui.
Com o coração mais disparado ainda, Stevie Rae observou o rosto de Dallas, tentando ver se havia algum sinal de que ele soubesse que não estivera sozinha, mas ele não pareceu desconfiado, irritado nem traído. Apenas curioso e meio triste. Suas palavras confirmaram que ele não estava lá a tempo de ver Rephaim.
– Você fechou o túnel para impedir o resto deles de ir para o convento, não é?
Stevie Rae assentiu e tentou não transparecer na voz o alívio que estava sentindo.
– É. Achei que não era uma boa permitir que eles tivessem acesso direto às freiras.
– Elas seriam aperitivos para eles – os olhos de Dallas cintilaram perversamente.
– Não seja nojento – mas ela não conseguiu deixar de lhe sorrir. Dallas era realmente adorável. Além de ser seu namorado não oficial, também era um gênio em relação a tudo que tivesse a ver com eletricidade, encanamento ou qualquer coisa que se encontrasse na Home Depot[3] , basicamente.
Ele também sorriu para ela, aproximou-se e tocou um dos seus cachos dourados.
– Não estou sendo nojento, mas franco. E você não vai me dizer que nunca lhe passou pela cabeça como seria fácil devorar essas freiras.
– Dallas! – ela lhe lançou um olhar feio, verdadeiramente chocada com o que ele havia dito. – Nem morta que já pensei em devorar uma freira! Soa até mal. E, como já disse antes, não é bom ficar pensando muito em devorar pessoas. Não faz bem.
– Ei, relaxe gatinha. Estou só zoando – ele olhou para o muro de terra atrás dela. – E como você vai explicar isso a Zoey e para o resto do pessoal?
– Vou fazer o que já devia ter feito antes. Vou falar a verdade.
– Pensei que você queria ficar na sua em relação aos outros novatos por pensar que eles acabariam ficando como a gente.
– É, bem, estou começando a achar que pensei errado.
– Tudo bem, você é quem sabe. Você é nossa Grande Sacerdotisa. Conte a Zoey o que quiser. Na verdade, você pode fazer isso agora mesmo. Zoey acabou de convocar uma reunião no refeitório. Eu vim te avisar.
– Como você soube onde me encontrar?
Ele sorriu para Stevie Rae outra vez e pôs o braço nos seus ombros.
– Eu te conheço, gatinha. Não foi muito difícil imaginar onde você estava.
Eles começaram a caminhar juntos para fora do túnel. Stevie Rae levou o braço à cintura de Dallas. Ela se apoiou nele, contente por ter um cara de verdade ao seu lado. Era um alívio seu mundo voltar a ser o que ela achava normal. Tirou Rephaim da mente. Simplesmente ajudara alguém que estava ferido, só isso. E agora estava terminado. Sério mesmo, ele era só um Raven Mocker gravemente ferido. Que tipo de problema poderia causar?
– Você me conhece, é? – ela bateu com o seu quadril no dele.
Ele apertou o corpo contra o dela.
– Não tanto quanto ainda quero conhecer, gatinha.
Stevie Rae riu, ignorando o fato de soar meio maníaca em seu esforço de ser normal.
Ela também ignorou o fato de ainda sentir o cheiro pesado de Rephaim em sua pele.
18
Zoey
Eu estava naquele estado mágico e nebuloso entre o sono e o despertar quando ele me puxou para junto do seu corpo. Ele era tão grande e, forte e duro, totalmente em contraste com sua presença física e o hálito doce e leve que vinha dos delicados beijos que me dava na lateral do pescoço, causando um formigamento que me fazia tremer.
Eu estava quase adormecida e não queria acordar de vez ainda, mas suspirei de alegria e estiquei meu pescoço, facilitando para ele. Seus braços me envolvendo eram a coisa mais perfeita. Eu adorava ficar perto dele e estava pensando como era bom saber que Stark era meu guerreiro quando murmurei, sonolenta: – Você deve estar mesmo se sentindo melhor.
Seu toque se tornou mais sensual e menos delicado.
Estremeci de novo.
Então, minha mente inebriada registrou duas coisas simultaneamente. A primeira: eu não estava tremendo por gostar do que ele estava fazendo, apesar de não restar dúvida de que gostava. Eu estava tremendo porque seu toque era frio. A segunda: o corpo junto ao meu era grande demais para ser de Stark.
Naquele instante, ele sussurrou: – Está vendo como sua alma anseia por mim? Você virá para mim. Você está destinada a vir, e eu estou destinado a esperar por você.
Arfei de susto, acordei e me sentei.
Eu estava completamente sozinha.
Calma... calma... calma... Kalona não está aqui... está tudo bem... foi só um sonho...
Sem pensar, automaticamente comecei a controlar minha respiração e a colocar rédeas nas minhas emoções, que estavam nitidamente a um triz do descontrole.
Stark não estava no quarto, e a última coisa que queria era que ele viesse correndo por sentir meu pânico, afinal de contas, eu não estava correndo nenhum perigo real. Podia não ter certeza de um monte de coisas, mas de uma não tinha a menor dúvida: não queria que Stark começasse a pensar que não podia sair nunca do meu lado.
Sim, eu era louca por ele, e era uma felicidade ter aquela ligação, mas não era por isso que eu ia querer que achasse que eu não podia fazer nada sem ele. Ele era meu guerreiro, não minha babá nem meu perseguidor e, se ele começasse a pensar que teria de me vigiar constantemente... ficar que nem um bobalhão me olhando enquanto eu durmo...
Contive um gemido de horror.
A porta que dava para o banheirinho compartilhado pelo meu quarto e pelo quarto ao lado se abriu e Stark entrou, olhando diretamente para mim. Ele estava de calça jeans e camiseta preta com o logo do Street Cats Catholic Charities, enxugando os cabelos molhados com uma toalha. Acho que devo ter me acalmado e dado um jeito na minha cara de pânico, pois assim que me viu sentada na cama, sozinha e sem correr qualquer perigo, sua expressão de preocupação se transformou em sorriso.
– Ei, você está acordada. Foi o que pensei. Você está bem?
– Tô de boa – respondi logo. – Só que acordei quando estava quase caindo da cama. Quase surtei.
Seu sorriso ganhou aquele jeito metidinho de sempre.
– Você provavelmente deu pela falta do meu corpo quente e gostoso, tentou achá-lo e quase rolou para fora da cama.
Olhei para ele arqueando a sobrancelha.
– Tenho certeza de que não foi isso – a menção ao seu corpo (sim, quente e gostoso, mas não vou deixá-lo pensar que estou de quatro) me fez observá-lo, e me dei conta de que era bonito sim, no sentido de ser mais do que quente e gostoso. Ele estava bem menos pálido do que estava na hora em que fomos dormir, pisando com mais firmeza e segurança.
– Você parece melhor.
– Eu estou melhor. Darius tinha razão, sarei rápido. Boas oito horas de sono e três saquinhos de sangue que peguei quando você estava roncando bastaram, me fizeram sentir bem melhor – ele foi até a cama, inclinou-se e me beijou de leve. – Acrescente a isso o fato de eu saber que posso impedir que você tenha pesadelos com Kalona, e eu diria que estou pronto para encarar qualquer coisa.
– Eu não ronco – falei com a maior firmeza, então suspirei e envolvi sua cintura com meus braços, apoiando-me nele e deixando a força de sua presença física espantar o que restava do pesadelo com Kalona. – Que bom que você está se sentindo melhor.
Será que eu devia dizer a Stark que Kalona ainda estava invadindo meus sonhos, mesmo ele estando tão perto e concentrado em me proteger? Provavelmente. Talvez, se contasse, as coisas viessem a tomar um rumo diferente. Mas, só pensei em não estragar o alto-astral que ele estava demonstrando, por isso descansei em seus braços, até que me lembrei de que nem havia escovado os cabelos nem nada. Passei os dedos no meu cabelo de quem acabou de acordar, virei o rosto para não lançar meu bafo de quem ainda não escovara os dentes no rosto de Stark e saí de seus braços para ir ao banheiro. Virei a cabeça para trás e disse: – Pode me fazer um favor enquanto tomo banho?
