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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TENTAR A UM HIGHLANDER / Janet Chapman
TENTAR A UM HIGHLANDER / Janet Chapman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Série Pine Creek Highlander

Volume 4

TENTAR A UM HIGHLANDER

 

Ela tem o poder de tentá-lo além de toda razão.

Catherine Daniels chega a Pene Creek, Maine, no momento mais adequado para Robbie MacBain. Ela está fugindo de seu ex-marido e Robbie é um atraente pai solteiro que necessita uma governanta enquanto viaja para o passado, à Escócia medieval. Sem Catherine saber, Robbie está procurando um livro de feitiços para salvar o futuro de sua família... E não esperava poder encontrar uma ardente paixão nos braços de Catherine. Poderá Robbie mudar o destino de sua família e seduzir Catherine para que esta lhe entregue seu coração e queira segui-lo aonde o amor os leve?

 

 

— Venha, querida… Dá-me encanto…

Robbie MacBain despertou completamente alerta e disposto para o combate, embora sem ter a menor ideia do que acontecia.

— Assim. Anda, se mova, querida…

Mas que diabos…? Certamente não estava na cama com uma mulher, de modo que não deveria estar ouvindo uma voz rouca e sedutora na orelha. Sabia que estava em seu quarto da fazenda, mas também sabia, e isso era o mais importante, que estava sozinho.

— Venha, um mova um pouquinho mais, céu…

Sentou-se muito direito e tentou ver na escuridão. Nada: nem rastro de uma mulher. Entretanto, a voz tinha parecido muito clara… Além de suave, sexy e próxima.

— Venha… — Sussurrou ela cada vez com menos paciência — Que tenho que ir …Ai, pelo amor de Deus, se mova!

Ao ouvir o descontente cacarejo de várias galinhas, Robbie voltou a cabeça com gesto brusco para o monitor de bebês que estava em sua mesinha de noite. E, ao tempo que jogava para trás as mantas e saltava da cama, amaldiçoando.

O galinheiro.

Em teoria estava vigiando o galinheiro.

Colocou as calças depressa e correndo, agarrou a camisa e se deteve o suficiente para dar uma olhada no relógio que tinha junto à cama. Viu que eram as cinco e meia e sorriu enquanto colocava a camisa a toda pressa e procurava as meias.

Horas antes, quando decidiu que não tinha por que dormir fora naquela fria noite de março, tinha levado o monitor de bebês ao galinheiro para que o aparelho eletrônico realizasse seu trabalho. E funcionava, disse, enquanto colocava as botas e as atava, saltando primeiro sobre um pé e depois sobre o outro. Era o terceiro assalto ao galinheiro da semana.

Só se levavam meia dúzia de ovos cada vez e sempre deixavam uma nota de um dólar, mas era questão de princípios. Alguém estava comprando os ovos. A Robbie não fazia muita graça os mistérios e a mulher da voz sexy que tinha ouvido no transmissor era um mistério que de repente tinha muita vontade de resolver.

Desceu correndo a escada e patinou até deter-se na cozinha. Sem fazer ruído, abriu a porta da casa e saiu muito devagar ao alpendre iluminado pela lua, justo quando a mulher saía às escondidas do galinheiro. Robbie piscou. Menos mal que acabava de ouvir sua voz no transmissor, se não teria jurado que o ladrão era um pirralho: parecia um menino, agachada junto a uma mochila ao tempo que, com precaução, colocava dentro seu café da manhã roubado.

A mulher o divisou quando descia do alpendre.

Dando um grito de susto, deixou cair dois ovos enquanto ficava de pé, e depois jogou a mochila nas costas e começou a correr para o prado.

—Ei! Pare!

A mulher subiu à cerca do cercado com a agilidade de um gato.

Com um amplo sorriso absolutamente masculino, Robbie pôs-se a correr. Certamente sua ladra tinha um bonito traseiro… E, de passada, enquanto saltava a cerca, também se fixou com agrado em que toda sua altura procedia de um par de longas pernas que, rapidamente, internavam-na na noite.

Mas ele media dois metros com meias, e estava seguro de que não demoraria para dar por fim com ela. Depois descobriria quem era e que fazia roubando ovos.

Ao cabo de quase um quilômetro o sorriso de Robbie tinha desaparecido. Escapou! Respirando com um áspero ofego entre os dentes apertados, obrigou a suas pernas a mover-se mais rápido. Em tom arrogante, a noite anterior tinha assegurado aos meninos que não era mais que um simples ladrão, que ele o apanharia e que não, obrigado, não necessitava a ajuda de uns adolescentes…

Não tinha a menor intenção de que suas fanfarronices se transformasse em gargalhadas essa manhã. Perseguiu à mulher durante quase três quilômetros até que por fim se deu conta de que não ia apanhá-la. Depois de sair do prado, passar pela ravina e cruzar a colina a toda velocidade, a gatinha de longas pernas tinha desaparecido no denso bosque da montanha TarStone.

Maldição…! A volta foi um frio passeio à escassa luz da manhã. Durante o primeiro quilômetro e meio Robbie esgotou quase todo seu vocabulário de palavrões e, ao chegar ao jardim, só ficavam xingamentos em gaélico. Parou em meio a duas dúzias de galinhas que escaparam pela porta aberta do galinheiro e procuravam comida, e se voltou a olhar TarStone para ver o sol nascente aparecer por cima da cúpula.

Nesse momento Cody saía do galinheiro fazendo estalar uma enrugada nota de um dólar entre as mãos.

— Pelo visto, outra vez há dinheiro para tomar o café da manhã — Disse, fazendo caso omisso do feroz olhar de advertência de Robbie — Temos queijo para acompanhá-lo? Nada como torradas queimadas e uma omelete de notas de um dólar para começar bem o dia.

Robbie deu um ameaçador passo adiante.

O delinquente juvenil de dezesseis anos meteu o dólar no bolso, cruzou os braços e sorriu.

— É ovo isso que vejo em sua cara, chefe? — Perguntou.

Robbie também cruzou os braços.

— Não, o que vê é minha decisão de que você vai preparar o café da manhã.

O sorriso de Cody desapareceu.

— Se o preparei ontem…

— E o fez tão bem que hoje o fará outra vez.

Enquanto murmurava algo que Robbie supôs que era um bom palavrão, Cody se afastou dando fortes pisões para a casa. Justo então se abriu a porta de tela e Gunter saiu ao alpendre e recuou para que Cody passasse como um furacão por diante dele.

Robbie deu um suspiro; Gunter não ia vestido para ir ao colégio e sim para o trabalho. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, voltou-se para enfrentar a sua seguinte provocação.

— Harley chamou: há dois lenhadores doentes — Disse Gunter ao tempo que se aproximava — Então hoje vou trabalhar.

A Robbie não surpreendia que aquele menino de dezoito anos preferisse passar um dia de dura tarefa nos bosques que ir ao colégio. Diabos: Gunter preferiria limpar estábulos antes que ir ao colégio.

O menino parou diante de Robbie.

— Harley disse que hoje saem duas cargas de troncos — Prosseguiu; para variar, seus olhos quase negros estavam mais iludidos que na defensiva — Precisa de mim para dirigir a grua.

— Eu dirijo a grua.

— Mas esta manhã tem uma reunião com a juíza Judy.

Maldição; era verdade… E aqueles troncos tinham que partir sem falta.

— Não é a juíza Judy; chama-se juíza Bailey, e é o único que te separa de uma cela de dois metros e meio por três.

— Hoje só tenho oficina de metal e uma aula — Continuou Gunter — O recuperarei amanhã.

Robbie lhe devolveu o franco olhar e sopesou a necessidade de educação do menino frente a seu desejo de livrar-se da estrutura da sala de aula.

Diabos, todo mundo necessitava um desafogo de vez em quando… E, ao melhor, uma longa jornada de trabalho no bosque serviria para recordar a Gunter que a educação proporcionaria uma vida mais fácil.

Além disso, o garoto merecia uma recompensa por levar dois meses inteiros sem montar briga no colégio…

Robbie aceitou assentindo com a cabeça.

— Diga a Harley que irei para lá depois da reunião com Bailey. E, Gunter… —Acrescentou quando o menino se voltava para partir — Só ficam dez semanas para a formatura. Qualquer um aguenta o que seja durante dez semanas.

Um leve sorriso apareceu na, pelo geral, impassível face de Gunter.

— Eu venho aguentando seus guisados por um mês — Disse em voz baixa.

Animado por aquele sorriso, Robbie sorriu também.

— Esta noite a avó Katie vai nos trazer lasanha — Disse como uma concessão —Com salada e pãozinhos caseiros.

Gunter se voltou de tudo para olhá-lo com expressão séria.

— Quando vai procurar outra governanta?

Robbie meneou a cabeça.

— Correu-se a voz sobre quantos vândalos têm aqui: não tenho suficiente dinheiro para atrair a outra mulher.

— Já aprendemos a lição — Disse Gunter — Se isso nos economizar seus guisados e o que tenhamos que fazer, trataremo-la como a uma verdadeira rainha.

— Não deixarei de pô-lo no anúncio — Disse Robbie.

O rápido repico de uma bengala sobre o cascalho fez que se voltasse a olhar. Gunter olhou também e ao ver o pai Daar descendo o caminho de acesso do bosque, girou sobre seus calcanhares e saiu correndo para a casa.

Robbie teve que fazer provisão de toda sua força de vontade para não fazer o mesmo.

— Quero conversar com você, Robbie — Disse Daar, ao tempo que afastava as galinhas com a bengala — Necessito sua ajuda em um assunto.

— Se tratar da bomba para o poço, já pedi uma nova — Disse Robbie com a esperança de adiantar-se ao velho sacerdote, que vivia em uma cabana, na metade da ladeira da montanha TarStone — Chegará amanhã e os meninos e eu a instalaremos quando voltarem do colégio.

Mas Daar já meneava a cabeça.

— Não estou aqui por isso — Aproximou-se e, ao ver que Rick saía correndo da casa, baixou a voz — É algo um pouco mais importante.

— Peter tornou a carregar muito a secadora e provocou um incêndio! — Gritou Rick do alpendre — Onde está o extintor?

Robbie saiu correndo para a casa, deixando o sacerdote metido em um torvelinho de galinhas que não paravam de bater as asas. Era o que lhe faltava: que o antigo lar de sua mãe, que tinha sobrevivido a quatro gerações da família Sutter, pudesse arder até os alicerces por um delinquente de quinze anos que acreditava que os eletrodomésticos eram, em realidade, demônios que tentavam arrastá-lo até o inferno.

Era o segundo incêndio que Peter provocava esse mês. Três semanas antes tinha sido a torradeira, que foi posta em chamas junto com as vasilhas e parte de um armário de cozinha; ainda cheirava a queimado na casa. Robbie passou a mão no extintor pendurado em um gancho a pouco mais de meio metro de Rick, entrou correndo no tanque e sufocou as chamas que já subiam pela parede. Enquanto voltava para a cozinha, limpando o pó do rosto, jogou uma olhada ao grupo de jovens que, com os olhos muito abertos, olhavam-no como se seu destino dependesse dele…

E assim era.

Quatro jovens, todos sob a tutela do estado, todos a seu cargo durante os últimos oito meses… Bom, salvo Gunter. A Gunter o tinham liberado fazia seis semanas, no dia em que fez dezoito anos, embora pelo visto o jovem não tinha pressa para partir.

A Robbie não parecia mau; até que conseguisse encontrar seu lugar na vida, Gunter tinha um lar ali. Para a grande consternação da juíza Bailey.

A Bailey não agradava ver os outros três meninos, em particular Peter, que tinha quinze anos, vivendo sob o mesmo teto que um conhecido briguento cuja má fama tinha chegado a três salas de julgamentos e diversos centros de internamento do condado. Daí a reunião daquela manhã.

— Seu cretino! — Disse Rick, ao tempo que dava a Peter um murro no braço — Está tentando que nos mandem para outra casa de acolhida?

—E que diabos é este lugar, se não? — Resmungou Peter, enquanto esfregava o braço e dava um olhar assassino a seu irmão mais velho.

— Esta não é uma casa de acolhida — Espetou Rick, zangado — E além disso é muitíssimo melhor que o centro de internamento. Maldição, não vou daqui por sua culpa.

Fez ameaça de voltar a dar um murro, mas Robbie agarrou o punho com o seu.

— Ninguém vai a nenhum lugar salvo ao colégio — Disse em voz baixa — Se esta casa se queimar, viveremos no estábulo. Todos ficam aqui até que decidam que preferem estar em outro lugar.

— Seria mais fácil se contratasse uma nova governanta e pronto — Disse Cody, enquanto tirava sua torrada em chamas da novíssima torradeira.

— Teríamos uma governanta se você não tivesse espantado às três últimas —Recordou Robbie.

— É que nenhuma tinha senso de humor — Repôs Cody com um bufido, raspando o negro da torrada.

— Não deixarei de pô-lo no anúncio — Disse Robbie.

Deixou o extintor vazio junto à porta para levá-lo para encher no povoado e entrou no banheiro para lavar a face e as mãos.

— Meninos, hoje têm que pegar o ônibus escolar — Disse através da porta aberta — Gunter, teve que levar a caminhonete ao trabalho.

Voltou a sair do banheiro secando as mãos na aba da camisa, porque não encontrava uma toalha. Depois dirigiu um penetrante olhar ao jovem enquanto advertia:

— E não vá a nenhum lugar que não seja o trabalho e de volta. E além não faça que me arrependa de ter deixado que falte a aula — Acrescentou em voz baixa.

— Como é que Gunter não vai ao colégio? — Perguntou Peter.

— Porque já aprendi a pôr uma secadora e uma torradeira sem provocar um incêndio — Disse Gunter.

— Onde? Na aula de economia doméstica?

Só precisou um ameaçador passo para frente de Robbie para que parasse o avanço de Gunter para Peter, e a seguir, um grunhido de advertência para que os quatro meninos se dirigissem para a porta.

— Bom dia, pai — Disse Cody com a boca cheia de torrada, enquanto se afastava para deixar entrar o sacerdote na casa.

— Bom dia, pai — Disse Gunter entre dentes, ao tempo que passava roçando-o.

— Bom dia, pai — Disseram Rick e Peter ao sair correndo para a segurança do jardim.

Daar dedicou um silencioso olhar feroz a cada um enquanto passavam a seu lado dando pernadas.

Robbie não pôde evitar sorrir. Durante os últimos oito meses o velho sacerdote tinha intimidado os meninos empregando o puro terror para que o respeitassem. Quando chegaram, dedicou-lhes um trabalhado olhar assassino, assinalou-os com sua bengala de cerejeira, explicou-lhes que em realidade era um mago e os advertiu que, se não se comportavam cortesmente com ele, transformá-los-ia a todos em escaravelhos bolorentos com seu poderoso bastão.

Todos assentiram com gesto respeitoso, mas, assim que se afastou, apressaram-se a olhar revirando os olhos; pelo visto, tinham decidido concordar com aquele velho louco.

Robbie se perguntava como reagiriam se soubessem que, em realidade, Daar era um mago.

Seu nome completo era Pendaär e, além de transformar delinquentes em escaravelhos bolorentos, o antigo druida também era capaz de adiantar oito séculos no tempo a dez guerreiros das Terras Altas escocesas. Robbie sabia por que seu pai, Michael MacBain, tinha nascido na Escócia no século XII… E também seu tio, Greylen MacKeage, igual a Morgan, Ian e Callum MacKeage.

E, como a Providência tinha julgado conveniente obsequiar Robbie com o poder de tutelar seus dois clãs, fazia uns cinco anos que os guerreiros tinham deixado com muito gosto o cuidado de Daar em seus competentes ombros, depois de muitos sermões para que não acreditasse nada do que contasse o velho sacerdote. Tinham sido cinco longos anos cheios de inumeráveis aventura… Que teriam se transformado em desastres se não fosse pela vigilância de Robbie.

Daar afastou com a mão a fumaça que seguia flutuando enquanto se dirigia à mesa da cozinha.

— Sobre meu assuntinho…

— Temo que terá que esperar — Disse Robbie, ao tempo que se aproximava da bancada e servia duas xícaras de café para eles — Minha jornada acaba de completar-se. Agora tenho que comprar uma secadora antes de ver a juíza Bailey.

Daar soltou um bufido e golpeou o chão com a bengala.

— Já me encarregaria eu dessa velha bruxa, se me deixasse.

Robbie pôs uma xícara de café na frente enquanto dizia:

— Martha Bailey não é velha e não é uma bruxa: limita-se a fazer seu trabalho. — Tomou assento à mesa — E nosso trato é que você não enreda com a magia se quer seguir vivendo na montanha TarStone.

Daar soltou um grunhido baixo, tomou um sorvo de café e estremeceu com gesto enojado antes de tomar outro sorvo.

Robbie deu um sorvo a sua taça, levantou-se, atirou o café na pia e foi a geladeira procurar um suco.

— Meu assunto não pode esperar — Disse Daar — O equinócio da primavera é amanhã.

Robbie, que olhava dentro do frigorífico, ficou quieto, com o fino pelo do pescoço arrepiado de inquietação. Devagar, endireitou-se e olhou ao sacerdote.

— E o que é o que acontece o equinócio da primavera?

— Todos os planetas estarão alinhados como tem que ser.

— Como tem que ser para quê?

— Para arrumar este probleminha que temos.

Foi o “temos” o que mais alarmou Robbie. Os probleminhas de Daar tinham o costume de transformar-se em enormes dores de cabeça para ele, e se acrescentava a primeira pessoa do plural, pelo geral significava uma enxaqueca feita e direita.

Fechou a porta da geladeira, cruzou os braços e jogou um olhar feroz ao sacerdote.

— E, exatamente, qual é esse nosso problema?

Daar se voltou para ficar de frente à mesa e, dirigindo-se a sua xícara de café, sussurrou:

— Seu pai e outros vão voltar para sua antiga época quando chegar junho.

Robbie só pôde olhar fixamente as costas de Daar.

— Tenho três meses para prolongar o feitiço que os trouxe aqui — Continuou contando o druida ao café; por fim se voltou a olhar para Robbie — No solstício deste verão fará trinta e cinco anos que estão aqui, e então é quando o feitiço se acaba.

Não foi uma dor de cabeça o que sentiu Robbie e sim umas palpitações no peito, tão dolorosas que custou trabalho respirar. Ia perder seu pai dentro de três meses? E a Grei e a outros? Maldição… Tinham esposas… E filhos… E o que se considerava uma vida estável.

— Diga algo — Sussurrou Daar.

— Impeça-o!

— Tentei! — Espetou, zangado, o sacerdote como resposta, ao tempo que golpeava com a bengala no chão outra vez — Quase voei a casa da cúpula a base de tentativas, e além disso provoquei um deslizamento de terras no TarStone!

— Aquele deslizamento de terras foi obra sua? — Sussurrou Robbie; sua mente se encheu de imagens dos destroços — E o incêndio da casa da cúpula no mês passado? Você o provocou?

Daar baixou a vista para a bengala enquanto, com uma mão retorcida pela idade, esfregava um dos curtidos nós da madeira de cerejeira.

— Também provoquei a enchente que levou a ponte do povoado na semana passada… — Elevou o queixo — Tentava encontrar um novo feitiço para prolongar o antigo.

Robbie passou uma tremula mão pela face.

— Deixe que me esclareça. Todo o tempo soube deste… Deste limite temporário de trinta e cinco anos, e nos diz isso precisamente agora?

— “Nos” não — Disse Daar ao tempo que abria muito os olhos, alarmado — Só a você. Laird Greylen e outros não podem descobrir isto.

— Por que não? São suas vidas as que estão a ponto de ficar destruídas.

Daar assentiu, impaciente.

— Mas o impediremos — Disse — Você recuará no tempo para me buscar um novo livro de feitiços, e depois prolongarei o antigo feitiço para mantê-los aqui.

Ainda de pé junto a geladeira, ainda cambaleando estupefato, Robbie meneou devagar a cabeça.

— Ah, não. Sei tudo o de suas tentativas por substituir o livro que voou faz vinte anos. Enquanto não tenha esses feitiços, todos estamos a salvo… Incêndios, deslizamentos de terras e enchentes à parte.

— Mas se isso é o que tentava te dizer… É que os cinco escoceses que ficam não estão a salvo: com o solstício do verão, voltarão para seu lar.

— Estão em seu lar!

— A seu antigo lar! — Gritou Daar. Soltou um enorme suspiro e, ao tempo que se levantava e se aproximava até ficar diante dele, baixou a voz — Robbie: trouxe aqui Greylen para que engendrasse a minha herdeira; isso já sabe. Mas o que não sabe ninguém é que eu só necessitava que estivesse aqui o tempo suficiente para ter sete filhas e proteger Winter MacKeage até que esta chegasse à idade adulta. Para realizar um feitiço definitivo teria tido que fazer concessões.

— Que espécie de concessões?

Daar recuou um passo.

— Teria tido que passar o resto de meus excepcionais dias na época moderna.

Robbie deu um passo para frente.

— Então por egoísmo escolheu fazer em pedaços as vidas de cinco homens. E duas vezes!

Daar elevou a bengala em gesto de raquítica defesa.

— Não pensei com tanta antecipação… E além, só tinha que ser Greylen, os outros não. Eles foram um acidente.

— E isso me transforma… No quê? Em outro acidente?

Daar meneou a cabeça com frenesi.

— Não: você é sua salvação. Você nasceu guardião e, além disso, transformou-se em um excelente guerreiro, Robbie. Já chegou a hora de que cumpra seu destino.

— Trazendo para você um livro de feitiços e devolvendo plenos poderes… — Disse Robbie, ao tempo que cruzava os braços — Mas que oportuno que meu destino encaixe perfeitamente com suas necessidades…

Daar deu um grito afogado, ao tempo que recuava e se chocava com a mesa.

— Acha que minto? — Assinalou-o com a bengala — Maldição, MacBain! Eu sou um sacerdote!

De um salto, Robbie abandonou sua despreocupada postura e avançou para o sacerdote até que a bengala esteve tocando seu peito. De sua imponente altura lançou ao druida um olhar tão ameaçador que Daar recuou cambaleando até a cadeira e se sentou dando um golpe surdo.

— Não tente sequer me amaldiçoar, velho — Sussurrou Robbie — Como guardião de meus dois clãs, protege-me o direito divino.

Inclinou-se mais ainda, ao tempo que cravava um olhar feroz nos azuis olhos, muito abertos, de Daar.

— Se permitiu viver aqui só porque Winter MacKeage necessitará sua ajuda no futuro, mas até então ficará você tranquilamente lá em cima, em sua cabana, e se considerará afortunado por estar sob a proteção de um laird benévolo. Porque —Prosseguiu enquanto, de um puxão, tirava a bengala que se interpunha entre ambos e a jogava sobre a mesa — Eu não seria tão compassivo como Laird Greylen se você se meter em minha vida como o fez na sua.

— Todo… tudo saiu bem para ele. Ama a sua esposa, a suas filhas e sua nova vida daqui. Todos os guerreiros das Terras Altas estão contentes.

Robbie resmungou ao tempo que se endireitava e se afastava.

— Só porque você já não se entremete em suas vidas.

Assim que houve certa distância entre eles, o druida elevou o queixo em gesto desafiante.

— Não careço por completo de poderes — Disse.

— Sim: ainda provoca incêndios, enchentes e deslizamentos de terras.

— Ainda posso viajar através do tempo — Acrescentou Daar, inclinando-se para frente de novo — E os planetas se alinharão como é preciso manhã, justo à hora do crepúsculo.

Robbie fechou os olhos e esfregou a face com as duas mãos antes de voltar a olhar o velho e tenaz sacerdote. Depois soltou um forte suspiro.

— Não haverá nenhuma viagem no tempo, druida. Nenhum feitiço e nenhum livro.

Daar respondeu:

— Então dentro de três meses haverá cinco homens menos vivendo em Pene Creek. Vai acontecer, Robbie, você goste ou não. A menos — Se apressou a acrescentar — Que viaje à Escócia do século XIII e me traga um livro novo.

Robbie ficou olhando-o em silêncio. Quantas vezes o tinham advertido que não acreditasse em Daar? E quantos contos tinha contado o velho sacerdote durante os últimos cinco anos, tentando obter sua ajuda para substituir seu livro de feitiços? Mas aquele era, de longe, o conto mais maquiavélico até a data; Daar sabia que Robbie faria tudo para proteger a sua família.

— Não — Resmungou.

— Se reúna comigo no topo de TarStone amanhã ao pôr do sol — Disse Daar, ao tempo que pegava sua bengala e ficava de pé — E traz sua espada.

— Não.

— Talvez queira procurar o plaid MacBain que levava seu pai quando veio aqui — Prosseguiu o sacerdote, caminhando para a porta — Não leve roupa feita de malhas modernas, nem nada que não se inventou por então.

— Não.

Daar se deteve com o olhar elevado ao teto, mas concentrado para dentro, pensativo.

— Provavelmente deveria te enviar de volta uns dez anos depois de que os escoceses desaparecessem.

— Não vou trazer seu livro, velho.

Daar olhou Robbie com seus cristalinos olhos azuis e baixou a voz.

— Não tem escolha… Se quiser que sua família continue intacta. Amanhã ao pôr do sol no topo — Disse, ao tempo que dava a volta e saía pela porta.

Robbie ficou paralisado vários segundos, depois saiu correndo ao alpendre.

— Por que eu? — Perguntou ao sacerdote que se afastava — Por que não Greylen, ou meu pai, ou Morgan? Eles conhecem a época, os costumes daquela gente e o terreno.

Daar se deteve na metade do caminho e se voltou para olhá-lo de frente.

— Embora ainda estejam cheios de vitalidade, são muito velhos, Robbie — Disse — Necessito um guerreiro poderoso na flor da vida; alguém forte, ardiloso e competente que seja letal se for preciso.

— E o filho de Callum? Ou um dos meninos de Morgan?

Daar meneou a cabeça.

— Suas forças se dirigem aos negócios, não ao combate. Mas MacBain te criou como guardião; compreendeu sua vocação e te preparou bem. — Lançou-lhe um torcido sorriso — Me parece que sua breve carreira como soldado deste tempo possivelmente também seja útil, embora não poderá levar armas modernas.

— Dá no mesmo, porque não vou.

— Então te sugiro que desfrute do pouco tempo que fica com seu pai e seus tios — Disse Daar enquanto dava a volta e se internava no bosque.

 

Robbie afrouxou a gravata assim que deslizou atrás do volante do SUV e por fim soltou o fôlego que tinha a impressão de ter estado contido durante toda a reunião com a juíza Bailey. Depois ligou o motor, saiu do estacionamento do palácio da justiça e se dirigiu para Pene Creek.

A reunião tinha ido bem… Quase toda. Martha Bailey tinha concordado que Gunter seguisse com Robbie, enquanto o jovem não se metesse em nenhuma confusão mais grave que ficar de castigo no colégio. Mas uma só briga, um só incidente que requeresse a presença do xerife e Gunter ia direito para prisão… Só que desta vez o jovem de dezoito anos corresponderia a prisão de adultos do condado.

Aquela tinha sido a melhor parte da reunião.

Quanto à outra face da moeda, em caso de que Gunter implicasse a qualquer dos outros meninos em sua falta, Rick, Peter e Cody também voltariam a entrar no sistema… Algo que, em seu caso, bem poderia ser o centro de detenção de delinquentes juvenis, posto que os três tinham um comprido histórico de fugas de casas de acolhida.

Robbie colocou os óculos de sol e deu um suspiro. Com o incentivo de seu pai, cinco anos atrás tinha abandonado uma carreira profissional no exército, dentro da seção de operações especiais, e havia retornado a Pene Creek decidido a mudar as coisas numa escala mais local. Tinha demorado dois anos para comprar terra suficiente para montar uma exploração florestal rentável, e outros dois para convencer os tribunais de menores do Maine de que podia ajudar a jovens incorrigíveis.

A princípio, a juíza Bailey foi seu maior obstáculo, mas depois se transformou em uma aliada ainda maior quando se deu conta de que Robbie tinha um dom para trabalhar com os delinquentes. Martha era boa em seu trabalho porque gostava dos garotos e estava decidida que Robbie tivesse êxito onde o sistema fracassava.

Também reconhecia que a agradava os homens altos e bonitos que vestiam traje e não temiam lhe fazer frente. Embora estava felizmente casada e quase tinha idade para ser sua mãe, flertava com ele como uma colegial.

A sua vez, Robbie era capaz até de flertar se isso o ajudava a conseguir seu objetivo. Por esse motivo tinha levado a reunião o almoço comprado na casa de refeições do povoado; um almoço que compartilharam no diminuto escritório de Martha, sobre a maciça mesa de escritório. Diabos: se inclusive tinha passado manteiga no pão, com a esperança de que assim passasse por cima o que Gunter seguisse vivendo em sua casa…

Assim que tudo bem de momento: Gunter ficava e Robbie seguiria ajudando o jovem a adaptar-se à vida adulta. Os dois irmãos, Rick e Peter, foram adaptando-se pouco a pouco. Que Rick comentasse aquela manhã que não queria partir era alentador. Do mesmo modo, com o tempo Peter venceria seu temor a todas as coisas mecânicas e com ajuda de um professor particular conseguiria acabar o colegial.

Entretanto, Cody necessitava um bom empurrão para o lado formal da vida. Robbie só tinha que encontrar o modo de fazer que o garoto se interessasse o suficiente por si mesmo para deixar de meter-se em confusões. Quatro delinquentes juvenis era seu limite. Na velha casa de sua mãe havia lugar para mais meninos, mas como as governantas não aguentavam mais de um mês, corria o perigo de perder aos que tinha por intoxicação alimentar.

Libby, que era sua madrasta desde que ele tinha oito anos, a avó Katie e suas tias MacKeage davam uma mão levando o jantar de vez em quando; era quase a única ocasião em que contava com que os quatro meninos se comportassem bem.

Pelo visto, a comida era importante para os adolescentes.

Bom, só depois do sexo.

Desde que os meninos viviam com ele, Robbie tinha pegado a muitas jovenzinhas com ataques de risada tola e não tinha demorado para aprender que tentar manter separados os dois sexos era uma autêntica perda de tempo.

Sorriu enquanto o SUV chegava ao alto do montículo que se elevava sobre o sonolento povoado de Pene Creek. A estação das motos de neves quase tinha finalizado, e o gelo começava a derreter sobre o lago Pene; uma eficaz forma de desfazer-se de quão pescadores obtinham suas capturas abrindo um buraco nele.

Nos bosques do norte do Maine, a primavera era a época preguiçosa do ano. Já se morava a época do barro, que dentro de umas quantas semanas deteria bruscamente a indústria florestal, e sua equipe de doze homens (além de uma fortuna em maquinaria) ficaria inativo até que o bosque se derretesse e depois secasse o suficiente para explorá-lo de novo. Quase todos seus homens já tinham planejado suas férias e Robbie queria levar os meninos a Boston durante as férias escolares de abril.

Ou, ao menos, esses tinham sido seus planos até a visita de Daar daquela manhã.

Passou na frente da loja de Dolan e girou para meter-se pela estrada que levava a fazenda de árvores de Natal de seus pais. Franziu o cenho pensando que de todos os planos estrambóticos que tinham ocorrido a Daar, aquele era o mais aterrador. O sacerdote se aproveitava de seu único temor autêntico; um temor com o que Robbie tinha crescido, sabendo que era o que mais temia seu pai, assim como seu tio Grei e outros MacKeage.

Trinta e cinco anos antes o druida tinha adiantado no tempo dez guerreiros das Terras Altas escocesas, embora já só ficavam cinco. Os outros, todos eles MacBain, morreram durante os dois primeiros anos. Quase todos morreram enquanto perseguiam tempestade com aparelho elétrico em um esforço por retornar a sua época original.

Robbie se chamava assim por seu tio avô Robert MacBain, e era a espada deste velho guerreiro a que aprendeu a dirigir assim que cresceu o bastante para levantá-la. Seu pai lhe ensinou as habilidades próprias de um guerreiro do momento em que soube sentar-se sobre um pônei, em tanto que ele mesmo tentava conectar aqueles dois mundos tão diferentes e tão distantes. Robbie adorava seu pai; impressionava-lhe sua capacidade não só de sobreviver a uma viagem inconcebível, mas também de prosperar e, ao final, de encontrar a felicidade. E além disso adorava a sua madrasta, Libby.

Casou-se com seu pai justo antes de seu nono aniversário, e depois tinha tido o detalhe de lhe dar duas irmãs e um irmão aos que chatear.

Sua irmã mais nova, Maggie MacBain, agora Maggie Dyer, acabava de dar a luz a uma menina, transformando-o assim em tio e dando uma alma mais pela que preocupar-se… E não é que se importasse. Pelo visto, proteger a suas famílias MacBain e MacKeage em rápida expansão e, agora além disso, os meninos rebeldes, era uma autêntica vocação.

Em troca, manter à raia Daar estava sendo uma provocação.

Robbie entrou no caminho de acesso à fazenda de seu pai, deteve o SUV entre o abrigo da maquinaria e a loja de produtos natalinos e desligou o motor. Olhou pelo para-brisa às inacabáveis fileiras de árvores de Natal que se estendiam entre manchas de neve que se derretia e depois deixou vagar seu olhar pelo pátio de cascalho até a grande casa de madeira branca onde tinha crescido. O que ia fazer com Daar? Não podia, em sã consciência, ignorar a afirmação do velho druida… E menos se punha em perigo a sua família.

Mas, confiaria a seu pai?

Pediria conselho?

Talvez, inclusive, faria recuar no tempo para que ajudasse a procurar o livro?

Não. Não faria passar a seu pai por semelhante suplício outra vez… Libby morreria de preocupação. Além disso é provável que então Greylen MacKeage desatasse sua cólera sobre Daar, e em que posição deixaria isso a Winter MacKeage? Os cinco escoceses oscilavam entre os cinquenta e oito e os oitenta e cinco anos. Mereciam, e tinham ganho, o direito a uma velhice tranquila, e lhe correspondia mantê-los a salvo da magia de Daar.

Nesse instante se abriu a porta do passageiro e seu pai se meteu no assento do lado, enchendo todo o espaço.

— Usa terno e parece que carrega com o peso do mundo sobre os ombros —Disse em voz baixa — Quer isso dizer que Gunter tem que partir?

Robbie sorriu e meneou a cabeça.

— Não; fica, sempre que se comporte bem — Se voltou para olhar mais de frente a seu pai e cravou o olhar no reflexo exato de seus próprios olhos cinzas — Viu a uma forasteira pelo povoado, mais ou menos de um e sessenta e cinco de altura, com o cabelo castanho até os ombros e uma pele branca e suave?

— Perdeu outra governanta? — Perguntou Michael, elevando uma sobrancelha em um gesto de curiosidade.

O sorriso de Robbie se alargou.

— Não, só uns quantos ovos. Encontrei-a fazendo uma incursão no galinheiro esta manhã, e a persegui até a metade da ladeira de TarStone até que a perdi.

Michael subiu a outra sobrancelha.

— Perdeu-a? Correndo?

— Era toda pernas — Se defendeu Robbie — Viu a alguém novo no povoado?

Michael olhou para a montanha TarStone.

— Não. Diz que estava roubando ovos? — Voltou a olhá-lo enquanto um cenho franzia sua curtida testa — Continua gelando pelas noites. Não passará a noite ao relento, não?

Robbie encolheu os ombros.

— Ao melhor sim; este foi o terceiro assalto da semana. — Seu olhar vagou também até a montanha e soltou um cansado suspiro — Terei que ir procurá-la, suponho.

— Te darei uma mão.

— Não — Disse Robbie com uma risadinha — Maggie quer ter o quarto do bebê acabado antes que a cria saia do berço.

Michael franziu o cenho.

— Homem, teria estado pronto antes que nascesse se Libby, Kate e Maggie deixassem de mudar de opinião tão somente um momento. O que importa a uma menininha a moldura ou a cor da janela?

— Qual é a cor de hoje?

— Ou malva ou lilás. — Encolheu os ombros — E não é que eu note a diferença, mas pelo visto minha neta ficará marcada para toda a vida se tiver que dormir em um quarto pintado da cor equivocada.

— Continua sem resolver chamar a pequenina por seu nome, não é? — Disse Robbie — Aubrey é um nome precioso.

— É nome de homem — Repôs Michael como uma bala — E além disso é inglês.

— Russell Dyer é inglês.

— Não me recorde isso.

Robbie deu uns tapinhas no ombro ao tempo que abria a porta e saía.

— Russell é um bom homem, papai — Disse.

Michael saiu também e dirigiu um torcido sorriso por cima do capô do Suv.

— Sei — Admitiu em voz baixa — Maggie escolheu bem.

Robbie soltou um bufido.

— Não será graças a você; tem muita sorte de que não fugiu para casar-se.

Os dois puseram-se a andar para a casa.

— Eu não estava contra seu matrimônio — Se defendeu Michael — Só tentava que tomassem as coisas com mais calma. Maggie ainda não fez vinte e dois anos, e já está casada e vai ter uma menina.

Robbie se deteve para olhar a seu pai.

— E a que idade se casavam as mulheres em sua antiga época? — Perguntou.

— A sociedade adquiriu oito séculos de sabedoria após. E as pessoas de vinte e dois anos são muito jovens para planejar o resto de suas vidas.

Robbie subiu os degraus do alpendre de dois em dois e abriu a porta.

— Acredito recordar a história de alguém mais jovem ainda que tentou escapar com uma garota de outro clã… — Disse com doçura — Não estava tão apaixonado pela Maura MacKeage faz oito séculos que não se importava nada mais?

Michael se deteve junto à porta e o olhou diretamente nos olhos.

— Eu era jovem e insensato, e além disso estava tão cego que provoquei uma guerra ao jogar a culpa da morte de Maura aos MacKeage, em vez de mim mesmo. E isso — Sussurrou —É a arrogância e a ignorância da juventude.

— Sente falta de alguma vez os velhos tempos, papai? Alguma vez quis voltar, embora fosse só um momento?

Michael o olhou em silêncio vários segundos.

— Tive pensamentos semelhantes — Reconheceu por fim, com voz emocionada; depois, devagar, meneou a cabeça — Depois de que sua mãe morreu e antes de conhecer Libby, mais de uma vez comecei a subir a montanha contigo nos braços, disposto a que velho druida nos enviasse de volta os dois.

Robbie ficou muito quieto.

— O que te deteve?

— Você — Disse Michael, ao tempo que colocava uma mão firme e forte sobre o ombro de Robbie — Chegava a metade de caminho da casa de Daar e você fazia algo tão simples como dizer adeus com a mão a um esquilo, e então te olhava e pensava… Pensava…

— O quê? — Perguntou Robbie — O que te detinha?

— Sua mãe — Sussurrou Michael, olhando para a montanha TarStone — Mary me enchia a cabeça de lembranças deles. De nós dois, juntos… E então sabia que não podia fazê-lo.

Voltou a olhar a Robbie.

— Não podia te tirar de seu futuro.

— Daar diz que você vir aqui foi um acidente.

— Sim. Se não se acreditar no destino, um acidente é uma resposta tão boa como qualquer outra.

— De modo que seriamente acha que o destino fez que acabasse aqui e se apaixonasse por minha mãe?

— Sim — Disse Michael, enquanto por fim entrava na casa.

Depois de jogar o jaquetão sobre uma das cadeiras que rodeavam a mesa, conduziu Robbie para a cozinha e depois até a biblioteca. Depois se aproximou da lareira e, enquanto atiçava os carvões do fogo para que não se apagasse, disse:

— Nunca te escondi nada. — Olhou por cima do ombro — Conhece minha história, a dos MacKeage e a do pai Daar, e compreende a magia que nos trouxe aqui melhor inclusive que nós. É consciente do destino de Winter MacKeage como herdeira de Daar e além disso demonstrou ser um autêntico guardião à tenra idade de oito anos.

— Quando ajudei a Rose Dolan a superar a tempestade de neve…

Michael se voltou para olhá-lo de frente.

— Sim. Já então, inclusive antes que soubéssemos nós, sabia que tinha uma vocação especial. — Sorriu antes de prosseguir — Me perdoou por te pedir que retornasse faz cinco anos?

— Não há nada que perdoar — Disse Robbie, ao tempo que sorria abertamente, preparado para devolver suas mesmas palavras — Foi a arrogância e a ignorância de um jovem de vinte anos o que me fez escapar e entrar no exército.

Um brilho bailou nos olhos de Michael.

— Está seguro de que não foi Vicky Jones o que te fez sair correndo?

Robbie estremeceu.

— A verdade é que essa garota dava medo — Murmurou — Chegou a me dizer que levava planejando suas bodas desde os dez anos.

Michael ficou sério.

— Igual acredito que aos vinte se é muito jovem para casar-se, parece-me que aos trinta se é muito velho para seguir solteiro. Maldição, filho, quando foi a última vez que ficou sequer para sair?

— Faz umas quantas semanas.

Michael soltou um bufido.

— Mas se foi com o Cody…

— E Peter quase queimou a casa enquanto eu estava fora — Disse Robbie com uma risadinha — De verdade, papai, eu não gosto de viver como um monge… Mas é que não tenho tempo para sair por aí.

— Porque está muito ocupado sendo o guardião de todo o mundo.

— Pois me dou muito bem.

— Sim; muito bem. — Michael colocou um tronco sobre os brilhantes carvões antes de olhá-lo outra vez — Mas, a que preço, filho? Não pode cuidar dos outros a custa de si mesmo. Já é hora de que se case e tenha filhos próprios.

Robbie se aproximou da lareira e desprendeu a espada de Robert MacBain. Enquanto segurava no punho aquele peso familiar se voltou para seu pai.

— Importaria-se muito se levar isto a casa?

Michael lhe jogou um olhar feroz.

—Talvez não goste de minhas súplicas para ter netos, mas não pode ignorar suas necessidades como homem. Tem medo, filho — Disse em voz baixa — Mas seu temor vai desencaminhado.

Robbie apoiou a espada de plano no ombro e elevou uma sobrancelha.

— E de que exatamente tenho medo?

— De que uma mulher te afaste de sua vocação.

Robbie soltou uma risadinha e se dispôs a sair da biblioteca. Na porta se deteve e se voltou para seu pai.

— Não tivemos esta conversa faz vinte e dois anos, só que então era eu o que te convencia de que se casasse? Se lembro bem, disse-me que um homem não decide casar-se de repente e escolhe sem mais à primeira mulher que esteja disponível; que primeiro deve encontrar uma mulher a quem amar.

— Não é assombroso como nossas palavras se revolvem e nos dão uma dentada no traseiro? — Sussurrou Michael sorrindo.

Robbie assentiu.

— Sim, papai; os dois temos o traseiro dolorido. — Levantou a espada do ombro e a levou a testa em gesto de saudação militar — Se é que existe sequer semelhante mulher, uma mulher que me ame apesar de minha vocação, só espero que nossos caminhos se cruzem enquanto ainda seja o bastante homem para desfrutá-la.

Dando um bufido, Michael indicou com a mão que se fosse.

— Vá procurar a essa ladra de ovos antes que tenha que passar outra noite na montanha. E não deixe que Peter se aproxime dessa espada — Acrescentou, cruzando a cozinha atrás de Robbie — É provável que esse menino a trespasse na nova secadora.

Robbie desceu a escada do alpendre e se deteve no caminho para olhar a seu pai.

— Como sabia que tive que comprar uma secadora nova?

— Daar esteve aqui esta manhã procurando o café da manhã.

— Que mais disse?

Michael assinalou a arma antiga que Robbie tinha na mão esquerda.

— Só que talvez passasse para recolher a espada do Robert.

— E te deu alguma explicação?

— Não — Disse Michael — Há algo que deva saber?

Robbie encolheu de ombros.

— Só que a palma de minha mão coçava por agarrá-la outra vez. O que te parece se organizarmos um combate esta semana, mais tarde?

Michael assentiu.

— Darei-te uns quantos dias para que pratique primeiro, antes de varrer o chão com sua arrogância.

Robbie lhe dirigiu uma última saudação militar, voltou-se e foi para o SUV dizendo adeus com a mão por cima da cabeça enquanto em voz baixa soltava um suspiro de frustração. Como Daar não deixasse de intrometer-se, ia sentir a ponta de uma espada perigosamente afiada.

 

Eram quase às cinco em ponto, e justo começava a escurecer quando Robbie saiu do setor do bosque onde estavam trabalhando de trás da última carga de troncos. O estômago soava ao pensar na lasanha da avó Katie. Dirigiu-se para Pene Creek e depois se meteu por um atalho menos frequentado que o levaria até sua casa, rodeando a montanha TarStone pela face norte.

Fazia quase uma hora que Gunter partiu depois de um dia de trabalho extraordinariamente duro, segundo Harley, que tinha agradecido a ajuda do jovem.

Robbie jogou uma olhada pela janela e decidiu que aquela noite subiria à montanha em busca de sinais de sua ladra de ovos em vez de esperar que ela fosse a ele; supunha que não voltaria a assaltar o galinheiro depois da perseguição da manhã.

Quem diabos era aquela mulher? Era absurdo passar a noite à intempérie nessa época do ano, se isso for o que fazia. E, certamente, não tinha por que roubar comida: com apenas aproximar-se de uma casa do povoado e bater na porta, qualquer um estaria mais que disposto a ajudá-la. Sim, era todo um inquietante mistério.

— Vá, falando do rei de Roma… — Sussurrou, ao tempo que dava uma freada e parava o SUV na metade da estreita estrada de terra.

A menos de uns cem metros de distância, a mulher acabava de sair da vala. Parou, ficou olhando-o apenas uns segundos e depois voltou a entrar depressa no bosque.

— Ah, não, nada disso — Robbie saiu como pôde do SUV — Desta vez não me escapa.

Subiu correndo pela estrada e saltou a vala, abrindo passo pelo matagal de amieiro[1] até entrar no bosque. Parou só o suficiente para que os olhos se acomodassem à penumbra e escutou estalos de ramos a sua direita.

— Ouça, espere! Só quero falar com você! — Gritou, enquanto atravessava o centenário bosque virgem em direção à mulher.

Ouviu um forte estrépito, um grunhido amortecido e depois mais ramos que se quebravam à medida que ela se afastava com dificuldade. Então apressou o passo, rodeando em zigue-zague as grandes árvores e agachando a cabeça sob os ramos, sem deixar de tentar escutar e tomando cuidado de não fazer ruído.

De repente, chegou o som do SUV em ponto morto, e imediatamente se deu conta de que a senhora recuava através dos amieiros para a estrada. Então deu a volta, abriu caminho a empurrões por entre os arbustos e se meteu na vala bem a tempo de vê-la subir ao veículo.

— Maldição, não! — Gritou, correndo para ela — Pare!

Os pneus traseiros chiaram no cascalho solto, despedindo pedras, quando o Suv foi a toda pressa para ele. Robbie voltou a saltar à vala soltando um palavrão e ficou metido até o joelho em neve derretida e barro gelado, com a vista cravada nos faróis traseiros.

— Pequena bruxa… — Resmungou, ao tempo que ela dobrava uma curva e desaparecia.

O silêncio do bosque desceu em torno de Robbie; ficou paralisado, assombrado, se não admirado, de que tivesse roubado o Suv. Então jogou uma olhada nos amieiros quebrados que ela tinha atravessado e viu um vulto escuro pendurando; saiu da vala, soltou o vulto de um puxão e pensou que a ladra devia haver ficado enredada nos arbustos e se viu obrigada a sacrificar sua mochila para fugir.

Abriu o zíper e olhou dentro.

— Bom, minha rápida gatinha... — Sussurrou — Ao melhor agora descobrirei quem é.

Colocou a mão e tirou um pão de molde, um Pote de manteiga de amendoim, uma vasilha grande de geleia e um punhado de luvas.

“luvas?”

Luvas de tamanho infantil; com as etiquetas do preço ainda.

“A senhora tem filhos?”

Um dos pares mal tinha o tamanho da palma de sua mão.

“Tem filhos pequenos.”

— Nossa, diabos…

Voltou a deixar a comida na mochila, meteu as luvas no bolso do jaquetão e afundou mais a mão na mochila. Desta vez seus dedos se fecharam sobre uma carteira.

— Bingo — Disse enquanto a tirava.

Meteu a mochila sob um braço e abriu a carteira, mas estava muito escuro para ler o nome da carteira de motorista. Fechou a carteira e de novo colocou a mão; desta vez tirou três gorros de ponto.

Ficou olhando os gorros e deu um profundo suspiro. Maldição. Sua mulher misteriosa acabava de transformar-se em um bom problemão… multiplicado por três. A empurrões, colocou tudo de novo na mochila, a pendurou no ombro, voltou a saltar a vala e começou a caminhar os três quilômetros que o separavam de sua casa.

E o que ia contar aos meninos quando aparecesse sem o Suv? Certamente, não que uma diminuta ladra o tinha superado taticamente duas vezes em um dia!

Ao cabo de vinte minutos e a menos de oitocentos metros da casa, Robbie parou ao ver o Suv lá adiante, na metade da estrada, com as luzes acesas ainda, o motor ainda ligado… E sem rastro de sua trombadinha por nenhum lado. De modo que a senhora tinha consciência. Não tinha roubado o carro: só o tinha tomado emprestado o tempo suficiente para pôr alguma de distância entre eles. Igual a em realidade não roubava os ovos, mas sim os comprava.

Esquadrinhou os dois lados da estrada ao tempo que se aproximava do Suv. Abriu a porta do condutor e colocou a mochila; Depois alargou a mão por trás do assento, afastou sua espada e pegou a lanterna. Voltou-se, dirigiu-a para a vala e moveu o feixe de luz pelos amieiros até dar com o lugar por onde ela tinha continuado sua fuga para a montanha.

“Quem diabos é?”

Robbie jogou a lanterna sobre o assento, subiu, acendeu a luz do teto, pegou a mochila e tirou a carteira.

— Catherine Daniels — Leu no carteira de motorista do Arkansas.

Arkansas? Isso estava muito longe… Além disso, a trombadinha media um e sessenta e sete, pesava sessenta quilos e tinha olhos e cabelo castanhos. Tinha vinte e nove anos, desde em cinco de janeiro, e era doadora de órgãos.

Robbie observou com atenção a fotografia da carteira e não pôde evitar sorrir. Catherine Daniels era bonitinha, com enormes e doces olhos escuros, narizinho arrebitado e um tímido sorriso. Na foto tinha o cabelo mais curto, e caía em mechas ao redor de uma cútis de porcelana.

— Bom, Catherine, que mais me diz de você? — Perguntou, ao tempo que rebuscava pela carteira.

Encontrou uma fotografia, um tanto deteriorada, de uma Catherine evidentemente mais jovem com dois meninos. Que estava a seu lado parecia ter três ou quatro anos, e o bebê que tinha no colo não devia ter muito mais de um ano. Deu a volta à foto e, rabiscada no dorso, encontrou uma data de cinco anos antes, junto com a legenda: “Nathan com três anos e Nora com um ano.”

O qual indicava que nesse momento tinham, respectivamente, oito e seis.

Robbie elevou o olhar para a escura montanha que tinha ao lado. Maldição… Estavam os três ali? Indefesos? Com frio? Com fome? Certamente tinham medo… Ou pelo menos Catherine Daniels tinha medo, tendo em conta quão desesperada estava por fugir. Mas do que estava assustada? Ou seria “de quem”? Voltou a olhar a foto. Era um retrato de estúdio, mas alguém o tinham recortado com esmero do retrato familiar. Dessa quarta pessoa só ficava uma mão grande e forte, posta sobre o ombro direito de Catherine Daniels.

Robbie voltou a colocar a foto atrás da carteira de motorista, abriu a parte do dinheiro e contou duzentos e sessenta e oito dólares; não muito para estar a quatro mil e quinhentos quilômetros do lar.

— Vamos, Catherine, me diga algo mais — Sussurrou.

Agarrou a mochila e tirou a comida e os gorros. Então a levantou para a luz e no fundo viu um maço de papéis; tirou-os, tirou a borracha elástica que os prendia e os folheou.

Encontrou certidões de nascimento de Nathan e Nora expedidos em Arkansas, documentos de divórcio datados três anos antes, que davam fim a um matrimônio de seis anos com o Ronald Daniels, e documentos legais que davam a Catherine a custódia exclusiva de seus filhos.

Mas foi o último papel o que chamou a atenção. Era uma carta do sistema penitenciário de Arkansas informando a Catherine Daniels de que iam deixar em liberdade condicional seu ex-marido em quatorze de janeiro, depois de fazer três anos de sua condenação de cinco.

A carta estava datada em 5 de janeiro; nossa que presente de aniversário tinha recebido Catherine… Não dizia o delito pelo que tinham prendido Ronald Daniels, só que a junta de liberdade condicional opinava que estava preparado para reinserir-se. Robbie olhou para TarStone. Não estava Catherine de acordo com as conclusões da junta? Por isso estava ali, escondendo-se em sua montanha, evitando o contato com as pessoas? Mas por que no Maine? E por que, precisamente, em sua montanha? Tinha que ser duro fazer frente às condições do tempo, em particular com dois meninos pequenos.

Meninos sem luvas nem gorros… Nem jantar.

Ao melhor só estavam de passagem. Ou ao melhor Catherine tinha família por ali acima ou tentava chegar ao Canadá.

Maldição… Quanto mais sabia dela, maior era o mistério que a envolvia.

Robbie dobrou os papéis e voltou a colocá-los na mochila junto com a comida, as luvas e a carteira; depois pôs uma marcha e se dirigiu para sua casa com uma nova sensação de urgência.

Não tinha percorrido cem metros quando soou o telefone do Suv.

— MacBain — Disse.

— Robbie, é Kate. Onde está?

— A uns dois minutos de distância. Deixaram-me os vândalos um pouco de lasanha?

— Há muita. Ouça… Tem que ir ao povoado a recolher Cody no consultório. encontra-se bem — Se apressou a acrescentar — Só necessita que o tragam para casa.

Robbie deu um suspiro.

— O que aconteceu?

— O xerife Beal chamou faz meia hora. Pelo visto um dos meninos com os que estava Cody saiu ferido, mas também ficará bem.

— Como se feriu? — Perguntou Robbie, ao tempo que acelerava até deixar atrás a separação que ia a sua casa e seguia para o povoado.

Kate fez um ruído de frustração.

— Não sei exatamente. O xerife disse algo sobre uma escopeta de batatas, a máquina escavadora do John Mead e uma perseguição pelo bosque. O menino que está ferido se chocou contra uma árvore e quebrou o nariz.

Robbie afrouxou a pressão no acelerador e deixou que o Suv baixasse outra vez até o limite de velocidade. Não se tratava de uma situação de crise, e sim tão somente de um punhado de aborrecidos mucosos de escola que disparavam batatas à maquinaria florestal.

— Estão em casa Gunter, Peter e Rick? — Perguntou.

— Tenho-os lavando os pratos enquanto falamos — Disse Kate, com um sorriso na voz — Robbie, o que é uma escopeta de batatas?

— É um canhão caseiro, fabricado com uma parte de tubos de plástico pelo que se disparam batatas.

— Um canhão? — Repetiu Kate — Mas o que o faz…? É que os meninos estavam brincando com pólvora?

Em sua pergunta havia indignação.

— Não, o propulsor preferido está acostumado a ser laquê de cabelo.

— Laquê!

— É um invento engenhoso, Kate — A tranquilizou Robbie — Relativamente inofensivo e nada certeiro. Duvido de que os meninos fizessem muito dano ao equipamento de Mead, além de pô-lo perdido.

— Ao xerife Beal não parecia achar tanta graça — Repôs ela como uma bala — E não vai solta-los até que os pais vão por eles. Robbie, não permita que tire o Cody!

Robbie sorriu ao imaginar Kate feita uma fúria. Com oitenta e um anos, a mãe de Libby se mostrava mais protetora com os meninos que ele; possivelmente deveria deixar que fosse ela a resgatar Cody das mãos de Beal.

— Não deixarei que ninguém se leve Cody, prometo isso. Você se limite a procurar guardar um pouco de lasanha.

— Guardei suficiente para os dois — Disse ela — Ah… Robbie… Antes liguei e respondeu uma mulher.

Catherine Daniels tinha respondido ao telefone?

— O que disse?

— Disse que nesse momento não podia atender e que tentasse chamar ao cabo de meia hora. Quem é?

—Bem… Só uma pessoa com quem estou fazendo negócios. Já estou no consultório, Kate. Obrigado por trazer o jantar, e não tem que nos esperar: isto talvez demore um pouco.

— Esperarei.

— Não se atreva a limpar nada — Advertiu ele, que a conhecia perfeitamente — Isso corresponde aos meninos.

— Muito tarde — Disse ela rindo — Limpei os banheiros enquanto se reaquecia a lasanha.

— Kate… — Grunhiu Robbie.

— E se disparar um canhão de batatas é tão inofensivo — O interrompeu ela — Não seja muito duro com Cody. Recorde que em tempos você também teve dezesseis anos.

Robbie riu.

— Ai, Kate, eu nunca tive dezesseis anos. Adeus… E obrigado — Acrescentou em voz baixa, ao tempo que pulsava a tecla de desligar e voltava a colocar de repente o telefone no lugar.

Saiu e ficou junto ao Suv; olhou primeiro as janelas iluminadas do consultório e depois deu uma olhada a enorme e imponente sombra da montanha TarStone.

Depois soltou um cansado suspiro.

Havia dias em que sentia que puxavam-no de uma dúzia de direções diferentes; dias em que pensava que o melhor o mundo inteiro se rompia se ele pestanejava, e dias em que temia não estar à altura de sua vocação.

E além disso havia dias, como aquele… Em que se sentia a quilômetros de distância de qualquer tipo de vocação.

 

Não havia reuniões previstas, sua exploração florestal voltava a contar com toda a mão de obra, e além disso os meninos se alimentaram e tinham saído para o colégio sem provocar nenhum incêndio. Robbie levou seu cavalo até um claro banhado pelo tonificante sol de março, decidido encontrar Catherine Daniels de uma vez por todas.

Justo ao fechar a porta do estábulo observou a coruja nevada encarapitada a um dos postes da cerca do cercado.

— Nossa; olá, pequena. — Aproximou-se e acariciou com suavidade as penas — Esperava que aparecesse hoje. Não me viria mal sua ajuda.

A coruja se apoiou em sua mão e fechou os olhos emitindo um suave som de prazer.

— Onde esteve? — Sussurrou ele, ao tempo que tomava na mão a larga cabeça branca — Senti saudades suas.

A coruja se estirou com a cabeça bem alta, voltou-se para a palma de sua mão e mordiscou brandamente o polegar. Robbie riu e foi montar no cavalo, mas se deteve e deu a volta.

— A espada? — Perguntou; inclinou-se para olhá-la nos olhos — Procuro uma mulher e dois meninos e pretendo lhes oferecer refugio, não lhes dar um susto de morte.

Sua velha amiga se limitou a piscar sem deixar de olhá-lo.

Robbie atou o cavalo à cerca e pôs cruzou os braços.

— Dá-me igual o que esse druida louco esteja tramando: não posso deixar à senhora outra noite à intempérie. O assunto de Daar terá que esperar, e pronto.

A coruja abriu as asas e se arrepiou, inquieta.

— Não penso levar a espada! — Espetou ele, zangado. Dava igual falar em alto a coruja; levava vinte e dois anos falando com ele, embora suas conversas tendiam a reduzir-se sempre ao mesmo modelo: A coruja falava e Robbie discutia — E, além disso, não pode desaparecer durante seis meses e depois vir de boas a primeiras para começar a me dar ordens.

A coruja soltou um matraqueio que soou suspeitosamente a uma risada. Robbie cruzou os braços.

— Diz-me de verdade que este não é outro dos ardis de Daar?

Ela devolveu o olhar em silêncio.

Robbie se inclinou até que a face da coruja ficar apenas a uns centímetros da sua.

— Então me ajude — Sussurrou — Me consiga um pouco de tempo para encontrar Catherine Daniels e seus filhos. Convence ao druida de que espere uns quantos dias mais.

A coruja se afastou de lado ao tempo que dava um forte guincho.

— Dou-me conta de que papai e outros estão em perigo. — Robbie voltou cruzar os braços — Mas, maldição, e se não consigo o livro? E se fracasso?

Elevou a mão.

— Há uma diferença entre ser cauteloso e ter medo! Não esperará que me precipite às cegas através do tempo. Tenho que pensá-lo.

A coruja deu a volta na cerca até ficar de costas a ele.

Então Robbie deixou cair a cabeça dando um suspiro, girou sobre seus calcanhares e se dirigiu para a casa. Subiu de dois em dois os degraus do alpendre, atravessou a cozinha e subiu correndo a escada até seu quarto. Uma vez ali, levantou o colchão, tirou a espada, voltou a descer dando fortes pisões e saiu de novo em busca do cavalo.

— Queira o céu que saiba o que está fazendo — Murmurou, ao tempo que deslizava a espada na capa que levava em sua mochila e depois colocava esta nos ombros — Porque eu não tenho nem ideia.

A coruja estendeu as asas e voou por cima do cercado para o TarStone. Robbie montou, esporeou o cavalo e foi atrás de seu mascote até entrar no bosque. Recordou quando se conheceram. Era o dia de seu oitavo aniversário, e ele estava em cima na montanha, berrando como um bebê; tinha havido um incidente no colégio aquele dia, alguma tolice da que já nem sequer se lembrava, e a falta de sua mãe se notou muitíssimo. Assim subiu correndo a TarStone, sentou-se chorando em um tronco e pediu com todas suas forças uma mamãe.

Em seu lugar, a Providência enviou uma coruja nevada. A formosa e misteriosa ave surgiu de um nada, anunciando sua aparição com um assobio agudo ao tempo que descia planando até o tronco onde estava sentado e ficava junto a ele. Depois, pregou as asas e ficou em silêncio, olhando-o imperturbável com seus grandes olhos dourados.

Como por então era algo propenso às ideias fantasiosas, Robbie pôs a seu mascote o nome da mãe que não tinha conhecido. E, como tinha oito anos, não se questionou que não só falasse com o mocho, mas também que este respondesse. Não o explicava, nem sequer agora, mas sempre sabia o que pensava Mary, o que queria ou necessitava dele e, também, que podia contar com ela em uma situação de crise.

Nos últimos vinte e dois anos tinha salvado sua a vida mais de uma vez; a primeira, quando ele ajudou Rose Dolan, de quatro meses, a suportar uma tempestade de neve uma véspera de Natal. Depois de rodeá-lo de uma cálida luz azul, que permitiu usar sua própria energia vital para manter viva a Rose, a coruja guiou a seu pai e Libby até a geleira onde se desabou.

Mais tarde, quando tinha onze anos, Mary afugentou a um urso mal-humorado ao que tinha surpreendido um dia que ia de excursão. E depois, quando já sabia dirigir, aos dezesseis, voou diante de sua caminhonete até o fazer parar entre gritos, só a uns centímetros de uma enorme brecha que a ruptura de uma boca de lobo tinha provocado na estrada.

Sempre teve a Mary a seu lado, nas mortes da avó Ellen e de John Bigelow, em seu quarto depois de um pesadelo noturno e também em seus pensamentos enquanto foi soldado no estrangeiro. Assim, se insistia em que levasse a espada na pequena aventura de hoje, não tinha motivo algum para discutir. Bom, possivelmente um pouco: necessitava tempo para preparar-se para a viagem que Daar tinha planejado… Tempo e muita mais fé na capacidade que tinha o druida para fazer que aquilo ocorresse. Ao longo dos anos havia visto muitos exemplos de sua incompetência e sabia perfeitamente que a magia fracassava.

Diabos, ao melhor o mandava a qualquer lugar… Ou a qualquer época, só com uma palavra mau pronunciada.

Ou ao melhor, o transformava em escaravelho bolorento…

Robbie olhou o relógio e depois elevou a vista para o sol. No melhor dos casos tinha umas seis horas antes do crepúsculo. Depois olhou o imenso bosque que cobria TarStone; seis horas para encontrar Catherine Daniels e lhe dar proteção.

Depois iria à cúpula… E se encontraria com seu destino… Ou com uma catástrofe.

 

Onde diabos estava o jovem MacBain? Faltava menos de uma hora para o equinócio da primavera e tinha que dar instruções antes de despachá-lo.

Com as mãos juntas à costas e a cabeça inclinada, Daar foi de um lado a outro pelo atalho que tinha aberto entre uma grande rocha arredondada e um raquítico pinheiro, enquanto repetia em sussurros seu conjuro. Mas não acabava de concentrar-se nas palavras com o montão de preocupações que tinha na mente.

De todos os enganos que tinha cometido nos últimos mil e oitocentos anos, era muito possível que aquele fosse o que acabasse com ele de forma definitiva. No que estava pensando trinta e cinco anos antes para fazer um feitiço tão estúpido? E é que enviar de volta os escoceses a sua época de origem era um suicídio. Todos os descendentes dos MacKeage e os MacBain, incluído, se não em particular, Robbie, dariam-lhe as costas quando perdessem a seus seres queridos no solstício desse verão.

Tudo dependia de Robbie, embora o certo é que o preocupava pôr um assunto tão delicado nas mãos de um guerreiro tão jovem. E não é que temesse que não fosse consegui-lo: eram as consequências as que o assustavam muitíssimo. Cùram de Gairn era um druida jovem, enigmático e poderoso, conhecido por seus enganos mais que por sua compaixão. Não ia fazer nenhuma graça que tomassem “emprestado” seu livro de feitiços, nem gostaria de nada que fosse Pendaär quem o fizesse.

Seus caminhos se cruzaram uma ou duas vezes ao longo dos séculos e a experiência não tinha sido agradável para nenhum dos dois. O último incidente, fazia quase cem anos, foi uma disputa sobre uma mulher. Em realidade brigaram pela mãe de Greylen MacKeage: ambos esperavam emparelhá-la com a linhagem adequada para que desse a luz a um herdeiro, e Pendaär saiu vitorioso embora muito debilitado. Judy MacKinnon se casou com o Duncan MacKeage, e nove meses e duas semanas depois deu a luz a Greylen, futuro pai da herdeira de Pendaär.

Cùram desapareceu misteriosamente depois de sua derrota e tinha reaparecido fazia só seis anos. Aquele velhaco vivia com o clã MacKeage na Escócia do século XIII e provavelmente preparava outras bodas convenientes. Depois de tudo, engendrar herdeiros era o único objetivo dos últimos séculos de vida de um druida. Que Cùram só tivesse cinco séculos de idade (uma idade bastante jovem para um mago) e já pensasse em semelhantes questões inquietava Pendaär. Aquele ladino mal nascido tramava algo… Mas o quê?

— Se der mais voltas, vai explodir a cabeça.

Daar se voltou para dar um olhar feroz a Robbie.

— Chegou tarde! — Espetou-lhe, zangado.

— Não, pai, não chego tarde, de modo que vamos seguir com esta insensatez —Disse Robbie ao tempo que desmontava — Tenho assuntos urgentes que atender.

— Não tem por que me grunhir, menino. Não é culpa minha que uma mulher diminuta te tenha vencido.

Robbie o olhou.

— Sabe que estou procurando uma mulher?

Daar assentiu lhe dirigindo um presunçoso sorriso.

— Se não fosse tão teimoso para pedir ajuda, faz três dias que teria dito que está nessa velha cabana da colina de West Shoulder.

Robbie voltou a montar.

— Estarei de volta dentro de quatro horas.

— Não! — Daar agarrou as rédeas do cavalo — Retornará ao amanhecer; vai então atrás de sua mulher.

— Não pode passar outra noite nesta montanha: aproxima-se uma tempestade.

— Ela e seus meninos estão quentinhos e na glória e estarão bem esta noite, mas nosso problema não pode esperar. Os planetas estarão em posição dentro de vinte minutos escassos.

— Então me diga que aspecto tem seu maldito livro… — Disse Robbie, desmontando de novo — E onde encontrá-lo.

Daar deu um cauteloso passo atrás.

— Não é um assunto de entrar e pegá-lo e depois voltar a sair, sem mais.

— Então, que espécie de assunto é? — Perguntou Robbie cruzando os braços — Onde está esse livro?

— Está em terra dos MacKeage, mas pertence a outro druida. — Daar se moveu, nervoso — E além não é exatamente um livro, e sim uma árvore.

— Uma árvore?

— Sim — Confirmou o sacerdote, assentindo — Um grande carvalho que cresce no fundo do bosque, a uns cinco ou seis quilômetros da aldeia dos MacKeage.

— Espera que traga de volta uma árvore?

Daar elevou as mãos, separadas uns vinte e cinco centímetros.

— Só uma parte pequenina dela — Se apressou a tranquiliza-lo — Da raiz principal.

— O que tem que ver uma árvore com um livro de feitiços?

Daar gesticulou com impaciência.

— É uma árvore da vida, MacBain. Estão dispersos por todo mundo e só se propagam mediante suas raízes principais, não por sementes. Mas cada árvore o alimenta um druida, e seu conhecimento se protege com cuidado para que o suceder contínuo da vida não se altere.

— E se lhe trago uma parte dessa raiz, você terá conhecimentos suficientes para refazer seu feitiço?

— Sim; cultivarei uma árvore nova e depois manterei aos escoceses aqui.

Robbie o observou com gesto desconfiado.

— Demora-se muito tempo em cultivar uma árvore.

— Será o bastante grande para o solstício deste verão.

— Isso é ir muito justo.

— Sim — Conveio Daar — Mas não ficam muitas alternativas. Por isso tem só duas semanas para conseguir a raiz.

— Duas semanas?

Daar assentiu.

— Isto não se resolverá em uma só viagem. Esta noite examinará a situação por cima e depois decidirá o melhor modo de agir. Tire essas roupas modernas — Ordenou, ao tempo que se aproximava da rocha e agarrava um tecido e um largo cinturão de couro que ofereceu a Robbie — Este é meu plaid MacKeage; de quando vivia com eles nos velhos tempos. Ajudará a se deslocar sem chamar a atenção. Lembra-te do gaélico, não?

Robbie ficou tenso.

— Não vem você comigo?

— Não. Minha presença não passaria desapercebida.

Robbie vacilou; depois por fim se desprendeu dos ombros a mochila e a espada, tirou rapidamente o jaquetão e começou a desabotoá-la camisa.

— Como reconhecerei a árvore? — Perguntou, enquanto desabotoava o cinturão.

— Não tem erro — O tranquilizou Daar — É maior que todas outras árvores, está cheia de nós que contêm séculos de sabedoria e leva a marca de seu druida, Cùram.

Robbie ficou completamente quieto.

— O druida é um guardião? — Sussurrou; era evidente que reconhecia o título gaélico.

Daar soltou um bufido.

— É muitas coisas, entre elas um velhaco e um ladino mal nascido. Por isso deve examinar a situação com cuidado e não tomar decisões precipitadas em nada.

— Que idade tem este Cùram?

— É um jovem como você.

Enquanto Daar pronunciava essas palavras, Robbie tirou as botas e depois as calças. A Daar cortou o fôlego ao ver aquele impressionante corpo de guerreiro.

— Talvez saia bem e tudo… — Sussurrou, lhe passando o plaid.

Robbie, que começava a envolver o corpo no tecido, deteve-se e elevou uma sobrancelha.

— Você tem dúvidas?

Estendendo o cinturão, Daar se apressou a dizer:

— Não; só inquietações. Sei que está bem preparado, Robbie, e além disso, muito motivado. — Se aproximou e baixou a voz — Leve a Mary contigo, se quiser.

O jovem guerreiro olhou a sua direita, a coruja nevada que estava sobre uma rocha arredondada a menos de cem metros de distância. Depois voltou a olhar ao Daar.

— Você não é muito simpático — Disse e meneou a cabeça — Não penso pôr a Mary em perigo.

Daar deu um bufo.

— Esse condenado pássaro sabe cuidar-se. — Levantou a cabeça para o céu — Em realidade, talvez desfrute com a possibilidade de ver a terra natal de seu pai.

Sem fazer nenhum caso, Robbie tinha se aproximado da coruja e estava alargando a mão. Mary abriu as asas e, de um salto, ficou em seu braço.

Robbie voltou e tirou a espada da capa.

— Como vou voltar par cá? — Perguntou — E quando? Você disse que ao amanhecer. Significa isso que só disporei de doze horas no passado?

— Não. Possivelmente esteja dias na época antiga, mas — Daar o interrompeu antes que discutisse — Nesta época só durará uma noite. Dá igual quanto tempo esteja fora: sempre voltará ao amanhecer.

Robbie assentiu e se voltou para o sol poente.

— Que tal vão seus planetas agora, pai? — Perguntou.

— Estão preparados para que comecemos. Toma — Acrescentou Daar estendendo a mão — Toma este nó de cerejeira de meu bastão. Quando estiver preparado para retornar, agarra-o no punho e se limite a desejar estar em casa.

Robbie agarrou o nó de madeira, baixou a vista para ver-se e riu.

— Não tenho bolsos — Disse, olhando ao Daar outra vez.

— Coloca-o no cinturão. Está preparado?

— Não de tudo — Sussurrou Robbie; voltou-se para olhá-lo de frente — Se algo sair errado… Se não voltar, quero que me prometa que contará a meu pai e ao Greylen o que aconteceu. E me prometa que dará a oportunidade de impedir que seu feitiço os mande de volta.

Se aproximou mais.

— Têm direito a lutar por suas vidas, embora isso signifique morrer na tentativa.

Daar apertou seu bastão contra o peito e assentiu.

— E conte a meu pai sobre da mulher da colina do West Shoulder.

Daar voltou a assentir.

Robbie se afastou ao tempo que estreitava a Mary contra seu peito e cobrir com o punho da espada.

— Então faça-o já, pai!

Daar elevou o bastão, fechou os olhos e começou a salmodiar seu feitiço para mover a matéria através do tempo. Rogou aos elementos que se congregassem em uma carga coletiva e persuadiu à energia que se agitava para que entrasse na ponta de seu reluzente bastão.

Uma estranha escuridão, salpicada por raios e trovões, invadiu paulatinamente a montanha. O vento aumentou, uivando em sinal de protesto diante aquele acontecimento tão fora do natural. Daar assinalou ao Robbie com o bastão. Uns dedos de energia se arquearam em direção ao guerreiro, o rodeando de sinuosos e palpitantes brincos de cores, enquanto o ar chiava diante aquela alteração do tempo.

— Vá com Deus, MacBain! — Gritou Pendaär, que se preparou para a sacudida definitiva à medida que a tempestade ia concentrando-se e fazendo-se cada vez menor.

O golpe chegou com um irado estampido que sacudiu a montanha, fez cair uma cascata de cascalho e deslocou as rochas com um grunhido ensurdecedor.

E de repente, tão subitamente como tinha começado, tudo terminou. De novo se fez um aprazível silêncio, e, brandamente, o anoitecer envolveu a montanha. O sol se ocultou e o inverno se entregou à primeira noite da primavera. E, enquanto apertava seu gasto bastão contra o peito, Daar só pôde cravar a vista no lugar onde antes tinha estado Robbie.

— Sim. Vá com Deus… — Sussurrou.

 

Quando Robbie reparou no ramo, apenas deu tempo de evitar que fatiasse a cabeça. Agachou sem reduzir a marcha e desceu com dificuldade a ribeira do arroio, usando a espada como bengala para não cair.

Em algum lugar situado rio acima, Mary estava chamando-o; seu agudo assobio se ouvia pelo escuro bosque com ecos de urgência. Robbie se meteu chapinhando na água glacial, escorregando pelas pedras soltas; caiu uma vez, e outra bateu o dedão de um pé com uma pedra.

A suas costas, os estalos dos ramos que se rompiam soavam como disparos, enquanto se aproximavam os quatro guerreiros e seus gritos de combate enchiam de ameaça o ar da noite. Robbie secou o suor dos olhos com o dorso da mão que sustentava a espada, apertou mais o palpitante lado com a outra e, contra o chapinho da água, saiu do arroio e subiu a ribeira contrária; uma vez ali, voltou a pôr-se a correr.

Andava tranquilamente em seu assunto noturno de procurar a árvore de Cùram quando se produziu o ataque, sem provocação e absolutamente inesperado. A perseguição durava já mais de quatro quilômetros, e Robbie não sabia se aqueles bastardos amantes das emboscadas só saíam de noite por diversão, ou se é que de verdade eram tão tolos como pareciam. Em qualquer caso, estava chegando ao limite de suas forças e, se não dava a volta e brigava, era provável que a própria perseguição acabasse com ele.