– Claro – ele me lançou seu sorrisinho metido, o que me transmitiu imediatamente o quanto ele estava se sentindo bem. – Quer que esfregue suas costas?
– Ahn, não. Mas obrigada. Acho – nossa, parece que os homens não pensam em outra coisa! – Quero que você reúna os novatos, tanto os vermelhos quanto os azuis, e também Aphrodite, Darius, a irmã Mary Angela, minha avó e qualquer um que você ache que precise estar na discussão de quando e como vamos voltar à escola.
– Prefiro esfregar suas costas, mas tudo bem. Seu desejo, minha dama, é uma ordem – ele abaixou a cabeça e me saudou com a mão sobre o coração.
– Obrigada – minhas palavras saíram suaves. A expressão de respeito e confiança de Stark subitamente me deixou à beira das lágrimas.
– Ei – seu sorriso se desfez. – Você parece triste. Está tudo bem?
– Estou só muito agradecida por ter você como meu guerreiro – e era verdade, apesar de não ser toda ela.
Seu sorriso estava de volta.
– Você é uma Grande Sacerdotisa sortuda.
Balancei a cabeça em fingida censura à sua infinita presunção e pisquei os olhos, afastando aquelas lágrimas ridículas.
– Reúna o pessoal para mim, tá?
– Tá. Quer fazer o encontro no porão?
Fiz uma careta.
– De jeito nenhum. Que tal você pedir à irmã Mary Angela para ser no refeitório? Aí podemos comer e conversar.
– Pode deixar.
– Obrigada.
– Até daqui a pouco, minha dama – ele me saudou formalmente de novo, com os olhos brilhando, e saiu apressado do quarto.
Mais lentamente, entrei no banheiro. Escovei os dentes mecanicamente e entrei debaixo do chuveiro. Fiquei um bom tempo apenas deixando a água quente cair sobre mim. Então, quando senti que estava mais calma, pensei em Kalona.
Eu relaxei nos braços dele. E não estava revivendo uma das lembranças de A-ya, nem mesmo sob sua influência, mas me entreguei quando ele me tocou, e o resultado foi tão aterrorizante quanto revelador. Parecia certo estar com ele. Tão certo que o confundi com meu guerreiro, com quem eu era ligada através de um Juramento Solene! E não parecia sonho. Eu estava acordada demais, perto demais da consciência plena. Aquela última visita de Kalona me abalara profundamente.
– Por mais que tente lutar contra isso, minha alma o reconhece – sussurrei para mim mesma. E então, como se meus olhos estivessem com inveja da água que já corria pelo meu rosto, comecei a chorar.
Achei o refeitório seguindo meu nariz e meus ouvidos. Ao longo do corredor, ouvi vozes conhecidas rindo em meio aos ruídos de pratos e talheres, e pensei brevemente se as freiras realmente não se importavam com aquela verdadeira invasão de adolescentes futuros vampiros. Parei em frente à grande entrada arqueada do salão, certificando-me de como as freiras estavam se dando com o pessoal. Havia três fileiras de mesas compridas. Pensei que fosse vê-las agrupadas de um lado, isoladas de nós, mas não. Claro que, no geral, elas estavam sentadas em duplas e trios, mas cercadas pelos novatos – vermelhos e azuis –, e todos conversavam, o que matava completamente a imagem estereotipada que eu tinha do refeitório das freiras como um lugar de preces e tranquilas (e tediosas) reflexões.
– Vai ficar enrolando aí parada ou entrar de uma vez?
Virei-me e vi Aphrodite e Darius parados atrás de mim. Estavam de mãos dadas, parecendo bastante radiantes e, como as gêmeas diriam, tão alegres que doía.
– Merry meet , Zoey – Darius me saudou formalmente, mas seu sorriso deu um toque caloroso e espontâneo ao gesto respeitoso.
Olhei para Aphrodite como quem diz “pelo menos um dos dois tem educação”, antes de sorrir para o guerreiro.
– Merry meet , Darius. Vocês dois parecem bastante felizes. Pelo jeito, arrumaram onde dormir – fiz uma pausa, olhei para Aphrodite outra vez e completei: – Dormir ou sei lá o quê.
– Eles me garantiram que só dormiram – irmã Mary Angela enfatizou a palavra ao se aproximar da porta do refeitório.
Aphrodite revirou os olhos para a freira, mas não disse nada.
– Darius me explicou que o anjo caído andou visitando seus sonhos e que Stark, ao que parece, é capaz de afugentá-lo – ela disse com seu jeito típico de ir direto ao ponto.
– E o que Stark fez? – Heath veio correndo me dar um abraço forte e um selinho nos lábios. – Preciso dar uma porrada nele?
– Pouco provável que você consiga – Stark disse, vindo do refeitório para se juntar a nós.
Ao contrário de Heath, ele não me agarrou, mas seu olhar era tão quente e íntimo que pareceu me tocar tanto quanto o abraço que acabara de ganhar.
De repente senti uma espécie de namoradoclaustrofobia . Tipo, teoricamente um mini-harém de garotos parecia uma ótima ideia, mas eu estava rapidamente descobrindo que, assim como certas calças jeans de grife, a ideia era melhor que a realidade. Como se para reforçar meus pensamentos, Erik resolveu se juntar ao grupo naquele instante. Vênus, a novata vermelha com quem Aphrodite dividia o quarto antigamente, estava praticamente colada a ele. Eca. Nada mais que eca.
– Oi, pessoal. Rapaz, estou faminto! – Erik disse, exibindo seu sorriso caloroso de astro de cinema do qual eu costumava gostar tanto.
De canto de olho, vi Heath e Stark ficarem boquiabertos com o grude repentino de Erik e Vênus, e então me dei conta de que meus outros dois namorados não sabiam que eu tinha dado o fora em Erik. Dei um suspiro de pura irritação e, em vez de ignorá-lo dando o gelo que gostaria de ter dado, também lhe dirigi um sorriso tão luminoso quanto falso.
– Oi Erik, oi Vênus. Bem, se estão com fome, vieram ao lugar certo. O cheiro neste refeitório está bom demais.
O sorriso de Erik murchou por um breve instante, mas sem dúvida começara a usar seu talento de ator para parecer que ele já tinha me esquecido tipo uns quinze segundos após terminarmos.
– Oi, Zoey. Não tinha te visto. Como sempre, cercada de homens – ele passou por mim dando uma risadinha cínica e esbarrando no ombro de Stark.
– Se eu atirar uma flecha e pensar em um bundão, você ficaria surpresa se atingisse Erik? – Stark me perguntou com uma voz alegre e tranquila.
– Eu não me surpreenderia – Heath respondeu.
– Pois eu digo, por experiência pessoal, que Erik tem uma bunda linda – Vênus disse e seguiu Erik para dentro do refeitório.
– Ei, Vênus, tenho uma palavra para você – Aphrodite a chamou.
Vênus hesitou e virou o pescoço para a ex-companheira de quarto.
Aphrodite deu seu melhor sorriso de desprezo e disse: – Estepe – ela fez uma pausa, deu um sorriso falso e disse: – Boa sorte para você.
Foi quando percebi que todos os olhos do refeitório estavam voltados para nós e que todos tinham parado de conversar.
Erik fez um breve gesto possessivo com a mão e Vênus foi em sua direção feito um cachorrinho. Ela entrelaçou o seu braço ao de Erik e apertou o seio junto ao cotovelo dele. E então começaram os sussurros em uníssono.
– Erik e Zoey terminaram!
– Erik está com Vênus!
– Zoey e Erik não estão juntos!
Ah, que se dane.
19
Zoey
– Nunca gostei dele – Heath me beijou no alto da cabeça e esfregou meus cabelos como se eu tivesse dois anos de idade.
– Você sabe que odeio quando faz isso! – reclamei, tentando ajeitar meu cabelo que já estava todo armado porque, pelo jeito, as freiras não acreditavam em ferro de engomar.
– Eu também nunca gostei dele – Stark pegou minha mão e a beijou. E olhou nos olhos de Heath: – Não gosto muito desse negócio de você e Zoey serem Carimbados, mas não tenho problema nenhum com você.
– Também sou tranquilo com você, cara – Heath devolveu. – Mas não gosto muito desse negócio de você dormir com Zo.
– Ei, faz parte da função de guerreiro, tomar conta dela e tal.
– Pausa para vomitar – Aphrodite disse. – Aliás, patetas da testosterona, fiquem sabendo que foi Z. quem deu o fora em Erik, por mais que ele tente distorcer a história. Lembrem-se de que ela pode fazer o mesmo com vocês se ficarem irritantes demais – ela se desvencilhou de Darius, veio para perto de mim com passos decididos e olhou nos meus olhos. – Está pronta para encarar as massas “pé no saco”?
– Em um segundo – voltei-me para a irmã Mary Angela. – Como minha avó acordou?
– Exausta. Receio que ontem ela tenha se esforçado além da conta.
– Ela está bem?
– Vai ficar.
– Talvez seja melhor eu aparecer no quarto dela e... – comecei a sair do refeitório, mas Aphrodite segurou meu pulso.
– Vovó vai ficar boa. No momento, tenho certeza de que sua avó prefere que você resolva o que a gente vai fazer do que fique se estressando com ela.
– Estressar? Alguém falou em se estressar? – Stevie Rae dobrou o canto do corredor com Dallas ao lado. – Oi, Z.! – ela me deu um abraço forte. – Desculpe por fazer você esquentar a cabeça. Acho que nós duas andamos muito estressadas ultimamente. Me perdoa? – ela sussurrou.
– É claro – sussurrei em resposta e tentei não torcer o nariz ao abraçá-la. Ela estava fedendo a porão, terra e algo mais que não consegui identificar. – Ei – chamei-a rápido e baixinho. – Terminei com Erik e ele está com Vênus na frente de todo mundo.
– Bem, isso é tão ruim quanto sua mãe esquecendo do seu aniversário – ela disse em voz alta, sem prestar atenção à plateia.
– É – confirmei. – Maior vacilo mesmo.
– Você vai encarar ou sair com o rabo entre as pernas? – ela me perguntou com um sorrisinho lindo e malicioso.
– O que é que você acha, Ado Annie? – Aphrodite perguntou. – Z. não é de fugir da briga.
– Quem é Ado Annie? – Heath perguntou.
– Sei lá – Stark deu de ombros.
– É uma personagem do musical Oklahoma ! – irmã Mary Angela disse, tentando limpar a garganta para conter o riso. – Podemos tomar o café da manhã? – sorrindo, a freira foi para o refeitório.
Suspirei e tive vontade de sair berrando pelo corredor na direção oposta.
– Vamos, Z. Vamos entrar e comer alguma coisa. Além do mais, tenho uma coisa para dizer que vai fazer seus problemas com namorados parecerem nada – Stevie Rae agarrou minha mão e a balançou, puxando--me para a sala de jantar. Seguidas por Stark, Heath, Darius, Aphrodite e Dallas, nos sentamos ao lado da irmã Mary Angela na mesma mesa onde Damien, Jack e as gêmeas já estavam sentados.
– Ei, Z.! Até que enfim você acordou! Dá só uma olhada nessas panquecas deliciosas que a freira nos preparou – Jack veio me avisar.
– Panquecas? – meu mundo se iluminou no mesmo instante.
– É! Travessas e mais travessas disto e de bacon e batatas fritas picadas. É melhor do que a IHOP![4] – ele deu uma olhada para a mesa e gritou: – Ei! Passem-me as panquecas!
As travessas começaram a se aproximar e a minha boca, a salivar. Eu simplesmente adoro panquecas.
– Nós gostamos mais de rabanadas[5] – Shaunee disse.
– É, panquecas são doces e moles demais – Erin acrescentou.
– Panquecas não são doces e moles demais – Jack rebateu.
– Merry meet , Z. – Damien me cumprimentou com a clara intenção de abortar a polêmica panquecas x rabanadas.
– Merry meet – sorri para ele.
– Ei, tirando seu cabelo armado, você está com uma cara bem melhor – Jack disse.
– Obrigada. Acho – respondi, já dando uma boa mordida na minha panqueca.
– Eu acho que ela está linda – Stark disse de seu lugar à mesa, um pouquinho depois de Zoey.
– Eu também. Gosto do cabelo da Zoey depois que ela acaba de acordar – Heath sorriu para mim.
Eu estava revirando os olhos para ambos quando a voz de Erik atravessou o recinto em minha direção.
– Nossa, aqui está muito, muito cheio – ele estava de costas para nós, o que não o impediu de projetar sua voz insolente.
Por que as separações tinham de ser difíceis? Por que Erik não podia abrir mão de agir como canalha? Porque você o magoou de verdade , foi o que me veio à mente, mas estava cansada de ficar me preocupando com os sentimentos dele. Ele era um cafajeste possessivo! Além de ser hipócrita pra cacete. Ele me chamou de vagabunda, mas não deixou passar nem um dia sequer para ficar com outra. Que coisa.
– Espera, Erik com Vênus? – a voz de Jack me chamou a atenção.
– Nós terminamos ontem à noite – eu disse, servindo-me de mais panquecas com ar de indiferença e acenando para Erin me passar a travessa de bacon.
– É, foi isso que Aphrodite nos disse. Mas agora ele está com Vênus ? Assim, de uma hora para outra? – Jack repetiu, encarando Erik e a garota citada, que estava tão grudada nele que parecia uma espécie de sanguessuga sufocante. Não sei como ele estava conseguindo comer. – Pensei que ele fosse um cara legal – Jack pareceu incrivelmente jovem e desiludido, como se Erik tivesse destruído seu mito de cara legal.
Dei de ombros.
– Está tudo bem, Jack. Erik não é má pessoa. Nós é que não damos certo juntos – tentei consolá-lo, chateada de vê-lo daquele jeito. Então, para mudar de assunto, anunciei: – Aphrodite teve outra visão.
– O que foi que você viu? – Damien lhe perguntou.
Aphrodite deu uma olhada para mim e eu assenti de modo quase imperceptível.
– Kalona queimando vamps e gente.
– Queimando ? – Shaunee falou na hora. – É o tipo de coisa que sou capaz de encarar. Eu sou a Miss Fogo.
– Isso aí, gêmea – Erin vibrou.
– Compartilhadoras de cérebro, vocês não estavam na visão – Aphrodite apontou para as gêmeas com seu garfo melado. – Mas tinha fogo, sangue, horror e coisas do tipo na visão. Vocês duas deviam estar fazendo compras.
Shaunee e Erin olharam para Aphrodite apertando os olhos de raiva.
– Zoey estava onde? – Damien perguntou.
Os olhos de Aphrodite procuraram os meus antes de responder.
– Zoey estava lá. Em uma das minhas visões, isso era bom. Na outra, já não era.
– E isso quer dizer o quê? – Jack perguntou.
– A visão foi confusa. Acho que vi também uma faca de dois gumes.
Para mim era óbvio que ela estava enrolando, mas, na hora que abri a boca para mandá-la contar tudo, Kramisha, que estava sentada na mesma mesa, à minha direita, levantou o braço e agitou o pedaço de papel que tinha na mão.
– Eu sei o que quer dizer – ela disse. – Pelo menos em parte. Escrevi isto aqui ontem à noite, antes de dormir – ela sorriu para a irmã Mary Angela. – Depois que acabamos de ver aquele filme de freiras.
– Que bom que você gostou, querida – irmã Mary Angela disse.
– Eu gostei, mas ainda acho que aqueles garotos eram maus.
– Dá para parar de enrolar? – Aphrodite perguntou.
– Você podia ser um pouquinho mais paciente – Kramisha pediu. – E educada. Seja como for, é para Zoey. Tome, passe para ela.
O pedaço de papel passou de mão em mão até chegar a mim. Como todo mundo provavelmente já imaginava, era um dos poemas de Kramisha. Eu contive um suspiro.