Deteve-se no claro de uma cornija rochosa e se voltou; depois plantou os pés e levantou a espada, preparando-se para trespassar ao primeiro que aparecesse entre as árvores. Ouviu-os meter-se a trancos e barrancos no arroio, ouviu-os amaldiçoar e, por último, ouviu dois gritos diferentes e um forte chapinho. Afastou a mão do lado e esfregou os dedos para ver se o sangue se coagulava; depois baixou a vista para o profundo talho de seu quadril e entreabriu os olhos para vê-lo a escassa luz da lua.

Maldição, um daqueles bastardos amantes das emboscadas tinha tentado parti-lo pela metade, e talvez o tivesse conseguido se Robbie não tivesse arrebatado a espada com um golpe bem a tempo. Depois de inspirar fundo, apertou o cinto para pressionar mais a ferida, limpou o sangue da palma no plaid e segurou bem a espada com as duas mãos.

Mary chamou de novo. Robbie elevou a vista, viu-a voar entre as árvores para o arroio e, automaticamente, falou no idioma que levava usando os últimos três dias.

— Não! — Gritou em gaélico; sabendo que a coruja o ouvia, baixou a voz — Não tome parte neste jogo, pequena.

Então voltou a meter-se no bosque, justo a um lado do atalho por onde ia antes, e se escondeu atrás de um grande carvalho. Diabos, se para aqueles bastardos amantes das emboscadas funcionava, funcionaria para ele também.

O primeiro guerreiro entrou no claro, e o deixou passar. O segundo e o terceiro, ambos jorrando, também passaram correndo. Então Robbie estendeu o pé, deu uma rasteira no quarto bastardo e, com a espada de plano, empurrou-o junto a seus camaradas. Depois, dando seu próprio grito de combate, se aproximou de um salto apontando com a espada ao guerreiro que estava no chão. Justo no último segundo freou o movimento para cravar a carne suave e puxou para cima até que o homem gritou de dor.

O ataque pareceu surpreender tanto seus perseguidores que inclusive recuaram. Robbie avançou, descreveu um arco com um movimento ascendente da espada e, com cuidado, fez um corte na metade do peito dos dois que tinha mais perto. Por fim o quarto bastardo se recuperou e elevou a espada em um gesto defensivo; justo quando se lançava para frente, Robbie se fez a um lado, deslizou a espada entre as coxas de seu atacante e a levantou.

O espantado guerreiro conteve o fôlego e ficou completamente quieto. Então Robbie subiu a espada um pouquinho mais, só para assegurar-se de que compreendia a gravidade da situação.

— Bom, cavalheiros — Disse em gaélico, ao tempo que dirigia um olhar de advertência aos outros três — Já tive suficiente diversão por uma noite. O que parece se o deixamos em um empate?

Levantou mais ainda a espada e o guerreiro gemeu.

— Ou deixarão que, a partir de agora, o leito de seu amigo esteja frio e solitário?

Pelo visto, nenhum deles desejava responder a sua provocação.

— De acordo então. Deixem as armas enquanto este cavalheiro — Assinalou com um gesto de cabeça seu prisioneiro — Tira o plaid.

Quatro pares de olhos arregalaram à escassa luz da lua.

— Vamos! — Espetou-lhes Robbie, zangado.

Imediatamente o guerreiro cuja virilidade estava sendo ameaçada deixou cair a espada e começou a desabotoar o cinturão. O bastardo do traseiro ensanguentado se afastou rodando de sua espada e, torpemente, levantou-se como pôde, dando um gemido. Agarrando o peito com uma mão, os outros dois se agacharam e, com suavidade, puseram as espadas no chão.

Robbie assentiu.

— Isso está melhor — Alargou a mão e pegou o plaid — Agora sugiro que vão correndo por onde vieram, o mais rápido que levem suas patéticas pernas. E além disso quero ouvir seu grito de combate, e é melhor que seja afastando-se.

Ao mesmo tempo em que deixava cair a ponta da espada e recuava, resmungou:

— Vão!

Os dois guerreiros de peito ensanguentado agarraram seu colega do traseiro ensanguentado e se apressaram a voltar, cambaleando, de caminho ao arroio. Entretanto, o guerreiro nu parecia incapaz de mover-se.

— Se voltar a te agarrar em terra MacKeage, pendurarei seus ovos do torreão central.

Mesmo assim, o homem não se moveu.

— Ou prefere que o faça agora?

O bastardo não necessitou que o dissessem pela terceira vez e saiu disparado atrás dos outros. Seu nu e branco traseiro apareceu um par de vezes por entre as árvores até que desapareceu no denso bosque.

— Não os ouço! — Gritou Robbie.

Uns gritos amortecidos surgiram do bosque, junto com estalos de ramos e maldições fortes entre gemidos, enquanto os quatro se afastavam com dificuldade. Robbie deu a volta e de um chute colocou as espadas entre as árvores; depois jogou o plaid roubado pelos ombros e partiu em direção contrária.

Correu até que a ferida do lado o fez parar; então ficou dobrado, com as mãos apoiadas nos joelhos, ofegando para aguentar as pontadas de dor. Em silêncio, Mary chegou planando e aterrissou no chão diante dele; pregou as asas e o olhou fixamente.

— Já sei que não é aqui aonde chegamos faz três dias — Disse ele em um sussurro sem fôlego, enquanto baixava até o chão com cautela — Mas esta noite não vou mais longe.

Mary se aproximou sigilosa e mordiscou o ombro. Ele prosseguiu:

— Não perguntamos ao sacerdote se teria que me pôr no lugar exato onde aterrissei quando quisesse voltar. Mas, o que é quão pior poderia ocorrer? Provavelmente retornaremos só a dois ou três quilômetros do topo de TarStone —Recostou-se no musgo, estendeu os braços de tudo, fechou os olhos e suspirou — Só preciso descansar um pouco. Estes três dias foram muito… Agitados.

Mary subiu de um salto no peito, deu-lhe as costas e, com o bico, puxou o cinto.

Robbie soltou uma dolorida risadinha.

— Sim que acredito que esses bastardos queriam me matar — Levantou o plaid MacBain roubado e o pôs em cima do plaid MacKeage que tinha posto; sua ferida protestou com uma contração, e ele deu um grunhido — A coisa tem sua ironia.

Por fim Mary liberou o nó de madeira de cerejeira.

— Logo, pequena, quando recuperar as forças — Sussurrou Robbie — Se meus próprios antepassados não me matarem, é provável que o faça essa infame tempestade.

Sem fazer caso, Mary sustentou o nó no bico enquanto estendia as asas para abranger o corpo dele. Primeiro se ouviu um som como o de uma leve respiração, que pouco a pouco foi aumentando até transformar-se no bramar de um forte vento. O ar se fez mais denso e se agitou por cima de Robbie, ao tempo que os raios enchiam o céu de crescente energia.

Robbie agarrou o punho da espada, apertou os dentes e fechou os olhos para não ver a cegadora tempestade. De repente deixou de sentir o peso da coruja sobre o peito e, em seu lugar, notou um golpezinho: o vibrante nó de cerejeira.

— Não! — Gritou ao tempo que tentava agarrar a Mary.

Mas com um bater das asas a ave se impulsionou até ficar fora de seu alcance e, dando um forte e sonoro assobio, desapareceu no bosque noturno.

A tempestade se concentrou em torno de Robbie com um ensurdecedor estrondo que afogou seu rugido de cólera. Então voltou a se desabar no chão, agarrando contra o peito a espada e o plaid MacBain, e apertou os dentes preparando-se para a dor que sabia que viria. Esperava com toda sua alma que Daar estivesse certo: que embora levava ali três infernais dias, só tivesse estado ausente do mundo moderno uma noite.

Entretanto, enquanto o torvelinho o consumia, seu último pensamento consciente foi para os escoceses das Terras Altas que estavam lá em casa. Os seis guerreiros MacBain e os quatro MacKeage que tinham desaparecido fazia dez anos, já eram lenda, e a guerra que tinha iniciado seu pai seguia em marcha.

E, além disso, a árvore de feitiços de Cùram de Gairn não existia.

 

Catherine Daniels se sentou muito direita na cama quando o raio deu um rangido tão forte que a cabana estremeceu. Primeiro se voltou a olhar a seus filhos e ficou assombrada, e aliviada, ao ver que continuavam adormecidos; depois saiu da cama, cruzou a provas o frio chão da rústica cabana e, sem fazer ruído, abriu com esforço a porta de madeira meio podre.

Que diabos estava acontecendo ali? Era a segunda tempestade desde a noite anterior, mas o céu estava cheio de estrelas que brilhavam fracamente a suave luz do amanhecer. Um dia nevava, no outro chovia e no seguinte fazia tanto calor que nem os fazia falta o jaquetão… E agora tempestades, mas sem chuva, e raios sem nuvens… Estava desejando partir daquele desolado lugar embora, por mais voltas que dava, não sabia aonde ir. Tinha chegado o mais ao norte que podia, e a ideia de passar a outro país, francamente, dava-lhe muito medo.

Levava fugindo dois meses e meio, desde que recebeu a carta da junta de liberdade condicional, e ainda acreditava que não se afastou o suficiente. Quando Ron esteve a ponto de alcançá-los em Iowa, deu-se conta de que não podia ir à casa de sua infância; tinha que encontrar o último lugar onde a ele ocorresse procurá-la.

Além disso Ron sabia que detestava o tempo frio e que já estava farta de cenários rurais, depois de criar-se em um rancho de Idaho; em realidade, Catherine contava com que pensasse que se dirigia a uma cidade super povoada e esperava que estivesse buscando-os em Chicago.

Tinha tomado a decisão acertada ao trocar bruscamente de rumo para ir a Maine, embora sem dúvida a avaria do carro tinha posto fim a suas possibilidades… E depois tinha perdido a mochila e uma quantidade considerável do dinheiro em mãos daquele homem enorme e aterrador que não deixava de persegui-la.

— Faz frio, mami. Fecha a porta.

Catherine se voltou e fechou a porta com esforço, tomando cuidado de não arrancá-la de seus embolorados dobradiças.

— Perdoa, céu — Disse, enquanto acendia a vela da mesa.

A velha cabana de caça de um só cômodo que tinham encontrado fazia seis dias se encheu de tênue luz, e Catherine retornou até a vencida cama.

— Dormiu bem? — Afastou o cabelo da face de sua filha e tocou a testa para ver se tinha febre — Soou muito melhor sua respiração esta noite. Parece-me que o resfriado desapareceu.

— Isso quer dizer que nos partimos hoje? Eu não gosto disto, sobre tudo quando nos deixa sozinhos.

Catherine se inclinou, deu um beijo na testa e depois revolveu seu cabelo.

—Melhor manhã, céu. Ainda tenho que encontrar outro meio de transporte.

— Aqui, tão longe, não têm ônibus nem táxis — Interveio Nathan, esfregando os sonolentos olhos — Teremos que pedir carona.

— Carona nem pensar — Disse Catherine, ao mesmo tempo em que alargava a mão e lhe tocava a testa.

Ele se afastou.

— Não estou porcaria.

— “Não estou doente” — Corrigiu ela; foi a embolorada e velha estufa de lenha e abriu a porta para atiçar o rescaldo — “Porcaria” não é uma palavra.

— É sim — Repôs Nathan, passando por cima de sua irmã e saindo da cama de um salto — Johnny me mostrou isso no dicionário.

— Johnny Peters é um de seus amigos que não sinto falta. E além “porcaria” não é uma palavra correta.

Nathan se aproximou e passou a última lenha da caixa.

— Então como é que a puseram no dicionário? — Perguntou — E “cor… cova” está também. E além disso, “maldição”.

Catherine deu um suspiro, fechou a porta da estufa e, com gesto distraído, limpou o óxido das mãos nas calças.

— Às pessoas, a julgam por sua forma de falar, Nathan. E se utilizarem palavras como “porcaria”, “maldição” e “cor… cova” dá a impressão de que são ignorantes.

— Eu não digo «maldição», mami — Interrompeu Nora com voz de apito. Saiu da cama, mas conteve o fôlego quando seus pés metidos em meias tocaram o frio chão, de modo que voltou para a cama de um salto e sua voz se transformou em um sussurro — Quero ir para casa. Aqui faz muito frio. E está muito escuro; está escuro todo o tempo.

— Os dias passam — A tranquilizou Catherine, enquanto buscava os sapatos e os punha — Já quase é primavera. Fará mais calor.

Nathan colocou seus tênis e pegou o jaquetão do varal.

— Podemos ir com você esta manhã? — Perguntou — Nora não para de chorar quando não está.

— Venham, acompanhá-los-ei ao banheiro — Disse Catherine; pegou o jaquetão de Nora e o pôs — E antes de entrar, comprovem que não tenha esquilos: recordem o que aconteceu da última vez.

—Podemos ir com você, mami? — Perguntou Nora, repetindo as palavras de seu irmão com olhos suplicantes — Seremos muito bons. Prometemos.

Catherine se agachou até ficar a sua altura.

— Ai, céu… — Sussurrou.— Não os levo comigo porque acho que vocês são maus, mas sim porque seu pai procura uma mulher e duas crianças. Se for ao povoado sozinha, ninguém me recordará quando for. Mas se lembrariam de uma desconhecida com duas crianças, e se seu pai chega até aqui fazendo perguntas, dirão que nos viram.

— Esconderemo-nos nos matagais perto do povoado — Disse Nathan — Não nos deixe aqui tão longe.

Catherine se endireitou, abriu a porta e os fez sair.

— Certo — Concordou — Podem vir comigo hoje, mas não entrarão na loja.

Nathan ficou a caminhar para trás para olhá-la enquanto se dirigiam ao banheiro.

— Iremos roubar ovos com você? — Perguntou.

— Eu não roubei esses ovos, comprei-os.

— O outro dia voltou bastante sem fôlego. E os ovos estavam quebrados — Disse o menino enquanto se voltava e, devagar, abria a porta do banheiro — E além disso perdeu a mochila.

Nora ficou bem longe enquanto Catherine e Nathan esquadrinhavam dentro. O menino esqueceu rapidamente a conversa e disse:

— Está livre. Eu primeiro!

Mas Nora se adiantou e, de um golpe, fechou a porta meio podre. Então Nathan olhou para Catherine.

— Vai roubar um carro também, mamãe? — Sussurrou.

— Claro que não. Agora que sua irmã está melhor, vou procurar trabalho.

— Trabalho? — Gritou ele, arregalando os olhos — Vamos ficar aqui?

Catherine olhou a seu filho de oito anos e encolheu de ombros; depois o separou do banheiro para que Nora não os ouvisse.

— Chegamos ao final, Nathan — Disse em voz baixa — Já não há mais lugares aonde fugir e quase nos ficamos sem dinheiro. Só fica para comprar um carro barato ou alugar um lugar onde ficar, mas se gasto o dinheiro em um carro, não ficará dinheiro para comprar gasolina. E além do mais, não podemos estar sempre fugindo, querida.

— Mas então papai nos encontrará — Sussurrou ele — Disse que tínhamos que ter muito cuidado com coisas como os cartões de crédito e seu número social. Que ele o usaria para nos encontrar.

— Diz-se “número do Seguro Social” — Disse ela; ficou em cócoras para ficar à altura de seus olhos e, sorrindo, puxou-o pelo jaquetão — Mas talvez ache trabalho como costureira em casa; assim não teria que dar nenhum número a ninguém.

Catherine assentiu para ouvir o que tinha estado pensando nos últimos dias. Tinha meditado sobre a possibilidade de ficar o tempo suficiente para ganhar um pouco de dinheiro, e o expressá-lo em voz alta incluso fazia que parecesse verossímil.

— De verdade teremos uma casa? Com nosso banheiro e com uma cozinha? —Perguntou Nathan; seus olhos se iluminaram de emoção — E nos preparará biscoitos outra vez?

Catherine alargou a mão e estreitou o menino contra seu peito, enquanto empurrava a cabeça sobre seu ombro para que não visse os olhos cheios de lágrimas. Levava dois meses e meio consumida pela culpa e o medo. Estava fazendo passar a seus preciosos filhos por uma experiência horrível, mas que Ronald Daniels aproximasse outra vez era mais insuportável ainda. Tinha arriscado sua vida com a esperança de conseguir sete ou oito anos de liberdade, o suficiente para que seus pequenos crescessem e estivessem a salvo, mas o estado de Arkansas só tinha concedido três.

— Eu trabalharei também — Disse Nathan, agarrando-se forte a ela — Já sou grande.

— Sim, é grande. — Catherine o abraçou igual de forte — Cuida de sua irmã, busca-nos lenha e me ajuda muito.

Deu-lhe uns tapinhas nas costas, puxou pela mão e se aproximou do banheiro.

— Caiu ai dentro? — Disse a Nora.

Uma suave risadinha chegou através da porta. De repente a menina abriu a porta e gritou:

— Terminei. Pelo único que não me importa o frio é que não há aranhas. — Com um estremecimento, afastou-se para que entrasse Nathan — De verdade iremos com você hoje?

Catherine a levou de volta para a cabana.

— Sim — Disse — Seu resfriado está muito melhor, assim pode fazer a caminhada. E até comprarei algo especial por serem uns filhos tão estupendos.

Nora se adiantou saltando, mas não pôde abrir a pesada porta. Depois de recolher duas lenhas do minguante montão de fora, Catherine abriu, meteu-os na estufa e começou a procurar no pequeno sortido de latas procurando algo que esquentar como café da manhã.

Não tinham passado nem dois minutos quando de repente Nathan entrou com os olhos exagerados e a cara branca como a neve.

— Há um morto no bosque! — Gritou, ao tempo que se aproximava correndo e a agarrava pelo braço — Vamos, mamãe! Temos que ir daqui!

Nora soltou um grito e se jogou em cima de sua mãe.

Catherine se inclinou, tomou Nathan pelos ombros para que deixasse de puxá-la e o olhou nos olhos.

— Está seguro de que viu um homem? — Perguntou em voz baixa — E não um tronco de aspecto estranho?

Com os olhos enormes de medo, Nathan assentiu.

— Por pouco o piso — Inspirou forte — Estava procurando lenha ali na colina… Engoliu seco outra vez e assinalou a parede traseira da cabana.

— Está… Está meio vestido nada mais. E está morto.

Nora choramingou e afundou a face no pulôver de Catherine.

Catherine inspirou para tranquilizar-se também.

— Nathan — Disse com calma — Como sabe que está morto?

— Bati nele com pau, e não se move.

Suavemente, Catherine arrancou a sua filha de cima.

— Sente-se na cama e nos espere, céu — Disse — Nathan, mostre-me onde está esse homem, depois volta e fica com sua irmã.

Levou-o para a porta, mas Nora voltou a agarrar-se no pulôver para detê-la.

— Eu não fico aqui! — Gritou a menina — Não me deixe!

— Certo — Disse Catherine em voz baixa — Vamos todos.

Depois de abrir a porta e tomá-los pela mão, deixou que Nathan os guiasse rodeando a lateral da cabana. Subiram pela colina pouco mais de duzentos metros, e depois Nathan se deteve e assinalou com o dedo.

— Aí — Sussurrou — Do outro lado dessa árvore.

Catherine deu a volta a seus filhos para que a olhassem.

— Quero que fiquem aqui mesmo, justo ao lado deste toco. Nathan, pega a mão de sua irmã — Ordenou, ao tempo que colocava a mão de Nora na sua — E não vão me seguir, nenhum dos dois.

— Mamãe! — Disse Nathan em tom crispado — Temos que ir! Quem o matou pode estar aí ainda!

Catherine se obrigou a não afastar a vista de seus filhos para olhar ao redor.

— Não sabemos se o matou alguém; talvez tenha tido um acidente. Tenho que ir ver — Disse em voz baixa — E se estiver morto, iremos. Iremos dizer às autoridades.

Vacilou só o suficiente para assegurar-se de que ficavam ali; depois deu a volta e caminhou para a árvore que tinha mostrado Nathan. Necessitou toda sua força de vontade para que suas pernas se movessem. Não tinha visto nunca um cadáver, salvo metido em um caixão, e esses pareciam bastante tranquilos, como se estivessem dormindo.

Estaria o morto manchado de sangue?

Horripilante?

Desfigurado pelos animais selvagens…?

Não. Nathan tinha batido com um pau, e não teria parado para fazê-lo se o homem tivesse estado mutilado. Catherine se deteve justo diante da árvore e olhou para assegurar-se de que seus filhos não a seguiam. Nora estava pega a Nathan, que devolvia o abraço, e os dois a olhavam com os olhos muito abertos e aterrados. Então sorriu para tranquilizá-los, voltou-se para a árvore, inspirou fundo e o rodeou.

Bom, certamente não estava olhando um tronco; era um homem, é claro que sim, e certamente sim que parecia morto.

Apareceu depois da árvore para ver seus filhos à luz cada vez mais forte do amanhecer.

— Só vou comprovar se esta vivo — Disse para que não se deixassem levar pelo pânico ao perdê-la de vista.

—Mami! — Disse Nora chorando — Volta!

— Está tudo bem, céu; não vai acontecer nada. Esperem só um momento mais, Nathan e você.

Catherine voltou a olhar ao homem meio nu e se aproximou mais; depois agarrou o pau que devia ter usado Nathan para o cutucar e o levantou como se fosse uma clava. Sem deixar de observá-lo atentamente, aproximou-se outro passo. Era um homem enorme, de bastante mais de um e noventa de altura, com o cabelo castanho escuro e uma barba de vários dias que sombreava as duras feições. Estava envolto em um tecido de quadros escoceses, rodeada à cintura com um largo cinto de couro, e ao lado havia outro plaid de diferente cor.

Catherine deu um rápido passo atrás quando se fixou na larga espada que o homem agarrava na mão esquerda, coberta pela metade pela folhagem e pelo bordo do plaid que tinha posto.

Uma espada?

Aquele homem se parecia com o Mel Gibson no Braveheart[2], só que dava mais medo.

Aproximou-se com sigilo, muito lentamente, e devagar, pau em riste, agachou-se disposta a golpear. Então alargou a mão, tocou-lhe o ombro e deu um grito afogado ao notar que estava morno.Morto, não; estava inconsciente.

Ao olhar com atenção o corpo viu o sangue que se filtrava pelo tecido à altura do lado direito. Também se fixou em vários arranhões, tanto nos braços como nas pernas; alguns eram profundos. O tecido só tampava a metade do largo peito, e viu que no ombro direito tinha um grande corte; também havia um hematoma na bochecha direita e outro na têmpora. Aquele homem tinha estado em algum tipo de briga.

Depois Catherine se inclinou para frente, embora com cuidado de não tocá-lo, e viu muito sangue no chão.

— Mami! — Gritou Nora.

Catherine ficou de pé e apareceu por trás da árvore.

— Estou bem, céu. E não está morto, está inconsciente, embora sangre muito.

— Então volta, mamãe — Disse Nathan em tom crispado — Temos que nos partir antes d que desperte.

Catherine voltou a olhar ao homem. Se não detinha aquela hemorragia, não ia despertar nunca… Voltou a olhar a seus filhos.

— Nathan, quero que pegue esse velho carrinho de mão que há atrás do banheiro e que o traga aqui. Nora, veem comigo e fica junto a esta árvore.

— Não! — Gritou Nora, recuando.

Catherine estendeu a mão para que se aproximasse e se dirigiu a ela em tom tranquilizador.

— Está tudo bem; não nos fará mal. Não é mais que um pobre ferido que necessita nossa ajuda. Vê, Nathan — Disse em tom mais firme — Está sangrando.

Nathan empurrou a sua irmã para frente, depois deu a volta e desceu correndo a colina para o banheiro. Nora avançou devagar, com os olhos como pratos de medo.

— Não há nada a temer, céu — Disse Catherine em voz baixa — Veem vê-lo você mesma. Só é um homem.

Por fim Nora chegou até a árvore, aproximou-se furtivamente, abraçou-a procurando proteção e esquadrinhou atrás de Catherine.

— Vê? — Disse Catherine — Não te faz mal.

— É… É grande — Sussurrou Nora.

— Sim que o é. E além disso está ferido gravemente, neném, e temos que ajudá-lo.

Nora elevou o olhar para sua mãe.

— Não podemos chamar uma ambulância?

— Para chamá-la, eu teria que descer correndo a montanha e o homem morreria antes que a ambulância chegasse aqui. Temos que cuidá-lo nós — Explicou Catherine, ao tempo que se voltava para o ferido. Baixou o pau e começou a lhe afrouxar o cinto o bastante para jogá-lo a um lado — Agora que vê que não há nada que temer, faz-me um favor, Nora?

— Qu… o quê?

— Volta correndo à cabana e me traz uma toalha?

— A azul? — Perguntou a pequena.

Enquanto separava com cuidado o pegajoso tecido, Catherine assegurou:

— A azul está ótimo. E pega dois pares de minhas meias de lã e trá-los também — Acrescentou.

A menina partiu, e Catherine olhou de novo ao homem. Estava coberto dos pés a cabeça de lodo e folhas, e tinha a pele pálida, inclusive a de sua bronzeada cara.

Devagar, levantou o tecido que tampava o lado direito e conteve a respiração ao ver o perigoso corte que tinha justo em cima do quadril: media uns quinze centímetros de comprimento e de fundura; a pele estava aberta de tudo e o sangue saía lentamente.

— Bom, meu senhor: talvez demos com você bem a tempo — Sussurrou.

Empurrou com suavidade o corte para comprovar sua gravidade; nenhum órgão nem intestino saiu de repente, e Catherine deu um pequeno suspiro de alívio. Não se sentia em condições de praticar cirurgia interna, mas em troca seus muitos anos ajudando a seu pai no consultório veterinário a capacitavam para fechar com pontos uma ferida como aquela.

— Para que é o carrinho de mão? — Perguntou Nathan, que chegava nesse momento, empurrando-o por cima das avultadas raízes do grande pinheiro.

— Para levá-lo a cabana — Explicou Catherine.

Moveu-se para tampar a visão e levantou o plaid para ver se o homem tinha mais feridas. Imediatamente deixou cair o tecido como se queimasse e baixou a cabeça para que Nathan não visse seu rubor. O consultório de animais de seu pai não a tinha preparado para algo como aquilo. Aquele tipo era uma verdadeira besta, e dava a impressão de que nas veias tinha mais testosterona que sangue.

Em realidade, provavelmente isso fosse o que o mantinha vivo: seu excepcional estado físico compensava a perda de tanto sangue.

— Como vamos colocá-lo? — Perguntou Nathan; enquanto falava se aproximou e cravou o olhar no homem. De repente abriu muito os olhos e alargou mão — Isso é uma espada!

Catherine agarrou a mão.

— Não a toque.

Nathan recuou e a olhou piscando.

— O que faz com uma espada? E vai vestido estranho.

— Não tenho nem ideia — Reconheceu Catherine — Talvez haja uma espécie de reunião em Pene Creek onde a pessoa se veste com trajes de época. Já sabe, como quando os levei a aquela reconstrução da guerra civil o verão passado. Este tipo vai vestido como um antigo guerreiro; talvez haja um festival escocês.

— Toma a toalha, mami. Para que são as meias?

Catherine agarrou a toalha que dava Nora, colocou-a por debaixo do plaid e depois baixou o cinturão do homem para que a sujeitasse sobre a ferida.

— Está em estado de choque, céu, e a temperatura de seu corpo está baixando. Toma — Disse a Nathan, passando um par de meias— Coloque-os.

Com cuidado, tirou do homem a espada da mão esquerda, pôs uma meia em uma mão e depois fez o mesmo na outra.

— Tem seis dedos! — Soltou Nathan, recuando — E nos dois pés!

Catherine se apressou a olhar os pés; aquele homem dava a impressão de ter os dedos muito apinhados. Elevou a vista e dirigiu a Nathan um sorriso tranquilizador.

— Sei de gente que tem seis dedos nos pés.

— É um monstro? — Sussurrou Nora, ao tempo que abraçava o pinheiro de novo — Tem muitíssimo cabelo, é muito grande e dá medo olhá-lo.

— Não é um monstro — Disse Catherine com firmeza.

Tirou as meias de seu boquiaberto filho e ela mesma as pôs.

— Vamos, me ajudem a colocá-lo no carrinho de mão — Disse, ao tempo que ficava de pé — quanto antes o levemos a cabana e possa deter essa hemorragia, melhor estaremos todos.

— Isso é bastante porcaria; não poderemos levantá-lo — Disse Nathan, agarrando o carrinho de mão.

Catherine não se incomodou em corrigir suas palavras, mas sim se agachou junto à cabeça do homem e o agarrou pelos ombros.

— Quando eu o levantar, encaixe a ponta do carrinho de mão sob as costas — Pediu — Vamos, já.

Levantou-o só uns centímetros, mas teve que baixá-lo com cuidado para agarrá-lo melhor. Meu Deus, aquele homem era puro peso morto.

— Outra vez. — Enquanto o levantava deu um grunhido para compensar o esforço — Empurra embaixo, Nathan.

Nathan encaixou a ponta do carrinho de mão sob as costas do homem, e Catherine, de um puxão, pô-lo mais direito. Com cuidado, jogou-o para trás devagar no carrinho de mão e depois ficou onde estava o menino e voltou a agarrá-lo, desta vez por debaixo dos braços.

—Certo, Nathan — Disse, ofegando pelo esforço — Vou lhe dar um último puxão enquanto você empurra as pernas.

— Não quero tocá-lo — Sussurrou Nathan.

Em troca, a Catherine não importava muito estar tocando-o. Aquele tipo era puro músculo, sem um grama de gordura por nenhum lado. Era tão quente ao tato, e tão tremendamente masculino, que não estava segura de se tremia por estar tão perto de um homem tão impressionante ou era que estremeciam os músculos ao mover seu peso morto.

— Então se ponha ao lado e puxe o carrinho de mão por debaixo dele —Sugeriu — Você também pode ajudar, Nora. Ponha ao outro lado, frente a Nathan, e puxe quando eu o levante.

Nenhum dos meninos se moveu.

— Vamos — Suplicou Catherine — Não me deixem na mão agora. Precisa dos três para lhe salvar a vida. Esta é nossa oportunidade de sermos heróis.

Tal como pensava, as palavras “Deixar na mão” e “heróis” galvanizaram Nathan, que se agachou para agarrar o lateral do carrinho de mão e jogou uma olhada a Nora.

— Venha, irmãzinha — A animou — Você também será um herói.

Sem parecer muito convencida e com gesto vacilante, a menina de seis anos agarrou a borda metal e olhou a Catherine.

Catherine assentiu.

— Certo. no três. Um, dois, três! — Grunhiu, puxando com toda sua força.

O homem se levantou só uns quinze centímetros, mas foi suficiente para que Nathan e Nora deslizassem o carrinho de mão sob as costas.

— Conseguimos! — Gritou Catherine, ao mesmo tempo em que puxava os braços do carrinho de mão para baixá-los.

O carrinho de mão ficou horizontal com um estridente golpe surdo, e Catherine e Nathan acudiram a toda pressa para evitar que caísse de lado… Enquanto, diligentemente, Nora recuava até o pinheiro.

— São meus heróis; os dois — Sussurrou Catherine — Agora só temos que empurrá-lo até a cabana procurando não deixá-lo cair.

O plano era bom, mas do dito ao feito houve muito trecho. Mais de uma vez estiveram a ponto de que o homem caísse do carrinho de mão, e depois quase bateram com a lateral da cabana. Passá-lo pela estreita porta foi uma provocação ainda maior, mas por fim conseguiram chegar até a cama e o colocaram rodando nela. Os três estavam ofegando quando terminaram.

— Somos uma estupenda equipe ou não? — Disse Catherine, enquanto abraçava forte a seus dois filhos — Bom trabalho, meninos. Nathan, pega o cubo e a panela grande e vá a por água da fonte. Nora, coloca o que fica de lenha do montão de fora.

Depois de dar uns tapinhas nas costas para pô-los em movimento, foi a sua mala e mexeu nela procurando sua mesa de costura.

— Temos que nos dar pressa — Disse — Tenho que lavá-lo, fazer que entre em calor e costurá-lo.

Nathan se deteve a porta.

— E depois o quê? — Perguntou.

Catherine elevou o olhar da mala.

— E depois… Não sei — Reconheceu — Suponho que os três desçamos a montanha para dizer a alguém que está aqui acima.

Aos dois meninos pareceu gostar do plano e correram a fazer suas tarefas. Catherine pôs a mesa de costura junto à cama, acendeu a última vela, voltou-se e baixou a vista para o homem.

Era vagamente familiar.

Talvez o tivesse visto na Armaria de Dolan quando comprou os gorros e as luvas, ou se cruzaram na rua.

De repente recuou. Não, não podia ser ele… Mas quanto mais observava o gigante e assimilava seu tamanho, sua figura e seu cabelo castanho, mais se dava conta de quem era.

Bom, que demônios… Com toda a má sorte que tinha tido ultimamente, aquilo se levava a palma. O homem a quem tinha roubado (e de que tinha saído fugindo duas vezes) estava ali, sangrando por toda sua cama.

 

Robbie despertou com a suficiente presença de ânimo para manter os olhos fechados. Ficou absolutamente quieto e ficou a escutar a conversa que mantinham ao menos três pessoas em voz baixa, enquanto estudava sua situação.

Não tinha frio, estava intumescido de dor e além disso, pelo visto, estava vivo; esses eram os pontos a favor. Mas não sabia em que época estava, ignorava a gravidade de suas feridas e, por algum motivo, não podia mover as mãos.

O bom parecia pesar mais que o mau, embora a conversa fosse um pouco difícil de entender; algo sobre uma bonita espada, um abominável homem das neves, um carro avariado, um trabalho, costura e biscoitos.

Foi a alusão ao abominável homem das neves e ao carro o que fez pensar que estava de volta no século XXI.

Mas, e o da bonita espada? Esse comentário o tinha feito uma menina pequena.

Distinguiu a suave voz de uma mulher; falava às vezes em tom mimoso, às vezes dando instruções e, frequentemente, tentando conter a risada. Também ouviu sussurrar a um menino pequeno; era o que tinha chamado “abominável homem das neves” a quem ocupava a cama.

Catherine Daniels, Nathan e Nora. Robbie conteve o impulso de gritar de alegria.

Não tinha que procurar a sua trombadinha: ela tinha encontrado a ele!

Embora nada disso explicava por que não podia mover as mãos.

Robbie abriu apenas os olhos e olhou através das pestanas a cena iluminada pelas velas. Catherine Daniels estava sentada junto à estufa de lenha, de frente a seus dois filhos, sentados à mesa. O menino repartia sua atenção entre sua mãe e a espada que estava no canto, junto à porta, e a menina observava a sua mãe, que costurava o plaid MacKeage, como se a agulha e o fio fossem a oitava maravilha do mundo.

— Onde dormiremos esta noite? — Perguntou Nathan em voz baixa; com o cenho franzido jogou uma rápida olhada à cama onde estava Robbie e depois outra vez a sua mãe.

— Amontoaremos os jaquetões e umas quantas mantas no chão, junto à estufa — Disse Catherine sem afastar a vista de seu trabalho.

— Acreditava que íamos contar a alguém que ele está aqui — Sussurrou Nora, ao tempo que saía apitando de sua cadeira e se aproximava mais para examinar a costura de sua mãe.

Por fim Catherine elevou o olhar.

— Teremos que esperar até amanhã. — Jogou uma olhada a Robbie e depois a seus filhos — Não me atrevo a deixá-lo sozinho; ao menos até que não desperte.

— E se não se acorda? — Perguntou Nora.

— Se não estiver acordado pela manhã, esconderei-os em algum lugar seguro e descerei correndo a montanha.

Desta vez Robbie teve que afogar um bufido; por como corria, a senhora demoraria só meia hora em fazê-lo.

O atrativo da espada de Robbie por fim venceu Nathan que, com passo furtivo, desceu da cadeira e foi para o canto.

— Não se aproxime disso — Disse Catherine — Pesa muito e as bordas estão muito afiadas.

“E além disso, manchados de sangue”, quis acrescentar Robbie. Supôs que ela teria se dado conta ao colocá-la na cabana, e confiou em que acreditasse que o sangue da folha era dele. Não convinha que Catherine Daniels pensasse que tinha por costume ir mutilando pessoas… E menos com os planos que tinha para ela.

— Posso beber algo? — Perguntou.

Sobressaltados, três pares de olhos como pratos o olharam. Nora gritou e se colocou do outro lado de sua mãe. Nathan se adiantou para as defender, mas no último minuto trocou de opinião e agarrou a Nora pelos ombros.

Uma vez reposta da surpresa, Catherine Daniels deixou ver um formoso sorriso.

— Você despertou — Disse, ao tempo que ficava de pé e deixava a costura na mesa.

Depois agarrou uma xícara e a aproximou. Robbie foi tomar a… E por fim se deu conta de por que não podia mover as mãos: tinha os dois pulsos atados aos laterais da cama. Então olhou a Catherine.

O sorriso dela desapareceu.

— Eu… Bem… É que não conhecemos você — Explicou, inclinando o queixo em um gesto defensivo.

Robbie relaxou sobre o travesseiro e dirigiu um torcido sorriso.

— Não só corre como o vento, Catherine, mas sim também é preparada.

Ela empalideceu.

— Sabe quem sou?

— Você deixou sua mochila pendurando em um arbusto na estrada, perto de minha casa — Disse; seu sorriso se aumentou ao ver que ela abria os olhos como pratos. Então com a cabeça assinalou a xícara que tinha na mão — E essa bebida?

— Huy…

Catherine se inclinou, levantou-lhe a cabeça e aproximou a xícara aos lábios.

Uma cerveja gelada não teria melhor sabor. Robbie bebeu até a última gota de água, menos as que caíram pelo queixo.

— Obrigado — Disse com um suspiro, ao tempo que ela baixava sua cabeça — Que horas são?

— Quase cinco da tarde.

— De que dia?

— Bem… — Catherine encolheu um ombro — A verdade é que não sei; não levo a conta dos dias.

— Então quanto tempo estive inconsciente?

— Encontramo-lo esta manhã ali acima, depois da cabana.

— Assim é quinta-feira?

— Não sei, de verdade.

Robbie decidiu perguntar algo que sim soubesse.

— Em que estado me encontro? — Disse, enquanto elevava a cabeça para olhar o corpo.

Só viu a velha manta que o tampava, mas a dor do lado lhe indicou que as feridas de oito séculos seguiam doendo uma barbaridade no dia seguinte.

— Tem um profundo corte justo em cima do quadril direito — Disse Catherine; deixou a xícara vazia sobre o tamborete que estava junto à cama e assinalou o torso — E outro corte no ombro. E além disso perdeu muito sangue.

— Mas parou a hemorragia?

Ela assentiu.

— Costurei as duas feridas e lavei os cortes menores — Com gesto vacilante, inclinou-se e pôs a delicada mão na testa; depois se apressou a recuar enquanto a cara tingia de rosa — Não tem febre. Mas deve ir a um médico quanto antes.

Robbie seguia tentando superar o fato de que o tivesse cravado com uma agulha.

— Costurar carne é uma tarefa desagradável — Disse, elevando uma sobrancelha — E supõe ao menos um ligeiro conhecimento da anatomia humana…

Catherine Daniels voltou a sorrir.

— As pessoas não são tão diferentes dos cavalos e o gado.

Robbie elevou a outra sobrancelha.

— Meu pai era veterinário — Disse ela — E eu fazia visita com ele todos os verões enquanto estudava no colégio. Tinha uns fios de seda no mesa de costura, mas é provável que o médico refaça as suturas. Só quis deter a hemorragia e fechá-lo para reduzir a possibilidade de uma infecção.

— E lhe dou obrigado por isso, Catherine — Disse Robbie com uma ligeira inclinação de cabeça. Olhou a seus filhos que, junto à estufa, olhavam-no com olhos enormes e receosos, e depois a olhou outra vez — Como cheguei até aqui?

— Em um carrinho de mão — Disse ela; voltou-se e com um gesto indicou aos meninos que se adiantassem — Estes são meus filhos, Nathan e Nora; Nathan tem oito anos e Nora tem seis.

Tomou pelos ombros quando se aproximaram e voltou a olhá-lo.

— Eles me ajudaram a trazê-lo aqui.

Robbie os saudou com uma inclinação de cabeça.

— Obrigado — Disse.

— Você tem nome? — Perguntou Catherine.

— Robbie MacBain. Vivo ao pé desta colina, na fazenda branca do galinheiro que está junto ao grande estábulo; acredito que conhece o lugar.

A face de Catherine se cobriu de um atrativo rubor.

Robbie pensou em como ia descer daquela montanha e em como convenceria a Catherine Daniels para que fosse com ele.

— Provavelmente haja gente me buscando, incluídos quatro adolescentes que neste momento é provável que estejam mortos de fome — Disse, com a esperança de fazer entender, pouco a pouco, que tinha quatro meninos em casa — Alguma sugestão sobre como lhes dizer que estou bem?

— Mamãe corre muito rápido — Interveio Nathan — Ela lhes dirá que está você aqui.

— Mas fora está escuro — Se apressou a dizer Catherine, ao tempo que apertava o ombro do menino — E além não penso deixar a meus filhos. Irei procurar ajuda pela manhã.

— Ou pode me ajudar a descer caminhando esta noite — Sugeriu Robbie.

Ela meneou a cabeça.

— Você não caminharia nem dois quilômetros. E, provavelmente, voltaria a sangrar.

— Conseguirei-o. Só me busque um pau para me apoiar.

— Isso não muda o fato de que fora está escuro como boca de lobo. E além se levantou vento, e depois de meio-dia começaram a aproximar umas nuvens muito carregadas; deve haver uma tempestade chegando.

Robbie ficou calado e a olhou fixamente, enquanto pensava que já sabia muito sobre Catherine Daniels… Como que era um pouco teimosa e mandona. Também sabia que corria mais rápido que ele, que era tão atrevida para lhe roubar o Suv, e tão preparada para atá-lo à cama com o fim de proteger-se. Estava disposta a salvar a vida a um absoluto desconhecido, era tão engenhosa para aproveitar o que tinha disponível, e além disso estava tão se desesperada para arrastar a seus filhos milhares de quilômetros por todo o país. Em resumo, era perfeita.

— Então, e se me desata e pelo menos me ajuda a chegar até o banheiro? —Perguntou.

Nora se apressou a sair como pôde de debaixo do braço de sua mãe, correu até o canto oposto da cabana e apertou seu corpinho contra a parede.

— Isso não vai acontecer, senhor MacBain — Disse Catherine; empurrou a seu filho para a estufa e com um gesto indicou a Nora que fosse com ele — Teremos que idear outra maneira.

Robbie soltou uma risadinha.

— Não é que suponha uma ameaça para você ou seus filhos, Catherine. Diz que mal posso caminhar, assim não posso fazer mal a ninguém salvo a mim mesmo, de modo que vamos evitar nos pôr em uma situação embaraçosa.

O rubor dela subiu de repente três inteiros. Cruzou os braços e cravou o olhar nele; notava-se que estava tentando decidir o que fazer. De repente se voltou para o Nathan.

— Saia e busca dois paus grandes — Disse.

— Mamãe, não! — Disse Nathan em tom crispado — Esse homem é muito grande!

— Mas não está em forma para provocar problemas — O tranquilizou; depois deu um empurrãozinho para a porta — Vamos, vá. Nora: você fique fora junto ao montão de lenha. Não fecharei a porta de tudo para que não tenha medo.

Depois de decidir, pelo visto, que o de fora assustava menos que o de dentro, Nora correu atrás de seu irmão. Então Catherine se aproximou de Robbie.

— Não leva você nada posto, senhor MacBain — Sussurrou — Tenho que envolvê-lo na manta.

— Onde está meu plaid?

— Seu plaid? Está… Está aqui mesmo. — Foi para a mesa e agarrou o plaid MacBain — O que tinha posto está cheio de sangue e rasgado. Use este.

— Toma os paus, mamãe — Disse Nathan, ao tempo que entrava com dois paus largos, quase tão altos como ele.

— Ponha um junto à cama e fica você com o outro — Disse ela; depois deu a volta ao menino para que a olhasse de frente — Quero que venha atrás de nós ao banheiro, e se o senhor MacBain tenta algo, bata tudo quão forte possa no lado direito.

Enquanto dava a ordem, voltou-se para lançar a Robbie um feroz olhar de advertência.

— Quer que bata nele? — Sussurrou Nathan, recuando — Mas isso o porá furioso.

Catherine meneou a cabeça.

— Cairá como um fardo, Nathan. Mas bata só se disser isso, entende? — Esperou até que ele assentiu — Vá com sua irmã e deixa a porta entreaberta.

Viu-o partir e se voltou de novo para o Robbie.

Robbie deixou ver um amplo sorriso.

— Você não anda com brincadeira, em?

— Eu não gosto de me sentir indefesa, senhor MacBain — Disse enquanto soltava o nó do pulso direito.

— Já que está a ponto de me ajudar a me vestir, acredita que pode começar a me chamar Robbie? — Perguntou ele; não afastou o braço do lado quando ela soltou o pulso.

Sem dizer nada, ela rodeou a cama e desatou o outro nó. Quando o soltou de tudo, Robbie levantou os braços devagar e moveu os ombros.

— Aaaahh… — Exclamou — Começava a não senti-los.

Catherine cravou nele seus grandes e doces olhos escuros.

— É você um homem afortunado — Disse — Se esse corte do lado tivesse sido um pouco mais profundo ou tivesse estado sete centímetros mais acima, não estaríamos mantendo esta conversa. Como se feriu?

Robbie se incorporou devagar, agarrando o flanco, que lhe dava ferroadas.

— Tropecei e me caí sobre a espada — Disse, meneando a cabeça com gesto indignado.

— Que fazia aqui em cima, vestido assim e levando uma espada?

— Ensaiava para a festa deste verão. — Respirou forte para controlar a dor e, ao elevar a vista, pegou Catherine olhando o peito nu — A competição é dura, e pelo geral começo a treinar com meses de antecipação. Devo… Bem… Devo ter rodado bastante para estar tão sujo.

Com a cara quase carmesim, por fim ela elevou o olhar de seu peito.

— Tem sorte de não ter cortado a cabeça.

— Sim, isso acredito. E o que faz você aqui, Catherine?

Ela afastou a vista e agarrou o plaid MacBain.

— O carro estragou do outro lado da montanha.

Robbie agarrou o tecido para evitar que ela a pusesse pelos ombros.

— Não há mais que bosque do outro lado desta montanha. Por que estava você aí?

— Perdi-me. Pensava que a estrada de terra era um atalho que chegava até o Caribou.

Encolheu os ombros e tentou voltar a tampar o peito com o plaid, mas desta vez Robbie a deteve agarrando-a pelos pulsos.

Nesse instante Catherine Daniels explodiu. De uma sacudida, soltou-se e deu um murro no ombro, pondo nele todo seu peso. Com um grito afogado de dor, Robbie se deixou cair para trás e ficou absolutamente quieto, observando-a. Ela estava pega contra a parede.

— Perdoe — Disse ele sem mover-se — Não me dei conta.

Nathan irrompeu na cabana com o pau em alto, preparado para golpear, e Catherine se apressou a rodear a cama para detê-lo.

— Está tudo bem, querida — Disse sem alterar a voz — É que o senhor MacBain se machucou tentando levantar-se.

Justo naquele momento Nora entrou correndo na cabana e deu um grito horripilante.

— Aí fora há algo! — Gritou — Está subindo a colina!

Catherine tirou o pau de Nathan e se dirigiu para fora, mas se deteve o dar-se conta de que deixava os meninos com um desconhecido que já não estava deitado.

— Venham se pôr junto à porta — Disse, ao tempo que puxava eles para trás.

Apertando os dentes para aguentar a dor, Robbie desceu da cama e ficou de pé. Depois se apressou a envolver-se no plaid, jogou mão ao cinto que estava pendurado de uma cadeira, o rodeou à cintura e foi para a porta atrás deles, agarrando a espada de passagem.

Quatro sombras a cavalo entraram no claro e se detiveram justo no círculo de luz que saía da cabana. Imediatamente Robbie se relaxou, pôs a espada na parede de troncos e se apoiou no marco da porta para aliviar as ferroadas do flanco.

— É você, chefe? — Perguntou Cody, sorrindo — Quase não te reconhecia, vestido com essa saia.

— Está tudo bem, Catherine — A tranquilizou Robbie — Estes jovens e elegantes cavalheiros vieram a nos resgatar.

Devagar, Catherine baixou o pau, mas quando Gunter aproximou seu cavalo voltou a subi-lo e recuou, com seus filhos atrás, até que quase dobraram o canto da cabana.

Gunter se deteve; seu olhar foi de Robbie aos três assustados Daniels, e depois outra vez a Robbie.

— Necessita um resgate?

— Como soube onde me buscar? — Perguntou Robbie.

Enquanto desmontava e se adiantava, Gunter explicou:

— Esse velho sacerdote louco estava sentado no alpendre quando voltamos do colégio, e seu cavalo estava preso ao corrimão. Disse que devíamos te buscar na colina de West Shoulder, posto que ele já tinha procurado por toda a cúpula. —Aproximou-se mais e baixou a voz — Não deixou que falássemos a ninguém que tinha desaparecido, nem sequer a seu pai; mas não disse por que.

Robbie assentiu com a cabeça.

— Menos mal. Não há por que preocupá-los. Eu… Bom, tive um pequeno acidente.

Gunter passeou o olhar pelo corpo de Robbie e depois elevou a vista.

— Bonitos trapos — Disse com ironia — Quem é a senhora dos meninos? Nossa ladra de ovos?

Robbie assentiu e, em voz baixa para que não o ouvisse Catherine, disse:

— E além disso, se jogarmos bem nossas cartas, talvez seja nossa nova governanta.

Gunter se voltou para Catherine, e, assombrado, Robbie observou que o jovem lhe lançava um sorriso tão cálida para torrar pão.

— Senhora… — Disse, ao tempo que avançava para ela com as mãos à costas em gesto nada intimidatório — Faz muitíssimo frio fora. Por que não resguarda a seus filhos deste vento enquanto decidimos o que fazer?

Robbie seguia boquiaberto. De verdade aquele era Gunter? Diabos, se o pirralho quase gotejava simpatia… Olhou a outros meninos e viu que estavam tão pasmados como ele.

— Temos umas três horas até que estale a tempestade — Prosseguiu Gunter, fazendo-se a um lado para deixá-la passar — Justo o suficiente para tirá-los você e a seus filhos desta montanha.

Robbie se afastou coxeando para que ela entrasse na cabana; depois se dirigiu a uma das cadeiras e se sentou com muito tato.

Os outros três meninos se apressaram a desmontar e se apinharam na porta. Catherine levou a seus filhos até atrás da estufa e depois se interpôs também entre eles e os homens. Robbie observou que ainda tinha o pau na mão.

— Catherine — Disse — Não podem vocês ficar aqui acima. Quando saí ontem, a predição era de mais de trinta centímetros de neve.

Os grandes e preocupados olhos castanhos dela esquadrinharam os cinco e depois voltaram a olhá-lo.

— Levam-nos ao povoado? — Perguntou — A um motel ou algo assim?

— Faremos algo melhor — Interveio Gunter — Em casa temos um montão de lugar, uma despensa bem sortida e além disso uma lareira para aconchegar-se diante.

Ela meneou a cabeça.

— Acredito que deveríamos ir a um motel.

— Quer confiar seus filhos aos meninos para que eu possa falar com você a sós? — Perguntou Robbie — Os levarão fora e deixaremos aberta a porta para que os veja.

Ela agarrou o pau mais forte. Robbie baixou a voz.

— Encontrei os papéis de sua mochila — Disse.

Com o corpo rígido e a face pálida de inquietação, Catherine tirou devagar a seus filhos. Cody, Peter e Rick se afastaram.

— Tentem se fazer amigos das crianças — Sussurrou Robbie a Gunter quando este passava por seu lado — São grande parte da solução de nosso problema.

Gunter assentiu, sorriu a Catherine quando esta voltou a entrar e, uma vez que esteve fora, em seguida ficou de cócoras à altura da Nora.

— Foge você de seu ex-marido? — Perguntou Robbie.

Catherine, que se tinha ficado junto à estufa, de cara a ele, assentiu.

— Por que estava na prisão?

— Mau trato doméstico — Disse ela concisamente.

Isso bastou para que Robbie se fizesse uma ideia muito mais clara. E também explicou sua reação ao agarrar o pulso.

— Está segura de que vem atrás de vocês, ou saiu correndo ao receber a carta por precaução?

— Esteve a ponto de nos apanhar em Iowa — Disse ela em voz baixa.

Robbie assentiu.

— Certo — Disse igual de baixo — E se a ajudar? Você não tem meio de transporte, dinheiro nem um lugar onde viver. Eu tenho uma casa grande, quatro meninos famintos e necessito com urgência de uma governanta.

Ela abriu muito os olhos.

— Está me oferecendo trabalho?

— Sim. Quer dizer, se souber cozinhar.

Catherine assentiu e depois ficou calada, olhando para a porta e observando a seus filhos. Robbie seguiu seu olhar e viu que Gunter, sentado no chão, estava mostrando a Nora a brilhante pedrinha que sempre levava no bolso. Rick estava mostrando sua navalha a Nathan.

— É uma casa toda de homens, Catherine — Prosseguiu Robbie — Será um problema para você?

— São muito velhos para ser seus filhos — Disse ela, sem deixar de olhar para a porta. De repente voltou o olhar para ele —Quem são?

— O estado do Maine os considera garotos em acolhida — Disse, encolhendo de ombros — Mas eu prefiro pensar que são jovens que só necessitam um empurrãozinho na direção correta. Aonde se dirigia você quando estragou o carro? Tem família no Maine?

— Não. Dirigia-me ao último lugar onde pensei que me buscaria Ron.

— Buscaria-a em Pene Creek?

— Não; ele suporá que fui a uma grande cidade. Espero que justo agora esteja me buscando em Chicago.

Robbie assentiu.

— Estaria cômoda vivendo e trabalhando em uma casa só de homens? — Voltou a perguntar — Os meninos são endiabrados às vezes, mas no fundo são bons garotos.

— Tem lugar para nós três? — Perguntou ela sem responder ainda a sua pergunta — Nathan, Nora e eu teremos nosso próprio quarto?

— Há dois quartos livres — Disse ele — Ah… Me parece que é de justiça advertir que perdemos três governantas nos últimos oito meses. Tem senso de humor, Catherine?

Por fim lhe dirigiu um pequeno e vacilante sorriso.

— Os adolescentes não me dão medo.

— Mas eu sim.

— Sim.

— Sou o mais velho de quatro irmãos — Disse ele — Meus pais são donos de uma fazenda de árvores de Natal que está a uns três quilômetros daqui. Minha irmã acaba de ter uma menina e vive em Greenville, e meu irmão e minha irmã menor estão fora, na universidade. Tenho quatro tios e tias que vivem perto, e um intrometimento de primos. Não fumo nem bebo mais que uma taça de vez em quando, e não preciso intimidar a uma mulher para me sentir homem.

O sorriso dela aumentou um pouquinho.

— Está acostumado a ser o patrão que pede referências.

— Estamos em circunstâncias excepcionais. De verdade que estou desesperado por encontrar uma governanta, Catherine. — Robbie decidiu que era o momento de fechar o trato — Pagarei seiscentos dólares semanais, mais comida e alojamento para os três.

O sorriso desapareceu e em seu lugar apareceu uma expressão de incredulidade. Catherine voltou a olhar fora, aos quatro meninos que falavam com seus filhos.

— São demônios, não é? — Sussurrou.

— Em seus dias bons — Reconheceu ele com uma risadinha — Mas só necessitam orientação, essa é minha tarefa.

Acrescentou a última frase quando ela voltou a olhá-lo.

— A sua, Catherine, é mantê-los alimentados, e minha casa relativamente limpa — Disse; levantou-se devagar, mas assegurando-se de guardar as distâncias — Dou minha palavra de honra MacBain: não tem por que ter medo de mim. O que lhe parece uma semana de experiência? Se estiver incômoda ou, simplesmente, decide que por qualquer motivo não quer o trabalho, parte. Mas algo tem que ser melhor que o que tem agora.

Ela olhou a seus filhos e ficou calada um momento; depois inspirou fundo e o olhou de novo.

— Certo, senhor MacBain — Disse — Aceito sua oferta.

Robbie procurou que não visse seu alívio… Nem sua expressão de triunfo.

Antes que acabasse de alegrar-se, ela esclareceu:

— Uma semana de experiência. E além me paga em dinheiro.

Robbie decidiu que já era hora de ficar em marcha, antes que trocasse de opinião, e chamou os que estavam na porta.

— Gunter, traz para os meninos dentro para que preparem suas coisas. — Olhou a Catherine — Tudo o que não possa amarrar-se a um cavalo se recolherá depois.

— Só tenho duas malas, mas há mais coisas no carro, no outro lado da montanha.

— Iremos por seu carro quando passar a tempestade.

Nathan e Nora entraram a toda velocidade com o Gunter e correram para sua mãe. Ela se agachou e os atraiu para que a olhassem de frente.

— Vamos ficar com o senhor MacBain e com os meninos — Disse — Necessitam uma governanta.

— Vamos viver com eles? — Perguntou Nathan, lançando um indeciso olhar a Robbie; baixou a voz até convertê-la em um sussurro — Mamãe, acredito que não devemos fazê-lo.

Ela lhes deu um abraço.

— Está tudo bem — Os tranquilizou — Se nós não gostamos, iremos ao cabo de uma semana.

Robbie agarrou seu plaid MacKeage da mesa e começou a colocar sobre o plaid MacBain.

— Sua roupa estava atada à cadeira de montar — Disse Gunter enquanto saía de novo — Trouxemos o cavalo.

Apenas com um sussurro, Catherine pôs os meninos a recolher suas coisas e logo colocou sua mesa de costura na mala maior; assim que a fechou com um estalo, Rick se aproximou para levá-la até os cavalos. Em um abrir e fechar de olhos os meninos ataram tudo às cadeiras de montar; estava claro que os quatro estavam impacientes por levar a casa a sua nova governanta e instalá-la na cozinha.

Gunter passou a roupa e as botas a Robbie, deixou-o sozinho para que se vestisse e ficou a acomodá-los a todos nos cavalos. Menos de meia hora depois da chegada dos meninos, os oito desceram a montanha. Catherine ia montada atrás de Cody; Nathan, atrás de Rick e a valente Nora, pobrezinha, cavalgava em silêncio diante de Gunter.

Robbie tinha necessitado um minuto inteiro, e além disso a ajuda de um velho toco, para subir no cavalo. Sentia como se ardesse o flanco e estava fraco como um recém-nascido pela perda de sangue, mas tinha tomado seu tempo em colocar a espada sob o chão da cabana quando ninguém olhava. Disse que a recolheria mais tarde, antes de sua seguinte e emocionante aventura em nome de Daar. Provavelmente o ancião sacerdote consideraria sua viagem de volta à Escócia do século XIII um absoluto desastre, mas Robbie preferia olhar o lado bom: voltava para casa com uma nova governanta… E além disso estava vivo e disposto a enfrentar-se a outro dia.

Entretanto, sim que tinha que ir com cuidado. A última pessoa a quem podia ver naquele momento era a sua madrasta, Libby. Era médica, mas mais que isso, era curadora, e, no estado em que se encontrava, só tocando-o imediatamente saberia o que tinha ocorrido. Cinco segundos depois saberia também seu pai… E ao cabo de uma hora os cinco guerreiros das Terras Altas estariam batendo a sua porta, exigindo dar uma mão.

E isso, prometeu-se Robbie, não ocorreria.

Ele era seu guardião. Era sua responsabilidade mantê-los a salvo, felizes e vivendo ali com suas famílias durante o resto de seus dias. O fracasso nunca tinha formado parte de seu vocabulário, e não tinha a mínima intenção de familiarizar-se com ele a essas alturas.

 

Pela primeira vez no que parecia uma eternidade, Robbie despertou com o aroma do café da manhã e o som de uma mulher abaixo, na cozinha. Ficou na cama cheirando, escutando e sorrindo. Catherine Daniels levantou cedo aquela manhã, e não é que o surpreendesse. Parecia uma pessoa resolvida: estava decidida a proteger a seus filhos e agora se notava que também estava decidida a realizar seu trabalho em troca de refúgio.

Um café forte que cheirava divinamente… Bacon… Torradas… E apostava a fazenda que aquela gatinha havia tornado a assaltar o galinheiro. Robbie jogou atrás as mantas para sair da cama de um salto, mas o deteve a aguda dor do lado. Então terminou de levantar-se mais devagar, soltando palavrões, e se inclinou para examinar sua ferida.

Catherine o tinha costurado muito bem, embora tinha usado um fio de cor rosa vivo. Olhou-se o peito no espelho da cômoda, e depois passou o dedo brandamente pelo corte do ombro; Mal deixaria cicatriz quando se curasse.

Com precaução, estendeu os braços por cima da cabeça e se moveu devagar para desentorpecer-se. Aquele dia subiria outra vez a montanha até a cabana de Daar, antes que o sacerdote aparecesse por ali e afugentasse Catherine e a seus filhos.

Isso o fez pensar na Mary. Por que teria ficado atrás aquele teimoso mocho? O que esperava fazer? Tinha que voltar a procurá-la assim que melhorasse o bastante para sobreviver a outra viajem através da tempestade; só que desta vez levaria os dois plaids. Tirou da cômoda uns jeans limpos, embora enrugados, e conseguiu colocá-lo como pôde. Depois procurou uma camisa igual de enrugada e a pôs, assobiando através dos dentes ao sentir os protestos de seu flanco.

O de agachar-se para coloca as botas não valia a pena nem sequer pensá-lo, de modo que desceu com elas nas mãos.

Encontrou a mesa já posta. Além disso se notava que Catherine era clarividente, porque tinha servido o café. Fumegante e com um aroma divino, esperava-o à cabeceira da mesa. A sua nova governanta não a via por nenhum lugar.

Ouviu os passos de alguém que descia a escada; estava claro que também o tinha despertado o aroma de café e toucinho perfeitamente feitos. Gunter jogou uma olhada do canto e franziu o cenho.

— Não cozinhou você. Isto deve ser coisa da senhora.

Robbie assentiu e se sentou à mesa enquanto Gunter se servia uma xícara de café. De repente o menino se deteve, levantou a tampa da frigideira e cheirou.

— A esta não podemos perdê-la — Disse, ao tempo que ia sentar se frente a Robbie — Ontem à noite tive um bate-papo com outros enquanto desencilhávamos os cavalos; farão de tudo para mantê-la aqui.

— Então nada de içar as cintas dela ao mastro da bandeira — Sugeriu Robbie — E nada de armazenar isca de peixe vivo no frigorífico.

Gunter soltou um bufo.

— Duvido que a senhora use cintas — Disse, antes de tomar um sorvo de café.

Robbie também deu um sorvo ao café que tinha servido Catherine e se deu conta de que aquilo era mais do que tinha feito nenhuma das outras governantas. Diabos, se nenhuma se levantava tão cedo para preparar uma cafeteira!

Nesse momento Catherine saiu do quarto de baixo, onde tinha passado essa noite com seus filhos, deteve-se em metade da cozinha e sorriu, vacilante.

— Bom dia — Sussurrou; sua face ficou de um rosa aceso — Com certeza que os dois estão mortos de fome.

Enquanto falava se aproximou da boca do fogão e encheu dois pratos com toucinho, ovos e torradas.

— Bom dia — Disse Gunter quando pôs um dos pratos na frente — E obrigado.

— Obrigado — Repetiu Robbie — E bom dia.

Ela respondeu algo em um murmúrio e, para ouvir pisadas na escada, serviu três xícaras mais de café, encheu outros três pratos e foi pondo-os na mesa à medida que os meninos desciam, piscando e com a boca cheia de água.

— Ai, Senhor. Morri e estou no céu — Gemeu Cody; levou uma mão ao coração enquanto observava o café da manhã — Você quer casar-se comigo?

— Pergunta-me isso ou aos ovos? — Respondeu Catherine.

— Aos dois — Afirmou Cody, com um vacilante sorriso matinal. Então olhou ao Robbie — Diabos, cara, parece que se chocou com um trem… — Voltou um incrédulo olhar para Catherine e sua voz se transformou em um sussurro — Retiro meu pedido. Não quero me colocar com ninguém capaz de lhe fazer isso.

— Tenho-me feito isso sozinho — Disse Robbie, tocando o hematoma da face — Quando caí.

Nesse momento Peter afastou seu prato e lançou um olhar feroz a Catherine.

—Bem, senhora, não suporto os ovos mexidos — Resmungou.

Robbie foi levantar se da cadeira, na aparência para dar ao menino um chute no traseiro, mas ao ver o olhar que Catherine lançava a Peter, voltou a sentar-se. Possivelmente não devia ser tão rápido na hora de intervir, e sim limitar-se a ficar de braços cruzados, observando. Depois de tudo, talvez fosse interessante… Ou a pior ocorrência de sua vida.

— Para aqueles de vocês a quem interesse, meu nome é Catherine, embora atenderei a “senhora”, “ouça” ou “bem, você”, sempre que o tom seja amável. Agora, jovem, se me disser como você gosta dos ovos, prepararei outros.

Bom, maldição… Aquilo era o cúmulo. Se até o Peter parecia arrependido… E outros, sobressaltados.

— Eu… bem… Eu me chamo Peter. E prefiro os ovos fritos pelos dois lados, com molho de tomate — Informou em voz baixa.

Ela o premiou com um sorriso e depois olhou a outros.

— Sei que se apresentaram ontem à noite, mas esta manhã não ponho nome às faces. Eu estava… Ontem à noite foi tudo um pouquinho confuso.

— Eu sou Rick, e comerei os ovos como você prepará-los. E ele é Gunter —Acrescentou Rick, antes que Gunter pudesse abrir a boca — Mas não lhe faça nenhum caso. Não dá medo, só o parece.

— Eu me chamo Cody, e como de tudo — Lançou um olhar acusador a Robbie — Bom, quase tudo, sempre que não esteja queimada ou coberta de areia fina.

— E a mim podem chamar Catherine — Disse ela, lançando um rápido e tímido olhar a Robbie antes de olhar de novo aos meninos — Meu filho se chama Nathan e tem oito anos; e minha filha se chama Nora e tem seis.

Respirou para acalmar-se.

— Se forem tímidos com vocês, por favor, tentem ter paciência. Não estiveram com muitos desconhecidos e nunca com tantos homens.

O de homens fez que a mulher ganhasse vários pontos, observou Robbie. Assim Catherine não ia falar com ares de superioridade nem a ir com pés de chumbo estava bem. E além disso, decididamente, sabia cozinhar. Em um abrir e fechar de olhos todos os pratos estiveram limpos, as cadeiras recolhidas e as coisas do colégio reunidas a toda pressa.

Até que de repente Peter soltou um gemido e disse:

— Maldição! — Deu-se uma palmada na cabeça enquanto deixava cair a carteira — Tinha um trabalho para a senhora Blake. Vai me dar uma bronca se não o entrego hoje.

— Ah! Pois te escreverei uma nota — Disse Catherine, ao tempo que se apressava a ir a bancada e pegava uma caneta — Explicarei que passaram a noite nos resgatando.

Robbie deu um rápido sorvo ao café. Diabo, era um homem preparado: Catherine já agia mais como uma mãe que como uma governanta… Os três meninos mais jovens a olhavam com gesto incrédulo, e Gunter voltava a sorrir. E vá se a mulher não rabiscou a nota, despachou-os e desapareceu em seu quarto antes que Robbie acabasse de felicitar-se.

Sim. Estava pensando muito a sério ser ele mesmo quem lhe pedisse que se casasse com ele.

 

Em silêncio, com cuidado para não despertar a seus esgotados filhos, Catherine desfez a mala e colocou seus escassos pertences na enorme cômoda e o enorme roupeiro.

Disse-se que o café da manhã tinha ido bem. As tinha arrumado para atender a cinco varões sem ter nem um ataque de pânico, e depois tinha tirado quatro da casa sem incidentes. Esperava que o quinto, seu novo chefe, não demorasse para ir ao povoado para ver um médico.

Então ela começaria a respirar outra vez.

Tinha perdido a cabeça a noite anterior ao aceitar ir ali para ser sua governanta? Não: estava desesperada e sabia que não podia seguir fugindo. Tinha perdido cinco quilos nos últimos dois meses e meio, e seus filhos tinham perdido a alegria do olhar.

Em Pine Creek tinham chegado ao final…

E além disso, seiscentos dólares semanais, mais alojamento e comida, não eram para desprezá-los. Pelo visto, Robbie MacBain estava tão desesperado como ela.

Mas, Senhor, tinha que ser tão bonito? Não só era alto; depois de lavá-lo e costurar as feridas, Catherine tinha tido muito tempo para dar-se conta do viril, e rude, que era. E além disso tinha os olhos cinza mais fascinantes que tinha visto. Mas mais que seu atrativo físico, aquele homem irradiava um aura que jorrava testosterona. Era o modo de conduzir-se…

Inclusive o modo de olhar. Cravava o olhar diretamente na alma quando dirigia para a pessoa aqueles preciosos olhos cinza. Via-o quando olhava a algum de seus meninos e o sentia quando a olhava a ela.

Robbie MacBain era dez vezes mais homem que Ron Daniels; dez vezes maior e mais forte e mais bonito… E dez vezes mais perigoso em potência. A noite anterior tinha devotado asilo e além tinha dado sua palavra de que estaria segura em sua casa… Ai, adoraria acreditá-lo. Catherine suspirou, voltou a sair à cozinha e baixou a vista para os pratos vazios, o molho de tomate derramado e a gema de ovo que se secava na toalha; depois olhou a seu redor.

E estremeceu.

Pela manhã, antes que ninguém se levantasse, tinha jogado um olhar furtivo à sala, mas aquela habitação não tinha melhor aspecto. Robbie, que entrava na cozinha do exterior tirando-se a chutes a neve das botas, deteve-se o vê-la.

— Temos muita neve? — Perguntou ela, ao tempo que recordava que devia respirar e se obrigava a relaxar-se.

— Só uns doze centímetros. — Robbie assinalou para o salão — Sua mochila está junto à lareira, e tudo continua dentro. Ao melhor Nathan e Nora querem aproveitar os gorros e as luvas e jogar na neve hoje; provavelmente amanhã já tenha desaparecido.

— Obrigada. Vai ao povoado a ver um médico?

— Não. Vou ver o pai Daar, que vive montanha acima.

— Mas não pode fazer isso. — Catherine avançou para ele sem dar-se conta—. Devem lhe jogar uma olhada. Faz vinte e quatro horas você estava quase morto.

Ele elevou as mãos, detendo-a.

— Estou bem, Cat; ainda fraco e um pouco dolorido, mas vou melhorando sem problemas. — Dedicou um torcido sorriso — Você trabalha bem.

Catherine se deu conta de que acabava de repreender aquele homem e imediatamente recuou.

Robbie avançou um passo.

— Quanto a meu pequeno acidente — Disse — Preferiria que ninguém soubesse que saí ferido. Se alguém vier hoje, em particular meu pai, apresente-se como minha nova governanta, mas vamos manter entre você e eu como nos conhecemos, de acordo? Não quero preocupar a minha família.

Sem saber o que dizer, ela se limitou a assentir com a cabeça.

— É provável que o telefone soe constantemente — Prosseguiu ele — Dirijo uma grande exploração florestal, e as pessoas não param de ligar para alguma coisa. Ou responda e tome o recado, ou deixe que o faça a secretária eletrônica.

— Certo — Disse ela; deu a volta e recolheu vários pratos vazios da mesa.

— Quanto ao pai Daar — Disse Robbie, fazendo que se voltasse outra vez — É um velho sacerdote que vive na montanha. É provável que o conheça logo, já que gosta de convidar-se a comer. Não se surpreenda se aparecer.

— Certo.

Ele se voltou para a porta, mas se deteve olhá-la de novo.

— Tem-no feito bem esta manhã, Cat; tanto o café da manhã como com o Peter. Os meninos têm que saber que é capaz de responder com a mesma moeda. Não demorarão para respeitá-la, e então tem a vitória assegurada.

— Chamo-me Catherine.

Ele a olhou fixamente, sorriu de repente e, devagar, meneou a cabeça.

— Nem por indício — Sussurrou — É você uma formosa, fera e ágil gata montanhesa, de modo que já pode acostumar-se ao nome.

Catherine não tinha nem ideia de como reagir diante aquilo, assim que se deu a volta para esconder o aceso rubor de sua cara e começou a encher de água a pia onde tinha posto os pratos.

— Catherine — Disse ele, fazendo que o olhasse de novo — Tudo o que disse ontem à noite ia a sério. Não tem nada que temer de mim.

Ela tampouco soube como reagir diante aquilo.

E nesse momento ele deve ter pensando que as bochechas estavam a ponto de incendiar-se de vergonha, porque ao fim saiu pela porta e a fechou com suavidade atrás de si.

Catherine cravou o olhar no lugar onde tinha estado Robbie.

Uma gata montanhesa…? Cat, não Catherine… Formosa, havia dito; fera… Ágil… Sorriu de repente e decidiu que a comparação com uma gata era um elogio. Além disso concedia o de ágil e, certamente, queria ser fera. Mas, formosa? Soltou um bufo; estava mais ou menos tão bonita como um pedaço de trapo que tivessem deixado um mês à intempérie. Aquela parte só a tinha acrescentado para apontar um tanto.

Devia estar muito, mas que muito desesperado por ter uma governanta.

 

Robbie parou o cavalo diante da cabana de Daar e cravou o olhar no velho sacerdote que estava no alpendre, evidentemente esperando-o.

— O que foi do trato de que acudiria você a meu pai se eu não retornava para o amanhecer?

— Mas sim que voltou — Disse Daar — Ouvi a tempestade e te busquei por toda parte, até que fui a por seus meninos em busca de ajuda.

— Não consegui voltar para o lugar onde tinha aterrissado.

Daar assentiu.

— Isso temi. Não tem que preocupar-se — Disse — Embora esteja a mil quilômetros de distância, sempre retornará a TarStone: é a montanha o que tira de você. Bom, vai ficar aí todo o dia me olhando com o cenho franzido, ou virá a se sentar para me contar o que aconteceu?

Robbie ficou justo onde estava.

— Mary continua ali.

— Abandonou-a? — Perguntou Daar, afastando-se do corrimão.

— Ela me abandonou . Fez que viesse a tempestade e depois se afastou voando antes que pudesse agarrá-la.

— Mas por quê?

Robbie meneou a cabeça.

— Não sei o que estava pensando. A energia deve ter afetado nossa comunicação.

— Então deve retornar. Esta noite.

— Não. — Robbie voltou a menear a cabeça — Estou muito fraco para sobreviver à viagem. Necessito uns quantos dias para me curar.

— Se curar do quê?

— Quatro guerreiros MacBain me fizeram uma emboscada na terceira noite.

Daar abriu muito os olhos e de repente riu a gargalhadas.

— A esses bastardos custa perder os velhos costumes — Disse, mas em seguida voltou a ficar sério — De modo que a guerra que começou seu pai segue ainda?

— Isso parecia. Ouça, pai, não há nenhuma árvore, nem tampouco nenhum Cùram de Gairn.

Daar golpeou o alpendre com a bengala.

— Está ali! É que não procurou o bastante. Disse que Cùram de Gairn era um ladino bastardo.

— Revistei o bosque durante três dias, e não há nenhum grande carvalho com marcas.

Daar coçou a barba com o punho da bengala.

— Ocultou-o — Sussurrou — Sabe que necessito uma parte da raiz e o tem envolto em um feitiço.

— Mas sabia que eu ia? E não pôde você incomodar-se em me dizer isso.

Daar levantou a mão.

— Não sabe nada de você, MacBain. Provavelmente acreditou que mandaria de volta um dos velhos guerreiros, e o mais provável é que esperasse Greylen. —Recuou até o corrimão — Mas se descobrir que você é meu cavalheiro e que também é um guardião, o jogo muda; em realidade não pode te machucar: está proibido.

— Pois pelo visto meus antepassados não sabem — Disse Robbie com ironia — Não tiveram nenhum escrúpulo em tentar me matar.

— Puf — Balbuciou Daar, agitando a mão em um gesto de rejeição — Esses MacBain sem lei não matariam um porco ferido nem que os fora a vida nisso.

Robbie inclinou a cabeça.

— Quer me explicar isso? — Perguntou — Meu pai é um grande guerreiro… E além disso é um MacBain.

Daar cravou a vista nele uns segundos, e Robbie quase sentiu que o druida tratava de decidir o que devia dizer. Por fim o velho sacerdote soltou um suspiro, cruzou as mãos sobre o punho de sua bengala e se inclinou para frente.

— Acredito que tem que saber a que enfrenta. Mas tem que me prometer não dizer uma palavra do que estou a ponto de te contar, Robbie — Disse em voz baixa — Poderia provocar um tremendo transtorno.