Como se estivesse lendo minha mente, Aphrodite disse: – Por favor, diga que não é outro daqueles poemas proféticos. Deusa, eles me dão dor de cabeça!
– Então é melhor preparar um estoque de Tylenol – eu disse. Li a primeira linha, pisquei os olhos e os voltei para Aphrodite. – O que foi que você acabou de falar? Não falou algo sobre uma faca?
– Ela disse que o fato de você estar lá com Kalona era uma faca de dois gumes. Por isso estou lhe dando o poema agora, ao invés de esperar uma oportunidade mais discreta. – Kramisha olhou feio para Erik e acrescentou: – Não sou deste tipo sem noção que fica expondo assuntos particulares em público.
– Esta é a primeira linha do poema: Uma faca de dois gumes – eu disse.
– Que sinistro – Stevie Rae observou.
– Se é – exclamei, olhando fixo para o poema. – Bota sinistro nesta história.
– O que você quer fazer em relação a isso? – Damien me perguntou.
– Quero que meus amigos me ajudem a decifrar este poema. Mas quero fazer isso em casa – anunciei simplesmente.
Damien sorriu e assentiu.
– Casa. Isso soou bem.
Olhei para Aphrodite.
– O que você acha?
– Acho que estou sentindo muita falta do chuveiro Vichy do banheiro da minha suíte.
– Darius? – perguntei.
– Acho que precisamos voltar antes de parar para nos concentrarmos em alguma coisa.
– Shaunee e Erin?
Elas se entreolharam, e então Erin respondeu: – Casa. Com certeza.
– Stevie Rae?
– Bem, tenho que dizer uma coisa a vocês todos antes de poder tomar qualquer grande decisão.
– Tá, vá em frente – dei-lhe força.
Stevie Rae respirou fundo e expirou entre os lábios tensos e cerrados, como se estivesse fazendo teste de asma. Suas palavras vieram logo em seguida, rápidas e claras, alcançando todo o salão.
– Há mais novatos vermelhos além desses que estão aqui. Eles não mudaram quando eu mudei com esses. Ainda são do mal. Eu acho... Acho que eles ainda devem estar ligados a Neferet – ela se virou para mim e seus olhos imploravam por compreensão. – Não disse nada porque queria dar uma chance a eles. Achei que iam reencontrar seu lado humano se ficassem na deles, pensando por si mesmos, ou então que talvez eu pudesse ajudá-los. Sinto muito, Z. Eu não queria causar problemas, e nunca tive intenção de mentir para você.
Eu não podia ficar chateada com Stevie Rae. Só aliviada por ela finalmente confessar a verdade.
– Às vezes a gente não pode dizer aos amigos tudo que gostaria – respondi.
Stevie Rae soltou um suspiro sentido.
– Ah, Z.! Você não está com ódio de mim?
– É claro que não. Eu também tive que guardar uns segredos sórdidos antes, por isso consigo entender.
– Onde eles estão? – a pergunta de Damien poderia soar áspera, mas ele perguntou com gentileza e um olhar de compreensão.
– Estão nos túneis da estação. Por isso fechei agora há pouco o túnel de terra que fiz para o pessoal chegar aqui. Não quero que os outros nos sigam e causem problemas para as freiras.
– Você devia ter nos avisado ontem à noite – Darius disse. – Teríamos providenciado guardas para o período em que todos estavam dormindo.
– Havia novatos vermelhos marginais do outro lado do túnel? – irmã Mary Angela levou as mãos ao rosário que pendia de seu pescoço.
– Ah, irmã, a senhora não estava correndo perigo. Darius, juro que não era necessário colocar ninguém de guarda! – ela explicou rapidamente. – Esses garotos são seriamente afetados pela luz do sol. Eles jamais ficam vagando de dia, nem mesmo dentro dos túneis.
O cenho franzido de Darius indicava que ele ainda achava necessário montar guarda. Irmã Mary Angela não disse nada, mas seus dedos entremeados ao rosário demonstravam sua preocupação. Foi quando percebi que nenhum dos novatos vermelhos disse nada. Olhei para o único vampiro vermelho que existia além de Stevie Rae.
– Você sabia desses outros novatos?
– Eu? De jeito nenhum. Eu teria contado imediatamente – Stark disse.
– Eu devia ter contado logo. Sinto muito mesmo – Stevie Rae se desculpou.
– Às vezes a gente enterra a verdade e fica difícil desenterrar – eu lhe disse, e então olhei ao redor para os demais novatos vermelhos. – Vocês todos sabiam, não é?
Kramisha tomou a palavra.
– Sabíamos. Não gostamos daqueles garotos. Eles são sinônimo de encrenca.
– E fedem – disse a pequena Shannoncompton do fim da mesa.
– Eles são uó – Dallas disse. – E me lembram de como eu era.
– E não gostamos de lembrar – acrescentou o musculoso Johnny B.
Voltei minha atenção novamente para Stevie Rae.
– Tem mais alguma coisa que você queira me dizer?
– Bem, acho que não é boa ideia voltarmos aos túneis da estação no momento, por isso também acredito que voltar para a Morada da Noite é uma boa ideia.
– Então está combinado. Vamos pra casa – confirmei.
20
Zoey
– Concordo que cada um deve voltar para seu lugar, mas sua avó devia ficar aqui – Aphrodite disse de repente. – Não sabemos o que há para enfrentar na Morada da Noite.
– Suas visões mostraram mais alguma coisa? – perguntei, percebendo que Aphrodite olhava para Stevie Rae.
Aphrodite balançou a cabeça lentamente.
– Não, já contei tudo. Só estou com uma intuição, só isso.
Stevie Rae riu de um jeito nervoso.
– Bem, caramba, Aphrodite. Estamos todos apreensivos e com os nervos à flor da pele, é normal. Nós acabamos de pôr pra correr uns bichos-papões do inferno, mas isso não é razão para estressar Zoey.
– Não estou estressando ninguém, caipirona – Aphrodite respondeu. – Só estou sendo cuidadosa.
– Evitar correr riscos é sinal de sabedoria – Darius disse ponderadamente.
Como não havia nada de errado em tomar cuidado, abri a boca para concordar com eles, mas Stevie Rae se voltou para Darius e, com um tom frio e monótono, disse: – Não é porque você fez o Juramento Solene de Guerreiro para ela que tem que concordar com tudo que ela diz.
– O quê? – Stark disse. – Você se ofereceu em Juramento para Aphrodite?
– É mesmo? – Damien perguntou.
– Uau, legal demais – Jack exclamou.
Erik soltou uma risadinha irônica na mesa de trás.
– Estou chocado em ver que Zoey não acrescentou você à sua coleção particular.
Aí não aguentei mais. E berrei com ele: – Ah, vá pro inferno, Erik!
– Zoey! – irmã Mary Angela arfou.
– Desculpe – murmurei.
– Não se desculpe – Aphrodite disse, olhando feio para Stevie Rae. – Inferno não é palavrão. É um lugar. E algumas pessoas merecem ser mandadas para lá.
– O que foi? – Stevie Rae perguntou com ar inocente. – Você não queria que todo mundo ficasse sabendo sobre você e Darius?
– Assunto meu – Aphrodite respondeu.
– Como eu disse antes – Kramisha assentiu com ar inteligente –, não tem nada a ver ficar expondo assuntos particulares em público – e voltou seus olhos escuros para Stevie Rae: – Eu sei que você é a nossa Grande Sacerdotisa e tudo, não quero que entenda como desrespeito, mas acho que você recebeu educação para saber que isso não se faz.
Stevie Rae pareceu se arrepender imediatamente.
– Tem razão, Kramisha. De repente pensei que não fosse nada demais. Tipo, todo mundo ia saber cedo ou tarde – ela sorriu para mim e deu de ombros. – Um Juramento de Guerreiro não é exatamente algo que se possa esconder – ela se virou para Aphrodite. – Desculpe, não tive intenção de ser cruel.
– Não estou interessada em suas desculpas. Não sou Zoey. Não acredito automaticamente em tudo que você diz.