Inclinou-se para aproximar-se mais e baixou a voz mais ainda.

— A mãe de Greylen, Judy MacKinnon, tinha uma gêmea que se chamava Blair.

— Assim se chamava minha avó. Blair MacKinnon se casou com meu avô, Angus MacBain, e o primeiro filho que tiveram foi Michael.

— Sim — Disse Daar, assentindo — Blair é sua avó, mas você não tem laços de sangue com Angus. Blair contraiu matrimônio levando já ao Michael no ventre e o fez passar por filho de Angus.

Robbie meneou a cabeça.

— Angus saberia que não era o primeiro homem com o que estava e a teria rejeitado na noite de núpcias.

Daar assentiu com um movimento de cabeça.

— Sim, mas as mulheres levam enganando os homens sobre essas coisas desde o começo dos tempos. — Encolheu os ombros — A sobrevivência as obriga, Robbie. Deve recordar que era uma época em que semelhante coisa importavam.

— Então quem é meu avô de verdade?

— Duncan MacKeage.

— Como? Mas se estava casado com Judy MacKinnon… Está dizendo que engendrou meninos com as duas mulheres? Com irmãs?

Daar se inclinou sobre os braços, que tinha cruzados no corrimão.

— Judy morreu quando Greylen tinha menos de um ano, e Blair foi à fortaleza MacKeage para cuidar de Duncan e do filho de sua irmã morta. Mas já estava prometida com Angus MacBain por contrato, e ficou com os MacKeage só um ano até que por fim cumpriu com seu dever e se casou com Angus.

— Mas você diz que foi a Angus grávida?

— Sim. Judy e Blair eram gêmeas, e ao Duncan pareceu que ia perder a sua jovem e formosa esposa outra vez. A noite antes que Blair tivesse que partir, Duncan bebeu muito e acabou seduzindo-a. A manhã seguinte foi algo espantoso de presenciar — Prosseguiu Daar, com o olhar perdido no bosque — Duncan estava muito furioso, não sei se por culpa ou por desejo. Inclusive ameaçou indo ao pai de Blair e reclamá-la para si.

— Então por que não o fez?

Daar se endireitou e voltou a concentrar-se no Robbie.

— Se Duncan tivesse ficado com ele, teria provocado uma guerra entre os três clãs. De modo que eu o convenci para que deixasse partir a Blair.

Robbie inclinou a cabeça.

— Você tinha outro motivo para deter as bodas. Qual era?

A face do velho sacerdote se escureceu.

— Sim — Sussurrou — Sim que o tinha. Os gêmeos não eram bem recebidos naquela época, Robbie, e pelo geral usavam magia negra para matar a um ou aos dois. Mas a mãe de Judy e de Blair se negou a deixar que isso ocorresse.

— As mães não tinham voz nem voto lá por então — Fez notar Robbie — E menos se um marido pensava de forma diferente.

— Sim, mas é que, embora eram idênticas de verdade, entre elas havia uma diminuta diferença: Blair MacKinnon tinha seis dedos em cada pé.

Robbie ficou absolutamente quieto.

Daar assentiu.

— Por isso você e Michael têm doze dedos nos pés: são um presente de sua avó e o único motivo pelo que você nasceu. E é que Cara MacKinnon convenceu a seu marido de que perdoasse a suas filhas afirmando que, em realidade, não eram idênticas.

— E nossos olhos cinza?

Daar encolheu os ombros.

— As gêmeas tinham os olhos cinza.

— Então o que está dizendo, pai? Que meu pai e Greylen são irmãos?

— Sim; meio irmãos, engendrados pelo Duncan de irmãs as gêmeas.

Robbie se removeu na cadeira de montar.

— Assim em realidade Greylen MacKeage sim que é meu tio… — Sussurrou, cravando a vista em Daar — Entretanto, isso continua sem trocar nada. Quem se deitasse com quem faz oito séculos não tem nada que ver com o Greylen e meu pai agora. Onde está o perigo em que saibam que são irmãos?

— Em Cùram — Disse Daar, lacônico — Se chegasse a descobrir que Judy MacKinnon tinha uma irmã gêmea estaria aqui antes que o trovão tivesse acabado de sacudir a terra.

— Mas por quê?

— Pensa, Robbie. Dois descendentes de irmãs idênticas e engendrados pelo Duncan: Greylen e Michael. E além disso, claro está, sua descendência: suas sete primas, seu irmão e suas duas irmãs. Winter MacKeage já foi prometida como minha sucessora, e só um druida pode proceder de Judy MacKinnon. Mas ainda ficam os filhos do Michael.

— Mas meu pai não teve sete filhas — Assinalou Robbie — Só teve duas.

— Sim, mas a sequência de sete é minha série. A série de Cùram não é tão restringida.

Robbie esfregou a face com as duas mãos, enquanto pensava. De repente se deteve e elevou o olhar.

— Está dizendo que uma das filhas de Michael MacBain, uma de minhas irmãs, poderia ser a herdeira de Cùram?

Antes que terminasse, Daar já estava meneando a cabeça.

— Não só suas irmãs — Disse em voz baixa — Poderia ser seu irmão. Ou você.

— Então, pai, reze para que eu detenha esta insensatez!

— Não, Robbie — Sussurrou Daar — Reza para que Cùram nunca descubra a verdade sobre seu pai. Enfrentar um druida tão poderoso como Cùram te destruiria.

— Melhor isso que transformar-se em um deles!

— Desculpa — Daar endireitou os ombros e inchou o peito — Ser mago é um nobre ofício. Sua prima Winter está bendita, não maldita.

— Eu não quero nada da magia, pai. Só quero proteger a minha família.

— Sim, já sei, Robbie. E a melhor maneira é manter nosso segredo e me trazer a raiz do carvalho de Cùram.

— Não o encontrei — Repetiu Robbie — Nem a Cùram. Ninguém do clã MacKeage com os que falei sabiam nada de uma árvore especial nem do druida.

— Não chegou a perguntar, não é?

— Claro que não!

Daar assentiu.

— Bom, muito bem.

Coçou a barba de novo, com o olhar fixo na lonjura.

—Talvez Mary descubra algo — Aventurou; olhou a Robbie — Talvez por isso por isso tenha ficado… Volta a se reunir comigo na cúpula ao entardecer dentro de três dias e tentaremos outra vez.

Robbie começava a dar a volta ao cavalo para partir quando o velho sacerdote acrescentou:

— Ah, e uma coisa mais: não se aproxime de sua madrasta. Só com que toque, Libby saberá exatamente como saiu ferido.

— Já pensei nisso — Disse Robbie — E agora eu também tenho uma advertência para você: temos uma governanta nova, assim vá com cuidado com ela e não a afugente.

Daar se animou.

— A mulher da colina de West Shoulder?

— Sim — Disse Robbie, assentindo — Se não fosse por ela, agora eu estaria morto e você estaria contando sua patética história a meus parentes.

— Serei muito cortês quando for visitá-la assegurou Daar — Sabe cozinhar?

— Acredito que Cat sabe fazer tudo o que se propõe.

— Cat? — Repetiu Daar — Que espécie de nome é esse?

— É como a chamo eu — Disse Robbie, ao tempo que apartava o cavalo.

— MacBain! — Espetou-lhe Daar zangado, detendo-o uma vez mais.

— O quê?

— Que não se tente por essa mulher — Advertiu — Me dá igual a que te salvasse a vida, mas primeiro está… Nosso problema.

— Eu tenho clara minha ordem de prioridades; você limite-se a assegurar-se de ter também — Disse Robbie; voltou a adiantar o cavalo até o alpendre, fazendo recuar o mago — Porque se descobrir que está me manipulando para conseguir seu livro de feitiços, ou se alguma vez descubro que mentiu sobre algo disto, não haverá lugar, nem época, onde esteja a salvo.

Daar soltou um grito afogado e deu outro passo atrás até pegar-se à parede da cabana.

— Onde descobriu? — Sussurrou, ao tempo que meneava a cabeça — Foi a tempestade, não é? Descobriu todos seus poderes de guardião enquanto estava na tempestade.

— Sim — Resmungou Robbie, assentindo — Descobri tudo.

Dito isto, dirigiu o cavalo montanha abaixo e decidiu concentrar-se em coisas mais agradáveis.

Perguntou-se o que estaria preparando Cat para o jantar.

 

O primeiro que fez Robbie ao retornar à casa foi se deter tirar as botas no pé da porta. O segundo, cruzar nas pontas dos pés a limpíssima cozinha até o quarto e ver que sua nova governanta estava profundamente adormecida, abraçando em um gesto protetor seus filhos. O terceiro que fez foi abrir a porta do forno e passar todo um minuto aspirando o aroma do par de frangos recheados que estavam assando-se.

Depois se serviu uma fumegante xícara do chocolate quente que encontrou na boca do fogão e entrou no imaculado salão.

E então ficou furioso.

Sim que a senhora e seus filhos deviam estar dormindo como troncos: tinham limpado o piso de baixo até o último canto, sem deixar viva nenhuma bolinha de pó. A condenada mulher devia ter se matado trabalhando, e a seus filhos também. E isso o enfurecia. De modo que, em silêncio e a ponto de explodir de ira, Robbie se sentou no salão e escutou as portadas de caminhonete e quatro pares de botas que golpeavam no alpendre.

— Ai, merda, cara! Ouça, não empurre!

— Pois saia do meio. O que faz aí na porta? Vamos!

— É azul…

— A face é o que vai ter morada e azul se não sair do meio.

— Não entre aí! Não o vê, sou cretino? O chão da cozinha está limpo. Tire as botas.

— Huy, merda! Se for azul…

Produziu-se um repentino silêncio e, apesar de sua cólera, Robbie teve que sorrir. Quase imaginava as faces de incredulidade que havia à porta da cozinha. Diabos, se até ele tinha esquecido que o chão da cozinha era azul…

— Nossa, olhe como está a cozinha. O que é esse aroma?

— Ai, Meu Deus… É frango assado. Sei.

— Não se ouve nenhuma mosca dentro. acham que a menina ainda dorme a sesta?

— É pequena e, além disso, uma garota, não? De modo que todo mundo calado. As meninas precisam dormir.

Alguém soltou um bufo. Quatro pares de botas caíram sobre o batente.

— Shhhhh!

— Diabos, se controle, caras. Vão despertar às mulheres.

— Mulheres? O que te faz pensar que Catherine está dormindo?

— Não dormiria você, imbecil, se tivesse limpado esta cozinha?

E a coisa seguiu e seguiu, em sussurros, até que os quatro meninos assimilaram o que viam. Por fim todos entraram nas pontas dos pés no salão, dando sorvos a xícaras de chocolate, e sorriram ao Robbie.

— Nossa, cara. Viu essa sala? — Perguntou Rick.

— Sim — Se apressou a responder Robbie em voz baixa; sua cólera voltava a aparecer — E não estou contente.

— E por que diabos não? A casa nunca teve melhor aspecto — Disse Peter.

— Não devia ter chegado a este estado, para começar — Fez notar Robbie — Catherine Daniels não é nossa escrava. Quero que de agora em diante todos a ajudemos: de modo que todo mundo se ordena o seu e todo mundo ajuda com o esfregão, o aspirador e a limpeza.

Todo mundo resmungou.

— E além se forem só um pouco inteligentes, a esta não a espantarão. Serão simpáticos, corteses e gentis com ela e com seus filhos, e assim ao menos todos seguiremos comendo bem. Ou é que vocês gostam da vida de solteiros? — Perguntou.

Todo mundo ouviu o grunhido que havia em sua voz e assentiu com a cabeça.

— Trataremos à senhora como a uma rainha e além disso seremos simpáticos com seus filhos, verdade? — Prometeu Rick, lançando um olhar feroz a outros.

— Não parece tão mal — Admitiu Cody — Não como as outras. Diabos, a segunda senhora nem sequer sabia aguentar uma brincadeira.

— Custa trabalho rir quando sua cinta está ondeando na haste da bandeira — Disse Rick em tom acusador, jogando um olhar assassino a Peter e a Cody.

— Com certeza que a roupa interior de Catherine é muitíssimo mais bonita.

— Deixem em paz à senhora — Disse Gunter em voz baixa.

Peter se apressou a assentir, enquanto subia as mãos em gesto defensivo.

— Catherine e seus filhos têm que estar aqui — Prosseguiu Gunter, olhando a cada um dos meninos — Estavam vivendo naquela velha cabana, Por Deus, e provavelmente necessitam esta casa mais que nós. E tomem cuidado com a menina, Nora. Algum de vocês se deu conta de que apenas nos falou? E de que só fala em sussurros a sua mãe e a seu irmão? Tratem-na bem.

Todos voltaram a assentir, e Robbie ocultou seu sorriso. Nossa, diabos: era a primeira vez que via aqueles sujeitos ficar de acordo em algo. Tinha-lhe caído um milagre do céu ou o quê?

Nesse momento Catherine entrou no salão, piscando de sono.

— Ah, olá… Já retornaram… — Disse entre dentes.

Robbie ficou sem fôlego: parecia um anjo. Tinha o cabelo despenteado e as bochechas ruborizadas. E seus olhos eram… Bom, tinham um olhar sensual. Robbie sentiu que se encolhiam as tripas e que sua cólera se convertia em desejo com a rapidez de uma explosão.

Diabos. Se Catherine Daniels chegasse a cheirar no que estava pensando, correria dando gritos outra vez montanha acima até chegar a seu esconderijo… E uma vez mais ele seria incapaz de apanhá-la.

— Eu… Bem… O jantar estará pronto dentro de duas horas — Sussurrou ela; suas bochechas se ruborizaram diante o manifesto olhar boquiaberto dos meninos.

— Mudei de opinião — Sussurrou Cody — Me casarei com você.

O rubor de Catherine se acentuou.

Robbie pensou em intervir, mas se adiantou Gunter.

— Não faça caso a esse cretino, Catherine; o jovem pensa com as papilas gustativas, e o frango é o que mais gosta. E além disso a casa tem um aspecto estupendo. A verdade é que não sabíamos que o chão era azul — Acrescentou para aliviar o ambiente.

Ela dirigiu um sorriso agradecido.

— Eu me surpreendi tanto como vocês…

Mas então ficou séria e deu um olhar vacilante a cada um dos meninos.

— Hoje não fui ao andar de cima — Reconheceu; como estava olhando-os não viu o olhar feroz de Robbie para ouvir sua confissão — Não quis entrar nos quartos sem permissão, assim não peguei a roupa para lavar nem tenho feito as camas. Queria falar com cada um primeiro.

— Respeitou nossa intimidade? — Perguntou Rick.

Catherine assentiu.

— Se tiverem roupa que terá que lavar e não querem que entre nos quartos, deixem no corredor sem mais. Mas se desejarem que troque a roupa de cama, que guarde a roupa limpa, passe a aspirador e limpe o pó, não têm mais que me indicar o que é proibido e que não.

— Tudo está proibido — Disse Robbie.

Com os olhos muito abertos e expressão desconcertada, Catherine girou sobre seus calcanhares.

— O que quer dizer? Só tento fazer meu trabalho.

Robbie ficou de pé.

Ela deu um passo atrás.

— Os meninos ajudarão nas tarefas da casa. Lavarão sua roupa, farão suas camas e passarão o aspirador. Serão responsáveis por manter seus quartos limpos e ajudarão com os pratos do jantar.

Durante todo seu discurso ela foi elevando o queixo, e ao final ficou olhando-o com o cenho franzido. Mas assim que se deu conta do que fazia, e de quão desafiante parecia seu gesto, Robbie viu que recolhia velas imediatamente. Em seguida advertiu que ela voltava a se dar conta do que fazia, porque ficou direita e subiu o queixo… embora só um pouquinho.

— Então o que é o que tenho que fazer?

— Cozinhar; cuidar de seus filhos; dar passeios… — Robbie sorriu — E ir às compras. Encarregar-se-á de comprar a comida e todo o resto que necessitemos.

Sim, essa era uma boa ideia. Ele detestava ir às compras.

— Ocupará-se disso. Às mulheres adoram comprar.

Se não desconfiasse tanto dele, Robbie teria jurado que Cat estava a ponto de dar um chute no chão de frustração.

— Mas se não entendermos a máquina de lavar roupa… — Disse Peter — Está possuída pelos demônios…

Provavelmente antes de dizer algo do que tivesse que arrepender-se, Catherine afastou o olhar de Robbie e se apressou a responder:

— Eu os ensinarei. — Voltou-se para Robbie e estremeceu — Mas os banheiros… Dos banheiros quero me encarregar eu.

— Por que ia oferecer alguém para isso? — Perguntou Cody.

— Porque tenho mania com os banheiros limpos. E além disso, em certo modo, manter a higiene dos banheiros é toda uma arte.

Dito isto, voltou a olhar para Robbie; cruzou os braços, elevou o queixo tudo o que se atreveu e esperou.

Robbie assentiu com um brusco movimento de cabeça e depois a deixou no salão com quatro meninos incrédulos que a olhavam de cima a baixo.

Se a senhora tinha mania com os banheiros, quem eram eles para discutir?

Era sábado pela manhã, o segundo dia de seu novo trabalho à frente da casa, e Catherine estava no galinheiro com seus filhos. Os quatro meninos estavam dentro, limpando seus quartos e tentando dominar a arte de passar o aspirador.

Seu chefe estava na enorme garagem com vários homens de sua equipe de trabalho florestal, inspecionando a colheitadeira que tinham levado em um caminhão a última hora da noite anterior; a gigantesca máquina estava avariada.

Catherine tinha descoberto que era uma das três que possuía Robbie, e que deixava a vários de seus homens inativos até que a arrumassem. Também tinha descoberto que os quatro meninos trabalhavam na exploração florestal ao menos dez horas à semana, realizando trabalhos diversos. Peter, que só tinha quinze anos, era responsável por tomar nota dos dados de manutenção de toda a maquinaria.

Cody e Rick se encarregavam de parte da manutenção: trocavam óleo e filtros de ar e mantinham a maquinaria limpa.

Quanto a Gunter, chegava a dirigir algumas máquinas e frequentemente trabalhava com os mesmos lenhadores.

Robbie havia dito que queria lhes dar um empurrãozinho na direção correta, e pelo visto sua exploração florestal era o meio para esse fim. Catherine decidiu que tinha que admirar a quem assumia a tarefa de guiar a quatro meninos rebeldes até fazê-los homens.

Em realidade havia muitas coisas que estava começando a admirar em Robbie MacBain. Aquele homem parecia ter a paciência e o caráter de um santo. A noite anterior, na mesa do jantar e sem mostrar-se acusador nem condescendente, havia dito a Cody que tinha que passar o domingo limpando a arrastadora do John Mead; algo que, conforme tinha informado a Catherine, era uma máquina grande que tirava rastros as árvores do bosque.

Pelo visto, Cody e uns quantos amigos seus tinham disparado com algo chamado escopeta de batatas e a tinham manchado de polpa de batata. Catherine imaginou que limpá-la seria um trabalho desagradável, tendo em conta que as batatas tinham tido quatro dias para secar-se.

Cody aceitou o castigo bastante bem. Certamente Nathan ficou impressionado, tanto com a escopeta de batatas como com a promessa de Cody de ensinar a dispará-la. O primeiro instinto de Catherine foi proibir Nathan que se aproximasse de algo que se chamasse “escopeta”, mas Robbie interpretou sua reação e falou antes que ela pudesse fazê-lo, assegurando que uma escopeta de batatas era justo o que um menino de oito anos devia provar.

E, por algum motivo que não acabava de compreender, Catherine se surpreendeu confiando no critério de Robbie quando se tratava de dirigir a jovens varões.

Catherine voltou a concentrar-se no que estava fazendo e animou a Nathan e a Nora a que entrassem mais no galinheiro.

— Não façam movimentos bruscos e falem em voz baixa quando estiverem trabalhando aqui dentro — Disse a seus atônitos filhos, ao mesmo tempo que separava Nora da perna — Devem se assegurar de que tenham sempre água limpa e muita comida.

Deu-lhes ânimos com um sorriso.

— E como prêmio, estas damas nos darão muitos ovos.

— Mordem? — Sussurrou Nathan.

— Não, mas talvez tentem te bicar. As ignore, e o deixarão tranquilo.

— Zangarão- se conosco por roubar os ovos? — Perguntou Nora, voltando a agarrar-se à perna de Catherine — Não são os ovos seus bebês?

— Não, céu. Aqui não há nenhum galo, de modo que os ovos não se convertem em pintinhos. E às galinhas não importará que os agarremos.

— Temos que fazer isto? — Perguntou Nathan com um gemido.

— Sim. Devem ter tarefas próprias. Agora vivemos aqui, de modo que todos temos que pôr nossa parte. Todo mundo trabalha.

— Eu fiz nossa cama esta manhã — Alardeou Nora.

“E jamais tinha visto uma cama mais lamentável”, pensou Catherine.

— E se saiu estupendamente. Mas tem que me soltar a perna, céu — Disse, separando-a outra vez — Veem ver os ninhos: aqui é onde encontrará os ovos. Seu trabalho será trazer a cesta todas as tardes e recolhê-los.

Voltou-se para seu filho mas teve que puxá-lo outra vez para dentro do galinheiro, porque, pouco a pouco e muito devagar, ia saindo.

— Nathan: você mantém cheios o cubo da água e o manjedoura. E quando o trigo vá acabando, diga ao senhor MacBain, e ele comprará mais.

Nathan abriu os olhos como pratos.

— Não posso dizer isso a você, e depois você o diz ao senhor MacBain?

— Não — Disse Catherine com firmeza; partiu o coração ao ver sua pálida face — É parte de seu trabalho. O senhor MacBain é o chefe e todo mundo vai a ele quando necessita algo.

— Mas é grande… — Sussurrou Nathan.

— Sim é — Concordou ela — Quase todos os homens o são. Gunter é grande; Cody, Peter e Rick são grandes… E quando você crescer, Nathan, será grande também.

Catherine se sentou em cócoras e olhou a seu filho diretamente nos olhos; depois puxou Nora para aproximá-la mais.

— Sabem que não ficaria aqui se não fosse bom para nós. Tentem considerar o senhor MacBain e aos meninos como protetores… Como anjos da guarda.

— Eu gosto de Gunter — Confessou Nora timidamente — Foi amável comigo a outra noite, quando me dava medo o cavalo.

— Também eu gosto de Gunter — Disse Catherine, lhe dando um empurrão.

Sim; Gunter, o jovem da voz suave, pôs Nora no colo e a tinha envolvido no jaquetão durante o passeio montanha abaixo, fazia duas noites.

— Mami, olhe! Já há ovos! — Disse nesse momento Nora, gritando… O qual provocou que várias aterrorizadas galinhas batessem as asas como loucas.

E isso provocou, por fim, que Nathan saísse como um raio pela porta… Para se chocar com as pernas de um alto e masculino corpo.

— Se… Senhor MacBain…

— Bom dia, Nathan. Tomando lições de sua mamãe sobre como assaltar galinheiros?

— Eu… Nós… Eu só ia trazer água às galinhas, senhor.

— Talvez deveria levar o cubo.

Embora com a face vermelha, Nathan voltou a aventurar-se como um valente no galinheiro e pegou o cubo da água. Depois, sem levantar a cabeça, apressou-se a rodear Robbie e correu para a casa.

— Estou recolhendo ovos — Interveio Nora com voz fina, sentindo-se orgulhosa de si mesma e de seus dois prêmios ovalados; também se sentia segura atrás das pernas de sua mãe — É meu novo trabalho.

Com um indulgente sorriso, Robbie saudou a menina com uma inclinação de cabeça e depois voltou o olhar, curioso e sorridente, para Catherine.

— Quero que meus filhos tenham suas próprias tarefas — Disse ela, enquanto sua face avermelhava também — E as galinhas são um bom lugar para começar. Pensei que você não importaria.

Robbie assentiu com aspecto de não acabar de decidir se atreveria a rir ou não… O qual fez que o calor subisse outro grau nas bochechas de Catherine.

— Parece bem?

— Você é a mãe; se quer atribuir tarefas, é obvio — Inclinou a cabeça — Se sente com ânimos para uma excursão ao povoado?

— Para ir às compras? — Perguntou ela — Isso que gosta tanto às mulheres?

Pelo menos Robbie MacBain teve o a presença de levar um susto.

— Acredito que foi um comentário bastante sexista, não? Mas a verdade é que detesto fazer compras — Confessou a modo de desculpa. Ficou direito e se separou da porta para deixá-la sair, junto com Nora, que levava os ovos pegos ao peito, e depois seguiu caminhando junto a elas — Tenho que ir recolher uma bomba para um poço. Levo você no supermercado e a recolho depois quando terminar. Tudo bem?

— Me deixe tão somente preparar Nathan e a Nora — Aceitou ela.

Enquanto falava se apressou a afastar-se dele com a esperança de que isso ajudasse a respirar normalmente de novo. Santo Deus, sim que era grande aquele homem.

— Bem… Quanto as crianças… Estaria disposta a deixá-los aqui? — Perguntou ele.

Catherine girou sobre seus calcanhares e o olhou fixamente; depois mordeu o lábio e refletiu. Não queria fazê-lo, mas o certo é que ela e seus filhos levavam dois meses e meio sem deixar nem sol nem a sombra. Nathan e Nora foram convertendo-se depressa em verdadeiros mariscos… Por fim, assentiu.

— Estarão muito bem aqui, Cat. Gunter e Rick os cuidarão; estarão seguros.

Como não tinha nada mais que dizer, Catherine assentiu de novo. Agarrou pelo ombro Nora e guiou à silenciosa menina de volta à casa para guardar os ovos. Depois teria que começar a soltar aqueles mariscos nas que se estavam convertendo seus filhos. A eles não ia gostar da ideia, mas ali estavam mais seguros que na montanha quando ia procurar comida. Sobreviveriam.

E esperava que ela também.

 

Camisinhas?

Alguém tinha escrito “camisinhas” na lista, bem debaixo do pedido de um barbeador elétrico de três lâminas. Camisinhas; nada mais.

Ao lado não havia nada… nem de que espécie nem quantos.

A Catherine ardia a face sob a luz fluorescente do supermercado. O carrinho já estava cheio de creme de barbear, barbeadores elétricos, desodorante e medicamento para o pé de atleta. Agora, pelo visto, também tinha que comprar camisinhas.

Na lista havia várias letras diferentes; notava-se que as tinham escrito vários jovens necessitados. Assim, quem necessitava camisinhas? Também tinha visto que Robbie contribuía à lista. Esperava aquele homem que a governanta comprasse seu material sexual? E quantos? Três? Uma dúzia? Doze dúzias?

Sem tirar olho do carrinho, e enquanto obtinha a base de força de vontade que refrescasse a face, Catherine se dirigiu para o corredor onde estavam os artigos de higiene íntima. Encontrou o que procurava justo ao lado do irrigador vaginal e os absorventes. Bom, infernos. Era uma mulher adulta de vinte e nove anos: faria-o. Só desejava saber a quem os comprava. Tinha namorada o Robbie? Em seguida soltou um bufido: claro que sim.

Era bonito, não?

Todos os homens bonitos têm namorada.

Acreditava que Catherine seria uma delas?

Não o veriam seus olhos. Tinha renunciado aos homens três anos atrás. Por então estava no hospital, mas ainda tinha suficiente sentido comum para fazer uma solene promessa contra toda a população masculina adulta.

Depois de olhar a um lado e a outro do corredor, Catherine olhou por fim outra vez ao expositor e começou a ler. Senhor, o que sortido: lisos, dourados, estriados, de diversos tamanhos… Vá, homem, alguns inclusive brilhavam na escuridão! Voltou a olhar a um lado e a outro do corredor, e por fim pegou um pacote de cada um. Depois sorriu, agarrou dois pacotes dos que brilhavam na escuridão e pensou que adoraria espiar por um buraquinho quando a pessoa que pedia camisinhas reivindicasse suas necessidades.

Depois de reordenar depressa o carrinho para ocultar suas compras, dirigiu-se à parte frente da loja, decidida a passar pela caixa sem ruborizar-se até parecer que se queimou com o sol.

À medida que as muitas e diferentes latas de creme de barbear foram descendo pela fita transportadora, seguidas pelos muitos e diferentes desodorantes, e seguidos estes pelas camisinhas, a cada compra a senhora da caixa abria mais os olhos. Por fim as camisinhas a fizeram levantar a vista e elevar uma sobrancelha.

— Temos festa do pijamas?

Cat levantou o queixo.

— Quer que a convidemos?

A mulher com pinta de avó fez um gesto de desprezo e voltou a marcar artigos… Até que o Suv parou diante da loja, com a ponta bem visível. Então foi quando a mulher olhou de Catherine ao Suv e depois outra vez a Catherine… E a sobrancelha voltou a elevar-se.

Catherine procurou um buraco gigantesco por onde meter-se. A grade frontal do Suv ostentava um chamativo letreiro que dizia: “FOUR PLAY[3].”

Catherine tinha visto o letreiro ao subir aquela manhã. Muitas pessoas rotulavam a grade, e além disso o Suv era um quatro por quatro, de modo que o enunciado tinha sentido… Mas ao pronunciá-lo ganhava um sentido diferente se considerava que o grande Suv pertencia a um solteiro.

 

Robbie tinha colocado bem o chapéu para proteger do sol, e assim entrou na loja de comestíveis; ali encontrou a sua governanta, de pé junto à caixa registradora e com a face como uma papoula. Aproximou-se a tempo de ver que o garoto da loja jogava em uma bolsa vários pacotes de aspecto familiar enquanto perguntava a Cat: “Esse é seu carro, senhora?”, enquanto assinalava com a cabeça para a porta.

Robbie se voltou a olhar o Suv… E então caiu na conta. Face vermelha… Pacotinhos… “FOUR PLAY”… Catherine Daniels estava morta de vergonha, e ele estava em um apuro.

Enquanto enfiava mais o chapéu para esconder seu próprio rubor, e controlando apenas suas fortes gana de rir, Robbie pegou quatro bolsas e as levou até o Suv. Voltou a entrar bem a tempo de ver Cat passando a caixa o cheque que tinha dado.

— Robert MacBain… — Leu a senhora; depois olhou a Cat — Se aloja ali?

— Eu… Bem… Sou a governanta — Sussurrou Cat.

Tinha que ter comprovado a lista aquela manhã. Maldição, Catherine Daniels ia partir assim que entrasse no primeiro carro ia dar meia volta por contribuir à delinquência dos menores de idade, e depois ia partir.

Mas tinha comprado camisinhas.

Robbie passou a mão às três bolsas restantes mas, com pressas, o conteúdo de uma delas se esparramou. Santo Deus! Camisinha que brilhavam na escuridão! Os ombros começaram a agitar-se. Sua enrubescida governanta se agachou, recolheu os pacotes e os meteu no bolso. Continuando, murmurando algo que soava bastante forte, saiu correndo da loja.

Robbie tomou seu tempo em colocar as bolsas na parte traseira do Suv, procurando a base de força de vontade que seus ombros deixassem de agitar-se. Senhor, que panorama… Por sua parte, Catherine Daniels se sentou no assento dianteiro, olhando para frente com as mãos cheias de camisinhas. Por fim ele juntou coragem para entras no Suv; sem dizer uma palavra, separou-o do meio-fio dando marcha ré e se dirigiu à saída do povoado.

Foi uma silenciosa viagem de volta de nove quilômetros.

Iria ela partir?

O permitiria ele?

Os dois meninos estavam sentados no alpendre quando retornaram; depois de levar o carro até a porta traseira, Robbie foi em busca dos garotos para descarregar as compras. Assim que acabassem, teria uma pequena conversa com eles sobre camisinhas, mulheres e situações comprometedoras. E depois ia voltar e partir sem perguntar quem os tinha posto na lista.

 

— Há um velho lá dentro — Sussurrou Nathan, tomando a mão de Catherine enquanto entravam na casa.

— E além disso tem uma barba como de pelúcia de verdade — Acrescentou Nora — E me disse que meus olhos eram bonitos, igualzinho a estrelas brilhantes.

— Espero que tenha dito obrigado pelo elogio — Disse Catherine, ao tempo que parava na porta e se agachava para desatar os cordões do sapato de Nora.

— Eu também disse um elogio — Alardeou Nora enquanto se agarrava ao ombro de sua mãe e sacudia os pés para tirar as botas — Disse que seus olhos estavam todos cheios de rugas pelas bordas.

Catherine elevou a vista, horrorizada, mas teve que afastar-se sem corrigir a sua filha para deixar entrar o Robbie.

— Você tem visita — Disse — Um cavalheiro de idade.

— Sim, Gunter me disse que estava aqui. É meu tio, Ian MacKeage — Explicou ele, olhando para o salão enquanto tirava as botas — Os meninos descarregarão as compras em uns minutos. Fica algo daquele bolo de ontem à noite?

— Uma parte — Catherine passou as seus filhos os cadernos de colorir e os lápis de cores que tinha comprado, encaminhou-os para o quarto e foi a bancada — Prepararei um café.

Mas antes que pudesse pegar a cafeteira, Robbie a pegou pelo braço para levá-la ao salão. Nesse instante Catherine se soltou dando um grito afogado e recuou vários passos.

Robbie colocou as mãos à costas e, sem fazer caso do incidente, como se não tivesse ocorrido, como se ela não tivesse reagido de forma exagerada, disse:

— Perdoe. Quero lhe apresentar ao Ian — Com a cabeça assinalou para a janela da pia — Vive bem do outro lado da colina. Meus quatro tios são os donos da Estação de Esqui da montanha TarStone. As luzes que se veem de noite são as pistas de esqui.

Absolutamente indignada consigo mesma, e confiando em não ter a face como o tomate, Catherine agachou a cabeça e foi disparada atrás dele até o salão. Parou quando o robusto senhor de cabelo revolto se levantou de uma poltrona situada junto à lareira.

Robbie se aproximou.

— Ian, apresento a nossa nova governanta, Cat Daniels. Cat… — A olhou sorrindo ao ver que franzia o cenho por não apresentá-la como “Catherine” — Apresento Ian MacKeage, meu tio. Não acredite em nada do que conte sobre mim.

— E isso que tenho histórias que gelariam o sangue, garota — Disse Ian, estendendo a mão.

Catherine se aproximou e viu que sua mão desaparecia por completo quando os grandes e toscos dedos de Ian envolveram com suavidade os seus.

— Encantada de conhecê-lo, senhor MacKeage. Acredito que já conhece meus filhos, Nathan e Nora — Disse, a ponto de desculpar-se pelo maravilhoso elogio de sua filha.

Mas Ian se adiantou; com uma risadinha, e sem soltar a mão, disse:

— A pequenina é uma linda garotinha; e sincera, além disso. E deve estar muito orgulhosa de seu menino.

— Obri… Obrigada. Gostaria de café e um pedaço de bolo? As cerejas são de lata, mas a massa é caseira.

— Obrigado, mas não. — Ian a liberou por fim e se voltou para Robbie — É que saí para dar meu passeio diário e esperava convencer este menino para que me acompanhasse de volta.

— Não tem que ter medo dos ursos, tio — Disse Robbie com ironia; os olhos brilhavam de cordialidade — Não gostam de muito de peles velhas e duras como as suas.

Ian soltou um bufo.

— Dirá mais bem que o preocupa que eu coma a eles.

Voltou-se para Catherine ao tempo que se dirigia à cozinha.

— Encantado de conhecê-la, Cat — Disse; continuou falando por cima do ombro enquanto chegava aos varais que estavam junto à porta — Espero que saiba em que fria se colocou. Se quiser um pau grande, buscarei-lhe um.

Colocou depressa o jaquetão e, enquanto o abotoava, voltou-se para olhá-la de frente. Através de sua povoada barba se via o sorriso, e a verdade é que sim que enrugavam os olhos nas comissuras.

— Nada como uma boa porrada com um pau forte para fazer-se entender.

— Bem… Obrigada — Sussurrou Catherine, sem saber como reagir — Mas da disciplina com os meninos se encarrega Robbie. Eu só sou a governanta.

— Não era dos meninos a quem me referia — Disse Ian por cima do ombro ao tempo que saía pela porta — Vamos, jovem Robbie. A meu passo, terá escurecido antes que chegue a casa.

Catherine ficou junto ao vidro da porta da cozinha e observou os dois homens cruzarem devagar o jardim e desaparecerem no bosque. A casa estava extraordinariamente silenciosa, salvo pelo constante e tranquilizador tic-tac do grande relógio situado no canto e as risadinhas de seus dois filhos que, de vez em quando, chegavam do quarto.

Quanto fazia que não os ouvia rir?

Gostava daquele lugar, decidiu de repente. Apesar dos varões corpulentos e das camisinhas, aquela maravilhosa casa antiga dava uma sensação quase evidente de segurança: quatro jovens, um homem resolvido e além disso, pelo visto, um clã familiar; todos unidos pelo objetivo comum de viver cada dia com esperança. O desejo de Catherine era esperar que Nathan e Nora prosperassem ali, e que, com um pouquinho de estímulo, aprendessem não só a confiar de novo mas também a olhar para frente em vez de por cima do ombro.

E possivelmente ela aprendesse também. Começaria com o Robbie MacBain. A próxima vez que a tocasse, embora lhe custasse a vida, não se deixaria levar pelo pânico nem se afastaria com brutalidade. Não era possível esperar que seus filhos fossem valentes se ela não controlava sequer suas reações diante o simples e inocente toque de um homem.

Ron Daniels não ia ganhar. Era tal como havia dito a seus filhos: tinham a proteção de cinco anjos da guarda… E agora, além disso, o oferecimento de um forte pau.

 

Ao afastar o ramo baixo para que passasse seu tio, Robbie pensou em mandar aos meninos que podassem as descuidadas margens da estrada de terra que unia sua casa com a estação de esqui. Ian continuou caminhando, apoiando-se na bengala; tinha-o deixado no bosque porque não queria que ninguém o visse usando uma bengala para afirmar suas pernas de oitenta e cinco anos. Robbie escondeu seu sorriso, colocou as mãos à costas e ajustou sua pernada a do velho guerreiro.

Durante vários minutos percorreram em amigável silêncio o caminho que subia brandamente, até que Robbie perguntou em voz baixa:

— O que é o que se preocupa, tio?

— A morte.

— A morte em geral ou a de alguém em concreto?

Ian o olhou com a extremidade do olho.

— A minha. Na minha idade pensar na própria mortalidade é algo cotidiano.

— Isso suponho.

— Não quero morrer aqui, Robbie.

— Não acredito que tenha escolha, tio; nenhum de nós a tem.

O velho se deteve e inclinou a cabeça.

— Não é a morte o que penso evitar, e sim o lugar. Tenho vontade de ver meus filhos antes de morrer. E além disso preciso rodear a minha mulher com meus braços e afundar a face em seu seio. Sinto falta do aroma das fogueiras da aldeia, o urze nos campos e o estrondo das espadas no combate dos guerreiros. Quero voltar para casa, Robbie… — Sussurrou — E quero que me você leve.

— Não posso fazer isso, tio.

— Sim que pode — Replicou Ian em voz baixa — O encarregamos que vigie Daar não porque seja o de maior idade, mas sim porque é nosso guardião. E acredito que tem a capacidade de me conceder o que te peço.

— Falou com Greylen sobre seu desejo de retornar? — Perguntou Robbie, sem afirmar nem negar as palavras de Ian.

— Não. Só com você.

— E Kate? Faz já mais de vinte anos que são companheiros. Está disposto a abandoná-la?

— É Kate quem me deu o coragem de pedir isso por fim — Disse ele com um movimento de cabeça — Sempre soube que meu coração pertence a minha esposa, e leva já algum tempo atrás de mim para que procure um modo de voltar com Gwyneth. Temos uma boa amizade, e além tenho muito carinho; Kate não só o entenderá, mas também se alegrará por mim.

— E o resto de nós?

— Também se alegrarão por mim. Greylen, Morgan, Callum e seu pai têm esposas, filhos e netinhos. Seu lar está aqui, mas o meu não. Por isso Kate não deixou de me animar para que falasse com Daar — Pôs a mão no braço — Mas eu prefiro tratá-lo com você. É você em quem confio.

Robbie conduziu Ian até a beira do caminho, e os dois se sentaram em um tronco caído.

— Mas a viagem em si poderia te matar, tio. Sem dúvida recorda quão terrível foi faz trinta e cinco anos.

A face de Ian empalideceu.

— Você foi — Sussurrou — Você viajou de volta, não é?

Robbie não disse nada.

— Foi faz três noites, não? — Aventurou Ian, agarrando-o pelo braço outra vez — Ouvi o trovão e senti que toda a montanha tremia. E a manhã seguinte o ouvi de novo.

Assinalou-lhe a cintura.

— Esse corte no lado… Com certeza que o fez uma espada. Você retornou ali… E quase o matam.

— Como te ocorre dizer isso?

— A pequena garotinha, Nora, contou-me que o encontraram estendido no bosque e que pensaram que estava morto. Disse que sua mãe usou fio de sua mesa de costura para costurar um corte no lado — Assinalou sua face — Não fez esse hematoma da bochecha se chocando com uma porta, e além não pediu a Libby para que te cure porque ela se daria conta de como saiu ferido.

Robbie suspirou e ficou com o olhar perdido no outro lado do caminho.

— Não devem saber — Disse por fim, ao tempo que olhava Ian — Greylen, Callum, Morgan e meu pai… Não podem saber disto. Ouviu Greylen a tempestade?

— Não — Ian meneou a cabeça — Ele e Grace foram visitar a Elizabeth na universidade. E os outros vivem muito longe para ouvi-lo.

Robbie assentiu.

— Então, por favor, não conte.

— O que estão tramando você e esse sacerdote louco?

— É… Complicado. Voltei para tentar conseguir um novo livro de feitiços.

— Como diz…? Sabe quão perigoso será para nós se esse velho idiota pôr mão aos feitiços.

— Mas se não o faz — Explicou Robbie sem perder a calma — Te concederá o que deseja no solstício deste verão… Embora não retornará sozinho.

Ian ficou absolutamente quieto; sua face voltou a empalidecer e seus olhos cor avelã se abriram muito.

— Todos nós? — Sussurrou.

— Sim — Respondeu Robbie em tom suave — Dentro de três meses, se Daar não prolongar o feitiço inicial que os trouxe aqui, os cinco retornarão.

Ian afastou a vista sem dizer nada.

— Não deixarei que isso ocorra, tio.

Ian voltou a olhá-lo e, ao tempo que endireitava os ombros encurvados pela idade, disse:

— Eu te ajudarei. Sou velho, mas ainda não estou morto. Já não posso brandir uma espada, mas conheço aquela época, as pessoas e o terreno. Eu te ajudarei — Repetiu dando um grunhido; de novo agarrou seu braço — Me Leve de volta com você.

Suavemente, Robbie soltou a mão de Ian, agarrou-a na sua, e em voz baixa lhe disse:

— Vi Gwyneth. Quando fui ali, fazia dez anos que tinham ido. Não tornou a casar-se e vive com sua filha, Caitlin — Sorriu — Caitlin está casada com um excelente guerreiro e tem três filhos.

Um enorme sorriso se estendeu pela barba de Ian, que apertou sua mão.

— Que aspecto tinha minha Gwyneth?

— Está preciosa — Sussurrou Robbie — E muito ocupada mimando seus netinhos.

— Chegou a falar com ela?

— Sim. Disse-lhe que era um parente longínquo; quando se admirou por não me conhecer, expliquei que levava vários anos fora. Então me deu de comer, falou-me de seu marido e me perguntou se recordava de Ian MacKeage.

— O que disse?

— Disse que recordava de um guerreiro gigantesco, com mau gênio e olhos de louco, que assustava aos meninos pequenos ao passar.

Ian soltou um bufo e se afastou bruscamente; depois juntou as mãos e elevou a vista para Robbie com olhos muito mais brilhantes que desenquadrados.

— E Niall? — Perguntou — Viu meu filho?

— Agora é Laird Niall.

— Não! — Ian levou as mãos ao peito — Mas como é isso?

Robbie encolheu de ombros.

— Escolheram-no, tenho entendido, uns meses depois de que Greylen desapareceu. Tudo são contos, tio. Nos bate-papos em torno do fogo não se fala mais que de Greylen, de Morgan, de Callum e de você.

— E Megan e James? Como estão?

— Megan se casou com um guerreiro Maclerie e tem cinco filhos, conforme me contou Gwyneth. — Pegou a mão de Ian — E James morreu três anos depois que partiu, em um acidente de caça. Lamento-o, tio.

Ian deu a volta e de um tapa secou as lágrimas.

— A vida era dura então, e aos enganos, se pagava caros. — Voltou-se de novo para Robbie; em seus tristes olhos havia preocupação — O que aconteceria se de repente aparecesse eu? Como explicaria onde estive?

— Com a mentira mais descarada que nos ocorra — Sugeriu Robbie.

Ficou de pé e o ajudou a levantar do tronco.

— E olhe que não estou dizendo que possa retornar. Tenho que pensar nas consequências — Explicou, ao tempo que começavam a caminhar de novo.

— Que consequências?

— Teríamos que dar com uma boa mentira para esta época também. Os homens não desaparecem sem mais: as pessoas investigariam.

— Só tem que dizer que retornei a Escócia; não tem que dizer quando precisamente.

— Sim; isso serviria. Mas ainda terá que ter em conta a tempestade e sua idade… — Se deteve e se voltou para ele — Há muitas possibilidades de que não sobreviva.

— Então morrerei tentando — Ian colheu com os punhos a dianteira do jaquetão — Me conceda a dignidade de cair brigando, Robbie. Me conceda o dom de ver minha esposa outra vez.

Robbie tampou as mãos com as suas e, contente pela faísca que via em seu olhar, disse-lhe:

— Compreendo seu desejo, mas a verdade é que não sou eu quem tem que tomar a decisão; em última instância é você. — Inspirou um trêmulo e doloroso fôlego — E se de verdade deseja ir para casa, será uma honra te ajudar a retornar.

Inclinou-se e, depois de dar um beijo na barbada bochecha, envolveu-o em um suave abraço e perto de sua orelha sussurrou:

— Dentro de uma semana, tio, levarei-te de volta. — Fechou os olhos para não sentir a pontada de sua iminente perda — Passa estes próximos dias dizendo adeus a todos os que o amam. Mas recorda: não conte que vai. Não devem saber o que vou fazer, por seu próprio bem.

Ian devolveu o abraço e, ao afastar-se, acenou com uma firme inclinação de cabeça; depois deu a volta e passou a mão pela face ao tempo que se dirigia de novo para casa.

Em silêncio, Robbie ficou a seu lado e ajustou o passo ao dele.

Sim. Todos os guerreiros mereciam morrer tentando. E, com ajuda da Providência, antes que isso ocorresse Ian voltaria a afundar a face no seio de sua esposa.

 

Era domingo de noite, e Catherine estava sentada em uma poltrona junto à lareira, costurando o esmigalhado bolso de uma camisa. Nesse instante se dava conta de que devia ter posto uma caixa maior quando perguntou se alguém tinha algum objeto para costurar; a caixa de papelão que tinha jogado ao chão do salão com a palavra “Costurar”, que Nathan tinha escrito com lápis de cores, estava a transbordar.

Ela, que tinha um varão de oito anos, teria que ter sabido como destroem os meninos a roupa. Multiplicado por quatro… Ou melhor dizendo por cinco, pois tinha visto Robbie colocar furtivamente uma camisa no montão; a tarefa era enorme.

Mas era uma tarefa que era muito agradável. Para Catherine costurar era não só um modo de aliviar a tensão, mas também seu maior deleite. Lá em Arkansas, costurava em casa para ganhar mais dinheiro. O salário de zelador do colégio de secundária local era bastante bom, mas ainda melhor pagavam os vestidos de noiva e os vestidos de noite para o baile de fim de curso que ela mesma desenhava. Quase se tinha decidido a renunciar a seu posto para transformar-se em costureira a jornada completa quando chegou a carta anunciando a posta de liberdade de Ron.

Durante aquele par de meses tinha sentido falta da costura, pensou enquanto, com cuidado, dava pequenos e invisíveis pontos no bolso da camisa de Rick.

Nathan e Nora estavam já profundamente adormecidos; também o estava Cody. Por volta das cinco o garoto tinha chegado a rastros, tinha jantado sem falar muito, tinha subido a escada e tinha caído na cama sem perguntar sequer o que tinha de sobremesa. Catherine apostava que, no futuro, pensaria duas vezes aonde apontava a escopeta de batatas.

Gunter e Rick estavam fora, na oficina da maquinaria, ajudando o mecânico a desmontar a colheitadeira. Peter estava sentado à mesa da cozinha fazendo os deveres; quer dizer, suspirando, apagando e de vez em quando soltando um palavrão.

Justo então Robbie entrou no salão. Em uma mão levava uma terrina transbordante de sorvete e uma parte de bolo de maçã; na boca, uma colher, e na outra mão, uma xícara de chocolate. Sentou-se no sofá que estava frente ao fogo, pôs o chocolate na mesinha auxiliar, tirou a colher da boca e lhe sorriu.

Catherine estava orgulhosa de si mesma. Em só quatro dias tinha aprendido a respirar normalmente na presença daquele homem enorme; já só tinha que aprender a deixar de cravar o olhar nele.

— Aqui terá que tomar cuidado com o que se pede — Disse Robbie, assinalando com a colher a caixa que Catherine tinha aos pés — É muito possível que o concedam em quantidades industriais.

Em uma tentativa por parecer aliviada e nada molesta pelo ter tão perto, ela encolheu os ombros e devolveu o sorriso.

— Não me importa. Em realidade sou costureira de ofício.

Ele elevou uma sobrancelha.

— Ah, sim? O que costura?

— Vestidos, sobre tudo. Para bodas, baile de fim de ano e demais acontecimentos especiais.

Robbie fincou o dente ao sorvete.

— Parece complicado. Lembro do vestido de noiva de Maggie… Ou mas bem —Disse, soltando um bufo — lembro das semanas para decidir que desenho era precisamente o único correto, e depois, as semanas de procurar a alguém que o fizesse.

— Maggie é sua irmã?

— Sim. Teve uma menina no mês passado; a garota, nomearam Aubrey —Acrescentou, ao tempo que metia depressa a colherada de sorvete e o bolo na boca.

— Aubrey é um nome precioso — Sussurrou Catherine.

Ao dar-se conta de que outra vez estava esquecendo de respirar, voltou a olhar a costura.

Certamente, Robbie MacBain lhe dava medo, embora não acreditava que fosse porque era um homem, mas sim porque era um homem muito bonito. Tinha a impressão de que sua libido levava morta muito tempo, mas vá se não tinha dado sinais de despertar ultimamente. Não devia ser porque o tivesse lavado e porque ainda tivesse pressente seus fortes músculos, suas largas e bem modeladas pernas, seus largos ombros, seu poderoso peito e seu estômago admiravelmente firme… Não, a ela essa espécie de coisas se traziam sem cuidado. Devia ser o fogo da lareira o que esquentava as bochechas.

— Queria falar com você sobre Nathan e Nora — Disse Robbie, ao tempo que colocava de novo a colher em sua segunda terrina da sobremesa daquela noite.

Catherine elevou a vista.

— O que lhes ocorre?

— Deveriam estar no colégio.

Imediatamente ela meneou a cabeça.

— Não. Ron ainda tem muitos contatos na polícia e descobriria nosso paradeiro se eu tentasse matriculá-los. Tomei cuidado que não deixar rastro algum de documentos. Nem pensar em colégio.

Ele a olhou inclinando a cabeça.

— O que pensa que ocorrerá, se é que a encontra?

— Eu… Exatamente não sei — Reconheceu ela — E não quero sabê-lo.

— Ele não tem a custódia de Nathan e Nora, e além disso estão divorciados legalmente. O que quer de você, Cat?

— Vingar-se — Sussurrou ela.

— Por?

— Por passar três anos na prisão.

— Ah… — Disse ele com um grunhido surdo, assentindo com a cabeça — Me disse que esteve na prisão por mau trato doméstico. Contra você ou contra seus filhos?

— Contra mim.

— Então, pretende dizer que lhe deu uma surra, você o denunciou e o prenderam, e acredita que agora merecerá a pena correr o risco de voltar a ir a prisão por vingar-se?

— Por que, se não, está nos seguindo?

— Possivelmente para ver seus filhos.

Catherine meneou a cabeça.

— Talvez Nathan, mas seguro que Nora não. Ron só fazia caso de seu filho, e isso tão somente para ensinar a ser um… Um “homem”.

— Quer me contar por que foi a prisão exatamente?

Catherine baixou a cabeça e começou a costurar outra vez.

— Dei-lhe minha palavra de que está a salvo aqui, Cat. Embora Ron a encontre, não pode fazer nada. Mas tenho que saber a que enfrento; do que é capaz.

Ela levantou o olhar.

— Não é sua responsabilidade nos proteger.

— Sim é.

Robbie deixou a sobremesa ao meio comer na mesa e se inclinou para frente para apoiar os cotovelos nos joelhos e juntar as mãos.

— Estou mais que cansado de trocar de governanta — Disse com um sorriso torcido — E como você parece mais que capaz de dirigir aos meninos e além disso cozinha como um chef de cinco estrelas, não tenho a menor intenção de perdê-la. Quem é seu ex-marido?

Catherine inspirou profundamente. Fazia dez anos que não se atrevia a confiar em ninguém: desde que morreram seus pais e Ron entrou dando pernadas em sua vida e conquistou de tudo a jovem ingênua que era então, com a promessa de cuidá-la. Mas, não merecia seu novo chefe compreender por que estava tão assustada? E por que estava tão segura de que Ron ia atrás dela?

Sem alterar a voz, disse-lhe:

— É um monstro. Tem um gênio péssimo e espera que seus filhos sejam perfeitos robôs automatizados: calados, obedientes, respeitosos, disciplinados… Você os viu com as pessoas: têm medo até de sua sombra. Nora ainda era muito pequena quando Ron foi para a prisão, mas Nathan… — Baixou a voz, em tom crispado — Para ganhar a aprovação de seu pai estava começando a imitá-lo.

— Por que seguia você com ele?

Catherine baixou a vista para sua costura.

— Tentei partir várias vezes, mas Ron era um policial respeitado e condecorado e, fosse quem fosse em busca de ajuda, ele sempre os convencia de que era um marido e pai modelo. Mas o dia que vi Nathan esbofetear Nora — Elevou a vista de novo — Soube que tinha que fazer algo radical para que não houvesse dúvida sobre a espécie de homem que era Ron na realidade.

— O que fez você?

Ela subiu o queixo.

— Fiz uma armadilha. Primeiro me assegurei de ter testemunhas de confiança. Depois enviei os meninos a casa de uma amiga e esperei que Ron voltasse do trabalho.

— E então?

— Sem perder a calma, disse que tinha encontrado um juiz disposto a me conceder uma ordem de afastamento contra ele, e que tinha que partir aquela noite.

Catherine estremeceu quando, de repente, Robbie se levantou, foi para a lareira, agarrou o atiçador e começou a atiçar o fogo. Depois voltou a inspirar fundo e prosseguiu; se ele tinha começado aquilo, não ia passar nada por ouvi-lo completo.

— Ron reagiu exatamente como eu esperava… Quando a polícia chegou, quase tinha me matado.

— E suas testemunhas? — Perguntou Robbie em um áspero sussurro, com o olhar cravado no fogo, o braço apoiado no suporte da lareira e o punho apertado em torno do atiçador — Onde estavam enquanto você brincava com sua vida?

— Tentaram intervir, mas Ron partiu o nariz de Jeff, e Angela, a mulher de Jeff, acabou com uma comoção cerebral. — Embora Robbie não a olhava, dedicou-lhe um amplo sorriso — Estiveram mais que encantados de declarar no julgamento de Ron.

Por fim ele a olhou.

— Bem. A Ron condenaram a cinco anos de prisão, você obteve o divórcio e concederam a liberdade condicional três anos depois — Resumiu — E agora você está aqui com seus filhos, olhando por cima do ombro a toda hora para ver se vem seu ex-marido.

Dirigiu-se para ela mas se deteve no instante que a viu ficar tensa. Então foi ao sofá, sentou-se de novo com os cotovelos nos joelhos e as mãos bem apertadas e se inclinou para frente.

— Reconheço que tinha dúvidas sobre sua teoria da vingança, mas já não.

— Obrigada.

— Mas não pode continuar fugindo, Cat. Quanto tempo? Outro ano? Uma vida? Quando se acaba isto?

— Quando Nathan e Nora sejam o bastante grandes para cuidar de si mesmos.

— Para isso faltam anos, Catherine. Esconder-se exige grande quantidade de energia, e além afeta muitíssimo a qualquer um — Inclinou-se ainda mais perto — Para então os três se tornaram loucos.

— Então o que sugere que faça? Agitar uma bandeira branca e dizer a Ron: “Aqui estamos, veem por nós”?

Ele sorriu, reclinou-se no respaldo do sofá e pegou sua sobremesa.

— Sim — Disse, ao tempo que cravava a colher no sorvete — Isso talvez funcionasse. Ou, talvez, anular o poder que ele tem sobre você vivendo sua vida sem mais, como se Ron Daniels não existisse.

Aquela vez foi a cólera o que esquentou as bochechas de Catherine.

— Que simples é para você me dar conselhos. Não tem nem ideia do que é sentir-se indefeso, e não tem nem ideia de que espécie de monstro é Ron.

Ele comeu o bocado de sorvete e o bolo enquanto cravava a vista nela com olhos impenetráveis. Tragou, tornou-se adiante de novo e sorriu.

— Sim que sei, Catherine — Disse em voz baixa — Tratei com mais de um Ron Daniels em minha vida, e os valentões só intimidam a quem o permite. Quando lhes faz frente, costumam sair fugindo.

— Isso já o tentei — Espetou ela, zangada; estava ficando tão furiosa que até sentia o sangue subir depressa à cabeça — E só consegui três anos.

— Sim — Concordou ele, assentindo — Então o melhor já é hora de que procure outro modo de derrotar seu demônio.

Catherine atirou a costura à caixa e se levantou com os punhos fechados aos lados para não estrangular a aquele homem.

— Que o derrote, diz! Não tenho nem a décima parte da força de Ron!

— Mas eu sim — Disse ele sem alterar-se.

— Nós não somos responsabilidade sua!

Robbie se levantou também. Catherine estava tão furiosa que não só não se apartou, mas também inclusive se aproximou mais.

Robbie colocou as mãos à costas.

— Qualquer que viva em minha casa, ou qualquer que trabalhe para mim é minha responsabilidade — Disse com tranquila autoridade — seja um dos meninos, você, Nathan ou Nora, ou um de meus lenhadores, eu os protejo. Meus pais, irmãos, tios, tias, primos, e além disso o pai Daar: todos estão sob minha proteção.

Catherine deu um bufido.

— Quando o escolheram a você rei do mundo? Ninguém assume essa espécie de responsabilidade. E não se faz porque nenhuma pessoa pode com ela. Além disso — Disse, aproximando-se mais ainda — As pessoas têm que ser responsáveis por si mesmos. Se não, que sentido tem?

— Vamos todos no mesmo navio, Catherine, remando para o mesmo horizonte. Se não nos ajudarmos, nenhum de nós chegará lá.

— Então, quem ajuda a você?

— Como?

— Quem protege você?

Seu chefe parecia tão desconcertado que, de repente, a cólera de Catherine desapareceu; era evidente que Robbie MacBain não acreditava necessitar que ninguém o protegesse.

— Não é assim como funciona. Do que ia necessitar eu proteção?

— De você mesmo? — Aventurou ela — Que ao assumir tanta responsabilidade será você quem estará louco dentro de uns anos? Por que recolheu aos meninos?

Aquela pergunta pareceu sobressaltá-lo mais ainda.

— Porque não tinham outro lugar aonde ir, além de um centro de internamento.

— Mas, por que você?

Ele sacudiu a cabeça para limpá-la.

— Esta conversa não é sobre mim — Sussurrou — É sobre Nathan e Nora irem ao colégio.

— E eu quero que vão.

— Então confie em mim o suficiente para confrontar o problema aqui, em Pene Creek, em meu território.

— Eu… Pensarei — Sussurrou ela.

Deu a volta e depois rodeou o sofá para entrar na cozinha; os joelhos tremiam do torvelinho de emoções que tinha experimentado.

— Catherine…

— Sim?

— Minha prima Sarah MacKeage dá aulas em nossa escola primária. Posso arrumar que levemos Nathan e a Nora amanhã para que os três deem uma olhada no assunto.

Ela se deu conta de que ele não ia render- se.

— Não acha que não percebi, senhor MacBain — Disse, meneando a cabeça — Sei por que está fazendo isto.

— E por que é?

Ela assinalou as sobras meio derretidas da segunda porção de sobremesa que estava sobre a mesinha auxiliar.

— Nenhum de vocês deixou de comer desde que cheguei aqui. Quer que meus filhos se matriculem no colégio para que eu me sinta comprometida a ficar como governanta.

Ele cruzou os braços sobre o peito e entreabriu os olhos.

— É você uma mulher desconfiada, Cat — Sussurrou.

— Sim — Disse ela, sentindo-o bastante valente para imitar seu sotaque graças à distância que os separava — E preparada, também.

Ele soltou uma gargalhada e se voltou a recolher a sobremesa.

— Boa noite, pequena Cat — Disse, ao tempo que se sentava de novo diante do fogo — Que sonhe com os anjinhos.

Catherine deu a volta e fechou o livro que Peter tinha deixado sobre a mesa; depois entrou sem pressas em seu quarto sentindo-se muito orgulhosa de si mesma. Acabava de discutir com um gigante e tinha conseguido sair sem um arranhão. Confrontar o problema não era tão má ideia, depois de tudo…

 

Catherine despertou para ouvir um cochicho procedente da cozinha. Entreabriu os olhos para olhar o relógio que havia junto a sua cama e viu que só eram as quatro; ainda faltavam horas para que amanhecesse.

Ouviu uma suave risadinha feminina e se apressou a jogar uma olhada em Nora; continuava na cama, profundamente adormecida. Então, quem estava na cozinha? Reconheceu a voz de Robbie, grave e mesurada, sussurrando algo sobre uma diabinha, e ao momento outra suave risadinha.

Robbie tinha metido furtivamente a uma mulher na casa!

Catherine cheirou a café. Ele tinha feito uma cafeteira e agora compartilhavam uma xícara de café antes de tirá-la furtivamente outra vez…

Que frescura! Uma coisa era ter namorada, mas levá-la à casa com quatro adolescentes dormindo ao outro extremo do corredor era uma irresponsabilidade.

De modo que as camisinhas eram suas… Aquele homem tinha muita cara ao pedir a sua governanta que lhe comprasse os contraceptivos para depois usá-los no quarto que estava justo em cima do dela. Quanto mais pensava na imprudência de Robbie, mais furiosa ficava. Não pensava viver com alguém que não tinha o decoro de guardar sua vida amorosa… Nem tampouco trabalhar para ele.

Com sigilo, Catherine saiu da cama procurando não despertar seus filhos e, sem fazer ruído, foi nas pontas dos pés até a porta. Colocou o roupão e abriu a porta só o suficiente para jogar uma olhada na cozinha.

A mulher estava sentada no colo de Robbie MacBain e elevava o olhar para ele, sorrindo, como se fosse o ser mais maravilhoso do universo.

Catherine franziu o cenho. Parecia uma adolescente, ou como muito talvez tivesse vinte e poucos anos. Seu denso e formoso cabelo vermelho caía em ondas até a cintura, um montão de sardas adornavam o narizinho de porcelana, uns enormes olhos celestes que brilhavam como safiras e uma figura que faria gemer a um morto.

Robbie a rodeava com um braço em gesto protetor e tinha a outra mão posta sobre seu joelho, ao tempo que se inclinava para olhá-la nos olhos e sussurrar algo. Nesse momento, com gesto suave, levantou a mão, pousou-a em seu cabelo e lhe deu um beijo na cabeça.

A garota afundou a face no largo peito de Robbie e se aconchegou mais, enquanto ele continuava sussurrando e roçava o cabelo com os lábios. Depois lhe acariciou o braço, e sua larga e forte mão era um lascivo contraste com o corpo, diminuto e feminino, dela.

Catherine fechou a porta e se apoiou na parede; tampou as ardentes bochechas com as mãos e fechou os olhos enquanto dava um suspiro.

“FOUR PLAY”… Que ideal para um mulherengo assalta berços… E que descarado de sua parte ir apregoando ao público seu esporte preferido…

Voltou a suspirar ao tempo que afrouxava a parte dianteira do roupão e se abanava com ele para refrescar o corpo. Acaso era ela melhor que aquela garota da cozinha? Não esteve olhando-o boquiaberta enquanto passou quase uma hora lavando-o e lhe dando pontos? E não esquecia de respirar sempre que ele estava perto?

Caramba, aquilo não era decoroso. Havia crianças pequenas na casa, quatro influenciáveis adolescentes e uma mãe indignada. Não era de estranhar que a aquele homem tivesse feito partir três governantas. E estava a ponto de perder a quarta!

Catherine ficou direita e se separou da porta; depois apertou o cinturão do roupão, abriu a porta do quarto e, com ousadia, entrou na cozinha.

A garota nem sequer teve o desplante de ficar de pé, mas sim sorriu da segurança do colo de Robbie. Robbie MacBain não se moveu tampouco… Mas sim que abriu muito os olhos ao fixar-se no zangado rosto de Catherine, e então esboçou um regozijado sorriso.

— Você deve ser Cat — Disse a garota a Catherine antes de voltar-se para Robbie — Tem razão, sim que parece capaz de dirigir os vândalos.

Catherine se limitou a olhá-la fixamente, perplexa.

— E além me parece que está a ponto de nos dirigir a nós — Disse ele com uma risadinha, ao tempo que se levantava por fim e punha de pé à mulher. Sem deixar de rodeá-la com o braço, voltou-se para Catherine — Cat, quero lhe apresentar a Winter MacKeage, minha prima. Winter, apresento Catherine Daniels, a solução a todos meus problemas.

A Catherine nem sequer ocorreu responder algo. Sua prima? Aquela jovenzinha era a prima de Robbie?

Não pareciam nem parentes. Winter MacKeage apenas chegava ao peito, e seus olhos eram de um azul cristalino frente ao cinza dele; tinha o cabelo de um vermelho aceso, e seu delicado pescoço era mais fino que o pulso de Robbie. Tudo o que tinha Robbie MacBain de duro e intrinsecamente masculino, Winter MacKeage o tinha de absolutamente feminina, até seus diminutos e elegantes pés metidos em meias.

— Winter veio procurando compaixão — Disse Robbie a Catherine, com olhos risonhos ainda — Morreu sua gata.

Catherine disse que se não se recuperava e dizia algo logo, Winter MacKeage ia pensar que era imbecil.

— O lamento — Sussurrou — É duro perder um mascote.

Robbie revirou os olhos.

— Hessa tinha dezenove anos e deveria ter morrido faz muito. — Baixou o olhar para Winter — Foram as más pulgas as que mantiveram viva a essa diabinha casca dura todo este tempo.

Catherine deu um grito afogado, e Winter beliscou o antebraço de Robbie e se afastou bruscamente dele.

— Hessa não era um diabo — Disse, cruzando os braços e lançando um olhar feroz — E não se deve falar mal dos mortos.

Catherine procurou mudar de tema antes que a conversa se convertesse em uma briga a murros e perguntou:

— Bem… Como é que não a ouvi bater na porta?

Winter se voltou a olhá-la.

— Não quis despertar ninguém, assim atirei umas pedrinhas na janela de Robbie.

— Mas bem pedras brutas, quererá dizer — Disse Robbie com um bufido — Acredito que rachou o vidro.

As coisas iam de mal a pior. Os dois primos estavam em guarda, Winter com aspecto de querer dar uma bofetada em Robbie, e Robbie com os olhos entrecerrados de risada.

Então Catherine rodeou a mesa, tirou a frigideira do forno e disse:

— Prepararei algo de tomar o café da manhã enquanto você me fala de Hessa, Winter.

Deteve-se e dirigiu um cordial sorriso; tinha decidido que se Robbie não queria mostrar compaixão a sua prima, faria ela.

Winter se sentou à mesa, rodeou a xícara de café com as mãos e suspirou.

— Foi um presente de aniversário, quando fiz três; de Robbie — Acrescentou, levantando o queixo e voltando a lançar um olhar feroz a seu primo.

Robbie elevou as mãos.

— Ouça, eu não sabia que aquela gatinha de aspecto inocente era filha do diabo.

— Hessa era uma boa gata; só gostava de te morder para que reagisse. —Winter sorriu também — Em particular, gostava de esconder-se quando vinha e jogar-se sobre os dedos de seus pés porque sabia que nunca a apanhava.

— Continuo tendo problemas para apanhar gatas selvagens — Disse ele em voz baixa, jogando uma olhada a Catherine, que se ruborizou.

— Como morreu? — Perguntou Catherine olhando a Winter.

O olhar de Winter viajou dela a Robbie, e depois voltou a centrar-se nela, com um brilho pensativo no olhar.

— Dormindo — Disse — Despertei e a encontrei aconchegada contra mim em metade da noite, com aspecto tranquilo mas muito quieta. Acredito que, simplesmente, tinha deixado de lhe pulsar o coração.

Nesse momento Robbie se aproximou, elevou-lhe o queixo com o dedo e sorriu.

— Não há maior bênção que morrer feliz, neném — Disse com doçura — Celebra seus dezenove anos de amizade.

— Sim — Sussurrou Winter, apoiando a bochecha na palma de sua mão — Vou fazer isso. Só queria que fosse o primeiro a saber da Hessa.

Robbie se inclinou e deu um beijo na cabeça; depois a puxou pela mão e a colocou de pé.

— Não se preocupe com o café da manhã, Cat. vou acompanhar Winter a casa para recolher a Hessa, e subirei com elas à montanha para enterrar a nossa velha amiga.

A Catherine custou trabalho engolir o nó que tinha na garganta. A verdade é que aquele forte e imponente gigante sim que tinha coração. E o que Robbie tinha contado a noite anterior a respeito de velar por sua família inteira… Agora via a prova de que não estava alardeando. Winter tinha ido ali antes de nada, procurando seu consolo, e o tinha obtido.

Então caiu na conta do que havia dito Robbie, e lançou um rápido e surpreendida olhar a Winter.

— Acompanhá-la a casa? — Repetiu — Veio você aqui andando pelo bosque e às escuras? Sozinha?

Rindo, Winter colocou as botas e desprendeu seu jaquetão do cabide.

— Claro — Disse — Me sinto mais cômoda no bosque que em Gù Brath.

— Gù Brath?

Winter assinalou o vidro da porta do alpendre.

— É minha casa; está na estação de esqui. É uma réplica de uma enorme fortaleza, uma espécie de castelo escocês, feita de pedra da montanha — Explicou; depois se aproximou mais e tomou a mão de Catherine — Tem que ir lá lanchar e o mostrarei.

Catherine assentiu e devolveu a Winter seu contagioso sorriso.

— Isso eu adoraria.

Winter correspondeu com outra inclinação de cabeça.

— E eu serei seu primeira amiga em Pene Creek. — Inclinou-se para frente e baixou a voz até convertê-la em um sussurro — Quer que lhe traga um bom pau do bosque?

— Obrigada, acredito que eu gostaria de ter um — Respondeu Catherine em voz igual de baixa.

Winter se afastou rindo, abriu a porta e saiu ao alpendre.

— Adeus — Disse — Voltarei esta semana para mostrar o caminho a minha casa. Vamos, Robbie, quero estar na cúpula antes do amanhecer.

Enquanto falava, saiu correndo do alpendre e desapareceu na escuridão.

—Você tem muito maus pensamentos, Catherine Daniels — Disse Robbie, detendo-se na porta.

— Por querer um bom pau?

— Não. Pela expressão de sua cara quando saiu dando pernadas do quarto.

— Eu… É que estava… Eu…

Ele soltou uma gargalhada, deu-lhe um golpezinho com o dedo na ponta do nariz e se apressou a dar a volta para desaparecer na escuridão atrás de sua prima.

E, por sua parte, Catherine fechou a porta e ficou olhando pelo vidro com a mão posta no nariz, onde ele a havia tocado.

 

Um caos absoluto e total reinava na cozinha, e Catherine não podia fazer nada por remediá-lo. Primeiro tinha estragado uma fornada de madalenas, e depois, duas dúzias de bolachas; agora estava preparando o velho recurso de ovos mexidos e pão torrado, mas até as torradas se queimavam.

Tudo era culpa de Robbie, certamente. Huy, ela sabia bem a que estava jogando… Aquele homem tentava de forma metódica derrubar suas defesas. Caramba, se tinha sido um simples e fugaz toque no nariz… Um ato nada ameaçador, nem sequer de caráter sexual, mas sim, mais bem fraternal.

E no caso daquilo não ser suficiente para começar o dia, agora estava em metade de uma cozinha cheia de jovens famintos e, além disso, com dois meninos com os olhos muito abertos aos que acabavam de dizer que naquele dia iam ao colégio.

— Mami, e se minha professora for um homem? — Sussurrou Nora na manga da camisa de Catherine… Uma manga onde a menina já limpou o nariz três vezes essa manhã.

Catherine olhou os ovos ressecados, olhou aos meninos que esperavam seu café da manhã e depois baixou a vista até a Nora. Mas Gunter, bendita alma intuitiva, foi resgatá-la.

— Todos os professores de seu colégio são mulheres — Prometeu a Nora; levou-a a mesa e a sentou no colo — E além disso conhecerá novas amigas: umas meninas bonitas como você, que estarão encantadas de te ter como colega. Você foi ao colégio em Arkansas, verdade?

— Sim.

— E não se divertia? É mais divertido que ficar esperando nesta velha fazenda todo o dia.

— Mas quem ajudará a mami? — Nora olhou ao Gunter com o cenho franzido — Tem que fazer muita comida para vocês. Contou-me isso. E necessita minha ajuda.

Catherine sorriu. Sua pobre filha tinha lavado batatas, de pé sobre uma cadeira diante a pia, até que decidiu que ia ser enfermeira e não governanta.

— Olhe — Disse Gunter a Nora — Quero que hoje faça uma coisa por mim: quero que depois do colégio venha a casa e me diga os nomes de quatro amigos novos. E um deles tem que ser um menino.

— Um menino!

— Sim — Disse Gunter, assentindo — Os meninos são bons amigos. Eu sou seu amigo, verdade?

— Sim — Respondeu Nora, sorrindo já — E o farei. Esta noite te direi os nomes.

— Boa garota. Agora coma o café da manhã para não chegar tarde.

— Não encontro minha mochila! — Gritou Peter, trasteando com frenesi no grupo de mochilas que tinha amontoado junto à porta.

— Está debaixo da mesa — Disse Catherine com calma.

— Ai, diabos; minha camisa preferida tem um rasgão… — Disse Rick com um gemido — E não tenho limpas.

— Sim que tem. Estão penduradas nos cabides no tanque — Disse Catherine com calma.

— Ah, sim, é verdade. Me tinha esquecido que as deixei ali.

— Mamãe, posso levar as botas ao colégio? — Perguntou Nathan, a boca cheia de torrada com manteiga de amendoim.

— Não.

— Por que não?

Catherine se voltou para olhar a seu filho com um cenho maternal. Eram botas de borracha para o barro, e não ia ao colégio com elas; o disse com o olhar.

Ele respondeu metendo-o que ficava de torrada na boca.

Apesar de suas dúvidas, Catherine ia seguir o conselho de Robbie e a comprometer-se. Já se encarregaria de Ron, se ele a encontrasse, e além se encarregaria daqueles molestos desejos femininos que se agitavam em seu interior. E possivelmente, só possivelmente, a próxima vez que Robbie MacBain se aproximasse muito daria um toque na ponta de seu nariz.

 

Robbie se encontrou de repente com que uma mão diminuta, que apertava como um jogador de beisebol, agarrava-lhe dois dedos. Ele e Nora atravessavam a escola primária atrás de Nathan e Catherine, que se via obrigada a empurrar o menino por todo o corredor. A diretora Dobbs encabeçava a procissão; alheia à tensão que havia a suas costas, ia assinalando todo o interessante material gráfico que pendurava nas paredes e dando explicações.

— Você gostará da senhora Jones, Nathan: faz muitos trabalhos práticos e sempre está levando a sua classe a fazer excursões. Terceiro é um curso muito interessante…

Robbie não sabia quem estava mais nervoso, se Nathan, Nora, Cat ou ele mesmo. Tinha prometido mantê-los a salvo mas, de verdade poderia fazê-lo quando estivessem no colégio? Tinha falado com a diretora, tinha-lhe contado um pouco a situação, e ela e o corpo docente estariam à espreita se por acaso aparecia Ron Daniels.