– Ok, agora chega ! – gritei. Raiva e frustração fizeram minhas palavras ganhar em poder, e percebi que vários novatos se encolheram. – Todos vocês precisam me ouvir agora e entender uma coisa de uma vez por todas. Não podemos lutar contra um mal que pode acabar com o mundo se ficarmos de picuinha uns com os outros! Stevie Rae e Aphrodite, vocês se acostumem ao fato de serem Carimbadas e tentem não se constranger mutuamente – os olhos de Aphrodite transmitiram mágoa, e os de Stevie Rae, perplexidade, mas continuei. – Stevie Rae, não me esconda coisas importantes, mesmo que tenha suas razões para isso – olhei diretamente para Erik, que se virara na cadeira para me encarar. – E, Erik, temos problemas muito mais sérios do que o fato de você ficar revoltadinho porque terminei com você – ouvi Stark dando risada e me voltei para ele. – E você, fique na sua.
Stark levantou as mãos como quem se rendia.
– Só estou rindo porque o Grande Erik foi finalmente posto em seu lugar.
– O que é péssimo da sua parte, já que você sabe muito bem como essa história com você, Erik e Heath me fez sofrer.
O sorriso de Stark desapareceu.
– Darius, lá fora está um frio medonho, mas você acha que dá para dirigir o Hummer até a Morada da Noite? – perguntei.
– Acho que sim – disse o guerreiro.
– Quem cavalga bem? – no mesmo instante, várias mãos se levantaram, como se eu fosse professora e eles estivessem com medo de arrumar encrenca. – Shaunee, você e Erin podem ir no cavalo que as trouxe – olhei para os outros que ainda estavam de mão levantada. – Johnny B, você e Kramisha podem ir na outra égua?
– Podemos sim – ele respondeu e Kramisha assentiu rapidamente, então ambos baixaram as mãos.
– Stark, você pode vir na minha garupa em Persephone – falei sem olhar para ele. – Damien, Jack, Aphrodite, Shannoncompton, Vênus e... – olhei para a novata vermelha morena cujo nome não conseguia recordar.
– Sophie – Stevie Rae disse com hesitação, como se estivesse com medo de que eu fosse lhe arrancar a cabeça.
– E Sophie. Vocês vão com Darius no Hummer – olhei para Stevie Rae. – Pode providenciar que os outros novatos vermelhos e Erik cheguem em segurança à Morada da Noite?
– Se é isso o que você quer que eu faça, então farei – ela confirmou.
– Ótimo. Terminem o café da manhã e vamos para casa – levantei--me e procurei abarcar todas as freiras com meu olhar: – Estou mais agradecida pelo que as senhoras fizeram por nós do que sou capaz de dizer em palavras. Enquanto eu estiver viva, as Irmãs Beneditinas terão a amizade de uma Grande Sacerdotisa – e então virei-me para sair. Ao passar por Stark, percebi que ele começava a se levantar, mas olhei nos seus olhos e balancei a cabeça. – Vou me despedir sozinha da minha avó – senti que ele ficou magoado, mas limitou-se a me saudar respeitosamente e a dizer: – Como desejar, minha dama.
Ignorando o rastro de silêncio que deixei atrás de mim, saí do salão sozinha.
– Quer dizer, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa, que você deixou todo mundo com raiva? – vovó perguntou enquanto eu andava de um lado para o outro após lhe contar tudo que havia acontecido.
– Bem, todo mundo, não. Magoei algumas pessoas, em vez de deixá-las furiosas.
Vovó me observou atentamente por um bom tempo. Quando finalmente falou, suas palavras foram tipicamente sucintas e diretas.
– Isto não é do seu feito, portanto, você deve ter tido uma boa razão para agir assim.
– Bem, estou com medo e confusa. Ontem me senti uma Grande Sacerdotisa. Hoje voltei a ser uma garota. Estou tendo problemas com namorados e com minha melhor amiga, que vem me escondendo coisas.
– Isso tudo indica que nem você nem Stevie Rae são perfeitas – minha avó disse.
– Mas como vou saber se é só isso mesmo? E se eu for uma vagabunda fútil e Stevie Rae tiver passado para o lado do mal?
– Só o tempo dirá se você fez mal em confiar em Stevie Rae. E eu acho que você devia parar de ser tão rígida consigo mesma por ficar atraída por mais de um garoto. Você está fazendo escolhas certas no que se refere aos relacionamentos de sua vida. Pelo que você disse, Erik agiu de modo controlador e rude. Muitas jovens teriam feito vista grossa a essas coisas por ele ser, como vocês dizem, tão gostoso! – vovó fez uma péssima imitação do jeito adolescente de falar. – Você vai aprender a se equilibrar entre Heath e Stark, muitas Grandes Sacerdotisas fazem isso. Ou não, caso se decida que se dedicar a um homem só é o melhor para você. Mas, querida, isso é algo que você ainda tem muitos, muitos anos para resolver.
– Acho que a senhora tem razão.
– É claro que tenho razão. Sou velha. O que significa que também percebo que tem algo mais lhe perturbando além dos garotos e de Stevie Rae. O que é, Zoey Passarinha?
– Eu tive uma lembrança de A-ya, vó.
O único sinal da perplexidade que minha avó sentiu foi o suspiro fundo que deu.
– E essa lembrança inclui Kalona?
– Sim.
– Agradável ou desagradável?
– As duas coisas! Começou aterrorizante, mas à medida que fui me aproximando de A-ya, a coisa mudou. Ela o amava, vó. Eu senti isso.
Vovó assentiu e falou lentamente.
– Sim, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa, isso faz sentido. A-ya foi criada para amá-lo.
– Eu fico com medo, e isso me faz perder o controle! – gritei.
– Sssh, minha filha – vovó me consolou. – Somos todos afetados por nossos passados, mas cabe a nós não deixar que o que fizemos determine o que viremos a fazer.
– Mesmo no fundo da alma?
– Especialmente no fundo da alma. Pergunte a si mesma de onde vem seu dom.
– Bem, vem de Nyx – respondi.
– E a Deusa concedeu seu dom por meio do seu corpo ou da sua alma?
– Da alma, é claro. Meu corpo é só a concha da minha alma – fiquei surpresa com a firmeza de minha voz. Pisquei os olhos, surpresa. – Tenho de me lembrar que agora a alma é minha, e tratar A-ya como mais uma lembrança do passado.
Vovó sorriu.
– Ah, pronto, eu sabia que você ia voltar a encontrar seu bom--senso. Quando erramos, seja nesta vida ou em outra, devemos aprender com esses erros, que se transformam em oportunidades.
Não se meus erros permitirem que Kalona incendeie o mundo, pensei, quase alto demais, mas então minha avó fechou os olhos. Ela pareceu tão cansada e, machucada e velha que senti um gelo no estômago.
– Desculpe por jogar tudo isso sobre a senhora, vó.
Ela abriu os olhos e deu um tapinha na minha mão.
– Nunca mais peça desculpas por se abrir comigo, u-we-tsi-a-ge--hu-tsa.
Dei um beijo de leve na sua testa, tomando cuidado para não ferir nenhum dos seus cortes e machucados.
– Eu te amo, vó.
– E eu te amo também, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa. Vá com a Deusa, e que nossos ancestrais te abençoem.
Eu acabara de tocar a maçaneta quando sua voz soou entre nós duas, cheia de força, convicção e mais sábia do que nunca.
– Fique sempre com a verdade, u-we-tsi-a-ge-hu-tsa. Não se esqueça, como nosso povo jamais se esqueceu, de que existe um poder maior nas palavras que expressam a verdade.
– Farei o meu melhor, vó.
– E é só isso que sempre vou esperar de você, minha Passarinha.
21
Zoey
A viagem de volta à Morada da Noite foi lenta, esquisita e desagradável.
Foi lenta porque, apesar de Shaunee e eu aquecermos os cascos dos cavalos com nossa afinidade com o fogo para podermos descer a Rua Vinte e Um e virar à esquerda no sinal de trânsito da Rua Utica (que estava totalmente escura) foi um percurso escorregadio, gelado e difícil.