Mas o que Catherine havia dito sobre que seu ex-marido poderia encontrá-los mediante um rastro documentário despertava sua curiosidade. Ia ter que empregar uns quantos de seus antigos contatos militares para descobrir mais coisas sobre Ron Daniels com o fim de saber a que se enfrentaria exatamente se, de repente, aquele bastardo aparecia por Pene Creek.

Chegaram à sala de aula de Nathan, fizeram-se as apresentações e, depois de uma despedida bastante prolongada e trêmula, dirigiram-se à classe de Nora.

Nora apertou os dedos de Robbie com mais força, e ele devolveu o empurrão em um gesto tranquilizador, surpreso de que a menina se agarrasse a sua mão. Para falar a verdade, sentia-se um pouco inseguro naquela situação. Ele nunca tinha sido uma menina assustada, assim que se limitava a deixar-se levar pela intuição… E a seguir o exemplo de Cat, que também se surpreendeu quando sua filha tinha pego sua mão.

Catherine se agachou diante dela e disse:

— Nora, apresento-te à senhora Peters, e ela vai apresentá-la a seus novos companheiros, de modo que se divirta hoje, céu — Cantarolou em voz baixa — E recorda que tem que aprender esses nomes para o Gunter; espera ouvi-los esta noite.

Nora assentiu com a cabeça e, devagar, soltou a mão de Robbie.

— Um menino — Recordou; por fim jogou uma olhada a sua sala de aula — Ai, mami, olhe! É igual a de casa. E além disso têm uma serpente!

Bom, já está, descobriu Robbie; pelo visto, as serpentes eram a chave. Nora esqueceu por completo que estava assustada… E além esqueceu por completo esperar a que a apresentasse sua professora. Entrou correndo na sala, e correndo foi direita até o surpreso menino que observava a serpente.

— Olá. Eu me chamo Nora. E você?

Robbie teria posto-se a rir, mas Catherine tinha um aspecto tão perdido que se limitou a colocar as mãos à costas e esfregar os dois dedos que Nora tinha agarrado.

Quis tomar Cat no braço para levá-la fora, já que parecia que ia plantar se ali a olhar todo dia, mas não tinha vontade de provocar uma cena no corredor. De modo que, enquanto sorria à senhora Peters e saudava com uma inclinação de cabeça à diretora, Robbie insistiu com suavidade a sua governanta a sair pela porta lateral do colégio.

— Pode-se voltar a entrar por essa porta? — Perguntou Cat, olhando-a.

Robbie puxou o trinco.

— Não. Por quê?

— Comprovava-o, nada mais. Em teoria os colégios fecham com chave todas as portas menos a do escritório para que não entrem desconhecidos durante o dia.

— Cat, aqui estarão seguros. A diretora e o pessoal não deixarão que ninguém os leve do colégio salvo você ou eu.

Ela levantou a vista, assustada.

— O que lhes contou?

— Não é você a primeira mãe divorciada que veem, Catherine. Para que um pai que não tem a custódia se leve um menino, necessita permissão por escrito do pai que tem a custódia. Por desgraça, as batalhas pela custódia dos filhos não são precisamente algo insólito hoje em dia.

— Ah, já entendo… Sim. Sei que Nora e Nathan estarão bem. E… E obrigada por vir comigo hoje. Acredito que irei fazer umas compras antes de ir a casa.

Robbie levantou uma sobrancelha.

— E exatamente como pensa voltar? Viemos de carro juntos, recorda?

— Irei correndo.

— Do povoado?

— Você disse que só está a nove quilômetros.

Ele olhou sua roupa.

— Não vai vestida para essa espécie de atividade.

— Sim que vou — Disse ela; abriu-se a jaqueta e a separou a cintura das calças — debaixo dos jeans levo postos shorts para correr.

— Cat — Disse Robbie em voz baixa — Não pode ficar pelo povoado só para estar perto de seus filhos.

Imediatamente ela baixou a cabeça, o qual indicou a Robbie que sua conjetura tinha acertado de pleno.

— Mas, apesar de tudo, quero voltar correndo. — Catherine dirigiu um sorriso bastante irritante — Inclusive chego antes a casa.

— Leva um spray de gás lacrimogêneo?

— Como?

— Leva alguma proteção quando corre?

— Não.

— Está louca?

Ela alargou seu sorriso.

— Deixo par atrás quase a qualquer um. Se alguém me incomodar, simplesmente me meterei no bosque.

Bom, de acordo; nisso tinha razão. Entretanto, ia comprar um pote de gás lacrimogêneo; um que tivesse um broche para que o sujeitasse na cintura.

— Assim correrá direto até a casa? Não se perderá?

— E agora quem é o preocupado? — Disse ela com ironia enquanto se aproximava do Suv.

E então foi quando a mandíbula de Robbie veio abaixo… Junto com as calças dela. Porque Catherine se despojou da jaqueta, desabotoou os jeans com energia, sacudiu os sapatos e ficou com as pernas nuas. Então jogou os jeans e os sapatos no carro, tirou sua mochila, procurou os tênis e… Diabos! Agachou-se para colocá-las.

Santa Mãe de Deus! Aqueles shorts mal eram legais quando se agachava! Ao diabo com o gás lacrimogêneo, decidiu Robbie, enquanto passava uma trêmula mão pela face; ia comprar à senhora um revólver.

Não, que isso baixaria os shorts!

 

Catherine calculou que só estava a uns setecentos metros de casa e, como lhe pareceu que já tinha conseguido drenar quase toda sua preocupação por separar-se de seus filhos, reduziu a velocidade de um trote regular ao passo. Colocou as mãos nos quadris, ofegou para refrescar o corpo e sorriu ao sentir palpitar o coração e o estremecimento dos músculos. Era agradável estar correndo outra vez… E não de alguém, e sim para algo.

Durante os últimos três anos tinha participado de duas maratonas e em mais de uma dúzia de corridas de oito quilômetros, e inclusive tinha ganho em quatro ocasiões. Era muito rápida em distâncias curtas, embora as maratonas de quarenta e dois quilômetros quase tinham acabado com ela. Mas o que não a matava, a fazia mais forte, disse, enquanto observava o fôlego de seu fôlego convertido em bafo no fresco ar da primavera. Olhou a seu redor e de repente pensou que gostava daquela parte do país; era acidentada e também incrivelmente formosa, com seus escarpados de granito, seus muito altos píceas[4] e pinheiros e suas montanhas coroadas de neblina.

Sem esquecer que se tratava de uma corrida costa acima de nove quilômetros do povoado.

Por fim divisou o caminho de acesso a seu novo lar, não porque reconhecesse a casa mas sim porque Robbie MacBain, montado a cavalo, esperava-a ao final.

De verdade se preocupava com ela?

Certamente tinha se sobressaltado quando tirou os jeans. O tipo parecia haver ficado absolutamente pasmado, embora Catherine não estava segura de que tinha sido porque ia correr ou porque acabava de descobrir que tinha pernas.

— Estou admirado — Disse ele quando se aproximou — Tem feito uma boa marca, em particular tendo em conta que tudo é costa acima.

Catherine soltou o cabelo passou os dedos pelo cabelo para voltar a alisá-lo e depois o recolheu por cima do esquentado pescoço.

— Espero que haja muita água quente, porque vou necessitar uma ducha de trinta minutos. Não estou em forma.

— Seriamente? — Cantarolou ele, enquanto fazia voltar-se o cavalo para subir a seu lado o caminho — Não tinha dado conta. Ocorreu tudo bem?

— Quase todo o momento — Disse ela; elevou a vista com o cenho franzido — Salvo por esses caminhões madeireiros. Não deixaram que fazer soar a buzina, embora não há motivo para que não compartilhem a estrada.

Ele murmurou algo que ela não entendeu, ao mesmo tempo que dava a volta na cadeira, tirava da parte de atrás um jaquetão e o dava.

— Por que não o põe? — Sugeriu — Não quero que se resfrie.

Catherine colocou o grosso jaquetão de lã sobre os ombros e se deu conta de que lhe chegava até os joelhos.

— Vai subir a montanha outra vez para visitar o sacerdote? — Perguntou, assinalando com a cabeça ao cavalo.

— Sim. Por isso a esperei, para dizer que esta noite não estarei em casa.

— Toda a noite?

— Sim. Daar não se encontra bem, e pensei que deveria ficar com ele. Entretanto, estarei de volta pouco depois do amanhecer. Tem algum problema em encarregar-se dos meninos só esta tarde?

— Não — Disse ela ao tempo que subia os degraus do alpendre. Aproximou-se do corrimão e se voltou para ele — Como recolho Nathan e Nora do colégio?

— Pegue o Suv; as chaves estão dentro — Meneou a cabeça — Temo que seu carro não tem remédio, Cat: o motor acabou. Poderíamos pôr um novo, mas seria atirar o dinheiro pela janela. Embora talvez consiga que lhe deem duzentos dólares por ele no desmantelamento.

Catherine suspirou, tirou o jaquetão que tinha emprestado e o estendeu por cima do corrimão.

— Temia isso. Obrigada por trazê-lo. Ah, pode me descontar de meu pagamento o custo do reboque?

Ele fez avançar o cavalo até o corrimão e pegou o jaquetão.

— Não nos custou nada, e além disso foi um bom exercício para os meninos.

— Então lhes darei obrigada esta noite fazendo uma sobremesa especial.

— Guardará-me algo?

Catherine inclinou a cabeça.

— Tem você um grave vício ao açúcar, senhor MacBain. Falou disso com o médico?

Ele se inclinou na cadeira e se aproximou muito; ela se obrigou a manter-se firme e não recuar. E se ele voltava a lhe dar um golpezinho no nariz, como se chamava Catherine ia devolver.

— Há vícios piores, Cat — Disse Robbie em voz baixa.

Ficou decepcionada quando ele se endireitou e se afastou. Caramba… E precisamente quando tinha reunido coragem, além disso…

— O número de meu pai está junto ao telefone; chama-se Michael. Se tiver algum problema, não duvide em chamá-lo, de acordo?

Catherine assentiu.

— Meu capataz se chama Harley; seu número também está cotado, mas que Gunter trate com ele por você.

— É um garoto inteligente — Disse Catherine, recordando como o jovem tinha distraído a Nora essa manhã.

— Sim. Quem dera ele também tivesse chegado a essa conclusão — Disse Robbie enquanto seu cavalo se afastava, nervoso — Estarei de volta pouco depois do amanhecer.

Soltou as rédeas do cavalo e ao meio galope se dirigiu para o bosque.

— Que durma bem esta noite, Cat — Gritou por cima do ombro.

E assim, sem mais, partiu. Catherine ficou junto ao corrimão com o olhar cravado no bosque, onde ele tinha desaparecido e esfregou o indicador com o polegar. O que teria feito seu chefe se tivesse dado um golpezinho no nariz? Provavelmente, cair do cavalo!

Mas como teria tomado seu gesto? Como uma tentativa de brincadeira? Um convite a algo mais…? Talvez a um beijo?

Ai! Como seria ser beijada por Robbie MacBain?

Recordou Winter sentada em seu colo aquela madrugada. A jovem parecia cômoda; protegida… Querida… Catherine sabia que todos os homens não eram como Ron Daniels. Alguns inclusive eram bons.

Era-o Robbie MacBain?

 

Como seus dois filhos estavam impacientes por ir ao colégio, as coisas foram sobre rodas aquela manhã. Robbie ainda não havia retornado, mas depois alimentar a todos outros e os fazer sair depressa, agora Catherine fechava a marcha de um improvisado desfile que descia com passo resolvido o caminho até a estrada.

O coração quase explodia de alegria: os quatro meninos tinham insistido em esperar o ônibus de Nathan e Nora antes de ir ao colégio deles. Sua entusiasmada filha ia agarrada na mão de Gunter, dizendo, pela vigésima vez, os nomes de seus quatro amigos.

Incluindo Chad, o menino da serpente.

Nathan tinha pego do lado de Cody e estava fazendo um milhão de perguntas sobre a escopeta de batatas e quando iriam dispará-la por fim.

Rick levava a mochila de Nora; a tinha presenteado na noite anterior depois de uma visita ao sótão. E Peter ia… Bom, o pobre menino tinha o nariz metido em um livro de História, tentando encontrar a data do motim do chá de Boston antes do exame que tinha a primeira hora.

— Mamãe, dirá ao senhor MacBain que as galinhas necessitam trigo? —Perguntou Nathan quando pararam perto da estrada — Não ficou nem um pingo.

Catherine sorriu.

— Você diga-lhe no jantar.

— Chad quer que vá brincar em sua casa — Disse Nora — Tem duas crias de serpente.

— Refere-se ao Chad Perkins? — Perguntou Rick, subitamente interessado.

— Sim — Confirmou Nora.

Rick olhou Catherine e disse:

— Eu a busco na casa de Chad.

Cody soltou um bufo.

— Você o que quer é comer com os olhos Jenny Perkins.

Aquilo despertou o interesse de Catherine.

— Jenny vai a seu colégio? — Perguntou a Rick.

Enquanto a face se punha de um vermelho mate, o menino se limitou a assentir.

Peter tirou o nariz de seu livro e olhou a Nora um momento fazendo especulações; depois olhou ao Catherine e disse:

— Há uma sorveteria no povoado. Poderíamos levar Nathan e a Nora a tomar um sorvete na sexta-feira de noite. Gunter conduzirá — Se apressou a acrescentar — Assim não terá você que preocupar-se de nada.

Depois de ser zeladora em um colégio de secundária durante três anos, Catherine tinha aprendido muito sobre as mentes dos adolescentes; mentes que funcionam impulsionadas por hormônios. O ver um tipo de qualquer idade tratando com amabilidade a um menino tinha um não sei o quê: algo que fazia que as jovens prestassem atenção.

Olhou aos quatro meninos, que esperavam sua resposta com verdadeira impaciência e pôs-se a rir.

— De modo que estão me pedindo emprestados os meninos para atrair às garotas?

As quatro faces avermelharam, mas ninguém disse que não.

— Podemos ir, mamãe? — Perguntou Nathan.

— Parece-me todo um plano — Disse ela — Até gostei.

— Sim? — Disse Cody, evidentemente surpreso; de repente franziu o cenho — Não irá vir conosco, não?

Catherine meneou a cabeça.

— Não quero atrapalhar.

— De verdade nos confiará às crianças? — Perguntou Rick.

— Claro que sim. Sempre que os tragam de volta antes das nove.

Quatro pares de jovens e masculinos ombros se endireitaram.

— O ônibus! — Gritou Nora, precipitando-se para a estrada.

Gunter mal pôde agarrá-la pelo jaquetão. Imediatamente, enquanto se agachava e sorria para suavizar a lição, ordenou:

— Não saia do caminho até que o ônibus tenha parado e veja que o condutor te faz um sinal.

— Me esqueci — Sussurrou Nora.

Rick pôs a mochila sobre os ombros e deu um tapinha na cabeça.

—Toma a mochila. E sentem-se na parte de atrás do ônibus — Acrescentou, voltando-se para Nathan — Os puxões de geada são mais divertidos na parte de atrás.

— O que é um puxão de geada? — Perguntou Nathan.

— É um enorme buraco que formam as bocas de lobo da estrada quando o chão se degela — Explicou Rick, ao tempo que o agarrava da mão e o levava para a frente do ônibus; Cody e Peter foram atrás.

— Adeus, mami — Disse Nora agitando uma mão enquanto Gunter a levava até o ônibus.

Catherine agitou a mão como louca.

— Adeus! Sejam bons, os dois!

Só três meninos ficavam de pé ao lado da estrada quando arrancou o ônibus.

— Onde está Gunter?

Rick fez tilintar umas chaves.

— Perguntou ao condutor se podia ir com eles; como é seu primeiro dia… —Explicou enquanto recuavam pelo caminho — Só é um passo a pé do colégio até o instituto.

— Mas que encantador de sua parte… — Sussurrou Catherine, atônita embora, a verdade, não surpreendida.

Cody soltou um bufido.

— Encantador? Gunter? O que bebeu você esta manhã? Gunter é tão encantador como a resina de pinheiro.

— Todos são encantadores — Disse ela rindo — Obrigada por serem tão amáveis com os meninos.

Ao mesmo tempo que voltavam a ficar vermelhos, os meninos apertaram o passo e se dirigiram para a caminhonete conversível que usavam para ir ao colégio.

Correndo já, Cody disse:

— Só somos amáveis para que você continue cozinhando. Mas uma só comida queimada, senhora — Gritou por cima da plataforma da caminhonete enquanto abria a porta traseira — E esses mequetrefes vão à forra.

— Está brincando, Catherine — Assegurou Rick enquanto se metia atrás do volante.

Catherine sorriu e disse adeus com a mão enquanto eles saíam do caminho; depois ficou de pé em silêncio e admirou a formosa vista. Não tinha nenhuma pressa por enfrentar-se à desordem da cozinha.

No gelo do lago Pene se abriu buracos, alguns de vários hectares. Mas na enseada que havia perto do povoadinho de Pene Creek viu que ainda ficava uma cabana construída sobre o gelo e supôs que, se não a tiravam logo do lago, não demoraria para estar nadando com os peixes.

Uma doce sensação de permanência a invadiu de repente. Quase imaginou que sua vida era normal: era uma mulher comum que enviava a seus filhos ao colégio, iludida acima de tudo, um dia de tarefas maternais, em uma preciosa casa antiga situada em um maravilhoso rincão do país…

Uma ilusão muito sugestiva.

Afinal Catherine se afastou, e se dirigiu para a casa e a desordenada cozinha. Mas um ruído procedente do bosque fez que se detivesse com o pé posto no degrau inferior do alpendre.

A cavalo, Robbie surgiu do bosque e foi direito o estábulo. Imediatamente Catherine trocou de direção, seguiu-o e cruzou a porta do estábulo justo quando lhe tirava a brida ao cavalo.

Nem sequer tentou sufocar seu grito afogado: Robbie tinha um aspecto horroroso. Seus olhos estavam injetados em sangue; o cabelo, emaranhado, condensado e cheio de raminhos, e além disso tinha um novo hematoma na mandíbula. Levava um ensanguentado tecido enrolado na mão direita e ao ir pendurar a brida em um gancho, coxeou visivelmente.

Catherine correu para ele.

— O que aconteceu? — Perguntou — Está ferido. É o corte outra vez? Soltaram os pontos?

— Não — Disse ele; de novo foi coxeando até o cavalo — Só me sangra a mão.

Levantou o estribo e começou a puxar a fivela da cilha com a mão boa.

Catherine o separou de um empurrão.

— Deixe que o eu faça. Você meta-se no Suv. Eu me encarregarei do cavalo e depois o levarei a você ao médico.

Ele se fez a um lado, mas não partiu.

— Sabe cuidar de cavalos? — Perguntou; tinha a voz rouca e o sotaque escocês extraordinariamente marcado.

— Cresci em um rancho de Idaho — Disse ela; desatou a cilha, tirou a cadeira de montar, levou-a até o lado do corredor e a soltou com um golpe surdo. Depois fez gestos para que saísse — Vamos. Eu me ocupo do cavalo.

— Partiram-se todos de casa?

— Sim, faz uns cinco minutos.

Enquanto, devagar, ele dava a volta e saía coxeando, Catherine levou o cavalo à primeira casinha vazia que encontrou. Agarrou vários pacotes de palha, jogou-os dentro, atrás do animal, comprovou se tinha água e saiu correndo do estábulo.

Robbie só tinha chegado aos degraus do alpendre.

— Meta-se no Suv! — Gritou ela.

Ele seguiu até entrar na casa.

— Teimoso… — Murmurou Catherine, acelerando o passo. Cruzou a porta e o encontrou de pé em meio da cozinha, só com as calças e as botas postos — O que está fazendo? Não precisa lavar-se para ir ao médico.

— Não vou a nenhum lugar salvo à ducha — Disse ele, sentando-se em uma cadeira.

Inclinou-se para desabotoar as botas, mas em vez disso deu um grunhido, colocou os cotovelos nos joelhos e cravou a vista no chão.

— Só quero tomar uma ducha quente para que você me costure a mão, busque-me uma aspirina e depois me ajude a subir — Disse olhando ao chão; então elevou o olhar — O fará, Catherine?

Ela estava boquiaberta, olhando o peito e os ombros. Aquele homem estava imundo e cheio de arranhões, e além disso tinha vários hematomas novos.

— Você cuidou do sacerdote ontem à noite, não é? — Sussurrou.

— Não.

— E não acabava de cair o dia que o encontrei.

— Não.

— Como se feriu?

Ele a olhou fixamente; seus fundos e avermelhados olhos eram impenetráveis. Depois, devagar, meneou a cabeça.

— Prefiro não dizer — Ele inclinou a cabeça — Como é mentir para você, Catherine?

—Mentir? Que espécie de mentiras? E a quem?

— A todos: a meu pai e a Libby… Aos meninos… E a todos que perguntem. —Dirigiu-lhe um débil sorriso — Não quero que ninguém saiba que pareço pó. Em particular meu pai e Libby.

—Você está mais que feito pó — Disse ela, ao tempo que dava um passo para frente e agarrava uma de suas botas — Tem um aspecto horrível.

— Obrigado, mas estou mais esgotado que ferido. — Robbie deu um suspiro e se reclinou na cadeira enquanto ela desatava os cordões da bota e a tirava — Uma ducha, uma aspirina e vinte e quatro horas de sono, e voltarei a estar em forma para o combate.

— Para ir meter- se em outra briga? — Perguntou ela, enquanto tirava a outra bota.

— Ai, Cat… — Resmungou ele, arranhando o peito nu — Os tinha rodeados.

— Os? Como ia ter os rodeados se eram mais que você?

Ele alargou a mão e, com suavidade, deu-lhe um toque na ponta do nariz.

— Ficarei bem, Catherine — Disse, ao tempo que se levantava lentamente.

Ela se afastou como pôde, esfregando o nariz com a palma da mão.

— Usarei a ducha de baixo, se não se importa — Disse ele. Coxeando, entrou no banheiro antes que ela pudesse responder.

Catherine ficou de pé no meio da cozinha, com a vista cravada na roupa espalhada e as gotas de sangue que cobriam o limpo chão.

O que teria ocorrido essa noite? E por que não queria que sua família soubesse? E aquele “Os de quem narizes falava?

Seu chefe esperava que voltasse a costurá-lo e que contasse mentiras. Mas o que estaria fazendo naquela montanha de noite, vestido como a primeira vez que o encontrou e com uma espada?

A única resposta minimamente sensata que ocorria era que estava louco. Ou isso ou que a louca era ela, porque ia costurá-lo e depois ia contar mentiras a todos, por que… Por que… demônios, porque tinha pedido que o fizesse!

Confiava nela. Sim, disse-se Catherine enquanto ficava direita e voltava a esfregar o nariz com gesto distraído. Robbie confiava em que guardasse seu louco segredo.

Deu um suspiro, pegou o jaquetão e as botas e os pôs junto à porta; depois recolheu as camisas e as meias e os jogou no tanque, e por último se dirigiu ao andar de cima para buscar roupa limpa.

Quando foi a última vez que alguém, além de seus filhos, tinha precisado dela? Ninguém desde que viviam seus pais.

Tinha esquecido a sensação de força que aquilo dava. E além disso, essa era sua oportunidade de demonstrar a Robbie MacBain que inclusive os autoproclamados anjos da guarda necessitavam ajuda de vez em quando.

Voltou a descer com uma muda limpa de roupa e se perguntou quão duro seria de verdade seu chefe. A última vez que o tinha costurado estava inconsciente, mas desta vez ia ser diferente. Ao cruzar o salão passou a mão à mela de costura e seguiu até a cozinha; uma vez ali, soltou a mala de costura na mesa e foi ao banheiro.

— Trago sua roupa limpa — Gritou por cima do som da ducha.

— Ponha-a sobre a cesta.

Com a mão no trinco, Catherine ficou na porta e tentou recordar se a cortina da ducha era opaca ou transparente.

Merda, era as duas coisas: quase toda era opaca, mas tinha peixes de plástico transparente nadando por ela. Que diabos… Tinha visto até o último impressionante centímetro do corpo daquele homem fazia seis dias. Seguro que suportaria outra olhada, não?

Pouco a pouco, Catherine abriu a porta e, sem separar a vista do chão, entrou e deixou a roupa sobre a cesta; justo quando girava sobre seus calcanhares para sair, a ducha fechou.

— Me passa uma toalha?

Ela se deteve metade de um passo; devagar, deu a volta e olhou a grande mão que aparecia pela cortina.

“Respira”, recordou-se, enquanto tirava a toalha do suporte que estava junto ao lavabo. Depois se aproximou mais, a cortina se moveu, ela elevou a vista… E a cabeça de Robbie surgiu entre o vapor, junto com um largo ombro e a metade de seu, já limpo e nu, peito.

— Ficam sobras de ontem à noite? — Perguntou ele.

Agarrou a toalha e a passou pela face e depois pelo peito, usando as duas mãos… O que provocou que a cortina se abrisse justo o suficiente para deixar ao descoberto o quadril e a larga e musculosa perna direita.

Catherine se afastou.

— S-sim. Há sopa de aveia e o que sobrou do assado de ontem.

Ele fez um som iludido, que se transformou em gemido, pela dor.

— Pode me esquentar um pouco? — Perguntou.

Provavelmente esquentaria o jantar com apenas o aproximar das bochechas… Catherine ia sair do banheiro, mas ele a deteve de novo.

— Cat…

— Sim?

— Daniels foi o primeiro?

— M-meu primeiro marido? — Sussurrou ela.

Ouviu que a cortina da ducha se abria de tudo.

— Seu primeiro homem — Esclareceu Robbie em voz baixa, ao tempo que ficava bem atrás dela.

— Não acredito que isso seja assunto seu, senhor MacBain.

— Pois eu sim — Disse ele; tocou-lhe o ombro justo com a pressão suficiente para dar a volta de modo que o olhasse de frente — Se duas pessoas se meterem em uma conspiração, é importante que saibam um pouco um do outro. Alguma vez teve uma relação que fosse boa, Catherine?

— Era boa com Ron… A princípio — Corrigiu ela, sem afastar a vista de seus olhos para não olhar para baixo — As coisas não começaram a ir mal até que mudamos a Arkansas.

De repente franziu o cenho.

— A que se refere com o de uma conspiração?

— Minhas aventuras noturnas na montanha e que você me ajude às manter em segredo.

Lentamente, alargou a mão e tocou o cabelo; o levantou do ombro e o sustentou entre dois dedos.

— Daniels foi o primeiro? — Repetiu.

Catherine se manteve em seu lugar com muita dificuldade… Embora não sabia se não recuava porque estava decidida a ser valente, ou se é que afrouxavam muito os joelhos para mover-se.

— T-tive namorados no colégio.

— Parece-me que a palavra chave aqui é “homem”, Catherine. Foi Daniels seu primeiro amante?

Que diabos queria dela? Estava pingando água e sangue todo o banheiro e… E a pressionado ao mesmo tempo!

— Sim — Espetou ela, zangada, ao tempo que se afastava bruscamente.

Agarrou a roupa limpa e, de um empurrão, a pôs no peito de Robbie; isso fez que ele levantasse as duas mãos para agarrá-la… E isso fez que a toalha que agarrava em torno da cintura caísse ao chão.

Catherine deu a volta e saiu correndo do banheiro.

— Cat… — Resmungou ele, detendo-a justo fora da porta.

— O quê? — Repôs ela resmungando também, ainda olhando para fora.

— Só para que saiba, tenho intenção de procurar que não seja o último —Sussurrou, enquanto fechava com suavidade a porta.

Catherine ficou paralisada.

Que “tinha intenção”? Acabava de fazer uma promessa ou uma ameaça?

 

Com o olhar fixo no teto, Robbie observou as sombras que indicavam a chegada do sol e escutou o tranquilo movimento de baixo, enquanto sua casa se preparava para um novo dia.

Tinha dormido quase vinte e uma horas de um puxão.

Todos os músculos de seu corpo o animavam a ficar quieto sem mais, a não exigir nada ainda; doíam lugares que tinha esquecido que tinha. O pequeno e bem suturado corte da mão direita dava ferroadas seguindo o ritmo do pulso, tinha a boca seca e cada vez que piscava, parecia que passava as pálpebras por areia.

Sim. Um corpo que se queixava e uma crescente sensação de inquietação eram tudo o que tinha depois de sua segunda tentativa de encontrar a árvore de Cùram. Nem sequer tinha a Mary; tinha divisado a coruja nevada várias vezes, mas seu independente mascote permaneceu fora de seu alcance e obstinadamente calada.

Desta vez tinha passado ali sete dias inteiros procurando Cùram de Gairn, tanto nas aldeias MacKeage como nas MacBain, mas era como se tivesse caçando um fantasma.

Uma vez tinha se atrevido a inclusive mencioná-lo por seu nome e, pelo menos, o bando MacKeage tinha ouvido falar de Cùram, mas ninguém recordava havê-lo visto desde fazia um mês. Para os MacKeage, Cùram era um guerreiro conhecido sobre tudo por suas singulares táticas no campo de batalha e por sua espada adornada com pedras preciosas, que ele afirmava que era um presente das fadas. Era um homem jovem, bonito e bastante calado que, conforme se dizia, respondia com idêntico entusiasmo à chamada da guerra e a das damas.

Quanto à árvore, Robbie estava seguro de que estava ali; sentia o zumbido de sua potente energia quando caminhava pelo bosque que havia ao norte da aldeia MacKeage, mas não tinha encontrado nenhuma árvore com marcas, nem nenhum carvalho maior que outros.

Entretanto, decididamente, estava pondo a ponto sua habilidade com a espada. Primeiro no campo de batalha com vários guerreiros MacKeage, e outra vez em uma perseguição através do bosque diante de cinco imbecis MacBain.

Seus antepassados sim que estavam pondo a prova sua paciência. Confiava em não ter que matar a ninguém, mas como se chamava Robbie, se outro MacBain o feria, ia mandar sua alma direita ao inferno. Com um gemido que brotou das regiões mais profundas de seu corpo, Robbie por fim saiu lentamente da cama. A casa ficou em silêncio depois de uma última portada no alpendre, e, coxeando, foi até a janela, apoiou os braços no marco e viu que Catherine e os quatro meninos acompanhavam andando Nathan e Nora pelo caminho de entrada.

Robbie sorriu pela primeira vez em oito dias. Nora ia encarapitada nos ombros de Gunter, movendo suas diminutas mãos com animação enquanto falava sem parar. Nathan caminhava entre Cody e Peter, fazendo alarde de um de seus trabalhos escolar. Atrás ia Rick, carregado com duas pequenas mochilas, enquanto escutava com atenção a Nora.

E fechando a marcha ia sua quarta e definitiva governanta, com as mãos metidas nos bolsos, a face banhada pelo madrugador sol matinal, e um satisfeito sorriso na boca.

Já era dele, pensou Robbie sorrindo também. Certamente ainda não a tinha em sua cama, mas aquela gatinha quase comia em sua mão. Então soltou um bufo. A essas alturas já deveria estar mais que acostumada a seu corpo: havia-o visto nu muitas vezes.

Também ia acostumando-se a seu toque, embora pouco a pouco, e parecia respirar com mais facilidade quando ele se aproximava. Tinha matriculado seus filhos no colégio, era extraordinária com os meninos e, pelo visto, não importava contar uma boa mentira. E além não parava de costurá-lo sem exigir saber por que ele não parava de ferir-se.

Robbie acreditava que seu tamanho não o ajudava precisamente. Não ia ser fácil conseguir que voltasse a confiar nos homens. Mas o faria. Porque quando abriu os olhos na cabana e se encontrou preso à cama, deu-se conta de que sua ladra de ovos não só tinha salvado a vida, mas também era ela. Tinha prometido a seu pai que se alguma vez encontrava com uma mulher que suportasse sua vocação, agarraria-a nos braços rapidamente antes de que soubesse no que se metia. Sim, os temores de Catherine eram simples ilusão que ocultavam sua autêntica natureza. Aquela mulher era forte de uma maneira completamente feminina, valente, compassiva, engenhosa, inteligente e formosa, além disso… Era perfeita para ele. Só tinha que convencê-la dessa verdade.

O tempo estava do seu lado; a proximidade também. A Catherine era impossível seguir sendo cautelosa com ele enquanto vivesse sob seu teto. Sim, a Providência a tinha levado até ali, mas agora tocava a ele ganhar seu coração.

Robbie a viu dizer adeus com a mão ao ônibus escolar e depois aos meninos, quando estes saíram do caminho. Reclamar Catherine talvez exigisse amansá-la um pouco, um fundo manancial de paciência e além um pouco de astúcia… Mas tudo vale no amor e na guerra, ou não?

Se até esperava que Ron Daniels aparecesse de verdade… Que melhor modo de impressionar à dama que matando a seu dragão?

Robbie separou da janela enquanto acariciava com gesto preguiçoso a cicatrizada ferida do ombro e sorriu. Durante o dia teria a gatinha para ele… E mais valeria dar outro suave puxão em sua cauda.

Ao colocar as calças se perguntou o livre de prejuízos que seria Catherine Daniels, pois estava a ponto de pedir que tirasse os pontos de seda rosa do flanco e o ombro. Segundo a conta de Catherine só tinham uma semana, mas, incluídos os sete dias de sua última aventura e o dia que acabava de dormir, as ferida levavam curando-se mais de duas semanas.

Sim, não ia demorar para saber se ela aceitava a magia.

 

Catherine colocou o último prato do café da manhã na lava-louça, agarrou um pano e justo quando começava a limpar a mesa, soou o telefone. Apressou-se a ir para ele para que não despertasse Robbie e o agarrou ao segundo toque.

— Olá — Disse.

— Bem… Olá. Está Robbie? — Notava-se que a voz do outro extremo da linha estava surpreendida — Não, antes que o chame, falo com a valente que assumiu a tarefa de cuidar de cinco homens?

Ela franziu o cenho olhando a parede.

— Sim, sou Catherine Daniels.

— Eu sou o pai de Robbie, Michael. E ouvi uns rumores impressionantes sobre você — Prosseguiu, já com um evidente sorriso na voz — São certos?

— Bem… Depende — Sussurrou Catherine, apertando mais o telefone — O que ouviu exatamente?

— Só que é o bastante preparada para querer um bom pau — Respondeu Michael, com uma risadinha — E que é muito bonita, além disso.

— Esteve falando com Winter — Disse Catherine; levou o telefone sem fio até a mesa e se sentou.

— E com Ian — Acrescentou ele — Necessitou já do pau?

— Ainda não; os meninos são uns verdadeiros anjos.

— Não me referia aos meninos — Disse ele em voz baixa — Está meu filho aí ou partiu já?

— Não está — Catherine endireitou os ombros enquanto pensava na mentira — E não estou segura de aonde foi nem de quando voltará. Quer que lhe dê um recado?

— Sim. Pode dizer que a sua mãe gostaria de vê-lo? Faz mais de uma semana que não fala com ela.

— Ah, claro; o direi. Mas esteve ocupadíssimo. Uma das colheitadeiras se avariou, e o sacerdote que vive montanha acima, o pai Daar, parece que me disse que se chamava assim, não se encontrou muito bem, assim esteve cuidando-o. Por outra parte teve que resgatar a mim e a meus filhos, e logo rebocar meu carro… E além disso acredito que havia um algo relacionado com uma bomba para um poço que tinha que trocar.

Uma suave risadinha chegou pelo telefone.

— Pelo que vejo, não só se ocupa você das tarefas domésticas mas também é protetora. Isso está bem, senhorita Daniels. A esses meninos não irão mal uns cuidados maternais.

Não ficou claro se seu interlocutor agrupava Robbie com os meninos ou não.

— Por favor, me chame Catherine — Disse.

— Pois, então, Catherine, se pudesse pedir a meu filho que nos faça uma visita entre suas muitas tarefas, o agradeceria.

— O-o farei — Sussurrou ela, dando-se conta de que parecia uma completa imbecil. Que magnífica primeira impressão estava dando…

— E, Catherine…

— Sim?

— Se me permitir uma sugestão, se é que não a tem feito já meu filho: tome cuidado quando correr pelas estradas por aqui. Nossos caminhoneiros se distraem com facilidade, e lamentaria vê-la em meio de um acidente.

Catherine elevou o queixo em um gesto defensivo e se perguntou se teria transformado na fofoca do povoado.

— Sempre me afasto quando ouço que se aproxima um — Disse.

— Sim — Repôs ele em voz baixa — Mas, garota, talvez deveria pensar em… Bom, talvez deveria usar calças largas para correr.

Calças largas?

— Mas ninguém corre com calças largas — Repôs ela — Dão muito calor e limitam os movimentos…

Nesse preciso instante caiu na conta do que ele queria dizer. Então fechou os olhos e soltou um forte gemido, para em seguida dar um grito afogado e apressar-se a tampar o bocal. Estupendo: dois a zero, e isso sem ter visto ainda a aquele homem…

Deu a impressão de que ele também tampava o bocal do telefone, embora o ouviu suspirar.

— Ofendi-a, garota, embora não era minha intenção. Só quero fazer ver quão perigoso é correr pelas estradas.

— Entendo-o. E obrigada. Direi a Robbie que o chame quando chegar a casa.

Outro suspiro chegou pelo telefone.

— Obrigado, Catherine. Logo iremos por aí para dar a bem-vinda a Pene Creek como é devido. Até então, adeus.

— Adeus — Repetiu ela, ao tempo que pulsava a tecla de desligar; depois fechou os olhos e deu com o telefone na cabeça — Tola, tola, tonta… Como se pode ser tão tola? — Murmurou. Voltou-se imediatamente para ouvir uma risada que chegava da porta do salão — Quanto tempo esta aí?

— O suficiente para saber que conta mentiras como uma perita — Disse Robbie, rindo ainda; meneou a cabeça — Já vê que consegui minha atitude protetora por meios honrados, Cat. Talvez meu pai seja direto, mas tem boa intenção; preocupa-se de verdade por você.

— Estou envergonhadíssima — Murmurou ela. Levantou-se e pôs o telefone no receptor — É que em Pene Creek não corre ninguém?

Ele se aproximou da bancada e se serviu uma xícara de café.

— Não. O jogging é mais bem um exercício urbano. Aqui a vida suporta suficiente esforço físico como para que pouca gente tenha que acrescentar a seu programa o correr. Não se preocupe por isso, Catherine — Prosseguiu, enquanto se sentava com cuidado à mesa — Se deseja correr, corra. Com o tempo as pessoas se acostumarão a vê-la… E a ver suas pernas.

Ela girou sobre seus calcanhares em direção à pia; uma vez ali, colocou as mãos na água e esfregou energicamente a frigideira.

— Que tal se sente esta manhã? — Perguntou.

Ele soltou uma risadinha em voz baixa.

— Muito melhor. Só necessitava uma boa sesta. Obrigado por interceptar meu pai; sei o difícil que é contar mentiras.

— Por que esteve você evitando Libby? — Perguntou Catherine sem olhá-lo, à espera de que fosse o rubor.

— É médica.

Catherine se voltou, surpreendida.

— Estive costurando-o eu, correndo o risco de que pegasse uma infecção, e sua madrasta é médica? Por que não foi a vê-la, sem mais?

— É uma médica muito intuitiva — Disse ele — Teria sabido como sai ferido.

Não como ela, a muito tola, que não sabia nada de nada… Se voltou outra vez para a pia.

— Há algum modo de fazer-se com algum antibiótico, ou tem algum para os cavalos? — Voltou a olhá-lo — Conheço os medicamentos para animais e calcularia uma dose segura.

Ele meneou a cabeça.

— Não farão falta. Ontem esterilizou você a agulha e o fio, e o lado e o ombro cicatrizaram limpamente. Em realidade — Ficou de pé e puxou a aba da camisa para tirá-la das calças — Esperava convencê-la de que me tirasse os pontos hoje.

— Mas se só passou uma semana…

— Sim, mas estou curado. Vê?

A pura curiosidade fez que Catherine secasse as mãos no avental e se inclinasse para levantar a camisa. Puxou a cintura dos jeans para ver a ferida e franziu o cenho; depois, sem pensar sequer, endireitou-se, desabotoou-lhe a camisa, afastou-a a um lado e ficou nas pontas dos pés para examinar o corte do ombro.

Os pontos estavam absolutamente secos! Da profunda ferida anterior só ficava uma fina linha vermelha com um fio rosa que aparecia cada meio centímetro mais ou menos.

— Você tem uma constituição extraordinária — Sussurrou ela, ao tempo que passava brandamente um dedo pela ferida.

Então elevou o olhar, deu-se conta de que estava quase roçando sua face e… E sua boca, e se apressou a recuar.

Robbie terminou de tirar a camisa e começou a desabotoar as calças. Catherine soltou um gritinho e se dirigiu para o salão; a risada dele pelo baixo a impulsionou a pôr-se a correr.

Palavra de honra: aquele homem estava deixando-a louca. E é que não podia dizer o que havia dito no dia anterior no banheiro, ali de pé, enorme, molhado e nu e esperar que ela não agisse como uma imbecil cada vez que se aproximava dele. Era a condenada libido… Robbie MacBain não só a tinha arrumado para despertar, mas também sua promessa, ou, mas bem sua ameaça, do dia anterior tinha deixado ao descoberto o medo de Catherine como se fosse uma ferida em carne viva a que não deixasse de doer. Bom, disse enquanto tirava as tesouras do mala de costura: pois ela também cravaria o Robbie. Com passo resolvido, entrou na cozinha, decidida a ignorar o fato de que ele cheirava bem, quente e sexy… E de que seu aspecto era mais sexy ainda que seu aroma.

— Tenho que ir ao local onde estão trabalhando hoje, e eu gostaria que você me levasse — Disse ele ao tempo que voltava a sentar-se, coçando os pontos do ombro.

— Não pode dirigir? — Perguntou ela; inclinou-se com a afiada ponta das tesouras, afrouxou com suavidade um ponto… Algo que era mais fácil se deixasse de tremer a mão.

— Sim que poderia. — Robbie voltou a cabeça para ver o que o fazia — Mas ainda estou meio adormecido e prefiro… Ai!

Com os dedos, tirou o fio cortado da carne.

— Não doeu.

— Deu com a ponta das tesouras.

— Só porque se moveu. Deixe de falar.

— Não gostaria de ver uma colheitadeira em ação? — Perguntou ele, sem fazer caso de seu decreto — Ai!

Catherine se endireitou e o olhou franzindo o cenho.

— Não se queixou quando o costurei ontem — Disse, enquanto assinalava com as tesouras a pequena bandagem da mão direita.

— Ontem estava intumescido de esgotamento — Disse Robbie, esfregando o ombro.

Ela afastou sua mão e voltou para trabalho.

— Não olhe — Sugeriu — Assim antecipa à dor e fica tenso.

— Sabe por experiência própria? — Perguntou ele em voz baixa; seu quente fôlego lhe roçou o cabelo.

— Sim — Respondeu Catherine, distraída.

Com gesto rápido, cortou três fios de uma vez e recuou quando ele grunhiu. Então voltou a afastar sua mão, cortou os dois últimos pontos, apressou-se a acalmar a dor esfregando com os dedos e começou a tirá-los.

— Bom; terminado — Disse, enquanto se endireitava — Agora levante-se, apoie-se na mesa e tirarei os do quadril.

— Dá-me a sensação de que está desfrutando com isto — Disse ele entre dentes, enquanto ficava de pé e se apoiava na mesa.

Catherine se sentou na cadeira que tinha deixado livre e a voltou depressa para ficar de frente a ele; depois desceu de um puxão a borda dos jeans abertos para ver a cicatriz… E de repente ficou quieta e elevou o olhar, dando-se conta da provocadora postura em que estava.

Nesse preciso instante se abriu a porta e um velho, vestido com uma larga túnica negra que tinha um fino pescoço branco, entrou na cozinha.

— Pelos pregos de Cristo! — Gritou o recém-chegado — Se necessitarem intimidade, fechem a porta com chave!

Catherine saiu voando da cadeira, tão rápido que teria caído se Robbie não chegasse a agarrá-la pelos ombros e a pôr de pé.

O sacerdote golpeou o chão com sua bengala e jogou um olhar feroz primeiro ao peito nu e as calças abertas de Robbie, depois a Catherine.

Sem afastar a vista de Daar, Robbie se interpôs entre eles e, devagar, subiu o zíper das calças e fechou o cinto. Por sua parte, Catherine olhou para trás ao mesmo tempo que se perguntava se seria o bastante pequena para meter-se engatinhando no forno.

— A maioria das pessoas bate na porta antes de entrar na casa de alguém —Disse Robbie, cruzando os braços.

— Eu não bati na porta em trinta anos!

— Pois o fará de agora em diante — Repôs Robbie em voz baixa — E além pedirá desculpas a minha governanta por fazer hipóteses.

Catherine deu um grito afogado e deu um beliscão nas costas por falar de forma tão grosseira a um clérigo.

Sem alterar-se sequer, ele prosseguiu:

— E começará a esperar a que o convidem a vir em vez de apresentar-se sem aviso prévio.

Os dois iam arder no inferno: já sentia as chagas na face… Desta vez Catherine usou a ponta das tesouras para fazê-lo calar.

Robbie alargou a mão, arrebatou-lhe as tesouras, lançou-lhe um bom olhar assassino e se voltou de novo para o sacerdote.

— Estou esperando essa desculpa.

Mas Catherine não esperou. Girou sobre seus calcanhares e saiu apitando para o salão, abriu de um puxão a porta principal e saiu correndo ao alpendre que se estendia por toda a fachada da casa. Imediatamente se meteu entre duas janelas, apertou as costas contra as tabuas e ficou absolutamente quieta, com as mãos sobre as ardentes bochechas e o coração pulsando tão forte que doía.

Seus pais estariam revolvendo-se em suas tumbas. Tinham-na educado para que respeitasse a religião, em particular a tudo o que trabalhasse na obra de Deus…

A porta principal se abriu e Catherine deu uma olhada aos degraus do final do alpendre, calculando se chegaria a eles antes que Robbie a alcançasse. Mas quem saiu pela porta foi o sacerdote, sozinho; aproximou-se dela e cruzou as mãos sobre o punho de sua formosa bengala de madeira.

Tinha uma larga e revolta cabeleira branca que contrastava de forma inquietante com sua barba perfeitamente recortada, e os ombros encurvados pela força da gravidade e pelo tempo; seus dedos, dobrados pela idade, cobriam o punho de uma bengala só um pouco mais retorcido que ele. Parecia antiquíssimo… Salvo por seus olhos azuis, de olhar agudo e cristalino.

— Estou sinceramente arrependido, senhorita Daniels por ter feito uma hipótese tão horrível — Disse em tom brusco — Robbie me explicou que você estava curando a ferida, e peço desculpas por ter pensado outra coisa.

Estendeu uma nodosa mão.

— Sou o pai Daar. Vivo lá em cima, no TarStone.

Embora Catherine desejava sair correndo em direção contrária, suas maneiras a obrigaram a dar um passo para frente e estreitar a mão.

— Encantada de conhecê-lo, pai — Sussurrou — Bem… Gostaria de uma xícara de café e um pouco de bolachas?

Os olhos do ancião faiscaram de interesse.

— Bolachas, diz? — Puxou –a pela mão que tinha capturada para levá-la dentro — Faz séculos que não como bolachas. Põe-lhe você aroma de limão?

Catherine tentou recuperar a mão, mas ele estava empregando-a para conduzi-la através do salão para a cozinha.

— Só umas quantas gotas de suco de limão — Respondeu ela; conseguiu escapar por fim quando ele se sentou à mesa.

Não se via nem rastro de Robbie.

Depois de procurar uma tigela limpa e servir café ao sacerdote, Catherine se ajoelhou e colocou a mão bem fundo na parte de trás do último armário da cozinha. A risada de pai Daar e o bufo de Robbie a fizeram voltar-se enquanto se endireitava.

— Então é aí é onde esconde a sobremesa… — Disse Robbie da porta do banheiro. Abotoou a camisa e a meteu por dentro do cinto; depois se aproximou e pôs as tesouras na mesa ao tempo que elevava uma sobrancelha — Terminei de tirar os pontos e consegui fazê-lo sem me cravar nenhuma só vez.

— Então, provavelmente, deveria tirar os pontos da mão quando chegar o momento — Sugeriu ela com doçura, ao tempo que punha dois pratos sobre a mesa.

Cortou duas partes da bolacha de manteiga, os pôs diante na mesa, deu garfos e guardanapos, voltou a encher de café a xícara de Robbie e, por último, dirigiu-se a seu quarto.

Mas se deteve na porta ao ouvir que pai Daar sussurrava a Robbie em tom urgente:

— Tem que voltar, e esta noite. Nos acaba o tempo.

“Voltar? Esta noite? E para que, para que lhe deem outra surra?”

Catherine se voltou a olhá-los, cruzou os dedos atrás das costas e confiou em que não fosse arder no inferno por contar mentiras a um sacerdote.

— Ah, Robbie, me esqueci dizer que seu pai e Libby devem vir jantar esta noite. Eu disse que jantamos às seis.

Robbie a olhou, olhou o velho e depois voltou a olhá-la elevando uma sobrancelha em um gesto pensativo. Por fim meneou a cabeça e se dirigiu ao pai Daar.

— Minhas obrigações familiares estão primeiro.

O pai Daar observou a Catherine com expressão desconfiada.

— Compromete você seu chefe sem consultar antes com ele?

Enquanto cruzava um segundo par de dedos, Catherine assentiu.

— Parecia importante para seu pai, e não me atrevi a dizer que não.

O sacerdote voltou a olhar Robbie, mas a assinalou com uma inclinação de cabeça.

— Adverti-te que uma mulher não faria mais que complicar a vida. Adoram entremeter-se no trabalho de um homem.

— Huy, não sei… — Disse Robbie com ironia, ao tempo que se reclinava na cadeira e sorria a Catherine — Às vezes vêm bem. Acredito que contribuem com certa… Emoção.

Catherine descruzou os dedos e fechou as mãos até as converter em punhos; depois devolveu o sorriso.

— Lamento não poder levá-lo de carro ao trabalho esta manhã mas é que tenho que ir ao povoado… Correndo.

Aquilo apagou o sorriso de satisfação da cara de Robbie.

Catherine girou sobre seus calcanhares, entrou no quarto e fechou brandamente a porta; depois se apoiou nela e fechou os olhos com um suspiro.

Emoção, em?

Ah, já mostraria emoção a aquele homem, vá que sim… E além disso, muita perna!

 

—Seu plano não funciona, pai — Resmungou Robbie, sabendo que a mordacidade de sua voz não era pelo Daar mas sim por Catherine.

Aquela mulher pensava correr outra vez por todo o campo vestida com uns shorts muito curtos e deixando a seu passado um monte de caminhões madeireiros atirados pelas sarjetas. Ia ter que fazer algo.

— Então proponha você um plano melhor… — Espetou Daar, zangado, jogando um olhar feroz — Sempre que o faça funcionar logo. Ainda tenho que alimentar essa raiz até convertê-la em uma árvore.

Robbie inspirou para acalmar-se, afastou o olhar da porta do quarto e tentou concentrar sua atenção em Daar.

— Quanto tempo leva esse carvalho crescendo em terra MacKeage? Existia quando os guerreiros das Terras Altas viviam ali? Sabiam de sua existência?

— Não — Disse Daar, meneando a cabeça — Faz apenas seis anos que Cùram vive ali.

— Mas embora você diga que está ali, eu não o vejo…

— Sim. Ele se escondeu que você.

— E segue você sem querer voltar comigo para desmascarar seu feitiço? O que aconteceria se o descobrisse ali?

Daar se inclinou sobre seu prato de bolachas, rodeou a xícara de café com as mãos e, em um sussurro, falou como se dirigisse a ela.

— Há vinte anos talvez tivesse uma possibilidade contra ele… — Elevou o olhar para Robbie — Mas só uma possibilidade. Há cem anos talvez o tivesse vencido…

Endireitou-se.

— Diabos, venci-o quando emparelhei Judy MacKinnon com Duncan MacKeage.

O velho druida entreabriu os olhos.

— Mas se me leva de volta agora, Robbie, seria como se me atravessasse com sua espada — Sussurrou — Cùram acabaria comigo.

Nesse momento se abriu a porta do quarto e Catherine saiu dando pernadas, vestida com shorts, um suéter e tênis. Teria se ouvido cair um alfinete enquanto cruzava em silêncio a cozinha, com o queixo em alto e os punhos apertados aos lados. Nem sequer os olhou; limitou-se a abrir a porta do alpendre, sair e fechar suavemente atrás dela.

Devagar, Robbie dobrou o garfo que tinha na mão até que os dentes tocaram o cabo e se voltou para Daar.

— Só me diga como encontrar a árvore. Dê-me algo com que trabalhar.

Daar meneou a cabeça.

— Não tenho nada. Tal como estão as coisas, de agora em adiante vai ter que empregar seus próprios poderes para ir e voltar. Minha bengala enfraqueceu muito —Disse, tocando a bengala de cerejeira, quase lisa, que estava na mesa junto a seu prato.

— Meus próprios poderes… — Repetiu Robbie em voz baixa.

— Sim. Não pode renegar eles por mais tempo, MacBain. Agora conhece todo o alcance de seu dom e ignorá-lo não fará que desapareça.

— Não quero essa espécie de poder!

— E acha que eu pedi para ser druida? Isso não é precisamente algo que se peça. A Providência decide nossos destinos. Sua própria mãe o compreendeu, e isso não a impediu de te ter. Não é uma maldição, menino — Espetou Daar, zangado, inclinando-se para frente — É um dom. Sua mãe não só te deu a vida, mas também o dom de sua vocação. Aceita-o. Use-o! Explora todo o alcance de seus dotes e agradeça a Deus que tenha um modo de proteger a quem ama.

Com cuidado, Robbie pôs o destroçado garfo junto ao prato e cravou o olhar na diminuta bandagem que cobria o corte de sua mão direita. Sim, tinha compreendido sua vocação na metade da forte tempestade e isso tinha dado um susto de morte. Encontrou-se cara a cara com sua mãe como a formosa mortal que tinha sido em tempos, e tinha mostrado seu destino.

— Foi Mary quem me revelou meus poderes — Sussurrou, sem deixar de cravar o olhar em sua mão — Me mostrou isso tudo.

— Sim — Disse Daar em voz baixa — E entendeu que os guardiães inclusive têm poderes sobre os druidas, não é? Mary te mostrou que salvou a vida de sua irmã Grace usando meu bastão para protegê-la das glaciais águas daquela lacuna na montanha.

— Sim — Disse Robbie, ainda sem levantar a vista.

— Isso é o que mantém o equilíbrio de tudo — Prosseguiu Daar — Pois, por mais poderosos que sejam os druidas, a Providência deu ao mundo um exército de cavalheiros que o protegem também.

— Então, que papel desempenham vocês? — Perguntou Robbie elevando o olhar — Por que existem os druidas sequer?

— Para alimentar o conhecimento. Para cultivar nossas árvores e fazer que o suceder contínuo da vida não pare.

— Voando coisas, de passagem… — Murmurou Robbie, enquanto ficava de pé e levava sua bolacha intacta a bancada — Dentro de quatro dias estarei na cúpula ao entardecer, e levarei Ian MacKeage comigo.

— Como? Não! Não pode…

— Sim, posso — Disse Robbie; olhou para o alpendre e logo depois de novo ao sacerdote — Ian me pediu que o leve de volta e concordei.

— Mas o suceder da vida… Vai alterar a energia. Ele sabe muito do futuro…

— Não enredará com a magia — Assegurou Robbie — Só quer voltar para casa para estar com sua mulher e seus filhos.

Daar se levantou também, mas rapidamente passou a mão a sua bolacha sem comer e a meteu no bolso. Enquanto caminhava para a porta, sussurrou:

— Que Deus tenha misericórdia de nós. Porque como esse velho verde as arrume para alterar o suceder contínuo da vida, todos estamos perdidos.

— Pelo visto, não pensou nisso quando realizou aquele enfeitiço para trazê-los aqui — Comentou Robbie, enquanto saía ao alpendre atrás dele.

Daar se deteve ao pé dos degraus, deu a volta e explicou:

— Teriam despertado em sua época original de novo, quase no mesmo instante de partir… E, provavelmente, teriam acabado de matar-se entre si. Era parte do feitiço que não recordassem esta época — O assinalou com a bengala — Mas só se retornassem mediante meu primeiro conjuro. Ian e você vão voltar dez anos depois, inclusive depois de que chegasse Cùram.

— Ian me dará sua palavra de não alterar sua energia — Prometeu Robbie — Só deseja morrer nos braços de sua família.

Daar ficou olhando-o fixamente vários segundos e depois assentiu por fim.

— Sim. Se Ian der sua palavra, é suficiente — Concordou em voz baixa — Então os verei na cúpula dentro de quatro dias.

Ao mesmo tempo que pronunciava as últimas palavras, deu a volta em direção ao bosque; enquanto se afastava meteu a mão no bolso e tirou uma parte de bolacha.

Robbie elevou a vista para o TarStone e soltou o fôlego. Sim, só faltavam quatro dias para que Ian MacKeage saísse de suas vidas.

 

Catherine correu colina abaixo para o povoado, a passo lento durante o primeiro quilômetro e meio para que esquentassem os músculos. Tratou de concentrar-se no ritmo de seus pés, mas os pensamentos sobre o Robbie e o pai Daar não deixavam de entremeter-se na mente. Que coisas tramavam?

Agora sabia que o sacerdote formava parte do que Robbie fazia ali em cima na montanha, embora da conversa só tinha pegado o justo para entender que, fosse o que fosse, o tempo se acabava. “Sempre que o faça funcionar logo”, tinha ouvido dizer ao pai Daar em um irado sussurro. Mas depois abaixou a voz, e a maciça porta de seu quarto amorteceu o som das palavras; nem sequer havia valido pegar a orelha.

Fazer que funcionasse o quê?

Além disso, caramba, por que se preocupava sequer! Que Robbie MacBain parecesse um bom tipo, e que começasse a confiar nele, não eram motivos suficientes para ofender-se porque não queria confiar nela.

Era sua governanta: cozinhava e limpava para aquele homem, voltava a costurar os pedaços quando lhe davam uma surra e além tinha contado uma mentira a seu pai. Robbie não tinha obrigação de explicar seus pesadelos noturnos a sua assalariada… Nem mesmo quando ela reunisse coragem para perguntar abertamente.

De repente uma buzina trovejou atrás de Catherine que soltou um grito e esteve a ponto de cair na vala. Como pôde, separou-se da estrada, subiu o aterro e se voltou para ver um enorme caminhão madeireiro que descia disparado a colina. Sem tirar uma mão da ensurdecedora buzina, o condutor dizia adeus com a outra mão e inclusive lançou uma piscada… Antes de voltar a concentrar-se na estrada quando o pneu dianteiro esquerdo deu no cascalho da vala em frente. Catherine notou que o chão tremia sob seus pés enquanto o homem batalhava por voltar a situar o sobrecarregado caminhão em seu sulco e depois desaparecia em uma curva, fazendo soar a buzina uma vez mais.

— Seu imbecil! — Gritou-lhe, agitando o punho entre a nuvem de pó que a rodeava — Tomara que fure os seis pneus!

Só respondeu o assobio cada vez mais longínquo da buzina.

Catherine deu um suspiro para tranquilizar seu acelerado coração, e estava a ponto de saltar da vala quando observou que uma caminhonete prateada dobrava a curva descendo a colina. Atravessava o pó que ainda ficava a uma velocidade muito menor que o caminhão, e viu que só tinha um ocupante.

Girou sobre seus calcanhares e se meteu no bosque, dizendo-se que já tinha entretido a suficientes imbecis por um dia. Lentamente, a caminhonete se dirigiu para ela e Catherine se agachou atrás de uma árvore, sem afastar os olhos do veículo que se aproximava enquanto a silhueta do condutor se fazia mais nítida.

Aquele homem parecia… Familiar. Catherine recuou a toda pressa, pegou-se ao chão e o coração começou a palpitar de terror à medida que a caminhonete foi aproximando-se.

Não! Não podia ser ele. Ron não podia tê-la encontrado!

Por fim viu seus traços com claridade através do pó que se dissipava: um homem com muito cabelo castanho, mandíbula sombreada por uma barba incipiente e uns olhos diminutos e entrecerrados, cravados na estrada que tinha diante.

Ficou absolutamente quieta, alheia ao barro que filtrava na roupa, tentando convencer-se de que não era mais que sua imaginação desbocada. Não era Ron.

— Não, você não é Ron — Disse em um tenso sussurro.

O condutor era muito maior; e, decididamente, tinha a face muito curtida para ser alguém que tinha estado três anos na prisão. E além disso tinha o cabelo salpicado de listras e levava um filhote branco sentado no colo, com o focinho pego ao vidro. Não era Ron. Via que não era Ron.

Agora só tinha que convencer seu palpitante coração.

Ficou seus bons dez minutos estendida na enlameada grama, tentando controlar a respiração e lutando contra o pânico que a petrificava.

De repente ouviu o som de outro veículo que se aproximava de onde estava a casa, e se adiantou muito devagar até ver o escuro Suv que descia a colina. Então, dando um grito de alívio, levantou-se como pôde e correu até a estrada.

Robbie se deteve de uma freada junto a ela, mas seu sorriso se desvaneceu assim que viu a roupa cheia de barro. Catherine abriu a porta e se meteu a toda pressa, cruzou as mãos no colo e inspirou com força.

— O que aconteceu? — Perguntou ele, esquadrinhando a estrada pelo para-brisa antes de voltar a olhá-la — Você caiu? Tiraram-na que a estrada?

— Eu… bem… Tropecei quando passou um caminhão.

Tomou o queixo, voltou-a para que o olhasse de frente e percorreu o corpo com o olhar; logo seus olhos refizeram o caminho até posar-se nos dela.

— Está pálida como um fantasma e continua tremendo. Machucou-se?

— Não. Só levei um susto — Disse ela; afastou-se bruscamente de seu puxão e soltou outro trêmulo suspiro — Pode me levar a casa antes de ir ao local de trabalho?

Ele vacilou; pelo visto não sabia se acreditava ou não.

— Cat — Disse com um grunhido — De agora em diante tem que correr pelas pistas de terra.

Ela se obrigou a sorrir.

— E esses ursos que comem o Ian?

— Darei-lhe uma campainha para ursos; assim a ouvirão chegar e partirão muito antes que você os veja.

Dispunha-se a alargar a mão para agarrar o queixo outra vez mas se deteve o ver que ficava tensa; então se limitou a cravar o olhar nela.

Um silêncio profundo e quase elétrico encheu a caminhonete. Catherine viu que ele estava em sua função de anjo da guarda e que tentava convencer-se de que ela estava bem.

Não estava nada bem, mas não pensava dizer por que. Seu terror era assunto dela, não dele. O homem que tinha visto não era Ron; tão seguro quanto Robbie estava a ponto de tocá-la outra vez… Com ou sem sua permissão.

E naquele preciso momento não o suportaria; dava-lhe igual quão sincero fosse seu interesse. Mal tinha obtido não sair correndo da caminhonete dando gritos quando ele tomou pelo queixo, e era provável que só com que tentasse limpar o barro do joelho tivesse um ataque de pânico capaz de competir com uma erupção vulcânica.

Então se voltou para o para-brisa para afastar-se de seu olhar, e perguntou:

— Vai subir de novo à montanha esta noite para que lhe deem outra surra?

— Está preocupada comigo?

Ela voltou a olhá-lo.

— Um destes dias não vai retornar; estava quase morto quando o encontrei. E em que posição deixa isso aos meninos e a sua família, essa que está tão decidido a proteger?

— Sempre retornarei, Catherine.

— Vai subir ali esta noite ou não?

— Não. Comprovei meu calendário quando você se foi e, depois de tudo, a pequena mentira que contou a Daar não foi uma mentira. Marcus Saints vem a nos visitar esta tarde, e também a juíza Bailey.

— Quem são Marcus Saints e a juíza Bailey?

— Saints é um assistente social que vigia de perto os meninos. E Martha Bailey é tudo o que se interpõe entre eles e o centro de internamento.

Catherine deu uma palmada no peito para conter seu grito afogado.

— Vêm à casa hoje? — Gritou; seu terror de antes se converteu em pavor — Merda, tem que me avisar dessas coisas! Dê a volta. Tenho que ir a casa!

— Não se preocupe — Disse ele com uma risadinha, ao tempo que colocava uma marcha, comprovava que não vinha ninguém pela estrada e depois fazia uma mudança de sentido em três manobras — Não chegarão até depois da aula.

— Mas tenho que começar a preparar o jantar.

Enquanto voltava a subir a colina, Robbie disse:

— Cozinhando como cozinha você? Embora fizesse sopa de pedras, a Saints sairia baba. E além disso a casa está bem, Cat — Soltou um bufido — Está muitíssimo mais limpa que a última vez que vieram de visita. Marcus me ameaçou avisando ao Ministério de Saúde…

 

Assim que chegaram a casa, Catherine disse a Robbie que fosse ao bosque com sua equipe e passou o resto da manhã e quase toda a tarde a beira do ataque de histeria. Descongelou suficiente carne de vaca para alimentar a um exército, esfregou os três banheiros até deixá-los reluzentes, limpou o pó, ordenou os quartos dos meninos e voltou a fazer as camas, passou o aspirador no piso de cima e no de baixo, limpou o chão da cozinha, cortou cinco quilos de batatas e cenouras, e além disso preparou à carreira uma fornada dupla de brioches.

Ao cabo de cinco horas, quando os meninos voltaram do colégio e Martha Bailey e Marcus Saints chegaram, Catherine se sentia como se tivesse deslocado uma maratona… E como se, de alguma forma, as tivesse arrumado para resisti-la também.

Não sabia o que esperava, embora temia o pior; entretanto, Martha Bailey conseguiu surpreendê-la. Era uma mulher diminuta, bonita, embora se notava que não se cuidava muito e, além disso, sinceramente afável. Ficou algo nervosa e mostrou um enorme sorriso quando Robbie saiu do estábulo para recebê-los.

Agora, nervosa, Catherine passeava de um lado a outro do alpendre da cozinha enquanto eles realizavam entrevistas individuais. Ficavam os dois últimos meninos; Marcus estava com Gunter no salão, e Martha falava com Rick na cozinha. Nora estava com Cody, aterrorizando os gatos do estábulo; Nathan estava fazendo suas tarefas do galinheiro, e Peter estava sentado no alpendre dianteiro com o nariz metido em um livro… Suspirando, apagando e, de vez em quando, soltando um palavrão.

Robbie estava limpando o que ficava de barro do Suv… Que Catherine havia dito que pusesse de frente às portas da garagem para que seus convidados não vissem a grade frontal. Ao ouvir sua ordem, ele soltou uma risadinha e explicou que o letreiro era um presente dos meninos, mas deu a volta ao Suv para dentro para lavá-lo.

Incapaz de aguentar mais a incerteza, Catherine decidiu fingir que tinha que dar uma volta ao jantar e ao entrar na cozinha tropeçou com Martha Bailey, que saía.

— Huy! Perdão…

— Está tudo bem, senhorita Daniels. Precisamente ia procurá-la — Martha sorriu com tristeza — Temo que não posso ficar para jantar: tenho que dar de comer a minha própria equipe. E pelo que me hão dito e pelo que levo cheirando toda a tarde, vou perder algo bom de verdade. Os meninos não pararam que falar de como cozinha você.

Catherine só pôde assentir com uma inclinação de cabeça.

— Peter me disse que faz você uma rica sopa de cevada — O sorriso de Martha voltou a aparecer — Peter disse muitas coisas… Todos os meninos me contaram muitas coisas. Bem-vinda a Pene Creek, Catherine. Espero de verdade que fique. —Inclinou a cabeça — Embora temo que se partir, quatro meninos e um bonito gigante a apanharão e a trarão de volta a rastros.

— Acredito que todos morriam de fome — Disse Catherine. Relaxando-se pela primeira vez em todo o dia, meneou a cabeça — Me tinham advertido que os meninos talvez fossem um pouco difíceis de dirigir, mas não vi nem rastro disso desde que cheguei aqui.

Martha lhe deu uns tapinhas no braço.

— É assombroso como a boa comida amansa às feras. Procure que não falte, e duvido que você vá a ter problemas. Voltarei no mês que vem; talvez então chegue a provar seus pratos. Adeus… E boa sorte.

Bem, disse Catherine enquanto a via subir no carro e partir; Robbie tinha razão: Martha Bailey era boa gente. Mas Marcus Saints parecia… Bom, aquele homem parecia como se podasse os dentes com delinquentes habituais.

Justo nesse instante chegou Nathan, que subiu muito devagar os degraus do alpendre, com a mão embalada contra o peito.

— O que aconteceu?

— Essas galinhas são feras, mamãe. Bicaram-me.

Catherine alargou a mão para examinar a ferida. Uma das galinhas velhas tinha conseguido fazer que sangrasse, mas nada grave.

— Desta não morre, Nathan. Vamos, lavarei e porei um curativo.

— É um trabalho perigoso, e não quero fazê-lo mais.

— Deixa ver se adivinho… — Catherine o meteu na casa diante dela para que não visse seu sorriso — Ainda não disse ao senhor MacBain que necessita trigo.

— Não.

— Vai dizê-lo.

— Não.

— Nathan…

— Podem morrer de fome.

— Nathan…

— Por que não o diz você por mim, em?

— Porque, jovenzinho, esse é seu trabalho.

— Mas é que dá medo… — Sussurrou Nathan, olhando-a com enormes olhos de cachorrinho.

— Não tem feito mais que ser amável conosco, Nathan. Ele não é como seu pai — Sussurrou Catherine; depois ficou de cócoras e agarrou os ombros — Não tem nada que temer do senhor MacBain.

Afastou-lhe o cabelo da face.

— Querida, se disser que as galinhas necessitam trigo, ele verá que jovenzinho tão responsável é e te respeitará por fazer sua tarefa. E além disso, Nathan, você respeitará a si mesmo se dirigir a ele com coragem e cumprir seu dever. Será mais dos um meninos daqui. Não vê que eles não têm medo do senhor MacBain, não?

Com o cenho franzido, o menino o pensou.

— Não — Reconheceu ao fim — E o senhor MacBain estará orgulhoso de mim, também.

Catherine suspirou.

— Nathan, as tarefas se fazem para a gente mesmo, não para o senhor MacBain nem para mim. Quero que veja que pode tratar com as pessoas, em particular com os homens, e não ter medo. Não tem que demonstrar nada a ninguém mais que a você.

— Compreendo — Sussurrou ele — Sei que te assusta que com o tempo eu seja como papai, e estou tentando não fazê-lo.

Catherine sentiu uma aguda pontada no coração. Quando se tinha dado conta seu queridíssimo filhinho de qual era seu maior temor?

— Venha, vamos cuidar da ferida que tem feito essa feroz galinha velha.

Enquanto jogava um olhar ao salão, para Gunter e Marcus, sentou ao Nathan na bancada, pegou o estojo de primeiro socorros do armário e começou a limpar a ferida. Robbie entrou do jardim, passou pela frente dos dois a caminho da boca do fogão, levantou a tampa da enorme e fumegante panela e começou a remover o guisado.

Catherine tirou a colher e o afugentou para o andar de cima para que trocasse a camisa úmida. Depois voltou junto a Nathan ao mesmo tempo em que, de passagem, tampava outra vez o guisado, mas em seguida afastou a vista quando Nora entrou a toda velocidade na cozinha, pondo o grito no céu; ao vê-la, correu para sua filha.

— Nora, o que acontece?

— Um monstro! — Disse Nora com um gemido — Papai está no estábulo!

Nesse instante Cody entrou de repente pela porta, com aspecto desesperado e nervoso também, e Nora choramingou e tentou escapar.

Catherine ficou paralisada do susto, agarrada a sua filha. Ron estava ali! Estava ali!

— Papai está no palheiro! — Voltou a gritar Nora, ao tempo que afundava a face no estômago de sua mãe.

— Era eu — Disse Cody, fazendo que Catherine se voltasse a olhá-lo — Só estava brincando. Esqueci… Perdoe!

Nesse instante, e antes que ninguém tivesse tempo de entender a situação, Gunter passou embalado pela frente dela, deu um grunhido selvagem e assassino, e se lançou para Cody.

— Seu maldito! — Gritou, com o punho dirigido a sua espantada e pálida face.

Por fim Catherine saiu de seu estupor e, ao dar-se conta do que ocorria, gritou:

— Gunter!

Não deu tempo a nada mais. Como se fosse a câmara lenta, viu que Gunter dava em Cody um murro na face, que mandou o indefeso menino cambaleando-se até a parede de trás. Bateu forte a cabeça, com um impacto que produziu um ruído surdo, e por um instante ficou de pé: tempo suficiente para que Gunter desse outro murro, desta vez no estômago. Então o maltratado menino escorregou, enfraquecido, até o chão.

Sem hesitar um momento, Catherine se meteu correndo na briga e se interpôs entre o enfurecido jovem e sua vítima.

Como estava olhando ferozmente a Gunter, não viu que Marcus se dirigia para ela, e tampouco viu que Robbie o agarrava pelo ombro e o detinha.

— Seu filho da puta! — Grunhiu Gunter, tentando rodear Catherine.

— Gunter! Não! — Gritou. Desta vez quando tentou dar em Cody outro murro, moveu-se com ele, fechando o passo, e sua voz se voltou mais tranquila — Basta. Não vai voltar a bater nele.

Gunter voltou sua cólera para ela.

— Você o ouviu! Assustou a Nora — Grunhiu — Vou matá-lo.

— Não, não vai fazer — Disse Catherine com firmeza; estremeceu-se quando Gunter tentou tirá-la do meio de um empurrão, mas arrumou para manter o corpo entre ele e Cody.

Gunter a agarrou pelos ombros, e Catherine elevou o queixo.

— Cometeu um engano — Sussurrou — Cody jamais assustaria a Nora de propósito. Só estava brincando.

— Como você sabe?

Catherine pôs a mão no agitado peito.

— Porque confio em Cody, Gunter. É que estava distraído.

— Então eu ensinarei a esse filho da puta a não distrair-se! — Espetou ele, zangado, enquanto a afastava e tentava chegar até Cody.

Catherine voltou a interpor-se entre eles, e desta vez se zangou um pouco também.

De repente tirou o pulôver, levantou a manga direita da camisa e deixou ao descoberto uma cicatriz que tinha três anos.

— Como, Gunter? — Disse em tom crispado — Assim é como vai ensiná-lo?

Depois levantou a barra da camisa o suficiente para descobrir outra cicatriz; esta subia da cintura até justo debaixo do peito.

— Ou melhor assim! — Deu as costas e separou o cabelo no pescoço, descobrindo outra cicatriz de uns cinco centímetros — Ao melhor isto o ajuda a não distrair-se!

Voltou-se de novo para o atônito Gunter.

— Dar uma surra em Cody fará que Nora se sinta segura? — Perguntou com os dentes apertados; avançou outro passo e o menino, repentinamente pálido, recuou — O que eu passei três semanas no hospital para que enviassem ao pai de meus filhos a prisão solucionou meus problemas?

Catherine se deteve e, com os olhos empanados, piscou; de repente sua cólera se desvaneceu.

— Não compreende, Gunter? — Sussurrou — Nora está tão assustada que até um inocente jogo do esconderijo lhe dá medo.

Gunter cravou o olhar nela; o peito subia e descia, agitado, e tinha os olhos nublados pela dúvida.

— Como sabe você, Catherine? Como sabe que Cody não agia com maldade?

— Confio nele, Gunter. Do mesmo modo que confio em você. — Alargou a mão e voltou a lhe tocar o peito, desta vez brandamente. Em voz baixa seguiu falando com aquele jovem que tinha chegado a lhe interessar tanto — Agiu sem pensar, Gunter. Você vive com o Cody mais tempo que eu. Assustaria de propósito a Nora? De verdade é tão mal intencionado?

— Não.

— Pois lhe deve uma desculpa — Disse.

Cody, que bem por prudência ou por dor ficou calado até então, de repente conteve o fôlego.

— Não — Disse com voz rouca — Não necessito que se desculpe.

Catherine deu a volta e tentou ajudar a levantar-se o maltratado menino. Sem dizer nada, Gunter a rodeou e, com cuidado, levantou Cody; depois o sustentou pelo ombro quando começou a cambalear-se.

Sem fazer caso de Gunter, Cody continuava pendente de Catherine e a olhou fixamente em silêncio. Por fim disse:

— Obrigado. A verdade é que não tenho feito nada em especial para ganhar sua confiança… Mas obrigado — Sussurrou.