Foi esquisito porque estava tudo miseravelmente escuro. Simplesmente não parecia que as coisas estavam certas ao vermos nossa cidade no breu. Parece simplista dizer isto, principalmente vindo de uma garota que podia ser chamada de filha da noite ou sei lá o que, mas o mundo não é a mesma coisa com as luzes apagadas.
E foi desagradável porque Shaunee e Erin ficavam olhando para mim como se elas pensassem que eu fosse uma bomba prestes a explodir. Johnny B e Kramisha mal falavam comigo, e Stark, que estava comigo na garupa de Persephone, minha impressionante égua, nem se permitiu colocar as mãos na minha cintura.
Eu? Eu só queria ir para casa.
Darius vinha no volante do Hummer atrás de nós, seguindo--nos a uma velocidade de tartaruga para ele, apesar de os três cavalos estarem galopando com certa firmeza. Os novatos vermelhos, liderados por Stevie Rae e Erik, seguiam o Hummer. Tirando o carro e os cascos dos cavalos, a noite estava tão silenciosa quanto escura, apesar de um galho ou outro, vez por outra, ceder ao peso do gelo e cair, fazendo um barulho terrível e assustador.
Ainda sem dizer nada, fiz Persephone virar à esquerda na Rua Utica.
– Quer dizer que você não vai nunca mais falar comigo? – perguntei a Stark.
– Eu vou falar com você – ele respondeu.
– Por que sempre parece que tem um “mas” no fim de cada frase?
Ele hesitou e praticamente senti sua tensão, até que finalmente Stark deu um longo suspiro e disse: – Não sei se fico chateado com você ou se peço desculpas pela merda que aconteceu no refeitório.
– Bem, o que rolou no refeitório não foi culpa sua. Pelo menos, a pior parte não foi.
– É, eu sei disso, mas também sei que você ficou magoada com toda essa história do Erik.
Eu não soube o que responder, então continuamos cavalgando em silêncio por um tempo, até que Stark limpou a garganta e disse: – Você foi bem dura com todo mundo.
– Eu tinha que acabar com a briga, e achei que esse era o jeito mais rápido.
– Da próxima vez você podia tentar dizer algo tipo “pessoal, vamos calar a boca e parar de briga”, sei lá, talvez seja coisa da minha cabeça, mas acho que faz mais sentido do que pegar pesado com seus amigos.
Segurei a vontade de rebater dizendo que queria vê-lo fazendo melhor do que fiz. Em vez disso, pensei no que ele disse. E provavelmente ele tinha razão. Não me senti confortável com o fato de ter dado bronca em todo mundo, principalmente por boa parte de “todo mundo” consistir em amigos meus.
– Da próxima vez vou tentar me sair melhor – finalmente eu disse.
Stark não pareceu se sentir triunfante. Também não bancou o machão paternalista. Apenas pôs as mãos nos meus ombros, apertou, e falou: – O fato de você ouvir de verdade as pessoas é uma das coisas que mais gosto em você.
Senti que fiquei corada ao ouvir o cumprimento inesperado.
– Obrigada – agradeci baixinho. Passei os dedos na juba fria e molhada de Persephone e gostei quando ela virou as orelhas para trás em resposta. – Você é mesmo uma boa menina – sussurrei para ela.
– Pensei que você já tinha reparado que não sou menina – Stark disse, com um sorriso arrogante na voz.
– Eu reparei, sim – ri, e a tensão entre nós se evaporou. As gêmeas, Johnny B e Kramisha olharam para nós com sorrisos hesitantes.
– Então, bem, eu e você estamos de boa? – perguntei.
– Você e eu estaremos sempre de boa. Sou seu guerreiro, seu protetor. Não importa aonde você vá, eu a estarei guardando.
Quando minha garganta ficou limpa, permitindo-me falar, eu disse: – Ser meu guerreiro nem sempre é um trabalho fácil.
Ele deu uma gargalhada alta e prolongada, e envolveu minha cintura com os braços, dizendo: – Zoey, às vezes ser seu guerreiro vai ser um “megapé no saco”.
Eu ia dizer que talvez a mãe dele fosse um “megapé no saco”, mas seus braços me envolviam e seu toque era tão tranquilizador. Então resmunguei que ele era cheio de titica e me deixei relaxar novamente.
– Você sabe – ele disse. – Se conseguir deixar de lado a loucura causada pelo temporal e toda essa confusão de Kalona e Neferet, o gelo é bem legal. É quase tipo sair do mundo real e viajar para uma terra doida de inverno constante. Tipo um lugar onde mora a Bruxa Branca.
– Aaah, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa! Adorei esse filme.
Ele limpou a garganta.
– Eu não assisti.
– Você não assistiu? – arregalei os olhos e dei uma rápida olhada para trás. – Você leu o livro?
– Livros – ele disse, enfatizando o plural. – C. S. Lewis escreveu muito mais que a série Crônicas de Nárnia .
– Você leu?
– Li.
– Ahn – respondi, sentindo-me estupefata (como diria minha avó).
– Qual é o problema? Ler é bom – ele disse na defensiva.
– Eu sei! Que bom que você lê. Na verdade, acho show você ler – e achava mesmo. Adoro garotos bonitos e com cérebro.
– É mesmo? Bem, então é bem possível que você se interesse pelo fato de eu ter acabado de ler O Sol é para Todos.[6]
Sorri e lhe dei uma cotovelada.
– Todo mundo já leu esse.
– Eu li cinco vezes.
– Nããão.
– É sim. Sei trechos de cor.
– Palhaçada sua.
E então Stark, meu guerreiro grande, mau e macho, levantou a voz e, imitando uma garota sulista, disse: – “Tio Jack, o que é uma mulher da vida?”
– Acho que não é essa a citação mais importante do livro – repliquei, mas ri assim mesmo.
– Tá. E que tal esta: “Nenhuma professora vagabunda e melequenta vai me forçar a fazer nada”!
– Você tem uma mente doentia, James Stark – eu estava sorrindo e me sentindo aquecida e feliz quando pegamos a longa estrada que levava à Morada da Noite. E só pensava em como aquele lugar parecia carregado de magia, todo iluminado e receptivo, quando reparei que havia mais luzes acesas do que as dos geradores e dos antiquados lampiões a óleo. Então me dei conta de que a luz não vinha de nenhum dos edifícios da escola. Vinha de uma área entre o Templo de Nyx e a escola em si.
Senti Stark ficar tenso no mesmo instante.
– Que foi? – perguntei.
– Pare os cavalos – ele disse.
– Eia! – puxei as rédeas de Persephone e gritei para que Shaunee e Johnny B fizessem o mesmo com seus cavalos. – O que está havendo?
– Fique de olhos bem abertos. Esteja pronta para voltar para o convento. Volte imediatamente se eu mandar voltar. E não espere por mim! – foi tudo o que Stark disse antes de descer de Persephone e correr a toda velocidade até o Hummer.
Virei-me e vi que Darius já estava saindo do Hummer, enquanto Heath assumia a direção. Os dois guerreiros conversaram brevemente, então Darius chamou Erik, os novatos vermelhos (menos as meninas) e Stevie Rae. Eu estava prestes a fazer Persephone voltar em direção ao Hummer quando Stark se aproximou de mim outra vez.
– O que foi? – perguntei.
– Algo está pegando fogo no terreno da escola.
– Você pode me dizer de onde vem? – perguntei a Shaunee.
– Não sei – Shaunee respondeu, franzindo a testa em concentração. – Mas parece algo sagrado.
Sagrado? Mas que diabo?
Stark segurou as rédeas de Persephone para atrair minha atenção.
– Veja debaixo das árvores.
Olhei para a direita, para a fileira de pereiras que cercavam a pista que dava para a Morada da Noite. Havia algo debaixo delas... Sombras dentro de sombras de silhuetas vergadas. Senti o estômago revirar ao me dar conta do que estava vendo.
– Raven Mockers – eu disse.
– Eles tão mortos – Kramisha falou.
– Temos que conferir. Temos que ter certeza – Stevie Rae afirmou.
Ela se juntou aos novatos vermelhos e a Erik.