— Não me dê obrigado, Cody. Além disso tenho que te pedir desculpas; Nora reagiu de maneira exagerada, e é minha culpa. Falarei com ela. — Encheram os olhos de lágrimas enquanto olhava ao maltratado jovem — Me deixará, por favor, que o explique e… Continuará sendo seu amigo?

Robbie MacBain ficou olhando enquanto Cody tentava compreender à aterrada mãe que se desculpava por tentar proteger seus filhos. Esfregou a face várias vezes, de cima abaixo, com a esperança de fazer voltar o sangue pouco a pouco e jogou uma olhada em Marcus; viu que estava tão pálido como ele. Não queria voltar a presenciar algo assim nunca mais.

Não sabia o que tinha sido pior: ver sua indefesa governanta justo diante de um jovem enfurecido, ver sua angústia diante dos medos de seus filhos, ou ver o testemunho indiscutível de suas cicatrizes, que indicaram precisamente onde se fundavam esses medos. Tinha necessitado cada grama da força de vontade que possuía para não se meter, e toda sua energia para deter Marcus.

Não, definitivamente não queria voltar a presenciar algo assim.

Rompendo o tenso silêncio, Robbie deu a Marcus uma palmada nas costas.

— Vamos, darei-te um gole em meu escritório.

Com gesto aturdido, Saints assentiu e deixou que Robbie o tirasse da cozinha. Depois cruzaram o abrigo encostado até o escritório que Robbie tinha construído fazia dois anos no extremo da garagem… Que era também onde guardava suas reservas medicinais de uísque escocês.

Embora, provavelmente, essa noite a dose seria a garrafa inteira; os dois a necessitariam até que voltassem a controlar suas emoções.

Não… Nunca mais.

— Quero saber onde a encontrou — Exigiu Marcus meia garrafa mais tarde.

— Assaltando meu galinheiro — Repôs Robbie, enquanto tomava outro sorvo de uísque.

— Como?

— Outra delinquente mais para minha fazenda…

— Não, de verdade, onde a encontrou? Tem alguma irmã?

— Diabos, espero que não. Uma Catherine Daniels é suficiente.

— Não é da aqui.

— De Arkansas.

Marcus deu um assobio.

— Respondeu a um anúncio do jornal? Como o redigiu? “Posto vago para mulher intrépida. Salário: dois mil dólares à semana. Ampla assistência médica e fundo de aposentadoria ao cabo de só seis meses”?

Robbie o olhou com o cenho franzido.

— Encontrei-a assaltando meu galinheiro faz seis dias. Ela e seus filhos se escondiam em uma velha cabana que há acima, na montanha. — Notou que Marcus seguia sem acreditá-lo; deu outro sorvo a sua bebida e voltou a tentá-lo — Está fugindo do bastardo que fez essas cicatrizes.

Marcus olhou ao Robbie e depois, seu copo vazio.

— Está divorciada?

— Sim.

— Tem a custódia dos pirralhos?

— Sim.

— Sabe ele que ela está aqui?

— Ainda não.

— Maldição, eu vi. Disse a Gunter que seu marido foi a prisão. Saiu?

— Faz três meses que o deixaram em liberdade condicional.

Marcus fechou os olhos.

— Estará segura aqui.

— Sim que o estará.

— Talvez… — Esclareceu seu amigo, ao tempo que, com olhos um pouco chispados, jogava-lhe um olhar feroz — Como diabos pode ficar aí sem mais e deixar que acontecesse isso? Como sabia que Gunter não ia esmagá-la contra a parede? Maldição! Essa mulher tinha o nariz pego ao peito do pior briguento que há a deste lado da fronteira canadense!

— Vamos chamar de instinto, Saints. — Robbie suspirou e baixou o olhar para seu copo — Ao menos isso é o que sabia nesse momento. Pensando-o agora, eu diria que estava louco. Juro que eu tampouco sei como o obtive.

Tomou um sorvo e prosseguiu:

— Embora por fim Gunter jogou uma boa olhada à violência do ponto de vista de uma vítima, não? Assim acredito que meu instinto era correto.

— Alguma vez foi fodido, MacBain?

— Não, nunca. Por isso me deu os meninos, não é?

Marcus soltou um bufo.

— Estão aqui porque ninguém mais os quer. Diabos, nem sequer o centro de internamento queria Gunter.

— O centro só o teria piorado, e você sabe.

Marcus voltou a encher o copo e tomou outro comprido trago do tranquilizador licor.

— Sim, sei; por isso movi céu e terra para trazê-lo aqui.

Robbie soltou uma risadinha.

— Sabe essa fera gatinha que acaba de ver na cozinha?

— Sim?

— Esteve todo o dia como um foguete a ponto de explodir. Estava segura de que você e Martha encontrariam defeitos a algo e levariam Cody, Rick e Peter. Acredito que teria batido em vocês com um pau se chegassem a tentá-lo.

Marcus deu um bufo.

— Por isso estive recebendo olhadas desconfiadas toda a tarde… Quando não colocavam a empurrões bolachas pela garganta… — Um repentino brilho apareceu em seus olhos — Você… Bem… Você tem lugar para dois meninos mais, não é?

— Não.

— OH, vamos, MacBain. Esta casa é grande.

Robbie deixou o copo na mesa, baixou os pés no chão e ficou de pé.

— Tenho uma equipe florestal de doze homens… Alguns dos quais, permito-me acrescentar, quase tiram os caminhões da estrada quando Cat ia fazendo jogging com seus shorts curtos. Tenho quatro meninos que mal começam a colocar as pilhas e, agora, dois meninos pequenos que se assustam até de suas próprias sombras. Tenho uma governanta que morre de medo de tudo o que seja maior que ela… E a verdade é que isso inclui a quase qualquer coisa… E além agora me enfrento à tarefa impossível de tentar cortejar essa mulher. E quer que me meta em mais confusões?

Marcus, que tinha afrouxado a mandíbula, de repente a fechou de repente. Com os olhos muito abertos e frágeis pela bebida, perguntou com voz rouca:

— Vai cortejá-la? Cortejá-la no sentido de casamento? — Pôs-se a rir.

— O que é o que tem tanta graça?

Marcus deu um bufido.

— Robert MacBain, o solteiro mais cotado dos bosques do norte de Maine… —Disse, agitando a mão no ar — E um homem do mais decidido a seguir assim, segundo o rumor… Você quer cortejar Catherine Daniels?

Sua pergunta terminou com outro ataque de risada.

— Sim!

Por fim Marcus ficou sério e meneou a cabeça.

— Essa mulher nunca se transformará na esposa de outro homem.

— Sim o fará. Catherine vai casar- se comigo, e além disso estará louca de alegria!

Os dois voltaram a encher seus copos diante aquela arrogante afirmação. Um deles, decidido; o outro, aniquilado.

 

Cody estava instalado em sua cama com uma bolsa de gelo na face, um refresco de gengibre para seu revolto estômago e a promessa de um pouco de guisado quando se sentisse melhor. No jantar não se falou muito; Robbie e Marcus brilharam por sua ausência, e Nora e Nathan estiveram outra vez tão calados como antes. Gunter tinha decidido que mais que jantar, necessitava um passeio, e Rick e Peter estavam lavando os pratos sem que ninguém o tivesse pedido sequer.

Agora Catherine estava no estábulo frente a seus dois filhos que, sentados em um monte de palha, cravavam o olhar nela com os olhos como pratos, cheios de incerteza.

— O que ocorreu antes na cozinha não foi mais que um tremendo engano —Começou, sentada em outro monte justo diante deles — Nora, se alguma vez algo te assustar, faz bem em dever dizer me em seguida. Gunter é o que tirou conclusões precipitadas sem comprovar primeiro os fatos.

Inclinou-se para frente e lhes acariciou os joelhos.

— Já viram que os mal-entendidos produzem uma confusão tremenda. A pessoa pode sair ferida quando se reage sem descobrir antes a verdade. Sigo querendo que os dois me contem se algo ou alguém os assusta, mas também têm que começar a confiar nas pessoas — Acrescentou, enquanto se destacava — Todos temos que fazê-lo, incluída eu.

— Você disse a Gunter que confiava em Cody — Sussurrou Nora.

— Sim disse — Disse Catherine, assentindo — Porque confio. Os meninos foram sempre amáveis com vocês, não é? Você confia em que eles a cuidem, Nora?

A menina assentiu.

Catherine atraiu a sua filha para si e a abraçou. Nora tinha seis anos; não dezesseis, nem vinte e seis… Só era uma menina pequena que tinha passado toda a vida com uma mãe assustada e muito protetora.

— Já se acabou o fugir de seu pai — Sussurrou Catherine; inclinou-se para frente, pôs a mão também sobre o ombro de Nathan e sorriu aos dois — Não há nada que possa nos fazer, e por isso já não vamos ter medo dele.

— Poderia voltar a te bater — Sussurrou Nathan — Poderia te machucar tanto que tivesse que voltar para o hospital.

Catherine meneou a cabeça.

— Não, Nathan, não pode — Assegurou, ao tempo que se acomodava bem em seu monte de palha — Igual a vocês, eu também cresci estes últimos três anos. Seu pai não pode me fazer mal porque não deixarei. É que por um tempo me esqueci desta verdade e saí fugindo, mas isso se acaba aqui. Agora este é nosso lar.

Inclinou a cabeça sem deixar de olhá-los.

— Sabem como chamam às pessoas que vivem no Maine? “Maníacos”. E isso é o que somos agora: somos “maníacos”.

— Mas isso significa gente louca — Disse Nathan.

Catherine assentiu.

— Pois isso é o que somos. Estamos tão loucos que não tememos a nada nem a ninguém. Os dois gostam de ir ao colégio daqui, não?

Ambos assentiram.

— E vocês gostam dos meninos?

— Gunter me dá bastante medo… — Disse Nathan.

— Gunter aprendeu uma lição muito valiosa esta noite — Assegurou Catherine — Recordam que disse a vocês que os considerassem a todos como anjos da guarda? Bom, pois não tentava Gunter ser um anjo da guarda de Nora?

— Acredito que sim — Concordou Nathan — Mas, mamãe, não devia te se posto no meio. Poderia ter se ferido sem querer.

— Ah, mas é que eu também tenho um anjo da guarda, que não teria permitido que me machucasse.

— Quem?

— O senhor MacBain. Ele estava ali mesmo. Se tivesse acreditado que iam me machucar, me teria salvado.

— Como sabe? — Perguntou Nora.

— Porque temos um trato — Disse Catherine a seus filhos — Protegemo-nos: eu cuido do senhor MacBain e ele cuida de mim.

— Porque trabalha para ele? — Perguntou Nathan.

— Não, por essa confiança de que falava. Ele confia em mim e eu confio nele.

Em um sussurro, Nora disse:

— Eu confio no senhor MacBain. E Gunter não me dá nada de medo, porque é meu anjo da guarda — Manifestou com seus seis anos cheios de autoridade; depois assinalou para o lado do estábulo — E o condutor de meu ônibus disse que a fada dos dentes vive justo aqui em Maine; justo no alto dessa montanha.

Catherine não tinha nem ideia de como a conversa tinha passado de anjos da guarda a fadas dos dentes, mas agradeceu por isso.

— Como é que o condutor do ônibus contou isso? — Perguntou Nathan; pelo visto também estava disposto a trocar de tema.

— Porque lhe mostrei o dente — Disse Nora; baixou o lábio e depois, com a língua, moveu um dos dentes de baixo — E a fada dos dentes descerá da montanha e me dará uma surpresa, assim que caia e o ponha debaixo do travesseiro.

Por fim se soltou o lábio.

— Mas o que faz com todos os dentes, mami?

Vá, essa sim que era uma boa pergunta onde as houvesse. Catherine imitou o gesto de antes da Nora, encolheu os ombros e subiu as palmas das mãos.

— Não tenho nem ideia — Reconheceu; depois lançou um rápido sorriso — Mas com certeza que adivinho quem sabe. Por que não o perguntam a Cody e a Gunter?

Nathan se apressou a menear a cabeça, e Nora baixou o olhar a seu colo, meneando a cabeça também.

Catherine levantou o queixo de sua filha.

— Se não fizerem as pazes com todos, Nora, o silêncio será como uma nuvem negra que flutuará sobre a casa. — Olhou a Nathan também — Quero que levem uma terrina de guisado a Cody e que peçam a Gunter que vá com vocês. E levem também a Rick e a Peter. E então perguntem aos quatro o que faz a fada dos dentes com todos os dentes que recolhe.

— E se brigarem outra vez? — Sussurrou Nora.

— Não brigarão — Prometeu Catherine — Gunter lamenta muito ter batido em Cody, mas agora toca a vocês demonstrar que todos seguem sendo amigos. Agora os toca ser o anjo da guarda deles.

— Mas eu só sou uma menina pequena. Não posso ser um anjo.

— Claro que sim. E Nathan também. Quando um grupo de pessoas vivem juntas em uma casa, ajudam-se. Não importa o pequeno ou quão maior seja. — Catherine puxou seus filhos para pô-los de pé — Recordam como me ajudaram a salvar a vida do senhor MacBain lá em cima na montanha? Bom, pois esta é sua oportunidade de serem fortes e valentes outra vez para afugentar a nuvem negra da casa. Venham.

Dirigiu-os para a porta.

— E não esqueçam levar a Cody um pouco de guisado. Que o leve Gunter —Acrescentou, pensando no chão limpo.

Devagar, os meninos foram para a porta do lado extremo do estábulo mas se detiveram quando, na metade do corredor, Robbie saiu das sombras.

— É-Senhor MacBain… — Disse Nathan.

— Nathan, Nora… — Repôs ele com uma inclinação de cabeça.

Contendo o fôlego, Catherine observou que Nathan endireitava seus pequenos ombros e elevava a vista para o imponente gigante.

— As galinhas necessitam trigo, senhor — Sussurrou — E o cubo da água goteja porque se oxidou todo.

Robbie assentiu e pôs a mão no ombro.

— Obrigado por me dizer isso amanhã comprarei trigo e um cubo novo. Nunca me tem feito muita graça atender às galinhas, e te agradeço que se encarregue dessa tarefa por mim.

Inclusive sob o peso daquela grande mão, Catherine viu que os ombros de Nathan se endireitavam mais ainda.

— Não me importa fazê-lo — Disse seu filho — E além disso as galinhas se acostumaram a mim.

— Eu vou levar a Cody um pouco de guisado — Interveio com voz fina Nora, que não pensava ficar à margem; depois elevou a vista para Robbie, enrugando a face — Sabe você o que faz a fada dos dentes com todos os dentes?

Robbie a olhou, evidentemente perplexo, e meneou a cabeça.

— Parece-me que deveria seguir o conselho de sua mãe e perguntar aos meninos — Sugeriu, ao tempo que soltava Nathan — É provável que eles saibam.

Nora agarrou a mão de Nathan e puxou-o até sair do estábulo. Robbie os olhou ir-se e depois se voltou para Catherine.

— Quanto tempo está aí? — Perguntou ela.

Ele não respondeu, mas sim avançou pelo corredor em direção a ela, que nesse momento se fixou no comprido e grosso pau que levava na mão. Quando estava a dois passos de distância se deteve, colocou as mãos e o pau à costas e a olhou em silêncio.

Catherine recuou um passo.

— Esteve bebendo — Disse, e recuou um passo mais.

— Sim, um pouco. Mas nem o suficiente para me embebedar. Catherine, não tem por que me olhar assim: nunca me embebedei, e tampouco me embebedarei porque não me faz muita graça a sensação de perder o controle. —Reagiu a sua retirada dando outro passo e converteu a voz em um sussurro — E, mulher, assim exatamente é como me senti esta tarde na cozinha.

Catherine tinha ido recuando pouco a pouco até a outra parede do estábulo, e, mesmo assim, Robbie avançou até estar tão perto que ela sentiu o calor de seu corpo. Então apoiou o pau na parede, pôs as mãos a ambos os lados de sua cabeça e a olhou tão intensamente que ela teve que apertar os joelhos para que não se dobrassem.

— E se alguma vez volto a te pegar em meio de uma briga entre alguém que seja maior que seus filhos, não serei seu anjo da guarda, Catherine, e sim seu pior pesadelo. — Inclinou-se mais e baixou a cabeça para que sua face ficasse só a uns centímetros da sua — Entende o que digo, pequena Cat? Não voltará a te pôr em semelhante situação.

Ela teria assentido se não tivesse temido que seu nariz se chocasse contra o dele.

— P-para que é o pau? — Sussurrou, voltando a cabeça para olhar além da mão de Robbie; disse que isso era mais seguro que olhar aqueles olhos ferozmente inquietantes.

Sem recuar, ele ficou direito, tirou as mãos da parede e as separou dos lados, com as palmas para ela.

— Lá em cima na cabana, quando despertei e me encontrei preso à cama, disse que você não gostava de se sentir indefesa…

Seu sotaque estava embaciado de… Catherine não sabia se era a cólera o que carregava suas palavras ou alguma outra emoção.

— Assim que te trouxe um pau forte — Prosseguiu ele, sem mover-se, com os braços abertos — E além te dou a escolher como deseja terminar esta conversa.

— Q-o que quer você dizer?

Robbie estendeu mais as mãos.

— Que ou vem a meus braços, Catherine, com sua promessa de não voltar a fazer algo semelhante, ou agarra esse pau e me bate.

Ela se assustou tanto que começou a tremer.

— Não penso te bater.

— Então veem a meus braços. Demonstra isso que disse a seus filhos de que confia em que não te farei mal.

— T-tampouco quero fazer isso. Só quero partir.

— Não — Disse ele meneando a cabeça — Essa não é uma das opções que te dei.

— Mas por quê? Por que faz você isto?

— Porque preciso te abraçar — Sussurrou ele — E sentir por mim mesmo que está bem.

— Mas se estiver bem… Gunter não me tem feito mal.

— Veem a meus braços, Catherine — Repetiu ele em voz baixa — Me conceda essa mesma confiança que deste ao Gunter.

Ela baixou o olhar até a camisa de Robbie.

— Não posso. Não é o mesmo. Abraçar-se leva a… Leva a outras coisas.

— Sim, com bastante frequência.

— Não posso fazê-lo. — Elevou a vista para ele, com os olhos suplicantes — Não o compreende? Não posso confiar em outro homem desse modo.

— Então agarra o pau.

— Não! — Espetou ela, irritada. Depois cruzou de braços, negando-se a tocar aquele condenado pau — Vou sair daqui, Robert MacBain, sem te bater e sem abraçá-lo!

— E, exatamente, como vai fazê-lo? — Perguntou ele, cruzando os braços também — Me dá a impressão de que estou no meio.

Ela deu um chute no chão.

— Isto é uma tolice. Você vê que estou bem.

— Mas não vê que eu não? — Sussurrou ele, estendendo uma mão.

Ela lançou um olhar feroz.

— É o licor o que a faz tremer.

— Não, pequena Cat. É você. — Voltou a estender as duas mãos — Veem meus a braços, Catherine.

Esta elevou a vista para ele, para seus insondáveis e profundos olhos cinza. O que queria dela? Mais que confiança, apostava. Mas o quê?

— Só um abraço?

— Sim. Só que me permita te abraçar.

Catherine se separou da parede, vacilou, aproximou-se muito lentamente, inspirou fundo e, devagar, rodeou-lhe a cintura com os braços.

Com muita delicadeza, e com um pouco de acanhamento também, ele fechou os braços em torno dela e com a mão levou a cabeça contra seu peito.

— Ai, Catherine… — Sussurrou dando um suspiro — É a pessoa mais valente que tive o privilégio de conhecer.

Catherine ficou ali, rígida entre seus braços, e esperou que o pânico se apoderasse dela… Mas só sentiu o poderoso calor de Robbie, e o firme e forte batimento de seu coração. Pouco a pouco, enquanto a abraçava com ternura, os tensos músculos de suas costas se relaxaram, e com uma mão acariciou ligeiramente a coluna vertebral.

Catherine soltou um suspiro também e se fundiu com ele.

O peito de Robbie retumbou baixinho.

— Deus, que agradável! — Roçou-lhe a cabeça com os lábios — E é muito delicada para ser tão forte.

O nó que subiu à garganta de Catherine fez impossível responder mais que fincando os dedos nas costas. Fazia cem mil anos que não a abraçavam.

— Posso morrer feliz hoje — Sussurrou ele, que respondeu a seu contato esticando os braços.

— Só é um abraço — Disse ela por fim, embora sua voz soou amortecida contra o peito de Robbie.

— Sim, mas sou consciente de quão especial é. A Providência sorri aos dois esta noite.

— O que está dizendo? — Perguntou ela, elevando a vista.

Só permitiu mover a cabeça, não o corpo, e a olhou aos olhos, sorrindo.

— Acredita na magia, Catherine?

— Claro que sim — Disse ela, elevando a vista por volta de seus reluzentes olhos e sorrindo também — Magia é o que faz que saia o sol cada manhã.

— Não — Disse ele em um sussurro ao tempo que meneava a cabeça, sem afastar os olhos dos seus — Isso é a física. Magia é o que traz uma mulher para a minha montanha, quando tinha um milhão de montanhas mais onde escolher, e depois permite que me resgate da borda da morte. E além disso a magia a mete em minha casa e depois lhe dá a coragem de vir a meus braços.

Roçou-lhe a testa com um dedo grande e calejado; depois o desceu pela bochecha, chegou ao queixo e levantou a cara para ele.

— São duas pessoas, Catherine — Sussurrou, com a boca só a uns centímetros da dela — Que descobrem uma confiança comum e sagrada.

Acabou sua definição apenas com um toque de seus lábios sobre os de Catherine; um beijo tão terno e tão fugaz que ela se surpreendeu ficando nas pontas dos pés desejando mais.

Mas se acabou antes que soubesse se tinha ocorrido sequer. Só pôde dar um grito afogado quando subitamente se viu levantada do chão, levada até o montão de montes de palha do canto e posta sobre a de cima com uma alegre risadinha.

Robbie subiu de um salto a seu lado, alargou o braço, tomou sua mão na palma aberta e, com o polegar, acariciou-lhe os dedos.

— Sempre me surpreende que umas mãos tão frágeis sejam tão fortes — Disse — Nunca compreendi que tudo como a carência de força física de uma mulher incluso aumenta sua capacidade de prosperar.

Catherine também baixou a vista para as mãos, enquanto se esforçava muito por não deixar que seu simples contato acelerasse o coração.

— O que quer dizer? — Sussurrou.

Com o polegar, desenhou um preguiçoso círculo na palma enquanto explicava:

— Quando quero que ocorra algo, tenho tendência precisamente a exigir resultados. E se isso não funciona, confio em meu tamanho e em minha força para obter o que desejo. Mas você, Catherine — Fechou os dedos sobre os seus — Você aborda o problema de um modo muito diferente.

— C-como?

Robbie moveu os ombros para olhá-la mais de frente sem deixar de ter sua mão apanhada com suavidade.

— Olhe esta noite por exemplo. Eu teria pego Gunter pelo cangote e teria dado uma boa dose de sua própria medicina.

— Você não teria batido nele.

Meneando a cabeça, ele conveio:

— Não. Mas te juro por Deus que teria partido com algo em que pensar —Levantou as mãos e roçou apenas os nódulos com os lábios — Entretanto, você obteve o mesmo sem violência. Em vez de tentar fazer entrar a razão em Gunter à força de golpes, mostrou-lhe como se vê a conduta agressiva do outro lado. Os mesmos resultados, mas muito mais contundentes.

— Só tentava impedir que voltasse a bater em Cody.

— Sim. Mas onde eu teria usado minha força para detê-lo, você usou a vergonha.

— Eu não quero envergonhar a ninguém — Sussurrou ela.

— Mas não é essa uma emoção mais forte, Catherine? Que lição recordará melhor Gunter, ver sua ação tal como é e envergonhar-se de si mesmo, ou, simplesmente, que o derrote alguém maior? E por isso, pequena Cat — Disse, enquanto com a mão livre dava um toque no nariz — As mulheres são mais fortes que os homens.

Catherine fechou sua mão livre em um punho e esforçou por não esfregar o nariz.

—Você me faz parecer algo que não sou. Eu não estava sendo valente, nem preparada, nem tentava ensinar uma lição a Gunter; só queria deter a briga.

Com uma inclinação de cabeça, ele assinalou o pau apoiado na parede.

— Pôde procurar uma arma, inclusive uma cadeira, e detê-la igual de rápido.

— Se as palavras não tivessem funcionado, provavelmente o teria feito — Disse ela, cedendo por fim e esfregando o nariz.

— Sim —disse ele com uma risadinha — Não duvido de que o tivesse feito. Porque, igual a mim, também encontra o modo de conseguir o que deseja.

Levantou a mão com a que apanhava a sua e, depois de abri-la levou-se a palma aos lábios e a beijou; depois fechou os dedos sobre seu beijo e a soltou.

A seguir se recostou comodamente na parede e inclinou a cabeça para cravar a vista no outro extremo do estábulo.

— Bom, Catherine… — Disse com um suspiro — Decidimos que confiamos um no outro; estamos de acordo em que é tão forte como eu, só que de uma forma diferente, e além na casa temos seis jovens que necessitam nossas forças combinadas para procurar converter-se em excelentes adultos.

Olhou-a.

— O que te parece se ampliarmos nossa pequena conspiração, juntamos a seus filhos com meus meninos e vemos o que podemos fazer para criá-los?

— Mas se isso é o que estamos fazendo.

— Não. Esta noite, quando pus a mão no ombro de Nathan, era a primeira vez que eu tocava seu filho. E além de que ela me agarrasse a mão no colégio, nem me aproximei da Nora.

Catherine baixou o olhar até seu colo.

— Q-o que está você me pedindo?

Robbie levantou o queixo para que o olhasse.

— Estou te pedindo permissão para formar parte de suas vidas. Para ser um exemplo do que deveria ser seu… Um pai. Para ensinar que um homem é alguém com quem se deve contar para procurar proteção e segurança, não de quem se foge.

— Não está já o bastante atarefado com os meninos, sua família e seu… Seu… O que queira que esteja fazendo acima nessa montanha? — Perguntou Catherine, enquanto assinalava com um gesto para o TarStone.

— Não. Nunca se está muito atarefado quando se compartilha a tarefa com alguém.

— Mas por que quer encarregar-se de meus filhos?

— Porque te quero.

— Não.

— Ofereci-te um pau forte.

— Eu não bato nas pessoas!

— Pois terá que fazê-lo, pequena Cat — Sussurrou ele; agarrou-lhe o queixo outra vez e se inclinou para aproximar-se — Porque esse será o único modo de se desfazer de mim.

— Pois partirei — Disse ela; suas palavras se chocaram contra ele para devolver o eco da pena que havia em sua voz.

— Já acabou isso de fugir, Catherine. Confrontará seu problema aqui, comigo, ou já pode cavar um buraco, se colocar dentro a gatas e fechá-lo de um puxão atrás de ti.

— Já está fazendo-o outra vez — Disse ela; voltou-se com trabalho até ajoelhar-se frente a ele, resolvida a fazê-lo entender — Você vê algo que não está aí. Eu não sou essa valente que não deixa de dizer que sou. Custa-me um mundo me levantar cada manhã e confrontar outro dia incerto.

— Mas, apesar disso, levanta-se, garota.

— Não quero que me queira — Sussurrou ela — Assim só nos faremos mal os dois.

— Muito tarde — Murmurou ele, enquanto tomava a cara nas mãos — Quando me encontrou na montanha e escolheu me salvar a vida antes de fugir, já era muito tarde para os dois.

Catherine pensou dizer que não tinha tido escolha nenhuma. Pensou aproximar-se e agarrar o pau e fazer entender de uma vez… E então pensou no segura que se sentiu em seus braços quando a abraçava. No valente… E, sim: no forte que se havia sentido.

Tão forte em realidade, decidiu enquanto olhava seus fascinantes olhos cinza, que por fim ia deixar de perguntar-se como seria que a beijasse Robbie MacBain e, simplesmente, beijaria-o ela mesma.

Imitando o modo em que ele a tinha agarrado, tomou a face entre as mãos e baixou a boca até a sua. E não foi um beijo fugaz o que deu, e sim um beijo que não deixou nenhuma dúvida do que acontecia.

Robbie fez um ruído… Catherine não soube decidir se grunhia ou gemia; depois a estreitou em seus braços, reclinou-se contra a parede, inclinou a cabeça e fez mais intenso o beijo abrindo os lábios sobre os seus.

Tinha sabor a bom uísque escocês; uma mistura perfeita de calor e atrativo masculino que fez que a mente de Catherine ficasse a dar voltas. Desta vez não havia nada vacilante nele, nada fugaz nem vago.

Ela abriu a boca; sua crescente urgência desejava mais, e se fundiu contra ele saboreando, paquerando com os avanços de sua língua, alegrando-se dos estremecimentos que a percorriam. Também fez um som, mas quis acreditar que era pelo assombro de não assustar-se, por sentir-se reafirmada com a resposta dele.

Os músculos dos ombros de Robbie se esticaram sob suas mãos, e os tendões do pescoço se endureceram quando ele se moveu para saboreá-la. A Catherine pareciam pesar os seios, e seus mamilos se animaram ao pegar-se ao ardente calor dele.

Elevou-se para receber cada nova sensação e decidiu que sua libido não estava morta nem muito menos. Aquele imponente gigante de homem, com sua exasperante alternativa de um pau ou um abraço, não fazia mais que zombar de seus temores com sua boca, com seu sabor e sua absorvente presença.

Robbie rompeu o beijo e seus lábios foram deixando uma esteira de estremecido prazer pela mandíbula de Catherine, subiram pela bochecha e cruzaram sua têmpora. E depois tomou a cabeça na mão e a colocou sob seu queixo, ao tempo que dava um suspiro tão feroz que fez soltar de repente o ar dos pulmões.

— Acredito que deveríamos parar já — Sussurrou — Antes de que esqueça minhas nobres intenções.

Catherine teria suspirado também se o apaixonado abraçar o tivesse permitido. Sem saber como, tinha acabado sentada escarranchado sobre seu colo, e por fim aquela escandalosa postura, e além disso a prova inequívoca das intenções, não tão nobres, do desejo de Robbie empurrando intimamente contra ela, acabaram por pô-la nervosa.

Pôs a prova aquelas intenções tentando escapar com um rebolado; imediatamente, e antes que pudesse dar um grito afogado, ele grunhiu bastante alto, agarrou-a e a pôs de pé no chão.

Com os punhos agarrando a dianteira do pulôver, os antebraços apertando os sensibilizados seios e a face a ponto de explodir em chamas, Catherine ficou olhando-o.

— Acabaram-se as alternativas, Cat. Dá a volta e vá.

— Eu… Isto foi… Este beijo não era…

— Entra em casa, Catherine.

Ela girou sobre seus calcanhares e se dirigiu para a porta.

— E leve o pau.

Catherine se voltou, meneando a cabeça.

— Não o quero.

Ele escorregou até descer de seu lugar, foi até o pau e o agarrou; depois foi para ela, o pôs na mão e fechou o punho em torno dele.

— Mas eu sim que quero que o tenha. Ponha junto ao relógio da cozinha, e se alguma vez se produz outra briga e eu não estou em casa, usa-o.

Ela tentou empurrá-lo de novo para ele.

— Não penso bater em ninguém…

Ele seguiu sujeitando o punho fechado sobre o pau.

— Se um desconhecido chegar à casa e ameaça a seus filhos, vai joga-lo agitando o dedo?

— Certamente que não.

— Se Rick começar a brigar com o Peter e não quer parar, e não há ninguém mais ali, o que fará?

— Eu… Eu faria… Faria…

Brandamente, passou um dedo pelo lado da face.

— Só é uma arma, Cat. Um nivelador que multiplica sua força por dez. Um bom pau marca a diferença entre estar absolutamente indefesa frente a alguém que tem duas vezes seu tamanho, ou sair vitoriosa.

— Também é uma arma que pode voltar-se contra mim.

— Sim, mas amanhã começo a te ensinar como evitar que isso ocorra.

— Como?

— As armas são tão eficazes como a pessoa que as usa, Catherine; mas com o treinamento adequado se pode tombar um urso em seco só com um pau. — Sorriu e deu um leve toque na ponta do nariz — E vou ensinar- te como se faz. Sempre se pode encontrar algo que sirva de arma, já seja um taco de beisebol, o cabo de uma vassoura ou o ramo de uma árvore.

Ela se soltou, estreitou o pau contra seu peito e esfregou o nariz com a manga. Depois abriu a boca, mas não saiu nenhum som, de modo que a fechou de repente, girou sobre seus calcanhares e se dirigiu com passo resolvido para o extremo do estábulo.

— Felizes sonhos, pequena Cat — Disse ele em voz baixa atrás dela.

Catherine se deteve na porta e se voltou a olhá-lo, com o pau ainda obstinado contra o peito. Baixinho, disse-lhe:

— Eu gostaria que desse exemplo a Nathan e a Nora. E sim que quero ajudar com os meninos. — Elevou o queixo — Mas também quero que deixe de fazer o que estiver fazendo nessa montanha.

— Lamento-o — Disse ele meneando a cabeça — Vai ter que se conformar com dois de três.

— Eu o deteria se o conto a seu pai.

— Sim, mas não o fará. Não é a aventura o que me leva a montanha, Catherine, e sim o dever. E o único que não deve fazer jamais é se entremeter em meu dever.

Lançando um olhar feroz, ela repetiu:

— Seu dever… Que espécie de dever obriga a um homem a que lhe deem uma surra e quase o matem? Isso não é dever, isso é estupidez. — Agitou a mão em um gesto de frustração — E se souber que vai colocar -se em uma briga, por que não leva algo melhor que essa estúpida espada que tinha quando te encontrei?

Ele soltou uma risadinha em voz baixa.

— Essa estúpida espada é minha arma predileta, igual a esse pau será a sua quando tiver treinado. Entra em casa, Catherine; já superou muitas coisas em um dia. Há seu tempo chegará a compreender por que faço o que faço, mas esta noite não.

Ela cravou o olhar no comprido corredor do estábulo, tenuamente iluminado; ele ficou com os pés bem plantados, os braços cruzados sobre o peito e seus penetrantes olhos cinza cravados diretamente nos seus.

Então Catherine deu meia volta e, em silêncio, saiu do estábulo.

 

Uma vez que Catherine Daniels colocava algo na cabeça, abordava-o com a ferocidade de um leão protegendo a seus filhotes; Robbie já tinha indícios disso e não deveria ter se surpreendido. Mas quando de novo tentou lhe abrir a cabeça com o pau, perguntou-se se não estaria criando um monstro ou, simplesmente, proporcionando uma válvula de escape a seis anos de maus tratos matrimoniais.

Deixou Catherine sem alvo limitando-se a esquivar o golpe, francamente brutal, e disse:

— Está deixando que suas emoções governem seus atos.

Ela se voltou para olhá-lo de frente, com o pau levantado e disposto para outro ataque, e Robbie elevou a mão para detê-la.

— Isto é o que tentava te explicar antes, Cat. Começou com movimentos calculados, mas já só tenta golpear imprudentemente, por pura frustração. Se deixar que intervenham os sentimentos, perde a briga.

Catherine deixou o pau no chão e se apoiou nele enquanto passava uma tremula mão pela testa.

— É que se alguém tentar de te quebrar os dentes, os sentimentos entram em jogo — Disse, com a cara vermelha pelo esforço.

Ele se aproximou e a desarmou; depois manteve o pau em equilíbrio sobre um dedo.

— Não, trata-se do controle. A arma é sua alavanca: você é o ponto de apoio e sua força se multiplica quando impulsiona o golpe através do corpo.

— A física que estudei no colégio está oxidada.

— Embora siga utilizando-a todos os dias: abre a teimosa tampa de um bote, ou desagrade o peso ao levantar e tirar do forno um assado de dez quilos… Usa o corpo Cat — Disse Robbie.

Colocou-lhe as mãos, uma na metade do pau e a outra a uns quarenta centímetros do centro. Depois se situou atrás e pôs suas mãos sobre as dela.

— Não tem que balançá-lo como se fosse um taco de beisebol. Olhe: separa-se de você o pau de um empurrão — Ordenou, ao tempo que impulsionava para frente a mão direita. Depois seguiu o movimento empurrando a mão esquerda em um arco descendente e depois para cima, e se deteve com o extremo mais curto do pau quase à altura da mandíbula de um homem — Aí está. Bata primeiro no ombro e, rapidamente, acompanha o golpe utilizando o ímpeto de sua reação, que será afastar o pau, sobe e o alcança sob o queixo.

Voltou a golpear com o extremo curto para frente.

— Ou aqui — Sugeriu — Aponta à garganta ou ao peito. Um empurrão forte e rápido e o deixará dando estertores.

— Mas e se a pessoa a quem enfrento souber brigar? — Perguntou ela, saindo de seu abraço e voltando-se para olhá-lo — E se for alguém como você e conhece todos os truques?

Robbie assinalou com um gesto para o prado.

— Então volta para velho e seguro plano B: corre como alma que leva o diabo.

— E se não puder correr? E se estiver encurralada?

Com uma inclinação de cabeça, ele assinalou o pau que tinha na mão.

— Quando acabarmos, ao menos será capaz de sair brigando de um canto. Mas, Cat, quase ninguém com quem se encontre estará treinado no combate corpo a corpo.

— E além disso pensarão que não represento nenhuma ameaça devido a meu sexo e meu tamanho… — Repetiu ela segundo o sermão que tinha dado antes.

— Sim. O elemento surpresa é sua maior arma.

Catherine baixou a vista para o pau; depois o subiu de novo para Robbie e lhe lançou um sorriso radiante.

— Obrigada. Nunca acreditei que a violência tivesse um lado positivo, mas ser capaz de me defender é muito melhor que passar três semanas no hospital.

— Sim, embora só é violência se deixar que suas emoções entrem em jogo. Bem empregada, uma arma não é mais que uma ferramenta; não quer matar a ninguém, e sim se proteger, e isso se consegue sendo o que controla.

Deu voltas ao pau na mão como se fosse a bengala de uma senhora e lançou um presunçoso sorriso.

— Eu gosto de muito dessa ideia. Que outros truques tem em reserva?

Sim, certamente estava criando um monstro… Mas, ao menos, adiante seria um monstro preparado.

— O que lhe parecem as facas? — Perguntou Robbie.

O sorriso dela desapareceu tão rápido como tinha chegado.

— Para usar uma faca terá que aproximar-se…

Ele meneou a cabeça para descartar sua preocupação se inclinou e se tirou a pequena adaga da bota.

— Mas é ainda melhor que um pau. — A ofereceu para que a pegasse — E além disso é útil para outras coisas também.

Catherine observou atentamente a diminuta e afiado faca.

— Parece antiga.

— Sim. Tem mais ou menos a mesma idade que minha espada.

Ela o olhou inclinando a cabeça e levantou uma sobrancelha.

— Onde está sua espada, por certo? — Perguntou — E os dois plaids que te lavei, cerzi e meti no roupeiro?

— Escondidos na montanha.

Catherine o olhou fixamente; estava claro que sopesava as possibilidades de conseguir que Robbie desse mais detalhes, mas deve ter decidido que não teria sorte, porque baixou o olhar por volta das duas armas que tinha nas mãos.

Ao mesmo tempo que lhe devolvia a adaga, disse:

— Parece-me que aprenderei a usar primeiro o pau. — Colocou as mãos onde ele as tinha posto. — Tem um aspecto muito menos horripilante e intimida mais.

Robbie deslizou a adaga na bota com uma risadinha; depois plantou os pés e se agachou, enquanto estendia os braços e a olhava agitando os dedos.

— Venha então, pequena Cat. Vejamos se me deixa sem fôlego.

Catherine o observou, observou o pau e depois voltou a elevar a vista com uma expressão feroz, só amortecida por seu resolvido sorriso. Mas não procurou primeiro o ombro e depois a jugular, como tinha ensinado. Não: o pequeno monstro fingiu o ataque esperado, mas lanço o primeiro golpe nos joelhos… Justo quando um carro verde entrava pelo caminho de acesso.

Distraído pela chegada de uma visita e pelo engano de Cat, Robbie não calculou bem a trajetória, e o maciço pau de arce bateu no joelho esquerdo. Quando ela seguiu o golpe, só conseguiu evitar que abrisse a cabeça acelerando sua repentina viagem para o chão.

Ouviu o grito afogado de Cat mais ou menos quando batia na terra. Sim: comparado com ele, o doutor Frankenstein não tinha nada que fazer ao criar monstros.

— Ai, Meu deus! deixou que te acertasse! — Catherine agarrou o ombro e tratou de levantá-lo — É que tem que prestar atenção!

Robbie se deixou pôr de barriga para cima e ficou estendido com os olhos fechados, escondendo seu sorriso, enquanto ela seguia brigando com ele.

— Por isso chega em casa todo cheio de golpes — Disse entre dentes, tirando o barro da bochecha — É que se distrai.

Robbie ouviu fechar-se quatro portas e imediatamente uma risada masculina que se aproximava, e que reconheceria da tumba, e um feminino estalar de língua.

Por fim liberou seu sorriso e abriu os olhos.

— Meu pai está a ponto de te elogiar por seu truque e, provavelmente, a ponto de te dar um abraço por me fazer cair de joelhos.

— Esse é seu pai? — Gemeu ela.

Olhou para o caminho, enquanto a face se punha de um precioso tom vermelho.

— Ai, Meu Deus… — Sussurrou; lançou um olhar feroz a Robbie justo antes de fechar os olhos — Vai acreditar que estou mais louca em pessoa que por telefone.

Robbie se incorporou e pôs o nariz a uns centímetros do seu.

— Deixa-me admirado, pequena Cat.

— Por te bater?

— Não, por decidir que eu não ia responder — Sussurrou ele — O vi em seus olhos, justo quando me batia. Vi seu horror e, depois, o momento em que se deu conta de que não tinha nada que temer de mim.

— E todo isso enquanto dava com a cara no chão? — Perguntou ela; alargou a mão e deu um toque na ponta do nariz — Assombroso… Tendo em conta que não viu vir o golpe.

Robbie tocou o nariz e ocultou seu sorriso ficando de pé e tomando seu tempo em esfregar o joelho.

— Agora entendo porque esta dura mais que as outras — Disse o pai de Robbie enquanto passava roçando-o e se aproximava de Cat — É que é ela a que coloca medo em você.

Estendeu-lhe a mão.

— Sou Michael. Conhecemo-nos por telefone ontem.

— E-encantada de conhecê-lo, senhor MacBain.

Imediatamente, Libby retirou a mão de Cat entre as de Michael para estreitá-la ela.

— E eu sou sua mãe. Por favor, me chame Libby. Ouvi coisas maravilhosas sobre você… E não de Robbie. — Voltou-se para olhá-lo com o cenho franzido antes de olhar de novo a Cat — Rick e Peter passaram um momento por nossa casa faz dois dias.

Por sua parte, Robbie rodeou com o braço à mãe de Libby e a aproximou.

— Apresento-te à avó Katie — Disse — E já conhece Ian.

Sua pobre governanta tratou de meter o cabelo em seu lugar e depois sacudiu a parte de diante do suéter, manchado de grama.

— Encantadíssima de conhecê-los — Disse, saudando cada um com uma inclinação de cabeça enquanto que, muito devagar, dirigia-se para a casa — Irei pôr água para o chá. Tenho um bolo esfriando-se na bancada.

— Temo-me que não podemos ficar — Disse Michael — Vamos caminho do Bangor, as compras. Só devemos deixar Ian.

Robbie olhou a seu tio.

Ian elevou o queixo.

— Não suporto compras. E além, gostaria de um passeio pelo bosque, contigo ao meu lado para que me proteja dos ursos.

— Irá passear contigo, Ian — Disse Libby cravando o olhar em Robbie — Assim que eu lhe dê um abraço. Vive a três quilômetros e faz quase duas semanas que não te vejo…

— Estava em casa de Maggie quando tentei te fazer uma visita — Disse Robbie em sua defesa, ao tempo que alargava a mão e a abraçava.

Conteve o fôlego e esperou, mas Libby se limitou a aplaudir as costas, dar um empurrão e afastar-se com uma inclinação de cabeça.

— Bom, já me sinto melhor. — Voltou-se para Cat, que pouco a pouco as tinha arrumado para aproximar-se seus bons três metros ao alpendre dianteiro — Diga a Robbie que a leve a almoçar a casa este domingo e por favor, traga seus filhos: tenho muita vontade de conhecer sua família.

Cat olhou de Robbie a Libby e assentiu.

— Obrigada, eu adorarei. Levarei a sobremesa.

— Parece-me que tem você minha fonte de lasanha — Disse Kate.

Tomou Cat pelo braço e se dirigiu para a casa, e Libby se colocou ao outro lado de sua mãe. Ian murmurou algo sobre que aquilo demoraria um momento… E sobre o bolo, e foi atrás delas.

Robbie se voltou para seu pai, que observava com atenção o pau que estava no chão. Depois o agarrou, calculou seu peso e olhou para Robbie com uma sobrancelha levantada.

— É uma longa história — Disse este, se inclinando para esfregar o joelho outra vez.

— Acredito que me dará tempo de escutá-la, tendo em conta que as mulheres estão na cozinha. É provável que se passem ali uma hora falando de receitas.

Robbie suspirou, sentou-se no chão com os joelhos dobrados e os rodeou com os braços. Olhou fixamente o lago Pene e esperou que seu pai se acomodasse junto a ele.

— Ela e seus filhos acampavam na velha cabana que há ali acima no TarStone, na terra que comprei de Greylen faz dois anos — Olhou para Michael — Está fugindo de um ex-marido espancador ao que acabam de soltar do cárcere em liberdade provisória.

— Sim. Supus que era algo assim, pelo que disseram Rick e Peter — Michael fez rodar o pesado pau de arce na mão — Então acolheu outro gato extraviado… Ou mas bem a três, e ensina a Catherine a defender de seu ex-marido?

Robbie meneou a cabeça.

— Não. Eu me ocuparei de Daniels em pessoa, se tiver a sorte de que apareça por aqui — Assinalou para o pau — Com minhas lições só pretendo que Cat se sinta menos como uma vítima e mais como a mulher valente que é em realidade.

Michael voltou a arquear a sobrancelha.

— Parece que tem um interesse pessoal nessa mulher.

Robbie ficou a olhar para o lago Pene.

—Sim. E além disso, se quer saber minha opinião, Cat não partirá daqui nunca. — Olhou outra vez a seu pai — É ela, papai; senti assim que nos encontramos cara a cara.

Voltou-se mais para Michael.

— Quero-a… Mas não estou seguro de como conciliar meu desejo por Catherine e minha vocação. Você e eu falamos de meu dom desde que eu era menino, mas não de como reuni-lo com uma esposa. É uma moderna e não entenderá a magia.

— Você é um moderno também.

— Sim, mas cresci com a magia. Diabos, se mantive bate-papos com uma coruja… Como acha que reagiria Cat se soubesse?

Michael pôs a mão no braço.

— Todos nos casamos com modernas, filho. E alguns aprendemos que não é fácil explicar quem somos.

Ao ouvir vozes, os dois olharam para a casa e viram as mulheres de pé junto ao carro. Michael usou o pau como alavanca para levantar e, em voz baixa, acrescentou:

— Mas se me permite um conselho, se faça bem com seu coração antes de tentar explicar. Apesar do muito que me amava sua mãe, não estava preparada para ouvir o que eu tinha que contar… — Inclinou a cabeça — Mary nem sequer foi consciente de seu próprio dom enquanto viveu; não acredito, porque se não, teria sido capaz de aceitar quem era eu e de onde vinha. —Sorriu—. Mas me parece que ao sentir que se movia em seu interior o compreendeu, e então tratou de voltar para mim.

A Robbie custou não contar que, na tempestade, tinha conversado com a Mary ,como a formosa mulher que era quando seu pai a amou.

— Não foi a você nem uma vez, papai?

— Não — Disse Michael, meneando a cabeça — Não desde que Libby entrou em minha vida. Mary procurou não intrometer-se; não só por mim, mas também por Libby.

Elevou a vista para o TarStone.

— Entretanto, está olhando por nós. Eu… Eu a sinto às vezes. — Voltou a olhar Robbie e sorriu — Sinto um suave toque ou apenas um fôlego no pescoço… Ou me chega um leve aroma a ervas aromáticas em metade dos campos de árvores, em pleno inverno.

— Sim. — Robbie deu uma palmada nas costas e deixou a mão ali enquanto se dirigiam por volta da caminhonete — Ela sempre esteve presente.

Michael se deteve e o olhou diretamente aos olhos.

— Se estiver seguro de que Catherine Daniels é a mulher com a que quer envelhecer, fala com Libby e com suas tias Grace, Sadie e Charlotte: elas passaram de modernas a crentes de formas muito interessantes. Sua tia Sadie inclusive acreditou que tivesse morrido, porque a princípio não entendia a magia.

— Talvez devesse manter separadas minha vocação e minha vida com Catherine, e pronto. Por que complicar as coisas?

Michael soltou um bufido e empurrou o peito com o pau.

— Sim, filho, faça-o… E verá se não desperta qualquer manhã em uma casa vazia. Ocultar segredos, sobre tudo em algo tão importante como sua vocação, é um mau trato maior que nada do que seu ex-marido tenha feito a Catherine. Ao menos o mau trato físico é abertamente hostil, mas o silêncio é mais letal que uma espada que parte o coração de uma pessoa.

Robbie baixou a cabeça e suspirou.

— O contarei.

— Depois de conquistá-la — Recordou Michael, dando uma palmada nas costas e voltando-se com ele outra vez para o carro — E quando tiver se ocupado do Daniels de modo que não retorne transformado em uma dor de cabeça.

Ao chegar ao carro, Robbie se inclinou para dar um beijo primeiro na bochecha da avó Katie e depois a sua mãe.

— Estão convidados os meninos ao almoço de domingo? — Perguntou — Porque são um montão.

— Claro que sim — Disse Libby, ao tempo que entrava no assento dianteiro; depois olhou a Cat por trás de Robbie — Comemos a meio-dia, e depois de almoçar todo mundo vai dar um passeio, assim traga as botas.

Catherine assentiu e se despediu de Kate, enquanto que Michael acomodava no assento traseiro a velha senhora, que ainda se conservava ágil, e passava o cinto de segurança.

Michael olhou ao Robbie por cima do teto do carro.

— Algo preocupa a seu tio. Faz dois dias que Ian não está tranquilo, e Winter está inquieta por ele. Vê se descobre do que se trata durante o passeio.

— Sim — Disse Robbie, assentindo — Teremos um bate-papo.

— Bem — Disse Michael ao tempo que agachava a cabeça para entrar no veículo.

Robbie se inclinou, deu a sua mãe outro beijo na bochecha e depois fechou a porta. Sorrindo, olhou as letras vermelhas que esta tinha impressas: “Fazenda Bigelow de árvores de natal. Pene Creek, Maine.”

John e Ellen Bigelow tinham plantado sua primeira árvore de natal fazia cinquenta e seis anos, e embora fazia já mais de trinta que seu pai era o dono da fazenda, não tinha trocado o nome. Michael sempre encontrava algum pretexto, mas Robbie suspeitava que o motivo mais provável não era uma decisão comercial, e sim seu carinho por aquelas duas maravilhosas pessoas.

Ellen Bigelow tinha morrido quando Robbie tinha oito anos, e John havia falecido sete anos depois. Ambos estavam enterrados em um montículo que dominava a fazenda, com um pinheiro do Canadá plantado à cabeceira de suas tumbas.

— Ian está dentro comendo bolo, Não é? — Perguntou- Robbie a Cat enquanto os dois viam partir às visitas.

Ela se dirigiu para a casa.

— Deve haver algo na água por aqui: todo mundo é guloso — Disse.

Robbie ajustou o passo ao dela.

— O que te parece sua lição desta manhã?

Catherine jogou uma olhada enquanto subiam os degraus.

— Lamento ter te batido.

— Eu não. — Robbie passou o pau — É justo o que necessita: fazer algo imprevisto. Se me bater, é minha culpa, e seu mérito.

— Não se limitou a ir ao bosque a procurar qualquer pau velho — Disse ela; deteve-se junto à porta: dedicou trabalho.

Robbie tinha procurado exatamente o arce jovem mais idôneo, reto como a haste de uma bandeira, tinha tirado a fina casca e o tinha cortado para o tamanho de Catherine. Depois o tinha lixado até deixá-lo suave e depois tinha aplicado uma capa de cera para proteger sua beleza.

— Em nenhum lado diz que uma arma não deva ser bonita. Recorda o excelente trabalho de minha espada, verdade? Em tempos pertenceu a meu xará, meu tio avô Robert MacBain. Ele a chamava An Cluaran, que em gaélico significa “o cardo”. Meu pai me contou que Robert sempre se gabava de que o que temiam os homens era a ardência de sua espada.

Cat elevou a vista para ele, sorrindo.

— É uma coisa de tios, não? O de pôr nome às coisas. Como seu Suv — Disse, assinalando com uma inclinação de cabeça a grade frontal.

— Sim; chama-se ser possessivo. — Robbie se inclinou — Por isso pus a minha governanta nome de gata montanhesa.

Com a face como um tomate, Catherine girou sobre seus calcanhares e entrou na cozinha. Robbie foi atrás e encontrou Ian sentado à mesa com uma xícara de café em uma mão, um garfo no outro e mais bolo na barba que no prato.

— Se não quiser voltar para casa andando como um pato, tio, mais vale que se separe da mesa — Disse; viu que Cat se aproximava do relógio de pé e punha o pau ao lado.

— Já vou — Murmurou Ian, ao tempo que jogava para trás a cadeira.

O velho guerreiro se aproximou de Catherine e começou a dizer algo, mas de repente alargou a mão e a abraçou tão forte que ela soltou um chiado.

— Obrigado como… Bom, por tudo, garota — Disse; recuou e sorriu, ruborizado também.

Depois foi recolher o jaquetão.

— Espero que hoje me siga o ritmo, jovem Robbie — Disse, enquanto saía pela porta — Não tenho tempo de me entreter.

Robbie olhou a sua estupefata governanta, encolheu os ombros e depois saiu atrás de seu tio para ver que já subia pela metade do caminho.

Deu uma carreirinha para alcançá-lo, depois colocou as mãos à costas e ajustou ao passo dele.

— Isto é o que esteve fazendo toda a semana? — Perguntou — Visitar todo mundo para se despedir?

Ian deu um olhar e voltou a olhar para o caminho.

— Não esperava que fosse tão difícil — Murmurou — Como diabos vou despedir- me, se nem sequer sabem que vou partir?

— Não pode dizer tio. — Deteve-se e deu a volta para que o olhasse de frente — E ainda pode mudar de opinião.

— Não — Resmungou Ian, ficando direito — Quero estar com minha Gwyneth.

Robbie começou a caminhar de novo.

— Pois o estará. Recolherei-o em Gù Brath amanhã às três da tarde; assim teremos muito tempo para chegar à cúpula antes do pôr do sol.

— O que posso levar?

— Tem ainda seu velho plaid?

Ian olhou para Robbie com o cenho franzido.

— Sim, e minha adaga. Vendemos minha espada para ajudar a custear nossa nova vida aqui. — Soltou um bufido — Embora já não poderia levantá-la.

— Então isso é o que pode levar. Mas nada moderno. — Robbie voltou a parar seu tio e tocou o jaquetão, sobre o bolso da camisa — Nem sequer os óculos de leitura, temo… E além disso deve me dar sua palavra de que não empregará o que aprendeu nesta época para trocar nada do passado.

Ian começou a andar outra vez.

— Não há nenhum livro que ler, de todos os modos — Murmurou, agitando a mão no ar — Nem nenhum centro comercial, nem carros, nem milhões de gente louca.

— Tampouco há água corrente nas casas — Recordou Robbie — Nem duchas quentes, nem luz elétrica, nem calefação central…

— Mas está minha Gwyneth — Sussurrou Ian, olhando-o com os olhos brilhantes — E Niall, e Caitlin, e Megan. Não necessito nada mais para ser feliz. Qual vai ser nossa mentira?

— Que a você e a outros capturaram uns piratas… Bem… vikings, acredito que deveríamos dizer, e que os tiveram prisioneiros dez anos; os outros morreram lutando ou tentando escapar. Mas ao ficar velho os vikings se limitaram a entrar outra vez ao mar e o deixaram na praia.

Ian soltou uma risadinha.

— Como se alguém fosse acreditar nisso…

— Quem vai pôr em dúvida? Ao longo da história, Escócia sofreu incursões continuamente.

Ian se deteve e elevou o olhar para ele com os olhos entrecerrados.

— E minha idade? Sou trinta e cinco anos mais velho que quando parti, não dez.

— Em realidade tem a saúde de um homem de sessenta e cinco anos daquela época, tio. A vida era dura para o corpo lá por então, e um homem estranha vez chegava a fazer os oitenta e cinco. Nossa mentira sairá bem.

Ian voltou a pôr-se a andar.

— E que tenha aprendido a falar inglês? — Perguntou — Talvez começo a falá-lo sem pensar.

— Então deveríamos trocar os vikings por piratas ingleses.

— Sim, isso terá mais lógica — Concordou Ian — E direi que fiz todo o caminho andando da Inglaterra.

Inchou o peito.

— Sim. Com isto tirarei muitas histórias boas para contar junto à fogueira. —Deteve o Robbie outra vez — Você vai ficar comigo algum tempo, não é? Até que eu me adapte?

— Sim, ficarei o tempo que precisar.

— E esse livro de feitiços que busca o Daar? Encontrou-o já?

— Não, mas talvez você ajude. Veremos quando chegarmos ali.

Ian ficou direito, e seu olhar se avivou.

— Te darei uma mão. E além disso…

Nesse momento os dois elevaram a vista para ouvir um agudo grito por cima de suas cabeças. Mary os adiantou voando e pousou em um ramo que pendurava sobre o caminho.

Robbie ficou pasmado; a última vez que a tinha visto, Mary seguia na antiga época. Como teria arrumado para retornar sozinha? Mas então recordou o que tinha mostrado na tempestade; Mary viajava a vontade, igual a ele.

Ian deixou ver um amplo sorriso.

— Aí está seu mascote. Não posso acreditar que essa velha ave siga viva. —Olhou ao Robbie — Mary leva contigo… Quanto, mais de vinte anos já? Quanto vivem as corujas nevadas, por certo?

Robbie encolheu os ombros.

— Não tenho nem ideia. — Ofereceu o braço à coruja e baixou a voz — Vem, pequena.

Ian ficou a seu lado e assinalou o ramo.

— Está sangrando — Sussurrou — Ali, na parte inferior da barriga, justo em cima da pata esquerda. Vê-o?

Robbie afirmou com um grunhido e voltou a chamar a ave, que estendeu as asas, desceu planando e aterrissou sobre o braço. Acariciou-lhe o peito e levantou o braço para ver a ferida.

— Já se machucou… — Com o dedo levantou suavemente as ensanguentadas penas — Sim, uma flecha te bateu de raspão.

— Como sabe? — Perguntou Ian.

Robbie sorriu.

— Me disse isso.

Seu tio recuou um passo.

— Sim? De verdade fala contigo?

— Sim. Com os anos temos mantido muitas conversas — Elevou uma sobrancelha — Se surpreende? Estou a ponto de te levar em uma viagem inconcebível, e estranha que fale com meu mascote?

Ian meneou a cabeça.

— Faz anos que deixei de estranhar — Murmurou — Deve levá-la ao veterinário para que lhe curem essa ferida.

Robbie voltou a olhar a Mary.

— Ou a minha governanta. O pai do Cat era veterinário, e ela sabe bastante de curar feridas.

Com um gesto, Ian indicou que partisse.

— Então vá. Não fica muito para chegar a Gù Brath; não me passará nada, e além te verei amanhã pela tarde. —Dirigiu-lhe um amplo sorriso — Esconderei o plaid sob o jaquetão para que ninguém suspeite de nada.

— Tio — Disse Robbie quando se voltou o velho— Quem dera… Eu…

De novo, Ian fez gestos para que se fosse.

— Desfruta de sua última noite com Grei, Grace e Winter — Disse Robbie em voz baixa — E que saiba que manhã de noite estará com sua Gwyneth.

— Sim. Farei isso — Disse o velho guerreiro; deu a volta e começou a caminhar, apoiando-se no pau que Robbie tinha procurado o início do passeio. Depois disse adeus por cima do ombro — Estarei preparado quando vier a me buscar.

Robbie o viu afastar-se até que desapareceu no último montículo que havia antes de chegar a Gù Brath; depois voltou a centrar sua atenção em Mary.

— Que vontade que dá de cortar as penas das asas! — Espetou, zangado, ao tempo que se encaminhava para a casa — Assim acabaria com sua imprudência.

Mary soltou um grave matraqueio que soou mais a risada na linguagem de coruja, e afundou as garras na manga do jaquetão para manter o equilíbrio enquanto ele alargava a pernada.

Robbie suspirou; repreender seu mascote sempre tinha sido uma absoluta perda de tempo. Além disso Mary estava tão decidida como ele a que os escoceses permanecessem ali. Continuava amando Michael MacBain e não tinha o menor desejo de ver a vida do guerreiro desarraigada de novo.

— Há uma pessoa que quero que conheça — Disse ele, apressando o passo — Se chama Cat, e vai ser sua nora assim que consiga convencê-la de que me confie seu coração.

Mary o olhou piscando.

— Sim, sei que é repentino. Mas olhe: se houvesse retornado comigo em vez de ficar para que lhe lançassem flechas, teria me dado sua bênção antes que eu me desse conta de quais eram minhas intenções para Catherine. Agora terá que aceitá-la, sem mais.

Robbie se deteve e jogou um olhar feroz a seu mascote.

— Nem te ocorra sequer fazê-la passar mal. E além não tem que pô-la a prova como a Libby: Catherine já sobreviveu a sua prova de fogo.

Pregou o braço ao corpo e com a mão estreitou a cabeça da coruja contra seu peito.

— Sim, pequena — Cantarolou — Tenho plena esperança de que aceite minha vocação, e aí é onde pode me ajudar. Você esteve na situação de Catherine; você foi uma moderna apaixonada por um antigo. Saberá como se sentirá Cat, e além disso saberá como posso ganhar seu coração. Ajudará-me?

Abriu a mão para que Mary elevasse a vista para ele.

— Quer participar de meu cortejo a Catherine?

Mary piscou e mordiscou o polegar.

Ele soltou uma risadinha e se dirigiu para a casa de novo com passo notavelmente mais solto.

— Sim. Pois pode começar sendo uma perfeita paciente e não mordiscar os dedos quando ela te costure com seu fio rosa. E, Mary — Acrescentou rindo, ao tempo que dava um toquezinho na ponta do bico — Não traga dons como levou a Libby. Agora mesmo já tenho mais magia da que posso controlar.

 

Enquanto tomava banho, Catherine não deixou de sorrir e, ao secar o cabelo, inclusive se surpreendeu perguntando-se de quem era a face que se refletia no espelho. A mulher que devolvia o olhar estava… Nossa, radiante e parecia muito satisfeita consigo mesma.

Também parecia saber um segredo. Algo sobre sentir-se viva pela primeira vez depois de anos; reativada… Esperançada… Com vontades.

Mas com vontades do quê? Pelo que proporcionasse o dia… Ou de que voltasse a beijá-la tão a consciência que enroscassem as tripas? O abraço da noite anterior no estábulo não tinha produzido pânico, e talvez isso tinha dado coragem para beijá-lo. Que Robbie se fizesse com o controle do beijo não a surpreendeu, mas que o terminasse tão cavalheirescamente, sim. Aquele tipo parecia muito bom para ser de verdade.

Essa manhã Catherine se atreveu por fim a dar um toquezinho no nariz, e a recompensa tinha sido uma expressão de surpresa tal que tinha estado tentada de voltar a fazê-lo.

E provavelmente o teria feito se não tivesse visto Michael MacBain chegar em cima como uma montanha. Passou por diante de seu filho, roçando-o, e foi direito para ela, tomou a mão entre suas duas grandes e lançou um sorriso que enrolou as tripas mais forte ainda.

Robbie era o vivo retrato de seu pai. Embora só uns centímetros mais baixo que seu filho, Michael MacBain tinha exatamente os mesmos fascinantes olhos cinza, as mesmos maçãs do rosto, a mesma mandíbula e a mesma potente energia que irrompia como uma explosão em todo aquele a quem olhava.

Catherine terminou de pentear para trás e recolheu o cabelo em um coque baixo. Ao mesmo tempo que sorria a si mesma no espelho, deu-se conta de que só duas semanas antes teria escapado do pai de Robbie tão rápido como levassem as pernas. Mas como não, decidiu, era a autêntica definição da magia. Em menos de duas semanas, sem saber como, tinha passado de camundongo a gata montanhês. Adorava que Robbie a chamasse Cat; em realidade adorava sentir-se como uma gata, tanto que a noite antes tinha beijado a um muito alto gigante sem pensar sequer em aonde a levava aquilo.

E também tinha batido nele com o pau essa manhã, embora a verdade é que não tinha intenção de fazê-lo. Mas ao menos agora compreendia por que não deixavam de lhe dar surras; ser grande, valente e forte eram qualidades inúteis se aquele cara não se concentrava mais de dois minutos no que fazia. Possivelmente enquanto Robbie a ensinava a usar o pau, o ensinaria a estar atento; ao melhor umas quantas porradas mais no joelho aumentariam sua concentração.

Nesse instante Robbie entrou pela porta da cozinha, dando fortes pisões e chamando-a.

— Cat! Cat, necessito sua ajuda.

Catherine saiu correndo do banheiro mas em seguida se deteve o ver, pousada no braço de Robbie uma grande coruja nevada que, silenciosamente, cravava o olhar nela.

— O que tem aí? — Sussurrou, enquanto se aproximava muito devagar para não assustar à ave; deteve-se uns passos de distância, elevou o olhar para Robbie e sorriu — Uma coruja? De onde saiu?

Ele se aproximou da cadeira de balanço que estava junto ao relógio e com cuidado, subiu à ave no respaldo; depois se voltou para Catherine ao tempo que tirava o jaquetão e o atirava sobre a mesa.

— É meu mascote e está ferida. — Aproximou-se da coruja e passou um dedo com suavidade pela asa — Está sangrando, e terá que costurá-la.

Catherine ficou junto a Robbie e esquadrinhou o ventre da coruja, olhando as penas ensanguentadas que tinha justo em cima da pata.

— Deve haver um veterinário perto daqui — Disse — Alguém com experiência em tratar com fauna selvagem.

—Não. Quero que a você a costure, igual a me costurou.

Catherine o olhou com franzindo o cenho e depois olhou à ave.

— Há uma enorme diferença entre te costurar um cortezinho na mão e tentar fazer o mesmo a um animal sem anestesia. Não podemos explicar que doerá, e se fará mais mal ainda lutando para fugir da dor. — Voltou a olhar a Robbie — Necessita um veterinário que tenha material adequado.

— Não, contigo ficará quieta. Eu a segurarei — Disse ele, enquanto entrava no salão e retornava com a mala de costura — Usa o fio rosa: gostará.

Catherine observava à ave, que repartia sua atenção voltando a cabeça quando falava cada um deles como se seguisse a conversa.

— Não posso costurá-la sem mais — Repetiu; a coruja a olhou outra vez — Você recorda como é quando uma agulha te atravessa a pele. acha que vai ficar aí quieta sem mover-se, e deixar que eu a crave?

— Sim — Disse Robbie.

Pôs a mala de costura sobre a mesa, abriu-a e tirou o fio de seda rosa, uma agulha e as afiadas tesourinhas. Continuando, fazendo caso omisso do raciocínio de Catherine, foi ao armário, procurou uma panela, encheu-a de água, deixou cair dentro a agulha, o fio e as tesouras, e a pôs na boca do fogão a ferver.

— Entenderá que quer ajudá-la — Explicou, ao tempo que se aproximava da coruja e estendia o braço.

A coruja passou de seu cabide à manga da camisa, pregou as asas e olhou piscando a Catherine enquanto Robbie se sentava à mesa. Depois ele tirou outra cadeira, a pôs de frente e deu uns tapinhas.

— Sente-se, Cat. Veem olhar esta ferida e me diga se acha que terá que dar pontos.

Catherine observou as enormes e letais garras que rodeavam a manga de Robbie. Enquanto se sentava devagar junto a ele, com cuidado de não assustar à ave, sugeriu:

— Pelo menos volta a pôr o jaquetão para te proteger o braço.

Mas em vez de colocar o jaquetão, Robbie pegou a coruja ao peito, rodeou-lhe as penas da cauda com a mão livre e a inclinou de barriga para cima, embalando-a no braço como se fosse um bebê.

Nesse momento foi Catherine a que piscou. Quieta como uma estátua, a coruja estava deitada e elevava o olhar para Robbie com absoluta confiança.

— Bem… Pegue as patas? — Pediu Catherine.

Quando ele agarrou bem o par de afiadas garras, Cat se inclinou e, com os dedos, levantou suavemente as penas do ventre manchadas de sangue. Depois se aproximou mais, ao mesmo tempo que, com a outra mão, abria o penugem justo por debaixo do corte e apalpava com cuidado a zona que o rodeava.

— Não é muito profundo — Disse em tom distraído — E ainda não se infectou. Mas se curaria melhor se puser dois pontos.

— Sim. Mary se comportará muito bem — Disse Robbie, passando a mão livre pela cara da coruja.

Catherine se levantou, pôs um pano limpo na pia e verteu a água fervendo em cima para que a agulha, o fio e as tesouras ficassem nele. Colheu-os com outro pano e foi com eles à mesa. Então voltou para pia, levantou com cuidado o pano quente, agitou-o um pouco para esfriá-lo e depois o escorreu.

Com o pano úmido, retornou à mesa e se sentou.

— Vou limpá-la — Explicou, ao tempo que colocava a mão livre de Robbie justo por debaixo da cabeça da coruja — Tenta mantê-la quieta.

— Não moverá um músculo — Disse ele em um cantarolar; olhou sorrindo a Mary e colocou o dedo indicador justo debaixo do bico.

— Vai te dar um bicada — Advertiu Catherine — E esse bico é tão letal como suas garras. Então terei dois pacientes que atender.

— Mas se você adora me atender… — Sussurrou ele, elevando seu sorriso para ela.

Catherine revirou os olhos, baixou o olhar para a ferida e, com suavidade, começou a limpar o sangue das penas de Mary.

— Preferiria cortar as penas, mas não quero deixá-la com uma calva. —Levantou a vista — Não acredito que queira enjaulá-la, não?

— Não. Ela não o admitiria.

— Quanto tempo faz que tem uma coruja por mascote? — Perguntou Cat enquanto voltava a concentrar-se na ferida.

— Desde que tinha oito anos.

Imediatamente ela o olhou nos olhos e depois olhou a cara de Mary.

— As corujas não vivem tanto em seu habitat natural. Nem sequer estou segura de que vivam tanto em cativeiro.

Robbie encolheu o ombro que tinha livre.

— Eu não ponho em dúvida semelhantes coisas, Cat. Limito-me às aceitar como o dom que representam.

Ela voltou para a ferida e ficou a limpar o sangue das suaves e preciosas penas. Por fim agarrou o fio e as tesouras, cortou uma parte de seda e enfiou na agulha. Depois colocou as mãos sobre a ferida e olhou a cara de Mary.

Os enormes olhos da coruja estavam fechados.

Catherine fez uma inclinação de cabeça ao Robbie.

— Segure-a bem — Disse.

Primeiro se inclinou e abriu as penas de novo. Com muito cuidado, colocou a agulha por um lado da ferida, jogou um olhar à cara da coruja e ao ver que seus olhos continuavam fechados, rapidamente passou a agulha ao outro lado do pequeno rasgão e a meteu na carne outra vez; com destreza fez um nó apertado, embora não muito. Em seguida, tão rápida e cuidadosamente como pôde, repetiu o procedimento justo por cima do primeiro ponto e cortou o fio com as tesouras antes de endireitar-se.

Ao soltar um fundo suspiro se deu conta de que tinha estado contendo o fôlego.

— Não posso acreditar que nem sequer tenha dado um pulo — Sussurrou, passando a mão pelas suaves penas do ventre de Mary.

Os olhos da coruja voltavam a estar abertos e a olhavam fixamente. Robbie levantou o braço e pôs à ave direita sobre a manga.

— Bom, pequena Cat, acaba de fazer uma nova amiga. — Tomou a mão e a passou pelas costas de Mary — Todo mundo deveria ter um mascote tão especial como esta senhora.

— Não posso acreditar que me tenha deixado lhe dar pontos… — Repetiu Catherine enquanto acariciava à tranquila ave — É extraordinária. E que formosa: suas penas parecem de encaixe.

Sorrindo, elevou a vista para o Robbie.

— Sim que há magia por aqui: não imaginava que uma coruja selvagem fosse o mascote de ninguém. Não as vê tão ao sul. Leva por esta zona mais de vinte anos?

Robbie se levantou e voltou a levar a Mary a seu cabide da cadeira de balanço.

— Sim. Vamos pôr uns papéis no chão para que não o deixe tudo perdido. O que tem que possa comer? — Dirigiu-se a geladeira antes que ela respondesse — Um pouco de carne crua?

Ao tempo que limpava seu equipamento médico e metia na pia a agulha e as tesouras com o pano úmido. Catherine respondeu:

— Dentro há uns hambúrgueres descongelados — Entrou na lavanderia e saiu de novo com o jornal do dia anterior; devagar, foi por trás da coruja e pôs o jornal no chão — Ah, Nathan e Nora não demorarão para voltar. O que vamos fazer com a Mary? Vão assustá-la e poderia machucar-se voando dentro de casa.

Robbie, que agarrava a colheradas um pouco de carne, tranquilizou-a.

— Não, gosta das crianças — Olhou para Catherine — É menos perigosa com os meninos que essas velhas galinhas; não os bicará.

Ela recuou e cruzou os braços enquanto cravava a vista na coruja. Depois observou como Robbie colhia com a mão um pouco de carne da colher e dava de comer.

— Assim, simplesmente, deixamo-la encarapitar-se aí durante… Durante quanto tempo? — Perguntou.

— Até que diga que está farta de nós — Disse ele — Então irá andando à porta e ficará olhando até que a abra.

— Os meninos conhecem a Mary?

— Não. Sabem que existe e que é especial para mim, mas fazia vários meses que não vinha. E além disso, desde que estão aqui, não entrou. — Meneou a cabeça — Embora a peguei olhando às escondidas pela janela e meneando a cabeça para ver que sua casa parecia um desastre.

— Sua casa?

— Sim. Não te disse que minha mãe se chamava Mary?

— Pôs em uma coruja o nome de sua mãe?

Robbie revirou os olhos.

— Eu tinha oito anos e desejava com loucura uma mãe. — Deixou ver um amplo sorriso — Mas logo procurei Libby e decidi que seria uma boa mamãe para mim.

—Procurou Libby?

— Sim, na internet. — Com a colher assinalou a cozinha — Lhe aluguei esta casa. Tinha-a herdado de minha mãe e estava vazia, de modo que pus um anúncio na internet e Libby respondeu.

— Quando tinha oito anos?

— Sim. — O sorriso se alargou mais — E como meu pai é um homem preparado, apaixonou-se por Libby e se casou com ela antes de que se desse conta de onde se metia.

Voltou-se de tudo para olhá-la de frente, assinalou a cozinha de novo e, com voz profunda e olhar penetrante, disse.

— Esta casa tem uma longa história: a base de artimanhas, consegue que as mulheres se casem. Minha tia Grace e Mary eram irmãs, e este era seu lar familiar. Quando minha mãe morreu em um acidente de carro na Virgínia, Grace me trouxe aqui; eu só tinha quatro semanas. E acabou casando-se com Greylen MacKeage.

Deixou a colher sobre a mesa e se aproximou de Catherine, que mal conseguiu manter-se firme. Parecia maior que nunca e excepcionalmente atraente.

— Até agora esta casa vai ganhando por dois a zero — Disse Robbie em um sussurro, passando os nódulos pela bochecha — E se Deus quiser, Cat, serão três.

Ela não soube o que responder.

Não podia estar falando de matrimônio. Céus, se só tinham compartilhado um beijo no estábulo…!

Embora dava a impressão de que estavam a ponto de compartilhar outro!

Robbie terminou a carícia levantando o queixo com um dedo, e depois baixou a boca até a sua. O contato foi tão suave… E tão fugaz, que Catherine voltou a perguntar se estava acontecendo sequer. Caramba, aquele cara necessitava lições de roubar beijos mais que de prestar atenção…

Mas enquanto Catherine pensava, ele a rodeou com seus braços e fez mais intenso o beijo. E sem saber como os braços dela se orientaram para rodear o pescoço e sua língua, também com vontade própria, procurou a dele com avidez.