– É o que faremos – Darius disse. Então, tirando uma faca de dentro do casaco de couro, virou-se para Stark. – Fique com Zoey.
Ele acenou para que Stevie Rae e Erik o seguissem e avançou em direção às árvores. Não demorou muito.
– Morto – ele gritava à medida que conferia um por um.
Quando o grupo voltou a se juntar a nós, não pude deixar de reparar como Stevie Rae tinha ficado pálida.
– Você está bem? – perguntei-lhe.
Ela olhou para mim, com olhos bastante assustados.
– Tô – ela respondeu rapidamente. – Tô bem. Só... – sua voz falhou, e ela voltou o olhar para os corpos medonhos debaixo das árvores.
– É que eles fedem – Kramisha disse, e todos olhamos para ela. – Bem, é verdade. Esses Raven Mockers têm qualquer coisa de podre no sangue.
– O sangue deles fede mesmo. Eu sei, pois tive de me limpar depois que Darius atirou em alguns que estavam voando sobre o convento – Stevie Rae falou rapidamente, parecendo incomodada com o assunto.
– Foi esse cheiro que senti em você! – fiquei aliviada por finalmente identificar o cheiro esquisito.
– Todos nós precisamos nos concentrar no aqui e agora – Darius nos alertou. – Não sabemos o que está acontecendo aqui – ele apontou para o ponto no terreno da escola de onde vinha a luz crepitante do fogo.
– O que é isso? A escola está realmente pegando fogo? – Stevie Rae falou em voz alta o que todos nós estávamos pensando.
– Eu posso dizer o que é – a voz assustou todos nós, menos os três cavalos, o que devia ter sido suficiente para eu saber quem estava nas sombras do estádio esportivo. – É uma pira funerária – disse Lenobia, a professora de Equitação e uma entre os poucos vamps adultos que haviam ficado do nosso lado depois que Kalona e Neferet tomaram conta da escola.
Ela foi direto aos cavalos, cumprimentou-os e viu como estavam, ignorando todo mundo até concluir que eles estavam bem. Finalmente, ela levantou os olhos, ainda esfregando o focinho de Persephone, e disse: – Merry meet , Zoey.
– Merry meet – respondi automaticamente.
– Você o matou?
Balancei a cabeça.
– Nós o afugentamos. O poema de Kramisha estava certo. Quando nós cinco nos unimos, conseguimos bani-lo através do amor. Mas quem...
– Neferet morreu ou só fugiu com ele? – ela me interrompeu.
– Fugiu. Para quem é a pira funerária? – não podia mais esperar para perguntar.
Os lindos olhos azul-cinzentos de Lenobia encontraram os meus.
– Anastasia Lankford perdeu a vida. O último gesto de Rephaim, filho favorito de Kalona, antes de chamar os irmãos para ir atrás de vocês no convento, foi cortar sua garganta.
22
Zoey
Stevie Rae soltou um ofego horrorizado que foi repetido por todos nós, mas Darius não hesitou e perguntou: – Sobrou algum Raven Mocker vivo por aqui?
– Nenhum. Que suas almas apodreçam eternamente no ponto mais profundo do Mundo do Além – Lenobia respondeu com amargura.
– Morreu mais alguém? – perguntei.
– Não, mas havia muitos feridos. A enfermaria ficou abarrotada. Neferet era nossa única curandeira de verdade, e agora que ela... – a voz de Lenobia foi sumindo.
– Então Zoey precisa cuidar dos feridos – Stark disse.
Lenobia e eu enrugamos as testas, olhando para ele sem entender.
– Eu? Mas eu sou...
– Você é o que temos de mais próximo de uma Grande Sacerdotisa. Se há novatos e vampiros feridos na Morada da Noite, eles precisam de sua Grande Sacerdotisa – Stark explicou com simplicidade.
– Especialmente ela tendo afinidade com o espírito. Não há dúvida de que você pode ajudar os feridos – Darius acrescentou.
– Você têm razão, é claro – Lenobia concordou, afastando as mechas de cabelos platinados que lhe caíram sobre o rosto. – Desculpe. A morte de Anastasia acabou comigo. Não estou pensando com clareza – ela sorriu para mim, mas foi mais uma careta do que um sorriso de verdade. – Sua ajuda é necessária e bem-vinda, Zoey.
– Farei tudo que puder – falei com fingida segurança, mas a verdade era que só de pensar em pessoas feridas meu estômago revirava.
– Todos vamos ajudar – Stevie Rae falou alto. – Se uma afinidade pode ajudar, talvez cinco ajudem cinco vezes mais.
– Talvez – Lenobia disse, ainda com cara de arrasada e triste.
– Vai ajudar a trazer a esperança de volta.
Olhei em volta e, para minha surpresa, vi Aphrodite indo para o lado de Darius e lhe dando o braço. Lenobia olhou para ela com ceticismo. – Acho que vocês vão perceber que as coisas mudaram na Morada da Noite, Aphrodite.
– Tudo bem. Estamos nos acostumando com esse negócio de tudo ficar mudando – Aphrodite respondeu.
– É, mudar já é quase a nossa rotina – Kramisha reforçou, e vários outros manifestaram sua concordância.
Eu estava tão orgulhosa deles que quase chorei.
– Acho que estamos todos prontos para voltar para casa – eu disse.
– Casa – Lenobia repetiu a palavra de um jeito triste e fraco. – Então me sigam para ver no que se transformou a sua casa – ela deu meia--volta, emitiu um som gutural e, como se fossem um só, os três cavalos a seguiram, sem receber comando nenhum de nossa parte.
Da entrada principal da escola passamos ao estacionamento, que foi onde Darius fez sinal para que Heath estacionasse o Hummer e onde todos fizemos uma pausa para descer dos cavalos e nos reagruparmos. A lateral do edifício dos professores e da enfermaria bloqueava nossa visão do terreno da escola, de modo que víamos apenas as sombras fantasmagóricas projetadas pelas chamas.
A não ser pelo fogo crepitando ao consumir a madeira, a escola estava em silêncio absoluto.
– A coisa é séria – Shaunee disse baixinho.
– Como assim? – perguntei.
– Senti tristeza nas chamas. A coisa é séria – ela repetiu.
– Shaunee tem razão – Lenobia disse. – Vou levar os cavalos para a estrebaria. Você quer vir comigo ou prefere... – sua voz foi desaparecendo à medida que seus olhos foram atraídos pelas sombras adejantes que a luz do fogo projetava sobre os galhos dos carvalhos antigos que havia por todo o centro do terreno da escola. Assim, todos nós vimos as sombras pavorosas que dançavam ao sabor das chamas.
– Vamos entrar – eu disse, apontando para o coração da escola. – Melhor encarar logo.
– Volto assim que acabar de cuidar dos cavalos – Lenobia disse e sumiu pela escuridão adentro seguida pelos cavalos.
Senti a mão firme e quente de Stark em meu ombro.
– Não se esqueça de que Kalona partiu, e Neferet também. Por isso, tem de cuidar dos novatos e vamps , o que deve ser simples depois de tudo que você passou – ele parecia querer me dar força.
Heath se levantou e veio para meu outro lado.
– Ele tem razão. Cuidar dos novatos e vamps não pode ser tão difícil quanto encarar Neferet e Kalona.
– É nosso lar, não importa o que tenha acontecido – disse Darius.
– Sim, nosso lar. Está mais do que na hora de voltarmos – Aphrodite reforçou.
– Vamos ver que tipo de bomba Neferet nos deixou – eu disse bruscamente.
Afastei-me de Stark e Heath, conduzindo todos à calçada que rodeava a linda fonte e a área do jardim em frente à entrada dos professores e às portas arredondadas de madeira, tipo portas de castelo, que ficavam ao lado da pequena torre, que era na verdade um centro de mídia. Enfim, avistamos o terreno central da escola.
– Ah, Deusa! – Aphrodite arfou.