Desta vez nem sequer se desconcertou que tomasse o traseiro com as mãos e a apertasse intimamente contra ele; foi então quando notou suas intenções mais íntimas empurrando o ventre. Talvez rebolasse um pouquinho, porque Robbie grunhiu, apertou os braços… E com sua quente e embriagadora boca começou a acelerar o coração.

O apaixonado abraço quase a tinha levantado do chão, e Catherine estava a ponto de subir pelo corpo dele e rodeá-lo com as pernas quando a coruja deu um assobio forte e agudo que fez que zumbissem os ouvidos.

Depois ouviu pisadas de pezinhos no alpendre.

Recuou como pôde, tão rápido que Robbie teve que agarrar os ombros para que não caísse. Baixou o pulôver (como ele tinha subido tanto?) e esfregou os inchados e formigantes lábios na manga.

Por sua parte, Robbie girou sobre seus calcanhares, passou a mão na mala de costura que estava sobre a mesa e entrou no salão dando pernadas. Ela advertiu que seu passo era um pouco rígido, e viu que se dava uma rápida torcida na perna da calça das calças.

Tampou a boca com a mão para controlar a risada justo quando a porta da cozinha se abriu de repente e Nathan e Nora entraram correndo. Deixaram cair as mochilas no chão, atiraram os jaquetões para os varais, sem acertar absolutamente, e, depois de sacudir os pés, jogaram voando as botas em quatro direções diferentes.

Só com as meias postas, Nathan se aproximou dela.

—O perguntou, mamãe? — Perguntou — Posso?

— Ai, querida, ainda não perguntei… — Catherine correu para pegar a Nora antes de que destampasse o pote das bolachas — Lave primeiro as mãos, senhorita.

Pô-la apontando por volta do banheiro, mas de repente trocou de opinião e a aproximou de Nathan; então se agachou entre eles, rodeou-os com os braços e lhes deu a volta para a cadeira de balanço.

— Se acalmem e olhem quem veio que visita.

Os meninos deram um grito afogado, e Catherine os abraçou forte quando tentaram correr para frente.

— Chama-se Mary. É uma coruja nevada e o mascote do senhor MacBain. E veem esse fio rosa na parte de abaixo do ventre? Se machucou e vai ficar conosco até que fique bem. Não quero que a toquem — Prosseguiu — Os animais feridos são perigosos, e os saltos e os gritos assustarão Mary, e se faria ainda mais mal. E veem as patas? Essas são suas garras, e as usa para procurar ratos e coelhos, e para defender-se. E seu bico é forte, e daria uma boa bicada se a assustarem.

— É o pássaro mais bonito que já vi — Sussurrou Nora.

— Tem os olhos maiores — Acrescentou Nathan sussurrando também.

— E o senhor MacBain me contou que gosta das crianças. Mas isso não significa que queira que a toquem. Se aproxime de Mary só se o senhor MacBain a segurar e deixa que se aproximem para acariciar Compreendido? — Perguntou ela, dando um empurrão.

Os dois assentiram, e então Catherine se levantou e os pôs olhando de volta ao banheiro.

— Vão lavar as mãos, e lhes darei um lanche.

Robbie voltou a entrar na cozinha e se sentou à mesa.

— Eu quero um lanche também. E o que queria Nathan que me perguntasse?

Catherine foi a geladeira, resistindo o impulso de lamber-se; seus lábios ainda tinham o sabor dele.

Ainda sentia seu calor rodeando-a.

— Quer sua permissão para instalar-se no quarto de convidados de cima. —Agarrou a terrina da gelatina e o levou a bancada. De lá lançou um amplo sorriso por cima do ombro — Nossa cama está um pouco abarrotada, e Nathan se queixa de que Nora é toda cotovelos e joelhos. Embora acredite que, mas bem é que quer ser um dos “colegas” e mudar-se acima com os meninos.

— Nesse quarto há duas camas gêmeas — Disse ele — Quer mudar Nora também acima?

Catherine tirou três terrinas e começou a tirar colheradas de gelatina.

— Não está preparada para separar-se das saias de sua mãe.

— Então poremos uma cama dobradiça em seu quarto e, pelo menos, tirarmo-la da cama — Sugeriu ele.

Catherine levou sua terrina de sobremesa, o pôs diante e cravou nele uma colher.

— Será um bom primeiro passo. Nathan tem razão: minha filha é toda cotovelos e joelhos quando dorme.

Os meninos saíram do banheiro secando as mãos na roupa e se sentaram à mesa, de frente a Mary. Catherine lhes deu a sobremesa.

— Você tem um mascote legal de verdade — Disse Nathan a Robbie — Ainda pode voar, embora esteja ferida?

— Sim. E logo que tenha acabado de comer, a pegarei para que a acaricie. E depois disso, ajudarei-o a se instalar em seu novo quarto do andar de cima.

— Huy, estupendo! Está junto ao quarto de Cody, verdade? Vai me ensinar a disparar a escopeta de batatas este fim de semana — Disse Nathan, que em seguida ficou pensando um momento — Vamos disparar a essa grande rocha que está acima no prado, para que não tenha que preocupar-se se por acaso damos a algo importante.

— Sim. As rochas são um bom alvo. E além disso acredito que irei com vocês; faz uns quantos anos que não disparo a uma rocha. Nora, quer se mudar para cima com seu irmão? — Perguntou Robbie, centrando-se na menina.

Nora encheu a boca de gelatina e meneou a cabeça.

Catherine se voltou de novo para a bancada para ocultar seu sorriso. Aquela era a conversa mais larga que Nathan tinha mantido com um homem em mais de três anos. Bom, nossa… É que todos iam estabelecendo-se ali ou o quê?

 

Voltou a vista para Mary e pegou à ave olhando-a fixamente. Então, com gesto preguiçoso, a coruja fechou um olho e soltou um tagarelo baixo, como se cantarolasse.

 

Era sexta-feira, passado o meio-dia. Encarapitada no corrimão do alpendre dianteiro, Mary olhava como Robbie dava a Catherine sua lição de luta com pau enquanto, por sua parte, Catherine tentava quebrar de novo a cabeça de seu chefe, o dos doces beijos.

Mas essa tarde Robbie não se distraía, e Catherine só dava uma surra a si mesma. Já tinha escapado o pau das mãos duas vezes; uma, depois de bater no chão, ricocheteou e bateu na coxa. E, menos de cinco minutos depois, tropeçou com seus próprios pés e acabou com a boca cheia de grama seca. Sem tentar sequer dissimular a risada, Robbie a tinha levantado e tinha jogado outro sermão sobre física.

Mas durante os últimos vinte minutos Catherine observou que mais de uma vez ele olhava o relógio; inclusive arrumou para bater no pé com o pau quando olhava para o TarStone.

Maldição… Ia voltar a subir ali! E, à manhã seguinte, voltaria coxeando, de novo com uma boa surra em cima…

Catherine se apoiou no pau e afastou o cabelo da face.

— Já estou farta — Disse — Me sinto como se tivesse corrido uma maratona.

Robbie, que estava agachado, endireitou-se.

— Mas se precisamente agora isso começava a ficar divertido… — Sorriu — Não é todos os dias que vejo alguém se dando uma surra.

— Por isso paramos — Repôs Catherine enquanto caminhava para a casa. — Não tenho intenção de servir de diversão a você e a sua ave.

Robbie ajustou o passo ao dela.

— Mary não ria de você; estava te animando.

Catherine olhou a coruja. Tinha descido do corrimão de um salto e estava junto à porta da cozinha, esperando a que a abrissem. Robbie sustentou a porta, e Catherine entrou atrás da coruja. Enquanto Mary voava a seu cabide da cadeira de balanço, ela cruzou para apoiar o pau junto ao relógio.

Depois se voltou para Robbie.

— Quer que te prepare um pouco de comida?

— Para quê?

— Para que leve. Esta tarde vai subir outra vez a essa montanha, não?

Ele cruzou os braços sobre o peito e a olhou de frente.

— É muito perspicaz.

— Não: estou zangada. Amanhã pela manhã virá se arrastando, feito um desastre, e esperará que eu te cure de novo.

Ele se aproximou.

— Sim. E o fará, não é? — Disse em um sussurro — Porque, como eu, não tem escolha.

Acariciou-lhe a face com um dedo.

— Cada um de nós faz o que lhe exige, pequena Cat: eu tenho que subir à montanha, e você tem que me permitir isso. E amanhã pela manhã, se de verdade venho me arrastando, você cuidará de mim, não fará nenhuma pergunta e não o contará a minha família. Assim funciona a confiança. Eu confio em que estará aqui quando retornar, e você confia em que voltarei.

— Talvez — Disse ela em tom crispado, afastando-se dele — Ou mas bem “talvez” você retorne, e “talvez” eu esteja aqui.

Ele baixou a mão e cruzou os braços sem dizer nada; limitou-se a cravar nela seus escuros e penetrantes olhos.

Catherine deu a volta, entrou no quarto e fechou com suavidade a porta. Depois se apoiou nela e fechou os olhos dando um suspiro de desalento.

Por que se preocupava tanto? O que importava que Robbie MacBain fosse um imbecil teimoso? Se aquele homem queria que lhe dessem uma surra, ela não tinha nenhum direito a detê-lo.

Mas que diabos faria ali acima, naquela montanha?

Catherine se afastou bruscamente da porta, foi ao roupeiro e procurou a mochila. Encheu-a com um grosso pulôver, um par de meias de reserva, o gorro e as luvas, uma lanterna e o canivete multiusos que se trouxe de Arkansas.

“A gente faz o que se exige”, havia-lhe dito. Bom, pois como se chamava Catherine e a ela exigia-se proteger o Robbie, já que ele não parecia capaz de fazê-lo.

“Porque assim é como funciona a confiança”, merda.

Depois de deixar a mochila junto à porta, dirigiu-se à cômoda e começou a pentear para trás enquanto pensava em como o seguiria montanha acima.

Decidiu que os meninos cuidassem de Nathan e Nora; podiam levá-los a sorveteria, como tinham planejado e os fazer de “babá” durante a tarde. Sim. Os seis estariam perfeitamente bem, e ela estaria de volta pela manhã, antes que despertassem.

Esperou outros dez minutos até que ouviu a porta do alpendre fechar-se de repente. Então saiu do quarto, deu uma olhada pela cozinha e se aproximou da janela da pia bem a tempo de ver o Robbie entrando no estábulo.

Mary estava em um dos paus da cerca do cercado.

Catherine olhou o relógio; eram quase as duas. O ônibus de Nora e Nathan não demoraria para chegar, e os meninos deveriam voltar mais ou menos ao mesmo tempo.

Manteve-se ocupada acrescentando umas ervas aromáticas ao guisado que preparava na enorme panela elétrica e terminando uma salada para colocá-la na geladeira, tudo isso sem deixar de olhar pela janela.

Por fim Robbie saiu do estábulo, levando atrás dele o cavalo, e se deteve olhar para a casa. Catherine se dirigiu à porta, mas ficou junto ao vidro. Por fim ele montou, esperou um momento outra vez cravando a vista na casa e voltou o cavalo para o prado.

Nesse instante Catherine saiu correndo e desceu a escada do alpendre.

— Robbie!

Este se deteve, e ela se aproximou correndo e lhe tocou o joelho.

— Tenha… Tome cuidado — Sussurrou.

Robbie deixou cair as rédeas, inclinou-se, agarrou-a por debaixo dos braços e a subiu a seu colo antes que ela pudesse dar um grito afogado.

Depois a abraçou com força.

— Sim, pequena Cat — Sussurrou, beijando o cabelo — O terei. E me esforçarei muitíssimo por que este seja minha última viagem.

Levantou-lhe a face.

— Obrigado por não deixar que fosse estando zangados. É um costume.

— Também o é ter que te costurar com frequência.

Robbie passou a mão pelo cabelo até chegar ao prendedor de tecido com que ela o recolhia. O tirou e soltou o cabelo, que caiu até os ombros.

— É tradição que um cavalheiro que vai à batalha leve um objeto de sua dama — Disse, ao tempo que metia o prendedor por dentro do jaquetão, no bolso da camisa — Me dará um beijo também, se te prometo estar de volta justo depois do amanhecer?

— Preferiria te dar um revólver — Disse Catherine, rodeando o pescoço com os braços — Assim não teria que se aproximar tanto para necessitar pontos outra vez.

— Sim, mas onde está a graça nisso? — Sussurrou ele, inclinando-se para capturar sua boca enquanto ela subia para beijá-lo.

Seu encontro foi terno, mais doce que ansioso. Catherine saboreou o suave e quente sabor de seus lábios, e se deu conta de que, tanto como costurá-lo, beijar Robbie MacBain ia convertendo-se em um costume.

Mas, ai, que costume tão agradável…

Aquele homem parecia granito coberto de flanela, tão firme como uma montanha envolta em calor sensual. Esticou os braços em torno de seu pescoço, inclinou a cabeça para que chegasse mais de seu sabor e apertou os seios contra ele até sentir o forte batimento de seu coração.

Estava acontecendo outra vez: a magia de seu toque a enfeitiçava e queria mais. Fazia anos que não pensava de verdade em desejar um homem, em sentir como os dedos se afundavam em carne firme e morna, e em fazê-lo responder. A Catherine encolheram as tripas enquanto por sua mente bailavam imagens deles dois nus, na cama, explorando o corpo mutuamente.

Ele desfez o beijo, colocou-lhe a cabeça sob seu queixo e a abraçou forte enquanto inspirava com força.

— Sim. Isto é muito melhor que partir estando zangados — Sussurrou; deu um beijo na cabeça — Mas embora esteja tentado de ficar a ver o valente que se tornou exatamente, pequena Cat, tenho que ir já.

Levantou-lhe o queixo e deu outro rápido e casto beijo; depois, pouco a pouco, retirou os braços do pescoço, levantou-a de seu colo e voltou a deixá-la no chão.

— Se tiver algum problema com os meninos, ou qualquer outra coisa que não saiba dirigir, chama a meu pai — Disse — E se ocorre que não esteja de volta a amanhã ao meio-dia, diga que vá procurar o sacerdote.

Inclinou-se e tampou a boca com o dedo antes de que ela pudesse falar.

— Não se preocupe, Catherine. Retornarei.

Endireitou-se, piscou um olho com descaramento e esporeou o cavalo para o prado.

— Felizes sonhos, pequena Cat — Gritou por cima do ombro, enquanto dizia adeus com a mão.

Mary pôs-se a voar do pau da cerca e foi atrás.

Com um dedo posto no lugar dos lábios onde Robbie a havia tocado e a brisa despenteando o cabelo solto pela face, Catherine os olhou partir.

Que bobamente romântico que ele queria levar seu objeto à batalha… O que… O que louco. Aquele cara falava de dever, vocação e antigas tradições, era dono de uma espada e se vestia com um plaid escocês. Ou Robbie MacBain era estranho ou o era ela… Porque começava a aceitar seu estranho comportamento como algo quase normal.

Certamente, isso não impedia de desejar beijá-lo.

Mas daí a que confiasse nele cegamente ia um mundo. Quando por fim ele se perdeu de vista, Catherine entrou correndo no estábulo e percorreu o corredor olhando em todas as casinhas.

Uma das portas tinha uma nota cravada para o Davis, o homem que ia pela manhã e pela tarde a ocupar-se dos cavalos; dizia que o ocupante dessa casinha, que se chamava Boots, tinha uma ferradura frouxa.

Catherine foi a seguinte e encontrou o cavalo que tinha montado Gunter na noite que a resgataram da montanha. A placa da porta dizia que se chamava Sprocket.

Enganchou-o pelo cabresto e depois entrou no quarto dos arreios, escolheu uma sela, desprendeu do gancho a brida de Sprocket e voltou a percorrer o corredor.

Em dez minutos Catherine o tinha selado. Depois correu para a casa, pegou a mochila, tirou-a e a amarrou à sela. Estava fazendo uma última revisão de seu equipamento quando ouviu chegar aos meninos.

Apressou-se a sair para recebê-los justo quando o ônibus escolar se detinha no final do caminho de acesso.

Quando os quatro meninos começavam a andar para receber Nathan e a Nora, chamou o Gunter, que recuando enquanto outros seguiam caminhando e se deteve diante dela.

— Podem cuidar de Nathan e Nora esta noite? — Perguntou Catherine — Vou sair esta tarde e me perguntava se ficariam de babá.

— Sair? — Perguntou ele, evidentemente surpreso — Aonde?

— Bem… Vou subir à velha cabana onde nos encontraram — Disse, assinalando com a mão para o TarStone.

Isto o surpreendeu ainda mais.

— Para quê?

— Para ter uma noite livre — Respondeu ela; deu-se conta de que não tinha acabado de perfilar o pretexto — Eu, bem… Perguntei ao Robbie se podia usar a cabana. Levo-me um livro para ler, como se tomasse umas pequenas férias de cozinhar e limpar.

Gunter franziu o cenho.

— Mas por que na cabana? É uma velha casa cheia de correntes, e além não deveria estar ali acima sozinha. — De repente ficou tenso e em seus olhos apareceu uma expressão muito estranha; voltou-se para o Suv de Robbie e depois a olhou de novo — Onde está o chefe?

—Bem… Foi a passar a noite fora; por isso necessito que cuidem das crianças. Sabem preparar-se sozinhos para ir dormir, se não voltar a tempo. E de todas formas podem levá-los a tomar um sorvete esta noite; deixei dinheiro na mesa.

Uma faísca iluminou o olhar enquanto a observava inclinando a cabeça.

— Vá… — Disse devagar, ao tempo que começava a sorrir — Nós cuidaremos de Nathan e Nora. Você suba à cabana, e não se preocupe com nada daqui. Cuidaremos bem dos mequetrefes.

— E não se metam em confusões, nenhuma — Disse Catherine, lutando contra o rubor que sentia subir pelo pescoço. Senhor, Gunter acreditava que ia ver Robbie!

— Não se preocupe com nada — A tranquilizou Gunter, enquanto ia com ela para os meninos.

— Mami, Cody me disse que Gunter vai ensiná-lo a defender-se — Disse Nathan, deixando atrás Cody para correr a seu encontro — Posso aprender eu também?

Catherine olhou a Gunter e viu que o jovem reagia encolhendo os ombros e metendo as mãos nos bolsos. Então voltou a olhar a seu filho e lhe alvoroçou o cabelo.

— Gunter vai esperar até que o senhor MacBain dê primeiro sua aprovação, Nathan — Disse.

— Quando vamos tomar sorvete, mami? — Perguntou Nora — Agora?

Catherine se agachou até ficar a sua altura.

— Não, céu. Depois de jantar. E além esta noite Gunter e os meninos vão se fazer de babá para vocês — Acrescentou, enquanto desviava o olhar para incluir Nathan — Assim quero que sejam bons e façam o que eles lhes digam.

— Mas aonde vai você? — Perguntou Nathan.

— Vou, à cabana onde estávamos. Provavelmente não terei retornado quando forem dormir, mas estarei aqui pela manhã quando despertarem.

Nora lhe agarrou a mão.

— Eu quero ir com você…

— Não, céu. Não farei mais que estar sentada e lendo todo o momento; não se divertiria nada. Certamente, não se divertiria tanto como se for tomar sorvete e passar a noite com os meninos.

Nathan puxou a manga a Nora para que o olhasse.

— Venha, irmãzinha, será divertido — Disse; notava-se que estava desejando desfazer-se de sua mãe e ser um dos meninos — Se lembra de quando Rita ficava de babá? Fazíamos pipocas de milho e sempre ficávamos levantados até tarde.

Gunter alargou a mão e pegou Nora nos braços.

— Alugaremos um filme — Sugeriu — Viu A pequena sereia?

Peter soltou um gemido, que se converteu rapidamente em um sorriso quando Gunter lhe lançou um olhar feroz por cima do ombro de Nora.

— Eu adoro A pequena sereia — Disse Peter com os dentes apertados.

Catherine ficou direita e se dirigiu para a casa.

— O jantar está na panela elétrica, e há salada na geladeira. Nora, dorme no quarto de Nathan esta noite se não quiser se deitar sozinha em nosso quarto.

— Sim, mequetrefe — Interveio Rick, que sustentou a porta aberta enquanto Gunter levava a Nora dentro — Eu farei as pipocas.

De repente a Nora se acabaram as preocupações. Já sorrindo, olhou Rick por cima do ombro de Gunter.

— Eu gosto com um montão de manteiga derretida. E vou dormir acima com os meninos maiores — Proclamou, olhando a sua mãe.

E aí terminava a coisa, compreendeu Catherine. Aqueles quatro vândalos, como os chamava injustamente todo mundo, eram mais que simples anjos da guarda: faziam milagres. Seus pequenos estavam se transformando em meninos felizes diante de seus próprios olhos.

Catherine colocou o jaquetão, foi até o relógio, passou mão a seu pau e se dirigiu para a porta.

— Estarei aqui para preparar o café da manhã — Disse.

Parou e depois recuou até Gunter; ficou nas pontas dos pés e beijou Nora na bochecha.

— Seja uma menina boa — Sussurrou.

Depois se aproximou de Nathan e deu um beijo na bochecha, apesar de que se notava que dava vergonha que o beijasse diante dos meninos.

— Você seja bom também — Disse, enquanto ia para a porta.

Gunter baixou a Nora e saiu atrás de Catherine até o estábulo.

— Vai subir ali a cavalo? — Perguntou.

Catherine colocou o pau na capa de rifle que havia na sela de montar, desenganchou Sprocket e o tirou do estábulo.

— Certamente não vou caminhando — Disse.

— Tem experiência como amazona?

Catherine montou e sorriu de cima.

— Cuidado, Gunter: começa a parecer uma galinha poedeira. Levo montando a cavalo desde que aprendi a caminhar: cresci em um rancho de Idaho.

Gunter soltou uma risadinha.

— Quando vir o chefe, diga que tem que ir ao instituto amanhã a assinar um relatório para minhas práticas, sim?

— Provavelmente o verá você antes que eu.

— Sim, claro; me esqueci… — Com uma risadinha, Gunter se voltou por volta da casa dizendo adeus com a mão por cima do ombro — Se você subir à cabana a ler… Até manhã.

Catherine abriu a boca para dizer algo, mas em vez disso suspirou e esporeou ao cavalo para o prado. Simplesmente, não valia a pena discutir por algumas coisas. Pôs Sprocket ao trote, seguindo a linha da cerca, e por fim entrou no bosque sem afastar a vista dos rastros do enlameado atalho.

A não muita distância, os rastros torciam para a direita e subiam por um caminho de terra que levava a outro lado da montanha, em vez da cúpula.

Robbie se dirigia à estação de esqui?

Uma vez no caminho, Catherine impôs Sprocket um meio galope para recuperar o tempo que tinha perdido. Cavalgou durante uns dez minutos, mas ao ouvir vozes se deteve.

Merda, Robbie voltava para onde estava ela… E além disso ia com alguém.

Como pôde, Catherine saiu do caminho de terra e se meteu no denso bosque, esporeou Sprocket para que descesse um íngreme montículo e se ocultou atrás de uma grande rocha arredondada; uma vez ali esperou contendo o fôlego. Robbie chegou cavalgando com um homem montado a suas costas, e imediatamente ela reconheceu a voz de Ian MacKeage.

— Estará Daar na cúpula? — Perguntou Ian.

— Sim — Disse Robbie — Mas não servirá de muita ajuda. Percebeu o liso que se pôs a bengala ultimamente?

— Sim que percebi — Concordou Ian — Quando foi jantar ontem à noite. Grei se fixou também, e pareceu gostar disso. E se Grei ouvir a tempestade? Saberá, não é? É um som que nenhum de nós esquece nunca.

— Sim, mas quando se der conta do que ocorre, não haverá nada que fazer. E além amanhã convocarei uma reunião dos dois clãs e explicarei que…

Merda. Afastaram-se muito, e Catherine não ouviu que Robbie ia explicar aos clãs. Que clãs? Referia-se aos MacKeage e à família de seu pai?

E por que subia Ian a montanha, se o que fazia ali acima era tão perigoso?

Catherine esperou um minuto mais ou menos; depois, muito devagar, tirou o Sprocket do esconderijo, agradecendo ao cavalo por não ter relinchado a seu companheiro de estábulo ao passar Robbie. Já de volta no caminho, manteve-se ao passo; sempre que chegava a um lance sem curvas se detinha para que não a vissem se, por acaso, um deles olhasse para trás.

De que tempestade falava Ian? A manhã que encontrou Robbie tinha ouvido o forte estampido de um trovão, e na tarde anterior, precisamente sobre o pôr do sol, também tinha ouvido o mesmo ruído, mas não havia nem nuvens nem chuva. Teria sido um disparo? Embora soasse mais bem como um canhão: forte e tão potente para fazer tremer a montanha.

Catherine tentou não fazer caso a insistente voz de sua cabeça que não deixava de dizer que a curiosidade matou ao gato. Só se preocupava por Robbie, nada mais; não é que fosse curiosa, mas sim estava protegendo-o.

Ela e Sprocket subiram devagar, seguindo o tortuoso atalho que subia pelo bosque e Catherine teve que refrear a todo o momento o cavalo, que não deixava de tentar alcançar a seu companheiro.

As árvores foram ficando mais baixas e mais retorcidas quanto mais se aproximavam da cúpula, até que Catherine teve que deter-se por medo de que a vissem. Então tirou a brida de Sprocket e o atou pela rédea a uma árvore, deixando bastante corda para que pastasse. Depois tirou o pau da capa e prosseguiu a pé atrás de Robbie e Ian, ocultando-se atrás das baixas árvores e as grandes rochas, até que pararam por fim.

Catherine continuou subindo e se desviou a um lado para uma saliência rochosa que estava justo por cima deles; uma vez ali, tombou-se de barriga para baixo e ficou a observar. Tinham desmontado. Ian estava tirando o jaquetão e desdobrando um tecido que tinha enrolada à cintura.

Tinha o mesmo desenho que um dos plaids de Robbie.

Caminhando penosamente, Daar se aproximou da direção contrária.

— Mais vale que tenha dado sua palavra a Robbie — Disse, meneando o dedo enquanto se aproximava de Ian — Se estragar as coisas, alguém o vai passar muito mal.

— Não vou estragar nada, velho — Murmurou Ian, dando as costas ao sacerdote e desabotoando a camisa — Dei minha palavra a Robbie.

Ian e Robbie estavam tirando-a roupa!

De repente Robbie se deteve e olhou para cima. Catherine se esmagou contra o chão, conteve o fôlego e não se atreveu a mover-se de novo até que o ouviu falar.

— Só ficam uns minutos até o pôr do sol — Disse — Continua querendo fazê-lo, tio?

Sua voz estava mais cheia de ternura que de curiosidade.

Completamente desconcertada, Catherine elevou a cabeça e olhou com atenção para baixo. “Pôr do sol… Pôr do sol”, repetiu, ao tempo que desviava a vista para o sudoeste. A parte inferior do sol quase roçava o horizonte. Em seguida voltou a olhá-los e viu que Ian, completamente nu já, envolvia-se no plaid com movimentos hábeis e seguros, como se o tivesse feito mil vezes.

Robbie também estava absolutamente belamente nu, e se envolvia em um plaid da mesma cor que o de Ian. Ambos seguraram bem os tecidos com largos cinturões de couro, e Catherine viu que Ian colocava uma pequena adaga, parecida com a que Robbie tinha mostrado, em uma capa do cinturão.

Robbie alargou a mão para uma das botas que tirou, tirou sua adaga e a meteu no cinturão; depois pegou a espada e o segundo plaid, de diferente cor, que tinha lavado e cerzido fazia uma semana.

Que diabos estavam fazendo? Era aquilo uma espécie de ritual que os escoceses realizavam ao pôr do sol na primavera? Algo para o Ian, talvez, relacionado com sua idade?

Que diabos estava acontecendo?

Depois de olhar o sol, que já estava meio oculto depois do horizonte, o pai Daar deu a volta e assinalou com a bengala para Robbie e Ian.

— Devem partir — Disse.

Muito lentamente, Catherine avançou para a beira do escarpado. Justo então Robbie se acomodava a embainhada espada sobre os ombros; depois rodeou Ian com os braços, olhou para sacerdote e fez uma brusca inclinação de cabeça.

O pai Daar levantou a bengala, e a madeira pareceu resplandecer ao roçá-los últimos raios do sol. De repente, com um violento alarido, levantou-se um cru vendaval e umas escuras nuvens baixaram impetuosas da cúpula.

— Me empreste seu poder, MacBain! — Gritou Daar, ao tempo que baixava a bengala para assinalar Robbie e Ian — Vão com Deus os dois!

Enquanto com uma mão protegia a face do vento e da luz cegadora, Catherine se inclinou mais sobre a saliência e viu que uma crepitante massa de nuvens jogando faíscas, cada vez mais densa, rodeava Robbie e Ian.

Nesse instante um forte e dilacerador grito chegou do alto, e se apressou a dar a volta, levantando o pau, para proteger-se das afiadas garras de Mary. A coruja desceu em picado para ela, tentando agarrar a manga do jaquetão justo enquanto Robbie gritava.

Não, não gritava. Aquele homem rugia!

Catherine recuou e arranhou a saliência coberta de musgo, mas o vento, Mary e seu próprio impulso a impediram de agarrar-se. De repente não sentiu mais que ar debaixo dela e caiu no chão com um golpe tão forte que a deixou sem respiração… E sem a possibilidade de dar um grito assustado.

Umas fortes e poderosas mãos a recolheram, e de novo Robbie rugiu por cima do uivo da agitada tempestade.

— Maldição, Cat! — Gritou, estreitando-a forte contra seu peito, espremendo-a contra Ian, e rodeando os dois com seus braços — Se agarre a meu cinturão!

Ela lutou com ele; só desejava afastá-lo mais rápido possível daquela tempestade que bramava com violência… E daqueles loucos. O ar chispava, explodia e crepitava em torno deles, e o chão cabeceava e tremia com estrondo.

Os braços de Robbie se esticaram até que ela acreditou que esmagava os ossos.

— Muito tarde! — Grunhiu ele junto a sua orelha, tampando sua cabeça, enquanto o feroz vento aspirava o ar dos pulmões — Você vem conosco!

 

Robbie não recordava ter tido jamais tanto medo enquanto estreitava Ian e Catherine contra seu peito, esforçando-se por resistir a crepitante luz que atravessava chispando as agitadas nuvens. Mary cravou as garras no plaid e estendeu as asas por cima, acrescentando seus poderes de guardião com o fim de ajudá-lo a lutar para que os três abrissem passo entre o caos.

Se escapassem de suas mãos, Catherine e Ian acabariam em qualquer parte… Ou inclusive em qualquer época.

Robbie sentiu que a energia que estava alterando balançava a roupa moderna de Catherine, e seu grito de pânico lhe rasgou a alma. Tremendo, Catherine se agarrou a ele, e seus gritos se afogaram no peito de Robbie enquanto a forte tempestade seguia bramando.

Por sua parte, Ian deu o grito de combate dos MacKeage e começou a dar golpes a torto e a direito, com a coragem de um guerreiro decidido a voltar para seu lar.

O tempo se revolveu e se retorceu, rugindo como uma besta ferida, até que por fim o torvelinho parou de forma tão brusca como o choque de um trem com uma montanha. O chão onde caíram protestou, retumbando, enquanto o vórtice explodia em um último e luminoso brilho antes de desaparecer.

O súbito silêncio resultou mais ensurdecedor que a tempestade, e Robbie ficou agachado sobre as pessoas que tinha a seu cargo; todos os músculos do corpo tremiam de esgotamento, e o coração palpitava tão forte que temeu que fosse explodir.

Nem Catherine nem Ian se moviam, e se obrigou a soltá-los. Então Catherine inspirou profundamente, abriu os olhos e gritou a pleno pulmão. Depois se separou dele disparada, com a face pálida de terror, e voltou a gritar ao se dar conta de que estava nua; como pôde, levantou-se e pôs-se a correr até o bosque.

Robbie deixou Ian no chão e correu atrás dela.

— Cat, não! — Gritou, agachando a cabeça entre as árvores — Não deve correr! Tenho que te explicar o que ocorreu, Catherine!

Ouviu-a dar um grito de surpresa e se deteve bem a tempo de vê-la rodar por uma levantada colina. Então foi atrás dela e a agarrou pelos ombros.

Catherine apenas se sustentava em pé, e Robbie a atraiu contra seu peito e a rodeou com os braços para capturar seus descontrolados murros, fruto do pânico.

— Ssshhh… — Cantarolou, enquanto ela cravava as unhas e o empurrava para soltar-se — Calma, pequena Cat. Está bem. Nada nem ninguém vai te machucar. Calma, Catherine.

Mas ela seguiu lutando cegamente, e seus aterrados gemidos atravessaram o coração como uma adaga oxidada.

— Temos que voltar com o Ian — Disse, pensando em reorientar seu medo — Poderia morrer. Por favor, me ajude com Ian.

De repente ela ficou quieta e tentou tampar os seios nus.

— Tenho outro plaid que pode usar — Disse Robbie em um sussurro; lentamente soltou seu puxão — Volta comigo junto a Ian.

Em voz tão baixa que ele apenas a ouviu, Catherine perguntou:

— Q-o que passou? O-onde está minha roupa?

— Explicarei isso tudo assim que atendamos Ian — Prometeu Robbie; depois lhe agarrou o pulso para ajudá-la a subir levantada colina.

Mas ela retorceu o braço, tentando soltar-se.

— Irei. Me solte.

— Não; nunca te apanharei se põe-se a correr. Ian nos necessita.

Catherine ficou em silêncio e foi com ele, mas Robbie sentiu a tensão que fervia nela. Anoitecia, e o bosque ia escurecendo cheio de ameaçadoras sombras. Quando chegaram até onde estava Ian, encontraram Mary a seu lado. Então Robbie recolheu o plaid MacBain e o estendeu a Cat sem olhá-la, pendente de seu tio.

Tomou a face em suas mãos e com o polegar mediu o pescoço para buscar o pulso.

— Está vivo mas fraco, de lutar com a tempestade.

— O-onde estamos? — Sussurrou Cat, enquanto colocava do outro lado de Ian — E-está não é a montanha TarStone.

Robbie elevou o olhar e esteve a ponto de sorrir; Catherine tinha posto plaid MacBain enrolado uma dúzia de vezes, como um sarí.

— Não. Estamos na Escócia.

— Escócia? Isso é impossível.

Robbie deslizou um braço sob os ombros de seu tio e, com suavidade, levantou-o até pô-lo sentado.

— Acredita nisso? — Perguntou; passou uma mão pela testa e a cabeça, e mediu procurando galos. Depois olhou para Cat — Então também é impossível que estejamos na Escócia do século XIII, suponho.

Ela deu um grito afogado e se agarrou ao plaid com os olhos muito abertos de horror e o rosto absolutamente branco.

— Tre-treze…?

Nesse momento Ian deu um grunhido, e Cat deixou a um lado seu medo o tempo suficiente para pegar sua face entre as mãos e voltá-lo para ela.

— Ian — Disse com firmeza — Acorda já. Abra os olhos.

Ian pestanejou, grunhiu de novo e tentou afastar-se rodando.

— Ian! — Espetou ela, zangada — Acorda!

Robbie se inclinou perto da orelha de seu tio e sussurrou em gaélico, acrescentando o nome de Gwyneth ao pedido.

— O que disse? Que idioma era esse?

— Gaélico — Disse Robbie ao tempo que, com o dedo, cravava o ombro de Ian; em seguida voltou para gaélico, desta vez mais forte — Tio, os homens fazem fila na porta de Gwyneth, desejando cortejá-la.

Então Ian abriu os olhos e arremeteu com o punho. Robbie o agarrou antes que desse a algo que não fosse o ar e sorriu a seu carrancudo tio.

— Quem é Gwyneth? — Perguntou Catherine, olhando de Ian a Robbie.

— É minha esposa — Resmungou Ian em inglês.

— Sua esposa? Você tem esposa? Mas eu acreditava… Cody disse algo sobre você e… E Kate — Terminou em um sussurro, ao tempo que voltava a olhar a Robbie.

— Gwyneth é minha esposa — Repetiu Ian; recuperou o punho para esfregar a face e por fim olhou a Robbie. Sua barba deu um giro até converter-se em um amplo sorriso — Sobrevivi, MacBain.

Deu um golpe no ombro, embora olhando para a paisagem que os rodeava; seu sorriso se fez ainda mais amplo quando repetiu:

— Sobrevivi. Estou em casa! — Voltou olhar a Robbie — Trouxe-me para casa.

De repente ficou tenso; olhou a Catherine e depois a Robbie outra vez.

— Trouxe a governanta?

— Não por escolha própria — Disse Robbie ao tempo que jogava um olhar feroz a Mary, que tinha se afastado com sigilo até pousar em uma rocha; depois elevou uma sobrancelha e olhou Catherine — Pelo visto, é um pouco curiosa.

As pálidas bochechas dela se obscureceram com duas manchas vermelhas.

— Eu só ia te seguindo para… Queria… Eu somente… Merda, não queria que voltassem a te dar uma surra!

— Sim. De modo que, em vez disso, quase nos manda voando ao esquecimento — Murmurou ele. Levantou-se, pôs de pé o Ian e não o soltou até estar seguro de que não cairia; depois jogou um olhar ao redor do pequeno claro — Me parece que deveríamos acampar aqui para passar a noite, e ir à aldeia pela manhã.

— Sim — Concordou Ian, rodando os ombros para livrar-se dos últimos apertos da viagem — Tenho vontade de me lavar antes de ver minha Gwyneth.

— E além disso temos que pensar em uma história nova. — Robbie assinalou Catherine com uma inclinação de cabeça — Vamos ter que explicar a ela…

Ian soltou um bufo.

— E por que tem posto esse plaid MacBain.

— Que aldeia? — Perguntou Cat; afastou-se pouco a pouco e, depois de baixar a vista para si mesmo, passou-se os dedos pelo tecido que amarou nos seios — Por que têm que explicar este plaid?

— Leva postos as cores MacBain — Disse Ian — E são nossos inimigos.

— Robbie é seu inimigo? — Sussurrou ela, dando outro passo atrás — Mas se é seu sobrinho…

Ian suspirou.

— É uma longa história, Catherine, embora acredite que deveria ouví-la antes de irmos à aldeia.

Quando ela recuou outro passo, Robbie disse:

— Não corra. Não há aonde ir.

Ela elevou o queixo.

— Vou à casa. Isto é uma loucura. Todos vocês estão loucos. Não podemos estar em uma montanha do Maine e em seguida, na Escócia. E certamente, não no século XIII.

— Pois o estamos — Disse Ian — A tempestade nos trouxe aqui, com ajuda do sacerdote.

— D-do sacerdote?

Assim que Cat olhou para Ian, Robbie se equilibrou e a capturou antes que pudesse fugir. Com um grito de surpresa, ela ficou a repartir golpes, esmurrando-o com seus diminutos punhos enquanto se retorcia para liberar-se. Ele utilizou seu peso para deixar cair com ela no chão e depois imobilizou suas pernas passando a coxa por cima, ao tempo que agarrava os punhos e segurava suas mãos junto à cabeça.

— Perdoa — Disse — Mas não posso deixar que ponha-se a correr. Me prometa que ficará conosco, ou me verei obrigado a te amarrar como a um cavalo.

— Só quero ir para casa — Sussurrou ela, com a face tão pálida como a neve recém caída — Por favor, deixe-me ir para casa, nada mais.

Terminou com um soluço, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas e lhe tremia o queixo.

Robbie se inclinou e lhe beijou a testa.

— Não, pequena Cat. Não posso. Até dentro de vários dias, não.

— Dias! — Gritou ela, que voltou a retorcer-se — Não! Tenho que voltar com o Nathan e Nora… Não posso estar dias fora!

Robbie deixou cair o peso de seu corpo para deter suas resistências e a tranquilizou.

— Não, Catherine — Suplicou em voz baixa — Estará de volta antes do amanhecer, prometo-lhe isso.

Ela ficou quieta e levantou o olhar para ele.

— Mas você disse… Disse dias.

— Sim. A última vez que parti estive aqui uma semana, mas quando voltei só tinha estado ausente do pôr do sol até o amanhecer. Assim é como funciona. —Soltou-lhe os pulsos e esperou a ver se ficava a dar golpes de novo; depois afastou o cabelo da pálida bochecha — Embora fiquemos aqui um mês, estará de volta antes de que Nathan e Nora despertem.

Ela empregou suas liberadas mãos para secar as lágrimas de um tapa.

— C-como é possível? A pessoa não viaja através do tempo.

Ian se agachou junto a ela, tocou-lhe o ombro e disse:

— Sim que viajamos. Faz trinta e cinco anos o sacerdote provocou uma tempestade exatamente como a que atravessamos, e a dez guerreiros, incluído o pai de Robbie — Acrescentou, assinalando a este com uma inclinação de cabeça — Adiantou-nos no tempo até sua época.

Bruscamente, Catherine desviou a vista para o Robbie.

— Seu pai também procede daqui?

— Sim. E o pai de Winter, Greylen MacKeage; e meus tios Morgan e Callum. Todos nasceram na Escócia do século XII.

— Isso não é possível — Repetiu ela — Não!

— Entretanto, ocorreu assim. O sacerdote é em realidade um druida… Um mago — Esclareceu Robbie — Tem o poder de manipular o tempo.

Rodeou-lhe a bochecha com a mão e, com o polegar, acalmou seu tremulo queixo.

— Catherine, não acreditará nada disto até que o veja por si mesma. Amanhã pela manhã a levaremos a aldeia MacKeage e o compreenderá por fim.

Ela tentou levantar-se, mas Robbie não o permitiu.

— Primeiro — Disse — Sua promessa de que não se porá a correr.

— N-não correrei — Sussurrou ela.

Ele vacilou; depois, devagar, levantou a coxa, ficou de pé e estendeu a mão para que ela a agarrasse.

Catherine cravou o olhar nele… Depois pôs a mão na sua e se levantou.

— Q-o que aconteceu a minha roupa? — Perguntou, voltando a amarrar o plaid em seu lugar — Por que desapareceu e a sua não?

Robbie a levou junto à Mary e a insistiu a sentar-se, enquanto explicava:

— Sua roupa era feita de malhas modernas, mas nada que não estivesse inventado no século XIII podia retornar conosco. — Olhou-a sorrindo — O qual inclui a malha de poliuretano, o elástico e o náilon.

Voltou-se para o Ian.

— Tio, o que te parece se nos prepara um fogo?

— É prudente isso? — Perguntou Ian, jogando uma olhada ao redor — Acredito que estamos na montanha Crag, e isso não está longe da fronteira MacBain.

— Aqui estamos a salvo — Disse Robbie; alargou a mão, pegou o pau de Catherine, que também tinha atravessado a tormenta, e o passou a ela; como por fim a noite tinha caído sobre o bosque, não soube interpretar sua expressão — Toma, com isto deve se sentir um pouco mais segura.

Ela apertou o pau contra seu peito e puxou a barra do plaid para tampar os joelhos nus. Ian saiu do minúsculo claro onde estavam em busca de lenha, e Robbie tirou a espada, pô-la no chão junto a Cat e olhou a Mary.

— Não nos viria mal algo para tomar o café da manhã — Disse a coruja — Um roliço coelho estaria bem.

Sem fazer ruído, Mary abriu as asas e separou da rocha para perder-se no céu noturno.

— Fala com a Mary? — Perguntou Cat — E te entende?

— Sim. Inclusive me replica, embora não em voz alta — Disse ele, sentando-se a seu lado — Recorda a magia de que te falei? E meu dever?

Ela assentiu, e Robbie se moveu para olhá-la mais de frente.

— Sou seriamente um guardião, Catherine, encarregado do dever de velar por minha família. E, do mesmo modo, tenho poderes que me permitem manipular não só o tempo, mas também outras coisas.

— Quer dizer que não era só uma forma de falar? Não é que te considere um anjo da guarda e que só te pareça que tem que cuidá-los de todos?

— Não. É minha vocação, disposta pela Providência.

Ela se inclinou para ele e lhe pôs a mão no braço.

— Robbie, a magia não é de verdade — Sussurrou, como se tentasse lhe comunicar a notícia pouco a pouco — É o que contamos aos meninos quando não podemos explicar algo, como o modo em que Papai Noel vai a todas as casas em uma só noite, ou como as fadas dos dentes tiram um dente de debaixo do travesseiro sem despertá-los.

Robbie disse que nesse momento renunciaria a sua espada para ter ali a Libby ou a tia Grace. Como diabos ia explicar a Catherine o que ele mesmo mal começava a entender?

Cobriu-lhe a mão com a sua e disse:

— Cat: a magia é tão autêntica como o amanhecer. Está em todas partes e em tudo; é o milagre da própria vida, o ar que respiramos, o sangue que corre por nossas veias… Leva conosco do início do tempo, e só nos últimos séculos o homem pensou em explicá-la mediante a ciência. — Alargou a mão e, com suavidade, acariciou-lhe a bochecha com os dedos — Mas a magia é a base dessa ciência, Cat. Que alguns possamos dirigi-la só demonstra quão autêntica é.

— É…? Pretende dizer que é um mago ou algo assim?

— Não. Só sou um homem a quem encomendaram o dever de proteger a meus seres queridos.

— Protegê-los do quê?

— Da mesma magia, se se empregar de forma indevida. E além disso, de quem quer trocar o destino como lhes agrada. De druidas como o pai Daar, que têm o poder de dobrar as leis da natureza.

— Então o pai Daar é mau?

— Não; simplesmente é um antigo que não vê além de seus próprios desejos. Trouxe o Greylen MacKeage a nossa época faz trinta e cinco anos para que fosse o pai de sua herdeira. Que meu próprio pai, Ian e outros ficassem absorvidos na tempestade com o Greylen demonstra que tenho que vigiar o Daar. É egoísta e frequentemente manipulador, mas suas intenções não são malvadas.

— Mas por que segue voltando aqui? Veio Ian contigo todas as vezes?

— Não. Meu pai e outros não sabem nada de minhas viagens aqui, e por isso não podia contar-lhe, não podem sabê-lo porque quereriam me ajudar, e isso não faria a não ser transtornar a suas esposas e suas famílias.

— Te ajudar a quê?

Robbie suspirou e atraiu Catherine a seu colo, contente de que não recuasse mas sim, em vez disso, apoiasse-se nele.

— O feitiço que levou os guerreiros das Terras Altas à época moderna recuará no solstício deste verão, e voltarão para sua época de origem. Estou aqui para me assegurar de que isso não ocorra, e para fazê-lo tenho que buscar a Daar uma árvore de feitiços; com isso ele o evitará.

— Quer dizer que no solstício do verão seu pai e seus tios desaparecerão?

— Sim. Suas vidas se desarraigarão outra vez. — Levantou-lhe o queixo para que o olhasse, desejando poder interpretar sua expressão —. Começa a me acreditar já, pequena Cat?

— Não.

— Não? Então como explica o que acaba de ocorrer?

— Estou sonhando, igual a Dorothy no mago de Oz. Me dei um golpe na cabeça durante a tempestade, fiquei inconsciente e estou sonhando.

Robbie lhe deu um bom beijo na boca e depois a estreitou contra seu peito.

— Ai, Catherine, agora compreendo por que está tão tranquila… — Se inclinou e tentou ver em seus olhos, levantando o queixo com o polegar — Mas e se não for um sonho? E se tudo isto está acontecendo de verdade?

— Não está acontecendo — Disse ela; elevou a mão e roçou com os dedos seu sorriso — Porque é impossível.

— Certo — Admitiu ele — Então, permitirá-me que seja seu guia neste sonho? Promete-me que fará tudo o quando te disser que faça algo?

— É meu sonho — Disse ela, ao tempo que ficava rígida dentro de seu abraço — Não pode me dar ordens.

— Catherine, está sonhando que estamos no século XIII, quando as mulheres decidiam pouco, ou nada, de sua vida. Se deseja sobreviver aqui, terá que te deixar levar por mim; em particular diante de outros — Repôs ele.

— Não. É que me prometi a mim mesma não voltar a estar nessa situação jamais.

Robbie voltou a estreitá-la com um cansado suspiro. Como diabos ia protegê-la se não colaborava? Como lhe faria compreender?

Nesse momento Ian voltou e deixou cair sua carga de lenha; depois se sentou junto a eles dando um suspiro mais cansado ainda e murmurou:

— Sou velho. E além disso perdi a vista. Não sei dizer o que terei pego como lenha — Disse, ao tempo que assinalava com um gesto o montão de paus — Poderia ter uma serpente aí dentro, o que sei eu.

Robbie voltou a pôr Catherine a seu lado e com um pau ficou a escavar uma fossa para o fogo. Depois começou a dispor a úmida lenha no meio.

— Os fósforos não se inventaram no século XIII — Disse ela, abraçando os joelhos e inclinando-se mais perto para olhá-lo — Como vai acender o fogo?

— Com magia.

Ian conteve o fôlego e recuou.

— Faz isso? Igual ao sacerdote? — Sussurrou enquanto, com dissimulação, afastava-se mais.

— Sim, tio. Recentemente tenho descoberto que faço muitos truques estupendos.

— Como quais? — Perguntou Ian, afastando-se outros quantos centímetros.

— Como este — Disse ele.

Colocou a mão no centro do montão e enrolou à lenha para que liberasse a energia que armazenava. Depois se inclinou e, com suavidade, soprou nos fumegantes paus até que estalaram em chamas.

Ian ficou de pé e se foi bastante longe. Robbie soltou uma risadinha e se levantou também.

— Está tudo bem, tio; sigo sendo o sobrinho que tinha sentado nos ombros. Que por fim me dê conta de todo o alcance de minha vocação te beneficia.

Alargou a mão e a pôs no ombro.

— Assim é como chegou até aqui — Recordou em voz baixa.

As chamas do fogo que já bailava se refletiram nos olhos cor avelã de Ian quando o velho devolveu o olhar.

— É que… É que estou surpreso, nada mais… — Sussurrou.

De repente envolveu Robbie em um feroz abraço.

— Sim: segue sendo meu filhotinho — Disse bruscamente lhe aplaudindo as costas antes de se afastar e limpar as lágrimas de um tapa; sua voz se converteu em um murmúrio — Detesto ser velho. É uma desgraça tremenda: o ar sempre faz que me lacrimejem os olhos. Vou procurar mais lenha. Foi para o bordo do claro, e Robbie o olhou enquanto desaparecia no bosque noturno. Ao voltar-se outra vez para o fogo, encontrou Catherine com o olhar cravado nele e a mandíbula frouxa.

Enquanto se sentava de novo junto a ela, disse:

— Está sonhando, recorda? Vamos ver, e se te ensino como colocar bem um plaid? — Beijou-lhe a ponta do nariz — Embora esteja linda, amanhã toda a aldeia vai rir de você se chega vestida assim.

— Ian não vai voltar conosco à época moderna, não é? — Sussurrou — Você… Você o trouxeste de volta aqui para morrer.

— Não, Catherine. Trouxe-o aqui porque me pediu isso, e porque quer estar com sua esposa, seus filhos e seus netinhos. Ainda tem por diante muitos bons anos e deveria passá-los no seio de sua família.

— Sabem os outros que está aqui? Seu pai e Greylen?

— O direi quando voltar.

— Ele… Ele nem sequer se despediu deles?

— Sim que se despediu; só que não se deram conta. Alegrarão-se por ele assim que o façam.

— Querem retornar também?

— Não: suas esposas, filhos e netos estão em Pene Creek. Faz trinta e cinco anos que vivem com o temor de que os arranquem de seu lado: por isso é tão importante que leve de volta os feitiços para que Daar o complete.

— Por que não consegue Daar seus próprios feitiços, se é um mago?

Robbie meneou a cabeça.

— Há outro druida aqui, chamado Cùram de Gairn, que não o permitiria. É mais jovem e mais poderoso que Daar, por isso o sacerdote me enviou.

Os olhos dela se empanaram de inquietação a trêmula luz do fogo.

— É mais poderoso que você? — Sussurrou; inclinou-se mais perto e lhe agarrou a frente do plaid com os punhos — Ele é o que não para de te dar surras?

Robbie riu, subiu as mãos dela até seus lábios e as beijou.

— Não, pequena Cat. Cùram se mantém oculto, e também me mantém oculta sua árvore de feitiços.

— Uma árvore? Acreditava que os feitiços procediam de um livro ou algo assim.

— A tradição o considera um livro, acredito, mas em realidade é uma árvore de sabedoria. Todos os druidas têm uma que custodiam e alimentam, e eu procuro a árvore de Cùram para lhe roubar uma parte da raiz principal.

Catherine se afastou bruscamente, voltou a rodear os joelhos com os braços e, sem dizer nada, olhou fixamente o fogo durante vários minutos; notava-se que tratava de compreender o que ele estava lhe contando. Ao fim o olhou de novo.

— Então, se conseguir essa parte de raiz não terá que seguir voltando aqui?

— Assim é. Daar o usará para cultivar sua própria árvore de sabedoria e preparará um novo feitiço para manter aos escoceses na época moderna.

Ela ficou de pé com os punhos apertados aos flancos, como se esperasse briga.

— Pois te ajudarei. Encontraremos a esse Cùram, esse tipo que é mago e sua árvore, e lhe roubaremos a raiz para que não tenha que voltar jamais.

Robbie se levantou também; as pontas dos dedos de seus pés tocavam os dela.

Ela não recuou, mas sim se limitou a elevar a vista, sorrindo.

— Não pode me ajudar, Cat. Isto não é brincar de caça ao tesouro e sim uma busca perigosa. Cùram é perigoso. —Com um gesto da mão assinalou a paisagem que os rodeava — Diabos, todo este mundo é perigoso para uma mulher.

Catherine soltou um bufo e levantou o queixo.

— Pelo visto, também é perigoso para os guardiães. — Cruzou os braços, Recuou sobre os quadris e o olhou inclinando a cabeça — Seus poderes mágicos o faz infalível?

— Como? Não, claro que não. Sou um homem mortal.

— Então quem te protege?

Robbie se esfregou a face com uma mão.

— Não mantivemos já esta conversa? Não necessito a ninguém que me proteja, porque aqui o guardião sou eu, sabe? — Resmungou, ao tempo que batia no peito.

— É meu sonho — Repôs ela, resmungando e batendo no peito também — E posso me dar os poderes que queira. E, olhe: acredito que serei seu anjo da guarda.

Dirigiu-lhe um torcido sorriso.

— Bem sabe Deus que necessita um.

Robbie não soube se queria apagar da cara aquele descarado sorriso com um beijo ou fazer entrar em razão à força sacudindo-a.

— Acredito que deveríamos dizer que Catherine me ajudou a escapar dos ingleses… — Disse Ian, que retornava precisamente então com uma braçada de paus. Deixou-os cair junto ao fogo e se voltou para Robbie com os olhos brilhantes de emoção — E que a trouxe para casa para recompensá-la. Ficará com Gwyneth e comigo até que tenha que voltar; desse modo a cuidarei enquanto você se ocupa de seu assunto.

— Parece-me um bom plano, tio.

Ian inchou o peito.

— Sim. Pensei que isso explicaria também por que não sabe falar gaélico —Olhou-a e meneou a cabeça — Mas o plaid tem que desaparecer…

Antes que Robbie pudesse falar, Ian disse de repente:

— Não, espera! Me ocorre uma boa história. Diremos que a roubou um MacBain que procurava esposa, e que eu a voltei a roubar. E que, além disso peguei o plaid como troféu e o mandei para casa com o traseiro ao ar — Assentiu, inchando o peito mais ainda — Sim. O que te parece essa história?

Pelo olhar feroz que Catherine lhe lançava, Robbie deduziu que não gostava de muito.

— É perfeita, tio. — Deu um tapinha no ombro — E além me tranquilizará saber que você estará cuidando de Cat. Assim estará a salvo de qualquer guerreiro que procure esposa.

Cat voltou a sentar-se na rocha, e Robbie lhe jogou uma olhada bem a tempo de vê-la ocultar um bocejo. Agora que o pensava, ele mesmo estava bastante cansado… E quanto a Ian, dava a impressão de que o mantinha em pé o plaid, mais que suas velhas e cansadas pernas.

Enquanto se agachava para jogar mais lenha ao fogo, Robbie disse:

— Parece-me que já está bem por esta noite. Deitaremo-nos naquele musgo dali. — Assinalou com um pau ao outro lado da fogueira — Cat, você dormirá entre nós para não se esfriar. Ian, ponha-se do lado do fogo.

Deu a impressão de que a sua governanta tampouco convencia aquele plano, mas agarrou seu pau, rodeou o fogo e ficou olhando fixamente o musgo. Então olhou Robbie.

— Não pode fazer aparecer uma cama de penas ou algo assim? — Perguntou, ao tempo que levantava o queixo e o desafiava a que o tentasse.

— É seu sonho: faz você.

Catherine voltou a baixar a vista para o musgo e deu um suspiro que terminou em outro bocejo; depois se sentou, pôs o pau no chão, do lado onde ia estar Robbie, e tentou reajustar o plaid para tampar os ombros.

— Eu te ensinarei a arrumá-lo — Disse Ian, ficando de cócoras junto a ela — É tão comprido que pode te envolver os braços como se fosse um xale grande, e também as pernas.

Agarrou uma ponta do tecido e tirou três voltas de ao redor, o qual seguiu deixando-a bem tampada.

— Vê? Assim se faz — Disse Ian — Minha Gwyneth me ensinou que as mulheres se tampam de forma diferente dos homens. Amanhã lhe conseguiremos um plaid MacKeage e uma blusa para que ponha isso com ele.

— E os sapatos? — Perguntou ela, concentrando-se no que fazia Ian — O que usam as mulheres nos pés?

— Couros — Disse ele — Perneiras altas com fundo de dobro revestimento para não cravar-se com as rochas bicudas. E além disso, meias de lã para manter-se abrigadas.

Ela elevou o olhar e sorriu.

— Nunca tive um sonho que implicasse uma lição de história.

— Um sonho? — Perguntou Ian; franziu a cara em um cenho e olhou ao Robbie — Acredita que está sonhando tudo isto?

Robbie encolheu os ombros, recolheu sua espada, aproximou-se por atrás de Catherine e se sentou justo quando esta bocejava outra vez. Por sua parte, Ian se situou entre Catherine e o fogo, de modo que os dois formaram um quente e protetor sanduíche ao redor dela.

Catherine se tombou de forma bastante rígida; depois olhou a Robbie, depois a Ian, e se voltou de lado para o homem de mais idade, colocando as mãos sob a cabeça e aconchegando-se em seu plaid MacBain.

Robbie a rodeou com o braço, atraiu-a contra seu peito e suspirou quando ela ficou rígida como uma tabela.

— Relaxe, pequena Cat — Sussurrou; meteu sua cabeça sob o queixo e a tampou com parte de seu próprio plaid — Só sonha que estou te abraçando.

 

Catherine despertou imaginando que estava em casa, em sua cama; imaginando que o fôlego que sentia no pescoço… E o peso sobre suas pernas… E a mão colocada dentro do pijama, entre seus seios… Tudo pertencia a Nora.

Mas abriu os olhos e descobriu que continuava presa em seu absurdo sonho; quem tomava liberdades tão íntimas com seu corpo era Robbie MacBain, e Ian MacKeage, que tinha rodado até quase meter-se no fogo já mal aceso, roncava tão forte para despertar os mortos.

Bom: o que faria Dorothy ao encontrar-se ainda em Oz… E não com um homem de lata, um leão e um espantalho, e sim com uma coruja, um velho guerreiro e um bonito cavalheiro que queria que acreditasse que tinham viajado no tempo?

— Está repensando a promessa de não pôr-se a correr? — Sussurrou Robbie à orelha.

Ela voltou a cabeça para olhá-lo.

— Eu cumpro minhas promessas.

Ele deu um beijo na bochecha e a pegou mais ao corpo.

— Que tal vai saindo o sonho esta manhã?

— Muito bem, a verdade — Disse ela; tampou a mão que ele tinha entre seus seios e em vez de tirá-la, a apertou — Porque se isto fosse a realidade e me visse despertando envolta em você, provavelmente teria um ataque de pânico.

Os olhos de Robbie cintilaram à luz do sol nascente; moveu o polegar só um pouco, o suficiente para roçar a parte interior do seio esquerdo.

— Então pretende dizer que, como não é mais que um sonho, poderia fazer amor com você e não teria medo?

Catherine teve que pensá-lo.

Que ideia tão fascinante…

Catherine deu a volta em seus braços, apoiou-se nele e, com audácia, beijou-o nos lábios; depois elevou o olhar, sorrindo.

— Não tinham camisinhas no século XIII.

— Mas em um sonho a gravidez não tem importância — Disse ele; seu sorriso fez que os olhos pregassem nos cantos — Ou se preocupa que talvez fizéssemos amor de verdade, embora esteja sonhando? Como os sonâmbulos?

Aquilo acabou com o sorriso de Catherine.

— Obrigada — Disse com um bufido; tirou a mão do plaid e se levantou — Acaba de arruinar sua melhor oportunidade para “pegar”, MacBain.

Ele se sentou junto a ela.

— Sim. Dei-me conta de meu engano já enquanto falava.

Levantou-se, pegou a espada e a pôs à costas; depois estendeu a mão para que ficasse de pé.

— Há um arroio que desce pela montanha a uns cem metros, entre essas árvores — Disse, orientando-a por volta do bosque — Por que não vai fazer o que fazem as mulheres para começar o dia, e eu despertarei Ian e prepararei o café da manhã? Mary irá com você.

Ao dizer essas palavras assinalou um pinheiro. Mary estava sobre um ramo, com a vista cravada neles.

— Trouxe um coelho? — Perguntou Catherine, olhando a seu redor.

— Sim, dois — Disse ele ao tempo que assinalava uma rocha, junto ao fogo.

Catherine cruzou os braços e inclinou a cabeça.

— Acreditava que na época medieval limpar a caça e cozinhar era tarefa das mulheres.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Oferece-se voluntária?

— Não — Disse ela, dirigindo-se para o arroio — Só comprovo quão autêntico é meu sonho.

— Bom, pequena Cat, eu diria que está a ponto de receber a lição de história de sua vida — Disse Robbie com uma risadinha.

Assim que entrou no bosque, Catherine apertou com as mãos os ainda palpitantes seios. Caramba! Se estava sonhando, oxalá não despertasse nunca. Era tão maravilhoso despertar nos braços de um homem, tão sensualmente excitante, que mal tinha podido conter-se para não atacá-lo.

Descartar a ideia de que fizessem amor porque aquilo só era um sonho tinha sido prudente… Embora melhor, também bastante estúpido. Talvez fosse sua oportunidade de voltar a sentir, inclusive de fazer amor sem riscos…

Catherine disse que controlava os atos de Robbie embora não os previa muito bem. Isso era o gracioso dos sonhos: não seguiam as leis habituais da natureza. Nos sonhos a pessoa voava, transformava-se em animais, corria sem ir a nenhum lugar e não sentia dor de verdade. Nem sequer o tempo existia.

Por outra parte, de repente os sonhos ficavam a dar tombos ao azar e, em um abrir e fechar de olhos transformava-se em pesadelos. Tinha acontecido mais de uma vez, e não estava disposta a correr o risco de que ocorresse de novo.

Em particular não com Robbie MacBain, que era o homem de seus sonhos. Era o perfeito varão: bonito ao estilo “duro”, protetor e possessivo sem ser um troglodita, paciente e amável, e além do mais sexy. Inclusive quando estava bem acordada, aquele tipo o fazia perder o julgamento. Vá, homem, se não fosse por suas nobres intenções, ao melhor não teria necessitado aquele sonho absolutamente. Os beijos do estábulo e da cozinha teriam levado a uma conclusão muito indecente só com que ela tivesse insistido um pouquinho.

Mary baixou planando para pousar sobre uma rocha no meio do diminuto arroio, e Catherine a olhou sorrindo.

— Que olha? — Perguntou; ajoelhou-se e colocou as mãos na água fria — Sim. Se Robbie falar com você, melhor eu também.

Mas Mary não disse nada, nem sequer fez um matraqueio.

— Joga a culpa em você de que eu esteja aqui — Disse Catherine, prosseguindo a unilateral conversa — Você me fez cair daquela saliência e fez que me desse um golpe na cabeça; é assim me agradece por te costurar?

Colocou o emaranhado cabelo atrás das orelhas, jogou água na face, esfregou as bochechas com as mãos e depois se inclinou para beber diretamente do arroio. Depois secou a face com a ponta do plaid, levantou-se e olhou a Mary… Em concreto os fios cor rosa de seu ventre.

— Você… Bem… não se machucou enquanto ajudava o Robbie a procurar essa árvore do mago, não é?

Mary estendeu as asas, estirou-se em toda sua altura e fez um gesto com a cabeça.

Catherine recuou, surpreendida.

— O que disse? — Sussurrou.

Por fim sabia com certeza que estava sonhando… Porque juraria que tinha ouvido uma voz, uma voz de mulher, dizer que era hora de voltar para acampamento, que havia perigo no bosque.

Deu-lhe voltas ao nó do plaid e esquadrinhou o denso bosque enquanto dava outro passo atrás.

— C-como sabe? — Cravou o olhar na coruja e meneou a cabeça para limpá-la — Que gente MacKeage? Que guerreiros?

Nesse momento Catherine decidiu que dava igual quem estivesse falando: ia voltar junto para Robbie. Mas ao girar sobre seus calcanhares chocou totalmente com um sólido peito, e uns grandes braços a rodearam tão forte que seu grito de surpresa soou como um chiado. Notou que a levantavam do chão e se encontrou com o nariz pego à barba de um gigante de cabelo revolto, cara suja e olhos verdes.

E se por acaso isso fosse pouco, aquele pestilento animal sorria… Ou pelo menos, até que a folha de uma espada deslizou entre eles sem fazer o menor ruído, justo à altura do pescoço do homem, e inclusive lhe cortou parte da barba.

O gigante ficou quieto com os olhos como pratos de surpresa.

Catherine não se atreveu a respirar.

Com voz gutural e baixa, Robbie disse algo no que Catherine supôs que era gaélico; algo que soou muito ameaçador.

Seu captor abriu os braços sem prévio aviso e Catherine caiu ao chão. Uma vez ali, recuou correndo como um caranguejo assustado e por fim ficou de pé; tudo isso sem afastar nem um segundo o olhar de Robbie, que sustentava a espada sob o queixo do homem e lançava um olhar de ódio tão feroz que era um milagre que o cara não caísse.

— Volta para o acampamento, Catherine — Disse Robbie, sem tirar a vista do homem.

O gigante olhou ao Robbie sem mover a cabeça e com voz muito rouca, e muito rápido, começou a falar.

Catherine não ficou esperando para ver o que tinha que dizer; passou apressadamente por eles e correu para o claro, onde encontrou a outros três gigantes vestidos com o mesmo plaid que Robbie e Ian. Estavam sentados junto ao chamejante fogo, e no meio estava sentado Ian, agarrando as mãos de um deles e soluçando em silêncio.

Dois dos homens se levantaram logo que entrou no claro, com as mãos no punho das espadas, Ian e seu companheiro foram um pouco mais lentos em ficar de pé, e o mais jovem rodeou ao ancião com um braço protetor.

Nossa, Catherine queria despertar já.

Ao vê-la, Ian se precipitou para ela; as lágrimas corriam pela face até a barba, e seu sorriso era tão grande que devia doer.

— Catherine, este é meu filho, Niall — Agarrou-a pelo braço e puxou-a para o homenzarrão, ao mesmo tempo que falava com voz agitada — Agora é Laird Niall. Isso quer dizer que meu filho é o chefe.

Enquanto o explicava, inchou o peito mais ainda.

A seguir disse algo em gaélico a Niall, que tinha a vista cravada nela como se fosse um inseto que acabasse de sair arrastando-se de debaixo de uma rocha.

— Contei-lhe a história que combinamos ontem à noite — Disse Ian a Catherine, ao tempo que dava um tapinha no braço — Não se deixe atemorizar por seu olhar feroz, garota. Não faz graça vê-la vestida com esse plaid MacBain, nada mais.

Niall disse algo a um dos outros e o cara o olhou franzindo o cenho, depois olhou a ela e começou a despir-se. Catherine soltou um grito e deu a volta… Para dar com o nariz no peito de Robbie.

— Mas o que acontece com os escoceses? — Murmurou, elevando a vista para ele — Não param de se despir.

— Melhor nós que você — Disse ele, ao tempo que a rodeava com um braço e agarrava o plaid do homem — Toma, por que não entra no bosque e põe isto? Depois iremos à aldeia.

Catherine se inclinou a um lado para olhar atrás dele.

— Bem... Onde está o outro cara? — Sussurrou, ao mesmo tempo que, com o braço estendido, tomava o plaid que cheirava a cavalo morto e o mantinha afastado dela.

Robbie lhe deu um empurrãozinho para o bosque.

— Decidiu que queria voltar dando um passeio — Disse.

Sem olhar atrás por medo de ver o nu escocês, Catherine se dirigiu com passo resolvido para as árvores, Mantendo bem afastado o plaid.

Não se deu conta de que Robbie a seguia até que se voltou para agachar-se atrás de um denso arbusto.

— O que faz? Sei me trocar sem sua ajuda.

Então ele começou a abrir o plaid.

— Prefiro que ponha o meu.

A toda pressa, Catherine deu a volta com um gemido de frustração.

— De modo que esse é o filho de Ian? — Perguntou; a base de vontade que esfriassem as bochechas enquanto escutava Robbie despir-se — E de verdade é o chefe?

— Sim; O chamam laird. — Pô-lhe no ombro seu plaid, que cheirava muito melhor, e lhe tirou o pestilento — Ontem à noite ouviram a tempestade e estavam explorando o local para assegurar-se de que um raio não tivesse provocado um incêndio. O pobre Niall acreditou que via um fantasma quando reconheceu Ian.

— Acreditaram na história de Ian, o de que esteve na Inglaterra durante… Durante…?

Olhou por cima do ombro e ficou com a vista cravada no corpo de Robbie, maravilhosamente masculino, enquanto ele se envolvia no pestilento plaid. Merda! O que estava perguntando?

Ah, sim…

— Quanto tempo leva Ian fora? Trinta e cinco anos?

— Não. Retornamos só dez anos depois de que Ian partisse.

— Mas tem oitenta e cinco anos.

— Tem a saúde de alguém de sessenta anos nesta época.

Catherine se obrigou a afastar o olhar e a meter-se atrás do frondoso arbusto.

— Gwyneth se dará conta da diferença — Disse; desatou o plaid MacBain e o jogou sobre um ramo.

— Acha isso?

— Embora ao melhor ficará tão contente ao tê-lo de volta que lhe dará igual —Conjeturou Catherine — Por que me pegou aquele tipo? Por que levava as cores incorretas?

— Não. Não viu seu plaid, só a uma moça, preciosa e indefesa.

Catherine empalideceu até as raízes de seu emaranhado cabelo.

— Haveria…? Queria…?

— Não; não te teria feito mal. Só acreditava que tinha encontrado uma esposa.

— Uma esposa!

— Adverti-te que as mulheres não decidem muito aqui. E uma garota indefesa é um branco legítimo. Diabos — Sem dar a volta, agitou a mão — Roubar esposas, em particular a de outros clãs, é mais divertido que fazer a guerra.

Catherine renunciou à tarefa de tentar envolver-se no plaid como tinha ensinado Ian e olhou fixamente ao Robbie.

— Diz de brincadeira, não é? Vamos, os homens não roubam as esposas.

— Ian roubou Gwyneth dos Maclerie.

— E os Maclerie não foram procurá-la?

— E por que iam querer fazê-lo? É um orgulho que um guerreiro MacKeage escolha à filha de um Maclerie. Os MacKeage são um clã poderoso.

— Ouça, e alguém pergunta à mulher se quer casar-se? — Murmurou Catherine, que de novo tentava arrumar o plaid — Merda, isto não me sai bem…

Robbie rodeou o arbusto e tirou o extremo do tecido, soltou duas voltas, o pôs por cima dos ombros e, por fim, o remeteu no decote. Sorriu quando ela deu um grito afogado, e então tomou em seus braços e a beijou com firmeza na boca.

Catherine se pegou a ele. Possivelmente não estivesse preparada para fazer amor com aquele homem, mas, decididamente, devolver o beijo estava bem… Já que só era um sonho. De modo que se rendeu ao desejo que levava tanto tempo contendo dentro de si, inclinou a cabeça e o pegou pelo cabelo para fazer mais intenso o contato.

Ele a levantou do chão com um grunhido satisfeito e colocou a língua na boca. Ela o passou de maravilha explorando seu sabor enquanto gozava ao sentir seus poderosos braços envolvendo-a. Sua mão no traseiro era muito agradável, também… E suas nobres intenções empurrando seu ventre a obrigaram a subir os joelhos e rodear a cintura com as pernas até ficar intimamente unida a ele.

Nesse mesmo instante ele desfez o beijo e a olhou com uma expressão tão feroz que a Catherine cortou a respiração. Então a deixou escorregar por seu corpo até que esteve de pé outra vez.

— Anima-se nos momentos mais inoportunos — Disse Robbie.

Atraiu a cabeça dela contra seu peito, dando um trêmulo suspiro e a abraçou forte.

— Em uma destas vai me dar igual quem esteja perto, nem o que vá acontecer — Prosseguiu por cima de sua cabeça; sua voz gutural retumbou sob sua bochecha — Malditas sejam minhas nobres intenções.

Catherine sorriu pega a seu peito.

— Eu adoro quando um homem fica romântico.

Robbie jogou para trás sua cabeça para que olhasse seu cenho franzido.

— Todo homem tem seus limites, pequena Cat. E estamos a ponto de alcançar meus.

O sorriso dela se alargou.

— As mulheres também têm limites — Disse, enquanto alargava a mão e dava um toquezinho na ponta do nariz.

Os braços dele se esticaram.

— Não te entendo, mulher; num minuto você é um desconfiado camundongo e no outro, virtualmente, explode em meus braços.

Ela fez uma careta com o lábio inferior.

— Então talvez deveria deixar de me beijar.

— Como se isso fosse acontecer… — Murmurou ele.

Baixou a cabeça e capturou sua boca.

— Catherine — Disse, quando acabou de beijá-la de novo — Enquanto estejamos aqui só tem que recordar três coisas: levar com você o pau em todo momento e não vá sozinha a nenhum lugar.

— E a outra coisa? — Perguntou ela, amassando os fortes ombros com os dedos.

Ele a beijou uma vez mais, e sua boca se atrasou com atitude possessiva.

— Que é minha — Sussurrou ferozmente.

Mal terminou de pronunciar essas palavras, afastou-a e a puxou da mão para leva-la de volta ao acampamento.

 

Catherine começava a duvidar de sua teoria do sonho; é que se perguntava como sabia tanto sobre a Escócia Medieval para imaginá-la tão em detalhe. Por exemplo, a cadeira de montar em que ia sentada, com suas toscas fivelas e seu incômodo assento de madeira; ou as espadas, as adagas e o antiquíssimo equipamento dos guerreiros.

Agora que o pensava, não recordava ter tido nunca um sonho que implicasse tantos sentidos. O coelho que tinha comido antes que partissem do acampamento estava delicioso, assado em um espeto sobre um crepitante fogo, e, além disso, o aroma da fogueira tinha impregnado o plaid. E os homens! Os três guerreiros MacKeage e o que a tinha abordado no bosque cheiravam a pinheiro e pícea, a suor masculino e a cavalos.

Não recordava se pelo geral sonhava em branco e preto, mas certamente naquele momento via em tecnicolor: o vivo vermelho do cabelo de alguns guerreiros; os olhos de um intenso cinza de Robbie; os quentes quadrados, cinzas e verdes dos plaids, e o nítido e vibrante azul do céu que chocava com o topo da escura montanha de granito.

Até os sons eram muito claros e surpreendentemente autênticos, como o ritmo dos cascos dos cavalos escorregando sobre a rocha ou amortecido pelo musgo, ou o bate-papo, em voz baixa e gutural, dos homens enquanto cavalgavam em fila pelo serpenteante atalho.

Catherine descobriu que gostava da cadência da fala gaélica. Soava como se cantassem, e no minuto seguinte como se tivessem uma bola de cabelo entupida na garganta. Tinha um ritmo enérgico, com um tempo bastante musical, e cada frase estava salpicada de sílabas forçadas e depois sussurradas.

Por fim chegaram a terreno plano, e Catherine se estirou na cadeira de montar para ver o Ian cavalgando atrás de seu filho, agitando uma inquieta mão pelo ar enquanto falava sem parar. Depois se voltou a olhar atrás dela e viu o Robbie montando um dos cavalos dos outros guerreiros; que tinha despido para lhe dar o plaid pelo visto tinha decidido voltar para casa passeando com o que a tinha agarrado junto ao arroio.

Voltou a empurrar o pau por cima do ombro enquanto sorria a Robbie. Este tinha fabricado uma espécie de porta-fusil com uma parte de couro para que o levasse sem deixar a si mesma atordoada de uma pancada.

Robbie assinalou por cima da cabeça de Catherine, que se voltou para frente e deu um grito afogado. Através das árvores, surgindo como um escuro espectro, viu as torres de um alto e imponente castelo que era algo menos bonito ao estilo de um conto de fadas.

— Essa é a fortaleza MacKeage — Disse ele — Quase chegamos à aldeia. Escuta: já se ouve.

O que Catherine ouviu foi o som de meninos gritando e rindo, e isso lhe fez sentir uma repentina nostalgia por Nathan e Nora. Robbie havia dito que estaria de volta antes de que despertassem, mas para ela já tinha transcorrido quase um dia. Embora o sonho fosse interessante, não sabia quanto tempo mais suportaria estar longe de seus pequenos.

O atalho se abria aos subúrbios da aldeia, e Catherine não encontrou palavras para descrever tudo aquilo. Espalhadas pela ladeira da colina, havia choças, possivelmente um centenares, que chegavam até o mesmo castelo; não, até a fortaleza, como a tinha chamado Robbie.

Por toda parte havia adultos, meninos, galinhas, cabras e cães, e a fumaça que subia em preguiçosas nuvens de algumas choças formava um manto de bruma sobre a aldeia. Vários meninos se precipitaram para eles, e Robbie adiantou o cavalo até pô-lo junto ao dela. Então disse:

— Não se mova de meu lado… E não pareça tão aflita — Acrescentou com uma risadinha — Iremos primeiro à cabana de Gwyneth.

Aos poucos minutos levavam atrás um cortejo de curiosos. As mulheres eram muito bonitas, com o cabelo comprido, de diversos tons de castanho, recolhido em tranças ou coques frouxos. Vestiam blusas de cores vivas, saias escuras que pareciam de lã tecida e xales grandes feitos com o plaid dos MacKeage.

Timidamente, Catherine aproximou mais seu cavalo de Robbie ao fixar-se que algumas mulheres a assinalavam e os homens iam em turba. Vários iam meio nus, com os plaids seguros à cintura, deixando ao descoberto seus largos peitos e fornidos braços.

O improvisado desfile passou pelas estreitas ruelas da aldeia, dispersando animais e gente que se afastava a seu passo mas os seguia de perto. Finalmente pararam diante uma cabana que estava à sombra da fortaleza, e Niall jogou a perna por cima do pescoço do cavalo, deixou-se cair ao chão e depois se voltou para ajudar a descer Ian.

Catherine estava o bastante perto para ver que o velho tremia; várias vezes limpou as lágrimas de um tapa e, sem saber o que fazer com as mãos, ao final as juntou à altura da cintura.

O rumor da multidão se sossegou, e Catherine viu que da cabana saía uma mulher diminuta, quase tão velha como Ian, com um bebê nos braços e uma menina de uns três anos agarrada a sua saia. Niall pegou o bebê e o passou à mulher mais jovem que tinha saído da cabana atrás de Gwyneth. Depois tomou a sua mãe pela mão e a dirigiu para um tamborete que havia junto à porta, enquanto sussurrava algo. À velha dobraram os joelhos, e então, com suavidade, Niall a fez sentar-se; a mulher deu um grito afogado e cravou em Ian seus espantados olhos, muito abertos.

Ian já não movia nem um músculo; só movia as mãos: não deixava de retorcê-las de lhes dar voltas. Robbie e Catherine não desmontaram. Ele alargou o braço, tomou uma mão e a pôs em sua coxa; com o polegar esfregou os dedos, desenhando círculos tranquilizadores.

Ian deu um vacilante passo adiante, depois se deteve e ficou tremendo. De repente caiu de joelhos dando um forte grito, abraçou a sua esposa e afundou a face em seu peito.

Gwyneth MacKeage cravou os dedos nas costas de seu marido, afundou a face em seu cabelo e soluçou em silêncio.

Com a mão livre, Catherine secou as lágrimas que corriam por suas bochechas, e Robbie se inclinou para ela.

— Isto é o que faço, Catherine — Sussurrou com voz emocionada; seu quente fôlego acariciou sua orelha — Aqui é quando meu dever se transforma em minha vocação.

E aquele também foi o momento em que a teimosia de Catherine com Robbie MacBain se transformou em amor. Olhou-o, olhou seus olhos, que também brilhavam enquanto via Ian abraçar a seu único amor verdadeiro, e sentiu que o coração dilatava, pulsava com força e começava a acelerar-se. Aquele homem, aquele incrível, fascinante e muito alto gigante, era mais que um homem de sonho: era seu sonho. Seu amor verdadeiro. Sua vocação.

E a partir desse momento, também ia ser seu dever.

Isso era o maravilhoso dos sonhos: eram o esforço subconsciente que uma pessoa realizava para revelar um temor e transformá-lo tão somente em uma simples preocupação. Até que não foi a Oz, Dorothy acreditava ter uma montanha de problemas muito grandes para vencê-los. Mas nada como uma viagem assombrosa para dar outra aparência às coisas.

E, certamente, nesse momento Catherine via as coisas com outra aparência. Os dez últimos anos de sua vida murchavam até transformar-se em nada; deixavam de ser um pesadelo para transformar-se no dom que não só tinha concedido Nathan e a Nora, mas também, a decisão de lutar pela vida que desejava.

E além disso, a coragem de amar Robbie MacBain.

— Santo Deus, mulher — Resmungou Robbie — Se não deixar de me olhar assim vou escandalizar a toda esta aldeia.

Catherine elevou a vista para ele, sorrindo, e com suavidade tomou seu formoso rosto na mão.

— Isso é uma ameaça ou uma promessa?

Os olhos dele se entreabriram, as aletas de seu nariz se alargaram e sua mandíbula se apertou tão forte que ela sentiu que chiavam os dentes.

— Está me matando, pequena Cat…

Catherine deu um tapinha na bochecha, sorriu com a segurança de uma mulher apaixonada e voltou a endireitar-se no cavalo para olhar Ian e Gwyneth.

Já estavam de pé, embora Ian ainda não tinha acabado de abraçar a sua esposa. A diminuta mulher apenas chegava ao queixo, mas seus frágeis braços rodeavam tão forte a cintura do velho guerreiro que tinha os nódulos brancos. Por sua parte, a jovem do bebê soluçava de forma incontrolável e secava os olhos com a manta do pequeno; por fim Niall o tirou e lhe deu um empurrãozinho para o Ian.

Robbie sussurrou:

— Essa é Caitlin, a filha mais nova de Ian. Tem outra filha chamada Megan, mas se casou com um Maclerie e vive a uns trinta quilômetros de distância — Desmontou e ajudou Catherine a descer do cavalo — A notícia viajará rápido, e espero que Megan esteja aqui dentro de uns dias.

Ao encontrar-se em meio de muita gente Catherine se agarrou a Robbie enquanto ele a conduzia até a cabana, e depois ficou em silêncio enquanto todos falavam de uma vez, em gaélico, sobre sabia Deus o quê. Ian gesticulava sem cessar para sublinhar seu discurso, enquanto todos escutavam com os olhos muito abertos e davam algum que outro grito afogado.

De repente Ian puxou Catherine até levá-la ao centro de sua boquiaberta família. Depois ficou a falar rápido, com tanta veemência que a salpicou várias vezes, enquanto agitava a mão sobre sua cabeça.

Por fim Robbie a resgatou e sussurrou ao ouvido:

— Ian está contando como o ajudou a fugir dos ingleses. Está te transformando em toda uma heroína.

Então tocou a Catherine soltar um grito afogado.

— Mas eu não quero ser uma heroína. Se foi você o que o trouxe junto a sua família, não eu… Você deveria levar o mérito. Dizê-lo — De vez em quando alguém alargava a mão para lhe tocar o cabelo, e ela se aproximava mais de Robbie — Porque foi você, não eu.

— Não, Cat. É melhor que permaneça no anonimato.

— Pois eu também quero permanecer no anonimato — Disse com um chiado; alguém lhe tocou o braço, e ela correu a ficar do outro lado.

Robbie a meteu na cabana e a levou até um tamborete. Por um momento a súbita escuridão a fez piscar; depois tirou o pau das costas, pô-lo no chão e se sentou dando um suspiro de alívio.

— O que vai acontecer agora? — Perguntou, enquanto olhava a silhueta de Robbie recortada na porta.

— Agora fica aqui com o Ian e Gwyneth, e eu vou procurar a árvore de Cùram.

De um salto, ela se levantou do tamborete.

— Mas eu quero ir com você.

— Não, Catherine, é muito perigoso. — Robbie a agarrou pelo ombros — Se quiser que não venha mais por aqui terá que me deixar terminar isto. Assim que consiga a raiz, partiremo-nos.

— Mas eu posso te dar uma mão.

— Como?

— Pois… Posso… Ai, não sei! — Deu um passo atrás e cruzou os braços — Pelo menos me assegurarei de que não lhe deem uma surra ou o matem.

Ele avançou um passo e agarrou os ombros de novo.

— Nem sequer fala o idioma… E além disso necessito que cuide de Ian; vai demorar tempo em reajustar-se.

Ela agarrou a frente do plaid.

— Sabe sequer o que buscas? Ou onde buscá-lo?

— Mary acredita que encontrou a guarida de Cùram, e suponho que a árvore estará perto. Porei-me em caminho a primeira hora da manhã. — Robbie apertou os ombros — E você esperará aqui.

Nesse momento Ian entrou na choça rodeando com o braço Gwyneth, e com o braço de Caitlin rodeando a ele; Niall ia atrás com o bebê e levando a menina pela mão. Catherine se separou de Robbie, agarrou ao tamborete, levou-o ao canto e se sentou à parte… Embora não serviu de muito. Caitlin e Gwyneth se aproximaram correndo, puxaram-na pelas mãos e a levaram atrás de uma manta que pendurava do teto e que ocultava uma cama de armar diminuta.

Catherine não tinha nem ideia do que diziam, mas antes de saber o que acontecia, despiram-na e começaram a vesti-la de novo com uma preciosa roupa de vivas cores que Gwyneth tirou de um baú que havia ao pé da cama.

A partir de então não teve tempo para dar voltas ao mandato de Robbie nem ao que pensava fazer com ele… Ou, nem sequer, a pensar que diabos ia comer. A aldeia inteira passou pela choça em grupos de dez pessoas para dar ao Ian a bem-vinda a casa; todos levavam comida e insistiram a Catherine a que provasse um pouco daqui e um pouco de lá. Antes do anoitecer estava contendo bocejos e começava a sentir náuseas.

De novo seu anjo da guarda a resgatou e a levou a dar um passeio pela aldeia, à luminosa luz da lua primaveril. Mas quando acalmou o estômago, em vez de leva-la de volta com Ian, Robbie a meteu no enorme castelo de granito por uma porta tão grande como para que entrasse um gigante de conto.

— Agora aqui vive Niall — Disse enquanto a levava a um imenso salão de tetos altos e escassamente mobiliado, passavam por diante de várias pessoas que os olharam boquiabertas e subiam uma estreita escada — Nos ofereceu um quarto para todo o tempo que queiramos.

Catherine deixou de caminhar.

— “Nos”?

Robbie voltou a puxá-la para frente pelo estreito corredor.

— Tudo isto o está sonhando, recorda?

Abriu uma pequena porta de madeira e a meteu em um quarto escuro e frio; depois soltou o pulso se dirigiu para a enorme lareira e se agachou para acender o fogo. Catherine não foi ver como o acendia, mas sim ficou na metade do quarto, abraçando a si mesma e olhando a seu redor a tênue luz que saía da lareira.

Viu uma cama pega a uma parede, bastante pequena para o critério moderno embora muito grande comparada com a que havia na casa de Caitlin; ao pé havia um baú, e além disso, tecidos e uma tapeçaria pendurada das paredes. Também viu uma estreita janela em um extremo, com o que parecia uma pele de carneiro pendurada em cima e arremesso a um lado.

— O quarto não demorará para esquentar-se — Disse Robbie; voltou junto a ela, tomou a mão e a levou a cama — E há muitas mantas. Embora talvez queira sacudir os percevejos e dormir junto ao fogo.

Sentou-se na cama e puxou Catherine até ficar dentre os joelhos; depois a rodeou com os braços, uniu as mãos a suas costas e a olhou diretamente aos olhos.

— A casa de Caitlin está cheia, e esta noite estará mais segura aqui na fortaleza. Amanhã Ian e Gwyneth se mudarão outra vez a sua antiga choça, e quando se instalarem, ficará com eles. — Rodeou-lhe a cintura com as mãos — É o bastante valente para ficar aqui só esta noite, Cat?

— O-onde estará você?

Ele meneou a cabeça.

— Não posso ficar com você. Se o fizesse, amanhã pela manhã nos veríamos diante de um sacerdote, com toda a aldeia presenciando nosso casamento.

— Como?

— Estamos em 1210, Catherine. Aos homens e as mulheres que compartilham a cama é melhor que estejam casados… Ou dispostos a confrontar as consequências. Recorda o guerreiro que te encontrou junto ao arroio? Não teria te tocado até depois de que estivessem diante de um sacerdote. Sua reputação é tudo o que uma mulher contribui a seu marido. — Seu sorriso brilhou à luz do fogo — Talvez um cavalo ou algumas ovelhas; e se o cara é afortunado, uma vaca leiteira também.

— Não está respondendo a minha pergunta. Onde estará?

Ele tirou o pau das costas e o atirou à cama; depois tirou a espada, pô-la junto ao pau e voltou a tomá-la em seus braços.

— Há um urinol atrás desse biombo, e água doce para beber no cântaro de cima dessa mesa — Prosseguiu, enquanto assinalava com uma inclinação de cabeça a parede de frente — E alguém subirá pouco depois do amanhecer para te levar de volta com o Ian.

— Robbie…

Ele beijou a ponta do nariz.

— Parto-me esta noite — Disse em voz baixa.

Antes que ela pudesse protestar, tampou a boca com a sua; com seus lábios quentes, doces e persuasivos.

Catherine se negou a corresponder.

Robbie se tornou atrás e tomou a face com as mãos para olhá-la diretamente nos olhos.

— Tem minha palavra, pequena Cat, de que retornarei são e salvo. Mary me protegerá, e entrarei e sairei antes que Cùram saiba sequer que estou ali.

— M-me parece que te amo.

Ele ficou completamente quieto durante um momento em que o acelerado coração de Catherine deu seus bons dez pulsar; depois começou a sorrir.

— Parece que me ama?

— Não sei com certeza. Isto é um sonho, recorda?

— Sim. E em seu sonho se sente segura, verdade? Para dizer o que tem no coração. Mas quando despertar, continuará me amando?

— Não sei. Isso é o estranho dos sonhos.

— Sim. Mas quando estivermos em casa, em nossa cozinha moderna, e eu te recorde as palavras que disse esta noite, não demonstrará que me disse isso? Do que outro modo ia saber o que está sonhando, se não estiver aqui contigo?

Catherine pensou nisso, e enquanto pensava, pelo visto ele decidiu que mais valia beijá-la outra vez.

E nesta ocasião ela correspondeu. Respaldou suas palavras com atos, abrindo a boca à sua e apoiando-se nele, ao tempo que lhe rodeava o pescoço com os braços e devolvia o beijo.

Só que desta vez foi diferente. Ela era diferente. A Catherine parecia como se tivessem tirado dos ombros oitenta quilos de peso… Mas o que mais a assombrava era que em seu lugar tinha posto a um gigante de noventa quilos, e não estava assustada absolutamente.

Senhor, adorava a liberdade dos sonhos…

Usou seu peso imaginário para empurrar Robbie para trás, até que esteve estendido na cama e ela, estendida em cima. Ele se mostrou muito disposto a ajudar; serviçal, inclusive. Deslizou as mãos pela coluna vertebral até o traseiro e apertou, grunhindo na boca enquanto colocava os quadris diretamente sobre os seus. E ali estavam outra vez aquelas nobres intenções, firmes e cálidas contra o lugar mais íntimo dela. Catherine não pôde evitar rebolar um pouquinho, justo o suficiente para escorregar pega ele, e sorriu contra sua boca quando ele grunhiu e agarrou os quadris para detê-la.

Robbie tinha posto seu próprio plaid outra vez, que cheirava a ele, e Catherine passou as mãos por debaixo, o desceu pelo ombro e com os dedos percorreu seu largo peito. Depois recuou rebolando para seguir o caminho de seus dedos com a boca, e foi beijando o suave e sedoso pelo do peito até que encontrou um de seus mamilos.

O corpo inteiro dele se converteu em pedra assim que os lábios do Catherine se fecharam sobre o duro botão, e imediatamente suas mãos se mudaram dos quadris aos ombros e voltaram a levantar a face. Então reclamou sua boca com feroz urgência, ao tempo que apertava os quadris com uma mão posta no traseiro e com a outra a estreitava contra seu peito.

As sensações explodiram no interior de Catherine. Uns calafrios de prazer sacudiram o corpo quando o calor dele atravessou rapidamente a roupa de ambos até chegar a sua pele. Negou-se a ceder à necessidade de respirar e, em vez disso, usou a boca para deleitar-se com o doce e masculino sabor de Robbie, que conservava um muito ligeiro gosto ao uísque que tinha tomado antes. Era tão simples, pensou enquanto estava tombada em cima dele, entregar-se à paixão…

A mão de Robbie começou a explorar formas de meter-se sob a blusa de vivas cores que tinha dado Gwyneth. Mas depois de várias tentativas frustradas e inúteis, deu-se a volta com ela até pô-la de barriga para cima; ficou em cima, em alto, e lançou um olhar feroz a sua roupa.

— Não tenho costume de despir a mulheres medievais — Resmungou, ao tempo que puxava o cinturão com impaciência; o desejo dava um matiz gutural a sua voz.

Tinha o plaid baixado até a cintura, e a parte superior de seu largo torso, muito musculoso e absolutamente nu, tampava a luz do fogo. Parecia forte, impressionante e…

Os velhos temores afloraram sem querer quando Catherine se encontrou ali estendida, debaixo dele, enquanto seu sólido peso a empurrava contra a cama e impedia de mover-se. De repente a invadiu o horror de sentir-se apanhada, vulnerável e completamente indefesa, dando espetadas na pele, acelerando a respiração, insistindo-a a lutar ou a correr…

Tentou fazer as duas coisas, e de repente soltou um grito e deu uma violenta sacudida debaixo de Robbie; em seguida ficou a bater as mãos justo quando ele levantava a barra da blusa por cima dos seios.

 

Robbie se ergueu e recuou surpreso.

— Mas quê…? Cat! — Resmungou.

Capturou-lhe as mãos que não deixavam de agitar-se e as segurou ao lado da cabeça, ao tempo que apertava os joelhos em torno de suas coxas.

Ela gemeu e corcoveou com frenesi debaixo dele, retorcendo-se para tirá-lo de cima, dando murros nas costas e voltando a cabeça para morder o braço.

— Catherine, não! — Gritou ele, segurando-a com seu peso; sua voz desceu de tom — Calma.

Ela já ofegava; seu desespero por soltar-se fechava a mente a tudo o que não fossem suas resistências. Robbie se deu conta de que nesse momento não o ouvia e nem sequer o via; o terror a consumia por completo, e era o pânico cego o que ditava seus atos. Imediatamente se separou dela rodando e ficou de pé junto à cama. Catherine se afastou como pôde em direção contrária, agarrando o pau de passagem, até ficar de pé, com a cama entre eles e a arma disposta para bater.

Com as mãos elevadas em gesto de súplica, Robbie se aproximou, e ela gemeu e recuou a toda pressa até pegar-se à parede. Então ele se deteve, colocou as mãos à costas e ficou absolutamente quieto.

— Está tudo bem, pequena Cat — Sussurrou — Ninguém vai te machucar. Sou eu, e eu não vou te machucar Catherine.

Depois disso ficou calado; deu-se conta de que não podia dizer nada mais e esperou que suas palavras chegassem até ela. Observou seus olhos, muito abertos de terror à luz do fogo, e viu o instante em que Catherine voltava a ser ela mesma.

Nesse momento o olhou piscando, pequena vulnerável e assustada, e começou a tremer. Robbie ficou onde estava, com as mãos à costas, e pôs em seu sorriso até o última grama de carinho que pôde reunir.

Era uma tarefa difícil, tendo em conta a cólera que sentia em seu interior… Cólera que batalhava entre o desejo de matar a Ron Daniels e a necessidade de atrair Catherine a seus braços e não soltá-la.

Mas se manteve firme, sem aproximar-se mais nem recuar, e continuou esperando. Entretanto, passaram seus bons três minutos até que ela encurvou os ombros e baixou a cabeça para olhar ao chão. De repente atirou o pau, tampou a face com as mãos e começou a soluçar.

E, mesmo assim, ele não se moveu.

— Ai, Meu Deus… — Sussurrou Catherine — O que eu fiz?

— Não sei com certeza — Respondeu ele sussurrando — Mas acredito que foi o ataque de pânico ao que aludia esta manhã.

Ela ficou ali, com a face afundada nas mãos, enquanto os trêmulos soluços sacudiam seu corpo.

— Catherine — Disse Robbie com doçura, mas também com firmeza — Me olhe.

Ela demorou outro minuto inteiro em fazer o que pedia, até que, lentamente, elevou a cabeça e o olhou piscando entre as lágrimas.

Robbie voltou a colocar o plaid sobre o ombro direito para tampar o peito quase por completo e depois separou as mãos dos lados, com as palmas para frente.

— Vem aqui, Catherine — Suplicou em voz baixa — Vem para meus braços.

De um tapa, ela secou as lágrimas que corriam por suas bochechas; depois fechou as mãos em punhos e meneou a cabeça enquanto olhava ao chão outra vez.

— Não — Sussurrou — Quero que parta. Por favor. Vá já a procurar sua árvore do mago.

— Não, Catherine. Nenhuma dúzia de cavalos de combate me arrastariam fora deste quarto. Não até que venha a meus braços.

Ela elevou a vista e gritou:

— N-não posso! Não o entende? — Com gesto de aborrecimento assinalou a cama que estava entre eles — Nem sequer em sonhos posso fazer amor com um homem sem me deixar levar pelo pânico!

— Mas pode suportar um abraço — Sussurrou ele — Em particular, de alguém a quem acha que talvez ame.

— Isso foi um engano. Só me comoveu muito o que fez por Ian.

— Eu não posso ir a você, Catherine — Disse ele, abrindo os braços —. Deve vir você a mim.

Ela demorou um tempo infinito em dar-se conta de que Robbie não ia partir até que não o fizesse. Com as mãos convertidas em punhos e uma expressão feroz nos olhos empapados de lágrimas, por fim se aproximou com passo resolvido até que os dedos de seus pés quase roçaram os dele.

— Me abrace — Sussurrou Robbie; por um instante pensou que, em vez disso, talvez o golpeasse.

Catherine fez um ruído que se parecia muito ao grunhido de um gatinho, alargou os braços em torno de sua cintura e, feroz e rapidamente, abraçou-o. Depois tentou recuar.

Robbie a rodeou com os braços e a manteve em seu lugar, enquanto com o queixo pegava a cabeça a seu peito.

— Sim — Disse, suspirando com alívio — Talvez não saiba se há amor entre nós, Catherine, mas não negará que há confiança.

Lentamente, ela se relaxou pega a ele.

— Perdão — Sussurrou; jogou para trás a cabeça e elevou o olhar com os olhos cheios de confusão — Tudo ia bem até que você… Até que senti seu peso me segurando…

Afundou a face no peito do Robbie.

— Daniels não só te batia, não é?

Ela não disse nada; limitou-se a menear a cabeça contra o plaid.

Robbie fechou os olhos, e seu violento desejo de matar Daniels fez que apertasse os dentes. Aquele não era momento para a ira, mas chegaria o dia em que pegaria a aquele bastardo pela garganta e apertaria o desalmado corpo até lhe tirar a vida. Robbie jurou que sorriria ao fazê-lo.

Com suavidade deu um beijo na cabeça, deixando que sua boca se atrasasse enquanto roçava o cabelo com a mão. Sentiu que o coração de Catherine se acelerava, enquanto ela se agarrava à parte de trás do plaid, e suas lágrimas umedeciam o tecido.

— Cala, pequena, tudo vai sair bem… — Prometeu — Se apaixonou por um homem muito paciente.

Catherine murmurou algo que Robbie não entendeu e desabou junto a seu corpo. Ele se apressou a agarrá-la por debaixo dos joelhos, levou-a a uma cadeira junto ao fogo e se sentou com ela no colo; depois elevou o queixo para que visse seu sorriso e tirou uma lágrima com um suave toque do polegar.

— Não deve dar voltas ao que acaba de acontecer, Cat. Não tem importância para nós.

— Que não… Quer dizer que… Tive um ataque de pânico — Disse ela por fim — Estava te beijando e ao momento, te pegando…

— Sim, dei-me conta. — Acariciou-lhe de novo a bochecha com o polegar — E também me dei conta de que sobreviveu e de que retornou direito a meus braços quando te passou.

Catherine apoiou a cabeça em seu ombro com um resto de soluço e cravou o olhar na escuridão.

— Quero fazê-lo… Mas não posso — Sussurrou; inclinou a cabeça justo o suficiente para olhá-lo — Talvez jamais terei uma relação normal com um homem.

Ele deu um toquezinho no arrebitado nariz.

— Sim que a terá: com este — Disse, enquanto levantava a mão e a punha sobre seu coração — Quando terminar de pensar melhor se me ama e, em vez disso, saiba, só pensará em mim.

— E-essa afirmação é arrogante.

— Mas verdadeira. — Tomou sua face com a mão, beijou com suavidade sua boca entreaberta e sorriu — Temos o resto de nossas vidas pela frente, Catherine; com o tempo resolveremos.

Ela olhou a mão, que seguia sobre o peito de Robbie e tampada com a dele.

— Possivelmente por isso estou tendo este sonho, para entender que não deveria te desejar. — Elevou o olhar e seus olhos voltaram a encher-se de lágrimas — Quando me beijou no estábulo e na cozinha, pensei… Esperava que eu… Me pareceu bem. Mas esta noite…

Afastou a mão e assinalou para a cama.

— Por fim me dei conta de que não vou fazê-lo. Este sonho tenta me mostrar que não posso esperar ter uma relação com você. Que não posso te querer.

— Acha que os sonhos são nosso modo de arrumar as coisas?

— Sim. São a forma em que dirigimos nossos problemas.

—E você me considera um problema?

— Não: meu problema sou eu. — Catherine tocou o peito — Estou muito assustada para soltar meu medo.

Ele assentiu.

— Assim, como tem medo aos homens, simplesmente quer evitá-los.

— É uma solução estupenda — Ela elevou o queixo — Uma mulher não necessita a um homem para ter uma vida plena.

— Sim — Concordou ele ao tempo que ficava de pé e a levantava; depois inclinou o queixo para que o olhasse de frente — Mas o que acontece se apaixona, só que seus medos a impedem de seguir o que dita o coração? Sua vida será plena, apesar de tudo?

— Claro que não.

Robbie beijou a ponta do arrebitado nariz.

— Então isso é o que te diz seu sonho, Cat. Quando despertar na época moderna terá aprendido a deixar que seja seu coração o que dita, em vez de seus medos. E o resto resolverá sozinho.

— Assim, sem mais — Disse ela, cruzando os braços e jogando um olhar assassino.

— Sim, Catherine. Se quiser algo com suficiente gana, seja o que for, não há força sobre a terra capaz de te impedir que o consiga. E essa — Disse, inclinando-se e sorrindo — É a autêntica definição da magia.

Catherine se inclinou mais perto ainda, bem para beijá-lo ou para dar uma resposta mordaz, mas de repente Mary entrou planando pela janela com um agudo grito. Aterrissou na cama, rodeou com as garras o punho da espada de Robbie e soltou uma zangada série de sons.

Catherine se afastou dando um grito afogado e levou a mão ao peito, enquanto olhava primeiro a Mary e depois a Robbie.

Este a observou com atenção e se expôs sua reação. Tinha que ser a ruidosa e súbita aparição da coruja o que a impressionava, e não que Mary estava dizendo… Porque sabia que ele era o único ao que falava seu mascote.

Aproximou-se da cama, afastou a Mary, pegou a espada e a pôs à costas. Depois se voltou para Catherine, que seguia agarrando a garganta sem deixar de olhar boquiaberta a Mary até que, devagar, elevou seu preocupado olhar para ele. Então, de repente, correu à porta e ficou na frente, com as mãos estendidas para impedir que a abrisse.

— Não vai partir — Disse — Me dá igual que nos façam casar pela manhã: você não vai sair deste quarto.

Robbie foi até ela, agarrou seus ombros, atraiu-a para ele e a beijou firmemente na boca.

— Sim, como desejaria poder ficar para nosso casamento… — Sussurrou, uma vez que teve acabado — Mas tenho que ir, Catherine. Mary tem nova informação.

Catherine agarrou o plaid firmemente, agarrando-o.

— Então me leve com você. Eu corro rápido… Você sabe. Não te estorvarei. Posso te ajudar, porque Cùram não pensará que represento uma ameaça.

— Eu não falei que o Cùram — Disse ele — Por que o faz você?

— Porque aí é aonde vai, não é? Procurar Cùram e sua árvore? — Agarrou mais forte o plaid e tentou que concorda-se a base de pressão — Me Leve com você!

— Não, Cat — Disse ele.

Inclinou-se e voltou a beijá-la, ao mesmo tempo que a levantava do chão e dava a volta para afastá-la da porta. Quando voltou a deixá-la no chão, desfez o beijo, abriu a porta e saiu; logo se apressou a fechar e correu o ferrolho, prendendo-a dentro.

Catherine ficou a dar murros na porta.

— Não! — Gritou — Maldição, não se atreva a me trancar aqui!

Ele apoiou a testa na madeira e sorriu.

— Sim, Cat — Disse o bastante forte como para que o ouvisse — Posso suportar seu aborrecimento. Estarei de volta muito em breve, e você pode passar o resto de seu sonho fazendo da minha vida um inferno.

Levantou a mão e a pôs na porta, justo onde ela golpeava pelo lado contrário.

— Felizes sonhos, pequena Cat — Sussurrou.

De repente Catherine ficou calada, mas Robbie deu um pulo ao ouvir um grito da Mary, que efetuava uma rápida retirada voando pela janela.

Então deu a volta e partiu sem fazer ruído; seu sorriso se alargou quando algo deu contra a porta, tão forte que fez soar as dobradiças. Sim, gostava muito mais do aborrecimento de Cat que de suas lágrimas.

 

Robbie estaria encantadíssimo com ela à manhã seguinte, porque Catherine estava tão zangada que via tudo vermelho… Embora talvez também influía que não tivesse dormido toda à noite e tinha os olhos inchados e avermelhados de chorar.

E é que, tão claro como nesse momento Caitlin estava falando… Em gaélico, enquanto caminhavam para a casa de Ian e Gwyneth, a noite anterior tinha ouvido falar com a Mary.

Cùram tramava algo, disse a coruja a Robbie. Tinha visto o druida na montanha Snow, dentro de um círculo de rochas arredondadas que resplandeciam misteriosamente, falando com a lua; seu bastão crepitava com faíscas de energia enquanto ele o levantava para o céu.

De repente Caitlin jogou Catherine a um lado do caminho quando ao menos vinte guerreiros com aspecto sujo, cansado e zangado, passaram a cavalo. Catherine reconheceu Niall, que fechava a marcha do feroz desfile; deteve-se ao vê-las e falou com Caitlin. De novo Catherine não tinha nem ideia do que diziam; só percebia que, a julgar pela expressão de suas faces, não devia ser agradável. Caitlin voltou a agarrá-la pelo braço quando Niall continuou para a fortaleza e, de um puxão, voltou a colocá-la no caminho enquanto apressava o passo.

Logo que chegaram a casa de Ian e Gwyneth, Caitlin falou com seus pais comprido e rápido, e Ian começou a menear a cabeça e retorcer as mãos.

Catherine o levou fora assim que acabou a conversa.

— O que aconteceu? —Perguntou — É uma notícia de Robbie?

— Não — Disse Ian — Niall acaba de retornar de uma fazenda, perto da montanha Crag. Ontem à noite os MacBain a incendiaram e roubaram todos os animais.

— Alguém saiu ferido?

— A família está ilesa, mas Niall está aborrecido porque foi uma jogada audaz por parte dos MacBain: a fazenda está a menos de cinco quilômetros de nossa aldeia. E além disso o fazendeiro diz que deram uma mensagem para seu laird: se não derrubarmos a represa que impede que o rio Snow flua até terra MacBain, trarão para todos quão guerreiros têm e o farão eles mesmos.

— Niall construiu uma represa que corta a água?

— Não. A Natureza o fez faz um mês mais ou menos: um deslizamento de terras na montanha Snow obstruiu o rio. — Encolheu os ombros — E Niall está disposto a tirar os escombros para que a água corra outra vez… — Franziu a cara em um cenho feroz — É que não faz graça que os MacBain lhe digam que o faça.

— Mas por que estão todos tão preocupados? Não têm mais que derrubar a represa, e todo mundo estará contente.

— Se meu filho não tocou o deslizamento de terras até agora é porque ninguém se atreve a aproximar-se — Explicou Ian — Foi um fato pouco natural. Gwyneth me contou que naquela noite o céu se acendeu com uma tremenda tempestade, e o trovão foi tão forte que até as choças da aldeia tremeram e várias pedras da fortaleza caíram.

Catherine agarrou seu braço.

— Robbie foi à montanha Snow ontem à noite.

— Sim? Por quê?

—Porque acredita que a árvore de sabedoria do Cùram está ali.

Ian ficou com o olhar perdido ao longe, para a elevada cadeia montanhosa que se abatia por cima deles.

— Sim — Disse, olhando-a de novo — Isso teria lógica.

— Temos que ir buscá-lo. Temos que adverti-lo que vai encontrar -se em meio de uma guerra.

— Não. O menino deve levar a cabo sua tarefa sem que nos intrometamos. —Ian pôs a mão no ombro — Seu pai ensinou bem ao Robbie, Catherine, para que cumpra sua vocação. Por muito boas que sejam nossas intenções, uma mulher e um velho só seriam um estorvo. Vem dentro. Se não tiver retornado amanhã ao meio dia, começaremos a agir.

Isso era mais fácil de dizer que de fazer; porque, em vez de ficar esperando, Catherine passou o resto do dia ajudando Gwyneth a arrumar sua casa. E não é que servisse de muita ajuda, comparada com todas as mulheres que foram com trapos, sabão e toscas vassouras, e com os homens que chegaram com martelos e material para reparar o velho telhado.

Catherine não parou de estorvar até que ao fim decidiu que seria de mais ajuda vigiando os meninos que os acompanhavam. O idioma não supunha uma grande barreira quando se tratava das crianças; ficou a fazer desenhos na terra com um pau, e os meninos foram lhe dizendo os nomes em gaélico.

O sol demorou uma eternidade em cruzar o céu, e seus jogos fizeram sentir saudades de Nathan, Nora e os meninos. Almoçou mais comida indescritível e, depois de um jantar ainda mais espantoso, foi dar um passeio com Ian para assentar o estômago. Ele a levou até um cemitério rodeado por uma cerca branca que as inclemências do tempo tinham deteriorado, e se deteve diante de uma lápide.

— Esta é a tumba de meu filho — Disse em voz baixa — James. Era meu quarto filho, depois da Maura, Niall e Megan. Morreu faz seis anos, conforme me contou Gwyneth, em um acidente de caça; seu cavalo caiu quando perseguia um cervo e James quebrou o pescoço.

Catherine lhe apertou a mão.

— Lamento — Sussurrou — Tem outra filha que se chama Maura? Conhecerei-a?

— Não. — Ian assinalou além da cerca — Morreu quando só tinha dezessete anos.

Olhou para Catherine e de repente começou a sorrir.

— Este domingo, depois da igreja, vamos ampliar a cerca ao redor de sua tumba e benzer a terra onde repousa.

— Mas por que não a enterraram aqui dentro?

Ian meneou a cabeça e, com um feroz sussurro, disse:

— Porque acreditaram que se matou e nos proibiram depositá-la em chão sagrado. Mas agora sei que foi um acidente. — Endireitou os ombros — Ia fugindo para casar-se com o pai de Robbie quando caiu pelo gelo fino do lago. Foi uma tragédia, não um pecado.

— Ia casar se com o Michael MacBain?

— Sim — Ian prosseguiu o passeio; saiu do cemitério e se dirigiu de novo ao atalho — É uma longa história, Catherine; digamos só que é o motivo pelo que os MacBain e os MacKeage estão em guerra. Mas agora desfarei nossas ofensas e restabelecerei a paz.

— Fará-o sem revelar onde esteve os últimos trinta e cinco anos?

— Sim. Me ocorreu uma boa história. Contarei que quando nos capturaram, faz… Bom, dez anos, tive ocasião de falar com o Michael e descobri a verdade.

Ela apertou seu braço enquanto caminhavam para a choça de Ian.

— Me alegro de que Robbie tenha te trazido para casa.

Ele deu um tapinha na mão.

— Sim — Disse com um suspiro — Mas nem muito menos tanto como eu, garota.

Catherine estava a ponto de dizer algo mais quando três jovens mal chegados à vintena saíram ao caminho e começaram a falar ao mesmo tempo. Imediatamente Ian a pôs atrás dele e começou a falar em rápido e chispado gaélico que soava a zangado. De repente a separou de um empurrão e disse:

— Corre com Gwyneth!

Catherine não se incomodou em perguntar o que queriam os rapazes, mas sim deu a volta e pôs-se a correr pelo caminho quando dois deles saltaram para ela. Passou como uma flecha por entre as cabanas, dispersando galinhas e esquivando cordas com roupa estendida e meninos que jogavam.

Por fim começava a distanciar-se deles quando de repente um de seus perseguidores deu um grito de surpresa; ao cabo de dois minutos outro deu um grunhido, tropeçou e se chocou contra a parede de uma choça.

Catherine continuou correndo sem saber muito bem onde estava o terceiro jovem, e teria chegado à casa de Gwyneth se um cão não tivesse começado a persegui-la. De repente tropeçou, e só se salvou de cair de cara porque uns fortes braços a agarraram e a levantaram do chão; de fundo ouviu uma risada.

— Está a salvo — Disse Robbie; espremeu-a contra seu peito e seguiu pelo caminho a um passo mais cometido. Na boca tinha um gesto de aborrecimento, mas seus olhos sorriam — Estavam a ponto de conseguir sua segunda, terceira e quarta propostas de casamento.

— Como?

— É um troféu, Cat. salvou o Ian dos ingleses e todos os guerreiros solteiros daqui a querem para mãe de seus filhos.

— Ai, por amor do Puf! O que é esse aroma? — Catherine enrugou o nariz — Céus, se for você! esteve se derrubando em esterco?

Então recordou que estava furiosa com ele e começou a menear-se para soltar-se.

— Desça-me — Espetou, zangada.

Ele a pôs de pé rindo e segurou seu braço com firmeza.

— Talvez tenho que me casar com você só para que não se aproximem os guerreiros. — Deteve-se para que o olhasse — A menos que desperte logo, Cat, é a única maneira de te manter segura.

— Encontrou a árvore?

— Não, mas sim que encontrei por onde anda Cùram ultimamente. E senti a energia da árvore, embora pelo visto não acabo de precisar sua localização exata.

— A sentiu, diz?

Ele começou a caminhar de novo, sem lhe soltar a mão.

— Sim. Havia suficiente energia vibrando no ar para alimentar toda uma cidade.

— Era perto da montanha Snow? Viu o deslizamento de terras que tampou o rio?

— Sim, e já falei com Niall sobre a incursão de ontem à noite. — Deteve-se com ela outra vez — O deslizamento de terras aconteceu faz um mês mais ou menos, e Daar acredita que foi então quando Cùram escondeu sua árvore, ao dar-se conta de que ele andava buscando-o.

— Como soube Cùram que Daar o buscava?

Robbie começou a caminhar de novo com ela, agitando a mão livre sem assinalar nada.

— Quem sabe? Em teoria é um jovem, ardiloso e poderoso druida.

— E Mary não te foi de ajuda?

— Ela me mostrou onde vive; ninguém o teria localizado, porque se ocultou bem.

— Mas não viu ao Cùram?

— Não — Robbie se deteve com ela diante a choça de Gwyneth e Ian — Falo a sério em relação à bodas, Cat. Ainda demorarei vários dias em encontrar essa árvore, e as tentativas de te roubar como esposa não cessarão até que a apanhem.

— Mas não tenho que dizer “sim, quero” ou algo assim? — Perguntou ela, enrugando o nariz e afastando-se de aroma — O matrimônio não tem que ser de mútuo acordo?

— A verdade é que não. Se sua reputação está comprometida, Niall pode te obrigar a se casar sem mais.

Ela recuou outro passo, desta vez não por seu aroma mas sim pelo brilho de seu olhar, e lhe assinalou agitando o dedo.

— Não tenho intenção de me casar — Disse com uma brusca inclinação de cabeça, só para demonstrar que falava a sério — Nem sequer em sonhos.

— Nem sequer com um homem a quem acredita amar? — Perguntou ele, correspondendo a sua retirada com um passo adiante.

— Disse que isso foi um engano… — Disse Catherine.

Deu uma olhada ao caminho e calculou suas possibilidades de escapar. Mas aonde? Esse era o problema: não tinha nenhum lugar aonde ir. Sua única esperança era despertar já… Mas ao ver que isso não acontecia, e que Robbie adivinhava sua intenção e se equilibrava para ela, deu a volta com um grito e pôs-se a correr como uma bala.

Merda, era seu sonho, não o dele. Não ia casar se com o Robbie MacBain só para fazer realidade sua ridícula fantasia.

— Vem aqui, gatinha! — Gritou Robbie enquanto corria atrás; sua voz parecia mais regozijada que furiosa.

Ao cabo de uns minutos Catherine tinha deixado atrás a aldeia e subia disparada o atalho de montanha pelo que tinham descido tão somente no dia anterior. Só um dia? Parecia que tinha passado um mês!

O sol se pôs por fim, e a escassa luz do entardecer enchia de escuras sombras o atalho. Enquanto ouvia atrás o Robbie, menos regozijado e mais zangado cada vez que a chamava, Catherine seguiu procurando outro atalho que voltasse para a aldeia. Pensava recuar até a choça de Ian e esperar ali a que chegasse Robbie, quando por fim ele abandonasse a perseguição; estaria bem empregado que o vencesse de novo, depois de tê-la trancado no quarto a noite anterior.

Quase passou por cima o estreito caminho que havia a sua esquerda, mas imediatamente se agarrou a uma árvore, rodeou-o e subiu como uma flecha pela vereda, mais levantada ainda… Para estampar-se contra um enorme cavalo, ainda mais assustado que ela. Quando o cavalo se encabritou, Catherine deu um grito de surpresa e caiu para trás, mas umas grandes e muito duras mãos a agarraram antes de que batesse no chão, e a levantaram, afastando a dos cascos que voavam pelo ar.

Catherine sentiu que suas costas se estrelava contra um duro e fedorento peito, e se enjoou quando o cavalo em que estava sentada escarranchado deu a volta e começou a subir galopando. Começou a dar tapas a seu captor, mas este se limitou a apertar seu fornido braço e deixar sem ar seus gritos de um apertão.

Então ouviu gritos atrás dela e ruído de metal entrechocando, e ofegou ao dar-se conta de que no mesmo atalho, mas mais atrás, tinha lugar um combate com espadas… E de que Robbie estava justo em meio dele.

Fincou os dedos no braço que a segurava, depois se retorceu e alargou a mão para arranhar a face do tipo, mas ficou completamente quieta ao ver que aquele homem não era outro imbecil MacKeage tentando roubar uma esposa. Tinha posto um plaid MacBain… E Robbie estava ali atrás, lutando contra os MacBain.

Ai, que estúpida tinha sido ao fugir. Ian tinha advertido que os MacBain estavam ficando atrevidos e agora Robbie pagava as consequências.

O martelar de uns cascos se aproximava galopando e Catherine se voltou a olhar por trás de seu captor e lançou um grito de alívio. mal havia luz suficiente mas viu o Robbie sair do bosque até o claro que havia atrás deles.

O guerreiro MacBain se deteve e fez voltar-se para cavalo para fazer frente ao ataque; Robbie deteve seu cavalo roubado de um puxão. Levava a espada na mão esquerda, com a ponta para eles, e parecia tão zangado que jogava faíscas.

— Catherine — Grunhiu — Quero que se jogue para frente e afunde a face no pescoço do cavalo quando eu mandar, e não se mova nem um centímetro, aconteça o que acontecer. Diga que sim com a cabeça se o entender, garota.

Ela tremia muito para assentir. Santa Mãe de Deus, estava apanhada em meio de um combate a espada!

Robbie fez avançar seu cavalo quando o guerreiro MacBain recuou.

— Já!

Catherine se jogou contra o pescoço do cavalo, fechou os olhos e o abraçou, tão forte que inclusive sentiu que o cavalo se afogava quando o energúmeno que a tinha agarrada esticou o braço em torno de sua cintura e se lançou ao ataque. Seu captor esteve a ponto de arrastá-la quando de repente, com um grito, viu-se arrancado a sela, caiu para trás pela garupa do cavalo e bateu no chão com um forte golpe surdo.

Nesse instante outro braço lhe rodeou a cintura, e Catherine apertou mais forte o pescoço do cavalo.

— Sou eu — Disse Robbie com ira mal contida — Solta.

Catherine abriu os braços, mas não os olhos, enquanto voava pelo ar e aterrissava contra o familiar peito de Robbie. Em seguida deu a volta em seus braços e se agarrou a ele, que já se internava rapidamente no bosque.

Esperava que a pusesse de volta no chão para escapar, mas Robbie não disse nada enquanto corriam a toda pressa pelo escuro atalho florestal que só ele (e Catherine confiava em que também o cavalo) via. Notava em seu corpo cada rugiente respiração de Robbie, o coração que palpitava contra sua bochecha e a flexão de seus firmes músculos quando mantinha o equilíbrio dos dois com a destreza de um homem nascido em uma sela… Embora fora do século XIII, pelo visto.

Robbie se deteve diante a choça de Ian, mas não desmontou nem afrouxou o braço com que a agarrava. Disse algo em gaélico quando seu tio saiu, e logo deu a volta ao cavalo e seguiu para a fortaleza.

Como não parecia ter nada que a dizer, Catherine decidiu que não ia desculpar-se por fugir-se nem porque a roubassem; nem sequer porque tivessem estado quase a ponto de matá-los.

Robbie se deteve diante do castelo, desmontou e a desceu no chão; depois agarrou o pulso com um puxão impossível de soltar e entrou pela enorme porta com ela a reboque. Levou-a até a resplandecente lareira e enquanto a deixava em um tamborete que havia ao lado, lançou-lhe um olhar feroz e carregado de intenção que indicou que valia mais não mover-se. Depois se voltou para o grupo composto de guerreiros, mulheres, meninos maiores e uma dúzia de cães que os olhavam fixamente, e ficou a falar em gaélico.

De repente várias das mulheres gritaram de entusiasmo, e muitos dos homens grunhiram em voz alta. Niall se levantou da mesa a que estava sentado com vários guerreiros, aproximou-se e lhe esmurrou as costas, sorrindo. Não tinham passados nem dez minutos, e Catherine se encontrou de pé junto a Robbie MacBain, os dois de frente a um sacerdote, com o Ian ao lado de Robbie, Gwyneth ao dela, e em presença de, ao menos, cinquenta pessoas que não conhecia.

A cerimônia foi concisa, vista e não vista, e Catherine não teve nenhuma só oportunidade de dizer “sim, quero”… Ou, para o caso, “não, não quero”.

De repente o sacerdote se calou e olhou para Robbie. E nesse momento, sem fazer ruído e como se surgisse de um nada, Mary desceu voando do alto teto do imenso salão e pousou em seu ombro. Robbie estendeu a mão, a coruja abriu o bico e deixou cair dois anéis na palma.

Com a coruja ainda no ombro, Robbie se voltou para Catherine, agarrou-lhe a mão esquerda e deslizou em seu dedo uma das grosas alianças. Ela esperou que passasse o outro anel para atirar-lhe no peito, mas Robbie se limitou a colocar ele mesmo no dedo, voltou a agarrar a mão esquerda e sorriu.

— Parece, pequena Cat — Sussurrou, enquanto apertava a mão entre suas palmas, juntando os anéis — Que é minha.

A larga aliança que Catherine tinha posta no dedo se esquentou até dar a impressão de que ia queimar, e ela baixou o olhar com um grito afogado. O anel de Robbie parecia brilhar com energia própria; sentia um suave formigamento na mão, apanhada entre as suas, e por entre os dedos de Robbie via o resplendor de uma luz.

Tentou afastar-se, mas ele se inclinou para ela, e seu gesto fez que Mary se afastasse de novo, batendo as asas com um agudo assobio, para a escuridão do teto; a boca de Robbie estava só a uns centímetros da sua.

— Bem-vinda a sua nova vocação, esposa — Disse em um sussurro, reclamando sua aberta boca com um beijo muito mais possessivo que doce — E ao resto de nossas vidas, Catherine MacBain.

Então a arrebatou em um abraço e a beijou até que ela encolheu os dedos dos pés de prazer… E seu coração ficou a palpitar de terror.

 

Robbie só escutava pela metade as felicitações que os guerreiros davam a contra gosto; sua atenção estava em Catherine, sentada no tamborete junto à grande lareira. Sua pobre esposa parecia pequena, frágil e bastante desconcertada enquanto, de forma discreta, tentava tirar a aliança do dedo.

Depois de saudar os guerreiros com uma inclinação de cabeça, Robbie cruzou por entre a multidão de aldeãos que festejavam e ficou de cócoras a seu lado; depois elevou a mão esquerda, a levou a boca e lhe beijou os dedos.

— Não vai sair, Catherine.

— Não estava tão apertada quando pós — Murmurou ela, ao tempo que soltava e puxava o anel outra vez.

Ele deteve seu gesto agarrando as mãos entre as suas, enquanto roçava a bochecha com os lábios e terminava sua úmida carícia no cabelo.

— Sim, mas é um anel especial que agora forma parte de você tanto como eu —Sussurrou — É o que teria levado minha mãe se tivesse vivido o suficiente para casar-se com o Michael MacBain.

Levantou a mão esquerda para que visse a aliança e puxou seu próprio anel.

— E este é o que Mary teria dado a meu pai — Disse — Olhe, Catherine: enquanto tenhamos fôlego, nenhum deles sairá de nossos dedos. Nosso vínculo, o benzeu a Providência.

Catherine cravou nele seus enormes olhos castanhos e Robbie não soube decidir se o que acabava de dizer a tinha confundido ainda mais… Ou a tinha horrorizado.

Ficou de pé e a levantou do tamborete; de repente se fez o silêncio no enorme salão enquanto levava a sua esposa para a estreita escada que havia ao outro extremo da sala. Ao chegar ao pé da escada se deteve, a tomou em seus braços e começou a subir os degraus entre os aplausos, vivas e estridentes gritos de ânimo dos aldeãos.

Catherine era um molho de nervos para quando chegaram a seu aposento; Robbie foi até a cadeira que estava junto à lareira, sentou-se e a acomodou bem em seu colo.

— Fique calma, Cat — Disse em voz baixa; com um dedo subiu seu queixo para ver seu pálido rosto — Nada vai acontecer esta noite a menos que você o deseje.

Catherine alargou a mão e roçou o peito.

— Não quero estar casada — Sussurrou — Não leve a mal, Robbie, não tem nada que ver com você. Sou eu. É que não quero estar… Me sentir… Estar…

— Presa? — Terminou ele, apertando a mão sobre seu coração — Catherine, nossa união não é uma armadilha para nenhum de nós, e sim uma solene confiança entre duas pessoas que se amam.

— V-você me ama?

Ele não pôde evitar sorrir diante sua evidente surpresa.

— Sim; do instante em que despertei e me encontrei preso a sua cama.

— Mas então nem sequer me conhecia…

— Conhecia, Catherine. E além disso sabia que você também o sentia. Bastou com que pusesse em minhas mãos, você mesma e o bem-estar de seus filhos, e com que aceitasse meu lar com o jogo de uma gata montanhesa.

— Estava morta de medo.

— Sim, mas isso não te deteve, não?

Inclinou-se e beijou a ponta do nariz.

— Algum dia se dará conta de que é o bastante valente para me aceitar. Mas até então — Disse, enquanto ficava de pé e a levava a cama — Jogaremos segundo suas regras.

Deitou-a, beijou-lhe a pálida bochecha, tampou-a com uma manta e ficou direito.

Ela se incorporou com rapidez, jogou atrás a manta e tentou passar as pernas por cima da borda da cama.

— Vai partir outra vez?

Com suavidade, ele voltou a deitá-la.

— Não. — Tampou-a de novo e depois deitou em cima da manta — Os maridos não abandonam a suas esposas na noite de núpcias.

Rodeou-lhe a cintura com o braço e puxou-a até acomodar seu traseiro no oco de seu corpo.

 

— Nos dois tivemos um longo dia e precisamos dormir um pouco — Deu-lhe um empurrão — Amanhã você e Ian virão comigo à montanha Snow para me ajudar a procurar a árvore do Cùram.

Ela voltou a cabeça, surpreendida.

— Vamos com você?

— Sim, mas só para que Ian me explique como era o terreno antes que o vale se alagasse. Depois os dois voltarão direito para cá.

Ela relaxou, olhou para a janela e inclusive aproximou o traseiro a ele.

— Acredito que deveríamos levar Niall e uma centena de guerreiros… — Disse — Para nos proteger dos MacBain.

Robbie se apressou a empelotar a manta entre os dois para não sentir seu feminino calor.

— Não, ninguém deve saber o que estou fazendo. Já falei com Ian, e se reunirá conosco ao amanhecer. — Esticou o braço para impedir que ela rebolasse e apertou os dentes — Durma, Cat. Amanhã será outro longo dia.

Mas foi a noite que foi longa para Robbie, deitado ali, junto a sua suave, quente e relutante esposa, e sem poder reclamá-la como dele.

 

— Santo Deus, os destroços foram enormes — Disse Ian enquanto olhava com atenção por cima das águas do recém formado lago — Grande parte da montanha Snow escorregou até o vale.

Catherine voltou a acomodar o pau nos ombros quando seu cavalo, impaciente, deu um passo de lado; depois seguiu com a vista a borda coberta de bosque até chegar a enorme represa feita de terra, rochas arredondadas, árvores inteiras e escombros cheios de barro, que tinham se encaixado entre uma elevada montanha e uma colina menor. Elevou a vista além da represa, e na ladeira da montanha Snow viu um buraco muito grande, como uma feia cicatriz de granito ao descoberto, que descia da cúpula até o lago.

Robbie se voltou para o Ian.

— Que profundidade tinha o vale aqui?

— Há tanta montanha debaixo da água como a que se vê por cima — Disse Ian; olhou ao Robbie franzindo o cenho — Acha que a árvore de Cùram estava no vale?

— Sim, e acredito que continua estando-o.

— Mas o lago a terá alagado.

— Não. Não se Cùram tiver dado com um modo de protegê-la — Robbie voltou seu cavalo para olhar de frente a Ian e Catherine — E que melhor lugar para esconder algo que debaixo da água? A quem ocorreria que em um lago haja algo mais que peixes?

— Mas como a protegeu? — Perguntou Ian — Uma árvore necessita ar para viver.

— Sabe se na montanha Snow havia alguma gruta, tio?

Franzindo o cenho, Ian coçou a barba sem afastar a vista da destroçada montanha. De repente levantou as sobrancelhas.

— Sim! Quando eu era um menino, nos escondíamos de nossas mães brincando aqui em cima. Lembro que havia grutas. — De repente voltou a franzir o cenho — Mas o mais provável é que o deslizamento de terras as destruíssem.

— Talvez não — Disse Robbie — Exatamente, onde brincavam?

Ian assinalou do outro lado da represa.

— Ali. Lembro que havia uma gruta, mais ou menos a um cem metros subindo do rio Snow, que corria pelo fundo da montanha e saía por ali. — Sua mão cruzou a cicatriz de granito até assinalar uma ilha na metade do lago — Só que então não havia uma ilha, e sim uma íngreme colina. A gruta se estreitava ao subir, e tinha que apoiar os pés e as costas e sair subindo como se fosse uma chaminé.

Robbie guiou o cavalo entre as árvores, seguindo a borda do lago, em direção à represa.

— Vamos — Disse — Procuraremos primeiro a entrada mais baixa; se estiver coberta de escombros, nadarei até a ilha e verei se encontro a outra.

Catherine observou a minúscula ilha enquanto esporeava seu cavalo atrás dos dois homens. Parecia haver seu bom quilômetro e meio da borda, e dava a impressão de que a água estava fria. Mas, tratando de cumprir a promessa que aquela manhã tinha feito a Robbie de não intrometer-se em sua tarefa, não disse nada e os seguiu em silêncio.

Foram descendo pelo bosque até entrar no profundo vale; a represa de terra, rochas, barro e árvores destruídas se elevava à direita, por cima deles. Por fim chegaram a chão plano, cruzaram o leito seco do que em tempos foi o rio Snow e começaram a subir a outra ladeira.

Ian ficou em pé e esquadrinhou o bosque que os rodeava.

— Ali. — Deteve o cavalo e assinalou — Faz anos, Robbie, mas acredito que a entrada da gruta está bem acima.

Robbie desmontou e passou as rédeas a Catherine. Olhou primeiro a represa de terra e depois voltou a olhá-la.

— Se encontro a entrada, retornarei para dizer antes de entrar. A represa não me parece segura, assim quero que você e Ian esperem em terreno mais alto.

— Não entrará sem nos dizer — Ela pôs a mão na coxa.

— Prometo que não, se me prometer que não me seguirá.

— Está me pedindo que faça muitas promessas esta manhã.

Um rápido sorriso apareceu na face de Robbie.

— Sim e observei que as cumpre muito bem.

Ela soltou um bufido e esporeou seu cavalo, puxando também o de Robbie. Passou pela frente de Ian e escolheu um caminho fácil para subir à colina. Mas quando deu a volta para olhar e recordar a Robbie que tomasse cuidado, ele já tinha desaparecido no bosque.

Ian ficou a seu lado.

—Tranquiliza-me que o menino procurou uma boa esposa. Nenhum de nós queria vê-lo tão entregue a sua vocação e descuidando de sua própria felicidade; todos, mas sobre tudo seu pai, começávamos a nos preocupar. — Dedicou-lhe um amplo sorriso — Mas agora tem você. E quero te dizer, garota, que estou orgulhoso de como está tomando tudo isto. A maioria das mulheres não faria mais que chorar a mares ao ver-se nesta viagem.

Catherine não tinha nem ideia de como reagir diante seu alívio ou seu elogio, além de sorrir e sussurrar um “obrigada”. Não teve coragem para dizer que era fácil ser valente em um sonho e que quando despertasse, já não estaria casada com seu sobrinho.

Desmontaram, ataram os cavalos a uns arbustos, e depois Catherine se sentou junto ao Ian e aceitou o lanche que ele passou. Era uma seca torta de aveia, por chamá-la de algum jeito: parecia que a tivessem aplanado a marteladas e provavelmente teria sabor de serragem. Mas, uma vez mais, não teve coragem para recusar seu obséquio e deu uma dentada, que se apressou a engolir com ajuda de uma cerveja de sabor inclusive mais desagradável. Os sonhos situados no século XIII eram um modo estupendo de perder peso, disse; só levava ali três dias e tinha perdido outros dois quilos e meio.

Ficou de pé, surpreendida, quando de repente, e só ao cabo de vinte minutos, apareceu Robbie.

— Encontrei-a —Disse ele; aproximou-se e ajudou Ian a levantar-se — E a árvore de Cùram deve estar ali dentro; senti quão forte era a energia assim que entrei.

Tomou Catherine pelos ombros e fez que o olhasse de frente.

— Quero que você e Ian voltem para a aldeia.

— Não: esperaremos até que retorne com a raiz.

— Não. Talvez demore um pouco. Justo à entrada a gruta se abre em várias direções. Voltem para a aldeia, e eu retornarei assim que possa. — Inclinou-se, deu-lhe um rápido beijo na boca, endireitou-se e sorriu; depois sua voz se transformou em um sussurro — E depois você e eu iremos para casa; sinto falta de seus filhos tanto como você.

Ela agarrou a frente do plaid.

— Por favor, nos deixe esperar aqui. Estaremos de olho nos MacBain. E se querem jogar abaixo a presa enquanto está dentro? As grutas se alagariam. — Apertou mais seu puxão — E Cùram… E se aparecer de repente?

— E exatamente o que planeja fazer se aparecer? Lutar contra o druida com seu pau?

— É mais ou menos tão útil como sua espada! — Espetou Catherine, zangada, ao tempo que se afastava; então suspirou e o olhou inclinando a cabeça — Recorda o que me disse justo depois de me pôr o anel no dedo?

— Disse-te: “Bem-vinda ao resto de nossas vidas.”

— Não; primeiro disse: “Bem-vinda a sua nova vocação, esposa.” E tinha razão. Se for ser a esposa de um guardião, é meu dever vigiá-lo.

— Maldição, Cat. Não era isso o que queria dizer.

— Mas não pode negar que maridos e mulheres têm certas responsabilidades mútuas. Igual a você acha que é seu dever me proteger, não tenho eu o mesmo privilégio? Ou é este um desses matrimônios tipo: “Eu sou o valente guerreiro e você, a indefesa mulherzinha?” — Perguntou ela baixando a voz para imitar a seu ditatorial marido.

Sorriu ao ver que ele apertava a mandíbula, e em seguida sufocou uma risadinha quando Ian soprou e disse:

— Aí te pegou, MacBain. Até os guardiães necessitam ajuda às vezes, e quem melhor que sua esposa?

Robbie lançou um olhar feroz primeiro a ela e depois a Ian.

— É muito perigoso — Disse — E além disso, velho, não te trouxe para casa para que o matem ao cabo de três dias.

— Sim, mas todo mundo precisa que o necessitem, Robbie — Repôs Ian em voz baixa — Incluindo as esposas.

— Não! não vamos discutir isso.

— Então — Disse Catherine, que continuou discutindo de todos os modos — Deixa que exponha isso assim: se te ocorrer algo, eu fico aqui apanhada. Não voltarei a ver meus filhos.

Robbie a olhou com tal expressão de desconcerto que ela decidiu aproveitar a situação.

— E, além disso, verei-me viúva e volto a casar com o primeiro guerreiro que seja o bastante rápido para me apanhar.

Nesse momento no fundo do peito de Robbie começou a soar um ruído que foi retumbando, cheio de advertência letal, até explodir em um grunhido feito. Catherine se limitou a sorrir e deu um toquezinho na ponta do nariz; antes que ele pudesse reagir, girou sobre seus calcanhares, voltou a sentar-se na saliência coberta de musgo e recolheu sua torta de serragem.

— Vá procurar sua raiz — Disse, ao tempo que com a mão indicava que se fosse — Ian e eu estaremos aqui mesmo quando retornar.

Imediatamente Ian foi sentar- se junto a ela esfregando as mãos, com o queixo elevado em gesto desafiador e um sorriso que jogava por terra seu olhar feroz.

Robbie tirou sua espada da bainha que levava às costas, e por um momento a Catherine inquietou que queria mandá-los a casa a espadadas. Sem dizer nada, Ian alargou o braço e apertou sua mão; depois meteu uma parte de torta na boca e ficou a mastigar.

Então Robbie deu meia volta e voltou a ficar em caminho para a gruta, mas se deteve e os assinalou com a espada.

— Partem uma hora antes do pôr do sol, se então não tiver voltado —Resmungou — E se algo me ocorrer, Mary a levará para casa.

— A menos que Mary morra tentando te salvar…

Ele grunhiu de novo, com a cara séria e uma expressão feroz no olhar.

Ian elevou a vista para as árvores.

— Onde está seu mascote? — Perguntou — Não a vi desde que saímos esta manhã.

— Foi a vigiar os MacBain — Disse Robbie, sem deixar de jogar um olhar assassino a Catherine; por fim olhou para Ian e deu uma ordem em voz baixa — Que minha esposa esteja em casa para o pôr do sol, tio.

A seguir se deu a volta e desapareceu no bosque.

Ian olhou para Catherine e sorriu.

— Vai demorar um tempo em adaptar-se ao de estar casado — Disse, dando um tapinha no braço — Mas olhe: já ganhou sua primeira batalha. Conseguimos esperar aqui, e você conseguiu preocupar-se mais perto.

E vá se Catherine não se preocupou, e além durante três longas horas. Comeu várias tortas mais de serragem e bebeu a repugnante cerveja até que seu estômago protestou. Também fez um sulco no chão do bosque à força de passeios e observou como Ian tirava uma soneca a momentos, até que de repente o velho sugeriu que se mudassem à entrada da gruta.

Ian usou o pau de Catherine como bengala para atravessar o bosque, e ela levou os cavalos. Surpreendeu-a que Ian encontrasse sequer a cova e, ainda mais, ver que a entrada não era mais que uma fresta.

Um ar morno saía assobiando baixinho pela greta, e Catherine colocou Ian diretamente diante para que aproveitasse algo de seu calor. Depois começou a abrir um novo sulco na terra, caminhando dos cavalos até o Ian, e de volta. Mas ao cabo de outra angustiosa hora de inquietação, em que não parou de perguntar se Robbie estaria perdido, preso, ou se teria tropeçado com o Cùram, deteve-se o ouvir um agudo assobio que subia do vale.

Mary se pousou no ramo de um alto pinheiro e contou a notícia; então Catherine se aproximou do Ian e despertou com uma suave sacudida.

— Os MacBain vêm pelo leito seco do rio — Disse.

Ian despertou absolutamente alerta, inclinou a cabeça e escutou. De repente abriu muito os olhos.

— Acredito que trazem uma legião de guerreiros — Sussurrou, ao tempo que se apoiava no granito que tinha a suas costas para levantar-se — Rápido, temos que nos esconder, e também aos cavalos.

— O que quer que faça?

— Desça correndo até onde estávamos antes e tampe os rastros que sobem até aqui. Eu desencilharei os cavalos e os afugentarei; ocultaremos nossas coisas e nos esconderemos na gruta.

Catherine correu para fazer o que dizia e partiu um ramo de pícea para varrer o chão. Inclusive varreu as pisadas subiam da borda do rio, e acabava de retornar à gruta quando ouviram os guerreiros deter-se na base da represa.

— Pode entrar, Ian? — Sussurrou; protegeu-lhe a cabeça com a mão enquanto ele tentava entrar agachado pela greta — Você cabe?

Ian soltou o fôlego para passar com dificuldade pela estreita entrada e resmungou em um sussurro:

— Sim. Abre-se quando está dentro — Alargou a mão — Vem rápido, Catherine.

Ela se meteu atrás com dificuldade, piscou para adaptar-se à pouca luz e deu um grito de surpresa ao ver que as paredes da gruta pareciam resplandecer. A gatas, avançou mais, tocou-as e descobriu que estavam Estranhamente quentes.

— O que significa isto? — Sussurrou, enquanto recuava engatinhando junto a Ian — Por que brilham assim?

— É a magia, garota — Disse ele, que olhava pela greta e escutava — Sim, pararam, é claro que sim. Acredito que estão cumprindo sua ameaça de derrubar eles mesmos a represa. Mas não se preocupe, querida, Niall não demorará para chegar.

— Niall?

— Sim. — Ian se voltou e sorriu — A meu filho o escolheram laird por sua astúcia. É provável que tivesse a alguém vigiando a represa.

— Mas o explorador de Niall não nos teria parado?

Ian encolheu os ombros.

— Só somos três aldeãos que saíram a desfrutar do campo sem meter-se com ninguém. — Deixou ver um amplo sorriso e deu um tapinha na mão — E além disso levamos plaids da cor apropriada. Não: o explorador verá os MacBain e irá avisar a meu filho.

De repente Catherine deu um grito afogado, olhou ao chão e, em tom crispado, disse:

— Ai, Meu Deus, isto é água… — Ficou a quatro pés enquanto o chão se ensopava e a água começava a escorrer-se para a fresta de entrada, e tentou penetrar mais na gruta — Robbie!

Ian a agarrou pelo tornozelo.

— Não, querida. Não vá atrás dele. Logo voltará.

A água subiu rapidamente até alcançar uns oito centímetros de altura, murmurando baixinho a princípio e depois formando um riacho que saiu pela greta. De repente, do fundo da gruta chegou um forte chapinho, junto com um retumbante ruído que fez tremer o chão. Ao voltar-se, Catherine viu o Robbie que, curvado, inclinava-se agarrando o peito enquanto corria para eles, com uma muralha de água atrás.

— Saiam! — Gritou ao descobri-los — Vamos!

Mas a água espumante chegou antes que eles à greta, arrastou-os em seu avanço e depois os vomitou fora da gruta em uma agitada e caótica inundação. Uma forte mão segurou Catherine pela cintura, ancorando-a para que não a levasse a corrente. Ela acreditou que ia afogar-se até que, de repente, a água a soltou e se viu jogada na úmida terra ao lado de Robbie.

Ian gritou enquanto a água transbordada o colocava dando voltas no bosque. Robbie tirou algo do peito, o colocou no colo de Catherine e imediatamente pôs-se a correr atrás do ancião guerreiro. Ela se levantou e, piscando, olhou o que tinha nas mãos: um gatinho negro que não parava de retorcer-se e cuspir. Enquanto o pequeno se retorcia para soltar-se, uma diminuta boca com umas presas em miniatura deu um bufido.

Mas o que a fez sorrir foi a grossa parte de retorcida madeira que o animal agarrava com suas afiadas patinhas. Robbie tinha encontrado a árvore de Cùram! Sem fazer caso de seus bufidos nem de suas tentativas por mordê-la, estreitou o gatinho contra seu peito.

— Shhh… — Cantarolou, acariciando o pescoço — Já está a salvo. Robbie não deixou que se afogasse.

O molhado pequenino ficou a tremer em seus braços e por fim se tranquilizou. Então Catherine tentou tirar a raiz das garras, mas ele grunhiu e agarrou mais forte a madeira.

— Certo, segura por agora — Sussurrou sem deixar de acariciar o trêmulo corpo com o polegar.

Elevou a vista quando Robbie chegou com Ian, dando pernadas pela água. Depois de pô-lo no chão junto a ela, Robbie agarrou entre as mãos a face de Ian, que não parava de balbuciar.

— Está bem, tio. Anda, desfaz do que engoliu.

Ian se inclinou e jogou o equivalente a um estômago cheio de água. Depois secou a boca, elevou o olhar para Robbie e deixou ver um amplo sorriso.

— Dou obrigado, MacBain… — Seu sorriso desapareceu quando olhou para Catherine e assinalou o peito — O que é isso?

Robbie agarrou o gatinho, que voltou a bufar, e o abraçou.

— Isto é uma parte da raiz principal da árvore de Cùram. — Tirou a madeira das garras do animal e a levantou — A encontrei.

Agarrou sua presa no punho e, por cima do ombro, olhou o arroio que saía a fervuras da greta junto a eles; depois deu a volta de novo, meneando a cabeça.

— Embora tenha matado a velha árvore da sabedoria — Sussurrou — Estava em uma profunda fenda da ilha e só tinha os ramos mais altas ao descoberto. Ao cavar na base para pegar esta raiz, abri as comportas.

— Mas que diabos é isso? — Voltou a perguntar Ian, assinalando o gatinho.

Robbie levantou a bola negra que não parava de grunhir para que o olhasse de cara.

— Um filhotinho de pantera, acredito — Sorriu quando o pequeno tentou lhe dar um tapa.

Ian soltou um bufo.

— Não temos panteras na Escócia.

Robbie voltou a passar o filhotinho a Catherine e encolheu os ombros.

— Estava completamente só em uma diminuta guarida, não longe da entrada, e ali continuava quando saí correndo. Não podia deixar que se afogasse.

Catherine levantou a mão para Robbie enquanto o filhotinho se retorcia e grunhia em seus braços.

— Quer a raiz; dá-lhe segurança.

Robbie vacilou: notava-se que resistia a entregar sua presa… Mas a passou. O filhotinho cravou as diminutas garras na madeira e afundou os dentes na raiz até que se acalmou por fim, pego ao peito de Catherine.

Ela abriu o xale grande, colocou-o dentro junto com a raiz, apertou bem o nó e deu um tapinha enquanto sorria para Robbie.

— Prometo não perdê-los de vista a nenhum dos dois — Disse — Bem… Afugentamos os cavalos para que não nos encontraram os MacBain. Como vamos retornar à aldeia?

Mal tinha acabado de perguntar quando ao menos quatro dúzias de guerreiros MacBain surgiram do bosque, apontando com as espadas na mão e todos com um aspecto tão feroz que Catherine deu um tombo o coração.

Robbie ficou de pé e tirou sua própria espada da bainha, o qual provocou que vários dos guerreiros dessem um passo adiante.

— Não — Disse Ian, ao tempo que ficava em pé com dificuldade — Angus, velho bastardo: sou eu, Ian MacKeage.

— Teria mais sorte em gaélico, tio — Sussurrou Robbie sem afastar a vista do muro de guerreiros.

— Ai, diabos… — Murmurou Ian.

Começou a falar em gaélico e pôs-se a andar para eles. Imediatamente Catherine observou que um dos guerreiros, um homem quase tão velho como Ian, recuava um passo enquanto empalidecia e abria muito os olhos de surpresa.

Sem deixar de estreitar o gatinho e a raiz contra seu peito, Catherine se levantou para ficar junto a Robbie.

— O que está acontecendo? — Perguntou.

Com a vista fixa ainda na ameaça, Robbie disse:

— Esse com quem fala é Angus MacBain, meu avô, que não acredita no que vê, pois seu filho, Michael, perdeu-se com o Ian faz dez anos.

— Mas o que diz Ian?

— Que estava com o Michael quando os capturaram os ingleses. Está contando como morreu seu filho e falando do grande amor que sentia Michael por sua filha Maura; que iam fugir para casar-se quando ela morreu.

— Angus não sabia da Maura?

— Sabia que Michael estava empenhado em ir à guerra por uma MacKeage, mas não que Maura estava grávida de seu neto no momento de sua morte. — Olhou-a e depois voltou a olhar os dois homens de mais idade — Angus ouviu que Greylen, Ian e outros desapareceram com seu filho em uma grande tempestade, mas pensava que em realidade os MacKeage teriam matado Michael e aos outros cinco guerreiros MacBain. Nossa, Ian acaba de dizer que Michael morreu como um herói, lhe salvando a vida.

Angus olhou para Ian com o cenho franzido e assinalou Robbie e Catherine.

— Ian está dizendo… Ai, diabos… — Resmungou Robbie, ao tempo que secava a face com a mão livre — Ian acaba de dizer que sou um poderoso druida chamado Cùram de Gairn, e que se não se forem para casa por bem, vou afogar a todos.

Ian assinalou a água que saía a fervuras da greta da montanha, e Robbie grunhiu.

— Agora está dizendo que posso desviar o rio Snow e que, se quiserem que corra por terra MacBain outra vez, deveriam nos tratar com respeito e ganhar minha benevolência em vez de ousar nos assinalar com suas espadas a mim e minha esposa.

— Então sou a esposa de um mago? — Disse Catherine dando um grito.

Robbie soprou.

— Olhe que Ian adora inventar-se patranhas… — Meneou a cabeça, voltou a embainhar a espada e inspirou fundo — Bom, mais vale que faça uma demonstração para que meu tio não faça papel de embusteiro e eles partam para casa a contar suas histórias em torno da fogueira.

— Como?

Ele puxou pela mão e a levou direito para o muro de guerreiros. Então se deteve diante de Angus MacBain e disse algo em rápido e crepitante gaélico.

Catherine se inclinou para Ian, que se apressou a traduzir.

— Está dizendo a Angus que conheceu seu filho e que Michael MacBain era um grande guerreiro do que qualquer pai estaria orgulhoso.

Robbie tirou a adaga do cinturão e a passou a Angus. O velho guerreiro MacBain a apertou no punho até que correu sangue por entre os dedos e voltou a lançar um rápido olhar a Robbie.