Meus pés pararam sem um comando consciente da minha parte. A cena com que me deparei foi simplesmente tão macabra que não consegui avançar. A pira funerária era um enorme monte de fogo brotando da lenha que fora colocada embaixo e ao redor de um banco de madeira do tipo usado em piqueniques. Sei que era um banco de piquenique porque, apesar de estar queimando, a estrutura ainda estava totalmente reconhecível, assim como o corpo sobre a mesa. A professora Anastasia, a bela esposa de nosso Mestre de Esgrima, Dragon Lankford, estava com uma roupa longa e solta, coberta por um manto de linho. Era horrível perceber seu corpo debaixo do tecido. Seus braços estavam cruzados sobre o peito e seus cabelos longos pendiam rumo ao chão, estalando ao arder em chamas.
Um barulho terrível atravessou a noite, parecido com o choro triste de uma criança, e meu olhar, que estava preso à pira medonha, se voltou para um ponto perto da lateral do banco. Dragon Lankford estava lá, ajoelhado, de cabeça baixa e com os longos cabelos cobrindo o rosto, mas mesmo assim dava para perceber que estava chorando. Ao lado dele estava um gato enorme que logo reconheci; era Shadowfax, seu Maine Coon, que estava encostado a ele, olhando para seu rosto. Em seus braços estava uma delicada gata branca que uivava e tentava se soltar, aparentemente tentando se jogar na pira com sua vampira.
– Guinevere – sussurrei. – É a gata de Anastasia – tapei a boca com a mão, tentando conter o choro que se formava dentro de mim.
Shaunee passou rapidamente por nós e caminhou até a pira, parando mais perto do lago do que qualquer um de nós teria conseguido. Ao mesmo tempo, Erin foi para o lado de Dragon. Shaunee levantou os braços e chamou em voz alta: – Fogo! Venha para mim!
Depois, ouvi a voz suave de Erin chamando a água. Enquanto a pira e o corpo eram subitamente envoltos e camuflados pelas chamas, Dragon foi cercado por uma névoa fria que me pareceu feita de lágrimas. Damien foi mais para perto de Erin.
– Vento, venha para mim – ele chamou. Damien direcionou uma brisa suave para que soprasse para longe o cheiro terrível de carne queimada.
Stevie Rae acompanhou Damien.
– Terra, venha para mim – ela chamou. No mesmo instante, a brisa que soprou para longe o cheiro de morte foi tomada pelo delicado aroma de um prado, trazendo à mente imagens primaveris e de vegetação crescendo nos verdes prados de nossa Deusa.
Eu sabia que minha parte vinha em seguida. Cheia de tristeza, caminhei até Dragon e pus uma das mãos gentilmente em seu ombro, que balançava por causa de seus soluços. Levantei minha outra mão e disse: – Espírito, venha para mim – quando senti o lindo movimento do elemento em resposta a meu chamado, continuei: – Toque Dragon, espírito. Acalme-o, e a Guinevere e a Shadowfax também. Ajude-os a suportar a dor – e então, concentrei-me para direcionar o espírito através de mim para alcançar Dragon e os dois gatos arrasados. Guinevere parou de uivar. Senti o corpo de Dragon se encolher, e ele lentamente levantou a cabeça e olhou nos meus olhos. Seu rosto estava terrivelmente arranhado e havia um corte profundo abaixo do olho esquerdo. Lembrei-me da última vez que o vi combatendo três Raven Mockers . – Abençoado seja, Dragon – eu disse baixinho.
– Como conseguirei suportar, Sacerdotisa? – sua voz era a de um homem totalmente acabado.
Senti um instante de pânico, tipo tenho só dezessete anos! Não posso ajudá-lo! Então, fechando um círculo perfeito, o espírito saiu de Dragon em espiral, passou por mim e entrou no Mestre de Esgrima outra vez, enquanto eu extraía forças de meu elemento.
– Você vai voltar a estar com ela. Ela está com Nyx agora. Ela vai ficar esperando por você nos prados da Deusa, ou então renascerá e sua alma o encontrará novamente nesta vida. Você vai conseguir suportar por saber que o espírito nunca tem fim de verdade, que nós nunca acabamos de verdade.
Os olhos de Dragon procuraram os meus, e eu encarei seu olhar com firmeza.
– Eles foram derrotados? Aquelas criaturas foram embora?
– Kalona e Neferet foram embora. Os Raven Mockers também – afirmei.
– Ótimo... ótimo... – Dragon baixou a cabeça e ouvi sua prece discreta a Nyx, pedindo à Deusa para cuidar de sua amada até o reencontro.
Apertei seu ombro uma vez e então, sentindo-me uma intrusa, afastei-me, respeitando a privacidade de seu momento de luto.
– Abençoada seja, Sacerdotisa – ele disse sem mexer a cabeça.
Eu devia ter dito algo mais maduro e sábio, mas na hora a emoção foi tanta que não consegui falar. Stevie Rae de repente estava ao meu lado, com Damien ao lado dela. Erin se afastou de Dragon e veio para meu outro lado e Shaunee foi para o lado dela. Ficamos parados em silêncio respeitoso, formando um círculo não traçado, mas presente, enquanto o fogo carregado de magia de Shaunee terminava de consumir o que restava do corpo físico de Anastasia.
O silêncio que nos cercou só foi rompido pelos sons das chamas e de Dragon murmurando preces. Foi quando me ocorreu outra coisa. Olhei ao redor da pira. Dragon a pusera no meio da trilha pavimentada, que fazia um círculo entre o Templo de Nyx e os principais prédios da escola. Era uma boa escolha. Havia espaço de sobra para o fogo. E também para os outros professores e novatos, que deviam estar lá, parados ao lado de Dragon, enviando preces a Nyx por Anastasia, bem como por seu companheiro, não se intrometendo em seu luto, mas marcando presença em silêncio para demonstrar amor e apoio.
– Não tem ninguém lá com ele – eu disse baixinho, sem querer que Dragon ouvisse a revolta em minha voz. – Cadê a droga do resto do povo?
– Ele não devia estar lá sozinho – Stevie Rae falou, enxugando as lágrimas de seu rosto. – Isso não está certo.
– Eu estava com ele até sentir os cavalos chegando – Lenobia disse, aproximando-se de nós.
– E o resto do pessoal? – perguntei.
Ela balançou a cabeça, e vi em seu rosto que estava tão revoltada quanto eu.
– Os novatos estão nos dormitórios. Os professores, em seus quartos. O resto está na enfermaria. Quer dizer, o resto que se daria ao trabalho de vir ficar aqui com ele.
– Isso não faz o menor sentido – eu não conseguia assimilar o que estava acontecendo. – Como seus alunos e os professores não se deram ao trabalho de vir ficar com ele?
– Kalona e Neferet podem ter partido, mas seu veneno permaneceu aqui – Lenobia disse de um jeito soturno.
– Você precisa ir para a enfermaria – Aphrodite me chamou, vindo atrás de nós. Percebi que Lenobia continuou olhando para a pira e para Dragon.
– Vão – ela disse. – Vou ficar aqui com ele.
– Nós também – Johnny B adiantou-se. – Ele era meu professor favorito antes, sabe?
Eu entendi. Johnny B quis dizer antes de morrer e desmorrer.
– Vamos todos ficar – Kramisha disse. – Não é certo ele ficar sozinho, e você e nosso pessoal têm coisas para resolver lá dentro – ela voltou os olhos para o lado da enfermaria. – Vamos – ela gritou e os demais novatos vermelhos saíram das sombras para ficar ao lado de Dragon, criando um círculo ao redor da pira.
– Eu também vou ficar – agora era Jack quem falava. Ele estava chorando muito, mas não hesitou em assumir seu lugar no círculo que os novatos vermelhos estavam fazendo. Duquesa ficou ao seu lado, com o rabo entre as pernas e as orelhas caídas, parecendo entender tudo. Sem dizer nada, Erik foi para o lado de Jack. Então Heath me surpreendeu ficando ao lado de Erik. Ele assentiu para mim solenemente e abaixou a cabeça.
Não senti firmeza na minha voz, então simplesmente me virei e, seguida pelo meu círculo, além de Aphrodite, Stark e Darius, fizemos nossa reentrada na Morada da Noite.