— Essa é a adaga de Michael — Disse Ian em um sussurro — E agora Robbie se volta para que Angus veja o punho de sua espada, que pertencia o Robert MacBain seu irmão.

Angus era o avô de Robbie? Certamente, este não tinha herdado sua altura. Angus MacBain só era uns dois centímetros mais alto que ela.

Sem soltar-se de Robbie, Catherine se inclinou mais perto de Ian, e em voz muito baixa perguntou:

— Vai renunciar a sua espada?

— Não — Disse Ian — Angus a pediu, mas Robbie disse que Robert queria que ele a tivesse para recordar seus deveres para os MacBain. Diz que deveriam saber que têm um poderoso guardião cuidando de seu bem-estar, e que vai abrir uma brecha na represa para que seu gado volte a beber do rio Snow.

— P-pode fazer isso? — Sussurrou Catherine.

Ian encolheu os ombros.

— O menino não é dos que alardeiam em vão.

Nesse momento Robbie afastou Catherine dos boquiabertos guerreiros. Não deixou de falar em gaélico enquanto passavam por diante; Ian e Angus ajustaram o passo ao dele, mas os guerreiros, em vez de segui-los puseram-se a correr colina abaixo em confusa turba para o leito do rio.

— Eu disse que levem os cavalos a terreno seco — Explicou Robbie a Catherine enquanto ajudava a passar por cima de um tronco caído — Que tal vai seu passageiro?

— Bem — Disse ela, dando um tapinha ao pequeno que levava no xale grande — Acredito que talvez até dormiu. De verdade pode romper a represa?

— Sim. Está instável e só precisa um pequeno esforço.

Nesse instante, do outro lado do lago chegou o estrondo que levantava o martelar de muitos cascos de cavalo. Catherine, Robbie, Ian e Angus saíram do bosque e chegaram ao bordo da represa bem a tempo de ver que Niall e um exército de pelo menos duzentos guerreiros paravam na borda em frente.

Robbie gritou a Niall e assinalou Ian e Angus; depois falou rapidamente em gaélico com o jovem laird durante vários minutos até que por fim este desmontou e cruzou a represa dando pernadas em direção a eles.

Robbie se voltou para Ian.

— Já é hora de que volte para casa, tio — Disse em inglês.

Atraiu-o para si, deu-lhe um feroz abraço e o manteve em seus braços vários segundos antes de dar um beijo na face e secar uma lágrima da bochecha com o polegar. Depois sussurrou algo, deu uma boa palmada no ombro, sorriu e sussurrou algo mais.

A seguir Robbie aproximou de Catherine e disse:

— Dê um abraço de despedida em Ian, Cat; não voltará a vê-lo.

Suas palavras a impressionaram como se tivessem dado um forte golpe no coração. Não tinha pensado em que não veria mais Ian; nunca voltaria a ouvir seu formoso sotaque cantado, a receber um de seus fortes abraços nem a olhá-lo a aqueles olhos que se rendiam nas comissuras.

Ian deu um forte abraço ao tempo que suspirava.

— Ai, Catherine… Recorda o que te disse sobre que os maridos necessitam tempo para adaptar-se — Se sussurrou no ouvido — Ama a meu sobrinho ainda mais, e tente rir mais que brigar, querida… E obrigado por compartilhar minha viagem de volta à casa.

Catherine chorava tanto que não via nada quando Robbie a separou de Ian e voltou a pegá-la ao seu lado. Por fim o gatinho se acalmou de novo, já que não o espremia o abraço de Ian e ela teve que secar a face na borda do plaid de Robbie.

Niall se aproximou de Ian, deteve-se o tempo suficiente para dar um olhar feroz a Angus MacBain, e depois rodeou seu pai com o braço e de novo começou a cruzar com ele a represa. Uma vez do outro lado parou, cravou o olhar em Robbie durante vários segundos, saudou-o com uma inclinação de cabeça e deu a volta para ajudar Ian a montar o cavalo.

Robbie levou Catherine até mais à frente do extremo da represa e a subiu a uma enorme rocha Lisa e arredondada.

— Não se mova daqui — Disse; seu sorriso suavizou a ordem — Só vou liberar o rio Snow e depois voltarei para por você em seguida.

Depois de falar um instante com o Angus, girou sobre seus calcanhares e foi descendo através do bosque para a base da represa. De um salto, Angus subiu à rocha junto a Catherine, embora sem ficar muito perto, e dirigiu um amplo sorriso mais selvagem que amistoso.

Quer dizer, sorriu até que o peito dela começou a mexer. Então o velho guerreiro MacBain recuou, e a julgar por sua cara, deu a impressão de que Cat ia explodir. Nesse momento o “passageiro” apareceu a cabeça pelo xale grande e bufou. Angus deu outro passo atrás e tirou do cinturão a adaga que tinha dado Robbie; ficou segurando-a ao lado em uma postura não ameaçadora, mas sim cautelosa.

Justo então Catherine divisou Robbie, que passava dificuldade por cima das grandes rochas da base da represa, aproximava-se para examinar e esquadrinhava o barro e as árvores que tinham em cima.

Droga, o que estava fazendo? Se a represa se rompia, o levaria na frente.

De repente Robbie se deteve, voltou-se de frente à represa e pôs as mãos sobre dois grandes troncos de árvore que se sobressaíam do muro de terra. Um murmúrio coletivo se elevou do outro lado do lago, e Catherine levantou o olhar e viu que os guerreiros MacKeage, encabeçados pelo Niall, com Ian montado à costas, recuavam com seus cavalos e se afastavam até uma distância segura. Com um grito afogado, Angus também recuou atrás ao tempo que a agarrava pelo braço puxava-a.

Catherine olhou Robbie e não pôde evitar dar outro grito afogado. As árvores começavam a brilhar como rescaldos e pelo ar que os rodeava começaram a ver-se uns fios de fumaça. De repente Robbie ficou direito, esfregou as mãos, levantou a vista para ela e sorriu.

— Sai daí! — Gritou Catherine — Vai se afogar!

Robbie foi saltando de rocha em rocha e desapareceu no bosque para surgir de repente ao lado dela. Angus se apartou como pôde, com seus olhos cor avelã muito abertos, cheios de temor reverencial e de uma boa dose de espanto. Então Robbie falou em gaélico, e o velho ficou boquiaberto; depois assentiu lentamente e, por último, internou-se correndo no bosque.

— O que disse?

Robbie se voltou e a tomou nos seus braços; depois uniu as mãos em torno de suas costas, com cuidado de separar o peito para não esmagar ao “passageiro”.

— Eu disse a Angus que se não deixar de lutar contra os MacKeage, vou voltar e fundir todas as espadas MacBain para as converter em restelos ou pás.

Depois de inclinar-se por cima do gatinho e deu um beijo no nariz, ficou direito e deixou ver um amplo sorriso.

— Está pronta para despertar de seu sonho já?

Catherine o olhou piscando e depois olhou para outro lado do lago, para o exército MacKeage. Depois jogou uma olhada aos guerreiros MacBain, montados a cavalo sobre uma longínqua saliência rochosa que dominava o seco rio Snow, outro aos troncos em chamas da represa e, continuando, à ferida ladeira da montanha Snow.

Então ficou tensa e assinalou para a cúpula.

— Q-quem é esse? — Sussurrou.

Robbie olhou para onde assinalava, e Catherine sentiu que ficava tenso enquanto seu olhar cruzava com o de um homem alto que estava no extremo de uma elevada saliência rochosa, por cima deles; tinha uma espada na mão e a brisa agitava seu comprido e escuro cabelo.

— Cùram.

— O mago? O que vai fazer?

— Nada — Disse Robbie em voz baixa, olhando-a — Não pode fazer nada. Sua árvore de feitiços está destruída.

— Então perdeu seu poder?

— Não, só sua capacidade de nos chatear — Disse; jogou um último olhar a Cùram antes de voltar a dirigir a vista para ela e sorrir — Está pronta para voltar para casa?

De repente a rocha sobre a que estavam ficou a tremer e a terra começou a retumbar com suaves vibrações. Perto dos troncos da represa surgiu um minúsculo rego de água que transformou as chamas em vapor com um chiado até que, de repente, em uma dúzia de direções diferentes brotaram gêiseres que soltaram os troncos e os lançaram pelo ar ao mesmo tempo que, na represa, uma cortina de água abria uma brecha que não parava de alargar-se.

Catherine assentiu.

— Sim. Estou pronta para voltar para casa.

Robbie a envolveu em um feroz abraço, deixando lugar suficiente tão somente para o gatinho que se agarrava à raiz da árvore, e tampou sua cabeça.

— Então se agarre forte, esposa! — Gritou por cima do rugido do vento que descia da montanha, enquanto o ar chispava em torno deles — E decide por fim que me ama!

 

Quão único Robbie teve que decidir durante a turbulenta viagem de volta foi como ia explicar a sua esposa que dava igual se ficassem diante de um sacerdote na época moderna ou medieval: aos olhos de Deus continuavam casados.

Por fim o vórtice que se esticava cada vez mais explodiu com um estrondo ensurdecedor, os ventos se acalmaram até transformar-se em uma suave brisa e a tempestade desapareceu tão subitamente como tinha chegado. Robbie se levantou e afrouxou seu abraço o suficiente para afastar de Catherine o cabelo da face com o fim de que olhasse a seu redor.

Com um olhar desconcertado, Catherine cravou a vista no peito dele, abafado com o plaid, depois em sua própria roupa, e por último elevou a trêmula mão esquerda e olhou fixamente o anel que levava no dedo.

— Estamos de volta em TarStone, mas não despertei — Sussurrou.

— Pois está acordada, Catherine — Assegurou ele — Olhe, o sol acaba de sair, e isso é a fumaça de um avião de passageiros, que deixa essa raia no céu. E aí está Pene Creek. Vê as luzes das casas? Está de volta na época moderna, mas não sonhou todo o ocorrido, porque o viveu de verdade.

— Mas… Não é… Não posso…

Ele tampou os lábios com o dedo.

— Esta tudo bem, Catherine. Não tem que compreender como funciona a magia, só reconhecê-la. Aceita a viagem que compartilhamos, e que saiba que ajudou a reunir a um velho com sua família e salvou meu pai e meus tios de uma grande tragédia.

Ela não deixava de olhar-se fixamente a mão.

— Não se separará, esposa — Disse ele — Não enquanto siga havendo fôlego em meus pulmões.

Com a face tão pálida como a cúpula coberta de neve da montanha TarStone, Catherine se apressou a dirigir seus preocupados olhos para os dele.

— Mas não quero estar casada.

— Decidiu que já não acredita que me ama?

— Não é isso o que estou dizendo. — Inspirou um tremulo fôlego e baixou o olhar — É só que eu não… Não posso… Podemos falar disto depois?

Ele assentiu, ao mesmo tempo que elevava seu queixo.

— Sim. Até que esteja pronta para aceitar nosso casamento, seguiremos como estávamos antes. — Alargou a mão e puxou o nó do xale grande — Me pergunto se nosso vagabundo estará preparado para renunciar à segurança da raiz.

Ela deu um grito afogado e baixou a vista para seu peito enquanto desfazia o nó e tirava o trêmulo gatinho.

— Ai, se estiver morto de medo…

Robbie o agarrou e o abraçou, fazendo caso omisso dos esforços do filhotinho para mordê-lo, enquanto pouco a pouco tirava a raiz das diminutas garras.

— Nosso feroz amiguinho deixou a marca de seus dentes na madeira.

— Fizemos bem em trazê-lo? Foi prudente?

Robbie encolheu os ombros, voltou a dar o gatinho e ficou com a raiz.

— Por que não? É provável que sua mãe se afogou. — Inclinou a cabeça e sorriu — O daremos a Winter; estará muito contente de ter outra hidra felina e bufadora que lhe faça companhia.

Catherine ficou de pé com dificuldade.

— Huy, sim. Perfeito. — De repente voltou a parecer preocupada — Mas e Mary? Não retornou conosco.

Robbie ficou de pé e meteu a raiz no cinturão.

— Virá quando estiver preparada. É provável que ficou para ver se Angus cumprir sua promessa de deixar de lutar. — Olhou a seu redor e a puxou pela mão; depois a levou colina acima para a cúpula — Não estamos longe de onde deveria estar nossa roupa.

— Posso ficar com estes preciosos objetos? — Perguntou ela; ao olhar-se deu um grito afogado — Meu pau! Não retornou conosco.

Sua abatida face fez sorrir o Robbie.

— Farei-te um novo — Disse — A menos que em vez disso queira uma espada. Tenho uma pequena que me fez meu pai quando eu tinha quatro anos.

— Não, não mais espadas. Mas sim quero um pau novo.

Soltou-lhe a mão porque necessitava as duas para controlar o gatinho, e se pôs-se a rir.

— Provavelmente deveríamos deixar que Winter lhe ponha nome — Disse, enquanto o pequeno roia o dedo.

Robbie o arrebatou, pô-lo em alto e depois voltou a dá-lo sorrindo.

— É um menino — Disse.

— Winter poderia chamá-lo Snowball, já que procede da montanha Sno… Bem! — Gritou, chupando o polegar — Me mordeu!

Robbie soltou uma risadinha.

— Não acredito que faça graça esse nome. E além não é branco: é negro como o carvão.

— Mas só é sua pelagem de bebê — Disse ela; deixou-o bem metidinho em seu xale grande e depois agarrou a mão de Robbie enquanto a ajudava a descer um levantado monte — Aí está o pai Daar.

Robbie olhou para onde assinalava e viu que o velho sacerdote se aproximava dando pernadas para eles; seu baqueteado bastão parecia mais frágil que ele. Então Daar parou e jogou um olhar feroz a Catherine.

— Pelos pregos de Cristo, o que preocupado estive… Devia deixá-la lá! —Espetou a Robbie, zangado — Por pouco mata a todos.

Em voz baixa, Robbie disse:

— Dê obrigado que ela estivesse comigo, pai… Ou não teria uma árvore que cultivar — Tirou a raiz do cinturão e a mostrou — Não teria encontrado isto sem ajuda de Catherine.

— Agora quem conta história descabeladas? — Sussurrou ela — É pior que Ian.

Ao momento, o semblante de Daar mudou e seu olhar feroz se transformou em um enorme sorriso. Apressou-se a aproximar-se de Robbie e passou mão na raiz; então a observou com atenção ao tempo mesmo que gritava:

— Conseguiu! Sim, é uma parte forte… — Em um segundo sua voz se transformou em um sussurro; fechou o punho em torno da raiz e olhou Robbie com olhos faiscantes — Sabia que o faria, MacBain. Sabia…

De repente recuou, assinalou o peito de Catherine e gritou:

— Pelos pregos de Cristo, o que é isso? Santa Mãe de Deus, trouxe um demônio!

— Não é mais que um gatinho — Disse Cat, levantando o xale grande para tampar a face de Snowball, que não parava de bufar.

Enquanto assinalava Catherine, Daar lançou um olhar assassino Robbie.

—Sufoca essa condenada coisa — Disse em tom crispado — É um filhote de pantera, e se o encontrou na Escócia, só trará problemas.

Catherine se afastou para defender a seu protegido da ira do sacerdote.

— Não vai sufocar ninguém! É um presente para Winter.

Daar voltou a dar um grito afogado.

— O que é o que leva ela na mão? E você! — Gritou, ao tempo que olhava a mão esquerda de Robbie. Em seguida os olhou os dois com expressão sobressaltada e baixou a voz até fazê-la um sussurro — Estão casados?

— A-a verdade é que não — Disse Catherine — Não nesta época, pelo menos.

Daar levantou uma sobrancelha.

— Colocou-a diante de um sacerdote?

— Bom, sim, mas eu não pronunciei…

Fechou a boca de repente quando Daar a assinalou meneando o dedo.

— Não importa quando tenham casado, mulher — Disse — Enquanto vivam, deverão manter suas promessas.

— Mas eu não prometi nada. Nem sequer compreendia o que dizia o sacerdote…

Daar meneou a cabeça, e sua ferocidade se transformou em compaixão ao olhar de Catherine a Robbie e depois outra vez a Catherine. Só que Robbie não sabia quem dava mais pena ao sacerdote, se ele ou sua pobre esposa, que não parava de protestar.

— Catherine — Disse Daar, caminhando para ela — Se pôs diante de um sacerdote e aceitou o anel de Robbie MacBain. Já não tem que fazer mais promessas.

Robbie tomou a mão de Cat e a conduziu para seu cavalo.

— Você preocupe-se de cultivar sua árvore, velho, e eu me preocuparei de minha esposa.

Daar ajustou o passo ao deles.

— Viu o Cùram? Teve que brigar com ele pela raiz?

Robbie se deteve e lançou um olhar assassino ao velho druida.

— Nossos caminhos não se cruzaram. Mas tome cuidado de plantar essa raiz onde esteja segura. Tive que destruir a árvore de Cùram para pegá-la, e quando descobrir o que aconteceu, é provável que procure vingança.

Daar deu um grito afogado ao tempo que, com os olhos muito abertos de espanto, recuava e estreitava a raiz contra seu peito.

— Matou uma árvore da sabedoria?

Robbie lhe assinalou o peito.

— Não de tudo: ainda fica a raiz.

— Mas destruir todos esses anos de conhecimento, MacBain… Toda essa energia… A energia teve que ir a algum lugar. Aonde foi?

Robbie encolheu os ombros.

— Não tenho nem ideia, pai, e além me dá igual. Eu cumpri com meu dever para proteger a minha família; agora você faça o seu e anule seu feitiço primitivo.

— Sim, sim. Começarei agora mesmo. — Enquanto assentia, o velho sacerdote recuou com os olhos ainda muito abertos de assombro e não pouco medo — E o esconderei bem.

As últimas palavras as acrescentou ao tempo que dava a volta e empreendia uma precipitada retirada montanha abaixo.

Robbie jogou uma olhada em Catherine e a encontrou olhando-o, espantada.

— O quê? — Perguntou.

— Ele… Ele não soube dizer se toda essa energia entrou em você, ou se é que te amaldiçoou — Sussurrou Catherine.

Robbie se inclinou, beijou-lhe os preocupados lábios e se afastou justo o suficiente para que visse o sorriso.

— Prometo que não estou maldito, esposa — Disse.

Quando ela deu um grito afogado, beijou-a de novo. Realizou um trabalho consciencioso, além disso; depois a pegou pela mão e a aproximou aonde estavam suas roupas.

—Se nos dermos pressa, ainda chegará a casa antes que do ônibus escolar — Disse, enquanto tirava depressa o plaid e colocava a roupa moderna.

Catherine envolveu o gatinho em seu xale grande e o pôs no chão.

— Hoje é sábado: é provável que todos durmam ainda. — Com um gesto indicou a Robbie que se voltasse de costas para trocar de roupa com um pouco mais de recato — E disse que “chegarei” em casa a tempo. Não vem comigo?

Robbie terminou de atar a espada e o plaid MacKeage à sela, alargou a mão e pegou o gatinho do xale grande de Catherine.

— Tenho que ir a Gù Brath primeiro — Disse; montou e colocou o filhotinho dentro de seu plaid — Darei a Winter seu novo amiguinho, explicarei a Greylen aonde foi Ian e pedirei que convoque uma reunião do clã para esta noite.

Estendeu-lhe a mão, enquanto apartava o pé do estribo, para que ela montasse atrás.

— E além disso quero que programe sua jornada para que venha comigo esta noite.

— À reunião do clã? Mas por quê?

Robbie deu um tapinha à mão com que Catherine rodeava a cintura e pôs-se a andar o cavalo montanha abaixo.

— Porque você esteve lá. Ajudará-me a assegurar que Ian está feliz.

— Mas eles creditarão. Não quero ir.

— Mas eu quero que vá — Disse ele.

Pararam ao chegar ao lugar onde esperava o cavalo de Catherine. Robbie alargou a mão para trás, levantou-a da sela e a sentou na sua. Depois desatou a rédea do cavalo e passou a corda.

— Não tem que preocupar-se da brida. Diabos — Disse com uma risadinha — Até pode dormir durante a volta se quiser. A única preocupação que Sprocket tem esta manhã é um cubo de grão e uma soneca em sua casinha.

Com um empurrãozinho, Catherine esporeou Sprocket e ficou em marcha montanha abaixo. Robbie foi atrás, perguntando-se como ia expor o seguinte assunto. Não era justo pedir nada mais a sua pobre esposa naquele preciso instante, tendo em conta tudo o que tinha passado, mas, maldição: até que se solucionasse essa última questão, ela não seria capaz de aceitar seu matrimônio.

— Estive pensando, Catherine, que provavelmente já seja hora de que convide o Daniels a que venha visitar seus filhos.

— Como? — Gritou Cat enquanto se voltava na sela para olhá-lo — Convidar a Ron a…? Está louco?

Robbie meneou a cabeça.

— Você, Nathan e Nora têm que enfrentar seu demônio — Disse em voz baixa — Porque até que não o façam, não serão livres.

— De modo que me propõe que chame Ron, pelas boas, e o convide a que venha a nos ver.

— Sim. Pensa-o, Catherine. — Robbie adiantou seu cavalo até pô-lo junto ao dela quando o atalho se alargou — Para você e seus filhos, Daniels continua sendo o monstro aterrador que era faz três anos, mas todos cresceram bastante neste tempo, e talvez já o vejam como o boneco patético que é.

— Não há nada patético em Ron: é um autêntico monstro. E quer que eu exponha meus filhos a ele? Santo Deus, se quase perdi a vida tentando fugir dele…

— Isso não voltará a acontecer — Prometeu Robbie em voz baixa — Porque em vez de ter a proteção de dois amigos bem-intencionados, desta vez me tem.

— Não.

— E além disso, aos meninos. — Inclinou-se e lhe tocou o ombro — Só te peço que pense, Cat; por seus filhos tanto como por si mesma. Deixa que Nathan e Nora voltem a ver seu pai e se deem conta por fim de que não têm nada que temer. Dê o dom da coragem, Catherine.

— Faz que pareça que são minhas imaginações.

— Não. Só um tolo não teria medo de algo ou alguém que pode matá-lo. Mas, Catherine — Sussurrou, agarrando a corda de Sprocket e detendo os dois — Desta vez tem cinco anjos da guarda. Enfrente seu demônio com nossa proteção e demonstre a Daniels que já não tem nenhum poder sobre você, nem sobre Nathan e Nora.

Alargou a mão e acariciou a bochecha com os nódulos.

— Seus filhos não serão livres até que não o façam. E você tampouco.

— O pensarei — Sussurrou ela, fazendo andar o Sprocket pelo atalho que tinha diante.

Robbie baixou a vista e coçou o queixo de seu “passageiro”.

— O que te parece, amiguinho? Acabo de estragar tudo?

O filhotinho fincou seus afiados dentinhos no polegar do Robbie e grunhiu.

— Sim — Sussurrou ele — É minha.

 

O primeiro que fez Catherine ao chegar a casa foi entrar correndo no salão para abraçar e beijar seus filhos. E depois os abraçou e beijou um pouco mais, até que por fim Nathan se soltou de um meneio, disse que já era muito grande para essa espécie de coisas e voltou a ver os desenhos animados. Nora se limitou a olhá-la enrugando o nariz e disse que cheirava estranho.

Nenhum dos dois disse que tivesse sentido falta da noite anterior nem essa manhã; pelo visto estavam bastante contentes de que os meninos fossem suas “babás”. Nora sim que disse que tinha comido muito sorvete, mas que Gunter tinha parado a caminhonete ao lado da estrada para que vomitasse, Rick havia segurado seus ombros e Cody tinha lavado a face com água de um arroio. Nesse momento interveio Nathan que, pelo visto, estava as escutando tanto como aos desenhos animados, e disse que tinha sido água da vala, não água de arroio.

Gunter, que descia a escada nas pontas dos pés justo então, deteve-se no último degrau e sorriu para Catherine.

— Descansou? — Perguntou — Que livro leu?

— Um yanki na corte do rei Artur — Disse ela.

Ficou de pé e entrou na cozinha; Gunter foi atrás.

— Deveria lê-lo alguma vez — Prosseguiu Catherine por cima do ombro — É toda uma aventura.

— Por que não vai tomar banho? — Sugeriu ele; com um gesto indicou que se separasse da cafeteira — Eu prepararei o café da manhã esta manhã.

Catherine se dirigiu a seu quarto mas se deteve a porta e se voltou a olhá-lo.

— Tome cuidado, Gunter — Sussurrou — Ou talvez se transforme em boa pessoa.

— Onde está o chefe?

— Não demorará para vir. Tinha que ir a Gù Brath primeiro.

Assim que as palavras saíram de sua boca, Catherine quis se dar um tapa… Porque de repente os escuros olhos de Gunter se animaram com a segurança de saber que tinha estado no certo na tarde anterior.

Com um suspiro, Catherine entrou em seu quarto dizendo-se que não merecia a pena discuti-lo. Tirou a roupa suja, ainda úmida da noite passada na cúpula de TarStone, e depois abriu a ducha; ao sentir o jorro quente deu as graças porque existisse a água corrente nas casas; e além quente!

Pensou em sua fabulosa viagem e em quão impossível era. Então elevou a mão esquerda, olhou sua aliança, que piscava através da água, e esfregou o dedo com sabão para tentar tirá-la embora tinha estado fora menos de dezesseis horas, tinha passado três dias na Escócia do século XIII. Tinha comido coisas que não saberia descrever, tinham estado a ponto de ficar com ela cinco vezes e se viu apanhada em metade de uma guerra. Pôs-se diante de um sacerdote e se casou com o Robbie, tinha visto seu marido acender fogos a vontade e no polegar direito ainda tinha marcas de dentes da dentada de um filhotinho de pantera…

Continuava sem querer mover-se.

Pois se não tinha sido um sonho, o que tinha sido?

Magia, havia dito Robbie.

De acordo, talvez fosse magia, mas o que significava em realidade?

Significava que Robbie não só beijava como nos filmes, mas sim de verdade falava com as corujas, viajava através do tempo quando queria e acendia fogos sem fósforos. Significava… Significava que ela estava em um apuro muito grande.

Estava apaixonada por Robbie MacBain, e tinha ocorrido apesar da magia ou devido a ela; o como ou o porquê não importavam… Era algo tão autêntico como o anel que levava no dedo.

Mas enfrentar a Ron Daniels? Vamos, isso sim que era um pesadelo. Por que acreditava Robbie que ia querer jogar por terra a paz que tinha encontrado ali, junto a ele, levando a seu ex-marido direito até eles?

Porque enquanto tivesse medo de Ron Daniels não seria a esposa de Robbie MacBain.

Merda, não suportava que os anjos da guarda tivessem razão.

 

Gù Brath era um castelo de verdade, embora só o exterior se parecia algo à fortaleza MacKeage de fazia oito séculos. No interior, o trabalho artesanal e a atenção pelo detalhe não só eram deslumbrantes e opulentos, mas sim, sem saber como, as arrumavam para serem acolhedores. E, além disso, a versão moderna tinha água corrente, lâmpadas que resplandeciam até no último canto e calefação central.

Sentada em um canto da enorme sala de jantar, com as mãos apertadas no colo, Catherine se sentia uma intrusa entre os quatro escoceses, suas esposas e Winter MacKeage, que se sentavam à mesa… Quer dizer, esteve em um canto até que Robbie puxou-a para que ficasse a seu lado na cabeceira e a apresentou como Catherine MacBain.

Greylen MacKeage, aquele homem tão imponente que se sentava do outro extremo da mesa, foi o único que se levantou e deu a bem-vinda à família.

Todos outros se limitaram a ficar com a boca aberta, estupefatos.

Devagar, Michael MacBain se levantou e cravou a vista em seu filho, que rodeou com o braço os trêmulos ombros de sua esposa.

— Catherine foi comigo quando levei Ian de volta — Disse Robbie — E já sabe tudo.

Ainda sem dizer nada, sem sorrir, franzir o cenho ou mostrar alguma emoção visível, Michael olhou para Catherine.

— E além o aceita. E me aceita — Acrescentou Robbie, apertando seus ombros; pelo visto esperava que ela questionasse sua atrevida afirmação.

Mas Catherine não teria falado nem que tivesse querido. Não com o pai de Robbie cravando a vista nela.

Aquele era o filho de Angus MacBain? Não se pareciam nem pingo. Angus não media mais de um metro setenta, muito pouco comparado com o metro oitenta e cinco ou metro noventa de Michael. E os olhos do velho guerreiro eram verde avelã, não cinzas como os de Michael. E, além disso, Angus tinha o cabelo vermelho vivo, não castanho intenso. Nossa, homem, se até tinham um porte diferente. Michael mostrava uma tranquila, mas letal, atitude vigilante… Igual a seu filho.

E, pensando bem, igual Greylen MacKeage.

— Parece, papai — Disse Robbie em um sussurro.

Michael o olhou e falou por fim, embora em gaélico.

Catherine ficou tensa, mas Robbie se limitou a lhe apertar os ombros de novo e respondeu a seu pai em inglês.

— Do Daniels já nos ocuparemos — Disse — Quando minha esposa esteja preparada para fazê-lo ela mesma.

Sua esposa quis meter-se de quatro em uma fresta. Por que tirava a luz seu ex-marido diante de todas aquelas pessoas?

Nesse momento Libby MacBain ficou de pé e, depois de lançar a seu marido um olhar feroz e carregado de intenção, foi à cabeceira da mesa e puxou Catherine do abraço de Robbie para abraçá-la ela.

— Bem-vinda à família, filha — Sussurrou — Tanto Michael como eu estamos muito contentes de que Robbie tenha encontrado uma mulher tão especial a quem amar.

De repente alguém tirou Catherine dos braços de Libby e quase a asfixiou em um feroz, embora surpreendentemente suave, abraço.

— Sim, meu filho escolheu bem — Disse Michael, ao tempo que dava um beijo na cabeça — Acredito que saberá dirigi-lo. Dou-te a bem-vinda a minha família, Catherine.

Com aquele clamoroso respaldo, Catherine se viu levada de abraço em abraço, recebendo felicitações e bem-vindas de Morgan e Sadie MacKeage, de Callum e Charlotte MacKeage, de Greylen e Grace, e por fim de Winter, que parecia ser a única dos primos de Robbie que estava na reunião.

— Robbie me comentou sua sugestão de que pusesse Snowball — Disse Winter, enquanto recuava o colete para destampar seu passageiro — Mas parece que não gosta. Vou ver se o conheço melhor antes de pôr um nome. Obrigado por me trazer isso.

Catherine acariciou o filhotinho sob o queixo.

— Só era uma ideia, porque vinha da montanha Snow.

Enquanto o tampava, de repente a Winter entristeceu o olhar.

— Sim. Oxalá tivesse ido eu com vocês — Disse; elevou a vista para Robbie com olhos acusadores e cheios de lágrimas — Ou, pelo menos, oxalá o tivesse sabido para me despedir de Ian.

— Mas Ian sim se despediu — Disse Robbie ao tempo que se voltava para olhar os outros — Os visitou todos na semana passada, não? Mas não disse nada porque o fiz prometer que guardaria silêncio.

—Mas por quê? — Perguntou Callum.

Foi então quando a conversa passou de Catherine ao Ian, e depois ao Daar. Aliviada, Catherine voltou para sua cadeira do canto e ficou a escutar enquanto Robbie explicava por que tinha recuado no tempo, por que não havia dito que o fazia e por que era importante que o velho sacerdote recuperasse seus poderes.

Mas foi ao ouvi-lo prometer que, enquanto vivesse, todos eles estariam a salvo da magia, sem importar quão forte chegasse a ser o druida, quando por fim Catherine se deu conta de onde se colocou.

Verdadeiramente, apaixonou-se não de um anjo da guarda, mas sim de um autêntico guardião destinado pela Providência. E a julgar pelo que ouvia, ia estar tão ocupada protegendo-o que não teria tempo de andar olhando por cima do ombro.

Sim, já era hora de enfrentar-se a Ron Daniels.

 

O único problema de convidar a Ron a visitá-los era que ninguém sabia onde estava. Catherine chamou o assistente social que o fiscalizava durante sua liberdade condicional, a vários de seus antigos conhecidos e inclusive ao sargento de sua antiga delegacia de polícia, só para topar-se com becos sem saída.

Por fim informou a Robbie de sua decisão, mas disse que não o encontrava; depois de beijá-la até que encolheram os dedos dos pés, Robbie explicou que ele tinha seus contatos e, rapidamente, fez correr a voz de que a ex-esposa de Daniels queria vê-lo.

Isso tinha passado fazia quatro semanas, e ainda não havia nem rastro de nenhum ex-marido.

Quanto ao de ser Catherine MacBain, Cat havia dito a Robbie que ela não podia dizer que estavam casados de qualquer jeito e esperar que Nathan e Nora o entendessem. De modo que as últimas quatro semanas tinha dormido no quarto de baixo e planejado umas bodas em que não só soubesse o que prometia, mas também chegasse a dizer “sim, quero” em algum momento da cerimônia.

O único problema era a data. Embora Robbie estava disposto a casar-se de novo para contentar a todos os da época moderna, negou-se a fixá-la até que pudessem acontecer uma autêntica noite de núpcias. E não a teriam, insistiu, até que Daniels saísse por completo da vida dela. Catherine começava a estar farta das nobres intenções de Robbie… Em particular quando tomava em seus braços, deixava-a sem sentido à força de beijos e sussurrava ardentes promessas que desbocavam o coração sobre o que queria fazer na lua de mel. Suas próprias nobres intenções estavam quase a ponto de explodir, e quando não olhava pela janela esperando ver Ron por ali, fazia cálculos sobre como seduzir Robbie o tempo suficiente para encolher os dedos dos pés.

A solução teve uma origem do mais insólito e chegou um radiante dia da primavera, quando Catherine ouviu um ruído no alpendre. Ao abrir a porta, Mary entrou caminhando na cozinha, voou até o respaldo de sua cadeira de balanço, pregou as asas e começou a falar com ela.

A extraordinária conversa durou mais de uma hora.

A sábia coruja nevada a convenceu de que já era hora de que se fizesse cargo do assunto e acabasse com as nobres intenções de Robbie organizando uma sedução que não resistisse nem um santo.

E desse modo, armada com a opinião surpreendentemente simples e perspicaz de Mary sobre a coragem e o medo, e além disso, com sua bênção, Catherine fixou a data do casamento para aquela sexta-feira. A temporada do barro tinha fechado a exploração florestal, e os meninos se mostravam ansiosos por ajudar a pôr fim ao celibato de Robbie… Embora ela suspeitava que em realidade viam o casamento como a garantia de que não iam ficar sem governanta.

Durante três dias, ao acabar o colégio, os meninos subiram a cavalo à cabana onde Catherine se viu pela primeira vez cara a cara com Robbie. Limparam-na de cima abaixo, empilharam lenha, realizaram algumas pequenas reparações e inclusive ataram um colchão ao lombo do pobre Sprocket e o conduziram montanha acima.

Com ajuda de Winter, Catherine chamou a grande família de Robbie, contou-lhes onde e quando era o casamento e pediu por favor que fosse uma surpresa. Também prometeu que dariam um bom banquete no dia seguinte na fazenda.

Inclusive Kate participou da conspiração, embora ainda batalhava com a perda de Ian; debatia-se entre não se importar e alegrar-se por ele, pois sabia que estava onde queria. Tinha uma consulta com o médico em Bangor aquela sexta-feira e pediu a Robbie que a levasse de carro. Se este pensou que seu pedido era estranho, não disse nada; essa manhã se limitou a despedir-se de Catherine com um beijo e partiu para ir procurar Kate.

E naquele momento eram quatro e meia da tarde da sexta-feira, o topo de TarStone estava repleta com três gerações de parentes MacKeage e MacBain, Catherine tinha retorcido seu ramo de miosótis até convertê-lo em um matagal de ervas daninhas… E Robbie se atrasava.

— Talvez não encontrou sua nota — Disse Michael, que estava junto a Catherine com as mãos à costas, enquanto observava o atalho que subia a montanha.

— Não é possível que não a tenha visto. Pus sobre a mesa, justo em cima de um bolo de maçã.

— Sim, isso chamaria a atenção — Concordou ele com uma risadinha; voltou-se para olhá-la — Catherine, não soube nada de Daniels?

Ela baixou o olhar para seu destroçado ramo e sussurrou:

— Não, nada. Talvez morreu.

Michael levantou o queixo para que o olhasse.

— Reza para que não seja assim, querida — Disse em voz baixa — Pois estou de acordo com meu filho: confrontar o passado é importante.

Ela dirigiu um radiante sorriso.

— Mas se já não preciso ver Ron — Alargou seu sorriso — Nossa, homem, depois do que confrontei faz quatro semanas, Ron Daniels já não me preocupa e muito menos me dá medo.

Seu quase sogro levantou uma sobrancelha.

— Assim, tão facilmente? — Perguntou — Simplesmente, apagou vários anos de sua vida?

— Todos e cada um dos dias — Confirmou ela — Salvo os aniversários de Nathan e Nora. Decidi que, às vezes, para encontrar algo maravilhoso é preciso passar por um suplício.

Ela se aproximou e tocou o braço.

— Depois do que você passou em sua vida, não te parece que valeu a pena, ter Libby, a seus filhos e a sua neta? Desejaria que não existisse nada disso somente para ter evitado os padecimentos que teve que suportar até chegar aqui?

Michael cravou a vista nela sem sorrir e sem franzir o cenho; em seu rosto não havia nenhuma expressão que Catherine pudesse decifrar. Quando por fim respondeu, quão último ela esperava era que fosse com regozijo.

— Sim, vejo que meu filho espera um interessante futuro… — Sussurrou, ao tempo que a envolvia em um feroz abraço e o fazia tremer com sua silenciosa risada — Não poderia ter desejado uma nora melhor, Catherine.

— Ainda não é sua nora — Disse Robbie justo ao lado deles.

Catherine deu um grito afogado e tentou recuar, mas Michael ainda não tinha acabado de abraçá-la.

— Não? — Disse com uma risadinha, olhando Robbie e deixando ver um amplo sorriso — Então talvez deveria tirar o anel e devolvê-lo.

Em um gesto muito parecido a seu pai, Robbie levantou uma sobrancelha.

Robbie a tirou dos braços de Michael, separou-a da multidão que os olhava e se voltou para que seu corpo a ocultasse da audiência.

— O que está acontecendo aqui? — Perguntou.

— Vamos nos casar dentro de cinco minutos.

Em um gesto muito parecido a seu pai, Robbie levantou uma sobrancelha.

— Comigo ou sem mim?

Catherine encolheu os ombros.

— Pelo visto não necessitou meu consentimento faz oito séculos, de modo que não acredito necessitar o seu hoje. — Se aproximou e baixou a voz — Mas, pronuncie ou não suas promessas, esta noite vou dormir em sua cama, marido.

Dirigiu um desafiante sorriso de satisfação.

— Então se dá no mesmo o exemplo que demos a nossos filhos, vá para casa e coma o bolo. Eu descerei assim que termine a cerimônia.

— Nesta época se necessita uma licença matrimonial.

— Já está arquivada no palácio de justiça do condado: ajudou-me Martha Bailey. — Inclinou a cabeça — Não é a todo mundo que preenche a licença matrimonial uma juíza.

— E exatamente quando assinei eu essa licença?

— Não o tem feito você, e sim Cody. Se dá o mar de bem falsificar sua assinatura. Talvez queira consultar com seus professores para ver que outros papéis assinou.

— Deixou que um juiz legalizasse uma assinatura falsificada?

Catherine suspirou, rodeou-o, foi ficar diante do pai Daar e esperou a que Robbie se reunisse com ela.

Não queria que os casasse o ancião sacerdote, tendo em conta todos os problemas que seguia causando, mas Michael e Greylen pediram que consentisse, por eles e pelo Robbie.

Catherine sorriu a Nora, que estava a seu lado, e depois a Nathan, apertado entre Gunter, Rick, Cody e Peter; todos queriam ser testemunhas de Robbie. Por fim, depois do que pareceu uma eternidade, uma escura sombra ocultou o sol, e o pai Daar elevou seu livro e começou a falar.

Imediatamente Catherine pôs a mão sobre as páginas.

— Não, pare. Em inglês — Exigiu; depois tirou a mão, alargou o braço e enlaçou seus dedos com os de Robbie.

Seu novo marido sussurrou suas promessas, e Catherine esteve tentada de gritar as suas, mas ao final repetiu as palavras em voz baixa e clara.

Como já levavam postos os anéis, Robbie tomou a mão esquerda e juntou as alianças. Desta vez Catherine esperava a magia, e quando seu anel se esquentou e formigou a mão, limitou-se a sorrir.

O beijo nupcial, entretanto, não pôde ser mais recatado.

Em troca o beijo de Robbie a Nora, quando pegou a radiante garotinha nos braços e deu uma forte e risonha beijoca na bochecha, foi emocionante. E seu apertão de mãos a Nathan ficou do mais varonil.

Winter avançou levando o cavalo de Robbie; tinha as crinas e a cauda trancadas com largas fitas das cores MacBain, e a garupa coberta com um plaid MacBain de aspecto antigo. Catherine também reparou em que a espada do Robbie (e o novo pau que tinha feito) iam atados com correias sela.

Seu marido a tomou pela cintura, subiu-a ao cavalo e montou atrás em meio de uma chuva de arroz e entre as ovações dos que estavam reunidos na cúpula.

— Aonde vamos, esposa? — Sussurrou.

— A sua cabana da colina de West Shoulder — Respondeu ela.

Disse adeus com a mão e lançou beijos a Nathan e a Nora.

— Estaremos de volta amanhã antes do meio-dia. Se comportem bem com os meninos — Disse; depois se recostou no peito de Robbie com um suspiro, elevou o olhar para ele e sorriu — Como se encontram os doze dedos de seus pés, senhor MacBain?

— Bem — Disse ele com expressão desconcertada.

O sorriso dela se alargou.

— Bom, não o estarão dentro de uma hora mais ou menos.

— Ah, não?

— Não, porque estou a ponto de se encolher marido.

 

Robbie mal reconheceu o lugar. E enquanto cruzava a soleira com sua esposa nos braços, a julgar pela expressão da face de Catherine, ela estava igual de surpreendida.

A velha cabana estava limpíssima. Todos os móveis quebrados, os anos de trastes velhos acumulados e até a última teia de aranha e toca de esquilo tinham desaparecido. Só ficavam uma cama de ferro forjado recém pintada, uma mesa e duas cadeiras, uma cadeira de balanço e a estufa de lenha que acabavam de pintar de negro. A bancada e os armários de cozinha estavam pintados de vermelho, havia cortinas novas nas janelas e inclusive no chão tinham dado uma mão de pintura.

E, além disso, em todas as superfícies disponíveis havia dúzias de velas que só esperavam ser acesas.

Robbie olhou a sua esposa e a encontrou olhando em torno da cabana, estupefata.

— Não tinha nem ideia de que estivessem fazendo tudo isto — Sussurrou, elevando a vista para ele — Só pedi que a limpassem um pouquinho.

Robbie a deixou de pé no chão e agarrou da mesa um envelope que estava apoiado em uma grande vela de três cores.

— Quase me dá medo abri-lo — Disse — A última nota que recebi era um convite ao meu próprio casamento.

Catherine tirou o envelope, abriu-o e tirou o cartão.

— É o presente de casamento dos meninos — Disse, devolvendo o cartão — Dizem que todo os casais casados, com a casa cheia de vândalos, necessitam um lugar aonde fugir.

Robbie se apressou a ler o cartão e o jogou na mesa; depois pegou nos braços a sua esposa e a depositou sobre a bancada, deslizou-se entre seus joelhos e uniu as mãos atrás de suas costas.

— Acreditava que o trato era que nosso casamento não começava até que enfrentasse o Daniels.

Ela tampou os lábios com os dedos.

— Sshhh! Não pronuncie sequer seu nome. Já não existe.

— Mas sim que existe, Catherine. Não passarei nossa noite de núpcias com seu fantasma em nossa cama.

— Até seu fantasma desapareceu — Sussurrou ela, olhando-o nos olhos e sorrindo enquanto começava a lhe desabotoar a camisa.

Robbie tampou as mãos com as suas, assombrado por sua impaciência.

Assombrado embora, em realidade, não surpreso.

Levava três dias vivendo com uma desconhecida; uma mulher que parecia segura de si mesma, decidida e muito valente.

— O que aconteceu esta semana? — Resmungou, segurando bem suas mãos.

— Falei com uma coruja sábia e muito perspicaz — Disse ela; soltou-se e de novo ficou a abrir pouco a pouco os botões.

— Você falou com a Mary? — Sussurrou ele; deteve-a e a segurou forte desta vez — Ela falou contigo?

Catherine assentiu.

— Mantivemos uma maravilhosa conversa. Mary me explicou que eu estava te deixando pensar por mim, e que nosso casamento não ia funcionar enquanto eu permitisse que isso continuasse; que tinha que começar a pensar por mim mesma.

— Que eu pensava por você? — Repetiu ele; sentiu que subia calor pelo pescoço — Que diabos está dizendo?

Catherine tentou liberar-se de um meneio, mas ao dar-se conta de que ele não ia deixar recuperar as mãos, suspirou e balançou a cabeça.

— Mary me explicou que é uma coisa de homens, essa necessidade que têm você e seu pai de que eu enfrente meu ex-marido. Os homens escolhem o enfoque mais direto de um problema, e pelo geral implica brigar. Sua solução é que eu irrompa, pau em alto, empenhada em depurar minhas lembranças jogando-os à força de golpes. Estou no certo?

— Não pretendia que lutasse de verdade com Daniels; mas bem pensava em que enfrentasse a ele comigo a seu lado.

— E, exatamente, o que ia conseguir com isso, além de fazer que me sentisse segura só quando você esteja perto?

— Também veria que Daniels não é mais que um valentão.

— Mas se isso já sei… — Voltou a menear a cabeça — Mary tem razão: é uma coisa de homens. Mas, Robbie, as mulheres pensam de modo diferente. Não necessitamos um enfrentamento tremendo nem um momento decisivo para decidir que superamos um problema. Só temos que soltá-lo em nossa mente.

— Então por que não o fez faz três anos, quando se divorciou dele?

— Porque continuava pensando como uma vítima. E quando vim aqui e te conheci ,e inclusive depois de ir a Escócia, foi mais fácil estar de acordo com sua ideia de enfrentar Ron porque sabia que você me protegeria. — Baixou a vista para as mãos juntas dos dois, e sua voz se transformou em um sussurro — Esse é o problema de apaixonar-se pelos anjos da guarda; é muito fácil deixar que assumam o controle.

Ainda sem soltar as mãos, levantou o queixo com os nódulos e sorriu.

— Aos guardiães é mais fácil ainda nos fazer cargo das coisas, porque é nossa forma de pensar. — Inclinou-se e, com suavidade, beijou seus doces lábios; depois se afastou só um pouco — Perdoa, pequena Cat, por ter estado a ponto de te tirar seu poder em vez de te ajudar a encontrá-lo. Era o último que desejava fazer.

Assim que soltou suas mãos, Catherine rodeou a cintura e o abraçou.

— Então já estamos casados em todas as épocas — Disse. Com os lábios acariciou o peito onde tinha desabotoado a camisa — Quer isso dizer que por fim podemos começar a lua de mel?

— Sim — Grunhiu ele, ao tempo que a tirava da bancada e a levava nos braços à cama.

No instante em que a deixou ali, ela se levantou de um salto.

— Temos que acender as velas — Disse; foi correndo para a mesa e pegou a caixa de fósforos. Então se deteve, levantou a vista até ele e voltou a jogá-la na mesa — Anda, as acenda, marido, com sua magia.

Robbie se aproximou, tomou a mão na sua e a aproximou da vela que estava em cima da mesa.

— Só tem que desejar que a energia se mostre — Disse; roçou uma mecha com os dedos dos dois e em seguida afastou a mão quando apareceu a chama.

Ela deu um grito afogado e elevou o olhar para ele.

Ele levou as mãos dos dois até a seguinte vela e repetiu a magia; depois foi à terceira e soltou os dedos.

— Anda, pede-o, Catherine — Sussurrou — Primeiro imagina a chama em sua mente, conta com que apareça, e o fará.

— Mas eu não sei fazer magia — Disse ela; apesar disso, pegou o dedo à última cela.

— Mas é que a magia é você, pequena Cat — Sussurrou ele.

Sorriu enquanto ela tentava acender a vela jogando um olhar feroz. Então a puxou dos ombros, acrescentou sua vontade e a surpreendeu quando, de repente, a vela se acendeu.

— Isso o tem feito você! — Disse ela rindo; deu a volta e o rodeou com os braços.

Robbie a beijou intensa e muito conscientemente; depois a levantou do chão e voltou a levá-la nos braços à cama. Colocou-a sobre a colcha e cravou o olhar nela.

De novo Catherine se levantou, mas desta vez se ajoelhou no colchão, puxou de Robbie a camisa das calças e a desceu pelos ombros.

Ele desenredou o xale grande que havia trazido de Escócia…

Ela desabotoou o cinturão…

Sua esposa o tinha meio despido antes que ele tivesse conseguido desabotoar a blusa sequer. Ela afastou as mãos e desceu da cama, de frente a ele enquanto, devagar, desabotoava os botões, elevando o olhar com o sorriso de uma mulher que sabia exatamente o que desejava.

E nossa se Robbie não sentiu que começavam a encolher os dedos dos pés quando ela deslizou a blusa pelos ombros e a deixou cair no chão, descobrindo um sutiã de alças, meigamente, recolhia os seios, enquanto seus dois formosos mamilos cor de rosa empurravam contra o tecido brilhante. Esquecendo por completo sua própria necessidade de despir-se, Robbie alargou a mão e passou um trêmulo dedo por cima do fino encaixe, maravilhando-se diante o contraste de sua mão grande e morena junto à pálida pele.

Era tão delicada, tão absolutamente feminina. Tão… Dele.

A vela do batente da janela que estava em cima da cama se acendeu, refletindo-se nos brilhantes olhos de Catherine, enquanto esta desabotoava a saia e a deixava escorregar até o chão, descobrindo umas calcinhas combinando que eram mais fitas de seda. Depois ficou de pé em meio de sua roupa, com os olhos bailando de viva excitação. Robbie colocou as mãos à costas e fechou os punhos em uma tentativa por controlar sua imprevisível energia.

Uma segunda vela do batente ganhou vida flamejando.

— Tem um corpo muito formoso — Sussurrou Catherine, ao tempo que descia o zíper das calças com exasperante lentidão.

Outra vela, esta justo ao outro lado do quarto, sobre a bancada, ganhou vida flamejando.

— Não tem feito mais que me provocar com seu corpo desde que te conheci —Prosseguiu ela com voz rouca, quando as calças caíram a seus pés. Elevou a vista para ele e seu feminino sorriso se alargou; sua voz se transformou em um sussurro — E agora é todo meu.

Passou seus delicados dedos pelo estômago lentamente, subindo, fazendo sentir quebras de onda de desejo que o percorriam com um estremecimento.

Depois cobriu o peito com as duas mãos, roçando apenas o pelo com os dedos, inclinou-se para frente e beijou um mamilo.

A vela da mesinha de noite flamejou como um maçarico antes de acalmar-se e manter uma suave chama.

— Me toque, marido — Sussurrou, baixando a boca para a sua enquanto se apertava contra ele — Me ponha fogo.

Embora foi difícil, já que tinha os dedos dos pés muito encolhidos, Robbie por fim tirou os sapatos esfregando os calcanhares com o chão, rodeou Catherine com seus braços e tirou as calças. Depois a levantou do montão de roupa espalhada pelo chão e a levou nos braços à cama; colocou-a sobre a colcha e se apressou a estender-se junto a ela antes que se levantasse de um salto outra vez.

E não é que ela o tentasse: rodou para ele, entrelaçou os braços em torno de seu pescoço e o beijou com vontade de uma recém casada a ponto de compartilhar seu maior dom com seu marido. Robbie a beijou com vontade de um noivo a ponto de explodir.

Uma por uma, as velas dispersas pela cabana começaram a ganhar vida com um brilho, enquanto o leito de núpcias se esquentava com uma energia diferente a tudo o que Robbie tinha experimentado jamais.

Era tão diminuta e delicada e, entretanto, tão confiada e tão repentinamente audaz…

Suas mãos estavam por todo ele, acariciando-o, explorando-o, excitando-o…

Até que mal pôde resisti-lo.

Não soube como aconteceu, pois estava muito ocupado sentindo aquele contínuo vaivém de sensações, mas de repente sua mulher estava sentada escarranchado sobre seus quadris, massageando o peito com os dedos e com os úmidos e inchados lábios curvados em um sorriso.

— Vou muito rápido? — Perguntou ela, sem parecer que se preocupasse absolutamente semelhante possibilidade.

Robbie agarrou seus quadris e deteve seu movimento.

— Sim. Acredito que sim, querida. Se não afrouxarmos o ritmo, todo este lugar será posto das chamas.

Catherine piscou, desconcertada, olhou pela cabana e depois lançou um magnífico sorriso.

— Isso o tem feito você?

— Não, pequena Cat: tem-no feito você.

O precioso peito dela se inchou até que seus seios quase transbordaram do sutiã; então Robbie alargou os braços e os cobriu com as mãos, sentindo empurrar os mamilos contra sua palmas através do tecido. Ela levou as mãos à costas, abriu o broche, tirou as alças e os deslizou pelos ombros até que só as mãos de Robbie o mantiveram em seu lugar.

Ele deixou que caísse no peito e se apressou a voltar a pôr as mãos sobre seus seios nus. Ela jogou atrás a cabeça com um gemido de prazer, colocou suas mãos em cima das dele e moveu os quadris ao longo de seu membro.

Robbie já não pôde resistir mais aquela doce tortura. Rodou até estendê-la a seu lado e estendeu uma mão sobre seu peito para mantê-la quieta enquanto ele apoiava a cabeça na outra mão e a olhava.

Convencido de que não iria, embora incapaz de acalmar seus inquietos movimentos, Robbie se inclinou para beijá-la… Mas em vez disso deu um grito quando rodeou o membro com seus fortes e delicados dedos.

— Não — Resmungou, ao tempo que se apressava a apanhar as mãos por cima da cabeça — Teve semanas para explorar meu corpo, pequena Cat. Agora me toca conhecer o seu.

— Mas se não acabo de te explorar… — Replicou ela, tirando o lábio inferior.

— Sim — Disse ele com uma risadinha. Beijou sua careta e depois passou a boca muito devagar pelo queixo até o pescoço; ao chegar à base da garganta baixou a voz e a transformou em um sussurro — Embora não deve preocupar-se: não iremos desta cama sem que o tenha feito.

— Isso é uma promessa ou uma ame…? OH! — Catherine deu um grito afogado e arqueou as costas quando cobriu com a boca um duro e animado mamilo.

Pelo visto Robbie tinha encontrado uma forma muito interessante de acalmá-la. Passou vários minutos mantendo-a tão ocupada gemendo e retorcendo-se de prazer que esqueceu todo o referente a deixá-lo louco com suas próprias explorações. E depois fazer deliciosamente amor a seus seios, continuou a viagem descendente da boca pelo estômago até a parte superior de suas calcinhas.

Deslizou os dedos por debaixo do elástico e foi deixando ao descoberto cada vez mais dela enquanto se empapava do suor de seu esquentado corpo. Liberadas, as mãos de Catherine se afundaram nos ombros antes de agarrar o cabelo e guiá-lo por uma deliciosa viagem de um ponto sensível a outro. Deslizou as calcinhas pelas largas e preciosas pernas, as tirou de tudo e retornou para lhe beijar o umbigo.

Depois baixou mais, abriu-lhe as coxas e cobriu com a boca seu botão feminino, passando a mão sob seu traseiro quando ela se arqueou contra ele.

Robbie a sentiu esticar-se cada vez mais para o clímax, e continuou dando prazer, gozando da sensação de seu vivo ardor. Depois se moveu rápido, colocou-se entre suas coxas e manteve rígidos os braços para não esmagá-la.

— Abre os olhos, Cat.

Embora sua voz pareceu sobressaltá-la, os olhos de Catherine brilharam ao reconhecê-lo quando voltou para seu ser. Então alargou os braços, agarrou os ombros e sorriu.

— Sim, certamente não quero perder nada — Sussurrou, levantando os quadris e rebolando até que seu membro roçou sua entrada — Me disseram que esta é a melhor parte.

Apesar de sua urgência e sua imperiosa necessidade de reclamá-la, Robbie não pôde conter a risada que brotou do peito. Então baixou a testa até pegá-la a dela e fechou os olhos com um frustrado grunhido.

— Maldição, Cat. Isto é um assunto sério.

Ela afundou os dedos nos ombros e lambeu seus lábios com a língua.

Robbie se ergueu e recuou, ao tempo que cravava um olhar feroz em seus faiscantes olhos.

— Sim, marido — Murmurou ela com um gutural arremedo de seu sotaque, levantando os quadris justo o suficiente para que ele começasse a penetrá-la — Estar apaixonado é um assunto do mais sério…

Devagar, sem afastar o olhar do seu, Robbie a penetrou com cuidado; então recuou justo o suficiente para voltar um pouco mais fundo com outro cauteloso empurrão.

O sorriso de Catherine desapareceu, substituída por um gemido de prazer, e seus olhos se abriram mais enquanto cravava os dedos nos tensos músculos dos ombros de Robbie.

— Sim — Disse com um ofego — A magia existe.

— Sim — Sussurrou ele quando esteve completamente dentro dela.

Inclinou-se e beijou o sorriso; depois começou a mover-se com um ritmo primitivo que fez sentir que relâmpagos de energia o atravessavam.

E, de novo, sentiu Catherine esticar-se cada vez mais para a satisfação, enquanto recebia suas investidas com gritos de ânimo, entusiastas e bastante altos. Não podia deixar de olhá-la. Dava-se a ele de maneira tão livre e audaz, desfrutava do prazer dos dois de forma tão evidente, e era tão clara e franca em sua resposta que Robbie perdeu o que ficava de controle. Deixou de ser cauteloso e em vez disso começou a sentir… Cada flexão dos músculos dela, que o envolveram enquanto ele desatava toda a força de sua urgência.

A cabana se encheu de luz cegadora, e as chamas de todas as velas brilharam com um calor incandescente enquanto o ar se carregava com o resplendor palpitante de uma magia tão poderosa que deteve o tempo durante uma fração de segundo, para voltar a mover-se com a explosão da comum satisfação dos dois.

Catherine lançou um grito, e Robbie gritou também enquanto quebras de onda de caos os envolviam, levando-os mais à frente do limite da realidade, até o reino de sua união consumada… Levando-os a esse mundo mágico e maravilhoso onde dois corações se param para começar a pulsar como um só. O prazer deu a impressão de durar uma eternidade, e Robbie se negou a mover-se; em vez disso se manteve rígido, bem dentro de Catherine, enquanto os persistentes batimentos do coração dela seguiam esticando-se em torno dele.

Pelo visto Catherine tinha mais presença de ânimo, porque alargou os braços, passou devagar um dedo pelo lado da face até chegar ao queixo e, suavemente, fechou-lhe a boca. Depois sorriu… Com um sorriso quente e presunçoso; um sorriso de “Já te tenho”.

— Sim que foi a melhor parte — Sussurrou, levantando um pouco os quadris — E, decididamente, melhor que nada do que tivesse podido ocorrer.

Jogou uma olhada em torno da cabana que piscava com a luz das velas, e depois voltou a dirigir seu brilhante olhar para a dele.

— Se não te amasse tanto, talvez teria um pouco de medo. Vai acontecer isto cada vez que façamos amor? — Tomou o queixo nas palmas das mãos — Porque vai custar-nos uma fortuna em velas.

Ao se dar conta de que estava a ponto de desabar-se, Robbie se afastou rodando dela, sem soltá-la, e a pegou ao lado ao tempo que elevava a vista para as sombras que bailavam pelo teto.

— A verdade é que espero que não, pequena Cat, ou não chegarei a meu próximo aniversário.

Ela passou um braço e uma perna por cima e beijou o mamilo antes de colocar a cabeça no oco de seu braço. Ele a sentiu sorrir pega a seu peito enquanto soltava um suspiro de satisfação. De repente Catherine levantou a cabeça, olhou à mesa que estava junto à cama e começou a rir. Robbie se voltou para ver o que era tão gracioso… E fez tremer os dois com sua própria risada.

Ali sobre a mesinha de noite, apoiados em uma vela que ardia brandamente, havia três pacotes de camisinhas dos que brilhavam na escuridão.

Catherine voltou a acomodar-se contra ele e, enquanto tamborilava com os dedos em seu peito, disse:

— Acredito que é Cody… Não, é Rick — Inclinou a cabeça para levantar o olhar para ele e franziu o cenho — Acredito que em realidade há um brincalhão à espreita, latente atrás desse tranquilo porte dele.

Robbie pegou seus dedos e beijou o arrebitado nariz.

— Necessitamos das camisinhas, Catherine? A verdade é que não falamos do tema de aumentar nossa família.

Ela subiu até estar outra vez sentada escarranchado sobre ele e, devagar, meneou a cabeça.

— Não. Não necessitamos nada entre nós — Sussurrou — Eu adoraria ter uma família numerosa. Quer você um menino ou uma menina, senhor MacBain?

Robbie o pensou e elevou o olhar para a formosa e acesa face de sua esposa enquanto tratava de imaginá-la grávida.

— Talvez seis de cada… — Disse por fim.

O qual fez que ela risse.

O qual fez que os dedos dos pés dele começassem a encolher-se de novo.

— Amo-te, esposa.

Ela dirigiu um sorriso que eclipsou às velas.

— E eu amo você, marido. — Uma de suas sobrancelhas se elevou em um gesto de curiosidade, e outra vez aqueles exasperantes dedos começaram a subir devagar pelo estômago dele — recuperou já seu vigor?

De repente, todas as velas da cabana voltaram a flamejar.

 

Uma coisa era certa: dava igual se era no século XIII ou no presente mas, certamente, os escoceses sabiam celebrar umas bodas.

Disposta em várias mesas no jardim, havia comida suficiente para alimentar a uma nação pequena. E as pessoas! Havia dúzias e dúzias de parentes MacKeage e MacBain. De todo o país tinham vindo primos que levaram consigo maridos, esposas e meninos, para acrescentar suas bênçãos ao matrimônio.

Catherine estava um pouquinho aflita ao encontrar-se em meio de uma família tão grande, tendo em conta que era filha única e ficou órfã aos dezenove anos. Inclusive Nathan e Nora estavam aturdidos, transbordados por hordas de meninos que queriam brincar com eles e os chamavam “primos” de repente.

Depois estavam as pessoas do povoado que não deixavam de subir para dar a Catherine a bem-vinda a Pene Creek e desejar todo o melhor; quase sem exceção, disseram que Robbie era o melhor partido de três condados.

— Sim que cometeu um grande engano me pedindo que legalizasse uma assinatura falsificada — Disse Martha Bailey por cima de sua taça de ponche, justo antes de dar um sorvo.

— Sabia que não era a assinatura de Robbie? — Perguntou Catherine.

Martha assentiu.

— Então por que a legalizou?

— Chantagem — Disse a juíza com um sorriso — Marcus Saints me disse que há lugar para dois meninos mais aqui.

— Vamos encher essas camas com bebês — Disse Robbie enquanto se aproximava e rodeava com um braço o ombro de Catherine.

Martha descartou o comentário com um gesto.

—Construam mais quartos. E além disso, todo mundo sabe que os meninos saem mais baratos se comprarem por dúzias. — Olhou Robbie com um pestanejo — Agora mesmo tenho no tribunal de menores dois aos que vão liberar em julho; para então deveriam ter a ampliação acabada.

— Na segunda-feira pela manhã estarei em seu escritório para assinar uma licença nova. E quando Gunter consiga ficar, prosseguiremos esta conversa —Terminou Robbie com uma inclinação de cabeça ao tempo que levava Catherine.

Marcus Saints cruzou em seu caminho, baixando as mangas da camisa e abotoando os punhos. Ao dar-se conta de que tinha as mãos sujas as limpou nas calças, rindo.

— Vou ser milionário — Disse — Cody e eu vamos dedicar-nos ao negócio de fabricar escopetas de batatas para vender em internet.

Nathan se aproximou correndo, também com a camisa coberta de polpa de batata.

— Viu-me, mamãe? Salpiquei a rocha três vezes. — Elevou o olhar para o Marcus — Ouvi o que disse ao Cody. Posso entrar no negócio? Eu provarei todas as escopetas antes que as embalem.

Marcus lhe alvoroçou o cabelo, deu-se conta de que não tinha feito mais que manchar tudo de polpa de batata e tratou de limpá-lo com a manga.

— Claro, Nathan. Você será nosso diretor de controle de qualidade.

— Dentro de dez anos — Esclareceu Robbie, ao tempo que levava de novo Catherine e dizia adeus com a mão a Marcus.

Nesse momento chegou correndo o pai Daar com uma lata de refresco em uma mão, uma terrina de molho de aperitivo na outra e várias cenouras e caules de aipo aparecendo pelo bolso do peito.

— Quero falar um momento com você, Robbie — Disse, justo antes de levantar a terrina e lamber molho da borda.

— Amanhã — Disse Robbie, afastando com Catherine outra vez.

Ela começava a sentir-se como um cavalo ao que levam a rastros de um lado a outro junto à carreta, de modo que plantou os pés, deteve seu marido de um puxão e perguntou:

— Que problema tem, pai?

Daar meneou a cabeça.

— Não é exatamente um problema o que tenho — Disse — É mas bem um mistério.

Robbie suspirou e beliscou o pau do nariz.

— A ver, e qual é? — Sussurrou.

— É a raiz — Sussurrou Daar; jogou um olhar ao redor e se aproximou um passo mais — Não é o que eu esperava.

Robbie deu um olhar feroz.

— O que quer dizer com que não é o que esperava? É da árvore de Cùram. Sei que é.

— Sim, sim — Daar assentiu — E está crescendo perfeitamente, mas não é um carvalho. Essa árvore é um jovem pinheiro branco.

Robbie negou com um gesto.

— Não. A raiz era de um carvalho.

Daar tomou um sorvo de seu refresco e depois inclinou a cabeça.

— Está seguro? Não pegaria a raiz de um pinheiro próximo por engano? Crescia um perto do carvalho de Cùram?

— Não, estava sozinho na gruta. Pretende dizer que a raiz não vale nada? Que não poderá modificar seu feitiço?

— Não, isso não — Disse Daar — Tem a energia de uma árvore de sabedoria: sinto-a. É que não sei o que significa, nada mais, que tenha me trazido a raiz de um carvalho e ao crescer se converta em um pinheiro.

De repente o velho sacerdote deu um grito afogado e, da emoção, derramou molho na mão.

— Cùram! — Sussurrou — Esse velhaco trama algo.

— Que trame o que lhe dê vontade — Resmungou Robbie — Sempre que você modifique o feitiço.

Daar assentiu com gesto distraído.

— Sim, isso não é problema, MacBain. Seu pai e outros ficarão aqui.

Ficou olhando Robbie durante vários segundos; depois deu a volta e partiu, ao tempo que meneava a cabeça e murmurava para si.

Catherine elevou a vista para seu carrancudo marido e perguntou:

— Acha que seu pai e seus tios estão a salvo?

— Sim. Daar sabe que não deve me mentir… — Robbie se esforçou em esquecer do mau humor e de repente sorriu — Vem ao palheiro, esposa. Os dedos de meus pés estão desejando que os encolham de novo.

— Não podemos escapulirmos sem mais. Há muita gente aqui.

Nesse preciso instante se deram conta de que se aproximavam Libby e Michael. Michael levava a sua neta nos braços e sorria com o orgulho de um avô que acreditava ter algo que ver com sua criação.

— Vá esperar-me no palheiro — Disse Robbie em um sussurro; colocou a mão no traseiro de Catherine e lhe deu um empurrão — Me reunirei com você dentro de dez minutos.

Catherine fingiu não ver seus novos sogros e se apressou a correr para o estábulo.

Parou na entrada para que os olhos se acostumassem à penumbra, e depois foi até a casinha de Sprocket e se tirou uma cenoura do bolso.

—Toma, garotão — Deixou que arrancasse uma parte grande de uma dentada — Roubei isto para você.

— De quem é o casamento que está celebrando, Cathy?

Catherine girou sobre seus calcanhares com um grito afogado e se encontrou cara a cara com Ron, que estava de pé na soleira do quarto dos arreios.

— O que faz aqui?

— Todo mundo diz que me convidou a vir — Disse ele; saiu ao corredor e se colocou entre ela e a porta do estábulo — Mas não acredito que seja porque me tenha sentido falta; se sentisse minha falta, teria estado me esperando em casa.

Catherine colocou as mãos à costas e roçou a aliança com o polegar.

— A celebração de fora é por mim. Casei-me ontem.

A face de Ron se escureceu, e seus punhos se apertaram aos lados ao tempo que dava um passo para frente.

— Então por que fez correr a voz de que queria me ver?

Enquanto separava as mãos e cruzava os braços, Catherine jogou uma olhada discretamente pelo estábulo procurando um restelo, uma pá ou qualquer outra coisa que servisse como arma.

— Pensava que talvez você gostasse de ver seus filhos. — Caminhou até metade do corredor embora mantendo a distância com ele — Uma última vez, antes de sair de nossas vidas para sempre.

Ele correspondeu a seu movimento avançando também.

— Que amável de sua parte — Disse com desprezo, ao tempo que se interpunha entre ela e a pá apoiada na parede. A seguir sua voz baixou até um tom que Catherine reconheceu como a primeira fase da manha de criança que era — Tem ideia de como é a prisão para um policial? Brinquei com minha vida.

Incapaz de conter-se, sorriu.

— Bem-vindo a meu mundo, Ron. Eu passei seis anos brincando com a vida. —Viu que a cólera dele subia um ponto mais, e seu sorriso se alargou; então relaxou os braços aos lados — Quer ver seus filhos ou não? Porque tenho que voltar para meu marido.

Ron atacou provavelmente antes de saber sequer que ia fazê-lo. Mas Catherine estava preparada; moveu para a direita, para a liberdade, mas depois se precipitou à esquerda e agarrou a pá. Para quando ele se voltou para ela, tinha a pá bem segura e o cabo já ia para seu ombro.

Empurrou a mão direita para frente com toda sua força, usando o corpo como ponto de apoio, e Ron reagiu justo como Robbie havia dito que faria. Catherine empregou o impulso de seu bloqueio defensivo para dirigir o golpe para sua mandíbula. Ron desabou como um fardo. Seus olhos, muito abertos de surpresa, ficaram frágeis, depois entortaram e depois se fecharam de tudo enquanto seu corpo batia no chão de cimento com um golpe surdo; deve ter doer muito, e Catherine não pôde evitar estremecer-se.

Sua compaixão, entretanto, durou menos de um segundo. Nesse instante um risonho falatório chegou do teto do estábulo; Catherine olhou para cima e viu Mary.

— Não se atreva a rir! — Espetou, zangada — A violência não deve alegrar.

Mary desceu planando e aterrissou no peito de Ron. Deu uma fortíssima bicada na bochecha, que fez sangrar, e depois se largou de um salto e pôs-se a andar pelo corredor para a porta do estábulo.

Catherine atirou a pá e esfregou a testa. Depois, dirigindo-se à ave que partia, murmurou:

— Certo. Talvez o plano de Robbie sim que tinha alguma vantagem. Mas só porque Ron é um homem e a violência é quão único entende.

Com um gesto indicou a Mary que partisse.

— Venha, vá procurar a meu marido. Deixaremos que se encarregue de recolher tudo isto já que a ideia de convidar a Ron foi dele. Mas, sabe uma coisa? —Disse em voz baixa. Mary se deteve — Foi quase decepcionante, depois de tudo o que me tinha preocupado. Eu pensava que ao menos haveria alguma emoção, mas não sinto nada; nem aborrecimento, nem alívio, nem sequer lástima. Simplesmente… nada.

As últimas palavras pronunciou encolhendo os ombros.

Mary piscou, depois deu a volta e saiu pela porta voando.

Catherine se sentou em um monte de palha e, enquanto esperava, observou atentamente Ron para surpreender-se de quão pequeno era.

Três anos antes…

Nossa, homem, só três meses antes Ron parecia medir seis metros e meio. Mas depois de viver com um gigante autêntico, de amá-lo e fazer amor até encolher os dedos dos pés, Catherine disse que um metro oitenta era uma minúcia. Insignificante. E, além disso, sim: absolutamente suave.

Reparou em que Ron tinha engordado até o ponto de parecer desalinhado. Tinha barriga, as bochechas inchadas, e era provável que a bicada que Mary tinha dado (ai, mas que ave tão má…!) deixasse uma cicatriz na amarelada cara. Precisamente tampava a boca para conter uma risadinha quando seu marido cruzou como uma exalação a porta do estábulo, escorregou até deter-se do outro lado de Ron e cravou os olhos nela.

— Mary diz que tem uma coisa a me dizer — Sussurrou ele.

Parecia tranquilo, mas Catherine viu preocupação, medo e cólera em cada centímetro de seu imponente corpo.

Com um suspiro, disse:

— Bom, acredito que tenho várias coisas que te dizer. Bem… Provavelmente começarei por dizer obrigada pelas lições de briga. — Sorriu — Reconheço que vêm bem de vez em quando.

— E que mais? — Sussurrou ele, muito baixo.

— E, além disso, acredito que sua ideia de fazer frente a meus demônios talvez tenha alguma vantagem. — Sorriu de novo — Esteve bastante bem ter o controle, para variar.

— E que mais? — Perguntou ele mais baixo ainda; devagar, enquanto os músculos de seu pescoço e seus ombros iam relaxando.

— E, além disso, que necessito sua ajuda com um problema que tenho.

— Que problema?

Catherine assinalou Ron.

— Agora que está aí, não sei o que fazer com ele.

Robbie baixou a vista e depois voltou a olhá-la.

— Quer que te faça uma sugestão, ou, simplesmente, que me ocupe do problema por você?

Catherine pôs os cotovelos sobre os joelhos, tomou o queixo nas palmas das mãos e cravou o olhar em Ron.

— Não sei. Parece-me que talvez esta seja uma dessas vezes em que um marido vem muito bem. — Com o queixo ainda nas mãos, elevou a vista e sorriu — E além disso, se te deixar que se desfaça dele, isso satisfaria sua necessidade masculina de ser protetor.

Robbie cruzou os braços sobre o peito e levantou uma sobrancelha.

— Vai ter que me dar um manual de instruções para saber quando devo ser seu marido, seu guardião ou seu subordinado.

Catherine se levantou, rodeou Ron, deteve-se diante de Robbie e o olhou sorrindo.

— Acredito que até agora o temos feito bem sem o manual — Sussurrou, ao tempo que o rodeava com os braços e se apoiava em seu peito — Que tal vão os dedos de seus pés?

— Não me tente, mulher… — Resmungou ele, lhe dando um feroz abraço — Já te disse que minha tarefa de guardião é o primeiro.

Ela se aconchegou contra seu peito, impregnando-se de seu aroma, e fechou os olhos com um suspiro.

— Então acredito que mais vale que o leve aos subúrbios do povoado antes que desperte…

Robbie deu um último empurrão, afastou-a e se aproximou de Ron.

— Mas leve aos meninos — Acrescentou ela.

Robbie, que tinha agachado para recolher a Ron. Voltou a levantar-se.

— Como? Por quê?

— E Nathan. Quero que leve Nathan com você.

— O quê?

— Recorda Ron como um monstro. Deixa que veja que não há nada que temer. E além disso, assim saberei que você não… — Assinalou a Ron — Que não ampliará o bom trabalho que temos feito Mary e eu.

Esfregou as mãos e caminhou para a porta. De repente se deteve e se voltou a olhá-lo.

— Estarei te esperando lá em cima, na cabana — Disse, ao tempo que dirigia um radiante sorriso — De modo que não demore muito, marido. Levarei velas novas.

 

 

[1] Amieiro - Alnus é um gênero botânico pertencente à família Betulaceae. Ela contém 30 espécies de árvores e arbustos, monóicas (muito poucos dos quais são até de grande porte), distribuídos por todo o mundo.

[2] Filme Coração Valente (Mel Gibson)

[3] Uma brincadeira, que se joga quando se está dirigindo. Assim que uma pessoa vê um carro com 4 faróis, grita Four Play, e o último a gritar tira uma peça de roupa. (A personagem se refere ao som da palavra four – for– que seria, traduzindo, para brincar).

[4] Picea é uma planta, do gênero de coníferas, vulgarmente designadas como píceas ou espruces pertencentes à família Pinaceae. Possui 35 espécies que podem ser encontrados em climas temperados e boreais no hemisfério Norte.

 

                                                                                Janet Chapman 

 

                      

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